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Copyright © Editora Patuá, 2013.

Gravando © Aline Rocha, 2013.

Editor
Eduardo Lacerda

Revisão
Isabela Talarico

Projeto Gráfico e Ilustração


Leonardo Mathias | flickr.com/leonardomathias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

R571g Rocha, Aline.

Gravando / Aline Rocha. – São Paulo: Patuá, 2013.

96p. – (Coleção Patuscada; v. XII)

ISBN 978-85-8297-062-1

1.Poesia brasileira I.Título. II. Série.

CDD B869.1

Catalogação elaborada por Ana Paula da Silva - CRB 092/2013

Índice para catálogo sistemático:

1.Poesia brasileira : Literatura brasileira B869.1

Todos os direitos desta edição reservados à:

Editora Patuá
Rua Lobato, 86
CEP 03288-010 São Paulo - SP • Brasil
Tel.: 11 29118156
www.editorapatua.com.br
Cast
Gravando dezenove
About vinte e um
Arquivística vinte e três

Fotografias
entre latinos vinte e sete
entre tempos vinte e nove
eu você joão trinta e um

Córdoba trinta e cinco


Visita trinta e nove
O sangue quarenta e um
A queda quarenta e três
A prece quarenta e cinco
Eu não sou obrigada quarenta e sete
Quermesse quarenta e nove
Biografias autorizadas cinquenta e um
Lentes cinquenta e três
A caminho do corpo levitante cinquenta e cinco
Todos os signos são hostis cinquenta e sete
Enquanto partimos cinquenta e nove

Não me fotografe me beije sessenta e um

Assombração urbana sessenta e cinco

Abertos 24 horas sessenta e sete

Ninguém me segura na mobilete sessenta e nove

Fitzcasampa setenta e três

Este poema foi escrito setenta e cinco

na cidade de São Paulo


Sobre a versificação setenta e sete

Rasgando setenta e nove

FIM
Carta para Alcides oitenta e cinco

THE END
para Paulinha
Luz, mais luz.

Goethe
AVISO
A propriedade intelectual é roubo
A autoria é uma farsa
Copie e distribua sem culpa
[click]
Gravando

porque a gente só sabe amar feito cinema


a gente é tudo fresco
e precisa ter a maldita cena
do casal correndo na chuva do beijo
em câmera lenta
ou então a gente ama feito novela
aquele melodrama todo
a gente devia era desligar a câmera
pra se amar, apagar as luzes
devia era se amar no camarim
me espera na saída

GRAVANDO 19
About

da chuva que cai e não sabemos


da bomba-relógio circular
do drops ardendo a garganta
das voltas que o mundo dá
da billie rouca no ipod
da máquina de refrigerante
de dentro do vagão me despeço
de você na escada rolante

GRAVANDO 21
Arquivística

Ainda procuro
aquele poema que li
há vinte anos
no jornal de domingo
nem sei de quem é

GRAVANDO 23
Fotografias
entre latinos

saudade dá pero no mucho


entre tempos

o presente é perpétuo
o poema petrifica
eu você joão

aqui neste terraço à beira-mar


depois do flash é eterno
Córdoba

Da janela do meu quarto posso ver uma das


[ janelas do convento
Nossa Sra. Imaculada Maria de Jesus.
[Seguramente é um quarto.
Quando chega a noite, sento em minha cama
[a observar as intimidades vizinhas,
mas não há ninguém, apenas uma luz amarelada
[de um abajur do século XIX.
Imagino que a velha senhora
(por que velha, meu deus? Existem também
[freiras jovens, joviais)
esteja lendo um dos livros proibidos pela Inquisição.
É verão, a noite está quente e cheia de mosquitos,
[então penso que logo
virá fechar a janela para que eles não piquem
[seu corpo.
Como não vem, imagino que não se preocupe
porque veste aquelas roupas de freira que
[cobrem todo o corpo,
não me lembro agora como se chamam.

GRAVANDO 35
– queria muito saber o que veste enquanto lê
[seu livro
proibido pela Inquisição sob a luz do abajur
[do século XIX –
A noite está quentíssima e pela minha janela
[vejo entrar um pernilongo
que pousa direto no meu peito, me detenho
[por alguns segundos,
poucos segundos, talvez milésimos, me detenho
[em sua estranha
coragem, o vejo ali, pousado no seio esquerdo,
(os mamilos estão duríssimos), com um leve
[sopro o retiro de mim
e sigo com o olhar o seu trajeto em direção
[à janela vizinha
Agora fechada.
Vejo meu rosto refletido à luz da lua.

