Está en la página 1de 11

Relações de Fernando Pessoa com presença

Tratar das relações entre Fernando Pessoa e a presença quer dizer ocupar-se dum diálogo
extremamente vivo e fecundo, tanto para o poeta dos heterónimos, quanto para a revista coimbrã
que começou as suas publicações em 1927. De facto, se é quase automática a associação entre o
autor da Mensagem e as revistas que veicularam o chamado “primeiro modernismo” – acima de
todas, Orpheu – e aquelas a que Pessoa colaborou mais assiduamente, chegando a ser director – é o
caso da Athena –, convém não esquecer a mútua importância dum contacto que se deu com certa
regularidade nos últimos oito anos da vida do poeta: por um lado, Fernando Pessoa foi desde o
início, e ao longo de todo o percurso da "folha de arte e crítica", um ponto de referência e um
modelo superior de "literatura viva", para utilizar a famosa expressão forjada pelo director e
principal teorizador da revista, José Régio; por outro, a presença foi talvez a revista que mais se
esforçou para divulgar o nome (ou, para melhor dizer, os nomes) de uma das mais multíplices e, até
então, incompreendidas personalidades literárias do início do século XX.
Antes de tentar abordar os dois aspectos deste relacionamento cultural, será talvez útil
lembrar as suas marcas cronológicas e os números que o resumem. Encontramos a primeira menção
a Fernando Pessoa logo no primeiro número da revista (10 de Março de 1927), no citado artigo de
José Régio, «Literatura Viva», que aponta o antigo director de Orpheu como exemplo de escritor
superior1; noutro artigo de José Régio - «Da Geração Modernista» - contido no n° 3 da presença,
Pessoa é considerado pela primeira vez um «mestre contemporâneo», ao lado de mais dois
protagonistas da geração de 1915, Mário de Sá Carneiro e José de Almada Negreiros. Provável
consequência destes atestados de estima por parte dos responsáveis da revista é o aparecimento da
primeira colaboração pessoana no n° 5 da revista coimbrã (4 de Junho de 1927), constituída pelo
poema «Marinha» - do ortónimo - e pelo conjunto de aforismos intitulado «Ambiente», assinado
por Álvaro de Campos2. É a primeira de uma série de contribuições que Fernando Pessoa irá
assegurar à presença até à data da sua morte, sendo a última colaboração em vida o poema «Eros e
Psique», inserido no n° 41-42 de Maio de 1934. O quadro que segue mostra os dados relativos à
frequência das aparições pessoanas na folha de Coimbra:
Ano Colaborações n.os em que aparece
1927 3 n.os 5, 6
1928 4 n.os 10, 16
1929 2 n.os 18, 20
1930 3 n.os 27, 29
1931 7 n.os 30, 31-32, 33
1932 4 n.os 34, 35, 36
1933 3 n.os 37, 38, 39
1934 1 n.° 41-42
1935 - -
Colaborações póstumas
1936 3 n.° 48
1937 1 n.° 49
os
1938 2 n. 52, 53-54
1939 1 2ª série, n.° 1
1940 1 2ª série, n.° 2

Os números são testemunhos duma presença bastante assídua, sobretudo a partir de 1930,
pelas razões que tentaremos sugerir. É interessante verificar que o nome de Fernando Pessoa
continua a aparecer mesmo depois do falecimento do escritor, naquela que foi a derradeira fase da
vida da revista: aliás, o n° 48 (Julho de 1936) foi-lhe inteiramente dedicado.
Dentro dos trinta e cinco trechos literários oferecidos à presença, Fernando Pessoa
privilegiou a poesia (por vinte e cinco vezes), fornecendo contudo também prosa (em seis casos),
correspondência (três) e uma tradução do inglês dum poema de Aleister Crowley (Mestre Therion).
Como não podia deixar de ser, Pessoa foi "plural" também nas páginas desta revista: se a assinatura
do ortónimo figura quinze vezes, o «velho, mas não muito querido amigo» Álvaro de Campos é
responsável de doze colaborações, Ricardo Reis de quatro, enquanto Alberto Caeiro e o
semi-heterónimo Bernardo Soares subscrevem cada um duas aparições.
