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9, 1° semestre 2014
Luciana Lee112
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Luciana Saraiva Lee é especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pela UniRitter. Email
lusalee@gmail.com.
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book Bike that had mustache, of the Angolan writer Ondjaki. The work, like many other
literary productions of countries with Portuguese as the official language at their post-
independence period, is propitious to the study of the wonderful realism and the animism.
The unusual, the fantasy, the ludic, the orality make Bicycle that had mustache extremely
rich for interdisciplinary activities aiming to apply the law on the history and African
culture.
1 INTRODUÇÃO
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Outro aspecto importante a ser observado é que a Lei 10.639, quando de fato
começar a ser cumprida nas escolas, será um importante instrumento de combate ao
preconceito, que sabemos existir na nossa sociedade e, por conseguinte, também na escola,
que, muitas vezes, é um ambiente hostil e com práticas preconceituosas. De acordo com
Fúlvia Rosemberg (1998, p.73),
o Brasil, como outros países da América Latina e os Estados Unidos, conheceu um
longo período de escravidão (até 1888) de pessoas negras trazidas da África ou de
seus descendentes. Inicialmente, como legado da escravidão e, posteriormente,
decorrente de práticas racistas, tem-se observado no país a convivência de
desigualdade e preconceito raciais bastante intensos com o mito da democracia
racial, ou de um “racismo cordial”.
O professor de Literatura, como mediador, deve mostrar aos alunos que a leitura
pode ser uma atividade prazerosa. Para isso, ela deve estar inserida em um contexto
significativo, que possa produzir sentido para o leitor.
A fim de construir esse sentido, a interdisciplinaridade tem-se mostrado uma
ótima solução, pois promove o diálogo com outras disciplinas ou áreas de conhecimento.
Para Todorov (2012, p.89),
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a análise das obras feita na escola não deveria mais ter por objetivo ilustrar os
conceitos recém-introduzidos por este ou aquele linguista, este ou aquele teórico
de literatura, quando, então, os textos são apresentados como uma aplicação da
língua e do discurso; sua tarefa deveria ser a de nos fazer ter acesso ao sentido
dessas obras – pois postulamos que esse sentido, por sua vez, nos conduz a um
conhecimento do humano, o qual importa a todos.
Esquecida em décadas passadas, volta agora como palavra de ordem das propostas
educacionais, não só no Brasil mas no mundo. [...] Sabemos, por exemplo, em
termos de ensino, que os currículos organizados pelas disciplinas tradicionais
conduzem o aluno apenas a um acúmulo de informações que de pouco ou nada
valerão na sua vida profissional, principalmente porque o desenvolvimento
tecnológico atual é de ordem tão variada que fica impossível processar-se com a
velocidade adequada a esperada sistematização que a escola requer.
Assim, por exemplo, aceita o conhecimento do senso comum como válido, pois é
através do cotidiano que damos sentido às nossas vidas. Ampliado através do
diálogo com o conhecimento científico, tende a uma dimensão utópica e
libertadora, pois permite enriquecer nossa relação com o outro e com o mundo.
(FAZENDA, 2013, p.20).
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Após esses primeiros anos, como afirma Simone Pereira Schmidt (2009, p.143) ao
refletir sobre a condição pós-colonial da literatura angolana,
o tom crítico se acentua e chega ao desencanto, em muitas narrativas que se
dedicam a representar os tempos de guerra que dominaram o país nas décadas
seguintes à independência. O projeto de nação se esvazia consideravelmente; a
guerra e o sofrimento constantes colocam em xeque as ideologias que sustentavam
a ideia do país independente, expõem as feridas deste projeto, ao mesmo tempo em
que se começa a problematizar os referenciais eurocêntricos a partir dos quais a
própria noção de país foi forjada, no passado, pelo colonialismo europeu. Para
além das fronteiras nacionais, autores como Ana Paula Tavares e Ondjaki
inscrevem, no espaço morto da guerra, o imperativo da sobrevivência e da
invenção de novas razões para narrar e existir.
