Está en la página 1de 9

ARTIGOCOSTA

DEDAF
REVISÃO

SUPERANDO LIMITES: A CONTRIBUIÇÃO DE


VYGOTSKY PARA A EDUCAÇÃO ESPECIAL
Dóris Anita Freire Costa

RESUMO – O presente texto tem como objetivo mostrar a contribuição da


obra de Vygotsky para o trabalho com sujeitos com necessidades educativas
especiais. Além de oferecer um novo paradigma para a compreensão dos
problemas desses sujeitos, a obra do autor aponta alternativas inovadoras
para a educação dos mesmos. Numa abordagem dialética e prospectiva do
indivíduo e da sociedade, Vygotsky centraliza seu trabalho nas possibilidades
dos sujeitos e não nos seus “déficits” ou limites, mostrando que estes,
contrariando o que muitos pensam, podem se tornar uma fonte de
desenvolvimento.

UNITERMOS: Educação especial. Vygotsky. Intervenção


psicopedagógica.

INTRODUÇÃO Apesar de produzida por volta de 1930, sua


obra é mais do que atual e lança muitas luzes
É inegável a contribuição de Vygotsky para a para a compreensão dos problemas relativos à
educação; inegável também é a incrível aceitação educação especial e para a busca de uma
e adequação de sua obra à nossa realidade intervenção inovadora.
brasileira. Entretanto, o que muitos ignoram é O que mais nos fascina em Vygotsky é que
que Vygotsky dedicou boa parte de sua vida à sua obra centrou-se na idéia da emergência de
educação de crianças com necessidades novas formas de compreensão da psyché
educativas especiais e que uma razoável parte humana1. Numa sociedade acostumada a uma
de sua obra é dedicada a elas. concepção imutável e estática do indivíduo e da
Quando, hoje, falamos em inclusão e os nossos sociedade, é muito enriquecedora a contribuição
olhos se voltam para aquelas crianças que vêm deste autor que, contrariando a herança que nos
sofrendo um processo perverso de exclusão social foi deixada por grande parte das ciências sociais
e educacional, é de suma importância verificar o e psicológicas, vê aquelas entidades como
que esse grande educador tem a nos dizer a sistemas complexos, constantemente submetidos
respeito. a processos de desenvolvimento.

Dóris Anita Freire Costa –Mestre em Educação/ UFMG. Correspondência


Doutora em Lingüística/UFMG. Professora de cursos de Dóris Anita Freire Costa
Pós-Graduação-especialização em Psicopedagogia e Rua Timbiras, 249 Apto. 501 – Belo Horizonte - MG
Educação Especial, em Belo Horizonte e grande Belo Tel: (31)3227-3659 - Telefax: (31) 3222-6986
Horizonte. e-mail: dorisval.bh@terra.com.br

