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Gian Luigi De Rosa, Katia de Abreu Chulata,
Francesca Degli Atti e Francesco Morleo (Orgs.)
2017
Processo de Avaliação
Toda submissão foi inicialmente analisada pelos coordenadores dos simpósios, que
avaliaram possíveis problemas de autoria (como plágio, republicação, etc.). Num
segundo momento, os coordenadores atribuíram a submissão aos revisores, para que
estes conduzissem o processo de avaliação, para poder publicar os trabalhos.
© 2017 Università del Salento ‐ Lecce
http://siba.unisalento.it
eISBN 978‐88‐8305127‐2 (electronic version)
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Comitê Permanente do SIMELP
Maria Célia Lima-Hernandes - Universidade de São Paulo
Maria João Marçalo - Universidade de Évora
Roberval Teixeira e Silva - Universidade de Macau
Vânia Cristina Casseb-Galvão - Universidade Federal de Goiás
Gian Luigi De Rosa - Università del Salento
Katia de Abreu Chulata - Università degli Studi G. D’Annunzio di Chieti/Pescara
Apresentação........................................................................................................................1
Introdução............................................................................................................................3
PARTE I
V
Ecos da remarcação do parâmetro do sujeito nulo no PB: o caso das sentenças
existenciais
Juliana Marins, Maria Eugenia Lammoglia Duarte.....................................................203
VI
SIMPÓSIO 16 – ESTUDOS ESTILÍSTICOS
Coord: Guaraciaba Micheletti - Ana Elvira Luciano Gebara
Palavra, discurso e estilo: Tradição e transgressão em João Ubaldo Ribeiro
Denise Salim Santos........................................................................................................425
Diálogos interculturais entre os irmãos Grimm e Chico Buarque: revisitando narrativas
infantis clássicas
Cristiane Schmidt............................................................................................................441
VII
SIMPÓSIO 31 – DIFUSÃO DO PORTUGUÊS: DIFERENTES CONTEXTOS,
MÚLTIPLAS REALIDADES
Coord: Regina Pires de Brito - Neusa Barbosa Bastos
Português falado na Áustria
Cláudia Fernandes........................................................................................................643
Língua portuguesa: difusão, variedades e identidade em estudantes cabo-verdianos e
portugueses
Maria Helena Ançã.......................................................................................................659
Língua portuguesa e ensino: lusofonia em perspectiva historiográfica
Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos, Regina Pires de Brito.....................................677
VIII
SIMPÓSIO 38 – ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E SOCIOCULTURAIS EM
LÍNGUA PORTUGUESA
Coord: Anna Christina Bentes - Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Interrupção e reformulação na entrevista sociolinguística, prática de poder?
M. Emília Pereira..........................................................................................................851
IX
Manutenção e perda das línguas e culturas italianas de imigração no eixo Rio de
Janeiro-Juiz de Fora
Mario Luis Monachesi Gaio........................................................................................1027
Contando a própria identidade – uma narrativa quilombola como projeto colaborativo
Rita Tamara Vallentin..................................................................................................1041
A dêixis de pessoa na comunidade de Siricari-PA: uma variação do português brasileiro
Walkíria Neiva Praça, Cristiane Torido Serra...........................................................1055
X
PARTE II
XI
Poetas anônimos e produções marginais periféricas: processos de autoria e subjetivação
Eliane Aparecida Bacocina.........................................................................................1443
Confluências entre poesias de João Cabral de Melo Neto e Carlos de Oliveira
Kelly Beatriz do Prado................................................................................................1461
Bandeira, Drummond e a nova poesia brasileira
Raquel Beatriz Junqueira Guimarães.........................................................................1481
“Os fios finos” e o “largo leito”
Assunção de Maria Sousa e Silva................................................................................1499
Angélica Freitas e Paulo Henriques Britto: uma conversa entre duas formas de vida
Ana Paula El-Jaick......................................................................................................1517
XII
Estilística e futebol: um estudo das crônicas ludopédicas de Nélson Rodrigues
Claudio Cezar Henriques............................................................................................1751
XIII
O Portunhol/Portuñol na poesia de Fabián Severo
Cristiana Crinò............................................................................................................2027
XIV
A equipolência linguística em Mário de Andrade e seu herói sem caráter
Sâmella Michelly Freitas Russo..................................................................................2279
PARTE III
XV
A plausibilidade interpretativa de relações retóricas sobrepostas na articulação de
orações no português brasileiro
Maria Beatriz Nascimento Decat................................................................................2475
Orações adverbiais reduzidas de gerúndio: o ensino do português e a perspectiva da
gramática discursivo-funcional
Ana Maria Paulino Comparini, Lisângela Aparecida Guiraldelli.............................2495
XVI
As interfaces digitais e suas contribuições para as práticas de letramento infantil na
contemporaneidade
Fernanda Maria Almeida dos Santos; Verena Santos Abreu......................................2715
Mutiletramentos e o ensino na educação de jovens e adultos
Helenice Joviano Roque-Faria, Márcia Regina Boni.................................................2737
O letramento acadêmico em arquivologia: a proposta do projeto sesa à luz dos estudos
bakhtinianos
Eliete Correia dos Santos, Maria de Fátima Almeida................................................2757
XVII
Estudo preliminar sobre subjetividade e identidade do aluno-leitor numa sequência
didática do gênero poema
Cássia Rodrigues Dos Santos......................................................................................2935
Representações e experiências de ensino e aprendizagem de língua portuguesa:
contribuições para a inserção social de povos indígenas
Douglas Da Silva Jorge; Mariney Pereira Conceição...............................................2953
A avaliação enquanto dispositivo de subjetivação: a prova de redação do enem em
questão
Luciana Kuchenbecker Araújo; Sinval Martins De Sousa Filho................................2969
“Ser Professor” ou “Tornar-se Professor” de língua portuguesa: experiências no
Pibib/UEM
Ana Maria De Carvalho; Maria Do Socorro Da Silva Batista...................................2987
As contribuições da sequência didática para a constituição do aluno como sujeito autor
em produções textuais
Valéria Schmid Queiroz...............................................................................................3003
O cuidado de si na educação: em questão o caso Isadora Faber
Cristhiane Gomes Dos Santos.....................................................................................3023
Subjetividade e formação do leitor: o problema da ausência da leitura literária nos livros
didáticos do Ciclo 1 do Ensino Fundamental
Sheila Oliveira Lima....................................................................................................3039
A língua portuguesa nos modos de subjetivação escolar do povo Akwén-Xerente (Jê)
Sinval Martins De Sousa Filho....................................................................................3057
Constituição de subjetividades no discurso e no letramento escolar
Paulo Roberto Almeida...............................................................................................3073
XVIII
Seleção lexical neológica nas redes sociais: uma proposta para o ensino da língua
Maria de Fátima Fernandes Bispo..............................................................................3221
Discursos contra-hegemônicos em A varanda do frangipani, de Mia Couto:
apropriações de estratégias de construção narrativa em favor do real animismo africano
Flavio García..............................................................................................................3237
Advérbios em -mente na língua portuguesa: análise de propriedades sintático-
semânticas
Gessilene Silveira Kanthack........................................................................................3261
Alguns problemas específicos na aquisição do português por falantes de línguas
próximas (espanhol)
Marianne Akerberg.....................................................................................................3281
Estímulos à construção de padrões cognitivos voltados ao desenvolvimento de
habilidades de leitura por meio de fenômenos de significação em textos de humor
Sayonara Abrantes de Oliveira Uchoa.......................................................................3297
Mato Grosso: de descrição a nome - um percurso enunciativo
Taisir Mahmudo Karim...............................................................................................3317
O paralelismo sintático na produção de textos acadêmicos
Tania Maria Nunes de Lima Camara, Lília Alves Britto............................................3329
A linguagem inovadora de “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto,
pelo viés do jornal
Marta Rodrigues.........................................................................................................3347
Aspetos sobre o conjuntivo no português de Angola
Maria João Marçalo, João Muteteca Nauege............................................................3365
Mas era isso que eu queria dizer!
Darcilia Simões...........................................................................................................3379
XIX
Aspectos interacionais e culturais da ordem no ensino de português como segunda
língua para estrangeiros (PL2E) no meio militar
Viviane Bousada Caetano da Silva.............................................................................
A crônica esportiva: como instrumento de interação social para o aluno
internacional
Isabel Cristina Pozzi...................................................................................................
Formação de professores em Timor-Leste: o desafio da escrita em língua
portuguesa
Joice Eloi Guimarães..................................................................................................
XX
O jeitinho brasileiro: culturema e a formação de unidades fraseológicas.
Heloisa da Cunha Fonseca.........................................................................................
Campo lexical ‘vestuário’: verbetes do dicionário informatizado analógico de
língua portuguesa
Michelle Machado de Oliveira Vilarinho...................................................................
A valorização do contexto e do pragmatismo das expressões idiomáticas nos
dicionários monolíngues e bilíngues
Maria Luisa Ortiz Alvarez...........................................................................................
XXI
A progressão referencial em textos de alunos da educação profissional: um olhar
linguístico para o ensino médio integrado.
Juzelly Fernandes Barreto Moreira............................................................................
A formação do professor de Língua Portuguesa: o lugar da Educação Literária
Ana Isabel de Sousa Ferreira Pinto............................................................................
Representações e usos das formas de tratamento por rececionistas de hotel
Sara Morgadinho Lopes..............................................................................................
O gênero relatório nas aulas de língua portuguesa: um instrumento semiótico para
o agir profissional nos cursos superiores de tecnologia
Sueli Correia Lemes Valezi.........................................................................................
Estudo das marcas do boletim de ocorrência e aplicação no ensino do gênero na
formação profissional de policiais
Denise dos Santos Gonçalves......................................................................................
O trabalho docente com a leitura em uma entrevista de autonconfrontação simples:
possibilidades de compreensão e formação do agir do professor
Sandra Memari Trava, Luzia Bueno...........................................................................
XXII
A leitura de textos multimodais em uma instituição de ensino técnico e
tecnológico: Uma comparação entre as práticas e o dito por diversas vozes
Aline Rezende Belo Alves............................................................................................
Da “manta de retalhos” ao “tapete de arraiolos”: Transformação de tecedura
também aplicável à escrita académica
Maria da Graça L. Castro Pinto.................................................................................
Os desafios da leitura e da escrita
Sabrina Alvernaz.........................................................................................................
PARTE IV
PÔSTERES
Língua materna ou língua estrangeira?
Uma experiência com o ensino do português brasileiro na formação inicial do curso de
letras
Sonia Merith-Claras.........................................................................................................
XXIII
XXIV
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V SIMELP - Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Apresentação
2
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p3
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Introdução
2
Análise de Discurso quanto da História das Ideias Linguísticas, analisam conceitos que
gravitam nestes dois campos para apresentar resultados de pesquisas que tenham como
temática a língua portuguesa e as políticas de línguas. O Simpósio 47 - Português do
brasil: história, contatos e variedades busca refletir sobre a natureza e o papel social da
língua, percebendo a sua constituição e os usos vinculados a questões de cunho
ideológico e às formas pelas quais são estabelecidos e se relacionam; trata-se de
questionar a ocorrência do acesso à diversidade linguística e de entender, sob o enfoque
das lutas e dos conflitos socioculturais, as questões ao redor da constituição, dos usos e
do domínio das linguagens, considerando o próprio e o não-próprio do Português do e
no Brasil.
O Simpósio - 25 Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas
locais reúne pesquisas no campo da geolinguística, um campo do conhecimento
linguístico que emergiu no final do século XIX a partir dos estudos de Georg Wenker
(1852-1911) e de Jules Gilliéron (1854-1956). Este Simpósio é dedicado às pesquisas
relacionadas à descrição de variantes linguísticas locais e ao estudo da língua de forma
geral.
A proposta do Simpósio 38 - Estudos sociolinguísticos e socioculturais em
língua portuguesa é apresentar estudos sociolinguísticos de base variacionista e/ou
funcionalista e/ou interacional, assim como aqueles dedicados à linguagem de base
sociocultural, cujo foco central são as análises de fatos e/ou fenômenos linguístico-
culturais na língua portuguesa. No Simpósio 44, intitulado Diversidade dialetal,
multilinguismo e contato de línguas: implicações para a gramática das línguas naturais
na perspectiva dos estudos linguísticos formalistas, propõem-se estudos sobre o
desenvolvimento linguístico no que diz respeito ao contato de dialetos em situação de
estratificação social, ao processo de escolarização e à situação de acesso tardio ao input
linguístico. O Simpósio 31 - Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas
realidades - tem como objetivo aprofundar aspectos que evidenciem o papel da língua
portuguesa como instrumento construtor da identidade linguística, cultural e social do
sujeito em países de oficialidade lusófona (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste), em outros espaços de presença
significativa de comunidades lusofalantes, além de regiões como Galiza e Macau, por
exemplo.
3
O Simpósio 34 - A neologia no século XXI – casos do quotidiano analisa,
partilha, discute quais são as opções lexicais dos falantes e escreventes,
independentemente dos corpora (literários, científicos, jornalísticos etc.).
O Simpósio 35 - Linguagem e cognição – aspectos teóricos e metodológicos da
perspectiva sociocognitiva reúne pesquisas que, no campo da Linguística, dedicam-se à
problemática cognitiva, presente de forma cada vez mais incisiva e promissora entre os
estudos da linguagem. Trata-se de esforços teóricos e empíricos que dizem respeito aos
aspectos funcionais, gramaticais, e socioculturais da relação entre linguagem e
cognição.
O Simpósio 36 - A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e
a memória do futuro está inscrito no domínio da Análise de Discurso e reúne pesquisas
sobre políticas de língua nos espaços nacionais, evidenciando as tensões entre a língua
imaginária nacional e as outras línguas faladas nos territórios.
O Simpósio 50 - A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-
discursivas apresenta artigos que discutem a força argumentativa/retórica de quaisquer
elementos da língua portuguesa, como, por exemplo, o fenômeno da dêixis, os índices
de modalização, os processos de referenciação, as modalidades de polifonia (discurso
direto, indireto, indireto livre), os marcadores prosódicos (ritmo, entonação...), as
escolhas lexicais, os arranjos sintáticos, os conectivos, etc.
Uma reflexão sobre o atual estágio da Estilística e o seu lugar nos estudos da
linguagem é oferecida pelo Simpósio 16 - Estudos estilísticos, cujo objetivo é resgatar o
lugar da Estilística nos estudos que se têm voltado basicamente para enfoques
discursivos e textuais. À questão do estilo e à sua análise é dedicado o Simpósio 29 -
Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos, que oferece um leque de reflexões
teóricas baseadas na análise estilística de corpora ligados à literatura, à canção popular,
mas levando também em consideração outras tipologias de produção discursiva – blog,
youtube, divulgação científica.
O Simpósio 54 - Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
reúne contribuições de diferentes orientações teórico-metodológicas que enfocam as
relações que se podem estabelecer na contemporaneidade entre fenômenos e processos
de natureza linguístico-discursiva, sociocultural e político-ideológica relacionados à
globalização, mobilidade gradual e escalar de identidades, formas e usos linguístico-
discursivos nos espaços-tempos produzidos pela globalização socioeconômica e
linguística, e de metareflexividade orientada para a emergência e circulação dessas
4
identidades, formas e usos nos espaços-tempos focalizados, inclusive os espaços-tempos
engendrados nas/pelas mídias digitais.
5
Outra perspectiva é aprofundada no Simpósio 49 - Língua, discurso, identidade,
cujo eixo são as relações existentes entre língua (dimensão sócio-ideológica), discurso
(atualização da linguagem em diversas materialidades e multimaterialidades) e
identidade (construção histórica e cultural), apresentadas a partir da análise de corpora
ligados aos domínios discursivos em suas diversas esferas.
Novas perspectivas em relação às produções poéticas em língua portuguesa são
oferecidas pelas contribuições do Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua
portuguesa: diálogos críticos, que completa a seção com estudos que propõem novos
olhares sobre grandes poetas da língua portuguesa.
6
pesquisas orientadas para a construção de uma gramática descritiva que leve em
consideração o uso da língua nas interações interpessoais, já o Simpósio 48 -
Abordagem funcional no ensino da língua portuguesa, propõe estudos que visam ao
desenvolvimento das competências comunicativas dos alunos através da interação e da
análise linguística vinculada aos contextos de uso.
Três Simpósios exploram questões ligadas à formação para adultos. O Simpósio
10 - Entre a linguística e a didática: a formação do professor de português e o
conhecimento linguístico aborda a questão da importância da formação linguística dos
professores de Português L1 e L2, enquanto o Simpósio 27 - Formação do professor de
pl2/ple: perspectivas de lá e de cá, dedicado à formação dos professores de PLE, mostra
interesse específico em relação às práticas de ensino e seus pressupostos pedagógicos na
perspectiva de um amplo intercâmbio de experiências didáticas. A formação
profissional é enfocada no Simpósio 51 - O ensino de língua portuguesa na formação
profissional, que analisa o ensino da língua para fins específicos, investigando os
gêneros textuais das diversas áreas de trabalho e os gêneros textuais ‘multimodais’.
Uma reflexão acerca da influência das inovações tecnológicas nos modos de
leitura e escrita contemporâneos e o estudo das novas tipologias de textos são o ponto
de partida do Simpósio 11 - Ensino-aprendizagem de português e os
(multi)letramento(s). Apresentam-se, aqui, contribuições para a reflexão sobre a relação
entre a multiplicidade de letramentos da época contemporânea e o ensino linguístico. O
surgimento de novos gêneros discursivos relacionados às tecnologias e às novas práticas
sociais de linguagem é pesquisado no Simpósio 42 - Gêneros, mídias e ensino de
português como língua materna. A importância das Tecnologias de Informação e
Comunicação no desenvolvimento de novos rumos para a prática do ensino de línguas
volta a ser discutida também em outro Simpósio, dedicado ao projeto Teletandem e
transculturalidade, o Simpósio 18 - Telecolaboração e PLE: contribuições do projeto
Teletandem, que analisa as implicações dessa nova modalidade de aprendizagem, com
ênfase na dimensão cultural das interações linguísticas entre os participantes.
Outras abordagens didáticas são desenvolvidas em Simpósios especializados,
como o Simpósio 33 - A abordagem acional do português como língua estrangeira: o
ensino baseado em tarefas que apresenta pesquisas na área do ensino-aprendizagem por
tarefas e da definição de seu âmbito teórico e conceitual; o Simpósio 28 - Desafios e
estratégias tradutórias para o século XXI e a tradução aplicada ao ensino de PLE abre
7
a discussão a um amplo leque de questões e debates ao redor da tradução e de seus usos
em contextos didáticos.
O Simpósio 17 - O ensino de português para estrangeiros no Brasil: da
imigração europeia do século XIX às migrações internacionais do XXI inscreve-se no
contexto de uma análise historiográfica das fases do ensino do PB para estrangeiros e
examina as práticas e a produção de materiais de Português para estrangeiros.
O Simpósio 21 - Ensino de língua portuguesa e a construção de subjetividades
no discurso escolar é dedicado à interrelação entre o ensino da língua portuguesa e os
processos discursivos de constituição do sujeito e da subjetividade dentro do espaço
escolar. Os contributos do Simpósio 58 - O ensino da leitura e da (re)escrita em língua
portuguesa privilegiam os pressupostos da Linguística Sociointerativa educacional e
tratam da questão da mediação do professor no desenvolvimento das capacidades de
leitura e escrita dos alunos.
Em conclusão, os vocábulos da língua portuguesa são o foco dos Simpósios 22 e
37. O Simpósio 22 - Questões semântico-sintáticas na pesquisa e no ensino da língua
portuguesa procura elaborar estratégias de abordagem semiótico-funcional no ensino da
língua portuguesa, com referência às implicações da seleção vocabular na estruturação
sintática dos enunciados. O Simpósio 37 - Estudos do léxico e de dicionários e ensino
de português, afinal, se baseia na discussão relativa à função dos dicionários
pedagógicos no ensino-aprendizagem dos aspetos formais e semânticos do léxico do
Português.
8
PARTE I
ESTUDOS LINGUÍSTICOS
SIMPÓSIO 2
CONFIGURAÇÃO DO SISTEMA PRONOMINAL
DO PORTUGUÊS
COORDENADORES
Roland Schmidt-Riese
(Katholische Universität Eichstätt-Ingolstadt)
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 2 - Configuração do sistema pronominal do português, 13-28
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p13
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este trabalho analisa as relações de concordância estabelecidas entre as formas
pronominais a gente e nós com o núcleo verbal em sentenças do português brasileiro, e
o licenciamento de formas anafóricas e pronominais que estabelecem uma relação de
correferência com esses pronomes. A análise tem como objetivo discutir o estatuto das
formas a gente e se, em termos de composição de traços, bem como argumentar a favor
da ideia de diferentes gramáticas atuando no licenciamento de formas anafóricas e
concordância verbal para as formas pronominais de primeira pessoa no português
brasileiro. Mais precisamente, iremos argumentar a favor de que formas como nos, bem
como a manifestação de morfologia de número no verbo, fazem parte de uma gramática
periférica, nos termos de Kato (2013, 2005). Ainda, recorremos à distinção entre duas
variedades do português brasileiro apresentadas em Costa & Silva (2006), que propõem,
baseados em diferentes padrões de concordância verbal encontrados no português
brasileiro, em comparação com o português europeu, a existência de duas modalidades
para o português brasileiro: PB1 e PB2. Em nossa análise, sugerimos que a variedade
denominada PB2, pelos autores, pode ser inferida como parte da gramática periférica.
1. Introdução
1 UFRPE/UAST, Endereço: Avenida Gregório Ferraz Nogueira, s/n – CEP: 56909-535, Serra Talhada,
Brasil. E-mail: dorothybsb@gmail.com.
2 UFRPE/UAST, Endereço: Avenida Gregório Ferraz Nogueira, s/n – CEP: 56909-535, Serra Talhada,
Brasil. E-mail: sedrins@gmail.com.
13
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
14
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Menuzzi (2004) afirma que a combinação entre a gente, nós e as suas possíveis
formas anafóricas (se e nos, respectivamente) seria restringida por um conflito entre
condições semânticas e gramaticais, pelo fato de a gente apresentar especificação
gramatical [3pes, sing], e ter uso muito comum como [1pes, plu] no PB, como está
ilustrado em (3) abaixo:
15
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Traços gramaticais
Menuzzi aponta que, embora a gente possa entrar em relações anafóricas com
pronomes de 1ª pessoa, “essas relações só são permitidas quando o contexto não é local
– quando há alguma ‘distância sintática’ envolvida” (p. 108), ou seja, essas relações
apresentam restrições de LOCALIDADE, como mostra o contraste entre (5a) – (5c):
16
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
o problema com a relação entre a gente e nos em (5a) não pode ser inerente à
“combinação” destas formas, já que essa combinação é possível em (6):
o problema da relação entre a gente e si também não pode ser causado pela
“combinação” destas formas, como mostra a gramaticalidade de (3a) – si e se
seriam essencialmente iguais.
17
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
18
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(11) a. Eu me vi no espelho.
b. Eu me vi no espelho depois que o João me lavou.
c. Eu se vi no espelho depois que o João *se lavou.
19
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
20
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Quadro 1 - PB1: combinação de traços binários de pessoa e número (Costa e Silva, 2006)
singular plural [+pessoa, -número] -o
I Cant-o Cant-a/cant-a-mos [+pessoa, +número] -mos
II Cant-a Cant-a-m [-pessoa, -número] -a
II Cant-a Cant-a-m [-pessoa, +número] -m
Quadro 2 - PB2: distinção apenas marcada para pessoa (Costa e Silva, 2006)
singular plural
I Cant-o Cant-a
II Cant-a Cant-a
II Cant-a Cant-a
21
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
3 Os autores assumem para as duas variedades do PB (PB1 e PB2) que no domínio do sintagma nominal
a manifestação de morfologia de número se dá apenas no determinante. Não iremos discutir o padrão de
concordância nominal no PB aqui, mas salientamos que essa consideração dos autores merece ser
rediscutida, principalmente dentro de perspectivas que preveem a atuação de uma gramática periférica em
que padrões de concordância nominal de número que se enquadram no que prediz a gramática normativa
podem ser licenciados.
22
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(15) a. Nós nos vimos na TV. (PB1 – morfema singleton+morfologia acarretada pela
configuração especificador-núcleo)
b. ??Nós nos viu na TV. (PB1 – violação da marcação morfológica no verbo em
configuração especificador-núcleo)
c. Nós se vimos na TV. (PB1)
d. Nós se viu na TV. (PB2)
23
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
gramáticas. Em linhas gerais, a ideia que queremos defender é a de que a forma nos,
bem como o padrão rico de concordância verbal encontrado em algumas variedades do
PB, são formas exclusivas do que Kato (2005, 2013) denominou de gramática
periférica, onde se situa aquilo que o falante aprendeu sobre a sua língua por instrução
formal.
De acordo com Kato (2013), o conhecimento linguístico de um adulto é
constituído de uma gramática nuclear (aquela resultante da marcação de parâmetros),
resultado da aquisição espontânea da língua, e um sistema periférico de regras, que
corresponde ao conhecimento acumulado pela escolarização, onde se situa aquilo que o
falante aprendeu, em situação formal de instrução. Esse sistema periférico iremos tratar
como gramática periférica, em oposição à gramática nuclear.
Ainda de acordo com Kato (2013), existe uma distância entre a língua falada,
vernacular, aquela da fase de pré-letramento, e a língua escrita visada pela escola como
objeto de ensino. O conhecimento adquirido a partir da aprendizagem da língua escrita
corresponderia ao conhecimento que expande o conhecimento do falante para além do
domínio da gramática nuclear. Assim, iremos assumir aqui que formas linguísticas
restritas ao universo da escrita, ausentes na língua falada, fazem parte da gramática
periférica do falante.
Nesse sentido, Duarte (2013) apresenta um quadro dos pronomes pessoais do
português brasileiro, verificando o uso em relação às modalidades falada e escrita do
português. O quadro é apresentado a seguir:
Quadro 3 – Pronomes pessoais no português brasileiro – fala e escrita (Duarte, 2013: 120)
Pessoa Número Formas Formas átonas na fala e na escrita Formas tônicas
tônicas oblíquas na fala
e na escrita
Nom. Acus. Dat. Indef. Formas
nominativas
sem função
acusativa e
oblíquaº
sg. Eu me me mim, comigo
P1 pl. nós nos nos nós, conosco
a gente a gente°
sg. tu, você te, lhe, te, ti, contigo
o, a, se lhe você°, si,
consigo,
você mesmo
P2 pl. vós, vos, vos vós, convosco
vocês os, as, se lhes vocês°, vocês
mesmos
24
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
De acordo com o quadro acima, as formas nós e nos seriam as formas restritas à
escrita, sugerindo que são formas mais produtivas pela gramática periférica da língua,
uma vez que não estariam presentes, a priori, na língua falada. Observando ainda o
mesmo quadro, podemos verificar que para a forma nós, tanto nos quanto se poderiam
servir como formas correferentes, uma vez que tanto se quanto nos são formas previstas
na gramática da escrita.4
4 A questão que surge é se uma construção como “Nós se vimos na TV” seria uma construção da
gramática da escrita, que tende a ser aproximada com o uso normativo da língua. Não iremos desdobrar a
discussão aqui, mas entendemos que a gramática periférica, nos termos em que estamos tomando aqui, e
baseados nos trabalhos de Kato (2005, 2013), não deve ser entendida como gramática que apresenta
apenas estruturas tidas como dentro de norma prescritivas.
25
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Da mesma forma, para o pronome inovador a gente, pode-se prever tanto nos,
quanto se, uma vez que a gente é uma forma presente na modalidade falada e na
modalidade escrita.
A agramaticalidade dos exemplos em (17) não seriam, portanto, fruto de uma
combinação equivocada entre forma pronominal e item correferente.
O que irá entrar em jogo é a combinação dessas formas com padrões de
concordância verbal. Retomando a proposta de Costa e Silva sobre PB1 e PB2,
sugerimos que essas duas variedades correspondem ao que estamos chamando aqui de
gramática periférica e gramática nuclear, respectivamente. O PB1 represente a
variedade do PB com uma morfologia de número manifestada no verbo, que é uma
característica da variedade mais conservadora de uso da língua. O PB2, por sua vez, é a
variedade sem manifestação de morfologia de número no verbo, característica mais
presente na língua falada, espontânea.
Com base nisso, retomamos o quadro 4 abaixo, adicionando as possibilidades de
manifestação de morfologia de número no verbo, quando o sujeito é uma das formas
pronominais de primeira pessoa do plural:
A forma viu, como forma verbal utilizada para sujeitos com traço de número
plural, é uma forma específica da língua que entra no quadro acima apenas para ilustrar
o uso de qualquer verbo sem a morfologia visível de número. É a forma que representa
o padrão de concordância da gramática da fala, ou gramática nuclear. Já a forma vimos,
é uma forma especializada para a escrita, ou decorrente da aprendizagem de uma
variedade do português com morfologia rica de número. Com a inserção das formas
verbais no quadro acima, as possibilidades de combinação entre os pronomes
nominativos, as formas correferentes e a forma verbal ficam restritas.
A forma viu é incompatível com as formas nós e nos, essas últimas pertencentes
ao uso de uma gramática periférica, e outra da gramática nuclear.
26
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
6. Conclusão
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Brito, D. B. S. 2009. O se reflexivo no português brasileiro. 2009. 113 f. Tese
(Doutorado em Linguística) – Pós-Graduação em Letras e Linguística, Universidade
Federal de Alagoas, Maceió.
27
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Embick, D.; Noyer, R. 2001. Movement operations after syntax. Linguistic Inquiry, n.
32, p. 555-595.
Menuzzi, S. M. 2000. First person plural anaphora in Brazilian Portuguese: chains and
constraint interaction in binding. In: Costa, J. (ed.). Portuguese Syntax: new
comparative studies. Oxford: Oxford University Press, p. 191-240.
28
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 2 - Configuração do sistema pronominal do português, 29-48
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p29
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Ediene PENA-FERREIRA5
RESUMO
Pretende-se, neste trabalho, discutir os diferentes usos dos pronomes pessoais,
especificamente o uso de pronomes retos na função de complemento e uso de pronomes
oblíquos na função de sujeito, tidos como característica do português brasileiro (PB)
que o diferencia do português europeu (PE). As ocorrências encontradas nos fizeram
questionar se esses usos são peculiares do PB ou ocorrem ou ocorreram no PE. Para
responder a esses questionamentos, analisamos corpora de textos escritos e orais do PE
e do PB. Para observação de textos escritos utilizamos como referência o Corpus do
português, organizado por Mark Davies e Michael Ferreira (2006), o COMTELPO
(Corpus Mínimo de Textos Escritos da Língua Portuguesa), organizado por Figueiredo-
Gomes e Pena-Ferreira (2006), e o Projeto Fly (Forgotten Letters Years 1900-1974)
(2008). Os dados dos textos orais foram retirados do CRPC - Corpus de Referência do
Português Contemporâneo e do CTOPS - Corpus de Textos Orais do Português
Santareno. Os dados de diferentes variedades da língua portuguesa nos permitem dizer
que o uso do pronome oblíquo na função de sujeito e do pronome reto na função de
complemento é uma característica da língua portuguesa popular, encontrada em épocas
remotas, embora com pouca frequência, e em diferentes regiões. Ocorre que, no
português brasileiro, devido à formação histórico-cultural, essa característica se
acomodou e se desenvolveu, a ponto de muitos linguistas apontarem esse uso como
traço diferenciador do PE e do PB.
1. Primeiras palavras6
5 UFOPA – Instituto de Ciências da Educação/Programa de Letras, Av. Marechal Rondon, s/n. Caranazal
68040-090, Santarém-Pará- Brasil. E-mail: ediene.ferreira@ufopa.edu.br.
6 Este trabalho é parte do meu estágio de pós-doutoral, realizado no ILTEC (Instituto de Linguística
Teórica e Computacional) de Lisboa/PT, sob orientação do prof. Lachlan Mackenzie. Para a realização da
pesquisa tive apoio da CAPES.
29
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(01) nós adotamos ele... então... no caso ele é o irmã::o... sobri::nho né?7 (*k27-EP)
(02) deram... contribuição com dinhei::ro e::... e:: para mim puder ter essa embarcação...
(FK8DL)
Esses usos nos levaram a refletir sobre o paradigma dos pronomes pessoais e
sobre a mudança como o fenômeno inerente a todo sistema linguístico. Surgiram,
portanto, as seguintes indagações: a) Estaria ocorrendo uma mudança de paradigma nos
pronomes pessoais, considerando essa alternância de uso entre os pronomes retos e
oblíquos? b)Essa mudança caracterizaria somente o português brasileiro ou
caracterizaria também o português europeu? c) A alternância, pronomes retos
funcionando como complemento verbal e pronomes oblíquos funcionando como sujeito,
ocorreria em todas as pessoas ou haveria uma “preferência” por uma pessoa do
discurso? d) Essa mudança se caracterizaria como uma inovação ou como uma
tendência existente e já prevista no sistema da língua portuguesa?
Para responder a esses questionamentos, analisamos corpora de textos escritos e
orais do PE e do PB. Para observação de textos escritos utilizamos como referência o
Corpus do português, organizado por Mark Davies e Michael Ferreira (2006)8, o
COMTELPO (Corpus Mínimo de Textos Escritos da Língua Portuguesa), organizado
por Figueiredo-Gomes e Pena-Ferreira (2006), e o Projeto Fly (Forgotten Letters Years
1900-1974) (2008)9. Os dados dos textos orais foram retirados do CRPC - Corpus de
Referência do Português Contemporâneo10 e do CTOPS - Corpus de Textos Orais do
Português Santareno.
Além dos textos produzidos por falantes de Portugal e do Brasil, analisamos
ainda textos orais de falantes de língua portuguesa de Angola, Cabo Verde, Guiné-
Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Goa, Macau, Timor-Leste.
Antes de analisarmos os dados, faremos uma breve abordagem dos pronomes na
tradição gramatical.
30
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
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Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
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Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
PRONOMES PRONOMES
NÚMERO PESSOA RETOS OBLÍQUOS
Primeira Eu Me, mim, comigo
Singular Segunda Tu Te, ti, contigo
Terceira Ele/ela Se, si, consigo, o,
a, lhe
Primeira Nós Nos, conosco
Plural Segunda Vós Vos, convosco
Terceira Eles/elas Se, si, consigo, os,
as, lhes
(Adaptado de Abaurre, 2006)
Entretanto, usos do PB vêm mostrar que essa tabela não corresponde à realidade do
português falado no Brasil. Primeiro porque a 2ª pessoa do singular e 1ª do plural
coocorrem com, respectivamente, as formas “você11” e “a gente”, e a 2ª pessoa do plural
está em desuso, sendo substituída por “vocês”, conforme observamos em (03), (04) e
(05), respectivamente.
(03) em quanto tempo... em quanto tempo... aconteceu tudo isso? de você
conhecer... casar... ter filho? (DM02-EP)
(04) não... a gente passemo:: mais ou menos uma semana de:::... uma semana
eh::: pra conhecer a família... aí fiquemo na casa dela... passeando (DM01-EP)
(05) é como foi? vocês passaram um TEMpo lá... ou só conheceram mesmo?
(DM01-EP)
Segundo porque essa divisão não corresponde, de forma estanque, ao papel sintático
exercido pelo tipo de pronome. Ou seja, pronomes retos nem sempre exerceram o papel
11 Em Portugal, a forma de tratamento você nem sempre é considerada muito educada, e, ainda hoje, fora
da intimidade, não é raro associá-la a alguém que não é muito culto e tem falta de educação. “[O valor] de
tratamento igualitário ou de superior para inferior (em idade, em classe social, em hierarquia), e apenas
este, [é] o que você possui no português europeu normal, onde só excepcionalmente – e em certas
camadas sociais altas – aparece como forma carinhosa de intimidade. No português de Portugal não é
ainda possível, apesar de certo alargamento recente de seu emprego, usar você de inferior para superior,
em idade, classe social ou hierarquia” (Cunha e Cintra, 1984). Quase trinta anos depois de estas palavras
terem sido publicadas, a perspectiva por elas descrita ainda se mantém em Portugal, embora no passado a
atitude fosse, em certos meios, mais exacerbada quando se encarava o empregado de você (e não o uso da
3ª pessoa do singular com um interlocutor) como traço de falta de trato em situações de comunicação.
Não é possível identificar com segurança a origem factual das expressões em apreço, mas parece
plausível que você fosse usado com serviçais, entre os quais se incluiriam, por exemplo, moços de
estrebaria, que tinham um trabalho rude. (conversa informal com o prof. João Saramago, maio de 2014)
33
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
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Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Esses usos foram constatados também por Cruz (1991), que estudou a aldeia de
Odeleite, uma comunidade que pertence ao concelho de Castro Marim, de que dista 14
km, à comarca de Vila Real de Santo António e ao distrito de Faro. A aldeia de
pescadores, lavradores e canastreiros tem forte influência moura. Cruz (1991, p. 107)
observou que o pronome sujeito nós é muito frequentemente substituído pela expressão
a gente, como é próprio da linguagem popular:
E constatou que o pronome vós, pelo contrário, é sempre substituído por bocê(s),
bossemecê(s)
35
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(26) “eu acho que hoje em dia, com a proliferação de doutores que a gente tem”
(Angola)
(27) “essas crianças que a gente tem, ao ficarem em casa só por dois meses”
(Moçambique)
(28) “sim, a gente sabe.” (Guiné-Bissau)
(29) “bom, formada, depende do que você entende por formada, porque, escola
secundária, como digo” (Angola)
36
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(32) “eu e o padre Horácio é quem acompanhámos ela até ao hospital” (Angola,002)
(34) “do, do jogo, não é, a, de, da corrida, muita gente começou a criticar a ela.”
(Moçambique, 005)
(36) “eu tive de sair mesmo da minha família e arranjar um cantinho que é para mim
poder viver sozinho trabalhar normalmente, para mim poder sobreviver.” (Angola, 004)
14 Un phenomena remarquable est celui de l’inversion des pronoms (...). Le pronom sujet s’emploie au
lieu d’accusatif: chamar eles “chamá-los” ou “chamá-los a eles”. (Vasconcellos, 1970, p.132)
37
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(37) “De tarde quando volta do serviço, a Carmela chama ele na cerca” (O Besouro e a
Rosa, 1923)
(38) “Toda vez que eu canto ele” (Auto da Compadecida, 1955)
(39) “Terror sem fundamento, bem se vê... lavaram ela, Dona Carlotinha se deu ao
trabalho de acender o fogo” (Grande Serão Veredas, 1956)
(40) “Que é para o estrangeiro respeitar ele” (Viva o povo brasileiro, 1984)
38
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Quantidade 10 02 105 05 00 14
de ocorrência
39
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(48) O leva eu
Minha sodade
eu tambem quero ir
Minha sodade
40
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Todas essas letras apresentadas são de autores brasileiros, mas encontramos uma
letra escrita por um autor português chamado Cabuenha.
(50) Leva eu pra Angola e
Leva eu pra Angola e a
Pra saber dos fundamentos
Entender capoeira (http://capoeiralyrics.info/Songs/Details/345)
41
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Talvez o pouco uso do pronome ‘tu’ deva-se ao fato de este pronome estar em
concorrência e em coocorrência com o pronome ‘você’.
42
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Talvez isso se explique por ser a 3ª pessoa o referente constante no discurso. Como se
tratam de narrativas, o tema é sempre sobre um referente e esse referente aparece
frequentemente na narrativa. O fato de haver uma incidência do pronome reto em
detrimento do oblíquo, nesta função, pode ser explicado por ser aquele mais
transparente que este; é como se o falante precisasse resgatar integralmente o referente,
vejamos um exemplo:
(59) a gente tinha feito uma aposta... logo que nós vimos ela
Nesta narrativa, o falante está contando como conheceu a namorada. Ele e o
amigo fizeram uma aposta para ver quem sairia primeiro com a garota. Retomar esse
referente por meio do pronome reto parece torná-lo mais presente na narrativa, veja a
diferença:
(59) a gente tinha feito uma aposta... logo que nós vimos ela
(59a) a gente tinha feito uma aposta... logo que nós a vimos.
(60) eu conheci ela através de um colega nosso (ela = esposa, traços [+animado]
[+humano])
(61) quando eles comiam... que as cobra iam pegar eles... eles corriam (eles = os patos,
traços [+animado], [-humano]
(62) ... aquele coisa do do cigarro... não tem aquele pacotinho... de maratá... ela gosta de
mascar ele (ele = cigarro, traços [-animado])
(63) só o que nós devemos pedir é pra Deus que abençoe eles...
43
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(64) u::m rendimento vamos dizer assim ao final do mês... que dava suporte pra mim
viver comecei a sentir o sabor da independência nesse tempo...
(65) agora eu vou amornar uma água pra mim tomar um BA::nho
Parece haver uma fixidez nesse tipo de construção, e o falante parece não
reconhecer o mim como sujeito para segunda oração, mas sim como complemento da
primeira. As sentenças (63) e (64) podem ser representadas pela estrutura abaixo:
44
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
que o pronome escolhido seja um pronome do caso reto. Mas o falante talvez não
interprete a sentença dessa forma, a interpretação dada parece ser a seguinte:
Esses casos são uma clara demonstração de que o pronome mim faz parte da
primeira oração, atraído pela preposição para, não sendo, portanto, sujeito da próxima
oração. O fato de o verbo da segunda oração estar reduzido à forma nominal infinitiva
contribui, acreditamos, para que o falante não considere necessária a presença de um
sujeito expresso, como, talvez, acontecesse se o verbo estivesse flexionado na forma
finita. Não encontramos, por exemplo, construções em que o pronome mim substituísse
o pronome eu iniciando sentenças, como em * “mim não quero mais nem contato com
ele”. No discurso espontâneo, por menos escolarizado que seja o falante, esse uso não
ocorre, o que nos faz pensar que a substituição do pronome oblíquo pelo pronome reto,
na 1ª pessoa, esteja condicionada à presença da preposição para e de verbo no infinito.
A forma [para mim] parece ser uma espécie de construção pré-fabricada.
O termo construção pré-fabricada é aqui usado no sentido que Bybee (2010)
utilizou para itens semanticamente semelhantes que se agrupam em torno de um
exemplar de alta frequência – um pré-fabricado. Unidades pré-fabricadas são definidas
por Bybee (2010) como qualquer expressão convencionalizada, como propões Erman e
Warren (2000). Para estes, os pré-fabricados linguísticos (prefabs) são combinações,
utilizadas por falantes nativos, de duas ou mais palavras de preferência a combinações
alternativas que poderiam, se não houvesse convencionalização, ser equivalentes.
Os pré-fabricados acabam sendo formas de identificação cultural de uma
comunidade particular, incorporando-se ao repertório linguístico por meio da alta
frequência. A frequência, para Bybee (2003), é um importante mecanismo para a
formação da gramática, pois, segundo a autora, as construções gramaticais são rotinas
motoras automatizadas que podem ser organizadas para que o discurso se torne mais
fluente. Essa automatização ocorre devido à repetição, por meio da qual sequências de
unidades, anteriormente independentes, tornam-se uma só.
A repetição constante leva à habituação e à emancipação. Segundo Bybee
(2003a, p.154), habituação é o processo pelo qual um organismo não mais responde a
estímulos repetidos, perdendo, assim, sua força semântica; e emancipação é o processo
45
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
pelo qual a função instrumental original assume uma função simbólica inferida do
contexto no qual ocorre15.
Dessa forma, podemos dizer que as construções gramaticais são modificadas ou
mantidas por meio do mesmo mecanismo, a repetição, atendendo às necessidades
cognitivas e comunicativas do falante. Para dar conta dessas necessidades, as gramáticas
das línguas naturais não podem ser concebidas como estáticas e acabadas. O seu aspecto
não-estável manifesta-se por meio da variação e da mudança. Assim, dizemos que a
gramática está em um contínuo processo e que sua estrutura linguística apresenta uma
relativa estabilidade, pois, sincronicamente, a gramática exibe, de modo simultâneo,
padrões regulares, rígidos, e padrões que não são completamente fixos, mas fluidos.
Em outras palavras, podemos dizer que, ao lado de padrões relativamente fixos e
resistentes a alterações, há, na gramática, formas que tendem a assumir novas funções,
padrões novos que se estabilizam, resultando numa reformulação da gramática. Isso
ocorre porque as gramáticas adaptam-se às necessidades de expressão dos usuários. É a
situação comunicativa que motiva, em parte, a estrutura da gramática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abaurre, M. L. M. 2006. Gramática: Texto: Análise e Construção de sentido: volume
único. São Paulo: Moderna.
Alves, Joana Lopes. 1965. A linguagem dos pescadores da Ericeira. Junta Distrital de
Lisboa.
Cruz, Maria Luisa Segura da. 1991. O falar de Odeleite. Instituto Nacional de
Investigação Científica. Lisboa.
Davies, Mark and Michael Ferreira. (2006-) Corpus do Português: 45 million words,
1300s-1900s. Available online at http://www.corpusdoportugues.org.
15 […] habituation, the process by which an organism ceases to respond at the same level to a repeated
stimulus.(…). […] the process of emancipation, by which the original instrumental function of the
practice take on a symbolic function inferred from the context in which it occurs. (BYBEE, 2003, p. 154)
46
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Erman, B.; Warren, B. 2000 The idiom principle and the open choice principle. Text.,
20(1), p.29-62. Fox, Gwyneth.
Oliveira, Margarida Gama de. 1992. Malhada Velha (um lugar da serra no concelho de
Penela): Estudo etnográfico, linguístico e folclórico. Edição da Cámara Municipal de
Penela.
47
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 2 - Configuração do sistema pronominal do português, 49-69
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p49
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
INDEXICALIDADE E DEFINITUDE.
SOBRE OS DETERMINANTES DEFINIDOS EM PORTUGUÊS MEDIEVAL
Sarah BÜRK16
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é analisar o uso dos determinantes definidos em
português medieval. Os procedimentos seguidos no trabalho para analisar o emprego
dos determinantes definidos são os seguintes: num primeiro passo, apresentarei
considerações teóricas sobre a noção de definitude e a função semântica dos
determinantes definidos em português contemporâneo. Num segundo passo, definirei os
métodos e os critérios da análise seguindo a tipologia da teoria dos conceitos nominais e
da determinação elaborada por Löbner (2011) desde um ponto de vista universal. Num
terceiro passo, apresentarei os resultados da análise de um corpus de amostra de
português medieval. O uso dos determinantes definidos em português medieval
corresponde basicamente ao uso previsto pela teoria de Löbner (2011).
1. Introdução
49
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
50
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
2. Considerações teóricas
51
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
52
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
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Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
segunda entidade da mesma noção categórica caso esta última for ligada a outra
entidade possessora que não a primeira, veja-se o meu vinho e o teu vinho no exemplo
(2d).
Embora os artigos definidos expressem nada mais que o valor de definitude, os
artigos demonstrativos e os artigos possessivos articulam, além do valor de definitude,
um valor indexical. Por este motivo, tanto os artigos demonstrativos como os artigos
possessivos podem ser considerados, então, determinantes definidos marcados
semanticamente em comparação com o artigo definido, que não tem valor indexical.
Ainda, os artigos demonstrativos e os artigos possessivos podem ser agrupados sob o
término de artigos deíticos, tal como proposto por Mira Mateus et al. (1983). Para além
do nível semântico, a função dupla dos artigos deíticos reflete-se nas estruturas e
possibilidades sintácticas do português. Assim, no português europeu, os artigos
possessivos estão obrigatoriamente acompanhados pelo artigo definido, como visto em
o teu vinho em (1c). E, enquanto designarem um referente discursivo tópico, também os
artigos demonstrativos podem co-ocorrer com o artigo definido, veja-se o livro esse no
exemplo (3).
54
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
3. Método
Antes de começar a própria análise das funções semânticas dos artigos definidos
em português medieval, é preciso definir os métodos e os critérios básicos da análise.
Os determinantes definidos estão, maioritariamente, considerados na sua dimensão
pragmática, analisando sobretudo as funcionalidades diferentes do artigo definido e do
artigo demonstrativo, vejam-se por exemplo, de um ponto de vista global, as teorias de
Ariel (1990) e de Gundel et al. (1993) sobre os diferentes grãos de acessibilidade
referencial designada pelas distintas formas referenciais e as teorias respeitante à
funcionalidade pragmática dos determinantes demonstrativos de Himmelmann (1996) e
Levinson (2004), veja-se também a discussão do exemplo (4).
No entanto, os determinantes definidos manifestam claras diferenças nas suas
respectivas preferências no que se refere aos tipos nominais com os quais se combinam,
como demostrado por Fraurud (1996) e, recentemente, elaborado na teoria dos conceitos
nominais e da determinação nominal (concept type and determination theory) por
Löbner (2011), cujas categorias vamos aplicar à seguinte análise dos determinantes
definidos em português medieval. A partir de um ponto de vista semântico, Löbner
(2011) elabora uma tipologia funcional da interação dos determinantes nominais com a
semântica lexical dos nomes que introduzem. A teoria de Löbner (2011) parte da ideia
que se podem distinguir quatro tipos lexicais básicos no âmbito dos nominais. Os
55
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
56
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Brenner et al. (2014). Assim mulher pode representar um nome genérico na leitura
genérica e um nome funcional na leitura da relação conjugal designada por mulher no
sentido de mulher de alguém.
Löbner (2011) assume que as funções semânticas dos determinantes nominais
atuam sobre os tipos conceptuais dos nomes que introduzem. Assim, propõe que cada
tipo conceptual define uma ou várias formas de determinação inerentes à respectiva
configuração conceptual dos nomes. Denomina-se, então, determinação congruente o
facto de um nome estar determinado por um determinante nominal que está em sintonia
com o tipo conceptual básico do nome que acompanha.17 Consideramos, a seguir, as
configurações de determinação congruente no âmbito dos determinantes definidos.
Conforme descrito no procedimento acima, o artigo definido expressa o valor
semântico de unicidade e indica, portanto, que a entidade referida pelo sintagma
determinativo encabeçado por ele é inequivocamente identificável e única no universo
discursivo. Respeitante ao seu valor [+único], o artigo definido está considerado, então,
como determinante que está inerente aos conceitos nominais [+únicais] como os nomes
individuais e os (iv) nomes funcionais, vejam-se a lúa em (6ii) e o pai em (6iv). No
caso do artigo definido, no entanto, é necessário diferenciar entre o uso em singular que
expressa, de facto, a unicidade inerente à entidade e o uso em plural no qual o valor de
unicidade se perde. O artigo definido em plural, ao contrário, indica tal como os artigos
demonstrativos o valor de [–unicidade] da entidade referida e corresponde, portanto, aos
conceitos nominais [–únicos] como os nomes genéricos e os nomes relacionais, vejam-
se esta pedra em (6i) e este irmão em (6iv). Em consequência da realização positiva do
valor de relacionalidade, os nomes relacionais e os nomes funcionais prevêem também a
determinação por um artigo possessivo, vejam-se a tua mão em (6iii) e a minha cabeça
(6iv).
17 Embora Löbner (2011) integre na sua teoria também os determinantes indefinidos e quantificadores,
restrinjo-me nesta contribuição conforme ao propósito do estudo apenas das funções dos determinantes
definidos.
57
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
58
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
p. ex. Este pai já ligou ontem. / Os pais vão buscar os filhos às quatro da
tarde.
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Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
4. Análise
60
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
estrutural, entre (iii) o possessivo simples e (iv) o possessivo composto que inclui o
artigo definido; e, terceiro, os artigos demonstrativos distinguindo aí entre (v) o
demonstrativo proximal, (vi) o demonstrativo medial e (vii) o demonstrativo distal.
Como se pode ver no gráfico 1, mais de dois terços dos sintagmas
determinativos recolhidos estão encabeçados por um artigo definido, o que corresponde
a um total de 68% das ocorrências. Entre os 740 artigos definidos encontrados
predominam os artigos definidos em singular com 497 ocorrências em comparação com
243 ocorrências com artigo definido em plural.
Gráfico 1. Frequência por tipo de determinante definido
número de
ocorrências
definido 740 singular o, a 496
(68%) plural os, as 244
possessivo 212 simples meu(s), 116
(19%) minha(s), etc.
composto o(s) meu(s), 96
a(s) minha(s),
etc.
demonstrativo 141 proximal este/os, esta(s) 87
(13%) aqueste/os, 2
aquesta(s)
medial esse/os, essa(s) 1
distal aquele/os, 51
aquela(s)
∑ 1093 (100%)
Se bem que ocupem uma posição muito distante do artigo definido, os artigos
possessivos atingem a segunda maior frequência com um valor de 19% das ocorrências
em total. Das 212 ocorrências encontradas aparecem 96, aproximadamente a metade das
ocorrências, com artigo definido. Por último, constata-se no gráfico 1 que os artigos
demonstrativos são os determinantes definidos com menos frequência entre os
determinantes definidos no corpus, com um total de 13% das ocorrências. A maioria das
141 ocorrências dos artigos demonstrativos é constituída pelo demonstrativo proximal
com 89 ocorrências, das quais duas correspondem à forma medieval aqueste que
provem de uma univerbação do elemento deítico eccum e do demonstrativo iste. Em
segundo lugar, figuram os demonstrativos distais com 51 ocorrências. Quanto aos
demonstrativos mediais, apenas uma ocorrência foi recolhida.
Num segundo passo, os nomes cabeça dos sintagmas nominais complemento dos
sintagmas determinativos recolhidos foram anotados com informações sobre os
61
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
500
400
39.200
300
% 32.800
200 29.000 %
%
100 8.500
%
0
genérico individual relacional funcional
62
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(9) a. E o firmamẽtoindividual era como ceeo sobre as suas cabeças muy fremoso. (A visão
de Túndalo fol.134v.)
b. E entõ apareceo aly a vaca muy brava ẽ guisa que non querya per nẽhũa entrar
pella ponte. Enpero ouve-a de tomar ao pescoçofuncional. e ẽntrou cõ ella pella ponte. (A
visão de Túndalo fol.127v.)
(10) a. vinha e passou perdante elles hũa jogressa da çidade de Antiochia […] ẽ çima de
hũũ asnoi, ornada e affectada de muitos e grandes nobres ornamentos e sobre ella nom
pareçia, se nom ouro e pedras margaritas preçiosas e de gram vallor. […] E quando os
bispos, ẽ çima do asnoi cõ a cabeça descuberta e cõ tanta põpa e soberva a viram passar
[…] tornarom suas façes e seus rrostros atras (Vida de Tarsis fol.75r.-75v.)
b. E o bispo Nono outra vez tornou sua façe sobre seus giolhos, cõ grande desejo
sospirando e chorando ferindo seus pectos; todo o çiliçio de que era vestido de suas
lagrimas era molhado (Vida de Tarsis fol.75v.)
c. vy ẽ cabo dodef sg altargenérico hũa põõba de collor negra e chea e çercada de muita
çugidade e fedor, o qual fedor e çugidade eu nom podia soffrer (Vida de Tarsis fol.77r.)
63
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
137,5
110
82,5 105
95
55
27,5
8 35
0
genérico individual relacional funcional
100
80
60 78
40
43
20
5 17
0
genérico individual relacional funcional
(11) a. Eu andava per todos osdef pl mosteyrosgenérico pera veer e visitar todos osdef pl
padresgenérico e hirmããos e receber deles beencom e em todos os mosteyros era muy gran
fama de dom Payo monje. (Vida de Tarsis fol.82r.)
b. quando virõ aquello espantarõ-sse muito e el abryo osdef pl olhosrelacional e
começou de oolhar (A visão de Túndalo fol.124r.)
c. Rogo-te que me digas de quaes he estadem folgançarelacional tamanha e estedem
lugargenérico tam bóó. firmamẽto e estadem fontegenérico como ha nome. (A visão de
Túndalo fol.132r.)
64
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(12) a. E entõ começarõ de andar e viron grande espanto de teebras. e ouvirõ tam
grande volta que semelhava que todollosdef pl firmamẽtosindividual —> genérico da terra se
moviã. (A visão de Túndalo fol.129v.)
b. E aqueldem Lucifelindividual—> genérico era atam grande que sobejava per todallas
outras bestas em grandeza. (A visão de Túndalo fol.131r.)
65
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
(13) Quantas horas pensades que esta molher está dentro ẽ ssuaposs camaragenérico—
>relacional, ẽ sse ornamentar e affectar, lavando e affremosentando seuposs rrostrofuncional,
untando-o de muitos e desvayrados unguẽtos pera seer desejada de todos e pareçer bẽ ao
mundo e nõ seer nem pareçer torpe e fea aosdef seusposs amadosrelacional, que oje pareçẽ e
cras nõ som? (Vida de Tarsis fol.76r.)
66
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
5. Discussão final
67
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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In: Doris Gerland; Christian Horn; Anja Latrouite; Albert Ortmann (Org.). Meaning and
Grammar of Nouns and Verbs. Düsseldorf: dup. p. 21-48.
Dryer, Matthew S. 2013. Definite Articles. In: Matthew S. Dryer; Martin, Haspelmath
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Giusti, Giuliana. 1997. The categorial status of determiners. In: Liliane Haegeman
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Löbner, Sebastian. 2011. Concept type and determination. Journal of Semantics, n.°28.
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68
Simpósio 2 – Configuração do sistema pronominal do português
Mira Mateus, Maria Helena (Org.). 1983. Gramática portuguesa. Coimbra: Almedina.
69
SIMPÓSIO 6
ETIMOLOGIA E LINGUÍSTICA HISTÓRICA DA LÍNGUA
PORTUGUESA
COORDENADORES
RESUMO
Trabalho de natureza sincrônica e diacrônica que descreve e analisa a variação do
complemento [de+infinitivo]~[ø+infinitivo] em cinco períodos da língua portuguesa, a
saber, português arcaico, português clássico, português setecentista, português
oitocentista e português moderno contemporâneo. Mediante a recolha de dados dos
cinco períodos analisados identificou-se os fatores internos da adjacência/não
adjacência, classe de verbos, tempo verbal, modo verbal e pessoa gramatical que estão
imbricados na relação da complementação infinitiva portuguesa.
Metodologicamente partiu-se do presente para o passado, retornando depois ao presente
à maneira de Labov (1972c) e utilizando para a análise quantitativa dos dados o
Programa “WordSmith Tools”.
Sincronicamente descreveu-se o complemento infinitivo variável
[de+infinitivo]~[ø+infinitivo] e seus fatores condicionantes em cada sincronia
analisada. Verificou-se que o fenômeno ocorre em todas as fases da língua portuguesa,
sendo mais recorrente na fase arcaica. Uma das razões aventadas para essa alta
ocorrência é o elevado índice de elementos ruptores que aí se apresentam.
Diacronicamente verificou-se que o fenômeno é estável, e ao longo da história do
português está condicionado por um contexto estrutural específico adjacência/não
adjacência, bem como por uma determinada classe de verbos, aqui rotulados de
verbos transitivo-modais. Observou-se, também, que o número de verbos regentes,
assim como as estruturas infinitivas preposicionadas decrescem com passar do tempo,
mas não desaparecem.
1 UFMG/Faculdade de Letras. Rua rio pomba, 882, CEP 30720-290, Carlos Prates, Belo Horizonte –
Minas Gerais – Brasil.dorale230@yahoo.com.br
73
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
74
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Os corpora
75
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
também apresenta variação do complemento infinitivo, com e sem a preposição de, sem
que essa presença/ ausência interfira no seu significado.
Português Oitocentista
(3a) “... a soberba cavaleira, de uma formosura invejável na Circássia, devia de
ser a esposa raptada de algum grão-vizir; ...” (Amor de Salvação,Camilo Castelo
Branco: 20).
(3b) “...e demonstre que o romance filosófico deve ser assim alinhavado ...”
(Amor de Salvação, Camilo Castelo Branco: 24).
Também no corpus do português oitocentista ocorre a variação do complemento
[de+infinitivo]~[Ø+infinitivo]. Nas obras dos escritores desse período é corrente a
referida variação, principalmente, junto a verbos como dever e precisar, sem que a
presença/ausência da preposição, nestes contextos, modifique o significado dos verbos.
Português Setecentista
(4a) “.... e chorosos olhos em Natália e depois levantando-os ao Céu, prometeu
de propor estes desejos ....” (Novelistas e Contistas Portugueses, Manuel Bernardes:
270).
(4b) “... dar satisfação à parte ofendida e alívio à sua consciência gravada,
prometeu pagar o que se lhe demandava. O raro amor...” (Novelistas e Contistas
Portugueses, Manuel Bernardes: 274).
Português Clássico
(5a) “...afeiçoada ao gesto belo e tenro, deseja de comprar-vos para genro”
(Lusíadas, Camões, I-16).
(5b) “E mais lhe diz também que ver deseja” (Lusíadas, Camões, I-63).
76
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Português Arcaico
(6a) “...suptamente começaron de ouvir trovões...” (Narrativas dos Livros de
Linhagens, José Mattoso: 80).
(6b) “...E começou rei Ramiro entom seu corno tanger, e começou chamar sua
gente pelo corno que lhe acorressem,...” (Narrativas dos Livros de Linhagens, José
Mattoso: 58).
Os fenômenos lingüísticos variáveis sob análise são registrados em todas as
fases da língua portuguesa. Deve-se dar destaque ao fato, já comprovado, de que a
língua é variável em todos os seus períodos.
TABELA 1 - Percentual do total geral de ocorrências das estruturas [de+infinitivo] e [Ø+infinitivo] nos
cinco períodos analisados
77
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
1800
1600
1400
1200
1000
[de + inf.]
800 [Ø + inf.]
600
400
200
0
PA PCL PSE PO PMC
PA
24%
30% PCL
PSE
PO
11%
LEC
11% 13%
11% LOC
78
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Sobre a adjacência
79
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
A maioria dos autores que tratou da variação infinitiva afirma que esta depende
de certos verbos/alguns verbos/determinados verbos. Dentre eles Barreto (1914),
Carneiro Ribeiro (1950), Said Ali (1964), Almeida (1965), Maurer Jr. (1968), Dias
(1970), Pontes (1973), Bynon (1983), Vitral (1987), Mattos e Silva (1989), Kury
(1985), Beth Levin (1993), Madureira (2000), Neves (2000), Bechara (2001).
Levando-se em conta o significado, os resultados obtidos revelam que a quase
totalidade dos verbos listados nos corpora pesquisados pode ser incluída na classe dos
verbos denominados “sensitivos”, expressando deliberação, modalização, freqüência,
benefício, dentre outros. Compartilham ademais, características de “modalidade” e de
“auxiliaridade”, sobretudo no período arcaico.
Do ponto de vista semântico, estes verbos compartilham “aspectos modais” e do
ponto de vista sintático, compartilham características transitivas. Assim sendo, pode-se
propor para essas classes de verbos o rótulo de transitivo-modais. Observou-se ao longo
do trabalho que esta é a classe verbal que admite a variação do complemento infinitivo.
Após a análise dos verbos nas cinco fases da língua, observou-se que para todos
os verbos regentes de complemento infinitivo variável, predominaram o tempo
“pretérito” (perfeito e imperfeito), o modo indicativo e a terceira pessoa gramatical
(singular/plural). Estes fatores estão presentes tanto nas estruturas [de+infinitivo],
quanto nas estruturas [ø+infinitivo].
Os verbos cujos complementos infinitivos são variáveis ao longo da história do
português ocorrem preferencialmente no “pretérito” do modo indicativo e na terceira
pessoa. Estes fatos comprovam que as classes de verbos, nas quais prevalece o tempo
pretérito, a terceira pessoa gramatical e o modo indicativo são mais estáveis com o
passar do tempo. Na verdade estes fatores tendem a se manter, mas não os verbos, nos
quais ocorrem, pois estes têm comportamento diferenciado ao longo do tempo: alguns
desaparecem, outros se mantêm como transitivos, outros se desmodalizam, outros, por
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Considerações finais
81
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
82
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
3) que a língua dos períodos pretéritos é mais variável que a dos períodos mais
recentes;
4) que a variação depende de alguns itens lexicais;
5) que a regência não é um fenômeno fixo na língua;
6) que a preposição de é altamente produtiva no sistema;
7) que nem sempre a variante mais recorrente permanece;
8) que a variação se processa gradualmente;
9) que a mudança se dá em ritmos diferentes;
10) que o complemento é selecionado segundo a classe verbal.
De tudo que foi dito não há como deixar de reconhecer a importância das
análises descritivas que privilegiam os períodos pretéritos da língua, sobretudo aqueles
mais remotos no tempo, pois é aí que se observam muitos fatos que justificam
fenômenos lingüísticos que são à primeira vista, estigmatizados na língua hodierna,
especialmente na modalidade oral.
Apresentamos uma análise que teve como objetivo descrever e sistematizar a
variação do complemento [de+infinitivo]~[ø+infinitivo] dos verbos transitivo-modais
em cinco períodos da língua portuguesa. Isso só foi possível por termos trabalhado com
dados históricos empíricos que configuraram na medida das limitações inerentes a toda
pesquisa histórica, um corpus coerente, condição sine qua non para toda a discussão
apresentada ao longo do trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Almeida, Napoleão Mendes de. 1965. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. São
Paulo: Editora Saraiva.
Atkins, S. et al. 1992. Corpus design criteria. In: Literary and Linguistic Computing, 7:
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83
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Kury, Adriano Da Gama. 1985. Novas Lições de Análise Sintática. São Paulo: Ática.
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Levin, Beth. 1993. English Verb Classes and Alternations. Chicago and London: The
University of Chicago Press.
Maurer JR., T.H. 1968. O infinitivo Flexionado Português. São Paulo: CIA Editora
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Said ALI, M. 1964. Gramática Histórica Da Língua Portuguesa. 3a Edição. São Paulo:
Edições Melhoramentos.
84
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Language Change In: Lehmann, W. P. & Malkiel, J. (Orgs.). Directions For Historical
Linguistics, Austin, University Of Texas Press.
85
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 6 - Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa, 87-104
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p87
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O escopo deste trabalho busca perseguir um panorama renovado da constituição do
léxico do português, no esteio e em homenagem ao conhecido texto de Joseph-Maria
Piel (1989), publicado originalmente em 1976. Diferentemente, porém, para poder ser
um trabalho renovado, ao invés das fontes formativas remotas no espaço europeu,
pretende-se observar no Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), recém-publicado (Cardoso
et al., 2014b), as denominações utilizadas pelos diferentes dialetos brasileiros, para
algumas respostas dos informantes a questões do Questionário Semântico-Lexical
(QSL), instrumento metodológico, utilizado por esse importante projeto dialetológico
nacional. Como se sabe, no que tange à constituição histórica do léxico do português,
podem-se atestar diversos processos formativos, relacionados a variadas motivações,
sejam de ordem intra ou extralinguística e, sobretudo, sócio-históricas. Para além da
presença de elementos latinos, peculiares às línguas românicas, algumas estruturas
léxicas – provindas de elementos não latinos – foram engendradas ou absorvidas no
inventário do português, em diferentes momentos da história, nomeadamente em seu
processo de transplantação para o Brasil, em que recrudesceram novas unidades lexicais
na língua, afluentes de elementos autóctones e africanos. Considerando a perspectiva
histórica e variacionista a que se filia esta pesquisa, propõe-se uma breve análise em que
se permita o reconhecimento da distribuição de algumas variáveis espaciais registradas
em algumas cartas e, em especial, informações sobre sua etimologia. Ademais,
considerou-se relevante investigar, através de uma análise qualitativa, a possibilidade de
identificar isoléxicas para algumas áreas temáticas observadas nas capitais brasileiras na
composição desse importante registro do espólio lexical brasileiro.
87
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
1 Cartas abertas
Decorrente das respostas à questão 15, com a formulação: “Durante uma chuva
podem cair bolinhas de gelo. Como chamam essa chuva?”, esse fenômeno obteve 6
(seis) variantes comprovadamente dialetais no espaço nacional:
1 Chuva de pedra ( chuva, latim pluvia; pedra, latim petra) – Mais comum na região
Sul, com maior expressão em Curitiba, com 50% das respostas. Presente, também, no
Centro-Oeste e, discretamente, no Sudeste. No Nordeste, só ocorre em Aracaju e em
88
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
89
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
escolaridade universitário, diz: “Tá caindo pedra de gelo. Agora, que fala mais na
televisão granito, não sei o que é, mas…”.
Essa questão remete para o que tem defendido Machado Filho (2014:271 e ss.)
que acredita que se deva alterar o conceito de variante lexical
para cada forma diferente de se representar, em um mesmo contexto um
mesmo valor significativo ou funcional, independentemente de as alterações
na forma terem origem fonética, fonológica, morfológica, sintática ou
discursiva.
Outras ocorrências únicas foram identificadas, que não representam
estatisticamente um dialeto, a exemplo de Chuva de rosa, em Belo Horizonte, e Chuva
de flor, em Campo Grande.
1.1.2 Orvalho
No que tange às respostas à questão 20, cuja formulação: “De manhã cedo, a
grama geralmente está molhada. Como chamam aquilo que molha a grama?”,
obtiveram-se 5 (cinco) variantes comprovadamente dialetais no espaço nacional:
orvalho, neblina, sereno, garoa e neve.
1 Orvalho (de origem obscura) – Reconhecida em todo Brasil, essa forma não pode ser
apontada como representativa de nenhuma região em especial, mas registra-se que tem
menor expressão em Porto Velho, Macapá, Maceió e Florianópolis, nas quais é
majoritário o uso de sereno.
2 Sereno (do latim serenus,a,um) – Presente em todas as capitais, tem maior ocorrência
em Florianópolis, com mais ou menos 80%, seguida de Salvador, Cuiabá, Rio Branco,
Manaus, Macapá, Natal e Goiânia, em que cujos usos ultrapassam os 50% das respostas
dadas. Apenas em Teresina, São Paulo e Rio de Janeiro, essa forma é pouco utilizada,
variando de 10% a 25%, mais ou menos.
3 Neblina (do espanhol neblina, cuja origem latina teria sido nebula)– Presente em todo
o Sudeste, a lexia ocorre, discretamente, no Norte e Centro-Oeste. No Nordeste, só foi
identificada em Teresina e em Maceió (maior índice nacional, algo em torno de 50%) e
no Sul, apenas em Curitiba. Interessará saber depois de levantados os dados dos outros
pontos, como se manifesta essa variante no interior do Paraná e nas regiões
circundantes.
90
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
4 Garoa (talvez do latim falado calugo, do latim caligo) – Apenas ocorre em duas
capitais do Sul e do Norte do País, a saber: Porto Alegre e Curitiba; Boa Vista e Porto
Velho, nesta com mais de 25% das respostas.
5 Neve (do latim nix, nivis) – No âmbito das demais variantes identificadas, o fenômeno
neve só se realiza em Vitória e Teresina, com menos de 10% dos informantes.
1.1.3 Neblina
91
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
1.2.1 Tangerina/Mexerica
92
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
94
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
5 Pendão (do espanhol pendón)– Em São Luís e Teresina, representa 50% dos usos. Em
Aracaju, 25%.
6 Buzo da bananeira (do latim bucinum) – É a forma categoricamnte reconhecida em
Maceió, com presença de 25% em Aracaju.
7 Mangai (forma não dicionarizada; talvez resultado metaplásmico de mangalho, ‘pênis
grande’) – Está presente em Recife e em Natal, apenas.
8 Pêndulo (do latim pendulus) – Com aproximadamente 25% dos usos em Aracaju e em
Fortaleza, aparece na fala de mais de 10% de Campo Grande.
9 Buzina (do latim bucina) – Variante soteropolitana, supera 30% dos usos dessa capital
baiana. Esta presente também em São Paulo, com 50%.
1.2.4 Aipim
No tocante à questão 50 “[...] aquela raiz branca por dentro, coberta por uma
casca marrom, que se cozinha para comer?”, obtiveram-se como respostas as seguintes
variantes:
1 Macaxeira (do tupi maka’xera) – Forma tópica do Norte e Nordeste, não ocorrendo
apenas em Salvador, nas capitais desta região. Não foi identificada no Centro-Oeste, no
Sudeste, nem no Sul, dividindo o Brasil em duas grandes partes.
2 Mandioca (do tupi mandi’okai) – É no Centro Oeste o resultado para 100% das
respostas, assim como em Belo Horizonte e São Paulo. É reconhecida, ainda, em parte
do Nordeste (Fortaleza João Pessoa Teresina), com discreta presença em Belém e Porto
Velho, na região Norte.
3 Aipim (do tupi ai’pi)– Tem um comportamento, por assim dizer, irregular no Brasil.
Presente em Natal (30%), diminui a incidência em Maceió e Aracaju (10%), é
categórica em Salvador, Florianópolis e Porto Alegre e com grande expressividade em
Vitória, Rio de Janeiro e Curitiba. Aparece discretamente em Belém.
Interessa reconhecer que, onde ocorre, mandioca é interpretada, exclusivamente
como ‘raiz venenosa’, em Porto Alegre e Florianópolis, no Sul; em Salvador, Aracaju,
Maceió, Recife, Natal e São Luís, no Nordeste; em Macapá Boa Vista, Manaus e Rio
Branco, também, no Norte. No restante do país não há unanimidade significativa para
esse item lexical, podendo ser interpretada como raiz venenosa ou não.
95
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
1.3 Fauna
96
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
1.3.2 Libélula
97
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
25%.
2 Helicóptero (do francês hélicoptère) – Variante majoritária em Goiânia, não é uma
forma muito disseminada no país. Está presente no Sul (Curitiba e Florianópolis) e em
São Paulo, único estado do Sudeste a registrar o vocábulo. Para além desses espaços,
aparece em Rio Branco e em Natal.
3 Bate-bunda (bater, do latim batere; bunda, do quimbundo mbunda) – Divide com
lava-bunda a hegemonia em Campo Grande, no Centro-Oeste. No Sul, apenas em
Curitiba, com 40% aproximadamente de uso.
4 Lava-bunda (lavar, do latim lavare) – É uma variante capixaba, no Sudeste, e
curitibana, no Sul. Em ambas as capitais a ocorrência se encontra acima de 25%.
Também acontece em Campo Grande, com antes visto, e discretamente em Goiânia.
5 Lava-cu (cu, do latim culus) – Teve ocorrência significante em Aracaju, com mais de
50%, exclusivamente.
6 Lavadeira (lavado + -eira) – Forma com distribuição espacial bastante irregular, é
encontrada em Porto Velho, no Norte, e muita expressividade no Rio de Janeiro, em que
representa 50% das ocorrências da capital. Acontece, ainda, em Vitória, com 25%,
aproximadamente.
7 Zigue-zigue (talvez de origem onomatopaica) – Característica do litoral nordestino,
ocorre algo em torno dos 75% em Maceió, em Natal e em João Pessoa. Em Aracaju,
Recife e Fortaleza sua presença é mais discreta. Não foi identificada em Salvador, em
Teresina, nem em São Luís.
8 Cigarra (talvez do espanhol cigarra) – Acontece no Sul, em Porto Alegre, onde é
variante mais utilizada (60%), no Sudeste apenas em São Paulo (30%) e em Vitória
(15%); para além de Belém e Macapá com 25%.
9 Jacinta (origem obscura) – Típica dos dialetos do Norte, só não é majoritária em Rio
Branco, onde representa 20% dos dados levantados. Não ocorre fora desse espaço
regional.
10 Cavalo (do latim caballus) – Variante que disputa com Libélula em Salvador a
seleção lexical para denominar esse inseto. No Nordeste, está presente também em
Recife.
11 Cavalo-do-cão (cão, do latim canis) – Só registrada em Rio Branco, com 60% das
ocorrências, e discretamente em Porto Velho (10%), no Norte, e em Recife (10%), no
Nordeste.
12 Cachimbal (talvez por analogia a cachimbau, conhecido como peixe-trombeta) –
98
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Registrada no QSL como Bicho de Fruta, a Carta L13 do ALiB é apresentada sob a
denominação de Bicho da goiaba. As variantes apuradas nas respostas à Questão 86
“[...] aquele bichinho branco, enrugadinho, que dá em goiaba, em coco?” foram as
seguintes:
1 Bicho da goiaba (bicho, do latim bestium; goiaba, talvez do tupi acoyaba) – Só não
ocorre em Rio Branco e em Recife, no Brasil. É variante hegemônica no eixo sul-
sudeste, sendo forma categórica em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, mas com
índices de uso bem elevados nas demais capitais dessas regiões. Em Vitória, onde exibe
menor expressividade, chega a 60% dos usos. No Nordeste, as maiores incidências são
em Aracaju, São Luís, Teresina e Natal, oscilando, respectivamente, desde 80% a 50%.
2 Larva (do latim larva) – Forma lexical de diferentes espaços nacionais. Ocorre no Sul,
com baixa incidência, em Florianópolis e Curitiba; Está no Sudeste, também com baixa
produtividade, em Belho Horizonte e Vitória; reaparece no Nordeste, com um pouco
mais de ocorrências, em João Pessoa, Natal e Fortaleza (algo em torno de 20% a 25%).
Também se manifesta no Norte, em Macapá, Manaus e Porto Velho, com baixa
99
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
incidência.
3 Tapuru (do tupi tapu’ru) – É evidentemente uma variante da região Norte, ocorrendo
com bastante expressividade em todas as capitais. No Nordeste, ocorre em São Luís
(25%), João Pessoa (40%), Maceió (30%) e em Recife, onde é de uso categórico
(100%).
4 Lagarta (talvez do latim *lacarta, pela forma padrão lacerta) – Percorre essa variante
o litoral brasileiro, desde Vitória até Fortaleza, não existindo apenas em Recife, que
como se viu só conhece o tapuru. A maior incidência é em Salvador, com mais de 60%
dos usos identificados. A menor, em Porto Velho (5%), única capital do Norte a exibi-
la.
5 Broca (do catalão broca) – Está muito discretamente presente em Macapá e Em Porto
Velho, no Norte do Brasil.
6 Gongolô (talvez do quimbundo ngongolo, ‘centopeia’) – É uma das mais utilizadas
formas em Porto Velho, com mais de 40%.
7 Bicho da fruta (fruta, do latim fructa) – Variante minoritária em Belém (10%).
8 Coró (origem obscura) – Forma majoritária do Centro-Oeste. 75% em Cuiabá e 60%
em Goiânia e em Campo Grande.
100
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Isso se pôde observar nos dados deste trabalho. Conquanto a base vocabular
histórica perpetue a etimologia latina que deu origem ao português, como se vê nos usos
reiterados de sereno, concha ou larva, resultados de acomodações fônicas, e mais
especialmente sua inexorável presença nos itens mais funcionais, em estruturas
locucionais, como as compostas pelos verbos assar, bater ou lavar, em assa-peixe,
bate-bunda e lava-cu, é curioso poder perceber que muitas dessas composições
dialogam com outras línguas com que o português esteve em contato no percurso de
constituição do português brasileiro, como no segundo dos exemplos acima, em que o
item bunda, tão usual no Brasil, se associa ao verbo latino para expressão referencial
variante bate-bunda, da forma padrão libélula. Ou, mesmo, em compostos com itens
lexicais de línguas autoctónes brasileiras, em especialdo tupi, como em bicho da
goiaba.
Ademais, no levantamento realizado, verifica-se que, para além do étimo latino,
muitas variantes advém de outras línguas românicas, como o francês, o catalão, o
castelhano, o italiano, e se mantêm, ainda hoje, em uso em solo nacional.
Interessante notar que das línguas do contato, em que foram majoritárias o tupi
antigo e o quimbundo na história, encontraram-se correspondências nesta investigação,
como as mais significativas. Quanto a esta última, Tinhorão (1997) já afirmava que,
mesmo muito cedo em Portugal, teria o quimbundo fortemente contribuído com a
composição lexical da língua, se considerada a
constância das referências a uma língua de negros (...) leva a imaginar que, se
tal forma corrompida de falar o português de mistura com termos africanos
chegou a constituir quase um dialecto na metrópole, alguma consequência
deve ter resultado de tal intercâmbio linguístico. E, na verdade, embora a
sintaxe portuguesa continuasse inatingida, pelo facto de as alterações da fala
de nego se terem circunscrito sempre à fonética e à morfologia da língua de
empréstimo, o léxico não deixaria de acusar, afinal, exemplos resultantes de
tão longa troca cultural (Tinhorão, 1997:377).
Obviamente, algumas unidades foram essencialmente construídas pela dinâmica
morfológica da língua e outras por processos onomatopaicos, a exemplo de zigue-zigue
ou tô-fraco, subordinados às chamadas competências lexicais de que se servem os
utentes da língua nesse processo de apropriação.
Para Correia (2004:42), a
capacidade de um falantes de uma língua compreender e produzir palavras
construídas novas, que não conhecia até então, é parcialmente semelhante à
101
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
4 Breve conclusão
102
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
projeto ALiB sobre as capitais brasileiras, com o intuito de, a título de amostragem,
identificar variantes lexicais utilizadas pelos utentes em algumas áreas temáticas
investigadas, com vistas ao levantamento de suas etimologias.
Pôde-se perceber como os contatos linguísticos ocorridos no Brasil no processo
de constituição do português deixaram marcas indeléveis no léxico, a exemplo de
elementos indígenas e africanos, mesmo em uso nos grandes centros urbanos
atualmente, assim como a tradição histórica se tem perpetuado, haja vista a presença de
elementos românicos, originalmente trazidos pelos portugueses, no processo de
transplantação da língua.
Espera-se que este pequeno trabalho possa contribuir para a difusão da variação
no Brasil, advertindo-se, em tempo, que só se poderão traçar isoléxicas mais precisas
quando os dados dos 250 pontos do AliB estiveram disponíveis para análise.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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of Lexicography, v. 17, nº 4, p. 429-439.
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Cunha, Antônio Geraldo Da. 1998. Dicionário Etimológico Nova Fronteira Da Íngua
Portuguesa. 2 Ed. Rio De Janeiro: Nova Fronteira.
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Ronco, Giovanni. 2004. Au delà des dictionnaires: les atlas linguistiques. International
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104
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 6 - Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa, 105-118
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p105
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1. O pecado original
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
início ao seu final destino. Havia também de preencher a vida de cada homem, de
presidir ao seu nascimento, ao seu crescimento e à sua morte” (Marques, 1964, p. 163).
Todos pareciam se submeter aos ritos da Igreja, às prescrições de
comportamentos de todas as ordens, aos seus julgamentos e sentenças, o que se pode
constatar se se recorrer ao espólio sobrevivente à ação corrosiva do tempo. Dentre esses
textos, podem-se citar, em língua portuguesa, os quatro manuscritos em português dos
Diálogos de São Gregório, editados por Mattos e Silva (1971) e por Machado Filho
(2008), um Flos Sanctorum do século XIV, editado por Machado Filho (2009), o Livro
dos Usos da Ordem de Cister, do início do século XV, editado por Sampaio (2013), o
Tratado de confissão, impresso do final do século XV, editado por Sousa (no prelo), o
Breue memorial dos pecados e cousas que pertencẽ ha cõfissã, impresso do início do
século XVI, editado por Nascimento (2010).
Todas essas produções textuais, que servem apenas de exemplo, já que a lista
completa seria desnecessária aqui,4 tinham o claro intuito de reforçar os ideais religiosos
e a submissão à autoridade eclesiástica, prescrevendo e descrevendo as condutas a fim
de instruir os homens para que não “condenassem” suas almas. Dessa forma, investigar
esse legado é uma tarefa muito profícua no empreendimento de reconstituição da
história da língua portuguesa, da cultura e dos movimentos sociorreligiosos que, a si, se
relacionavam.
Conhecendo-se bem o processo de edição dos documentos desse período, os
critérios editoriais adotados, os objetivos do editor, o público a que estava destinada a
edição e as características próprias do texto, é possível elaborar estudos de diversa
ordem, pois a edição elaborada com rigor filológico resultará em uma fonte de
informação social, histórica, linguística e cultural de um determinado povo em uma
determinada época, permitindo que, "à vista desarmada", conforme afirma Castro (1973,
p. 05), se possa aproximar dos textos medievais e de seus conteúdos.
Partindo desse princípio e de que o registro “do léxico de um dado período
[possibilita] a apreensão de sua história modelada pela dinâmica das comunidades
linguísticas em seus processos de socialização” (Machado Filho, 2003, p. 02), procurou-
se verificar como a ideia de pecado se manifestava lexicalmente na Idade Média
portuguesa.
106
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Das obras citadas, optou-se por circunscrever esta pesquisa ao Breue memorial
dos pecados e cousas que pertence(m) ha cõfissã, precisamente aos pecados
considerados mortais, utilizando-se para isso não apenas a edição de Nascimento
(2010), mas, ainda, o fac- símile da publicação original de 1521.
A escolha desse texto coaduna com o que defendia Mattos e Silva (2008, p. 09)
para a realização de pesquisas em Linguística Histórica, isto é, o material a ser
observado deve ser datado (datável) e localizado (localizável), no sentido em que se
possa com propriedade observar traços de variação e mudança.
O Breve Memorial adequa-se a essa perspectiva em função de suas características
ex-libris estarem patentes no corpus. Se se observar a figura 1, verifica-se que dados da
autoria, função e o momento de elaboração estão todos registrados:
Fonte: http://purl.pt/109
107
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
elaborada a mando do rei avisino, D. Manuel, e impressa por Germão Galharde, insere-
se no rol dos importantes documentos para estudos filológicos e paleográficos.
108
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
pecados capitais, se violou algum dos dez mandamentos, se pecou por algum
dos cinco sentidos (e, se a pessoa que se confessa é um padre, acrescenta-se
os doze artigos do clero) (Lopes, 2009, p. 349).
Assim, o texto de Garcia de Resende, para quem as questões morais, foram
edificadoras de sua visão de mundo, induz o penitente ao rito da confissão, sugerindo
logo de início, a oração que deve ser feita antes de adentrar a confissão, na qual se deve
suplicar por entendimento, memória e vontade.
Posto em joelhos – posição comum ao âmbito eclesiástico – o confessor, com o
rosto baixo e, no caso das mulheres, com o rosto coberto para evitar os escândalos
historicamente ligados a qualquer liberdade do gênero, necessita declarar a sua dor e a
sua culpa, para que fosse auferida ao seu ato a imagem da sinceridade.
Conforme a fórmula prevista em Lopes (2009), é anunciado no texto que o
memorial será apresentado em modo de perguntas auto avaliativas, para que o penitente
não incorra em algum esquecimento, registrando a consciência moral que devia ser
cultivada pelos homens, mancebos, velhos e viúvos no século XVI.
Consta no impresso quinhentista uma parte dedicada aos “dez mandamentos”,
aos “doze frutos do espírito”, às “bem-aventuranças” (e a outras informações
necessárias à manutenção de um comportamento que fosse aprovado pelas autoridades
nos bispados e arcebispados), todas acompanhadas de prescrição e orientação de guarda
e (ou) seguimento estritos (Nascimento, 2010). Apresenta ainda os cinco sentidos
corporais que ‘provocam pecado’, formalizados como verbos, tais como: ouvir, ver,
apalpar, cheirar, gostar e os substantivados como soberba, avareza, luxuria,, ira, gula,
inveja, preguiça, todos mortais.
Sobre esses tipos de pecados, o historiador medievalista Jacques Le Goff (1994,
p. 159) afirma que se formaram lentamente a partir do século V até o século XII,
momento em que os dogmas da Igreja se impunham no imaginário dos homens
ocidentais em função da supremacia da instituição religiosa, o que, provavelmente,
acarretou a manutenção dos pecados capitais.
Destarte, tendo em vista a relevância histórica, linguística e cultural desse
documento, produzido no período Renascentista, o presente trabalho visa apresentar um
extrato do vocabulário da obra, elaborado de acordo com os pressupostos da
lexicografia histórica, com o intuito de contribuir para o trabalho de reconstrução da
trajetória da língua portuguesa no período arcaico, objetivo principal do Projeto
109
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
110
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
111
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Figura 03 - Verbete-chave
112
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
113
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
E em posição átona:
114
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Por estar em posição intervocálica, a consoante surda p passa a sua homóloga sonora
b, o que geralmente ocorria. Assim: sŭpĕrbĭa>soperbia>soberba.
auareza – sf.( < lat. avarĭtĭa)g. ‘ação compulsiva pelo acúmulo de bens materiais’.
[xvi/bmpc/22-7]: Se per auareza trato mal a my ou ha molher e filhos ou criados
no comer e vestir ou pagua do seruiço.
