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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Aspectos do duplo em
“As Babas do Diabo” de
Julio Cortázar
Disciplina: FIGURAÇÕES DO OUTRO NA LITERATURA - 2LET876

Professor: Dr. Adilson dos Santos

Discente: Fernando Hiroki Kozu

LONDRINA, 21 DE DEZEMBRO DE 2018


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Aspectos do duplo em “As Babas do Diabo” de Julio Cortázar

A temática do duplo como elemento de especial importância em grande parte


das obras literárias, de praticamente todos os períodos históricos, abrange também um
amplo espectro de abordagens e estudos desde os textos míticos, religiosos e filosóficos
de povos e culturas antigas até os estudos mais recentes de diversas áreas do
conhecimento, como a psicanálise, a antropologia e a teoria e crítica literárias. De
acordo com Adilson dos Santos (2009, p. 54), “independentemente da diversidade de
realizações e representações, as histórias de duplo geralmente apresentam uma face
invariável de impasse, propiciadora de um sentimento de insegurança e mistério, nem
sempre totalmente decifrável, nem sempre de compreensão plena”, já que o duplo diz
respeito a problemáticas existenciais que inquietam o ser humano de ontem e de hoje,
desde que a consciência de si mesmo e da morte se fazem manifestar numa constante e
infinita busca do sentido da própria vida e do mundo.

No Dicionário de Mitos Literários, a autora Nicole Fernandez Bravo (2000)


contextualiza a obra de Julio Cortázar (1914-1984) no âmbito da literatura do século
XX (ao lado de Borges, Kafka, C. Fuentes, Musil, Beckett) em que o duplo se
caracteriza como uma condição inerente ao próprio ato literário, “invalidando o
princípio de identidade: o que é uno é também múltiplo” (p. 282). Negando o sujeito da
enunciação e ao mesmo tempo colocando a realidade em constante ambivalência, o
imaginário multiplica as vozes do narrador e opera na simultaneidade e pluralidade
entre mundos (espaços) e épocas (tempos), chegando a projetar um “eu que já nem
sequer é capaz de asseverar sua existência pela intermediação do discurso. A
ambiguidade, a incerteza, a indecisibilidade que fazem parte do refinado jogo de troca
entre o eu e seu duplo confundem a referência, ao expressarem uma dúvida (construtiva)
sobre o real; O duplo está apto a representar tudo o que nega a limitação do eu, a
encenar o roteiro fantasmático do desejo” (p. 287).

Marta Morello-Frosch afirma que Cortázar utiliza o duplo não apenas num
sentido convencional da divisão de personalidade, mas naquele em que não há
subordinação ou maior importância entre um “eu” de um lado e um “outro” do outro
lado. Não há hierarquia de diferenciação entre ambos. Essa figuração do duplo como
um “actor-lector” permite possibilidades de enriquecimento vital integrando zonas
3

ignoradas ou remotas como se as vivêssemos, e não apenas como mera visita estranha e
distante dessa atmosfera: “una verdadera función doble, en la que el personaje se vê
como tal desde fuera de la narrativa, como un director que conoce el guión escénico y
sabe muy bien ló que ocurrirá después, no como ser enajenado” (MORELLO-
FROSCH, 1972, p. 323-324).

No conto de Cortázar As Babas do Diabo (in As Armas Secretas, 1959)


podemos verificar alguns aspectos do duplo numa complexa trama narrativa de planos
duplicados, estruturas e linhas entrecruzadas e justapostas resultando em uma inusitada
e radical imagem e configuração do insólito, do fantástico e da própria figuração do
duplo (doppelgänger1). Isto se deve não somente ao seu estilo de escrita, mas também
pelo fato do próprio Cortázar2 (poeta-romancista-filósofo) considerar o tema do duplo
como uma obsessão que o persegue desde a infância, uma “natureza” de seu próprio ato
de escrever como forma de exorcismo e busca constante de uma verdade artística (e
existencialista) contraditória e permanentemente inalcançável.