Além do que foi publicado nas páginas da «folha de arte e crítica», a relação Fernando
Pessoa-presença pode ser compreendida graças à abundante correspondência que os directores da
revista mantiveram com o seu ilustre colaborador durante os oito anos que decorrem entre a estreia
da folha coimbrã e a morte do escritor. Trata-se de cento e onze cartas3 através das quais é possível
reconstruir este diálogo e conhecer em pormenor o grau de participação do poeta na vida da
presença assim como a influência recíproca que resultou deste relacionamento. Foi João Gaspar
Simões quem mais se carteou com o antigo director de Orpheu: um total de oitenta e quatro cartas
contra as quinze que compõem a correspondência com José Régio e as onze trocadas com Adolfo
Casais Monteiro. De facto, se nos primeiros meses de vida da revista Simões se encontrava na
Figueira da Foz - o que justifica o facto de ter sido Régio o primeiro a entrar em contacto epistolar
com Pessoa - foi mesmo o autor de Elói quem residiu mais estavelmente em Coimbra e, portanto,
quem se ocupou mais de perto da organização, da realização e da distribuição da revista, o que
incluía a tarefa de manter os contactos com amigos e colaboradores4.
Das cartas depreendemos que os directores da presença se dirigiam a Fernando Pessoa não
apenas para o solicitar a colaborar na revista - o que muitas vezes era preciso, dada a inconstância
que o poeta demonstrava no cumprimento das promessas - mas também porque tinham nele um
importante ponto de referência para a realização de algumas iniciativas da folha, sobretudo as
ligadas à divulgação e valorização dos artistas da geração de Orpheu. Pessoa representava o
interlocutor ideal para aproximar os intelectuais recém-saídos da Universidade de Coimbra, do
grupo de artistas que tinham causado escândalo na década anterior, o guia experiente a quem
recorrer para seleccionar as obras mais significativas, merecedoras de encontrarem nas páginas da
«folha» um eco possivelmente maior do que tinham conseguido nas revistas do primeiro
modernismo. De facto, Fernando Pessoa respondeu várias vezes aos pedidos dos seus jovens
amigos sugerindo a reedição de obras já publicadas nos dois números de Orpheu - ou que o seriam
no terceiro número frustrado - ou ainda na Contemporânea e na Athena. A estas revistas Pessoa
referiu-se também para assinalar facetas menos famosas da sua obra que despertavam o interesse
dos seus interlocutores: sugere, por exemplo, um conjunto de poemas que devia ter saído no Orpheu
3 («Além-Deus») como exemplo de composição de género ocultista, na véspera da publicação na
folha coimbrã de «O Último Sortilégio», poema semelhante que tinha suscitado em Gaspar Simões
uma curiosidade especial; ou ainda é o mesmo Simões quem menciona a Athena a respeito dumas
«maravilhosas traduções de Poe» que Pessoa tinha publicado naquela revista e que o jovem crítico
gostava de apresentar na presença.
Os directores da presença consultavam o pai dos heterónimos sobretudo a respeito da
publicação de versos de Mário de Sá-Carneiro quem, como é sabido, antes de se suicidar, tinha
confiado ao amigo a responsabilidade de orientar a eventual publicação das suas obras: a presença,
além de apresentar poemas soltos nas suas páginas (alguns inéditos por não terem saído no terceiro
número do Orpheu, de onde Pessoa os extraiu), projectou em 1929 uma edição das obras de Mário
de Sá-Carneiro para a qual o poeta amigo foi convocado a dar elucidações não só a respeito da sua
organização e distribuição em volumes, mas também sobre aspectos comerciais e sobre o delicado
problema dos direitos de autor. Apesar de constituir o assunto fundamental das cartas trocadas entre
Pessoa e Simões durante mais de um ano, a projectada edição não foi realizada, mas a hipótese de
publicar uma obra de Sá-Carneiro voltou a surgir quatro anos mais tarde: Pessoa sugere então os
Indícios de Oiro, que virão a ser publicados só em 1937 segundo os critérios elaborados pelo autor
da Mensagem durante cerca de um ano de correspondência com Gaspar Simões; nas duas ocasiões é
repetidamente citada a Athena por ter publicado um estudo introdutório de Fernando Pessoa a
Sá-Carneiro que o próprio autor pensou utilizar como prefácio à edição da presença e por nessa
revista terem sido publicados alguns poemas a respeito de cuja inclusão nos Indícios de Oiro Pessoa
mantinha uma dúvida.