A avareza é o segundo pecado mortal e para que não seja confundido com outra
falta, o autor caracteriza cuidadosamente o avaro, aquele que não dá do que tem a quem
deve e trata mal a si ou a mulher ou aos filhos ou criados, no comer, no vestir ou no
pagamento do serviço.
Grafada auareza, observa-se que assim como em auaro, deuo, seruiço, o <u>
tem valor consonântico equivalente a <v>, consoante inexistente no alfabeto latino, do
mesmo modo que a consoante <j> seguida de vogais. Durante o período em que se
compreende o português arcaico5, o <u> ~ <v> e o <i> ~ <j> eram variantes gráficas
quando seguidas de vogais. As letras <v> e <j> não constavam no alfabeto romano e
ficaram conhecidas como Letras Ramistas devido à influência do humanista Petrus
Ramus na inclusão dessas letras no alfabeto, daí a sua posterior designação de Letras
Ramistas. Na passagem do latim para o português, a forma avarĭtĭa passou por uma
assibilação, fenômeno de mudança e variação que consiste em transformar um ou mais
fonemas em uma sibilante (t + vogal e/i > ç ou z), ou seja, em avarĭtĭa> avarĭza>
avareza. O i breve (ĭ) de avarĭza passa a e (avareza).
5 Colocar nota sobre o arco temporal e fazer referência a Ana Maria Martins (1999).
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
ira ~ yra ~ hira – sf. (< lat. īra)g. ‘sentimento negativo e intenso contra alguém’.
.[xvi/bmpc/23-7]: O quarto he Ira. [xvi/bmpc/23-12]: Se com yra a renequey ou
pesey ou jurey. Se disse mal alguẽ ou desonras ou lho fiz. [xvi/bmpc/23-9]: Se
com hira dessejey a morte a mi ou me disse mal se a outrem. Se dey ao diabo o
tẽpo dia ou pessoas.
gula – sf. (< lat. gula)g. ‘comportamento compulsivo pelo consumo exagerado de
comidas e bebidas’. [xvi/bmpc/24-16]: Se por comer e beber me esqueço de
deos ou do que deuo de fazer. Se por gula deixo de jejũhar as coresmas e vegilias
das festas ou como leyte ou cousas contrairas neste tempo ou tomo nos jejuũs
mayores consoadas do que he rezã.
enueja – sf. (< lat. īnvĭdĭa)g. ‘sentimento de desgosto e ódio de quem não quer ou não
aceita a felicidade, bem-estar ou a prosperidade de outrem’. [xvi/bmpc/25-16]: Se
por enueja tenho odio a alguẽ. Se desfaço em algũas pessoas por esta causa. Se
por ysso diguo deles mal ou lho faço ou desejo fazer ou lho desejo e me apraz se
lho vejo.
O sexto pecado mortal, a inveja, grafado enueia, como observado na página 25,
com a presença das já apresentadas letras ramistas. Observando de maneira mais atenta,
pode-se ainda atestar essa origem considerando que houve uma palatalização, fenômeno
em que um ou mais fonemas se transformam em uma palatal, comuns quando há d +
vogal (e/i). Assim: īnvĭdĭa>enveja. O i longo (ī ) em posição átona passa a i e o i breve
(ĕ) passa a ɛ o que explica então a última forma final inveja.
116
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Academia Das Ciências De Lisboa. Dicionário Da Língua Portuguesa Contemporânea.
Lisboa: Verbo, 2001.
Castro, Maria Helena Et Al. (1973). Normas De Transcrição Para Textos Medievais
Portugueses. Boletim De Filologia, Lisboa, N. 12, P. 417-425
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Resende, Garcia De. Breue Memorial Dos Pecados E Cousas Que Pertence A Cõfissã.
Disponível Em Http://Bnd.Bn.Pt/. Acesso Em 16 De Agosto De 2010.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
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DOI 10.1285/i9788883051272p119
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RESUMO
Este artigo resulta da pesquisa PIBIC/UERN intitulada Estudo da tradição discursiva
“carta aberta” em jornais de Mossoró, ao longo do século XX e tem como principal
objetivo descrever e analisar o gênero carta aberta, a fim de conhecer as tradições
discursivas que o constituem. O corpus, composto por 18 cartas abertas, foi coletado
nos jornais O Mossoroense e O Comércio de Mossoró, entre os anos de 1904 a 1929. A
análise visa a conhecer a trajetória desse gênero, buscando respostas para as seguintes
questões: quais os propósitos comunicativos das cartas abertas? O que os temas das
cartas revelam sobre o contexto sócio-histórico de Mossoró no inicio do século XX?
Quem são os interlocutores? Que tradições discursivas compõem esse gênero epistolar?
A fundamentação teórica baseou-se no modelo de Tradição Discursiva (TD), conforme
Kock (1997) e Kabatek (2004a, 2004b) e nos estudos diacrônicos de gêneros textuais,
entre os quais destacamos Zavam (2009); Silva (2012) e Longhin (2014). As análises
mostraram que nas três primeiras décadas do século XX as cartas abertas tiveram
destacada função social nos jornais mossoroenses, visando a diferentes propósitos como
denunciar, reivindicar, criticar, defender-se de acusações etc., mas, a partir da década de
30 foram rareando e, praticamente desapareceram da imprensa jornalística local.
Introdução
119
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
que permitem aos leitores reconhecê-los e situá-los no tempo, pois seguem modelos
historicamente convencionalizados. Essa questão tem relação com o que Coseriu
(1979), citado por Kabatek (2004b), denominou de historicidade como tradição. A
historicidade como tradição refere-se,
a todos as manifestações culturais repetíveis, incluindo as linguísticas. Trata-
se aqui das tradições de uma comunidade, da recorrência na criação de
objetos culturais, da possibilidade de se referir a fatos culturais anteriores,
evocados em fatos novos por conta de semelhança funcional ou formal ou por
parcial harmonia. Trata-se aqui daqueles objetos culturais disponíveis em
uma comunidade para a repetição, a qual sempre inclui a mudança em duas
direções possíveis: ampliando o modelo anterior ou particularizando-o.
(Kabatek, 2004b: 162-163)
É, portanto, a possibilidade de particularização dos modelos textuais da tradição
que permite associar os textos às condições sócio-históricas-culturais em que foram
produzidos.
Nesse sentido, a noção de (TD) deve ser entendida como um modelo textual,
social e historicamente convencionalizado que determina as tradições de fala de uma
determinada comunidade (Longhin, 2014) ou como afirma Costa (2008: 2) “toda forma
de regularidade textual”. Essa perspectiva de estudo, portanto, possibilita relacionar a
história da língua à história dos textos e à história social.
Na última década, as pesquisas diacrônicas de gêneros têm mostrado certa
ênfase nos gêneros epistolares. Isso pode ser explicado pela quantidade e variedade de
cartas disponíveis na imprensa jornalística desde o século XIX, como carta ao redator,
carta do leitor, carta do redator, carta de notícias, carta aberta e carta-crônica etc. Além
dos diversos gêneros de cartas publicados nos jornais, há ainda corpora de cartas
pessoais e cartas administrativas disponíveis em acervos públicos e nos bancos de dados
do PHPB (Projeto de História do Português Brasileiro) e do PHPP (Projeto da História
do Português Paulista).
Dentre as pesquisas que abordaram gêneros epistolares numa perspectiva
diacrônica podemos citar Andrade (2008a, 2008b) que analisou cartas de leitores;
Brandão, Andrade e Aquino (2009) que estudaram as tradições discursivas em cartas da
administração privada e cartas particulares dos séculos XVIII ao XXI no Estado de São
Paulo; Zavam (2009) que analisou a trajetória do editorial em jornais cearenses,
considerando que os editoriais, inicialmente, apresentavam estrutura de carta; Silva
(2012) que estudou as tradições discursivas em cartas-crônica publicadas em jornais
120
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Aspectos metodológicos
121
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Carta aberta
122
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
OBJETIVO COMUNICATIVO
ENUNCIADO
Fonte: Kabatek (2004a:16)
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
13 Cidade do litoral norte do Rio Grande do Norte, grande produtora de sal e distante 35 km de Mossoró.
128
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
14Mais informações sobre as ferrovias idealizadas por Ulrich Graff estão disponíveis em
http://www.estacoesferroviarias.com.br/rgn/ulrick.htm e em http://blogdetelescope.blogspot.com.br/
2013/01/o-sonho-do-graff-1915-mossoro-rn.html Acesso em 14/09/2015
129
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
temos das regiões que devem | ser apanhadas e servidas pela pro- | jectada
ferro-via, que esta pouparà | á Naçao as grandes despezas com | socorros
públicos, porque depois | d’ella serão nenhuns os efeitos das | seccas; que
augmentarão de modo | incalculável as industrias pastoris e | agrícolas as
principaes d’essas regiões; | que novas industrias de logo ahi se |
desenvolverão; e que, em pouco | tempo, ver-se-á este povo faminto |
prodigalisando largos favores, em | vez de mendigar a escassa esmola. (O
Mossoroense: 12/06/1904)
O flagelo da seca também é mencionado em uma carta aberta, publicada em 08
de agosto de 1908, assinada por salineiros da cidade de Macau e destinada a Alberto
Maranhão, o então governador do Rio Grande do Norte. Os salineiros reclamam da crise
econômica pela qual o Estado atravessa em consequência da seca e afirmam que a
indústria do sal, prejudicada pela alta de impostos, encontra-se numa severa crise. A
crise na indústria salineira agrava ainda mais a economia local, pois deixa de ser uma
alternativa de trabalho para os flagelados da seca, como acontecia em outros tempos.
Os salineiros que assinaram a carta têm como propósito denunciar que, apesar da
grande produção de sal, os donos de salinas foram prejudicados pelo contrato assinado
entre o governo do Rio Grande do Norte e a Companhia Comércio e Navegação. O
aumento de impostos fez o produto potiguar ficar menos competitivo, uma vez que a
referida Companhia monopolizava o sal e podia comprá-lo de outros estados por um
preço mais baixo. Essa situação é mencionada em várias passagens da carta, como, por
exemplo, o trecho selecionado abaixo:
e) ||Os Snrs. Tertuliano Fernandes | & C. e Cel. Francisco Tertuliano, |
possuem importantes salinas nes- | te estado com grande Stok de | sal, veêm-
se na dura contigencia | de abandonarem suas proprieda- | des, soffrendo
consideraveis pre- | juizos, para irem explorar salinas | em outros estados
onde possam | livremente exercer a sua indus- | tria, e livre estejam do
arbitrio | da Companhia Commercio e | Navegação.(O Mossoroense, 08 de
agosto de 1908)
Em várias cartas abertas publicadas nos primeiros dez anos do século XX, há
denúncias sobre o abandono por parte dos governantes que nada fizeram para melhorar
a convivência do sertanejo com a seca. Em 11 de Agosto de 1907, o Commercio de
Mossoró publicou uma carta aberta escrita por Orlando Correia, um acadêmico de
direito, ao Capitão Bento Praxedes, então redator chefe do mencionado jornal. A carta
tinha como propósitos denunciar a situação de miséria da população de Pau dos Ferros
130
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
afetada pela seca, pedir a Bento Praxedes para continuar lutando em favor dos
sertanejos, criticar o antigo Presidente, Rodrigues Alves, e elogiar Afonso Pena, o
Presidente do Brasil na época.
Conforme as palavras do produtor, o governo de Rodrigues Alves foi omisso em
relação à grave situação do sertão nordestino em decorrência das secas de 1903 e 1904,
conforme trecho a seguir:
f) || Aquelles dois anos calamitosos, sem | exemplo talvez nos annaes da
histo- | ria das seccas no sertão foram por si | sós, bastantes para darem a
prova | provada do quanto foi nullo e nefasto | o governo do Sr. Rodrigues
Alves que | ficou indelegavelmente perpetuado na me- | moria do sertanejo
que ainda hoje o | maldiz.
O ano de 1919 também foi seco, como atesta a carta aberta publicada no
Mossoroense em 23 de abril e assinada por um grupo de empresários e políticos
influentes da cidade de Mossoró: Jerônimo Rosado (Presidente da Intendência); Vicente
da Mora e Cia.; P. P. de Tertuliano Fernandes e Cia.; Dr. Raphael Fernandes Gurjão;
Camilo Figueiredo e Cia.; M. F. do Monte e Cia.; e, Luiz Colombo Ferreira Pinto. Na
carta, o propósito é reivindicar das autoridades a construção de obras contra as secas,
conforme trecho a seguir:
g) O PROLONGAMENTO DA ESTRADA DE FERRO DE |
MOSSORÓ até Petrolina, a construcção DO AÇUDE DO | CANTO DA
LAGOA NO RIO UPANEMA15, e da barragem | de pedrinhas, no Rio
Mossoró, são obras, para nós, | utilíssimas, precursoras do futuro de nossa
terra, e | que executadas agora, virão implantar benefícios in- |calculáveis á
pobreza e ao município. (O Mossoroense: 23/04/1919)
É importante mencionar que, durante os anos de seca, a cidade de Mossoró era
duramente afetada, pois, embora a agricultura não fosse a principal fonte de subsistência
da população, era para esse Município que os flagelados emigravam em busca de meios
de subsistência.
As cartas abertas também eram escritas com o propósito de fomentar as intrigas
entre membros da imprensa local. As discordâncias eram resolvidas com publicações
pouco amistosas, nas quais se abusava de atributos pejorativos para desqualificar o
oponente. Um exemplo disso é a carta publicada no Comércio de Mossoró, em 12 de
junho de 1904, cujo destinatário era o articulista do Correio de Macau, Antero de Lima.
O autor da carta aberta, o Senhor J. Martins de Vasconcelos, acusa Antero de Lima de
15 Grifos do Original
131
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
ter proferido injúrias contra sua pessoa e contra comerciantes de outras cidades. A carta
é escrita em tom agressivo e irônico:
h) ||Ao incógnito Antero de Lima || Muito bem! Seu Anthero, muito bem!
|| Li suas pestilencias infiltradas | no numero 6, de 22 de Maio, do |
Correio de Macau e não tivesse eu | o bastante escrupulo de desenfec- | tar o
seu pacote, certo teria sido | victima do vibrião perigoso e re- | pugante de sua
escrophulosa lin- | guagem ... viperina e tragica!...
No final da carta, há uma justificativa sobre o propósito da publicação:
i) ||Não foi somente pela flagrante | injustiça feita á riqueza e ao com- |
mercio que tomei o arduo e santo | encargo de advogar ex-officio mi- | nha
terra e meus visinhos; não: | foi tambem o desejo de illibar a | reputação e os
costumes desse po- | vo sempre bom e ordeiro por indo- | le e por natureza, e
que vi vilmen- | te insultado em linguagem de ar- | rieiro por algum
pernostico qual- | quer. Quanto ao movimento com- | mercial, industrial e
outros, esta- | mos sempre na vanguarda, não há | duvida e só o pode
contestar o des- | peito mal contido.
Questões de ordem pessoal como desavenças familiares ocasionadas por
escolhas políticas, desentendimentos sobre questões de demarcação de terras, defesa da
honra, denúncias sobre badernas e maus costumes da população também são temas
presentes nas cartas abertas que constituem o corpus desta pesquisa. Fazendo um
paralelo com a realidade atual, podemos afirmar que as cartas abertas tinham função
semelhante a que as redes sociais têm hoje.
Numa carta escrita pelo Senhor Francisco Borges de Andrade e publicada no
Mossoroense em 11 de fevereiro de 1916, ele procura defender-se de calúnias e boatos
contra sua honra e sua dignidade. Acusado de roubo e se dizendo inocente, escreve com
o seguinte propósito:
j) ||Lançando estas linhas pela im- | prensa não tenho o intuito de pro- |
testar contra os vis calumniadores, | porque esses merecem o meu | despreso,
mas é provocar as auto- | ridades aquém o caso competir | pra apurarem a
imputação que | me fazem. || Provoco e provocarei sempre; | não temo o rigor
da justiça. Abram- | se inqueritos, ouçam-se os empre- | gados do porto, do
trapiche, das | repartições, façam-se buscas, appre- | nsões, tudo que o caso
exigir | e apure-se o crime ou a inno- | cencia.
132
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
controle de mercadorias e proibir o contrabando. Essa carta, assim como outras cartas
abertas que constituem o corpus analisado, foi publicada numa seção do jornal intitulada
“SOLICITADAS”, porém com a seguinte ressalva antes do texto: “Sem
responsabilidade da Redacção”. No trecho abaixo, selecionamos uma passagem em que
o autor explica como o fato ocorreu:
k) ||Requeri novamente por cer- | tidão o teor d’aquellas, petição | e
certidão, e SS. o Snr. Admi- | nistrador Theophilo Brandão,| indeferindo
minha petição, bra- | dou enfurecido que podiam | mandar ao Thesouro do
Estado | quantas denuncias quisessem | que ellas serviriam para miste- | res
que a decencia manda calar. (O Mossoroense, 19 de outubro de 1904)
A análise das três categorias do gênero carta aberta pode ser melhor visualizada
no quadro a seguir:
J1 17/05/1904 Correia
24/05/1904
12/06/1904
133
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Como podemos ver, embora os temas das cartas abertas sejam variados, a maior
parte aborda problemas vivenciados pela população da época, principalmente àqueles
ocasionados pela seca. Quanto às finalidades das cartas, como a situação da população
era difícil, as mais recorrentes são reivindicar, criticar, denunciar. Esses propósitos
podem justificar o fato de as cartas serem destinadas a pessoas influentes e com poderes
para resolver os problemas denunciados ou atender às reivindicações feitas pelos
produtores em favor da população ou em favor próprio.
Ainda com relação às finalidades, o corpus contém cartas abertas cujos autores
expõem problemas de ordem pessoal. Nesse caso as principais finalidades identificadas
são defender-se de acusações e esclarecer fatos. Fica clara a tentativa desses emissores
de contar para a opinião pública sua versão dos fatos para conseguir a adesão dos
leitores, principalmente quando haviam sido vítimas de boatos e de acusações contra a
honra.
134
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
135
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
136
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
faz referência ao destinatário da carta aberta e a correta flexão dos verbos não deixam
de ser uma demonstração de que o emissor domina a norma padrão, aspecto valorizado
no contexto sócio-histórico no qual as cartas circularam.
Como podemos verificar pelos trechos selecionados a seguir, na maioria das
cartas o emprego de segunda pessoa para referir-se ao destinatário é recorrente:
m) ||Aqui chegando testemunhareis o | que não devemos mais descrever -
| a fome e a nudez que synthetisam | a miseria do povo. (O Mossoroense,
23/03/1904)
n) ||Já tendes visto grande parte dos | terrenos indicados para a fallada |
estrada de penetração, e não vos | deve ter escapado que muitas des- | sas
indicações se acceitas fossem, | acarretariam incalculaveis prejuisos | ao
erario publico, e consumiriam | tempo incalculável (O Mossoroense,
16/04/1904)
o) ||Na vossa viagem ao interior d’- | este Estado, perto do Assú vistes a |
afamada lagôa do Piato, a maior e | mais útil que por aqui conhecemos,| mas
que não terá agua, alem d’este | ano, porque, há tempos, agua não | recebe.
(O Mossoroense, 17/05/1904)
q) || A tarefa de que vos achaes in- | cumbido com os vossos dignos com-
| panheiros, affigura-se nos assaz im- | portante e melindrosa. (O
Mossoroense, 12/06/1904)
r) ||E’ com grande pezar que venho | até vós tomar parte e provar da |
desabrida offensa que nos faz o | nosso collega d’O Correio de Macau | em
sua edição de 8 deste mez, (...) (O Commercio de Mossoró, 24/04/1904)
137
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
typos que perambu- | lam pelas ruas d’esta Villa | ganhando boas amisades, |
por meio de enredo e his- | torias mentirosas. (O Mossoroense, 10/10/1917)
Considerações finais
138
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Sobre o conteúdo temático das cartas abertas, ficou claro que os temas são
diretamente relacionados à vida dos habitantes de Mossoró ou de comunidades
próximas. Assim, foi possível conhecer como as pessoas se posicionavam frente aos
problemas advindos das sucessivas secas que marcaram as duas primeiras décadas do
século XX no sertão nordestino; que críticas e cobranças eram feitas às autoridades para
viabilizar obras de combate os efeitos da seca; como o programa de açudagem era visto
pela elite econômica e como essa elite tentava influenciar as ações do governo; como foi
a luta para viabilizar a construção de ferrovias; quais eram as causas das intrigas na
imprensa e das desavenças pessoais publicadas nos jornais; enfim, que aspectos da vida
das pessoas eram temas dessas cartas.
A análise mostrou também que no início do século XX as cartas abertas eram
uma tradição discursiva da mídia impressa de Mossoró, mas, aos poucos, foi
desaparecendo. Nossa busca por exemplares de cartas abertas no jornal O Mossoroense,
uma vez que o jornal Comércio de Mossoró circulou por pouco tempo, mostrou que,
após as duas primeiras décadas, elas desapareceram, assim como também desaparecem
as cartas de notícias. Uma hipótese é que esses dois gêneros epistolares tenham sido
transmutados, nos termos bakhtinianos, por outros gêneros, respectivamente o artigo de
opinião e a notícia.
Por fim, quando afirmamos que o gênero carta aberta desapareceu dos jornais
mossoroenses, não estamos querendo dizer que ele não seja mais praticado, pois se
fizermos uma busca na Internet vamos encontrar inúmeros exemplares de cartas abertas
destinadas a autoridades, a políticos, a chefes de nações, a organizações não
governamentais etc. Os propósitos visam, principalmente, a interesses coletivos e ao
estabelecimento de um posicionamento político. Geralmente são assinadas por
sindicatos, partidos políticos, ONGS, instituições sem fins lucrativos etc. As cartas
abertas não desparecem, elas migraram para outro suporte.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Andrade, Maria Lúcia C. V. de Oliveira. 2008 a. Tradições discursivas em cartas de
leitores na imprensa paulista: estudo dos papéis sociais e formas de tratamento numa
perspectiva diacrônica. In: I SIMELP – I Simpósio Mundial de Estudos da Língua
Portuguesa. São Paulo: FFLCH - Unicsul, vol.1.
139
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Coseriu, Eugenio. 1980. Lições de Linguística Geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico.
__________. 2004b. Sobre a historicidade de textos. Trad. José da Silva Simões. Linha
d’Água, nº 17, abr., p. 157-170.
Koch, Peter. 1997. “Diskurstraditionen -zu ihrem sprachtheoretischer Status und ihrer
Dynamik“. In: Barbara FRANK/Thomas HAYE/Doris TOPHINKE (Hg): Gattungen
mittelaterlicher Schriftlichkeit. Tübingen, p. 43-79.
Silva, Adriano Wagner da; Medeiros, Gabriel L. Paula de. 2008. A integração do
território do Rio Grande do Norte pelos açudes e estradas de ferro. Revista Fazendo
História. Ano I. Edição I, p. 61-83 . Disponível em: http://www.cchla.u
frn.br/fazendohistoria. Acesso em: 11 de setembro de 2015.
Silva, Jane Quintiliano Guimarães. 2002. Um estudo sobre o gênero carta pessoal: das
práticas comunicativas aos indícios de intertextualidade na escrita do texto. (Tese de
doutorado). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.
140
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Zavam, Aurea. 2009. Por uma abordagem diacrônica dos gêneros à luz da concepção
de tradição discursiva: um estudo com editorais de jornal. Tese (Doutorado em
Linguística). Universidade Federal do Ceará; Programa de Pós-Graduação em
Linguística, Fortaleza.
141
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 6 - Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa, 143-156
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p143
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O presente texto visa à divulgação das ferramentas computacionais desenvolvidas pelo
Núcleo de apoio à pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa
(NEHiLP/USP) para a confecção do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa
(DELPo), as quais são necessárias para a organização hierárquica de dados referentes
tanto à etimologia quanto à origem das palavras investigadas. Essas ferramentas são
apresentadas de maneira conceitual, uma vez que formam os pressupostos da construção
daquilo que a Lexicografia tradicionalmente chama de lema.
143
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
fidedignidade e a veracidade dos dados, e mais ainda o valor desses dados. O ideal é
que o menor número de erros seja cometido. Mesmo que saibamos que erros
dependentes exclusivamente das propensões humanas sempre existirão, há alguns tipos
de erros que podem ser evitados, como os motivados por cansaço e pela falta de
atenção, dado o manuseio de um grande número de informações. Nesse ponto,
acreditou-se, desde o início, que seria de extrema utilidade a existência de um programa
que fizesse a comparação automática da data atribuída à mais antiga abonação da
palavra com a data da obra analisada.
As vantagens de um programa computacional sobre a pesquisa manual seriam
várias,2 dentre as quais:
(a) numa pesquisa manual, o pesquisador não tem disponíveis em sua erudição
os termini a quo de todas as palavras de uma língua, de modo que suas descobertas se
pautam, na maioria das vezes, apenas pela “sensação” de que a palavra “não deveria
estar naquele texto”, por ele supor (baseado exclusivamente na sua experiência de
falante e/ou pesquisador) que a palavra seja mais recente do que a data do texto
investigado;
(b) mesmo se for extremamente organizado, o pesquisador não consegue fazer
uma investigação exaustiva de um texto e pauta-se apenas naqueles dados que chamam
sua atenção. Assim sendo, outros dados importantes acabam por passar
involuntariamente despercebidos ao escrutínio do investigador, por mais minucioso que
seja;
(c) para sanar a impossibilidade de uma investigação exaustiva, o pesquisador
acaba às vezes especializando-se, e isso não contribui para a criação de um amplo
dicionário etimológico. Assim sendo, seu recorte acabará necessariamente incidindo
apenas na forma (por exemplo, procura palavras com um determinado sufixo) ou no
significado (por exemplo, busca palavras de um determinado campo semântico), quando
sua busca não é enviesada por uma questão a posteriori (por exemplo, procura palavras
de suposta origem africana).
2 Outra parte do projeto do DELPo se encontra em um artigo (ainda no prelo) de Viaro et al. Sobre a
pesquisa de Linguística baseada em ferramentas computacionais há obras de referência como a de
Sardinha (2004).
144
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
A conclusão é que o mesmo texto precisaria ser revisto inúmeras vezes por uma
grande quantidade de pesquisadores para estarmos seguros que dele foram extraídas
todas as informações interessantes para um estudo etimológico.
145
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
FLEXÕES
VARIANTES
OCORRÊNCIAS
3. O Metalema
5 Os termos hemilema, hiperlema e ultralema surgiram em julho de 2014 para denominar essas estruturas
computacionais.
6 Estritamente falando, mesmo palavras invariáveis (preposições, advérbios, conjunções e interjeições)
devem ser vistas como um conjunto de variantes flexionais, apenas com a ressalva de que, nesse caso, se
trataria de um conjunto unitário. Subordinadas às flexões estão, na lógica do banco de dados, as variantes
ortográficas. Variantes não ortográficas de uma mesma palavra são recuperáveis por meio dos
hiperlemas.
146
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
147
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
9 Esta decisão não foi fácil, uma vez que uma palavra como coor pode ter, dependendo da época e do
local, uma sílaba ou duas. No entanto, como a avaliação disso depende muito de pressupostos assumidos
por autores especialistas e há discordâncias, preferiu-se tomar essa decisão.
10 Como no caso das vogais dobradas, essa decisão não foi simples de ser tomada, mas em muitas
situações (sobretudo depois do século XV) é muito difícil decidir se a grafia corresponde ou não à
pronúncia e, uma vez que há discussões entre os autores sobre o problema, convencionou-se atualizar
também essas formas.
148
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
11 Como no caso das vogais dobradas e das terminações nasais, essa decisão varia muito conforme os
séculos, e é muito difícil decidir se a grafia corresponde ou não à pronúncia. Visto que há discussões entre
os autores sobre o problema, convencionou-se atualizar também essas formas.
12 Casos especiais: ũa → uma (flexão), mas um (metalema) e algũa → alguma (flexão), mas algum
(metalema).
149
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
manga1 manga2
manga0
150
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
trata de uma variante ortográfica, mas de outro som, associado a outro fonema. A
recuperação de mangues como variante não ortográfica de manga se efetua por outro
caminho, ou seja, pelo hiperlema.
Da mesma forma que, baseado numa variante lematizada e atualizada
ortograficamente obtemos o metalema, também por meio do mesmo raciocínio
chegamos à flexão, que, diferentemente do metalema, precisa ser digitada na ficha. A
única diferença da forma que aparece no campo do metalema e no da flexão é o fato de
a flexão não ser lematizada. Ou seja, apesar de sua ortografia ser atualizada, respeitam-
se as flexões da variante escolhida como abonação da ficha.
Exemplos:
se a variante analisada é primeyras (com ortografia antiga, no feminino plural), o
campo do metalema deverá aparecer como primeiro (na ortografia atual e
masculino singular, como nos dicionários). No campo da flexão deve-se digitar
primeiras (na ortografia atual, mas no feminino plural).
4. Hemilema
151
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
5. O Hiperlema
# ID da acepção subordinante
152
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
M1 M2
A1 A2 A3 A1 A2 A3
1 2 3 4 5 6
#1 #2 #3
6. Ultralema
Algo digitado no campo Origem nas fichas do banco de dados do DELPo gera
153
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
língua ULTRALEMA
Se o ultralema for um sufixo, deve ter o formato -x- (se for um sufixo não-final,
que requer, por exemplo, uma vogal temática) ou -x (se for um sufixo final); um prefixo
deverá ser x-. Demais elementos, como raízes, são escritos sem hífen à esquerda ou à
direita. No campo Origem remota, devem vir informações semelhantes às que aparecem
no campo Origem; no entanto, como se trata de uma língua reconstruída (indo-europeu,
camito-semítico, bantu, proto-jê, etc.), o elemento de formação terá sempre um asterisco
antes:
15 É preciso, portanto, organizar-se para que apenas a acepção principal tenha os ultralemas a fim de
evitar duplicações desnecessárias.
154
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
7. Conclusões
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Houaiss, Antônio; Villar, Mauro de S. 2001. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva.
155
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
www.nehilp.org
156
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 6 - Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa, 157-181
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p157
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Estudos sobre a Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oliveira (1536),
foram tema de duas pesquisas de Iniciação Científica realizadas na Universidade
Federal da Bahia. Em 2012, desenvolveu-se a primeira investigação, que consistiu em
comparar a edição princeps com a versão crítica de Torres e Assunção (2000), com o
intuito de verificar em que ponto se aproximavam e em que ponto se distanciavam.
Adotaram-se as seguintes questões no cotejo: problemas de leitura, supressão e adição
de vocábulos, não adoção de critérios de edição. Tendo em vista os problemas
encontrados, resolveu-se comparar também a edição semidiplomática dos mesmos
autores, em uma nova pesquisa, realizada em 2013. Obviamente, adotaram-se as
mesmas questões da pesquisa anterior. Este artigo apresenta os resultados alcançados
durante as duas investigações. De antemão pode-se apontar que foram identificados, nas
edições observadas, supressão e adição de vocábulos, salto bordão, além da não adoção
de muitos critérios editorais. Os resultados das pesquisas podem contribuir para a
fortunacrítica de tão importante obra inaugural da metalinguagem portuguesa.
1 Introdução
157
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
158
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
159
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
sy si sy 2
160
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
sido apontada também no segundo critério, porque se trata de uma exceção. Isso o
tornaria mais claro, evitando dúvidas ao leitor.
Quanto ao terceiro critério, o foco recai sobre o tratamento do til.
Resolução do til em m ou n dentro da normatividade usual, inclusive nas
terminações verbais em -ão, correspondentes aos pretéritos perfeito e m. q.
perfeito nas terceiras pessoas do singular (Torres; Assunção, 2000, p. 70).
Segundo se pôde depreender do texto, os autores deveriam utilizar m ou n em
situações em que fosse o til incoerente para a regra ortográfica atual. O que se verifica,
todavia, é sua manutenção como se pode verificar no quadro 2, abaixo.
hũa hũa 11, 12, 13, 14, Hũa 11, 12, 20, 21,
15, 16, 18, 19, 26, 27, 28, 29,
21, 28, 29, 30, 30, 31, 32, 33,
31, 32, 33, 34 34, 35, 39, 40
161
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
mĩ Mĩ 71 Mĩ 71
162
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
premeiro primeiro 40, 42, 46, 56, premeiro 40, 42, 46, 49,
62, 71, 72 50, 56, 62, 72
163
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
na edição crítica. Enquanto os fólios 56, 69, 71, 72, 76 registram-se premeira em
conformidade com a edição princeps.
Premeiro é registrado, na lição crítica, nos fólios 72, 49, correspondendo ao
texto princeps, enquanto se assinala primeiro nos fólios: 40, 42, 46, 56, 62, 71 e 72, em
dissonância com o texto de 1536. Devidir é sinalizado no fólio 56. Já no fólio 45
registrou-se dividir.
Na edição semidiplomática, identificou-se apenas um desvio do critério, no fólio
46, em que aparece premeiro em vez de primeiro, conforme o texto princeps.
Os exemplos demonstram de que na edição crítica há uma grande variação na
aplicação desse critério, ora se aplica, ora não se aplica. Em contrapartida, a lição
semidiplomática respeita quase fielmente o polimorfismo de e/i de Fernão de Oliveira.
Considerando o quinto critério abaixo, veja a decisão dos autores sobre a:
Separação, mesmo através do hífen, de morfemas ou palavras indevidamente
unidas e junção de tantas que então já tendiam para isso, como toda via, por
ventura, sobre tudo, a trás, a diante, com tudo, esta nasalmente adaptada com
n, (conforme Prisciano já mandava colocar antes de c, d, q, f) ou de outras
como se não quando advérbio, mal tratar, a meude (Torres, Assunção, p. 71).
Em relação à aplicação do critério, Torres e Assunção em algum momento não o
adotam devidamente. Observe-se o quadro 4.
164
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
5Em relação à regularização da cedilha, Torres e Assunção têm como base o trabalho de Duarte Numes
de Leão, Ortografia e origem da língua portuguesa (1983, p. 56), a obra de João de Barros. Gramática da
língua portuguesa (1971, p. 147 e 381), e o trabalho de João da Silva Correia: Reflexos filológicos dos
sinais gráficos e do seu aprendizado (1933, p.136-137).
165
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
São muitos os exemplos de não aplicação do critério. Não obstante, o critério foi
aplicado em nacem na versão crítica, no fólio 10, e em parece no fólio 14, nas duas
edições. Caso semelhante ocorre com o vocábulo eiceições, registrado nos fólios 60, 73
sem cedilha na versão crítica.
Registra-se que a edição semidiplomática mantém na maioria dos casos a cedilha
antes de e e i. Mais uma vez o critério não foi obedecido completamente nas duas
versões.
Analisando o sétimo critério que se encontra abaixo, observe-se a postura de
Torres e Assunção:
Tendendo Fernão de Oliveira para um aportuguesamento mórfico marcado de
indecisões e recuos, as grafias com sabor às origens pouco se vêem, motivo
por que se achou menos razoável acatá-las do que sujeitá-las à bitola comum,
desde que acompanhadas sempre, em pé-de-página, da forma original, o que
culturalmente tem o seu interesse, e ressalvados os hápaxes, ou quase, bõ,
bõa, depoys, entre outros (Torres; Assunção, 2000, p. 71-72).
Os editores poderiam esclarecer quais são as grafias com sabor às origens, para
que o referido critério ficasse claro, embora se tenha interpretado como de base
etimológica.
Em relação aos vocábulos com pouca recorrência nos textos, como bõ, bõa e
depoys, verifica-se que os dois primeiros foram respeitados nas duas edições e
sinalizados no aparato crítico. Enquanto o vocábulo depoys foi registrado como depois,
nos fólios 2 e 21, na edição crítica, desrespeitando o critério em questão.
O oitavo critério é redundante ao quarto, pois incide sobre a reduplicação
consonântica.
Não se manteve, consequentemente, a reduplicação consonântica na maior
parte dos casos e sempre que, em contraste, abundavam alomorfias
simplificadas (Torres; Assunção, 2000, p. 71).
Que significaria “na maioria dos casos” em um critério editorial? Não deveriam
ser todos os critérios objetivos, sem margens para subjetividade? O quadro 6, abaixo,
busca inventariar algumas ocorrências de reduplicação consonântica.
166
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
dellas delas 3, 11, 13, 14, 15, dellas 3, 11, 13, 14,
16, 22, 23, 29, 34 15, 16, 22, 29,
34
ellas ellas 12, 15, 29, 32, 34, ellas 12, 15, 29, 32,
36 34, 36
167
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
Note-se, ainda, que há vocábulos como: pula, capa pele, ele, pela, em que o l não
está duplicado, mas foi duplicado indevidamente tanto na edição crítica como na
semidiplomática, incluindo também a estrutura sobrele.
A consoante bilabial m foi dobrada nos vocábulos grammaticos e grammatica,
mesmo não estando assim no texto original. Essa decisão não é apontada nem explicada
nas duas edições. Franco e Silvestre (2012) explicam que o vocábulo m era grafado no
latim com duas consoantes bilabiais, talvez por isso Torres e Assunção o mantenham
duplicado. Mas essa
correção do exemplo, no sentido de uma grafia etimologizante, contraria a
regra sobre as consoantes duplas enunciadas por Oliveira no capítulo XXII.
Se a regra de Oliveira defende justamente a inutilidade de algumas
consoantes duplicadas, da correcção dos exemplos na edição de Torres e
Assunção resulta uma formulação ilógica (Franco; Silvestre, 2012, p.101).
Se se concordar com essa posição de Franco e Silvestre, Torres e Assunção
teriam interferido de forma improducente no texto e, além do mais, não estariam
salvaguardados por um de seus critérios.
O nono critério é assim apresentado:
Embora Fernão de Oliveira, diferentemente de outros quinhentistas, se haja
dispensado em absoluto de quaisquer acentos, eles tornavam moderamente
aconselháveis perante ambiguidades de homografia e tropeços eventuais de
leitura, ou em contracções, como à, às, ò (ao), ou ainda em futuros e
infinitivos arcaicos pejados de esdrújulas como dáremos, podéremos,
fôremos, dixéremos, escrevéremos (Torres; Assunção, 2000, p. 72).
Em relação à acentuação dos vocábulos, os autores mais uma vez usam
irregularmente esse critério. Veja-se o quadro abaixo:
168
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
169
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
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Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
e he 3, 17 E 3, 17
175
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
e com ditongo como .o. ou. e com ditongo como .o. ou. do 34
do dou: dous dou, dos
3 Outros problemas
176
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
podem permitir lapsos dessa natureza em uma obra tão importante para a história
linguística do português.
No que concerne à edição crítica, identificaram-se que algumas correções foram
procedidas nos textos crítico e semidiplomático. Os vocábulos os, o, vindos foram
devidamente corrigidos nas duas edições, no entanto, não foram registrados no aparato
crítico. Outras correções foram procedidas na versão crítica como seu por sen, para em
vez de pera, proprio por propria, por em vez de per, só em vez de soo, antes por ates,
mas, não foram assinaladas no aparato crítico.
Não obstante, identificaram-se problemas de leitura na edição crítica, por
exemplo, a forma escrevem foi registrada como escrevam, apesar de não haver critério
de regularização do indicativo do subjuntivo. Verificou-se, na referida edição, que o
vocábulo escolhe foi lido como recolhe.
Acredita-se que os problemas de leitura prejudicam, de forma assaz, o texto
princeps, por isso precisam ser corrigidos. Em 2012, Franco e Silvestre, em sua edição
actualizada, competentemente realizaram a correção do vocábulo recolhe por escolhe, e
não deixaram de apontar o lapso de leitura na edição de Torres e Assunção.
177
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
178
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
mas em iz, delles são mas em iz, delles são mas em .iz. d'lles são 65
masculinos e delles masculinos ------ ----, masculinos e delles
femininos como juiz, como juiz, almofariz, femininos como juiz
almofariz, e delles e delles femininos, almofariz e delles
femininos, como como boiz, raiz, femininos: como boyz
boyz, rayz, perdyz. perdiz. rayz. perdiz.
4 Considerações finais
179
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bastos, Neusa Barbosa; CASAGRANDE, Nancy; HACKEROTT, Maria Mercedes
Saraiva. As referências citadas na gramática de Fernão de Oliveira como instrumento de
reconstrução do contexto histórico da época. In: ABAURRE, Maria Bernadete et al.
Fernão de Oliveira: Um gramático na história. Campinas: Pontes Editores, 2009, p.349.
Dias, João J. et alii. Álbum de paleografia. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. ix. Apud
Machado Filho, Américo Venâncio Lopes. A pontuação em manuscritos medievais
portugueses. Salvador: Edufba, 2004.
180
Simpósio 6 – Etimologia e linguística histórica da língua portuguesa
181
SIMPÓSIO 8
SINTAXE PORTUGUESA: CONVERGÊNCIAS,
DIVERGÊNCIAS E INFLUÊNCIAS
COORDENADORES:
Barbara Gori
(Università di Padova)
Vanessa Castagna
(Università Ca’ Foscari di Venezia)
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 8 - Sintaxe portuguesa: convergências, divergências e influências, 185-202
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p185
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Natalia CZOPEK1
RESUMO
O objetivo principal do nosso trabalho é propor uma descrição dos traços
morfossintáticos e ortográficos de uma das variedades do crioulo kabuverdianu
característica da ilha de Santiago. O corpus de exemplos será fornecido pelo romance
Odju d’Agu de Manuel Veiga, um texto literário que acrescentará ao nosso estudo uma
marcação tipológica e estilística necessariamente especial. Na nossa análise, concentrar-
nos-emos na descrição das tentativas de uniformização ortográfica do crioulo que, por
sua natureza, é uma língua oral. Apresentaremos as vantagens e as desvantagens de três
alfabetos propostos para transformar a oralidade na escrita. Além disso, dentro do
enquadramento teórico da morfossintaxe de línguas em contacto, concentrar-nos-emos,
entre outros, nos processos de expressão das relações de TMA (tempo-modo-aspeto), no
sistema dos pronomes e na ordem dos elementos, na concordância entre diferentes
partes da oração e na introdução da negação. Pretendemos sistematizar os fenómenos
mais relevantes para a morfossintaxe e a ortografia crioula confirmando as teses do
próprio autor sobre a existência de regras gramaticais bem definidas.
1 UJ, Instituto de Filologia Românica, Departamento de Filologia Portuguesa e Estudos de Tradução, al.
Mickiewicza 9A (sala 217), 31-120 Kraków, Polónia, morenat@gmail.com.
185
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
2 Cf. Postioma (1968): “A palavra no meio africano goza de uma tarefa privilegiada; a palavra que foi
pronunciada e produzida pelos antepassados encontra-se hoje como norma doutrinal e moral; ela continua
ainda a operar, a instruir, a exortar e a guiar. Em África não falam somente os sábios e os poetas; todos
gostam de falar. [...] A palavra é vida, é a expressão da alma, do ser mais profundo, do íntimo do coração.
Um homem que não fala é doente ou falecido; falar é mostrar aos outros a própria vida: ‘Eu falo logo
existo’. [...] A palavra africana é poderosa, dinâmica, porque é um símbolo que permite a uma força entrar
em contacto com outro ser”.
3 O griot é um especialista escolhido ou por linhagem, ou por profissão, e só ele detém o conhecimento
dos textos mais longos e especiais, como a epopeia, as genealogias ou a crónica histórica (Leite, 1998:
14-39). O seu papel principal é não deixar que toda a bagagem cultural e histórica da tradição oral
africana caia em esquecimento e transmiti-la às gerações posteriores.
4 Vejam-se, por exemplo, as considerações de Leopold Senghor acerca da poesia: “Le Nègre
singulièrement, qui est d’un monde où la parole se fait spontanément rythme dès que l’homme est ému,
rendu à lui même à son authenticité. Oui la parole se fait poème [...]” (Leite, 1998: 14-39).
186
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
língua nacional do povo que sem ser apenas um meio de comunicação, “encerra uma
carga eminentemente cultural, afetiva, visto que exprime uma determinada visão do
mundo [...] que se insere na prática social de cada povo. [...] Numa situação de
bilinguismo, mesmo total, a utilização de uma lígua ou de outra não se efetua de forma
arbitrária” (Almada Duarte, 2003:22, 128-129)5 e o crioulo cabo-verdiano, apesar de
90% do seu atual léxico ser de origem portuguesa, é um sistema autónomo capaz de
satisfazer as necessidades comunicativas dos seus utilizadores.
5 Durante a luta de libertação, por exemplo, o crioulo foi, pode-se dizer, a língua da luta.
6 A variante do Sotavento formou-se, após o primeiro povoamento, dos elementos do português dos
séculos XV/XVI e das línguas africanas faladas pelos primeiros escravos nas ilhas de Santiago e, poucos
anos depois, nas do Fogo, da Brava e do Maio e a do Barlavento (conhecida como a variante do Mindelo)
começou a formar-se só a partir dos finais do século XVIII, na ilha de São Vicente, com forte influência
do português europeu, como resultado da confluência do crioulo basiletal de Santiago, e foi levada
posteriormente às ilhas de Santo Antão, São Nicolau e Boavista. Há quem constate que o sistema de São
Nicolau constitui uma interseção entre as variantes do Sotavento e do Barlavento (Delgado, 2009:149). A
estabilização da variante do Barlavento deu-se a partir da estabilização da variante do Mindelo, em 1875
(Delgado, 2009: 104, 137). Dulce Almada Duarte (2003) defende que, apesar da variação dialetal, o
crioulo é uma língua com unidade suficiente para que haja comunicação entre os falantes das diferentes
ilhas e Manuel Veiga (2000a) constata que “[...] a nível de estrutura profunda, existe um único crioulo,
razão por que há uma intercompreensão razoável desde as ilhas mais ao Norte (Barlavento) até às ilhas
mais ao Sul (Sotavento). [...] não se pode falar de nove crioulos em Cabo Verde, mas sim de um único
código que se atualiza, na estrutura de superfície, em diversos dialetos”. Só se falaria de vários crioulos
no país se não se verificasse a intercompreensão entre os falantes dessa região. A base da formação é um
crioulo basiletal dos séculos XV/XVI, do qual nasceram as diferentes variações regionais (Delgado, 2009:
140-141). Portanto, pode-se admitr a existência das duas grandes variantes e seus respetivos dialetos
insulares, sendo todos os sistemas intercompreensíveis.
187
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
7 A ilha de Santiago foi povoada com escravos oriundos da costa ocidental africana e com colonos do
norte de Portugal, e a ilha de São Vicente, por sua vez, com habitantes das outras ilhas (por exemplo, de
Santiago, com um crioulo já consolidado, e de Santo Antão e São Nicolau), dos Açores e do Portugal
continental (Delgado, 2009:105-106). O crioulo de Santiago contribuiu então para a formação das
variantes das outras ilhas mas a variante do Barlavento ficou muito mais influenciada pelo português.
8 Ver a lista de fatores que têm determinado a evolução do crioulo proposta por Veiga (1982: 32-33).
9 Cf. António Carreira apud Almada Duarte (2003:87-88): «[...] no século XVII (e grande parte do século
XVIII) houve um verdadeiro êxodo de “homens brancos”, nesse período já mais “homens de posses ou de
“teres” que de “qualidade”, para os rios da Guiné, fugindo ao cerco económico imposto pela série de leis
restritivas das atividades mercantis, chegando a população de Santiago a ficar reduzida a “pouco mais de
20 homens brancos [...] a imigração branca (forçada) tomou maior vulto apenas no séc. XIX. Isso quer
dizer que, durante quatro séculos, o elemento africano foi largamente preponderante no processo de
formação da sociedade cabo-verdiana».
10 Dulce Pereira (apud Delgado, 2009:109) defende que este fenómeno começou no século XIX com o
povoamento de São Vicente onde muitos termos africanos caíram em desuso devido à generalização do
ensino em português e ao desprestígio do crioulo, proibido na administração pública.
11 O chamado “crioulo leve” é típico da ilha de São Vicente, à versão acroletal, mais aportuguesada.
188
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
12 Cf. os testemunhos de António Pusich, José Conrado Chelmichi, Francisco Adolfo Varnhagen e José
Joaquim Lopes de Lima, citados pela mesma autora, acerca do estatuto do crioulo no século XIX: “A
língua que usam é um ridículo crioulo, diferente em cada ilha na pronúncia, e em muitos termos, sendo
como vergonha entre eles, e mui particularmente entre as mulheres, o falarem e o usarem o idioma do
Reino. [...] são apenas os filhos de Portugal que ainda falam a língua portuguesa; e, mesmo estes,
acostumam-se logo à ridícula linguagem do país, geralmente usada e chamada a língua crioula, idioma o
mais perverso, corrupto e imperfeito, sem construção, sem gramática, e que se não pode escrever [...] gíria
ridícula, composto monstruoso de antigo português e das línguas da Guiné, que aquele povo tanto preza, o
os mesmos brancos se comprazem a imitar [...]. A língua portuguesa pura é por um hábito inexplicável
desusada no trato familiar [...] substituíram-lhe uma algaravia mestiça de termos africanos e português
antiquado [...] pronunciado velozmente com terminações guturais [...] sem gramática, nem regras fixas, e
que varia de ilhas para ilhas”.
13 As primeiras obras linguísticas dedicadas ao crioulo são Os dialetos românicos ou neo-latinos na
África, Ásia e América de Francisco Adolfo Coelho, de 1880, e Apontamentos para a gramática do
crioulo que se fala na ilha de Santiago escritos por António de Paula Brito em 1885 e publicados em
1888.
14 Almada Duarte (2003:169-170) afirma até que o crioulo tem sido escrito, desde há mais de um século,
como um verdadeiro idioleto, segundo o bel-prazer daqueles que experimentam a necessidade de o fazer,
indicando como as possíveis razões desta situação o seu estatuto como língua dominada e a sua ausência
no processo de escolarização.
189
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
análise não é uma grafia padronizada de uma língua escrita mas uma das propostas de
registo de uma língua que, apesar de ser maioritariamente oral, chegou a ser utilizada
em várias produções inteletuais, como poesia lírica, contos ou crónicas.15
Na obra produzida antes da independência nacional observa-se o uso exclusivo
da grafia etimológica que em prática consiste na aplicação da ortografia do português
para registar, muitas vezes de uma forma imprecisa, os fonemas do crioulo. Por um
lado, une o cabo-verdiano com uma língua de maior prestígio mas, por outro, implica a
sua subordinação diacrónica, sem fornecer instrumentos para representação de todas as
variedades insulares (Alamada Duarte, 2003: 187-194).16 É a chamada escrita
tradicional, de escassa sistematicidade e pouco económica, pois para o mesmo fonema
existem vários grafemas, refletindo muitas vezes marcas regionalistas da proveniência
do autor. Após o primeiro colóquio linguístico realizado em Cabo Verde em abril de
1979, conhecido como Colóquio do Mindelo, alguns autores, na sua maioria de
Santiago, começaram a servir-se do alfabeto fonológico (Alamada Duarte, 2003:174).
Este sistema tem como principal objetivo a preservação da autonomia fonética do
crioulo, afastando a sua ortografia da escrita portuguesa e diminuindo o perigo de
descrioulização. Escolheu-se a variante de Santiago17 para elaboração de um alfabeto (o
chamado “alfabeto do chapéu”) no qual cada grafema corresponde a um fonema e cada
fonema a um grafema, sendo, portanto, a relação entre grafemas e fonemas biunívoca.18
Recomenda-se a adaptação dos grafemas do IAI (alfabeto do Instituto Africano
Internacional), uma adaptação do IPA (Alfabeto Fonético Internacional). Em
consequência, o alfabeto crioulo contêm 5 vogais orais: a, e, o, i, u; 5 vogais nasais: an,
en, on, in, un; e 20 consoantes: b, s, d, f, g, ẑ, ĵ, l, Ȋ, m, n, n^, p, k, r, t, v, ŝ, ĉ, z, sendo o
^ sinal diacrítico de palatalização.19 Como uma proposta nova, o alfabeto fonológico era
para ser debatido pela população bilingue, o que nunca aconteceu. O sistema não se
190
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
20 A autora menciona também alguns casos de uso das duas grafias ao mesmo tempo, como Na Kantar di
Sol de Euricles Rodrigues (1991).
21 Cf. a lista das modificações propostas no Fórum da Praia em Almada Duarte (2003:202-204) e Veiga
(2000a:12-15).
22 Cf. as regras ortográficas do ALUPEC em (Delgado, 2009:343-366) e Veiga (2000a:15-17) .
23 Porém, o próprio Manuel Veiga (2000c:263) afirma que a escrita é apenas um meio e não um fim; um
sistema arbitrário de transferênciada linguagem oral, o seu suporte subsidiário.
24 Cf. http://www.nhaterra.com.cv/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=1005 (15.09.2015)
25 Nesta parte, seguem-se as regras descritas em Delgado (2009:342-367).
191
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
27 Todos os exemplos citados provêm do romance de Manuel Veiga, Odju d’Agu, edição de 2009, pelo
Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, na cidade da Praia (páginas 9-31).
26 Cf. Veiga (1982:37): Os sons representados antigamente por ĉ e ĵ, e agora por tch e dj, podem ser
resultado da influência do substrato africano ou, no primeiro caso, do português antigo. “Segundu opinion
di ĉeu algen (Baltasar Lopes, Dulce Duarte, Rosine Santos) tudu palavra ki na purtuges arkaiku ta
skrebeda ch y ta prununsiada ĉ kontinua ĉ na kriolu, inbóra ivuluson diakróniku di purtuges transforma
tudu kazu di ch (ĉ) antigo na ch (ŝ)”.
192
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
28 Cf. Doneux (2000:153): A decisão de introduzir a letra k no alfabeto de Cabo Verde despertou muita
polémica , por vezes “de caráter extremamente emocional. Pouco faltou para se ter feito disso um símbolo
nacionalista”. No entanto, o autor defende a sua presença como um elemento analógico à grafia de
muitas línguas africanas, que pode favorecer a uniformização.
193
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
29 Cf. Veiga (2000a:36): Verifica-se uma maior presença do v nas variantes com mais contacto com o
português, em empréstimos mais recentes ou termos científicos, nos meios urbanos e nos idioletos dos
estudantes. No entanto, para unificar o sistema, aconselha-se o uso do b.
194
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
3.2 Acentuação30
195
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
Abandono parcial da marcação do género, un bês (uma vez); un skóla (uma escola);
desconhecido nas línguas africanas. un viaji (uma viagem); ku vós roku (com
Marcação arbitrária do sexo por uma voz rouca); saúdi fraku (saúde fraca);
construções perifrásticas. No crioulo koza k’é sagrode (coisa que é sagrada);
basiletal, o sexo é menos evidente nos koxa rodondu (coxa redonda); karni
substantivos inanimados (prevalece a salgadu (carne salgada); stréla burmedju
forma masculina)32. Observam-se raros (estrela vermelha); purmeru kusa (a
casos de concordância de gênero, mais primeira coisa); es interogason (esta
típicos no caso das ilhas de Barlavento interrogação); es momentu (esse momento);
kel skolinha (aquela escolinha); kel dia
(aquele dia); nha fidju (o meu filho); nha
genti (a minha gente); si diplóma (o seu
diploma); si kabésa (a sua cabeça); otu
196
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
33 Estas modificações no sistema nominal são resultado da influência dos sistemas de classes nominais
africanos.
197
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
34 Cf. Santos (2000:178): De acordo com a autora, a etimologia que se propõe para este morfema (nunca
> ka) é pouco provável pois na evolução natural de línguas não se observa a queda da sílaba tónica.
198
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
Reduplicação e contração dos pronomes si nhos nhos nase la y nhos ka móre (se
com advérbios de lugar [te]) tivesses nascido lá e se não [te]
morreres); ke-li (aquele/aquela/aquilo ali);
Padrão reduzido dos pronomes de konta-nu (contou-nos); fla-l (falar-lhe); nu
complementos direto e indireto. Ênclise ten ki suporta-l (nós temos que suportá-lo);
dos complementos e ba ta pô-s na fila (ele vai pô-lo/la na fila)
Padrão reduzido dos pronomes si pórta (a sua porta); si netinhu (o seu
possessivos. Possessivos compostos que netinho); nos profesor (o nosso professor);
funcionam apenas como um único lexema nos téra (a nossa terra); tudu nos amigu
ou que podem funcionar como lexemas (todos os nossos amigos); nha pensamentu
independentes (o meu pensamento); ses fidju (os seus
filhos); bu kabésa (a tua cabeça); e staba
ku korpu di si irmon na di-sel (ele estava
com o corpo do seu irmão no dele);
Falta de pronomes reflexos ou usos un rapasinhu ki txomaba Zé (um rapazinho
atípicos que se chamava Zé)
si nhos nhos nase la y nhos ka móre (se
[te]) tivesses nascido lá e se não [te]
morreres)
Importação do paradigma português de di vês inkuandu (de vez em quando); undi
advérbios, com modificações fonéticas e (onde); omésmo ténpu (ao mesmo tempo);
casos de aglutinação tudu bês ki (todas as vezes que); inkuantu
(enquanto); dispôs di (depois de);
pulmanhan (pela manhã); otrabês (outra
vez); sinseramenti (sinceramente), dundi
(de onde); dibaxu di (debaixo de)
O morfema ku e a conjunção copulativa y bida y situason (vida e situação); gentis
como partículas de coordenação sintática grandi ku nobu (gente grande e nova); téra
di si mai ku pai (a terra da sua mãe e do
seu pai); dia ku noti (dia e noite)
Falta de nexos de coordenação e fladu é nos distinu (diz-se [que] o nosso
subordinação destino)
Construções impessoais com as formas do sugundu ta fladu (segundo se diz); fladu é
particípio nos distinu (diz-se que o nosso destino);
fladu nos é di Rubera Séka (diz-se que
somos da Ribeira Seca)
Uso do verbo ter em vez de haver ten txeu gentis (há muita gente); si inférnu
ka ten (se não há inferno)
5. Léxico
Aglutinação e composição, ou seja, kretxeu (kre < querer + txeu < cheio –
síntese dos elementos do sintagma numa querer muito, bem amado). No entanto,
unidade nova usa-se também o termo amor. A palavra
txeu aparece no corpus com o significado
de ‘muito’, junto com o empréstimo
português mute.
kebra-djudjun (kebra < quebrar + djudjun
< jejum)
199
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
6. Conclusões
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bibliografia ativa:
Veiga, Manuel (2009), Odju d’Agu, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, Praia.
Bibliografia passiva:
Almada Duarte, Dulce. 2003. Bilinguismo ou diglossia?. Mindelo: Spleen Edições.
Delgado, Carlos Alberto. 2009. Crioulos de base lexical portuguesa com fatores de
identidades em Africa. O caso de Cabo Verde. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e
do Livro.
35 Cf. Delgado (2009:269-273): Uma pessoa pode ser conhecida por dois nomes – pelo nome de batismo
e pelo nominho de casa, ou alcunha, no âmbito de um paradigma afetivo. Vejam-se os processos de
formação dos nominhos descritos pelo autor. Como se pode deduzir, as alcunhas podem ser, por
exemplo, diminutivos do nome do batismo mas também podem ser resultado de decisões arbitrárias da
família, não tendo nenhuma relação com o nome oficial.
200
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
Doneux, Jean. 2000. A propósito do papel dos linguístas... e dos outros na determinação
da escrita duma língua. In: Veiga, M. (Org.). I.o Colóquio Linguístico Sobre o Crioulo
de Cabo Verde. Mindelo: INIC. p. 143-155.
Leite, Ana Mafalda. 1987. “Odju d’Agu” de Manuel Veiga: uma proposta de leitura.
África. Revista de Centro de Estudos Africanos da USP, n.°10. São Paulo: USP, p. 162-
168.
Leite, Ana Mafalda. 1998. Oralidades & escritas nas literaturas africanas. Lisboa:
Edições Colibri.
Santos, Rosine. 2000. Relações entre o crioulo e as línguas africanas. In: Veiga, M.
(Org.). I.o Colóquio Linguístico Sobre o Crioulo de Cabo Verde. Mindelo: INIC. p. 167-
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Veiga, Manuel (Org.). 2000a. I.o Colóquio Linguístico Sobre o Crioulo de Cabo Verde.
Mindelo: INIC.
Veiga, Manuel. 2000b. Estudar o crioulo é desenvolver a nossa terra. In: Veiga, M.
(Org.). I.o Colóquio Linguístico Sobre o Crioulo de Cabo Verde. Mindelo: INIC. p. 191-
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Veiga, Manuel. 2000c. Breves considerações sobre a escrita do crioulo. In: Veiga, M.
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201
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 8 - Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências, 203-221
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Juliana MARINS36
Maria Eugenia Lammoglia DUARTE
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo mostrar uma análise de dados diacrônicos de
estruturas existenciais com haver e ter, extraídas de peças teatrais escritas entre os séc.
XIX e XX por autores brasileiros, buscando evidências empíricas da mudança categorial
por que haver teria passado, o que teria levado a sua substituição por ter existencial.
Tomam-se como ponto de partida as ideias de Avelar (2006) e Avelar e Callou (2007),
segundo os quais (a) tal mudança está relacionada ao enfraquecimento da morfologia
verbal e, por conseguinte à perda da capacidade de interpretar uma categoria vazia na
posição de sujeito referencial do verbo ter possessivo, (b) haver e ter deixaram de
representar uma mesma categoria verbal, nos termos da Morfologia Distribuída. Desse
modo, argumentamos em favor do fato de que haver e ter não estão em variação no PB
contemporâneo. O trabalho mostra ainda que, em função da mudança na expressão da
existência no português brasileiro, outro padrão sentencial emergiu no sistema, ao que
chamamos sentenças existenciais de tópico-sujeito.
1. Introdução
36 UFRJ, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Vernáculas. Av. Horácio de Macedo, 2151,
Cidade Universitária, Rio de Janeiro. CEP 21941-917. Juespmarins@hotmail.com
203
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
37 Outras alterações de comportamento no PB têm sido notadas, como a emergência de pronomes plenos
na posição de sujeito de referência arbitrária, a perda da inversão livre e o surgimento de DPs plenos na
posição de sujeito não-argumental.
38 Os autores inserem nessa análise as sentenças copulativas/estativas, que não serão alvo desse artigo
por questões de espaço.
204
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
39 O verbo existir será incluído da análise geral para efeitos de observação do comportamento de um
verbo existencial substantivo, categoria a que haver teria passado a pertencer.
40 O trabalho de Marins (2013) associa as modificações apresentadas neste trabalho e o surgimento de
sentenças existencias com o verbo ter em que a posição de sujeito é preenchida por um DP não-
argumental. Tais estruturas, ilustradas em (i), foram chamadas por ela de sentenças existenciais de tópico-
sujeito. Esse seria um sub-produto da substituição de haver por ter no PB contemporâneo, inovação em
relação ao PE. Para essa discussão, ver Marins (2013).
(i) a. A geladeira tem leite na porta.
b. A geladeira tem leite dentro.
205
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
206
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
41 Avelar e Callou (2007) mostram ainda como seriam as estruturas estativas com estar e possessivas
com estar com. Por conta dos limites desse artigo, encaminhamos o leitor a essa discussão em Avelar e
Callou (2007) ou às considerações de Marins (2013) sobre a questão.
207
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
42 Os autores mostram ainda como se dá a derivação de estruturas com estar + com. Para essa análise,
encaminhamos o leitor a Avelar e Callou (2007).
208
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
Ou seja, se T não porta o traço EPP, a posição Spec, TP sequer será criada, o que
faz com que o DP um monte de aluno fique interno a v, dentro de PredP e receba caso
partitivo43.
Resumindo, o que se tem é o seguinte: se T não porta EPP e vP toma uma PredP
qualquer com complemento, v e T adjacentes formam uma unidade que leva à
materialização de ter na construção existencial. Se T porta EPP e vP toma como
complemento uma PredP nucleada por uma Pposs, ou a Pposs se amalgama a v e TEpp, o
que gera ter na construção possessiva.
Se tudo isso estiver correto, a incapacidade de o sistema permitir que a posição
estrutural de sujeito fosse ocupada por proref fez com que as sentenças possessivas com
ter e sujeito nulo não mais pudessem ser assim inte
interpretadas,
rpretadas, já que o falante fica
impossibilitado de atribuir um valor referencial a essa posição. O que “salvaria” uma
sentença assim do fracasso seria interpretá-la como existencial, em que ter não tem
sujeito gramatical, à semelhança do que ocorre com sentenças com haver.
Dessa maneira, o quadro que se cria é o seguinte: se ter com sujeito nulo passa a
ser interpretado como existencial, o sistema teria passado a contar com duas matrizes
fonológicas – ter e haver – para um mesmo conjunto de traços, o que impossibilitaria a
aplicação do Subset Principle44, uma vez que não seria possível eleger aquela mais
adequada em dada condição. Além disso, se a situação fosse essa, haver teria que
209
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
continuar se comportando da mesma maneira, ou seja, teria uma frequência ainda alta e
faria parte do acervo de itens adquiridos primariamente pelas crianças. Nenhum desses
dois fatos parece se verificar no PB atual, o que aponta para o fato de que haver teria
sido “expulso” do rol das categorias funcionais e, assim, teria passado a integrar a lista
das categorias substantivas, justificando sua frequência baixa e a especialização do seu
uso.
Buscando indícios empíricos para confirmar a mudança categorial por que teria
passado haver, Avelar (2006) empreende uma análise da substituição de haver por ter
no PB contenporâneo, com base nos dados de Callou e Avelar (2000) para a fala culta
carioca considerando em três faixas etárias em duas sincronias distintas: anos 70 e anos
90. Dessa maneira, o autor apresenta evidências empíricas que mostram que haver teria
passado a um verbo existencial substantivo, levando-se em consideração,
principalmente, o fato de que verbos substantivos costumam estar associados a
contextos semântico-discursivos específicos, apreentando, assim, uma menor frequência
de uso.
De fato, contata-se uma drástica queda do percentual de haver – sobretudo entre
os mais jovens – quando se comparam os dois períodos de tempo contemplados no
“estudo de tendência” feito pelos autores (Cf. LABOV, 1994). De 1970 para 1990,
houve uma redução do uso de haver, em média, de 9% nas duas faixas etárias mais
altas, mas o descréscimo foi ainda maior na faixa etária mais jovem, chegando a 29%.
Avelar explora ainda a impossibilidade de aplicação de haver, entendido ja como
verbo existencial substantivo, em todos os contextos existenciais, tal como é possível
com ter, que pode estar em qualquer sentença do conjunto de construções existenciais
de que dispõe o português45. Essa situação leva a crer que há condicionamentos
específicos para a realização de haver. O autor, então, retorna aos dados de Callou e
Avelar (2000, 2002) para mostrar dois fatores linguísticos que atuam nesse sentido: o
tempo verbal e o traço semântico do argumento interno.
210
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
Propomos, com isso, uma análise de dados com objetivo mostrar em que medida
as afirmações de Avelar (2006) e Avelar e Callou (2007) se verificam de fato ao longo
do tempo. Além disso, procuramos mostrar a situação dos verbos haver e ter no sistema
como um dos efeitos da mudança quanto à marcação do PSN no PB. Na tentativa de
carcaterizar o comportamento de haver como categoria substantiva, observamos
brevemente o comportamento de existir.
A análise parte do método quantitativo da largamente usado nos estudos em
Sociolinguística Variacionista, de sentenças existenciais em que aparecem os verbos
211
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
haver, ter e existir em contexto em que há a possibilidade de ocorrência das três formas
verbais4647.
O corpus utilizado é um conjunto de 43 comédias teatrais – compreendidas
como “comédias de costumes e gêneros aparentados” – buscando aproximação com a
fala espontânea –, escritas entre 1844 e 1992, por autores cariocas ou que viveram no
Rio de Janeiro durante a maior parte de suas vidas. Foram agrupadas em 7 períodos48
(seguindo a mesma classificação adotada por Duarte 1993), conforme o quadro49 1
abaixo:
Período I Período II Período III Período IV Período V Período VI Período VII
1845 - 1860 1870 – 1889 1899 - 1920 1933 - 1945 1953 – 1967 1975 - 1984 1990 – 1992
Quadro 1: Relação das peças teatrais brasileiras e sua distribuição em períodos de tempo
46 De fato, há certa mudança semântica dada a alternância dos verbos, sobretudo considerando que os
três itens não correspondem ao mesmo tipo de categoria. Entretanto, para obter dados que permitam a
análise, foi necessário desconsiderar tal distinção e selecionar as sentenças em que a entrada dessa ou
daquela forma verbal não gerasse a agramaticalidade da sentença e que produzisse um sentido mais
aproximado ao da “existência pura”, que assumimos ser aquela veiculada pelo verbo existir.
47 Não foram levadas em conta sentenças em que os verbos não constituem uma opção, como
“Teve/*Houve/*Existiu macarrão no almoço”, ou quando formam expressões mais ou menos fixas e
expressões cristalizadas, como “Não há/*tem/*existem vagas”, ou ainda aquelas que ocorrem de igual
maneira no PB e no PE, com a posição de sujeito preenchida ou vazia, como “Isso não tem dúvida. / Não
há/existe dúvida nisso.
48 A peças utilizadas foram as seguintes: O namorador ou a noite de São João (1844), O noviço (1945),
As casadas solteiras (1945), Quem casa quer casa (1945), O judas em sábado de aleluia (1946), Os irmãos
das almas (1947) e O juiz de paz da roça (1948), de Martins Pena; O primo da Califórnia (1855) e Luxo e
vaidade (1860), de Joaquim Manuel de Macedo; O demônio familiar (1857), de José de Alencar; O
defeito de família (1870), Amor com amor se paga (1870), O tipo brasileiro (1882), Como se fazia um
deputado (1882), Caiu o ministério (1883), Maldita parentela (1887), Maldita parentela (1887), de França
Jr.; O bote de rapé (1878), Não consultes o médico (1899) e Lição de botânica (1906), de Machado de
Assis; O mambembe (1904), de Arthur de Azevedo; O simpático Jeremias (1918), Onde canta o sabiá
(1920) e A inquilina de Botafogo (1920), de Gastão Tojeiro; O troféu (1933), A patroa (1933) e O
hóspede do quarto n° 2 (1937), de rmando Gonzaga, A vida tem três andares (1938), de Humberto Cunha;
A Ladra (1942), de Silvino Lopes; Uma mulher em três atos (1953), Do tamanho de um defunto (1955),
Um elefante no caos (1955), Bonito como um deus (1955), e Os órfãos de Jânio (1979), de Millôr
Fernandes; Pedro Mico (1954) e O colar de coral (1954), de Antônio Callado; O santo milagroso (1963),
de Lauro Cesar Muniz; A mulher integral (1975) e Confidências de um espermatozoide careca (1984), de
Carlos Eduardo Novaes; O último carro ou as 14 estações (1976), de João da Neves; A partilha (1990),
No coração do Brasil (1992) e Como encher um biquini selvagem (1992), de Miguel Falabella.
49 A distribuição do número de peças por período não é uniforme, o que se deve ao fato de que as peças
dos primeiros períodos são, em geral, mais curtas, levando à necessidade de analisar um número maior de
peças para que se pudesse chegar a um número de dados minimamente significativo. Foram utilizados
dados de peças de mais de um autor por período, uma vez que isso evita que os dados correspondam
apenas a uma gramática em particular. Outro aspecto que deve ser levado em conta é o fato de que os
dados ilustrarão fenômenos que refletem aspectos estruturais – tanto da Gramática Nuclear, quanto da sua
contraparte periférica – específicos de cada autor, frutos de seus processos particulares de
aquisição/aprendizagem da linguagem. Então, é com base no modo como a mudança de dissemina pela
comunidade de fala (LIGHTFOOT, 1999) que os resultados poderão apenas indicar uma possibilidade do
que teria ocorrido no sistema do PB ao longo dos séc. XIX e XX quanto ao fenômeno em análise.
212
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
Na amostra de peças brasileiras, foram computadas 986 sentenças, das quais 649
exibiam o verbo haver, 290, o verbo ter e apenas 47, o verbo existir. O gráfico 1 e
abaixo mostra a distribuição dos usos dos três verbos ao longo dos 7 períodos:
Gráfico 1: Distribuição de haver, ter e existir ao longo dos 7 períodos de tempo (PB)
213
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
marginal nesse contexto, a situação a partir dos anos 70 (período 6) se inverte: ter passa
a representar a noção de existência numa proporção muito maior que haver, que passa
apresentar uma frequência de uso semelhante à de existir, que manteve padrões
razoavelmente constantes, com percentuais que não chegam a 10%.
Se de fato as ideias apresentadas na seção anterior estão corretas, é de se esperar
que a evolução de ter existencial tenha acompanhado a mudança no que se refere ao
preenchimento do sujeito. Assim, o gráfico 2 a seguir traça um paralelo entre os
resultados apresentados acima e aqueles encontrados por Duarte (1993), para a
representação do sujeito pronominal.
Gráfico 2: Distribuição de ter vs. crescimento de sujeitos de referência definida plenos ao longo
dos 7 períodos de tempo (PB)
214
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
velhos continuam produzindo sentenças possessivas com ter e sujeito nulo, as gerações
mais jovens passam a reanalizá-las, interpretando-as como existenciais.
Outro fator contribui para caracterizar o processo descrito acima. No último
período, dois dados com haver, ilustrados em (4) e (5) a seguir chamam a atenção, pelo
fato de que o primeiro aparece na fala da personagem mais velha e o segundo, na do
personagem mais escolarizado.
(4) No caso dela ia haver uma multidão [de homens, de namorados, de amantes] na
plataforma! (No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(5) Era como se houvesse uma armadilha me esperando [...] (No coração do Brasil,
Miguel Falabella, 1992)
Reforçando as ideias de Avelar (2006) sobre as ocorrências de haver entre os
falantes mais jovens, os usos de haver referidos nos exemplos acima podem ser um
reflexo da recuperação parcial de aspectos da gramática de uma sincronia passada,
através do processo de letramento (pelo qual, de diferentes modos, os dois personagens
passaram).
Passemos a examinar, seguindo as diretrizes de Avelar (2006), o dois contextos
linguísticos que sugerem a especialização do uso de haver: o tempo verbal e o traço
semântico do argumento interno, com vistas a confirmar a especialização do uso de
haver.
Com o objetivo de verificar se a hipótese de Avelar (2006) – com base em
Callou e Avelar (2000), de que o tempo verbal que favoreceria o uso de haver é o
pretérito perfeito, vejamos a análise desse grupo de fator nos três últimos períodos,
momento em que ter passa a suplantar haver em termos de frequência de uso. Mesmo
que os dados não correspondam ao momento exato em que a substituição se dá, os
resultados apontam para o fato de que até o período IV, haver exibia comportamento de
categoria funcional, o que pressupõe uma distribuição uniforme no que se refere ao
tempo verbal.
Observando todos os dados, tanto de ter, quanto de haver, considerando o
quantitativo geral dos três períodos, o presente é o tempo verbal que concentra o maior
número de dados. Na verdade, vale observar que sentenças no presente, sejam elas
existenciais ou não, serão de fato mais recorrentes no gênero textual em questão, dado
que, numa peça teatral, as falas e as ações ocorrem simultaneamente.
Veja-se, agora, o gráfico 4 abaixo:
215
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
Gráfico 4: Distribuição de ter e haver pelos tempos verbais nos três últimos períodos (PB)
216
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
apresentados até aqui, que isso tenha acontecido a partir da segunda metade do séc. XX,
que corresponde ao quinto período.
Analisamos, portanto, as ocorrências de ter nos três primeiros períodos e haver
nos três últimos, no que se refere ao traço semântico de seu ar
argumento
gumento interno. O
conteúdo semântico dos argumentos internos dos verbos foram classificados como
[+animado], [+material], [+abstrato] , [+evento] e [+lugar], de acordo com as tabelas 1 e
1 abaixo:
Tabela 1: Traço semântico do argumento interno através dos três últimos períodos – verbo haver
Tabela 2: Traço semântico do argumento interno através dos três últimos períodos – verbo ter
217
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
4. Considerações finais
218
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
situação que se verifica entre ter e haver no PB contemporâneo: se outrora foi possível
tratar haver e ter em termos de variação, hoje isso já não parece mais possível.
A situação que se tem hoje no PB parece ainda propiciar o surgimento de um
tipo de estrutura inovadora em relação ao PE: as sentenças existenciais de tópico-
sujeito, como se vê (11b) e (12b) abaixo.
(11) a. Tem gente na porta do banco.
b. O banco tem gente na porta.
(12) a. Tem gente fora do banco.
b. O banco tem gente fora.
Para essas estruturas, a autora apresenta uma proposta de derivação, que ainda
carece de refinamento teórico. A análise das propriedades das sentenças existenciais de
tópico-sujeito e a verificação de um possível quadro de variação entre elas e as
estruturas existenciais com ter constituem para nós uma agenda de trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Avelar, J. O. 2006. De verbo funcional a verbo substantivo: uma hipótese para a
supressão de HAVER no português brasileiro. Letras de Hoje, Porto Alegre: PUC-RS,
v. 143, p. 49-74.
Belletti, A. 1988. The case of unaccusatives. In: Linguistic Inquiry 19(1), p.1-34.
______ e Avelar, J. O. 2002. Estruturas com ter e haver em anúncios do século XIX. In:
Alkmin, T. (org.). Para a história do português brasileiro. Vol. III. São Paulo,
Humanitas/USP, 2002. p. 47-67.
Chomsky, N. 1995. The minimalist program. Cambridge, MA: The MIT Press.
219
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
Halle, M. e Marantz, A. 1993. Distributed Morphology and the Pieces of Inflection. In:
HALE, K. & KEYSER, Jay. The View from Building 20. Cambridge: MIT Press, p.111-
176.
Lasnik, H. 1995. Case and expletives revisited: on Greed and other human failings.
Linguistic Inquiry, 26.
Lightfoot, David. 1999. Gradualism and Catastrophes. In: The development of language
aquisition, change and evolution. Malden, Mass; Blackwell.
220
Simpósio 8: Sintaxe portuguesa: Convergências, divergências e influências
VIOTTI, Evani. 1999. A sintaxe das sentenças existenciais no português do Brasil. Tese
de Doutoramento. São Paulo: USP.
221
SIMPÓSIO 13
O SUJEITO E A LÍNGUA SOB DETERMINAÇÕES DO
DISCURSO E DA HISTÓRIA
COORDENADORES:
RESUMO:
A proposta deste trabalho é pensar a inovação como uma tecnologia que integra, em seu
funcionamento, os dispositivos de poder, de forma a atender às exigências do biopoder,
e que, nesta produtiva integração, a inovação acaba por se tornar também um
dispositivo, se constituindo como o caminho a ser percorrido e o ponto de chegada. A
inovação constitui a ordem do mundo moderno que se pauta pelas verdades da ciência,
compondo as práticas discursivas e não-discursivas, os objetos, as instâncias
enunciativas, as configurações dos saberes, as formas de exercício do poder e as
subjetividades. Analisaremos algumas práticas discursivas de inovação que
(re)configuram, na atualidade, produtos, processos e serviços, por meio da coexistência
de enunciados dispersos e heterogêneos. Para isso, além das elaborações de Michel
Foucault acerca das noções de dispositivo e de biopoder, consideraremos as suas
formulações a respeito do conceito de enunciado, que, segundo Deleuze (1992), da
forma como foi concebido por Foucault implicava numa visão da linguagem capaz de
renovar a linguística. Neste sentido, nosso principal objetivo é verificar o modo como o
dispositivo de inovação incita a produção de enunciados e, ao mesmo tempo, é
constituído por eles, redefinindo os posicionamentos dos sujeitos por ele implicados.
Considerações iniciais
1 Trabalho apoiado e financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). Uma
versão mais aprofundada do tema da inovação na reconfiguração dos conceitos e das subjetividades será
apresentada em um artigo no livro Domínios e dispositivos técnicos, tecnológicos e das tecnologias e(m)
discurso: a formação dos conceitos da Ed. Pontes.
2 Professora associada da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística
da Universidade Federal de Goiás. Coordenadora do Grupo Trama. Endereço: Rua Francisco Rabelo Qd.
08 Lt. 14 Conjunto Caiçara, CEP: 74775-012, Goiânia-Goiás, Brasil. (km-sousa@uol.com.br).
225
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
226
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
227
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
3http://www.boletimdoempreendedor.com.br/boletim.aspx?codBoletim=143_Inovacao_e_Empreendedori
smo
228
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229
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
isso, não se pode compreender o funcionamento dessas práticas sem que se considere
uma análise das regras de formação dos discursos que impõem à linguagem certos
trajetos e certas condições de existência, redistribuindo os enunciadores, redefinindo
conceitos e teorias e movendo os sistemas de dispersão das formações discursivas,
conforme Michel Foucault (1995).É por meio de enunciados que os indivíduos são
objetivados, é, também, com a circulação dos enunciados que eles são transformados
em sujeitos, permitindo que os discursos funcionem como técnicas de subjetivação,
atuando nos processos de identificação dos sujeitos e na constituição das identidades
coletivas que incluem os sujeitos e que também os excluem.
A força do enunciado pode ser analisada em sua relação intrínseca com o
conceito de inovação explicitado no site do grupo Inventta4, em que o que é dito se liga
a outros ditos capazes de justificar a sua emergência, que seja como prolongamento,
transformação, reativação ou apagamento, mas se firmando nessa rede, que seja pela
definição dos sujeitos que ali enunciam.O grupo se apresenta afirmando que Somos um
dos pioneiros em inovação no Brasil e América do Sul e, junto ao Logotipo do grupo,
lemos a frase Nós respiramos e vivemos inovação, e é aqui que ela vive. Mais abaixo no
texto a informação:
[2] Temos a inovação em nosso DNA, e é por isso que não paramos de nos
transformar e evoluir. Somos multidisciplinares, empreendedores, curiosos,
idealistas, estudiosos e comprometidos a romper paradigmas e criar novas
formas de se pensar e agir.
4 http://inventta.net/quem-somos/
230
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
novidade, transformação, ruptura. Uma rede que enlaça a memória do fazer tecnológico
e científico aos ditos do discurso econômico e de mercado da atualidade.
Por se realizar em rede, o enunciado é a base de existência e de funcionamento
de qualquer dispositivo, que, conforme Foucault (2014,) porta uma natureza
essencialmente estratégica, o que pressupõe uma certa manipulação das relações de
força, uma intervenção racional e organizada nestas relações de força, seja para
desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, estabilizá-las, utilizá-las.
O dispositivo, portanto, estaria inscrito em um jogo de poder, ligado a uma ou a
configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam.
Resumindo, seriam as estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e
sendo sustentadas por eles. Nesse sentido, Foucault (2014) esclarece que o dispositivo
engloba um duplo processo: por um lado, processo de sobredeterminação funcional,
pois cada efeito, positivo ou negativo, desejado ou não, estabelece uma relação de
ressonância ou de contradição com os outros, e exige um reajustamento dos elementos
heterogêneos que surgem dispersamente; por outro lado, processo de preenchimento
estratégico perpétuo. O dispositivo está sempre pronto para atender a uma urgência,
para prever o que pode ser necessário no futuro.
Como parte de um dispositivo, o site do Inventta, além de pontuar aquelas condições
para a definição do que seja inovador, também demonstra atender a esse ponto
estratégico de se lançar no futuro para já transformá-lo no presente:
[3] Nosso valor está em modelar e construir o futuro. Usamos nossa energia e
experiência para criar e desenvolver inovação, transformar pessoas, relações,
organizações e, eventualmente, um pouco do mundo.
231
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
5 http://www.guiadecasamento.com.br/planejamento/organizacao/casamento-high-tech
232
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
6http://www.rededeinovacao.org.br/sobreinovacao/Paginas/QueInovacao.aspx
7 http://www.baguete.com.br/colunistas/colunas/46/george-fabris-justo/07/08/2006/google-a-inovacao-
nao-e-so-tecnologica-mas-admi
233
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
234
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
Google tem consciência que seus concorrentes já usam técnicas de gestão semelhantes,
então é preciso sempre estar evoluindo para manter-se na frente da concorrência. E
cada sujeito do time precisa conduzir-se a si mesmo dentro do atual conhecimento
contínuo da mudança para não se constituir como um sujeito indesejável, causador de
problemas.
Conforme Weber (2008), esse modelo de mercado, baseado no princípio de rede
com objetivos estabelecidos e buscados estrategicamente, confronta com outros
modelos, como o das hierarquias piramidais, modelo de um dispositivo disciplinar, nos
termos de Foucault (2008), em nível conceitual. Entram em jogo, atendendo às normas
do dispositivo de segurança e às técnicas do biopoder (FOUCAULT, 2008), novos
conceitos como administração de qualidade, sistemas de aprendizagem,
empreendedorismo, identidades dinâmicas, ambiente de negócio profissionalizado,
risco, monitoramento, gerenciamento, provedores de serviço, clientes etc. Os conceitos
do novo mercado remetem ao NET e a um capitalismo flexível, novo modelo de
controle, e “o conceito funciona” (WEBER, 2008, 120).
235
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
8http://www.senado.gov.br/senado/portaldoservidor/jornal/jornal71/comportamento_moda.aspx
236
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
9 http://barmetrosexual.com/lumbersexual-como-seguir-esse-estilo/
237
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
Essa maneira pela qual esses diferentes elementos estão relacionados uns aos
outros é, segundo Foucault (1995), o que permite delimitar o grupo de conceitos,
mesmo que discordantes. É a maneira, por exemplo, “pela qual estão ligados os modos
de aproximação e de desenvolvimento dos enunciados e os modos de crítica, de
comentários, de interpretação de enunciados já formulados etc. É esse feixe de relações
que constitui um sistema de formação conceitual” (FOUCAULT, 1995, p. 66).
Esse grupo de conceitos que define o novo homem não passa ileso às teias do
mercado, e as barbearias se transformam para acatar novos conceitos e também se
configurar dentro dos novos conceitos desse tipo de empresa. Em notícia de outubro de
2014 do site Hair Brasil 10 , nos deparamos com título: As barbearias masculinas
voltaram com um novo conceito e uma nova experiência aos clientes. A notícia divulga
o surgimento de um novo tipo de empresa no mercado para inovar as barbearias e, para
isso, precisa ser identificada por um conceito, que deve ser novo. Os conceitos
pertencem a um campo submetido ao nível pré-conceitual (FOUCAULT, 1995, p. 67).
A inovação é uma prova visível da coexistência entre os conceitos e o campo pré-
conceitual e, assim, se dá também pelo resgate de objetos e práticas antigas, que
ganham nova roupagem com os conceitos de retrô, customizar, gourmet e vintage. Este
último, para produzir o efeito do diferente, descolado, e inovado, define o estilo das
novas barbearias:
[8] nos últimos anos, a moda da barbearia tem voltado com tudo em grandes
capitais. O comportamento masculino mudou e eles se preocupam mais do
que nunca com a aparência. Com isso, apareceram como tendência de
negócio as barbearias de antigamente com visual inspirado nas décadas
passadas e tudo ao som dos anos 50 e 60. Os empresários de olho nesse nicho
de mercado estão abrindo por todo o Brasil salões de barbeiro com espaços
sofisticados e carta de serviços diferenciada.
Os serviços oferecidos vão ao encontro da nova ordem Tecnológica, mesmo não
sendo tecnológicos, atendem às demandas do biopoder, proporcionando aos clientes a
possibilidade de se incluir nos padrões de beleza, bem-estar e felicidade e funcionam
como estratégias do dispositivo que buscam garantir o controle, a segurança, da
população e a lucratividade do mercado. O emaranhado das relações possibilitadas pelo
dispositivo e pelas técnicas do biopoder não para de se lançar em novas frentes,
construindo mais relações que indiciam o caráter de inovador do novo objeto ou serviço
atingido. O conceito de novo homem não escapa às estratégias de outros tipos de
10http://www.hairbrasil.com/index.php?http://www.hairbrasil.com/noticias/noticia_3247.html
238
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agamben, G. O que é um dispositivo? In: ______. O que é o contemporâneo? E outros
ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 25-51.