36 ALINE ROCHA
Visita

Pouco se sabe do dia em que Rosinha apareceu,


mas sua pele era mais dourada. O olho brilhava
que dava gosto. Dona Fátima já esperava no
portão, e a menina vinha calminha, dava pra ver
de longe. Longe, tão longe, que a vista até
doía de tanto forçar. Depois que Rosalinda chegou
até canção teve naquela casa, mas pouco se sabe.
O que se sabe bem é que no final da tarde, depois
do almoço, e depois do café, e depois do doce de
amora no pote, a Rosa deu um abraço esquisito de
forte naquela velha solitária, segurou bem a
cabeça dela e disse aquela frase que faz sentido.
E aí Dona Fátima estremeceu, e os meninos da
bicicleta pararam; o fusca que cruzava a esquina
parou; a Solange que varria a calçada parou;
e até a flor que caía do ipê também parou se
bem me lembro, e até eu que não fazia nada parei
quando a velha falou de um jeito meio calado
meio cantado, meio dizendo sem querer dizer,
mas na verdade dizendo porque tinha que ser dito.
Tudo parou quando Dona Fátima viu a menina
indo embora de novo e disse: Apareça mais.

GRAVANDO 39
O sangue

Se quando escovar os dentes pela manhã sentir


[o gosto de sangue
e perceber na água avermelhada a substância vital
Se em dias ensolarados lamber o suor que lhe
[pinga da cara
e sorver algo mais espesso mais adocicado
Ou ainda se coçar os cabelos enquanto dirige e
voltar as mãos ao volante agora castanho
Se o amigo mostrar cicatrizes permeadas de
[vermelhidão
Se o pigmento ameríndio envolver tua escrita
Se no teto notar manchas que antes não existiam
ou nas paredes tal qual mofo porém há algo de
[errado com a cor
Se quando distraído caminhar pela paragem
[dos dias
e perceber no vão enegrecido uma poça de sangue
Tenha cuidado

GRAVANDO 41
A queda

A primeira a atirar-se foi Leandra


logo depois Sansão e em seguida os gêmeos
Antes, porém, cortaram os fios de eletricidade
Cortaram todos os fios de todos os eletrodomésticos
cortaram os cabelos uns dos outros
desfiaram a colcha de Penélope
romperam a ponta do novelo de Teseu
passaram gilete nos pelos pubianos
e decoraram a biografia de Rimbaud
a parte mais triste é a volta
Todos nus no céu cadente
num ritual de Ícaro
a iluminar o opaco

GRAVANDO 43
A prece

Já são quase duas da manhã uma


boa hora com menor concorrência
Dou as costas para a TV tentando estimular
[a concentração
O corvo na janela me observa me espreita
Sob a cama uma coleção de preservativos
que never more
disputam o piso quadriculado
Valei-me, deus
Senhor dos desesperados
olhai esta alma apertada
no corpo de vinte e três anos
no quarto do apartamento
de trinta metros quadrados

GRAVANDO 45
Eu não sou obrigada

me pediram desprendimento pessoal mas eu


[não sou obrigada
me disseram pra sair dessa mas eu não sou obrigada
me perguntaram ( )sim ( )não
mas não respondi porque não sou obrigada
eu posso ser qualquer coisa mas não sou obrigada
na verdade já fui muita coisa mas não fui obrigada
mudei de nome seis vezes na vida
quando era cantora e me pediam pra tocar raul
[eu não tocava
na escola quando os menininhos pediam pra
[mostrar eu não mostrava
tatuei o mapa da arábia saudita na coxa
virei garrafa de pinga só pra mostrar que podia
cuspi álcool no fogo pra ganhar uns trocados
mas nada disso obrigada
não me venha com lábia e conversa fiada
porque eu não sou obrigada

GRAVANDO 47
Quermesse

correio elegante é primórdio da era das


[correspondências
mecanização da estética das mensagens sobre
[papel colorido
primeiro eu te amo da vida
vinho quente medindo a temperatura corpórea,
[oh, machucan-
do a língua de doçuras
correio elegante é prelúdio do bilhetinho na
[garrafa
atravessando sete mares por você
primícia do pombo-correio
é inspiração pra Marcel,
aquele danadinho
correio elegante é estratégia de vanguarda
é a antecipação da modernidade
e Santo Antônio há de perdoar
a fodinha na barraca do beijo

GRAVANDO 49
Biografias autorizadas

Elizabeth Taylor amou o marido de sua


melhor amiga e quando questionada a
respeito respondeu que achado não é
roubado. Jodie Foster passeia de mãos dadas
com meninas pelas ruas de Manhattan olhando
para outras meninas, que aliás ainda não
completaram dezoito. Grace Kelly realizou
inúmeros trabalhos humanitários, porém já
não era mais virgem ao se casar. Brigite Bardot
foi condenada cinco vezes por racismo. Greta
Garbo teve suas cinzas cremadas em segredo.
Katharine Hepburn era perfeita. Marilyn não
[era loira.
Lília Brik suicidou-se aos 86 anos com câncer
[terminal.