Há portanto - graças ao intermédio do ilustre colaborador - o sinal concreto de uma
continuidade entre os órgãos mais ou menos efémeros que tinham protagonizado a fase mais
rutilante do modernismo português e a revista de Coimbra que pretendia receber a sua mensagem
para difundi-la e tentar aplicar-lhe uma interpretação livre de preconceitos.
Além de enviar colaboração própria e de Mário de Sá-Carneiro e de orientar os projectos
editoriais relativos ao amigo suicida em Paris, Fernando Pessoa acompanhou sempre a vida da
presença pedindo muitas vezes aos directores com que se correspondia esclarecimentos sobre
episódios que lhe motivavam particular atenção. Foi o caso da contestação que os presencistas
reservaram à homenagem dedicada em 1930 pela Academia de Coimbra ao poeta António Correia
de Oliveira, a propósito da qual Pessoa pede explicações sobre o «manifesto a rir» publicado pelos
irrequietos moços e lançado das galerias do Teatro Avenida em que a manifestação teve lugar.
Como é óbvio, Pessoa não se interessava apenas por estas expressões mais iconoclastas do grupo de
Coimbra: de facto, quando em Março do mesmo ano João Gaspar Simões participou em Lisboa no I
Salão dos Independentes - exposição que reunia artistas contemporâneos - pronunciando uma
conferência sobre a poesia moderna, o autor do «Adiamento» - poema de Álvaro de Campos
incluído no Cancioneiro publicado à margem da exposição - perguntou ao jovem amigo onde seria
publicado o texto da palestra em que se via mencionado ao lado dos representantes mais
importantes da geração.
A relação de recíproca estima entre Fernando Pessoa e os directores da presença fez com
que o poeta trocasse com eles impressões acerca de algumas polémicas em que os representantes da
revista se foram envolvendo. Foi por exemplo o caso da disputa entre João Gaspar Simões e
António Sérgio acerca das teorias expostas pelo primeiro no seu livro O Mistério da Poesia, de
1931: Pessoa acompanhou com muito interesse o desenrolar-se da controvérsia e, graças à sua
maior experiência, quis ajudar o jovem amigo dando-lhe sugestões acerca da melhor atitude a
adoptar.
A polémica mais importante nos primeiros anos da vida da presença foi a que em 1930
originou a cisão dos dissidentes Branquinho da Fonseca (director fundador da revista), Adolfo
Rocha e Edmundo de Bettencourt, responsáveis da famosa «Carta a José Régio e João Gaspar
Simões, directores da presença» em que denunciavam a existência de hierarquias - para eles
inaceitáveis - no seio da revista. Fernando Pessoa, numa carta a Simões de 28 de Junho, manifesta a
sua surpresa e a sua perplexidade acerca do conteúdo do texto assinado pelos três, expressando
assim, mesmo de forma indirecta, a sua solidariedade para com os directores restantes. Para reforçar
este sentimento contribuiu sem dúvida a concomitância desta polémica com outra que envolvia
directamente Fernando Pessoa e um dos dissidentes, Adolfo Rocha: este, que publicara o seu livro
de estreia, Rampa, antes de adoptar o pseudónimo de Miguel Torga, recusara de forma bastante seca
o parecer crítico do seu colega mais experiente - «mestre contemporâneo», na referida opinião de
José Régio -, tal como rejeitara a suposta posição de «mestre» de José Régio no seio da presença.