239
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
Machado, R.Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
240
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história, 241-258
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p241
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Tânia PITOMBO-OLIVEIRA1
RESUMO
O Grupo de Pesquisa Educação e Estudos da Linguagem se orienta pela linha de
pesquisa Sujeito do Conhecimento e ancora suas reflexões nos pressupostos teóricos da
Análise de Discurso materialista histórica e tem como objeto compreender os contextos
de constituição da prática discursiva dos habitantes da região norte do Estado de Mato
Grosso no confronto com o discurso governamental no que diz respeito à oposição
desmatar/preservar. Focalizamos a cidade de Sinop, polo regional, como referência para
as entrevistas realizadas que produziram recortes específicos em que a prática discursiva
dos habitantes da região se marca pela referência à injustiça e interdição ao
desenvolvimento decorrentes do discurso jurídico-preservacionista governamental de
restrições.Movimentamos os sentidos de ‘desenvolvimento’ e de ‘integração’ na relação
presente/passado, assim como os significados de fronteira postos pelo paralelo 13º. A
dificuldade em se precisar “o quê significa e para quem” nos faz refletir sobre a
necessidade de nos debruçarmos sobre a questão e pesquisarmos sobre os sentidos de
“desenvolvimento” e os sentidos de “sustentável”. Nesta proposta de reflexão sobre a
linguagem fundada nos trabalhos de Michel Foucault, Michel Pêcheux e EniOrlandi,
mobilizamos algumas noções que são de fundamental importância para a compreensão
da constituição dos sentidos e dos sujeitos no batimento entre língua e história e que
possam contribuir na utilização e na interpretação dos conceitos postos numa possível
releitura pelas políticas públicas que se traduzem posteriormente em deliberações legais.
INTRODUÇÃO
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ambiental. O mundo globalizado exigirá, cada vez mais, que as nações definam o que
entendem e como querem trabalhar a noção de desenvolvimento
(desmatar/plantar/colher/sobreviver) ou (preservar/sobreviver) na contradição
desmatar/preservar. Para que essas noções efetivamente constituam práticas, é
necessário trabalhá-las/compreendê-las nas regiões diretamente atingidas pelo discurso
jurídico preservacionista ambiental governamental.
Assim, tomamos as noções teóricas da área da Análise de Discurso, que pensa a
compreensão do fato de linguagem na relação do sujeito com os sentidos e com o
mundo. Para Orlandi (1999:15),
[...] a Análise do Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da
língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela
trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia
de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim
palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso
observa-se o homem falando [...] considerando a produção de sentidos
enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros
de uma determinada forma de sociedade.
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seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas, onde os indivíduos são
“interpelados” em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações
discursivas que representam “na linguagem as formações ideológicas que lhes são
correspondentes”.
Para Orlandi, há uma afirmação fundamental para quem trabalha na Análise do
Discurso – “a ideologia interpela o indivíduo em sujeito e este submete-se à língua
significando e significando-se pelo simbólico na história.” (1999ª:12). Há um efeito que
é o efeito ideológico elementar pelo qual o sujeito não tem acesso ao modo como ele se
constitui em sujeito, ou seja, o modo como ele se constitui enquanto posição.
Para que possamos entender o discurso encontrado na região norte mato-
grossense é necessário compreender a história não como uma sucessão de fatos já
dados, cronológicos. Datas não interessam, mas os modos como os sentidos são
produzidos e circulam. Segundo Paul Henry (1997:51),
Não há ‘fato’ ou ‘evento’ histórico que não faça sentido, que não peça
interpretação, que não reclame que lhe achemos causas e consequências. É
nisso que consiste a história, nesse fazer sentido, mesmo que possamos
divergir sobre esse sentido em cada caso. Isto vale para nossa história
pessoal, assim como para a outra, a grande História.
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2 A prática discursiva acima/abaixo se dá pela visualização do mapa e não pela demarcação geográfica
que ao norte(acima) do paralelo 13° vem o paralelo 12°, 11°, etc.
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marcados, a partir das relações imaginárias constitutivas dos processos discursivos, pela
oposição entre “aquele que pode” e “aquele que não pode”, presente nos discursos dos
habitantes da faixa de transição ou pré-amazônia no confronto com os discursos
ambientalistas governamentais.
Veremos que discursivamente estes habitantes se identificam como “aqueles que
não podem”, sentindo-se injustiçados pela nova maneira de pensar da política
ambiental.
Observemos os recortes,
(...) eu vim lá do sul. Aí eu chego aqui e a terra não serve prá mais nada, é prá
reserva. Isso aí também é que nem pregar prego no mar né (...) 50% de
reserva prá quem veio prá abrir 80% é muita reserva né, é muito chão.
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E, ainda, a cobertura vegetal da região, em que estes habitantes alegam que esta
é uma região de mata não pertencente à floresta densa amazônica.
Já, as condições de produção em seu contexto amplo trazem para a consideração
dos efeitos de sentido elementos que derivam da forma de nossa sociedade, das
Instituições, entre elas o Governo, no modo como organiza o poderestabelecendo leis
que devem ser cumpridas, neste caso específico, a edição da medida provisória que
altera a área de reserva legal.
As condições de produção do discurso da faixa de transição, em um contexto
amplo, estão assentadas sobre a nova maneira de pensar da política na era da
globalização que prioriza o discurso ambiental-ecológico em detrimento do discurso
desenvolvimentista.
Na referência presente/passado, verificamos a necessidade de manutenção pelos
habitantes da região norte do Estado de Mato Grosso, das propostas governamentais do
início da colonização contidas na Declaração da Amazônia: povoamento, ocupação,
segurança nacional, ocupar o território, harmoniosa integração inter-regional, mercados
significativos, progresso e desenvolvimento da área, promover a completa integração
sócio-econômica da Amazônia ao Brasil, perfeita e adequada incorporação à sociedade
brasileira, soberania inalienável.
Os recortes nos mostram a relação sempre posta entre presente e passado. O
discurso dos moradores da área de transição é um discurso que se constrói ancorado nas
propostas desenvolvimentistas da década de setenta e requer a manutenção da ordem
então vigente.
(...) ao contrário de décadas atrás, nos dias atuais, graves medidas em forma
de sanções, tudo em nome do meio ambiente, através do próprio governo
federal que anteriormente incentivava a ocupação da Amazônia Legal.
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Veja o absurdo: hoje o agricultor não tem dinheiro sequer para plantar,
quanto mais para reconstruir uma mata nativa de cerrado.
3ACHARD, Pierre. “Papel da Memória” tradução e introdução José Horta Nunes, Campinas, SP, Pontes,
1999.
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A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate é que uma memória
não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam
transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo,
acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel
de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos, de
regularização...Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-
discursos.
Orlandi (1999:31), pensando a memória na relação com o discurso, a denomina
de interdiscurso, em que a autora o define como “aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente”. Ou seja, é o queOrlandi chama de memória discursiva: o saber
discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a formado pré-construído, o
já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação
discursiva dada.
No discurso dos habitantes da faixa de transição, as propostas
desenvolvimentistas para a Amazônia que na década de setenta deslocaram com
propagandas de incentivo migrantes, principalmente da região sul do país e os levaram a
buscar terras mais baratas para expansão agrícola, a desbravar o cerrado e garantir
fronteiras, continuam significando e configuram uma memória discursiva que por
filiações de sentido se vaihistoricizando, marcada pelas relações de poder no confronto
com o discurso jurídico-ambientalista governamental.
É fundamental para se compreender o funcionamento do discurso e a sua relação
com os sujeitos e com a ideologia o fato de que há um já-dito que sustenta a
possibilidade de todo dizer. A observação nos permite remeter o discurso encontrado na
faixa de transição a uma filiação de dizeres, a uma memória e a identificá-lo em sua
historicidade mostrando seus compromissos políticos e ideológicos, traduzidos em
sentimentos de injustiça e interdição.
Como no recorte já apresentado:
(...) se tem uma limitação qualquer que era 80%, passou para 50% e caiu para
20%, facinho de aparecer aí um boca de burro que de repente fala que não
pode desmatar mais nada(...) então eu comprei uma terra aqui há vinte anos
atrás para investir na Amazônia e eu chego aqui e a terra não serve prá mais
nada, é prá reserva.
(Agricultor, entrevista realizada em 04 de fevereiro de 1999)
“De repente fala que não pode desmatar mais nada”. Esta sequência discursiva
vem carregada de sentidos, em que ‘de repente’ traduz a insegurança, a incerteza em
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Efeito de fecho
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Achard, Pierre. 1999.Papel da Memória.Tradução e introdução José Horta Nunes,
Campinas, SP, Pontes.
Foucault, Michel. 1997. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 5ª
edição, RJ : Ed. Forense Universitária. p. 259
Henry, Paul. 1997. A História não Existe? In: Gestos de Leitura. EniOrlandi(Org.)
UNICAMP: Campinas.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história, 259-280
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p259
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
A campanha presidencial de 2014 no Brasil foi consideradauma das mais efervescentes
do cenário político. O primeiro turno foi marcado pelo grave acidente aéreo que vitimou
o presidenciável Eduardo Campos; Já o segundo turno compreendeu as discussões
calorosas que polemizaram a vida pública e pessoal dos candidatos envolvidos. Mas,
dentre tantos embates vivenciados nesta “festa da democracia”, o que nos chama
atenção é a movência de sentidos articulada na imagem dos presidenciáveis que
lideravam as pesquisas - Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). Entendido como
o representante da elite, Aécio ressurge como o discurso da mudança e o conservador da
família patriarcal, em detrimento da candidata oponente que figurativiza os ideais dos
menos favorecidos;sua imagem vem revestida por várias nuanças do dizer. Na esteira do
fazer epistemológico articulado pela Análise do Discurso, sobretudo firmados nos
conceitos de Foucault (2005; 2009), Courtine (1999), Burke (1992; 2000), dentre
outros, nosso artigo objetiva analisar os movimentos de sentido que circularam no jornal
Folha de SãoPauloe algumas redes sociais, acerca da imagem da candidata Dilma
Rousseff. Veremos como se dá o processo de rememoração instaurado na história do
tempo presente. Embora em alguns lugares Dilma ressurja como a personificação do
mal, em outro momento sua imagem de militância parece “ignorar” o tempo para
reafirmar a figura da jovem estudante, vítima dos mecanismos de vigilância e punição
característicos de um regime totalitário – os anos de chumbo da ditadura militar do
Brasil.
1. Introdução
1 Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV). Rua
Antônio Miguel Duarte – 301. Bancários, João Pessoa – PB. CEP.: 58051-125. Brasil.
edjaneassis@yahoo.com.br
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Durante longos anos vemos que a história se fez presente em nossa vida em suas
mais diferentes formas. Ela está nos livros, está na memória dos sujeitos sociais, está
nas frestas dos discursos e está também no silêncio. Narrar os fatos do passado e levar
ao conhecimento da sociedade momentos que ficaram imortalizados no decorrer do
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fez parte daquele contexto, até mesmo da própria existência de seus fundadores. Um
exemplo claro foi a morte de Marc Boch em 1944, fuzilado pelos nazistas.
Na década de sessenta, a revista Annales recebe uma reformulação e a crítica
contra o método tradicional historiográfico feito pela academia, ganha maiores nervuras
com personalidades, como: Fernand Braudel, Le Goff, Georges Duby, Emmanuel Le
Roy Ladurie, entre outros. Os estudiosos constituem a terceira fase dos Annales
conhecida como a Nova História. Braudel destaca-se com a tese O Mediterrâneo3em
que trata de estudar aquela região, observando os aspectos econômicos, sociais e
políticos. Vê a influência do ambiente no homem e descreve, de forma poética, as
peculiaridades do mar sempre as relacionando com o acontecimento e o fazer histórico.
De acordo com Burguiére (apud Le Goff, 2005, p.30), os Annales assumem a seguinte
posição:
A posição dos Annales veicula, (…), certo populismo: é preciso conceder
direito de cidadania à história dos humildes, ao lado da história dos
poderosos; o obscuro camponês que melhora a técnica do essartage no
âmbito de um sistema de gestos herdados e de uma paisagem aparentemente
imóvel é um agente histórico tão importante quanto um general que ganha
uma batalha. No entanto mais profundamente, ela se baseia numa concepção
multidimensional da realidade social, tendo cada dimensão, ou antes, cada
nível, vocação ao mesmo tempo para esboçar sua própria história e para
encontrar um modo de articulação com os outros, a fim de construir o
movimento de uma sociedade.
Os Annales compreendem um outro processo de reestruturação do pensamento
historiográfico. Estabelece uma tendência, até então silenciada por um fazer tradicional,
que contava uma história vista de cima, um caráter puramente dominante naquela
conjuntura. Para Burke (1992, p.10), “a nova história é a história escrita como uma
reação deliberada contra o ‘paradigma’ tradicional, aquele termo útil, embora preciso,
posto em circulação pelo historiador de ciência americano Thomas Kuhn”. Foucault faz
também uma crítica ao discurso do historiador tradicional:
Parece-me que se pode compreender o discurso do historiador como uma
espécie de cerimônia, falada ou escrita, que deve produzir na realidade uma
justificação do poder e, ao mesmo tempo, um fortalecimento desse poder. (...)
Duplo papel: de uma parte, ao narrar a história, a história dos reis, dos
3O Mediterrâneo já parte da perspectiva de que a história não deve se resumir a apenas um ponto
específico. Mas, tudo o que está correlacionado às estruturas, a uma história das ideias, é indispensável ao
processo historiográfico. Desse modo, Braudel procura instaurar múltiplos olhares, ao resgatar a memória
e compreender os sentidos inseridos nas peculiaridades daquela região.
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entre si para construir verdades. Sabendo que os enunciados são agrupados obedecendo
uma ordem, entendemos que o dizer do jornalista cultiva características do fazer
historiográfico tradicional. O jornalista atua mediante formas de representação que
produz sentido no imaginário social. Ambos, historiador e jornalista, enquanto sujeitos
que cumprem uma função autoria, manuseiam o discurso, agindo na temporalidade e
para isto, utilizam estratégias para produzir verdades (efeitos de representação) em
busca de dialogar diretamente com o público, mais especificamente para ganhar sua
confiança.
Em As Palavras e as Coisas (2002), ao estudar as similitudes, Foucault defende
que os enunciados não passam de um jogo de representação:
Nenhum signo surge, nenhuma fala se enuncia, nenhuma palavra ou nenhuma
proposição jamais visa a algum conteúdo senão pelo jogo de uma
representação que se põe à distância de si, se desdobra e se reflete numa outra
representação que lhe é equivalente. (FOUCAULT, 2002, p.108).
Sendo resultado de uma construção e representação, a memória manuseada no
(re)contar dos acontecimentos se move a todo instante, configura-se como um produto
de uma montagem, nas mãos de historiadores e jornalistas, quando trazem elementos do
passado, para significar o presente no instante midiático e construir, deste modo, uma
história do tempo presente.No fazer historiográfico, é na e pela memória que a história
vai sendo resgatada, reconstruída em outro momento, outro lugar. E, conforme os
pressupostos da AD, esse devir da memória é o que faz com que as coisas ditas, os
acontecimentos, apareçam de um modo dinâmico e dependente. Dependente dos
lugares, da contextualização, das condições em que essa história foi e é produzida nas
relações sociais, dependente, pois, da dinâmica dos acontecimentos. A memória é um
discurso - é uma memória discursiva.
A memória discursiva é o elemento que faz com que os discursos sejam
reconhecidos, retomados ou negados, e permite/promove um entrecruzar de vários
discursos. Faz parte da historicidade do sujeito, de sua constituição. A toda formação
discursiva está associada uma memória discursiva. É a memória discursiva que torna
possível à formação discursiva fazer circular formulações anteriores, já enunciadas. Ela
permite, na rede das formações, o aparecimento de refutações, remissões,
transformações de discursos historicamente construídos.
Tão fundamental para a história, tão fundamental para o jornalismo, a memória é
constitutiva do dizer e fruto de uma tradição que se perpetua na instância discursiva. Os
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dispõe, funcionam como um conjunto de recursos para construir esta história imediata.
Ao mesmo tempo, tais objetos não apenas resgatam a história, mas sevem para
oficializá-la, preservando a neutralidade e legitimidade do dizer. As imagens,
juntamente com os textos verbais, são arquivadas e utilizadas pelos sujeitos-jornalistas
sempre que for necessário, conforme suas necessidades e o jogo estabelecido no
ambiente da notícia.
É neste ponto em que jornalistas e historiadores ocupam uma função autoria:
quando selecionam, segmentam, silenciam, elucidam e agrupam os enunciados
dispersos para dar consistência de unidade, fabricar verdades e produzir identidades. O
discurso deve estar nas regras de um jogo; cada peça e sua posição na cadeia discursiva
contribui para a multiplicidade de sentido. É a fórmula/estratégia encontrada pela Folha
de São Paulode 1º de Setembro de 2014 para narrar a campanha eleitoral para
Presidência da República. Para isto, se utiliza de recursos tecnológicos, típicos da era
contemporânea, para se subjetivar como um lugar de memória quando apresenta o rosto
dos candidatos juntamente com sua ficha pessoal a fim de prestar serviços à sociedade.
Vejamos como a história e memória voltam no dizer do jornal e como o veículo
promove identidades no imaginário de seu (e)leitor. Algumas questões embasam nosso
pensamento neste primeiro momento: Como o jornal, assumindo o papel de advogado
das causas sociais, vai utilizar a imagem dos candidatos conforme o lugar que ocupa na
instância midiática? Como a memória é manuseada para (re)produzir as identidades dos
candidatos? E enfim, que procedimentos utilizados pelo historiador tradicional são
reproduzidos pelo historiador do instante ao utilizar novos procedimentos de interação
social promovidos pela tecnologia? As questões,embora não venham com respostas
prontas, nos fazem refletir que o processo da leitura (seja de qualquer meio), nos exige
um olhar discursivo frente ao que nos dizem todos os dias os meios de informação.
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Como forma de aproximação com seu público o jornal produz uma estratégia de
interatividade. Ao posicionar o mouse em cima de cada rosto do candidato,
imediatamente aparecerá seu perfil (biografia), de modo que o (e) leitor possa conhecer,
mediante os olhos do jornal, seu possível candidato. Atentamos para o fato de que o
rosto das personagens/candidatos não aparecem totalmente, mas de perfil, ou seja,
vemos apenas uma face, um lado da moeda, já que o jornal e somente ele, é quem vai se
encarregar de mostrar o que ainda não sabemos e não vimos – seu perfil pessoal, sua
vida financeira: dois critérios que irão desenhar, emoldurar o político, o principal líder
do país. A questão aqui não está em quem é focalizado no jornal, mas como o discurso é
entrecortado, que enunciados são escolhidos para emoldurar o perfil de cada candidato;
como os recortes são feitos, como os sentidos são produzidos, ou seja, que mecanismos
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a tortura em suas mais distintas modalidades é apensa alguns destas imposições. E nas
últimas linhas, ocupando uma função enunciativa significativa, a Folha evidencia a
doença enfrentada por Dilma – o câncer linfático – o que gera também uma espécie de
antagonismo entre a fragilidade humana e a força em lidar com os percalços da vida.
Em abril de 2009, Dilma anunciou que tinha câncer linfático. A doença foi
tratada no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, com sessões de
quimioterapia. Em 2010, elegeu-se presidente da República, derrotando o
tucano José Serra no segundo turno.6
A mídia, na versão do jornal Folha de São Paulo, produz sentido, ratifica
dizeres, atua num devir da memória com seus regimes de verdade, vontades de verdade
perante o público. É necessário voltar na história de cada candidato, conhecer suas
ações no passado, sua atuação na sociedade brasileira, para que o leitor, movido por
discursos cristalizados ao longo do tempo, seja capaz de conhecer e escolher seu
candidato. Através do a priori histórico, o jornal seleciona seu dizer, segmenta a
história, sistematiza cada momento para construir uma “nova” história e ocupa uma
função social em advogar pelas causas da sociedade – contribuir para a escrita da
história nacional.
O apagamento/silenciamentoou elucidação/evocação de um fato, ficam à critério
do historiador do instante, pois ele conta a partir de um lugar e movido por critérios e
ordens já determinadas na linha editorial do jornal. Assim, para aqueles eleitores que
forem contrários à ditadura militar é mais fácil estabelecer um grau de proximidade com
a candidata Dilma. Em contrapartida, os simpatizantes, que ainda defendem a ditadura e
enxergam a militância como algo nocivo e danoso, irão se aproximar com as propostas
do candidato Aécio Neves.
A Folha de São Paulo, embora narre uma história do tempo presente, reproduz
uma história vista de cima, quando seleciona os grandes acontecimentos e segmenta, na
irregularidade do dizer, enunciados povoadosde outros enunciados. Voltam discursos
moralizantes da sociedade brasileira: a conservação da família, a manutenção da
tradição política - raízes que devem ser cultivadas e políticos que merecem ser
lembrados nos lugares de memória. O historiador do instante, através do a priori
histórico, recorre à vida militante de Dilma e sua participação como membro do
Comando de Libertação Nacional – grupo de resistência à ditadura militar.No entanto,
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silencia seu papel de mãe e avó; enquanto que na organização do dizer que traça o perfil
de Aécio, ser pai de família é um aspecto primordial para o sentido que se pretende
ratificar na atual conjuntura da campanha.
Dentre alguns aspectos que problematizam a narrativa dos fatos está a
necessidade de comprovação e veracidade do que é dito. Para tanto, sobretudo na
prática contemporânea, recorre-se ao recurso da imagem e mais especificamente à
fotografia. No discurso jornalístico temos o fotojornalismo – uma área fundamental para
a interpretação dos fatos e que dialoga diretamente com o leitor. Na mídia impressa as
fotografias povoam as páginas de jornais e revistas e imprimem novos saberes no
público. A imagemfuncionacomo um recurso que promove a credibilidade do dizer.
Jean Jacque Courtine, ao estudar a imagem, utiliza o termo “intericonicidade”.
Para o teórico, toda imagem se inscreve em uma cultura visual, e essa cultura supõe a
existência de uma memória visual. Segundo Courtine, a interconicidade é constituída de
dupla face: uma imagem interna e uma imagem externa. As imagens são inscritas dentro
de uma série de imagens, em interdiscursos que ressurgem na cadeia discursiva. Assim,
estabelece-se todo um processo de inter-relação e interação, pois as imagens retomam
uma memória e dialogam em pontos complexos. Os aspectos que tomam a imagem
como um correlato de outras imagens são notáveis no discurso jornalístico.
As imagens utilizadas como legitimadoras de verdade no discurso jornalístico,
fazem sentido porque permitem revisitar lugares outros, e discursos que, em um certo
momento, parecem inertes num “sono profundo”, mas ocupam uma função enunciativae
resgatam/elucidam novos acontecimentos. Neste séculoem que predomina a cultura da
imagem, observamos a ampla utilização da fotografia juntamente com todo um aparato
verbo-visual que emoldura os dizeres. Conforme Vasques (2002, p.32):
Fotografar é sempre fazer história, seja a de nossas pequenas vidas, ou a das
nações e dos grandes homens. Mas, em alguns momentos o fotógrafo tem
mais nítida e precisa a certeza de estar “fazendo história” com seu trabalho,
usando seu engenho e arte para documentar as mais formidáveis realizações
de seus contemporâneos ou as avassaladoras tragédias que se abatem sobre
eles.
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Sentada com as mãos cruzadas e olhar distante focalizado para um ponto fixo, a
jovem Dilma surge em um momento de vigilância e punição – interrogatório do
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). A fotografia congela o
acontecimento que ressurge envolto de nuanças do (re)dizer; Alguns objetos aparecem
contraditórios quando o rosto de Dilma é evidenciado, enquanto que as faces dos
sujeitos que a interrogam, são encobertos pelas suas próprias mãos. Ambos “escondem”
seus rostos deixando transparecer que o foco está no encarcerado e não em quem o
prendeu. São mecanismos de vigilância atuantes na ditadura militar ancorados pelo
discurso da ordem.
A segunda imagem dialoga com a primeira quando traza projeção apenas do
rosto de Dilma com uma nova identidade – a ficha do DOPS. Os arquivos de memória
preservam o tempo e parecem ignorar a atualidade. Na irregularidade do dizer, as duas
imagensreúnem elementos narrativos de uma página significativa do país, e
paralelamente, recontam também a história dos sujeitos envolvidos neste cenário
conturbado e que ainda gera profundas discussões nos dias atuais – a exemplo temos a
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em outro momento, para outros sujeitos, as imagens reafirmam o dizer de que a justiça
foi feita e a ordem voltou. Semelhante aos procedimentos de punição do século XVI,
estudado por Foucault, e mais contundente na época da ditadura, Dilma (presa, com o
olhar fixo, em um interrogatório) é utilizada como um exemplo de punição – seu corpo
está preso, enclausurado, incapaz de comentar algum delito.
Os movimentos de representação entre o texto elaborado para o perfil de Dilma e
suas imagens em vários momentos lidam com a temporalidade e ignoram o passado. O
poder está nesta microfísica do dizer que é silenciado, mas continua atuante no
imaginário dos eleitores de ambas posições.
Analisar discursivamente os textos que circulam nas esferas midiáticas é não se
conformar apenas com o percurso da informação, mas procurar entender como a mídia
constrói saber, constitui poder, legitima verdades.A ditadura é recontada em diferentes
versões, cada versão sustenta uma verdade, cada dizer retoma outros dizeres, cada
discurso parte de pontos determinados/deslocados – quem conta esta história revela, nos
deslizes do (re)dizer, posicionamentos que se contrapõem, mesmo que atuem no mesmo
acontecimento discursivo e com os mesmos recursos – as fotografias que constam nos
arquivos da ditadura e que se tornaram de domínio público.
4. Considerações finais
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Arent, H. Entre o passado e o futuro. 4 ed. São Paulo, Perspectiva, 1997.
_____. A escrita da história: novas perspectivas. (org.), São Paulo, Unesp, 1992.
Foucault, Michel. A ordem do discurso. 6ed. São Paulo, Edições Loyola, 2000.
Kossoy, Boris. Fotografia e História. 3 ed. São Paulo, Ateliê Editorial, 2001.
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Nora, Pierre. Nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In:
Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-28, dez. 1993.
Veyne, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. 4ed. Brasília,
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Sites consultados:
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13.shtml)
http://acervo.oglobo.globo.com/fotogalerias/de-militante-presidente-9664143
http://www.blogdilmabr.com/e-dilma-na-cabeca e-na-camiseta-em-todo-o-brasil/
http://consciencia.blog.br/2014/05/60-perolas-de-paginas-de-direita-nofacebook-
12.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Dilma_Rousseff.
279
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história, 281-292
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p281
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Vanice SARGENTINI20
RESUMO
Em pesquisas sobre o discurso político eleitoral, observamos uma intensificação dos
confrontos nas redes sociais e nas circulações midiáticas. Se nos anos de 2002 e 2006
houve uma docilização do discurso político; nas eleições de 2010 e mais
especificamente de 2014 emergiram fortemente expressões de confronto e intolerância.
Isso nos leva às perguntas: - Quais foram as condições de emergência de um discurso de
ódio fortalecer-se nas campanhas eleitorais? O brasileiro objetivado cordial, segundo
Sérgio Buarque de Holanda, ou miscigenado, conforme Gilberto Freyre, divulgador da
democracia racial, tornou-se intolerante? Buscaremos nas raízes históricas dessa questão
que articula cordialidade/polidez e tolerância/ intolerância algumas respostas para
compreender as mutações do discurso político e as condições de emergência de um
discurso de ódio no período pré e pós-eleitoral presidencial no Brasil nas últimas
eleições. Para tal analisaremos enunciados produzidos por candidatos e por
manifestantes em protesto, a fim de acompanhar o funcionamento do dispositivo,
conforme conceito de M. Foucault, de cordialidade/ polidez e (in)tolerância.
281
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
político. Era tempo doLula paz e amor e ele nos mostrava, em sua campanha, mulheres
grávidas, sorrindo e cantando e caminhando de mãos dadas, ou ainda atores negros,
indígenas, brancos e orientais declamando Gilberto Freyre (poema O outro Brasil que
vem aí). Eram tempos de docilização do discurso político. O olhar intransitável e
provocador dos pleitos anteriores de Lula foram substituídos pelo sorriso seguro, pelo
olhar indireto e complacente. A esperança venceu o medo e uma ‘certa paz’ reinou aos
olhos do brasileiro e dos estrangeiros que viam o então presidente Lula até mesmo
como ‘o cara’, para empregar uma expressão de Barak Obama.
Isso nos leva a perguntar: - Quais foram as condições de emergência de um
discurso de ódio fortalecer-se nas campanhas seguintes a respeito desse mesmo
partido e dos políticos de forma geral? - O brasileiro cordial, segundo Sérgio
Buarque de Holanda ou miscigenado, conforme Gilberto Freyre, divulgador da
democracia racial, tornou-se intolerante?
Buscaremos nas raízes históricas dessa questão que articula cordialidade-polidez
e tolerância-intolerância algumas respostas para compreender as mutações do discurso
político.
282
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
283
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
Mas o que vimos ocorrer no pleito de 2014 e nas recentes manifestações é uma
grande amostra da expressão de discursos de intolerância. Essas ocorrências parecem
conduzir nossas reflexões para outra direção e isso exige escavar mais profundamente
os traços discursivos da cordialidade. Se um deles, conforme dissemos, é a valorização
incondicional do ‘estranho (estrangeiro – da cordialidade com o estrangeiro/ a tolerância
com o pensamento do outro)’, um outro traço discursivo é o de se ver uma
descontinuidade entre família e Estado. Um atravessamento constante que mescla
relações de proximidade (emprego de diminutivos e palavras carinhosas, bem como o
tratamento pelo prenome), com manutenção de autoridade.
Nos enunciados proferidos por políticos, essa distinção no trato está também
inscrita cronologicamente. Atribui-se ao polêmico Jânio Quadros, quando era prefeito
de São Paulo, a seguinte frase21:
“Intimidade gera aborrecimentos ou filhos. Como não quero aborrecimentos
com a senhora, e muito menos filhos, trate-me por Senhor.”
- Quando interpelado por uma jornalista a respeito de sua opinião sobre os
homossexuais e foi chamado de “você”.
Neste exemplo, a cordialidade é o signo da autoridade e as regras de polidez são
o meio para a manutenção desse distanciamento. Intolerância com a jornalista e uma
forma de contornar, de não dizer sobre o tema ou estender sua intolerância sobre a
homossexualidade é o que se pode extrair desse enunciado.
Já em exemplo de enunciado mais recente, podemos ver que a relação entre o
político e o cidadão não é de ‘autoridade política’; as relações são de comportamentos
próprios da esfera privada, da casa e não da esfera pública (da rua):
21 http://advivo.com.br/comentario/re-os-50-anos-da-renuncia-de-janio-0
284
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
22 http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/discursos-da-presidenta/discurso-da-
presidenta-da-republica-dilma-rousseff-na-cerimonia-de-batismo-da-plataforma-p-59-maragojipe-ba
285
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
286
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
287
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
25http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2015/03/08/e-preciso-coragem-para-chamar-uma-mulher-
de-vaca-da-janela-do-predio/
288
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
d) Sou contra o impeachment porque acho que a Dilma foi eleita democraticamente
pelo povo, mas ela não tem condição de governabilidade, ela até pode ficar para
a história, mas espero quetenha a humildade de renunciar.
Essas frases foram ditas por participantes da passeata quando interpelados
individualmente no local de protesto. Elas ilustram a recorrência de uma construção
sintática presente em 18 respostas, dentre as 30 coletadas e publicadas no infográfico
(Folha de São Paulo, 16/08/2015) e indicam (i) a presença de uma primeira oração ou
parte da frase na qual está presente uma expressão de negação, seguida de (ii) uma
segunda oração ou parte da frase introduzida pelo ‘mas’. Na primeira parte da frase, a
partícula de negação expõe a sensibilidade e polidez do sujeito enunciador que
apresenta um forma de preâmbulo para asseverar a segunda parte da frase, introduzida
pelo ‘mas’ que desencadeia a proposição mais grave. Vimos nessas frases uma
recorrência sintática que inscreve o sujeito enunciador no dispositivo da autoridade e
intolerância, pois,de forma polida, cordial, complacente, ele se exclui na primeira parte
da frase, pela negação da ação da qual participa e posteriormente, na segunda parte, de
forma intolerante, ele afirma sua posição.
Algumas conclusões.
O sujeito enunciador das ruas, aquele que ergue cartaz porta-voz de seu discurso
formula seu dizer no interior do dispositivo da intolerância, enquanto esse mesmo
sujeito enunciador, ao ser interpelado nas ruas e expressar-se oralmente em resposta a
um jornalista, vale-se de uma estrutura sintática que lhe confere polidez, aonão dizer de
modo direto, ao apresentar argumentos que lhe atribuam ponderação e certa
complacência, ainda que em conclusão venha a garantir força ao seu último argumento,
no caso o descrédito na política, no governo ou na presidenta.
Nesta circunstância de entrevistado, o sujeito enunciador não sente fragilizada
sua posição, não sente ameaça à sua autoridade e por isso mantém a polidez e
consequentemente seus traços de cordialidade. A nosso ver esses exemplos reafirmam
como a cordialidade é uma questão de autoridade e a intolerância uma questão de poder.
A ameaça da perda da autoridade autoriza a impolidez e faz emergir fortemente a
289
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
intolerância. Esses poucos exemplos ao qual fizemos referência, ainda que muito
graves, são um exemplo diminuto do ódio e da intolerância que vivemos no país hoje.
Nesse dispositivo cordialidade-polidez e tolerância e intolerância, esse sujeito ‘homem
cordial’, investido da autoridade, tende a proteger seus espaços de atuação e é tolerante
se ele tiver alguma vantagem com os sucessos do outro.Dunker (2014), na visada da
psicanálise, dirá que esse sujeito é tolerante enquanto ele puder partilhar do gozo do
outro, e por isso, nessa condição ele terá tolerância. Isso nos leva a compreender “a
gênese de diversos sentimentos sociais alinhados à tolerância, como a piedade, a
comiseração,a compaixão e, sobretudo,sentimentos de respeito indiferente.”(2014, p.
38).
Nesse dispositivo, a intolerância atua na delimitação de espaços, estabelece as
fronteiras, os limites. O êxito do outro não está partilhado com o intolerante, e então ele
passa a incomodar. Ao sentir que o outro passa a ter direito sobre um seu espaço, e que,
portanto, passa a dividir com ele o seu universo de discursos, a intolerância emerge
polidamente ou não. A intolerância é uma forma de resposta à ameaça do poder, ao
temor de ver fragilizada a autoridade. E como o dispositivo responde a uma urgência e
pode ser fonte de um preenchimento estratégico (Foucault, 2014), um jogo
argumentativo forma-se em torno dessas relações de cordialidade, polidez e
(in)tolerância.
Nossas questões iniciais somente podem ser respondidas com alguma inflexão e
graus de ponderação. Vimos o discurso de ódio fortalecer-se nas campanhas eleitorais e
também no período pós-eleitoral. Esse discurso assim se caracteriza porque abriga a
intolerância que compreende o preconceito religioso, social ou político tão presentes nos
exemplos analisados. Compreende também o sexismo no meio político, em especial em
relação à mulher. Como verificamos a tolerâncianão é o signo da cordialidade, mas da
articulação da autoridade e do poder e isso pode deslizar facilmente para a intolerância a
ser observada tanto em expressões graves que circulam desinibidas na ordem do
discurso como na recorrência de construções sintáticas presentes na ordem da língua.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dunker, C. (2014)Intolerância e cordialidade nos modos de subjetivação no Brasil.
In.:Fantini (org.) Raízes da Intolerância. São Carlos: EdUFSCar. p.17-42.
290
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
291
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história, 293-306
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p293
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O estudo que será apresentado tem como objetivo analisar a constituição da
subjetividade do sujeito discursivo Tertuliano Máximo Afonso, personagem central do
romance O homem duplicado (2008) de José Saramago e o funcionamento discursivo da
verdade. Como fundamentação teórica pautaremos nos estudos de análise do discurso de
linha francesa e nos estudos de Michel Foucault que tratam da constituição dos sujeitos
e como as relações de poder/saber corroboram para a constituição de “verdades”. A
partir desse aparato teórico podemos afirmar que os sujeitos são constituídos pela
exterioridade e as verdades que os cercam são cambiantes e se repetem em muitos
momentos históricos, entretanto, com sentidos díspares. Elas são tramas discursivas que
apresentam sentidos que estão intrinsicamente relacionados com a história que permeia
a produção do discurso. Os resultados apresentados apontam que Tertuliano assume
outro lugar de verdade tendo em vista a historicidade que o permeia, ele não é mais o
professor de história e sim o ator. Essa mudança em sua subjetividade vai se dando de
forma lenta e gradual no decorrer da narrativa e culmina no momento em que Tertuliano
atende o telefone e assume o papel de António Claro. Destacamos que as mudanças
ocorridas na constituição de sua subjetividade e os sentidos emergidos são
materializados através da língua, ou seja, ela é suporte para a produção discursiva.
293
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
Iniciando
27 Segundo Deleuze (2009, p.1), “Alice assim como Do outro lado do espelhotratam de uma categoria de
coisas muito especiais: os acontecimentos, os acontecimentos puros. Quando digo “Alice cresce”, quero
dizer que ela se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela também se torna menor do que é agora.
Sem dúvida, não é ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ele se torna um
e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nos tornamos
maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um
devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta
a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro. Pertence à essência do devir
avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce sem ficar menor e inversamente. O
bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o paradoxo é a
afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo.”
294
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
levam-nos a refletir acerca de “quem somos nós?”, bem como dos papéis que os sujeitos
desempenham atualmente.
295
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o
poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso - como a
psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou
oculta) o desejo, é também, aquilo que o objeto do desejo; e visto que – isto a
história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simplesmente aquilo que
296
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se
luta, o poder do qual não queremos apoderar.
Nesse mesmo estudo, Foucault (2006, p.89) esclarece que o poder não mantém nenhum
contato com conceitos de estado, soberania, lei e dominação, para ele, o poder deve ser
visto como uma relação de forças que se chocam e se embatem a todo o momento,
criando “cadeias ou sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que isolam
entre si”.
O poder para Foucault (1982, p.243) é “uma ação sobre outra ação possível”.
Isso quer dizer que o poder não pode ser encontrado em uma substância, pois não o
temos, exercemo-lo. Ele é efetivado somente entre sujeitos, não temos um poder
localizado em um ponto específico na sociedade, o que encontramos é uma rede de
mecanismos que envolvem todos os sujeitos, não havendo, assim, limites para a sua
disseminação.
O que expusemos até o momento, bem como outras considerações elencadas por
Foucault no decorrer de suas pesquisas acerca do poder, a instauração da psiquiatria, a
história da sexualidade, a normalidade/anormalidade estão intimamente ligadas à
constituição dos sujeitos. Sujeitos esses, que ao longo dos tempos, sofreram com as
mudanças dos padrões que ocorreram na sociedade.
Somos constituídos por uma exterioridade que nos subjetiva. Sentimos a todo
instante a necessidade de estarmos inseridos em uma sociedade e para que isso ocorra
não medimos sacrifícios. Temos a necessidade de pertencer a um lugar, não importa que
lugar seja esse, precisamos ser aceitos e nos sentirmos confortáveis perante os outros
sujeitos. Neste momento, paramos e questionamo-nos: por que somos assim? O que nos
torna sujeitos? São perguntas que já foram feitas por muitos pesquisadores, mas que
ainda não obtiveram, e nem obterão, uma resposta definitiva. E o que é ser definitivo em
uma sociedade que sofre movências a todo instante?
Existem algumas “verdades” que não são nossas, mas as aceitamos. Somos
constituídos por relações de poder, como Foucault afirma, e sabemos tão pouco a
respeito delas. Em Microfísica do poder (1995, p.179), o estudioso inicia o XII capítulo
pontuando o que estudou de 1970 até aquele momento, em seguida faz a seguinte
reflexão:
De que regras de direito as relações de poder lançam mão para produzir
discursos de verdade? Em uma sociedade como a nossa, que tipo de poder é
capaz de produzir discursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos?
Quero dizer que em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer
297
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
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Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
Quando chegou sua vez de falar, num tom indolente e monocórdico que os
presentes estranharam, limitou-se a repetir uma ideia que ali deixara já de ser
novidade e que era motivo invariável de alguns risinhos complacentes do
plenário e de mal disfarçada contrariedade do diretor, Em minha opinião,
disse ele, a única opção importante, a única decisão séria que será necessário
tomar no que respeita ao conhecimento da História, é se deveremos ensiná-la
de trás para diante ou, segundo a minha opinião, de diante para trás, todo o
mais, não sendo despiciendo, está condicionado pela escolha que se fizer,
toda a gente sabe que assim é, mas continua a fazer-se de conta que não
(SARAMAGO, 2008, p.41).
Tertuliano percebe que existe um problema no ensino de sua disciplina, mas não
sabe o que fazer. Tertuliano profissional, como pessoal enfrenta dificuldades, não sabe o
que fazer com sua existência.A descoberta de António Claro, o ator que fisicamente
igual a Tertuliano, está fazendo com que sofra uma mudança substancial em sua
constituição. Tertuliano não apresenta mais o referencial de “individualidade” que era
constitutivo de sua subjetividade antes da descoberta. Essa mudança emerge não só no
lado pessoal, mas também profissional. Assim, ele passa a questionar as “grandes
verdades” como veremos a seguir:
Sim, mas a mim o que sobretudo me atrai é a fascinante declaração de que as
grandes verdades não passam de trivialidades, o resto, a suposta necessidade
de uma expressão nova e paradoxal que lhes prolongue a existência e as
substantive, já não me diz respeito, sou apenas um professor de História do
ensino secundário (SARAMAGO, 2008, p.71).
As “grandes verdades” não existem para Tertuliano, assim como ele também não
existe. O professor de história acreditava que era único enquanto sujeito, mas não é
mais, e isso é muito constrangedor para ele emotivo de acentuadas mudanças em sua
existência, principalmente, em sua subjetividade. Em outro momento ele afirma que
“Grandes verdades, grandes mentiras, suponho que com o tempo tudo vai se tornando
trivial, os pratos do costume com o tempero de sempre” (SARAMAGO, 2008, p.73).
Tertuliano sofre muito ao longo da trama, entretanto, vale ressaltar como
mencionamos acima que essa é uma característica da sociedade contemporânea. Ele
descobre que não é único e essa descoberta faz com que busca incessantemente a
identidade de seu “sócia”. Tertuliano descobre a identidade, estabelece contato com o
ator, mas infelizmente o desfecho da narrativa não é o esperado por Tertuliano.
António Claro se passa por Tertuliano juntamente com Maria da Paz a namorada de
Tertuliano e no meio de uma discussão, sobre quem era aquele Tertuliano, eles sofrem
304
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
um acidente e morrem. Para poder continuar existindo Tertuliano não tem outra opção
que não assumir o papel de António Claro. No próximo fragmento ele já está na casa do
ator e no papel de António Claro. “O telefone tocou. Sem pensar que poderia ser algum
dos seus novos pais ou irmãos, Tertuliano Máximo Afonso levantou o auscultador e
disse, Estou” (SARAMAGO, 2008, p.283).
Considerações finais
305
Simpósio 13 - O sujeito e a língua sob determinações do discurso e da história
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bauman, Z. Identidade: entrevistas a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
306
SIMPÓSIO 14
GRAMÁTICA COMUNICATIVA DA LÍNGUA
PORTUGUESA
COORDENADORES
Liliane Santos
(Université de Lille)
RESUMO:
No âmbito do simpósio 14, que trata do uso da abordagem comunicativa no ensino de
Português Língua Estrangeira (PLE), esta reflexão tem como objetivo expor alguns
elementos pedagógicos que considero essenciais para uma aprendizagem do tipo
indutiva da língua portuguesa, percorrendo brevemente as correntes de vários estudiosos
desta matéria e apresentando diacronicamente a evolução desta abordagem para chegar
aos aspetos sincrónicos. Para tanto, metemos em evidência metodologias de ensino –
como, por exemplo, precedência da habilidade oral, uso do PLE na sala de aula,
tratamento do erro, tipo de materiais didáticos, apresentação da gramática através de
método indutivo, introdução de situações de quotidiano, dramatização, etc. –, além da
utilização dessas metodologias perante os vários tipos de situação de
ensino/aprendizagem (por exemplo, tipo de público, idade, objetivo, interesse e grau de
escolaridade dos alunos, material didático e equipamento escolar, a língua de origem
dos discentes). Esta reflexão tem em conta a minha experiência pessoal como docente
de PLE durante os últimos dez anos em Itália, nomeadamente na Sardenha.
Caraterísticas fundamentais
1 UNICA, CLA – Centro Linguistico di Ateneo dell’Università degli Studi di Cagliari, Via Porcell,
09100, Cagliari, Italia, apsalvador@libero.it.
309
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
310
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Ora, tendo em conta todos estes elementos, seria auspicioso a realização de uma
gramática de PLE que privilegiasse uma abordagem comunicativa da língua, assim
como novos manuais de PLE para utilizar na sala de aula, de modo a dar preferência a
esta metodologia.
Esta abordagem fundamenta-se num príncipio pragmático-funcional e implica várias
características que eu, após uma observação das opiniões dos principais estudiosos nesta
matéria, considero essenciais, e que consistem o núcleo da minha reflexão. É o que
veremos a seguir.
Já em meados do século XVIII, Antoine Pluche (1751), mais conhecido como abade
Pluche, apresenta um conceito fundamental da abordagem comunicativa: “Il ne peut y
avoir que deux façons d’apprendre les langues. On les apprend par l’usage, et ensuite,
si l’on veut par une étude réfléchie”.
Segundo Pluche, a ordem natural das habilidades linguísticas é que a linguagem oral
deve preceder a escrita. Este estudioso afirma também que o ensino de uma língua
estrangeira deve partir da associação objeto/palavra e, só num segundo momento, passar
a uma análise da palavra e da estrutura gramatical.
Utilizar exclusivamente a L2 na sala de aula significa que o professor pode até nem
conhecer a L1 dos alunos, pois dará preferência ao uso de diálogos e atos de
conversação.
Também Lambert Sauveur (1881) apresenta os princípios fundamentais para o
ensino de uma língua estrangeira e propugna: “Qu’on enseigne une langue étrangère à
311
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
l’adulte comme la mère enseigne sa langue à son enfant (...) Cette méthode interdit
rigoureusement l’usage de la langue de l’élève au commencement des études”.
O autor defende, assim, o uso exclusivo da língua estrangeira na sala de aula,
dando origem ao que chamamos uma abordagem oral e comunicativa da língua.
Gramática indutiva
O tratamento do erro
312
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
313
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
A realidade quotidiana
Para além dos exemplos já citados, encontramos muitos outros estudiosos, como,
por exemplo, Otto Jespersen (1860-1943), linguista dinamarquês, e François Gouin
(1831-1896), professor francês, que defendem o uso da fonética e da dramatização na
sala de aula para otimizar o ensino das línguas estrangeiras. Este último publica, em
1880, L’art d’enseigner et d’étudier les langues, obra na qual propõe o uso da técnica
de dramatização, privilegiando uma apresentação da gramática baseada em situações
autênticas, o que implica o envolvimento das capacidades indutivas e criativas do
discente.
Também Berlitz (1852-1921), linguista alemão, explica a importância de o aluno
pensar em língua estrangeira, o que acontece quando o professor propõe na sala de aula
diálogos ou dramatizações de situações quotidianas nas quais a L2 é utilizada como
instrumento de comunicação, prevalecendo o seu valor pragmático sobre a exatidão
formal, desenvolvendo, assim, uma competência comunicativa mais profunda no
estudante.
Após observação dos resultados de vários estudos no domínio do ensino de
línguas estrangeiras e de várias experiências de ensino, sou de opinião que o professor
deve apresentar ao aluno não só a língua (tendo um papel de tutor no percurso de
aprendizagem do estudante), mas também a cultura, a civilização, a sociedade, os
costumes e as tradições dos países de língua portuguesa, devendo sobretudo neste
ponto, utilizar sempre que possível as tecnologias de glotodidática, principalmente
314
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
vídeos, pois a associação da língua com a cultura dos países onde esta se fala é essencial
para uma melhor compreensão e para uma eficaz abordagem comunicativa.
Quanto ao material didático, considero assaz importantes os materiais áudio e
audiovisual que acompanham os manuais e que apresentam um percurso estruturado em
unidades didáticas em que são apresentadas situações de quotidiano, com exercicíos que
privilegiam os atos comunicativos. Isso permite viabilizar, desde o início, o
desenvolvimento das quatro habilidades linguísticas – ouvir, falar, ler e escrever – com
uma interação entre oral e escrito e, obviamente, com uma progressão gradativa de
dificuldades, do tipo: compreensão → reprodução → reprodução + produção →
produção, que permite centralizar no aluno uma maior capacidade de interagir em
português. Pessoalmente, considero fundamental um manual didático que apresente
mormente uma competência comunicativa da língua portuguesa.
Conclusão
Para concluir, tendo em conta não somente as opiniões dos estudiosos desta
matéria mas também a minha experiência como professora de PLE em Cagliari –
experiência que, desde o início, se baseia na abordagem comunicativa, corroborada pela
imensa dificuldade que havia, há doze anos, quando iniciei, em adquirir material
didático para o ensino de PLE (que, para além de escasso era obsoleto) –, confirmo que
uma circunstância tal leva o docente a elaborar pessoalmente grande parte do material
didático, a criar diálogos com situações de quotidiano, bem como a usar documentos
autênticos (como, por exemplo, receitas, anúncios, vídeos, excertos de noticiários,
canções, etc.). Este facto – ser o próprio professor a produzir o seu material – dá a
possibilidade de adequar os conteúdos às necessidades e interesses dos alunos, tendo em
conta vários fatores que compõem o perfil dos aprendentes (como a idade, o ramo
profissional ou de estudos e o objectivo final de cada um deles), concedendo-lhes,
assim, um papel ativo na interação comunicativa e a oportunidade de serem coautores
do próprio percurso de aprendizagem da língua portuguesa – o que, evidentemente,
proporciona aos discentes uma grande motivação e, consequentemente, um resultado
muito positivo.
315
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
316
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Almeida Filho, José Carlos Paes. 1993. Dimensões comunicativas no ensino de línguas.
Campinas: Pontes Editores.
Pluche, Noël-Antoine. 1751. La Mécanique des langues et l'art de les enseigner. Paris:
Vve Estienne et fils.
Sauveur, Lambert. 1881. De l’Enseignement des langues vivantes. New York: H. Holt.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Balboni, Paolo Emilio. 1989. Un modello operativo per la didattica. In AA.VV.:
Inglese, francese, tedesco – modelli operativi. Brescia: Editrice La Scuola.
Bona, Cambiaghi. 1987. Didattica della lingua francese. Brescia: Editrice La Scuola.
Chagas, Valnir. 1957. Didática especial de línguas modernas. São Paulo: Companhia
Editora Nacional.
Lyster, R.; Ranta, L. 1997. Corrective feedback and learner uptake: Negotiation of form
in communicative classrooms. Studies in Second Language Acquisition, n. 19, p. 37-66.
Marcel, Claude. 1853. Manual of the Teacher and the Learner of Languages. London:
Chapman and Hall.
Swain, M. 1995. Three functions of output in second language learning. In Cook, G.;
Seidlhofer, B. (Eds.). Principles and practice in applied linguistics: Studies in honour
of H. G. Widdowson. Oxford, UK: Oxford University Press, p. 125-144.
317
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa, 319-338
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p319
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Thomas JOHNEN3
RESUMO:
Enquanto as gramáticas tradicionais, em última análise, são gramáticas da frase, para
uma abordagem comunicativa da gramática convém partir da unidade textual mínima
que é o ato de fala (cf. Engel, 1991 e Johnen, 2012). Em manuais modernos de
Português Língua Estrangeira e Segunda Língua (PLE/PLS), os atos de fala recebem já
certa atenção, faltando, porém, uma abordagem sistemática e uma progressão
didaticamente adequada para fomentar o desenvolvimento da competência comunicativa
(ver também, para o Espanhol como Língua Estrangeira, de Matos Lundström, 2013). O
objetivo deste artigo é apresentar uma descrição do ato de fala desculpa em português
(cf. Johnen; Weise; Schmidt-Radefeldt, 2003), no âmbito de uma gramática
comunicativa, i.e., na interface entre sintaxe, semântica e pragmática. Apesar da sua
importância para a aquisição de uma competência comunicativa, até hoje, este ato de
fala foi raramente considerado na gramaticografia do português (cf., contudo, o
tratamento em Carreira e Boudoy, 1993: 123-124).
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
4 As partes que descrevem diretamente o ato de fala desculpa são um resumo revisado de Johnen; Weise;
Schmidt-Radefeldt (2003), trabalho publicado unicamente em alemão. Uma versão abreviada em russo
pode ser encontrada em Weise (2003).
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
A desculpa é um dos atos de fala com base nos quais Austin ([1962] 2006:
192-208) desenvolveu o conceito de performatividade, sendo que o ato de desculpa é
realizado pela sua enunciação. A classificação da desculpa por Searle (1979: 23-24) como
ato expressivo teve uma grande recepção também na linguística. Assim, Mateus et al.
(1989: 129) definem como finalidade do ato de fala “exprimir o estado psicológico do
locutor em relação ao estado de coisas especificado no conteúdo proposicional”. Outros
consideram como elementos centrais a expressão de lamento ou de arrependimento
(Leech, 1983: 217; Searle; Vanderveken, 1985: 11; Martens-Cleef, 1991: 289). Vale,
porém, questionar se no ato de desculpa a expressão de emoções é realmente a finalidade
principal. Seria difícil explicar realizações de desculpas como no exemplo (1), nos quais o
falante viola uma norma social de maneira voluntária, se desculpando no momento da
própria violação:
(1) Peço desculpa por telefonar a esta hora (Mateus et al. 1989: 130).
Parece mais adequado considerar o ato de fala desculpa como uma atividade
reparadora (Kerbrat-Orecchioni, 1998: 148), cujo objetivo é restabelecer o equilíbrio
ritual da interação. Particularmente na vida pública, trata-se, muitas vezes, de um ato
simbólico que sinaliza a submissão do violador da norma às normas vigentes ou o
reconhecimento das relações de poder sem ser, necessariamente, a expressão emocional
de arrependimento. Habermas (1997, II: 104), por sua vez, ressalta que não se pode
concluir de um ato de desculpa que o falante realmente pensa ou sente o que expressa
pelo ato, mesmo se é verdade que o falante tampouco pode demonstrar de maneira
ostensiva que não sente arrependimento ou não lamenta o ocorrido (ver o exemplo
apresentado por Olshtain, 1989: 155-156). Além disso, a desculpa pode ser usada
também de maneira estratégica (Keller, 1984: 20).
A motivação da enunciação de uma desculpa, portanto, não é tanto o desejo do
falante de expressar um sentimento, mas, antes de tudo, o objetivo de diminuir um
desequilíbrio entre falante e ouvinte (Leech, 1983:125) que é caracterizado por uma
tensão psicossocial (Engel, 1991: 43). Pode ser, então, considerado como um ato de
contrabalanceamento ou de equilibragem (Goffman, [1967] 2012: 26-30). A função
principal do ato de desculpa é, portanto, “a regulação da relação interpessoal” (Carreira,
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
1995: 105). Essa caracterização converge com a classificação do ato desculpa por
Habermas (1997, I: 437) como ato de fala regulador e, neste grupo, como ato
satisfativo. Habermas (id.: 435-436) frisa o caráter social deste ato, pois o falante se
refere a algo num mundo social comum, de maneira a indicar que deseja construir uma
relação interpessoal reconhecida. Wunderlich (1976: 77-84) também classifica a
desculpa na categoria de atos de fala satisfativos – junto com os atos de justificação,
agradecimento, resposta e argumentação. Outros, como Wilske (1983: 25) e Wandtke
(1987: 26-27) consideram que a desculpa pode ser atribuída a três procedimentos de
comunicação diferentes: sóciorreguladores, expressivos e estabelecimento de contato.
Para localizar melhor o ato de fala desculpa no conjunto dos atos de fala mais
correntes, reproduzimos, no Quadro 1 (página seguinte), a proposta que Engel (1991:
36) apresenta na sua gramática do alemão (para maiores detalhes da adaptação para o
português, ver Johnen, 2012).
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
(2) Situação: Baltasar (=B) e Piedade (=P) encontram-se num bosque. B está de
pé, P está sentada. Os dois estão conversando:
P: se é verdade que há qualquer coisa em si que me atrai ... desculpe a
franqueza ... outros há ... que odeio
B: ((senta-se e começa sorrir)) nada melhor para acanhar-me, Piedade ...
essa é a mais forte expressão de amor (Oliveira, 1995: I: 12).
Parece útil indagar se o ato de fala de desculpa se distingue de outros atos de fala
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
que referem, como este, a um evento negativo ou uma transgressão de norma sob
responsabilidade do falante. O Quadro 2 (página seguinte) oferece uma visão de
conjunto das convergências e divergências entre o ato de fala de desculpa, por um lado,
e os atos de justificação, confissão de culpa, pedido de perdão, pedido de compreensão,
além dos atos de lamentação e de contestação, por outro.
A distinção mais fundamental está no nível da atitude proposicional de Ix com
relação ao evento x. No caso de todos os atos de fala mencionados, com exceção da
contestação, trata-se do fato de que:
Isso significa que Ix admite tanto o evento quanto a sua autoria, ou seja, a sua
responsabilidade pelo evento. No ato de contestação, ou é contestada a realidade do
evento ou a autoria, isto é, a responsabilidade de Ix.
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Título/ papel
sobrenome
nome nome de batizado
Preparação da alocução apelido
atenção forma de tratamento
insultuosa
pronome
marcador de pedido de atenção
Fórmula de desculpa
advérbios intensificadores
como parte da expressões / exclamações emocionais
fórmula de expressões que marcam um certo nível de linguagem
Intensificadores
desculpa cluster de intensificadores ou repetição dos mesmos
da desculpa
partícula de cortesia (p.ex. por favor)
referência a sentimentos do ouvinte
gestualidade, mímica, prosódia
Menção do evento ocorrido
confissão de culpa
arrependimento, fórmula de arrependimento
declaração de ausência de intenção
compreensão pela reação do ouvinte
Atitude perante a
declaração sobre o próprio estado emocional (geralmente: vergonha ou
responsabilidade
constrangimento)
por x
admissão dos fatos e rejeição da responsabilidade
rejeição da renegação da responsabilidade
admissão da acusação do ouvinte
culpa alegação de ter sido ferido
explicação
pergunta pela aceitação da desculpa
oferta de reparação
promessa de melhora
questionamento da norma
Tentativa de fingimento de não ter percebido o evento ocorrido
desvio de atenção comentário orientado para o futuro ou para uma tarefa a realizar
do evento humor
ocorrido oferta de compensação para acalmar o ouvinte
meios lexicais ou fraseológicas de atenuação
Quadro 3: Componentes possíveis do ato de desculpa
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Se, por um lado, no caso de uma desculpa implícita pode bastar a expressão de
uma lamentação, por outro não será possível combinar um pedido de desculpa explícito
com uma expressão de não-lamentação, como Fraser (1981: 261) ressalta com toda a
razão:
(5) MÉDICO LEGISTA – Ainda há mais ... apesar de as provas serem claras essa
besta nunca me reconheceu como seu filho e, não contente com isso,
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
5 Sobre gestos que sublinham a sinceridade de um pedido de desculpa em outras culturas, ver Kerbrat-
Orecchioni (21998: 161-162) para o francês, bem como Müller (1998: 104) e Johnen; Weise; Schmidt-
Radefeldt (2003: 29-30) para o alemão.
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Perdão!
Mil desculpas!
As minhas desculpas!
O meu pedido de desculpa!
Em certos contextos: Com licença!
Perdão! pode ser utilizado também de maneira preventiva (cf. Maçãs, 1976:
219) e, além disso, como atos de fala de delimitação de contato (por exemplo,
realizando um ato de estabelecimento de contato), como em (6):
(6) Perdão! Que horas são, por favor? (Carreira; Boudoy, 1993: 123).
(7) As minhas desculpas, mas que idade tem? (Carreira, 1997: 161).
6 Nos baseamos, além da análise do nosso corpus, nas seguintes publicações: Schemann; Schemann-Dias
(1979: 225), Kröll (1980-1986), Casteleiro (1984: 66), Wandtke (1987: 34), Casteleiro; Meira; Pascoal
(1988: 146-148; 202); Carreira; Boudoy (1993: 70-71; 123-124; 259-260; 279); Morais; Franco; Herhuth
(1994: 39), Carreira (1995), Carreira (1997: 135-164), Campo (1998: 100-101), Lalana Lac; Pereira
(1998: 172-173), Campo (1999: 39-45), Morais (1999: 66), Khlyzov (2000: 36-39), Carreira (2001: 94-
100), Monteiro (2008), Gomes (2010), Whitlam (2011: 404-406) e Gonçalves (2013).
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
(8) Quem nasce burro, com licença, nunca chega a cavalo (Almeida,7
1932: 27).
(9) ((Situação: num refeitório de um comissariado de polícia, duas
personagens – um oficial de polícia (P) e João de Deus (JD) – estão
sentados à uma mesa, comendo))
P: o que é isto? ((aponta para um pedaço de pão na mesa))
JD: é uma carcaça ... toda gente vê que é uma carcaça
P: e o que é que a carcaça tem dentro?
JD: rodelas de chouriço
((O oficial de polícia tapando a boca com a mão e arrotando de maneira
discreta))
P: com licença ... teu nome diz-me qualquer coisa ... João de Deus de quê?
JD: só João de Deus (Monteiro, 1989, 1: 39)
(10) – uma questão que me surge, ah, quando um leiloeiro está a fazer a
avaliação de uma peça tem que saber que ela é, eh, fidedigna
– ah! Pois tem que fazer, tem que ir peritar e especialmente na pintura. hoje
há inúmeras vigarices, quem, desculpe o termo, mas é mesmo isto, e ...
que é preciso detectar (Casteleiro; Nascimento, 2001, pasta: “Portugal”,
ficheiro: “O Leiloeiro”).
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
(14) O segredo desta terra está nos três quindins: terra granita, água granita e
caganita com perdão de V. Excelência (Ribeiro, s.d., apud Kröll,
1980-1986: 76).
(15) Quis a fortuna que mestre Braz se metesse por então a mercador de porcos
mortos com licença do patrão (Godinho, 1941: 236; apud Kröll,
1980-1986: 76).
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
7. Observações finais
O objetivo deste artigo foi dar, numa primeira aproximação, uma visão de
conjunto de questões relevantes para a análise do ato de fala de desculpa em português.
Por razões de espaço, não foi possível detalhar todas as formas explícitas possíveis, nem
analisar as formas implícitas mais frequentes (para mais detalhes, ver Johnen; Weise;
Schmidt-Radefeldt, 2003: 51-54; Monteiro, 2008: 116-119; Gomes, 2010: 87-95).
Tampouco foi possível descrever as reações possíveis ao ato de desculpa, dos quais
apresentamos uma primeira visão de conjunto em Johnen; Weise; Schmidt-Radefeldt
(2003: 54-57; ver também Whitlam, 2011: 406). O foco deste estudo foi nas questões
teóricas de definição e delimitação do ato de fala de desculpa, bem como na sua
estrutura gramatical. Futuros estudos deveriam analisá-lo a partir de uma perspectiva
interacional em contextos autênticos. Os estudos de Monteiro (2008) e Gomes (2010)
tentam considerar os contextos interativos dos filmes que constituem os respectivos
corpora e apontam, neste sentido, na direção certa, se bem que seria necessário ampliar
a base empírica. Estudos contrastivos poderiam elucidar ainda mais as especificidades
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa, 339-348
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p339
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RESUMO:
No processo ensino/aprendizagem do Português como Segunda Língua (PL2), segundo
proposição da gramática comunicativa, o ensino da gramática deve tomar como ponto de
partida as necessidades comunicativas e os interesses comunicativos dos aprendizes,
integrando a reflexão gramatical, sempre a serviço desses interesses e conforme necessidades
daí advindas. Nessa direção, propomos apresentar, neste trabalho, o relato de uma experiência
sobre o ensino de língua portuguesa para aprendizes indígenas, especificamente no que tange
à concordância verbal. Tomamos por base os pressupostos teóricos de autores como Matte
Bon (1995), Marcuschi (2008) e Santos (2011), que postulam uma abordagem de ensino de
língua contextualizado, em situações comunicativas, levando-se em conta a situação
enunciativa como elemento fundamental para desenvolver as habilidades linguístico-textual-
discursivas do aprendiz. Em face de a língua portuguesa surgir para algumas comunidades
indígenas como segunda língua e ocupar um espaço relevante, diante de necessidades, hoje
existentes, de vindas constantes à cidade, de serviços bancários, de negociações com parceiros
de projetos agrícolas da lavoura mecanizada e outras atividades, cabem reflexões sobre a
língua enquanto elemento de construção de identidade. Os resultados da pesquisa apontam
que a ênfase no conhecimento puro e simples de aspectos gramaticais embasa-se numa
concepção de língua como um fim em si mesma. No entanto, o contexto cultural proporciona
uma reflexão crítica sobre as concepções de língua que envolvem os vários saberes e
conhecimentos tradicionais. Esses dados indicam o quanto é importante para o professor uma
nova postura em relação à concepção de língua e à abordagem de ensino a ser adotada.
1. Perspectivas iniciais
O presente artigo se insere numa pesquisa mais ampla, na qual buscamos refletir sobre
8 UFMS, CCHS, Câmpus de Campo Grande, Cidade Universitária, Universitário - CEP: 79070-900, Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil, marialucelifaria@gmail.com
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
2. Um pouco de teoria
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
condições em que ela se realiza deveriam ser iguais para os termos que “concordam”. No
entanto, um deles é que impõe a concordância, a que tem que se submeter o termo “menos
importante”.
Parece-me que isso acontece mais precisamente com línguas de origem latina,
diferentemente de muitas línguas indígenas, que apresentam estrutura diferenciada, como, por
exemplo, a língua paresí.
Na análise, observei a concordância verbal e a relação/harmonização do verbo com os
demais termos da frase nas produções textuais em língua portuguesa, apesar de verificar, em
muitos textos, ocorrência de desvios relativos à coerência, coesão, hipercorreção, entre outros.
Adotei a metodologia de transcrição de alguns trechos em língua materna paresí, a fim
de observar como se apresentava a relação de concordância nessa língua e, ainda, buscar
entender como se dava o processo de transferência para o português. Importa, aqui, destacar
que, segundo Maia (2003: 78), “o fenômeno conhecido como transferência se dá quando
estruturas da primeira língua interferem na expressão oral ou escrita da segunda língua”.
Meu córpus constitui-se de recortes de textos produzidos em sala de aula9, a partir da
escrita de narrativas produzidas por alunos de quinta a sexta séries do ensino fundamental,
com faixa etária variando de 12 a 30 anos, oriundos da escola Zozoiterô, situada na aldeia Rio
Verde, localizada no estado de Mato Grosso.
Embora, na maioria das vezes, os alunos tenham optado pela estrutura padrão da
língua portuguesa (segundo a NGB, [sujeito + verbo + objeto (SVO)]), foi possível perceber
que a relação entre esses termos não se apresentava de forma harmônica. Vejamos:
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Julgamos pertinente frisar que, segundo Rowan (1989: 9), na língua paresí o tempo
não se mostra no verbo. Há diferença, então, entre a língua portuguesa e a língua paresí. Isso
pode implicar consequências na conjugação e na concordância do verbo. Vejamos as
considerações apresentadas no Manual Prático da Língua Paresí (ROWAN, 1989: 19):
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Note-se que, além de haver diferenças nas estruturas das duas línguas, o marcador de
tempo é isolado do verbo, no primeiro caso e, no segundo há, ainda, o marcador de plural.
Como, então, essa transferência se dá para um falante que tem como L2 a língua
portuguesa? Para lançar um pouco mais de luz a essas reflexões, vejamos outro exemplo:
Onte, eu e Nadilson, nós fomos pescar no rio, nos chegar, no rio pescar pegar muito
peixe.
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Podia-se esperar que o verbo “pensar” estivesse flexionado na 3ª. pessoa do singular
do pretérito perfeito (“pensou”). Essa conclusão foi possível ao considerar o texto na íntegra,
em que a narrativa contextualizava fatos já ocorridos e concluídos. Partindo desse ponto,
teríamos a seguinte sentença em língua materna:
O menino estava sentado no banco, ele pensou.
Ahekotita ene zoimya tyokita
pensar – marcador de passado – menino – sentar
Em português, o verbo não está flexionado no pretérito; porém, na língua paresí, como
se observa na transcrição, há um marcador de tempo isolado do verbo. É possível, então,
pensar numa possível influência na produção do enunciado em língua portuguesa.
Cabe fazer menção às diferenças existentes entre as estruturas, no que se refere à
ordem dos termos, entre as duas línguas. Seria possível que tais diferenças influenciassem
os alunos da etnia paresí na escrita de textos em língua portuguesa?
O que fica evidente, após observar as transcrições, é o fato de esses alunos lidarem
diariamente com duas línguas totalmente diferentes, com sons e estruturas diversificadas.
Dessa forma, refletir sobre como isso afeta suas produções textuais faz-se necessário, uma vez
que o desejo, tanto de alunos quanto de comunidades indígenas, é ter conhecimento e domínio
da língua portuguesa. Como ressalta Paes (2002: 127),
A Língua Portuguesa aparece como elemento prioritário (...). O Paresí compreende
que toda dinâmica da sociedade envolvente está estruturada sobre a língua nacional
(...). Com o domínio desta língua o Paresí pode estabelecer uma relação de luta
marcando sua posição na sociedade dos “civilizados”.
Vale então, aqui, retomar afirmações contidas em nossa Constituição: “O ensino
fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurando às comunidades
indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem”. Parece-nos que, diante do quadro apresentado, o professor não-índio que
pretenda trabalhar com a disciplina de Língua Portuguesa para aprendizes indígenas precisa
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
4. Perspectivas finais
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Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa, 349-367
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Liliane SANTOS10
RESUMO
Nosso objetivo, neste trabalho, é o de apresentar uma taxonomia das estratégias
linguísticas utilizadas para cumprir o ato de fala de recusa, no Português do Brasil.
Considerados como atos de fala complexos – noção similar à de evento comunicativo –
os atos de fala em questão serão, assim, examinados a partir de um duplo ponto de vista:
o de seu papel enquanto estratégias que procuram evitar uma resposta socialmente
reprovada (um “não” puro e simples) e de seu papel como reveladores do trabalho (ou
desejo) de preservação da imagem pública dos locutores. Para esse estudo, utilizamos
um corpus propositalmente heterogêneo, o que nos permitiu encontrar ocorrências que
não teríamos encontrado se tivéssemos trabalhado com um corpus mais homogêneo.
Introdução
10 Université de Lille, CNRS, UMR 8163 – STL – Savoirs Textes Langage, F-59000. UFR Langues,
Littératures et Civilisations Étrangères, Département d’Études Romanes, Slaves et Orientales, Section de
Portugais. BP 60149 – Domaine Universitaire du Pont-de-Bois – 59653 – Villeneuve d’Ascq Cedex –
France. liliane.santos@univ-lille3.fr.
349
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
casos os participantes intervêm em turnos alternados (mesmo se, algumas vezes, com
horas ou dias de diferença entre um turno iniciador e a resposta), em todos os exemplos
os participantes serão identificados pela letra “L” (para “locutor”).
Este trabalho está dividido em três partes: começaremos por uma breve
exposição do quadro teórico no interior do qual desenvolvemos nossa reflexão,
passando, em seguida, para a apresentação da classificação e da taxinomia propostas.
Na terceira e última parte, apresentamos nossas considerações finais, nas quais
destacamos as possibilidades de desenvolvimento da análise aqui iniciada, a partir dos
pontos que foram abordados mas não aprofundados, tendo em vista os limites deste
trabalho.
1. Quadro teórico
11 Não apresentaremos aqui a teoria dos atos de fala, que damos por conhecida. Para essa teoria,
remetemos a Searle (1969, 1976, 1979).
350
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
principalmente a recusa constituem uma ameaça para a imagem positiva12 deste último,
o que explica que seja realizada principalmente por meio de estratégias indiretas13,
como veremos a seguir.
2. Estratégias
12 Utilizamos o termo imagem para traduzir o termo inglês face, da teoria da polidez linguística – que não
apresentaremos aqui e da qual a noção de imagem positiva (“positive face”) é extraída. Para essa teoria,
ver Brown & Levinson (1978, 1987), Goffman (1955) e Kerbrat-Orecchioni (1994, 1996).
13 Para a noção de estratégia linguística, ver Haverkate (1984).
14 Também conhecidos como “estratégias de mitigação”, esses elementos foram estudados em inglês por
Stalpers (1995), no contexto de desacordos em negociações comercias e, em português, por Albuquerque
(2003), no caso dos “atos de negar em entrevistas televisivas”.
15 Essa descrição inspira-se na apresentada por Beebe, Takahashi & Uliss-Weltz (1990), para a língua
inglesa, assim como na descrição proposta, também para a língua inglesa, pelo Center for Advanced
Research on Language Acquisition (CARLA) da Universidade de Minnesota (Carla, 2015), que
agradecemos pela autorização para a adaptação do material.
351
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
(“sim” ou “não”):
Figura 1: Estratégias utilizadas para responder negativamente
352
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Por sua vez, a recusa explícita a uma proposta ou um convite, quando ocorre, é
geralmente considerada “muito seca” ou “rude”:
(2) [Numa universidade, numa mesa de estudos coletiva. L2 mora longe do
campus e os ônibus estão em greve.]
L1 – Você não quer ir dormir em casa hoje à noite?
L2 – Não.
L1 – ...
[Súbito silêncio na mesa, inclusive por parte dos que não participavam da
conversação.]
A falta de reação de L1, mas principalmente o silêncio por parte dos que
circundavam os interlocutores mostra que “não se deve dar um ‘não’ como resposta”.
Em outros termos, ao responder com um simples ‘não’, L1 rompeu uma norma social.
(3) L1 – Vou fazer um jantar para os amigos, na minha casa, no sábado, você
vem?
L2 – Ai, que pena! Não vou poder ir, que chato!
A expressão de tristeza pela recusa (principalmente quando antecipa a recusa
propriamente dita) permite ao locutor não atingir a imagem pública do solicitante e, ao
mesmo tempo, não exige que apresente uma justificativa – o que pode ser feito,
evidentemente. Nesse caso, teríamos uma estratégia suplementar, que veremos a seguir.
353
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
C. Expressão de
impossibilidade
Razão Explicação
“Desculpa”
(4) L1 – Mas você não comeu quase nada… come mais um pouquinho!
L2 – Ah… não vai dar, minha flor… tô de regime!
Muito frequente, essa estratégia é também muito recomendada pelos manuais de
etiqueta, pois dar uma razão ou uma explicação para uma recusa, principalmente se for
pessoal, permite ao locutor recusar sem atentar para a imagem do interlocutor e, ao
mesmo tempo, preservar a sua própria imagem.
354
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
L2 – Ah… hoje não dá, tenho que ficar aqui, trabalhando. Mas segunda
que vem eu prometo que vou!
Como no caso da solução alternativa que vimos no exemplo (5), a promessa de
aceitação futura tem a dupla função de preservar a imagem de ambos os interlocutores e
apagar a ofensa cometida pela recusa.
Embora L2 possa procurar se defender, argumentando que sua intenção não foi
recusar o pedido de L1, mas somente indicar que não tinha como aceitá-lo plenamente,
o que mostra que a aceitação condicional é tratada como uma recusa é o fato de L1 não
ter respondido a L2, isto é, não ter indicado se a condição era satisfatória nem ter
enviado o trabalho em questão.
355
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
maneira indireta, que a pergunta do interlocutor for “indiscreta”, e que é por isso que L1
não responde.
356
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
íntimos ou membros de uma mesma família) ou entre aqueles em que há uma relação de
poder desequilibrada (L2 ocupando, evidentemente, a posição de maior poder).
(10) L1 – J, a gente precisa falar com o S, assim não dá pra continuar. Você
vem comigo?
L2 (a) – Vou sim, claro.
L2 (b) – O que é que você não me pede sorrindo que eu não faço
chorando?
Se, do ponto de vista formal, a falta de entusiasmo equivale a uma aceitação,
do ponto de vista pragmático trata-se, no mínimo, de uma “aceitação forçada”. Como
mostra a resposta (L2b), o português codificou uma fórmula para esse tipo de resposta.
Também a hesitação pode ser vista como uma “aceitação forçada”, por indicar o
estado de espírito pouco favorável de L2, mesmo se, do ponto de vista formal, equivale
a uma aceitação. Veja-se, além disso, que em certos casos o pedido não precisa ser feito
para ser recusado.
357
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
(12) L1 – S, cê sabe que o meu namorado tá vindo pra cá, pra ficar um mês
aqui, né? Então, cê não podia emprestar a sua casa pra gente, por uns
dias? Cê fica na casa da mãe [que fica ao lado].
L2 (a) – Vou pensar.
L2 (b) – Hm… posso responder mais tarde?
358
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
359
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
360
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
(19) L1 – (…) a gente tem que entregar o projeto na sexta à tarde. Você pode
ler o texto pra amanhã?
L2 – Olha, G, mais do que eu tô fazendo não dá!
(20) L1 – Você leu o e-mail que eu mandei? Preciso de uma resposta logo…
L2 – Li, sim, vou responder logo.
Essa estratégia tem um certo parentesco com a estratégia H2 (falta de
entusiasmo) mas, mais particularmente, com a estratégia H4 (adiamento). Sua
particularidade, no entanto, reside no fato de que o pedido de adiamento se dá de
maneira indireta.
361
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
(21) L1 – Você tem que voltar a falar com o JP, vocês não podem continuar
brigados assim!
L2 – Olha, W, se você fizer isso, eu vou brigar é com você!
Sendo um ato socialmente reprovado, a ameaça tem por consequência principal,
geralmente, o estremecimento das relações entre os interlocutores. Note-se, além disso,
que uma ameaça pode não somente provocar o abandono do pedido pelo locutor que o
fez, mas também que só pode ser utilizada numa relação de poder desequilibrada.
362
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
363
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
3. Considerações finais
364
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
uma análise mais fina, que verifique se se trata de uma única estratégia ou se há
argumentos que indiquem se tratar de duas estratégias diferentes.
Também é preciso ressaltar que muitas das respostas negativas – principalmente
na categoria “esquiva” (estratégia H) – correspondem a aceitações formais, o que
mostra que a recusa pura e simples é, de fato, a mais rara das estratégias, devido às
consequências que pode ter para as relações entre os interlocutores.
O terceiro ponto que merece destaque – e que indica um rumo futuro para este
trabalho – é o fato de que, embora tenhamos apresentado as estratégias separadamente,
na realidade é muito frequente que mais de uma estratégia seja utilizada para recusar – o
que mostra a dificuldade em recusar e mostra, ao mesmo tempo, que a recusa
corresponde à definição de ato de fala complexo (ou de evento comunicativo) que
apresentamos no início desta exposição, pois cada estratégia corresponde a um ato de
fala diferente.
O quarto ponto que merece ser aprofundado diz respeito às reações às recusas,
pois somente a resposta do locutor que recebeu uma resposta negativa a seu pedido,
convite, proposta ou sugestão é que permite saber de que modo a estratégia foi
interpretada (ver os exemplos (7) e (13)).
O quinto ponto que mereceria uma investigação mais afinada e aprofundada é o
fato de que algumas respostas correspondem a fórmulas, isto é, combinações
pré-existentes, prontas para serem utilizadas em certas situações (ver a resposta L2b, do
exemplo (10) e L2a, do exemplo (12)).
Do mesmo modo, a questão das relações de poder entre os interlocutores é um
ponto que foi abordado apenas de passagem, mas que deve ser aprofundado. Como
vimos, em muitos casos a relação de poder é um elemento determinante na escolha da
estratégia por aquele que recusa, já que algumas formas de recusa correspondem a uma
séria ameaça às imagens de ambos os interlocutores, sendo, ao mesmo tempo,
demonstrações de poder. É o caso, por exemplo, do silêncio, estratégia que nos leva a
abordar o sétimo ponto que gostaríamos de destacar: a escolha de um corpus tanto
falado quanto escrito foi o que nos permitiu encontrar exemplos em que essa estratégia é
utilizada. De fato, nas situações de comunicação síncrona, em face a face, o silêncio
parece ser evitado, sem dúvida por ser considerado como ainda mais descortês do que
uma recusa direta.
365
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Albuquerque, Adriana F. de S. 2003. A construção dos atos de negar em entrevistas
televisivas: uma abordagem interdisciplinar do fenômeno em PLE. Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Beebe, L. M., Takahashi, T., & Uliss-Weltz, R. 1990. Pragmatic transfer in ESL
refusals. In: Scarcella, R., Andersen, E. & Krashen, S. D. (Eds.). On the Development of
Communicative Competence in a Second Language. New York: Newbury House,
p. 55-73.
Haverkate, H. 1984. Speech acts, speakers and hearers. Reference and referential
strategies in Spanish. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins.
Murphy, B. & Neu, J. 1996. My Grade’s Too Low: The Speech Act Set of
Complaining. In: Gass, S. M. & Neu, J. (eds.) Speech acts across cultures: Challenges
to communication in a second language. Berlin: Mouton de Gruyter, p. 191-216.
366
Simpósio 14 - Gramática comunicativa da língua portuguesa
Searle, John R. 1969. Speech acts. An essay in the philosophy of language. Cambridge:
Cambridge University Press.
_____. 1979. Expression and Meaning: Studies in the Theory of Speech Acts. New
York: Cambridge University Press.
Stalpers, J. 1995. The expression of disagreement. In: Ehlich, K. & Wagner, J. (Eds.)
The Discourse of Business Negotiation. New York: Mouton de Gruyter, p. 275-290.
Tanck, S. 2004. Speech act sets of refusal and complaint: A comparison of native and
non-native English speakers’ production. TESOL Working Papers, 4 (2), p. 1-22.
367
SIMPÓSIO 15
LINGUÍSTICA HISTÓRICA E ONOMÁSTICA: LÍNGUAS
ROMÂNICAS, LÍNGUAS INDÍGENAS
E LÍNGUAS DE SINAIS
COORDENADORES
RESUMO
Estudo que reúne análise de alguns hagiônimos no que se refere a sua etimologia, sua
história de implantação devotiva relacionada à colonização de Goiás e sua propagação
no meio do povo enquanto representação de padroeiro e antropônimos. Nessa análise,
aponta-se a importância de conhecer a história dos santos e reconhecer suas intercessões
que muitas vezes estão ligadas ao seu próprio nome. Um dos propósitos deste estudo é
evidenciar que o hagiônimo muitas vezes revela a história do santo e do lugar em que
vivem seus devotos. Importa chamar a atenção ao fato de que muito dos fiéis não
relacionam o nome do santo à causa de devoção, como mostraram as pesquisas feitas no
projeto “A linguística e colonização de Goiás”. Os pontos abordados etimologicamente
são os hagiônimos como santo, Deus, anjo, Jesus Cristo, parte dos vários títulos e
nomes recebidos por Nossa Senhora, bem como de outros santos católicos, a saber, São
Paulo, São Pedro, Santo Antônio e outros. Faz parte deste estudo uma amostragem
econômica, social e política na ocasião das “descobertas” e fundação das cidades, no
período de colonização de Goiás.
Introdução
371
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
Importa relatar que esse estudo foi resultado de parte de uma pesquisa maior do
projeto “A linguística e a história de colonização de Goiás”. O foco central aqui é tratar
dos hagiônimos de alguns santos cultuados pelo povo Brasileiro, enfatizando Nossa
Senhora e alguns de seus nomes mais conhecidos nos estados de Goiás, Tocantins,
Minas Gerais e São Paulo. Em consequência desse estudo, fez-se necessário incluir e
analisar, etimologicamente, outros termos ligados ao sagrado como santo, Deus, anjo e
arcanjo.
Essa pesquisa sobre os hagiônimos visa mostrar que muitas vezes o próprio
nome desses santos revela as causas de por que o povo crê que na intercedência deles,
mas notou-se que isso não é percebido pela maioria das pessoas, mesmo em se tratando
de termos como aparecida, perpétuo socorro. O caso mais corriqueiro é o de São
Expedito. Sabe-se que a ele é atribuído o título “o santo das causas urgentes” e o
significado da expressão “expedito” ou “expedido”, como define um pesquisado,
“enviado, mandado”. É entendido pelos devotos desse santo que “o pedido já foi
recebido por ele e já foi mandado ao Senhor, então está resolvido”. Ou seja, na crença
popular, os pedidos feitos a ele são uma emergência, então, por intermédio dele, esses
pedidos serão atendidos e com rapidez.
Outra motivação que fez com que se trabalhasse este tema foi a quantidade de
nomes e títulos atribuídos a Nossa Senhora, que é assumida como sendo várias santas,
na hora de tê-la como sua santa de devoção, como se pode verificar no decorrer das
entrevistas sobre a história de colonização de Goiás.
Essa discussão parte da Onomástica, mas no decorrer das análises envolve
etimologia, geografia, história e outras áreas e subáreas de conhecimento que
contribuem para melhor compreensão da dinâmica dos hagiônimos e do comportamento
religioso do povo.
Inicia-se esta análise tratando da etimologia dos termos santo, Deus, anjo, Jesus
Cristo, Nossa Senhora e suas variações, depois se trata de nomes de alguns santos e
santas. Além da etimologia, nessa análise dos hagiônimos, investiga-se também a
história de como o santo se tornou referência de santidade, por que tem tal nome, e,
quando pertinente, apontam-se contextos políticos e socioeconômicos brasileiros que
interferiram na escolha do santo para devoção.
O presente estudo está dividido em quatro itens básicos: Introdução; Discussão
teórica; Religião, sagrado e santo; Visão política social, econômica e religiosidade
brasileira; Hagiônimos; Considerações finais e Referências.
372
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
Discussão teórica
373
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
A busca do homem pelo seu criador, ou por um ser que seja maior e mais
poderoso que ele, leva-o ao que chamamos de religião. Essa busca se dá de modo
diversificado devido à cultura e à geografia em que esse homem está inserido. Joseph
Campbell (1994) detalha esse tema de modo muito claro na obra “O poder do mito”.
Sabe-se que homem modifica a natureza no decorrer do tempo e também se modifica,
assim também acontece com as pessoas e o sagrado.
Está comprovado que o sagrado está presente, se não em todas, na maioria das
culturas. Assim, a religião parece ser essencialmente própria do homem e esta está
ligada ao sagrado.
Durkheim (1954) assume que as relações sociais, ao serem produzidas,
reproduzem-se por meio de rituais e símbolos. Esses ritos e símbolos são sagrados e
profanos. No entanto, não entraremos no detalhamento do profano aqui, pois importa
374
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
falar do sagrado para trabalhar a ideia de santidade e sua relação entre antropônimos e
hagiônimos.
O termo religião vem de re-ligare, isso é, religar, reler com visão para o alto.
Pode-se entender que a religião tem como propósito levar o ser humano a seu lugar de
origem. Já o termo sagrado vem de sacrato, sacer, sacra, sacrum. Sagrado é relativo ou
inerente a Deus, a uma divindade, à religião, ao culto ou aos ritos e, assim, diz respeito
ao que é sacro.
As expressões santo e são aplicam-se ao que está perfeito, àquele que tem saúde.
No latim sanu, a, um aplica-se ao que é ‘são, sadio’. Por uma questão de harmonia
fonética, convencionou-se usar santo quando o nome referente inicia-se com vogal, por
exemplo, Santo André, Santo Antônio e não *São André e *São Antônio, e usar são
quando o nome referente se inicia com consoante, São Paulo, São Pedro, e não *Santo
Paulo e *Santo Pedro.
Santo é uma expressão muito antiga. Já entre os romanos se adorava um deus
que chamavam de sanctus. Acreditava-se que ele tornava os juramentos e promessas
invioláveis, além de predizer seu cumprimento. O seu nome deu-se pelo verbo sancire,
o que é “consagrado”. Sanctus é o particípio passado de sancire, aquele que deve ser
respeitado acima de tudo, resultando o termo “santo”.
Em termos etimológicos, o verbo ser gera sunt no latim, assim, sanctus “santo”
(ct ~ t) entende-se “consagrado” (cum + sacrato). Observando os processos fonológicos
tem-se: sacrato > sagrado (k ~ g e t ~ d); santo > sano (nto ~ no), são (san.no > san.o >
sã.o > são). Esses termos remetem ao que é perfeito, ao que está além do material, ideal.
A palavra “deus” deriva do latim dăus, dei “ser supremo”, em francês dieu no
século IX-X, em espanhol dios no século X, em italiano dio no século XI. Nos séculos
XII, XIII a forma era deus, no século XIV já se tem as formas deos e dioses. Pela
religião e pela teologia, grafa-se essa palavra com inicial maiúscula, e assume-se que
essa palavra é usada para tratar de um ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por
si só; sendo Ele a causa necessária e o fim último de tudo o que existe.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Deus. Acessado em janeiro de 2016.
