Documentos de Académico
Documentos de Profesional
Documentos de Cultura
Autor do livro "Teoria Marxista da Dependência (TDM): problemas e categorias, Uma visão
histórica" [1] , nesta entrevista concedida durante o lançamento da publicação na Livraria
da Editora Expressão Popular, em São Paulo (SP), entre outras questões, o professor
explicou o caráter da super-exploração em países dependentes como o Brasil.
Por volta de 2014, a queda dos preços das matérias-primas adicionou novos ingredientes.
Como em toda crise, os capitalistas pressionam pela elevação (ou retomada) da taxa de
lucro, rebaixando o valor da força de trabalho e aumentando a espoliação dos recursos
naturais para reduzir o dispêndio de capital em meios de produção e obter lucros
extraordinários mediante renda diferencial e o avanço sobre novos domínios da vida.
Dentro da Teoria da Dependência, você cita a transferência de valor como uma das
características das economias dependentes. Quais são as modalidades de
transferência de valor?
Como você sublinhou, nossas economias são marcadas por transferências ou perdas de
riqueza (valor) mediante a especialização desigual na divisão internacional do trabalho.
Grande parte da riqueza produzida com o suor de nossa classe trabalhadora e com a
exploração também da fertilidade natural de nossos territórios alimenta a sanha da
acumulação e a sede vampiresca das transnacionais e das economias dominantes. Isto
não sem o apoio de seus sócios menores, a burguesia dependente, que é integrada e
subordinada ao imperialismo: baixa a cabeça para ele, enquanto pisa redobrado nos de
baixo, na classe trabalhadora. Existem quatro modalidades para as transferências de
valor, que explicamos no livro: 1) a deterioração dos termos de intercâmbio; 2) as
remessas de lucros, royalties e dividendos; 3) o serviço da dívida; 4) a apropriação de
renda da terra (renda diferencial).
https://www.resistir.info/brasil/tmd_29jun18.html 4/15
06/11/2018 Teoria marxista da dependência
Percebemos essa relação no fato de sermos uma economia que envia anualmente bilhões
de dólares para o exterior em remessas de lucros industriais e financeiros das
multinacionais e que paga royalties cada vez que utiliza equipamentos como um
tomógrafo em um hospital (onde eles existirem e quando a população puder acessá-los)…
Ou no serviço da dívida, cujos pagamentos representam uma dedução do salário direto
(via impostos desiguais e regressivos) e indireto (via cortes de verbas nas políticas
sociais) para canalizar o fundo público para remunerar os lucros fictícios dos detentores
dos títulos da dívida "pública", uma engrenagem que se retro-alimenta inclusive quando
há mudança de perfil de dívida externa para interna, com o agravante de sobre ela incidir
uma das maiores taxas de juros reais no mundo inteiro.
https://www.resistir.info/brasil/tmd_29jun18.html 5/15
06/11/2018 Teoria marxista da dependência
Quer dizer, remunerando a força de trabalho abaixo do seu valor e consumindo a energia
vital do trabalhador provocando seu desgaste prematuro. Isto, ao final, termina ampliando
a taxa de mais-valia, mas não simplesmente por outros expedientes e sim mediante a
violação do valor da força de trabalho. Em palavras simples, a super-exploração se
identifica com duas assertivas: onde se vive menos e pior é onde se trabalha mais! E se
vive menos porque se trabalha mais!
Segundo dados da OIT, nos países dependentes, desde o início de sua regulamentação, a
duração semanal média da jornada de trabalho historicamente tem estado em torno de
48h ou acima desse patamar, podendo chegar a 55 horas em certas atividades, em países
latino-americanos como El Salvador (ou em certas regiões do Brasil); nunca tendo se
estabilizado em torno das 40h em nosso continente, como aconteceu nas economias
centrais por volta da metade do século XX e que é o patamar que esse organismo
internacional que é a OIT preconizou ao ser criado no ano de 1917.
https://www.resistir.info/brasil/tmd_29jun18.html 6/15
06/11/2018 Teoria marxista da dependência
Ainda segundo dados da OIT, em nossos países o número de pessoas que seguem
trabalhando por decisão não voluntária após idade para se aposentar ou porque não
conseguem sobreviver com as pensões ou proventos e continuam trabalhando por
necessidade é de 48% para a força de trabalho masculina e de 28% para a feminina, ao
passo que nas economias centrais essa cifra é, respectivamente, de 19% e 12%. Embora
a crise esteja golpeando as condições de vida e trabalho também nas economias centrais,
este é um contraste que se mantém.
Sim, em todo o mundo capitalista. Mas aqui, novamente, de forma mais aguda. Segundo a
PNAD do IBGE [2] , a mulher trabalhadora – embora fonte do salário principal em 40%
dos domicílios no Brasil – recebe em média um terço a menos que o salário dos homens –
sem falar no trabalho doméstico não pago, fundamental para a reprodução da força de
trabalho e realizado pelas mulheres sob o patriarcado e o machismo. Por falar nisso, além
do fardo sexista na manutenção do próprio lar, o contingente feminino da classe
trabalhadora encontra nos empregos precários de empregada doméstica uma importante
fonte de ocupação – principalmente informal. Conforme o DIEESE, em 2011 havia 6,6
milhões de pessoas em atividade no emprego doméstico, sendo 92% mulheres.