Foi o próprio Pessoa a sugerir na referida carta a Simões a ligação entre os dois episódios. O
director da revista concordou de imediato, uma vez que reputava Rocha o «verdadeiro agente» da
cisão, e aproveitou da solidariedade do poeta amigo para o convidar a uma colaboração ainda mais
regular na presença, o que Pessoa aceitou com agrado. De facto, como se pode verificar no quadro
atrás publicado, a partir do n° 27 em que a dissidência é anunciada, a presença de Pessoa na folha
coimbrã é constante até à sua última aparição de Maio de 1934, falhando apenas no n° 28 e no n°
40. A presença perdera um dos seus directores - que virá a ser substituído por Adolfo Casais
Monteiro a partir do n° 33 de Julho-Outubro de 1931 - e dois importantes colaboradores, mas tirara
vantagem no reforçar das relações de estima, simpatia e colaboração com Fernando Pessoa.
A natureza deste relacionamento nunca anulou, como é óbvio, a distância que separava os
interlocutores em termos de idade e de experiência artística e intelectual, nem pode fazer esquecer
que a verdadeira razão do contacto era a colaboração de Pessoa numa revista que o tinha elegido
entre os seus «mestres». Mas esta distância era também a razão que, de facto, tornou frutuoso o
convívio - epistolar, dada a distância física - entre o poeta e a presença. A ele os jovens intelectuais
da revista se dirigiam frequentemente para pedirem o ilustre parecer sobre os seus trabalhos
artísticos ou críticos, como já vimos no caso (infeliz) do livro Rampa de Adolfo Rocha. Apesar do
mau êxito deste episódio, é preciso dizer que na expressão das suas opiniões Fernando Pessoa nunca
usou daquele «ar doutoral» ou daquele «desplante de Mestre» de que João Gaspar Simões se tinha
queixado a respeito da atitude de António Sérgio na referida polémica que os dois protagonizaram 5.
Aliás, o próprio Pessoa declarou a este respeito numa carta a Adolfo Casais Monteiro: «Nunca me
propus ser Mestre ou Chefe - Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe,
porque nem sei estrelar ovos»6. Quem escreveu assim mostrou sempre - pelo menos na sua relação
com Simões, Régio, Casais Monteiro e Rocha - a ausência de qualquer atitude polémica ou
contundente e, apesar de não lhe faltarem argumentos para defender as suas ideias, nunca exibiu
qualquer pretensão de infalibilidade; chamado a exprimir a sua opinião, tentou ser sinceramente útil
para quem movia os primeiros passos no horizonte cultural português.
Como é óbvio, maior atenção lhe mereciam os trabalhos dedicados à sua obra. José Régio
fora o primeiro a dedicar um comentário crítico à figura do poeta dos heterónimos na sua
dissertação de licenciatura, As Correntes e as Individualidades da Moderna Poesia Portuguesa,
publicada em 19257: infelizmente, não existem testemunhos da recepção deste trabalho por parte de
Fernando Pessoa, mas o que as cartas enviadas por ele a José Régio mostram desde o início é a sua
alta opinião acerca das qualidades intelectuais do jovem crítico assim como a admiração do seu
valor como poeta, que o levou a aproximar o «modo de sentir» do autor dos Poemas de Deus e do
Diabo ao do seu «único grande amigo», Mário de Sá-Carneiro8. Temos, sim, a reacção de Fernando
Pessoa ao primeiro estudo a ele dedicado em livro, o ensaio de João Gaspar Simões intitulado
«Fernando Pessoa» incluído em Temas, de 1929: o poeta visado diz-se comovido pela atenção
minuciosa com que o jovem director da presença o analisa em pormenor9; noutro documento - o
rascunho da carta de agradecimento efectivamente enviada - Pessoa ia muito além no tom das suas
palavras, chegando a ler no estudo publicado um «momento, pelo menos sonhado (entrevisto) de
libertação» pois que nele vislumbrava pela primeira vez a possibilidade de ser compreendido e
reconhecido como artista10. Mas já as palavras da carta recebida animaram Simões a continuar na
sua tentativa de interpretação do complexo génio pessoano; desse esforço - encorajado por Pessoa -
resultou o estudo «Fernando Pessoa e as vozes da inocência» publicado em 1931 no referido
volume O Mistério da Poesia. Desta vez o poeta não poupou algumas críticas ao ensaísta, mesmo