Na primeira parte do conto (cinco parágrafos iniciais) há um narrador que não


sabemos exatamente quem é e onde está situado. Em todo esse trecho o leitor já se
depara com algo de insólito, estranho, “ilógico” ou incompreensível. Ao expor ao leitor
logo no início uma de suas inquietações a partir da incompatibilidade entre linguagem e
seu respectivo conteúdo a ser contado, somos convidados a pensar antes de tudo numa
transgressão da lógica dos tempos verbais:

Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda


pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constantemente formas que

1
Este termo foi cunhado por Jean-Paul Richter em 1796 (romantismo alemão) e pode ser traduzido por
“duplo” ou “segundo eu” (alter ego). Literalmente significa “aquele que caminha ao lado”, ou aquelas
pessoas que vêem a si mesmas. “O que daí se deduz é que trata, em primeiro lugar, de uma experiência
de subjetividade” (BRAVO, 2000, p.261).
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“...há em mim uma espécie de obsessão pelo duplo. Ela vem da leitura precoce de Doctor Jekyll and
Mister Hyde, de Stevenson, de William Wilson, de Edgar Allan Poe, ou de toda a literatura alemã
habitada pelo duplo.(...) O tema do duplo é constante. Ele se manifesta em muitos momentos de minha
obra, separados por períodos de muitos anos. (...) O duplo é uma evidência que tenho aceitado desde a
infância” (Cortázar, in: GONZÁLEZ BERMEJO, 2002, p. 30-33). “Desde pequeno eu tenho esse sentimento
de que a realidade para mim era não só o que a professora ou minha mãe me ensinava e o que eu podia
verificar tocando e cheirando, mas também as interferências contínuas de elementos que não
correspondiam, no meu sentimento, a esse tipo de coisas. (...) Quando já era mais velho e comecei a ter
a sensação de transpassar barreiras temporais, ou barreiras espaciais, não mais através de um livro, mas
em determinadas incidências, em determinadas esquinas, em determinados momentos em que a
linguagem desempenhava um papel muito, muito importante. Foi assim que começou o meu
sentimento do fantástico, talvez aquilo que Alazraki chama neofantástico” (Cortázar, in: GADEA, 2014, p.
68-69, 79).
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não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em
mim nos dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu mulher loura eram as
nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus
rostos. Que diabo.” (CORTÁZAR, 2001, p. 60)

Há neste primeiro parágrafo um aspecto geral do duplo que é expresso nessa


fratura entre o real e o mundo simbólico da linguagem (uma construção social
convencional e arbitrária), no sentido da impossibilidade do autor em narrar algo diante
da sua condição de sujeito descentrado e desenraizado de sua própria identidade,
aprisionado ao mesmo tempo pelo seu passado histórico e memórias singulares e as
múltiplas faces da realidade em que está imerso, das alteridades que ora o representa,
ora o subjuga, das contingências, coexistências e disparidade dos fatos. Nicole Bravo
atribui um tipo de “dualismo crônico” a esse ser humano dilacerado, sendo necessário
transcender o mito da unidade do eu, pois “somos feitos de uma multiplicidade de
almas” e é preciso abrir-se a todas as virtualidades ao viver plenamente3.

Cortázar estabelece as estratégias da narrativa num estilo de escrita


experimental, criando um labirinto de duplos internos e externos, homogêneos e
heterogêneos: o duplo se emancipa de seus objetos e passa a operar ‘entre’ as coisas,
como puras conexões e inter-relações infinitas entre os possíveis (denominados como
“figuras” e “constelações”). Há neste conto um autor extra-diegético (Cortázar) que se
coloca como um duplo na figura de um personagem-narrador-observador-morto intra-
diegético (Roberto Michel – RM1), que participa das mesmas inquietações do autor e ao
mesmo tempo (“ambos”) convocam o leitor (outro duplo) a ser também participante
dessa condição e testemunhar junto todos esses conflitos (duplo entre autor e ato
literário transparente ao leitor como uma ficção). Esse narrador-observador quer contar
algo ao leitor e a si próprio num passado próximo, mas para descrever exatamente o que
aconteceu (ficção-diegese 1) ele precisa se distanciar e narrar como se fosse um sujeito
de fora e ao mesmo tempo de dentro do acontecido e se duplicar num outro
personagem-protagonista-vivo (Roberto Michel – RM2) num tempo e espaço
divorciados. Daí a problemática do ‘como’ narrar e se expressar na linguagem verbal, se