GRAVANDO 51
Lentes

A sua fotografia me olha


com olhos que adivinham
minha imagem

Eu olho a sua fotografia


e vejo meu reflexo
nos óculos escuros

GRAVANDO 53
A caminho do corpo levitante

escrever um lugar. sonhar um lugar. adentrar


[lugares,
corpos. No verão o sol deixa marcas em nossos
[pés, mas
apenas nos pés aventureiros que saem com
[sandália de
dedo e sem protetor solar: o sol também é um lugar.

Lu-ga-res:

passo após passo


corredor estreito
caminho oblíquo
duas línguas.

Lado C:

Então abri a porta do quarto e perguntei pro


[Alcides: “que cê acha, amor?”
E ele assim, meio de lado, meio tonto, levantou
[aquela
cabecinha desgraçada e disse: “é mó barato.”

GRAVANDO 55
Todos os signos são hostis

e se a voz for um salto alto


no corredor vazio
correndo fugindo buscando
a porta mais próxima
que não esteja trancada
à chave
que não esteja também
escancarada
que esteja ali entreaberta
luz e sombra
vão
: e se a voz for o som que
faz
quando caminho?

GRAVANDO 57
Enquanto partimos

tinha que ser um blues,


ou não: gaita, flauta,
sopro vento último suspiro
mera questão de eliminar
todos os parênteses
e reconhecer que:
o tempo é virgem
o presente é virgem
mas nós não somos mais,
ou pelo menos em partes.
Em outros termos:
joguinhos de amenidades,
mas vai que dá certo.

GRAVANDO 59
Não me fotografe me beije

Eternidade não há, sabemos.


Viajo em quarenta minutos:
céu colado ao chão no horizonte,
rosto colado no vidro.

Rodoviária é casa de segredos


onde ônibus chegam todos os dias
carregados de destinos fatais.

Em trinta minutos me vou


por isso meu bem, meu amor
abaixa essa arma

e por enquanto não me deixe


não me fotografe me beije.

GRAVANDO 61
[...] el hombre que vaga por la ciudad y observa el

cuadro tan bello que forman dos enamorados, está

allí presente ante el amor, a modo de fotografía, y el

resultado de ese cuadro de amor es crimen y muerte,


y el hombre no quiere que eso se le vaya de las manos

porque es lo único importante que le ha sucedido en

su puerca vida, pero te digo que no se puede amor,

allá no se puede subsistir, es mejor unirse a los felices

que tienen la bienaventuranza de no pensar, para

poder sobrevivir hay que quedarse jugando tenis sin

pelota ni raqueta. Así, existe la ciudad y yo habito en

la ciudad y veo cine y soy feliz.

Andrés Caicedo
Assombração urbana

Os encontros de uma solidão irredutível.


As ausências transitórias e definitivas.
Os livros de poema são ao vivo.

Ilumina a luz fosca o insulfilm riscado


Ilumina a luz fosca a esquina
Na esquina estou eu, holofote

(Não devia escrever isso aqui.


Vai que descobrem).
Já se foram dezoito cigarros

já se foi quase uma vida.


Parada cardíaca. Agora o vejo.
Siga aquele carro.

GRAVANDO 65
Abertos 24 horas

coreografia inaugural da noite


necessidade de autoexpressão
na boate mais quente da cidade
tem todo aquele lance do saber levar
bailar à moda bausch
quem disse que rilke bailava?
quem disse que pound?

permeando a insensibilidade anestésica,


[prefiro mergulhar no escuro
não posso mais com essa luz na cara
o poema me socorre

fim de tarde. boca adormecida. um


[dente a menos.
da poltrona do dentista avisto
néon piscando na garoa fina

GRAVANDO 67
Ninguém me segura na mobilete

A angústia persegue os viajantes


O sistema opaco do real
Na bagagem miojo e tubaína
Na garupa da magrela uma mina
Tem medo de morrer quando eu corro
Rolou beijo e chamaram a polícia
Week-end à francesa
Melhor não existe
Ninguém entende nada
O lamento da elite é kitsch
no mundo inteiro é igual
versão brasileira Herbert Richers