reafirmando a sua alta consideração pelo talento dele e a sua intenção benévola: de facto, Pessoa
censurava alguns excessos interpretativos, nomeadamente a tendência - na esteira das teorias
freudianas, de que Pessoa desconfiava - a alargar o estudo do artista ao estudo do homem, ou seja, a
tentativa de ler o homem através das obras11. O autor de «O Último Sortilégio» considerava esta
leitura psicanalítica como uma necessidade de explicar de mais, uma «doença do crescimento»
quase inevitável na percurso evolutivo do jovem crítico. Simões nunca concordou plenamente com
os reparos do seu ilustre correspondente - como demonstram as «Notas à margem de uma carta de
Fernando Pessoa» que apôs à sua publicação no n° 48 da presença (Julho de 1936) - mas acabou
por aceitá-los como estímulos positivos procedentes de uma pessoa amiga. De facto, pode-se
insinuar que ao afirmar a necessidade de distinguir o escritor do homem, Pessoa talvez estivesse a
tentar esquivar-se duma interpretação demasiado invasiva, que o apanhava de surpresa, para sugerir
outra, orientada por ele, mais próxima da imagem que ele queria dar de si próprio.
Parece-me ser este o caso da carta a Adolfo Casais Monteiro «sobre a génese dos
heterónimos», de 13 de Janeiro de 1935; como é sabido, a carta responde a um pedido de
explicações do mais jovem director da presença, quem tencionava dedicar um estudo ao autor do
«drama em gente»: oportunidade soberana que Pessoa aproveita escrevendo uma obra mais
ficcional do que propriamente meta-literária, em que, além de elaborar12 os abundantes e
celebérrimos detalhes relativos ao nascimento e desenvolvimento - biográfico e artístico - das suas
sub-personalidades e das suas principais obras, explica a origem infantil e as motivações da sua
tendência para a despersonalização, numa declarada auto-diagnose psiquiátrica que contrasta, de
alguma maneira, com os reparos dedicados aos excessos da análise proposta por Simões quatro anos
antes.
Assim, a presença - na pessoa do director a que é endereçada esta epístola só aparentemente
particular - torna-se veículo de difusão dum dos mais citados metatextos pessoanos; a intenção de
Fernando Pessoa a este respeito é bem evidente, já que repetidamente anuncia a sua disponibilidade
a fornecer informações ulteriores e previamente autoriza a publicação de excertos da carta, de que
cuida tirar uma cópia suplementar.
A correspondência entre Fernando Pessoa e Adolfo Casais Monteiro, apesar de conter esta
jóia da epistolografia portuguesa, é a menos regular das que o poeta manteve com os directores
presencistas, também por não tratar directamente de assuntos relativos à colaboração do antigo
responsável de Orpheu na folha coimbrã13. O que não faltou entre os dois foram as oportunidades
de pôr à prova a estima recíproca e o respeito das opiniões do outro; em particular, o jovem director
demonstrou no seu relacionamento com Pessoa uma peculiar verve crítica que, contudo, não lhe
alienou a simpatia do poeta, antes, foi por ele apreciada e acabou por reforçar a alta consideração
que tinha dele. Por exemplo, Casais Monteiro tinha explicitamente censurado - no n° 35 da
presença - o prefácio que Fernando Pessoa tinha dedicado ao livro de poemas Acrónios, de Luiz
Pedro; o prefaciador visado não só demonstrou aceitar as críticas de Casais Monteiro mas até
gostou delas, achando, de facto, não ter sido suficientemente claro na explicação das suas teorias
sobre a natureza da poesia14. Mais tarde, em 1935, quando Pessoa recebeu o prémio do Secretariado
da Propaganda Nacional graças ao seu livro Mensagem, o autor de Confusão sinceramente felicitou
o premiado mas ao mesmo tempo confessou achar absurdo que Pessoa fosse colocado ao mesmo
nível de Vasco Reis - o outro poeta distinguido pelo júri - tal como lamentou que o seu interlocutor
tivesse escolhido para a sua estreia um livro que, a seu ver, representava um aspecto secundário da
complexa personalidade do seu autor15. Estas considerações encontraram resposta na famosa carta
de 13 de Janeiro de 1935, em que Pessoa concorda com o seu jovem amigo e alega motivos de
oportunidade prática para justificar a escolha de Mensagem como primeiro livro publicado.