Nas religiões primitivas, Deus é uma designação dada às forças ocultas, aos
espíritos mais ou menos personalizados; ídolo fabricado pela mão do homem ao qual
lhe presta culto e lhe atribui poderes.
Nas religiões politeístas antigas, Deus é uma divindade superior aos homens e
aos gênios à qual se atribui uma influência especial nos destinos do universo. Nas
375
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
Italiano: Dio; Espanhol: Dios; Português: Deus; Latim: Deus; Francês: Dieu
Deus e divus são termos latinos e διϝος que significa divino descende do proto-
indo-europeu deiwos que significa “brilhante/celeste”. Dyēus se refere à divindade
principal do panteão indo-europeu, cognato ao termo grego Zευς (zeus).3 Em outras
línguas tem-se o termo partindo de *deiwos e deiHwos pode se fazer uma lista
comparativa para se aproximar da origem do termo Deus passando por diversas
culturas. Em Sancrito = Deva; Gaulês = Devos; Lituano = Dievos; Irlandês =
Dia/Dé; Germânico = Tiuz; Angl- saxão = Tiw; Nórdico Týr.
O significado da palavra deiHwos significa “luminos, brilhante” por derivar de
*deiH que é “brilhar”, de onde origina o termo dies do latim que passa a dia; também o
nome indo-europeu do deus do céu, Dye:us; no grego Zeus, latim Ju:piter, no indiano
Dayaus.4
O termo anjo vem do iraniano tomado de empréstimo pelos gregos ó ággelos. O
significado do termo é “o mensageiro”, “servidores de Deus”, “mediadores de Deus”.
Derivado de tó euaggelion ~ to evanguélion => o evangélio. Aggelein (grego)
“anunciar”, ho ággelos “o anunciador”.
Importa aqui, após o detalhamento de termos ligados ao sagrado, tratar também
dos temas economia, espiritualidade e direcionamento religioso por esses, comumente
estarem muito próximos entre si. Assim, na sequência, discute-se como esses temas no
376
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
377
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
e decidiram por explorá-la. Essa afirmação fica evidente ao observar-se como sugiram
os povoados desses estados e as suas festividades religiosas.
Observou-se, no decorrer das pesquisas nesses estados, que a metodologia usada
era quase sempre a mesma. Assim, após confirmarem que havia riquezas naturais,
normalmente minérios, decidiam por explorá-los. Então, eles se fixavam na localidade
com um grupo de pessoas que já os acompanhavam para trabalhar.
Cada grupo de explorador era comandado por um líder. Esse, muitas vezes, ao
tomar posse do lugar doava um terreno para a construção de uma capela ou igreja. A
escolha do santo a ser cultuado na localidade, como mencionado, muitas vezes já estava
estabelecida por aquele que chefiava o grupo. Isso é extremamente funcional, pois,
dessa forma, garantia a manutenção daquelas pessoas que vieram com ele e ainda atraia
outras para a localidade.
Com o passar do tempo, muitas dessas localidades aumentaram o número
populacional e tornaram-se um lugar opcional para alguns “sem opção” trabalharem.
Assim, fica evidente que esses lugares reproduziram a estrutura econômica onde uns são
os “donos”, que são aqueles que foram para lá explorar riquezas naturais com o intuito
de enriquecerem-se mais, e outros, menos abastados, que iam para lá para sobreviver e
contribuir com aqueles já abastados.
Ao considerar a religiosidade como preestabelecida pelos “donos” do lugar, fica
transparente que é fora de contexto um povo questionar a escolha de santo para se
venerar. Isso fica mais impossível ainda quando os festejos religiosos passavam a
tradicionais. Assim, as crenças do povo desses lugares davam-se com base nos símbolos
religiosos preestabelecidos por aqueles que decidiram ficar ali e não pelos que tiveram
que ficar ali. Isso parece natural, todavia, esses dois fatores desencadearam uma
diferença socioeconômica muito grande. E, com o passar do tempo, essa situação vai se
reforçando até todos dali considerarem também natural essa dominação econômica,
social e política. Acredita-se que os símbolos religiosos, não só podem direcionar a
crença da localidade e região, mas também podem pautar o comportamento dos que
vivem ali.
Hoornaert et al. (1974) diz que
Na realidade o cristianismo católico é um elemento característico e
caracterizante da sociedade na qual vivemos e só conseguiremos entender
claramente a cultura cristã que nos foi legada pelo passado se estudarmos
como ela funciona no conjunto da vida no Brasil português, quais foram as
378
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
Hagiônimo
Para abordar os nomes dos santos, os hagiônimos, importa analisar o nome mais
reverenciado pelos cristãos, Jesus Cristo, que revela algumas novidades que os estudos
teológicos trazem de modo científico. Em seguida, trata-se dos hagiônimos relacionados
a Nossa Senhora, depois dos de outros santos, incluindo, Padre Cícero, pela grande
influência que este teve e tem no Nordeste e no Brasil. Isso acontece mesmo este não
sendo canonizado pela Igreja Católica Apostólica Romana.
a. Jesus Cristo
O nome Jesus em latim é Iesus, Iesous em grego. Em hebraico Yeshua
significando “salvador”5. Josué era um nome comum entre os judeus. Yeshua e sua
versão tardia é Yehoshua, com adaptação resultou em Josué.
O termo Cristo em grego Khistos significa “o ungido”, Khistós do grego clássico
“coberto de óleo”, “untado”, “algo espalhado na pele”, neste caso era óleo. A expressão
cristo era escrito Xto [ic.tyó] que significa “peixe”6. Em grego “Ichths” era usado como
um signo secreto pelos cristãos entre os pagãos. “ICHTHS” correspondem a Iesous
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Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
Christòs Hyos Soter, (Jesus Cristos Filho de Deus, Salvador). Cristo é referente a um
título, messias. Em hebraico é mashiah de mashah que é messias, que por sua vez
significa untar, ungir, também encontra a tradução “aquele que foi ungido com azeite
para ser declarado rei”7.
Muito antes da época de Jesus, uma pessoa, para se apresentar à divindade,
deveria “estar limpo”. Isso quer dizer que se fazia uma limpeza corporal refinada na
pele da pessoa. Essa limpeza era feita passando-se óleos finos na pele, depois o retirava
com um instrumento de metal recurvo. Depois disso, a pessoa estava “limpa”, “untada”,
“ungida”.
b. Anjos
Os textos apresentam de forma mesclada quando tratam de anjos e arcanjos.
Pelos textos bíblicos, são apresentados três anjos e um arcanjo que são Samuel, Rafael e
Gabriel e o arcanjo, Miguel. Já nos textos apócritos são citados sete anjos, além dos três
mencionados têm mais quatro que são Uriel, Sealtiel, Jehudiel, e Barachiel.
Vale ressaltar que em textos gerais falam como arcanjos todos os anjos. Mas
pela Igreja, só Miguel é arcanjo e os demais são anjos. Seguem a etimologia dos nomes
dos três anjos:
Samuel (Hebraico) Shamah – verbo ouvir, “o que escuta (o Senhor) Deus”;
Rafael (Hebraico) “r” e “f” significa curar/sarar, “medicina de Deus”;
Gabriel (Hebraico) significa força, “quem está na força de Deus”;
Os anjos todos tem o final el, que em hebraico significa estar pelo Senhor, com o
Senhor e no Senhor. “El” é “Senhor”, nome de deus semítico, usado para anjo e arcanjo
enquanto “ser do Senhor”. Assim, Uriel em hebraico é אוּריאֵ ל,
ִ Uriʾel, em hebraico
tiberianoʾÛrîʾēl “chama de Deus” ou “Deus é luz” (Born, 1977:74).
De modo mais detalhado, apresentamos um estudo de um dos quatro hagiônimos
de anjos citados nos textos apócritos, a título de curiosidade, por ele ser um
antropônimo de uma celebridade muito conhecida. Entretanto, esse hagiônimo é tão
raramente usado como antropônimo quanto os demais. Então, só a título de ilustração,
apresenta-se o hagiônimo Barachiel sigificando “que tem as bençãos de Deus”. Assim,
têm-se:
Barachi-el ~ Barbabi-el ~ Baraq-el ~ Barak-el ~ Parachi-el ~ Varachi-el.
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Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
c. Arcanjo Miguel
Nos escritos rabínicos descrevem “(...) Miguel e seus anjos” combatendo o mal. Nos
termos judaico e cristão ele é o principal dos anjos. O termo arcanjo é hebraico arc-
definido como arché + anjo. Arché é começo, princípio e anjo já foi discutido
anteriormente. O hagiônimo Miguel é analisado como mi- é “o que é” e “quem é”. A
escrita hebraica não tinha sinais de pontuação, algumas palavras traziam consigo um
significado inquisitivo, como é o caso de “mi-” e ka- é “como”, “similar”.
A forma Miguel (Hebraico) é “quem assemelha a Deus”, em português é “aquele
que está na frente”, “quem é de Deus” (Born, 1977:989). As várias formas encontradas
são Miguel ~ mica-el ~ mich-el ~ mika-el ~ mija-el.
381
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rezar 150 Pai Nossos no lugar dos salmos. Eles usavam uma bolsa com 50 pedrinhas
para rezarem. Com o passar do tempo, usaram um cordão com 50 nós e um nó maior
depois dos pequenos para saberem que já haviam terminado de rezar, e o repetia três
vezes, concluindo o rosário. Em 1365, fez-se uma combinação dos saltérios dividindo-o
em 15 dezenas e colocando um Pai Nosso no início de cada dezena. Informções obtidas
em http://www.acidigital.com/rosario/surgio.htm. Acessado em 20 de novembro de
2015.
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Esse é outro caso de hagiônimo que não passou a ser usado como topônimo e
muito menos como antropônimo. Ele é muito comum denominando uma santa devotada
pelo povo de Goiás e reverenciada nas igrejas da região.
e. Santos Reis
Esses santos são muito populares em Goiás e Minas Gerais se tomá-los pelos
eventos que acontecem em homenagem a eles como é o caso da “Folia de Reis”.
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Inclusive, há bastantes antropônimos por causa dos hagiônimos dos Santos Reis,
conhecido como os reis Magnos. Na língua coloquial são reis Mago.
Belquior, Gaspar e Baltazar são os hagiônimos dos magos mencionados no
evangelho de São Mateus. Segue a análise etimológica e as variações desses três
hagiônimos:
Belquior ~ Belchior ~ Melquior ~ Melchior “meu Rei é luz”; no português coloquial
tem-se Belchor ~ Belchó ~ Berchor ~ Berchó ~ Brechó.
Gaspar “aquele que vai inspecionar”; de origem persa Kansbar é administrador do
tesouro. Esse hagiônimo em alemão é Kaspar e Kasper, em holandês encontra-se como
Caspar e Kasper. Em português, esse antropônimo é pouco comum e quando se
encontra é como Gaspá.
Baltazar “Deus manifesta o Rei”. Origem assíria, Bel-šarru-usur é “Deus protege o
Rei”.
Esse hagiônimo é usado como antropônimo pouco popular entre os povos de
Goiás, salvo em alguns casos de filhos de mineiros que vieram para Goiás e esse foi
encontrado como Batazal. Claro que é um tipo de equívoco do escrivão que trocou o “r”
por “l” e apagamento do “l”.
f. São Pedro
Simão era o nome de um dos apóstolos de Jesus, mas ele passou a chamar-se
Pedro, depois Pedro Apóstolo em hebraico כיפא, em grego Πέτρος, Pétros, “pedra”,
“rocha grande e maciça”. Cristo muda seu nome para כיפא, Kepha (Cefas em português)
em aramaico, em latim como Petrus, “petra” com o mesmo significado.
Esse hagiônimo é muito difundido como antropônimo em todas as regiões do
Brasil. Inclusive, São Pedro é um dos santos mais populares e é um dos santos
homenageados das festas juninas. Essa festa é parte do folclore nacional, que é realizada
até nas escolas, além das paróquias.
g. São Benedito
O Mouro, o Africano, o Negro e também São Benedito. Nasceu na Cecília em
1524, na Itália, filho de escravos da Etiópia. Seu nome, Benedito vem do latim
benedictus, a, um significa “bem dito”, “louvado”, particípio passado de benedicere.
É um santo bem venerado no interior de Goiás, mas o seu hagiônimo é
encontrado como antropônimo para a geração mais antiga. Quem tem esse antropônimo
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Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
toma por apelido Dito, ficando na linguagem coloquial apenas Ditu, Ditinho ou
Binidito. Também é usado para referir a situações difíceis, complexas, como indica a
expressão “será o binidito?” na fala popular.
h. São Expedito
O termo “expedito” vem do latim expeditus, uma corruptela de elpidius. Spedito
significa “enviado”. Vem de “expedir”, significando também mandar, enviar, despachar.
Em italiano Spedito quer dizer despachado, o que vai ser enviado com urgência ao seu
destino.
Há muitas versões sobre a história desse santo, uma delas é que ele era um
militar do exército romano da infantaria ligeira; outra versão é a de que ele era
responsável pela entrega de correspondências e nunca deixava de cumprir essa tarefa
com rapidez. Ele era armênio e foi morto em 19 de abril de 303.
Ainda é muito usado como antropônimo no estado de Goiás e muito venerado
pelos leigos. É comum encontrar muitos panfletos desse santo nos bancos das igrejas
com sua oração. Isso é feito como uma forma de pagar pela graça recebida ou que está
pedindo.
i. Padre Cícero
Cícero Romão Batista, brasileiro, nascido Crato no Ceará, foi sacerdote em
Juazeiro do Norte, cidade também no Ceará. Ele é conhecido como Padre Cícero ou
Padrinho Cícero, na fala coloquial Padim Ciço.
Em 1871, ele foi convidado para celebrar a missa do Galo no povoado de
Juazeiro, voltando no ano seguinte, com 28 anos de idade, para ficar no povoado. A
motivação de sua volta foi uma visão, ou sonho, em que ele viu Jesus Cristo e os doze
apóstolos sentados numa mesa. Nesse momento, entra uma multidão de pessoas pobres
e ele entendeu que essa multidão era de retirantes nordestinos. Padre Cícero disse ainda
que Cristo, virando-se para essas pessoas, ordenou-o que tomasse conta delas, e assim
ele o fez. Envolveu-se com os pobres e aceitou ser padrinho de cada um que lhe pedia
ajuda. Por isso, ele ficou conhecido por Padrinho Cícero, ou seja, Padim Ciço.
Cícero é um antropônimo muito comum em todo o Brasil, sendo todos, sem
exceção, motivados pelo nome do Padre Cícero, pois ele é assumido pelo povo como
santo, independentemente da decisão da Igreja Católica.
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Neto (2009) relata os milagres que ele fez em vida, sua expulsão da Igreja e a
obediência dele à Igreja até sua morte, e inclui documentos em que o clero assume não
aceitar os feitos do Padre Cícero. O autor diz
A esse respeito, uma sentença historicamente atribuída a Pierre-Auguste
Chevalier, o ex-reitor do Seminário da Prainha, resume toda a questão. O
velho sacerdote francês, destituído do cargo desde a revolta dos seminaristas,
ainda acumularia as disciplinas de moral, liturgia e direito canônico. Já
praticamente cego, maltratado pelo reumatismo e por outros males da idade,
Chelier era uma espécie de conselheiro informal da diocese. Para ele, sobre
aquele assunto de hóstias que sangravam e se transformavam em carne em
pleno Cariri, só uma coisa podia ser dada como certa: Nosso Senhor não iria
deixar a Europa para fazer milagres no Brasil. (Neto, 2009:108).
Essa discussão aparece no capítulo 5, onde o autor discute esse tema “Bispo
decreta investigação: Deus sairia da Europa para fazer milagre no Agreste?”, instigando
ao questionamento de que o Senhor se interessaria por aqueles que já são assumidos
“bem sucedidos” no mundo.
j. São Paulo
São Paulo era Saulo, em hebraico Sha'ul, em grego antigo Saul, Saulos nome
relacionado ao rei Saul, rei de Israel que foi sucedido pelo rei Davi da tribo de Judá.
Saulus significa descendência ligada ao rei Saul e Paulus significa o menor. Em grego
paulos, em latim paulus ou paullus que significa baixo, curto.
Das várias versões dessa mudança, uma delas é a de que ele desejou se distanciar
da história do Rei Saul, que perseguiu Davi. Depois de conhecer Jesus Cristo, entendeu
que ele é muito pequeno.
Esse hagiônimo é sempre usado como antropônimo. Ele se refere a um santo
muito venerado pela igreja e pelos fieis. Esse é um hagiônimo extremamente respeitado
em toda a região Centro-Oeste, Norte e Sudeste.
Considerações finais
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colônia. Os termos incluídos neste estudo são alguns daqueles mais usados pelo
catolicismo. Eles são santo, Deus, anjo, Jesus Cristo e outros.
Os hagiônimos foram analisados etimológica e historicamente. Constatou-se que
muitos deles têm um significado interiorizado à expressão, por exemplo, São Paulo “o
menor de todos”, São Pedro “pedra”, Cristo “ungido” e outros. No que se refere a
expressão para se referir a Deus, viu-se que são várias, uma delas é YHWH uma
abreviatura do hebraico Y eu H sou W o que H sou.
Quanto ao hagiônimo Nossa Senhora, ele se manifesta de muitas formas. O
processo mais comum é receber acréscimo de um topônimo, por exemplo, Nossa
Senhora de Fátima, da Penha, de Lourdes e outros.
Há casos bem numerosos de acréscimo ao hagiônimo Nossa Senhora, expressões
outras como da Boa Morte, do Perpétuo Socorro, do Oh!, das Graças, Aparecida,
Auxiliadora e outros. Há também outras expressões acrescentadas a esse hagiônimo
como do Rosário, da Medalha Milagrosa, Desatadora dos Nós e assim por diante.
Durante as pesquisas sobre a colonização do Brasil, em específico, sobre os
estados de Goiás e Tocantins, compreendeu-se que dos hagiônimos tomados por
antropônimos no passado, poucos sobreviveram ao tempo. Assim, apesar de haver
constatado o direcionamento da religiosidade dos lugares colonizados, confirmou-se
que a cada dia esse acontecimento vem, naturalmente, se enfraquecendo. Nos últimos
anos, nota-se um descarte de algumas tradições quanto ao processo de nomear como o
enfraquecimento dos hagiônimos em tornarem-se topônimos.
O relevante desse estudo foi a constatação de que a maturidade do povo leva a
mudanças irreversíveis em várias situações, por exemplo, na aceitação de topônimos e
mudanças de antropônimos. Isso se confirma pela preferência de um antropônimo em
detrimento de outros para seus filhos e na omissão do próprio nome substituindo-o por
um apelido. Inclusive, alguns casos de aparente hagiônimo. Por exemplo, o aeroporto de
Goiânia se chama Santa Genoveva por pedido do dono do terreno que ao tê-lo doado
para tal fim fez a exigência que colocassem o nome de sua mãe, que era Genoveva.
Essas e outras afirmações pautam-se nas pesquisas feitas na região que levaram
os pesquisados a repensarem o processo de criação de povoados e cidades nos estados
de Goiás e Tocantins.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Born, A. Van Den. 1977. Dicionário enciclopédico da bíblia. Rio de Janeiro: Vozes
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London, New York: Routledge.
Neto, L. 2009. Padre Cícero: fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras.
Matos, H. 2011. Nossa história: 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil. t.1.
Período Colonial. 3.ed. São Paulo: Paulinas.
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8#q=s%C3%A3o+expedito
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390
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas e línguas de sinais, 391-410
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p391
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Os estudos sobre a motivação são bastante remotos. Mais recentemente, há a noção
proposta por Saussure (1916) que assegura que não existe língua em que nada seja
imotivado, assim como não existe língua em que tudo seja motivado. A motivação, para
Guiraud (1986), é um dos caracteres fundamentais da palavra, e está dividida em duas
classificações: interna, quando tem a fonte dentro do sistema linguístico, como a
motivação morfológica banana > bananeira; e externa, quando tem como fonte uma
relação entre a coisa significada e a forma linguística: fazenda Brejo da Onça. Segundo
Biderman (1998), nomear é utilizar palavras para designar os referentes
extralinguísticos, atividade essa resultante de um processo de categorização específico
do homem. Neves (2004) afirma que há relação entre as categorias linguísticas e as
categorias cognitivas, do que decorre uma relação indicial, icônica ou simbólica
mediando esses sistemas. Na análise do trabalho de Castro (2012), Solís Fonseca (2012)
afirma que ali aparece claramente uma noção de gradação da motivação. Com base
nesses pressupostos, este trabalho visa discutir sobre graus de motivação na nomeação
dos lugares maranhenses; propomos um princípio de regularidade bastante motivado
com graus de motivação para os topônimos, em que essa motivação tem a ver com
relações de semelhança, contiguidade e relações simbólicas. A metodologia parte da
análise semântica de topônimos maranhenses e tenta perceber essa gradação. Os
resultados demonstram que os topônimos representam prototipicamente diferentes esses
graus de motivação e que sua grande variedade de classes reflete a complexidade
conceptual desse conjunto de nomes próprios.
Introdução
8 CASTRO, Maria Célia Dias de. Professora da UEMA, Centro de Estudos Superiores de Balsas,
Departamento de Letras. Endereço: Rua Bernardino Castro, 98, Flora Rica, CEP.: 65.800-000, Balsas-
MA, Brasil. E-mail: celialeitecastro@hotmail.com.
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2 Os topônimos
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3. Motivação e toponímia
O topônimo, apesar de ser uma forma de língua animada por uma substância de
conteúdo como qualquer outro elemento da língua, a partir do momento em que passa a
ter essa forma acionada com essa funcionalidade, o termo que era arbitrário passa a ser
essencialmente motivado, sendo esta uma das principais características deste termo
(Dick, 1992). Essa autora lembra o duplo aspecto da motivação toponímica em dois
momentos, primeiro, na intencionalidade do denominador, que aciona este ato num
processo seletivo de escolha do nome para um acidente geográfico. Em seguida, na
própria origem semântica do nome, com um significado transparente ou opaco.
Depreende-se, dessa afirmação, que o conjunto do léxico disponível para a escolha e
seleção denominativa, portanto, o conjunto paradigmático desses termos, encontra-se,
nesse estágio de preconcepção, em que não houve uma associação do signo com uma
função toponímica, com função de signo arbitrário. Temos, assim, a seguinte disposição
do estágio evolutivo desses termos:
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CONJUNTO
CONVENÇÃO
PARADIGMÁ MOTIVAÇÃO GÊNESE CIRCULAÇÃO
ARBITRÁRIO
TICO
Esse continuum representa a dinâmica por que passa o nome: a motivação aciona
o termo do conjunto paradigmático, que faz gerar o nome, o uso desse nome e a
consequência desse ato resulta na convencionalidade. O acionamento do termo
disponível altera esse estatuto do signo com a ativação da correspondência entre os
elementos significante, significado, referente e icônimo10, pelo utente da língua. Vale
lembrar que essas lexias disponíveis no conjunto paradigmático têm caráter arbitrário
até o momento em que são acionadas. A motivação ocorre acionando os conceitos
físicos, sociais, históricos e culturais que envolvem o usuário da língua e sua
comunidade linguística, como também os atributos descritivos que possuem os lugares,
numa relação que envolve o usuário da comunidade linguística, o lugar e o nome. O
acionamento dos conceitos do usuário e de sua comunidade linguística e dos atributos
dos lugares e ou dos que com estes mantêm estreita relação e que, portanto, podem
perceber esses sentidos para os nomes, é que constitui a motivação. Ocorre também que
“o denominador utiliza uma lexia disponível em seu léxico virtual e a atualiza, muitas
vezes em um primeiro momento, como lexema, isto é: não há intencionalidade real de
denominação, apenas o nome surge num contexto enunciativo oral-discursivo”
(Carvalhinhos, 2002-2003: 174), para o que essa autora cita como muito ocorreu nos
relatos de viagens. Castro compreende a motivação da seguinte forma:
Como determinadas reações causadas no indivíduo tanto pelo mundo
exterior, as impressões do meio, como as causadas pelo mundo interior, os
estados d’alma, que fazem com que esse indivíduo tome determinadas
atitudes, como por exemplo, escolher nomes (Castro, 2012: 80).
Uma das formas de demonstrar a motivação é retratar essas impressões do
mundo interior ou os estados d’alma a partir da percepção dos referentes. Izquerdo
(2012) apresenta uma subclassificação dos animotopônimos - classificação esta cunhada
por Dick (1992) - relacionada à vida psíquica, à cultura espiritual, aos estados d’alma,
como eufóricos, aqueles que representam impressão agradável, perspectivas otimistas,
10 Nos termos de Alinei (2009: 65) “termo aplológica que funde ícone ‘imagem’ e –onoma ‘nome’, isto é,
‘nome-ícone’, ‘nome que por meio da própria reciclagem representa diretamente o novo referente
conceitual’”. Reciclagem, na visão desse autor, consiste na reutilização de um lexema pré-existente,
portanto também já conhecido, para designar um significado novo.
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para o signo. Esse autor afirma que “o signo, elemento primordial do sistema
linguístico, encerra um significante e um significado cuja ligação deve ser reconhecida
como necessária, sendo esses dois correspondentes consubstanciais um com o outro.”
(Benveniste, 2005: 59). Essa postura é justificada pela estreita simbiose entre o conceito
de um nome (boi) e a imagem acústica desse conceito /boi/, o que delimita a zona de
arbitrariedade, em que um signo e não outro é que se aplica à realidade (boi). Resulta,
nesse sentido, que a arbitrariedade não interviria na constituição do signo.
Entendemos, com base nesses estudos e como nos propõe Neves (2004), que há
relação entre a categoria linguística, neste estudo, a classe de topônimos, e as categorias
cognitivas, em que uma relação motivacional media esses sistemas.
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11 Em Brèal (2008), aparecem os termos “transparente” e “turvo”, respectivamente com esse sentido. Em
Ullman (1964), em vez de turvo” aparece o termo “opaco”, conforme atualmente utilizado nos estudos
toponímicos.
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próprio cita, “de fato muito carregado de outros sentidos por poder designar todos os
complexos daquilo que se revela ora como objeto”.
Compreendia a noção de iconímia ou motivação em Alinei (2009), assumimos
que essa se caracteriza melhor na toponímia maranhense com uma diferenciação de
graus, visto que no estatuto desses nomes uma de suas fortes características é
exatamente esse status de diferenciação.
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GRAUS DE MOTIVAÇÃO
ARBITRÁRIO
ABSOLUTO ARBITRÁRIO
RELATIVO
OPACO MOTIVAÇÃO
TRANSPARENTE
NULA
MUITO ALTA
BAIXA ALTA
RELATIVA
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icônimo, a nova forma do nome e o referente. Este tipo de motivação resulta nos
processos gramaticais de formação de palavras pela derivação e sufixação a partir da
forma primitiva de um icônimo: {Buriti} > Buritizinho, {Chapada} > Chapadinha.
Motivação baixa (débil?): neste processo de escolha, o tipo de relação entre o
nome, o significado, o referente e o icônimo não deixa de ser motivado, porém se dá de
forma bastante tênue e é pouco percebido na forma do topônimos. Topônimos como
Buritirana {buriti}, motivado pela existência dessa espécie de buriti na região, e
Cajapió {cajá}, cajá-pyoca, polpa de cajá, essência de cajá, nem sempre deixam clara a
motivação para os falantes da língua.
Motivação nula: este é um momento do continuum da dinâmica do nome em que
o processo de motivação da escolha sofre um apagamento e o termo criado perde o
significado do icônimo, e o tipo de relação entre o nome, o significado, o referente e o
icônimo - significante primário pré-existente que ajuda a formar o novo nome – passa a
ser despercebido pelo fato de o topônimo já estar em circulação, portanto, já ter sido
publicizado e, com o tempo, cristalizado. Na toponímia maranhense, ocorre
principalmente com nomes de língua indígena cuja motivação passa, atualmente,
despercebida pela maioria dos falantes da língua, como Araguanã, nome motivado pela
presença do animal arara/papagaio/ periquito; Arari, pela presença de arara amarela;
Axixá, pela existência desse tipo de fruta áspera ao tato na localidade; Cururupu, fonte
do sapo, Grajaú, carajá-u, comida de macaco, lugar onde os macacos vêm comer, ou
pode ser carajá-y, rio dos macacos; Mearim, campo pequeno, entre muitos outros
nomes em que os utentes da língua não têm consciência do significado desses
topônimos por não mais estarem familiarizados com os termos de origem indígena.
Considerações finais
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Alinei, Mario. 2004. L’Origine Delle Parole. Roma: Aracne, 2009.
Castro, Maria Célia Dias de. 2012. Maranhão: sua toponímia, sua história. 2012. 474 f.
Tese (Doutorado), Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
Couto, Hildo Honório do. 2007. Ecolinguística: estudo das relações entre língua e meio
ambiente. Brasília: Thesaurus.
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Saussure, F. 1995 [1916]. Curso de linguística geral. 20. ed. São Paulo: Cultrix.
410
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas e línguas de sinais, 411-423
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p411
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este trabalho visa analisar atividades pedagógicas e relacioná-las a discussões sobre o
uso de tecnologias digitais no ensino de Língua Portuguesa para alunos surdos.
Justificamos este trabalho por apresentar aspectos relevantes sobre o ensino de LP para
surdos, com auxílios de atividades pedagógicas lúdicas em conjunto com tecnologias
digitais que contribuem para o processo de escolarização dos alunos surdos. Temos
como base teórica epistemológicas: Coscarelli (2010), Araújo (2013), Gesser (2012),
Quadros; Karnopp (2004), e Quadros; Schmiedt (2006). Temos como método uma
pesquisa bibliográfica referente à utilização dos recursos tecnológicos digitais a fim de
ensinar LP para discentes surdos. Analisamos duas sugestões de trabalhos pedagógicos
com o objetivo de ampliar e fixar o conhecimento de palavras da LP de forma lúdica e
são: jogo de memória e palavras cruzadas, propostas por Quadros; Schmiedt (2006). A
primeira possibilita a associação de um sinal em libras ou uma imagem a um verbete
corresponde em LP, proporcionando aumento de vocabulário da LP e da Libras do
aluno surdo. A segunda possibilita a fixação do vocabulário adquirido na primeira
atividade, contribuindo para a ampliação deste vocabulário em Libras e em LP.
Concluímos que ambas as atividades, utilizadas com tecnologias digitais na aplicação
das mesmas durante as aulas, são facilitadores do ensino de LP para alunos surdos.
Então é imprescindível que professores busquem inserção dessas tecnologias na prática
didática a fim de proporcionar melhoria no processo ensino aprendizagem tendo como
público alvo discentes surdos.
1. Introdução
13 UFRJ, Faculdade de Letras, Departamento de Letras Libras, Rua Valparaiso 377, ap 202, bairro Sion,
30315-580, Belo Horizontes, MG, Brasil, fernandagas1@gmail.com
14 UERJ, Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Departamento de Formação de Professores,
Rua 15 de novembro, 758 (casa 3), Vila São Luiz, 25065-136, Duque de Caxias, RJ, Brasil,
hectorscalixto@gmail.com
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2. Leitura e tecnologia
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Com a presença dessa multimodalidade atual na sala de aula, faz com que ocorra
a modificação da forma como os sujeitos se comunicam, e isso possibilita também a
mudança e adaptações nas formas de ensino, utilizando-se dessas novas tecnologias
digitais e das novas formas de interação com os textos e com as mídias disponíveis,
conforme Costa (2012:64) argumenta:
o surgimento de novos tipos de mídia associado ao desenvolvimento
tecnológico expande-se com uma surpreendente velocidade e, ao mesmo
tempo em que altera e potencializa a cognição humana, modifica o modo
como os sujeitos se comunicam.
Quadros e Schmiedt (2006:42), mesmo sem mencionar a presença de tecnologias
digitais, apontam algumas questões a que os professores precisam estar atentos para
preparar uma atividade de leitura para alunos surdos:
Qual o conhecimento que os alunos têm da temática abordada no texto?
Como esse conhecimento pode ser explorado em sala de aula antes de
ser apresentado o texto em si?
Quais as motivações dos alunos para lerem o texto?
Quais as palavras fundamentais para a compreensão do texto?
Quais os elementos linguísticos que podem favorecer a compreensão do
texto?.
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5. Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Araújo, J. 2013. O texto em ambientes digitais. In. Coscarelli, C.V. (Org.) Leituras
sobre a leitura: passos e espaços na sala de aula. Veredas: Belo Horizonte.
Coscarelli, C.V. 2010. A cultura escrita na sala de aula (em tempos digitais). In:
Marinho, Marildes; Carvalho, Gilcinei T., (orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo
Horizonte: Editora UFMG.
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Simpósio 15 - Linguística histórica e onomástica: línguas românicas, línguas indígenas ...
Gesser, Audrei. 2012. O ouvinte e a surdez: sobre ensinar e aprender a LIBRAS. São
Paulo: Parábola.
Guarinello, A. C. 2007. O papel do outro na escrita dos sujeitos surdos. São Paulo:
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Quadros, Ronice M.; Karnopp, Lodenir B. 2004. Língua Brasileira de Sinais: estudos
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Quadros, Ronice M.; Schmiedt, Magali L. P. 2006. Ideias para ensinar português para
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Machado, Maria Zélia V., Paulino, Graça, Belmiro, Célia Abicalil (orgs.). Livros &
Telas. Belo Horizonte: Editora UFMG.
423
SIMPÓSIO 16
ESTUDOS ESTILÍSTICOS
COORDENADORES
Guaraciaba Micheletti
(Universidade Cruzeiro do Sul / Universidade de São Paulo)
RESUMO
Esta pesquisa volta-se para a relevância da seleção vocabular na construção do discurso
do humor presente na obra literária de João Ubaldo Ribeiro. Inclui-se nessa perspectiva
a exploração expressiva das palavras a que recorre o escritor para construir o discurso
do humor em seus textos. A dicotomia culto - popular no uso da língua portuguesa
falada no Brasil retrata implícita ou explicitamente problemas de ordem sócio-político-
cultural e por isso traz na sua superfície o distanciamento causado pelas relações de
poder. O escritor aproveita-se dessa circunstância para materializar distorções,
selecionando palavras e expressões que identifiquem as diferentes camadas sociais pelas
diferentes vozes presentes na narrativa. Privilegia-se a expressividade dos substantivos,
adjetivos e verbos. A seleção lexical é vista como um elemento diferenciador e, nesta
condição, constrói o humor ali presente. O embasamento teórico distribui-se em três
planos, a saber i) fatos gramaticais; ii) as propostas discursivas; iii) a seleção de
palavras como marca estilística de João Ubaldo Ribeiro. O embasamento teórico
distribui-se entre Martins (2012), Cressot (s/d), Maingueneau (1996, 2010), Minois
(2003). Depreende-se que a articulação da seleção de um vocabulário ao humor não
privilegia as formações neológicas, mas aproveita-se das unidades pertencentes ao uso
popular, ao uso comum ou ao uso culto para associarem-nas às intenções discursivas do
escritor, atingindo os efeitos de sentido pretendidos.
1 Santos, Denise Salim. Universidade do Estado Do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Departamento de
Língua Portuguesa (LIPO). Rua Vilela Tavares, 253, AP 701. CEP 20725-220. Rio de Janeiro/RJ. Brasil.
d.salim@globo.com
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Muitas denominações para um ser somente. Tais referências surgem como resultado de
um intenso processo de interação voluntária ou involuntária dessa personagem com os
grupos sociais que a rodeiam e mostram como esse ser é percebido pelo Outro.
[...]índio tupinambá muito do péssimo no ver da maioria, homem de alto
valor no ver de Iô Pepeu, rastejador mestre, doutor dos matos, amigo de todas
as ervas, conhecedor de todos os bichos, íntimo de todas as árvores, velhaco
como toda mascataria levantina, matreiro como oitocentos curupiras,
mentiroso como um frade viajante, o mais entendido em aguardente de cana
de que se tem notícia, do fabrico ao desfrute_ e a única coisa que lhe falta
saber é falar direito língua batizada, mas há quem afirme que é
fingimento.(FIP, p.31)
Para o amigo Iô Pepeu, ele é um “índio tupinambá”, “homem de alto valor”,
“rastejador mestre”, “doutor”, “amigo e conhecedor das plantas e dos bichos”. Para
algumas outras pernagens, um beberrão, que vive a desfrutar da aguardente de cana
que fabrica, e talvez por isso Tontonhengá. Já a sociedade civilizada da época vê nele
características menos honoráveis: “velhaco”, “matreiro”, “mentiroso”.
Quem nos passa tais informações é um narrador que, cumprindo seu papel de
intermediador entre narrativa e leitores, busca palavras e expressões que construam o
universo ficcional do romance. Cada palavra tem seu peso, sua função discursiva, sua
força ideológica assim como é ela, a palavra, que marca a sua importância no
desempenho das relações do homem consigo mesmo e com o mundo.
A ilha do Pavão é uma ilha-país onde não deveria haver mais lugar para
desigualdades ou preconceitos de quaisquer espécies. A justiça social desempenharia a
função de sustentáculo da liberdade de cada habitante da Assinalada Vila de São João
Esmoler do Mar do Pavão e de outras tantas vilas que compõem esse mundo
imaginário, espaço no qual a ação narrativa acontece. Olivieri-Godet (2005:119)
comenta a incorporação do gênero utópico no romance ubaldiano, baseando-se na obra
de Thomas More, que inaugura a utopia literária moderna:
L’inscription de l’utopie dans le roman “O feitiço da ilha do Pavão”
prodruit des représentations du territoire brésilien qui vont du mythe
fondateur de < l’île fortunné> aux spéculations prophétiques d’un Brésil
<terre d’avenir>. Au mythe dês terres fortunées, “ o feitiço da ilha do
Pavão” ajoute les utopies des cités parfaites por miex exposer les tensions
entre les images réelles et les projections mythiques e utopiques du Brésil.
Logo no primeiro capítulo, o narrador dá a conhecer a ilha nas suas
características físicas e geográficas e, principalmente, a constituição das gentes que a
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testículo : zovo
bago
tomate
cunhão
vagina: quirica
periquitona
vaso dianteiro
meio do mundo
sítio
pelve: baixios
ânus rabo
traseiro
urinar mijar
defecar cagar
borrar-se
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Simpósio 16 – Estudos estilísticos
da língua, e os termos chulos da fala popular. Este recurso pode ser considerado como
outra marca do estilo de Ubaldo
A trangressão também se apresenta por meio de termos e expressões
encontrados na voz do jabarandaia Tantanhengá contra o intendente da ilha:
- Mentira. Mentira de Dão Filipe, tendente, filadumaégua com oitenta
jumentos.” (FIP: 37)
Ou para demonstrar desprezo pela mulher do intendente, Dona Felicidade:
[...] Isso tudo por causa de Dona Felicidade, aquela peste que deveria ser
faxineira do inferno, aquela bacurau remelenta e fedorenta, do nariz de
quati, dos dentes de baiacu e do bafo de lama. ( FIP:46).
Ou ainda para desqualificar as autoridades mandatárias da ilha que
frequentavam a “Cambra”:
- Disconfiado nada, tudo burro, tudo safado tapado. Índio já pensou tudo, já
tá tudo aqui pensado, pensadinho. (FIP: 64)
O jabarandaia Tantanhengá, com sua fala arrevesada, é a voz que luta pela
liberdade dos primeiros habitantes da ilha, os índios, reavivando na narrativa os
embates entre silvícolas e colonizadores no período inicial da formação da nação
brasileira. Sua fala revela os embargos na aquisição de uma nova língua,
principalmente no que se refere à pronúncia das palavras, marcada por metaplasmos
dos mais variados tipos. O exagero com que esse fato é apresentado ao leitor constrói
expressivamente uma personagem caricatural, não exatamente pelo que diz, mas pelo
modo como diz aquilo que pensa. Ainda assim, os desvios fonéticos não chegam a
interferir na comunicação. Seus interlocutores, inclua-se aqui o leitor, não têm
dificuldades em perceber no significante alterado os significados pretendidos. A fala de
Balduíno Galo Mau assenta-se em um dos extremos quanto à seleção lexical, uma vez
que seu discurso vem marcado pelo vocabulário popular.
Os textos impregnados de humor vêm forjados por situações ambíguas. Embora
suscitem hilaridade, normalmente são motivados por alguma situação que irrita,
inquieta a opinião pública, o que nos leva a constatar que, através do humor, tenta-se
destruir a realidade que não agrada. Esses textos têm que ser construídos dentro de
técnicas eficientes, uma vez que o discurso humorístico não está interessado em manter
relações de significação num mesmo sistema de referência. A justaposição de planos é
fonte frequente desse tipo de efeito de sentido. Até porque as palavras não têm função
exclusivo de produzir um único sentido. Elas podem ser manipuladas para chegar a
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Simpósio 16 – Estudos estilísticos
esse objetivo, pois o discurso do humor sempre encontra um caminho para expor o
subterrâneo, o não oficial.
Por sua vez, o levantamento vocabular realizado a partir da construção do
discurso das personagens representantes da etnia branca da ilha - Borges Lustosa,
Moniz de Andrade, Capitão Cavalo etc - registra a presença de itens lexicais
pertencentes ao dialeto social culto, chegando a níveis da erudição. Selecionamos,
como amostragem, alguns termos encontrados na fala dessas personagens:
Adjetivos
nefana amanhada alcantilada cavilosas entanguidas ajaezadas
taciturna inauditos abissais abismal ruante salsos empaladora
pachorrento escancelada homiziado lancinantes arribados
amalgamado torpes prosélitos naufragoso
Substantivos
entrefolhos dissipação taludes goletas ursulina caleças
humores escol louçainha venefício escarneamento trasgos
ditames grongas grados* falésias guisas alcoviteira
mestre-escola gelosia caneiro curimã marouço repiquetes
apicuns gramuás estriges hostes alcunha menear*
(*) substantivo formado pelo processo de conversão
verbos
alvorotar-se encordoar surdir encafuar acossar açular
enxamear avultar espraiar lampedejar tutear-se abeirar-se
Em outra passagem do romance, a habilidade escritora de Moniz Andrade é
requisitada novamente. Desta vez, para a elaboração de um memorial que seria
encaminhado a Capitão Cavalo na tentativa de persuadi-lo a “transformar-se numa
espécie de governador tirânico, cuja missão principal seria sem dúvida alguma atender
aos interesses deles e estender-lhes todo tipo de favor e privilégio” (FIP:154), segundo o
ponto de vista do narrador. Ali se verifica a adequação do vocabulário à intenção
discursiva , bem como à situação de uso. O memorial assim se inicia :
Ai, América Portuguesa, sol do novo mundo, gema celsa da Coroa, torrão de cabedal
inexaurível, a que ponto chegaste, nesta sesmaria deslembrada, em que seus
princípios e ordenação se envilecem, sua gente se mesticiza e se deprava, sua
autoridade não se reconhece, seus camaristas e homens bons se desprestigiam e seu
elemento servil se há como Livre? Ter-se-á ao menos lenitivo para tantas aflições,
poder-se-á ao menos esperar algum governo em tanto desgoverno, algu’a mão segura
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a guiar os destinos da Assinalada Vila de São João Esmoler do Mar do Pavão? (FIP,
p.141)
Seguindo os moldes da corte portuguesa, o reino tem sua corte trazida ao texto
pelos títulos nobiliárquicos: “barões”, “viscondes”, “condes”, “marqueses”. Os
símbolos do poder real também lá estão: “cetro”, “sala do trono”, “carruagem”,
“cocheiro”, “sota-cocheiro”, “escudeiro”, “áulicos”, “aves”(saudação), “sólio”,
“brasão”, “real mordomo”, “reposteiro”, “manto”, “reino”, “súditos” ,”arautos”,
significativos para marcar o léxico da tradição bem como o que materializa
enunciativamente as relações de poder.
A construção do ambiente onde se passa a ação narrativa registra a seleção de
termos da fauna e da flora locais. Muitos deles fazem parte do vocabulário comum e
circulam com certa frequência entre os usuários da língua ou, pelo menos, não causam
tanto estranhamento ao leitor.Tal seleção constrói uma paisagem tipicamente brasileira
com a presença de termos da fauna e flora locais.
Tupinismos
Flora: sucupira maçaranduba jacarandá ipês jatobá carnaúba
piaçava apicum oitizeiro
Fauna: guará jandaia raposas jaburu preás tatu jararacas teiús
jandaia tucano cobra-cipó tamanduá sanhaço
Africanismos
Fauna: macaco ( or. controv.) marimbondo calango
A presença de termos de especialidade é também observada. Pelo menos dois
campos do conhecimento humano são ativados no texto pela presença de itens lexicais a
eles pertencentes. Com relação aos termos de marinharia tem-se “embarcação”,
“navegante”, “velas”, “cascos”, “galeota”, “batelão”, “barco”, “ancoradouro”,
“atracadouro”, “proa”, “pôr a pique”, “vagalhão”, “piloto”, “maré”. Ao descrever a
geografia detalhada da ilha estão presentes “praias”, “ilha”, “ponta”, “enseada”,
“angra”, “baía”, “lagoa”, “laguna”, “arrecifes”, “cascatas”, “morrotes”. Ainda que no
texto em análise as palavras mantenham o traço “termo de especialidade”, conforme
registrado no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), a maioria delas se
estendeu ao uso comum perdendo a característica de termo exclusivo, mas o respeito à
terminologia se apresenta como traço de estilo do escritor, pois é recorrente não só no
romance em estudo como em vários outros, inclusive nos livros infantis e juvenis
também de autoria de João Ubaldo Ribeiro.
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francesismos
ruante surdir boticas bugres coragem miragem
taludes oeste frotas chaminé satânicos sensações franquear
frota divisa feitiço onça
espanholismos
forasteiro menear caudaloso feiticeiras forquilha penha
tabaco quiçá atordoar padecimento
italianismos
piloto sentinela cascata comparsa contraforte irredutível
helenismos
prosélitos demônio falange colossal igrejas caleça
meandros caribdes anarquia
germanismo
guisas
lusitanismo
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capelistas
arabismos
alcouce amalgamado (amálgama) açúcar azeite
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a missão que lhe foi dada desde a Criação, um grande bem-te-vi atitou energicamente,
na copa de um oitizeiro do largo da Calçada” (FIP:18)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ribeiro. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2001.
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MARTINS, N. S. Introdução da estilística. 3 ed. rev e aum. São Paulo: EDUSP, 2012.
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441
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V SIMELP - Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 16 - Estudos estilísticos, 443-456
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p443
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Cristiane SCHMIDT 2
RESUMO
O ato de narrar histórias e de recriar o mundo pela fantasia, assim como discorrer sobre
a condição humana, são dimensões essenciais das histórias destinadas ao universo
infantil. A leitura, a análise e a produção de narrativas infantis em ambientes educativos
auxiliam no desenvolvimento cognitivo, social e emocional das crianças-leitoras.
Assim, a abordagem dialógica e interativa de textos tem sido tema de vários debates nos
estudos literários, linguísticos e, de forma geral, na área da educação. A partir do
exposto, discuto, inicialmente, conceitos atrelados à concepção dialógica da linguagem
a partir dos postulados teóricos de Mikhail Bakhtin (1997) e de estudiosos da
perspectiva bakhtiniana no contexto nacional (Faraco, 2001; Brait, 2005). Para tanto, o
objetivo desta investigação consiste em propor um diálogo entre as narrativas infantis
“Os Músicos de Bremen” (1812) dos Irmãos Grimm e “Os Saltimbancos” de Chico
Buarque (1977). Nesse sentido, apresento uma abordagem contextualizada dessas
histórias, procurando resgatar a origem dos contos de fadas e a sua consolidação no
contexto medieval. A metodologia adotada consiste numa abordagem qualitativa, a
partir de análise da temática do conto e da fábula – objetos deste estudo - procurando
destacar as semelhanças e diferenças, bem como as representações sociais, políticas e
culturais presentes nessas narrativas.
1. Introdução
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homem como alguém que se constitui na e pela interação verbal (Faraco, 2001).
Podemos, dessa forma, depreender que o sujeito, ao passo em que vai se constituindo
mediado pela linguagem na interação social com o(s) outro(s), tenha no dialogismo sua
força motriz.
Outra divulgadora notável do pensamento de Bakhtin, a pesquisadora Beth Brait
(2001), reafirma que o dialogismo - a natureza dialógica da linguagem – constitui-se
como conceito central dos estudos desse pensador russo. Segundo essa autora, “o
dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos
processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos” (Brait, 2005: 95). Nas
próprias palavras de Bakhtin (2003[1979]), todo enunciado é de natureza dialógica,
dessa forma, o dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem.
Além disso, o dialogismo pauta-se no princípio da alteridade, pois reconhece a
existência do outro, de outras vozes na constituição de determinado texto, visto que “o
sujeito falante elabora suas enunciações em virtude da relação – real ou virtual – que
mantém com o(s) parceiro(s) da interação” (Francelino, 2004: 24-5).
O dialogismo pressupõe a existência de uma interação permanente entre os
participantes do diálogo, ou seja, o sujeito, ao mesmo tempo que negocia com seu
interlocutor, recebe influências deste. Trata-se do princípio básico, que pressupõe a
contra-palavra, a qual nem sempre ocorre de forma harmoniosa, mas também depreende
o confronto, o desencontro.
O enunciado, como totalidade discursiva, é constituído num determinado
contexto social e histórico, no entanto ele não deixa de estabelecer vínculos com outros
enunciados e discursos, sendo permeado por diversas vozes alheias - as vozes
constituídas pelos outros e dos quais nos servimos como novos temas/discursos.
Conforme Bakhtin (2003), tudo (reportando-se, especificamente ao campo da
linguagem) que é criado se traduz num reflexo, numa expressão de algo já existente, de
algo produzido anteriormente. Quer dizer, algum tema ou enunciado criado é sempre
recriado a partir de algo dado, do que está posto; o que não impede que o dado seja
reconstruído, reformulado, se transformando num novo e singular. Ou seja, cada
enunciado compreende um elo da cadeia muito complexo de outros enunciados.
Da mesma forma, Silveira, Rohling e Rodrigues destacam que os enunciados
“nascem de outros enunciados já-ditos (explícitos ou não) e buscam a reação-resposta
ativa dos outros (sempre falamos/escrevemos para um outro) [...]” (Silveira; Rohling;
Rodrigues, 2012: 22).
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Simpósio 16 – Estudos estilísticos
também estabelecer uma relação entre o discurso que reporta e o discurso reportado;
uma forma de interação dinâmica dessas duas dimensões” (Ramos, 2010: 6). Para essa
autora, trata-se de um processo natural, pois que constantemente fazemos citações,
referências às palavras e ao discurso do outro, e o fazemos mediante (re)considerações e
transformações.
Conforme Bakhtin (2010), cada enunciado é um ato histórico e irrepetível, assim
como o discurso só existe num complexo sistema de diálogos (relações dialógicas), que
nunca se interrompem. Ou seja, o enunciado mantém diálogo com outros enunciados,
anteriores e posteriores a ele, remetendo, assim, a discursos alheios.
O que efetivamente identifica um enunciado é aquilo que esse enunciado diz,
num determinado contexto para um determinado locutor, nas condições específicas em
que ele é produzido e recebido. Segundo Bakhtin (2010), o que é repetível é a
materialidade linguística, pertencente ao plano da língua. A palavra (em um enunciado)
sendo dotada de uma dimensão verbal e outra extraverbal e determinada pela situação
específica de interação, pelo contexto em que se insere, não é tida como repetível, na
perspectiva bakhtiniana. Dessa forma, não se pode repetir a situação que confere a essa
mesma palavra significações tão distintas em cada um dos enunciados, enfim, nos
discursos.
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das vivências, saberes, enfim, a narrar suas histórias. A partir do relato oral, tais
narrativas foram registradas na modalidade escrita - o que foi fundamental para que os
contos adquirissem caráter literário.
Elas foram deixando rastros nas diversas localidades por onde passaram e
sofreram modificações de acordo com a cultura de uma determinada localidade e com o
tempo, mas preservaram seu conteúdo principal (Benjamin, 1994). É o caso dos
famosos contistas alemães, conhecidos como os Irmãos Grimm.
Os Irmãos Grimm (Jacob,1785-1863 e Wilhelm,1786-1859) nasceram na cidade
de Hanau, na Alemanha. Eles foram filólogos, críticos, folcloristas, contistas e
escritores no século XVIII e contribuíram de forma significativa para a língua e cultura
alemã com a compilação, não só de inúmeros contos, como também mediante a
publicação de um dicionário e uma gramática da língua alemã.
Conforme Barbosa (2009) entre os anos 1807-1814, os Irmãos Grimm
recolheram contos baseados em tradições populares do seu país, ouvindo pessoas que
viviam e trabalhavam nas aldeias e vilarejos nas proximidades de Kassel, na Alemanha.
Esses filólogos embrenhavam-se nas aldeias para ouvir e transcrever tais relatos, sendo
que procuraram registrar com fidelidade tais narrativas.
Nesse sentido, os objetivos daquela coleta consistiam em fazer o levantamento
de elementos da língua alemã e preservar aspectos folclóricos e culturais germânicos,
mediante seu registro numa obra de expressão da identidade nacional. Para tanto, no ano
de 1812 eles publicaram a primeira coletânea de contos de fadas - os chamados
Märchen3, no livro intitulado “Contos da Criança e do Lar”, contendo 86 narrativas e o
segundo volume foi publicado em 1815, com 70 histórias.
Conforme Coelho (1991) os contos de fadas consistem em narrativas curtas, em
que um herói ou heroína parte de uma problemática existencial vinculado à realidade
(como estado de penúria, carência afetiva ou conflito familiar), sendo desafiado por um
ser malévolo (bruxa, fantasma, gigante), assim como precisa enfrentar diversos
obstáculos, para, ao final, triunfar contra o mal. O enredo dessas narrativas, sempre
contém elementos mágicos, encantados (fadas, anões, animais falantes), assim como
3 Entre os contos alemães mais famosos da coletânea destacam-se “João e Maria”, “Chapeuzinho
Vermelho”, “Rapunzel”, “A Bela Adormecida”, “A Gata Borralheira”, “Os músicos de Bremen”,
“Cinderela”, “Gato de Botas” e “Branca de Neve e os Sete Anões”. Diversos contos dos Irmãos Grimm
foram traduzidos em muitos idiomas; assim como alguns desses foram apresentados nas telas do cinema,
sendo reconhecidos como celebridade mundial.
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[...] essas narrativas não eram direcionadas apenas ao público infantil, mas
serviam também para divertir os adultos, uma forma de alerta das classes
populares, no sentido de que esses contos expunham as condições reais nas
quais a grande parcela da população vivia. Ódio, inveja, e conflitos de
interesses ferviam na sociedade camponesa. A aldeia não era uma
comunidade feliz e harmoniosa. Uma luta pela sobrevivência, e sobreviver
significava manter-se acima da linha que separava pobres de indigentes. A
vida era uma luta inexorável contra morte (Barbosa, 2009: 12).
O registro dos contos de fadas ocorre, em sua maioria, numa época de transição
do contexto medieval para o moderno. Nesse interem, a classe burguesa foi se
consolidando e, por conseguinte, seus perspectivos valores, quais sejam: a valorização
da infância, e da família como instituição privada. Ariès (1981), em suas pesquisadas
sobre a construção dos sentimentos de infância (paparicação/apego;
fragilidade/inocência) e do conceito de infância (até então a criança era concebida como
adulto em miniatura, não havia distinção entre o mundo adulto e o mundo infantil),
destaca um notável sincronismo entre o nascimento da classe social burguesa e o
advento da Idade Moderna, pois que ambas nasceram no fim do século XVII.
No entendimento de Fortes (1996) nessa época ocorre uma mudança
socioeconômica e cultural, ou seja, a partir da metade do século XVII, há uma mudança
de atitude com relação à criança e à estrutura familiar, ao passo em que os escritos desse
momento histórico começam a enaltecer a criança e a diferenciá-la do adulto.
A autora (Fortes, 1996) ressalta que na família nuclear burguesa, o filho passa a
ser visto como centro, o herdeiro e o projeto de futuro, e, dessa forma, objeto de todas
as formas de investimentos, tais como afetivo, econômico e, sobretudo, educativo. Isso
justifica o cuidado com a escolha dos materiais culturais, em especial - do livro literário.
Inicia-se, no contexto moderno, uma valorização para com o comportamento
recatado, o pudor com o próprio corpo, a reserva na linguagem e o controle sobre a
convivência, as diversões e até sobre a leitura recomendada para o público infantil
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(Ariès, 1981). A partir dessa época, a intenção está em oferecer aos pequenos textos
considerados adequados a sua compreensão, experiência de mundo e formação.
Assim, os contos de fadas, no caso as obras dos Irmãos Grimm, são
significativos e encantam gerações com temáticas que remetem ao contexto medieval.
Estabelecendo novas relações dialógicas, esse gênero continua fazendo sucesso na
contemporaneidade, sendo considerado acervo literário e cultural de renome universal.
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4
Figura 1 - Estátua dos “Músicos de Bremen”
Fonte: http://euterpedespedacada.blogspot.com.br/2012/08/os-saltimbancos.html
4 Em homenagem ao Conto dos Irmãos Grimm, foi erguida no ano de 1951 uma estátua de bronze de 2
metros de altura, ao lado da Câmara Municipal na cidade de Bremen, localizada na região Norte da
Alemanha. Desde essa época recebe, anualmente, diversos visitantes que rememoram o legado cultural
germânico.
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Muitos artistas, como foi o caso de Chico, não puderam, dessa forma, se
expressar livremente, e sofreram diversas punições, dentre as quais, o exílio. Como
forma de ‘burlar’ a ordem vigente, os intelectuais e artistas utilizavam-se de recursos
estéticos e estilísticos para expressassem as suas opiniões, angústias e,
principalmente, seu posicionamento contrário ao regime ditatorial.
No que se refere à construção composicional desse gênero, a fábula é concebida
como uma narrativa curta e de fácil assimilação cujo objetivo é transmitir determinada
moralidade. Ela apresenta uma natureza simbólica, pois as personagens são, em sua
maioria, animais com características semelhantes às dos seres humanos (Silva; Moreira,
2012).
Conforme Wanderley, reportando-se à fábula de Chico
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5. Considerações Finais
Apesar do caráter ideológico das narrativas infantis, elas são obras que
despertam a imaginação, a fantasia e aguçam o interesse e o prazer pela leitura; logo
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Simpósio 16 – Estudos estilísticos
atendem ao caráter de fruição e cumprem uma das funções do texto literário. Ao mesmo
tempo, elas cumprem outro papel social - o caráter pedagógico, uma vez que podem ser
objetos de reflexão, com vistas à formação da consciência crítica dos pequenos leitores.
Vale destacar que, apesar de serem consideradas obras infantis, não se limitam
exclusivamente ao universo infantil. Elas podem ser apreciadas e assimiladas pelo
público adulto ou outra faixa etária, já que a discussão tem como referenciais o contexto
e, sobretudo, devem ser objeto de leitura e investigação na formação de professores de
línguas e na prática pedagógica.
Trata-se da possibilidade de se exercer responsividade ao enunciado em
diferentes épocas, e por diferentes faixas etárias de interlocutores. Ou seja, os leitores
e/ouvintes desses enunciados são sujeitos constituídos em momentos históricos distintos
e, mediante seu conhecimento de mundo e de valores, geram atitudes responsivas
distintas para com os enunciados, conforme sugere a perspectiva teórica bakhtiniana.
Segundo Bettelheim (1980), é fundamental que os adultos, pais e professores
narrem histórias para as crianças, o que possibilita uma maior aproximação afetiva.
Assim, procura-se entrar no jogo infantil, respeitando o raciocínio mágico dessa faixa
etária. Da mesma forma, Góes (1991) reitera a importância da inserção dos livros o mais
cedo possível, sendo mediado pelo diálogo, contato mãe – filho, pela história contada,
pelo livro ao alcance da criança, como qualquer brinquedo costuma ficar.
As obras “Os músicos de Bremen” e “Os Saltimbancos” – objetos desse estudo -
continuam tendo pertinência temática para o contexto sociopolítico e cultural. Se tais
narrativas trazem uma mensagem relevante para a realidade contemporânea, mesmo
com tantas transformações na sociedade, nas relações de trabalho e na política, é pelo
caráter universal e atemporal que somente obras literárias clássicas possuem. Por isso,
devem sempre ser revisitadas!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARIÈS, Philippe. 1981. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara.
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BOSI, Ecléa. 1994. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo:
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CAMPOS, Claudia Mendes; RIBEIRO, Josélia. 2013. Gêneros. In: COSTA, Iara
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palavra na Literatura Infanto - Juvenil. Cascavel: Editora UNIOESTE.
GÓES, Lúcia Pimentel. 1991. Introdução à Literatura Infantil e Juvenil. 2. ed. São
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chave. 4. ed. São Paulo: Contexto. p. 151-166.
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RAMOS, Fátima Maria Elias. Uma leitura do discurso do outro nos estudos da
linguagem. Revista da GELNE, Piauí, v. 1, n. 12, p. 1-10, 2010.
SORIANO, Mônica Elizabete Amaral. 2009. Contos de Fadas e Identidade Infantil. São
Gonçalo: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009, 84f. Monografia
(Licenciatura em Pedagogia) - Faculdade de Formação de Professores, Curso de
Pedagogia, UERJ, São Gonçalo – RJ.
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SIMPÓSIO 20
HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LÍNGUA PORTUGUESA EM
TEMPOS DE COLONIZAÇÃO/DESCOLONIZAÇÃO
LINGUÍSTICA
COORDENADORES
Vanise Medeiros
(Universidade Federal Fluminense)
Verli Petri
(Universidade Federal de Santa Maria)
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização linguística, 461-478
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p461
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Carolina P. FEDATTO1
RESUMO
Este trabalho analisa as políticas linguísticas para a Língua Portuguesa na circulação
editorial da literatura contemporânea. A história de construção das línguas nacionais
mostra que a literatura teve um papel fundamental na consolidação de um imaginário
unificado de língua. O desenvolvimento de uma escrita prestigiada e uniforme
contribuiu para a construção da correspondência entre uma língua e uma nação
(Auroux, 1992). A modernidade nos legou essa evidência, mas também nos forneceu
elementos para desconfiar dela. A imposição das línguas das metrópoles europeias às
suas colônias abalou o binômio língua/nação e possibilitou a expansão dessas línguas
para além de seus territórios nacionais. Essa internacionalização linguística passou a ser
significada por meio de fenômenos que designam a continuidade da influência
linguístico-cultural do Europa. É sob a égide da lusofonia que assistimos ao aumento de
publicações, sobretudo em Portugal e no Brasil, de produções literárias vinculadas aos
Estados membros CPLP; a este acontecimento denominamos mundialização literária.
Por meio de análises de elementos paratextuais de edições literárias atuais em Língua
Portuguesa, buscaremos compreender os valores difundidos pelas políticas linguísticas
lusófonas contemporâneas e o papel dos diversos países de língua oficial portuguesa.
Examinando os efeitos de unidade, completude e diversidade que a ideia de lusofonia
produz, questionamos a natureza da relação entre as diversas literaturas de Língua
Portuguesa e buscamos retraçar a historicidade que as constitui. A aposta deste estudo é
de que as produções literárias atuais em Língua Portuguesa sejam um observatório
interessante de como o fenômeno da mundialização marca os espaços enunciativos
descolonizados.
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada.
(Ovídio Martins, poeta cabo-verdiano, Anti-evasão)
1 UNIVÁS, Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, Av. Tuany Toledo, 470, CEP
37550-000, Pouso Alegre/MG, Brasil – carolinafedatto@gmail.com.
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
Língua e hiperlíngua
Para a Linguística, falar uma língua está geralmente associado à ideia de que os
homens possuem uma gramática desta língua. Chomsky afirma que o conhecimento
linguístico é o conhecimento de uma gramática, de uma estrutura de regras, princípios e
representações que existem na mente dos falantes. A gramática representada na mente é
um objeto real a partir do qual a língua deve ser definida. Já gramática elaborada pelo
linguista é uma teoria articulada explícita que se esforça para exprimir as regras e os
princípios da gramática presente na mente de um locutor-auditor ideal. Mas esta ideia de
gramática não nasce do pensamento gerativista, ela remonta à Tekhnê de Dionísio de
Trácia, como sendo uma técnica de descrição linguística composta por exemplos
canônicos, paradigmas e regras que permitem construir frases ou uma língua gramatical.
Podendo criar e recriar enunciados a partir das regras expostas, a língua gramatical não
se confunde com a língua empírica, pois não é capaz de prever as frases que serão
efetivamente pronunciadas pelos falantes em situações reais e históricas de
comunicação.
Para considerar a realidade do conhecimento linguístico e suas produções,
Auroux (1997) propõe um modelo explicativo baseado da noção de hiperlíngua. No
modelo da competência gramatical, a gramática presente na mente é igualmente
implementada em todos os indivíduos falantes de uma mesma língua, sendo também
idealmente análoga à gramática produzida pelo linguista. Já no modelo da hiperlíngua,
figuram diferentes elementos, como: as relações de comunicação que se estabelecem
entre indivíduos diferentes com competências linguísticas diversas; indivíduos que
podem ter acesso a instrumentos linguísticos que modificam sua competência;
indivíduos que exercem diferentes práticas sociais e relações de comunicação que se
dão num certo ambiente histórico. Segundo Auroux, a hiperlíngua é entendida, então,
como um espaço/tempo estruturado por falantes social e linguisticamente desiguais,
instrumentos linguísticos e situações diversas e reais de comunicação.
Levar a termo essa conceituação, para o autor, significa afirmar que a língua não
existe, apenas existem certas porções do espaço/tempo, sujeitos dotados de
determinadas capacidades linguísticas (ou gramáticas) não idênticas e rodeados por um
mundo com seus artefatos técnicos, dentre eles gramáticas e dicionários, mas também
políticas, leis, relações socioeconômicas (Auroux, 1997, p. 112). O interesse, portanto,
da noção de hiperlíngua é compreender que indivíduos podem se comunicar porque
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Em toda língua e em toda relação entre línguas atua, pois, uma política
linguística específica que tenta organizar as práticas significativas e as forças sociais
que estão em jogo. As políticas linguísticas têm um caráter técnico, restritivo e
regulador dos sentidos e das histórias que estão circulando (Mariani, 2004, p. 44). Se as
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
intervenções in vivo, para citar a tipologia de Calvet (2002, p. 17), geralmente ligadas à
intercompreensão frente à convivência entre línguas (línguas aproximativas e
veiculares, neologismos espontâneos e empréstimos de palavras) e a fenômenos
identitários (gírias, jargões, socioletos, escolhas e proibições deliberadas de praticar um
determinado idioma em situações desiguais entre línguas), são a prova de que as
práticas linguageiras são um motor importante de mudança na forma e na função das
línguas, as intervenções in vitro, as políticas linguísticas propriamente ditas, isto é,
aquelas que passam pelo Estado, por leis e decretos, gozam de maior legitimidade e
alcance social. Segundo Orlandi (1998, p. 10 et seq.) e Mariani (2004, p. 44 e 45), a
formulação dessas políticas assume posições diferentes dependendo das condições
sóciohistóricas. Buscando a identidade nacional em detrimento da diversidade regional
e das influências estrangeiras, o Estado e as instituições invocam a unidade como valor.
No caso do contato entre povos, nações e Estados, como ocorre com as conquistas e
colonizações, a dominação é tida como valor, impondo uma língua sobre outras, seja
pelo contato, pela força ou pela lei. Já quando os falantes são considerados, a
diversidade passa a contar na formulação de políticas que pretendem garantir as
diferenças linguísticas. Tanto as práticas linguageiras quanto as políticas linguísticas
não são isoladas da ideologia nem da imagem que se tem das línguas, o que, por um
lado, acirra formas de dominação e controle linguísticos, mas também provoca
resistência e mudança de sentido (Mariani, 2004, p. 45).
Mesmo sendo a colonização violência e imposição, ela não é capaz de impedir a
circulação de formas de resistência e transformação. A colonização produz, dessa
forma, uma contraparte: a descolonização, e com ela inicia-se um novo processo de
(inter)nacionalização da língua portuguesa assim como de confirmação de sua
heterogeneidade e da necessidade de unificação. Considerando a situação linguística dos
países (des)colonizados, Mariani ressalta que as posições podem se dividir entre o
acolhimento da língua do colonizador, reconhecendo-se a ex-colônia como tributária
deste legado, ou sua rejeição em favor de um nacionalismo linguístico vinculado a
tradições locais. No entanto, a complexidade da questão nos leva a afirmar que a língua
da metrópole, aceita ou negada como língua oficial da ex-colônia, nacionaliza-se, isto é,
transforma-se em língua nacional através de recobrimentos e confrontos com outras
línguas (locais e de imigração, mesmo não oficiais) em consequência da memória
político-histórica da colonização (Mariani, 2008, p. 74). Na contradição entre essas três
ordens de inscrição da nação descolonizada na língua do conquistador, forja-se uma
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relação singular, mas recorrente, da língua portuguesa com espaços e povos outros –
tanto no que concerne a Portugal, quanto ao que eram e ao que são esses países, suas
línguas e literaturas depois da colonização.
Nesse sentido, a criação da imprensa (que é contemporânea à exploração
massiva do planeta) assume um papel fundamental, pois permite a multiplicação do
mesmo texto a um custo menor por exemplar, o que contribui para sua divulgação. O
fenômeno de escrita da língua muda, assim, de dimensão, já que a imprensa separa a
produção intelectual do texto de sua reprodução material. Pode-se copiar
indefinidamente o mesmo texto, mas é preciso fornecer aos impressores que os
compram “produtos frescos”, além de renovar e ampliar o mercado leitor. Esse é o
primeiro passo na direção da mercantilização das línguas e das literaturas. Como
operação material de reprodução do mesmo, a imprensa pode alcançar mais leitores e,
em termos linguísticos, tem como consequências a normalização dos vernáculos, a
instituição de regras ortográficas e de pontuação e a regularização da morfologia
(Auroux, 1992, p. 51). Tendo em vista, entretanto, o fato de que as línguas mudam não
só com o passar do tempo, mas também com as especificidades materiais de sua
produção e com transformações políticas e sociais nos espaços onde circulam, a
necessidade mercantil de normalizá-las não cessa de colocar novos temas a equacionar;
haja vista o recente acordo ortográfico em vigor desde de 2009 e assinado em 1990 por
Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e
Príncipe.
Por conta do fato político da colonização, as literaturas nacionais extrapolam as
fronteiras de uma única nação, já que as línguas europeias se tornaram também línguas
de países descolonizados. Mas nem por isso as fronteiras foram apagadas, pelo
contrário, elas estão cada vez mais marcadas, só que através de outros mecanismos,
diferentes daqueles ligados à emergência da modernidade. As relações entre línguas,
contudo, sempre engendraram uma tensão fundadora que movimenta suas formas-
históricas entre unidade (apagamento das diferenças em favor da uniformização) e
singularidade (reivindicação das diferenças em favor da pluralidade). No caso dos
países lusófonos, por exemplo, língua nacional e língua de colonização são as
principais formas que atuam, se sobrepõem e se confundem na disputa pelo dizer
literário. Historicamente, o português descende do galego-português, que “é a forma que
toma o latim no ângulo noroeste da Península Ibérica” (Teyssier, 2001, p. 03), e se
afirma como língua nacional de Portugal no momento de consolidação dos estados
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2 A gramatização é definida por Auroux como sendo uma transferência de tecnologia de uma língua para
outra e que não é nunca independente de uma transferência cultural mais ampla. No caso da gramatização
das línguas indígenas e africanas, trata-se de uma exotransferência, pois os sujeitos que efetuam a
transferência não são locutores nativos da língua para a qual ocorre a transferência (Auroux, 1992, p. 74).
3 Como foi o caso, por exemplo, da língua geral no Brasil colônia e do tétum no Timor Leste.
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países de Língua Portuguesa é marcada por essa história e se, de fato, ela é
culturalmente heterogênea, no âmbito das políticas linguísticas há um projeto de
uniformização através, dentre outros fatores, da estabilização de um cânone literário
supranacional, mas centralizado. Neste contexto, a literatura pode ser considerada como
um importante meio de circulação dessa tensão entre unidade e singularidade. A difusão
da Língua Portuguesa através da diversidade literária pretende restringir a
heterogeneidade à esfera cultural e criar uma unidade linguística para o português que
imaginariamente se esquece da história da colonização e coloca essa língua
homogeneizada no campo da mundialização, como se as diferenças entre os diversos
espaços de enunciação4 pudessem ser completamente administradas via legislação.
Interessante é notarmos que mesmo que as línguas, em seu real, não suportem a
completude, elas emprestam do idioma a força aglutinadora que as identificará como
um todo coeso e idêntico às representações sociais. É enquanto idioma que a língua se
deixa projetar como uma unidade colada ao imaginário social e determinada por
imposições de ordem histórica (Dias, 2005, p. 111). E, por sua vez, é enquanto
produção vinculada a um idioma que a literatura se disciplinariza institucionalmente
como pertencente ou advinda de uma língua específica, mas representando universos
culturais diversos, num processo histórico que confirma e produz efeitos de unidade
linguística e nacional.
Esses efeitos estão ligados ao modo como as línguas se historicizam na relação
com o espaço e os sujeitos. Em relação à Língua Portuguesa, podemos pensar como,
mais contemporaneamente, a história do colonialismo português ganhou novos
contornos com a ideia de lusofonia. O argumento utilizado para construir a unidade
entre Portugal e suas (ex)colônias veio, em grande medida, das teorias raciais do
sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, as quais sustentavam que a especificidade da
identidade brasileira repousava sob a mestiçagem biocultural. Destacava-se, num
movimento de decalque e sobreposição, a plasticidade do povo lusitano que projetou a
identidade brasileira, capaz de uma intensa mobilidade espacial, de adaptar-se climática
e culturalmente e de poder conta com o pecado lascivo para dar lugar ao fenômeno da
miscigenação. Esta predisposição singular, junto com o caráter cristocêntrico da
expansão, teria configurado o que Freyre chamou de colonização harmoniosa (Freyre,
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Império com vocação ecumênica. Segundo Lourenço (1978), é por revalorizar essa
imagem desastrosa de si que Portugal coloniza a África. A teoria do lusotropicalismo
não foi um dispositivo de saber específico a serviço de uma ciência imperial; ao
contrário, é se negando como ciência que ela neutraliza um império transformando-o em
identidade (Maino, 2005, p. 197).
Língua e literatura sempre foram instrumentos importantes no desenvolvimento
do sentimento de pertencimento nacional e, por sua vez, foram também profundamente
marcadas por esse pertencimento. A ligação estreita entre língua, literatura e nação que
se formou do século XIX se traduziu atualmente pela instauração de um espaço
internacional de literaturas nacionais que organiza a apreensão da literatura, a
organização do ensino literário ou as classificações das bibliotecas (Thiesse, 2009a, p.
61). A nação, enquanto espaço de pertencimento que se agrega em torno da língua e da
literatura, tem uma relação singular com a temporalidade: ela é concebida como um
coletivo com origens muito antigas, mas sua perenidade se dá por meio de figuras
míticas intangíveis. Essa singularidade se traduz numa concepção determinada da
história literária, por exemplo: da mesma forma que a história nacional, em geral, cobre
todos os séculos e não deixa nenhuma lacuna, a história literária deve inventar e
valorizar um conjunto de obras que correspondam a cada grande período da história
nacional. Mas esta série de obras deve também sublinhar a permanência e a
especificidade do espírito nacional. A história literária, visto que ela se inscreve num
quadro nacional, é, portanto, menos histórica do que geográfica: ela traça as fronteiras
de uma identidade nacional contínua através dos séculos (Thiesse, 2009a, p. 65-66).
A era nacional, portanto, marcou fortemente nossa concepção da literatura pela
afirmação tácita de que, por um lado, não há nação sem literatura e, por outro, não há
literatura que não seja nacional. Atualmente, o lugar privilegiado que tomou a
literatura nacional no sistema de ensino, por exemplo, é colocado em questão no quadro
da mundialização e da formação de comunidades transnacionais culturais e econômicas
(dentre elas a CPLP). Isso abre uma série de questões sobre a definição do cânone
literário, a concepção de manuais transnacionais de ensino, o uso de traduções e
recursos textuais eletrônicos e a invenção de novas práticas de circulação editorial.
(Thiesse, 2009b, p. 25). Esse último aspecto será objeto de nossa análise a seguir,
considerando sempre que os vestígios do processo de significação e apagamento da
Língua Portuguesa no contexto da colonização/descolonização linguística ficam
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7 Cf. jornal O Globo de 24 de outubro de 2006 em matéria publicada sobre as estreias da editora: Editora
vai lançar obras de língua portuguesa: Língua Geral põe nas livrarias oito títulos.
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Palavras finais
8 José Eduardo Agualusa dá uma declaração sintomática ao jornal O Globo de 24/10/2006: “Não
escolhemos o mercado brasileiro por acaso. Diferentemente da Europa, onde o número de leitores não
cresce mais, no Brasil há um crescimento da população e, principalmente, da população alfabetizada”
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OBRAS ANALISADAS
Agualusa, José Eduardo. O vendedor de passados. Lisboa: Dom Quixote, 2004. Rio de
Janeiro: Editora Gryphus, 2011.
9 Língua de madeira é uma expressão dos analistas de discurso franceses Gadet e Pêcheux (2004), para
designar a língua tratada como um sistema fechado, doutrinário e normativo como a língua da gramática,
do direito e de discursos políticos. Língua de papel é um sintagma cunhado por Deleuze e Guattari (1977)
num estudo sobre a literatura menor, aquela praticada por minorias oprimidas ou opressoras num espaço
exíguo e através de uma língua desterritorializada, de papel.
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Cardoso, Luís. Réquiem para o navegador solitário. Lisboa: Dom Quixote, 2007. Rio
de Janeiro: Língua Geral, 2010.
Couto, Mia. Terra sonâmbula. Lisboa: Caminho, 1992. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
Couto, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo. Lisboa: Caminho, 2008. São Paulo:
Cia das Letras, 2008.
Del Fuego, Andrea. Os malaquias. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010. Lisboa: Círculo
de Leitores, 2011.
Hayat, Faísa. O evangelho segundo a serpente. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2006.
Lisboa: Dom Quixote, 2006.
Tavares, Gonçalo. M. Jerusalém. Lisboa: Caminho, 2004. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
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Barreto, Raquel Goulard. Análise de discurso: conversa com Eni Orlandi. Revista Teias,
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Freyre, Gilberto. (1940) O mundo que o português criou. São Paulo: É Realizações,
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Orlandi, Eni P. Terra à vista – Discurso do confronto: Velho e Novo Mundo. 2. ed.
Campinas: Ed. Unicamp, 2008.
Pêcheux, Michel (1969). Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise &
HAK, Tony (org.). Por uma análise automática do discurso. Campinas: Ed. Unicamp,
1997.
Pêcheux, Michel (1982). Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. (org.) Gestos de leitura:
da história no discurso. Campinas: Ed. Unicamp, 1997.
Teyssier, Paul. (1980) História da língua portuguesa. Trad. Celso Cunha. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização linguística, 479-488
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p479
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Gileade GODOI1
RESUMO
O dia 25 de setembro de 1773 marcou o início de um período fantástico na vida do
Brasil-colônia, mais especificamente no Grão-Pará e Maranhão. A instalação da
derradeira visitação do Santo Ofício a essas partes do Brasil gerou confissões e
denúncias. Interessa-nos aqui, aquelas cujo teor, nos permitem classificá-las como
fantásticas.
Os inquisidores portugueses, falando de um lugar cuja formação ideológica os levava a ver
o mundo dialeticamente dividido entre bem e mal, Deus e Diabo, classificavam as práticas
coloniais com esse olhar, vendo em tudo que não condizia com as concepções católicas, um
traço de pacto demoníaco, um verdadeiro Sabá nos trópicos. O discurso inquisitorial
reverberava, assim, nas confissões e denúncias ocorridas nas colônias.
Mas as histórias de Sabá são histórias de um outro continente, fruto de histórias e memórias
construídas em condições de produção muito diversas das vivenciadas na colônia brasileira.
Ao procurar compreender, explicar e classificar a realidade colonial, os inquisidores
imprimiram, na leitura que fizeram, memórias suas, estranhas à população local, a quem
coube, nesse encontro de imaginários, estabelecer outro gesto de leitura que permitisse a
identificação dos elementos oriundos da colônia com o imaginário europeu.
Neste trabalho, pretendemos através de um breve panorama de dez denúncias fantásticas,
mostrar como o efeito do encontro de imaginários distintos e dos processos de transferência
na vida de colonizados e colonizadores contribuíram para a constituição da memória de um
sujeito nacional.
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Denúncia 15 - (...) recolheu-se “para uma casa escura, logo se ouviu um como
terremoto que lhes causara grande medo e pavor e depois dele ouviram vozes
desconhecidas falando umas com as outras e algumas pancadas no teto da casa (...)
(1978:173)
Denúncia 16 - (..) se ouviram de fora estrondos e bulha no teto da casa e nela uns saltos
como de quem vinha saltando do dito teto para a dita casa. (1978:175)
Denúncia 28 – (...) se ouviu um pé de vento no teto das casas com bastante violência e
que o mesmo teto a coberta dele se bolia (...) e
(...) logo se ouviu também um estrondo por modo de quem saltava de cima para baixo
(...). (1978:211)
Denúncia 31 – (...) logo se ouve do teto da casa um estrondo como de pessoa que sobre
ele está e que se segue ouvir-se um salto na casa como de quem desceu de cima para ela
(...) (1978:222)
Como se pôde observar, em quase todas as denúncias destacadas há menção a
um estrondo no teto da casa. Na denúncia 15 (D 15), entretanto, menciona-se um
barulho como de um terremoto que causou grande medo e pavor nos presentes. Neste
caso específico, a denunciada era uma mulher negra, ao passo que duas das denúncias
referiam-se a índios e duas à Luduvina, uma mulher branca que praticava seus ritos
sempre acompanhada de alguns índios. A referência a um barulho alto e a pancadas no
teto da casa persiste na D 15, mas não há nenhuma alusão à entrada ou saída de seres
não identificados que saltavam pelo telhado. Ainda assim, este é o único caso em que
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2 Cerca de 1,1m.
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denunciante é dupla: sua mulher “não conseguiu melhorar senão pelos exorcismos da
igreja, que a dita índia também aconselhou que buscasse”.
Os procedimentos desviantes da índia, passíveis de serem denunciados, não
obtiveram resultado, mesmo quando a água benta foi usada. Apenas os exorcismos,
feitos na igreja e pela igreja, surtiram efeito.
Não se pode deixar de considerar que nas denúncias feitas a negação da
efetividade dos ritos pagãos seja uma injunção. Afirmar que surtiram efeito seria
colocar-se também no desvio; seria tornar-se, para o inquisidor, um comparsa do
demônio. Negar, aqui, era imperioso.
A denúncia 44, terceira contra a Índia Sabina, tratava de fato ocorrido dois
meses antes, do momento da denúncia. Nela, acrescenta-se, além do defumadouro, do
cachimbo e da água benta, já citados, mais três elementos: palavras incompreensíveis,
palavras das quais só se entendiam “Padre”, “Filho”, “Espírito Santo” e “Virgem
Maria”, bem como sinais da cruz.
Segundo o denunciante, a recomendação da índia tinha sido a de se “lavar os
olhos com água benta para mais depressa sarar”. Desta vez, admite-se uma parcial
eficácia das curas feitas por ela: “não há dúvida que ele denunciante experimentou
algum alívio com as ditas curas...”, mas como esperado, dadas as condições de
produção, a ressalva vem na sequência: “... ainda que não experimentou em se lhe
aclarar a vista dos olhos com o sumo de uma erva chamada camaraã, que ela lhe foi
buscar e aplicou para o dito fim”. Tendo ainda recorrido à índia devido à mesma
moléstia, ela fez os mesmos procedimentos e “encomendou a frequência dos
exorcismos, e de água benta com que lavasse os olhos”.
Observa-se, portanto, na dinâmica do espaço colonial, um crescente
imbricamento entre as práticas locais e metropolitanas; dos colonos e dos colonizadores;
pagãs e católicas. Assim, reconhecer a eficácia das curas mágicas já é possível, mesmo
que não seja atribuída única e exclusivamente a elas, mas a algum elemento católico que
funciona como um avalizador, permitindo que a força das práticas não católicas
prevalecesse, ainda que no desvio. Incorporar os elementos católicos, aqui, é uma forma
de resistência. Incorporar a fé da metrópole, ou melhor, elementos daquela fé, é a via
pela qual se possibilita manter a fé e as práticas coloniais.
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Conclusão
Em uma sociedade colonial marcada pela alteridade, o outro, aquele que permite
haver identificação e transferência, fazia com que “filiações históricas” pudessem se
organizar em memórias, ressignificando-as. Os discursos religiosos na colônia
aproveitavam “fragmentos do ritual já instalado – da ideologia já significante –
apoiando-se em ‘retalhos’ dele para instalar o novo” (2003). Esse novo já não era só o
discurso e os sentidos do outro colonial, nem do outro metropolitano, mas um e outro;
um no outro.
Assim, da ficção à fé, das práticas pagãs às católicas, das práticas católicas às
sincréticas, é possível mapear, através das denúncias feitas à mesa do Santo Ofício,
memórias de três continentes que se tornaram, através da resistência processada pelo
viés da incorporação e transformação, uma só memória. Memórias que se fundem, se
transformam e possibilitam gestos de identificação do que é hoje o imaginário sincrético
brasileiro.
Do mesmo modo que o acontecimento discursivo do edital de fé movimentou os
sentidos na direção da demonização das práticas pagãs, a resistência encontrou, no seio
do discurso e símbolos católicos, a força motriz de sua sobrevivência. Ressignifcada
para um lugar de desvio, pouco a pouco, as práticas pagãs foram incorporando os
símbolos católicos sagrados numa busca cada vez maior de legitimação e permanência,
possibilitando, assim, a sedimentação de memórias sincréticas, intercontinentais, que
constituem parte do processo identitário do sujeito nacional brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Godoi, Gileade. 1998. Calar e dizer: injunções relativas às línguas geral e portuguesa
no séc. XVIII. Niterói, UFF, dissertação.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização linguística, 489-504
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p489
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Filiamo-nos à linha de pesquisa Texto, memória, Cultura e nos inscrevemos na Análise
de Discurso, fundada por Michel Pêcheux e, Orlandi. Demanda dessa inscrição a
concepção de língua como não-todo, tomada em sua heterogeneidade e divisão entre
base linguística e processos discursivos, atestando a sua autonomia relativa. O objeto
recortado é o gerenciamento da língua oficial por parte das instituições, contrapondo a
política de língua do período colonial (organização da gramática da Língua Geral e
outras ações coercitivas) e as políticas linguísticas no século XXI. Tratamos do período
colonial a partir de pesquisas bibliografias, significando-o como um período permeado
por ações coercitivas, em que a língua praticada era desconsiderada e a língua oficial –
de Estado – tornada obrigatória em todos os espaços oficiais, mesmo para imigrantes.
Esse período faz ponte com o período pós-colonial em espaços, que chamamos de
imigração, nos quais a língua materna e a Língua de Estado se embatem, instaurando
conflitos em torno do praticar e do oficializar. Nas Colônias de Entre Rios – distrito de
Guarapuava/PR – a Língua Portuguesa e a Língua Alemã fazem parte do currículo
escolar e são colocadas lado a lado. As crianças, nos primeiros anos aprende a língua
alemã, em sua norma culta e, nos anos subsequentes, a Língua Portuguesa. O espaço de
imigração embate-se entre a Nova Pátria (Brasil) e a Velha Pátria (Danúbio) e esse
embate toma corpo a partir de práticas, entre elas a nomeação de ruas e espaços nos dois
idiomas.
1 Este projeto faz parte de Pesquisa Básica e Aplicada, financiada pela Fundação Araucária –
Paraná/Brasil, na qual retornamos à Análise de Discurso (AD), centrando-nos na teoria do Discurso
desenvolvido por Pêcheux, especialmente, na obra Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do
obvio, escrita em 1975, na França e traduzida por Eni Orlandi, pioneira nos estudos discursivos e na
transformação da teoria, cuja marca é o questionamento constante em torno dela mesma e das demais
teorias.