Ondjaki, um dos escritores angolanos mais conhecidos fora de seu país, nasceu em
Luanda, em 1977, e atualmente vive no Rio de Janeiro. É prosador e poeta, também
escreve para cinema e correalizou um documentário sobre a cidade de Luanda (Oxalá
cresçam pitangas – histórias de Luanda, 2006). É membro da União dos Escritores
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Texto 1:
Mesmo a Isaura uma vez me disse que naquela lagoa ela já tinha visto gambozinos
coloridos a imitarem um arco-íris.
- Tu viste mesmo esses gambozinos?
- Vi sim. Tinham as cores do arco-íris, e outras cores que vocês nunca viram.
(Ondjaki, 2012, p.19).
Texto 2:
Os gambozinos são seres imaginários que, segundo a superstição popular, vivem
no campo, embora algumas espécies já tenham se adaptado e hoje também se
possam encontrar nos recantos sombrios e úmidos dos parques de algumas
cidades. Também são descritos como uma espécie de pássaro ou peixe, embora se
pense que possam ser parecidos com o pirilampo, com o dragão marinho ou com o
ouriço. Há quem ache que são seres da família dos vegetais que vivem debaixo da
terra. A ideia que se faz destes seres varia conforme a imaginação de cada um.
(Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Gambozino).
história lidam com esses problemas de abastecimento, principalmente com a falta de luz,
que é um elemento importante no desenvolvimento do enredo. Depois disso, brincadeiras
poderiam ser organizadas na sala de aula, inspiradas nas brincadeiras que as personagens
fazem quando falta luz.
Por fim, o professor de Língua Portuguesa/Redação poderia solicitar que fosse
escrita uma carta como se o aluno fosse o Presidente de Angola respondendo à carta do
narrador. Aqui se pode aproveitar para introduzir o estudo do gênero textual carta, assim
como e-mail e outros gêneros semelhantes. A carta do narrador, que encontramos no final
do livro, dá uma boa ideia da situação econômica e política de Angola, porém sob a ótica
infantil, o que poderia ser bem aproveitado pelo professor de História.
A seguir listaremos algumas atividades interdisciplinares que poderão ser úteis para
trabalhar com o Ensino Médio. Assim como nas atividades para o Ensino Fundamental,
nestas, professores de várias disciplinas, como Língua Portuguesa/Redação/Literatura,
Artes, História e Geografia, têm a possibilidade de realizar trabalhos interessantes com
suas turmas.
A personagem Isaura é muito importante na narrativa, então iniciaremos com ela.
Isaura dá nomes de personalidades do cenário internacional aos bichos da rua,
principalmente nomes de presidentes. A sugestão é que o aluno faça uma pesquisa
para saber quem são esses personagens na vida real. Depois disso, a turma discutiria o
motivo pelo qual o gato teve seu nome trocado de Tátecher para Ghandi.
Continuando com a personagem Isaura, percebemos que o escritor Ondjaki, na
contracapa de A bicicleta que tinha bigodes, refere que “sua” Isaura é em homenagem à
Isaura do escritor moçambicano Luis Bernardo Honwana. Mais adiante, Ondjaki faz um
agradecimento ao escritor angolano Manuel Rui e ao seu livro Quem me dera ser onda
(2005) – também em A bicicleta... há um personagem chamado tio Rui, que é escritor.
Aqui é uma ótima oportunidade para se introduzir o conceito de intertexto, assim como
apresentar outras obras da literatura africana, como Nós matámos o cão-tinhoso (2008), de
Luis Bernardo Honwana, e Quem me dera ser onda, de Manuel Rui, além de uma outra
obra de Ondjaki, Os da minha rua (2007), que traz um conto chamado Nós choramos pelo
cão tinhoso (p.131-136), mostrando, mais uma vez, a influência e a importância do escritor
moçambicano Honwana para Ondjaki.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As propostas acima são apenas alguns caminhos que podem ser utilizados em uma
abordagem interdisciplinar dessa obra da literatura africana, pois o texto possui um
universo riquíssimo a ser trabalhado em sala de aula. Procuramos elaborar atividades que
pudessem relacionar o texto literário com vários aspectos da história e da cultura
principalmente e que proporcionassem uma aproximação do leitor com a obra, realizando
também atividades lúdicas e artísticas.