3
“Aquele que diz “eu” trai-se forçosamente, sem controle sobre todas as vozes que o habitam e falam a
torto e a direita dentro dele. O eu é esvaziado de sua substância, esvaziado de ser, e já não aparecem
em cena mais do que tecidos esparsos que se fazem passar pelo eu. Estamos aqui nos antípodas da
ambição totalizadora dos românticos, do mito do eu infinito em consonância com o mundo. O duplo
simboliza a dúvida sobre o real. O eu, puro discurso, está no cruzamento de uma trama de vozes”
(BRAVO, 2000, p.283).
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na primeira ou terceira pessoal do singular ou plural. Daí a colocação da primeira


questão entre a realidade plural e múltipla e o registro dessa realidade a partir do filtro
da técnica verbal-linguística dos tempos verbais e sujeitos-predicados universais. A
solução de Cortázar é subverter a própria linguagem, advertindo o leitor que “nunca se
saberá como isto deverá ser contado” ou ‘quem’ está contando, pois ora será o autor
(Cortázar), ora o narrador-observador (“ele”), ora o protagonista (“eu”), ora ambos
(“nós”, já que participam do mesmo “ser”), e ora as máquinas (ou meios técnicos) que
servem de suporte de seu escrever e olhar (outra duplicidade).

No segundo parágrafo Cortázar anuncia essa complexidade do duplo desenhando


outras ligações entre objetos heterogêneos e contrários: o autor só pode registrar
(“traduzir”) seu relato em sua máquina de escrever situando-se ele e seu duplo (RM1)
num presente simultâneo “puro” (presente=passado), como se situasse também num
espaço justaposto entre um “agora” que estou escrevendo (e observando nuvens e
pombas em “tempo real”) e outro “agora” que se passou há exatamente um mês atrás
(RM2), desdobrando o personagem Roberto Michel em dois tempos e espaços
diferenciados e contíguos. Caroline de Morais esclarece que diante dessa configuração
do duplo, “atenta-se para os trechos que estão entre parênteses de maneira constante no
conto. Essa intromissão é vista como uma segunda voz, como se a consciência de
Roberto Michel o repreendesse. Esse recurso textual quebra a fluência de leitura e
demonstra uma opinião adicional ao plano geral da história, favorecendo ao ambiente
constituído, ao longo da narrativa, de incertezas e de dúvidas. As informações extras
trazem pistas sobre o narrador, sobre o ambiente que o cerca e também sobre suas
reflexões” (MORAIS, 2017, p. 308).

Durante a narração, se fosse possível ir beber um chope por aí e a máquina


continuasse sozinha (porque escrevo à máquina), seria a perfeição. E não é uma
maneira de dizer. A perfeição, sim, porque o insondável que aqui é preciso
contar é também uma máquina (de outra espécie, uma Cóntax 1.1.2) e de
repente pode ser que uma máquina saiba mais de outra máquina que eu, tu, ela -
a mulher loura - e as nuvens. Mas de bobo tenho apenas a sorte, e sei que se eu
for embora, esta Remington ficará petrificada sobre a mesa com esse ar de
duplamente quietas que as coisas móveis têm quando não se movem. Então
tenho que escrever. Algum de nós tem que escrever, se é que isto vai ser
contado. Melhor que seja eu que estou morto, que estou menos comprometido
do que o resto; eu que não vejo mais que as nuvens e posso pensar sem me
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distrair, escrever sem me distrair (aí vai passando outra, com as beiradas
cinzentas) e recordar sem me distrair, eu que estou morto (e vivo não se trata de
enganar ninguém, veremos quando chegar o momento, porque tenho que
começar de algum modo e comecei por esta ponta, a de trás, a do começo, que
afinal de contas é a melhor das pontas quando se quer narrar alguma coisa).
(CORTÁZAR, 2001, p. 60-61)

Verificaremos adiante o desenvolvimento desses outros planos do duplo


correlativo aos seus dois personagens assim bifurcados: RM1 e sua máquina de escrever
(“Remington”) e o ato de escrever; RM2 e sua câmera fotográfica (“Contáx 1.1.2”) e o
ato de observar, olhar. A figuração do duplo se ramifica em outras instâncias para além
da relação do humano e seu reflexo, sua sombra, sósia ou desdobramento no tempo-
espaço (telescopagem); instaura-se uma duplicidade, continuidade, comunicação ou
participação entre humano e inumano (inanimado). As máquinas ou mídias técnicas
(que são neste caso extensões ou “próteses” do pensar e do olhar) são também
“narradores-protagonistas” daquilo que se deseja contar:

