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Universidade Federal de São João Del-Rei

Coordenadoria do Curso de Filosofia

AUTORIDADE E LEGETIMIDADE NO
PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

Lúcia Helena da Silva

São João Del-Rei – 2015

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Universidade Federal de São João Del-Rei
Coordenadoria do Curso de Filosofia

INTRODUÇÃO

O trabalho em questão tem como objetivo expor uma análise acerca das ideias
centrais da autoridade e legitimidade na concepção de Hannah Arendt. O fio condutor
do presente trabalho será demonstrar como após a dissolução da trindade romana
(religião, tradição, autoridade) passa, então, a autoridade política a ser o último dos três
elementos, a desaparecer.
A perda da sanção religiosa implicou na mudança de concepção da natureza terrena
do absoluto. Nessa perspectiva, avaliaremos onde Robespierre e os Pais fundadores da
Revolução Americana encontraram legitimação da autoridade no campo da política.
Faremos uma avaliação da análise de Jefferson e do comportamento de Robespierre
frente à questão do absoluto. Recorreremos a Montesquieu e à sua leitura dos
fundamentos da estrutura política no ocidente, e demonstraremos como era justificado a
sua percepção em termo da legitimidade e do poder político. Objetiva-se mostrar, de que
maneira a percepção de Montesquieu se concretiza na questão da legitimidade e do
poder político.

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1. A ANÁLISE DE JEFFERSON

A motivação para a abordagem que se segue é simples e direta: autoridade e


legitimidade são ideias pertinentes de análise no decorrer dos tempos, permanecendo
sempre atual, pois, embora haja mudanças significativas na forma de viver do cidadão, o
modo de exercer a política ao que percebemos pouco evoluiu ao longo dos tempos.
Nossa proposta nas linhas que se seguem será de avaliar um dos pais fundadores da
Revolução Norte Americana.
Tomaz Jefferson propôs a Declaração da Independência e passou a se dedicar à
elaboração da Constituição e ao estabelecimento de um governo inteiramente novo.
Nessa proposta, surgiu uma nova forma e diferentes instrumentos para a Constituição.
Elaboração das Constituições passa a ser o passatempo preferido dos pais fundadores e
Jefferson não foge a regra. No entanto a própria noção de Constituição acaba
desintegrando-se e perdendo pouco a pouco o seu significado. O fato é que a diferença
entre uma Constituição que é um ato do governo, e a constituição por meio da qual o
povo constitui um governo é bastante óbvia. Mas no Novo Mundo o que apareceu de
forma bem acentuada foi: “que o homem, por sua própria natureza, não está capacitado
a ser detentor de um poder ilimitado”. Pois, para os detentores do poder torna-se sempre
necessário refrear o homem e sua sede de poder. (ARENDT, 1990, p.117).
As revoluções dos séculos XVII e XVIII, segundo Arendt demonstram ser os
indícios de um novo espírito, o espírito da Idade Moderna, pretenderam-se em apenas
restaurações. E a Revolução Americana foi oficialmente interpretada como uma
restauração, ou, mais precisamente como “a liberdade restaurada pelas bênçãos de
Deus”, como está gravado no grande brasão de 1951. (ARENDT, 1990, p.35).
Para Jefferson, era considerado um perigo que o povo participasse do poder
público sem ter participação no espaço público. Porém, os Conselhos passaram a ser a
nova forma de governo, fadados a se tornarem supérfluos, pois onde há o divórcio entre
conhecimento e ação o espaço da liberdade deixa de existir. Para Arendt (1990),
Jefferson faz uma reflexão tardia do Sistema Distrital, ao dizer que:

As repúblicas elementares dos distritos, as repúblicas municipais, as


repúblicas estaduais e a república da União formarão uma gradação de
autoridades, cada uma delas respaldada na lei, detendo todo o seu
quinhão de poder delegado e constituindo verdadeiramente um
sistema de freios e contrapesos fundamental para o governo (p. 199).

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Arendt observa que Jefferson permaneceu omisso quando se tratava da
definição das repúblicas elementares. Segundo a autora, ele mencionou, ocasionalmente
ao ouvir uma proposta de sua autoria, como uma das vantagens das divisões por ela
proposta, que seria uma excelente maneira de coletar a voz do povo para o governo
representativo. No entanto, do que ele estava realmente convencido era: “Vamos iniciá-
los, nem que seja com um único propósito, e logo se tornará evidente para que outros
objetivos sejam também instrumentos” (ARENDT, 1990, p. 203).
De acordo com Arendt, os objetivos de Thomas Jefferson foram imprecisos. Ela
ressalta que Thomas Jefferson conseguiu concluir que a dissolução do espaço público
seria um constante perigo para a consolidação do que ocorreu de forma tão espontânea
na Revolução Americana; e, posteriormente, refletir sobre a Revolução. Trata-se da
nova forma de governo, com todas as mudanças ocorridas e a que por ventura deveria
assegurar a Constituição da Liberdade. A começar por proporcionar que o espaço
público assegurasse o direito de liberdade ao povo, onde houvesse oportunidade de ser
feliz, partilhando da felicidade pública e do poder público (ARENDT, 1990, p. 204).
Nesse sentido, a ação depende da vontade dos homens, um novo absoluto não se tornou
necessário na Revolução Americana onde a pluralidade humana determinantemente foi
o indicador. Quando há união e esforço conjunto para que as ações políticas aconteçam,
são os homens que legitimam as leis.
O que passou a preocupar Jefferson foi que, nessa república que fora
estabelecida pela força dos revolucionários e de acordo com os homens da revolução era
“[...] a única forma de governo que está eternamente em guerra, franca ou dissimulada,
com os direitos da humanidade”. Na forma que essa república assumiu, segundo Arendt,
não havia nesse sistema de governo, nenhum espaço reservado para o exercício
daquelas qualidades com as quais ela fora edificada. Seria esse o preço a ser pago pelos
revolucionários pela sua fundação. (ARENDT, 1990, p. 101).
A “Declaração da Independência faz referência à ‘busca da felicidade’ e não a
busca da felicidade pública”. Há nesse momento uma perda de memória e o próprio
Jefferson não notou a imprecisão dessa distinção e nem sequer foi notada nos debates da
Assembleia (ARENDT, 1990, p.102).
Quando ressalta diretamente o assunto da felicidade pública, Jefferson e Adams
começam a discutir em tom de brincadeira, sobre as possibilidades da vida após a morte.
Por trás da ironia, temos o cândido reconhecimento de que a vida no Congresso, as
alegrias dos discursos, da atividade legislativa, dos ajustes de negócios, de persuadir e
ser persuadido representava para Jefferson, o mesmo antegozo de uma eterna bem

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aventurança do que, para a devoção medieval, os deleites da contemplação. (ARENDT,
1990, p.105)
A Revolução Americana teve de enfrentar o mais incômodo de todos os
problemas do governo revolucionário: o problema do absoluto. Problema este que está
sujeito a aparecer em qualquer revolução, pois é inerente a qualquer evento
revolucionário e poderia jamais ter sido percebido por nós, não fora a Revolução
Americana. Salvo a esta, somos tentados a responsabilizar o absolutismo, que antecedeu
a todas as demais revoluções (ARENDT, 1990, p.126).
A secularização, ou seja, a emancipação do poder secular da autoridade da
igreja. A monarquia absoluta, geralmente considerada, e com razão, como antecipadora
do Estado-nação, foi responsável, da mesma forma, pela ascensão do Estado secular,
com dignidade e esplendores próprios. A Idade Moderna passa a deparar com
dificuldades no campo da política, que vinha sendo mascarado pela prática do
absolutismo durante séculos e necessitava de um novo substituto plenamente satisfatório
para a perda da sanção religiosa da autoridade na pessoa do rei, ou antes, na instituição
da realeza. (ARENDT, 1990, p.127).
Para Arendt foram várias as maneiras utilizadas para interpretar o que houve de
histórico com o surgiomento do turbulento problema do absoluto. Porém era inevitável,
pois os corpos políticos e as instituições tinham o absolutop como inerente às
tradicionais concepções de leis, e uma divindade acabava-se por tornar-se necessária.
(ARENDT, 1990, p.157).
As próprias leis eram tidas como mandamentos interpretados em consonância
com a voz de Deus que ordenava aos homens: Não o farás. Obviamente que tais
mandamentos não podiam ser impositivos sem que houvesse uma sanção religiosa
superior. Para ser uma autoridade e para conferir validade às leis humanas, seria
necessário que se acrescentasse à “Lei da Natureza”, como fez Jefferson, o “Deus da
Natureza”, pelo que se torna pouco relevante se, seguindo a tendência da época, esse
deus se dirigisse às suas criaturas por meio da voz da consciência, ou os iluminasse com
a luz da razão, sem se valer da revelação bíblica. Em determinado momento da história
americana, onde a fonte transcendente de autoridade para as leis do novo corpo político
seguindo as crenças deísticas dos fundadores, as famosas palavras de Jefferson ecoaram:
“Acreditamos que essas verdades sejam evidentes por si mesmas”. (ARENDT, 1990,
p.156).
O desejado era que Jefferson que num determinado momento percebeu como
ninguém o perigo do espaço público ser banido, agora atestasse que: Essas verdades são

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indemonstráveis, isto é, possuem um poder de compulsão que é tão irressistível como o
poder despótico, elas não são sustentadas por nós, são elas que nos sustentam;
dispensam, portanto, qualquer tipo de acordo. (ARENDT, 1990, p.157)
Torna-se salutar ressaltar que, sempre foi importante que a própria lei natural
necessitava de sanção divina para se tornar obrigatória para os homens, e a sanção
religiosa passou a reclamar mais do que a elaboração teórica de uma “lei maior”. Para
Jefferson, as opiniões e crenças de homens não estão sob a dependência de sua própria
vontade, mas seguem involuntariamente a evidência às suas mentes.

2. A ABORDAGEM DE ROBESPIERRE

È relevante para os nossos propósitos, antes de abordarmos acerca das


concepções arenditianas da Autoridade e Legitimidade, analizarmos um pouco da
trajetória de Robespierre1 .

Robespierre faz sua opção preferencial pelos mais pobres, porém, não deixa de
ser questionável tal opção. Pois, não podemos desconsiderar o fato das massas serem
utilizadas por inescrupulosos políticos com interesses diversos. Para Arendt, os atos de
violência ainda que perversos demonstrassem sinal de esperteza para as massas e isso
acaba por atrair a ‘ralé’ para atos violentos. O altruísmo dos adeptos do regime
totalitário com o sucesso obtido nessa forma de regime político nos confirma.
1
Maximilien Robespierre nasceu em Arras, na antiga província francesa de Artois. Seu avô paterno, também
chamado de Maximilien Robespierre, estabeleceu-se em Arras como advogado. Seu pai, Maximilien Barthélémy
François de Robespierre, também advogado do Conseil d'Artois, casou-se com Jacqueline Marguerite Carrault, a filha
de um fabricante de cerveja, em 1758. Maximilien era o mais velho de quatro filhos e foi concebido fora do
casamento; seus irmãos eram Charlotte, Henriette, e Augustin Robespierre. Em 1764, Madame de Robespierre
morreu poucos dias após o parto. Seu marido, posteriormente, deixou Arras e viajou por toda a Europa, apenas
ocasionalmente vivendo em Arras, até sua morte, em Munique, em 1777; os filhos foram criados por seu avô materno
e tias.Maximilien Robespierre freqüentou a Escola (ensino médio) de Arras, quando ele tinha oito anos, já se
encontrava alfabetizado. Em outubro de 1769, sobre a recomendação do bispo, ele obteve uma bolsa de estudos
no Liceu Louis-Le-Grand. Robespierre estudou lá até 23 anos de idade, recebendo a sua formação como advogado.
Como um adulto, a maior influência sobre as idéias políticas de Robespierre foi de Jean-Jacques Rousseau. A
concepção de Robespierre da virtude revolucionária e seu programa para a construção de soberania política
de democracia direta de Rousseau; e, em busca desses ideais, ele finalmente ficou conhecido durante a República
jacobina como "o Incorruptível". Robespierre acreditava que o povo da França era fundamentalmente bom e,
portanto, capaz de fazer avançar o bem-estar público da nação (en. wikipedia.org/wiki/Maximilien_Robespierre).

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Arendt(1951) afirma que: “ Seria um erro ainda mais grave esquecer, em face de tal
impermanência, que os regimes totalitários, enquanto no poder, e os líderes totalitários,
enquanto vivos, sempre ‘comandam e baseiam-se no apoio das massas’. (ARENDT,
p.356).

Ações políticas podem influenciar a massa a ações violentas, para que a falta de
segurança atinja o governo de oposição. O fato é que, na contemporaneidade assistimos
a atos violentos cometidos por essa massa em grande escala serem compartilhados nas
redes sociais com muita tranquilidade, e ao que parece, após cometê-lo o agente
violento registra e lança nas redes sociais como para provar que é o “bom” no ato de
cometer atrocidades. Porém, o que preocupa e entristece, é que há uma massa que
compartilha desnaturalizando assim o olhar para algo que não poderia e nem deveria ser
visto por nenhum homem como algo natural.

A teoria da ditadura revolucionária de Robespierre, embora inspirada nas


experiências de revolução, encontrou sua legitimação no conhecido instituto
republicano romano. Vale ressaltar que Robespierre estudou em escola cristã até os 23
anos, o que pode ter contribuído para a escolha. Afirma que o governo constitucional se
preocupa com a liberdade civil e o governo revolucionário com a liberdade pública, e os
“Principios do Governo Revolucionário” seria proteger e preservar a república.
Retificou: “No Governo Constitucional basta apenas proteger os indivíduos contra os
abusos do poder público”. O que evidencia que o poder ainda é público e está nas mãos
do governo (ARENDT, 1990, p.97).

Segundo Arendt, os pais fundadores se achavam os mestres em ciência política.


No século XVIII, colecionavam constituições – como outras pessoas colecionam selo. A
eles era dado o nome de homens de letras, que corresponde aos intelectuais de hoje.
Estes livres do ônus da pobreza se voltavam para o estudo de autores gregos- e isso é
decisivo em razão de qualquer sabedoria eterna ou beleza imortal. Dessa maneira,o
principal objetivo era o de conhecer instituições políticas para darem seu testemunho.No
entanto, liberdade para eles era liberdade pública (ARENDT, 1990, p.96).

Percebe-se a partir daí a impotência do indivíduo quando ele passa a ser protegido
pelo governo. Houve o apartamento da Liberdade e Poder, não na esfera pública, mas na
vida particular do cidadão. Arendt relata que a fisionomia dos séculos XIX e que

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permaneceu no século XX, foi à conversão do cidadão a indivíduo particular
(ARENDT, 1990, p.110).