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

!
VYGOTSKY E A EDUCAÇÃO ESPECIAL

A concepção do ser humano como imutável, indivíduo de criar processos adaptativos com o
por nós herdada, gerou na sociedade, e também intuito de superar os impedimentos que encontra.
nos educadores, uma expectativa muito negativa Apesar de o organismo possuir, em potencial, essa
com relação às possibilidades de aprendizagem capacidade de superação, ela só se realiza a partir
e desenvolvimento do aluno com necessidades da interação com fatores ambientais, pois o
educativas especiais, o que pode acarretar desenvolvimento se dá no entrelaçamento de
conseqüências desastrosas no processo educativo fatores externos e internos. Nessa perspectiva, no
e de intervenção. caso dos cegos, seres privados de visão, todo o
Assumindo a perspectiva de Vygotsky, organismo se reorganiza para que as funções
partimos do princípio de que nós e o mundo real, restantes trabalhem juntas para superar o
que nos insere, estamos em permanente impedimento, processando estímulos do mundo
movimento e transformação. Sob essa ótica, o que exterior com a ajuda de meios especiais, tal como
objetivamos nesse texto é oferecer ao leitor o Braille. O mesmo acontece com os surdos, seres
algum conhecimento a respeito da obra do privados da audição, que desenvolverão capaci-
autor dedicada às crianças com necessidades dades visuais e espaço-temporais, na interação com
educativas especiais – denominada Defectologia instrumentos diversos, tendo a Língua de Sinais
Soviética - e oferecer algumas pistas para a um papel preponderante nesse processo. É nessa
prática de intervenção. perspectiva, também, que, para sujeitos com sérios
problemas motores e que tenham grande
Visão dialética do problema dificuldade no ato da escrita, o uso de instrumentos
O olhar com o qual Vygotsky nos propõe como o computador – ou, na falta desse, da
examinar as possíveis limitações dessas crianças máquina de escrever - atua como estímulo e como
não é de complacência ou desânimo, mas, sim, o suporte para a superação de dificuldades.
de uma visão dialética do real, que leve à O defeito se converte, assim, no ponto de
constatação de que, se existem problemas, existem partida e na força propulsora do desenvolvimento
também possibilidades. E os problemas podem ser psíquico e da personalidade. Qualquer defeito,
uma fonte de crescimento. Desse modo, para o segundo Vygotsky, origina estímulos para a
autor, “um defeito ou problema físico, qualquer formação da compensação – ou superação. A lei
que seja sua natureza, desafia o organismo. geral da compensação, segundo ele, aplica-se da
Assim, o resultado de um defeito é invariavelmente mesma forma ao desenvolvimento dito “normal”
duplo e contraditório. Por um lado, ele enfraquece e ao “complicado”. Segundo Adler (apud
o organismo, mina suas atividades e age como Vygotsky2), a elevada tendência em direção ao
uma força negativa. Por outro lado, precisamente desenvolvimento é originada pelo defeito. O
porque torna a atividade do organismo difícil, o autor afirma, ainda, que a lei da compensação –
defeito age como um incentivo para aumentar o ou superação – desvela o caráter criador do
desenvolvimento de outras funções no organismo; desenvolvimento. Citando Stern, ele² completa
ele ativa, desperta o organismo para redobrar que: “tudo o que não me destrói, me faz mais
atividade, que compensará o defeito e superará forte, pois na compensação da debilidade surge
a dificuldade. Esta é uma lei geral, igualmente a força, e das deficiências, as capacidades”.
aplicável à biologia e à psicologia de um O autor, entretanto, enfatiza constantemente
organismo: o caráter negativo de um defeito age o papel do contexto sociocultural nesse processo
como um estímulo para o aumento do desenvol- de superação. Esse processo não se realizaria de
vimento e da atividade2”. uma forma espontaneísta. Tal concepção seria
Vygotsky deixa transparecer a sua crença na avessa à perspectiva sociohistórica do autor,
plasticidade – capacidade de se transformar do segundo a qual o desenvolvimento humano é um
organismo e do ser humano – na capacidade do processo e um produto social.