Apesar do desejo expresso por Fernando Pessoa numa carta de 26 de Dezembro de 1933 e
da tentativa feita por Casais Monteiro por ocasião duma sua viagem a Lisboa em Junho do mesmo
ano16, o mais jovem director da presença foi o único a não ter a oportunidade de conhecer
pessoalmente o poeta dos heterónimos. De facto, em Junho de 1930, aquando da referida
participação presencista no I Salão dos Independentes, João Gaspar Simões e José Régio
encontraram Fernando Pessoa no Café Montanha; Simões, nas suas reconstruções deste episódio,
sublinhou sempre certa decepção nesse primeiro convívio com o grande poeta de Lisboa: refere
que, quer ele quer Régio, tiveram a impressão de que Pessoa mantivesse uma espécie de reserva no
contacto com dois jovens intelectuais procedentes da província e que, por causa disso, utilizasse a
máscara do Sr. Engenheiro Álvaro de Campos; sobretudo José Régio, por causa do seu carácter
«suspicaz e tímido, orgulhoso e prudente» - sempre segundo quanto refere Simões - foi quem
menos gostou da «pouca sinceridade» manifestada por Pessoa, o que o levou a deixar de o procurar
e até de escrever sobre ele17. Ora, esta última afirmação de Gaspar Simões parece exagerada à luz
das cartas trocadas por Régio e Pessoa depois deste episódio e dos textos posteriores que o escritor
de Vila do Conde dedicou ao poeta, entre os quais figuram com toda a probabilidade as notas que a
redacção da presença dedicou em 1935 à publicação da Mensagem e à morte de Fernando Pessoa18.
Se, como tentámos sumariamente reconstruir, Pessoa acompanhou com interesse a vida da
presença, a ilustrou com as suas colaborações e pôs a sua experiência e sensibilidade à disposição
dos jovens interlocutores numa relação fundamentalmente sincera e aberta, a maior contribuição da
revista coimbrã para a vida artística e intelectual do poeta do Orpheu foi, sem dúvida, o constante
esforço para o tornar mais conhecido, ele que era - e que acabou por ficar - um escritor
substancialmente inédito.
João Gaspar Simões - baseando-se na sua experiência directa - afirmou ser falsa a ideia
segundo a qual Fernando Pessoa se manteve sempre firme na sua recusa à hipótese de publicar
livros seus19 e é verdade que as relações do poeta com os directores da presença registam sinais
contraditórios a este respeito: enquanto se manteve forte a desconfiança relativamente à existência
de uma plateia digna da sua obra, Pessoa manifestou a sua intenção de não publicar «livro nem
folheto algum», como escreve na sua «Tábua bibliográfica» que aparece no n° 17 da revista, de
Dezembro de 1928. Mas - como já vimos a propósito das suas reacções aquando da publicação do
estudo a ele dedicado no volume Temas, de Gaspar Simões - quando ele entreviu no trabalho do
jovem crítico a possibilidade de ser compreendido «como uma alma que escreve», logo interpretou
a hipótese da celebridade como «sinónimo psíquico de liberdade», evasão da prisão da indiferença
alheia, fuga de uma vida vivida «de portas adentro»20. De facto, os contínuos convites a uma
assídua colaboração na revista, as exortações à publicação em volume - de que a correspondência é
testemunho - e o esforço de compreensão produzido nos estudos que os presencistas lhe dedicaram
(até fora das fronteiras pátrias, como no caso de Pierre Hourcade), tudo isto é recebido por
Fernando Pessoa com surpresa e gratidão, como o próprio poeta escreveu a José Régio de forma
bem expressiva: «Os que, como eu, são habitantes da fronteira social recebem sempre com um
agradecimento que tem trajo de pasmo essa visita do interesse jovem e do acolhimento como que
futuro»21.