Sendo fatalidade a assimilação do poder com a violência, da política com o


governo e do governo com o mal necessário que começou. O medo e a esperança se
misturam ao percebermos que as noções revolucionárias de felicidade pública e de
liberdade pública jamais desapareceram do cenário político americano e se tornaram
parte integrante da própria estrutura do corpo político da república. Arendt é assertiva na
análise que faz de que o esgotamento da legitimação do sistema político é decorrente da
desagregação dos espaços fundados outrora na opinião e na ação dos cidadãos
(ARENDT, 1990, p.146).

A secularização; ou seja, a separação entre o Estado e a Igreja, deixa os


revolucionários franceses e americanos a procura de um novo absoluto. O poder
constituinte precisava de uma nova autoridade. A nova lei da terra tinha necessidade de
um absoluto e Robespierre o procurava desesperadamente quando este não era mais
atribuído a Deus (ARENDT, 1990, p.148).

O absolutismo antecedeu a todas as revoluções, exceto a Americana. Por essa


razão, seria necessário estabelecer uma nova lei para a nação. Tal estabelecimento seria
para as futuras gerações, a “lei maior”, que empresta validade a todas as leis humanas. A
ideia de “lei maior” colocou em foco tanto na França, quanto na América a necessidade
de um absoluto. E, Robespierre, foi o primeiro a distinguir clara e inequivocadamente,
entre a origem do poder, que ao irromper de baixo, das “raízes profundas” do povo, e a
fonte da lei, cujo lugar está “acima”, em alguma região superior e transcendente. A lei
na Revolução Francesa, a pretensão da monarquia absoluta de estar fundamentada em
“direitos divinos” havia dado origem a uma concepção de um deus cuja vontade é a lei.
Ao passo que na Revolução Americana, fora a vontade geral que prevaleceu.
(ARENDT, 1990, P.148).

Para Hannah Arendt, Robespierre na busca desesperada para encontrar no


absoluto uma forma de legitimar as leis, acabou por colocar o antigo sistema às avessas.
Sendo que, a noção de “alma imortal” o que permitia dar continuidade ao papel da
justiça, se tornava indispensável, pois, impedia que o novo soberano, esse monarca
absoluto cometesse atos criminosos. Sobre isso, diz Arendt (1990):

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Eram todos deístas, e sua insistência numa crença em futuros estados
destoava estranhamente de suas convicções religiosas. Certamente não
foi nenhum fervor religioso, mas apreensões estritamente políticas
sobre os enormes riscos inerentes à esfera secular das relações
humanas que os induziu a se valer do único elemento da tradição
religiosa, cuja utilidade política, como um instrumento de governo,
estava acima de qualquer dúvida. (p.153).
Para Arendt, o crime político que foi possível ser observado numa escala sem
precedentes, por pessoas que haviam se libertado de todas as crenças em “estados
futuros” e perdido o temor milenar de um “Deus vingador”, não nos permite questionar
a sabedoria política dos fundadores. Entretanto foi a sabedoria política e não convicção
religiosa que os levou a desrespeitar os homens (ARENDT, 1990, p.153).

A Sanção outorgada pela Igreja, no ocidente em longos séculos, em que as leis


seculares eram entendidas como expressão mundana de uma lei divinamente ordenada
(152). Emissários de Cristo se tornavam autoridades, até que os rebeldes protestantes se
rebelaram, pois era a Lei Natural, para as leis e pactos judaicos e até para a figura do
próprio Cristo que prevalecia. Quanto à Robespierre, Arendt (1990) diz: “Em termos de
Revolução Francesa, ele precisava de uma fonte perpétua e transcendente de autoridade,
que não podia ser identificada com a vontade geral, seja da nação, seja da própria
revolução “(p. 148)”. A autora (1990) afirma:

Essa eternidade é o absoluto da temporalidade, e, na medida em que o


princípio do universo procede dessa região do absoluto, ele não é mais
arbitrário, porque está alicerçado em algo que, embora possa estar
situado além da capacidade de compreensão humana, possui uma
razão, uma racionalidade própria. O curioso fato de terem os homens
das revoluções se lançado na busca desesperada do absoluto, no
próprio instante em que foram forçados a agir, pode muito bem ter
sido influenciado, pelo menos em parte, pelas antigas concepções e
costumes da civilização ocidental, segundo os quais cada princípio
inteiramente novo demanda de um absoluto que lhe sirva de fonte e
pelo qual é ‘explicado’ (p.165).

Muito importante nesse momento, ressaltar como pareceu paradoxal para


Arendt, o fato de no mesmo momento em que historicamente falando os homens das
revoluções estivessem lidando com uma forma totalmente nova de relação com o
espírito das leis, pois, se desvinculavam das influências das Igrejas, sendo eles no século
XVII considerados que eram os “iluminados”, procurassem emancipados dessa relação
milenar, alguma espécie de sanção religiosa (ARENDT, 1990, 149).

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Hannah Arendt relata: o que Robespierre conseguiu com seu conceito de “Ser
Supremo”, segundo ela, nem mesmo era uma expressão dele, foi demonstrar pura e
simplesmente a falta de relevância das crenças religiosas na esfera política. Existem
para a autora inúmeras formas de interpretação do problema do absoluto e sua
configuração na história (ARENDT, 1990, p.148).

Em suma, Arendt toma o problema do absoluto em termos da legitimação da


política, na qual Robespierre tentou realizar com extrema convicção, não religiosa, mas
política, ainda que recorresse desesperadamente ao onipotente. A autora afirma em suas
obras que a ação depende da vontade dos homens que em termos de ação conjunta é
capaz de fazer com que suas ações sejam inspiradas e guiadas. Um novo absoluto- a
onipotência impede a pluralidade humana.

3. A SOLUÇÃO DE MONTESQUIEU

Para apresentarmos a visão de Montesquieu acerca da autoridade e legitimidade,


será necessário recorrer-mos à leitura feita por ele da estrutura política no ocidente.
Charles Louis de Secondat – Apelido – Montesquieu nasceu na França em 18 de Janeiro
de 1689. Foi jurista, historiador, filósofo e político. O mais importante livro de
Montesquieu foi publicado em 1748 e intitulado: Espírito das Leis 2, o autor tinha
cinquenta e nove anos, sendo assim o mesmo é produto de um pensamento elaborado na
primeira metade do século XVIII, obra de um pensador, único na sua época, que
considerava os problemas políticos em si mesmos, sem ideias pré-concebidas sobre o
espírito e a natureza. Montesquieu mesmo antes do eclodir da Revolução, sabia muito
bem que a decadência estava gradativamente minando os fundamentos sobre os quais as
estruturas políticas do Ocidente se apoiavam. Pois, havia uma perda de credibilidade e
confiança nas leis e na autoridade daqueles que as governavam. Seu temor era que a
Liberdade desaparecesse no cenário com o qual havia anteriormente encontrado abrigo
(ARENDT, 1990, p. 94).
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O Espírito das Leis foi publicado em 1748. Fruto do iluminismo, que proclama o direito da
razão humana de esclarercer todos os domínios, a obra de Montesquieu inaugurou uma nova
perspectiva na abordagem dos problemas sociais e políticos: a exclusão de conceitos religiosos
ou morais, e o afastamento de teorias abstratas e dedutivas.A sua preocupação foi ultrapassar as
posições dos filósofos e utópicos que apresentavam as suas teorias em abstracto e sem nenhuma
consideração pelas determinantes espaciais e temporais (MONTESQUIEU, 1748).

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Para Arendt, Montesquieu foi o primeiro a dar o prognóstico de que os governos
seriam facilmente derrubados, e a progressiva perda de autoridade de todas as estruturas
políticas herdadas, que ele tinha em mente, tornariam-se no decorrer do século XVIII
evidente para um número cada vez maior de pessoas. Pois, o desmoronamento da antiga
trindade romana3 , segundo a autora, teria um papel fundamental nesse declínio de
queda da autoridade política (ARENDT, 1990, p.94).

Percebe-se que surgiu um intrigante e novo problema no cenário: a secularização.


O cristianismo que até então, com seu poder, regras e normas romanas, dominava a
mente e o coração humano, impunha formas de administrar a vida política, social e
religiosa. Como seria fundamentar e constituir uma nova autoridade sem o domínio do
Império Romano? Qual seria o novo absoluto: um monarca como na Revolução
Francesa ou seria mais interessante fundamentar o poder no povo como na Revolução
Americana? O problema do absoluto é, segundo Arendt, inerente ao próprio evento
revolucionário. Porém, os revolucionários americanos nos presentearam com a sorte
proporcionada pela percepção, longe da histórica convicção do que ocorreu em diversas
revoluções em que a autoridade do monarca nos levava a crer na necessidade do mesmo
(ARENDT, 1990, p. 156). A autora afirma: As Revoluções são a consequência e nunca a
causa da decadência da autoridade4 política (1990, p. 93). A durabilidade dos governos
obsoletos, por mais estranho que se parecia se constituía de um fato na história da
política ocidental, mesmo onde há falta de autoridade, pois os homens teriam que estar
preparados para se organizarem e agirem em conjunto, caso contrário seria inevitável o
desintegrar-se.
Segundo Arendt, as revoluções, e até mesmo a Revolução Norte-americana, não
puderam assegurar a instituição da liberdade política originária da Grécia Antiga e
terminaram criando uma nova forma de governo “constitucional”, tendo como resultado
uma dose de direitos civis na forma de monarquia ou de república, que acabou
merecendo apenas a designação de governo limitado. Para a autora, as Constituições, ao
contrário do que se pensa, não foram o resultado das revoluções. De certa forma, elas
acabaram sendo impostas após o fracasso das revoluções, que passaram a ser
consideradas mais um sinal de derrota do que de vitória (ARENDT, 1990, p. 117).

3
Secularização, ou seja, a separação entre Estado e Igreja: Religião - Tradição e Autoridade.
4
- A Autoridade, para Hannah Arendt, deriva do verbo latino augere (aumenta), e o que a ação política
faz no espaço público da palavra e da ação é acrescentar, através de feitos e acontecimentos,
importância à fundação da comunidade política e vida às suas instituições. A relevância do agir conjunto
e da fundação, como base da Autoridade. (ARENDT, Da Dignidade da Política pp.91-141).

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Para Arendt, houve a necessidade, tanto na França como na América, de
Assembleias Constituintes e convenções especiais, cuja tarefa única seria esboçar uma
Constituição. Admitia-se que o esboço da mesma fosse levado para casa, e, de volta
para o povo, fosse discutido item por item. Com os artigos da Constituição sendo
debatido nos congressos estaduais, o que ocorreria era a participação popular dotando o
governo de uma Constituição na qual o povo constituísse o seu próprio governo, e não o
contrário (ARENDT, 1990, p. 116).
Outro fundamental elemento, e que os revolucionários não conseguiram
compreender, foi, de um lado, a importância da fundação de uma República e, de outro,
o fato de que o verdadeiro conteúdo da Constituição não ser absolutamente a
salvaguarda dos direitos civis, mas o estabelecimento de um sistema de poder
inteiramente novo da autoridade. O que as cartas régias e a leal vinculação das colônias
ao Rei e ao Parlamento da Inglaterra fizeram para o povo da América foi conferir o seu
poder e peso adicional de autoridade. Esse corpo político colonial do Novo Mundo veio
a ser o estabelecimento da fundação, não do poder, mas da autoridade (ARENDT, 1990,
p. 118).
Para Hannah Arendt (1990): “Poder e autoridade diferem tanto quanto poder e
violência” (p. 118). A autora salienta que o tema monumental da obra de Montesquieu
era, de fato, a constituição da liberdade política. No entanto, a palavra constituição
perdeu, nesse contexto, todas as conotações de ser uma negativa, uma limitação ou uma
negação do poder. A palavra significa, então, que “O grande templo da liberdade
federal” deve se alicerçar na fundação e correta distribuição do poder. Nesse sentido,
poder e liberdade passaram a ter inter-relação, com o poder de representatividade.
(ARENDT, 1990, p. 120). Não se poderia acreditar que o poder revolucionário ainda
resistiria e permaneceria intacto diante da consolidação descontrolada da forma com a
qual a natureza do poder passou a ser exercido nas questões políticas. Arendt (1990)
afirma:

O poder só pode ser contido, e, ainda assim, permanecer intacto,


através do poder, de forma que o princípio de separação do poder não
apenas proporciona uma garantia contra a monopolização do poder
por uma parte do governo, como também oferece na realidade, uma
espécie de mecanismo, incrustado no próprio cerne do governo através
do qual novo poder é constantemente gerado, sem que, no entanto
venha a crescer demasiadamente e se expandir, em detrimento de
outros centros ou fontes de poder (p. 121).

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Para Hannah Arendt, a Revolução Americana nos mostra um exemplo
inesquecível e nos ensina uma lição sem precedentes, pois essa Revolução não eclodiu
simplesmente, mas, antes, foi conduzida por homens que tomaram juntos uma
resolução, unidos entre atos e palavras pela força de compromissos mútuos. A autora
denomina “Tesouro Perdido” na Revolução Norte-americana o esquecimento da
participação popular e do espírito revolucionário que culminou na Independência dos
Estados Unidos. Todos os negócios políticos são e sempre foram transacionados dentro
de um arcabouço de laços e obrigações para o futuro, como leis e Constituições, tratados
e alianças, derivando todos, em última instância, da faculdade de promover e de manter
a promessa face às incertezas intrínsecas do futuro (ARENDT, 1990, p. 212).
O fato é que, precisamente por depender da tradição que vinha desde os
primórdios da história romana, a autoridade política foi o último dos três elementos a
desaparecer, ou seja, religião, tradição e autoridade (ARENDT, 1990, p. 94).
Montesquieu em sua sabedoria política foi o único entre os fundadores que sustentou a
tese de que o poder e a liberdade relacionavam-se um com o outro (ARENDT, 1990,
p.120).
A liberdade política limitada pela moderação do poder é uma insistência na qual
Montesquieu não abre mão. Para ele os sistemas democráticos e aristocráticos,
essencialmente, não são livres a não ser quando não se abusa do poder. Da própria
virtude ele ironiza: Quem diria! “A própria virtude tem necessidade de limites.” O
homem que tem o poder é tentado na maioria das vezes a abusar dele. É muito comum
na prática cotidiana, percebermos pessoas que ao exercerem o poder que têm nas mãos,
utilizar dele de forma incoerente com o objetivo que o mesmo deveria ter que é se
colocar a serviço dos seus subordinados. Mesmo sabendo ser humana essa forma de
lidar com o poder e a autoridade, não nos é permitido compactuar com esse modelo,
pois ele acarreta mais desamor que paz à vida dos homens. O conceito de liberdade é
procurado insistentemente por Montesquieu, até que o mesmo chegue a esse conceito
no sentido político (MONTESQUIEU, 1748, p. 334). Sendo assim, ele afirma: É melhor
dizer que o governo mais de acordo com a Natureza é aquele cuja disposição particular
melhor se relaciona com as disposições do povo para o qual foi estabelecido (p. 28).
Das religiões em geral Montesquieu (1748) diz:
Como se pode julgar entre as trevas as que são menos espessas,
e entre os abismos os que são menos, profundos, assim se pode
procurar entre as religiões falsas as que são mais conformes ao
bem da sociedade; as que, embora não tenham o efeito de
produzir os homens para as venturas da outra vida, podem
contribuir mais para a sua felicidade nesta (p.365).