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

!!
COSTA DAF

Concepção dinâmica da inteligência “O comportamento atualizado é apenas uma


Adotar o paradigma vygotskyano implica, como infinitésima parte do comportamento possível. O
foi dito, apostar nas possibilidades de desenvol- homem está cheio de possibilidades não
vimento do sujeito com necessidades educativas realizadas (...)”
especiais. Nessa perspectiva, um conceito que “Todas as crianças podem aprender e se
devemos ter sempre em mente – e que está desenvolver... As mais sérias deficiências podem
implícito na noção de plasticidade – é o de que a ser compensadas com ensino apropriado, pois, o
inteligência não é estática, mas dinâmica, aprendizado adequadamente organizado resulta
podendo, portanto, evoluir. Outra noção que não em desenvolvimento mental”².
pode ser esquecida é a de que um dos objetivos Nessa abordagem, a expectativa com relação
da educação é promover o desenvolvimento da às possibilidades de desenvolvimento de nossos
inteligência. Vygotsky nos fornece as bases dessa sujeitos é bem diferente daquela dominante na
concepção ao postular que a inteligência não é sociedade de uma forma geral. Entretanto, não é
inata, mas se constrói nas trocas constantes com qualquer ensino que promove o desenvolvimento.
o meio ambiente. A educação se insere nesse É necessário que o processo de ensino-aprendi-
contexto, tendo a escola um papel privilegiado zagem seja adequadamente organizado. Como
nesse processo. Para isto, torna-se essencial seria essa organização? Vejamos, a seguir,
lembrar o que o autor diz sobre as relações entre algumas de suas pistas.
aprendizagem e desenvolvimento, o que é bem
sintetizado no seu conceito de zona de Implicações para a prática de intervenção
desenvolvimento proximal. Nas palavras do Os pressupostos apresentados têm ricas
autor3, a Zona de Desenvolvimento Proximal implicações na prática pedagógica e/ou
(ZDP) é compreendida como: psicopedagógica. Segundo tais pressupostos, o
“a distância entre o nível de desenvolvimento sujeito real, no caso, o sujeito com necessidades
real, que se costuma determinar através da educativas especiais determinaria os recursos
solução independente de problemas, e o nível metodológicos a serem utilizados. É assim que:
de desenvolvimento potencial, determinado “nas crianças com os problemas mais sérios
através da solução de problemas sob a orientação deve-se desenvolver os sentidos sadios para
de um adulto ou em colaboração com companhei- compensar os que foram perdidos4”.
ros mais capazes”. Desse modo, para os cegos, os recursos e
O conceito de ZDP nos mostra que, com a ajuda instrumentos metodológicos devem explorar
do outro – adultos, professores, colegas mais preferencialmente as sensações auditivas, táteis,
capazes – a criança terá possibilidades de produzir cinestésicas, tal como se dá no uso do Braille, da
mais do que produz sozinha. Esse conceito nos música, no desenvolvimento da oralidade, etc.
aponta o que a criança tem em potencial, para as Enfim, deve-se propiciar ao cego possibilidades
suas possibilidades não realizadas. Foi a partir de explorar e interagir com os objetos de
dele que Vygotsky investiu no desenvolvimento conhecimento, por meio dos seus sentidos sadios.
de sujeitos com uma enorme gama de dificuldades: No caso dos surdos, por sua vez, devem-se
crianças diagnosticadas como ‘deficientes mentais’, privilegiar recursos visuais, espaciais. Esse
crianças com Síndrome de Down, crianças cegas, caminho seria o mais fácil, pois parte das reais
surdas, com lesões cerebrais, etc. possibilidades do aluno, o que lhe permitiria se
A crença nas possibilidades do indivíduo e apropriar do objeto de conhecimento de uma
no papel do aprendizado no desenvolvimento maneira mais eficiente5.
dessas possibilidades está bastante explícita nas Se os recursos metodológicos devem se
obras de Vygostky dedicadas aos sujeitos com adequar às necessidades dos alunos, o que dizer
necessidades educativas especiais. Assim, ele diz: do conteúdo a ser assimilado? Tal questão

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

!"
VYGOTSKY E A EDUCAÇÃO ESPECIAL

preocupa os docentes e para ela Vygotsky também impedimento para o desenvolvimento do