GRAVANDO 69
Sou o poeta na cidade

Não da cidade

gosto das extensões azuladas das

últimas montanhas

contemplar nas estradas de topázio

o anzol das constelações

Roberto Piva
Fitzcasampa

o insólito
não é um navio
carregado de homens, marujo, capitão
carregado também de suprimentos
estar incrustado no chão da av. paulista
com mulheres à calçada
acenando com seus lencinhos brancos

o insólito
é ali
se guiarem por estrelas

jogar a âncora
na própria terra
na própria zona de conforto
sem saber
que com ou sem um náufrago
que com ou sem neblina,
tempestade, iceberg
permaneceria lá
com a ilusão tão bela
de navegar por mares nunca dantes navegados

GRAVANDO 73
Este poema foi escrito
na cidade de São Paulo

Repara: hoje as ruas parecem mais calmas.


Não quietas, veja bem, não nesse sentido: mas
parece que todos desceram na estação exata.
Quando estiver à calçada, repara bem nas frases
que conversam inertes no muro, nos orifícios
[do muro,
na história deles. Lembra que tijolo por tijolo, alguém
os firmou ali. Repara nas mãos que firmaram
[os tijolos

e na língua surda que compactua com a tinta fresca


embebida de memória e coragem.

Quando caminhar pelo asfalto maciço das ruas


[de hoje
e de repente entrar em desespero por perceber que
pisou na linha, repara: as linhas não demarcam mais
as sortes de nossas vidas. As linhas, agora, são listras
em nosso próprio corpo: Repara: hoje as ruas são
[lineares.
Este poema foi escrito na cidade de São Paulo.

GRAVANDO 75
Sobre a versificação

palavras palavras
putas estupefatas
estúpidas contaminadas
pelas gírias primitivas
falsificadas clandestinas
por ti soy loco palavra
escura palavra preta
palavra besta sabão
na boca palavrão
palavra sábia língua
desaforada palavra
prima palavra
pluma palavras
precisas perdidas
quase embriagadas
quase vivas nos ares
inalcançáveis
pelos pássaros
da memória de gabriel
garcía marquez que se foi

GRAVANDO 77
Rasgando

rasgar a página do livro recortar a notícia do jornal


e guardar a posteridade pede notícias que nunca
[darei
e acreditará em tantas outras notícias que não
[foram guardadas
fazer os exames
achar a cura do câncer e lembrar que tomate
dá câncer que cigarro entra pela boca sai pelas
[narinas
guardar a fumaça no próprio pulmão
pisar com força e deixar nos pés a marca do
[chão que se pisou e
deixar no chão a marca dos pés que
[irremediavelmente seguem pra outros chãos
que não deixarão marcas que não serão
[marcados sequer pisados sequer terra
guardar alguns rostos entre a pele e o músculo
[e lá deixar
até não saber o que é rosto e o que é carne
[outros jogar

GRAVANDO 79
pela janela do quarto e deixar que procurem
[outros rostos
e deixar que outros olhos talvez mais castanhos
[ou verdes
nunca azuis pisquem e cerrem e encerrem
[outros tantos
rostos que voam depois que escaparam espertos
[da gaiola memória
estudar paleontologia datilografia gerontologia
engolir o choro a fome
amar até sufocar
lamber o que fica o mais cedo limpar
o caminho os herdeiros virão
pra lembrar
pra esquecer
guardar