No terceiro parágrafo observamos que não há um motivo específico do “por que


contar?”, que seja mais forte que o desejo de simplesmente contar o que quer que seja
para quem for que seja, e se aliviar e continuar a vida sem tantos “porquês”. No quarto e
quinto parágrafos Cortázar opera uma transição para sair desse plano de fragmentos a-
racionais e inicia de fato a narrativa daquilo que deseja contar ao leitor:

E já que vamos contar, é melhor pôr um pouco de ordem, descer pela escada
desta casa até o domingo sete de novembro, exatamente há um mês. A gente
desce cinco andares e já está no domingo, com um sol inesperado para
novembro em Paris, com muitíssima vontade de andar por aí, de ver coisas, de
tirar fotos (porque éramos fotógrafos, sou fotógrafo). (...) Mas se começo a
fazer perguntas não contarei nada; é melhor contar, talvez contar seja uma
resposta, pelo menos pra alguém que esteja lendo. (Idem p. 61)

A “ordem” neste caso é estabelecer um plano (ilusoriamente) estável de uma


narrativa linear convencional, com seu tempo e espaço pré-determinados, fazendo uma
imersão naquilo que consideramos o mundo real e normal. Estabilizar a ordem do
discurso a partir de um narrador em terceira pessoa do singular, “tranquilizando” o leitor
daquela estranheza e perplexidade dos cinco parágrafos iniciais. No plano macro-
formal, podemos relacionar neste ponto o aspecto do duplo num sentido mais
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tradicional também, de um personagem-protagonista (RM2) que é um duplo do


narrador-observador (RM1) e que está vivenciando uma realidade no passado, num
ambiente exterior, com sua Contáx, num universo “real” da diegese.

Roberto Michel, franco-chileno, tradutor e fotógrafo amador nas horas vagas,


saiu do número 11 da rue Monsieur-le-Prince no domingo sete de novembro
passado (agora passam duas menorzinhas, com as beiradas prateadas). (Id. p.
62)

Mas é uma “ordem” que sobrepõe àquilo que está sendo narrado acerca do
personagem-protagonista (RM2) com inserções extra (autor) e intra (RM1) diegéticos
dos parágrafos iniciais. Cortázar vai tecendo a narrativa em linhas paralelas (tipo um
“zig-zag” assimétrico) fazendo uma oscilação constante entre todos esses planos – note-
se o verbo “saiu” na terceira pessoa do singular, e logo em seguida no mesmo parágrafo
ele muda para a primeira pessoa: “Eram apenas dez da manhã, e calculei que lá pelas
onze haveria boa luz”; além das várias digressões entre parênteses, indicando que o
narrador-observador ora continua vendo nuvens enquanto narra e rememora seu
passado, ora tecendo comentários sobre o personagem, ora refletindo como autor para si
ou se dirigindo ao leitor. Deste modo, o leitor fica constantemente num estado de
“hesitação” nessa polifonia de vozes que vão conduzindo toda a narrativa.

Mas o que seria a história desta ficção? Roberto Michel (RM2) observa um
casal, um rapazinho adolescente meio inquieto e vergonhado, e uma mulher loura.
Michel começa a divagar sobre a vida do menino, seu modo de ser, sua “biografia”
(“Michel é culpado de literatura, de fabricações irreais”). E o que poderia acontecer
entre o dois, uma aventura amorosa, já que a mulher parecia seduzir o jovem acanhado?
Havia “algo” ali, e Michel não conseguia deixar de ver e imaginar “coisas” a partir da
cena do casal, e quase imperceptivelmente se dá conta de um terceiro sujeito, que
parecia estar somente à espreita, mas tinha alguma ligação com a loura e o menino:

Curioso que a cena (o nada, quase: dois que estão aí, desigualmente jovens)
tivesse uma aura inquietante. Pensei que era eu que colocava isso, e que minha
foto, se a fizesse, restituiria as coisas à sua tola verdade. Gostaria de saber o que
pensava o homem do chapéu cinza sentado ao volante do automóvel
estacionado no cais que levava à passarela, e que lia o jornal ou dormia. (Id. p.
66)
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Michel tira a foto do casal, mas imediatamente o casal percebe e a mulher se


irrita. O garoto, surpreendido, sai correndo “perdendo-se como um fio da virgem no ar
da manhã. Mas os fios da virgem também são chamados de babas do diabo”. A primeira
parte da ficção se fecha após uma discussão entre Michel, a loura e o homem, e a partir
disso Cortázar dá um salto no tempo e no espaço.