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Montesquieu (1748) se propôs a fazer um exame das religiões em geral, com o
propósito de perceber o bem que delas se pode tirar no estado civil, tanto às que têm
raízes na Terra, como às que têm raízes no Céu. Especificamente do cristianismo, ele
diz: “A religião cristã, que ordena que os homens se amem, quer sem dúvida que cada
povo tenha as melhores leis políticas e as melhores leis civis, porque elas são, depois
dela, o maior bem que os homens podem dar e receber” (p. 365).

Para Arendt, Montesquieu entre os pré-revolucionários foi o único a não julgar


necessária a introdução de um poder absoluto, divino ou despótico, no domínio político.
O fato marcante é que Montesquieu utilizou a palavra “Lei” no seu antigo sentido
romano, em seu livro “ o Espírito das Leis” com rapport , a relação subsistente entre
entidades diferentes. As leis romanas eram apenas o meio de estabelecer a paz; eram
tratados e acordos com os quais se constituía uma nova aliança. Um fato curioso ,
segundo Arendt é que para os romanos o término da guerra não se caracterizava apenas
pela derrota do inimigo, mas pelo estabelecimento da paz, e a satisfação maior dos
romanos era que os inimigos se tornassem amigos e aliados de Roma. De forma tal que
o sistema romano de alianças pudessem se estender por todos os países da Terra.
(ARENDT, 1990) Assim sendo a autora afirma:

É certo que ele também presume a existência de um ‘Criador’ e


‘Mantenedor’ do universo, e que ele também fala de um ‘ estado
de Natureza’, e de ‘leis naturais’, mas os rapports que subsistem
entre o Criador e a criação, ou entre os homens no estado de
Natureza, não são mais do que ‘regras’ ou règles que definem o
governo do mundo, e sem as quais o mundo não existiria. (p.
151).

Segundo Arendt, para Montesquieu nem as leis religiosas, nem as leis naturais
constituem uma “lei maior”, no seu sentido mais estrito; elas não passam de relações
existentes nas quais os diferentes estados do ser são preservados. Se para os romanos a
lei é pura e simplesmente aquilo que relaciona duas coisas, e que é, portanto, relativa
por definição, ele não necessitava de nenhuma fonte absoluta de autoridade, e podia
descrever o “espírito das leis” sem jamais levantar a problemática questão de sua
validade absoluta. (ARENDT, 1990, p. 151).
Percebe-se em Montesquieu que a lei é aquilo que relaciona, ou seja, a lei
religiosa é o que relaciona o homem a Deus. Sem a lei divina não haveria forma de se
relacionar com Deus. E a lei humana é o que relaciona os homens aos seus semelhantes.

14
Em termos arendtinos, para Montesquieu seria perfeitamente possível abusar do poder
permanecendo, não obstante dentro dos limites das leis, e a necessidade de limitção
decorre da natureza do poder humano, e não do antagonismo entre lei e poder.
(ARENDT, 1990, p. 237).

A obra mais famosa de Montesquieu 5, na qual ele ocupa em seu primeiro


capítulo, das leis em suas relações com os diversos seres, enfatiza a sua convicção de
que as leis no seu sentido mais amplo são relações necessárias e que derivam da
natureza de toas as coisas. Assim sendo, todos so seres têm suas leis, homens, animais e
divindades possuem suas leis. «As leis, no seu significado mais lato, são relações
necessárias que derivam da natureza das coisas” (p.25).

Em síntese, para Montesquieu a vida política de um país não é determinada por


qualquer fatalidade, já que os homens são livres e «enquanto seres inteligentes violam
constantemente as leis que Deus estabeleceu, modificando também aqueles que eles
próprios criaram.» Nesse sentido, as relações que se estabelecem entre os diferentes
tipos de leis de uma sociedade, não são nem inexoráveis nem independentes da vontade
humana. Montesquieu busca incansavelmente como descobrir modelos de sociedade nas
quais possam servir de inspiração para os legisladores. Entretanto, os mesmos modelos
que, por terem um desenvolvimento temporal, podem ser analisados por meio da
indução histórica, e também da dedução que ilumine o carácter natural e a conveniência
dessas relações.

-----------------------------------------------------------------------------------------

5
MONTESQUIEU- DO ESPÍRITO DAS LEIS, 1748.

15
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto aqui desenvolvido discorreu sobre autoridade e legitimidade na


concepção de Hannah Arendt. Como se viu ao longo desse trabalho que teve como fio
condutor a busca de um novo absoluto, após a dissolução da trindade romana (religião,
tradição, autoridade). E o motivo pelo qual a autoridade política dentre os três
elementos, haveria de ser o último a desaparecer.

A partir de Arendt, buscamos avaliar as implicações da perda da sanção religiosa


da natureza do absoluto. Onde analisamos os seguintes pais fundadores – Tomaz
Jefferson, Robespierre e Montesquieu, e as formas pelas quias buscaram encontrar
legitimação da autoridade no terreno político mediante a questão do absoluto. A Igreja
Católica, após a separação que houve entre o Estado e a Igreja perdeu gradativamente a

16
sua aspiração política, entretanto, alguns dos pais fundadores da Revolução Americana
ainda persistiram na busca do absoluto.

Para Hannah Arendt ao encontrarmos em Tomaz Jefferson e Robespierre, uma


busca incessante de um novo absoluto torna-se evidente o paradoxo. Pois ao mesmo
tempo em que se esperava que os homens ‘iluminados’ do século XVIII, se
desvinculariam tanto na teoria quanto na prática, de vez, com toda e qualquer espécie de
sanção religiosa. Na verdade, o que ocorreu foi que a crise e a emergência das
revoluções os levaram a buscar um novo absoluto ao mesmo tempo em que haviam se
desvinculado das influências da Igreja na esfera secular separando a política da religião.

Finalmente, a solução encontrada por Montesquieu, segundo Arendt – foi o fato


de que para ele a Lei é tudo aquilo que relaciona, ou seja, a lei religiosa é o que
relaciona o homem a Deus. Pois, sem a lei divina não haveria forma de se relação com
Deus. E a lei humana é o que relaciona os homens aos seus semelhantes. As leis em seu
sentido mais amplo são relações necessárias que derivam da natureza das coisas e nesse
sentido, todos os seres têm suas leis; a divindade possui suas leis; o mundo material
possui suas leis; as inteligências superiores ao homem possuem suas leis; o homem
possui suas leis. Em termos arendtinos, para Montesquieu seria perfeitamente possível
abusar do poder permanecendo, não obstante dentro dos limites das leis, e a necessidade
de limitação decorre da natureza do poder humano, e não do antagonismo entre Lei e
Poder.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1951.

______. A Condição Humana. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

______. Da Revolução. 2. ed. Rio de Janeiro: Ática; Brasília Ed. da UnB, 1990.

______. A dignidade da Política. Relume-Dumará, 2002.

MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. São Paulo : Abril Cultural, 1748.

17
AUTORIDADE E LEGITIMIDADE NO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

Acadêmica: Lúcia Helena da Silva

lucinha.filosofia@yahoo.com

Orientador: Dr. José Luiz de Oliveira

Universidade Federal de São João Del Rei

Eixo Temático: Ética e Política

Resumo: A presente investigação trata da autoridade e legitimidade na concepção de Hannah


Arendt. O fio condutor do presente trabalho será demonstrar como após o desmoronamento da

18
trindade romana passa a autoridade política a ser o último dos três elementos, a saber, religião-
tradição- autoridade a desaparecer. A perda da sanção religiosa implicou na mudança de
concepção da natureza terrena do absoluto. Abordaremos a análise de Thomaz Jefferson, um dos
pais fundadores da nação americana, a sua intima ligação com a conceitual estrutura intelectual
da tradição europeia, onde foi a constituição da liberdade a meta dos revolucionários numa ação
conjunta, não obstante a meta do governo ser a republica . Na abordagem de Robespierre
perceberemos como a ditadura política revolucionária inspirada nas experiências da revolução.
Nesse contexto, avaliaremos o que houve de inovador, e também como e onde Robespierre
encontrou sua legitimação. Recorreremos a Montesquieu e sua leitura dos fundamentos da
estrutura política no ocidente, e como eram justificadas em geral, na sua percepção a
legitimidade e o poder do governo.

PALAVRAS CHAVE: Poder, Legitimidade, Política, Revolução, Liberdade .

1. A análise de Jefferson
2. A Abordagem de Robespierre
3. A solução de Montesquieu

19
DENTIKIT E DADOS PESSOAIS

e queOs homens exercem diretamente entre si a ação, diferentemente do labor e


do trabalho. Mas esseespaço pode ser destruído. Historicamente o totalitarismo
constitui o exemplo mais dramático de
destruição do espaço público. Todavia, isso poderia levar a crer que apenas em
governos dessa
espécie é que o espaço público correria perigo, e que as democracias modernas
constituiriam
governos que jamais chegariam a esse desfecho. Ledo engano. Qualquer forma de
governo pode
culminar na destruição do espaço público: basta que se elimine a pluralidade, a condição
da vida
política. Sem pluralidade não há política. Sem pluralidade não há poder, porque os
homens não se
revelarão uns aos outros por atos e palavras. O poder só se realiza efetivamente na união
de atos e

20
palavras, mas atos que não sejam usados para violar e destruir, nem palavras para velar
intenções.
Os atos têm de criar relações e novas realidades, e as palavras, revelar essas novas
realidades. Na
medida em que, nas democracias modernas, tem se acreditado que as “ações”
espontâneas não
levam a nada, e que as pessoas devem ser “politizadas”, “doutrinadas”, aprender a
militar em favor
de certas causas em detrimento de outras, determinando a pauta dos discursos e o que
deve ser feito,
há a completa derrisão do espaço público, porque, nesse estado de coisas, os homens
“politizados”,
“doutrinados”, “militantes” não agem mais em concerto, embora nominalmente
pareçam estar. E o
direito tem sido utilizado para garantir essa uniformidade, servindo antes para a
destruição do
espaço público do que para seu estabelecimento.

Montesquieu

21
Escritor e filósofo francês, célebre pela sua teoria da separação dos
poderes.

Nasceu no Palacete de la Brède, perto de Bordéus, em 18 de Janeiro de


1689 ;
morreu em Paris, em 10 de Fevereiro de 1755.

Filho de um oficial da guarda do rei de França, neto e sobrinho de um


Presidente do Parlamento de Bordéus, ficou órfão de mãe aos 11 anos de
idade. O seu ensino básico foi entregue aos Oratorianos do colégio de Juilly,
localidade situada a nordeste de Paris, que frequentou em companhia de dois
primos, e onde lhe foi ministrada uma educação clássica.

Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu

Montesquieu e o pensamento político.

O Espírito das Leis, o mais importante livro de Montesquieu publicado em 1748 quando
o autor tinha cinquenta e nove anos, é produto de um pensamento elaborado na
primeira metade do século XVIII, obra de um pensador, único na sua época, que
considerava os problemas políticos em si mesmos, sem ideias pré-concebidas sobre o
espírito e a natureza.

Para o pensamento ocidental, desde os sofistas gregos até aos filósofos de princípio do
século XVIII, a diversidade das leis demonstrava a instabilidade da justiça humana,
sendo que só no direito natural, comum a todas as sociedades, se podia encontrar a
unidade original do direito. Mas para Montesquieu o problema não se colocava, já que
para ele «a infinita diversidade de leis e costumes humanos não eram produto
unicamente das suas fantasias».

O método de Montesquieu consistiu em examinar as leis positivas nas suas relações


entre si, mostrando que, pela sua própria natureza, determinadas leis tanto
implicavam como excluíam outras. Havia, por isso, entre as leis positivas, relações
naturais de exclusão e de inclusão, dirigidas não pela arbitrariedade de um homem ou
de uma assembleia, mas pela necessidade das coisas.

É por isso que que a obra mais famosa de Montesquieu, ocupando-se unicamente das
leis positivas, excluindo qualquer investigação sobre as leis naturais, começa pela
célebre formulação - «As leis, no seu significado mais lato, são relações necessárias
que derivam da natureza das coisas. Há uma razão primitiva, e as leis são as relações
que se encontram entre os vários seres, e das relações destes seres entre si.» Estas
afirmações estavam de acordo com a ideia da existência de leis universais comuns a
toda a humanidade, defendidas pelos racionalistas, mas vão mais além já que em
Montesquieu existe um encadeamento entre elas, que faz com que uma determinada
forma de governo implique uma legislação específica; assim como a variedade
geográfica, a moral, o comércio, a religião acabam por modificar as leis.

Mas, para Montesquieu a vida política de um país não é determinada por uma qualquer

22
fatalidade, já que os homens são livres e «enquanto seres inteligentes violam
constantemente as leis que Deus estabeleceu, modificando também as que eles
próprios criaram.» Nessa base, as relações que se estabelecem entre os diferentes
tipos de leis de uma sociedade, não são nem inexoráveis nem independentes da
vontade humana; de facto Montesquieu nunca afirmou que um factor geográfico como
o clima determinasse a constituição das sociedades, mesmo que muitos dos seus
leitores o tenham concluído.

O objectivo de Montesquieu é descobrir modelos de sociedade que inspirem os


legisladores. Sociedades que são muitas vezes apresentadas como instrumentos
mecânicos - uma comparação típica do século XVIII - que foram criados e modificados
pelo engenho humano e de acordo com relações de necessidade que foram sendo
estabelecidas ao longo dos tempos. Modelos que, por terem um desenvolvimento
temporal, podem ser analisados por meio da indução histórica, e também da dedução
que ilumine o carácter natural e a conveniência dessas relações.

...

1. Montesquieu de acordo com Raymond Aron


A filosofia política de Montesquieu analisada por um dos mais
importantes pensadores franceses do século XX.

2. A França durante a primeira parte do Século XVIII


Cronologia histórica da França.

3. Charles de Secondat, barão de Montesquieu


Biografia.

4. O Espírito das Leis


Extracto da mais importantes obra política de Montesquieu.