2UNICENTROl. Departamento de Letras (DELET) e no Programa de Pós-Graduação em Letras. Rua
Barão de Capanema, Bairro Santa Cruz. CEP: 85.015.420, Guarapuava, Paraná. Brasil.
mariacleciventurini@gmail.com
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portanto para sujeitos, para práticas sócio-históricas e ideológicas. Tomar o texto como
início da caminhada constitui pressupostos em torno de caminhos a serem
percorridos/trilhados, de filiações, de recortes, de concepção e, finalmente, de um
escopo teórico. Nosso percurso tem início na/pela língua que antes de ser um sistema e
de ser inscrever-se em um funcionamento ancorado e sustentado pelo princípio de que
os sujeitos falam para conseguir determinados resultados, constitui-se pela memória,
significando pela história e por sujeitos. De acordo com Milner (2004), ela é sempre o
não-todo, o heterogêneo, estruturado pela divisão entre base linguística e processos
discursivos, que atestam a sua autonomia relativa, conforme discussões empreendidas,
inicialmente, por Pêcheux (1997), depois por Courtine (1999) e deslocadas por Orlandi
(2011), quando contrapõe mundialização e individuação como modos de o sujeito
identificar-se e filiar-se em formações discursivas, o que é relevante, para tratar da
língua em espaços de imigração, modos de praticar e de oficializar.
Quando propusemos esse trabalho, pensamos nos mecanismos de coerção que
regulam o funcionamento da língua. Por isso, relacionamos o oficializar ao
autoritarismo e à dominação, recortando mecanismos do Estado, enquanto aparelho
ideológico, que cerceia liberdades linguísticas, inscrevendo práticas linguísticas no
lugar que escapa ao oficial. Entre a proposição do trabalho e a sua escritura a caminhada
alcançou obstáculos a serem superados, exigindo que pensássemos/repensássemos a
temática, o nosso objeto, o recorte e a complexidade dele. Temos como certo que a
língua imposta em tempos de colonização difere da língua trazida pelos imigrantes, no
período de pós-colonização, mas as diferenças não são tão grandes, há semelhanças e,
também, tensões, rupturas, equívocos, enfim, diferenças.
Diante disso, interessa discutir o gerenciamento da língua oficial por parte das
instituições, contrapondo políticas de língua do período colonial (organização da
gramática da Língua Geral e outras ações coercitivas), como práticas colonialistas ou
pós-colonialistas, do século XX e XXI. Como não se pode dizer tudo, enfatizamos o
pós-colonialismo, recortando o espaço de imigração, mais precisamente as Colônias, do
Distrito de Entre Rios, onde vivem sujeitos designados de suábios do Danúbio ou,
popularmente, de alemães. Para cercar a língua em espaços de imigração, como objeto,
é relevante retomar Orlandi e pensar a individuação dos sujeitos, tendo em vista que
eles, apesar dos efeitos de saturação dados pela mundialização são ‘pegos’ pela
reafirmação das identificações locais, pela reativação do comunitarismo, pela
fragmentação do mundo, sinalizando para a impossibilidade de separar discurso-
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ao que acontecia no período colonial. Segundo pesquisa realizada por Dalla Vecchia
(2013). a Língua Portuguesa compõe o currículo, mas há, políticas linguísticas
praticadas na região multilingue, adotada em Entre Rios e políticas linguísticas
nacionais de ensino de línguas. Diante disso, nossa questão é: Como se constitui e se
sustenta o discurso sobre línguas e como se relacionam as práticas linguísticas
realizadas e a prática oficial da língua? Vale destacar que essa questão demanda mais
espaço e tempo para poder ser respondida, provavelmente por ela ressoam outras
questões. Por isso, perguntamos, também: Como os sujeitos suábios do Danúbio
colocam lado a lado as duas línguas e legitimam essa pratica, aproximando o praticar do
oficializar?
Em nosso trabalho, a divisão decorrente do que se designa de colonialismo e de
pós-colonialismo não se constitui apenas como um recorte, mas como um gesto de
interpretação entre as duas temporalidades históricas na relação com as línguas
praticadas e as línguas oficializadas no Brasil – país colonizado – que recebeu e passou
a praticar a língua do “outro’. No colonialismo, a língua funciona como um mecanismo
de submissão multi-dimensional, acompanhada de resistências que se ancoram e se
sustentam nas línguas nativas.
No período colonial, o colonizador deixa a sua terra e imigra com objetivos
exploratórios e mercantilistas bem definidos. A motivação está na conquista de
territórios e, no caso do Brasil, também de difundir o catolicismo. O país colonizado
funciona, guardando as devidas proporções, como um país derrotado de guerra e o
colonizador inicia o processo de dominação pela imposição da língua. Essa é uma
memória que vem da história e das práticas que sinalizam para a língua como um poder
político. Assim, no colonialismo, a língua é imposta com vista a práticas
monolinguísticas, dando visibilidade a duas grandes impossibilidades: unificação e o
apagamento da diversidade linguística. Com isso, no período colonial o sujeito que se
constitui como dominador tem a ilusão de que apaga a cultura do outro, silenciando
sujeitos e as suas identificações. Na prática não como não aceitar o bilinguismo, porque
a língua materna faz parte dos sujeitos, está neles.
No Brasil, a colonização linguística iniciou com a chegada da frota de Cabral,
trazendo na bagagem mecanismos de aculturação, dentre eles, a igreja, memorável pelo
marco histórico da primeira missa, representada em várias obras de artes. A primeira
missa é interpretada pela Carta de Pero Vaz de Caminha, que funciona como texto
fundador, de acordo com Indursky (2011). A língua e a fala sempre encaminham para
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direções e objetivos, que passam pela língua, a qual tanto no período colonial como no
pós-colonial, apesar de gerenciamentos institucionais, ‘sofrem’ a influência da língua e
da cultura do outro, seja ele o habitante nativo ou o imigrante. Em terras brasileiras, a
mescla entre o Português e a língua indígena resultou na Língua Geral, constituindo-se,
de acordo com Mariani (2004), como um dos grandes apagamentos, desse período, em
torno da língua.
A Língua Tupi foi considerada pelos portugueses como ‘a língua’ dos índios,
em detrimento de outras línguas indígenas, instaurando o apagamento de culturas e de
práticas, silenciando outras línguas faladas em território nacional, conforme referido por
Mariani (2004). Esse gerenciamento é consequência de um processo institucional
menos evidente, “não assumido claramente como organizacional”, de acordo com
Orlandi (2002), que nega aos sujeitos o direito de praticarem a língua de acordo com
suas identificações. Orlandi (2007, p. 61), diz ainda que as diferenças linguísticas não
deixam de existir pelo gerenciamento de língua dada a relação língua-memória e,
também, porque as diferenças são de ordem cultural, histórica e social.
A Língua Geral, conforme Guimarães (2007, p. 64), tornou-se a língua franca,
falada por todos os que dividiam o espaço brasileiro, até que no século XVIII e a língua
portuguesa passou a ser obrigatória em todas as formas sociais, na escola, no comércio,
na igreja, etc, depois da independência. Entendemos que a imposição da língua por
aquele que ‘chega’ e ocupa o espaço, resulta no apagamento do ‘outro’, dominando-o,
resultando na anulação do que se tem como Nação, sinalizando para a ausência dela.
Diante dessa prática, a nação deixa de existir efetivamente, pois espaço territorial é
tomado pelo colonizador e agregada a nação dominada a não que ele (dominador)
pertence. A imposição da língua aos territórios dominados pelo colonizador ocorre pela
representação do poder social e político que ele detém, promovendo, além da
aculturação, silenciamentos e apagamentos, mas não a relação língua x cultura x
ideologia, espaço através do qual os sujeitos, como povo resistem.
A resistência dá visibilidade ao distanciamento entre o que é praticado e o que é
dado pela ‘oficialização’, no período colonial, da metrópole. No pós-colonialismo o
Estado determina a língua a ser falada, praticada em todos os espaços e rompe com a
língua como pertencimento, como forma de identificação. Com isso apaga, conforme
Guimarães (2007, p. 64), a língua nacional que “é a língua de um povo, enquanto
língua que o caracteriza, que dá a seus falantes uma relação de pertencimento a este
povo”. Mas o aparato do Estado não impede rupturas e transformações, tendo em vista,
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‘velha’ pátria, perdida pelos efeitos da guerra, o sujeito nenhum, de acordo com Scherer
(2003, 120) “é sujeito sem lugar social”, pois, segundo essa autora o sujeito se constitui
pela língua e o lugar dessa língua precisa ser o lugar físico em que eles vivem, o
instaura outra ilusão, pois a língua não é física, mas uma prática, do que s autora diz que
[...] falar a língua e estar instado nela, através de efeitos do simbólico, na eterna
e provisória movência da constituição do corpo social, vai se constituindo no
discurso e no sujeito em suas idas e vindas entre o real da língua e o real da
história. Divididos como sujeitos e cindidos enquanto sentido, em dois espaços
de circulação o sujeito se instala. (SCHERER, 2003, p. 120).
De acordo com Venturini (2011, 77), em tese “os sujeito-imigrantes abandonam
a língua materna para falar a língua oficial do país em que se instalaram, submetendo-se
e adaptando-se à língua do outro”. Essa submissão/adaptação não ocorre com os
imigrantes de Entre Rios, pois eles buscam criar uma ‘comunidade imaginada’, nos
termos de Andersen (2011) e, dessa manter a língua, que imaginariamente os constitui
como alemães. Com isso ‘esquecem’ que a língua altera-se/transforma-se, apagando
com isso, o fato de que eles também se encontram ‘fora’ do lugar. A pátria que
chamam de ‘velha’, talvez não seja mais a pátria sonhada e deixada para trás, ela
também se transformou em imaginária, fora do lugar e do tempo.
A Língua Portuguesa é uma Língua de Estado e, por isso é por ele gerenciado,
mas nem sempre foi assim. De qualquer forma, os responsáveis pela organização da
língua são os formadores de opinião. Guimarães dá visibilidade a isso, dizendo que
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Texto-imagem 1
O Heimatmuseum - nome do Museu Histórico de Entre Rios - significa na língua
alemã, o Museu da Pátria. Ele foi criado para se constituir como ‘o lugar’ que sustenta
para as crianças e os mais jovens a necessidade de manter o idioma, pois é pela língua
que os sujeitos se filiam e se identificam ao que faz da Nação o espaço sujeito. Quem o
visita fica sabendo da história dos suábios do Danúbio, as comidas típicas, o modo de
vestir, os casamentos, as crenças. Além disso, há fotos das casas, dos caminhões em que
vieram de São Paulo até Guarapuava, mostram também as lavouras, a fundação da
cooperativa Agrária, que é a base econômica do lugar.
O funcionamento do lugar ‘mostra’ o percurso trilhado pelos alemães. Ao lado
está o Centro Cultural e a escola, todos espaços que funcionam como lugares de
memória, porque ‘guardam e gerenciam as memórias, especialmente as que interessa às
lideranças da comunidade ‘guardar’, passando como herança, para os mais jovens,
acreditando que estes também vão trabalhar para manter vivas as tradições e a história.
Texto-imagem 2
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Entre Rios rememorar/comemorar a pátria deixada para trás, por meio do que pode ser
visto e que se concretiza pelo olhar. Nesse sentido, não é preciso falar da ‘pátria’,
porque ela é mostrada por meio de escritas e de práticas sociais e políticas e porque não
dizer, ideológicas por constituírem evidências de que todos os que vivem nesses espaços
se veem e se significam como alemães e não como cidadãos brasileiros.
Por esse texto-imagem podemos ver que os nomes das ruas e dos lugares
públicos foram escritos nas duas línguas: portuguesa e alemã. Esse funcionamento
instaura efeitos de que o espaço, que fica no Brasil, se constitui, também, pelo que está
ausente, mas mesmo na ausência faz sentido, ressoa, faz eco, constituindo memória.
Além disso, pela escrita na língua alemã se constituem/sedimentam-se discursos e
memórias da ‘velha’ pátria. Pelos nomes escritos na língua alemã ressoam memórias
que os sujeitos brasileiros e talvez os filhos de imigrantes que nasceram, no Brasil, não
conhecem. Mesmo assim, a presença na ausência funciona como uma memória que
lateja, se movimenta e constitui efeitos de sentido pelas redes de memória que convoca.
Texto-imagem 4
O texto-imagem 4 traz a designação ‘velha’ pátria e dá visibilidade ao espaço, às
cidades e, também, ao rio que corta o pais e constitui mais uma identificação entre as
duas pátrias – a alemã e a brasileira. As duas são cortadas por dois rios, que passam no
meio delas e simulam semelhanças entre as duas, mostrando pelo ‘ver’, que elas podem
vir a tornar-se uma. Isso se, e somente se: na pátria (nova) for falada a língua alemã, se
a cultura estiver sempre funcionando e se as memórias forem mantidas/mostradas.
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Efeitos de conclusão
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
Bernardim, Adriana Cristina. Colônias suábias; entre a ‘velha’ e a ‘nova’ pátria.
Dissertação de Mestrado. Guarapuava, Unicentro, 2013.
Milner, Jean-Claude. O amor da língua. Trad. Paulo Sérgio de Souza Júnior. Campinas,
SP: Editora da UNICAMP, 2004.
Scherer, Amanda. A constituição dos sentidos nas fronteiras do eu: memória da língua e
a língua da memória. Revista Letras – Língua e Literatura: limites e fronteiras, Santa
Maria, Editora UFSM, no. 26, jul-ago, p. 119-130, 2002.
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Venturini, Maria Cleci. Sentidos políticos e identitários do nosso acordo ortográfico. In:
SCHONS, Carme Regina, CAZARIN, Ercília Ana. Língua, escola e mídia:
em(ter)laçando teorias, conceitos e metodologias. Passo Fundo, Editora da UPF, 2011, p
72-89.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização linguística, 505-522
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p505
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Em 2014 foi publicado o Manual para o Uso Não Sexista da Linguagem, elaborado pela
Secretaria de Políticas para as Mulheres, do Rio Grande do Sul, Brasil. O objetivo desta
publicação é, conforme explicitado em suas primeiras páginas, “proporcionar às e aos
servidores públicos uma ferramenta clara e simples que lhes sirva para a implantação e
o uso de uma linguagem inclusiva nas práticas escritas e orais de onde trabalham, direta
ou indiretamente, especialmente àquelas que desenvolvem programas de atendimento à
população”. Uma iniciativa semelhante foi adotada em Portugal em 2009. A questão do
sexismo na linguagem não é nova no campo dos estudos da linguagem, tendo sido
abordada desde a década de setenta por disciplinas como a sociolinguística e a
sociologia da linguagem. A eleição de mulheres para altos cargos políticos e
institucionais atualizou essa discussão no âmbito do Estado e deu lugar a tentativas de
legislar sobre o assunto. Neste artigo, centramos nosso interesse nos efeitos sobre o
processo de instrumentação da língua portuguesa produzidos por políticas linguísticas
explícitas que intervêm declaradamente na luta contra práticas sexistas da sociedade. A
nossa pesquisa se coloca no cruzamento das disciplinas História das Ideias Linguísticas
e Análise de Discurso, ao se interrogar sobre os efeitos sobre a língua oficial que essas
iniciativas provocam e ao analisar o funcionamento destes novos instrumentos
linguísticos, que impostos pela força do Estado, disputam ao gramático um saber sobre
a língua e o projetam sobre a cidadania como um novo espaço de
interpelação/subjetivação.
A língua oficial
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2 Retomamos brevemente a seguir considerações sobre a língua oficial desenvolvidas em Zoppi Fontana
(2013).
3 Cf. Araújo, 2007; Mariani, 2004
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nacional, isto é, não só como língua do Estado brasileiro, mas também da nação e povo
brasileiros, representados imaginariamente na unidade e homogeneidade cultural e
linguística historicamente construída para compor a evidência de uma identidade
nacional.
Importa esclarecer que consideramos a língua oficial como uma dimensão da
linguagem, no sentido definido por Payer (2009a; 2009b), que estuda os processos
históricos e simbólicos que relacionam as línguas aos sujeitos e aos estados nacionais
em termos de memórias discursivas. De acordo com esta autora:
Uma língua é sempre habitada pela memória de outras, e cumpre explorar
não somente o importante arquivo linguístico já objetivado na relação da
sociedade com a língua (Auroux, 1992), sob o estatuto de língua nacional,
mas também explorar aquilo que ‘da língua’ restou no espaço do in-forme, do
sem lugar, do ilegítimo da língua na própria língua. [...] A distinção é
necessária ao nosso ver tanto de modo empírico (analítico) (quais são as
línguas em questão, qual a sua materialidade, qual o seu funcionamento nas
práticas de linguagem?; quanto de modo teórico: como funcionam no mesmo
sujeito de linguagem as diferentes dimensões de língua nacional e de língua
materna? (Payer, 2009a, s.d.)
Assim, a autora explora os conceitos de língua nacional e língua materna como
dimensões da ordem da memória, como dimensões da linguagem que têm lugares e
funcionamentos distintos para o sujeito e na sociedade. Alargamos esta compreensão
para pensar o funcionamento discursivo da língua oficial, entendida aqui como
dimensão discursiva da língua, que é da ordem da memória e que afeta os processos de
identificação-subjetivação, dado que participa, juntamente com as outras dimensões da
língua, na estruturação do sujeito em sua relação com a linguagem.
Em trabalhos anteriores já analisamos o funcionamento discursivo do português
como língua oficial do Brasil4, mostrando os deslocamentos de sentidos produzidos nos
processos históricos de sua definição jurídica. Como resultado das análises realizadas
demonstramos que a dimensão de língua oficial do português do Brasil é representada
na memória discursiva por condensação metonímica, ou seja, como a somaória de uma
denominação- Língua Portuguesa- e de uma norma ortográfica submetida aos embates
políticos e ideológicos de acordos internacionais. Desta maneira, apresentamos o corpo
imaginário da língua oficial como sendo constituído materialmente (na história e na
língua) por seu nome e sua grafia. Estes seus traços materiais lhe outorgam
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5 Cf. Orlandi (2002; 2007) para uma análise das políticas linguísticas em relação ao processo de
gramatização do português no Brasil.
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6 Em 30 de janeiro de 2014 o governador Tarso Genro promulgou a lei estadual 14.484 que impõe o uso
de linguagem inclusiva não sexista em todos os órgãos e práticas da administração pública do estado de
Rio Grande do Sul. Não existe na administração federal do Brasil, até onde temos conhecimento,
nenhuma lei do mesmo teor. Em 2002 foi apresentado um Projeto de Lei Complementar (PLC 102-2002)
no Senado Federal contendo uma iniciativa semelhante, porém esse projeto, após ser aprovado no Senado,
foi arquivado na Câmara de Diputados sem sanção.
7 Cf. Yaguello (1978; 2014); Possenti e Baronas (2006).
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Para efeitos de nossa análise, esta vinculação a uma ONG internacional com
militância ativa e reconhecida no campo dos movimentos de mulheres na América
Latina sinaliza uma inflexão no processo de gramatização da língua portuguesa no
Brasil na sua dimensão de língua oficial. A legitimidade de um gesto de intervenção por
parte do Estado sobre essa língua aparece, assim, justificada com base na práxis social
dos movimentos de equidade de gênero que ultrapassam as fronteiras do Estado
nacional brasileiro. Trata-se de um gesto de interpretação da cidadania que considera as
condições históricas concretas de seu exercício na sociedade, submetida às contradições
constitutivas das relações de dominação. No jogo imaginário de representações que
significam as relações dos sujeitos com a linguagem, é o lugar da militância feminista e
sua prática política que legitimam uma intervenção na língua e não o lugar de produção
e institucionalização de um saber metalinguístico sobre a língua, representado pelo lugar
do gramático, do linguista, do lexicógrafo ou de outros especialistas.
Desta maneira, se projeta nos enunciados uma imagem de Estado democrático,
republicano, moderno, tecnológico e aberto às demandas sociais.
É tarefa dos governos verdadeiramente democráticos e republicanos
combater as desigualdades sociais e econômicas, onde quer que elas se
apresentem. A postura dos governantes no enfrentamento às discriminações e
tratamentos desiguais, aos preconceitos de toda ordem e às ameaças a direitos
humanos é o que dá conteúdo a estes governos. Insere-se neste contexto a
crescente reivindicação pelo fim do tratamento discriminatório às mulheres
[...] A modernidade democrática, assim, corrige mais uma das suas chagas.
É incompatível com uma sociedade que se pretenda democrática e que
desenvolve tecnologias cada vez mais sofisticadas e instituições cada vez
mais abertas. (Apresentação, Tarso Genro, Governador do Estado do Rio
Grande do Sul, Manual, 2014, p.9)
A língua oficial é representada, desse modo, como alvo emblemático das lutas
por equidade de gênero travadas na sociedade e como espaço de intervenção possível do
Estado na sua resposta à reivindicação social. Adotar na administração pública uma
linguagem inclusiva não sexista simboliza metaforicamente o diálogo democrático entre
a sociedade civil e o governo.
No Manual adotado pelo Estado do Rio Grande do Sul (Brasil) observamos
ainda outro deslocamento importante em relação aos processos de gramatização da
dimensão de língua oficial do português do Brasil. Trata-se do modo específico como se
constrói a representação da fonte de performatividade que sustenta o gesto de instituir
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
uma normativa para a língua oficial. Assim, conforme aparece representada no texto, a
condição de possibilidade e de legitimação desse gesto (a felicidade desse ato de
linguagem, em termos austinianos) não está dada pelo aparelho do Estado, mas pela
presença de mulheres nos cargos públicos; ou seja, é novamente a práxis política e
social que é representada como fundamento ético e social do fazer administrativo-
jurídico do poder de estado.
Abordarmos o tema da equidade, pautada pela linguagem inclusiva e não
sexista, só é possível porque hoje, neste Governo, temos a participação
feminina em postos de comando e decisão. (Por uma sociedade inclusiva,
Mari Perusso, Secretária da Assessoria Superior do Governador, Manual,
2014, p.11)
Outro aspecto a destacar neste documento é o modo como aparece significada a
relação da administração pública do Estado com o saber escolar e a promoção de
práticas linguísticas específicas. Neste sentido, o Manual... se representa em uma
relação de descontinuidade e ruptura com o conhecimento gramatical reproduzido na
escola e materializado no discurso de gramáticos de renome e no texto de dicionários
amplamente utilizados.
O Manual... inclui criticas aos verbetes “homem” e “mulher” do Dicionário
Aurélio, apontando para o androcentrismo dos mesmos, principalmente em relação às
locuções fixas apresentadas nos verbetes, as quais são comparadas em duas colunas no
texto para demonstrar seu funcionamento discriminatório e sexista. Trazemos a seguir
um recorte dessa apresentação a guisa de exemplo, extraído das páginas 38 a 40 do
Manual...
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8 Pfeiffer (2005) analisa o efeito de coincidência e sobreposição produzido entre a língua nacional, a
língua oficial e a língua materna no processo de escolarização.
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O presente Guia foi feito a partir dos trabalhos realizados entre 1999 e 2002,
primeiramente pela equipa que concebeu e aplicou o Manual de Formação
de Formadores/as em Igualdade entre Mulheres e Homens coordenado pela
Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, e mais tarde por uma
equipa constituída por Maria Helena Mira Mateus (Universidade Clássica de
Lisboa), Graça Abranches (Centro de Estudos Sociais, Coimbra), Fernanda
Henriques (Universidade de Évora), Teresa Alvarez (Comissão para a
Igualdade e para os Direitos das Mulheres), Ana da Silva e Teresa Cláudia
Tavares (Escola Superior de Educação de Santarém) e reunida sob a égide da
então Secretária de Estado para a Igualdade, Maria do Céu da Cunha Rego.
(Nota prévia, Elza Pais Presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade
de Género, Guia..., 2009, p.9)
Outra diferença significativa deste documento é o fato de não representar
nenhum vínculo com demandas sociais ou reivindicações de movimentos sociais. A
iniciativa aparece justificada em relação à necessidade de promover uma prática
linguística democrática capaz de produzir uma redefinição do universo da cidadania.
Mais do que uma simples re-nomeação, uma substituição de umas formas por
outras formas, o que está em causa é uma redefinição do universo de
utentes – um universo composto por cidadãos e por cidadãs. A
participação dos vários serviços públicos neste objectivo permitirá o posterior
alargamento das propostas deste Guia a outros domínios da linguagem
administrativa e jurídica, bem como a abordagem de outras questões de
ordem gramatical, sintáctica e discursiva, de igual relevância para uma
prática linguística democrática. (Guia..., 2009, p.15)
O Guia... inclui um capítulo intitulado Enquadramento, no qual se explicitam os
antecedentes jurídico-administrativos que servem de fundamento ao documento. Trata-
se de resoluções, convenções e recomendações de organismos supranacionais (ONU,
UNESCO, Conselho Europeu) e nacionais (Conselho de Ministros, Constituição
Nacional). São esses textos e seu caráter prescritivo que aparecem representados no
Guia... como a fonte legitimadora do gesto do Estado português em relação à sua língua
oficial. Também em relação à construção da performatividade do documento o texto do
Guia ... do Portugal se diferencia do Manual... do Rio Grande do Sul-Brasil. Não é a
práxis social e política que se encontra na base, mas a atividade legislativo-
administrativa do Estado e dos órgãos supranacionais.
Porém a diferença mais significativa entre os dois instrumentos linguísticos que
analisamos se encontra no modo como se inscrevem no processo de gramatização da
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Conclusão
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Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pp. 275-296.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização linguística, 523-536
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p523
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este trabalho analisa redações produzidas por alunos que cursam o primeiro, o terceiro e
o quinto anos da Educação Básica, em escolas brasileiras, públicas e particulares, com o
objetivo de investigar como esses sujeitos escrevem e assumem a autoria em seus
textos, os quais foram escritos após a interpretação de livros de literatura infantil, nos
quais o cômico circula. A fundamentação teórica sustenta-se na Análise do Discurso
pecheuxtiana e no estudo de Propp sobre comicidade e riso. Autoria, na perspectiva
discursiva, deve ser entendida como uma posição discursiva que o sujeito pode ocupar
para produzir textos, orais ou escritos. A nosso ver, a interpretação dos textos literários
deve construir um espaço discursivo aos alunos, desde essa etapa escolar. Neste
trabalho, apresentaremos um recorte referente à leitura, interpretação e análise do livro
A Verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini.
A metodologia consistiu em ler o livro com os alunos em meio impresso e digital para
que todos acompanhassem a leitura. A análise foi feita com base na materialidade
linguística de cada texto produzido pelos alunos. Como resultado, os alunos riram das
situações cômicas encontradas no livro analisado e produziram seus textos escritos,
ocupando a posição de autor.
1 Introdução
Refletir sobre o ensino de língua não é algo novo; todavia, a questão sempre se
apresenta como necessária quando se discutem os caminhos da Educação. Neste
trabalho, que tem como fundamentação teórica a Análise do Discurso, cujos conceitos
iniciais foram elaborados por Michel Pêcheux e, (re)elaborados, até hoje,
principalmente, no Brasil, por seus seguidores, partiremos da seguinte concepção:
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pretexto para a cópia ou para o ensino de gramática. Concordamos com Candido (2004)
em que todos têm “direito à literatura”. No caso das crianças, não simplesmente um
direito reducionista a partes recortadas de contos, ou, ainda, a fábulas presentes nos
livros didáticos, cujo objetivo é inculcar a “moral da história”. As crianças devem ter o
direito de ler os clássicos, de conhecer a produção cultural humana, independentemente,
de o professor considerá-las alfabetizadas, ou não.
Se no Ensino Fundamental há uma concepção equivocada e reducionista do
texto literário, no Ensino Médio, a literatura aparece como disciplina obrigatória;
todavia, nesse período estuda-se a história da literatura e são priorizadas as obras
selecionadas pelas melhores universidades para serem cobradas nos vestibulares.
Porém, muitos alunos entendem que ler os resumos dos livros lhes garante um “certo”
saber sobre a obra e é isso que fazem. Dessa forma, a arte, o belo, a estética, o prazer de
ler e sentir-se envolvido por sentidos nunca vivenciados ou imaginados pelo leitor, na
maioria das vezes, não são atingidos pelas atividades que compõem a chamada
disciplina de Literatura.
Queremos dizer com isso que, apesar de os textos literários circularem nos
materiais didáticos, desde as séries iniciais, a literatura não é trabalhada como um
“direito” dos alunos, pois o texto, de modo geral, sempre se torna pretexto para ensinar
gramática, transformando-se em um dever do aluno aprender tal conteúdo. Silva (2013),
ao analisar o trabalho com a literatura na Coleção Ler e Escrever, uma das coleções de
livros didáticos mais usados no Estado de São Paulo, pois é legitimada pela Secretaria
de Estado da Educação de São Paulo, conclui:
[...] o lugar da literatura - que ali ainda não alcança as formas mais
sofisticadas de manifestações, mas apresenta uma seleção bastante pertinente
quando aliada a propostas de atividades aos alunos - ainda deixa as questões
do estudo do próprio texto, sobretudo, o trabalho com os sentidos, à margem,
em favor dos estudos normativos. Apontamos que os estudos de gramática
são relevantes; porém, marginalizar o estudo do próprio texto prejudica e até
impede que os alunos ocupem as funções leitor e autor (Silva, 2013:144).
Não concordamos com essa visão reducionista de trabalho com os textos
literários; por isso, o que propomos é que os alunos conheçam o que é próprio da
literatura, os textos em seus espaços vazados, em sua literariedade para que, a partir do
contato e do envolvimento com a literatura, especialmente, pelo riso que os textos
literários podem provocar, a escrita e a autoria sejam praticadas pelos alunos.
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Este trabalho analisa redações produzidas por alunos de seis a dez anos, que
cursam o primeiro, terceiro e quinto anos da Educação Básica, de escolas brasileiras,
pública e particular, com o objetivo de investigar como esses sujeitos escrevem e
assumem a autoria em seus textos, os quais foram escritos após a interpretação de livros
de literatura infantil, nos quais o cômico circula. Elegemos textos de literatura infantil
em que o cômico circula porque, em nosso entendimento, a literatura e o riso podem
construir condições discursivas para o sujeito produzir sentidos com os quais ele se
identifica sem estar preso à “tarefa” de voltar ao texto para reproduzir o que o texto lido
no livro didático diz; a nosso ver, o riso e a literatura podem colaborar para que o
sujeito, mesmo que ilusoriamente, coloque-se como fonte do seu dizer, ocupando,
assim, a posição discursiva de autor.
Para analisar a relação dos sujeitos com o riso, recorreremos, também, ao estudo
de Propp (1992) sobre comicidade e riso. Para isso, interpretamos junto aos alunos da
Educação Básica como a comicidade e o riso manifestam-se nos textos de literatura
infantil a fim de possibilitar-lhes o contato com a literatura e a compreensão da
comicidade que constitui a tessitura literária. A nosso ver, a interpretação dos textos
literários deve construir um espaço discursivo que proporcione a aproximação dos
alunos dessa etapa escolar com a leitura e a escrita.
Neste trabalho, apresentaremos um recorte dessa pesquisa, que foi realizada em
três salas de aula: uma sala de terceiro ano e uma de quinto ano, de escolas municipais,
da cidade de Ribeirão Preto-SP, Brasil, e em uma sala de primeiro ano, de uma escola
particular, situada em uma cidade próxima a Ribeirão Preto.
A metodologia consistiu em ler o livro com os alunos em meio impresso e
digital para que todos acompanhassem a leitura. Os alunos tiveram oportunidade de
expor seus pontos de vista sobre os temas que circulam em cada texto. Foi feita uma
exaustiva discussão oral após a leitura de cada texto, posto que para as teorias do
letramento (Tfouni, 1995, 2001; Kleiman, 1995; Signorini, 2001) há uma relação de
interdependência entre oralidade e escrita; portanto, tais teorias não aceitam a
superioridade da escrita em detrimento da oralidade. Entendemos que o gesto de
interpretação, o qual sustentará a escrita, nos anos escolares iniciais, parte da oralidade,
e depois se materializa na escrita. Por ser assim, após o processo de leitura,
interpretação e discussão dos textos com as crianças, conversamos com elas sobre o
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3 Chapeuzinho Vermelho e o Lobo: uma história que sempre pode mudar de cor e
de humor
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Todo o mundo é composto de mudança”. Por ser assim, entendemos que trabalhar com
A Verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho pode provocar mudanças no modo de
dizer das crianças sobre Chapéu, Lobo e as relações sociais que se dão na
contemporaneidade, sustentadas, ou não, pelo riso.
Para este trabalho, apresentaremos as análises realizadas sobre a interpretação e
produção textual que os alunos realizaram do livro A Verdadeira história de
Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini. Antes de ler a história,
perguntamos aos alunos se conheciam o clássico Chapeuzinho Vermelho e todos
disseram que sim, como, também, conheciam Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque.
Os alunos disseram que os sentidos construídos em ambas as histórias podem mudar,
pois “as histórias mudam”, segundo M.R.; a “época muda”, conforme a resposta de S.,
um aluno do primeiro ano que, na época, ainda não dominava a escrita, mas produzia
textos orais muito criativos, nos quais vigorava a autoria.
Após essa rápida contextualização, iniciamos a leitura com o livro em mãos e,
também, a apresentação em multimídia, o que garantiu o acompanhamento da leitura
por todos os alunos. Todavia, os detalhes do livro - tais como os envelopes com as
cartas do lobo para Chapeuzinho e dela para o lobo, do avental usado pelo lobo, da
cortina da banheira, do ônibus escolar, das páginas do jornal - foram mostrados para os
alunos no livro, que passou pela mão de cada aluno. Eis a capa do livro:
Essa versão inicia-se com lobo escrevendo para Chapeuzinho a fim de pedir-lhe
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ajuda para se tornar bonzinho como ela, para aprender a ser gentil e melhorar a
ortografia. Chapeuzinho aceita o pedido impondo ao lobo uma condição: ficar sem
comer carne. Ele aceitou.
As crianças do primeiro ano acharam engraçado o cardápio vegetariano que a
Chapeuzinho preparou para o lobo e, também, acharam-no coerente com o propósito da
menina de torná-lo bom, pois segundo elas, o lobo não pode comer carne, “pois carne é
pessoa”. Em relação aos alunos dos terceiro e quinto anos, surgiram novas
interpretações. Quando eles leram que a regra mais importante era “nada de carne”,
surgiram muitos comentários: Falaram sobre pessoas que conhecem e que são
vegetarianas e que é difícil ficar sem carne. O sujeito M., do quinto ano, disse que
tentou não comer carne, mas que sua mãe o obrigou por causa da proteína: ou comia
carne ou comia tofu, então ele ficou com a carne. Os alunos do quinto ano falaram que a
Chapeuzinho estava “sacaneando” o lobo pondo avental de florzinha nele.
Constatamos que as crianças, quando autorizadas a percorrer os fios discursivos,
fazem inferências, exercem gestos de interpretação que lhes exigem um conhecimento
do contexto extralinguístico, elas não ficam presas às palavras como supõem muitos
professores, elas recorrem à memória discursiva para interpretar os textos, que
extrapolam as páginas dos livros didáticos.
A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-
transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em
relação ao próprio legível (Pêcheux, 2007: 52).
Como não poderia deixar de ser, já que estamos tratando de gestos de
interpretação, o trabalho da memória foi recorrente no processo de construção dos
sentidos, como por exemplo, os sentidos já dados sobre mentira sustentaram a
interpretação dos alunos do primeiro ano acerca da atitude de Chapeuzinho para com o
lobo, no final da história, quando ela, cansada de ver o lobo ser bonzinho e querido por
todos, prepara-lhe uma armadilha irresistível, com um cachorro-quente. O lobo comeu e
voltou a ser o velho “lobo mau da história oficial”. De acordo com Orlandi (1996b:75),
“O lugar do autor é determinado pelo lugar da interpretação. O efeito-leitor representa,
para o autor, sua exterioridade constitutiva (memória do dizer, repetição histórica)”.
Como estamos analisando, é pelo viés da interpretação, do poder dizer, poder expor-se
aos sentidos que não são evidentes que os alunos vão se constituindo como autores.
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4 Considerações finais
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
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ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p537
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RESUMO
O objetivo maior deste trabalho é discutir determinados processos lexicais explorados
na primeira página do Jornal Meia Hora, de circulação diária no Brasil, e sua inscrição
na memória discursiva do português que se institui no Brasil. Nessa discussão, são
articulados vários conceitos trazidos pela escola francesa de Análise de Discurso,
sobretudo os conceitos de memória discursiva e de língua fluida e língua imaginária,
estes formulados em Orlandi e Souza (1988). São inúmeros os mecanismos linguageiros
presentes nas manchetes de capa do referido jornal, decorrentes ora de cruzamento
vocabular, ora de cruzamento da linguagem verbal com a não verbal, os quais, uma vez
perpassados pela memória de uma variável linguística vulgar, dão lugar a vários efeitos
de sentido, efeitos de humor, de ironia, de denúncia, etc. É válido frisar que o
alcance semântico dos enunciados inscritos não depende, apenas, do domínio da língua
como um todo. Há todo um fator social que permeia as condições de produção de tais
enunciados, tornando os mesmos passíveis de compreensão. A explicação desses
processos, no bojo de uma linguística formal, tem se revelado insuficiente, como
pretendemos mostrar com a análise dos mesmos. Mas a compreensão desses enunciados
lançando mão do dispositivo da Análise de Discurso permite descrever o seu
funcionamento à luz do conceito de língua fluida e a partir do conceito de gramatização,
trazido por Auroux (1992). A articulação desses conceitos, ao lado do funcionamento
dos enunciados em foco, se explicita, enfim, pelo fio de uma memória discursiva
instituída no movimento da língua na e pela historicidade do português no Brasil.
Introdução
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26 Não estamos nos referindo, aqui, somente às línguas indígenas, mas também a outras línguas, como o
espanhol, o alemão, italiano o inglês e outras que chegam com as levas de imigrantes e as levas de
escravos.
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deve ser pensada para além de uma relação de contato e suas consequências. Não se
trata, pois, de buscar entre o português e as demais línguas pistas de filiações
linguísticas, ou de parâmetros tipológicos, ou de relações de espelho27, mas sim de se
pensar o contato a partir da história que se materializa na língua, resultando, assim, a
identidade da língua que aqui se fala.
É com esse propósito que Orlandi e Souza (1988) formulam os conceitos de
língua fluida e língua imaginária. São conceitos que permitem compreender a
constituição da língua pelo viés da história, pelo viés do real da língua. Nesse sentido,
as línguas imaginárias são "línguas-sistemas, normas, coerções, as línguas-instituição, a-
históricas. Construção. É a sistematização que faz com que elas percam a fluidez e se
fixem em línguas-imaginárias. [...]. A língua fluida é a que não pode ser contida no
arcabouço dos sistemas e fórmulas." (idem). Reconhece-se a língua fluida quando os
processos discursivos são estudados pela história da sua constituição, em suas condições
materiais de produção.
Vale esclarecer que o conceito de materialidade discursiva com o qual estamos
lidando difere de materialidade no âmbito da linguística formal. Alheia a uma natureza
empírica, materialidade discursiva tem uma ordem própria, que se realiza na língua, na
ordem do enunciável e na ordem da historicidade; consiste em uma relação determinada
entre língua e ideologia. O discursivo materializa o contato entre o ideológico e o
linguístico, na medida em que ele representa no interior da língua os efeitos das
contradições ideológicas e, inversamente, ele manifesta a existência da materialidade
linguística no interior da ideologia (cf: Courtine, 1982). Passemos à análise.
O jornal Meia-Hora
27 Scherrer e Naro (1998), sobre a perda de concordância verbal no português do Brasil, partem do
pressuposto de que este processo não significa uma creolização do português ao constatarem que
localidades no interior de Portugal apresentam o mesmo fenômeno. Por esse viés, apaga-se a ideia de um
“português mestiço”, já que o português do Brasil teria, apenas, desenvolvido o fenômeno por relação de
inerência. A argumentação dessa ordem toma os fatos como evidência e apaga a relação com a história.
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Processos lexicais
Apesar de o jornal em foco ser dirigido a uma faixa de público de baixo poder
aquisitivo, a forma como são construídas as chamadas de capa é bastante complexa. A
estrutura da capa chama a atenção devido a alguns fatos: o tipo de fotos que ilustram
essas chamadas, a diagramação como um todo, o uso de cores diferentes destacando
algumas palavras e, sobretudo, a formação inusitada de novas palavras, cujo processo aí
inscrito escapa, na maioria das vezes, a uma descrição linguística em termos formais.
Nos deteremos aqui a discutir apenas os processos lexicais28 enfocando os mesmos na
ordem da materialidade discursiva que os constitui. Ainda a observar, nem sempre
reproduzimos a capa do jornal por inteiro, já que na análise em curso não interessa de
imediato explorar os efeitos de sentido do jogo entre o verbal e o não verbal, e sim as
formações lexicais em si. Selecionamos quatro tipos de formação lexical, descritos a
seguir.
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Blending ou mesclagem
Figura 1
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contumaz. É à delegada que o jornal se dirige, é o lugar dela como autoridade que aí
está inscrito. Tal gesto, por outro lado, não nos parece ser um simples gesto de respeito,
mas sim uma estratégia de antecipação quando estão em confronto duas formações
ideológicas: a do jornal que joga com a polissemia aberta, com o lúdico e a da delegada
que pode, do seu lugar de autoridade, entender tal gesto como injúria.
Polissemia lexical
Figura 2
30
O grande mote dessa manchete gira em torno do personagem Bruno. Este,
jogador de um time de futebol no Rio de Janeiro, ocupava a posição de goleiro, quando
passou a ocupar também as manchetes dos jornais devido ao seu envolvimento com o
crime de desaparecimento e consequente homicídio de sua ex-companheira.
30 Publicada em 17/03/2013.
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Figura 3
A figura do frango de borracha no canto esquerdo substitui a palavra “frango” e
funciona, sintaticamente, como o sujeito da frase: [Frango] é a dieta do penoso. Com
essa leitura, mais uma vez, chega-se a um outro sentido para a palavra “penoso”,
podendo significar com deboche (!?) ‘aquele que cumpre pena’.
O que de pertinente em termos discursivos destaca-se com esse processo é que
todas essas possibilidades de significação não são previstas como entradas lexicais do
português, mas são formuladas neste domínio discursivo específico - goleiro e futebol.
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Há uma memória que atravessa esse conjunto de dizeres e projeta a formação ideológica
de um leitor que aí se inscreve.
Esse tipo de produção léxico-discursiva é um dos mais utilizados no jornal,
embora no âmbito de uma linguística formal não possa ser definido em sentido estrito
como polissemia. Como o escopo de nosso trabalho é a Análise de Discurso, os três
sentidos de ‘penoso’ como ‘aquilo que causa sofrimento, ‘aquilo que é custoso’ e como
‘aquele que cumpre pena’ podem ser entendidos pela noção de efeito metafórico,
entendido como a substituição contextual numa distância entre X e Y (Pêcheux, 1975).
Trata-se, então, em atestar que a deflagração de sentidos se dá numa rede parafrásica,
instituída pelo próprio caráter de incompletude da linguagem.
Sonoridade e lexicalização
As formações lexicais que vamos analisar a seguir são, de fato, inusitadas, pois
passam por todo um processo fonológico, e o resultado desse trabalho de sonorização
resulta na lexicalização dos enunciados criados pelo jornal.
Os enunciados destacados de manchetes veiculadas em datas diferentes31 são:
‘pó-pozuda’ e ‘pó-riguete’. Trata-se de duas notícias sobre mulheres envolvidas com
tráfico de drogas. E, nesses exemplos, o jornal lança mão de gírias usadas em certas
comunidades num trabalho de referenciação de certos tipos femininos. Joga também
com cores diferenciadas na redação da chamada de capa.
A notícia veiculada em fevereiro de 2013 aborda o fato de duas jovens de classe
média terem sido presas no aeroporto, ao tentarem embarcar com shorts acolchoados
com cocaína. A chamada para o fato vem com a seguinte frase:
Figura 4
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Figura 5
A expressão ‘periguete
periguete’’ é usada popularmente para se referir a uma mulher que
chama a atenção pelos dotes físicos, pela maneira como se veste e como se comporta,
representando um perigo “atraente” para os homens. O recurso é próximo ao anterior,
pois envolve a mudança sonora da sílaba [pe] para [pó], fazendo significar no plano
sonoro a droga (cocaína) e fazendo alusão à mesma no jogo de cores nos títulos.
Apesar de serem semelhantes, há diferenças no que se refere ao processo de
lexicalização. A palavra ‘póriguete’, como no caso da palavra ‘delegata’, é possível de
ser analisada como blending lexical, enquanto ‘pó-pozuda’ não poderia. Em ‘pó-
pozuda’, além da lexicalização da sílaba [pó], a formação da palavra composta ‘pó-
pozuda’ dá margem à leitura de alguém que “posa com pó“
pó“,, apesar de a grafia de “pose“
ser diferente. Por outro lado, a desincorporação da sílaba /pé-/ em ‘periguete’ não daria
lugar a um novo item lexical, pois *-riguete nada significa (diferente de posuda). Logo
os recursos linguageiros dos quais o jornal lan
lança
ça mão não são alheios à constituição do
léxico da língua.
Enfim, são inúmeros os artifícios de linguagem que o jornal Meia-Hora produz
diariamente. São peças de um jogo polissêmico denso, emprestando às notícias um
caráter lúdico.
Considerações finais
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547
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Authier-Revouz, Jaqueline. 1984. Héterogénéite(s) Énonciatvive(s). Paris: Langages 73.
33 Conferir, por exemplo, a aquisição do formativo [–puba] no português do Brasil. Este é um formativo
que, em tupi, se incorpora a nomes para significar ‘coisa-azeda‘. Em português puba é relexicalizado
como item autônomo passando a fazer parte de paradigmas nominais e verbais (verbo pubar). (cf: Souza,
2011)
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Deleuze, Gilles e Guatarri, Félix. 1996. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. São
Paulo, SP: Editora 34. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira e Ana Cláudia Leitão.
Orlandi, Eni. 1988 O contato entre línguas: Que modelos?. Colóquio do Departamento
de Linguística, Campinas: IEL/UNICAMP.
Orlandi, Eni. e Souza, Tania C. Clemente de. 1988 A Língua Imaginária e a Língua
Fluida: Dois Métodos de Trabalho com a Linguagem, Política Lingüística na América
Latina, Campinas, Pontes.
Pêcheux, Michel. 1988 Les Vérités de la Palice, Paris, Maspero, 1975. Tradução
brasileira: Semântica e Discurso, tradutores: Eni Orlandi, Lourenço Chacon Jurado
Filho, Manoel Corrêa e Silvana Serrani. Campinas, Ed:UNICAMP.
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Sympson, Pedro Luiz. 1926 (1876) Grammatica da Língua Brasileira (Brasílica, Tupi
ou Nheêngatu). Edição terceira, Rio de Janeiro: Impressores Francisco, Neiva & C.
Conceição.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização linguística, 551-566
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p551
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Vanise MEDEIROS2
Verli PETRI3
RESUMO
As relações entre língua, história e memória nos tocam de modo muito especial,
enquanto brasileiros que têm como língua nacional e oficial a língua portuguesa,
sobretudo quando nos propomos a refletir sobre o processo de
colonização/descolonização linguística (Mariani, 2004; Orlandi, 2009). A língua
nomeada portuguesa é, no Brasil, posta como língua da mãe, língua da escola, língua
que é unidade, mas também como língua da diversidade, tanto interna ao solo brasileiro
quanto em relação a Portugal. É nos espaços de contradição que essa língua se constitui
e se institui, espaço este no qual nos interessa instalar uma discussão mais específica
sobre a língua que trabalha o efeito de unidade e de diversidade. Com este trabalho,
consideramos uma reflexão já por nós engendrada (Petri & Medeiros, 2013) sobre as
partições na língua. As partições não desintegram a língua, ao contrário, trabalham a
unidade nacional, delimitando o que seriam suas especificidades, entre outras, sociais e
regionais. Nossa proposta é fazer um recorte que explicite dois espaços de produção
linguística que promovem, ao mesmo tempo, a manutenção da língua (com seu efeito de
totalidade) e a partição da língua (introduzindo o diferente no interior do mesmo) a fim
de dar continuidade a uma reflexão sobre memória na língua.
1. Introdução
A questão que se coloca como ponto de partida desta reflexão é: “Que língua é
essa que está institucionalizada nos instrumentos linguísticos?”. Ao prepararmos nossa
1 Este texto parte advém de um artigo (Petri e Medeiros, 2013), fruto de nossa pesquisa, publicado na
revista Letras 46, UFSM, 2013.
2 Bolsista PQ-CNPq. Laboratório Arquivos do Sujeito/UFF, CNPq, FAPERJ. Santa Teresa, Rio de
Janeiro. CEP: 20240090, email: vanisegm@yahoo.com.br
3 Laboratório Corpus, PPGL/UFSM. Santa Maria, Rio Grande do Sul, CEP: 97010031, email:
verli.petri72@gmail.com
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conta de diferentes regiões do Brasil, cada uma delas com sua especificidade
linguajeira, são eles:
(1) Colleção de vocábulos e frases usados na província de São Pedro do Rio
Grande do Sul, de Pereira Coruja (1852),
(2) Popularium sulriograndense e o dialecto nacional, de Appolinario Porto
Alegre (1870),
e os glossários de:
(3) O Dialeto Caipira, de Amadeu Amaral (1920),
(4) O Linguajar carioca, de Antenor Nascentes (1922).
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isso faz deslocar a ideia de um “sujeito brasileiro” como universal para se pensar nas
diferenças que dizem do sujeito que se inscreve nessa língua nacional que se parte.
Partes de algo que não pode se encaixar. Em outras palavras, foi preciso partir para
dizer do próprio, do que seria nacional, mas as partes – muitas, difusas, entrecortadas e
entrelaçadas – não formam o todo; são partes que mantêm uma tensa relação com o
nacional, numa tentativa, por vezes, de afirmação do local em detrimento de algo que
vem de fora, e que veio, sobretudo, do processo de colonização portuguesa; de explicitar
o que é regional e que é constitutivo do que se entenderia nacional, num Brasil em
processo de afirmação de sua brasilidade.
Dicionários, vocabulários, bem como glossários são lugares de memória na
língua – e isto, de diferentes maneiras, encontra-se no trabalho, já seminal, de Horta
(2006). Memória que não se faz sem desvãos, interditos, apagamentos e deslocamentos;
memória tensa, tecida na e sobre a língua nos procedimentos tornados prática no fazer
dicionarístico: seleção, indicação sobre a palavra – se substantivo, se brasileirismo, por
exemplo – definição e/ou explicação, exemplificação, remissão a outros verbetes e
fontes indicadas. Uma língua que, nesses lugares, vai funcionando como evidente e
como patrimônio de uma nação (ou de uma região). Não é diferente nos glossários;
esses, como sabemos com Auroux (2008), advieram de listas de palavras e resultaram
em dicionários. Se os glossários têm tal trajetória, isto não significa, contudo, que
perderam espaço para os dicionários. Ao contrário, continuam sendo produzidos até
hoje.
Em nossas pesquisas, temos observado que seu funcionamento por vezes difere
do dicionário, quando se têm, por exemplo, somente palavras ladeadas por outras
palavras; por vezes não, quando se têm verbetes seguidos de classificações, explicações,
definições, sinonímias e exemplos. No entanto, um glossário, qualquer que seja, não
tem o mesmo estatuto do dicionário: este se apresenta na sociedade como lugar de
consulta da língua – monumento de um patrimônio - e, como tal, adentra espaços
escolares e institucionais, espaços privados e públicos quaisquer. Já o glossário não se
apresenta como tal; outro leitor aí se inscreve. Grosso modo, diremos que se destina a
um público mais específico; mais restritos são os seus espaços de circulação. Se um
dicionário produz o efeito de completude, diremos que no glossário o efeito é outro, o
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uma fase que se inicia em 1826 e que termina em 1920, com a publicação de O Dialeto
Caipira, de Amadeu Amaral.
O Dialeto caipira, de Amadeu Amaral, de 1920, e O Linguajar carioca, de
Antenor Nascentes, de 1922, ambos compostos de glossários, são apontados nos estudos
de dialetologia como obras capitais do início do século XX.
O Dialeto Caipira e o Linguajar Carioca compõem, conforme Ferreira e
Cardoso (1994), a segunda fase dos estudos dialetais no Brasil, que se caracteriza pela
“predominância de trabalhos voltados para os estudos gramaticais”, embora, e isto
interessa ressaltar, sejam “numerosos estudos de natureza lexicográfica” (idem, p. 39).
Esta segunda fase, para estas autoras, termina em 1952, quando se passa a ter estudos
sistemáticos sobre a língua. Em suma, para elas, a Colleção de vocábulos e frases
usados na província de São Pedro do Rio Grande do Sul e o Popularium
sulriograndense e o dialecto nacional integram a primeira fase, ao passo que Dialeto
Caipira e o Linguajar Carioca inserem-se em outra fase; naquela se acentuam os
estudos lexicográficos, nesta se faz notar uma preocupação com estudos gramaticais
sobre a língua embora se produzam vários léxicos e glossários regionais6. Ambas são
marcadas por estudos não sistemáticos. Antes de prosseguir, cabe uma observação: se
estas fases eram marcadas por estudos não sistemáticos, não podemos deixar de
observar que em Apolinário havia uma preocupação com a nomenclatura para os
estudos lexicográficos, seja procurando separar palavras de locuções, seja tentando
identificar o que seria possível determinar a origem etimológica do que não seria.
Certamente, ele ficou ainda à margem da criação de um método, tal como concebemos
atualmente, mas também podemos dizer que estava entendendo a importância de se ter
um método para esse tipo de estudo.
Outra divisão nos é dada por Guimarães (1996). De acordo com este autor,
Colleção de vocábulos e frases usados na província de São Pedro do Rio Grande do Sul
e o Popularium sulriograndense e o dialecto nacional se encontrariam numa primeira
fase, isto é, uma fase que se caracteriza por uma ausência de estudos da língua feitos no
Brasil. É interessante observar que estes autores com que estamos trabalhando, apesar
de se situarem nesta fase, são brasileiros e já demonstram tal preocupação. Em
Guimarães, bem como em Ferreira e Cardoso, as obras de Amaral e Nascentes estão
6 A lista que elas apresentam no tocante a léxico e glossários regionais é: Vocabulário gaúcho, de Roque
Callage, de 1926; Vocabulário do Nordeste do Rio Grande do Sul – Linguagem dos praieiros, de Dante
de Laytano, de 1933; O Vocabulário pernambucano, de Pereira da Costa, de 1937; Vocabulário
amazonense de Alfredo da Maia, de 1939(Ferreira e Cardoso, 1994, p 43).
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inseridas também em uma segunda fase, mas que se inicia no final do século XIX com a
publicação de gramáticas por autores brasileiros e pela fundação da Academia Brasileira
de Letras. Em outras palavras, o que marca a segunda fase em Guimarães é a produção
de um dizer da língua do lugar do brasileiro (produção de gramáticas e espaço
institucional da ABL).
A obra de Pereira Coruja apresenta uma lista de palavras em ordem alfabética,
com classificação gramatical (verbo, substantivo, adjetivo, particípio). Tem-se uma lista
de vocábulos e frases usados do Brasil (com suas relações de fronteira) e propõe-se a
fazer “uma coleção com suas respectivas explicações, dando a muitos a origem
provável, e deixando de outros a quem com mais critério os possa investigar” (1852).
Em meados do século XIX, como é possível observar na obra de Coruja, há a
preocupação em compilar palavras da língua e seus sentidos na região sul do Brasil. Há
aí uma referenciação à matriz portuguesa. Em Pereira Coruja encontramos a distinção
entre um sujeito que fala a língua na “região da campanha” e o que é admitido “no
centro das povoações”. É visando compilar vocábulos – e respectivos sentidos – não
encontrados em dicionários disponíveis à época que ele propõe a sua Coleção. Por fim,
a preocupação com o local não se fazia sem tributo à matriz portuguesa, numa relação
de adição à tal matriz.
No Popularium de Apolinário Porto Alegre, encontramos uma pesquisa
preocupada com as questões concernentes à língua falada do e no Brasil, situada na
região sul; busca-se a realização de um levantamento etimológico para o que se tinha à
época, vinculando as origens da maioria das palavras a línguas indígenas e/ou negras, o
que não ocorre com frequência em Pereira Coruja. Para Apolinário Porto Alegre, as
palavras dessa língua falada não deviam somente tributo assim à Língua Portuguesa de
Portugal, já que suas raízes eram muitas vezes da língua indígena, negra, mas também
castelhana, entre outras. Podemos dizer que na obra de Porto Alegre o regional vem
para compor uma unidade nacional, unidade para dar conta da heterogeneidade da
língua. Diferentemente de Pereira Coruja, pensar o regional na obra de Porto Alegre é
também observar o funcionamento da metonímia enquanto processo de produção de
sentidos que explicita os regionalismos como parte do todo, configurado pelo nacional;
exemplos disso em dois verbetes:
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como regional não implica necessariamente em ser nacional. Parte que fará pertencer ao
todo – nacional –, mas como parte. Melhor explicando, palavras advindas dos glossários
adentram os dicionários da língua, ou seja, há nesses instrumentos linguísticos marcação
para regional, mas não para aquilo que é nacional, ou seja, o nacional funciona nos
dicionários como forma não-marcada. Não como parte, mas sob o efeito de totalidade.
Sigamos um pouco mais com o material analisado. Consideramos a letra A em
todos eles. Em Pereira Coruja, das 27 entradas (verbetes) iniciadas com a letra “A”,
Spalding comenta 19 em suas notas produzidas nos anos 40 do século XX. No
Popularium são mais de 40 páginas do que é nomeado (pelo reorganizador) como
“Vocabulário Rio-Grandense”, seguido do título pensado por Apolinário Porto Alegre,
que foi Nomenclatura Geral. Não se tem aí uma classificação gramatical, mas
indicações de Etimologia (Etim.), Diminutivo (Dim.), e Exemplo (Ex.:).
O primeiro aspecto que nos chama a atenção diz respeito ao que, de alguma
forma, aproxima as duas obras, já que ambas são produzidas a partir da linguagem posta
como própria ao Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XIX. E, num
segundo momento, vamos explicitar o que os coloca em patamares diferentes. Vejamos:
(i) A escolha da maioria dos verbetes evidencia as relações do homem com a
terra e com os animais (gado, cavalo, etc.). Como se pode observar nos verbetes dos
dois autores:
Acolherar, v. a. unir animais em colhera. Diz-se mais própriamente dos
cavalos. (Pereira Coruja, 2013)
Abagualado – tornado bagual, selvagem, indômito. (Porto Alegre, 1980)
(ii) A presença do prefixo “a” marcando a possibilidade de estar em processo,
indicando movimento pelo verbo tornar ou tornar-se. O que é frequente tanto em Pereira
Coruja quanto em Apolinário Porto Alegre, conforme demonstram os verbetes
selecionados:
Amadrinhar, v. a. acostumar os cavalos a persistirem junto de uma égua a
que se dá o nome de “Égua-madrinha”. O cavalo assim acostumado se diz
amadrinhado. (Pereira Coruja, 2013)
Acablocar-se – tornar-se trigueiro, ter a cor vermelha escura, tomar hábitos
de índio. (Porto Alegre, 1980)
(iii) O interesse pela identificação da origem da palavra e sua etimologia, em
Porto Alegre, como podemos ver no verbete que segue:
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8 O glossário de Amaral apresenta também abonações aos verbetes. Tais abonações são interessantes na
medida em que a língua posta como do roceiro é contraditoriamente caucionada pela literatura
portuguesa, como Camões, por exemplo.
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Pereira Coruja, Apolinário Porto Alegre, Amaral e Nascentes: quatro autores que
trabalham uma língua partida, uma língua que se parte. Indo adiante, partições que
tensionam, como dissemos, o todo de diferentes maneiras: na ilusão de compor o
nacional como sua metonímia, como é o caso de Apolinário; na contradição com o
nacional, como é o caso em Amaral e Nascentes. Já em Coruja, a partição se faz do
lugar do gesto pioneiro que tenta capturar aquilo que não está ainda em nenhum lugar
institucional, não está registrado em lugar algum à época e que trabalha assim o
acréscimo à língua do colonizador.
3 Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Auroux, Sylvain. 1992. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed. da
Unicamp.
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Henry, Paul. 1993. Sentido, sujeito e origem. Tradução de Eni P. Orlandi. In: Orlandi,
Eni. P. (Org.) Discurso fundador. Campinas, SP: Pontes, p. 151-162.
Medeiros, Vanise. 2012 . Um glossário contemporâneo: a língua merece que se lute por
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http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/capaArtigo.rua?id=132. Acesso em: 28
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______. 2010. Sabendo (d)a língua pelo jornal: o que colunas, publicações e produção
de material nos dizem da língua. In: Medeiros, Vanise.; Tedesco, Maria. Teresa.
Travessia nos estudos de língua portuguesa: homenagem a Evanildo Bechara e Olmar
Guterres. Rio de Janeiro: Dialogarts, p. 287-296.
______; Mattos, Thiago. 2012 O dialeto caipira, de Amadeu Amaral: discurso fundador
e acontecimento discursivo. Revista Confluências (2012), ed. 42. Disponível em:
http://llp.bibliopolis.info/confluencia/. Acesso em: 28 fev. 2013.
Nunes, José Horta. 2006. Dicionários no Brasil. Campinas: Pontes; São Paulo:
FAPESP; São José do Rio Preto: FAPERP.
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Scherer, Amanda; Petri, Verli. 2012. Os homens que compraram madrugadas... Pereira
Coruja e Walter Spalding na história do falar gaúcho. In: Massmann, D.; Cintra, G.
Linguagem e historicidade. Campinas: RG Editora, p. 59-76.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização linguística, 567-585
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p567
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RESUMO
Este artigo é fruto da nossa pesquisa de doutorado que ainda se encontra em
desenvolvimento. Nele, à luz da Análise de Discurso, de Michel Pêcheux e Eni P.
Orlandi, na sua relação com a História das Ideias Linguísticas, de Sylvain Auroux e Eni
P. Orlandi, tecemos uma reflexão acerca do imaginário de língua que se impõe em duas
gramáticas filiadas ao nome de autor do gramático brasileiro Evanildo Bechara, a saber:
a 1a. e a 37a. edições da Moderna Gramática Portuguesa, publicadas em 1961 e em
1999, respectivamente. Para tanto, analisamos o prefácio e a introdução dessas obras.
Em nossa análise, visamos, mais especificamente, compreender os efeitos produzidos
no dizer do gramático sobre a língua (nomeada) portuguesa a partir da sua significação
no século XX como patrimônio linguístico-cultural, buscando pensar ainda a relação
estabelecida entre esse imaginário, a ilusão de homogeneidade linguística entre os povos
ditos de língua portuguesa e o processo de colonização imposto por Portugal.
I. Introdução
42 Doutoranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF), sob a orientação
da Profa. Dra. Vanise Gomes de Medeiros. Membro do Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS) e do
Laboratoire de Histoire des Théories Linguistiques (LAB-HTL). Cursa estágio doutoral na Université
Sorbonne Nouvelle (Paris 3), sob a supervisão de Jean-Marie Fournier. Bolsista CAPES-PDSE –
Processo BEX002457/2015-06. E-mail: araujo_thais@yahoo.com.br.
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
43 Em Língua e conhecimento linguístico, Orlandi afirma: “(…) a forma de gramática tem que ver com a
forma de função-autor gramático e (...) isso tem consequências sobre o trabalho produzido pelo gramático
na relação do sujeito com a língua, via representação [imaginária] dessa relação por instrumentos
linguísticos” (2002: 148). Assim sendo, quando dissemos que nos interessa compreender a relação entre
função-autor gramático, imaginário de língua e forma de gramática, partimos do pressuposto de que essa
relação é determinada historicamente e que, portanto, em função das condições de produção, pode-se dar
de diferentes formas, produzindo diferentes efeitos de sentido nos instrumentos linguísticos em que se
presentificam. Daí perguntarmos diante dos nossos objetos: O que é uma gramática? O que é ser
gramático? Que língua é essa sobre a qual esse sujeito-gramático diz dizer nessa gramática?
44 São instrumentos linguísticos, conforme Auroux (op. cit.), as gramáticas e os dicionários, no sentido
em que estes, como objetos técnicos e empíricos investidos de conhecimentos teóricos explícitos,
descrevem uma língua, ajudando-nos a falá-la e a lê-la. O autor chama-nos atenção ainda para a dimensão
histórica desses instrumentos, nos quais comparecem saberes que se constituem (historicamente) num
horizonte de retrospecção e de prospecção e para cuja compreensão faz-se, portanto, necessária a
desnaturalização do processo de constituição do passado que os atravessa e os constitui (retrospecção) e a
do futuro que deles se desdobra (prospecção).
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em que se dá uma enunciação original, como pressupunha Foucault, mas sempre que
um sujeito se coloca (supõe estar) na origem do dizer, produzindo um texto com efeito
de unidade, coerência, não contradição e fim. Assim sendo, apesar de o autor não
instaurar discursividade, ele produz um lugar de interpretação, em meio a outros lugares
possíveis. Daí ser a autoria, para nós, uma função exercida pelo sujeito discursivo que
se caracteriza pela “produção de um gesto de interpretação” (Orlandi, op. cit.: 97), no
qual o autor é colocado como o responsável pelo sentido do que diz, do que formula,
significando-se e produzindo sentido de acordo com as determinações históricas a que
está assujeitado.
Já a noção de imaginário de língua45, tal como a temos pensado, relaciona-se à
de condições de produção, a qual, conforme Pêcheux ([1969] 2010), é configurada pelo
estado de produção dos elementos do discurso. Esses elementos se presentificam no
dizer através das formações imaginárias, que dizem respeito ao modo como, a partir de
determinados lugares sociais, filiando-se à memória do dizer, em seus gestos de
interpretação-autoria, os sujeitos projetam imagens de si, do outro e do objeto do
discurso.
Em nossa reflexão, tomando as gramáticas como discursos, consideramos que
elas se constituem como produtos históricos frutos dos gestos de interpretação
procedidos pelos sujeitos-gramáticos que têm como objeto do dizer uma certa língua. É,
pois, sob essa perspectiva, que trazemos para esta discussão a noção de imaginário de
língua na sua relação com a de função-autor. Entendemos que, ao dizer sobre a língua, o
sujeito-gramático projeta no discurso uma certa imagem dessa língua de que ele diz
dizer, isto é, ele a (res)significa, a partir do lugar que ocupa, filiando-se à memória do
discurso gramatical brasileiro, ao mesmo tempo em que se constitui como sujeito
(gramático) do seu dizer. O que está em jogo, portanto, como nos lembra Orlandi
(2009), não é uma relação termo-a-termo, mas a construção do referente discursivo para
o nome língua e, especificamente no caso em análise, para os nomes língua portuguesa
ou, simplesmente, português quando significados como patrimônio linguístico e
cultural.
45 Orlandi propõe a noção de língua imaginária (Orlandi; Souza, 1988/ Orlandi, 2002/2008/2009), a qual
por vezes retoma como imaginário de língua sem formalizar uma distinção. Entendemos, com Mariani,
Medeiros e Moura (2011), que, embora sejam essas noções correlatas e que a noção de língua imaginária
pressuponha a sua filiação a um determinado imaginário de língua, estas distinguem-se, pois, enquanto a
primeira diz respeito à imagem que comparece nos instrumentos linguísticos de uma dada língua na sua
relação com os sujeitos dessa língua, isto é, com os sujeitos que têm/deveriam ter essa língua como sua; a
segunda constitui-se como a organização, a sistematização, a normatização (prescrição/imposição de
regras, proscrição de usos) de um dado imaginário.
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tratar-se, pois, de uma forma de gramática (Orlandi, 2002) cuja estrutura é cindida,
atravessada, de diferentes maneiras, pelos sentidos inscritos nessas duas formas de
saber, e que se constitui no entremeio, no enlace, na tensão, no deslize entre o lugar do
gramático e o do linguista.
Salvo no efeito de ambiguidade produzido no título a partir da determinação do
substantivo gramática pelo adjetivo portuguesa, que tanto pode designar o nome da
língua de que diz a gramática, equivalendo à locução do português, como a sua origem,
equivalendo, enquanto adjetivo pátrio, à locução de Portugal, o nome da língua de que
se supõe tratar na primeira edição da MGP, “o português”, só é dito na página 23 da
introdução, mais especificamente nas seções intituladas Que é uma língua e A língua é
um fenômeno cultural, das quais recortamos as sequências discursivas47 abaixo:
47 As sequências discursivas são, conforme Orlandi (1984), unidades discursivas de textos de natureza
variada que se configuram enquanto fragmentos de uma dada situação discursiva postos em correlação
conforme a pergunta feita pelo analista, a partir de uma dada posição teórica.
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48 Falamos em autoria atribuída porque, como sabemos, O CLG, publicado em 1916, três anos após a
morte de Saussure, foi compilado por dois colegas e antigos alunos seus, Charles Bally e Albert
Sechehaye, a partir de alguns de seus manuscritos e de anotações feitas por outros alunos que
acompanharam uma disciplina, de mesmo nome, ministrada pelo mestre genovês na Université de Genève
durante três anos universitários (1907, 1908-1909 e 1910-1911). Assim sendo, podemos destacar no CLG
pelo menos três movimentos distintos de interpretação: 1) o do próprio Saussure, ao elaborar suas aulas;
2) os dos estudantes, cujas notas são (suas) leituras (suas interpretações) do que havia dito o mestre em
sala de aula; e 3) o dos editores, que tiveram não só de ler e recortar o que das anotações dos alunos
permaneceria, relacionando aos manuscritos de Saussure, como também de dar a todo esse material uma
estrutura de livro. Esses diferentes gestos de interpretação constituem o gesto de autoria (a função-autor)
que fora atribuído a Ferdinand de Saussure, ao mesmo tempo em que este é deles um efeito (autor).
49 Diz-se no Curso: “Com o separar a língua da fala, separa-se ao mesmo tempo: 1o., o que é social do
que é individual; 2o., o que é essencial do que é acessório e mais ou menos acidental” (CLG, 2006: 22).
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
50 Referimo-nos aqui à partição no sentido proposto por Jean-Claude Milner em L'amour de la langue:
“Dès lors, en soi n'est rien d'autre que cette partition considerée em général, une langue en est une forme
particulière; un dialecte d'une langue, une réorganisation spécifique d'une partition particulière” (2009:
25).
51 Empregamos o termo dimensões tal como proposto por Payer (2006), no sentido em que uma língua é
composta por muitas e diferentes dimensões discursivas da linguagem que “não são autoevidentes e nem
semelhantes em quaisquer circunstâncias” (ibid.: 107).
52 Ou seja, uma fusão e uma confusão (Orlandi, 2008).
53 Poderíamos pensar aqui a diversidade constitutiva do que é posto como língua chinesa, o chinês, que é
constituído por quatro línguas distintas – o mandarim, o cantonês, o sichuanês e o hakka – que têm em
comum apenas a origem sino-tibetana e a representação escrita, ou do que se toma por povo chinês, os
chineses, e da China, que, desde 1949, se divide em duas repúblicas, a República Popular da China (RPC)
e a República da China (RC), igualmente independentes e que igualmente não reconhecem a legitimidade
uma da outra. Também poderíamos pensar a diversidade constitutiva do romeno, língua oficial da
Romênia (e atualmente de outros quatro países nos quais divide espaço com outras línguas também
oficiais), que se diz ser constituído por quatro dialetos e que vive em tensão desde sempre com outras
línguas, como, por exemplo, o antigo maldávio, nome da língua oficial da Maldávia até 2013, quando, por
ser considerado a mesma língua, passou, por lei, a ser chamado também de romeno.
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
Nação. Ao lado dessas duas nações, Brasil e Portugal, há as então chamadas colônias
ultramarinas lusas, que a esta época não eram nações (ainda), eram colônias de Portugal,
povos que se encontrariam, então, em processo civilizatório.
Essa con-fusão entre os sentidos de nação e povo traz à baila, portanto, uma
tensão que comparece no dizer do gramático entre unidade e diversidade. Enquanto ao
se dizer povo, contraditoriamente, coloca-se em questão a diversidade – a diversidade
dos povos que habitam o que se toma por mesma região, a diversidade dos povos que
são falantes daquilo que é posto como uma língua única, a diversidade dessas línguas e
das línguas com que elas estão em contato –; ao se dizer nação, silencia-se essa
diversidade e impõe-se um imaginário de unidade do que é posto como língua, cidadão
e Estados nacionais54. E é aí que, para nós, esse imaginário de língua fura, falha.
Ao lado dos sentidos de povo e de nação são colocados, como vimos, o de grupo
social e sociedade: o português, enquanto instrumento de comunicação, isto é, em sua
dimensão posta como idiomática, serve a Portugal, ao Brasil e as colônias ultramarinas
lusas; logo, estes constituiriam um grupo social que se entende, que se comunica. Se a
língua é transmitida ao homem pela sociedade a que ele pertence, no caso do brasileiro,
que sociedade seria essa? Como pensar os sentidos de grupo social e de sociedade em
relação ao de nação(ões)?
A con-fusão entre esses sentidos opera um silenciamento das diferenças sociais,
culturais e linguísticas entre Portugal, Brasil, as chamadas colônias ultramarinas e
também entre estas, pois toma todos como se fossem um, uma só sociedade, um só
grupo social, um todo homogêneo, ainda que se reconheçam diferenças políticas, ainda
que nem todos nesse todo tenha o status de Nação, ainda que a história (nada pacífica)
do processo de independência brasileira também seja apagada, assim como o foi a
resistência à dominação portuguesa nas chamadas colônias ultramarinas, ainda que…
São muitos “ainda que”, e é justamente neles que reside o silêncio, isto é, essa
possibilidade, segundo Orlandi (2007a), de, conforme a determinação histórico-
ideológica do sujeito (gramático), os sentidos serem sempre outros, mas de, justamente
54 Como pontua Branco (2013: 213), a constituição dos Estados Nacionais se dá num momento de
declínio do pensamento religioso medieval e da separação entre política e religião. Se até então o 'amor a
Deus' traduzia-se na necessidade de subordinação ao Soberano, com a fundação dos Estados Nacionais,
este foi substituído “pelo ‘amor à pátria’, pela ‘lealdade à nação’, que deve traduzir-se na subordinação ao
Estado, através das leis instituídas”. Para se legitimar enquanto tal, no entanto, garantindo a
governabilidade dos sujeitos nacionais e a visibilidade perante as outras nações, é preciso, conforme a
autora, se fundar sobre pilares que sustentem sentidos de soberania e de unidade nacional. Dentre esses
pilares Branco (ibid.: 214) destaca: “a necessidade de demarcação política e geográfica de um território” e
“a eleição de uma língua nacional”.
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
por poderem, não o serem. O que é dito e o que não se diz entram em tensão, disputam
espaço, se con-fundem, de modo que o que não é dito se faz significar, faz fissura no
dizer, nele deixa suas marcas. Trata-se, pois, de um silenciamento constitutivo (id.,
ibid.) do discurso gramatical brasileiro de meados do século XX, silenciamento este
necessário à imposição e à manutenção do imaginário de unidade linguística.
Esse imaginário, atravessado pelo discurso do colonizador português, coloca
Portugal como centro irradiador de civilização: o português nos fora deixado por
Portugal como “traço da civilização que aqui fundaram depois de 1500” (MGP, 1961:
23). Ao se relacionar o sentido de língua ao de civilização, como nos lembra Guimarães
(2011), mobiliza-se um tempo futuro para essa língua, o qual está associado ao
imaginário de evolução e progresso e tem como marco inicial o ano de 1500, momento
em que essa língua nos teria sido “transmitida”. Apaga-se o processo de historicização
da língua do Brasil e a história da relação dos sujeitos brasileiros com a sua língua e,
com isso, reforça-se a ilusão de unidade linguística entre os dois países.
A MGP teve trinta e seis edições sem grandes modificações (Dias; Bezerra,
2006) até ser publicada em 1999 a sua 37a. edição, a qual, embora nela não seja dito,
diferentemente das edições anteriores, tem como espaço de circulação, não a instituição
escolar, mas a universidade. Tendo em vista que, como pontua Orlandi (2002: 149), toda
forma de gramática traz inscrito um efeito-leitor55 “de que deriva (ou determina) seu
uso”, entendemos que é esse deslocamento que produz/permite produzir um efeito de
amadurecimento no dizer do gramático que se coloca desde o prefácio, no qual se apaga
a referência à NGB e afirma-se tratar-se de um “livro novo” amadurecido pela “leitura
55 O lugar de autoria, como nos lembra Orlandi (2007b: 74), “se faz com a constituição de um lugar de
interpretação definido pela relação com o Outro (o interdiscurso) e com o outro (o interlocutor)”, que em
AD chamamos de efeito-leitor. Assim, continua a autora, “o lugar do autor é determinado pelo lugar de
interpretação. O efeito-leitor representa, para o autor, a sua heterogeneidade constitutiva (memória do
dizer, repetição histórica)” (ibid.: 75). O autor, portanto, como nos explica a autora, não só não pode
simplesmente dizer coisas que não tenham sentido, isto é, que não façam parte do interdiscurso, como
deve dizer coisas que façam sentido para o seu leitor (ou melhor, para aquele que imagina que seja o seu
leitor). A noção de efeito-leitor está, pois, relacionada à de formações imaginárias proposta por Pechêux
([1969] 2010), sobre a qual discorremos anteriormente. Quando da produção de um texto, produz-se,
como vimos, além de uma imagem do objeto do discurso e do autor a quem o texto é atribuído, uma
imagem de leitor a quem este se dirige.
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
56 Considerando que todo texto é um fragmento de discurso, uma unidade discursiva, entendemos, em
conformidade com Orlandi (2008), que o prefácio de certo modo ‘limita’ o texto com o qual se relaciona:
“ele procura instituir-lhe um início, uma perspectiva, um modo de leitura, ou ao menos procura colocar-
lhe uma referência, um início particular. Ele o contextualiza e o insere na perspectiva de um processo
discursivo específico” (ibid.: 120).
57 Compreender a forma como se relacionam esses lugares nas três gramáticas que constituem o nosso
corpus diz respeito à depreensão do funcionamento da função-autor à qual elas estão filiadas e, portanto,
constitui um dos nossos objetivos de análise de nossa pesquisa de doutorado, objetivo este que ainda se
encontra em desenvolvimento.
58 A referência ao Brasil no prefácio comparece apenas uma vez a partir do adjetivo brasileiros, que
determina os centros universitários em que se encontram “nossos melhores linguistas” que seguem
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
da lusofonia” (ibid.: 20). No que diz respeito a este último, chamemos aqui atenção para
o deslocamento no relacionamento estabelecido entre os povos ditos lusófonos. Na
primeira edição da MGP, como vimos, diz-se que a língua significada como patrimônio
cultural foi deixada pelos portugueses ao Brasil e às colônias ultramarinas lusas. Àquela
época estas ainda não haviam conquistado a sua independência política, não eram
civilizações, mas povos, daí a sua significação como colônia. Em 1999, no entanto,
Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe59 já se
encontravam independentes politicamente, sendo ressignificados no dizer do gramático:
não se trata mais de colônias de Portugal, mas de nações-irmãs.
Seguem o prefácio da 37a edição, o prefácio da primeira e uma introdução que se
subdivide em dois subcapítulos intitulados: “Breve história externa da língua
portuguesa” e “Teoria gramatical”. Partiremos nossa análise do primeiro, do qual
recortamos a sequência abaixo:
SD3: “Do ponto de vista linguístico, o português contemporâneo, fixado no decorrer do séc. XVIII,
chega ao século seguinte sob o influxo de novas idéias estéticas, mas sem sofrer mudanças no sistema
gramatical que lhe garantam, neste sentido, nova feição e nova fase histórica.
Os escritores dos séculos XIX e XX de todos os quadrantes da Lusofonia souberam garantir esse
patrimônio linguístico herdado de tanta tradição literária.
Em Portugal, no Brasil, em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e
Príncipe, a língua portuguesa, patrimônio cultural de todas estas nações, tem sido, e esperamos seja por
muito tempo, expressão da sensibilidade e da razão, do sonho e das grandes realizações.
Patrimônio de todos e elo fraterno da Lusofonia de cerca de 200 milhões de falantes espalhados
por todos os continentes (…)” (MGP, 1999: 27).
“outros modelos [teóricos]”, os quais, apesar de “válidos”, não constituem o “arcabouço teórico” da 37a.
Edição da MGP (1999: 19).
59 Guiné-Bissau conquistou a sua independência em 1973; e Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo
Verde e Angola, em 1975.
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
Portucalense”. Anos mais tarde, no período das grandes navegações, essa língua já então
chamada portuguesa, “companheira do império”, foi levada, com o movimento de
expansão marítima, colonial e religiosa, “na palavra dos indômitos marinheiros, pelos
mares nunca d'antes navegados” (ibid.: 24), àquelas que eram até então tidas como
“regiões incógnitas”, “o fim do mundo” (ibid., loc. cit.). Diz-se, ainda, que o que se tem
hoje por “português contemporâneo” (ibid.: 27) se fixou no século XVIII e, apesar de
ter estado sob o influxo do que se toma por “novas idéias estéticas”, chegou ao século
seguinte “sem sofrer mudanças no sistema gramatical” (ibid., loc. cit.), de modo que os
escritores “de todos os quadrantes da lusofonia”, nos séculos XIX e XX, apenas
“garantiram” – mantiveram, já que nada mudou – “esse patrimônio linguístico de tanta
tradição literária” (ibid., loc. cit.).
Na 37a. edição, assim como na primeira, mantém-se o imaginário de
exterioridade da língua em relação ao homem – ela pode ser levada de um lugar para o
outro, até o fim do mundo. Da mesma forma, exterior, “externa”, é a história dessa
língua que, apesar de ter sido “levada” para outros lugares, de ser falada por outros
sujeitos, em outros tempos-espaços, permanece a mesma, homogênea, desde o século
XVIII60. Segundo essa breve história, portanto, a língua nomeada portuguesa, falada por
“cerca de 200 milhões de falantes espalhados por todos os continentes”, é uma e una em
todas as nações ditas lusófonas, “patrimônio linguístico herdado” por essas nações e, ao
mesmo tempo, “elo fraterno” entre elas (ibid.: 27).
No subcapítulo “Teoria Gramatical”, a definição de língua é atravessada pelos
discursos da Sociolinguística e do Funcionalismo – este último através do mecanismo
de citação dos dizeres filiados ao nome de autor Eugenio Coseriu. Nele, a língua é
dividida em duas dimensões: a chamada língua histórica, significada como produto
cultural e histórico reconhecido tanto por falantes nativos quanto por falantes de outros
idiomas; e a chamada língua funcional, significada como aquela que é objeto da
descrição estrutural e funcional.
Sobre a chamada língua histórica, diz-se ainda que se trata de “um amplo e
diversificado espaço cultural” que encerra em si “várias tradições linguísticas, de
extensão e limites variáveis, em parte análogas e em parte diversas, mas historicamente
60 A presença de uma “história externa” fez-nos debruçar sobre a gramática em busca do que seria posto
como história interna da língua. Ao definir os tipos de gramáticas, distingue-se nesta edição o que se toma
por “gramática histórica” da chamada “história interna da língua”. A primeira, em sentido estrito,
consistiria num “estudo diacrônico de um só sistema idealmente homogêneo”; e a segunda, num “estudo
diacrônico de uma língua histórica” (MGP, 1999: 56). Abordaremos o sentido de sistema e de língua
histórica mais adiante.
578
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
relacionadas” (ibid.: 37). Essas variações são tomadas como analogias e divergências
fonéticas, gramaticais e léxicas, de modo que se conclui que uma língua histórica
comporta sempre “um conjunto de sistemas” que variam de acordo com o espaço
geográfico (variações diatópicas), o nível sociocultural (variações diastráticas) e o estilo
(variações diafásicas). Sob essa perspectiva, a língua nomeada portuguesa é, então,
significada como uma língua histórica, que é “constituída de várias 'línguas' mais ou
menos próximas entre si, mais ou menos diferenciadas, mas que não chega a perder a
configuração do que se trata 'do português'” (ibid.: 50).
Uma vez que se entende que uma língua histórica é composta por um conjunto
de sistemas, conclui-se que, num texto oral ou escrito, apesar de sempre haver uma
língua funcional que se sobreponha às demais, podem comparecer, em função dos
destinatários, do objeto e da situação, diferentes línguas funcionais, de modo que “todo
falante de uma língua histórica é plurilíngüe, porque domina ativa ou passivamente mais
de uma língua funcional, embora não consiga saber toda a extensão de uma língua
histórica” (ibid.: 38).
No que concerne à língua funcional, ela se estruturaria ainda em sistema e
norma, sendo que o primeiro diria respeito ao que se toma por “oposições funcionais”,
“traços distintivos necessários para que uma unidade da língua (…) não se confunda
com outra unidade” (ibid.: 42); e a segunda, ao que é posto como “tradicional, comum e
constante, ou, em outras palavras, tudo o que se diz 'assim, e não de outra maneira”
(ibid., loc. cit.), podendo coincidir com o sistema “quando este oferece uma só
possibilidade de realização” (ibid.: 43). Para ilustrar essa distinção, coloca-se, por
exemplo, que, “o sistema do português conta com o sufixo -ção, além de outros, para
formar substantivos, em geral denotadores de ação, oriundos de verbos”, mas “a norma
prefere casamento a casação, livramento a livração, tomada a tomação ou tomamento”
(ibid., loc. cit.). Assim, o efeito de distinção entre sistema e norma é produzido a partir
do que se toma como uma possibilidade de “criatividade”, de “novidade” de criação
(ibid., loc. cit.), que se concebe como inerente ao primeiro e inexistente na segunda, a
qual seria, portanto, da ordem da estagnação, da estabilização, da constância. Talvez,
por isso, isto é, levando em consideração a sua dimensão normativa, apesar de
considerar-se a multiplicidade da língua funcional, diz-se também, contraditoriamente,
que ela apresenta-se, diferentemente da língua histórica, como “uma realidade
linguística idealmente homogênea e unitária, isto é, que se apresenta sintópica,
sinstrática e sinfásica” (ibid.: 38).
579
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
61 A gramática normativa é significada como aquela que “elenca os fatos recomendados como modelares
da exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais do convívio social”
(MGP, 2009: 52).
580
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
repertório da colonização, que tem como referência Portugal. Tal imaginário é também
reiterado, segundo Branco (2013), pela significação dessas nações como irmãs: elas
falam a mesma língua, o português, e têm uma história comum, pois se constituem
como extensões de Portugal. Assim, apesar de esse elo fraternal supor uma relação de
igualdade entre essas nações, faz-se significar aí uma relação hierárquica que se funda
na contradição engendrada no processo de colonização. Portugal, nesse sentido, a nosso
ver, não é um irmão, mas o pai que deixou como “patrimônio” essa língua una para os
seus filhos, as nações por ele colonizadas; estas, sim, postas como irmãs. Nesse suposto
espaço lusófono – tal como pensado por Branco (2013) –, portanto, o imaginário de
língua se constrói tendo como referência essa língua do pai, e não as dos filhos, de
modo que a heterogeneidade constitutiva das línguas destes, as demais línguas faladas
nesses diferentes espaços nacionais, bem como as diferenças entre estes, são/precisam
ser silenciadas em prol desse imaginário de língua comum, que silencia ainda, como nos
lembra Branco (ibid.: 150), “a violência (da colonização) que está na origem dessa
família”.
62 O termo lusofonia, como pontua Branco (2013), foi cunhado em 1950, mas ganhou maior projeção no
final dos anos 90, com a criação da Comunidade de países lusófonos – CPLP (1996).
581
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
Lembremos aqui que desde o prefácio a língua nomeada portuguesa é posta, ao mesmo
tempo, como “traço de nacionalidade” e como “elo fraterno da lusofonia”, mas é
silenciada a nacionalidade a que ela se refere, pois dizê-lo implicaria contradizer o
imaginário imposto pela noção de lusofonia, que pressupõe a existência de uma única
língua pertencente a diferentes nações e que, portanto, se constituiria como traço de
nacionalidade não de uma, mas de todas elas. Assim, ao se significar a língua nomeada
portuguesa como “patrimônio de todos”, de modo a pressupor-se uma total inclusão dos
sujeitos, silencia-se ainda que ela, tal como sublinha Branco (2013), não é de todo
mundo, isto é, de todos os cidadãos dos países ditos lusófonos, e que esse discurso da
lusofonia também não é para todos, mas para alguns: “para os que falam e escrevem a
língua imaginária portuguesa da lusofonia (...)” (ibid.: 138).