O que vem a seguir ocorreu aqui, quase agora mesmo, num quarto de um quinto
andar. Passaram-se vários dias antes que Michel revelasse as fotos do domingo.
(Id. p. 70)

Há um deslocamento de níveis aproximando o personagem-protagonista do


narrador-observador e distanciando o presente do acontecimento do Domingo. Se no
nosso mundo real o passado fica para trás, se o tempo é irreversível e não podemos
alterar os fatos do passado, no mundo do fantástico e do insólito, o personagem pode
restituir e bifurcar o passado numa outra possibilidade e criar um universo paralelo, uma
realidade duplicada, com destinos diversos e experiências insuspeitadas. Agora se
desenvolve um duplo de outra história (ficção-diegese 2) a partir do olhar obsessivo de
Michel sobre a foto super ampliada pendurada na parede do quarto.

Pregou a ampliação numa parede do quarto, e no primeiro dia passou um bom


tempo olhando e recordando, nessa operação comparativa e melancólica da
recordação frente à realidade perdida; recordação petrificada, como toda
fotografia, onde não faltava nada, nem mesmo e principalmente o nada,
verdadeiro fixador da cena. Estava a mulher, estava o garoto, rígida a árvore
sobre suas cabeças, o céu tão fixo como as pedras do parapeito, nuvens e pedras
confundidas numa só matéria inseparável (agora passa uma com as beiradas
afiadas, corre como um temporal). (...) nunca me havia ocorrido a ideia de
pensar que quando olhamos uma foto de frente, os olhos repetem exatamente a
posição e a visão da objetiva. Da minha cadeira, com a máquina de escrever
na frente, olhava a foto a três metros de distância, e então notei que havia me
instalado exatamente no ponto de mira da objetiva. (...) A cada tantos minutos,
por exemplo, quando não encontrava a maneira de dizer em bom francês o que
José Alberto Allende dizia em tão bom espanhol, erguia os olhos e olhava a
foto; olhava entre parágrafo e parágrafo de meu trabalho. Naquele
momento, não sabia por que a olhava, por que havia pregado a ampliação na
parede; talvez aconteça assim com todos os atos fatais, e seja essa a condição de
seu cumprimento. Creio que o tremor quase furtivo das folhas da árvore não
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me assustou, que continuei uma frase iniciada e a concluí. Os costumes são


como grandes herbários, e afinal de contas uma ampliação de oitenta por
sessenta parece uma tela onde projetam cinema, onde na ponta da ilha uma
mulher fala com um garoto e um a árvore agita algumas folhas secas sobre
suas cabeças. Mas as mãos já eram demais. Acabava de escrever: Donc. La
seconde clé rèside dans la nature intrinsèque des difficultés que les societés – e
vi a mão da mulher que começava a se fechar devagar, dedo a dedo. (Id. p.
71-72)

Cortázar constrói habilmente, muito gradualmente (de modo quase


imperceptível) uma transição e transformação entre os vários aspectos do duplo num
processo de convergência dos múltiplos planos (narrador, personagem e leitor; mulher,
garoto e homem; tempo e espaço; ação atual e rememorações; máquina de escrever e
máquina fotográfica; ato de escrever e olhar; realidade e ficção; ficção 1 e ficção 2; vida
e morte). O ritmo da narrativa começa a acelerar e há um acúmulo de tensões, um
afunilamento vertiginoso entre as várias linhas paralelas dos duplos (olhar e lembrar,
escrever e traduzir, ele e eu, garoto e mulher, fixo e móvel, a cada dia- minuto-
momento, a três metros-dez centímetros-um passo) até culminar num ponto de “curto
circuito” ou choque entre o possível e o impossível, abertura para o fantástico e insólito,
inversão ou conversão de planos: o que é inanimado e estático se movimenta, ganha
vida e autonomia (as imagens da foto); e o que tinha acontecido e ficou aprisionado e
congelado na foto a partir desse ponto se apresenta numa outra realidade, como se
Michel não tivesse tirado a foto e continuasse a observar o desenrolar das ações do
casal, porém em planos ou lados opostos e distanciados. O narrador-protagonista
“morre”, mas continua “vivo” observando e narrando, abstrai-se num outro plano
existencial, imaginário, atemporal. O que seria um suposto drama de sedução amorosa
(ficção 1) se transforma agora num suspense de assassinato e horror (ficção 2).