Teoria Política

23
AUTORIDADE E LEGITIMIDADE NO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

Acadêmica: Lúcia Helena da Silva

lucinha.filosofia@yahoo.com

Orientador: Dr. José Luiz de Oliveira

Universidade Federal de São João Del Rei

Eixo Temático: Ética e Política

Resumo: A presente investigação trata da autoridade e legitimidade na concepção de Hannah


Arendt. O fio condutor do presente trabalho será demonstrar como após o desmoronamento da
trindade romana passa a autoridade política a ser o último dos três elementos, a saber, religião-
tradição- autoridade a desaparecer. A perda da sanção religiosa implicou na mudança de
concepção da natureza terrena do absoluto. Abordaremos a análise de Thomaz Jefferson, um dos
pais fundadores da nação americana, a sua intima ligação com a conceitual estrutura intelectual
da tradição europeia, onde foi a constituição da liberdade a meta dos revolucionários numa ação
conjunta, não obstante a meta do governo ser a republica . Na abordagem de Robespierre
perceberemos como a ditadura política revolucionária inspirada nas experiências da revolução.
Nesse contexto, avaliaremos o que houve de inovador, e também como e onde Robespierre
encontrou sua legitimação. Recorreremos a Montesquieu e sua leitura dos fundamentos da
estrutura política no ocidente, e como eram justificadas em geral, na sua percepção a
legitimidade e o poder do governo.

PALAVRAS CHAVE: Poder, Legitimidade, Política, Revolução, Liberdade .

4. A análise de Jefferson
5. A Abordagem de Robespierre
6. A solução de Montesquieu

24
3.2 Liberdade e Constituição

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 4
1 O CONCEITO ARENDTIANO DE LIBERDADE................................................ 6
1.1 A Liberdade Interior ........................................................................................................ 6
1.2 Entre Atos e Palavras ........................................................................................................ 11
1.3 Liberdade Política .......................................................................................................... 14

2 REVOLUÇÃO E LIBERDADE À LUZ DE HANNAH ARENDT .................... 17


2.1 A Busca da Liberdade com Causa das Revoluções ............................................................ 17
2.2 Questão Social: um obstáculo para a instauração da liberdade da Revolução Francesa .... 20
2.3 A Questão dos Conselhos no Pensamento Político de Hannah Arendt .............................. 22

3 CONSTITUIÇÃO DA LIBERDADE NA CONCEPÇÃO DE HANNAH


ARENDT ..................................................................................................................... 27
3.1 Liberdade nos Distritos segundo Jefferson ....................................................................... 27
3.2 Liberdade e Constituição ................................................................................................ 31

CONSIDERAÇÕES FINAIS . .................................................................................. 35

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 36

25
INTRODUÇÃO

O tema da liberdade tem sido objeto de estudo de muitos pensadores desde a


Antiguidade. Cada um deles imprime a sua perspectiva e nela deposita os seus
entendimentos de modo a conceituá-la de uma dada forma.
Para Arendt, não há como conceituar e entender a liberdade desconsiderando
uma questão com inúmeras impossibilidades lógicas. Assim, a autora, com o objetivo de
construir a sua definição de liberdade, “parte do princípio contraditório entre a nossa
consciência e nossos princípios morais” (AREDNT, 2000, p. 209).
A questão da liberdade na sua concepção foi a última das grandes questões da
metafísica tradicional

tais como: o ser, o nada, a alma, a natureza, o tempo, a eternidade etc.


– a tornar-se tema de investigação filosófica. E, mesmo quando a
liberdade surgiu no cenário filosófico, foi pela tradição cristã, imposta
primeiramente por Paulo com sua conversão ao cristianismo, e em
seguida por Agostinho (ARENDT, 2000, p. 191).

No entanto, o que percebemos, conforme Arendt (2000), é uma forte tendência


às suposições axiomáticas em que as leis são estabelecidas no âmbito das questões
práticas e de modo especial nas questões políticas (p. 190).
Arendt (2000) afirma que o único campo em que a liberdade foi conhecida, não
como um problema, mas como fato da vida cotidiana, é o âmbito da política, afirmando
ainda que “a razão de ser da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a
ação” (p. 191). O homem dotado com o dom da ação, pois, para ela, ação e política,
entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que
não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade. Dessa
maneira, nossa autora “coloca o homem como o autor dos ‘milagres’” (ibidem). Nesse
sentido, cabe ao homem, pelo fato de ter recebido o dom da ação, criar possibilidades

26
nas questões políticas, entre atos e palavras, no âmbito do espaço público, que
estabeleçam uma realidade de liberdade, que, por direito, lhe pertence.
O que se pretende discutir ao longo deste trabalho é a relação entre a política e a
liberdade, tal qual como se estabelece na atualidade, partindo, para tanto, dos olhares de
Arendt. Para que isso seja de fato possível, torna-se fundamental nos aprofundarmos no
conceito arendtiano de liberdade, buscando, ainda, explicitar como se dá a sua relação
com a política.
No primeiro capítulo deste trabalho, a proposta será fazer uma breve reflexão
acerca da questão da liberdade para Hannah Arendt. O ponto de partida será a questão
da liberdade interior e as implicações dessa análise para o campo da política na
concepção arendtiana. Em seguida, abordaremos o que foi para Arendt a liberdade
vivenciada de forma demonstrável entre atos e palavras, tendo a Grécia Antiga como
paradigma. No terceiro item do primeiro capítulo, abordaremos a liberdade política na
perspectiva arendtiana.
No segundo capítulo, demonstraremos como, nas revoluções, a liberdade tornou-
se presente e quais foram as formas utilizadas para se criar um hiato entre liberdade e
política. Nesse sentido, analisaremos de que maneira a questão social tornou-se um
obstáculo para a instauração da liberdade, de modo especial na Revolução Francesa.
Abordaremos a liberdade como causa das revoluções e analisaremos a questão dos
conselhos na concepção arendtiana.
No terceiro capítulo, analisaremos a questão dos distritos na percepção de
Thomas Jefferson e, posteriormente, iremos avaliar a relação entre Liberdade e
Constituição.

27
1 O CONCEITO ARENDTIANO DE LIBERDADE

1.1 A Liberdade Interior

Para compreender o que é liberdade, Arendt nos leva a entender, primeiramente,


o princípio da causalidade, pois, segundo ela, é ele que rege o nosso comportamento
cotidiano (ARENDT, 2000 p. 188). A causalidade, segundo Arendt, “constituiu uma
categoria de espírito para organizar os dados sensoriais, qualquer que possa ser sua
natureza, tornando assim possível a experiência” (p. 190).
Percebemos que essa mudança de orientação na filosofia tem sua importância. A
filosofia já não deve cuidar duma pretensão explicativa do mundo e das coisas. As várias
ciências é que explicam o mundo e seus aspectos acessíveis à nossa experiência. Com
este voltar-se para o conteúdo ou para o fenômeno existente na consciência, encontramos
finalmente um objeto que a capacita a transformar-se em ciência autêntica, como
pretendia seu fundador Edmund Husserl (1859-1938). Ora, esse conteúdo é antes
suscetível de descrição do que de medida. Compreendemos, portanto, que fazer tal
descrição é a função dessa nova filosofia (GALEFFI, 2000, p. 14).
A filosofia, depois de 1900, foi desafiada pelas ciências empíricas nos meios
acadêmicos. Os docentes de filosofia, nas faculdades, tentavam recuperar seu papel de
liderança no mundo do saber. Nesse contexto, Husserl quer consolidar a filosofia no
status de ciência fundamental. Husserl chegou a falar de uma situação precária da
filosofia acadêmica de sua época. Na revista Lógos (I, 1911), ele desenvolveu seu
programa no artigo “A Filosofia como ciência de rigor”. Como a fenomenologia não se
baseia em dados da experiência ou vivência de realidades, sua tarefa é a pesquisa das
possibilidades ideais da vivência. O meio para chegar a ela é a intuição. Por isso, Husserl
(1965) afirma:

Mas é precisamente próprio da filosofia, desde que remonte às suas


origens extremas, o seu trabalho científico situar-se em esferas de
intuição direta, e constitui o maior passo a dar pela nossa época,
reconhecer-se que a intuição filosófica no sentido autêntico, a
percepção fenomenológica do Ser, abre um campo imenso de trabalho
e leva a uma ciência que, sem todos os métodos indiretamente
simbolizantes e maternizantes, sem o aparelho das condições e provas,

28
não deixa de chegar a amplas intelecções das mais rigorosas e
decisivas para toda a filosofia ulterior (p. 73).

A diminuição da importância da causalidade no conhecimento reintroduz a


discussão sobre a liberdade. No entendimento de Hannah Arendt em questões práticas,
somos livres; nas teóricas, somos sujeitos à causalidade. No entanto, no que tange à
liberdade, em todas as questões práticas, e em especial nas políticas, temos a liberdade
humana como uma verdade evidente por si mesma. E ela nos adverte que “sobre essa
suposição axiomática é que as leis são estabelecidas nas comunidades humanas, as
decisões são tomadas e os juízos são feitos” (ARENDT, 2000, p. 189). Em sua obra
Entre o Passado e o Futuro, Arendt (1961) descreve que em todos os campos de
esforços teóricos e científicos, pelo contrário, procedemos de acordo com a verdade não
menos evidente do nihi ex nihilo, do nihil sine causa, isto é, “nossas próprias vidas são,
em última análise, sujeitas à causação” (p. 189) e de que há, porventura, um eu
primariamente livre em nós mesmos.
Considerando a liberdade um tema que perpassa toda a obra de Hannah Arendt,
ela é base e fundamento nas suas análises da condição política do homem e da sua crítica
à inversão dos valores na modernidade. Trata-se, portanto, de um tema de grande
relevância para compreendermos seu pensamento, assim como para entendermos as
inovações promovidas pela era moderna.
Observamos que o esforço de Arendt, ao tornar a liberdade ponto central de seu
pensamento, foi no sentido de retratar a condição libertária do homem que, no início da
era cristã e seguindo toda a modernidade, negou o caráter externo da liberdade,
transpondo-a para o espaço da interioridade, da consciência, onde ninguém tem acesso.
Segundo a autora, a invenção da liberdade tem seu lugar no tempo dos homens. Foi na
Antiguidade grega, “[...] quando os homens passaram a viver politicamente organizados,
que ela apareceu tornando-se exigência no cenário humano como valor apriorístico nas
relações entre eles” (SOUZA, 2008, p. 113).
A obra de Arendt é repleta de considerações sobre a Grécia Antiga, de modo
especial sobre Sócrates. Apesar de não ter deixado nada escrito, é a ele que ela recorre
em várias de suas obras, tecendo elogios ao filósofo no que se refere à forma com a qual
ele valorizava e participava na ágora e nos ginásios da esfera política. Sócrates é
considerado por Arendt um dos pensadores que talvez possa melhor oferecer soluções
para os problemas atuais. O nome de Sócrates aparece com certa frequência na obra de

29
Arend, tanto nos seus escritos da década de 1950 quanto nos escritos póstumos. Arendt
volta até Sócrates para investigar a relação que ele mantinha com a política e com o
pensamento. Ela tece elogios a Sócrates na medida em que ele valorizava a esfera
pública e participava dos encontros na ágora, bem como percebia os homens no plural e
vivia entre eles. A ideia de pluralidade aparece constantemente no Sócrates de Hannah
Arendt, sobretudo no que diz respeito à ideia do dois-em-um socrático. Por outro lado,
Arendt questiona a moralidade socrática e sua “eficácia” diante da política (ECCEL,
2011, p. 3).
O dois-em-um consiste em estar sozinho consigo mesmo e dialogar com seu eu
interior, como se, ao se desligar do mundo exterior, cada um mantivesse um diálogo
consigo mesmo, no qual um eu responde ao que o outro eu pergunta. Aí, consiste o que,
de acordo com ela, é de suma importância, pois até quando se trava um diálogo consigo
mesmo existe pluralidade, ou seja, o homem não está só. A autora afirma: “[...] As
experiências de liberdade interior são derivativas no sentido de que pressupõem sempre
uma retirada do mundo onde a liberdade foi negada para uma interioridade na qual
ninguém mais tem acesso” (ARENDT, 2000, p. 192).
Num outro momento da ênfase de Arendt ao filósofo Sócrates, ela concentra
uma grande parte de sua atenção em várias de suas obras: é a questão da pluralidade.
Sócrates, quando coloca o homem como centro de seus pensamentos, é considerado por
ela o pensador que realmente passa a contribuir para a solução de vários problemas
atuais da humanidade. O dois-em-um não submete o homem à condição de isolamento
do mundo, mesmo porque já é considerado plural o não pensar sozinho. Porém, é a
partir dele que o homem irá formular ideias, que serão associadas às outras. A questão a
ser notada é que o homem parece nunca estar só e as coisas aparentemente ocorrem de
maneira a não “facilitar” a solidão, mas, ao contrário, a favorecer o caráter sempre
plural dos homens. No entanto, no que se refere à política, ela discorda desse ponto do
pensamento de Sócrates, pois, para ele, a sua consciência era o mais importante,
levando-o a estar em paz consigo mesmo. E essa linha de pensamento torna-se perigosa
no pensamento político, pois existe a possibilidade de o político agir na esfera pública
seguindo a sua própria consciência num espaço singular, onde a pluralidade não ocorre,
abrindo espaço para ações arbitrárias e desonestas. “Ao colocar a consciência e sua alma
em primeiro lugar, aqui ele pensa mais a sua alma que o mundo” (ARENDT, 2000, p.
209). Nesse sentido, Arendt (2005) é bastante clara afirmando:

30
Viver junto com os outros começa por viver junto a si mesmo. Sendo
assim, é no contato com os outros que é possível para o pensamento
arendtiano [...] a respeito de Sócrates várias possibilidades de ajudar a
parir ideias que muito contribuirão para transformações no cotidiano
(p. 207).

A liberdade associada à política não é para Arendt um fenômeno da vontade,


pois não se trata de se fazer escolha entre uma coisa boa e uma má, e sim da ação
conjunta dos homens. Para a autora, quando cada homem, com sua singularidade, se une
a outros seres singulares em debates políticos, estará realmente livre, pois a liberdade é
vivenciada e demonstrada na ação. “E a ação, sendo livre não se encontra nem sob a
direção do intelecto, nem debaixo dos ditames da vontade. Embora necessite de ambos
para um objetivo qualquer, ela brota de princípios e estes não brotam no interior do eu
como o fazem os motivos” (ARENDT, 2000, p. 209).
A liberdade interior, na perspectiva arendtiana, nos permite observar, num
primeiro momento, a dificuldade levantada quanto a essa questão, dada a contradição
entre a nossa consciência e os nossos princípios morais que tem por tradição cristão-
agostiniana o livre-arbítrio. Ao passo que nos dizem que somos livres, nossa
experiência cotidiana nos coloca em conformidade com o principio da causalidade, na
qual, segundo Arendt (1961):

Nossas próprias vidas são em última análise, sujeitas à causação. A


parte que a força desempenha na natureza como causa do movimento
e o motivo como a causa da conduta na esfera mental ainda são
ocultos de observação, tanto de inspeção de nosso próximo como da
introspecção. E essa imprevisibilidade prática não é nenhum critério
da liberdade, significa que não estamos capacitados a chegar algum
dia a conhecer as causas que entram em jogo (p. 55).