Parafraseando Mônica Zoppi-Fontana63, admitir a diversidade, embora coloque
como pressuposto a igualdade, não apaga a desigualdade. E é pelo viés da diversidade
cultural e linguística, via discurso da Sociolinguística e do Funcionalismo, que se busca,
como vimos, na 37a edição, apaziguar os sentidos de diferença que colocam em questão
a desigualdade que está na origem dessa família – isto é, desde o processo de
colonização que, como assinalou Branco (2013), foi marcado pela violência – e que se
perpetua até hoje em relação aos lugares ocupados por essas diferentes nações no que
tange à produção de conhecimento linguístico-gramatical e, portanto, ao direito à/sobre
essa língua.
Com o desenvolvimento do sociologismo e sob a ideologia do culturalismo, a
relação entre língua e cultura é, como pontua Orlandi (2009), um efeito do
recrudescimento do discurso sobre a(s) língua(s) que se deu a partir do final do século
XX. Nessa perspectiva, diz-se priorizar o multilinguismo – como vimos, na edição de
1999, coloca-se que a chamada língua histórica encerra “várias tradições linguísticas” –,
ao mesmo tempo em que se apagam as diferenças históricas: aceitam-se “todas as
culturas e línguas, enquanto, em outro lugar, aquele que se sustenta na estrutura de
poder que realmente decide, somos dominados pelo monolingüismo” (ibid.: 163)64,
monolinguismo este que, no caso em análise, é imposto pela noção de lusofonia, que
silencia as diferenças a partir da projeção de um imaginário de língua que tem como
582
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
referência uma certa norma de Portugal: “O Luso é o Português. – diz Orlandi (ibid.:
179). – Nada temos a ver com isso”
Desse modo, embora tenham funcionamentos distintos, em ambas as edições, é a
significação da língua nomeada portuguesa enquanto idioma compartilhado entre
nações, isto é, na sua dimensão idiomática, o que produz aquilo que, com Dias (1996),
chamamos de efeito de idiomaticidade. Esse efeito – que se relaciona de forma tensa
com o que seria da ordem da língua e se materializa, na primeira edição, a partir da
partição da língua em sistema e idioma e, na 37a edição, em língua funcional e língua
histórica – impõe um imaginário de unidade, de espaço/tempo comuns, que afeta os
sujeitos falantes, produzindo um efeito de identidade entre estes e essa língua que lhes é
dada historicamente como sua. Para tanto, porém, silencia-se a história da colonização
imposta ao Brasil e aos demais países ditos lusófonos, o processo de historicização
dessa língua nesses diferentes espaços de enunciação (Guimarães, 2005)65, bem como a
história da relação estabelecida entre esta e os sujeitos desses espaços.
Esse imaginário de língua enquanto patrimônio é, portanto, tanto na edição de
1961, quanto na edição de 1999, (ainda) atravessado pelo discurso do colonizador
português, com a diferença de que nesta última a chamada ciência linguística comparece
como calção que sustenta – “cientificamente” – a (ilusão de) unidade linguística. Ao ser
posta como patrimônio, como podemos concluir a partir de Venturini (2009), a língua
passa a ser significada no encontro do discurso antropológico com o discurso jurídico, e
é, como efeito desse encontro, que pensamos ser possível interpretá-la como objeto
passível de ser transmitido, como ‘herança’ que nos foi deixada pelos portugueses, um
‘bem cultural’ de propriedade do povo colonizador que se estende às nações por ele
colonizadas. Assim sendo, a significação da língua como patrimônio coloca em questão,
tal como haviam sinalizado outrora Medeiros e Oliveira (2012), o posicionamento de
um sujeito-gramático brasileiro que, identificado ao imaginário linguístico imposto pela
memória de uma norma associada à tradição (literária) portuguesa, apesar do
deslocamento, no século XIX, da autoria dos estudos gramaticais para o Brasil apontado
por Orlandi (2002), no século XX, ainda fala, ao dizer sobre a sua língua, “em grande
medida do lugar do português” (Medeiros; Oliveira, op. cit.: 154).
65 A noção de espaço de enunciação, conforme proposta por Guimarães (2005), diz respeito à relação
estabelecida entre as línguas e os falantes, sendo aquelas tomadas enquanto espaços divididos pelo
político no qual “habitam” os falantes que disputam o direito ao dizer e aos modos de dizer.
583
Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
a) OBRAS ANALISADAS
Bechara, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa (curso médio) − com base na
Nomenclatura Gramatical Brasileira. 1ª edição. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1961.
b) BIBLIOGRAFIAS CITADAS/CONSULTADAS
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Simpósio 20 - História e memória na língua portuguesa em tempos de colonização/descolonização...
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SIMPÓSIO 25
DEMONSTRAÇÃO DOS USOS, NORMAS
E IDENTIDADES LINGUÍSTICAS LOCAIS
COORDENADORES
RESUMO
O ALINGO- Atlas lingüístico de Goiás: léxico-fonético é um dos resultados de uma
pesquisa financiada pela Fundação de amparo a pesquisa de Goiás – FAPEG, liderada
pelo professor Sebastião Elias Milani, com a parceria dos Professores Tânia Ferreira
Rezende e Daniel Marra da Silva. Publicado no início de 2015, traz os dados léxico-
fonéticos representativos de todas as partes do estado. Goiás foi ocupado em diferentes
levas de imigrantes portugueses e seus escravos e emigrantes bandeirantes paulistas e
mineiros, boiadeiros maranhenses, baianos e piauienses, candangos baianos e cearenses,
construtores de Brasília, e sulistas plantadores de soja, recentemente. As contribuições
lingüísticas desses grupos são distintas. A contribuição bandeirante foi mais volumosa,
por isso ocupou todo o estado e se consolidou como a forma falada de prestígio. Goiás é
o Centro do Brasil, por isso essas contribuições têm fronteiras, pelas quais seus falantes
chegaram, e onde estão bem marcadas. Do sul para o norte do estado a contribuição
bandeirante genericamente chamada de Caipira. Do Norte e Noroeste do estado até o
entorno do Brasília a contribuição de boiadeiros e candangos, variantes nortista e
nordestina. Nesse texto, apresentam-se análises das incidências dos fonemas /R/, /l/ pós-
vocálicos. Eles apresentam um número alto e regular de alofones, que se diferenciam
em quantidade dependendo se o ponto de coleta se localizava mais próxima de uma
fronteira ou de outra.
Introdução
589
Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
formação da população do estado de Goiás. Historicamente Goiás foi povoado por levas
de brasileiros, em deferentes épocas, vindos do Sudeste e do Nordeste do país. Esses
grupos tinham objetivos bem diferentes entre si, mas tinham em comum a obtenção de
lucros com suas conquistas, por isso traziam consigo escravos, indígenas e
trabalhadores livres. Marcando diferentemente as regiões do estado com suas presenças,
deixaram, sobretudo nas fronteiras por onde entraram, traços lingüísticos que podem
descrever a historicidade da língua portuguesa brasileira goiana.
As fronteiras Norte e Leste, com o Tocantins e a Bahia respectivamente,
apresentam características fonéticas, em muitos falantes, sobretudo nos mais velhos, dos
alofones característicos nas regiões Norte e Nordeste do País. As fronteiras Sul e
Sudeste são com o estado de Minas Gerais e caracterizam Goiás, pela emigração dos
chamados bandeirantes, com os alofones constantes nas variantes paulista e mineira. A
fronteira Oeste com Mato Grosso e Mato Grosso do Sul não apresentam características
individualizadas ou significativamente diferenciadas de Goiás, porque eles apresentam
características de povoamento muito semelhantes ao de Goiás. Obviamente o tempo e a
consolidação dessas sociedades como grupos humanos fixos e volumosos vão se
encarregar de mudar isso.
A execução da pesquisa para elaboração do ALINGO fez com que o grupo de
entrevistadores percorresse todo o estado de Goiás. Entrevistou-se em 80
cidades, mesmo que no texto do ALINGO devessem constar 50 pontos de
coleta. Traçando linhas, de uma extremidade a outra do estado de Goiás,
tendo Goiânia como referência no centro, todas as fronteiras rodoviárias do
estado são pontos de coleta e tiveram seus resultados incluídos na análise.
Goiás tem fronteiras com seis estados, os quais pertencem a diferentes
regiões do país e apresentam traços linguísticos característicos e diferentes
entre si. (...) Do estado de Minas Gerais, região Sudeste, recebeu a influência
dos falares caipiras, muito caracterizado pela execução do /R/ pós-vocálico
como retroflexo, mas também caracterizado pela execução dos morfemas de
diminutivo apocopados (MILANI et al, 2015, p. 290).
Na medida em que se podem identificar as regiões brasileiras por determinados
traços alofônicos, em relação aos fonemas pós-vocálicos /R/ e /S/, na região Sudeste,
nos estados de São Paulo e de Minas Gerias, predominam o retroflexo [ɽ] e o alveolar
[s], respectivamente. No Rio de Janeiro, os velares [x]. No Nordeste, na Paraíba (Atlas
Linguístico da Paraíba), aspirado [h] e palatalizado [ʃ], respectivamente. Em Goiás,
predominam o /R/ retroflexo [ɽ] e o /S/ alveolar [s], mas nas regiões norte e noroeste do
590
Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
591
Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Para que fique claro como foi a coleta para o ALINGO, uma vez que os
resultados somente podem ser assegurados por força da qualidade da coleta, além desses
traços dos informantes, citados acima, a coleta foi feita considerando três faixas etárias,
de 18 a 35 anos, de 36 a 45 e de 46 em diante. Considerou-se também a escolaridade
dos informantes, agrupados de acordo com os dados históricos da escolaridade
brasileira: analfabetos, até 4 anos de escolaridade, até 8 anos, até 11 anos e acima de 12
anos de escolaridade. Coletaram-se dados de pessoas dos dois sexos. Porém, esses
dados relativos a essas variantes sociolinguísticas não foram expostos no ALINGO,
mesmo que tenham sido fundamentais para sua elaboração.
Tal fato se evidenciou nas cidades jovens, ou seja, aquelas que tiveram seu
desenvolvimento demográfico muito mais recentemente, após a fundação de Goiânia,
1933. Nessas cidades, são poucos os indivíduos que emigraram do Norte e Nordeste, e o
fluxo cultural partiu da Capital Goiânia, por isso o falar das pessoas é muito parecido
com o da Capital. As cidades mais antigas, vinculadas à mineração e depois ao
desenvolvimento agropecuário, e também aquelas que estão na área de influência direta
de pessoas que passam pelas rodovias, ou seja, que estão às margens de uma rodovia,
sobretudo, rodovias federais, apresentam incidência do alofone gloto-velarizado
aspirado [h] pós-vocálico nas pessoas acima de 40 anos. Diz-se isso, porque na coleta
do Acervo, representada no ALINGO, não se encontrou caso de falante nativo, de pais
também nativos, como exigia a seleção dos informantes, mais jovem de 40 anos, que
não realizasse o retroflexo na sua fala.
Realidade dos fonemas /R/ e /S/ nas fronteiras de Goiás publicado no ALINGO.
Então, nas fronteiras norte do estado e também na fronteira noroeste em que se
encontra com mais facilidade fonemas pós-vocálicos /R/ glotalizado e os dentais /t/ e
/d/ diante /i/ como [t] e [d], encontrou-se forte incidência de /R/ retroflexo e forte
incidência de /S/ alveolarizado e também de [ʧ] e [ʤ] diante de /i/. Nas fronteiras sul
e sudoeste do estado, onde predominam a produção desses fonemas de maneira
oposta, encontrou-se pouca incidência no sul e forte incidência no sudoeste de
glotalização de /R/ e de [t] e [d] associados ao fonema /i/ (MILANI et al, 2015, p.
291).
Os casos dos alofones, glotalização do /R/, o aspirado [h], no Sudoeste do
estado, que aparece na citação, aconteceram nas cidades, pontos de coleta, nas
fronteiras, especificamente por onde passam rodovias federais que cruzam o estado. Os
pontos de coleta onde isso se evidenciou muito foram: Aragarças, onde fica a ponte
sobre o Rio Araguaia, tendo do outro lado do barranco a cidade de Barra do Garças, no
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Mato Grosso, e Bom Jardim de Goiás, cuja cidade fica a menos de 30 quilômetros de
Aragarças e Barra do Garças. Mais ao sul, em direção à cabeceira do rio Araguaia, a
cidade de Santa Rita do Araguaia, por onde passam muitos caminhoneiros e estradeiros,
porque muitas rodovias federais e estaduais importantes para o transporte de
mercadorias atravessam a fronteira para o Mato Grosso ali, pela ponte.
Estudo diacrônico da fala goiana
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somente no entorno de Brasília, região do estado que recebeu, nos últimos 50 anos, forte
emigração proveniente de todas as regiões do país, mas em maior número de alguns
estados, como Rio de Janeiro, Ceará e Bahia. Essa emigração é devida às circunstâncias
de construção do Plano Piloto e das rodovias que começam no Distrito Federal e
também de ser o Rio de Janeiro a antiga capital Federal, de onde vieram os primeiros
funcionários de todas as repartições. Então, para esse fonema líquido vibrante, em coda
de sílaba, têm-se três alofones registrados no léxico córrego na fala em Goiás: [h, r, ɽ].
São comuns mais dois alofones nos falares brasileiros: [w e j]. O [w] ficou registrado no
léxico arco-íris (MILANI et al, 2015, p. 54) [arkʊ'iɾɪs], [aɽkʊ'iɾɪs]> [aɽkʊ'ɾilɪ],
[ahkʊ'iɾɪs], [awkʊ'iɾɪs]> [aw'kʷiɾɪs]> [awkʊ'iɾɪ], que será bem explanado abaixo.
Esse alofone [w], para o léxico arco-íris, como era de se esperar, ocorreu
somente nas regiões central e sul do estado, onde 100% dos nativos falam a variante
dita caipira, que tem no alofone retroflexo [ɽ] sua marca mais evidente. No léxico
corcunda também foram registrados os quatro alofones citados: (MILANI et al, 2015, p.
174) [kor'kũdʊ], [kɔr'kũdɐ]; [koɽ'kũdɐ], [kɔɽ'kũdɐ], [kɔɽ'kũdʊ], [kaɽ'kũdʊ], [koɽ′kũdʊ];
[koh'kũdɐ], [kɔh'kũdʊ], [koh'kũdʊ]; [kow'kũdɐ], [kaw'kũdʊ], [kaw'kũdɐ], [kow'kũdʊ].
Deve-se registrar a possibilidade desse fonema sofrer síncope, então alofone zero [Ø]:
[ko'kũdʊ], [ko'kũdɐ], [kɔ'kũdʊ]. Em todos os léxicos esse fonema pode sofrer síncope,
nas formas verbais, quando estão no infinitivo, a apócope ocorre em quase 100% das
vezes em todas as variantes faladas no Brasil, mais a frente nesse texto serão dados
exemplos. Obviamente o alofone zero no léxico corcunda ocorreu em variantes de
falantes com pouca escolaridade, com certeza por desconhecimento da forma padrão.
Assim, pode-se dizer que os outros alofones [h, r, ɽ] sejam manifestações da forma
padrão, a exceção seria a vocalização [w], que se desenvolve a partir do retroflexo.
Os alofones [h, r e ɽ] estão em distribuição complementar, mas o alofone
vocalizado [w] somente ocorreu associado ao alofone retroflexo [ɽ]. O fato é que o
retroflexo apresenta forte traço de semivogal e é esse traço que permite a evolução para
a vocalização, tanto para [w] quanto para [j]. A forma do alofone [j] não ocorre com
regularidade em Goiás, não houve registro no Acervo da fala goiana, por isso não
apareceu no ALINGO. Ela é mais comum no estado de Minas Gerais, nos falares do
norte daquele estado, são dados não oficiais, mas presenciados por esse lingüista em
viagens por aquela região, a exemplos: ['kɔjgʊ], ['pɔjtɐ]. Do ponto de vista diatópico,
tanto a forma alofônica retroflexa, quanto as vocalizadas são parte da variante geral
chamada caipira, que engloba, expurgadas as especificidades locais, todos os estados do
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/ɫ/, ele somente apareceu com os alofones [w] vocalizado e [Ø] zero, nem a forma
alveolarizada [ɫ], que seria inesperado, nem a forma retroflexa [ɐgɾikuɽ'toɽ], muito
comum na fala dos goianos, nem a forma gloto-velarizada [h]. Nos grupos onde ela
seria esperada, apareceu somente o alofone [Ø] zero: [ɐgɾikʊ'toh].
Esse é um caso interessante de dissimilação de fonemas. Essa pronúncia
aconteceu em Cristalina, no entorno de Brasília, área onde existe a incidência desse
alofone. A pronúncia hipotética e imaginável para essa situação seria [ɐgɾikʊh'toh]. Não
aconteceu caso semelhante a essa hipótese, por nenhum informante entrevistado, em
que em um mesmo léxico aparecesse duas vezes esse alofone. Ele tem uma
complexidade de pronúncia considerável por isso a presença de um por vocábulo.
Então, a explicação aceitável é a de dissimilação entre os dois alofones. A dissimilação
provavelmente teria feito o alofone da sílaba átona sofrer síncope e o da sílaba tônica
permanecer: [ɐgɾikʊ'toh].
A forma arco da velha, sinônimo religioso para arco-íris, apareceu três vezes nas
entrevistas sempre dita por pessoas da última faixa etária. Com a forma alofônica
alveolarizada ['aɫkʊ dɐ'vεjɐ] apareceu dita por uma pessoa de baixa escolaridade, e o
retroflexo ['aɽkʊ dɐ'vεlʲɐ], pronunciada por uma pessoa de alta escolaridade, e ['aɽkʊ
dɐ'vεjɐ], pronunciada por uma pessoa de baixa escolaridade. Obviamente, no primeiro
caso [ɫ] foi uma hipercorreção da fala. Nos outros casos, os falantes pronunciaram como
o fazem no dia-a-dia, com o retroflexo. De fato, não haveria de acontecer a vocalização
['awkʊ] como alofone nesse caso, mas ela seria mais plausível como hipercorreção do
que a forma alveolarizada. Arco da velha é uma referência ao acordo de Noé com Deus
para que não houvesse mais dilúvio: arco da velha aliança. Essas três ocorrências
aconteceram no sul do estado, onde predomina a hiperglossia caipira.
A forma padrão para o léxico calcanhar, quando da implantação do português
no Brasil, devia ser [kaɫkɐ'̃ ɲar], pronúncia ainda existente em Portugal, que pode ser
encontrada no Brasil na fala de pessoas da terceira faixa de idade. Na coleta para o
ALINGO, foi registrada uma forma aproximada [kaɫkɐ'̃ ɲa], com a apócope do /R/,
falada por um informante de 60 anos na cidade de Cristalina. As pronúncias encontradas
são variantes dessa forma padrão. Como alofones do /ɫ/ em coda de sílaba apareceram
[r, h, ɽ, w]: [karkɐ'ɲa], [kahkɐ'ɲa], [kaɽkɐ'ɲa], [kawkɐ'ɲa]. Em Goiás, e em toda
hiperglossia caipira, a forma predominante é a vocalizada [kawkɐ'ɲa] e [kawkɐ'̃ ɲa].
Como se supôs acima, ela é que torna possível a variante retroflexa [kaɽkɐ'ɲa], pelos
traços vocálicos que esse alofone apresenta. As outras duas formas [karkɐ'ɲa],
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[kahkɐ'ɲa] podem ser pensadas de duas maneiras, como alofones em rotacismo com /ɫ/
ou como alofones construídos a partir dos traços de consoantes do retroflexo.
No primeiro caso, o rotacismo /ɫ/ versos /r/ teria ocorrido em tempos anteriores à
vocalização /w/. O fato é que em latim vulgar esse rotacismo existia e continua
existindo como consoantes em cabeça de sílaba, mas em coda de sílaba esse rotacismo
parece não existir, uma vez que todas as variantes brasileiras vocalizam o /ɫ/ nessa
posição. Como a aparição do retroflexo /ɽ/ somente acontece na variante caipira e essa é
vocaliza sempre, pode-se levantar a hipótese do retroflexo, como semiconsoante ou
semivogal, fazendo rotacismo com a vocalização, que é semiconsoante ou semivogal.
Exemplos muito comuns entre o povo goiano são as formas [maw'mitɐ] para marmita e
['gawfʊ] para garfo e [ɐɽ'mõkɐ] / [aɽ'mõkĩɐ] para almôndega. Como foram
demonstrados acima, muitos exemplos apareceram na coleta para o ALINGO, que estão
no Acervo da língua falada em Goiás.
A pergunta era sobre chás, o objetivo era que a pessoa falasse o léxico erva
cidreira, é um dos chás mais comuns entre os goianos e também em outros estados do
Brasil. Quase todos os entrevistados se lembraram de falar, a maioria disse ['εɽvɐ
si'dɾeɾɐ] como era esperado. Um dos entrevistados, na cidade de Posse, disse ['εrvɐ
si'dɾeɾɐ], ele realizou esse alofone em todas as suas repostas. Nas cidades de Nova
América e Ceres, ambas na região central do estado, próximas uma da outra, ocorreram
com falantes da última faixa etária, a resposta ['εwvɐ si'dɾeɾɐ] (MILANI et al, 2015, p.
79). Esse é um caso em que a forma padrão é com o fonema /R/. A forma com o alofone
vocalizado [w] é uma hipercorreção, provavelmente provocada pelo valor pejorativo
que o retroflexo tem, considerado falar de caipiras e roceiros.
Outro exemplo é Volta do dia ['vɔɽtɐ dʊ'ʤiɐ]. Supostamente a forma
padronizada volta estaria na base da pronúncia do alofone retroflexo. O processo nesse
caso é o da transformação do alofone /w/ vocalizado no alofone retroflexo /ɽ/. Essa
expressão ocorreu em Corumbaíba, no sul do estado, localidade em que o alofone
retroflexo é predominante. Foi dito por um senhor de 43 anos, com 4 anos de
escolaridade, ele provavelmente aprendeu dessa maneira esta expressão, que significa a
passagem da manhã para a tarde, ou como a maioria falou meio dia. A forma lexical já é
assimilada com o retroflexo como alofone para o fonema /ɫ/. Certamente existiu a
história da transformação da vocalização em retroflexo, mas os usuários da expressão
não têm isso na memória. Devido à baixa escolaridade, esse falante jamais conseguirá
fazer o percurso na direção da retomada da forma padronizada com a vocalização /w/.
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Conclusão
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outra, detecta-se algum traço fonético desses falares, na maioria das vezes em vogais
médias. Os reforços de emigração de que se falou, ocorreram na construção do Plano
Piloto de Brasília nos anos de 1950 e de 1960 e a natural troca de cidadãos que os
estados fazem em suas fronteiras, nesse caso, fronteira de Goiás com a Bahia.
O estado apresenta os alofones [h, ɽ, r, Ø e w] para o /R/ em coda e os alofones
[ɫ, w, ɽ, Ø] para o fonema /ɫ/. O que deve ser evidenciado nessa conclusão é a relação
entre os alofones [w e ɽ] para os dois fonemas. Eles se equivalem e formam par em
rotacismo, por causa dos fenômenos de hipercorreção que atingem os dois fonemas. O
que também deve ser evidenciado é o forte traço de semivogal do retroflexo que permite
que ele seja avaliado pelos falantes com as mesmas características do alofone
vocalizado [w] que se comporta com semivogal, mas que tem no seu interior a condição
de semiconsoante, como tem as semivogais dos ditongos, crescente e decrescente, do
léxico em língua portuguesa e brasileira.
Finalmente, esses alofones têm áreas de incidência bem definidas em Goiás. O
que se conclui, e já apareceu em outros artigos desses mesmos autores, é que, devido ao
reforço cultural de valorização das raízes econômicas e populacional do estado, o
retroflexo [ɽ], juntamente com as outras características da hiperglossia chamada caipira,
predominará e excluirá cada vez mais as outras possibilidades de fala dentro das
fronteiras de Goiás.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aragão, Maria do Socorro Silva de. Atlas Linguístico da Paraíba. Brasília:
UFPB/CNPQ, 1984.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Amaral, A. O dialeto caipira: gramática, vocabulário. São Paulo: HUCITEC; Brasília:
INL, 1981.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Callou, Dinah & Leite, Yonne. Iniciação à Fonética e à Fonologia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2003.
Milani, S. E. “Platão: nomear é uma ação”. In.: SIGNO. Santa Cruz do Sul: UNISC,
2011.
Milani, S. E. "O signo para Humboldt, para Saussure e para Bakhtin". In.: SIGNO.
Santa Cruz do Sul: UNISC, 2015
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Silva Neto, S. da. Guia para estudos dialetológicos. 2.ª ed. melhorada e ampliada.
Belém: Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1957.
606
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 25 - Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais, 607-622
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p607
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este artigo apresenta a análise de casos de alofonias do fonema /o/ na posição pré-tônica
presentes na língua portuguesa falada no sul de Goiás. Os dados analisados são frutos de
coletas desenvolvidas pelo território goiano para dar origem ao ALINGO – Atlas
Linguístico de Goiás. Porém a pesquisa em questão traz o enfoque nos municípios
situados no sul desse estado. Este trabalho, uma adaptação de parte da dissertação
defendida e publicada pela autora, possui como objetivo uma nova contribuição para os
estudos elaborados nessa região, apresentando uma exposição a respeito das vogais da
língua portuguesa e também uma análise do fenômeno no português goiano, trazendo
novas informações sobre as possibilidades pouco exploradas na língua portuguesa do
Brasil. Como aporte metodológico foram utilizadas a Linguística Descritiva, com
autores brasileiros e estrangeiros – com Camara Jr., Lopes, Maddieson e Ladefoged, e
também a Linguística Histórica, a fim de embasar hipóteses de alguns fenômenos
encontrados.
1. Introdução
1Mestre pela UFG, Programa de pós-graduação em Letras e Linguística. Atende pelo endereço: Rua
Tamoio Quadra 118 Lote 6B Cond. Brasília Sul Vila Brasília. Aparecida de Goiânia – Goiás. CEP:
74993-160. E-mail: isadoramassad@hotmail.com
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
envolve o cotidiano dos informantes, com 240 perguntas divididas em: a natureza e o
homem. Esses informantes foram selecionados de acordo com os critérios apontados
por Brandão (1991): dar preferência aos nascidos na região, ou que vivem ali a desde a
infância; aqueles que possuem boa dentição e boa fonação; escolher pessoas com pouca
escolaridade.
Os dados analisados no artigo foram os transcritos e inseridos no livro Alingo
Atlas Linguístico de Goiás: léxico-fonético. A seleção dos dados para o livro se deu a
partir dos perfis diferenciados, da qualidade sonora das entrevistas e também da
qualidade das respostas dadas, como citado anteriormente.
A região sul de Goiás foi a selecionada para o recorte territorial, a priori, pois se
pretendia estabelecer relações entre o falar desse local com o falar do triângulo mineiro.
Porém o projeto inicial sofreu modificações, já que não foi possível encontrar dados
mineiros em larga escala. A mudança do projeto não impediu o trabalho com o sul de
Goiás, entretanto com novos objetivos.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
2 A discussão sobre a possibilidade de as vogais serem silábicas passou por Câmara Jr. (2011), que nega a
exclusividade das vogais serem o centro das sílabas.Para o linguista brasileiro é possível que uma
consoante ocupe esse espaço. Como argumento é utilizada a palavra inglesa bottle, cuja transcrição
oferecida foi /botl/, dessa forma com a consoante líquida /l/ ocupando o núcleo silábico.
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3“Consiste o timbre em certos sons secundários ou acessórios que seguem o principal e aos quais se dá o
nome de harmônicos. É esta qualidade que torna um som acusticamente distinto de qualquer outro da
mesma altura, intensidade ou quantidade. Os instrumentos musicais têm cada um o seu timbre especial, o
que nos permite distinguir, ainda que de longe, se o som é de uma flauta ou de um clarinete”
(COUTINHO, 1972, p. 87).
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
centro da boca; por último, as vogais posteriores, que são pronunciadas quando a língua
se encontra mais recolhida, no fundo da boca (SILVA, 2013).
Segundo Lopes (2007), no português, a localização da língua no eixo horizontal
não corresponde a um aspecto distintivo da nossa língua, uma vez que não há vogais
que se oponham simplesmente por uma ser anterior e outra posterior. Para que haja esse
tipo de oposição é necessário que haja outro aspecto envolvido na vogal, como o
arredondamento dos lábios, por exemplo. A classificação dessa categoria em
português considera que as vogais /i/, /e/ e /ɛ/ sejam vogais anteriores, o fonema /a/
central e /u/, /o/ e /ɔ/ posteriores.
Mais um aspecto existente para a descrição dos sons vocálicos é o do
arredondamento dos lábios, ou posição dos lábios. Neste critério há duas classificações:
vogais arredondadas ou vogais não-arredondadas. As primeiras vogais são as que, ao
serem produzidas, os lábios ficam arredondados; as outras são as vogais as quais são
pronunciadas com os lábios distendidos.
Na língua portuguesa é possível perceber que essa classificação está relacionada
ao eixo horizontal da língua na boca. As vogais anteriores são não arredondadas e as
vogais posteriores são produzidas com arredondamento dos lábios. As vogais /i/, /e/, /ɛ/
e /a/ são vogais não-posteriores, logo, não-arredondadas, sendo as três primeiras, como
já foi explicitado, anteriores e a última central. Já os fonemas /u/, /o/ e /ɔ/ são vogais
posteriores e arredondadas.
Tem-se em português outra classificação, bastante produtiva para as vogais, que
é quanto à sua nasalização. Porém é um tema de grande polêmica entre os linguistas do
Brasil, visto que há pontos de vista divergentes a respeito desse assunto. Edward Lopes
(2007) é a favor da existência das vogais nasais, que também possuem produção de
forma semelhante às orais, exceto pela ressonância do som pelas vias nasais: “Vogais
são fonemas sonoros resultantes da livre passagem da corrente de ar para a boca ou para
a boca e as fossas nasais, órgãos estes que atuam como simples caixas de ressonância”
(LOPES, 2007, p. 111).
O autor alega que a língua portuguesa possui verdadeiras vogais nasais, ou seja,
as vogais que se produzem pelo abaixamento do véu palatino e que faz com que o ar se
desloque até as fossas nasais e que lá haja ressonância. Ele ainda caracteriza as nossas
vogais nasais em vogais centrípetas, ou seja, aquelas que possuem o timbre fechado.
Para ele essas vogais podem ser representadas como /ã/, /ẽ/, /ĩ/, /õ/ e /ũ/.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Camara Jr. (2011) faz uma discussão acerca das vogais que ao serem produzidas
causam ressonância nas fossas nasais. Para este linguista brasileiro, é necessário que
haja a diferenciação das vogais que apenas sofrem influência de uma consoante nasal
presente na próxima sílaba, daquelas as quais possuem uma nasalidade distintiva. O
autor dividiu esses tipos de nasalidade em fonética, aquela que é meramente sonora,
sem distinção significativa4, e nasalidade fonológica, que já envolve mudanças de
significado.
Para a transcrição fonética das vogais chamada “nasais”5 que podem acarretar
distinção, Camara Jr. (2011) sugere a utilização do arquifonema nasal, representado
pelo símbolo /N/. O autor alega que: “Trata-se [...] de um arquifonema /N/, que se
realiza como /m/ diante de consoante labial na sílaba seguinte, como /n/ diante de
consoante anterior nas mesma condições e como um alofone [ñ] posterior diante de
vogal posterior: campo, lenda, sangue” (CAMARA Jr., 2011, p. 58).
Câmara Jr. ainda afirma que: “ [...] é preferível partir do arquifonema nasal /N/
como fato estrutural básico, que acarreta, como traço acompanhante, a ressonância nasal
da vogal.” A representação da nasalização das vogais para ele seria, então, transcrita
como: /aN/, /eN/, /iN/, /oN/ e /uN/, trazendo a presença da nasalidade através da
representação do arquifonema juntamente com a vogal (2011, p. 59).
Silva (2013) trata o aspecto nasal nas vogais diferenciando-as em: vogais que
sofrem o processo de nasalização e as vogais que sofrem o processo de nasalidade. Nas
primeiras a não articulação da vogal nasal causa distinção de significado, como é
possível observar em ‘lá’ [la] e ‘lã’ [lã], a ausência do elemento nasal causa mudança na
palavra produzido.
As vogais que passam pelo processo de nasalidade são aquelas que não causam
distinção de significado, ou seja, a variação linguística é que determina a presença ou a
ausência de nasalidade. Um caso clássico para se observar no português brasileiro é da
palavra ‘banana’, como há duas consoantes nasais na palavra é possível perceber
assimilação em via de regra na segunda sílaba, mas há também a possibilidade de a
primeira sílaba sofrer influência da consoante nasal da sílaba seguinte: [bã'nãnə]. Essa
4Quando fala-se aqui que essa nasalidade não possui distinção significativa, está se levando em conta
questões descritivas, formais, sem entrar no âmbito sociolinguístico, onde haveria sim uma distinção
significativa.
5As aspas utilizadas têm a intenção de ser fiel à opinião de Câmara Jr., que as utiliza em Estrutura da
língua portuguesa, deixando claro seu ponto de vista.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Vogais orais
Anteriores Central Posteriores
Alta /i/ /u/ Alta
Média/alta /e/ /o/ Média/alta
Média/baixa /ɛ/ /ɔ/ Média/baixa
Baixa /a/ Baixa
Vogais Nasais
Anteriores Central Posteriores
Alta /ı͂ / /u͂/ Alta
Média/alta /e͂/ /o͂/ Média/alta
Média/baixa Média/baixa
Baixa /a͂/ Baixa
(adaptado de Edward Lopes, 1995, p. 116 citado por MILANI et. al, 2015)
6As entrevistas feitas com questionário fechado são aquelas que as perguntas visam a respostas objetivas.
Neste caso, foi utilizado para que os entrevistados respondessem as questões com as palavras que, na
opinião dele, mais se encaixasse no conceito presente na pergunta, pois assim haveria a possibilidade de
eles realizarem aquela palavra selecionada do seu vocabulário de acordo com sua variedade linguística.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
7Um par suspeito é um par de sons que possuem uma ou mais propriedades fonéticas semelhantes. Tem-
se como exemplo: [e] e [i], o que as diferencia é apenas o grau de abertura da boca, sendo [e] uma vogal
oral, anterior, média-alta (ou média-fechada), não-arredondada e [i] uma vogal oral, anterior, alta, não
arredondada.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Embora haja apenas duas ocorrências deste tipo de neutralização [o] ~ [ɔ] na
posição pré-tônica desta palavra, é importante observar que essa baixa frequência
apresenta sua importância, já que com essa informação é possível concluir que, mesmo
existindo essa possibilidade, nesta região estudada ela raramente ocorre.
Um outro fenômeno bastante comum existente na língua portuguesa é a alofonia
do par [o] e [ʊ]. É importante ressaltar que o ambiente onde essa alofonia é mais
produtiva é em final de palavras, quando a sílaba final for átona, ou em posições pós-
tônicas, como pode-se observar na realização da palavra ‘mato’ ['matʊ].
Segundo Camara Jr., esse fenômeno é chamado de “debordamento fonêmico”.
Ele explica que este processo ocorre quando “há [...] uma invasão de uma fonema sobre
a área de outro”. Neste caso, a “invasão” seria quanto à altura da vogal, uma vez que o
fone [o] é média-alta e o [ʊ] alta (CAMARA Jr., 1977, p.60).
Embora o debordamento fonêmico do [o] para o [ʊ] ocorra principalmente nas
sílabas átonas finais, foi possível encontrar realizações acontecendo em sílabas em
posição pré-tônica, como é possível ver a seguir:
Realizações de “tornozelo” como:
[toɽnʊ'zelʊ]
[tʊɽnʊ'zelʊ]
Realização de “trovoada” :
[tɾʊvʊ'adɐ]
A variante mais alta também apareceu como uma possível ocorrência para o “o”
ortográfico, o fone [u]. Essa possibilidade, assim como a anterior, aconteceu em duas
palavras e uma delas com duas realizações diferentes:
Realizações de “sovaco” :
[su'bakʊ]
[su'vakʊ]
Realização de “trovão”:
[tɾu'vãũ]
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
[so'vakʊ]
[so'bakʊ]
Realização de “tornozelo”:
[toɽno'zelʊ]
Realizações de “orvalho”:
[oɽ'valʲʊ]
[oɾʊ'vaj]
[oɽ'vaλʊ]
Realização de “soluço”:
[so'lusʊ]
Realização de “trovão”:
[tɾo'vãũ]
618
Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
posição pré-tônica no sul de Goiás seria o /o/. O que permite essa alegação é a sua
presença em todas as respostas analisadas, além da alta frequência em cada uma das
respostas, se observadas isoladamente.
Assim, conclui-se, que em posição pré-tônica o “o” ortográfico no sul de Goiás
tem como fonema o /o/ e como possibilidades fonéticas, ou alofones, os sons [ɔ], [ʊ],
[u], [a] e [o].
Conclusão
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Amaral, A. O dialeto caipira: gramática, vocabulário. 4 ed. São Paulo: HUCITEC;
Brasília: INL, 1981.
619
Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Callou, D.; Leite, Y. Iniciação à Fonética e à Fonologia. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000
Camara Jr., J.M. Para o estudo da fonêmica portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Padrão,
1977.
Mateus, M. H.; Andrade, E. d’. The phonology of portuguese. New York: Oxford, 2002.
Milani, S E., [et al]. Atlas linguístico de Goiás: léxico-fonético. Rio de Janeiro: Barra
Livros, 2015.
620
Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Saussure, F. de. Curso de linguística geral. 34ª ed. São Paulo: Cultrix, 2012.
Silva Neto, S. da. Guia para estudos dialetológicos. 2.ª ed. melhorada e ampliada.
Belém: Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1957.
621
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 25 - Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais, 623-640
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p623
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar o Projeto Diversidade e variação linguística em
Mato Grosso (DIVALIMT). Projeto que tem o propósito de refletir sobre a língua
portuguesa e línguas minoritárias faladas em Mato Grosso/Brasil e mostrar resultados
de pesquisa geo-sociolinguísticas em áreas geográficas mato-grossenses distintas, assim
como em temáticas também distintas. A proposta da pesquisa fundamenta-se nos
princípios da Geolinguística contemporânea (Coseriu, 1979/1982, Nascentes,
1953/1958/1961, Santos, 2006/2012), com ênfase tanto às variações linguísticas
geográficas (diatópicas) quanto às implicações de natureza social (diastráticas). Para
complementar os recortes teórico-metodológicos mobilizados nos estudos, por operar
com variáveis socioculturais dos dados coletados, recorre, também, à interface com a
Sociolinguística, mais especificamente ao modelo de análise linguística proposta pela
Sociolinguística Variacionista (Labov, 1966/1972/2008, Tarallo, 2007). Dentre os
resultados já alcançados, destaca-se um banco de dados on-line, que traz a compilação
de pesquisas realizadas no Estado de Mato Grosso, disponível para a comunidade
científica e para a população desta região brasileira, propiciando a ampliação do
conhecimento acerca da identidade linguística e sociocultural deste espaço geográfico.
Apontamentos iniciais
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Considerações teórico-metodológicas
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
a língua se torne outra língua, ou que ela se constitua em um sistema linguístico melhor
ou pior. A variação linguística, portanto, é um fenômeno que ocorre em todas as línguas
naturais. Do mesmo modo, a diferenciação geográfica e social entre segmentos de uma
mesma comunidade linguística pode resultar em um correspondente processo de
diferenciação linguística, que se manifesta com maior evidência nos níveis fonológico,
léxico e gramatical.
Para Ferreira e Cardoso:
[...] falantes de uma mesma língua, mas de regiões distintas, têm
características lingüísticas diversificadas e se pertencem a uma mesma região
também não falam de uma mesma maneira tendo em vista os diferentes
estratos sociais e as circunstâncias diversas da comunicação. Tudo isso deixa
evidente a complexidade de um sistema lingüístico e toda a variação nele
contida (Ferreira; Cardoso, 1994: 12).
A preocupação com a diversidade de usos linguísticos no Brasil, embora
registrada desde o início da colonização, tal como podemos verificar com a publicação
da primeira gramática, já no século XVI, a Arte de Gramática da Língua mais Usada na
Costa do Brasil, de José de Anchieta, se acentua, contudo, somente no final do século
XVIII e início do século XIX. De acordo com Cardoso (1999), a primeira manifestação
caracterizada como de natureza dialetológica sobre o português do Brasil surge em
1826, com o informe intitulado Les différences que le dialecte brésilien pourrait
présenter, comparé à la langue de Portugal, publicado por Domingos Borges de Barros,
o visconde de Pedra Branca.
Todavia, são as Bases para a elaboração do Atlas Linguístico do Brasil, obra
publicada por Antenor Nascentes em dois volumes (1958 e 1961, respectivamente), que
abrem caminho para o desenvolvimento de estudos nessa área. Posteriormente,
pesquisadores de outras regiões brasileiras iniciam o mapeamento de aspectos mais
específicos de cada área/região. Atualmente, além de atlas regionais, muitos
atlas/mapeamentos locais estão sendo feitos em teses de doutorado ou dissertações de
mestrado. Há que se destacar, também, o trabalho que vem sendo feito pelo Projeto
Atlas Linguístico do Brasil (Projeto ALiB), desde a última década do século XX.
[...] esse projeto representa um divisor de águas na pesquisa geolingüística e
dialectológica no Brasil, uma vez que a concretização de um projeto nacional
– que se propõe a descrever a variante brasileira da Língua Portuguesa e
mapeá-la em um Atlas nacional e que, pela sua abrangência e pela dimensão
espacial dos que o dirigem, agrega pesquisadores fixados nas diferentes
625
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A equipe executora está sob a coordenação da Profa. Dra. Neusa Inês Philippsen
(UNEMAT/Sinop), e conta com os seguintes integrantes: Dr. José Leonildo Lima
(UNEMAT/Nova Mutum), Ms. Olandina Della Justina (UNEMAT/Sinop), Ms. Juliana
Freitag Schweikart (UNEMAT/Sinop), Ms. Terezinha Della Justina (UNEMAT/Sinop),
Ms. Grasiela Veloso dos Santos (UNEMAT/Sinop), Ms. Selmo Ribeiro Figueiredo
Junior (USP), Ms. Fernando Hélio Tavares de Barros (UFRGS) e Ms. Antônio Tadeu
Gomes de Azevedo (UNEMAT/Sinop). Equipe esta que, por sua vez, pretende cooptar
novos colaboradores de instituições distintas e comunidade externa, interessados em
promover pesquisa em Mato Grosso.
Assim, com a finalidade maior de propiciar a ampliação do conhecimento acerca
da identidade linguística e sociocultural desta região do Brasil, apresenta-se, abaixo, um
quadro organizacional que sintetiza os procedimentos metodológicos a serem
desenvolvidos:
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Teses, Contribuir na
dissertações, alimentação do banco
artigos, de dados on-line, pois
materiais de favorecerá o acesso
pesquisas em por parte dos
andamento para participantes deste
compor o banco projeto e,
de dados on-line Regiões mato- Doutorando Selmo adicionalmente,
e materialidades grossenses Ribeiro Figueiredo permitirá o acesso por
históricas Júnior outros pesquisadores
(fotografias, interessados, trazendo
cartas, folders, agilidade na
textos e etc.) e consecução de
culturais das resultados e socializar
diferentes aspectos geográficos,
regiões mato- históricos e culturais
grossenses. das diferentes regiões
mato-grossenses.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
capturados no constituídos de
contexto mistura de gentes que
geopolítico, Contexto Norte mato- Ms. Terezinha Della vêm de várias regiões
sociolinguísticos grossense Justina do Brasil e, mesmo
e cultural mato- que do Sul tenha
grossense vindo um número
provindos de maior, não dá para
pesquisas já desconsiderar que
realizadas com possam estar
pessoas que ocorrendo misturas
residem em entre os falares
Sinop e região: provindos dos
material de contextos diversos ou
entrevistas orais, ainda que algum(s)
de programas da esteja(m) sobrepondo
mídia oral: o(s) outro(s).
rádio, televisão
e on-line.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Teses, Contribuir na
dissertações, alimentação do banco
artigos, Região Norte de Mato Ms. Fernando Hélio de dados on-line com
materiais de Grosso Tavares de Barros a identificação e
pesquisas em descrição de minorias
andamento para linguísticas, na região
compor o banco Norte mato-grossense,
de dados on-line em destaque às
e materialidades línguas indígenas e às
histórico- variedades linguísticas
culturais de base alemã e
(filmagens, italiana, bem como
fotografias, fazer levantamento e
folders, coleta de dados sobre
propagandas, as atividades
notificação de socioculturais
programas etc.). desenvolvidas por tais
identidades.
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Considerações Finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Campus Universitário de Sinop. http://www.novoportal.unemat.br/index.php?pg=
campus&idc=3. Acessado em 07 de jan. de 2015.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
Ferreira, Carlota; Cardoso, Suzana Alice. 1994. A dialetologia no Brasil. São Paulo:
Contexto.
Sá, Edmilson José de. 2011. O léxico na região Nordeste: questões diatópicas.
ReVEL, v. 9, n. 17.
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Simpósio 25 – Demonstração dos usos, normas e identidades linguísticas locais
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SIMPÓSIO 31
DIFUSÃO DO PORTUGUÊS: DIFERENTES CONTEXTOS,
MÚLTIPLAS REALIDADES
COORDENADORES
Cláudia FERNANDES1
RESUMO
Há vários séculos que os números da emigração têm relativo peso nas estatísticas portuguesas.
Num momento em que o número de saídas voltou a subir e a atingir máximos históricos, é
interessante verificar como a língua portuguesa se desenvolve num enquadramento
estrangeiro: se se mantém fiel à língua de partida, se sofre influências das línguas com as
quais concorre nos novos contextos onde agora se insere. Com o actual alargamento das
comunidades portuguesas pelo mundo, tanto das comunidades tradicionais como de novas
comunidades, nomeadamente na Europa, torna-se mais relevante tomar em atenção ao
português é falado fora das fronteiras do país.
Esta comunicação pretende observar a comunidade portuguesa na Áustria e a mostrar como se
fala português em contexto austríaco, ou seja, como se fala português num ambiente
germânico: quais são as áreas linguísticas mais permeáveis a interferências e quais as
estratégias a que os falantes recorrem para conseguirem proferir os seus enunciados. O
resultado da investigação a ser apresentada baseia-se em entrevistas à comunidade local.
O artigo que aqui se inicia tem como base o trabalho de pesquisa desenvolvido no
âmbito de uma dissertação para a obtenção do grau de Doutoramento, com o título O
comportamento linguístico dos portugueses residentes na Áustria, que foi apresentada à
Universidade de Viena, Áustria, em Junho de 2015.
A emigração é um dos temas que mais faz correr tinta na actualidade portuguesa.
Apesar de não ser de todo uma novidade no contexto português, sendo inclusivamente
caracterizada como uma “constante na demografia portuguesa” por Magalhães Godinho
(1978), a emigração foi um tema que caiu no esquecimento a partir de meados dos anos 80,
falando-se inclusivamente do fim da emigração portuguesa, face aos anos florescentes da
economia portuguesa e ao crescente volume de fluxos migratórios que procuravam Portugal
643
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
como destino. Curiosamente, foi o interesse nas recentes comunidades de imigrantes que fez
com que o tema das migrações fosse alvo de pesquisas e por arrastamento também se
procurasse saber o que se passava com a tradicional emigração portuguesa. Com o dobrar do
milénio, os fluxos da emigração voltaram a subir e a crise económica que se fez sentir em
Portugal a partir de 2008, exponenciou o fluxo de saídas do país. Nessa medida, a emigração
voltou ao quotidiano dos portugueses tanto na primeira pessoa como em destaque nos vários
canais da imprensa. Não obstante a omnipresença da emigração recente nos meios de
comunicação social, esse mesmo grau de referência não se verificou a nível de trabalhos de
pesquisa científica. A existência de investigações científicas centra-se essencialmente nas
comunidades portuguesas mais tradicionais, consequentemente aquelas que já existem há
largas décadas, como França, Alemanha, Brasil, Estados Unidos, etc., sendo diminutos os que
punham em destaque outros destinos de procura mais recente. Esse é o caso da comunidade
portuguesa na Áustria, um destino de emigração portuguesa muito recente, mas que tem vindo
a crescer de forma galopante. No caso austríaco, não se verificava qualquer trabalho acerca da
comunidade portuguesa, o que talvez se justifique por se tratar de uma minoria entre minorias,
tanto no âmbito das comunidades estrangeiras na Áustria como em termos de comunidades
portuguesas emigrantes no mundo. O facto da comunidade portuguesa na Áustria ser bastante
recente presta-se ao estudo de fenómenos linguísticos numa fase inicial no âmbito do contacto
entre línguas. Nessa medida, esta investigação visa descrever o comportamento linguístico
dos portugueses na Áustria, onde estão sujeitos à pressão de outras línguas. Com efeito, em
que medida é que a língua portuguesa poderá ser alterada e/ou influenciada num contexto em
que o português não é dominante.
Migrações
644
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
645
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
Alemanha 127.368 - 9% 2%
(2013) (0,15%)*
646
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
Mais uma vez se confirma o facto de a Áustria não se mostrar com grande atractivos
aos portugueses, mas o certo é que as leis laborais austríacos sofreram alguns revezes no
último século.
A migração laboral na Áustria cresceu grandemente no contexto pós-guerra, pois até aí
a legislação laboral austríaca era bastante proteccionista relativamente aos seus cidadãos.
Porém, face à falta de mão-de-obra patente, foram assinados diversos tratados internacionais
que fomentaram a angariação de mão-de-obra estrangeira para lugares que não eram ocupados
por austríacos. O Tratado Raab-Olah de 1961 era bastante claro nesse ponto: os trabalhadores
(estrangeiros) recrutados só iriam poder preencher vagas que não poderiam ser ocupadas por
austríacos. Além disso, ao recrutamento estrangeiro presidia o princípio de rotatividade, ou
seja, os trabalhadores angariados só poderiam permanecer no país por um período de tempo
específico, sendo consequentemente uma força de trabalho temporária. Em 1962, foi assinado
um Tratado com Espanha para o recrutamento de Gastarbeiter, cujo fracasso foi tão evidente
que fez com que as autoridades austríacas optassem nos anos seguintes por assinar tratados
noutros quadrantes geográficos, nomeadamente em 1964 com a Turquia e em 1966 com a
antiga Jugoslávia. Estes sim correram de feição e por isso não foi necessário recorrer
novamente a outros mercados de mão-de-obra.
Na década de 90, a Áustria recebeu outra grande vaga de emigrantes devido aos
acontecimentos políticos que sucediam perto das suas fronteiras. O desmantelamento da
Cortina de Ferro em 1991 e a Guerra nos Balcãs entre 1991 e 1995 fizeram com que o número
de ingressos na Áustria aumentasse vertiginosamente. Ainda nessa década, mais precisamente
em 1995, a Áustria entra na União Europeia, o que se traduz nos mesmos direitos de
alojamento e trabalho tanto para austríacos como para os cidadãos dos outros Estados-
Membros.
Em pouco mais de meio século (entre 1961 e 2013), a população migrante (e com
antecendentes migratórios) aumentou de 1% para 12%. No entanto, nos dois períodos de
maior afluxo de emigrantes na Áustria, nos anos 60-70, os emigrantes portugueses
engrossavam fileiras na França e na Alemanha e depois nos anos 90, supostamente já não
existia emigração portuguesa.
647
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
Língua e sociedade
Tabela 4: Nível de contacto entre línguas e efeitos em áreas linguísticas (baseado em Riel 2002, tradução minha)
Fonologia /
Nível do Léxico Morfologia Sintaxe
contacto Prosódia
Palavras com
1. Ocasional conteúdo
Estruturas antigas
com uma função
nova, nova
Conjunções, Fonemas novos sequência dos
2. Algo intensivo advérbios em empréstimos elementos frásicos
sem uma
alteração
tipológica
648
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
Regras morfo-
fonemáticas
Transformação
novas, perda de
morfo-sintáctica
Transformação regras morfo-
5. Pressão categorial e
fonética, perda de fonemáticas
cultural extensiva, regras
contraste fonético nativas, alteração
muito forte de concordância
das regras da
adicionais
estrutura da
palavra
Para poder lidar com a concorrência de línguas a que está sujeito, o falante poderá
enveredar por diferentes estratégias. Neste caso, serão relevantes o code-switching, o
empréstimo e o calque. O code-switching numa “troca entre duas línguas no âmbito de uma
fala, uma frase ou uma oração” (Poplack, 1980:583). O falante competente pode recorrer a
esta estratégia para gerir e determinar melhor as suas línguas, todavia esta estratégia poderá
igualmente servir de recurso a um falante menos competente, na medida em que a outra
língua poderá servir de auxílio à falta de competência linguística do falante numa das línguas
(Weinreich, 1953). O empréstimo consiste na inclusão de uma palavra estrangeira ou de uma
expressão curta numa fala de outra língua em que se esteja a falar, sendo que a expressão
estrangeira não é ajustada em termos fonológicos nem morfológicos (Grosjean, 1982:308). Já
o calque constitui numa forma muito específica de empréstimo (Otheguy et al. 1989, 1993),
onde se transfere o sentido de uma palavra sem a sua forma original, ao passo que o
empréstimo seria a transferência de ambos, sentido e forma.
Há que ter em atenção que a experiência migratória poderá ter um resultado
ambivalente nas competências linguísticas dos falantes, se por um lado, o seu reportório
vocabular poderá ser enriquecido, por outro, a sua redução poderá estar igualmente patente,
tal como Mayone Dias (1989:62) refere:
Em termos linguísticos, a experiência migratória representa tanto um processo de
expansão como de contracção vocabular. Por um lado adquire-se um repositório
léxico compatível com as novas necessidades existenciais, mas por outro perde-se
grandemente toda a faixa referente a actividades e costumes de que o falante se vai
desvinculando.
649
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
650
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
modelo apresentado por Brauer-Figueiredo (1999), a saber, área fonológica, área sintáctica;
área morfo-sintáctica, área pragmático-textual e área semântico-lexical.
De seguida apresentam-se vários exemplos de cada uma das áreas.
Área fonológica:
1. (7) quando telefono para o Magistrat para saber alguma informação ou aquele
bezirque < Bezirksamt
A palavra alemã Bezirk é dita primeiro como se se tratasse de uma palavra portuguesa
[bə’zirkə], sendo depois automaticamente corrigida para a pronúncia alemã [bətsiʁk]
2. (10) Os portugueses falam muito na estra [estrada-Straße] < na rua é mesmo muito
normal
A palavra Straße era com certeza a palavra mais disponível, tendo o entrevistado dito
quase “estrada”, que posteriormente é corrigida para “rua”.
Área sintáctica:
3. (1) e consegue com o ordenado viver
A separação prevista em alemão entre verbo modal e verbo principal em posição final
na oração é aqui reproduzida, resultando na estranha colocação do complemento directo antes
do verbo principal. Em alemão, a locução verbal é partida, sendo que o verbo modal inicia a
oração e o verbo principal termina-a, o que não se verifica em português.
651
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
652
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
oder interrogativo, o entrevistado 8 não espera mais do que uma confirmação, mas que em
português seria enunciada com um “não é?” ou um “pois não?”.
12. (2) comem um lanche não é? Um Jause > um pão afiambrado com mortadela
A entrevistada 2 não tem a certeza se a mensagem que está a tentar expressar está a ser
passada, nessa medida, elenca uma série de tentativas de explicação, começando por traduzir
lanche em alemão Jause, mas como a tradução não lhe parece eficaz, ela explica no que
consiste o lanche.
13. (5) A minha sogra estava lá no Heim
No caso da entrevistada 5, ela integra o termo alemão Heim (lar) no seu discurso sem
qualquer tipo de preocupação adicional, ou seja, ela assume que o interlocutor percebe o que
ela está a dizer. Verifica-se aqui a troca de palavra por palavra sem qualquer justificação que
o explique. Um falante de português (que não dominasse o alemão) não a iria perceber.
14. (15) depois vivia numa WG
O mesmo se passa no exemplo 14. O entrevistado 14 inclui no seu discurso uma
abreviatura em alemão. Todavia aqui não se trata de uma mera troca de palavra por palavra.
WG abrevia Wohngemeinschaft que é um conceito que não se encontra tão difundido em
Portugal, trata-se de um apartamento partilhado. Assim, partindo do princípio que o
interlocutor domina ambas as línguas, enunciar WG é muito mais eficiente para o objectivo
comunicativo do que “apartamento partilhado”
15. (1) Foi uma arte de discriminação
Quando a entrevistada 1 enunciou a frase transcrita em 15, ela queria dizer uma coisa,
achou que tinha dito o que queria, mas na verdade o que disse foi outra. Na prática o que lhe
saiu foi o equivalente a “foi uma discriminação de grande nível, artística”, apesar de ter
querido dizer que “não tinha sido bem uma discriminação, fora um tipo/uma forma /uma
espécie de discriminação”. Esta diferença de interpretações deve-se ao advérbio alemão “Art”
significar “ de forma/modo/maneira”, mas ser formalmente muito parecido à palavra “arte”.
Área semântico-lexical
16. (21) as cebolas ao fim de 3 semanas em casa estão grelados estão estragados uma
coisa que eu nunca tinha experimentado
No caso do exemplo 16, observa-se a transferência do significado de Erfahrung para o
correspondente directo em português “experiência, vivência”. A utilização mental da
entrevistada 21 do verbo erfahren (cujo sentido aponta para uma experiência não literal, ou
653
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
seja, algo que se presenciou ou viu) vai resultar por analogia a “experimentar”, o que no
contexto de comida soa a “provar” em vez do pretendido “visto”.
17. (13) Se for um daqueles cursos com massas e massas de estudantes
A duplicação é frequente em português para efeitos de ênfase: rios e rios de dinheiro,
dezenas e dezenas de pessoas; em inglês também: thousands and thousands Todavia, a
escolha vocabular questionável: Menge (DE) > mass (EN) > massas (PT).
Tal como adiantado anteriormente, foi necessário aplicar mais um filtro para que a
classificação das ocorrências fosse mais eficaz. Nesse sentido, optou-se pelas categorias
propostas por Otheguy et al. (1989, 1993): switch, onde se assiste à troca de palavra de uma
língua por outra de outra; loan (empréstimo) que traz para um enunciado numa língua termos
(com forma e significado) de outra e por fim o calque, que prevê a introdução de significados
de palavras de outra língua sem a sua forma original.
Switch
18. (5) O senhor embaixador disse que einleiten umas palavras
Tratou-se do único caso único onde o verbo é sujeito a um desvio. O verbo ocupa a
posição portuguesa, mas surge no infinitivo e não no condicional. No entanto, a construção da
forma condicional em alemão pode ser feita através da utilização do verbo modal no
condicional com o verbo principal no infinitivo. Nesse caso, o verbo modal na forma
condicional encerraria a oração em alemão, ocupando o último lugar na frase.
19. (1) Basta ter uma coisa parecida com o Matura e pronto
Aqui a troca de palavras ocorre num vocábulo carregado de conteúdo cultural muito
específico. O Matura consiste no exame final do 12º ano na Áustria e é muito mais relevante
em contexto austríaco do que o equivalente em Portugal.
20. (8) Só vou ao Klo ali
O exemplo 20 apresenta uma mera troca de palavra por palavra, sendo que a palavra
alemã utilizada é muito mais curta, simples e económico do que o correspondente português
“casa-de-banho”.
Empréstimo
Dois terços dos entrevistados recorreram a esta estratégia, utilizando empréstimos de
origens linguísticas diferentes: em alemão “O meu estudo” (o meu curso> Studium); em
inglês “Muitas facilidades” (muitas infraestruturas> facilities); em italiano “Estamos a andar
para Itália” (Estamos a ir para Itália> andare).
654
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
21. (18) o plástico é plástico tudo os cartões de sumo também têm aquela caixinhas
especiais
O termo alemão Kartons é transformado no português “cartões”, uma vez que a forma
é muito mais próxima do que o correcto “pacote”. Portanto, forma e conteúdo são
emprestados a “cartões”.
22. (7) Mas no dia nacional de Portugal lá na associação
O que a entrevistada 7 estava a referir-se era ao dia de Portugal, vulgarmente apontado
simplesmente como 10 de Junho, mas o antecedente austríaco mantinha-se muito presente na
sua mente Nationalfeiertag que à letra é precisamente “o dia de feriado nacional”.
23. (17) enquanto estudava e discutia muito com amigos da universidade
24. (29) Já queria ter ido estudar no fim da faculdade < da escola
Os chamados verbos latinos em alemão que se identificam pela terminação em “-
ieren” são frequentemente fonte de confusão por se assemelharem em muito com formas
portuguesas a que correspondem outros significados: studieren vs. estudar (em alemão:
frequentar e/ou aprender na Universidade); diskutieren vs. discutir (em alemão: debater)
25. (10) O nível é melhor\ os professores são muito mais bem hmmm educados <
formados do que em Portugal
A forma inglesa educated também possível em português com o mesmo significado,
mas não é suficientemente unívoco, por poder corresponder a “alguém com boa educação,
bem criado” ou “alguém bem formado ou instruído”, daí o entrevistado ter sentido alguma
insegurança na forma “educado” e acabado por optar pelo termo mais esclarecedor
“formados”.
Calque
Foram encontrados calques em todas as categorias de palavra com conteúdo (nomes,
verbos e adjectivos).
26. (3) E está com a pressão muito baixa
Tensão arterial diz-se em alemão Blutdruck, que literalmente significa pressão do
sangue
27. (14) a coisa vai começar a descer no sentido da morte
A entrevistada 14 tinha como referente a expressão bergab/abwärts, que significa
literalmente descer a montanha ou ir em sentido descendente, estando patente a ideia de um
655
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
estado que piora, e tentou reproduzi-la fielmente em português, sem que lhe tivesse ocorrido
a expressão comum “ir por água abaixo”.
28. (7) tive dificuldades apesar de eu estar sempre divertida
Mais uma vez se verifica a sobreposição de sentidos apesar do recurso a formas
diferentes. O alemão lustig, gut gelaunt corresponderia ao português “divertida”, mas o mais
adequado no contexto seria “animada”.
Para concluir e depois da análise de todos estes exemplos, a concorrência entre a
língua materna (o português) e as outras línguas, nomeadamente o alemão, é incontornável,
sendo que a língua portuguesa apresenta sintomas de influências das outras línguas.
Embora todas as áreas linguísticas sejam afectadas, as que mais se salienta é a lexical,
sendo a menos afectada a fonológica. O segundo filtro da classificação permitiu verificar que
o peso das palavras com conteúdo lexical são as mais sujeitas a influências neste momento do
contacto linguístico, o que é sintomático do contacto ainda estar numa fase inicial e
consequentemente ainda não muito profundo. Como a comunidade é bastante recente, o
contacto entre as duas línguas ainda não dura há muito tempo e por isso ainda não se pôde
enraizar. A língua portuguesa ainda está bastante presente na vida destes falantes, no entanto,
já é notório que o português não consegue cobrir todas as necessidades que o falante tem. Se
por vezes, o falante parece conseguir determinar quando o alemão é mais eficiente, curto ou
ajustado que o português; por outras, parece ele próprio confuso, mesmo que
inconscientemente, resultando formas híbridas tanto no que se refere a conteúdo como a
forma.
Esta investigação pode assim comprovar o que se acontece / pode acontecer com as
línguas em contacto no contexto de comunidades recentes, numa primeira fase de contacto
linguístico.
Este artigo não foi escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Portugal: What Do We Know and Where Are We Going?. In: Zimmermann, Klaus (Org.),
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http://www.observatorioemigracao.secomunidades.pt/np4/paises.html?id=13
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 31 - Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades, 659-676
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p659
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O enfoque na consolidação da Língua Portuguesa (LP) como língua internacional tem sido
evidenciado nestes últimos anos. Para além de ações e iniciativas académicas, mais de caráter
nacional, geralmente em Portugal e no Brasil, destacam-se, a nível da CPLP, as duas
Conferências Internacionais sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial:
Brasília (2010) e Lisboa (2013), e respetivos Planos de Ação que, em conjunto, definem
estratégias globais para a promoção e difusão da LP.
A Formação Profissional para o ensino da LP, principalmente no espaço da CPLP, também
tem sido destacada, constando das Recomendações do Plano de Ação de Lisboa, aprovado
pelo Conselho de Ministros da CPLP.
Neste texto, apresentamos parte de um estudo desenvolvido LEIP, estrutura do CIDTFF
(UA), com o objetivo de identificar a perceção de dois grupos de universitários/futuros
professores de Português, em Cabo Verde e Portugal, sobre a difusão da LP, a sua geografia,
variedades e ainda a identidade na/pela LP. Foi utilizado um questionário, cujo tratamento de
dados se apoiou no programa informático NVivo 10.
Os resultados assinalam algum desconhecimento sobre as geografias da LP e suas variedades,
ressaltando o ‘mito’ da norma europeia. Os valores de ciência, de ciberespaço ou ainda
económico são apontados pontualmente. A identidade linguística é mais evidenciada no grupo
língua materna (LM) portuguesa, enquanto o de LM cabo-verdiana privilegia a identidade
socioprofissional, percecionando a LP sobretudo na dimensão histórico-cultural.
Torna-se premente repensar o ensino da LP, capaz de responder à dimensão plural e
internacional desta língua, sendo as Universidades locais privilegiados para o efeito.
Contextualização
Estes últimos dez anos têm sido pautados por um crescente interesse pela LP: ou
659
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
porque é língua falada por vários países e por esta via ela é veículo de comunicação e de
transmissão de conhecimentos culturais e científicos (Castilho, 2013a; Castro 2009, 2010;
Duarte, 2015), ou ainda, porque a influência de todos estes fatores consolida o potencial
económico da língua (Albuquerque e Esperança, 2010; Galito, 2006; Guerreiro e Junior,
2011; Oliveira, 2013; Reto, 2012) em Portugal e/ou nos países de língua oficial portuguesa.
Nesta sequência, este interesse têm-se materializado em múltiplas ações e iniciativas
de carácter nacional e internacional, nos diferentes países visando a promoção, projeção e
difusão da LP e, deste modo, a sua consolidação como língua internacional. Neste âmbito,
destacam-se os seguintes organismos: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa/CPLP,
Instituto Internacional de Língua Portuguesa/IILP, integrado no primeiro, e Camões –
Instituto da Cooperação e da Língua, que numa ação conjunta e concertada têm impulsionado
e liderado estas ações. Assim, destacam-se as duas Conferências Internacionais sobre o
Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, que decorreram, em 2010, em Brasília, e
em 2013, em Lisboa, resultando dois Planos de Ação: Plano de Ação de Brasília (CPLP,
2010) e Plano de Ação de Lisboa (CPLP, 2013). As referidas Conferências foram mediadas
por quatro Colóquios correspondendo a quatro Cartas:
- Carta de Luanda, na sequência do Colóquio Internacional A Língua Portuguesa nas
Organizações Internacionais, realizado em Luanda (Angola), em julho de 2010;
- Carta de Maputo, na sequência do Colóquio Internacional sobre a Diversidade Linguística
nos países da CPLP, Maputo (Moçambique), setembro de 2011;
- Carta da Praia, na sequência do Colóquio Internacional sobre a Língua Portuguesa nas
diásporas, Praia (Cabo Verde), novembro de 2011;
- Carta de Guaramiranga, na sequência do Colóquio Internacional sobre a Língua Portuguesa
na internet e no mundo digital, Fortaleza, Redenção e Guaramiranga, Ceará (Brasil), abril de
2012.
Cada um dos temas dos Colóquios corresponde a um eixo estratégico: a introdução da LP
como língua oficial ou de trabalho nas organizações internacionais, de facto, e não apenas no
papel; a diversidade linguística no espaço lusófono que corresponde a mais 300 línguas, para
além da LP, e perfaz cerca de 5% da diversidade linguística do mundo; a LP em contexto da
diáspora, com vista a uma sensibilização das comunidades para a importância de uma
Educação em Português; a LP no mundo virtual e na internet, tendo em conta que a presença
660
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
661
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
662
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O estudo empírico
3 Agradeço a disponibilidade da Profª Amália de Melo Lopes para a aplicação do questionário em Cabo Verde.
663
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Nesta rubrica analisaremos as respostas dos estudantes dos dois grupos relativamente
ao seguintes tópicos apresentados no questionário:
1. países que têm a LP com língua oficial;
2. variedades de LP e sua ‘correção’;
3. importância da difusão da LP e estratégias propostas;
4. valores globais da LP;
5. valores pessoais da LP.
Para a primeira questão, países que têm a LP com língua oficial (ver gráfico 1), as
respostas destacam três países nos dois grupos: Brasil, Portugal e Angola. O Brasil aparece
em primeiro lugar, com valores muito próximos em ambos os grupos, de seguida, surge
Portugal, com valores na ordem dos 80% (ligeiramente menos para as estudantes portuguesas,
que por lhes parecer óbvio Portugal ser um país de língua oficial portuguesa não sentiram
necessidade de o registar); e Angola em terceiro lugar, com um peso elevado, sobretudo, para
os formandos cabo-verdianos (93%). Portugal e Brasil são os países que comumente servem
como exemplificação de países de língua oficial portuguesa e de “LM portuguesa”, embora a
realidade linguística desminta este facto, sobretudo no Brasil. Também em Portugal a
realidade não é essa, para além de mais de 400 mil cidadãos estrangeiros (RIFA, 20144), numa
população de menos de 10 milhões de habitantes, com proveniências geográficas e linguísticas
diversificadas, há ainda duas línguas reconhecidas oficialmente: o Mirandês e a Língua
Gestual Portuguesa. Quanto ao peso atribuído a Angola, porventura, encontraremos uma outra
justificação (não a de ser um país de LM portuguesa): o conhecimento e contactos advindos de
uma cooperação económica, cultural e ainda académica entre estes países, pelo facto de terem
em comum a mesma língua oficial. No caso português, há a presença bastante forte de
portugueses em Angola e de angolanos em Portugal. Além do já referido, Angola e Brasil são,
com efeito, os países com maior número de falantes de LP, com uma demografia em
crescimento e desempenhando ainda um papel de relevo na economia mundial.
4 Este Relatório reporta-se ao ano em que o questionário foi passado em Portugal e também em Cabo Verde:
2013.
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100
80
60
PT %
40
CV %
20
0
Angola Brasil CV GB
Moçamb
Portugal STP
TL
5 Este grupo estagiava em quatro áreas: Português, História, Ciências e Matemática. O Mestrado em que estas
estagiárias estavam integradas foi reformulado pelo Decreto Lei 79/2014, de 14 de maio, do Ministério da
Educação e Ciência, e entrará em funcionamento no ano letivo 2015/2016, noutros m
moldes.
oldes.
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80
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PT %
40
CV%
20
0
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2012). Embora isoladamente algum destes fatores possa ter algum significado nalgum dos
grupos (veja-se o prestígio da LP em Cabo Verde), na globalidade esse valor dilui-se.
Num estudo de Mestrado realizado sob minha orientação (Henriques, 2014), estas
questões são colocadas em sala de aula, numa turma de Português, do 9º ano, a 20 alunos
portugueses, dos 14-16 anos. Os resultados não se afastam muito daqueles obtidos na
Universidade portuguesa: um predomínio dos valores históricos, socioculturais e intelectuais
da LP, não sendo valorizada a LP como língua de ciência, de poder político ou com impacto
económico. Para além do mais, a presença da LP no ciberespaço não foi atestada por nenhum
dos alunos daquela turma.
Na última questão, de resposta aberta, são analisados os valores pessoais atribuídos à LP,
como se pode visualizar no Gráfico 3:
50
45
40
35
30
PT %
25
CV %
20
15
10
0
Identid. H socioc Aprend/F. Caract. Comun. Relevân.
670
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
demonstrar uma certa descrença na LP como língua global. No entanto, para exprimir o valor
identitário (Ident.) estas jovens recorrem aos possessivos ‘meu’ (“língua do meu país”) e
‘minha’ (“minha língua”), na linha da definição de Castilho que entende a identidade
linguística como “um conjunto de intuições que se desencadeiam quando falamos ou ouvimos
falar a [LP]” (2013a:2). O valor de comunicação aliado ao facto de se tratar da língua de
trabalho abrange ainda o potencial comunicativo desta língua, tendo em conta a comunicação
no país ou no exterior (com falantes de LP). Num segundo plano, e distanciados destes dois
valores, surgem valores ainda relativos a aspetos profissionais: o histórico e sociocultural (H
socioc), assim como as características da língua (estéticas e linguísticas: romântica, doce,
bonita; “rica” semanticamente, lexicalmente e morfologicamente). Estranhamente a
aprendizagem/formação ocupa um lugar pouco expressivo, com registos de alguma
ingenuidade (“difícil de aprender (…) gostava de a conhecer melhor”), que não se coadunam
propriamente com o nível académico e profissional deste grupo (Ançã et al. 2014).
Nas respostas dos cabo-verdianos encontramos uma pulverização de valores, com
percentagens abaixo dos 50%, sendo o valor histórico e sociocultural da língua o destacado
(35,7%), seguido da aprendizagem/formação, com um peso algo fragilizado para o perfil dos
participantes (apenas 28,6%), embora se realce a importância da língua enquanto objeto de
estudo (“fundamental porque é a língua que escolhi para me formar”), e ainda os motivos de
ordem histórica e também socioculturais ligados a estas escolhas. Como diz um dos
respondentes se não dominar bem a LP “não encontro emprego…[porque é uma] língua de
prestígio e muito valorizada em Cabo Verde”. Como seria expectável, o valor de comunicação
(14,2%) neste tópico não tem particular expressão (“permite falar com os meus irmãos da
CPLP mas também conhecer a cultura deles…”), dado que se refere à relação mais subjetiva
com a LP, língua não materna, embora na questão anterior, de natureza mais objetiva, a
comunicação e relações internacionais tenham sido valorizadas. Seguem-se os valores
identitários (é a minha7 segunda língua… é daquelas que mais aprecio” e “a melhor herança
que os portugueses nos deixaram”, citando Amílcar Cabral) e, por fim, apenas um sujeito
valoriza a relevância da LP, e algumas das suas características afetivas (“…algo que nos
cativa…”) (Ançã, 2014). Atitudes de cariz afetivo em relação à LP, assim como a expressão
de alguns aspetos estéticos desta língua são encontrados noutros estudos (veja-se Lopes,
2011).
7 Destacado meu.
671
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
Destes resultados, há aspetos que merecem, com efeito, sérias reflexões mas apenas
especificaremos o seguinte: o pouco peso atribuído à aprendizagem da LP/formação para
ambos os grupos, em particular para as mestrandas portuguesas, uma vez que se encontram
em formação num Estágio Pedagógico. Talvez explicável pelo facto do perfil do curso de
Mestrado em que a área de LP não é a única área de formação (ver nota 4). Por sua vez, os
cabo-verdianos deste estudo que reconhecem a importância do domínio da LP, língua oficial
em Cabo Verde, para se obterem bons empregos e para serem bons profissionais (professores
de Português), quando solicitados em termos pessoais sobre a LP, o panorama é um pouco
diferente e mais distanciado, dado que não é esta LM destes sujeitos.
Na investigação de Lopes (2011) sobre o comportamento e atitudes linguísticas dos
cabo-verdianos sobre as duas línguas do território, os sujeitos inquiridos manifestam atitudes
positivas face às línguas, sendo vista a Língua Cabo-Verdiana como a língua da afetividade e
o símbolo mais poderoso da identidade e da cultura cabo-verdianas. No entanto, a LP também
faz parte do repertório identitário destes sujeitos, ressaltando a autora que “a perda de uma
delas [línguas] poderia significar perdas na identidade” dos cabo-verdianos (Lopes,
2011:404).
Se as línguas são símbolos de identidade e são usadas pelos falantes para marcar as
suas (diferentes) identidades, quer (etno)linguísticas, quer sociais e culturais, estas identidades
são também mutáveis ao longo da vida (Byram, 2006). Nos resultados obtidos, as marcas
identitárias do grupo ‘português’8 prendem-se sobretudo com a LP como lugar materno e de
socialização, muito embora a identidade profissional se espelhe também neste espaço
linguístico, para os cabo-verdianos é essencialmente a identidade socioprofissional que
ressalta, e também a identidade cultural através da LP que os insere numa comunidade de
falantes desta língua, mas igualmente numa aproximação a esta(s) comunidade(s) que conduz
a uma (já) outra identidade cultural (intercultural).
672
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
um de Cabo Verde e outro de Portugal. Os resultados globais deste estudo não destacam
particularmente a convicção dos sujeitos inquiridos sobre a língua que falam e que usam
profissionalmente, como docentes de LP, constatação mais evidente no grupo ‘português’.
Como dissemos anteriormente, o valor de uma língua pode resultar da conjugação de
vários fatores, como a sua posição no mercado linguístico, o seu prestígio na sociedade e no
meio académico. Cabe, prioritariamente, às Universidades o reforço e a consolidação da
internacionalização do Português, porque estas, são, sem dúvida, locais privilegiados para este
efeito, visto que é sobretudo nas Universidades que as pontes com a sociedade e com o mundo
são construídas.
O ensino e a investigação desempenham, por conseguinte, um papel preponderante na
valorização da LP, tanto em termos da sua utilização enquanto acesso aos conhecimentos e
como mediadora entre estes, como ainda como objeto de reflexão per se.
Simultaneamente, é fundamental que o poder político ‘legitime’ este reconhecimento e
que empreenda e desenvolva esforços e ações com a sociedade civil e com a Universidade,
mas sem o engajamento desta, a projeção da LP como língua internacional e língua de ciência
ficará seriamente comprometida.
Mais especificamente, importa, ainda e sobretudo, investir na Educação em Português
e na formação de professores, dentro de um outro paradigma, de abertura a uma cultura
linguística mais sólida e mais abrangente, na perspetiva de que a língua é falada e ensinada
em outras geografias, para além da local. Ora, é nesta permeabilidade à dimensão plural e
internacional da LP que a convicção de cada um deve assentar.
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Portugal, Brasil e Cabo Verde. In: Ferreira, A. M.; Brasete, M. F. (Eds.), Pelos Mares da
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Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
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Reto, Luís (Coord.). 2012. O potencial económico da Língua Portuguesa. Alfragide: Texto
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675
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
676
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 31 - Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades, 677-686
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p677
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O espaço lusófono abriga contextos cultural e geograficamente diversos que estão sendo
examinados com a devida valorização neste início de século XXI, momento em que os
falantes de Língua Portuguesa ultrapassam os duzentos e cinquenta milhões no mundo. Neste
artigo, buscamos examinar compêndios gramaticais portugueses para que tenhamos uma
dimensão historiográfica de abordagens estabelecidas em relação aos conceitos de linguagem
e cidadania constantes das políticas lingüísticas lusófonas postas pelas obras a serem
analisadas em seus discursos sócio-ideológicos.
677
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
o português como língua de “uso”, na verdade, ela seja minimamente (se tanto)
utilizada: Macau, Goa, Ceilão, Cochim, Diu, Damão e Málaca. (Brito, 2010 177).
Neste sentido, justifica-se como aspecto formador da construção da identidade
lusófona, um olhar fundado na historiografia linguística, a fim de buscar meandros constantes
de discursos portugueses, no decorrer dos quinhentos anos de contacto cultural, no que
concerne às questões formadoras dos sujeitos lusófonos. Para tanto, neste artigo,
aproximamo-nos de obras gramaticais de diferentes periodos, que nos servirão de fontes e que
serão observadas com apoio em aspectos da Análise do Discurso de linha francesa, tomando o
termo discurso como a materialização das formações ideológicas, sendo por isso determinado
por elas. O texto, por sua vez, será considerado como o lugar de manifestação consciente, em
que o homem organiza, adequadamente, de acordo com a situação contextualizadora de seu
discurso, os elementos de expressão que estão à sua disposição para veicular o seu discurso.
Buscamos verificar, com a dimensão do século XXI, como o ensino de língua
portuguesa, ao longo dos séculos, tem obedecido à ideologia do dominante, uma vez que a
linguagem do dominante é sempre a relacionada à ideologia do dominante. Tal postura,
advinda da cultura medieval, revela que as escolas monacais e eclesiais, destinadas ao clero e
à nobreza, passam a ideologia vigente, havendo a obrigatoriedade de leitura de textos
diariamente, a denominada Regra de São Bento e, por meio dela, passavam-se, ainda em
Latim, as lições de moral, princípios, costumes, tudo o que era necessário a um bom cristão e
a um bom patriota.
Os humanistas doutos, em sua conjuntura sócio-cultural influenciadora da língua,
enobreceram-na com vocábulos reaproximados das formas latinas, partindo de um étimo e
derivando mais palavras, como por exemplo: macula > malha > mancha > mágoa > mácula.
Procedimento esse que vai transformando os romanços em línguas novilatinas com suas
peculiaridades propiciadoras de um fortalecimento das novas línguas que iniciam sua
trajetória.
A reflexão que faremos, neste momento, a partir das considerações sobre o retorno às
questões clássicas que se impunham aos renascentistas, são concernentes à dialética
estabelecida entre a língua de cultura usada pela elite intelectual privilegiada - a língua latina -
e a língua de uso cotidiano utilizada pela não-elite - a língua vernacular. O italiano Dante
Allighieri, com sua frase Nobilior est vulgaris, eleva as novas línguas, as línguas novilatinas
com suas vulgarizações, ao estatuto de línguas de cultura. Observa-se, então, pela atitude
adotada, o encaminhamento para as posturas assumidas no século XVI. Assim, podemos notar
678
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
que, por um lado, notamos, até o final do século XV, ser o Latim uma língua inteligível pela
comunidade internacional, mas pronunciado de acordo com a própria língua daqueles que o
falavam; por outro lado, no século XVI, o latim já não era inteligível no oral, mas sim no
escrito.
Tal situação leva os mestres a uma atitude paradoxal, pois, segundo Buescu (1984), ao
lado da tendência de volta aos modelos clássicos na época do classicismo renascentista, havia
a atitude presencialista de valorização da língua vulgar que já era utilizada pelos autores de
prestígio em suas obras. Dessa forma, percebemos a adoção de uma política lingüística
estabelecida pelos gramáticos do quinhentismo que era voltada não só para a sistematização
das línguas vulgares, mas também para os louvores a suas próprias línguas. Assim o fizeram,
por exemplo, Antonio de Nebrija em sua Gramática Castellana de 1492, Fernão d’Oliveira
em sua Grammatica da Lingoagem Portuguesa de 1536 e João de Barros em sua Grammatica
da Lingua Portuguesa de 1540.
Quanto aos louvores, mencionamos os dois diálogos que representam a preocupação
pedagógica de João de Barros: Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem e o Diálogo da
Viçiósa vergonha. No primeiro, tem a intenção de despertar, nos meninos e moços aos quais
destina a sua obra, a admiração pela Língua Portuguesa, apontando que a nossa linguagem foi
posta em “arte”, merecendo estudos reveladores de sua importância não só por ser filha do
Latim, como também por ser a mais perfeita, sendo a mais parecida com a Língua Latina.
Apresenta, dentre vários, os seguintes atributos para a Língua Portuguesa: riqueza vocabular,
sonoridade agradável e possibilidade na formação de novos vocábulos. No segundo, tem a
intenção de despertar, no mesmo público-alvo, a atenção para questões de caráter
moralizador, alegando que os bons mestres cooperam com a boa formação dos educandos,
enquanto que os maus deixam os discípulos “danados” para toda a vida: com “vícios de alma”
e com “vícios de linguagem”. Percebe-se, então, que João de Barros era voltado para a
questão relacionada à educação como um todo: não bastava só ensinar as letras, era necessário
também ensinar as normas do bom viver e da boa conduta.
Pautados nessa preocupação com o ensino da Língua Portuguesa, num momento em
que Portugal vivia o período de política expansionista, buscando em além-mar ficar-se como
dominador, surge a necessidade de se sistematizar a língua vulgar que passava ao “status” de
língua de cultura. Dessa maneira, as línguas vulgares começam a sair da oralidade para a
fixidez da escrita. Considera-se o alfabeto latino considerado universal, observa-se o conteúdo
679
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
fônico que estava por trás daquele alfabeto e inicia-se o trabalho com a gramaticalização das
línguas neolatinas que passam a traçar o seu percurso na história. O seu ensino, entretanto,
inicia-se frágil, pois só o latim tem prevalência nas escolas.
Com as conquistas ultramarinas, surgem não somente as primeiras gramáticas das
novas línguas, como também as cartinhas, cartilhas para se ensinar a língua portuguesa por
exemplo. Ensino esse destinado não só para os nobres, mas ainda para os estrangeiros, isto é,
os colonizados que foram obrigados a aprender o português, uma vez que os portugueses
tinham o objetivo de proceder como Roma: “assim como Roma, senhorearemos o mundo
através da língua” (Fernão d’Oliveira, 1536). Sendo assim, notamos que a preocupação dos
primeiros gramáticos da língua portuguesa, assim como a dos que os seguiram, foi a de se
traçar uma política de imposição de um falar “popular”, isto é, da nova língua do Lácio que
deveria ser imposta aos colonizados da África, da Ásia e da América, no lugar do Latim,
porém pautado no falar dos homens “doutos” da época, pois o que se privilegiava era a norma
padrão culto, o que está completamente de acordo com as “velhas” idéias atuais a respeito do
ensino de língua materna a falantes nativos.
Convém observarmos, ainda, que, para Barros, o binômio Português - Latim se põe,
antes de mais nada, duma forma esclarecida e consciente em relação à realidade românica,
que vai se definir a partir desse momento. O problema das fontes clássicas para a Ortografia
Portuguesa foi constituído, principalmente, por Quintiliano, Varrão e Prisciano, pois os
gramáticos do Renascimento se depararam, evidentemente, com realidades completamente
diferentes das do Latim. Por conseqüência, o apoio aos clássicos que, nos outros capítulos da
gramática, havia sido tão forte quanto útil e eficiente, revelou-se praticamente nulo neste
aspecto, e as principais fontes clássicas gramaticais, se, dificilmente poderiam ser
abandonadas, foram submetidas a uma crítica, e a sua doutrina a inevitáveis adaptações. Por
exemplo: João de Barros apresenta uma grande inovação, que consiste na aplicação de timbre
aberto e fechado para a, que não tinha efeito em nenhuma das outras línguas, visto que o
timbre fechado de a é um dos traços do vocalismo português.
A finalidade de João de Barros, como afirmamos, foi estabelecer a Língua Portuguesa
como autônoma, independente da latina, utilizando em sua gramática o falar da época através
do que o uso ensina, e buscando a norma culta dos “barões doutos”, mas não negou que o
Português tem como língua-mãe o latim, “cujos filhos nós somos”. Possui um sentimento
patriótico de superioridade da língua portuguesa em face das outras, principalmente da
680
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
castelhana, uma vez que, entre as nações, Espanha e Portugal, sempre houve rivalidades.
Tais atitudes devem, hoje, ser objeto de reflexão para os professores de Língua
Portuguesa, que não devem estar apegados apenas à gramática tradicional (descritivo-
normativa), voltada para a norma padrão culto, mas devem considerar também a necessidade
de haver trânsito entre vários níveis de fala, estando de acordo com as situações
comunicativas em que estejam inseridos. Assim, temos como meta dar subsídios para que o
aluno, além de se comunicar no nível de linguagem adquirido em sua comunidade, saiba se
comunicar, com clareza e precisão em outros níveis, utilizando um nível de linguagem culto e
atual, compatível com aquele utilizado pela elite dominante e não aquele utilizado pelos
clássicos de séculos anteriores. Os gramáticos renascentistas pensavam em ensinar aos que
não sabiam e ajudar os que sabiam, e essa deve ser a nossa postura: encarando o indivíduo,
com seu repertório restrito, devemos, respeitando a sua língua adquirida em sua comunidade,
levá-lo gradativamente ao nível culto, mostrando-lhe as diversas possibilidades de se elaborar
um texto escrito ou oral, fazendo com que ele vivencie uma experiência lingüística em todos
os níveis de linguagem.