De mim não restou nada, uma frase em francês que jamais terminará, uma
máquina de escrever que cai ao chão, uma cadeira que chia e treme, uma
névoa. O garoto havia abaixado a cabeça. Agora a mulher falava junto ao seu
ouvido, e a mão se abria outra vez para pousar em sua face. O garoto estava
menos aflito que receoso, uma ou duas vezes murmurou por cima do ombro da
mulher e ela continuava falando, explicando alguma coisa que o fazia olhar a
cada instante para o local onde Michel sabia muito bem que estava o automóvel
com o homem de chapéu cinza, cuidadosamente descartado da fotografia mas
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refletido nos olhos do garoto e (como duvidar agora?) nas palavras da


mulher. Compreendi, se isso era compreender, o que ia acontecer, o que
tinha de ter acontecido, o que teria de acontecer naquele momento, entre
aquelas pessoas, ali onde eu havia chegado para transgredir uma ordem,
inocentemente imiscuído naquilo que não havia acontecido mas que agora ia
acontecer, agora ia se cumprir. E o que então havia imaginado era muito
menos horrível que a realidade. O automóvel, uma casa qualquer, as bebidas,
as lâminas excitantes, as lágrimas tarde demais, o despertar no inferno. E eu não
podia fazer nada, dessa vez não podia fazer absolutamente nada. De repente a
ordem se invertia, eles estavam vivos, movendo-se, decidiam e eram decididos,
iam rumo a seu futuro; e eu do lado de cá, prisioneiro de outro tempo, de um
quarto em um quinto andar... (Id. p. 72-73)

Essa outra história, outra realidade ou ficção passa a ser “revelada”, narrada
agora por um duplo que é o ato de olhar, observar e imaginar de Michel incorporado na
perspectiva da objetiva da câmera, e numa imersão dentro da imagem da foto ampliada,
duplo que se torna agora essa Contáx-narradora-protagonista-olhar de Michel que
vivencia novamente toda a cena do casal e do homem. Porém, ao invés do “clic”
interventor da Contáx da primeira versão, agora ouvimos o grito de Michel rasgando o
silêncio da foto e que salvará o menino pela segunda vez das babas do diabo. Toda a
cena é narrada como se todos os “Michel’s” e o próprio leitor estivessem assistindo a
um filme de cinema em tempo real.

Havia um imenso silêncio... Acho que gritei, que gritei terrivelmente, e que
naquele exato segundo soube que começava a me aproximar, dez centímetros,
um passo, a árvore girava cadenciosamente seus galhos em primeiro plano, uma
mancha do parapeito saía do quadro, o rosto da mulher, virada para mim como
que surpreendida, ia crescendo, e então girei um pouco, quero dizer que a
câmara girou um pouco, e sem perder a mulher de vista começou a se aproximar
do homem que me olhava com os buracos negros que tinha no lugar dos olhos,
entre surpreso e raivoso olhava querendo me cravar no ar, e nesse instante
consegui ver como um grande pássaro fora de foco que passava num voo só
diante da Imagem, e me apoiei na parede do meu quarto e fui feliz porque o
menino acabava de escapar, eu o via correndo, outra vez em foco, fugindo com
os cabelos todos ao vento, aprendendo enfim a voar sobre a ilha, a chegar à
passarela, a se virar para a cidade. Pela segunda vez escapava deles, pela
segunda vez eu o ajudava a escapar, o devolvia ao seu paraíso precário.
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Arfando, fiquei na frente deles; não havia necessidade de avançar mais, o jogo
estava jogado. Da mulher via-se apenas um ombro e parte dos cabelos,
brutalmente cortados pelo enquadramento da imagem; mas de frente estava o
homem, a boca entreaberta, onde se via tremular sua língua negra, e levantava
lentamente as mãos, aproximando-as do primeiro plano, um instante ainda em
perfeito foco, e depois ele todo um vulto que apagava a ilha, a árvore, e eu
fechei os olhos e não quis olhar mais, e cobri o rosto e desandei a chorar feito
um idiota. (Id. p. 73-74)