80 ALINE ROCHA
FIM
Carta para Alcides

Alcides,

Foi assim. Naquela tarde fria de agosto, enquanto

você me falava sobre os filmes que havia assis-

tido semana passada, eu me encontrei. Assim,

de repente. Foi rápido demais, mas eu já sei que

os momentos decisivos precisam ser captados

com astúcia e perspicácia, pois duram poucos

segundos, talvez milésimos, talvez nada, talvez

ar, poeira. E eu captei, Alcides, naquela tarde

fria de agosto, enquanto você me falava sobre

uma porção de filmes que nunca assisti e que

talvez nunca assista por medo de perder o en-

canto da sua narração. Nós dois sempre fomos

desgraçadamente humanos. Hoje, Alcides, as coi-

sas são mais difíceis. Não sei por onde você anda,

não sei se lembra de mim. Mas é assim mesmo, aos

poucos vamos perdendo o que parecia delineado

GRAVANDO 85
com tanta firmeza. Hoje já não falo com minha

melhor amiga, meu cachorro morreu na quinta-

feira e o Kassab venceu as eleições. Que se há de

fazer? Nunca acreditei em destino, mas sempre

fiz mapa astral: é uma incógnita. Não importa,

não importa. As coisas são como são. Mas eu ia

dizendo que me encontrei naquela tarde em que

seus lábios se moviam calmamente e os meus

se moviam calmamente tentando repetir palavra

por palavra e eu olhava a pulsação da veia em

seu pescoço e a tatuagem do seu peito saltando

enquanto você olhava pra mim pro meu corpo

era o meu corpo eu sempre soube enquanto você


olhava e falávamos tudo aquilo não fazia sentido

pra qualquer outra pessoa mas para nós sim pois

inventamos um jeito lacônico de nos comunicar

sim eu lembro bem eu só entendia as lacunas

você também as arestas as migalhas que ficavam

aquele diálogo entrecortado por um gole e outro

entre um beijo e outro entre um olhar entre de-

dos sobre a pele e pouco ficava das palavras por-

86 ALINE ROCHA
que no fim das contas era muita pele era muito

corpo e os gestos eram muito calculados, gravan-

do, eu ouvia depois da segunda garrafa, você tam-

bém, e ríamos porém sem esquecer do objeto

estranho na sala. Gravando.

Outro dia, enquanto eu andava pela Augusta, ti-

ve medo pois um grupo de skinheads me seguia.

Entrei ofegante e suada no cinema e vi que o nos-

so estava em cartaz. Lembrei de você, Alcides,

e não segurei. Todos me olharam, todos, e o

choro aumentou, era incontrolável, como tudo

em mim. Então corri mais um pouco e entrei


naquele bar podre onde costumávamos beber.

Sorri extasiada. Alcides, eu queria tanto que você

estivesse aqui, sabe, você é meu melhor amigo,

você é o único que entende as minúcias que eu

tento esconder e que escondendo só deixo mais

explícitas, você sempre abre as janelas e as jane-

las por aqui andam sempre trancadas agora, eu

preciso muito que você volte pra abrir as janelas,

eu preciso que você volte e faça isso, não me

GRAVANDO 87
deixe abrir, o vento baterá forte demais. Tento

costurar meus fiapos, mas a linha não entra,

a agulha não passa, fica um emaranhado, tudo

muito tosco. Isso aqui era cetim, seda, trapo

agora: folhas, papel, carbono, elástico – eu estico

até o limite e solto e empurro o corpo contra

a alma. Falta, falta algo, mas o pior não é isso,

o pior é o que sobra: sobra muito mais. Rolos

e rolos de filme.

Você se tornou a maioria dos lugares desta cida-

de, Alcides, e frequentar estas ruas, estes bairros,

estas placas com os nomes de nossas lembran-


ças tem sido cada dia mais tortuoso. A vida é um

labirinto de mal-entendidos, cheia de esquinas

e eu sempre pensava que daria de cara com seu

sorriso na próxima, naquela adiante, mas pou-

co vejo além da neblina desta avenida alta.

Percorro o Centro e as câmeras de segurança

acompanham meus passos. Sorrio lisonjeada,

arrumo a postura, aliso os cabelos e retiro do bol-

so o batom e um pequeno espelho. Passo a ma-

88 ALINE ROCHA
quiagem, mas na verdade é só um pretexto para

olhar o reflexo da lente que me observa, por

vingança. Para mim, é você ali.

O problema é este país, o estado, a cidade, não

sei, mas é externo. Só pode ser. É sempre exter-

no, Alcides. E eu odeio ser assim, trágica, é tão

cafona e piegas. Tem que ter mais cor, eu sei,

mas agora não, na próxima cena, preto&branco

ninguém quer: só você, e eu, nós dois. Shiiiiu,

preciso falar baixo. Esses vizinhos, não confio

neles. Todos gostam, Alcides, de ouvir a con-

versa alheia. É tudo imaginado, Alcides. É tu-


do dissimulação.

GRAVANDO 89
THE
END
[click]
Coleção Patuscada

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Pequenos delitos - Anderson Petroni


Livre-me - Caio Carmacho
Domingo no Matadouro - Marelo Pierotti
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Poemas em autoplágio - Wilson Caritta
Corpos em Cena - Susanna Busato
Fotogramas - Luiz Brener
Segredaria - Cel Bentin
Caravana - Carina Castro
Asa de lagarta - Vanessa Reis
70 poemas - Ana Peluso

Esta obra foi composta em Libre Baskerville


em dezembro de 2013 para a Editora Patuá.

Em meados do mesmo ano, no Cine XIV,


na cidade de Salvador, Aline assistiu ao filme
Tatuagem, de Hilton Lacerda, e no escuro da sala
se deu conta de que todos nós levamos no corpo
um símbolo da liberdade, como um amuleto.

Tiragem de 1500 exemplares

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