Nas suas análises acerca das questões políticas, Arendt (2000) trata como crucial
o problema da liberdade, pois a denomina como o

obscuro bosque onde a filosofia se extraviou. O fato que objetivou


essa obscuridade está em que o fenômeno da liberdade não surge na
esfera do pensamento, num diálogo consigo mesmo. A tradição
filosófica distorceu, em vez de esclarecer, a própria ideia de liberdade
(p. 191).

Em meio a tantas formas de apresentar a liberdade, seja pela vontade ou


causalidade, é nos permitido recorrer a Kant, que salvou a liberdade desse dúplice
assalto, segundo Hannah Arendt, por meio da distinção entre uma razão teórica ou

31
“pura” e uma “razão prática”, cujo centro é à vontade. Percebemos que essa solução,
opondo o ditame da vontade ao entendimento da razão, é assaz e engenhosa e pode
mesmo bastar para o estabelecimento de uma lei moral, cuja coerência lógica não seja
inferior em nada à das leis naturais. Para Arendt (2000), ela pouco contribui para
eliminar a maior e mais perigosa dificuldade, que é o próprio pensamento em suas
formas teórica e pré-teórica:

Fazer com que a liberdade desapareça sem mencionar o fato de que


deve parecer realmente estranho ‘que a faculdade da vontade, cuja
atividade essencial consiste em impor e mandar, seja quem deva
abrigar a liberdade’ (p. 190).

Para Hannah Arendt (2000), o aparecimento do problema da liberdade em


Agostinho foi precedido da tentativa consciente de divorciar da política a noção de
liberdade, chegando a uma formulação tal que fosse possível ser escravo no mundo e
ainda assim ser livre. Isso se deve em parte ao conceito cristão de liberdade política que
“surgiu da desconfiança e hostilidade que os cristãos primitivos tinham contra a esfera
política enquanto tal, e de cujo encargo reclamava isenção para serem livres” (p. 191).
Entre todos os pensadores clássicos, é em Agostinho que a liberdade passa a se
tornar referência em Arendt. Qquando se trata de pensar a questão da liberdade, ela
recorre às experiências gregas e cristãs, e trava um diálogo com as duas formas de
visualizar a liberdade. Desse diálogo, decorre a percepção de Arendt (2013) de que,
apesar de a liberdade ter em Agostinho passado a ser um atributo das faculdades
mentais, ou seja, da vontade, ela declara:

Sem a liberdade mental de negar ou afirmar a existência, dizer sim ou


não – não apenas as afirmações ou para expressar concordância ou
discordância, mas para as coisas como se apresentam, além da
concordância e discordância, aos nossos órgãos de percepção e
conhecimento – nenhuma ação seria possível, e ação é exatamente de
que é feita a política (p. 15).

A liberdade é concebida como a última das questões da metafísica tradicional a


ser investigada no cenário filosófico. A liberdade foi introduzida pela tradição cristã
após a conversão de Paulo e, em seguida, Agostinho a equacionou como livre-arbítrio.
Essa foi a forma com a qual a liberdade interior foi colocada em evidência, atribuindo
ao pensamento a qualidade da vontade. A partir daí, a consciência e os princípios morais
ocuparam o espaço no âmbito da liberdade interior e na tradição do pensamento

32
ocidental. Torna-se compreensível, na perspectiva arendtiana, que o homem moderno,
no auge do momento em que tratava a questão da singularidade, coloca a liberdade
interior no centro da liberdade de pensamento (ARENDT, 2000, p. 193). No entanto,
Arendt (2000) nos diz: “Anterior a Agostinho, houve uma precedente tentativa
consciente de divorciar a noção de liberdade da política” (p. 194).
Essa foi a forma com a qual a liberdade interior foi colocada em evidência,
atribuindo ao pensamento a qualidade da vontade. A partir daí, a consciência e os
princípios morais ocuparam o espaço no âmbito da liberdade interior e na tradição do
pensamento ocidental. Parece seguro afirmarmos que o homem nada saberia da
liberdade interior se não tivesse experimentado antes a condição de estar livre como
uma realidade mundanamente tangível. Ele só tomou, inicialmente, consciência da
liberdade ou do seu contrário em relacionamento com os outros, e não no
relacionamento consigo mesmo.
Porém, ela assegura que não seria possível entender a liberdade interior sem que
antes historicamente tivesse sido a liberdade a forma de vida dos homens. O fenômeno
do livre-arbítrio nos forçaria a crer na inexistência da liberdade na Antiguidade, quando
o “quero” e “posso” se coincidiam. Cabe aqui observar a análise de Arendt (2000): “Se
a liberdade não fosse realmente mais um fenômeno do arbítrio, seríamos forçados a
concluir que os antigos não conheciam a liberdade” (p. 204).
Enfim, a concepção de liberdade interior, ou liberdade fundada na consciência,
passou a ser referência do sentir-se livre, sendo prolongada em toda a modernidade,
ainda que, em dados momentos, o conceito de liberdade fosse também pensado em
termos de liberdade política. No entanto, para Arendt, a liberdade se dá por meio da
ação. A externalidade do homem no mundo só se expressa na ação. A autora nos leva a
compreender, a partir da sua concepção de liberdade, que uma “liberdade” vivenciada
no interior do pensamento é uma ilusão quando se pensa num mundo concreto e
aparente. A liberdade passa a adquirir realidade, se traduzida e percebida em uma ação
conjunta entre os homens, por meio de atos e palavras.

1.2 Entre Atos e Palavras

“Existir humanamente é se revelar na ação e no discurso.”

33
(ARENDT, 1987, p. 189)

Observamos, nos escritos de Arendt, o quanto é próprio da condição humana a


capacidade em revelar-se entre atos e palavras. Para a autora, a pluralidade humana é a
condição básica da ação e do discurso entre seres singulares, mas percebe-se que nem
sempre há disposição do ser humano em revelar seu eu latente. A abordagem é realizada
pela autora acerca da liberdade política, não como liberdade da vontade, mas a liberdade
em que se fundamenta a antiguidade clássica.
Arendt (1987) salienta que a liberdade do agir e do falar baseia-se na
possibilidade que o homem tem em começar algo novo. As formas de dominação
tentaram exterminar a espontaneidade do homem, mas o mundo se renova todos os dias
por meio do nascimento. O curso do mundo pode ser previsto caso os recém-nascidos
sejam privados de sua espontaneidade. Em Arendt, é da natureza do início que se
comece algo novo. Observa-se, na visão da autora, algo que não pode ser previsto a
partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. “A imprevisibilidade é inerente a todo
recomeço” (p. 190).
Percebemos, em Hannah Arendt, que a pluralidade humana é a condição básica
da ação e do discurso, e essa tem duplo aspecto, ou seja, é igual e é diferente. Ela é igual
quando os homens têm iguais condições de compreender-se entre si, a sua história e a de
seus ancestrais, bem como de planejar o futuro e cuidar das necessidades das gerações
vindouras. Ela é diferente quando se percebe que, “se cada ser humano não fosse
diferente dos que já existiram ou irão existir, seriam dispensados o discurso e a ação
para se fazer entender” (LAFER, 1987, p. 192).
Para Arendt, ser diferente não equivale a ser outro. No homem, a alteridade
(circunstância característica ou condição que se desenvolve por relações de diferença de
contraste) que ele tem em comum com tudo, ele partilha, assim, com tudo que existe.
Essa distinção torna-se singularidade, pois somente o homem é capaz de comunicar a si
próprio. Dessa maneira, a pluralidade humana torna-se a paradoxal pluralidade de seres
singulares. Sobre isso, diz Lafer (1987):

Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam


ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim
apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas identidades físicas
são reveladas, sem qualquer atividade própria, na conformação
singular do corpo e no som singular da voz (p. 192).

34
Há uma relação estreita, segundo Arendt, entre a ação e o discurso, pois sem o
discurso a ação deixaria de ser ela mesma. A ação é humanamente revelada por meio de
palavras. O autor das palavras anuncia: “[...] o que fez, o que faz e o que pretende fazer.
Sendo assim, revela o agente juntamente com o ato realizado” (LAFER, 1987, p. 192).
No entanto, existe também entre os homens o receio de revelar-se. Então, os
indivíduos tornam-se solitários, pois, ao contato com os outros, torna-se evidente o que
se é como sujeito, e não é raro observar o desejo humano de ocultar quem é no silêncio
ou na passividade total. “Na convivência humana, vem à tona a qualidade reveladora do
discurso e da ação, e há de haver disposição humana para revelar sua individualidade”
(LAFER, 1987, p. 191).
Para Arendt, não há possibilidade da ação de existir no isolamento. Isto é, estar
isolado é estar privado da capacidade de agir. As relações e as histórias humanas nos
mostram que ações e discursos ocorrem entre homens e que seus atos e palavras se
originam do fato de os mesmos terem agido e falado diretamente uns com os outros. Há,
não obstante, várias teias de relações nas quais as histórias humanas se objetivam.
Entretanto, Lafer (1987) nos adverte: “Quase sempre a ação e o discurso se referem à
mediação, que varia de grupo para grupo, de sorte que a maior parte das palavras e atos,
além de revelar o agente que fala e age, refere-se a alguma realidade mundana e
objetiva” (p. 183). O mundo é este que se interpõe entre os homens e do qual procedem
seus interesses específicos, objetivos e mundanos. No entanto, esses interesses
constituem, na acepção mais literal da palavra, algo que interessa, que está entre as
pessoas e que, portanto, as relaciona e interliga. Referindo-se a Dante, Lafer (1987)
observa:

Pois em toda ação a intenção principal do agente, quer ele haja por
necessidade natural ou vontade própria, é revelar sua própria imagem.
Assim é que todo agente, na medida em que age, sente prazer em agir;
como tudo o que existe deseja sua própria existência, e como, na ação,
a existência do agente é, de certo modo, intensificada, resulta
necessariamente o prazer. Assim, ninguém age sem que (agindo)
manifeste o seu eu latente (p. 188).

Depreendemos que Arendt nos ajuda a compreender a necessidade humana


própria ou natural de se revelar. Nesse caso, há o prazer em agir. No entanto, nem
sempre há desejo humano em revelar-se, mas percebe-se que em vários segmentos ainda
existem homens que têm disposição para se unir e servir, seja em ONGs, movimentos

35
religiosos, políticos ou esportivos, com paixão e ideal pelo que fazem, pois é dessa
forma que, segundo a autora, a liberdade se manifesta. A imagem do ser humano é
revelada sempre quando, em palavras e ações, a sua própria existência se intensifica.
Nesse sentido, a ação se traduz na manifestação do seu eu latente. O resultado dessa
revelação de sua imagem é o principal elemento que lhe permite querer sempre estar
agindo, pois tudo isso resulta no prazer de agir.
Percebemos que a concepção de liberdade, para Hannah Arendt, se dá por entre
atos e palavras. Observamos, nos escritos da autora, o quanto é próprio da condição
humana a capacidade de expressar a si mesmo além daquilo que é orgânico. Essa
capacidade ocorre por meio do discurso e da ação. São as palavras que nos inserem no
mundo. Mas precisamente a linguagem, o verbo da ação, agir, indica uma tomada de
iniciativa. Por ela, notamos que algo novo está a caminho. O fato de agir significa que
do homem se espera a imprevisibilidade. A ação precisa do discurso, pois sem ele não
haveria o agente do discurso. No discurso e na ação, o homem se mostra exatamente
como é, pois “é no convívio humano – na pluralidade com os demais seres singulares é
possível a manifestação do seu eu latente” (LAFER, 1987, p. 191).
Em Arendt, a pluralidade pode existir e se fazer presente em qualquer grupo a
que se pertença. Todavia, torna-se necessário que haja o desejo de se revelar, pois é na
convivência humana que vem à tona a qualidade reveladora da ação e da palavra em sua
inerente imprevisibilidade. Daí, inferimos que a única coisa indispensável à
demonstração da liberdade na esfera pública é o convívio entre os seres singulares.

1.3 Liberdade Política

Ao propor o tema da questão da Liberdade Política, temos que recorrer à forma


arendtiana de perceber como ela ocorre no âmbito político e como a palavra liberdade
foi relacionada ao longo dos tempos pelos atores políticos, filósofos e cristãos. Segundo
Arendt, essa percepção tem implicações no modo como a liberdade foi tratada no
âmbito das questões políticas. Afirma a autora: “A Razão de Ser da Política é a
Liberdade” (ARENDT, 2000, p. 192). Para Hannah Arendt, considerar que a razão de
ser da política é a liberdade é também constatar que a complexidade da palavra
liberdade vem das várias influências na forma pela qual, ao longo da história, a
liberdade foi interpretada.

36
Na tradição grega antiga, a Liberdade era concebida como fato demonstrável.
Era a possibilidade de sair de casa e debater com outros em igual condição. Para Arendt,
o eu com os outros é quando o fato demonstrável e a política se coincidem. Trata-se de
uma situação que se diferencia do inter-relacionamento humano, tomando como
exemplo as relações tribais ou familiares, espaços nos quais as necessidades da vida
tomam o lugar da liberdade e acabam por relegar a mesma a segundo plano. A ação, a
liberdade e a política, na concepção da autora, são coisas entremeadas num único nó de
sentido. No entanto, o que se percebe é que, quando um desses elementos é afetado, os
demais passam a sofrer por sua restrição. Assim, a liberdade está condicionada pela
ação. Segundo Arendt (1987): “Os homens só são livres enquanto agem, pois agir e ser
livre são a mesma coisa” (p. 15-20). Arendt afirma que a polis grega foi outrora,
precisamente, a “forma de governo que proporcionou aos homens um espaço para
aparecimentos onde pudesse agir – uma espécie de anfiteatro onde a liberdade podia
aparecer” (p. 201).
Segundo a pensadora, quando os homens discutiam no espaço público, e ao
mesmo tempo cada um em sua singularidade (se dirigida à polis grega), então, juntos, a
pluralidade prevalecia. As questões políticas eram debatidas, a liberdade e a dignidade
eram exercidas no âmbito da política e, nesse momento, a ação era o domínio da
experiência. A ação, para Hannah Arendt, é livre quando ela demonstra ser capaz de
transcender os motivos e objetivos pelos quais os homens agem. Os homens na polis
grega agiam em comum e precisavam da presença de outros homens, dependiam de
outros para que a ação pudesse aparecer. Afirma Schio (2012): “Os homens são livres –
diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem
depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa” (p. 153).
Observamos que as palavras e as ações provocam mudanças na forma de agir e
pensar das pessoas. E, em determinados momentos, a forma humana de projeção tem,
nas ações e palavras, fortíssimos aliados para exercer influência na forma de pensar e de
agir de determinados grupos, sejam eles políticos, religiosos ou profissionais. Há muita
força no que é dito, e muito maior é o peso da palavra quando a linguagem vem de
pessoas que desempenham algum papel junto a um público e dizem que o
“representam” politicamente, como se houvesse de fato essa possibilidade de
representação, e, com falácia faz desse público, o alvo das suas considerações pessoais.
Porém, quando grupos de pessoas exercem e agem conjuntamente estabelecendo
relações, com debates acerca dos interesses da maioria com diferentes opiniões, aí, sim,

37
a liberdade se fará presente. Sendo assim, a liberdade política, em termos arendtianos,
começa a ser percebida de forma incompatível, pois para ser livre a ação precisa ser
também livre.
Os motivos que levam à ação não podem supor um fim intencional à mesma
como efeito previsível, ou seja, a ação deve vir sem pretensão de domínio e poder. O
conceito maquiaveliano de virtuosidade no âmbito das questões políticas é objeto de
discussão e alvo de investigação. “Virtuosidade – Arte da realização – Perfeição no
próprio desempenho da tarefa, e não no produto final”. Schio (2012) afirma:

O agir politicamente coloca o homem diante de oportunidades ante a


fortuna, e ao contrário do artista que coloca sua perfeição no ato da
realização. E seu processo criativo é para que o produto final seja o
que há de mais agradável ao público. É somente no final dele que o
virtuosismo passa a ser mostrado e apreciado pelo público (, p. 156).