Até este momento o narrador está relatando em primeira pessoa como o


protagonista que saiu no Domingo pra tirar fotos (duplo), ou seja, acreditamos que seja
o personagem-protagonista (RM2). Nesta cena relatada acima, ele continua no passado
de olhos fechados, numa cena que aconteceu “quase agora mesmo”. Porém, no próximo
e último parágrafo do conto verificamos que esse protagonista que estava VIVO há um
mês é exatamente a mesma personagem que está narrando agora no presente: o
personagem-narrador-observador (RM1) MORTO! Há uma confluência entre ambos,
sendo que as duas linhas do tempo coincidem na passagem para este último parágrafo,
retomando a “tonalidade” do início, tudo se dispersa e se reúne novamente e
paradoxalmente a seu estado de repouso e indiferença.

Agora passa uma grande nuvem branca, como todos esses dias, todo esse tempo
incontáve1. O que resta por dizer é sempre uma nuvem, duas nuvens, ou longas
horas de céu perfeitamente limpo, retângulo puríssimo cravado com alfinetes na
parede do meu quarto. Foi o que vi ao abrir os olhos e secá-los com os dedos: o
céu limpo, e depois uma nuvem que entrava pela esquerda, passeava lentamente
sua graça e se perdia pela direita. (Id. p. 74)

Leônidas Câmara defende a tese do “Duplo Registro” nas ficções de Cortázar


como um instrumento e método de apreensão a-racional da realidade, num “processo de
conversão das estruturas alegóricas em estruturas de uma realidade revisada pela
imaginação”. As “estruturas mentais que se registram duplamente em face da realidade,
por sua vez dada e percebida imaginativamente”, colocam o problema dos “dois ângulos
de observação” (de um lado um “olhar consciente”, de outro um “coração
inconsciente”) e nos leva a entender o duplo como um modo de superar ou abstrair as
noções de tempo e espaço numa só projeção subjetivista, de uma outra existência num
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presente “puro”, num “infinito atual” e, portanto, de um acontecimento “fora” do tempo


e do espaço (cf. CÂMARA, 1983, p. 25-26, 31).

Todos estes aspectos do duplo abordados neste trabalho podem ser


caracterizados por aquilo que o próprio Cortázar entende por “duplo”, como um
“sentimiento que, aparte de nuestros destinos individuales, somos partes de figuras que
desconecemos. Pienso que todos nosotros componemos figuras... Siendo continuamente
la posibilidad de ligaciones, de circuitos que se cierran y que nos interrelacionan al
margen de toda la explicación racional y de toda relación humana... Los dobles son
como sus ‘figuras’, o más bien, a la inversa, las figuras serían en cierto modo la
culminación del tema del doble, en la medida que se demonstraria una relación entre
diferentes elementos que, vista desde un critério lógico, es inconcebible” (Cortázar
apud Câmara, p. 39-40).
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REFERÊNCIAS

BERMEJO, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Traduzido por Luiz Carlos
Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de mitos
literários. 3ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 261-288.

CÂMARA, Leônidas. O duplo registro na ficção de Cortázar. Rio de Janeiro: José


Olympio; Recife: FUNDARPE, 1983.

CORTÁZAR, Julio. As babas do diabo. In: CORTÁZAR. “As armas secretas: contos”.
3ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001, p. 59-74.

GADEA, Omar Prego. A fascinação das palavras: Julio Cortázar, Omar Prego. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MORAIS, Caroline de. “As babas do diabo”: configurações do fantástico e do duplo.


In Revista Língua & Literatura, v. 19, n. 33, jan./jun. 2017.

MORELLO-FROSCH, Marta. El personaje y su doble en las ficciones de Cortázar. In:


GIACOMAN, Helmy F. (editor). Homenaje a Julio Cortázar. Variaciones
interpretativas en torno a su obra. Madrid: Las Américas, 1972.

SANTOS, Adilson dos. Um périplo pelo território do duplo. Revista Investigações,


Londrina, vol.22, nº 1, p. 51-101, janeiro. 2009.

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