tem uma solução. Para ele o objetivo da educação indivíduo. O que poderia constituir esse impedi-
do aluno dito especial é atingir o mesmo fim da mento seriam as mediações estabelecidas, as
criança dita não especial, utilizando meios formas de lidarmos com o problema, negando
diferentes. Isto parece implicar uma contradição possibilidades de trocas e relações significativas
que é apenas aparente porque é precisamente que possibilitam o crescimento do indivíduo. Nas
para que a criança dita especial possa atingir o palavras do autor:
mesmo que a criança dita não especial, que se “O efeito do déficit/defeito na personalidade
devem utilizar meios absolutamente especiais. e na constituição psicológica da criança é
São, portanto, três os pontos que determinam secundário porque as crianças não sentem
todo o círculo do que é chamado de defectologia diretamente seu estado de handicap. As causas
prática: primárias, a sua dita forma especial de desenvol-
1. O que há em comum entre os objetivos da vimento são as limitadas restrições colocadas na
educação especial e da geral; criança pela sociedade. É a realização sociopsi-
2. A particularidade e a peculiaridade dos meios cológica das possibilidades da criança que
aplicados na educação do aluno dito especial; decide o destino da personalidade, não o déficit
3. O caráter criador que deve fazer da educação em si”2.
do especial uma educação de superação Em outras palavras, podemos dizer que, para
social, de educação social e não uma “escola o desenvolvimento do indivíduo, Vygotsky
de retardados mentais”, o que impõe não se centraliza seu enfoque nas possibilidades
subjugar-se à deficiência, mas superá-la. oferecidas pelas mediações estabelecidas.
A educação do aluno com necessidades O conceito de mediação é central em sua teoria
educativas pressuporia, assim, a passagem de e faz-se necessário determos um pouco nele.
uma pedagogia terapêutica, que se centra nos
déficits dos alunos, para uma pedagogia Mediação pedagógica e semiótica
criativamente positiva, cuja visão é prospectiva, O termo mediação deve ser entendido como o
isto é, uma pedagogia que visa ao desenvol- elo intermediário entre o indivíduo e o meio.
vimento do aluno, que investe nas suas possibi- Quando feita pelo OUTRO – adultos, professores,
lidades. Assim sendo, em vez de se centrar a colegas mais adiantados, amigos – costumamos
atenção na noção de déficit ou lesão que impede chamar de mediação pedagógica. Quando feita
ou limita o desenvolvimento, a atenção é foca- pelos SIGNOS – dentre os quais o mais impor-
lizada nas formas como o ambiente social e tante é a linguagem - denominamos de mediação
cultural podem mediar relações significativas semiótica. Essas dimensões não são indepen-
entre as pessoas com necessidades educativas dentes, nem excludentes. Na verdade, são
especiais e o meio, de modo que elas tenham interdependentes e acontecem ao mesmo tempo.
acesso ao conhecimento e à cultura. A separação que aqui se faz das duas se dá
Os pressupostos de Vygotsky, apesar de apenas por motivo de ordem didática.
formulados na década de 30, são, como já O conceito de mediação remete à questão da
dissemos, absolutamente atuais e coincidem com intervenção. Como já vimos, não é qualquer
muitos dos objetivos da escola inclusiva. Implicam intervenção que possibilita o desenvolvimento do
o enriquecimento do ambiente de aprendizagem, indivíduo. Uma intervenção adequada deve
dos recursos e meios a serem utilizados e não em possibilitar trocas do indivíduo com o objeto de
uma educação empobrecida, como era comum se conhecimento; deve possibilitar ao indivíduo agir
encontrar em escolas especiais. sobre o objeto de conhecimento, qualquer que
Vygotsky considera que a deficiência, defeito seja sua natureza, explorando sua constituição
ou problema não constituiriam, em si, um física, estabelecendo relações entre objetos da

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

!#
COSTA DAF

mesma natureza – comparando, ordenando, “Um processo interpessoal (entre pessoas) é