https://www.resistir.info/brasil/tmd_29jun18.html 8/15
06/11/2018 Teoria marxista da dependência
O filme Que horas ela volta, estrelado por Regina Casé, retrata essa dupla opressão de
classe e de gênero, que reforça as relações de super-exploração. Esse também foi tema
de um ensaio de Vania Bambirra, fundadora da TMD, em seu livro inédito "Emancipação
da mulher: tarefa de ontem, hoje e amanhã". E para além da esfera salarial, há que
lembrar que o Brasil nos assombra ao despontar na quinta posição no índice mundial de
feminicídios, ranking que tem cinco países latino-americanos entre os seis de maior
incidência de assassinatos contra a mulher. Isso não é mera coincidência. Essa é mais
uma face do capitalismo dependente, que exacerba todas as formas de opressão.
sob a segunda escravidão, era outorgada a Lei de Terras para impedir que o povo negro
tivesse acesso aos meios de produção, com as classes dominantes mirando o cenário
futuro do "trabalho livre". Já sob as relações de assalariamento, um numeroso exército
industrial de reserva fez pender sobre o povo negro o duplo fardo da extração de mais-
valia em condições de super-exploração, conjugada com o racismo estrutural que a
reforça e amplia. Estudos demonstram que em nosso país, atualmente, as mulheres
negras recebem 40% a menos do que trabalhadores brancos que ocupam a mesma
função. E que, no último ano, o aumento da informalidade, que fez crescer os "bicos" ou
trabalho por conta, cresceu em 17,6% entre as mulheres negras, contra 10% entre as
mulheres brancas.
Ainda que aqui seja geral para a classe trabalhadora, a super-exploração no Brasil tem
cor e o racismo é um dos veículos da opressão redobrada no país. Além de salários mais
baixos, a população negra sofre o racismo estrutural com a violência do Estado. Estudo
da ONU aponta que das 30 mil pessoas assassinadas todo ano em nosso país 23 mil são
jovens negros. Para além dessas estatísticas, que captam tendências intrínsecas, essa é
uma realidade que se sente na carne e na alma no dia a dia: quando a Aracruz Celulose
manda passar a patrola sobre terras quilombolas para fazer grilagem , quando uma
liderança negra como Marielle Franco é brutalmente assassinada, quando a burguesia diz
que lugar de negro é no elevador de serviço… Essa é a face nua e crua do Estado
dependente reproduzindo o racismo estrutural que afiança ainda mais as relações de
super-exploração e faz essa engrenagem andar. A revolução latino-americana, na qual se
inscreve a transformação estrutural do Brasil como possibilidade histórica, terá de dar voz
e poder aos trabalhadores e trabalhadoras, ao povo negro, aos indígenas e às mulheres
ou não será revolução.
https://www.resistir.info/brasil/tmd_29jun18.html 10/15
06/11/2018 Teoria marxista da dependência
No livro, apontamos que com o advento a partir dos anos 1970 da subfase do
imperialismo que é a mundialização do capital, teve lugar uma terceira cisão, que se
agrega às demais. Ela consiste de uma cisão entre as funções dinheiro-mundial e capital-
dinheiro e a apropriação de lucros fictícios. Quer dizer: nossas economias não são as que
determinam os fluxos internacionais de capitais (função capital-dinheiro), nem controlam
moedas-fortes como dólar ou euro (função dinheiro-mundial). E sob a importância
crescente da valorização do capital mediante a apropriação de lucros fictícios (derivativos,
outros produtos financeiros), se incrementam também as transferências de valor e as
contradições na reprodução do capital em nossos países. Theotonio dos Santos, em suas
https://www.resistir.info/brasil/tmd_29jun18.html 11/15
06/11/2018 Teoria marxista da dependência
A TMD, como toda a melhor tradição que parte do método de Marx, não é nem pode ser
uma teoria encastelada na academia. Ela é, sim, uma arma da crítica, que se coloca à
disposição dos movimentos populares, dos sindicatos e partidos da classe trabalhadora,
pela construção de uma alternativa de poder que abra caminho para a superação do
capitalismo, pela nossa emancipação humana. Interpretar criticamente a realidade para
poder transformá-la é, pois, uma tarefa de todos e todas nós.
Como sabemos, erros de análise levam no mais das vezes a erros políticos. Explicar e
denunciar o caráter da super-exploração em nossos países, nesse sentido, não é
pressupor nem almejar uma "exploração normal" e sim demonstrar como e porque aqui a
espoliação e exploração da classe trabalhadora e dos recursos naturais são ainda mais
acirradas, exigindo uma política que aponte uma saída para além da sociedade da
mercadoria. Ao mesmo tempo, não devemos deixar de tentar impor diques de contenção
para o incremento desse caráter super-explorador, mas sempre tendo como horizonte que
https://www.resistir.info/brasil/tmd_29jun18.html 14/15
06/11/2018 Teoria marxista da dependência
sua superação se dará somente com a superação do capitalismo mediante nossa ação
consciente e transformadora, por outra maneira de organizar a vida em sociedade.
29/Junho/2018
[1] Mathias Seibel Luce, Teoria marxista da dependência , Ed. Expressão Popular, S. Paulo, 2018, 271p., ISBN
9788574433209
[2] PNAD = Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios; IBGE = Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
[3] Refere-se à CEPAL, Comissão Económica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe.
https://www.resistir.info/brasil/tmd_29jun18.html 15/15