Documentos de Académico
Documentos de Profesional
Documentos de Cultura
Aspectos do duplo em
“As Babas do Diabo” de
Julio Cortázar
Disciplina: FIGURAÇÕES DO OUTRO NA LITERATURA - 2LET876
Marta Morello-Frosch afirma que Cortázar utiliza o duplo não apenas num
sentido convencional da divisão de personalidade, mas naquele em que não há
subordinação ou maior importância entre um “eu” de um lado e um “outro” do outro
lado. Não há hierarquia de diferenciação entre ambos. Essa figuração do duplo como
um “actor-lector” permite possibilidades de enriquecimento vital integrando zonas
3
ignoradas ou remotas como se as vivêssemos, e não apenas como mera visita estranha e
distante dessa atmosfera: “una verdadera función doble, en la que el personaje se vê
como tal desde fuera de la narrativa, como un director que conoce el guión escénico y
sabe muy bien ló que ocurrirá después, no como ser enajenado” (MORELLO-
FROSCH, 1972, p. 323-324).
1
Este termo foi cunhado por Jean-Paul Richter em 1796 (romantismo alemão) e pode ser traduzido por
“duplo” ou “segundo eu” (alter ego). Literalmente significa “aquele que caminha ao lado”, ou aquelas
pessoas que vêem a si mesmas. “O que daí se deduz é que trata, em primeiro lugar, de uma experiência
de subjetividade” (BRAVO, 2000, p.261).
2
“...há em mim uma espécie de obsessão pelo duplo. Ela vem da leitura precoce de Doctor Jekyll and
Mister Hyde, de Stevenson, de William Wilson, de Edgar Allan Poe, ou de toda a literatura alemã
habitada pelo duplo.(...) O tema do duplo é constante. Ele se manifesta em muitos momentos de minha
obra, separados por períodos de muitos anos. (...) O duplo é uma evidência que tenho aceitado desde a
infância” (Cortázar, in: GONZÁLEZ BERMEJO, 2002, p. 30-33). “Desde pequeno eu tenho esse sentimento
de que a realidade para mim era não só o que a professora ou minha mãe me ensinava e o que eu podia
verificar tocando e cheirando, mas também as interferências contínuas de elementos que não
correspondiam, no meu sentimento, a esse tipo de coisas. (...) Quando já era mais velho e comecei a ter
a sensação de transpassar barreiras temporais, ou barreiras espaciais, não mais através de um livro, mas
em determinadas incidências, em determinadas esquinas, em determinados momentos em que a
linguagem desempenhava um papel muito, muito importante. Foi assim que começou o meu
sentimento do fantástico, talvez aquilo que Alazraki chama neofantástico” (Cortázar, in: GADEA, 2014, p.
68-69, 79).
4
não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em
mim nos dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu mulher loura eram as
nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus
rostos. Que diabo.” (CORTÁZAR, 2001, p. 60)
3
“Aquele que diz “eu” trai-se forçosamente, sem controle sobre todas as vozes que o habitam e falam a
torto e a direita dentro dele. O eu é esvaziado de sua substância, esvaziado de ser, e já não aparecem
em cena mais do que tecidos esparsos que se fazem passar pelo eu. Estamos aqui nos antípodas da
ambição totalizadora dos românticos, do mito do eu infinito em consonância com o mundo. O duplo
simboliza a dúvida sobre o real. O eu, puro discurso, está no cruzamento de uma trama de vozes”
(BRAVO, 2000, p.283).
5
distrair, escrever sem me distrair (aí vai passando outra, com as beiradas
cinzentas) e recordar sem me distrair, eu que estou morto (e vivo não se trata de
enganar ninguém, veremos quando chegar o momento, porque tenho que
começar de algum modo e comecei por esta ponta, a de trás, a do começo, que
afinal de contas é a melhor das pontas quando se quer narrar alguma coisa).
(CORTÁZAR, 2001, p. 60-61)
E já que vamos contar, é melhor pôr um pouco de ordem, descer pela escada
desta casa até o domingo sete de novembro, exatamente há um mês. A gente
desce cinco andares e já está no domingo, com um sol inesperado para
novembro em Paris, com muitíssima vontade de andar por aí, de ver coisas, de
tirar fotos (porque éramos fotógrafos, sou fotógrafo). (...) Mas se começo a
fazer perguntas não contarei nada; é melhor contar, talvez contar seja uma
resposta, pelo menos pra alguém que esteja lendo. (Idem p. 61)
Mas é uma “ordem” que sobrepõe àquilo que está sendo narrado acerca do
personagem-protagonista (RM2) com inserções extra (autor) e intra (RM1) diegéticos
dos parágrafos iniciais. Cortázar vai tecendo a narrativa em linhas paralelas (tipo um
“zig-zag” assimétrico) fazendo uma oscilação constante entre todos esses planos – note-
se o verbo “saiu” na terceira pessoa do singular, e logo em seguida no mesmo parágrafo
ele muda para a primeira pessoa: “Eram apenas dez da manhã, e calculei que lá pelas
onze haveria boa luz”; além das várias digressões entre parênteses, indicando que o
narrador-observador ora continua vendo nuvens enquanto narra e rememora seu
passado, ora tecendo comentários sobre o personagem, ora refletindo como autor para si
ou se dirigindo ao leitor. Deste modo, o leitor fica constantemente num estado de
“hesitação” nessa polifonia de vozes que vão conduzindo toda a narrativa.
