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O papel da mulher, ao longo da história, apresenta diferentes recortes em nossa cultura judaico-
cristã, impulsionados por fatores econômicos e sociais, merecendo uma reflexão por parte de todos e,
especialmente, pelo professor de língua e literatura preocupado em desenvolver um trabalho contextualizado.
Atrevo-me então a escrever este estudo como sugestão para um procedimento metodológico – a realização de
uma pesquisa intertextual sobre a mulher na Literatura Brasileira a partir das concepções correntes em uma
determinada época.
Umberto Eco, precursor da Semiologia, estudou a comunicação, vista como sistema de signos,
formados por significantes e significados. Assim, introduziu o conceito da “obra aberta” que, a bem da
verdade, não preconiza que sejam aceitos todos os delírios interpretativos dos leitores. A recorrência de
indícios semânticos deve levar à virtualidade (possibilidade) da leitura de um texto. Mesmo quando os
significantes evocam múltiplos significados, em processo de polissemia, o contexto é fundamental como
chave interpretativa, forçando a palavra a perder seu caráter polissêmico para adquirir seu significado
contextual.
Nos anos 70, significativos conceitos lingüísticos foram incorporados à teoria da literatura. Entre os
quais, destaco o conceito da intertextualidade por sua força para o entendimento da nossa matéria-prima de
trabalho – o texto.
Um olhar crítico sobre um texto, leva-nos a considerações que julgo de suma importância. Em
primeiro lugar, destaque-se que um texto não é um ajuntamento aleatório de frases (Platão/Fiorin), por isso,
ao analisar um texto, não será conveniente selecionar-se uma frase e conferir-lhe qualquer sentido fora de seu
contexto textual sob pena de desfocar a mensagem do autor. Como segunda consideração, todo texto
representa um produto cultural (Platão/Fiorin).
É uma manifestação construída através de uma posição individual a partir de um debate de escala
mais ampla, colocada no seio da sociedade.( ...) um discurso não vem ao mundo num inocente isolamento,
mas se constrói através de um já-dito em relação ao qual se posiciona... (Maingueneau, Dominique, 1976).
Estudar a inter-relação textual pode ser a trilha mais eficiente para a orientação do trabalho de
recepção e de produção de textos na sala de aula. Essa intertextualidade pode ocorrer de maneira explícita ou
implícita na forma ou no conteúdo dos textos em diálogo. Quando na forma, um autor pode repetir
expressões, outros textos ou estilos de determinados tipos de discurso. No conteúdo, quando se utilizam dos
mesmos temas, reafirmando ou contestando os sentidos de outros textos.
Na literatura, a intertextualidade habitualmente se dá de forma implícita, mas um autor pode
explicitamente citar fontes para a sua mensagem. Aqui, por exemplo, a intertextualidade apresenta-se de
maneira explícita em Drummond de Andrade ao referir-se a obras, autores e personagens românticas.
Sou romântico? concedo
Decorei “Amor e Medo”
“No Lar”, “Meus Oito Anos” ... viva
José Casimiro de Abreu!
Sou assim, por vício inato
ainda hoje gosto de Diva,
Nem não posso renegar
Peri tão pouco índio, é fato,
mas tão brasileiro... Viva,
Viva José de Alencar
O romantismo brasileiro, primeira expressão literária nossa, como expressão cultural de uma época
de transformações, rupturas e de grandes contradições, sempre será para a Literatura Brasileira uma fonte de
inspiração e pesquisa pelo seu forte apelo de brasilidade em que se verificam traços introduzidos pela
sociedade burguesa do final do século XVIII e início do XIX – a espontaneidade e naturalidade de
sentimentos, a psicologização do eu, o respeito às tradições populares e a idealização da mulher. É chegada a
independência e um novo ethos começa a se estabelecer com emergentes valores comportamentais do
brasileiro, destacando-se o sentido de liberdade.
Em Lucíola, Alencar personifica a sociedade carioca do II Reinado com suas grandes festas e saraus
burgueses. Na narrativa, ficam evidentes os preconceitos sociais enfrentados pela personagem Lúcia,
colocada sempre como uma afronta à sociedade. Essa jovem mulher romântica protagoniza aquela que se
torna prostituta por uma nobre causa e que se considera indigna de um amor verdadeiro.
Lúcia protagoniza a figura da “mãe idealizada”, mas, contraditoriamente, também a figura da
“femme fatale”. Cada uma delas, é marcada por cores diferentes em suas roupas. Para “a mãe” as cores de
Nossa Senhora, o azul e o branco; para “Lucíola”, as cores de Lúcifer, o vermelho e o preto. É o processo de
culpa, impingido pela Igreja Católica, que acompanha o personagem no confronto entre obediência e
desobediência.