Daí a disponibilidade para oferecer aos leitores da presença elementos inéditos da sua
produção ou para explicar aspectos mais escabrosos como os poemas ingleses «Antinous» e
«Epithalamium», por ele próprio definidos de «obscenos»22. Quanto à hipótese de publicar em
volume - constantemente invocada pelos presencistas, para poderem estudar melhor uma obra
conhecida só em mínima parte - a atitude de Fernando Pessoa revela-se inconstante: declarações de
falta de interesse por si próprio ou de fatalismo alternam-se a momentos de abertura. Dois
momentos importantes a este respeito são os planos de publicação que Pessoa comunica antes a
João Gaspar Simões, na carta de 28-7-1932, e depois a Adolfo Casais Monteiro, na famosa carta de
13-1-1935, em que expõe em pormenor as suas intenções relativamente à eventual realização
editorial da sua obra23. Simões baseou-se sobretudo nestas informações para demonstrar a
disponibilidade pessoana à publicação e para orientar a edição póstuma das Obras Completas de
Fernando Pessoa, da Ática. Mas que não se tratasse da derradeira vontade do poeta é demonstrado
pelo segundo plano, expresso na carta a Casais Monteiro, que apresenta importantes diferenças em
relação ao que Pessoa afirmara ano e meio mais cedo. Entre elas, parece-me importante sublinhar a
intenção relativa à publicação da obra dos heterónimos: na carta a Simões, o autor tencionava
inseri-la numa série intitulada Ficções do Interlúdio em que os nome das subpersonalidades
pessoanas seriam subordinados ao verdadeiro nome do poeta; no plano descrito na carta a Casais
Monteiro, ele anuncia a vontade de não publicar nada deles (a não ser, acrescenta ironicamente, no
caso de ganhar o Prémio Nobel) salvo, na carta seguinte, recuar parcialmente nesta decisão,
justificando-a com razões meramente comerciais. De facto, o único livro publicado - Mensagem -
foi-o em condições particulares, ligadas à efectiva hipótese de ganhar o premio do Secretariado da
Propaganda Nacional. Portanto, os obstáculos - de vária ordem - que Fernando Pessoa opunha à
possibilidade de publicar revelaram-se mais fortes do que o esforço meritório dos presencistas para
conseguir que o ex-director de Orpheu obtivesse, em vida, aquela fama que eles julgavam
merecesse.

1
Aliás, é curioso frisar que não é o Pessoa poeta a ser referido, mas sim o crítico: «Literatura viva é aquela em que o
artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem
superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que ele produza será superior;
inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são
espantosamente vivos, e as comédias de Sá de Miranda irremediavelmente mortas; […] que um pequeno prefácio de
Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de Figueiredo […]».
2
Também no mesmo número a revista apresenta pela primeira vez colaborações dos outros dois «mestres
contemporâneos» citados por Régio: um desenho de Almada Negreiros figura na primeira página, enquanto o poema
Ápice de Mário de Sá-Carneiro ocupa a mesma página dos dois trechos pessoanos.
3
Cartas publicadas - juntamente com quatro rascunhos ou cartas não enviadas e três documentos relativos à
correspondência entre Fernando Pessoa e o presencista dissidente Adolfo Rocha (Miguel Torga) - em Cartas entre
Fernando Pessoa e os directores da presença, edição e estudo de Enrico Martines, Lisboa, INCM, 1998.
4
A correspondência inclui também uma carta (de 17 de maio de 1929) genericamente endereçada pelo poeta à redacção
da presença. A mais antiga carta disponível é a que o poeta endereçou a Régio a 26 de Janeiro de 1928, sendo contudo
provável que o primeiro contacto epistolar entre Pessoa e a revista tenha ocorrido já no ano anterior; o documento mais
recente é o rascunho duma carta que o autor da Mensagem pensara enviar a Adolfo Casais Monteiro, datado de 30 de
Outubro de 1935, enquanto a última unidade de correspondência efectivamente trocada é um postal do mesmo director
da presença de cinco dias mais antigo.