seriando, classificando, levantando hipóteses, etc. transformado num processo intrapessoal (no
Apesar desse ser um dos pilares da teoria de interior da pessoa). Todas as funções no
Piaget, para quem a inteligência tem sua origem desenvolvimento da criança aparecem duas
nas coordenações de ações, também Vygotsky vezes: primeiro no nível social, e, depois, no nível
enfatiza a necessidade da ação para o desenvol- individual; primeiro entre pessoas (interpsi-
vimento intelectual, pois para ele o desenvol- cológica) e, depois, no interior da criança (intra-
vimento da inteligência abstrata está profunda- psicológica). Isso se aplica igualmente para a
mente interligado ao da inteligência prática5. atenção voluntária, para a memória lógica e para
Na perspectiva vygotskyana, a ação plane- a formação de conceitos. Todas as funções
jada seria um dos marcos diferenciadores entre superiores originam-se das relações reais entre
o homem e o animal. Segundo Leontiev6, a ativi- indivíduos humanos3”.
dade humana (ação planejada) implicaria O texto acima chama a atenção para a
intenção e volição ou ação voluntária, uma finali- importância das interações no aprendizado do
dade ou objetivo a atingir e os meios ou recursos indivíduo. Sendo assim, além de possibilitar
para agir. Essa atividade estaria implicitamente ações, trocas entre o sujeito e o objeto de conheci-
ligada a uma necessidade básica do sujeito. mento, é fundamental possibilitar trocas entre os
Assim sendo, é preciso que o professor fique sujeitos, inter-ações. Ressaltamos, aqui, tanto a
atento para que as ações sobre os objetos não se relação adulto, educador/aluno, quanto a relação
esgotem em si mesmas, não se reduzam a mero entre alunos. A qualidade das interações é
treino de habilidades perceptivo-motoras. Nessa essencial para todos, mas, sobretudo, para
perspectiva, colocar o aluno como sujeito do aquelas crianças com necessidades educativas
processo, implica conhecer as suas necessidades, especiais que passam pelo processo de inclusão.
sua volição (seu desejo) e coordenar as intenções O desenvolvimento desse processo é constituído
deste com as de quem intervém, tendo sempre pelas formas de interação e pode produzir êxitos
em mente que o objetivo é promover o ou fracassos, dependendo da maneira como ela
desenvolvimento cognitivo do aluno. Tendo isso é conduzida.
em mente, será mais fácil estabelecer os meios Nessa mesma linha de pensamento, Smolka
ou instrumentos para realizar a ação planejada. & Laplane7 afirmam que a maior facilidade ou
Para a mediação pedagógica, aqui assumida, dificuldade para aprender, assim como as muitas
são de extrema importância os pressupostos de diferenças entre os indivíduos, teriam origem na
Vygotsky, relacionados ao conceito de consti- complexa trama de relações e na participação de
tuição social da mente e à relação que estabelece diferentes grupos na vida social, nos modos de
entre aprendizado e desenvolvimento, no qual fazer parte da cultura.
se insere a noção de ZDP. O trabalho em grupos, e principalmente em
Para Vygotsky, o indivíduo é constituído duplas, é muito produtivo para o aprendizado
socialmente: todas as suas funções psicológicas do aluno. Vários estudos, tanto piagetianos,
têm origem social. Suas interações com o meio quanto vygotskianos, mostram a importância das
são construídas a partir de sua inserção em um trocas com colegas para o aprendizado. O trabalho
universo histórico-cultural. A família, escola, em dupla é extremamente produtivo para os
comunidade e seus elementos constituintes – alunos que estão se incluindo. Mas, atenção, o
pais, irmãos, professores, colegas, amigos – fazem professor deve ser cuidadoso ao constituir os
parte desse universo histórico-cultural e servem grupos ou duplas. Teberosky (apud Freire Costa)4
de elo intermediário entre o sujeito e o objeto de chama a atenção para o fato de que as duplas
conhecimento. Esse conceito de constituição social ideais são aquelas constituídas por alunos de
da mente é formalmente explicitado por Vygotsky: níveis de desenvolvimento diferente, mas não com

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

!$
VYGOTSKY E A EDUCAÇÃO ESPECIAL

uma defasagem muito grande entre os mesmos. brincadeira do faz-de-conta, a linguagem de