Por meio da leitura interdisciplinar, o aluno é levado a uma visão crítica e complexa
do texto literário, não esquecendo as suas especificidades e subjetividades como obra
literária. A leitura interdisciplinar, assim, deve ir além da questão estética do texto,
ampliando o universo do leitor e convidando-o [...] “a imaginar outras maneiras de
concebê-lo e organizá-lo” (TODOROV, 2012, p.23).
Quanto à Lei nº 10.639/2003, a sua relevância se dá na medida em que traz uma
nova abordagem ao ensino da literatura e da cultura africana e afro-brasileira na escola,
agora reconhecendo a importância dos povos africanos e de seus descendentes na formação
do Brasil. Outro fator a considerar é que o cumprimento da referida lei pelas escolas será
um poderoso aliado no combate ao racismo e à intolerância, inadmissíveis em uma
sociedade que se quer igualitária e democrática. Finalmente, não podemos deixar de
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destacar e explicar por que a literatura africana de língua portuguesa é mais um dos
possíveis caminhos para a implantação da Lei 10.639 nas escolas, qual seja o de
estabelecer diálogos com uma outra cultura, quebrando preconceitos e paradigmas, além de
proporcionar ao aluno a percepção de raízes identitárias e marcas similares à cultura
brasileira.
Diante do exposto, convém ressaltar que as atividades interdisciplinares sugeridas
pelos PCNs, aliadas ao cumprimento da legislação referente ao ensino da cultura e da
história afro-brasileira, são instrumentos de grande auxílio ao professor na sensibilização e
no desenvolvimento da imaginação criadora de seus alunos. O professor de Literatura, ao
apresentar A bicicleta que tinha bigodes na sala de aula, pode mostrar o imaginário das
crianças angolanas, porém despertando o interesse do leitor brasileiro por tratar de temas
inerentes às crianças do mundo inteiro, de tal forma que da sensibilização pode-se passar à
promoção do conhecimento extensivo às outras disciplinas, pois o pensar interdisciplinar,
por possibilitar vários tipos de abordagem de uma mesma obra, torna a leitura prazerosa,
produzindo sentido para os alunos, pois insere essa obra em contextos significativos que
costumam enriquecer a sua relação com o mundo.
REFERÊNCIAS
HONWANA, Luis Bernardo. Nós matámos o cão-tinhoso. Lisboa: Edições Cotovia Ltda.,
2008.
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LER Mais, Ler Melhor. Câmara Municipal do Funchal. Produção: FILBOX Produções.
Vídeo. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=XUUW7Fs9R8o. Acessado em
11-01-2014.
_____. Nós choramos pelo cão tinhoso. In: _____. Os da minha rua. 4.reimpr. (Coleção
Ponta de Lança). Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.
RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. (Coleção Identidades). Rio de Janeiro: Gryphus;
Lisboa, Portugal: Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, 2005.
SCHMIDT, Simone Pereira. Onde está o sujeito pós-colonial? (Algumas reflexões sobre o
espaço e a condição pós-colonial na literatura angolana. Abril – Revista do Núcleo de
Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Rio de Janeiro, v.2, n.2, p.136-
147, 2009.
TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato. Não era uma vez: tópicos de oralidade e
ancestralidade em textos das literaturas angolana e moçambicana. In: SILVEIRA, Regina
da Costa; COSTA, Rosilene Silva da (org.). Literatura, história e cultura africana e
afro-brasileira nas escolas: redes de possibilidades para o cumprimento da legislação: Lei
10.639/2003. (Cadernos de Extensão 3). Porto Alegre: Ed. UniRitter, 2011. p.28-35.
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