O político, como homem de ação, tem algo em comum com o artista no que
tange ao mundo. No entanto, ao agir com virtuosidade, o político não coloca sua
realização enquanto age. Como arte, desempenha um papel diferente do que
percebemos com o artista, pois nele a sua pretensão não é a de se posicionar diante das
relações estabelecidas com os outros. Não há em determinados momentos perfeição
nem no desempenho e tampouco no produto final da ação, que minimiza o seu processo
criativo, rendendo-se às oportunidades que venham a lhe trazer benefícios. Esses
benefícios, geralmente, não exercem papel nenhum do ponto de vista do público que
coloca sua expectativa e esperança no seu desempenho (SCHIO, 2012, p. 156).
A verdade é que a mesma perfeição com a qual os artistas buscam no
desempenho da tarefa deveria ser a mesma almejada pelo político no que se refere ao
povo e às formas de se relacionar com ele. O artista desempenha sua arte dando o
melhor de si, porém sozinho até o resultado final poder ser apreciado pelo público. O
homem político, ao contrário, deve buscar, junto à população, estreita relação, que será,
para ele, o indicador das práticas necessárias para o exercício do seu papel e terá na
ação conjunta a melhor forma de exercer a liberdade no âmbito da política. Assim, os
homens precisam deixar a comodidade do lar e ter uma participação mais ativa na vida
política, para que a liberdade seja manifestada.
Apesar da percepção da autora acerca da incompatibilidade da liberdade com a
política, não nos é permitido perder o ponto de partida e sempre poderemos recorrer à
forma pela qual os gregos tratavam a questão da liberdade no âmbito da política. E

38
como bem sabemos, apesar de todas as influências negativas que a tradição cristã e o
poder soberano tentaram ao longo dos tempos exercer sobre a humanidade, cabe ao
homem, no recurso às palavras e ações, ser o protagonista de sua própria história.
2 .REVOLUÇÃO E LIBERDADE À LUZ DE HANNAH ARENDT

2.1 A Busca da Liberdade como Causa das Revoluções

Podemos buscar em Hannah Arendt a forma pela qual a questão da liberdade foi
o alvo das revoluções. A autora salienta: “[...] o que tem determinado a própria
existência da política é a causa da liberdade contra a tirania”(ARENDT, 1990, p. 9). Por
meio da história, percebemos, em muitos momentos, que o conceito de liberdade foi
esquecido.
Para a autora, o fenômeno revolucionário foi o que mais marcou a fisionomia do
século XX, diferentemente do século XIX, no qual nacionalismo-internacionalismo,
capitalismo-imperialismo, socialismo-comunismo, embora tendo sido invocados,
acabaram por perder o contato com as principais realidades do mundo. As revoluções
constituem na sua questão política o conceito de liberdade, sobrevivendo a todas as
justificações ideológicas e trazendo consigo a esperança de emancipação da
humanidade. Isso levou o homem ao longo da história a “assumir, entre as potências da
Terra, a posição justa e independente que lhe é conferida pelas leis da Natureza e pelo
Deus da Natureza” (ARENDT, 1990, p. 9).
As revoluções, em seu sentido próprio, não existiam antes da Idade Moderna e
passaram a permanecer presentes em todas as estatísticas políticas mais importantes. O
que é pior: “a ideia de liberdade no centro dos debates políticos toma a dimensão das
discussões da guerra e de um justificável emprego da violência.” A guerra, somente em
casos raros, encontra-se ligada, à noção de liberdade. O conceito de liberdade é, assim,
sepultado (ARENDT, 1990, p. 10).
As justificações das guerras e revoluções, mesmo num plano teórico, são
bastante antigas na polis grega, onde a base era a persuasão, e não a violência. No
entanto, fora das muralhas da polis, segundo Tucídides: “Os fortes faziam o que podiam
enquanto os fracos sofriam o que fosse necessário” (ARENDT, 1990, p. 10).
De acordo com Arendt, entre os pré-requisitos óbvios, estaria sempre a
convicção de que as relações políticas, em seu curso normal, não caem no domínio da
violência. A cidade, no plano teórico Estado, definia-se como sendo uma maneira de

39
viver baseada exclusivamente na persuasão, e não na violência. Dessa maneira, as
justificações da guerra surgem no cenário, primeiramente, na Antiguidade romana,
juntamente com a primeira noção de que existem guerras justas e injustas; todavia, não
diziam respeito à liberdade. As realidades de política do poder necessitavam de
conquista e expansão em defesa do capital investido e da manutenção do poder em face
do aparecimento de novas potências ameaçadoras, ou em apoio a um determinado
equilíbrio do poder, tidas como necessidades, isto é, como motivos legítimos para
fundamentar uma decisão pelas armas (ARENDT, 1990, p. 11).
A noção de que agressão é crime e de que as guerras só podem ser justificadas se
visarem a repelir ou prevenir agressões adquiriu relevância prática ou teórica após a
Primeira Guerra Mundial haver demonstrado o horripilante potencial destrutivo da
guerra nas condições da tecnologia moderna. Porém, o que percebemos é a ausência do
argumento liberdade das justificações tradicionais da guerra como o último refúgio da
política internacional. Numa segunda justificação da guerra, o que percebemos, segundo
autora, é:

Que os governos passam a ter os dias contados, pois, desde a Primeira


Guerra Mundial, não havia nenhum Estado ou forma de governo que
fosse suficientemente forte para sobreviver a uma derrota na guerra:
todos os governos têm seus dias contados (ARENDT, 1990, p. 11).

A terceira justificação da guerra nos mostra uma mudança radical na natureza,


com a incapacidade das forças armadas em sua função na defesa da população civil. A
partir da Primeira Guerra Mundial, a intimidação se faz presente mais para evitar do que
para ganhar a guerra (ARENDT, 1990, p. 13). Aqui, podemos introduzir uma noção
importante em Arendt: o inter-relacionamento entre guerra e revolução, que, para ela, é
um fenômeno antigo, assim como as revoluções, as quais eram precedidas e
acompanhadas de uma guerra de libertação, como foi a Revolução Americana, ou
levavam as guerras de defesa e agressão, como foi a Revolução Francesa. Admitir que o
fim da guerra fosse a revolução tornou-se natural, bem como assumir que a justificativa
é a causa revolucionária da liberdade. Assim, foi se definindo a fisionomia do século
XX, caracterizada por guerras e revoluções. A política de força tornou-se oficio obsoleto
e inútil para quem nela deposita fé, tudo isso apesar do estreito relacionamento entre
guerra e revolução. “Vinte anos depois, tornou-se quase natural que o fim da guerra

40
fosse revolução, e que a única causa que pode justificá-la é a causa revolucionária da
liberdade” (ARENDT, 1990, p. 14).
No entanto, observamos Arendt voltando seu olhar para o regime totalitário,
pois, para ela, os dois pilares que o sustentavam eram a ideologia e o terror, e eles se
articulavam de maneira complementar, em que os supostos inimigos do regime eram
massacrados.

É em virtude desse silêncio que a violência é um fenômeno marginal


no campo político; pois o homem, na medida em que é um ser
político, está dotado do poder da fala, por causa dessa ausência da
fala, a teoria política quase nada tem a dizer sobre o fenômeno da
violência (ARENDT, 1990, p. 15).

As atrocidades cometidas pelos nazistas nos campos de extermínio acabaram


conduzindo Arendt (1951) aos problemas que, a partir daí, tomariam um lugar central
no seu pensamento quando percebemos que a violência se torna o centro da política. E
sua dor é ainda maior quando se vê que o regime totalitário jogou por terra todas as
antigas teorias políticas numa barbárie sem precedentes, mostrando uma face trágica da
política e uma progressiva destruição da esfera pública. Nesse contexto, a noção de
pluralidade, as ações e as palavras foram banidas do espaço público. Além disso, o
totalitarismo deixa o homem desprovido da sua capacidade de pensar, a partir do qual o
mal passou a ter uma perspectiva ético-política (p. 527).
A busca da liberdade como causa das revoluções fica evidenciado em Arendt
quando se observa que o homem livre ao agir e falar, possibilita sempre um começar
algo novo, em que não há lugar para nenhuma forma de dominação que tende a
exterminar sua espontaneidade. No entanto, Hannah Arendt destacou-se por ser sensível
à crise de valores, à dissolução para os espaços públicos, à domesticação das massas
pelas artimanhas do capital e pelas ilusões consumistas, à destruição da cultura política
e do culto aos valores públicos e comuns, à perseguição antissemita e à castração da
liberdade (ARENDT, 1951, p. 372).
O fenômeno revolucionário francês teve ligação com a questão social e com sua
natureza desumanizadora, havendo, assim, uma imposição da questão social de maneira
avassaladora e imediata.

O rumo da Revolução Francesa foi desviado desse curso original,


quase desde o inicio pela urgência do sofrimento; isso foi ocasionado

41
elas exigências da libertação, não da tirania, mas da necessidade, e
impulsionado pelas ilimitadas proporções da miséria do povo e pela
piedade que essa miséria inspirava. Por essa razão, os revolucionários
se preocuparam com a questão social, na qual os homens desprovidos
dos elementos básicos de sobrevivência têm suas condições biológicas
afetadas (ARENDT, 1990, p. 73).

Enfim, o que mais chamou a atenção de Hannah Arendt na liberdade como causa
das revoluções foi o ocorrido na Revolução Norte-americana, na qual grupos
espontâneos surgiram de suas Treze Colônias em busca da independência e da
instauração da liberdade política, quando não houve tensão entre necessidade política e
necessidade biológica.

2.2 Questão Social: um obstáculo para a instauração da liberdade da Revolução


Francesa

Para Hannah Arendt, o começo do século XX foi fortemente marcado pela


categoria do pensamento revolucionário. Entretanto, a noção de necessidade histórica
assumida pela Revolução Francesa aparece associada à questão social de forma
avassaladora e imediata.
É no âmbito da esfera social que Arendt defende e fundamenta toda a sua crítica
à forma como se desenvolveu a política moderna. No momento em que acontece a
ascensão da esfera social, percebemos o declínio do espaço público. No século XVIII, a
existência da pobreza “colocou os homens sob o ditame da absoluta necessidade. Foi
sob o império dessa necessidade que a multidão se precipitou para ajudar a Revolução
Francesa, inspirando-a e levando-a à ruína, pois era a multidão dos pobres” (ARENDT,
1990, p. 59).
O conceito de humanidade assume dimensões ontológica e política. Ontológica,
no sentido de que o pertencimento à humanidade garante ao indivíduo a possibilidade
de carregar consigo o direito a ter direito. Política, na perspectiva de que o direito a ter
direitos exigirá uma tutela internacional homologada na perspectiva da humanidade
(LAFER, 2003, p. 114).
A proposta da filosofia política em Arendt para a reconstrução dos direitos
humanos “apoia-se no reconhecimento de direito a ter direitos” (BRITO, 2013, p. 3).
Ela vai buscar na moral universalista e cosmopolita kantiana o fundamento para se

42
construir um espaço público internacional, em que a política e o direito se efetivem
além das fronteiras dos Estados nacionais.
O itinerário histórico dos direitos humanos encontrou muitos obstáculos desde
os seus primeiros anos, logo após as duas importantes revoluções burguesas. A
contribuição de Arendt para sua análise foi decisiva “na medida em que elaborou um
caminho teórico que permitiu compreender seu verdadeiro significado para a filosofia e
para a política” (BRITO, 2013, p. 4).
A França do século XVIII atravessava graves dificuldades econômicas que
repercutiam mais acentuadamente sobre o Terceiro Estado da sociedade. O aumento dos
impostos como solução para enfrentar a crise encontrada pelos ministros de Luís XVI
provocou uma inovação, pois, foi incluída, no rateio os nobres e o clero, a classe
dominante, até então isenta de tributos, desagradando-a. O Terceiro Estado era formado
pelos trabalhadores urbanos, pelos camponeses e pela pequena burguesia comercial. Os
impostos eram pagos somente por esse segmento social com o objetivo de manter os
luxos da nobreza. A vida dos trabalhadores e camponeses era de extrema miséria;
portanto, estes desejavam melhorias na qualidade de vida e de trabalho. A burguesia,
mesmo tendo uma condição social de maior destaque, desejava uma participação
política com mais liberdade econômica em seu trabalho. A situação política ficou tensa,
e o rei, pressionado, convocou uma Assembleia Nacional Constituinte com a
participação dos Estados Gerais. O modelo de conselho consistia em representação
pelos três Estados que compunham a sociedade, e cada um tinha direito a um voto, o
que, para o Terceiro Estado, já estava perdido, pois o placar seria de dois a um para
nobres e clero, que estavam combinados para a votação (HOBSBAWN, 1996, p. 18).
Foi, então, que, cansado de não ter voz e nem vez, o Terceiro Estado revoltou-se
e se autoproclamou como Assembleia Nacional Constituinte elaborando uma nova
Constituição para a França. A Assembleia Nacional Constituinte aprovou a legislação
pela qual eram abolidos os sistemas feudal e senhorial e suprimido o dízimo. Outras leis
proibiram a venda de cargos públicos e a isenção tributária das camadas privilegiadas
(HOBSBAWN, 1996, p. 14-15).
A população, aos poucos, se envolveu num mar de protestos. As pessoas saíram
às ruas em busca de comida e armas. O caos começou a se sobrepor em Paris. Diante
disso, a permanência da realeza no poder passou a ser inviável e insustentável. A
população já não mais concordava com aquela situação. “Não restam dúvidas de que a

43
desigualdade social era um dos principais motivos da revolta popular” (HOBSBAWN,
1996, p. 19).
Perante o caos sobreposto em Paris, Arendt nos diz que a questão social passa a
ser compreendida como a busca pela libertação das necessidades biológicas. Até mesmo
os revolucionários franceses passaram a preocupar-se com a questão social, pois os
homens, quando desprovidos dos elementos básicos para a sobrevivência, têm suas
condições biológicas afetadas (ARENDT, 1990, p. 73).
O poder político tem como fonte original, e mais legítima, o desejo do homem
de se emancipar da necessidade da vida. “Foi somente o surgimento da tecnologia, e não
o surgimento das ideias políticas modernas em si, que veio a refutar a velha e terrível
verdade de que apenas a violência e o domínio sobre os outros podiam trazer liberdade a
alguns homens” (ARENDT, 1990, p. 90). O resultado foi que a necessidade invadiu a
esfera política, a única esfera em que os homens podem ser verdadeiramente livres.
Hoje, o debate político não ocupa espaço no cotidiano do homem e é inexistente
a tão sonhada liberdade no âmbito da política. Arendt acreditara na possibilidade de sua
concretização. Ele não se efetivou. O que há é uma biopolítica para manter o corpo e
uma corrida maluca em busca de um exagerado consumismo. Porém, é no espaço
público que as pessoas seriam, na concepção arendtiana, livres politicamente. Isso nos
leva a crer que não somos livres, pois a liberdade política aos moldes dessa reflexão não
é percebida nos dias atuais.