Assim sendo, o companheiro mais adiantado pode uma forma geral (língua oral, Língua de Sinais,
ajudar o colega, sem, entretanto, anular a sua etc). Observe-se que a capacidade de represen-
participação. tação, por possibilitar ao indivíduo evocar objetos
Ao se falar em mediação pedagógica, não ausentes, tornando-os presentes para os sujeitos,
podemos deixar de retomar a noção de ZDP. permite comunicação efetiva entre eles e
Estudos recentes têm ampliado essa noção e se construções mentais sobre a realidade5.
referem a ela como um sistema de suporte ou No desenvolvimento da função semiótica,
andaime e estabelecem uma relação desse sistema Vygotsky enfatiza a importância das brincadeiras
com o desenvolvimento do aluno. Nesse sistema e dos jogos do faz-de-conta. Nesses jogos, ao
de suporte ou andaime, o professor, pares mais substituir um objeto por outro (um cavalo por um
competentes e, também, recursos metodológicos cabo de vassoura; um bebê por um pano enro-
e materiais utilizados são representados pela lado), a criança está trabalhando a capacidade
metáfora dos andaimes que, na construção de um de representação, essencial para o desenvol-
edifício, são usados como suporte, a partir do qual vimento da linguagem (e muito especificamente
se fazem subir as paredes . Observam Mortimer da linguagem escrita), a mais importante das
& Carvalho8: funções representativas ou semióticas.
“Há uma relação entre o sistema de suporte O desenvolvimento da linguagem, a mais
externo – apostilas, experiências, professor – e importante das funções de representação, pressu-
as estruturas internas. Os componentes desse põe, assim, o desenvolvimento dos sistemas semió-
sistema externo são janelas na evolução e ticos (ou sistemas de signos).
aparecimento de construtos cognitivos, sendo Para Vygotsky, os signos são meios auxiliares:
uma parte essencial do sistema funcional, pois agem como instrumentos da atividade psico-
dão oportunidade a que mudanças ocorram nos lógica, de maneira análoga ao papel de um
sujeitos e permitem ao pesquisador ter acesso a instrumento no trabalho.
essas mudanças”. Na sua forma mais elementar, o signo é uma
Dessa maneira, é interessante considerar a marca externa, que auxilia em tarefas que exigem
importância dos recursos oferecidos pelo desen- memória, atenção. O signo, como instrumento
volvimento tecnológico - como o uso do compu- psicológico, isto é, como mediador, aumenta a
tador e outros recursos multimídia - na educação capacidade de atenção e de memória e, sobretudo,
dos sujeitos com necessidades educativas permite maior controle voluntário do sujeito sobre
especiais. sua atividade. A memória, mediada por signos,
Assim como a produção de instrumentos por exemplo, é mais poderosa do que a memória
técnicos, a produção de instrumentos semióticos não-mediada9.
ou desenvolvimento da função semiótica está no Ao longo do processo de desenvolvimento, a
cerne da teoria de Vygotsky. A significação (criação utilização de marcas externas vai se transfor-
e uso de signos) é atividade fundamental do ser mando em processos internos de mediação.
humano, atividade que o constitui e o transforma, O desenvolvimento da função semiótica
que, como a ação planejada, o diferencia do constitui uma das tarefas essenciais para quem
animal do ponto de vista psicológico. trabalha com sujeitos com necessidades educa-
A função semiótica se manifesta pela capa- tivas especiais, uma vez que é fundamental para
cidade de a criança representar objetos e fatos o desenvolvimento da linguagem de uma forma
ausentes conhecidos, através de um conjunto de geral (não só da linguagem oral, mas também da
condutas que aparecem mais ou menos simulta- linguagem escrita e de outras formas de represen-
neamente: a imitação na ausência do modelo, as tação, como a Língua de Sinais). Muitos deles
imagens mentais, o desenho, o jogo simbólico ou apresentam um atraso significativo nessa função,

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

!%
COSTA DAF

o que se constitui em um obstáculo para o internalizar a linguagem e a desenvolver aquelas