Para adotarmos tal posição, é necessário termos clara a idéia de que não podemos nos
basear, para exemplificação, em períodos retirados de Os Lusíadas ou dos Sermões, pois estas
obras devem ser estudadas e lidas como obras literárias inseridas em outros contextos
históricos, reveladoras de vários discursos carregados de coerções sócio-histórico-ideológicas
de períodos passados. No entanto, não devem servir como modelo para um jovem do início do
século XXI, Terceiro Milênio. Assim, antes de mais nada, é nosso dever lembrar que: “...a
escola não pode continuar, em matéria de Português, distante da língua que funciona na
vida.” (Leite, 1979)
Dessa forma, como já mencionado, desde a época da colonização, a política de
domínio dos portugueses foi impor a sua língua para, assim como os romanos, dominar os
seus colonizados. Tal postura, vigente nos séculos XVI e XVII principalmente, foi de
imposição da Língua Portuguesa, considerando-se que houve aproximações e distanciamentos
entre a Grammatica da Língua Portuguesa de João de Barros e a Arte da Gramática da
Língua mais usada na costa do Brasil de José de Anchieta, ambas do século XVI. Tem-se que
reforçar que o enfoque do século XVI, visa ao desvendamento da ideologia do dominante,
uma vez que a linguagem do dominante é sempre a relacionada à essa ideologia. Dessa
maneira, podemos afirmar que a presença dos jesuítas, mestres e catequizadores, revela que a
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Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
ideologia clerical foi tão forte que se sobrepôs à do governo português e que o poder
ideológico de um grupo age de forma mais atuante sobre o gramático do que suas próprias
convicções. Essa situação se altera no século XVIII, momento em que, com a expulsão dos
jesuítas por Pombal, inviabiliza-se a permanência do Tupi-Guarani em nosso território.
Com objetivos políticos bem marcados, os colonizadores enviaram para a nova terra
aqueles que, cooptados ao Estado, pudessem levar avante a política expansionista portuguesa,
o que faria com que a nação portuguesa se fortificasse e perdurasse em terras promissoras
recém-conquistadas. Os jesuítas, sacerdotes enviados para a catequização, fazendo parte do
aparelho ideológico do Estado e, por isso, reproduzindo a ideologia do dominante, aprendem
com os indígenas a sua língua nativa e ensinam-lhes a língua portuguesa, cumprindo, assim, a
missão de, voltando o olhar para a extensão da nação portuguesa, colaborar com sua
solidificação.
Tanto na metrópole, quanto na Colônia, com a publicação das primeiras obras
gramaticais que indicam a sistematização da língua portuguesa, o ensino da língua vernácula
passa a existir paralelamente ao ensino da língua latina. Assim, podemos afirmar que o
professor sempre foi autorizado e conclamado a exercer o seu papel como representante da
ideologia vigente em cada época, impondo uma língua normativizada pela e para a elite e
cumprindo seu papel de sustentáculo da dominação pela língua.
Em relação ao exposto, nada se modificou no século XVII, pois, segundo Bastos
(1987) privilegiando a memória, Amaro de Reboredo (Methodo grammatical para todas as
línguas, de 1619), autorizado pelo poder, propôs seu método para o ensino de todas as
línguas. Considerando-se experiente, no que tange ao ensino de línguas (Latim, Português e
Espanhol), critica a tendência da escola que, segundo ele, encaminha à cópia de palavras
isoladas acerca de vários assuntos, o que significa uma grande perda de tempo com uma
aprendizagem excessivamente lenta, e propõe, através de sua autoridade, que se estabeleçam
novos critérios para que haja uma aprendizagem efetiva num menor espaço de tempo. Julga
serem as sentenças por ele compiladas, as necessárias para qualquer leitura ou produção dos
diversos tipos de texto. Por meio do estudo da palavra isolada, segundo Reboredo, o “ganho
de palavras” é pequeno, isto é, estudar-se por intermédio de palavras fora de contexto não
parecia eficaz, enquanto que estudar palavras agrupadas em sentenças com assuntos ligados
ao aluno e pertinentes à época tornava-se eficiente, deixando o aluno apto a elaborar textos.
Também o mestre é foco de comentário de Reboredo, que pretendia facilitar o trabalho
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Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
docente com o novo método, que julgava mais eficaz e menos cansativo e demorado o que
propiciaria maior facilidade no ensino de línguas.
Em termos de ensino, podemos afirmar que o XVIII foi o século mais “iluminado”,
pois os reis desse período eram extremamente preocupados com a educação dos portugueses.
Nesse século, as reformas pombalinas de instrução pública ocupam um lugar de excepcional
significação, uma vez que Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, tentou
substituir os tradicionais métodos pedagógicos por métodos renovados de ensino. Nessa
época, houve alvarás régios que instituíram aulas de gramática grega, latina, hebraica, de
retórica, de comércio e de história. Além disso, os Estatutos do Colégio dos Nobres e da
Universidade de Coimbra representaram um esforço de atender a vontade e a opinião do povo
na direção de compreender o sentido da cultura portuguesa da época.
Mais do que um plano pedagógico, na verdade, as reformas pombalinas de instrução
pública encerram uma filosofia política, segundo Carvalho (1978), “com o objetivo de
renovação cultural entre um período de obscurantismo beato que o antecedeu, e de reação
policial, que se lhe seguiu.” Foi, portanto, um período de iluminação na história portuguesa,
em que Pombal lutou contra um Portugal jesuítico, inglês e retrógrado. Os estudos em
Portugal, sob a direção dos mestres da Companhia de Jesus, estavam obscuros e decadentes,
sem nenhuma renovação, e foi contra isso que Sebastião lutou, procurando adequar a
educação portuguesa ao momento histórico septicentista e buscando concretizar um ideal que
animou o programa, o método e os hábitos dos portugueses e das instituições de ensino
portuguesas.
A história dos fatos educacionais, como de todos os fatos humanos, está
intrinsecamente ligada às manifestações da vida sócio-ideológica, assim é que, no século
XVIII, houve a quebra da circularidade do ensino até então nas mãos dos jesuítas que
ensinavam aos futuros professores que educavam à moda dos jesuítas. Em conseqüência dessa
ruptura, novas propostas são aceitas e levadas avante. Temos, então, um mestre
comprometido com o ensino da língua culta a seus discípulos que são ainda os privilegiados,
os que têm alguma ligação com os poderosos, com a Corte e com a sociedade da época do
Reinado. No entanto, apesar da uniformização da língua e da preponderância da cultura
portuguesa, a separação entre portugueses e brasileiros era muito nítida, pois os portugueses
queriam evidentemente continuar com a posse de tão rica possessão, e os brasileiros
desejavam tornar-se independentes.
683
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
Houve uma mudança com relação ao método de ensino, por exemplo: o desejo de
basear o processo educativo no conhecimento e simpatia pela criança e um novo interesse
pela educação elementar. Tinha como objetivo o aspecto moral da educação, em que o
controle da conduta devia ser assegurado por meio das idéias, e o professor e o processo de
instrução eram exaltados pela tendência educacional da época. Os eminentes gramáticos
continuavam a ser os eminentes professores de língua portuguesa que se dedicavam também à
“gloriosa” tarefa de impor a seus alunos regras a serem seguidas para que a burguesia
dominante continuasse seu domínio perpetuando-se no poder, nos dizeres de Vogt (1980):
“sob o disfarce da sociedade comunicante, ou sob a máscara do indivíduo ideal,
modelarmente dotado deste bem comum a todos os indivíduos, que é a língua, esconde-se o
talismã ideológico da mesma atitude intelectual que contribuindo para levar a burguesia ao
poder, nele a conserva e a abençoa.”
O início do século XX é fértil em realizações educacionais. O professor é visto como
orientador de ensino, como fonte de estímulo que leve o aluno a reagir para que se processe a
aprendizagem, considerando, obviamente, as diferenças existentes entre os alunos e
propiciando diversas motivações para atender a essas diferenças. As gramáticas, por seu
turno, continuam com o mesmo papel que tinham nos séculos anteriores, isto é, servir à classe
dominante impondo as regras que devem ser seguidas, para que os indivíduos se enquadrem
no padrão culto da língua. Então os gramáticos do século XX continuam as tendências
surgidas desde o século XVI, passando pelos séculos XVII, XVIII e XIX. Podemos citar
Eduardo Carlos Pereira cuja gramática serviu ao ensino de línguas até o surgimento da NGB
na década de 50.
Pela autoridade conseguida e perpetuada através de todos os séculos, o
ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa, para falantes nativos perdura, revelando-se como
um quadro social que se estabelece na relação professor/aluno numa hierarquia funcional
herdada de uma sociedade aristocrática em que o conhecimento e a sua disseminação
constituem traços distintivos de privilégios e de respeitabilidade junto ao grupo social. Este
grupo mantém a rigidez dos padrões clássicos que continua perdurando até hoje, apesar de no
início do século ter surgido a lingüística que propõe uma nova postura com relação ao uso da
língua, a saber, não havendo mais o “certo e o errado”, mas sim o adequado e o inadequado, o
processo de comunicação passou a ser o mais importante e, em havendo entendimento entre
684
Simpósio 31 – Difusão do português: diferentes contextos, múltiplas realidades
Brito, Regina Pires de. 2010. Temas para a compreensão do atual quadro linguístico de
Timor-Leste. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010 Disponível
em: http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos.
685
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______. 2013b Sobre lusofonia. Verbum, Cadernos de Pós-graduação. São Paulo, PUC. n. 5,
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Leite, Cilia Coelho Pereira. (Madre Olivia) 1979. Semântica e sintaxe - reflexões para o
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VOGT, Carlos. 1980. Linguagem, pragmática e ideologia. São Paulo, HUCITEC; Campinas,
UNICAMP.
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SIMPÓSIO 34
A NEOLOGIA NO SÉCULO XXI
CASOS DO QUOTIDIANO
COORDENADORES
Ieda Alves
(Universidade se São Paulo)
Teresa Lio
(Universidade Nova de Lisboa)
Madalena Teixeira
(Instituto Politécnico de Santarém/Universidade de Lisboa)
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 34 - A neologia no século XXI – Casos do quotidiano, 689-700
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p689
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Uma língua permanece viva enquanto seu léxico se renova. Em contrapartida aos
vocábulos que constantemente desaparecem, outros surgem: os neologismos. Resultam
eles de mecanismos criados dentro da própria língua, ou de itens lexicais oriundos de
outros sistemas Esse segundo grupo constitui os empréstimos. Representam eles frutos
de relações sociais. Quanto ao português, dos primórdios da sua formação até o início
da Idade Moderna, recebeu enorme contribuição do árabe; na Idade Contemporânea,
recebeu grande contribuição do francês; nos tempos atuais, sua principal fonte tem sido
o inglês. Mas outro idioma surge com expressiva representatividade na contribuição ao
português, estendida ao português brasileiro. O presente trabalho tem por objetivo
enfocar a presença de tal idioma – o italiano- que, ao final da pesquisa teve o seu
quórum de empréstimos contabilizado em 1425 palavras, sem inclusão de derivados
nem de compostos. Ressalte-se que a primeira pesquisa lexicográfica brasileira
consagrada – a do professor Antenor Nascentes, de 1955 - apontava 383 vocábulos.
Era uma vez um povo que gostava de navegar (1): construía embarcações que se
aventuravam pelo mar (2), levando gente e mercadoria. Navegava até dentro de cidade
(3), numa embarcação que recebeu um nome especial (4). Ensinou essa arte a outros
povos e, de repente, viu-se suplantado por um deles (5). Tinha o desejo de cruzar o Mar
Oceano (6) e chegar a um Novo Mundo. Um de seus filhos o conseguiu (7), mas
financiado por um rei e uma rainha estrangeiros (8). Se o fato o abalou, não se fez de
rogado, porém de esperto. Acreditando no provérbio “O bom-bocado não é para quem o
1 Rua Tonelero 44/101 - Copacabana, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, CEP: 22030-002.
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Simpósio 34 – A neologia no século XXI – Casos do quotidiano
faz, mas sim para quem o come”, enviou um de seus navegadores ao continente recém-
descoberto, conseguindo dar a este (9) o nome em homenagem àquele (10).
Personagens da trama, pela ordem de entrada em cena: (1) italiano, (2)
Mediterrâneo, (3) Veneza, (4) gôndola, (5) espanhol, (6) Oceano Atlântico, (7)
Cristóvão Colombo, (8) Fernão de Aragão e Isabel de Castela, (9) América, (10)
Américo Vespúcio.
Uma relação indireta Itália-Brasil já se revelava na época medieval. Segundo
Mansur Guérios (1973), os genoveses eram peritos da arte náutica. Ele corrobora a
afirmativa de Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1964), segundo a qual foram estes os
mestres dos portugueses na navegação do Mediterrâneo. Daí termos como piloto, prova,
escolha, amainar – termos ligados à navegação, serem de origem italiana (Guérios,
1973). Afirma Sérgio Buarque de Holanda (2002): “O espírito da colonização
portuguesa é um prolongamento, através das grandes rotas do Atlântico, da ação dos
seus predecessores e, por muito tempo, seus mestres: os navegadores italianos da Idade
Média.” Eram genoveses, venezianos ou florentinos os participantes de expedições
portuguesas anteriores à descoberta da América. O próprio Cristóvão Colombo esteve a
serviço de Portugal, onde viveu de 1476 a 1484, casando-se em Lisboa, em 1477, com
Filipa Perestrello, filha de Bartolomeo Perestrello, que veio a ser donatário da capitania
de Porto Seguro.
Dentro do Novo Mundo, surge uma nova descoberta: o Brasil atrai a atenção dos
europeus. E não poderiam deixar de despertar interesse nos italianos, que para aqui
vieram, como marinheiros, cartógrafos, missivistas, informantes, colonizadores.
Presença italiana marcante aflora na cartografia do século XVI. Os primeiros
mapas que registram a existência do Brasil são italianos ou de inspiração italiana. O
mais antigo, de 1502, tem como autor Alberto Cantino, comerciante veneziano. Junto ao
desenho do litoral brasileiro, há uma inscrição que descreve fatos relativos à chegada de
Cabral e a algumas características da terra e do povo brasileiro. Encontra-se na
Biblioteca Estense, em Modena, Itália. Ronaldo Vainfas (2000) afirma que “pela
precisão cartográfica poderia presumir um descobrimento do Brasil anterior à expedição
de Cabral”. A imprensa carioca veiculou que o primeiro mapa impresso do Brasil data
de 1556, também de autor veneziano, Giovanni Batista Ramusio, que nunca esteve no
Brasil. Uma cópia de tal raridade foi leiloada na sede do Jockey Club Brasileiro, em 5
de dezembro de 2001 (O Globo, 3/12/2001).
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porque falavam dialetos. O interessante é que a Língua Portuguesa serviu para eles
como uma espécie de esperanto ou de língua franca.” (Pelusi, 2015)
Ao Brasil aportados, trouxeram os italianos seus hábitos alimentares: beber
vinho, muito vinho – e o clima frio do Sul propiciava o florescimento dos vinhedos-,
comer espaguete, polenta.
O pós-guerra importou a pizza – hoje já tornada um prato nacional; incorporada
ao cardápio brasileiro, se conservou as suas modalidades de origem – calabresa,
marguerita, napolitana – também incorporou as modificações do país onde
desembarcou: de goiabada, de banana, com açúcar e canela etc.
São Paulo exportou para o resto do País a culinária dos oriundi e o Rio de
Janeiro aceitou o desafio. Se alguns experts cariocas resistem à incorporação do tomate
seco às massas ou sanduíches (“coisa de paulista”), tal incorporação já se fez realidade
no cardápio da Cidade Maravilhosa.
A influência italiana na culinária carioca se reflete não só nos seus pratos, mas
também na proliferação dos restaurantes típicos da Bota, cujos nomes já não soam mais
como estrangeiros àqueles que os frequentam: Artigiano, Cantina Donnana,
Capricciosa, Cipriani, Da Brambini, D’Amici, Don Camillo, Duo, Fasano, Fiorentina,
Forneria São Sebastião, Fratelli, Gabbiano Al Mare, Gero, La Pastasciutta, Luigi’s,
Osteria Dell’Angolo, Osteria Policarpo, Pomodorino, Stravaganze, Quadrifoglio,
Trattoria, Trattoria del Borgo, Turino. Atualmente tal influência se projeta no grande
número de sorveterias com nomes italianos, que apregoam fabricar il vero gelato
italiano.
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5. Conclusão
Um país sem colônias. Uma língua não ensinada nos currículos escolares. E, no
entanto, uma influência cultural marcante, expressa por um léxico de mais de mil
palavras. O roteiro Itália-Brasil, de raízes no trajeto Itália-Portugal, inicia no
Renascimento e chega até os dias atuais, trazendo consigo uma grande contribuição em
diferentes áreas de conhecimento e enriquecendo amplamente o vocabulário do
português brasileiro. O empréstimo é o neologismo que deu certo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 34 - A neologia no século XXI – Casos do quotidiano, 701-709
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p701
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Madalena CONTENTE2
Maria Teresa Rijo da Fonseca LINO3
RESUMO
A neologia terminológica (neonímia) exige uma observação constante da língua por
parte de terminólogos, lexicólogos e lexicógrafos; hoje, essa análise incide sobre
diferentes tipos de corpora escritos e orais de línguas de especialidade ou de corpora
lexicográficos. A neologia terminológica e a variação participam simultaneamente na
inovação dos sistemas terminológicos e na terminologia diacrónica.
Existe um grande número de neónimos de discurso relativos a conceitos não
estabilizados ou não normalizados. Esta dinâmica conceptual observa-se nos corpora
textuais, em determinados tipos de textos, com um carácter de informação, divulgação e
prevenção de algumas doenças ou epidemias; alguns fenómenos de instabilidade
terminológica são um reflexo da instabilidade conceptual e/ ou científica em
determinados domínios da Medicina, como a epidemia Ébola.
Neologismos terminológicos são criados para denominar novos conceitos e/ou novas
particularidades cognitivas e mudanças conceptuais relativos, eventualmente, à
evolução de um conceito.
1. Introdução
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702
Simpósio 34 – A neologia no século XXI – Casos do quotidiano
que surgem, em corpora textuais, num período recente e num curto espaço de tempo; o
critério lexicográfico: verificação da dicionarização de uma nova unidade terminológica
nos dicionários especializados ou terminológicos; o critério da novidade: uma unidade é
sentida como nova pelos locutores de uma comunidade apesar de não estar
dicionarizada; o critério da instabilidade: um novo conceito é denominado
alternadamente por duas ou mais formas neológicas diferentes o que conduz a uma
variação terminológica denominativa, por vezes com um caráter sinonímico.
O neologismo terminológico é rapidamente aceite pela comunidade científica ao
contrário do neologismo da língua corrente que tem um tempo de implantação mais
longo. Por outro lado, o neologismo terminológico é registado em bases ou bancos de
terminologia, num curto espaço de tempo; mas esta rapidez de implantação e de registo
nem sempre é acompanhada pela sua dicionarização.
Os critérios de delimitação de um neologismo terminológico são, hoje, muitas
vezes, inoperantes. Assim, a fronteira entre neologismo terminológico, novo termo e
termo é muito ténue.
703
Simpósio 34 – A neologia no século XXI – Casos do quotidiano
Nesta investigação, a seleção dos neónimos e dos novos termos foi feita em
corpora de níveis de especialização diferentes:
a) altamente especializados (artigos científicos de especialistas);
b) semi-vulgarizados (profissionais de saúde);
c) vulgarizados (comunicação social).
Os textos da imprensa diária, sobre o surto da Epidemia do Ébola, foram
integrados num subcorpus que integra textos científicos vulgarizados; posteriormente,
com a ajuda do software Antconc foi efectuado o levantamento de alguns neologismos
terminológicos que apresentam fenómenos de instabilidade terminológica, como por
exemplo:
Vírus do Ébola
vírus do ébola
Vírus Ébola
vírus ébola
Ebolavírus
ébola vírus
doença por vírus Ébola doença por vírus ébola (var.BR)
doença do vírus Ébola ; sigla: DVE
doença viral de Ébola
Ebolavirose sigla : DVE
febre hemorrágica do Ébola sigla:FHE
sintomas do Ébola
transmissão do Ébola
tratamento do Ébola
cura do Ébola
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Simpósio 34 – A neologia no século XXI – Casos do quotidiano
LINO, Teresa, CHICUNA, Alexandre, GRÔZ, Ana Pita., MEDINA, Daniel. “Neologia,
Terminologia e Lexicultura. A Língua Portuguesa em contacto de línguas”, Revista de
Filologia e Linguística Portuguesa 12(2)Universidade de S. Paulo. 2010.
708
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709
SIMPÓSIO 35
LINGUAGEM E COGNIÇÃO – ASPECTOS TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS DA PERSPECTIVA SOCIOCOGNITIVA
COORDENADORES
RESUMO
Neste trabalho, apresentaremos os resultados de nossa pesquisa de doutorado sobre a
relação entre fala e gesto, vinculado aos estudos sobre linguagem e cognição por uma
perspectiva sociocognitiva. Partimos da observação da gestualidade em contextos de
produção afásica em Língua Portuguesa. Os gestos seriam complementares e/ou
compensatórios em casos em que a linguagem encontra-se alterada de alguma maneira?
Para analisar essa questão, inscrevemos nossa reflexão com base em dados audiovisuais
de interações entre afásicos e não afásicos. A referenciação dêitica foi tomada como
foco de análise por se constituir, segundo nossas hipóteses iniciais, como o lugar de
excelência em que a relação fala e gesto pode manifestar-se plenamente já que os
elementos dêiticos precisam da situação de uso para sua significação; isso aciona todo
um complexo jogo de mútua constitutividade entre diferentes semiologias.
Estabelecemos nossas bases teóricas sobre as atividades de referenciação dêitica verbais
e não verbais, analisando a questão da multimodalidade; bem como aprofundando nossa
reflexão sobre o tema desta pesquisa ao analisar trabalhos basilares sobre a relação entre
fala e gesto (Kendon, 2004; McNeill, 1992). Como revelaram nossos dados, a referencia
é dependente das condições de emprego e de uso da linguagem – os sentidos associados
aos contextos de uso dos dêiticos. Os dados de interações face a face salientam a
participação do verbal e do não verbal na construção da referência, seja pela postura no
mundo, seja pelo recurso a elementos do contexto, seja pela gestualidade – meios que
dão visibilidade às ações referenciais e interativas.
Questionamentos iniciais
713
Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
2 Nota do autor: este artigo constitui-se em recorte de minha tese de doutorado e visa divulgação dos
achados teóricos. Disponível em: http://www.iel.unicamp.br/projetos/cogites/pdf/td_vezali01.pdf
3 Podemos definir a afasia como: “(...) uma perturbação da linguagem em que há alteração de
mecanismos linguísticos em todos os níveis, tanto do seu aspecto produtivo (relacionado com a produção
da fala), quanto interpretativo (relacionado com a compreensão e com o reconhecimento de sentidos),
causada por lesão estrutural adquirida no Sistema Nervoso Central, em virtude de acidentes vasculares
cerebrais (AVCs), traumatismos crânio-encefálicos (TCEs) ou tumores. A afasia pode e geralmente é
acompanhada de alterações de outros processos cognitivos e sinais neurológicos, como a hemiplegia
(paralisia de um dos lados do corpo), a apraxia (distúrbio de gestualidade), a agnosia (distúrbio do
reconhecimento), a anosognosia (falta de consciência do problema por parte do sujeito cérebro-lesado),
etc.” (Morato, 2001:154).
714
Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
corpo. Pensando em nossa desconfiança inicial de sistemas em que a relação fala e gesto
é positiva, constituída por dois sistemas distintos, quase como uma dualidade, vários
movimentos teóricos serão requisitados por mostrarem as relações conceituais sobre
essas três realidades da expressão humana.
As expressões dêiticas verbais e não verbais, portanto, são fundamentais para dar
relevo a essa relação, mostrando que a gestualidade não é simplesmente “compensação”
para alguma lacuna do material linguístico, ou apenas um sistema acessório e/ou
suplementar. Goodwin (1995; 2003), por exemplo, argumenta que a gestualidade em
casos de afasia não é simplesmente complementar. Destaca, dentre outras coisas, o
caráter referencial constituído na relação língua e gesto.
Expressões dêiticas, contudo, não são constituídas por uma classe fechada de
palavras e/ou expressões. Geralmente, elas são classificadas de acordo com seu
funcionamento no estabelecimento das coordenadas interacionais, discursivas e
enunciativas. Segundo Cavalcante (2003:106):
Constituem expressões referenciais todas as formas de designação de
referentes, as quais se diferenciam pelo modo como indicam ao
‘coenunciador’ (...) como o enunciador pretende que ele identifique e
interprete o referente. Nessa atividade essencialmente cooperativa (...), os
‘coenunciadores’ dispõem de diversas pistas, em parte convencionadas na
própria língua, para reconhecer os diferentes espaços e ‘campos dêiticos’ (...)
em que se situam os objetos para os quais construirão uma representação
mental de referentes.
Assim, “(...) nem toda expressão referencial é anafórica ou dêitica, e essa
verdade, sozinha, já cinde os elementos referenciais em dois grandes blocos: (i) os que
introduzem novos referentes no ‘universo do discurso’ (...); e (ii) os que realizam a
continuidade referencial de objetos (...)” (Cavalcante, 2003:106). Dessa maneira, os
elementos que realizam introduções referenciais puras, sem continuidade referencial,
são classificados como expressões dêiticas. Segundo a referida autora, eles são
agrupados em quatro tipos:
a) dêiticos pessoais (apontam para os próprios interlocutores na situação de
comunicação) (...); b) dêiticos temporais (pressupõem o tempo em que se dá
o ato comunicativo ou o tempo em que a mensagem é enviada) (...); c)
dêiticos espaciais (remetem ao lugar em que se acha o enunciador, ou
pressupõem esse local) (...); d) dêiticos memoriais (indicam que o referente
tem acesso fácil na memória comum dos interlocutores e incentivam o
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
4 “Liderado pela pesquisadora Edwiges Morato, o Grupo de Pesquisa COGITES é consagrado a análises
de práticas linguístico-interacionais, em especial as que envolvem sujeitos que apresentam afasia e
neurodegenerescência, com foco em determinados processos enunciativos (como atividades referenciais e
operações 'meta': metalinguísticas, meta-enunciativas, metadiscursivas, epilinguísticas, etc.) e em
processos conversacionais (tais como gestão do tópico discursivo, semioses coocorrentes, dinâmica de
turno, atividades de correção, relação oral/escrito, estruturação da interação conversacional, etc.). No
campo dos estudos psico e neurolinguísticos, os integrantes do Grupo de Pesquisa também se dedicam à
análise crítica da semiologia da linguagem patológica (anomia, automatismo, perseveração, parafasia,
etc.) e de questões linguísticas e sócio-cognitivas relacionadas à Doença de Alzheimer. Mais
recentemente, o Grupo também se dedica à constituição e tratamento teórico-metodológico de seu acervo
de dados, derivado tanto de protocolos de estudos finalisticamente orientados (como os relativos à
pesquisa sobre metaforicidade e sobre atividades e processos referenciais), quanto de contextos
interacionais ordinários ou naturais variados. A fundamentação teórica na qual se ancoram os estudos do
Grupo de Pesquisa pauta-se sobre uma perspectiva interacionista de filiação vygotskyana. Chamada
também em linhas gerais de sócio-cognitiva, essa perspectiva incorpora aspectos socioculturais e
linguístico-interacionais à compreensão da problemática cognitiva, investindo no domínio empírico com
base na hipótese de que nossos processos cognitivos (como memória, atenção, linguagem, percepção,
716
Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
etc.), situados local e historicamente, se constituem em sociedade e no decurso das interações e práticas
discursivas.” (Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPQ: http://dgp.cnpq.br/
buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=00798014981QOS).
5 O Mestrado, financiado pela CAPES, foi realizado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FFC
– UNESP – Marília, sob orientação do Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho, Departamento de Ciências
Humanas – FAAC – UNESP – Bauru, e coorientação da Prof.ª Dr.ª Edwiges Maria Morato, do
Departamento de Linguística – IEL – UNICAMP. Defesa pública realizada em 05/12/2005, tendo como
banca: Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho; Prof.ª Dr.ª Helena Franco Martins – Departamento de Letras da
PUC – Rio; Prof.ª Dr.ª Mariana Claudia Broens – Departamento de Filosofia da FFC – UNESP – Marília.
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
constitutiva dos processos de significação. Tendo isso em vista, nosso intuito geral não
foi discutir a importância de outros sistemas semiológicos, ainda mais em casos em que
a semiologia restritamente linguística não dá conta sozinha da expressão/significação,
mas sim analisar mais de perto quais são as relações estabelecidas entre fala e gesto sem
os preconceitos e reducionismos ao linguístico que perduraram ao longo do século
passado em decorrência, dentre outras coisas, do positivismo lógico, logocêntrico e
idealista.
Explicações sobre a complexidade do corpo inserido no mundo, a
intersubjetividade emergente nas interações, a constatação de que a categorização e a
interpretação do mundo – “construção de objetos de discurso” (Marcuschi, 2007;
Mondada e Dubois, 2003) – admitem que a língua encontra-se, de algum modo,
enraizada no corpo como prática sócio-cognitiva. As teorias da percepção e das relações
entre o sensório e o motor estão sempre indicando a relevância do corpo nos processos
de significação e de comunicação.
Em relação às afasias, também somos encaminhados a questionar o fenômeno
em que lesões cerebrais acabam causando “lesões sociais” de falta de entendimento por
parte do “outro” dos quadros afásicos, isolamento social e familiar, preconceitos em
relação ao pensamento atribuído a esses sujeitos, problemas na atribuição de sentido na
expressão afásica e exclusão social.
Também podemos encontrar casos em que a gestualidade está comprometida e
não atentamos para um quadro de hemiplegia: o sujeito sendo destro e a paralisação
ocorrendo do lado direito, mesmo que essa seja uma alteração não linguística, ela
influenciará significativamente na expressividade do corpo como um todo, incluindo a
linguagem oral e escrita. Nos estudos clínicos da afasia, geralmente a gestualidade é
confundida com disfunções na motricidade, tais como hemiplegias, paresias, paralisias e
apraxias.6 Esses movimentos corpóreos são considerados como gestualidade, o que
acaba englobando todo e qualquer tipo de movimento articulado, mesmo que ele não
seja dotado de conteúdo semântico.
O gesto também é realizado por meio de um movimento do corpo, especialmente
da cabeça e dos braços. Entretanto, ele se constitui enquanto semiologia devido a
6 A afasia geralmente é acompanhada de casos de hemiplegia – paralisação dos membros de um dos lados
do corpo. O termo paresia é empregado em casos em que o movimento está apenas limitado ou fraco; a
mobilidade apresenta apenas um padrão abaixo do normal no que se refere à força muscular, precisão e
amplitude do movimento e a resistência muscular localizada. Paralisia é a perda da capacidade de
contração muscular voluntária. Os movimentos são impossíveis nessa condição. Apraxia é a alteração na
capacidade de realizar tarefas que requerem padrões ou sequências de movimento.
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7 A propósito de seu estudo sobre a língua iucateque, Hanks (2008, p. 268) mostra que “os objetos
também são referidos de forma típica, e isso também faz parte do horizonte do conhecimento prévio. Isso
fica bastante evidente pelos termos como eles são descritos, mas também se aplica ao modo como eles
são construídos por meio dos dêiticos. O simples leti’ é tão comum na referência às esposas que um
estranho que escutasse não intencionalmente uma conversa em que o termo fosse usado poderia adivinhar
que, salvo contra-argumentos, o referente era a esposa do falante. Da mesma forma, um té’elo’, ‘lá’,
simples, passa a ser associado aos lugares de praxe das pessoas, assim como lelo’ é o dêitico padrão para
referências a características do ambiente mutuamente conhecidas. Essas associações são parte não da
semântica das formas, mas das práticas nas quais as formas são empregadas. O resultado da combinação
destes dois aspectos do horizonte interno é a simplificação da tarefa de referir, pelo fato de tornar os
objetos já disponíveis antes mesmo de eles serem selecionados. Evidentemente, o lado ruim desta
simplificação é que ela torna mais difícil o controle da referência. A questão, então, não é como os
interactantes fazem para limitar a cadeia de referência a um único indivíduo.”
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01 NS tem açucar/
02 ns ˜*˜********(ol↕ET)
03 ET por favor uma colherinha
04 et ˜˜˜*********************(indmd↕ARa)
05 NS qué açucar/
06 ns ***********(ol↕ET)
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(#) (ol→MG|ca+|ol→MG&ca+|ol↕ET&ca+|ol↕ARc&MP)
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a intenção de MG, que era que NS tomasse café com adoçante. Por fim, NS agradece a
MG, dirigindo-se verbalmente e com direcionamento de olhar para ambas, ET e MG.
A produção não verbal é composta basicamente por pointings, formados por
direcionamentos de olhar (linhas 2, 6, 12, 15, 19, 21, 27 e 30) e hand shapes (linhas 4,
8, 9, 11, 14, 15 e 19). Além de conjugações indiciais, podemos observar a ocorrência de
gesto icônico na linha 17, além de vários movimentos práxicos; no entanto, esse gesto
forma uma conjugação indicial de complemento com o dêitico verbal “aqui” na linha
16; essa conjugação estabelece sujeito e predicado, além de restringir a indicação do
AR, já que o gesto icônico ilustra o movimento práxico de pegar um frasco com a mão e
despejar o conteúdo dele na xícara. Assim, podemos constatar que a relação dos
movimentos não gestuais com a espacialidade e objetos disponíveis sobre a mesa posta
para o café também influencia na referenciação dêitica em foco neste dado.
No dado é possível observar que a maioria das conjugações indiciais empregadas
é de mútua constitutividade, ou seja, apresenta o mesmo sentido na fala e no gesto
(demonstrativos e pointings). Mesmo que a sincronia estabelecida aponte para
referências concretas no mundo, as conjugações não são suficientes para significar o
que fora pretendido. Isso acontece em decorrência de que a referenciação dêitica
também é influenciada pelo quadro de atenção conjunta.
A densidade modal (cf. Norris, 2006) estabelecida pelos interactantes no dado é
diferente, e isso ocasiona os acionamentos de referenciais diferentes dos pretendidos por
seus enunciadores. Isso é verificado, por exemplo, quando ET toma “tem” com “quer”
por estar focada, principalmente, no modo verbal.
Ao analisarmos os corpos inseridos no espaço, percebemos que a fala em
interação é, também, praxeológica, o que ressalta a importância da espacialidade para a
referenciação dêitica. Os recursos multimodais requisitados na interação salientam que
se encontram estreitadas as relações entre fala e gesto. Podemos observar no dado que a
conjugação indicial em sua totalidade constitui-se como uma elocução.
À maneira de apresentar o mundo, por meio de uma linguagem ativada por
signos não verbais, permanece um aspecto importante da interação e, por esse fator, os
recursos multimodais devem ser considerados como nível significante nesta análise, já
que eles são utilizados nos processos referenciais.
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Apontamentos teórico-metodológicos
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732
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 35 - Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva, 733-750
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p733
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Rosângela GABRIEL8
RESUMO
Se por um lado a leitura é uma forma particular de usar a linguagem verbal, por outro, a
fim de compreender os aspectos cognitivos envolvidos na leitura, é necessário evitar,
por questões metodológicas, estender inadvertidamente o campo de aplicação desse
objeto de estudo (Morais, 1996). Assim, ao investigar a leitura, cumpre examinar que
aspectos cognitivos e sociais lhe são específicos e que aspectos de seu processamento
são compartilhados com a modalidade oral, ou ainda com as demais linguagens,
considerando processos de significação verbal e não verbal.
Em nosso artigo,
propomo-nos a discutir o conceito de leitura a partir de uma perspectiva sociocognitiva
(Vygotsky, 1998; Tomasello, 1999), distinguindo elementos que são intrínsecos à
aquisição e processamento da leitura, e aspectos que são compartilhados com as demais
linguagens, em especial com a linguagem verbal oral. Buscaremos ainda estabelecer
uma distinção entre processos conscientes e inconscientes envolvidos na aquisição e
processamento da leitura e da compreensão leitora (Dehaene; 2012; 2014), visando
assim trazer subsídios para o planejamento de políticas públicas e ações pedagógicas
que estejam alicerçadas nos avanços dos estudos sobre linguagem, leitura e cognição.
1. Introdução
Quando falamos sobre leitura no dia-a-dia, nossa atenção em geral está voltada
para o assunto do texto, o autor, onde o texto foi publicado, qual a perspectiva adotada
pelo autor... Poucas vezes, nossa atenção volta-se para a atividade leitora per se ou para
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
1989; Koch; Elias, 2006), ou ainda, se pensarmos na literatura como arte, cuja matéria
prima é a palavra escrita.
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A, mas em cada uma delas essa letra representa um som diferente (em algumas
variantes do português os sons são: [a], [ã], /Ә/, respectivamente, e em outras /ã/, /’ã/,
/Ә/), mas poderíamos também pensar no caso emblemático da letra “x”, que representa
diferentes fonemas em “xícara”, “táxi”, “excesso” e “exame”, sendo que esses mesmos
fonemas podem ser escritos com outros grafemas, como no caso de “churrasco”,
“acesso” e “azeite”.14
A decodificação pressupõe ainda que o leitor aprendiz tenha compreendido o
princípio alfabético, segundo o qual os grafemas representam os fonemas da língua.
Para um leitor alfabetizado, ou seja, que saiba ler em uma escrita alfabética, esse
princípio parece bastante óbvio. No entanto, se considerarmos outros sistemas de
escrita, por exemplo, o chinês e o japonês, em que os grafemas representam palavras,
conceitos ou sílabas, veremos que esse princípio não é óbvio e precisa ser explicitado às
crianças. Esse talvez seja um dos pontos a ser enfatizado e repetido como um mantra
quando se trata de ensino de leitura: o que pode parecer óbvio para o leitor proficiente
(processado, em geral, de forma inconscientemente) não o é necessariamente para o
aprendiz!
A decodificação, ainda que imprescindível, é apenas o primeiro passo a ser dado
no processo de transformação dos sinais gráficos em linguagem oral. A medida que o
leitor ganha familiaridade com a forma escrita das palavras, o processo de decodificação
vai dando lugar à conversão ortográfica (Frith, 1985), em que unidades ortográficas
correspondem idealmente a morfemas ou palavras. A leitura proficiente implica fluência
(leitura rápida, não truncada) e essa só é atingida por meio da automatização (ou seja,
transformação de um processo consciente em inconsciente) da decodificação e gradual
armazenamento das representações de palavras em sua forma ortográfica na memória de
longo prazo. Ainda que seja um processo inconsciente no leitor proficiente, este pode
lançar mão da decodificação consciente quando necessário, por exemplo, diante de
palavras novas, de difícil pronúncia ou potencialmente conflitantes (como no caso de
palavras parônimas, como delatar/dilatar/deletar).
A prática frequente da leitura e da escritura, seja com propósitos pragmáticos
(utilitários), divertimento, ampliação do conhecimento ou fruição estética (literária),
possibilita o desenvolvimento da literacia (tradução do termo inglês, literacy). Segundo
14 Não nos ocorre nenhum exemplo em português em que os fonemas /ks/, de táxi, sejam escritos com
outro grafema que não o “x”, mas talvez o leitor aprendiz seja tentado a grafar esses fonemas com dois
grafemas, como em “tacsi”, por exemplo.
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
Morais (2016), a literacia não se confunde com a alfabetização por duas razões:
primeiro, porque alguém pode saber ler em árabe, japonês ou chinês sem ter sido
alfabetizado, já que essas línguas não utilizam o alfabeto. Segundo, porque a literacia
pressupõe o uso fluente da leitura e da escrita, não como um fim mas como um meio,
uma ferramenta. Como dissemos no início deste artigo, o leitor fluente em geral não
pensa em como lê, mas sim no que lê, portanto sua atenção consciente está voltada para
a construção de sentidos durante a leitura, o que se torna possível exatamente porque a
transformação dos sinais gráficos em linguagem (oral ou mental, como na leitura
silenciosa), já está automatizada. Nesse sentido, a literacia poderia ser tomada como
sinônimo de letramento, mas esse termo ganhou no Brasil uma conotação bastante
particular, que parece negligenciar os aspectos específicos da leitura (desenvolviemnto
da consciência fonológica, identificação de letras e padrões ortográficos, conhecimento
do vocabulário e de expressões mais frequentes na língua escrita, reflexão sobre as
micro e macroestruturas características de diferentes gêneros textuais), enfatizando seu
papel enquanto prática social, como se houvesse um conflito inerente a esses dois
aspectos (Morais, 2003; Soares, 2004). Na perspectiva que adotamos, a alfabetização e a
literacia qualificadas são imprescindíveis para o uso da leitura e da escrita enquanto
prática social, e precisam ser abordadas de forma objetiva e consciente nos programas
que se propõem a incrementar a alfabetização e compreensão leitora. Voltaremos a esse
assunto na sequência deste artigo.
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
Quadro 1: Dez critérios ilustrativos da relação entre linguagem verbal oral e escrita
Linguagem verbal Oral Escrita
1. Aprendizagem sim sim
2. Compreensão sim sim
3. Interpretação sim sim
4. Linguagem + literal versus sim sim
ling. + metafórica
5. Interação falante – discurso - ouvinte [autor] – texto – leitor
6. Variação linguística + variação; + coloquial + estável; +formal
7. Léxico + repetição; - diversidade + diversidade; + densidade
8. Sintaxe + orações curtas; + orações subordinadas; +voz
+ ordem direta; passiva; +ordem inversa
9. Conhecimento prévio Temas de domínio comum Maior abrangência temática
10. Tradução dos sinais visuais
em linguagem NÃO SIM
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
15 A literatura especializada na área de leitura cunhou o termo poor readers para denominar os leitores
com dificuldades de leitura. Na falta de um termo sucinto em português, adotamos aqui a tradução literal
da expressão, leitores pobres, sem que essa faça referência ao estatuto socioeconômico do leitor mas sim
ao seu desempenho em leitura.
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
com relação às variantes dialetais da linguagem oral usadas por grupos cultural e
socioeconomicamente desfavorecidos, que distanciam-se daquelas usadas nos textos
escritos, representando assim um obstáculo à compreensão.
Os estudos e reflexões apresentados nesta seção reiteram a intrínseca relação
entre linguagem oral e escrita, ao mesmo tempo em que as distinguem. A leitura é uma
criação cultural, como referido no início deste artigo, mais ainda não disponível a todos:
há povos ágrafos, há adultos analfabetos em sociedades letradas e há crianças que não
compreendem o que leem, mesmo depois de anos de escolarização. Se, de um lado,
aprendemos a linguagem oral a partir da interação com outros seres humanos,
adquirindo inicialmente a variante linguística utilizada pelo grupo familiar, a
aprendizagem da linguagem escrita requer, além da exposição a textos escritos, de
instrução explícita, consciente e sistemática nos vários componentes da linguagem
(fonológico, semântico, sintático, pragmático), como ilustrado no Quadro 1. Ao mesmo
tempo, um diagnóstico preciso do tipo de dificuldade apresentada pelo leitores pobres é
altamente desejável, para que se possa planejar intervenções qualificadas, que atendam
às necessidades das crianças em risco de se tornarem leitores pobres ou que já
apresentem dificuldades de leitura cristalizadas.
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
todas as crianças possam usufruir desse prazer também de forma autônoma, e não
apenas ao ouvir a leitura feita por outrem, é necessário desenvolver as competências
necessárias para a decodificação rápida e fluente, a ampliação do vocabulário e das
construções linguísticas. Além disso, a leitura pode ter outros objetivos, tão nobres
quanto o prazer: a busca de informação, de conhecimento, o desenvolvimento do
raciocínio.
A falta de reflexão sobre os aspectos conscientes e inconscientes da leitura e
sobre a complexa relação entre as modalidades oral e escrita da linguagem fica evidente
na fala dos professores alfabetizadores, que se dizem preocupados com os alunos que
apresentam dificuldades na aprendizagem da leitura e compreensão textual, mas ao
mesmo tempo sentem-se desamparados, sem saber de que maneira auxiliá-los. Essa
situação é especialmente dramática no terceiro ano do ciclo, que recebe crianças com 8
anos, muitas das quais ainda não automatizaram a decodificação fluente,
comprometendo portanto o avanço no processo de aprendizagem por meio da leitura e
escrita. Parece-nos bastante injusto e pouco eficaz postergar a avaliação das
competências desenvolvidas ao longo do ciclo para o terceiro ano, quando na verdade o
diagnóstico precoce das dificuldades (reconhecimento de palavras, pouco domínio das
variantes mais formais da língua, lacunas em conhecimentos específicos) poderia
instrumentalizar professores e comunidade escolar para a intervenção precoce e
concomitante ao longo dos três anos do ciclo, deslocando o foco da atenção da questão
de reprovar ou não a criança ao longo desse período para a questão mais fulcral: que
tipo de intervenção pedagógica (ou clínica, quando for o caso) pode ser oferecida para
que todos sejam capazes de ler? Ou ainda, parafraseando o belo slogan do programa
americano, para que nenhuma criança fique para trás?16
Agradecimentos
16 Alusão ao programa instituído pelo governo americano No child left behind. (USA, 2001).
746
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Simpósio 35 - Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva, 751-768
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p751
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Pretendemos mostrar que as projeções, como a analogia e a metáfora, são utilizadas em
larga escala na maioria dos gêneros que são produzidos, inclusive nos “não literários”.
Nosso corpus é composto de: títulos de matérias jornalísticas, redações de exames
vestibulares e memes, que são os principais gêneros a que estão expostos os alunos do
Ensino Médio. A hipótese que postulamos é que as projeções, frequentes em muitos
gêneros, têm importante função argumentativa. Acreditamos, também, que tais textos
são consumidos justamente por conta das projeções contidas neles, já que elas tornam
tais textos mais atrativos e podem significar muito, dizendo pouco. Além disso,
acreditamos que a percepção de tudo isso pode ajudar, consideravelmente, a
competência dos estudantes em interpretação de textos e até em produção. Objetivamos,
portanto, compreender a funcionalidade e os efeitos de sentido das projeções utilizadas
nos textos escolhidos e verificar como o domínio e a consciência de tais conceitos pode
ajudar os alunos a compreender melhor os textos que os circundam e produzir textos
mais bem escritos. Esses textos estão sendo analisados à luz da Moderna Linguística
Cognitiva e, para tanto, foram utilizadas a Teoria da Integração Conceptual (Blending)
proposta por Fauconnier e TURNER (2002), TURNER (2014), a Teoria da Parábola,
proposta por TURNER (1996), considerações sobre Analogia propostas por
HOFSTADTER, D. & SANDER, E. e, também, em termos funcionais, o princípio da
“presença” proposto por PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA (1996).
751
Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
Metaphors we live by, de Lakoff e Johnson (1980) que as projeções passaram a ser
vistas de outra forma, como figura de pensamento existente em nossa mente.
Seria o fato de estarem no pensamento, principalmente a metáfora, que faria com
que elas fossem explicitadas pela linguagem. Dessa forma, elas não mais seriam
pensadas como uma mera questão de escolha, ou de estilo.
Muitos anos se passaram desde a publicação de tal obra, entretanto, em muitos
lugares e no senso-comum, ainda prevalece a ideia de que tais projeções seriam típicas
apenas do discurso literário, não tendo espaço nos gêneros que não o são.
Nosso trabalho visa a endossar a tese de que tal presença, independentemente do
gênero em questão, é real e recorrente, conforme anunciado há tanto tempo. Além disso,
pretendemos refletir sobre qual é a funcionalidade desse uso nos gêneros específicos
que escolhemos para análise, que são: Títulos de matérias jornalísticas, Redações de
exame vestibular e Memes, todos extraídos de suportes digitais, como a Rede Social
Facebook e o site da Instituição FUVEST (www.fuvest.br).
Muito se fala e se vê a linguagem metafórica sendo usada em textos literários ou
afins. Entretanto, já que acreditamos ser a analogia e a metáfora onipresentes e muito
usadas nos discursos que nos circundam e que produzimos, resolvemos então checá-las
em textos que são primordialmente rotulados como “objetivos”, principalmente como os
Títulos de Matérias Jornalísticas, e ver se há espaço para esse tipo de estratégia que, de
acordo com o senso comum, estaria mais para a subjetividade de um texto literário.
Pode parecer, à primeira vista, um contrassenso incluir em um corpus gêneros
tão diferentes, mas isso é fruto da visão sistêmica ou contextual que assumimos, tendo
como objetivo estudar tal tema em seu uso por alunos do ensino médio e candidatos ao
ensino superior (vestibulandos).
Vejamos: os vestibulares da maioria das universidades brasileiras, entre as quais
se contam as paulistas, que é o estado onde se situa nossa universidade e onde
exercemos nossa carreira docente, exigem, na prova de redação, que os candidatos
sejam capazes de ler e interpretar coletânea de textos, a maioria deles jornalística.
Exige-se, também, que eles sejam capazes de argumentar defendendo seus
pontos de vista. Por outro lado, esses jovens vivem, atualmente, imersos na internet,
onde o Facebook ganha lugar de destaque.
A decisão de trabalhar com tais gêneros tão heterogêneos, portanto, é mais ou
menos como juntar numa gôndola de supermercado vinhos, queijos, azeitonas e frios.
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
Sabe-se que o conceito de gênero textual nasce com Bakhtin (1953; 1973).
Entretanto, nas últimas décadas tal conceito é muito discutido, tanto dentro da academia
quanto nas instituições de ensino básico, e há uma certa urgência manifesta de se adotar
essa perspectiva para o ensino.
Marcuschi, pesquisador brasileiro sobre esse assunto, um dos mais importantes
da atualidade, deixa claro, em seus escritos, inclusive, que “O estudo dos gêneros
textuais não é novo, mas está na moda” (2008:147).
Diz ele a respeito desse assunto:
[...] os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam
padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições
funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na
integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas; [...] são
entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em
designações diversas, constituindo em princípio listagens abertas. [Assim] os
gêneros são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica
e socialmente situadas. (Marcuschi, 2008:155, grifo nosso)
De acordo com Abreu (2008), há infinitos gêneros e cada um tem suas
convenções e regras. Estudar tais convenções, inclusive, está entre as indicações dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o trabalho nas salas de aula do Brasil.
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18 No original: Language can be used to create scenes or frames of experience, indexing and even
constructing a particular context (Fillmore 1982). In other words, language use can invoke frames that
summon rich knowledge structures, which serve to call up and fill in background knowledge. (Evans and
Green, 2006:11)
19 No original: In summary, we’ve seen that not only does language encode particular meanings, but also
that, by virtue of these meanings and the forms employed to symbolize these meanings, which constitute
part of shared knowledge in a particular speech community, language can serve an interactive function,
facilitating and enriching communication in a number of ways. (Evans and Green, 2006:11)
20 No original: One proposal concerning the organisation of word meaning is based on the notion of a
frame against which word-meanings are understood. This idea has been developed in linguistics by
Charles Fillmore (1975,1977, 1982, 1985). Frames are detailed knowledge structures or schemas
emerging from everyday experiences. According to this perspective, knowledge of word meaning is, in
part, knowledge of the individual frames with which a word is associated. A theory of frame semantics
therefore reveals the rich network of meaning that makes up our knowledge of words (Evans and Green,
2006:166)
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interpretação de maneira bem simplificada seria: ir para frente é bom, e ficar parado, ou
ir para trás é ruim, e algumas pessoas atrasariam sua vida, portanto, livre-se delas.
O pensamento analógico se constrói entre a ideia de progredir = ir para frente e
regredir = voltar para trás.
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informação que não está contida em nenhum dos inputs. Em outras palavras: o blend
deriva de uma estrutura que não está contida em nenhum dos inputs.
Outros exemplos comuns de “blend” em nosso dia a dia:
Parentesco: minha tia / irmã da minha mãe.
Profissão: Neymar / o jogador do Barcelona.
Ciclo do tempo: A primavera vai chegar de novo. (Não se trata de uma
primavera anterior, mas de uma nova primavera. Mesclamos num “blend” todas em
uma só). O museu da TAM fecha às 17 horas. (Não é apenas hoje. Mesclamos, todos
os dias, comprimindo-os num dia só)
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
E qual a relação de tudo isso com o dia a dia na sala de aula? Esboço de sugestões
didáticas que contribuirão para um melhor desempenho em leitura e escrita
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É perceptível, portanto, que Koch assume aqui a importância dos frames para a
compreensão textual. Assim, ela conclui a questão a respeito da importância do
contexto:
O contexto é, portanto, um conjunto de suposições, baseada nos saberes dos
interlocutores, mobilizadas para a interpretação de um texto. Assumir
esse pressuposto implica dizer que as relações entre informação explícita e
conhecimentos pressupostos como partilhados podem ser estabelecidas [...]
por meio de estratégias de “sinalização textual”, por intermédio das quais o
locutor, por ocasião do processamento textual, procura levar o interlocutor a
recorrer ao contexto sociocognitivo. [...] O texto é a confirmação de que a
consideração ao contexto linguístico ou co-texto , ao contexto da situação
mediata e imediata e ao contexto sociocognitivo faz com que nós, leitores,
rapidamente, explicitemos as informações apenas sugeridas. (Koch,
2006:64 – grifos da autora e nossos)
Com base nessa ideia de que uma palavra sempre está associada a um frame,
buscamos perceber em que medida os conceitos e sentidos pré-existentes à leitura de
nossos alunos podem ajudá-los quando dessa atividade.
Partindo de todas essas considerações sobre leitura e construção de sentidos,
acreditamos ser interessante que aconteça, inicialmente, o exercício de Interpretação
Textual que terá por objetivo verificar a capacidade que os alunos têm de entender as
analogias, metáforas e projeções presentes.
Em seguida, explicitar as estratégias argumentativas encontradas nos textos em
questão, de maneira a explicitar a construção da argumentação dos alunos dentro dos
gêneros pesquisados, pode também, fazer com que o estudante-leitor perceba em que
medida tais projeções realizam seus papeis argumentativos, mesmo em gêneros que, por
sua natureza, não o são argumentativos.
O raciocínio sobre a funcionalidade de tais projeções torna-se uma atividade
frutífera para o momento, na medida em que criticamente, o leitor pode avaliar os
papéis que adquirem nos textos.
Considerações finais
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Simpósio 35 – Linguagem e cognição – Aspectos teóricos e metodológicos da perspectiva sociocognitiva
textos que nos circundam, e assim, também pode contribuir para a formação do
professor com o objetivo de que ele possa incentivar seus alunos a interpretar de
maneira mais plena os textos que os circundam e escrever textos mais bem escritos e
argumentativamente fortes.
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768
SIMPÓSIO 36
A QUESTÃO DA(S) LÍNGUA(S) PORTUGUESA(S):
ENTRE O INSTITUCIONAL E A MEMÓRIA DO FUTURO
COORDENADORES
RESUMO
Tendo como premissa que as novas relações sociais na rede eletrônica (Facebook,
Youtube, Whatszap) também se configuram como modo de circulação de políticas
linguísticas e de saberes sobre as mesmas, o objetivo deste trabalho é compreender o
funcionamento de um espaço de discussão constituído por diferentes leituras sobre os
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), especificamente no
que se refere às questões sobre “Linguagens, Códigos e Tecnologias” em circulação na
rede de compartilhamento de vídeos do Youtube. Para a análise trazemos a questão das
políticas linguísticas em documentos oficiais que regem a língua portuguesa em relação
ao discurso dos professores, da mídia impressa e eletrônica e dos instrumentos
linguísticos de ensino (gramáticas), bem como recortes de videoaulas que circulam no
Youtube para “preparação” de “Vestibulandos Digitais” (VD) do Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM) no Brasil. Por estes vídeos, buscamos compreender como se
produz, nesse espaço digital, um discurso de suposta autoridade de transmissão de um
saber mediador – e que se pretende representativo de competências e habilidades para
conduzir o candidato ao “acerto” - entre os discursos do PCNEM e o das provas do
ENEM.
1. Introdução
771
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
relógios, de televisões e essas práticas cada vez mais demandam por interpretação
(Orlandi, 2000) sobre os modos como os sujeitos, na/pela língua, se posicionam frente
às constantes inovações. A proposta deste trabalho partiu de resultados de uma pesquisa
sobre os modos como os jovens hoje se relacionam com a lei simbólica, em uma
sociedade que cada vez mais se organiza em redes, desenvolvida no projeto de pós-
doutorado O brasileiro hoje: língua, cultura e novas relações sociais, supervisionado
por Bethania Mariani, na Universidade Federal Fluminense.
Desse projeto, tivemos algumas ramificações de pesquisa, dentre as quais,
propomo-nos a analisar como as políticas linguísticas para a promoção e difusão da
Língua Portuguesa definem diretrizes e metas para o ensino-aprendizagem nas escolas,
assim como as maneiras com que essas diretrizes estão sendo interpretadas na mídia
eletrônica audiovisual, por canais do site de compartilhamento de vídeos, o Youtube.
Considerando a problemática da midiatização das políticas de ensino-
aprendizagem da Língua Portuguesa no espaço digital, consideramos que as relações
sujeito, políticas de língua(gem) e tecnologia são sustentadas em um imaginário sobre a
língua do Brasil que vem se atualizando nos manuais de ensino dessa língua. Imaginário
esse que se propaga por uma memória de colonização linguística (Mariani, 2004),
repetindo um pré-construído de que a gramática é falar e escrever corretamente, no
qual a noção de Língua Portuguesa e de Manual de Gramática se (con)fundem (Dias,
2012).
Para a análise trazemos a questão das políticas linguísticas em documentos
oficiais que regem a língua portuguesa em relação ao discurso dos professores, da mídia
impressa e eletrônica e dos instrumentos linguísticos de ensino (gramáticas). Com esta
proposta, incluímos uma análise de videoaulas que circulam no Youtube para
“preparação” de “Vestibulandos Digitais” (VD) do Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) no Brasil. Por estes vídeos, buscamos compreender como se produz, nesse
espaço digital, um discurso de suposta autoridade de transmissão de um saber mediador
– e que se pretende representativo de competências e habilidades para conduzir o
candidato ao “acerto” - entre os discursos do PCNEM (Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio) e o das provas do ENEM.
772
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
773
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
que A e B atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio
lugar e do lugar do outro”. Os estudos discursivos, no Brasil, são desenvolvidos por Eni
Orlandi, tomando por base a noção de discurso de Michel Pêcheux, dedica-se à
discussão sobre o discurso pedagógico e considera-o em três possíveis modos de
funcionamento: o discurso lúdico, o discurso polêmico e o discurso autoritário. Essas
distinções têm por base o objeto do discurso (referente) e os interlocutores
(participantes) e seus funcionamentos se dão por dois processos discursivos – paráfrase
e polissemia – definidores da tensão que produz o texto (Orlandi, 2011:15). Essa tensão
é atualizada na e pela linguagem, bem como é a linguagem que media a relação entre as
imagens que os interlocutores fazem de si e do outro, bem como as imagens acerca do
objeto do discurso no mundo.
Considerando os processos discursivos e as formações imaginárias atravessados
pela linguagem e pela definição do discurso polêmico Orlandi (2011:15), teríamos uma
possível não entrada do aluno na posição de interlocutor ao tentar dominar o objeto do
discurso, pois, na polêmica se “mantém a presença do seu objeto, sendo que os
participantes não se expõem, mas ao contrário procuram dominar o seu referente,
dando-lhe uma direção” (Orlandi, 2011:15). Nas tentativas de dominação do objeto do
discurso, o participante relaciona-se com uma imagem produzida na tentativa de colocá-
la em evidência sobre as demais. O discurso polêmico é um espaço de disputas em que a
relação com o sentido se dá pelo controle da polissemia.
Enquanto que no discurso lúdico o objeto é reduzido a coisa e no discurso
polêmico há uma tentativa de posse do objeto, no discurso autoritário o objeto está
ocultado pelo dizer ou silenciado. De um modo geral, segundo Orlandi (2011), o
discurso pedagógico (DP) se insere no discurso do tipo autoritário, em que a polissemia
é contida e pode ser definido da seguinte forma:
o DP aparece como discurso do poder, isto é, como em R. Barthes, o discurso
que cria a noção de erro e, portanto, o sentimento de culpa, falando, nesse
discurso, uma voz segura e auto-suficiente. A estratégia, a posição final,
aparece como o esmagamento do outro. Nesse sentido poderíamos dizer que
A ensina B = A influencia B (Orlandi, 2011:17).
O ensino se atualiza no discurso pedagógico por relações hierárquicas de poder,
em que o sentido se produz como unívoco, contido no lugar de representação de A
como sujeito do suposto saber. Há uma política de ensino pautada em um exercício
hierárquico de poder da metrópole sobre a colônia se dá pela produção de um discurso
774
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
autoritário e pela imposição de noção de erro na memória do país colonizado. Junto aos
sentidos de legitimação da língua portuguesa como oficial e obrigatória no Brasil são
produzidos os sentidos de que só pela gramática é possível de não se errar na nossa
língua (Dias, 2012).
Na contemporaneidade, os modos de ensino da gramática estão sendo
reformulados em manuais didáticos, cursos na televisão, cursinhos pré-vestibulares e
mais recente as videoaulas no espaço digital, ou seja, na Internet. Considerando as
mudanças no sistema de seleção para ingresso no ensino superior brasileiro, em que
cada vez mais universidades vem adotando o ENEM (Exame Nacional do Ensino
Médio), nossa proposta para este trabalho é compreender como e o que é compartilhado
pelo site do Youtube. Dito de outro modo, interessa-nos, particularmente, o modo como
as videoaulas de Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias estocadas no Youtube põem
em circulação saberes que se autorizam representativos das políticas linguísticas. Nesse
sentido, tomamos as competências e habilidades constantes de documentos oficias do
ENEM como eixo norteador para analisar as tensões que se materializam no discurso
desses professores. Desse modo, ressaltamos que a LDB/Resolução nº 03/98 definem
conhecimentos que as disciplinas recortam e as competências e habilidades a partir de
três áreas - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática
e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias – trabalhadas em uma
perspectiva interdisciplinar.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais, cuja base legal está na reformulação
curricular do Ensino Médio a partir da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei
9.394/96, principalmente no que se refere ao “aprimoramento do educando como pessoa
humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico” (PCN, 1997) imprimiram mudanças significativas nas políticas de
ensino de língua a partir da discussão que propuseram acerca do aprendizado de Língua
Portuguesa a partir de seu objeto de conhecimento – a língua que se fala fora da escola -
, com o objetivo de inserir o aluno no processo ensino-aprendizagem enquanto sujeito
de língua(s), pela redefinição dos sentidos de língua portuguesa.
Pode-se considerar o ensino e a aprendizagem de Língua Portuguesa na escola
como resultantes da articulação de três variáveis: o aluno, a língua e o ensino.
O primeiro elemento dessa tríade, o aluno, é o sujeito da ação de aprender,
aquele que age sobre o objeto de conhecimento. O segundo elemento, o objeto
de conhecimento, é a Língua Portuguesa, tal como se fala e se escreve fora da
escola, a língua que se fala em instâncias públicas e a que existe nos textos
775
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
3. Perspectiva teórico-metodolódica
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
margens nas quais o intérprete se coloca como um ponto absoluto, sem outro nem real,
trata-se aí de uma questão de ética e política: uma questão de responsabilidade, ao
mesmo tempo em que ressalta, que não há identificação plenamente bem sucedida.
Os documentos a interpretar, nesse sentido, se inscrevem em filiações e não são
produtos de aprendizagem. Dito de outro modo, “as coisas-a-saber” coexistem com
objetos a propósito dos quais ninguém pode estar seguro de “saber do que se fala”
(Pêcheux, 1990). O que está aí vinculado de forma constitutiva é a ética e o político nos
gestos de interpretação, que excluem o sujeito dos processos de identificação pela
linguagem e pela história; o VD e seus próprios gestos de interpretação e produção de
certos sentidos, portanto.
Para o desenvolvimento desta análise, realizamos uma busca no site do Youtube
a partir da denominação ‘ENEM Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias’. Dentre os
vídeos que obtivemos, selecionam os três com maior audiência, ou seja, com mais
visualizações e fizemos a transcrição desses vídeos. Em site como o do Youtube, cada
vez mais temos novas práticas discursivas materializando diferentes maneiras de se
produzir sentidos pelas ferramentas de compartilhamento. O discurso audiovisual, em
que constam um número imenso de visualizações, que imagens produzidas pelo sujeito
na posição de autor(idade) do saber sobre a LTC estão em tensão com as imagens do
sujeito leitor, nesse caso, podendo ser o aluno ou mesmo outro professor? Há um
compartilhamento de qual imaginário sobre o saber?
Partindo de um esquema proposto por Orlandi (2011) sobre a comunicação
pedagógica, temos:
778
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
Educação, toda prova de redação de noventa e oito pra cá, foi pautada, a
partir dos chamados temas transversais. (Prof. 1)
Sd.1.2- Você sabe que das cento e oitenta questões dividas em áreas de:
ciências da natureza, ciências exatas, ciências humanas e linguagem,
códigos e suas tecnologias, essas cento e oitenta questões são gestadas a
partir de um documento que traz as chamadas matrizes, com as
competências e habilidades que nada mais são na verdade nada mais do que
aquelas ideias que vão nortear a origem e o espírito da sua prova. (Prof. 1)
Sd.1.3- Veja, dentro do documento liberado pelo Ministério da Educação,
com as matrizes de referências que orientam esta prova no nosso caso de
Linguagem, Códigos e suas Tecnologias, a competência um e a competência
nove, tratam de um mesmo elemento. (Prof. 1)
Sd. 1.4- Eu vou pedir que você preste atenção comigo porque eu vou
acompanhar com você, vou ler com você, qual é a competência número um
que está em jogo então, e que vai mover aí, o espírito de muitas questões que
você vai resolver nesta prova. (Prof. 1)
Sd 1.5- Se nós pararmos e prestarmos atenção, no nome, na nomenclatura
que leva essa prova, já nos deixa bem clara a noção que vai permear, na
verdade, a matriz de referência do ENEM, e todas as habilidades que
vestem a nossa prova. (Prof. 3)
Neste primeiro grupo, foram regularizadas referências a órgãos ou instâncias
institucionais que funcionam como autoridade que legitima a interpretação dos
professores quanto à confecção da prova e suas questões. Assim, o Ministério da
Educação, ENEM, um documento, matriz de referência do ENEM, competências e
habilidades, vão pautar, gestar, orientar, permear, pontuar, mover, vestir a prova, o
que estabelece uma relação de dependência entre os documentos e ‘o’ saber necessário
para resolvê-la. Portanto, o professor que se inscreve nesta posição se pauta nos
documentos oficiais e produz uma – entre outras – imagem de que sabe como a prova é
elaborada, gestada, configurada.
Esta prova - ainda que os documentos oficiais tenham reconfigurado os saberes
que a constituem, a partir de uma perspectiva interdisciplinar - ainda é nomeada pelos
professores 1, 2 e 3 como ‘Língua Portuguesa’, como podemos compreender na análise
do Grupo 2.
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No discurso dos três professores comparece a interpretação que eles fazem das
habilidades e competências. Eles centram no conteúdo relacionado às Tecnologias da
Comunicação e da Informação indicando que há um saber a ser revelado. Mais do que
isso, há uma relação de dependência entre o saber já disponibilizado pelo aluno e o que
o ENEM vai valorizar, cobrar. Se o VD tem o saber, ele resolve / entende; a prova. Do
mesmo modo, o Prof. 3, que se inscreve em uma mesma posição discursiva, centra-se
nos conceitos/conteúdo que o ENEM vai abordar.
4.1- Se você compreendeu isso você resolve tranquilamente a prova do
Enem. (Prof. 2)
4.2- E se você entender essa frase você entende a prova do Enem. Nessa
frase ele fala o seguinte: Ninguém vai a praia de vestido longo e terno e
gravata. E ninguém vai a uma palestra de biquíni e sunga. Assim como o
comportamento humano, a língua tem se adequar ao contexto. Certo?
Pronto! Você resolveu a prova do Enem! (Prof. 2)
4.3- Agora, é verdade também, que se você souber alguns detalhes, ligados
às competências e habilidades que pontuam as questões e também a
redação, o exame de redação, vai ficar muito mais fácil você encarar e
resolver essas questões na prova. (Prof. 1)
O Prof. 2 se inscreve em uma posição discursiva em que se considera o tema
central como Gramática. O saber a ser revelado se produz pelo que deve e não deve ser
considerado como Gramática pelo ENEM, já que, em seu discurso contraditório, o Prof.
2 vai intitular sua aula como Gramática. Contudo, ao mesmo tempo diz que o ENEM
não cobra Gramática.
4.4 - Vocês aprenderam isso em algum momento da vida. Pois bem isso cai
no ENEM? Não. Tá então porque você está fazendo tudo isso se não cai?
Porque eu vou te explicar o que cai em relação a isso. Variação Linguística.
(Prof. 2)
4.5- Bom, o ENEM não vai perguntar pra você se fixo, a transcrição
fonética de fixo, de fixo ne assim, é fixo assim que tem quatro letras e cinco
fonemas? Isso aí quem pergunta é vestibular da UEMG. (Prof. 2)
4.6- Que que o ENEM vai cobrar em relação a essa fonética e fonologia?
Gente, o ENEM trabalha com a língua falada e com a língua escrita nas
suas provas. (Prof. 2)
4.7- Então o ENEM, ele vai trabalhar a fonética e ortografia, trabalhando
com vocês o quê? O contexto de tradução.
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
4.8- Quando ele pergunta assim: Lógico que o ENEM não vai usar a
palavra semântica, mas o significado da palavra no texto, ele vai estar
trabalhando isso. (Prof. 2)
4.9- Então o ENEM, ele vai trabalhar a fonética e ortografia, trabalhando
com vocês o quê? O contexto de tradução.
4.10- Quando ele pergunta assim: Lógico que o ENEM não vai usar a
palavra semântica, mas o significado da palavra no texto, ele vai estar
trabalhando isso. (Prof. 2)
As perguntas possíveis de serem elaboradas pelo ENEM, pela UEMG, ou
impossíveis de serem elaboradas, nesta posição discursiva, giram em torno do ‘como’ a
gramática vai ser cobrada (o ENEM não vai usar a palavra x; vou explicar o que cai em
relação a isso; o ENEM trabalha com x; o ENEM trabalha com x; trabalhando com
vocês o contexto; o ENEM se baseia em).
Neste grupo, é discursivizada uma aula em que o professor toma o lugar do VD.
As marcas linguístico-discursivas pronominais a gente; nós; nossa materializam,
contudo, não apenas uma ocupação desse lugar, mas, com a análise de Indursky (1997),
podemos também compreender em nesta família parafrástica um embaçamento do
sujeito do discurso.
Sd 5.5- Olha antes da gente discutir quais poderiam ser então alguns dos
aspectos que poderiam ser levantados nas questões, queria te mostrar uma
coisa. (Prof.1)
Sd 5.6- Quer dizer, a gente consegue diminuir as distâncias que existem
entre as pessoas, entre os povos, entre os países, nesse sentido, muda
também nossa relação com o tempo. E que afinal de contas a gente vê as
coisas fluindo muito mais rapidamente (...). (Prof. 1)
Compreendemos que a gente (sd 5.5) e queria (sd5.5), na mesma sequência
discursiva, constrói um referencial discursivo que remete tanto a um sujeito composto
professor + aluno (a gente discutir; se 5.5), quanto ao professor que é quem vai mostrar
uma coisa (sd. 5.5) ao aluno e, enfim, é quem vai indicar os aspectos que poderiam ser
levantados (sd 5.5), ou seja, não há discussão (sd. 5.5).
Quando consideramos o disposto na competência número 9 mediante o que se
materializa no discurso do professor na sd.5, compreendemos que é a competência do
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Considerações finais
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respostas que eles dariam para suas perguntas; ao dizer o que eles podem e devem
pensar, relacionar, enfim, interpretar.
Na análise que empenhamos compreendemos que os efeitos de sentido no
discurso dos professores constitui-se tanto pela resistência e mesmo o apagamento de
termos como gramática, classificação, regra e de toda prática em torno de uma
referenciação ao saber metalinguístico – que até então se concentraria nas gramáticas e
Livros Didáticos – em detrimento de um saber representativo/legitimado pelo professor
que afirma ter autoridade para interpretar os documentos oficiais (competências e
habilidades), quanto pelo que constrói uma imagem da Gramática do ENEM, do que ele
vai cobrar na prova.
Em ambos, O professor, enquanto mediador entre prova e VD, passa a ser o
instrumento a que(m) deve recorrer o aluno para que este faça o que deve fazer – como
deve fazer - para acertar a questão. Ademais, o professor da videoaula fala a partir de
um lugar não-institucional, não precisa/não se implica com a relação com o VD, não
responde aos comentários, não faz perguntas das quais espera respostas. Retomando a
questão inicial em torno da ética, há um sujeito excluído dos processos de identificação
pela linguagem e os sentidos que seriam aí produzidos são interditados.
De tudo, compreendemos que, nas videoaulas de LCT, continua o aluno sem
lugar. Nestas práticas, compreendemos, sem que alarde a responsabilidade com o outro,
que ainda estamos longe de empenharmos uma postura ética nas relações entre sujeito,
Estado e língua, na qual, de fato, seja priorizado o sujeito NA língua.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Brasil. 1997. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
língua portuguesa . Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, 144p.
Indursky, Freda. 1997. A fala dos quartéis e outras vozes. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP.
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Orlandi, E. 2002. Língua e Conhecimento Linguístico: para uma história das ideias no
Brasil. São Paulo: Cortez.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 36 - A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro, 791-806
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p791
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Neste trabalho, propomos algumas reflexões acerca da relação entre sujeito e língua,
com foco na análise discursiva de dizeres sobre a língua portuguesa em comentários
deixados por leitores-internautas em sites de notícias brasileiros. Da perspectiva teórico-
metodológica da análise de discurso de linha francesa, na esteira das reflexões de
Michel Pêcheux (1997 [1975], 1990 [1983]), voltamo-nos, assim, para a análise de um
espaço não formalizado para se dizer sobre a língua na rede eletrônica, que reúne
dizeres em dispersão que, por sua vez, encerram em si uma discursividade sobre a
língua escrita no Brasil. Em consonância aos objetivos do projeto de pesquisa “Cartas,
comentários, efeitos: uma análise discursiva dos espaços para o sujeito na mídia”
(FAPERJ), que tem como um de seus objetivos analisar dizeres com circulação em
espaços tradicionalmente classificados pelo discurso jornalístico como opinativos,
dentre eles as cartas de leitores e os comentários, com vistas a depreender os dizeres dos
sujeitos sobre si mesmos e os seus movimentos de adesão e/ou ruptura e resistência
(Pêcheux, 1997[1975]) em relação aos sentidos privilegiados na mídia, constituímos o
nosso corpus de análise por comentários a notícias, que comparecem nesses que
entendemos como novos espaços para o sujeito na mídia, em sua extensão na internet,
que se destinam a comentar não a notícia em si, mas a língua que nela se marca. Nas
análises que empreendemos, questionamos o imaginário de língua (Orlandi, 2009) que
se constitui para a língua escrita no Brasil e apontamos o modo como, ao dizer da língua
e de seus empregos, inscrevem-se efeitos de sentidos para os sujeitos (Mariani, 2008)
que nela se constituem.
1. Situando a proposta
Iniciamos a reflexão que ora propomos, acerca da relação entre sujeito e língua,
por duas afirmações feitas por Françoise Gadet, em entrevista dada pela linguista e por
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
Michel Pêcheux, a respeito do livro “A língua inatingível”. Diz ela: “jogar com as
regras não é o mesmo que seguir as regras de um jogo.” (Pêcheux; Gadet, 2011:103-
104). E ainda: “Fazer a língua funcionar é somente jogar nas suas coerções e nas suas
lacunas – jogar nas latitudes que ela oferece.” (Pêcheux; Gadet, 2011:105). Sabemos
que, naquela ocasião, Gadet sustentava uma discussão acerca da relação entre o
gramatical e o agramatical, como pensados no modelo gerativo-transformacional,
apresentado por Noam Chomsky, questionando um suposto “domínio de um sujeito
sobre a língua” (Pêcheux; Gadet, 2011:103), bem como a centralidade da sintaxe,
distante de um funcionamento linguístico-histórico, ou seja, discursivo.
Retomamos tais afirmações, no entanto, para desloca-las, pensando-as em
relação ao que, ainda hoje, costumeiramente (não) se diz sobre o sujeito em seu
relacionamento com a língua. Seguir as regras do jogo da língua tem historicamente
apagado o jogar com a língua, relação de um sujeito que à língua se sujeita e, ao mesmo
tempo, é dela o sujeito, como nos lembra Orlandi (2001); um sujeito que promove o
funcionamento da língua e que nela produz sentidos.
Especificamente no caso dos dizeres que circulam de modo amplo acerca da
língua portuguesa – imaginariamente a língua falada no Brasil –, “as regras do jogo”
construídas pela padronização dessa língua nacional imaginária, em sua modalidade
escrita, funcionam sob o efeito de evidência do sentido, apresentando-se como único
efeito de sentido possível ao se dizer sobre a língua e(m) seus sujeitos.
Um dos lugares de grande circulação desses dizeres é a mídia. Já no final do
século XIX, época de consolidação do jornalismo como um negócio no país (Marcondes
Filho, 2000), o dizer sobre a língua é legitimado pelo espaço destinado a filólogos e
gramáticos, que ganham colunas nessas publicações, a partir de 1900. Como mostramos
anteriormente (Dela-Silva, 2008:210), a imprensa brasileira se constitui, assim, como
uma “instituição que promove interpretações sobre o saber lingüístico ao fazer circular
sentidos sobre a língua portuguesa em seus diferentes momentos no país”. Cabe pontuar
que esse dizer que se dá de modo sistematizado nas colunas de especialistas dos
impressos, que ainda hoje encontramos em circulação em grandes jornais do país, marca
apenas a consolidação de uma prática que, de fato, teve seu início nos primeiros anos de
imprensa no Brasil: desde 1821, periódicos que começaram a ser publicados fora da
Imprensa Régia discorriam sobre a língua, em dizeres esparsos, em meio a debates
sobre questões de unidade nacional (Dela-Silva, 2008).
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
São dizeres assim, com circulação igualmente esparsa, aqueles que aqui nos
interessam ao nos voltarmos à análise discursiva de dizeres sobre a língua portuguesa
em comentários deixados por leitores-internautas em sites de notícias brasileiros.
Entendemos que esses comentários se apresentam como um espaço não formalizado
para se dizer sobre a língua na rede eletrônica, que reúne dizeres em dispersão que, por
sua vez, encerram em si uma discursividade sobre a língua escrita no Brasil.
Em consonância aos objetivos do projeto de pesquisa “Cartas, comentários,
efeitos: uma análise discursiva dos espaços para o sujeito na mídia” (Faperj), que tem
como um de seus propósitos analisar dizeres com circulação em espaços
tradicionalmente classificados pelo discurso jornalístico como opinativos – dentre eles
as cartas de leitores e os comentários –, com vistas a depreender os dizeres dos sujeitos
sobre si mesmos e os seus movimentos de adesão e/ou ruptura e resistência (Pêcheux,
1997[1975]) em relação aos sentidos privilegiados na mídia, constituímos o nosso
corpus de análise por comentários a notícias, que comparecem nesses que entendemos
como novos espaços para o sujeito na mídia, em sua extensão na internet. Interessam-
nos comentários que se destinam a discorrer não sobre a notícia em si, mas sobre a
língua que nela se marca.
Como se trata de dizeres com circulação esparsa, em espaços não formalizados,
ou seja, não exclusivamente destinados a esse fim, como vimos mencionando, a
materialidade linguística que ora nos interessa é de difícil apreensão. É em meio a
comentários dos mais diversos que dizeres pontuais sobre o emprego da língua
comparecem, marcando um sempre já-lá, efeitos de sentidos em curso acerca da relação
entre sujeito-língua.
De modo a atender aos propósitos ora expostos, organizamos este artigo da
seguinte forma: iniciamos com a exposição do projeto de pesquisa intitulado “Cartas,
comentários, efeitos: uma análise discursiva dos espaços para o sujeito na mídia”
(Faperj), situando seus objetivos e trazendo um breve relato de seu andamento no biênio
2014/2015. Posteriormente passamos à análise de comentários sobre a língua
portuguesa com circulação em espaços destinados aos sujeitos-leitores em sites de
notícias brasileiros.
Da perspectiva teórico-metodológica em que nos inscrevemos, qual seja a
Análise de Discurso que se desenvolve na esteira dos trabalhos de Michel Pêcheux,
entendemos que a língua é constitutiva dos sujeitos, afastando-nos, assim, de seu
entendimento como um mero instrumento de comunicação. Como afirma Orlandi
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
4 O projeto “Cartas, comentários, efeitos: uma análise discursiva dos espaços para o sujeito na mídia”
recebeu apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(FAPERJ) no âmbito do Edital de Auxílio à Pesquisa (APQ1), 2014.1 (processo nº E-26/111.491/2014),
tendo sido concluído em outubro de 2015.
794
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
resistência dos sujeitos aos dizeres em circulação na mídia, refletindo, assim, sobre a
possibilidade de interlocução entre sujeitos e mídia na atualidade; iv) constituir um
dispositivo teórico-analítico que permita a análise discursiva dos dizeres do sujeito na
mídia, a partir da fundamentação teórico-metodológica da Análise de Discurso
(Pêcheux, 1997, 1997a, 1990), contribuindo para a ampliação do diálogo entre a Análise
de Discurso e os estudos da área de Comunicação.
Para analisar esses espaços para os dizeres dos sujeitos em resposta aos
discursos em circulação nas mídias inscrevemo-nos na perspectiva teórica da Análise de
Discurso (Pêcheux, 1997, 1997a, 1990) e, deste modo, compreendemos, como Orlandi
(2007), que para que algo faça sentido é necessário que o sentido lá já se inscreva pela
relação com o interdiscurso, com o já-dito constitutivo de todo dizer. Com isso,
pensamos que somente é possível analisar os espaços atuais para os sujeitos na rede
eletrônica se levarmos em conta o funcionamento daqueles espaços mais tradicionais,
como as cartas de leitores, que os antecederam e que, ainda que pela sua negação, o
constituem.
Presença frequente nas publicações impressas brasileiras como único espaço de
manifestação dos leitores, as cartas de leitores e o seu modo de se constituir como um
lugar dedicado à escrita do sujeito-leitor em resposta aos dizeres da mídia não deixam
de produzir os seus efeitos quando este mesmo espaço é ampliado (e em alguns casos
“deslocado”) do papel para o virtual. Primeiramente vieram os espaços para
comentários de leitores nos próprios sites de últimas notícias; com o desenvolvimento
das redes sociais, aparecem também espaços para comentários aos posts das publicações
em suas páginas nas redes sociais, que funcionam imaginariamente como extensões dos
impressos na rede eletrônica.5
No âmbito das Ciências da Comunicação, muito se tem falado sobre a
interatividade como uma tendência na mídia, proporcionada pela rede eletrônica e pelo
desenvolvimento de novas tecnologias, como os laptops, tablets e celulares com livre
acesso à internet, dentre outras. Noções como as de jornalismo participativo e mídia
cidadã, compreendidas como decorrentes de “um modelo de jornalismo em que o
leitor/usuário deixa de ser um mero receptor” e passa a participar “do processo de
produção de um conteúdo jornalístico” (Cavalcanti, 2008:2) são decorrentes dessa
5 Retomamos nesta seção algumas das considerações que apresentamos inicialmente no artigo intitulado
“Das cartas de leitores às redes sociais: o espaço para o sujeito na revista Superinteressante” (Dela-Silva,
2013), bem como do artigo “Os ‘novos’ espaços para os sujeitos e(m) seus processos de
(contra)identificação com o discurso midiático (Dela-Silva, 2013a).
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
da/sobre a mídia, tais espaços parecem-nos privilegiados para observar em que medida,
ao manifestar-se nesses espaços onde imaginariamente “tudo se pode dizer”, “sem
limites de espaço” e “com circulação imediata”, os sujeitos leitores-internautas
conseguem colocar em circulação outros dizeres, deslocando-se, assim, ao ecoar dos
sentidos privilegiados pela mídia.
Ainda no âmbito do projeto, propomos a constituição de um arquivo
representativo desses espaços para os dizeres dos sujeitos na mídia, tendo em vista as
suas novas configurações em função das mídias disponíveis na rede eletrônica. Diante
deste arquivo, o objetivo é realizar uma análise do funcionamento ideológico desses
espaços, com foco na possibilidade de caracterização desses espaços como lugares de
interlocução do sujeito com a mídia, bem como lugares de resistência dos sujeitos aos
discursos em circulação na mídia, capazes de proporcionar a emergência de novos
sentidos e não apenas a repetição do já-dito em permanente circulação na mídia.
Dentre as justificativas que elencamos para o projeto de pesquisa que aqui
apresentamos, destacamos a contribuição para as reflexões sobre a relação entre sujeito
e mídia, na perspectiva da Análise de Discurso, centro de nossas pesquisas (Dela-Silva,
2010, 2011, 2011a, 2012, 2013). A proposta de constituir um arquivo com materiais
representativos dos diferentes espaços destinados pela mídia aos sujeitos, na rede
eletrônica, por sua vez, vai ao encontro da proposta geral de pesquisa do Laboratório
Arquivos do Sujeito (LAS), institucionalmente ligado ao Departamento de Ciências da
Linguagem da UFF, de “discutir e analisar a subjetividade em suas diversas
materialidades”, e de “construir um arquivo digital sobre o sujeito na
contemporaneidade” (LAS, 2009), a ser disponibilizado como base de estudos e
pesquisa não somente para os pesquisadores do próprio laboratório, mas para
interessados nessa temática.6
Ao voltarmo-nos aos variados espaços destinados aos sujeitos na mídia na
atualidade, como proposto inicialmente, a questão da língua, em seu comparecimento
nesses variados espaços da mídia que constituem nosso corpus de análise, mereceu
nossa atenção. Foi assim que, de imediato, abrimos uma frente para se pensar
especificamente a questão da língua nos comentários, com o projeto de iniciação
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7 O projeto de iniciação científica aqui mencionado recebeu apoio financeiro da UFF, no âmbito do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/UFF), no segundo semestre de 2014. A
pesquisa desenvolvida pela graduanda em Letras Janaina Soares Almeida Cruz tem término previsto para
julho de 2016. Alguns apontados sobre a pesquisa pode ser lido em Cruz (2015).
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8 Orlandi (2002) expõe a noção de heterogeneidade linguística em nota ao final de seu texto, quando
explica tal formulação em relação às propostas de heterogeneidade enunciativas, formuladas por J.
Authier-Revuz.
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Figura 1: Print screen de página da editoria Mundo do jornal Folha de São Paulo, com o início
de uma notícia que receberá um comentário sobre a língua (SD1).
SD1: “Abordaram ele”? O jornal não tem mais revisor de gramática normativa?
Figura 2: Print screen de página da editoria Ciência e Saúde do jornal Folha de São Paulo, com
o início de uma notícia que receberá um comentário sobre a língua (SD2).
SD2: “apostos” não seria escrito “a postos”........... A extinção da exigência de curso de jornalismo
para exercer a profissão complicou tudo.
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Figura 3: Print screen de página da revista Superinteressante, com o início de uma notícia que
receberá um comentário sobre a língua (SD3).
SD3: Ei, editor! Corrija RAPIDAMENTE esta matéria, por favor. Colho do seu texto: “Pobrezinhos
dos intermediários, que já são tradicionalmente TAXADOS de problemáticos, né?
“TAXAR” com “X” significa “pôr preço em algo, tributar, determinar taxa.” Você deveria ter grafado
TACHAR que significa “pôr defeito, acusar, estigmatizar”. Obrigado!
Nos três comentários que aqui mobilizamos (SD1, SD2 e SD3), temos um dizer
que aparentemente incide sobre a língua, mas que diz das relações do jornalista ou da
instituição imprensa com essa língua. Observamos que nessas sequências discursivas
não são discutidas questões relativas aos efeitos de sentidos possíveis dos relatos
jornalísticos ali trazidos. Não são as notícias pr si mesmas que são comentadas em seus
gestos interpretativos, mas o emprego da língua em sua modalidade escrita em cada
caso.