2.3 A Questão dos Conselhos no Pensamento Político de Hannah Arendt

O fim da revolução, ao contrário do que se esperava, segundo Hannah Arendt,


quando o exemplo da Grécia Antiga e o legado que a Revolução Norte-americana nos
deixou, trouxe uma política participativa onde a liberdade na política pode ser exercida
por homens numa ação conjunta. Porém, o que podemos observar é, por um lado, uma
força revolucionária reivindicando o direito de fazer com que a liberdade fosse
vivenciada na esfera pública e, por outro, a revolução que passa ou a se desaguar no
desastre do terror, ou chega ao fim com o estabelecimento de uma república.
Os homens na Revolução Americana decidiram e declararam a Independência
dos Estados Unidos. Nesse momento histórico, a liberdade aparece de forma
demonstrável no espaço público. León (2014), em sua obra Autoridad y Poder, afirma:

44
É inerente à mesma sociedade de seres humanos recorrerem ao saber e
à experiência de outros, em quem deposita sua confiança porque lhe
atribui os conhecimentos acertados. Aqui tem sua raiz em um
autêntico conceito de autoridade (p. 137).

A Revolução Norte-americana deveria ser a bússola, na qual a sociedade deveria


buscar meios de se orientar acerca da possibilidade de manter vivo o espírito dos
revolucionários. No entanto, a Revolução Francesa, com seu desastroso percurso,
devido ao grande número de miseráveis por necessidades biológicas, vem ao
desencontro de tudo o que foi edificado na América.
A busca da felicidade pública passou, a partir da Revolução Francesa, a ser o que
se achava a única proposta exercida pelos conselhos. Houve, nesse momento da história,
uma tensão entre conselhos e partidos, pois os objetivos diferiam. A pretensão que se
tinha de que os conselhos permaneceriam com os mesmos ideais revolucionários passou
a ser utópica, pois eles não compreendiam que na república os programas partidários
haveriam de afastá-los do seu maior propósito, que sempre foi a participação na esfera
pública. “A ação passou a ser interpretada em termos de libertação, e da violência que
precederam a Declaração de Independência dos Estados Unidos” (ARENDT, 1990, p.
101).
Thomas Jefferson percebeu, ainda que tardiamente, o perigo de a força
revolucionária ser extinta na esfera pública. Ele viu como perigo mortal para a república
o fato de o povo ter espaço no privado, pois o governo da república passou a não ter
espaço para quem num outro momento o havia edificado apesar das medidas exercidas
por ele, tentando assegurar às gerações vindouras o direito de escolher seu próprio
representante. Posteriormente, preocupando-se em elaborar a Constituição e segundo
Arendt, ele percebeu a falha aparentemente inevitável na estrutura da república de
tornar a “Constituição perfeita e imutável, assim como, o risco da dissolução do espaço
público para as questões políticas” (ARENDT, 1990, p. 187).
Os conselhos, no curso das revoluções, acabam perdendo de fato seu espaço. A
autora cita, em sua obra Da Revolução (1990), Benjamim Rush sobre a perigosa e nova
doutrina de que “todo o poder emana do povo, ele o detém apenas nos dias de eleições.
Depois disso ele se torna propriedade dos governantes” (p. 186). A representação na
política moderna, de forma sucinta, vem afirmando essa citação, pois o modelo
representativo como alternativa de governo após o estabelecimento da república,
quando foram abolidos governantes e governados, fez com que ocorresse o

45
desaparecimento do revolucionário na esfera pública. O Grande Conselho Municipal da
Comuna de Paris foi esse sistema de conselho comunal, e não as assembleias de
eleitores que se disseminaram por toda a França sob a forma de sociedades
revolucionárias. Arendt (1990) afirma: “Apenas os representantes do povo, e não o
próprio povo teve uma oportunidade de se engajar nas atividades de: ‘expressão,
discussão e decisão’, as quais, num sentido positivo, são as atividades da liberdade” (p.
188).
Os poucos direitos que a política, de modo especial no Brasil, oferece ao
cidadão, na maioria das vezes, este não sabe usufruir desse direito. Foi criado um portal
de transparência onde o cidadão possui o direito de acompanhar a vida política de seus
representantes. Porém, dificilmente nós o acessamos, e quando o acessamos não
cobramos. Acabamos por não debater política em espaço algum, com a convicção de
que nada vai mudar. Porém, os manifestos que aconteceram em final do outono de 2013
nos indicam que é o momento de mudar a concepção de que rumo pode ser dado à vida
política do País. Trata-se de uma crise que pode provocar novidades, como nos diz
Arendt (1951): “Permanece o fato de que a crise do nosso tempo e a sua principal
experiência deram origem a uma forma inteiramente nova de governo que, como
potencialidade e como risco sempre presente, tende infelizmente a ficar conosco de
agora em diante [...]” (p. 445).
Nos dias atuais, existem vários obstáculos para que a instauração da liberdade
no âmbito da política seja, de fato, instaurada. Por isso, o mundo moderno não nos
permite pensar em distribuir nosso tempo para exercer a cidadania no espaço público,
pois a exigência da modernidade vem de desencontro com o que foi exercido na Grécia
antiga, bem como na Revolução Norte-americana, quando os homens, entre atos e
palavras, exerciam a liberdade política em ação conjunta. Hoje, além das necessidades
vitais que nos impedem de instaurar a liberdade no espaço público, há também o nosso
descaso para com as questões fundamentais da vida do cidadão: saúde, educação e
direito-a-ter-direito.
O que a Revolução Americana efetivamente fez foi trazer a nova experiência e
a nova concepção de poder para o domínio público. Isso contribuiu para a inércia que
não nos deixa agir para que a liberdade seja instaurada no âmbito da política. O
momento é agora – mudança de atitude pode contribuir para que as implicações nas
questões sociais sejam abolidas. Com participação efetiva, podemos contribuir para uma
nova forma de se fazer política. É imprescindível que as questões sociais jamais sejam

46
obstáculos para que a instauração da liberdade ocorra no âmbito da política, de forma
demonstrável, dando, assim, novos rumos à vida do cidadão na sociedade (ARENDT,
1990, p. 133).
Após a Revolução Francesa, surgiu na política uma nova figura: o revolucionário
profissional. Ele se apresenta no exercício do poder no conselho, com forma estruturada
e científica, em total divergência na maneira de revolucionar que existia até então. Ele,
de forma totalmente diferente do revolucionário que despontava nos conselhos de forma
espontânea, quer debater, unir, com disponibilidade e coragem onde não havia líderes,
mas sim um grande desejo de liberdade (ARENDT, 1990, p. 206).
Os revolucionários, depois que a revolução findava, julgavam assegurada a
permanência do espírito revolucionário. Eles eram realmente revolucionários. Porém,
por acreditarem que o espírito revolucionário permaneceria, nada fizeram para preservá-
lo. A fundação de um novo corpo político e todo o esforço para que as constituições
fossem mantidas como algo “sagrado” os deixaram, após o término da revolução,
inapercebidamente longe de todo o processo. Robespierre denominou “pilares da
democracia” as instituições, pois “um grande número de homens haveriam de substituí-
los” num momento. Não obstante, sabia que o povo, que se organizava fora da
Assembleia Nacional em suas próprias sociedades políticas, somente informaria a seus
representantes que “a república deveria assegurar aos indivíduos os meios de
subsistência, sendo que, a tarefa dos legisladores era banir com a miséria da
humanidade” (ARENDT, 1990, p. 194).
A autora, em sua obra Da Revolução (1990), menciona a espontaneidade como
surgiam os conselhos. Havia grupos revolucionários profissionais que, no século XX, se
empenhavam de forma estruturada buscando se preparar e executar com precisão
científica muito bem planejada. Os conselhos eram o espaço da liberdade. “Um povo
que é representado não é livre, pois a vontade não pode ser representada” (ARENDT,
1990, p. 193).
O poder que o povo acredita ter nas mãos no dia da eleição não é assegurado
após as eleições. Esse poder passa a ser propriedade dos governantes. Por meio da
representação, o interesse público passa a ser decidido pelo interesse pessoal, que reside
no voto. Em Arendt, os conselhos eram espaços de liberdade. Por sua vez, esta se torna
a força dos conselhos, possuindo uma representação maior nas decisões políticas, ou
seja, é uma forma de combater os interesses que não beneficiam o povo.
Apesar da sua importância histórica, os conselhos ainda encontram resistência da
população, que, em sua grande maioria, permanece distante dessa forma de exercer

47
política. Na concepção de Arendt, a melhor forma de a liberdade ser demonstrada na
esfera pública é pela participação do povo nas decisões políticas ao identificar os meios
que levam o cidadão comum a buscar, ou não, o fortalecimento dos conselhos e a levá-
los a encontrar a melhor maneira perante todos os desafios e não deixar que essa forma
revolucionária espontânea seja banida. O fortalecimento dos conselhos se apresentará
como forma de lutas antigas para que a vontade do povo continue sendo ativa e
constante, como história nas lutas sociais. A atuação do povo nos conselhos é decisiva
para que, pela determinação e engajamento do cidadão na luta, haja a eficaz e
verdadeira contribuição, a fim de que se faça valer a liberdade no espaço público em
uma organização espontânea nos conselhos.
Enfim, o que ocorreu foi a apatia dos homens diante da esfera pública, pois as
sociedades populares eram totalmente incompatíveis com o governo representativo. E
dessa tensão entre os partidos e conselhos, houve a dissolução da liberdade na esfera
pública. No entanto, devido ao fato de a ação humana estar, segundo Arendt, sempre
pronta para um novo recomeço, ainda há possibilidade da participação popular no
espaço público na sociedade moderna.

3. CONSTITUIÇÃO DA LIBERDADE DE HANNAH ARENDT

3.1 Liberdade nos Distritos segundo Jefferson

Haveria para Jefferson, segundo Arendt (1968, p. 186), a possibilidade de as


Constituições serem imutáveis? Como e sob que ótica a ação foi avaliada por ele? Qual

48
foi a sua reflexão acerca do sistema distrital e que papel desempenhou diante dos
conselhos e quanto à substituição da ação popular direta pela representação? Para
melhor entender as reflexões que faremos sobre o que foi a liberdade nos Distritos para
Jefferson, analisaremos neste primeiro momento quem foi Thomas Jefferson.
Thomas Jefferson – autor da Declaração de Independência e do Estatuto da
Virgínia para a Liberdade Religiosa, o terceiro presidente dos Estados Unidos e
fundador da Universidade de Virgínia – expressou as aspirações de uma nova América
como nenhum outro indivíduo de sua época. Como funcionário público, historiador,
filósofo e proprietário de fazenda, ele serviu seu país durante mais de cinco décadas
(MALONE, 1993).
Tendo frequentado o College of William and Mary, Jefferson exerceu a
advocacia e atuou no governo local como um magistrado, conselheiro tenente e membro
da Câmara dos Burgueses em sua vida profissional. Como membro do Congresso
Continental, ele foi escolhido em 1776 para redigir a Declaração de Independência, que
tem sido considerado desde então como uma carta de liberdades americanas e
universais. O documento proclama que todos os homens são iguais em direitos,
independentemente de nascimento, riqueza ou status, e que o governo é seu servo, não o
mestre, do povo.
Jefferson deixou o Congresso em 1776. Ele voltou para a Virgínia e serviu na
legislatura. Eleito governador para o período de 1779 a 1781, ele passou por uma
investigação sobre a sua conduta durante seu último ano de mandato, que, embora
finalmente totalmente repudiada, o deixou com um pricklishness longo da vida em face
de crítica (MALONE, 1993).
Durante o breve intervalo em sua vida após seu governo, Jefferson escreveu
Notas sobre o Estado da Virgínia. Em 1784, ele entrou para o serviço público mais uma
vez, na França, primeiro como comissário de comércio e depois como sucessor de
Benjamin Franklin como ministro. Durante esse período, ele estudou avidamente a
cultura europeia (MALONE, 1993).
Em 1790, Jefferson aceitou o cargo de secretário de Estado sob a liderança do
seu amigo George Washington. Seu mandato foi marcado pela oposição às políticas pró-
britânicas de Alexander Hamilton. Em 1796, como candidato presidencial dos
republicanos, ele se tornou vice-presidente depois de perder para John Adams por três
votos eleitorais.
Quatro anos depois, Jefferson derrotou Adams e tornou-se presidente. Foi a
primeira transferência pacífica de autoridade de um partido para outro na história da
jovem nação. Talvez, os feitos mais notáveis de seu primeiro mandato foram a compra

49
do território da Louisiana em 1803 e seu apoio à expedição de Lewis e Clark. Seu
segundo mandato foi um momento quando ele encontrou mais dificuldades em ambas as
frentes, nacional e estrangeira. É mais lembrado por seus esforços para manter a
neutralidade no meio do conflito entre a Grã-Bretanha e a França, uma vez que seus
esforços não evitaram a guerra com a Grã-Bretanha em 1812.
Jefferson foi sucedido como presidente, em 1809, por seu amigo James Madison,
e, durante os 17 anos de sua vida, manteve-se em Monticello. Durante esse período,
vendeu sua coleção de livros para formar o núcleo da Biblioteca do Congresso.
Jefferson embarcou em seu último grande serviço público com a idade de 76 anos, para
fundar a Universidade de Virgínia. Ele liderou a campanha legislativa de seu
regulamento, assegurou a sua localização, projetou seus prédios e serviu como o
primeiro reitor. Thomas Jefferson morreu em 4 de julho de 1826 (MALONE, 1993).
Os britânicos colonizaram a região da costa atlântica dos Estados Unidos, onde
foi fundado um total de Treze Colônias. Estas, inicialmente muito diferentes e afastadas
política e culturalmente entre si, uniram-se e declararam sua independência. Essa
independência foi reconhecida pelo Reino Unido após o fim da Revolução Americana
de 1776, em 1783, sob os termos do Tratado de Paris. As Treze Colônias tomaram esse
passo, pois os britânicos estavam se aproveitando da America do Norte com impostos
para pagar os prejuízos das guerras feitas pelos ingleses. E, então, as Treze Colônias
decidiram pela independência e iniciaram uma guerra contra a metrópole com o apoio
francês e espanhol. Como resultado, surgiram os Estados Unidos, que foram o primeiro
a adotar a república presidencialista.
O que passou a preocupar Jefferson foi que nessa república que fora estabelecida
pela força dos revolucionários e de acordo com os homens da revolução era “[...] a
única forma de governo que está eternamente em guerra, franca ou dissimulada, com os
direitos da humanidade”. No entanto, na forma que essa república assumiu, segundo
Arendt, não havia nesse sistema de governo, nenhum espaço reservado para o exercício
daquelas qualidades com as quais ela fora edificada. Seria esse o preço a ser pago pelos
revolucionários pela sua fundação.
Para Arendt, Jefferson percebeu com maior clareza e demonstrou como
ninguém, e de forma muito apaixonada, a inevitável falha no cenário americano na
estrutura da república. Como poderia tornar a Constituição imutável, tornando-a sagrada
a ponto de não poder ser tocada? Assim, ele concluiu: “Nada é imutável, exceto os
inalienáveis e inerentes direitos do homem” (ARENDT, 1990, p. 186). Ele incluía
dentre esses direitos o de revolução e rebelião.