desenvolvimento da linguagem e apropriação da funções mentais superiores para as quais a
língua escrita. linguagem serve como base”10.
Muitas são as formas que podem ser O parágrafo acima destaca que é a necessi-
trabalhadas em relação à função semiótica, dade de comunicação que impulsiona, inicial-
promovendo o uso de signos diversos, em mente, o desenvolvimento da linguagem. Além
atividades, jogos, em que se usam determinadas da função comunicativa, Vygotsky enfatiza,
marcas para registrar lugares, sons, objetos, também, sua função de pensamento genera-
conceitos. Trabalhar com sinais convencionais lizante. A linguagem ordena o real, possibilita o
usados na sociedade, como sinais de trânsito, agrupamento de todos os elementos de uma
bandeiras, etc, leva os alunos a descobrirem o mesma classe de objetos, eventos, situações, sob
que esses sinais representam. Podem-se trabalhar, uma mesma categoria conceitual9.
também, associações entre sinais e execução de Assim, segundo o autor 11 , a linguagem
determinadas ordens, brincadeiras de ‘faz-de- organiza o pensamento. Entretanto, tal função
conta’, teatros, fantoches, etc. Enfim, é importante organizadora não exclui a comunicativa, pois é
que se explorem intensamente os signos – ou para se comunicar melhor, para interagir que o
marcas externas, objetivando levar os aprendizes pensamento é organizado. Podemos verificar
a perceberem que eles representam algo, mas não que, à medida que a criança se expressa e perce-
be que há um interlocutor procurando entender
se confundem com aquilo que representam5.
o que diz, sentirá a necessidade de se organizar,
Devido à natureza sociocultural do homem, a
de deixar seu pensamento claro para que seja
linguagem se dá na e pela interação verbal, seja
entendida. E quanto mais possibilidades tiver de
diretamente com outros membros da comunidade,
interagir verbalmente com outros, mais possibi-
seja através de elementos culturais estruturados
lidades terá de desenvolver sua linguagem e
e oferecidos pelo meio ambiente. O desenvol-
organizar seu pensamento.
vimento da linguagem pressupõe, pois, a possi-
O exercício da linguagem implica, também, a
bilidade de imersão e ação intensas no mundo
possibilidade de expressão. Expressar o que se
da linguagem - quer falada, quer escrita, ou
pensa e como se pensa. Falar do que está
demais códigos como a Língua de Sinais. planejando fazer, contar sobre um passeio ou um
Essa imersão implica possibilidades de evento qualquer, narrar uma história que ouviu.
dialogia, de interação verbal, de expressão do O surgimento e desenvolvimento da lingua-
pensamento pela linguagem, de contato e gem implicam, além da possibilidade de, a
manipulação dos mais variados portadores de necessidade de se expressar, o que é provocado
texto (rótulos, histórias em quadrinhos, contos, pelo enfrentamento de situações práticas, que
jornais, revistas, bilhetes, cartas, anúncios, impulsionem, motivem o sujeito a ‘falar’. Isto
receitas, cartazes, etc). seria válido, tanto para o aprendizado de palavras
É no exercício da linguagem que a criança a quanto para a construção de enunciados. Neste
desenvolve. As possibilidades de diálogo – entre sentido, linguagem e atividade prática estão
adulto, educador/aluno, entre aluno e seus pares intimamente relacionadas. Esta relação é assim
– é fator decisivo para o seu desenvolvimento expressa por Vygotsky11:
lingüístico. Nos trabalhos dedicados ao ensino “...o momento de maior significado no curso
especial, Vygotsky enfatiza que “...os instru- do desenvolvimento intelectual, que dá origem
mentos lingüísticos, qualquer que seja sua forma, às formas puramente humanas de inteligência
determinam desenvolvimento. Todos os sistemas prática e abstrata, acontece quando a fala e a
(Braille, Língua de Sinais, datilologia, etc.) são atividade prática, então duas linhas comple-
instrumentos embebidos na ação e dão origem a tamente independentes de desenvolvimento, se
significados. Eles permitem a uma criança convergem.”

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

!&
VYGOTSKY E A EDUCAÇÃO ESPECIAL

As colocações acima são de suma importância “deficiência”, nos dá pistas de como agir para
para a educação dos sujeitos com necessidades superá-la.
educativas especiais! Pois, se a linguagem A sua crença na plasticidade do ser humano e
pressupõe dialogia, e se há uma relação íntima da inteligência abre nossos horizontes com
entre linguagem e pensamento, entre linguagem relação às possibilidades de desenvolvimento do
e atividade prática, uma forma bastante profícua indivíduo, qualquer que seja sua limitação.
de os educadores promoverem o desenvol- Os seus conceitos de mediação pedagógica e
vimento cognitivo de seus alunos é criar situa- semiótica, de ZDP – entre outros – valorizam e
ções práticas que os motivem a interagir e exer- dignificam o papel de quem intervém e nos
citar a linguagem. mostram a importância da linguagem no
Um exemplo das implicações da importância desenvolvimento do indivíduo, das inter-relações,
das formas de mediação pedagógica e semiótica da dialogia, do que e como se fala na prática de
sobre o desenvolvimento de alunos com intervenção.
necessidades educativas especiais pode ser visto Seus trabalhos mostram-nos, também, que a
em artigo publicado pela autora no número 65 educação do aluno com necessidades educativas
dessa revista12. especiais almeja os mesmos objetivos da educação
do aluno dito ‘não-especial’. Os meios, as formas
Considerações finais de se atingir esses objetivos é que seriam diferentes.
Como o texto nos mostra, as contribuições de Produzir esses meios implica pensar uma educação
Vygotsky para a educação dos alunos com enriquecida, criativa, que possa se utilizar de
necessidades especiais são inúmeras. Aqui instrumentos diversos, inclusive os produzidos
oferecemos apenas alguns pontos centrais de sua pela modernidade, para que esse sujeito desfrute
obra, objetivando provocar no leitor o desejo de de uma educação de alta qualidade.
conhecê-la melhor. Enfim, toda a obra de Vygotsky aponta para
Um dos valores inestimáveis da obra de uma radical mudança frente aos alunos com
Vygotsky é que, além da preocupação em buscar necessidades educativas especiais. Nesse
novos paradigmas para a compreensão da psyché sentido, a “deficiência” ou “limites”, caso existam,
humana, propõe novas propostas de intervenção não podem mais ser usados como “álibi”, como
a partir deles. Assim é que, ao mesmo tempo em justificativa da estagnação, da educação
que nos propõe um novo olhar sobre a dita empobrecida, da discriminação ou exclusão.