Mas o que seria a história desta ficção? Roberto Michel (RM2) observa um
casal, um rapazinho adolescente meio inquieto e vergonhado, e uma mulher loura.
Michel começa a divagar sobre a vida do menino, seu modo de ser, sua “biografia”
(“Michel é culpado de literatura, de fabricações irreais”). E o que poderia acontecer
entre o dois, uma aventura amorosa, já que a mulher parecia seduzir o jovem acanhado?
Havia “algo” ali, e Michel não conseguia deixar de ver e imaginar “coisas” a partir da
cena do casal, e quase imperceptivelmente se dá conta de um terceiro sujeito, que
parecia estar somente à espreita, mas tinha alguma ligação com a loura e o menino:
Curioso que a cena (o nada, quase: dois que estão aí, desigualmente jovens)
tivesse uma aura inquietante. Pensei que era eu que colocava isso, e que minha
foto, se a fizesse, restituiria as coisas à sua tola verdade. Gostaria de saber o que
pensava o homem do chapéu cinza sentado ao volante do automóvel
estacionado no cais que levava à passarela, e que lia o jornal ou dormia. (Id. p.
66)
8
O que vem a seguir ocorreu aqui, quase agora mesmo, num quarto de um quinto
andar. Passaram-se vários dias antes que Michel revelasse as fotos do domingo.
(Id. p. 70)
De mim não restou nada, uma frase em francês que jamais terminará, uma
máquina de escrever que cai ao chão, uma cadeira que chia e treme, uma
névoa. O garoto havia abaixado a cabeça. Agora a mulher falava junto ao seu
ouvido, e a mão se abria outra vez para pousar em sua face. O garoto estava
menos aflito que receoso, uma ou duas vezes murmurou por cima do ombro da
mulher e ela continuava falando, explicando alguma coisa que o fazia olhar a
cada instante para o local onde Michel sabia muito bem que estava o automóvel
com o homem de chapéu cinza, cuidadosamente descartado da fotografia mas
10
Essa outra história, outra realidade ou ficção passa a ser “revelada”, narrada
agora por um duplo que é o ato de olhar, observar e imaginar de Michel incorporado na
perspectiva da objetiva da câmera, e numa imersão dentro da imagem da foto ampliada,
duplo que se torna agora essa Contáx-narradora-protagonista-olhar de Michel que
vivencia novamente toda a cena do casal e do homem. Porém, ao invés do “clic”
interventor da Contáx da primeira versão, agora ouvimos o grito de Michel rasgando o
silêncio da foto e que salvará o menino pela segunda vez das babas do diabo. Toda a
cena é narrada como se todos os “Michel’s” e o próprio leitor estivessem assistindo a
um filme de cinema em tempo real.
Havia um imenso silêncio... Acho que gritei, que gritei terrivelmente, e que
naquele exato segundo soube que começava a me aproximar, dez centímetros,
um passo, a árvore girava cadenciosamente seus galhos em primeiro plano, uma
mancha do parapeito saía do quadro, o rosto da mulher, virada para mim como
que surpreendida, ia crescendo, e então girei um pouco, quero dizer que a
câmara girou um pouco, e sem perder a mulher de vista começou a se aproximar
do homem que me olhava com os buracos negros que tinha no lugar dos olhos,
entre surpreso e raivoso olhava querendo me cravar no ar, e nesse instante
consegui ver como um grande pássaro fora de foco que passava num voo só
diante da Imagem, e me apoiei na parede do meu quarto e fui feliz porque o
menino acabava de escapar, eu o via correndo, outra vez em foco, fugindo com
os cabelos todos ao vento, aprendendo enfim a voar sobre a ilha, a chegar à
passarela, a se virar para a cidade. Pela segunda vez escapava deles, pela
segunda vez eu o ajudava a escapar, o devolvia ao seu paraíso precário.
11
Arfando, fiquei na frente deles; não havia necessidade de avançar mais, o jogo
estava jogado. Da mulher via-se apenas um ombro e parte dos cabelos,
brutalmente cortados pelo enquadramento da imagem; mas de frente estava o
homem, a boca entreaberta, onde se via tremular sua língua negra, e levantava
lentamente as mãos, aproximando-as do primeiro plano, um instante ainda em
perfeito foco, e depois ele todo um vulto que apagava a ilha, a árvore, e eu
fechei os olhos e não quis olhar mais, e cobri o rosto e desandei a chorar feito
um idiota. (Id. p. 73-74)
Agora passa uma grande nuvem branca, como todos esses dias, todo esse tempo
incontáve1. O que resta por dizer é sempre uma nuvem, duas nuvens, ou longas
horas de céu perfeitamente limpo, retângulo puríssimo cravado com alfinetes na
parede do meu quarto. Foi o que vi ao abrir os olhos e secá-los com os dedos: o
céu limpo, e depois uma nuvem que entrava pela esquerda, passeava lentamente
sua graça e se perdia pela direita. (Id. p. 74)
REFERÊNCIAS
BERMEJO, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Traduzido por Luiz Carlos
Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de mitos
literários. 3ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 261-288.
CORTÁZAR, Julio. As babas do diabo. In: CORTÁZAR. “As armas secretas: contos”.
3ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001, p. 59-74.
GADEA, Omar Prego. A fascinação das palavras: Julio Cortázar, Omar Prego. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.