50
O espírito revolucionário e a ação dos homens da revolução, antes do advento da
Revolução Francesa, foram fortemente defendidos por Jefferson. Entretanto, o que
passou a nortear os debates sobre o problema da ação no espírito revolucionário foi
obscurecido. Daí, deferir que tudo não passou de falácia pela autora. Porém, a
Revolução Francesa foi catastrófica e, a partir de então, a ação passou a ser vista sob
uma ótica de destruição, o que acabou por fazê-lo mudar de posição, dados os novos
ensinamentos coletados, onde o espaço da liberdade foi exterminado (ARENDT, 1990).
Ter a fundação da república como o objetivo alcançado, deixando a força
revolucionária, portanto a partir de então desnecessária, seria sentenciar seu próprio
fracasso, o que para Jefferson significava uma falha aparentemente inevitável na
estrutura da república do cenário político americano. Tornar a constituição imutável era
a “mais ridícula e insolente de todas as tiranias” (p. 187).
Jefferson propôs a Declaração da Independência e passou a se dedicar com a
elaboração da Constituição e o estabelecimento de um governo inteiramente novo.
Nessa proposta, surgiu uma nova forma e diferentes instrumentos para a Constituição,
dentre eles: a revisão em períodos preestabelecidos da Constituição, que compreenderia
as sucessivas gerações, admitindo que cada geração tenha “o direito de escolher para si
mesma a forma de governo” que julgar, mas apropriada a promover a sua própria
felicidade. No entanto, o que percebemos é uma forma de fazer com que as gerações
vindouras passem a escolher o seu próprio representante. Assim, a ação passa a ser
erroneamente confundida com libertação (ARENDT, 1990, p. 195).
Ele desejava que todo o processo ocorrido durante o curso da Revolução fosse
garantido. O resultado foi a adoção da representação passando a ser, a partir de então,
um substituto para a ação popular direta. O que ocorreu foi que repúblicas passaram a
ser definidas como governo representativo, distinguindo-as, portanto, das democracias.
Os representantes tornaram-se “representantes” eleitos. Arendt (1990) afirma:

O desfecho dessa forma de governo, foi a de o povo não ser admitido


na esfera pública, que passa a ser tarefa do governo se tornando assim
privilégio de poucos, onde Jefferson chamava de ‘virtuosas aptidões’
os talentos políticos dos homens (p. 191).

Essa nova forma de governo representativo acaba por fazer com que o povo
desconsidere tudo que até então foi vivenciado na Grécia antiga, assim como na
Revolução Americana na ação conjunta. O sentir-se apenas representado acaba por
deixá-los apáticos e desmotivados, daí para a dissolução do espaço público é apenas
uma questão de curto prazo de tempo. Nas Comunas de Paris, famosas em suas 48

51
seções, originalmente não houve organismos populares. As sociedades populares eram
incompatíveis com o governo representativo. Robespierre, apesar de chamá-las de
“pilares da democracia”, combate-as insistentemente ao assumir o poder. Logo em
seguida, Saint-Jus age da mesma forma. E, juntamente com o Sistema Distrital, a
Comuna de Paris foi colocada de lado após o término da Revolução (ARENDT, 1990, p.
195).
Uma nova figura surge no cenário político após a Revolução Francesa: o
revolucionário profissional, que, ao contrário do que surge no seio do povo com ação
conjunta entre atos e palavras, age de forma planejada e precisa totalmente diferente da
forma de revolucionar vivida até então. Houve a decadência do espaço público, pois a
presença desse profissional inviabilizou a ação na esfera pública, pois os interesses não
eram os mesmos e o choque foi inevitável, porque a espontaneidade deu lugar a um tipo
totalmente novo, um modelo que em nada acrescentava a tudo que já havia sido
vivenciado na esfera pública.
Novos mecanismos foram utilizados no governo representativo para colher como
o povo acolhia a nova forma de governo, com a “Subdivisão do país em Distritos”, para
que gerassem repúblicas menores para a “participação popular” (ARENDT, 1990, p.
206). Para Jefferson, era considerado um perigo que o povo participasse do poder
público sem ter participação no espaço público. Porém, os Conselhos passaram a ser a
nova forma de governo, fadados a se tornarem supérfluos, pois onde há o divórcio entre
conhecimento e ação o espaço da liberdade deixa de existir. E Jefferson acaba por fazer
uma reflexão tardia do Sistema Distrital. Ele diz:

As repúblicas elementares dos distritos, as repúblicas municipais, as


repúblicas estaduais e a república da União formarão uma gradação de
autoridades, cada uma delas respaldada na lei, detendo todo o seu
quinhão de poder delegado e constituindo verdadeiramente um
sistema de freios e contrapesos fundamental para o governo
(ARENDT, 1990, p. 199).

Arendt observa que Jefferson permaneceu omisso quando se tratava da


definição das repúblicas elementares. Segundo a autora, ele mencionou, ocasionalmente
ao ouvir uma proposta de sua autoria, como uma das vantagens das divisões por ela
proposta, que seria uma excelente maneira de coletar a voz do povo para o governo
representativo. No entanto, do que ele estava realmente convencido era: “Vamos iniciá-
los, nem que seja com um único propósito, e logo se tornará evidente para que outros
objetivos sejam também instrumentos” (ARENDT, 1990, p. 203).

52
Enfim, de acordo com Arendt, os objetivos de Thomas Jefferson foram
imprecisos. No entanto, ela ressalta que ele conseguiu concluir que a dissolução do
espaço público seria um constante perigo para a consolidação do que ocorreu de forma
tão espontânea na Revolução Americana; e, posteriormente, refletir sobre a Revolução,
a nova forma de governo, com todas as mudanças ocorridas e as que por ventura
ocorreriam deveria assegurar a Constituição da Liberdade, a começar por proporcionar
que o espaço público assegurasse o direito de liberdade ao povo, onde houvesse
oportunidade de ser feliz, partilhando da felicidade pública e do poder público
(ARENDT, 1990, p. 204). Observamos, desde então, é que os Estados Unidos
gradualmente evoluíram para uma superpotência, passando a exercer crescente
influência política, econômica, militar e cultural no panorama mundial.

3.2 Liberdade e Constituição

Segundo Arendt, as revoluções, e até mesmo a Revolução Norte-americana, não


puderam assegurar a instituição da liberdade política originária da Grécia Antiga e
terminaram criando uma nova forma de governo “constitucional”, tendo como resultado
uma dose de direitos civis na forma de monarquia ou de república, que acabou
merecendo apenas a designação de governo limitado. Para a autora, as Constituições, ao
contrário do que se pensa, não foram o resultado das revoluções. De certa forma, elas
acabaram sendo impostas após o fracasso das revoluções, que passaram a ser
consideradas mais um sinal de derrota do que de vitória (ARENDT, 1990, p. 117).
Nessa esteira argumentativa de Arendt, houve a necessidade, tanto na França
como na América, de Assembleias Constituintes e convenções especiais, cuja tarefa
única seria esboçar uma Constituição. Admitia-se que o esboço da mesma fosse levado
para casa, e, de volta para o povo, fosse discutido item por item. Com os artigos da
Constituição sendo debatidos nos congressos estaduais, o que ocorreria era a
participação popular dotando o governo uma Constituição na qual o povo constituísse o
seu próprio governo, e não o contrário (ARENDT, 1990, p. 116).
Outro fundamental elemento, e que os revolucionários não conseguiram
compreender, foi, de um lado, a importância da fundação de uma República e, de outro,
o fato de que o verdadeiro conteúdo da Constituição não ser absolutamente a
salvaguarda dos direitos civis, mas o estabelecimento de um sistema de poder
inteiramente novo da autoridade. O que as cartas régias e a leal vinculação das colônias
ao Rei e ao Parlamento da Inglaterra fizeram para o povo da América foi conferir o seu

53
poder e peso adicional de autoridade. Esse corpo político colonial do Novo Mundo veio
a ser o estabelecimento da fundação, não do poder, mas da autoridade (ARENDT, 1990,
p. 118).
Para Hannah Arendt (1990): “Poder e autoridade diferem tanto quanto poder e
violência” (p. 118). A autora salienta que o tema monumental da obra de Montesquieu
era, de fato, a constituição da liberdade política. No entanto, a palavra constituição
perdeu, nesse contexto, todas as conotações de ser uma negativa, uma limitação ou uma
negação do poder. A palavra significa, então, que “O grande templo da liberdade
federal” deve se alicerçar na fundação e correta distribuição do poder. Nesse sentido,
poder e liberdade passaram a ter inter-relação, com o poder de representatividade.
(ARENDT, 1990, p. 120). Não se poderia acreditar que o poder revolucionário ainda
resistiria e permaneceria intacto diante da consolidação descontrolada da forma com a
qual a natureza do poder passou a ser exercido nas questões políticas. Arendt (1990)
afirma:

O poder só pode ser contido, e, ainda assim, permanecer intacto,


através do poder, de forma que o princípio de separação do poder não
apenas proporciona uma garantia contra a monopolização do poder
por uma parte o governo, como também oferece na realidade, uma
espécie de mecanismo, incrustado no próprio cerne do governo através
do qual novo poder é constantemente gerado, sem que, no entanto
venha a crescer demasiadamente e se expandir, em detrimento de
outros centros ou fontes de poder (p. 121).

Surgiu um intrigante e novo problema no cenário: a secularização. O


cristianismo que até então, com seu poder, regras e normas romanas, dominava a mente
e o coração humano, impunha formas de administrar a vida política, social e religiosa.
Como seria fundamentar e constituir uma nova autoridade sem o domínio do Império
Romano? Qual seria o novo absoluto: um monarca como na Revolução Francesa ou
seria mais interessante fundamentar o poder no povo como na Revolução Americana? O
problema do absoluto é, segundo Arendt, inerente ao próprio evento revolucionário.
Porém, os revolucionários americanos nos presentearam com a sorte proporcionada pela
percepção, longe da histórica convicção do que ocorreu em diversas revoluções em que
a autoridade do monarca nos levava a crer na necessidade do mesmo (ARENDT, 1990,
p. 156).
Para Hannah Arendt, a Revolução Americana nos mostra um exemplo
inesquecível e nos ensina uma lição sem precedentes, pois essa Revolução não eclodiu
simplesmente, mas, antes, foi conduzida por homens que tomaram juntos uma

54
resolução, unidos entre atos e palavras pela força de compromissos mútuos. A autora
denomina “Tesouro Perdido” na Revolução Norte-americana o esquecimento da
participação popular e do espírito revolucionário que culminou na Independência dos
Estados Unidos. Todos os negócios políticos são e sempre foram transacionados dentro
de um arcabouço de laços e obrigações para o futuro, como leis e Constituições, tratados
e alianças, derivando todos, em última instância, da faculdade de promover e de manter
a promessa face às incertezas intrínsecas do futuro (ARENDT, 1990, p. 212).
Finalmente, na Constituição Modernai, a chamada democracia dos modernos
produz uma nova forma de concepção da liberdade. Se na Grécia antiga e na Revolução
Americana a liberdade era concebida de forma a poder participar do espaço público
onde a liberdade podia ser vivenciada de forma demonstrável de modo especial para as
questões políticas e o cidadão tinha poder de exercer a cidadania, na democracia
moderna a liberdade passa a ser entendida como o exercício dos direitos civis e a
autonomia do indivíduo na esfera privada, de direito de escolher, à privacidade, a não
ser preso, nem torturado.
A liberdade era vista pelos antigos como algo vinculado ao espaço público,
enquanto na modernidade é percebido nitidamente que o conceito de liberdade está
intimamente vinculado à esfera privada. Entretanto, parafraseando Thomas Paine:
“Quando é um povo que constitui um governo, ele não deve nunca, abrir mão dessa
conquista, deixando que uma constituição seja o ato do governo” (ARENDT, 1990, p.
116).

55
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto aqui desenvolvido discorreu sobre a liberdade e a política na perspectiva


de Hannah Arendt. Como se viu ao longo deste trabalho, Arendt apresenta concepções
muito marcantes acerca da liberdade no campo da política.
Em sua obra Da Revolução (1990), a autora procura fazer uma avaliação da
Revolução Americana, levando-nos a refletir como, nesse momento da história, a
liberdade na política pôde ser demonstrada. Isso faz com que Arendt tenha atrelado o
ideal de liberdade ao que foi vivenciado nos Estados Unidos. Por outro lado, Arendt
chama de “Tesouro Perdido”, no âmbito da Revolução Norte-americana, a ação que foi
vivenciada pelos homens da Revolução na América ter se perdido. Nesse contexto, o
espaço público foi diluído e sufocado pela própria democracia, e a liberdade acabou por
ser confundida com conquista da libertação, algo considerado lastimável na visão de
Arendt.
Thomas Jefferson percebeu, segundo Arendt, com muita clareza, a falha
inevitável do cenário americano, e as suas tentativas de manter os Distritos e não
permitir que a dissolução do espaço público ocorresse em vão. E a adoção do governo
representativo passou a ser a nova forma de democracia. Assim, os Distritos passam a
ser o instrumento pelo qual o anseio do povo passou a ser levado para seus
“representantes”.

56
Na modernidade, a denominada democracia produz uma nova forma de
liberdade. E a Constituição vem fixando regras e princípios fundamentais do sistema
político formalizando-o e integrando-o num coerente ordenamento jurídico, numa
inversão em que o poder de uma Constituição estabelecida na Revolução Americana
pelo povo na esfera pública passou na República a ser um governo de leis como fonte de
autoridade para o estabelecimento do governo.

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57
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