Lúcia ergueu a cabeça de orgulho satânico, e levantando-se de um salto, agarrou uma garrafa de
champanha, quase cheia. Quando a pousou sobre a mesa, todo vinho tinha-lhe passado pelos lábios, onde a
espuma fervilhava ainda (...) Deviam ser sublimes de beleza e sensualidade esses quadros vivos, que se
sucediam rápidos; porque até as mulheres aplaudiam com entusiasmo e frenesi. Revoltou-me tanto cinismo;
ergui-me da mesa.
À suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência e a energia dos movimentos (...) Era uma
transfiguração completa. (ALENCAR, José de, Lucíola).
O romance é a representação da contradição da alma humana e o amor como forma de regeneração.
Lucíola, como verdadeira donzela romântica, morre no final da narrativa, uma vez que transgrediu o código
sexual da mulher da época – a virgindade.
Essa reflexão nos remete ao ensaio escrito por Gerhild Reisner A transformação dos mitos sobre o
feminino na literatura brasileira contemporânea quando analisa a função das cores no romance As dozes
cores do vermelho de Helena Parente da Cunha:
As cores tomam um espaço importante neste romance descrevendo e caracterizando
pessoas e estados. A cor central é vermelho com suas matizes.(...) A cor vermelha
corresponde à sexualidade e o erotismo: “flor vermelha” é o seu sexo, “desvermellho” o
que sente quando deita com o marido. (...) O vermelho representa o calor humano mas
também dores, feridas e sangue. Uma outra cor significante é o preto.(...)De fato, o marido
é definido pela cor preta- ele veste terno preto, traz pasta preta. Através das cores enfatiza-
se ainda mais o contrário do marido e da mulher e dos dois universos diferentes.
Iracema, outro perfil de mulher, é uma lenda criada por Alencar e a explicação mais poética das
origens do Ceará. A Virgem dos lábios de Mel, que tinha os cabelos mais negros (sem henna!?) que a asa da
graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. Mais rápida que ema selvagem, , de sorriso doce como favo
de jati e de hálito perfumado (mesmo sem o uso de pastas dentais!?), tem sua beleza realçada e seu corpo
comparado a elementos da natureza brasileira. É a mulher índia, integrada ao cenário natural, que gera o
filho, Moacir, fruto de seu amor pelo colonizador Martim. Esse romance representa a idealização da mulher
e da miscigenação brasileira no período cabralino. Ao lado de Ubirajara, representando o período pré-
cabralino e de O Guarani, representando o período de integração de Cecília, mulher branca e Peri, homem
índio, Iracema traça o panorama idealizado do passado histórico brasileiro.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite (...) Rumor suspeito quebra a
doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista
perturba-se.(...) Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema.(...) Diante dela e todo a
contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da
floresta. (ALENCAR, José de. Iracema).
Também, como donzela romântica, o personagem morre, uma vez que representa um elemento
transgressor da sexualidade, mas seu filho sobrevive e, segundo a lenda, representa o primeiro brasileiro,
fruto do cruzamento das raças indígena e portuguesa.
Novamente, em Gerhild Reisner encontram-se algumas explicações para determinados mitos:
O corpo feminino se apresenta muitas vezes em fragmentos, é um corpo que não se
manifesta na atuação erótica em primeiro plano, mas principalmente se preocupa com a
transformação textual de uma integridade feminina. Não é só o corpo que está
desintegrado em suas partes, com muita imaginação, mas também a voz que às vezes fala
em fragmentos.
A lírica amorosa de Castro Alves constitui-se um largo avanço na poética brasileira, apesar dos
vestígios do amor platônico e da idealização da mulher. A mulher em sua poesia é um ser corporificado e
participante ativo do encontro amoroso. Foi Eugênia Câmara a musa imortal deste grande poeta. Para ela,
estes versos:
... Pisa! São flores que tu tens às plantas
Toca na fonte - coroada estás.
Boa noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio.
Boa noite, Maria! É tarde... é tarde
Não me apertes assim contra teu seio.
É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Rescende a alcova ao trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas...
– São as asas do arcanjo dos amores.
(ALVES, Castro. Boa Noite)
Zânea Maria Andréa Duarte (Bacharel e Especialista em Letras; Bacharel e Especialista em Administração.)
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