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

!'
COSTA DAF

SUMMARY
Overcoming limits: Vygotsky’s contribution to special education

This text has the aim to show the contribution of Vygotsky to the work
with individuals having special educative necessities. Vygotsky’s work points
out innovative alternatives concerning special education besides offering a
new paradigm for the understanding of flowing problems. Vygotsky uses a
dialectic prospective approach of the individual and the society as well. By
doing so, he concentrates his work considering the individuals’ possibilities,
not their “deficits” or limitations. He shows that such “deficits” can become a
source of development, which contradicts many opposing views.

KEY WORDS: Education, special. Vygotsky. Psychopedagogical


intervention.

REFERÊNCIAS 7. Smolka ALB, De Laplane ALF. Processos de


1. Valsiner J. Developmental psychology in the cultura e internalização. Revista Viver: Mente
Soviet Union. Sussex:The Harvester Press; e Cérebro. Coleção Memória da Pedagogia:
1988. Lev Semenovich Vygotsky – uma educação
2. Vygotsky LS. Obras completas. Tomo cinco: dialética, São Paulo:Duetto;2005. p.76-83.
Fundamentos de Defectologia. Havana: 8. Mortimer EF, Carvalho AMP. Referenciais
Editorial Pueblo Y Educación;1989. teóricos para análise do processo de ensino
3. Vygotsky LS. A formação social da mente. em salas de aula de ciências. Versão modi-
São Paulo:Martins Fontes;1984. ficada de trabalho apresentado na 17a Reu-
4 . Freire Costa DA. A apropriação da escrita nião Anual da ANPED;Caxambu, MG;1994.
por crianças e adolescentes surdos: inte- 9. Oliveira MK. Vygotsky: aprendizado e
ração entre fatores contextuais, L1 e L2 desenvolvimento – um processo sócio-
na busca de um bilingüismo funcional. histórico. São Paulo:Scipione;1993.
[Tese Doutorado]. Belo Horizonte:FALE, 10. Werstsch J. Culture, communication and
Universidade Federal de Minas Gerais; cognition: vygotskian perspectives. Cam-
2001. bridge:Cambridge University Press; 1990.
5. Freire Costa DA. Construindo possibilidades 11. Vygotsky LS. Pensamento e linguagem.
educativas para alunos com necessidades Lisboa:Antídoto;1979.
especiais. Educação especial inclusiva. PUC 12. Freire Costa DA. Produção escrita e
Minas Virtual;2004:97-114. mediação: o papel do contexto escolar na
6. Leontiev AN. Actividad, consciência y perso- produção escrita de sujeitos com necessi-
nalidad. Buenos Aires:Ciências del Hombre; dades educativas especiais. Rev Psicopeda-
1978. gogia 2004;65:94–107.

O presente trabalho faz parte do programa de Artigo recebido: 10/06/2006


doutoramento da autora, realizado na Faculdade de Aprovado: 08/08/2006
Letras da UFMG, tese defendida em setembro de 2001.

Rev. Psicopedagogia 2006; 23(72): 232-40

"

También podría gustarte