5
Cf. Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da presença, ob. cit., p. 196 (carta 75, sem data mas escrita entre 16
e 28 de Julho de 1932, de João Gaspar Simões a Fernando Pessoa).
6
Cf. idem, p. 251. Trata-se da famosa carta a Adolfo Casais Monteiro de 13-1-1935 (106).
7
Aliás, fora Régio a assinalar a Simões o nome de Fernando Pessoa como o do maior poeta do modernismo, como o
próprio Simões revela no seu José Régio e a História do Movimento da «presença», Porto, Brasília Editora, pp.
154-155.
8
Cf. Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da presença, ob. cit., p. 61 (carta 1, de 26-1-1928), p. 67 (carta 4,
de 3-5-1928) e p. 80 (carta 11, de 17-1-1930).
9
Cf. idem, p. 93 (carta 17, de 26-6-1929).
10
Cf. idem, pp. 275-276 (documento 111, sem data).
11
Cf. idem, pp 169-170 (carta 66, de 3-12-1931) e sobretudo pp. 172-180 (carta 68, de 11-12-1931).
12
O espólio conserva um fragmento do rascunho da dita carta (cf. documento 113, pp. 280-281) que prova, apesar das
repetidas alusões pessoanas sobre o carácter improvisado da sua missiva, a escrupulosa ponderação que precedeu a
escrita da mesma epístola.
13
De facto, só em 1935 a redacção da revista se estabeleceu em casa de Adolfo Casais Monteiro, no Porto, e este teve
de escrever a Pessoa para pedir colaboração.
14
Cf. Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da presença, ob. cit., pp. 194-195 (carta 74 a João Gaspar Simões,
de 16-7-1932) e pp. 243-244 (carta 102 a Adolfo Casais Monteiro, de 26-12-1933).
15
Cf. idem, pp. 247-250 (carta 105 de Casais Monteiro a Pessoa, de 10-1-1935).
16
Cf. idem, p. 244 e p. 241 (carta 101 de Casais Monteiro a Pessoa, de 16-11-1933).
17
Cf. João Gaspar Simões, «Fernando Pessoa na Perspectiva da “presença”», excerto de Arquivos do Centro Cultural
Português, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1978, p. 291; João Gaspar Simões, Retratos de Poetas que Conheci,
Porto, Brasília Editora, 1974, pp. 59-63; João Gaspar Simões, José Régio e a História do Movimento da «presença»,
Porto, Brasília Editora, 1977, pp. 85-87.
18
Cf. João Reis Pereira, «A Primeira Carta de Fernando Pessoa a José Régio» in Colóquio.Letras, nº 106, Novembro-
Dezembro de 1988, pp. 65-72, e Fernando J.B. Martinho, «Fernando Pessoa e José Régio» in A Cidade, Revista
Cultural de Portalegre, número especial, Outubro de 1984.
19
Cf. a conferência «Fernando Pessoa e a revista Presença», pronunciada por João Gaspar Simões em 1977 por ocasião
das comemorações do cinquantenário da revista coimbrã, e mais tarde publicada em Cartas de Fernando Pessoa a João
Gaspar Simões, prefácio, notas e apêndice de João Gaspar Simões, 2ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda
e Centro de Estudos Pessoanos, 1982, pp. 129-154.
20
Cf. o citado rascunho sem data, publicado como documento 111 in Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da
presença, ob. cit., pp. 275-276.
21
Cf. idem, p. 76 (carta 8 a José Régio, de 1-1-1929).
22
Cf. idem, pp. 137-138 (carta 41 a João Gaspar Simões, de 18-11-1930).
23
Cf. idem, pp. 198-201 e pp. 251-253. Outros pormenores são acrescentados por Pessoa na carta a Simões de
25-2-1933 (pp. 210-211) e na carta a Casais Monteiro de 20-1-1935 (pp. 265-267).

También podría gustarte