A questão apontada não é exatamente a mesma sempre. No primeiro caso, temos
questionado um emprego pronominal (“abordaram ele”), cabe ressaltar, uma forma
corrente no emprego oral da língua. No segundo e no terceiro casos, temos situações
relativas à grafia de expressões e palavras homófonas: “apostos” e “a postos”; “taxado”
e “tachado”. Nos três casos, a padronização da língua para a escrita se coloca, uma
questão que, aparentemente, nada tem a ver com a relação do sujeito com sua língua,
mas apenas com a representação escrita dessa língua. No entanto, não é fora de uma
memória discursiva, de um já-dito da norma e do erro que esse dizer sobre a língua
funciona. Há um já-dito sobre a língua escrita que constitui esse discurso sobre a língua
materializado nesses comentários, que justamente produz como efeito para a escrita da
naturalização do sentido: é assim que deve ser escrito e não de outro jeito.
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Sabemos que o discurso sobre a escrita, no entanto, não diz apenas da escrita em
si. Conforme Orlandi (2002:233): “A escrita, numa sociedade de escrita, não é só um
instrumento: é estruturante. Isso significa que ela é lugar de constituição de relações
sociais, isto é, de relações que dão configuração específica à formação social e a seus
membros.”. O discurso sobre a escrita, em nossa formação social, diz de nossa
configuração sócio-histórica, diz dos sujeitos e de sua relação com a língua que
imaginam sob seu domínio.
Assim, é também de relações específicas entre os sujeitos e as instituições que
tratam os três comentários. Quando dizem sobre a língua em sua escrita, os sujeitos
comentadores dirigem-se ao jornal, ou às práticas jornalísticas em nossa formação
social. Na SD3, por exemplo, esse dizer à publicação se marca no vocativo: “Ei,
editor!”, que é chamado a corrigir “rapidamente” a grafia da palavra “taxados”. No fio
do discurso, o sujeito que comenta apropria-se de uma explicação de grafia das duas
palavras (taxados/tachados) encontrada exaustivamente em dicionários e compêndios
sobre dúvidas de emprego do português para dizer ao editor, a quem se dirige, como
escrever. Na SD1, questiona-se uma falta – em “O jornal não tem mais revisor de
gramática normativa?” –, apontando uma suposta falha não do jornalista que assina a
reportagem, mas do jornal, que teria dispensado ou não emprega revisores. Na SD2, por
sua vez, o que se coloca em suspenso é a formação dos jornalistas de um modo geral, o
que se marca na menção à “extinção da exigência de curso de jornalismo para exercer a
profissão”, que havia sido decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, o
que faz funcionar o não-dito de que é a formação superior em jornalismo que é capaz de
fornecer um “domínio” de língua escrita ao sujeito jornalista.
Os comentários funcionam, nesses casos, como espaços no interior das
publicações que permitem questionar as práticas dos jornalistas e da imprensa, mas tudo
isso se faz a partir de um dizer sobre a língua e a sua escrita. A língua precisa ser
corrigida “rapidamente”, “por favor”; ela precisa de “revisor de gramática normativa”; e
deixa explícitas lacunas na formação dos jornalistas.
Cabe apontar, entretanto, que esses comentários nem sempre alcançam
relevância junto às próprias instituições que os mantém enquanto um espaço da
chamada interação que pretendem manter com seus leitores. Os comentários aqui
mencionados não receberam qualquer resposta das instituições e um deles foi apagado.
Somente a grafia da expressão “a postos” foi alterada na notícia, o que também não se
pode garantir que aconteceu em consequência do comentário a esse respeito. A
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
interação via rede eletrônica se mantém, mas não se pode afirmar que ocorra a
interlocução (Grigoletto, 2011), uma relação entre sujeitos.
Como já-dito, nos comentários reafirma-se a evidência de que a escrita recobre a
língua e, ainda mais, a evidência de que se trata de uma língua, que conforme nos
lembra Orlandi (2002:22), tem a “construção imaginária da unidade e da
homogeneidade como pré-requisitos básicos para se ter uma identidade em um país
específico, com suas formas específicas de governo e com uma língua (nacional).”.
4. Para finalizar
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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publicação pessoal no jornalismo. Rio de Janeiro: OPVS.
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atingido-por-vergalhao-e-nao-ter-sequela-e-um-misterio-para-a-ciencia-diz-
medico.htm>. Acesso em: 05 maio 2015.
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 36 - A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro, 807-820
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p807
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Eliana de ALMEIDA9
RESUMO
Pela perspectiva teórica da Análise do Discurso, propomo-nos à compreensão dos
saberes linguísticos sobre o português, conforme se materializam enquanto discurso em
circulação na imprensa, pelas formulações de Saramago, escritor português, e na
entrevista de Mia Couto, escritor moçambicano. Considerando o atual contexto
brasileiro de implementação das políticas e ações estratégicas de Estado, com vistas à
divulgação e internacionalização do português brasileiro, e, como consequência, sua
redefinição enquanto língua de comunicação internacional, perguntamos pelos sentidos
sobre essa língua em espaços de dizer sobre, como a imprensa jornalística. Ao por em
relação os efeitos de sentido produzidos sobre o português do Brasil, a partir de um
olhar de fora, o do falante do português não-brasileiro, interessa-nos compreender a
posição discursiva assumida por esses escritores em suas produções, para o que pomos
em relação os saberes sobre o português do Brasil e os modos como são tecidos
enquanto discurso sobre a língua, da qual são sujeitos-falantes. Ainda, buscaremos
compreender, pelas noções de memória discursiva e memória de futuro, os modos pelos
quais as formulações dos escritores projetam para o leitor os sentidos do português,
enquanto língua transnacional.
807
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
como se dão a atribuição das línguas para os seus falantes. Para o autor, cada espaço de
enunciação tem uma regulação específica, ou seja, distribui desigualmente as línguas na
disputa pela palavra (Guimarães, 2002:24). Se o espaço de enunciação da língua
portuguesa das polêmicas do século XIX restringia-se a Brasil e Portugal, no que
concerne à língua e aos saberes em questão, temos, nesse novo contexto, a
reconfiguração desse espaço de enunciação, visto envolver Moçambique, além de outras
nacionalidades.
Para o autor, falar português no Brasil é falar uma língua que são várias, uma
língua que é dividida, de tal modo que é uma e é diferente disso, e cuja divisão é
marcada por uma hierarquia de identidades (Guimarães, 2002:21). A partir dessas
considerações, do campo da História das Idéias Linguísticas, propomo-nos pela Análise
do discurso à compreensão desse espaço de enunciação outro, visto tratar de saberes,
escritores e falantes do português, pelo olhar de Portugal e Moçambique. Conforme
Zoppi-Fontana (2009:9), com as políticas e ações estratégicas do Estado, tendo em vista
à divulgação e internacionalização dessa língua, tal debate adquire novo vigor em 2008,
dada a aprovação em Portugal do Novo Acordo Ortográfico que, no Brasil, vigora a
partir de 2009.
O texto de Saramago foi publicado em 2008, 26 anos após o Prêmio Nobel de
Literatura, o que deu grande visibilidade à Língua Portuguesa no mundo. Ao criticar os
políticos de seu país por arrogarem-se de ser 200 milhões o número de falantes do
português no mundo, Saramago organiza de certo modo o atual espaço de enunciação
sobre a língua portuguesa: ele excetua 30 milhões de falantes, cujos países, fora Brasil e
Portugal tem o português apenas como língua oficial; considera que 170 milhões de
falantes do português precisam aprender a falar/escrever corretamente, ao convidar
portugueses e brasileiros, para resolver o seguinte problema espinhoso: o de como
aprender a falar e escrever a língua portuguesa corretamente.
Ainda, ao lamentar a perda dessa riqueza tão lusitana, Saramago refere ao
espaço de enunciação do português apenas os 10 milhões de falantes nascidos em
Portugal, atribuindo à maioria dos falantes do português, como o veremos mais adiante,
um conhecimento rudimentar da língua, excetuando os falantes portugueses.
[...] Contrariamente ao que afirmam os políticos de meu país (Portugal), em
particular quando tem responsabilidade de governo e, por conseguinte, a
obrigação de fazer vibrar a corda do otimismo, nós não somos 200 milhões
no mundo a falar o português. Para chegar a esse número, juntamos os 10
809
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
nossa”. Ao afirmar a língua portuguesa como essa riqueza que era “nossa”, Saramago
restringe-a ao espaço de enunciação de Portugal, apagando as demais nações falantes
dessa língua. Desse modo, os supostos 200 milhões tomados como o número de falantes
da língua portuguesa no mundo (em 2003) são escandidos por Saramago entre: 30
milhões de habitantes, cujos países têm o português por língua oficial – mas não são
falantes do português; 170 milhões de falantes que precisam aprender a falar/escrever
corretamente a língua portuguesa – pois “possuem sobre ela um saber rudimentar”; 10
milhões de falantes, portugueses, que dominam e sabem a língua integralmente, essa
“riqueza que era nossa”, mas que poderão perdê-la como legado absoluto.
Vemos em Saramago o funcionamento discursivo de uma memória compatível
com a atuação de uma história oficial sobre a língua portuguesa no mundo, à medida
que promove a exclusão de tudo o que escapa ao exercício do poder, e, que por isso
mesmo, faz preservar a nostalgia de um passado original e verdadeiro, como vemos em
Mariani (1996:36).
No que concerne ao Brasil, percebemos o resíduo de sentidos que permanece e
insiste em repetir-se em relação às discussões e polêmicas do século XIX sobre a língua
portuguesa. Está dado na opinião de Saramago que os brasileiros têm a língua
portuguesa enquanto língua materna, nacional e oficial, como também de que precisam
fazê-lo “corretamente”. Em “perder essa riqueza que era nossa” o escritor faz significar
os sentidos de completude e unidade da língua referida a Portugal, visto que ao juntar os
160 milhões de falantes brasileiros aos 10 milhões de portugueses, tem-se a projeção
midiática, etc., a apropriação brasileira dessa língua portuguesa, justamente desses que a
falam/escrevem incorretamente.
Como nas formulações de Saramago, a entrevista de Mia Couto, cedida à
Revista Época, refere também a língua portuguesa ao desenvolvimento cultural e
material de um país, à medida que afirma sobre “o poder que o Brasil tem de exportar
cultura e contagiar os países de língua portuguesa”. Dessa formulação de Mia Couto,
pontuamos os sentidos em funcionamento, que se definem em tomar a língua do Brasil
como cultura a ser exportada; os habitantes de Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste, bem como Macau, são referidos como
falantes de países de língua portuguesa.
No que concerne a esse espaço de enunciação da língua portuguesa, o escritor
promove um deslocamento que tira Portugal e coloca o Brasil como referência das
questões da língua e da cultura. Isso não é nada trivial, se se considerar a história dos
812
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
10 Referimos aqui a trabalhos desenvolvidos e publicados pelo Programa História das Ideias Linguísticas
do Brasil – HIL, sob a coordenação do Prof. Eduardo Guimarães (UNICAMP) e Eni P. Orlandi
(UNIVÁS), dentre outros pesquisadores.
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
entre Brasil/Portugal, sem o trabalho de historicização dos sentidos. E então, nos termos
de Orlandi:
É a partir daí que podemos pensar a lusofonia, não como algo homogêneo e
estabilizado mas como algo extremamente heterogêneo, instável, mas
também se representando na diferença, como tendo uma unidade ideal. [...].
Penso que esta é a maneira mais interessante, moderna, atual de pensar a
lusofonia, não em relação ao passado e à colonização mas ao futuro e à
mudança: a que vê como lugar da multiplicidade (Orlandi, 2009:160).
A errância histórica e de sentidos é o que define os diferentes espaços de dizer
a/sobre a língua portuguesa, em suas particularidades. Considerar a língua portuguesa
como um precioso legado dos portugueses ou como língua de mercado internacional,
correspondendo às representações políticas e culturais que o Brasil ocupa no cenário
mundial, põe em circulação o funcionamento do mesmo, numa relação com o diferente,
da memória discursiva. O mesmo, se nós tomamos o Brasil pelas relações de
poder/dever quanto à língua portuguesa e os demais países; mas também o diferente, se
consideramos a historicidade da língua, constituindo relações outras, na
contemporaneidade, entre língua e sujeito.
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Horta Nunes (Orgs.). Introdução às ciências da linguagem: linguagem, história e
conhecimento. Campinas: Pontes.
Anexos
O romancista moçambicano afirma que o poder que o país tem de exportar cultura está contagiando todos
os países de língua portuguesa.
817
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
A língua portuguesa está se transformando, muito por causa do papel das nações emergentes lusófonas da
África. Nesta entrevista exclusiva a ÉPOCA, concedida em São Paulo, o escritor moçambicano Mia
Couto, de 59 anos, diz que, apesar da renovação de linguagem que a África apresenta hoje, o Brasil
reúne condições para se tornar a nação dominante do ponto de vista cultural e linguística. Em relação aos
países africanos, Couto diz que é preciso distinguir entre independência e descolonização – e que a África
ainda não enfrentou o segundo termo. Para ele, o Brasil serviu como modelo para a formação da
identidade nacional das nascentes nações lusófonas da África, mas pelo lado da mistificação, o que se
esgotou rapidamente. Ele afirma que o Brasil virou as costas para a África.
ÉPOCA – O uso do português em várias nações gerou diferenças de vocabulário e uso. O português
está se transformando a ponto de se desfigurar?
Mia Couto – O português é uma língua viva, não porque ela seja especialmente diferente. Mas ela viveu
essa coisa que se chama Brasil. Vive a África que está se apropriando dela com cinco países africanos que
o fazem de modo diverso. É evidente que é preciso um cuidado para que a língua continue com uma
identidade e um fundamento. As diferenças do português em vários países não são sentidas como um
problema. Salvo alguns intelectuais conservadores do Brasil e dePortugal, que têm um certo gosto de se
apropriar da pureza da língua. De resto, existe nos países lusófonos até um gosto de visitar essas
diferenças. O que está acontecendo de forma inelutável é que a variante brasileira será dominante. O
português do Brasil vai dominar.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 36 - A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro, 821-830
ISBN 978-88-8305-127-2
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Solange MITTMANN11
RESUMO
O trabalho apresenta os primeiros resultados de uma investigação a respeito das
concepções de língua portuguesa entre estudantes de tradução e tradutores profissionais.
A partir de uma proposta de atividade, foram realizadas análises de respostas, das quais
foram recortadas sequências discursivas que possibilitaram levantar questões a respeito
das concepções de língua que sustentavam as respostas. O que motivou esta pesquisa foi
a observação de que, no curso de Bacharelado em Letras – Habilitação Tradutor, em que
atuamos, persiste uma memória que cerceia a concepção de língua numa perspectiva
normativista e informacional – e, por consequência, a aceitação de que a língua é
regular e de que o sentido é universal e transparente. Questionamos, então, nossos
alunos (futuros tradutores) e profissionais da tradução a fim de analisar como o arquivo
institucional vem cercear os discursos sobre língua portuguesa e como a memória
discursiva faz retorno sobre tais discursos, numa tensão entre estrutura e acontecimento,
em que aquela é desacomodada por este, ao mesmo tempo em se remolda para melhor
acolhê-lo. Partimos do princípio de que é preciso desfazer as evidências e trazer para as
discussões a tensa relação entre língua, sujeito e história, numa perspectiva materialista,
como propõe Pêcheux. Nesse sentido, consideramos que o indivíduo se constitui em
sujeito pela língua ao ser interpelado pela ideologia (sob efeito retroativo) e que a língua
é atravessada pela história e a ela resiste, o que leva à sua autonomia relativa. É essa
concepção de língua, a do furo, do deslizamento, da deriva, que defendemos, por
permitir lugar ao sujeito e por possibilitar o próprio discurso – na produção, na leitura e
na tradução de textos.
Apresentação
11 UFRGS – Instituto de Letras – Programa de Pós-Graduação em Letras. Caixa Postal 15002. CEP
91501-970. Porto Alegre/RS-Brasil. E-mail: solnena@hotmail.com e solange@ufrgs.br .
821
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
12 Agradeço à colega Maria Teresa Celada, da USP, que me ajudou a pensar sobre esta atividade durante
uma conversa no Encontro da ANPOLL, e às alunas Gláucia da Silva Henge, Michele T. Passini e Laís V.
Medeiros pela participação no trabalho de elaboração e aplicação da atividade.
13 Um primeiro resultado desse trabalho de análise com as alunas da Pós-Graduação resultou em um
artigo conjunto sob o título “Algo fala antes nos discursos de estudantes sobre língua(s) e tradução”, já
encaminhado para publicação.
822
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
movimentos de interpretação não significa buscar ali respostas, mas permitir-se ouvir as
perguntas que o arquivo nos lança, retornar à teoria e voltar com mais perguntas.
(Mittmann, 2015) E dentre as perguntas que o arquivo tem me apresentado estão: Que
língua é essa de que os alunos estão falando? E como essa concepção de língua faz
retorno sobre a interpretação dos alunos sobre o que seja a escrita e a escrita da
tradução? Ou seja, parece haver aí um pré-construído sobre língua que faz retorno
através da memória em um discurso institucional sobre língua. Tentando definir melhor,
diria que se trata da presença de algo que é a ordem de um arquivo institucional naquilo
que é da ordem (e da organização) do arquivo de análise.
Em outros textos (Mittmann, 2008, 2010 e 2014) já tenho trabalhado com essa
diferença entre o arquivo como noção teórica e o arquivo como noção metodológica.
Este último é da ordem do empírico e refere-se às materialidades nas quais
mergulhamos e entramos em jogo de enfrentamento até compor o corpus. No gesto de
mergulhar, precisamos nos segurar na teoria, ou seja, por exemplo, nas noções de
interdiscurso, pré-construído, discurso transverso, memória, formação discursiva e
arquivo, ou, o que estou chamando aqui de arquivo institucional.
Institucional porque é sob os efeitos de transparência, evidência, universalidade
e naturalidade que se dá a construção de um desencadeador, um fomentador de novos
discursos. A institucionalização exerce controle tanto sobre a entrada de elementos que
podem constituir o arquivo como sobre o que pode levar à produção de novos discursos.
No caso da tradução, seria preciso dominar pela escrita o dizer anterior para melhor
controlar (ter controlado) o novo dizer.
Cabe dizer que o arquivo aqui chamado de institucional tem forte relação com a
memória (Mittmann, 2008): Na produção ou na leitura dos discursos, bem como no
gesto de articulação do arquivo, o que funciona é um embate de sentidos, e o que dá
sustentação a esses sentidos é a memória, como algo pré-existente e exterior, ausente
mas presente, funcionando sob a forma de retorno. Nesse funcionamento entre memória
e arquivo, há uma estabilização provisória realizada pelo arquivo através do efeito de
totalidade. Para isso, é preciso rechaçar e controlar de fora para dentro. Do lado da
823
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
também no ajuntamento e no som da linguagem pode haver primor ou falta entre nós”.
Essa busca pelo primor se dá a partir da descrição do que dizem os que “bem falam” e
da observação do seu “bom costume”, de onde Oliveira toma os exemplos “para que
outros muitos aprendam”.
Já Barros toma a gramática como “um modo certo e justo de falar e escrever,
colheito do uso e autoridade dos barões doutos”. Tal modo certo e justo se define como
“artifício de palavras postas em seus naturais lugares, pera que, mediante elas, assim na fala
como na escritura, tenhamos em conhecimento das tenções alheias”. Séculos antes de
Saussure, Barros lançava mão da metáfora do jogo de xadrez: “E como pera o jogo de
enxedrez se requer duis reis, um de uma cor e outro de outra, e que cada um deles tenha
suas peças postas em casas próprias e ordenadas, com leis do que cada uma deve fazer
(segundo o oficio que lhe foi dado).”
Na Grammatica de João de Barros, a descrição morfológica, com base no grego
e no latim, teria por objetivo o modo certo de falar e escrever, bem como a compreensão
das intenções alheias. Nessa perspectiva, a gramática traria em si a completude da
língua, o sentido único e evidente, capacitando cada autor a transmitir tudo o que
pretende e também cada leitor a desvendar as intenções do autor.
Assim, lado a lado, a descrição de Oliveira e a prescrição de Barros vão
compondo um imaginário de língua passível de ser homogeneizada.14 O pressuposto da
possibilidade de homogeneização marcará a construção das gramáticas brasileiras e o
imaginário de língua das escolas repetido no senso comum.
Enquanto isso, a língua resiste, deixando rebarbas e saliências que não podem
ser aplainadas. Tanto as normas ou regras, como as rebarbas e saliências são
sinalizadoras da heterogeneidade constitutiva da língua: se é preciso amarras, é porque a
língua teima em escapar. (Ibid., 2010)
Nos textos que formam nosso arquivo empírico – já tornado corpus pelo trabalho
de análise – há um retorno desse saber, dessas determinações, dessas inclusões,
14 Cabe considerar que as duas gramáticas são produzidas em contexto histórico de marcação de fronteira
com a Espanha e de conquista de novos mundos/povos.
825
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
SD3: Os elementos que sugerem isso [que se trata de uma tradução] incluem (...)
sintagmas compridos (...) e o uso de conjunção aditiva no início de uma
sentença.
Perpassam esses discursos outros discursos que tomam o jogo acerto vs erro na
definição de se uma construção morfológica ou sintática pertence ou não à língua
portuguesa: se não há correção, se não se escreve assim, então não é um texto
originalmente escrito em língua portuguesa. Na perspectiva dos alunos do curso de
tradução, futuros tradutores portanto, um nativo escreve bem o seu texto em língua
portuguesa, seguindo certas normas, enquanto que um tradutor não sabe ou não pode
escrever em língua dita correta. E se não é português correto, então talvez seja inglês,
francês, alemão... quer dizer: o que foi dito em português e que fere as suas normas é o
que se pode dizer em outro lugar, onde as normas podem ser outras, como é possível
observar nas sequências:
15 Optei por não trazer a referência nem o trecho apresentado, pois o que me importa nesta reflexão não é
retornar à obra, mas sim os apontamentos dos sujeitos a respeito da língua.
826
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
SD4: tradução do francês. Presença do “lhe” (lui), pronome muito comum nas
frases em francês. Presença do “finalmente”, tradução freqüente de
“finalement”, que pode ter um sentido mais conclusivo também.
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
sequências de algumas dessas respostas que apontaram que o mesmo texto que citei
acima se tratava de uma tradução.
SD7: Há (...) construções que não usamos em português a não ser como “erro”.
Na penúltima frase, “apesar de eles” me parece mal colocado (...), pois o
pronome “eles” é desnecessário em português, quando, em inglês, se for o caso,
não poderia ser dispensado.
SD8: O uso de pronomes retos (ele / eles que costumam ser evitados em textos
redigidos originalmente em português por uma questão de estilo, a não ser que o
escritor queira chamar atenção para algum ponto dentro do texto com o uso
desse tipo de pronomes, o que não parece ser o caso aqui.
SD11: A pontuação com muitas virgulas me faz pensar que não é literatura
escrita em língua portuguesa. O fraseado em português não usa pontuação em
demasia.
SD12: Acho que faltam algumas vírgulas, “em diagonal” não me soa natural, e
no “apesar de eles” eu omitiria “eles”.
828
Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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830
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 36 - A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro, 831-845
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p831
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RESUMO
Nesse texto, apresento, a partir das reflexões em desenvolvimento na minha pesquisa de
mestrado, a relação entre a História das Ideias Linguísticas e a História do Ensino de
Língua Portuguesa no Brasil. Tal pesquisa parte do pressupondo que falar sobre práticas
de ensino de língua é (re)produzir um conceito imaginário que procura fixar um
significado a objetos que são na verdade indefiníveis em função dos sentidos
antagônicos que podem assumir em diferentes formações discursivas. Trata-se da
análise discursiva (Pecheux/Orlandi) do tratamento dado à questão do ensino de língua
portuguesa em crônicas e colunas da mídia jornalística online, a fim de compreender o
modo de funcionamento discursivo dos termos “LÍNGUA” e “ENSINO” em sua
ambiguidade constitutiva, na relação com a questão da “variação linguística” como
fenômeno que interfere no imaginário da unidade linguística. A partir de tal recorte,
desenvolvo uma reflexão a respeito da institucionalização da memória do futuro no
discurso sobre a educação, sugerindo ligações entre esse discurso e o Ensino de Língua
Portuguesa. Tais reflexões constituem uma contribuição para o desenvolvimento teórico
das relações entre língua e sujeito e buscam oferecer subsídios para o desenvolvimento
de uma prática docente que considere o histórico na formulação das concepções de
língua discursivizadas na sociedade.
1. Introdução
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
Pechetiana, tal como desenvolvida no Brasil a partir de sua introdução por Eni Orlandi,
que iniciou aqui uma corrente de estudos que avançou sobre os pressupostos franceses
que derem início à teoria, produzindo uma série de reflexões sobre as questões
linguísticas em diversas universidades brasileiras. A aproximação dessa linha de estudos
com as ideias de Auroux – que estabelecem uma reflexão sobre o impacto do
desenvolvimento das ideias linguísticas sobre a cultura ocidental, numa abordagem que
extrapola a dimensão historiográfica pela análise da influência dessas ideias sobre o
desenvolvimento da língua e da sociedade – permitiu que essas ideias pudessem ser
analisadas pelo viés discursivo.
Dessa forma, o conceito de instrumentos linguísticos, central para a teoria da
História das Ideias Linguísticas, e que designa as formas pelas quais uma língua é
aparelhada por certas tecnologias que modificam seu funcionamento – especialmente a
gramática e o dicionário (Auroux, 1992), passou a ser estudado a partir dessa
interlocução como discurso. Esse movimento trouxe para a análise dos instrumentos
linguísticos a questão do funcionamento da ideologia, ponto fulcral no desenvolvimento
da Análise do Discurso que praticamos.
A teoria pechetiana, que orienta os estudos em Análise do Discurso dessa linha,
consiste na composição da releitura de Marx, por Althusser - que revisa o conceito de
ideologia, atribuindo-lhe a função de intermediação entre o indivíduo e a realidade (de
forma que não há um “fora da ideologia, nem a possibilidade de removê-la para
enxergar o que por trás dela se esconde) - com o estruturalismo de Saussure que, que
estuda a língua a partir das estruturas que possibilitam seu funcionamento. Tal
combinação, é complementada pela releitura de Freud, por Lacan, introduzindo nessa
relação o lugar do inconsciente, permitindo afirmar, (aqui em uma formulação
acentuadamente simplista, uma vez que o assunto exige um desenvolvimento muito
mais específico), que é pelo inconsciente que a linguagem reproduz em suas estruturas a
Ideologia.
Ao mesmo tempo é pelo funcionamento ideológico que o dizer ganha sentido, e
que as posições discursivas se estabelecem, originando os sujeitos: é pela interpelação
do indivíduo pela ideologia através da linguagem que o sujeito se constitui. Fora dessa
interpelação está vetado ao indivíduo o produzir sentido, que esse é função do
posicionamento ocupado na estrutura ideológica. É como sujeitos, ocupantes de um
lugar histórico social que nos inscrevemos na língua, e não como indivíduos bio
psíquicos.
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
firmam pela presença de seu contrário em sua constituição. Tal fenômeno é descrito na
teoria pechetiana do discursivo pelo conceito de objetos paradoxais:
A singularidade dessas lutas de deslocamento ideológico que ocorrem nos
mais diversos movimentos populares consiste na apreensão de objetos
[constantemente contraditórios e ambíguos] paradoxais, que são,
simultaneamente idênticos em si mesmos e se comportam antagonicamente
em relação a si mesmos [...]
Esses objetos paradoxais [como nome de Povo, Direito, Trabalho, Gênero,
Vida, Ciência, Natureza, Paz, Liberdade] funcionam em relações de força
móveis, em transformações confusas, que levam a concordâncias e oposições
extremamente instáveis (Pêcheux, 1983:383 apud Zoppi-Fontana, 2005:56)
Dessa forma, procuramos desenvolver nossa análise das discursividades sobre o
Ensino de Língua Portuguesa a partir da compreensão do funcionamento paradoxal dos
objetos Língua e Ensino, que acrescentamos aos listados acima por Pêcheux. É por essa
via que buscamos apreender, nas materialidades analisadas, as formas pelas quais esse
caráter paradoxal dos objetos em questão se apresentam no dizer do escritor. Passamos
assim, à consideração de que, enquanto elemento que sustenta a constituição dos
sentidos de língua e ensino, a contrariedade é inerente à produção discursiva sobre o
Ensino de Língua Portuguesa.
E mais, consideramos que essa formulação (Ensino de Língua Portuguesa) se
apresenta duplamente paradoxal, uma vez que nela se apresentam dois objetos
paradoxais, que ao se combinarem de diferentes formas permitem uma multiplicidade
de posicionamentos acerca dessa questão – o que significa identificar na formulação
textual o que a teoria discursiva apresenta, a partir das colocações Lacanianas, como o
sujeito dividido – já que na Análise do Discurso, sujeito e sentidos se constituem
mutuamente.
Enfim, cabe destacar a forma pela qual, ao trazermos para nossas análises o
conceito de objetos paradoxais, a partir da análise das crônicas, chegamos a formulações
cuja compreensão produz efeitos em todas as esferas de produção de sentido sobre o
ensino de língua, o que traz consequências não só para a compreensão do discurso sobre
o ensino, mas como para a própria formulação pedagógica que, a partir da consideração
da historicidade dos processos que constituem as práticas discursivas de Ensino de
Língua Portuguesa – tal qual apresentamos em nossa dissertação de mestrado - devem
passar a considerar a constituição paradoxal dos termos Língua e Ensino, que podem
ser, numa formulação simplificada, dispostos da seguinte forma:
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
relação discursiva de substituição com persistência, cada um desses sentidos retorna nos
demais, e faz funcionar a memória de um futuro promissor que se constrói a partir dos
investimentos em educação.
No primeiro enunciado, vimos repercutir uma memória que se origina nos
primeiros discursos que propunham a universalização da educação, o que remete à
Revolução Francesa, à Didática de Comenius e no Brasil aos Pareceres Republicanos de
Rui Barbosa e ao Movimento Escolanovista no Brasil. Esses acontecimentos discursivos
– acontecimentos históricos que, nos dizeres de Pêcheux, proporcionam o encontre de
uma memória e uma atualidade, reconfigurando as matrizes de sentido e as
possibilidades de dizer – instauram na matriz discursiva a necessidade de
universalização do ensino como “preparação” para o desenvolvimento. É nos sentidos
contidos em “preparar”, que trazem a memória do anteceder, que se funda a educação
como um gesto para o futuro, e a ideia, tantas vezes repetida em nossa sociedade de que
a educação é uma construção para o futuro, de que nela encontraremos a diminuição das
desigualdades sociais e a redenção da sociedade.
O deslizamento dessa memória para a formulação “Brasil, país do futuro”; título
de um livro de Stefan Zweig (Brasilien ein Land der Zukunft) de 1941 que reflete o
funcionamento da memória do futuro que se fez circular internacionalmente pela
Europa nos fins do século IXX e início dos XX, atraindo um forte movimento
imigratório para o país. Essa formulação extrapolou o discurso dos imigrantes e se fez
valer no discurso político e jornalístico que procurava fundar uma imagem positiva da
nação ao longo do século XX, estando bastante presente na memória discursiva
nacional, embora se perceba em alguns discursos pós ditadura a contra identificação
com seu sentido positivo, pela interpretação de um país sempre do futuro e nunca do
presente.
Esses sentidos se combinam na escolha do slogan do governo executivo do atual
mandato, que faz funcionar a memória de país que garante seu futuro pelo educacional.
A análise desse funcionamento discursivo arremete para os moldes liberais que
institucionalizaram a universalização da educação, e, seguindo tais princípios, a colocou
como espaço de legitimação das potencialidades individuais genéticas ou adquiridas
pelo esforço, que justificariam a estratificação social. A ideia de se oferecer a mesma
oportunidade a todos, desconsiderando o lugar ocupado por cada um, e fazer disso a
justificativa para o sucesso de alguns e o fracasso de muitos é um efeito ideológico que
permite à sociedade reproduzir suas desigualdades e garantir sua organização, já que
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
4. Analisando um recorte
Vejamos, portanto, pela materialidade de uma das crônicas que compõe o corpus
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
crônicas proposto; o que se pode observar a partir da escolha do título, que trabalha uma
relação de intertextualidade com uma das mais famosas manifestações literárias a
respeito da língua portuguesa. Com a formulação “última flor do laço”, Semler
estabelece um interessante jogo com o poema de Bilac, denunciando que a justificativa
histórica/etimológica para a manutenção da prescrição de certas formas linguísticas
pouco habituais no português contemporâneo produz amarras no processo de ensino da
língua.
Vejamos assim, a partir da leitura de um pequeno recorte discursivo, como o
texto apontado como exemplo de posicionamento a favor da citada coletânea se constrói
a partir de contradições:
Última flor do laço
Ricardo Semler
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
paradoxais. É esse caráter paradoxal que se apresenta após tal marcação, através da
formulação “desenvolvida a esse alto nível”. Até tal marcação de posicionamento, a
formulação discursiva apontava para a necessidade de se ensinar a norma culta da
linguagem, cujo aprendizado é apontado como “sem dúvida” “inadmissível”; sendo para
tal necessário se estabelecer um limite “suficiente”. Dessa forma, o marcador “por outro
lado” introduz o posicionamento de que esse ensino é um fator formador de castas,
produzindo um efeito de estabilidade entre essas contrariedades que constituem os
sentidos em jogo.
Apesar disso – como preconiza a Análise do Discurso, em sua consideração do
inconsciente – é na falha que outros sentidos se revelam possíveis, e a marcação que
procura estabilizar a contrariedade não dá conta da movência de posicionamentos que
caracteriza esse discurso: mesmo introduzindo o posicionamento contrário a
preconização da norma culta – pela atribuição de “fator formador de castas”, essa norma
é caracterizada como “desenvolvida a esse alto nível”. Hierarquiza-se assim a norma
culta em relação as demais, encontrando-se essa num alto nível, sendo qualquer outra
forma adotada na estrutura de ensino, uma linguagem de baixo nível, logo seu ensino é
tarefa menor que a apontada anteriormente; uma facilitação que visa negar ao estudante
o acesso a tal alto nível de linguagem.
Não se trata de estabelecer uma crítica às formulações desenvolvidas pelo autor
nesse recorte textual. A leitura de nossa pesquisa completa demonstra que o discurso
cronístico sobre o ensino de língua é sempre marcado pela contrariedade. Mais que isso,
demonstra que tal contrariedade é constitutiva dos objetos Língua e Ensino –
característica que nos leva a denominá-los paradoxais, tal como procuramos expor nessa
apresentação.
5. Considerações finais
Acredito ter obtido, pela análise apresentada acima, o efeito de unidade buscado
para essa apresentação. Orientei-me assim pelo proposito de - dentro das possibilidades
do espaço de apresentação em um simpósio - formular um texto que pudesse servir de
apresentação para a pesquisa que estamos encerrando, ao mesmo tempo em que
procurava estabelecer uma reflexão sobre como as discursividades analisadas
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Falam Sobre o Livro. Disponível em:
<http://www.acaoeducativa.org.br/index.php/todas-noticias/2620-livro-qpor-uma-vida-
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Bagno, Marcos. 1999. Preconceito lingüístico o que é, como se faz. Edições Loyola.
São Paulo.
______________ 2013. Sete erros aos quatro ventos: a variação linguística no ensino
de português. São Paulo: Parábola Editorial.
Orlandi, Eni P. (org.). 2001. História das Idéias Lingüísticas: Construção do Saber
Metalingüístico e Constituição da Língua Nacional. Campinas/Cáceres: Pontes/Unemat,
Semler, Ricardo. 2011. Última flor do laço. Folha de S. Paulo. 06 de junho de 2011.
Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/fsp/saber/sb0606201102.htm> Acesso em 10
jun. 2015.
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Simpósio 36 – A questão da(s) língua(s) portuguesa(s): entre o institucional e a memória do futuro
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Althusser, Louis. 1980. Ideologia e aparelhos ideológicos de estado. Editorial Presença,
3ª Ed.
Bourdieu, Pierre. 1983. A economia das trocas linguísticas. L'économie des échanges
linguistiques. Langue Française, 34, maio 1977. Traduzido por Paula Montero In Ortiz,
Renato (org.)
Indursky, Freda. 2011. A memória na cena do discurso. In: __________; (Org.) [et al.].
Memória e história na/da análise do discurso. Campinas: Mercado de Letras.
Libâneo, José Carlos. 1990. Democratização da Escola Pública. São Paulo: Loyola.
845
SIMPÓSIO 38
ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS E SOCIOCULTURAIS
EM LÍNGUA PORTUGUESA
COORDENADORES
M. Emília PEREIRA1
RESUMO
Os trabalhos iniciais de Labov deram a ver a conceção de heterogeneidade ordenada a
partir da ideia de que a sociedade em que uma dada língua era meio de expressão era
constituída por diferenças de idade, género e rendimento, que se repercutiriam nas
atualizações particulares de itens formais dessa mesma língua. Estes poderiam ser
obtidos em interações rápidas, espontâneas e abaixo do nível de consciência,
automáticas, portanto. As experiências dos armazéns de NI assim permitiram quantificar
diferentes sons, indicadores de registos, na aceção sociolinguística que diz que não são
variantes livres, mas signos indexicais sociais as produções de normas tidas por
vernaculares ou prestigiantes. Se a sociolinguística variacionista toma por objeto a fala
vernacular ou espontânea, obtida sob entrevista de que constam perguntas,
oportunamente introduzidas pelo linguista para uma menor monitorização do falante, a
perspetiva comunicacional, que releva o papel do contexto, considera já a fala nas
circunstâncias em que ela se inscreve, como interação. A tradição norte americana tem
Hymes por percursor. Gumperz traz convenções de notação próprias às especificidades
da comunicação verbal, feita de sobreposições, de elipses e de reformulações, que se
traduzem em aparentes desarticulações sintáticas. Estas, quando descritas pela
pragmática, são sequências vistas em função de interrupções eventuais em que as
imagens dos interlocutores, designadamente, influem. O fluxo interacional é visto ser
determinado, portanto, por sequências formais – haja em vista a extensão, como critério
que o estudo pretende objetivar.
Disse-me que, durante esse tempo, as palavras tinham sido o que acreditava.
Depois, suspendeu um olhar calado. Eu, porque não sabia o que dizer-lhe,
disse estou bem. Ela sabia que queria falar comigo, mas também não sabia o
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
Introdução
Frase incompleta e discurso relatado
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
Metodologia
Metodologia do projeto de investigação
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
O exemplo está transcrito para que fique evidente como houve aqui a omissão da
notação por barra oblíqua, sendo uma ocorrência de reformulação, sob convenção
HIAT.
As notações a seguir comentadas são menos inequívocas e levam à proposta de
que a análise apenas atenda a interrupções que, no decurso do inventário, serão
reanalisadas como reformulações textuais-discursivas, pela sua extensão (v. adiante, a
secção de “Discussão”. Indica-se que haverá uma validação interacional da norma da
fala, que não a atestação de sequências entre pontos finais (frases) cuja defetividade
ateste eventuais omissões de constituintes. Logo, os eventos transcritos serão reduzidos
à funcionalidade que tiveram na segmentação mas não serão critério desta. Em análise,
tal segmentação é já descrição e não, já, separação aleatória. Mostra-se em
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
como na fala do informante a última sequência é elíptica, o que não vem assinalado pois
a notação sob ortografia do português tem no mesmo evento pergunta cujo referente é
recuperável para a (auto)resposta formulada.
Donde, há limites da notação, que não tem toda a análise, mesmo respeitante a
formas. Inversamente, a notação colocada aplica-se à palavra e não à sua expansão
minimamente mais extensa, com determinante. O exemplo abaixo é assistemático na
medida em que a repetição do sintagma inicial fica indemne, mas não o acordo da
preposição com o artigo entretanto pretendido, que, prefigurado mentalmente, leva à
reformulação da preposição em face do que se veio a codificar.
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
Por exemplo, a confusão entre flexão verbal no verbo “ir” no presente na 1.ª e 3.ª
pessoa foi já notada e poderia tender a ser atribuída a níveis de menor escolaridade, ou
da fala regional. O facto de a entrevistadora, logo após o seu informante usar a forma de
1.ª pessoa, produzir a sequência de 3.ª poderia autorizar esta última forma fonética, pois
que vinha de ser ouvida, no que poderia funcionar como gatilho sociolinguístico. Assim,
exercitando o perfil de entrevistadora contido nas referências bibliográficas clássicas
sociolinguísticas, poderia estar em vias de usar e consequentemente, autorizar, uma
forma variável, eventualmente regional ou espontânea, vernacular, portanto. Como tal, o
caráter instruído ou reflexivo do referido desempenho suscitaria a forma, procurando
funcionar como menor, ou escassa, monitorização do discurso junto do entrevistado.
A mera contagem de produções – eventualmente desvinculadas do alinhamento
ao som – nada diz quanto a eventuais confusões ou convergência paradigmática verbal
entre pessoas do singular do verbo “ir”, na flexão no presente. Constar de uma
entrevista a forma, não é o bastante para correlacioná-lo a estratificações educacionais
ou etárias.
Considere-se uma extensão maior, como abaixo e chegamos a ter interrupção, o
que pode ser interpretado como vigilância maior. Contudo, a forma convergente
eventual não chega a ser produzida.
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
elipse. Esta segunda linha consta de uma relativa frequente mas não normativa. Antes
da repetição lexical está a indicação de interrupção. Contudo, a terceira figura mostra
material lexical subsequente que autoriza que se perceba que a sílaba inicial do verbo
“rebentar” foi o que o sujeito não completou. Donde, há que fazer notar que a
codificação oral em vias de ser feita é uma reformulação discursivo-textual que pede
outras segmentações e notações. O informante está a produzir sequências menos
gramaticais porque está afetado pelo que diz, na lembrança de situação extrema. Está a
repetir sequências, donde a análise deve ficar pelo verbo das predicações em vias de
serem formuladas para produzir, a partir dele, a descrição, do que as normas ortográfica
e de reformulação atida a um só lexema, que não estruturas mais extensas, se revela
improcedente.
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
A repetição de palavras parece ser a chave para descrever uma fala longa que
parece entrecortada. Ao final da primeira figura, primeira linha, consta uma
reformulação o mais à direita. Se atendermos a que o limite final da sequência (em vias
de reformulação, consoante notado por /) marca a modalidade negativa da asserção que
está a ser produzida, torna-se evidente como é um falso começo e, portanto, sob a
notação HIAT estaria em causa assinalar a elipse. A segunda linha da figura tem a
continuação a partir do mesmo referente mais saliente (de o local da bola a
reformulação retem esta última). Aí o agente é preferido em nova asserção, ainda sob
modalidade negativa, de que o advérbio terá sido índice psicológico precoce de que o
falante está a pensar em definir por via de infração, como esquema mental mais geral, o
que é linguisticamente representado, de certa forma, por “não”.
A extensão da sequência pede que os instrumentos de análise sejam
representacionais. Donde, está em causa, por um lado, mais do que observar que
ordenações sintáticas são seguidas e, por outro, que a proposta de definição é difícil,
pesada cognitivamente, designadamente em face de quem se pode julgar,
intersubjetivamente, não vir a entender, ou previamente partilha de, a definição. Tal
suposição ter sido feita funcionar é, ainda, estratégia da entrevista, em que o
entrevistador sociolinguista se pretenderia não detentor de conhecimento, apenas para o
elicitar, nas formas mais vernaculares.
Os dados obtidos para esta dada entrevista, que vem a permitir, no âmbito deste
artigo, invalidar algumas notações, sua observância e descrição linguística, é
correspondente a um entrevistado de 60 anos. Contém interrupções e reformulações
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
(sob tradução das convenções HIAT respetivas para “aborted utterances” e “repair”)
abundantes e, por vezes, relativamente síncronas. Donde, os dados apresentados foram
descritos com contributo quer do alinhamento som/fala, pois que a revisão ouviu a
gravação enquanto revia a transcrição, quer de bibliografia interacional fundacional.
De ambos – do processo de revisão de gravação e das leituras de referências no
domínio interacional – resulta que interrupções não podem ser classificadas
independentemente de falantes, donde a descrição da fala não pode ser feita sem
princípios pragmáticos. É de ressalvar que a transcrição da fala sob notação é já um
primeiro nível de análise, porque segmentar para transcrever e assinalar se há frases
incompletas (sob interrupção, portanto) entrecorta analiticamente as falas.
Assim, interrupção e reformulação não são meras notações a convencionar,
antes, dependem do fluxo interacional de tal modo que algumas sequências podem ter
sido assistematicamente transcritas devido à inobservância das tomadas de vez e do que
a sua alternância afeta as formas do discurso.
Os contributos teóricos da microssociologia (Goffman, 1955) e a notação
adotada, um primeiro nível da análise, portanto, bem assim como o processo de revisão
estabeleceram que a convenção decisiva relativamente à fala e questões de
gramaticalidade, tal qual está dependente da co-construção discursiva, diz respeito à
interrupção.
Diferente desta é a reformulação, definida como uma correção iniciada pelo
próprio falante. Sendo assinalada na fala transcrita com uma barra oblíqua, ficará
sempre num dado nível (“trier”) da transcrição. Assim, não poria problemas como os
diagnosticados para a interrupção, em que formas orais são gramaticais se recuperarmos
determinada porção, ou lapso antecedente, do discurso, indistintamente de um qualquer
dos interlocutores. Ambos os fenómenos são frequentes e caraterizadores da oralidade,
donde a sua descrição importa num projeto que visa descrever a fala de modo empírico,
pela amostra de falantes bracarenses escalonados em idade e escolaridade.
Interrupções e reformulações são típicos da fala. Se o texto oral se carateriza
relativamente ao texto escrito como sendo feito de sequências fonéticas que dão
expressão a formas mais ou menos espontâneas – pelo menos de uma codificação feita
em tempo real, sem a planificação que a escrita pode ter, à que podem suceder versões
trabalhadas e sucessivas, de que podemos não ter vestígios, aquele dá à descrição os
dados reais de sequencialização discursiva suscetíveis de serem relacionados a
condições de produção de natureza cognitiva, como memória. Assim, o texto oral
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
Conclusão
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Simpósio 38 – Estudos sociolinguísticos e socioculturais em língua portuguesa
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bayley, R. & Lucas (Eds.). 2007. Sociolinguistic Variation: theories, methods, and
applications. Cambridge, CUP.
865
SIMPÓSIO 44
DIVERSIDADE DIALETAL, MULTILINGUISMO
E CONTATO DE LÍNGUAS:
IMPLICAÇÕES PARA A GRAMÁTICA DAS LÍNGUAS
NATURAIS NA PERSPECTIVA DOS ESTUDOS
LINGUÍSTICOS FORMALISTAS
COORDENADORES
RESUMO
Este trabalho tem como objetivos investigar a relação entre linguagem e outros domínios da
cognição, além de alimentar a reflexão acerca da relevância de se repensar o ensino de
língua portuguesa. Mais especificamente, busca-se verificar como o uso de orações
passivas pode interferir na compreensão de enunciados de problemas matemáticos e
impactar o raciocínio para a sua resolução. São apresentados problemas matemáticos
adequados a diferentes séries escolares, com formulações em que se apresentam sentenças
ativas, passivas perifrásticas ou passivas pronominais, seguidos de perguntas de
compreensão. São avaliadas tanto a capacidade em prover o resultado ao problema quanto a
habilidade de compreensão dos enunciados apresentados. Os resultados indicam que o tipo
de sentença utilizado no enunciado pode interferir na sua resolução, sendo os melhores
resultados alcançados quando a ativa está presente. A questão da competência linguística
do aluno e a formação de uma periferia marcada da sua gramática nuclear, no sentido de
Kato (2005), para a apreensão de habilidades necessárias no âmbito escolar são debatidas.
Introdução
1 Marina R.A. Augusto (UERJ, Instituto de Letras, Departamento de Estudos da Linguagem) R. São
Francisco Xavier, 524 – 11 andar – CEP: 20550-900 - Rio de Janeiro-RJ-Brasil – marinaaug@uerj.br.
Rafaella Faria Alves de Souza (Bolsista FAPERJ 26/200.830/2015 - UERJ, Instituto de Letras, Departamento
de Estudos da Linguagem) R. São Francisco Xavier, 524 – 11 andar – CEP: 20550-900 - Rio de Janeiro-RJ-
Brasil – rafaellafaria1@gmail.com.
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
870
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
uma estrutura complexa, adquirida mais tardiamente em várias línguas (Maratsos et al.
1985; para o português, Estrela, 2013 (português europeu - PE); Lima Júnior, 2012 (PB)).
Essa relação entre estruturas passivas em enunciados matemáticos e o impacto
daquelas para a resolução destes foi investigada por Correia (2003) para o PE. Este estudo,
focalizando o PB, toma como base aquele, fazendo uso do mesmo tipo de metodologia para
a coleta dos dados.
O artigo organiza-se da seguinte maneira: na seção 1, a seguir, apresenta-se a
estrutura passiva. A seção seguinte traz o experimento utilizado, apresentando-se os
resultados obtidos, seguidos de uma breve discussão. A seção 3 apresenta nossas
considerações finais, trazendo-se uma reflexão acerca da relevância dos dados apresentados
para se repensar o papel do ensino de língua portuguesa no âmbito escolar, no Brasil.
1. A estrutura passiva
871
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
como em (3):
3. Atenderam-se os alunos do Ensino Médio
Assume-se que, na passiva pronominal, (i) o argumento interno recebe caso
nominativo, embora sua posição tenda a ser a pós-verbal; (ii) o elemento “se”
desempenharia o papel de argumento externo implícito; e (iii) constituintes como agentes
da passiva não seriam permitidos. Veja-se (4) a seguir:
4. *Encontraram-se as crianças pelos bombeiros.
Algumas propostas, como a de Duarte (2003), defendem que a passiva pronominal é
efetivamente uma construção passiva, com o “se” como argumento externo (o que explica a
impossibilidade da presença do agente da passiva no sintagma nucleado por “por”). Raposo
& Uriagereka (1996) e Martins (2005), por outro lado, não consideram essas construções
passivas, no PE. Para esses autores, os SNs pós-verbais não são sujeitos sintáticos, mas
complementos que podem desencadear a concordância com o verbo enquanto o clítico –se
ocupa a posição de sujeito sintático. Em relação ao PB, já Nunes (1991) chamava a atenção
para a perda da concordância nesse tipo de sentenças, dando origem a uma construção de
sujeito indeterminado.
5. Vende-se casas.
Outro ponto a considerar é a presença de construções médias nessa língua. Veja-se a
esse respeito Silva & Naves (2010) e Salles & Naves (2009):
6. Vende casa fácil nessa rua.
Uma das principais análises que tem sido adotada para a construção passiva
perifrástica é a de Collins (2005), em que se propõe uma projeção específica para a passiva
- Voice, e também um movimento particular, denominado smuggling:
7.
872
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
873
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
mais tardia, sendo que a passiva pronominal está em franco desuso no PB e sua construção
pode se confundir com outros tipos de estruturas mais frequentes na língua. Logo, é
possível prever uma dificuldade de processamento dessas construções que possa interferir
na sua interpretação, impactando a compreensão e raciocínios dependentes desta. Tendo
isso em conta, nossa investigação busca verificar, tomando como base um estudo
desenvolvido por Correia (2003), para o PE, o impacto do uso de estruturas ativas ou
passivas na compreensão de enunciados de problemas matemáticos, adotando uma
metodologia experimental, de natureza psicolinguística.
874
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
A aplicação dos exercícios contemplou o tempo utilizado por cada aluno para a sua
resolução. As seguintes previsões foram feitas: (i) se a passiva é uma estrutura mais
complexa que a ativa, cuja compreensão pode ser dificultada no PB, o que impactaria o
raciocínio dependente da sua compreensão, então mais resoluções adequadas dos
problemas matemáticos são esperadas para aqueles cujos enunciados contemplem orações
ativas; (ii) se essa dificuldade de compreensão da passiva é apenas imediata, sendo
superada diante do tempo disponível para a leitura e releitura do enunciado do problema,
pode-se esperar que isso se reflita em tempo maior consumido na resolução dos problemas
cujos enunciados apresentem a voz passiva; (iii) se há uma distinção entre a passiva
perifrástica, mais comum, e a passiva pronominal, em desuso, pode-se esperar também
distinção de comportamento entre os problemas cujos enunciados contemplem cada tipo de
passiva, com mais resoluções equivocadas para a passiva pronominal: (iv) se essa
dificuldade com a estrutura passiva pode ser superada, sendo minimizada via exposição à
estrutura na escola, espera-se menor impacto da estrutura linguística utilizada nas séries
mais adiantadas.
Os dados obtidos foram codificados, considerando-se três aspectos: raciocínio,
cálculo e resultado. Essa codificação dos dados permitiu a submissão ao pacote estatístico
ez-ANOVA, tomando-se tipo de sentença utilizada no enunciado (com três níveis: ativa,
passiva perifrástica ou passiva pronominal) e tipo de exercício (com quatro níveis: ex. 1 –
subtração, ex. 2 – divisão, ex. 3 – multiplicação, ex. 4 – subtração com centenas) como
variáveis independentes. Tomou-se como variável dependente o número de acertos para a
resolução dos problemas matemáticos, refletido no total de pontos para os três aspectos
considerados para cada problema.
Apresentam-se os resultados para o quarto ano, que contou com 33 alunos
respondendo às atividades. A análise estatística indica um comportamento diferenciado
com efeitos significativos para Tipo de sentença utilizada no enunciado (F(2,64) = 8,36
p<0,000594), com mais acertos nas ativas e Tipo de exercício (F(3,96) = 18,70
p<0,000001), com mais erros para o exercício de divisão, independentemente do tipo de
sentença presente no enunciado. O gráfico abaixo apresenta as médias de acerto em função
de tipo de sentença utilizada no enunciado do problema matemático.
875
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exercícios (previsão (iii)). Ainda em relação ao tempo, verificou-se que não é possível
afirmar que as passivas demandem, em geral, mais tempo para a resolução dos exercícios
(previsão (ii)). Isso apenas se confirmou em relação à passiva perifrástica. Os resultados
das demais séries do ensino fundamental, ainda em análise, poderão apontar se esses
problemas serão superados com a progressão escolar, de modo a se verificar a relevância da
previsão (iv).
A observação das respostas dos alunos às perguntas de compreensão dos enunciados
matemáticos, repetidas a seguir,
13. Quem quebrou?
14. O que se quebrou?
15. Onde se quebraram?
revelou que a primeira pergunta, que solicitava informações sobre o agente da ação e,
portanto, nos enunciados com passivas perifrásticas e pronominais implicava a
identificação de um agente indeterminado, obteve maior média de respostas corretas nos
problemas que apresentavam enunciados na voz ativa. A análise estatística ez-ANOVA
indica um efeito principal para tipo de sentença (F(2,64) = 17,6 p<0,000001), conforme o
gráfico a seguir demonstra.
878
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3. Considerações finais
879
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
com passivas pronominais gerou para se obter uma resposta precisa e detalhada do que
estava sendo perguntado. A continuação da pesquisa, com a análise dos resultados das
demais séries do ensino fundamental, poderá indicar se esses problemas são superados com
a progressão escolar.
Conforme mencionado, a noção de gramática nuclear e de periferia marcada de
Kato (2005) é pertinente para a discussão dos resultados aqui obtidos. A construção passiva
se mostra mais complexa, de aquisição mais tardia, sendo que a passiva pronominal está em
desuso no PB coloquial, embora seu uso em enunciados matemáticos seja bastante
característico. Habilidades necessárias no âmbito escolar incluem certos usos de normas
linguísticas que precisam ser apresentadas e trabalhadas com os alunos. Uma maior
familiaridade com essa estrutura é obtida apenas com o letramento, notadamente no
contexto escolar. Os professores devem estar cientes dessas particularidades a fim de
adequadamente controlar a relação forma versus função na construção do conhecimento:
forma nova com função conhecida, forma conhecida para uma função nova, ou seja, uma
nova forma (inclusive linguística) deve ser apresentada com funções já conhecidas, ao
passo que uma nova função (incluindo-se, aí, a prática na resolução de problemas
matemáticos) pode ser facilitada com o uso de formas já dominadas (linguisticamente
falando).
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Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 44 - Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas: implicações para a gramática das línguas naturais na perspectiva
dos estudos linguísticos formalistas, 883-894
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p883
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
A presente pesquisa tem o objetivo de investigar as características sintáticas e semânticas
de orações reduzidas de gerúndio. A peculiaridade dessas construções consiste
principalmente no fato de essas orações gerundivas não terem como referente apenas o
sujeito ou o objeto da oração principal e sim todo o conteúdo veiculado pela oração
principal. Dentro da literatura gerativista, vários trabalhos como o de Moutella (1995) e o
de Lopes (2008) já investigaram as propriedades das orações reduzidas de gerúndio com
sujeito oracional. No entanto não há uniformidade entre os trabalhos realizados sobre as
propriedades sintáticas e semânticas de tais orações, nem mesmo há a formulação de uma
proposta teórica que dê conta de explicitar suas propriedades. Vale ressaltar que esse tipo
de oração reduzida não recebeu nem mesmo descrição nas gramáticas tradicionais
brasileiras.
1. Introdução
(1) a.[O índice foi reduzido para zero]i, [i] tornando a lei mais eficaz
b. [O país tomou medidas sérias em relação à corrupção]i, [i] fazendo a nação
crescer.
2 UnB, Instituto de Letras, Programa de pós graduação em Linguística, SQS 306 bloco E apt.303, 70353050,
Brasíllia, DF, Brasil, camilaparca@gmail.
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
(2) a. Virou-se e viu a mulher / dando com a mão / fazendo sinal / para que ele
voltasse
b. Viu um grupo de homens / conversando.
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(3) a. Passando hoje pela porta do meu compadre José Amaro, / ele me convidou
para tomar conta de sua causa.
b. Pressentindo / que as suas intenções haviam sido adivinhadas, Macedo tentou
minorar a situação.
c. Aqui mesmo, / ainda não sendo padre, / se quiser florear com outros rapazes, e
não souber, há de queixar-se de você, Mana Glória.
d. Pensando bem, / tudo aquilo era muito estranho.
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Para esta autora, essas construções aproximam-se das orações coordenadas e podem
ser interpretadas como em Avião cai e mata 150 pessoas.
Em Lopes (2008) usa-se a terminologia de “orações gerudivas apositivas de foco”
para se referir as orações gerundivas com sujeito oracional, estrutura sque possuem a
característica de ter o sujeito da oração reduzida referente à situação descrita na matriz e
não um elemento nominal dela, o sujeito do gerúndio seria um PRO de controle coindexado
com a oração inteira. Para demostrar sua hipótese faz o teste com a nominalização (p. 69,
ex. (94a-c) e (95a-c)):
886
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
(11) a. O índice foi reduzido para zero, tornando a lei mais eficaz.
a’. *Tornando a lei mais eficaz, o índice foi reduzido para zero.
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
(iii) podem ser transformadas em orações relativas iniciadas por “o que”. Esse último fato
permite que passemos a levar em consideração a possibilidade das orações gerundivas com
sujeito oracional se comportarem de forma parecida com as orações relativas livres ou
semi-livres.
(12) a. O índice foi reduzido para zero, tornando a lei mais eficaz
a’. O índice foi reduzido para zero, o que tornou a lei mais eficaz
b. O país tomou medidas sérias em relação à corrupção, fazendo a nação crescer.
b’. O país tomou medidas sérias em relação à corrupção, o que faz o país crescer
c. A participação de todos é indispensável nessa luta contra as infrações, reduzindo
as vítimas de álcool.
c'. A participação de todos é indispensável nessa luta contra as infrações, o que
reduz as vítimas de álcool.
d. A conscientização da população veio com a diminuição do número de mortes em
acidentes de trânsito, mostrando os efeitos positivos dessa lei.
d'. A conscientização da população veio com a diminuição do número de mortes em
888
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Em Móia (1996) o autor mostra algumas características das orações relativas livres,
para tanto mostra aspectos que as aproximas das orações relativas com antecedente e as
separa das orações interrogativas indiretas. É conhecido o fato de as orações relativas sem
antecedente expresso se comportarem normalmente como “ilhas-Q”, isto é, de não
permitirem a extração de um seu constituinte por movimento-Q. Neste aspecto essas
estruturas oracionais aproximam-se das orações relativas com antecedente expresso e
afastam-se das chamadas orações interrogativas indiretas.
889
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
(19) a. O índice foi reduzido para zero, o que tornou a lei mais eficaz.
a’. *Esta é a lei que o índice foi reduzido para zero
b. O país tomou medidas sérias em relação à corrupção, o que fez a nação crescer
b’. *Esta é a nação que o país tomou medidas sérias em relação à corrupção.
c. A participação de todos é indispensável nessa luta contra as infrações, o que
reduziu as vítimas de álcool.
c’.*Estas são as vítimas de álcool que a participação de todos é indispensável nessa
luta contra as infrações.
d. A conscientização da população veio com a diminuição do número de mortes em
acidentes de trânsito, o que mostrou os efeitos positivos dessa lei.
d'. *Estes são os efeitos positivos da lei que a conscientização da população veio
com a diminuição do número de mortes.
e. Mostraremos a importância do café solúvel, o que apresenta o porquê da compra
desse tipo de café.
e'. *Este é o porquê da compra desse tipo de café que mostraremos a importância do
café solúvel.
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Vemos que as relativas livres como (19a) não possuem um antecedente nominal
realizado, ou seja, o pronome “quem” não possui um referente realizado na oração
principal. Já em (19b) temos uma oração relativa com antecedente, dessa forma o pronome
possui um antecedente nominal realizado, nesse caso “As pessoas”.
Aqui conseguiremos diferenciar as relativas livres das relativas com antecedente, o
autor considera, nas orações relativas livres, “o que” como um morfema relativo e não,
como por vezes é sugerido, uma sequência artigo + pronome relativo.
• O autor distingue as ocorrências de o que, sendo que o caso a ser estudado é a ocorrência
de o que como morfema relativo. Vejamos a diferença de ocorrência (Móia, 1992:10, ex.21
e 22):
(20) Este livro não é meu. O que te emprestei tinha a capa vermelha.
(21) Estes livros não são meus. Os que te emprestei tinham a capa vermelha
(22) Deves devolver-me o que te emprestei.
(23) Deves devolver-me aquilo que eu te emprestei.
Teste
(24) a. O índice foi reduzido para zero, o que tornou a lei mais eficaz
a’. Os índices foram reduzidos para zero, *os que/ isso tornou a lei mais eficaz
b. O país tomou medidas sérias em relação à corrupção, o que faz a nação crescer.
b’. Os países tomaram medidas sérias em relação à corrupção, *os que/ isso faz a
nação crescer.
c. A conscientização da população só veio com a diminuição do número de mortes
em acidentes de trânsito, o que mostra os efeitos positivos dessa lei.
c’. A conscientização das populações só veio com a diminuição do número de
mortes em acidentes, *os que/ isso mostra os efeitos positivos dessa lei.
d. Mostraremos a importância do café solúvel, o que apresentará o porquê da
compra desse tipo de café.
891
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
d'. Mostraremos a importância dos cafés solúveis, *os que/ isso apresentará o
porquê da compra desse tipo de café.
Esse teste, além de mostrar que nas orações gerundivas aqui estudadas o “o que”
seria um morfema relativo, também mostra que a referência do pronome não é um elemento
nominal da oração principal. Não importa qual elemento nominal da oração principal
coloquemos no plural, a oração sempre fica agramatical com a substituição de “o que” por
“os que”
Segundo Braga, Kato & Mioto (2009) as relativas livres: constituem outro tipo de
relativa, formalmente distinto das relativas com núcleo nominal. Elas são chamadas de
livres porque nunca modificam um núcleo nominal (p.247):
(19) a. Tem quem figa que não, que a sociologia do direito é estudada por quem faz
ciência social... sociologia jurídica. (complemento, agente da passiva)
b. eles devem aprender o que a gente ensina. (complemento)
c. eu acho que morar bem é morar fora da cidade... é morar onde você respire...
onde você acorde de manhã... (complemento)
d. então ficou muito bonito quando a gente entrou... (adjunto)
e. Ele fez os bolinhos como manda a receita. (adjunto)
f. Aquele advogado cobra quanto quer pelas consultas. (complemento)
g. Faça uma boa apresentação das casas à venda, pois ele vai comprar qual a filha
escolher. (complemento)
892
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Uma análise formal das construções-Q mostra que uma relativa com núcleo nominal
é tradicionalmente considerada um modificador desse núcleo tendo a função paralela à de
um sintagma adjetival (SA). A forma usual de representar um adjunto é dobrar a categoria à
qual o constituinte está adjungido. (p.273, 274):
(20) a. carros muito pesados com cargas muito pesadas... trafeguem... acima, quer dizer,
acima do peso [para o que ela foi construída].
b. [NP [NP peso]] [CP para que [C [ TP [ela foi construída] ]]]]
Em (20b) está anotada a categoria vazia marcando o lugar de onde o pronome-Q foi
movido, análise que é aplicada a uma relativa padrão. Como a área de pouso do pronome-Q
é o SC, dizemos que o traço, que podemos chamar de [+Qrel], está em C. Por ser a relativa
dependente, p traço [+Qrel] que atrai o pronome Q está subordinado à sentença matriz, mais
propriamente ao núcleo nominal da relativa. Por isso, se existe pronome-Q nos domínios do
traço [+Qrel], ele é obrigatoriamente atraído para o especificador de SC.
As relativas livres que são complemento de verbo são representadas da seguinte
maneira:
(21) a. Eles devem aprender o que a gente ensina
b. [TP Eles [VP devem aprender [CP o que [C [TP a gente ensina ]]]]]
Essa seria, portanto, uma representação possível para as orações gerundivas com
sujeito oracional quando as introduzimos por “o que”, porém ainda precisamos encontrar
uma forma de representar o fato de que, neste caso, o sujeito da oração encaixada é toda a
informação contida na oração principal.
4. Considerações finais
893
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
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Simpósio 44 - Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas: implicações para a gramática das línguas naturais na perspectiva
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ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p895
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo apresentar contribuições teóricas e empíricas para um
melhor entendimento e consequente aplicação da proposta de Kato (2005). A referida
autora propõe uma divisão entre Gramática Nuclear e Periferia Marcada para dar conta de
algumas variações e irregularidades encontradas nos falantes. Iniciamos nos apoiando em
trabalhos já realizados para elaborar uma lista de critérios que possam ser avaliados como
úteis para que seja possível delimitar quais fenômenos sintáticos pertenceriam a cada um
dos componentes propostos por Kato (2005). Uma experiência com um teste de julgamento
de gramaticalidade, com o tópico da colocação pronominal, aplicado a falantes brasileiros
com nível superior, é descrita como sendo uma fonte relevante para a obtenção de dados
que informarão a respeito da delimitação acima exposta. Nossos comentários finais
procuram ir além da contribuição para a pesquisa acadêmica, pois visamos também sua
aplicação prática em situações formais de ensino que possam vir a se beneficiar da divisão
proposta por Kato (2005).
Introdução
895
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Pressupostos teóricos
896
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Marcada, que seria acrescentado à Gramática Nuclear dos falantes através de sua
experiência linguística.
Kato (2005) utiliza o conceito clássico de Gramática Nuclear, tal como proposto por
Chomsky (1981), como sendo o conjunto dos conhecimentos linguísticos detalhados e
estabelecidos de forma natural após o processo de aquisição da linguagem pela criança. Já o
conceito de Periferia Marcada é uma inovação da autora que aproveita o termo cunhado por
Chomsky (1981) para redefini-lo. Chomsky (1981) pensou a Periferia Marcada como sendo
o conjunto de construções pertencentes à Gramática Nuclear que seriam adquiridas mais
tardiamente, embora ainda no processo de aquisição da linguagem. Kato (2005) chama de
Periferia Marcada um conjunto de expressões linguísticas que seriam fruto da experiência
individual de cada falante e que seria constituído por construções irregulares, formas
arcaicas ou contraditórias às que fazem parte da Gramática Nuclear do indivíduo. Pronomes
como vós e cujo e a colocação enclítica seriam exemplos dessas construções, que não
fazem parta da Gramática Nuclear do falante brasileiro, mas que podem ser recuperadas,
ainda que de forma irregular, pelo contato com ambientes linguísticos que contenham essas
construções, tais como textos formais, histórias infantis, a Bíblia, entre outros.
Neste momento, acreditamos que cabe realizar uma observação sobre a terminologia
empregada por Kato. Note-se que a autora não utilizou a expressão Gramática Periférica
para nomear o conjunto acima descrito, mas sim Periferia Marcada. Para nós, trata-se de
um indício de que a autora não deseja dar a esse conjunto um status de regularidade e
produtividade que é conferido, de modo natural, à Gramática Nuclear. Caso nossa
interpretação esteja correta, e assumiremos isso aqui, então essa distinção trará importantes
consequências no momento de delimitar quais construções sintáticas pertencem a cada um
dos componentes propostos por Kato (2005).
Avelar (2006) empreende um estudo com a finalidade de investigar a alocação dos
verbos ter e haver de acordo com a proposta de Kato (2005). Após realizar análises de
cunho teórico e de dados linguísticos, o autor conclui pela alocação do verbo ter na
Gramática Nuclear e pela do haver na Periferia Marcada. Kato (2006) rebate a
argumentação de Avelar (2006), pois uma vez que o mesmo considera ter como uma
categoria funcional e haver como uma categoria lexical, não haveria razão teórica para a
alocação dos dois em componentes distintos, já que não haveria competição entre eles. Um
897
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
cenário em que ambos pertencessem à Gramática Nuclear, segundo a autora, não seria
implausível.
As conclusões opostas a que Avelar (2006) e Kato (2006) chegaram a respeito do
ter e haver são nosso ponto de partida para uma reflexão que conduza o estudioso
interessado em aplicar a proposta de Kato (2005) a construções sintáticas. Avelar (2006)
reúne uma série de argumentos que levam à distinção entre os verbos e os componentes nos
quais eles estariam alocados; Kato (2006) observa um detalhe desses argumentos para
apontar uma alternativa à conclusão de Avelar (2006). Consideramos ser importante que
haja critérios que possam ser objetivamente aplicados e seguidos e, a partir deles,
estabelecer, caso seja necessário, um contraditório a respeito de uma conclusão ou outra.
O primeiro item que surge como critério para comparar construções sintáticas pode
ser chamado de Coerência Interna. Sabe-se que algumas categorias funcionais estão
atreladas a outra, seja para sua existência ou pela ordem na estrutura arbórea. O mesmo
acontece com traços formais: em algumas versões do Programa Minimalista, alguns
sintagmas devem portar um tipo de traço que seja compatível com um traço que está em
uma dada categoria funcional. Como esse critério se aplica ao caso da investigação a
respeito da Gramática Nuclear e da Periferia Marcada? Podemos iniciar a argumentação
partindo da assunção de que em Português Brasileiro, para dar conta de estruturas sintáticas
básicas, é necessária a presença de uma categoria funcional X que porte o traço formal Y.
Com duas construções sintáticas sob investigação de pertencerem à Gramática Nuclear ou à
Periferia Marcada, aquela que não precisasse de estipulação de categorias ou traços extra e
que se encaixasse na assunção acima seria considerada como pertencente à Gramática
Nuclear. A título de exemplo, a mesóclise parece requerer, como se nota em Manzini e
Savoia (2011), um tipo de estrutura interna, com requerimentos morfológicos e sintáticos
específicos do verbo para permitir a inserção de um pronome. Para dar conta da mesóclise
no Português Brasileiro, seria legítimo estipular essa estrutura interna, somente para esse
caso? E mais, essa estrutura interna seria compatível com as demais construções de
colocação pronominal?
Acreditamos que esse critério, que podemos ver de certo modo na análise de Kato
(2005) a respeito da ênclise no Português Brasileiro, possui a vantagem de não depender da
obtenção de dados empíricos e seguiria o percurso metodológico do trabalho em Teoria
898
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
899
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Metodologia
Nosso teste foi elaborado com base na metodologia aplicada em Kenedy (2005)
para o estudo da estrutura, do processamento e da aquisição de sentenças de cláusulas
relativas preposicionadas em Língua Portuguesa. O pesquisador desenvolveu um teste de
juízo de agramaticalidade no qual empregou a metodologia experimental off-line
controlado, o que permitia que o tempo empregado pelo respondente para emitir seu juízo
fosse registrado pelo computador. Em suma, o teste consistia na apresentação de
construções linguísticas que, após serem exibidas, deveriam receber um juízo de
gramaticalidade pelo informante.
Com base na metodologia utilizada em Kenedy (2005), criamos um experimento de
juízo de gramaticalidade com foco em estruturas pronominais: próclise, ênclise e mesóclise.
O teste é composto por vinte quatro sentenças que se dividem nas seguintes categorias: (1)
próclise gramatical, (1’) próclise agramatical; (2) ênclise gramatical, (2’) ênclise
agramatical; (3) mesóclise gramatical, (3’) mesóclise agramatical; (4) sentenças simples
gramaticais; (4’) sentenças simples agramaticais. As sentenças foram organizadas em cada
categoria de acordo com os critérios de colocação pronominal previstos em Leitão (2007).
Para cada categoria, há dois exemplos, com exceção das categorias 4 e 4’ que apresentam
seis sentenças cada. A seguir estão listados os exemplos de cada categoria:
900
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
6 Durante a apresentação da comunicação, fomos alertados de que essa sentença não seria agramatical, apenas
violaria uma regra da Gramática Normativa. Compreendemos e aceitamos esse ponto de vista, no entanto,
preferimos manter essa sentença como agramatical levando em conta essa restrição da Gramática Normativa
que termina por atingir todos os falantes.
901
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
sentenças, para que esteja de acordo com a gramática normativa, deveria figurar da seguinte
forma: “preparar-me-ia” e “visitar-te-ei”.
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
903
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Resultados
904
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Próclise
As sentenças com próclise gramatical foram consistentemente aceitas. Já as com
próclise agramatical levaram a desempenhos distintos do que se deveria esperar de
participantes universitários, como se pode ver na Tabela 2:
76,4%
72,7%
54,5% 52,9%
O professor disse que me não
viu na escola ontem
Eu te nunca pedi um favor
Simonsen UERJ
905
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Ênclise
As sentenças com ênclise gramatical foram consistentemente aceitas. Já as com
ênclise agramatical apresentaram, também, desempenhos distintos do que se deveria
esperar de participantes universitários, como se pode ver na Tabela 3:
94,1%
Simonsen UERJ
906
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Mesóclise
Para os dados de mesóclise, analisamos tanto as sentenças agramaticais quanto as
gramaticais, por estas revelarem um padrão de rejeição distinto do observado nos dados de
próclise e ênclise.
Iniciamos com as sentenças gramaticais com mesóclise, com os percentuais as taxas
de rejeição na Tabela 4 e os percentuais no Gráfico 3.
45,4%
8,9%
5,9%
Simonsen UERJ
Os números da Uerj são compatíveis com o perfil esperado: baixo índice de rejeição
de sentenças gramaticais. Os números percentuais dos alunos da Simonsen, no entanto,
revelam altas taxas de rejeição para um tipo de estrutura que é considerado gramatical.
Considerações mais detalhadas sobre esse resultado serão apresentadas na seção final desse
texto.
907
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
72,7%
63,7%
55,8%
52,9%
Visitarei-te-ei assim que eu
voltar de viagem
Simonsen UERJ
Considerações Finais
908
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
pertence à Gramática Nuclear ou à Periferia Marcada, sendo esses conceitos definidos tal
como em Kato (2005)?”. Embora nossas intuições possam servir de guia para a resposta à
questão levantada, parece haver um caminho mais árduo para se atingir uma adequação
mais sólida a essa resposta.
A situação gerada pelo trabalho de Avelar (2006) e a réplica de Kato (2006) serve
de alerta. Na comparação entre ter e haver, a tentação de se guiar pela intuição levaria o
pesquisador a alocar o verbo ter na Gramática Nuclear e o haver na Periferia Marcada.
Avelar foi além e procurou se embasar além de dados de juízo de gramaticalidade para
outros corpora e discussões teóricas, para justificar o que a intuição proporia. Kato (2006),
no entanto, mostrou que ambas os verbos poderiam estar na Gramática Nuclear, sem
competição, apenas um com o uso menos frequente que o outro.
Nossa proposta de contribuição foi levantar algumas áreas em que investigações
sistemáticas possam ser conduzidas para trazer mais informações sobre a questão levantada
no início dessa seção. Escolhemos uma dessas áreas para conduzir um experimento que
serviria de ilustração para o que estamos pensando. A aceitação de sentenças ditas
“agramaticais” e a rejeição de sentenças ditas “gramaticais” são perfis que já foram
considerados reveladores sobre a gramática de indivíduos. Assim se procede com afásicos,
por exemplo, como argumenta Lima (2003). O primeiro caso (aceitação de agramaticais)
revelaria uma gramática menos restrita, em que algumas regras poderiam estar sendo
violadas sem que o afásico percebesse; o segundo caso (rejeição de gramaticais) revelaria
uma gramática mais restrita. Em ambos os casos, poderia se pensar em uma reorganização
de marcações paramétricas. Para a questão levantada nesse texto, os perfis poderiam revelar
se uma construção pertence à Gramática Nuclear ou à Periferia Marcada de um indivíduo.
Os dados que obtivemos sobre próclise e ênclise mostraram que o perfil “rejeição de
gramaticais” não foi observado, o que é compatível com uma estabilidade em relação a
essas construções. Os dados referentes à “aceitação de agramaticais” foram menos
regulares, com diferenças entre os grupos de alunos e também entre as sentenças que
formavam essa condição. Não é nosso intuito realizar uma análise aprofundada desses
resultados, até porque estamos conscientes de algumas limitações metodológicas na
elaboração e na condução do experimento. Mostrar esse tipo de experimento e as situações
que o mesmo levanta são nossas contribuições. Portanto, para a situação da condição
909
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
agramatical de próclise e ênclise, fica a lição de que grupos podem ter comportamentos
distintos e que a seleção das sentenças deve ser realizada com cuidado, se possível,
utilizando vários tipos de violação de próclise e ênclise.
A mesma situação não foi encontrada nos dados de mesóclise. Aqui, tivemos o
perfil “rejeição de gramaticais” bastante evidente no grupo dos alunos da Simonsen. Esse é
um resultado que merece atenção, pois difere do que foi encontrado nos resultados de
próclise e ênclise, quando as condições gramaticais foram, como se esperava, aceitas quase
categoricamente. Junte-se a esse resultado um perfil que se pode enquadrar como instável
para a condição agramatical da mesóclise, qual seja, a aceitação de sentenças agramaticais.
Esse tipo de perfil instável nas duas condições é o que apontamos no início do texto como
possível indicador que uma construção assim esteja alocada na Periferia Marcada.
Concluímos o texto, mas esperamos que o mesmo seja o início de pesquisas futuras
que venham trazer frutos para essa linha de investigação que pode alcançar avanços tanto
teóricos quanto práticos (a saber, por exemplo, uma metodologia de ensino que possa
refletir as diferenças entre construções da Gramática Nuclear e as da Periferia Marcada de
um aluno).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Avelar, Juanito. 2006. Gramática, competição e padrões de variação: casos com ter/haver e
de/em no português brasileiro. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 99-143,
jun./dez.
910
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Lima, Ricardo. 2003. Hipótese da Preservação de Elos Locais: uma explicação unificada
dos déficits de compreensão e produção no agramatismo. Tese de Doutorado, UFRJ, Rio
de Janeiro.
911
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 44 - Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas: implicações para a gramática das línguas naturais na
perspectiva dos estudos linguísticos formalistas, 913-924
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p913
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O presente artigo defende a ideia de que, para tornar o processo de ensino-aprendizagem
da variedade padrão da língua portuguesa mais efetivo, é fundamental que a formação
prática dos futuros docentes esteja fundamentada numa Abordagem Pedagógica (cf.
Lobato, 2003; Pilati & Vicente, 2012; Vicente & Pilati, 2012; Pilati, 2014). O foco da
abordagem que iremos propor é direcionado, principalmente, às aulas de gramática, e
está calcado em pressupostos da Teoria Gerativa, tais como Faculdade de Linguagem,
competência e criatividade, mas não é nossa intenção excluir contribuições advindas de
outras correntes teóricas.
Introdução
7 UnB, Instituto de Letras, Departamento de Linguística, Português e Línguas clássicas, Campus Darcy
Ribeiro, Campus Universitário Darcy Ribeiro, CEP 70910-900, Brasília, Distrito Federal, Brasil,
eloisapilati@gmail.com
8 UnB, Instituto de Letras, Departamento de Linguística, Português e Línguas clássicas, Campus Darcy
Ribeiro, Campus Universitário Darcy Ribeiro, CEP 70910-900, Brasília, Distrito Federal, Brasil,
helenavicente@gmail.com
913
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
915
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Linguística, no entanto, muitas vezes, não é evidente para o futuro professor como fazer
a “transposição didática”, ou seja, transformar as teorias e conceitos aprendidos durante
sua formação universitária em conhecimentos adequados para serem levados para a sala
de aula. Por esses motivos, defendemos que o conceito de Abordagem de Ensino, ou
Abordagem Pedagógica, deva ser utilizado na formação de professores de língua
materna.
Ainda segundo Richards & Rodgers (2008), para a construção de uma Abordagem de
Ensino, as seguintes perguntas devem ser respondidas:
Quais devem ser os objetivos do ensino de língua (no nosso caso, na aula de
gramática)?
Qual a natureza básica das línguas humanas?
Quais são os princípios para a seleção do conteúdo linguístico?
Quais princípios de organização, sequenciamento e apresentação facilitam o
aprendizado?
Qual deve ser o papel da primeira língua? (No caso de ensino de língua materna,
adaptamos a pergunta da seguinte forma: Qual seria o papel da gramática
internalizada pelo falante, adquirida sem educação formal e explícita?)
Que tipo de processamento os aprendizes usam ao dominar uma língua e como
estes podem ser incorporados num método?
Que tipos de atividades de ensino e de técnicas funcionam melhor e sob que
circunstâncias?
Responder a todas essas questões vai além do escopo do presente artigo. Para a
formulação do Conceito de Abordagem de Ensino, nos deteremos em responder às
questões em (1), (2) e (6), repetidas a seguir: Quais devem ser os objetivos do ensino de
língua (no nosso caso, na aula de gramática)? Qual a natureza básica das línguas
humanas? Quais devem ser os objetivos do ensino de língua (no nosso caso na aula de
gramática)?
Quais devem ser os objetivos do ensino de língua (no nosso caso, na aula de
gramática)?
916
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
917
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
ao indivíduo, capaz de explicar “o caráter criativo do uso das línguas naturais” (Lobato,
2003, 2). Esse uso criativo corresponde a o que viemos ressaltando ao longo deste
artigo, que é a habilidade que o falante tem de lidar com enunciados que nunca ouviu
antes, e cuja base é o conhecimento linguístico que traz como conhecimento prévio para
as salas de aula.
918
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
papéis dos diferentes saberes que os seres humanos possuem. Ao estabelecer uma
relação direta entre a fala e a Faculdade da Linguagem, pretende-se mostrar para o
futuro professor que a fala é uma dotação dos seres humanos e, sendo assim, ela não
será “ensinada” em sala de aula (sobre essa discussão, ver, por exemplo, Guerra Vicente
& Pilati 2012). A criança que chega à escola já sabe muito sobre a gramática de sua
língua. A escola irá tornar o aluno consciente dos elementos que fazem parte da língua
da criança e desenvolver tais conhecimentos. Essa tabela, portanto, pretende despertar
no professor a consciência de que seus alunos já possuem um vastíssimo conhecimento
gramatical, que envolve aspectos fonológicos, morfossintáticos, pragmáticos entre
outros, mas que tal conhecimento é inconsciente. Será na escola que o aluno se tornará
mais consciente de processos e regras característicos das diferentes variedades
linguísticas e dos usos e características dos textos escritos.
Outro elemento interessante a ser destacado na tabela acima é o de que a escrita
se diferencia da fala por não ser uma habilidade inata. Por esse motivo, deve de ser
aprendida na escola e, para isso, existem os processos de alfabetização (e letramento) e
os processos de prática de escrita presentes em toda a educação básica. Além da
alfabetização, há várias formas de se expressar por meio da escrita. Tais formas se
adequam a diferentes gêneros textuais e cada gênero possui características próprias.
Essas questões, dentre muitas outras, devem ser abordadas e ensinadas na escola. Para
estabelecer a relação entre as duas habilidades há o “conhecimento linguístico explícito”
(termo adotado de Costa et al., 2010). Promover esse conhecimento significa explicitar
e demonstrar aos alunos como funcionam determinados aspectos das línguas humanas,
para que os alunos entendam como a escrita funciona, quais os aspectos envolvidos no
ato de escrever, para, assim, compreender os elementos que estão em jogo nos
diferentes tipos de textos escritos.
919
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
defendidas por Pilati (2014) que estabelece uma correlação entre as ideias presentes na
obra Como as pessoas aprendem (2007) para o esnino de Língua Potuguesa.
Segundo Pilati (2014), para que ocorra a aprendizagem efetiva, é necessário que
os estudantes tenham a oportunidade de entender o sentido dos assuntos estudados.
Sabe-se que diversos currículos enfatizam mais a memória que o entendimento, o que
leva o aluno a acreditar que a gramática de uma língua é um conjunto de regras
arbitrárias e sem sentido. Para evitar esse tipo de compreensão por parte dos alunos,
devemos dar sentido às aprendizagens de nossos alunos, imbuindo de sentido as aulas
de gramática. Para tanto é importante que nessas aulas os alunos realizem tarefas ou
enfrentem situações que mobilizem os conhecimentos adquiridos e as informações
recolhidas, sejam capazes de usar diferentes técnicas e métodos (de estudo?), saibam
usar o vocabulário adequado na situação adequada, saibam redigir dentro das normas e
construir textos coerentes.
A seguir serão apresentados alguns princípios a serem seguidos para que se
possa promover o aprendizado efetivo na sala da aula. Os três princípios são os
seguintes: a) levar em consideração o conhecimento prévio do aluno; b) promover
aprendizagem ativa e c) fazer com que o aluno compreenda os processos envolvidos,
dentro do assunto estudado.
Em relação ao primeiro princípio, ainda seguindo a obra Como as pessoas
aprendem, sabemos que
Mesmo os recém-nascidos são aprendizes ativos, que trazem certo ponto de
vista para o ambiente de aprendizagem. O mundo em que entram não é uma
confusão de ecos e burburinhos em que cada estímulo é igualmente saliente.
Em vez disso, o cérebro de um recém-nascido dá prioridade a certos tipos de
informações: a língua, os conceitos básicos referentes aos números; as
propriedades físicas e o movimento de objetos animados e inanimados. No
sentido mais geral, a visão contemporânea a respeito da aprendizagem é que
as pessoas elaboram o novo conceito e o entendimento com base no que já
sabem e naquilo em que acreditam. (Comitê de Desenvolvimento, 2007).
Os professores devem prestar atenção aos entendimentos incompletos, às
crenças falsas e às interpretações ingênuas dos conceitos que os aprendizes trazem
consigo sobre determinados assuntos. Considerando esse primeiro princípio, Pilati
(2014) que afirma é importante mostrar aos alunos o funcionamento da língua humana
sob diferentes perspectivas para que eles possam compreender o próprio objeto de
estudo e os objetivos das aulas de português.
920
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921
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Considerações finais
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. 1997. Parâmetros curriculares nacionais:
língua portuguesa. Brasília.
922
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
_______ 1976. Knowledge of language: Its nature, origin, and use. New York:
Praeger Scientific.
Ferreira, Elisabete & Guerra Vicente, Helena. 2015. “Linguística gerativa e “ensino” de
concordância”. In Revista Linguagem & Ensino, vol.18, n.º 2, 425-455.
Franchi, C. Mas o que é mesmo “gramática”? In: POSSENTI, S. (org.). Mas o que é
mesmo “gramática”? São Paulo: Parábola Editorial, 2006 [1991], p. 11-33.
Guerra Vicente, Helena & Pilati, Eloísa. 2012. “Teoria Gerativa e “ensino” de
gramática: uma releitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais”. In Verbum –
Cadernos de Pós-Graduação, n.º 2, 4-14, jul./dez. São Paulo. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/verbum/article/view/12793/9279
Lobato, Lúcia Maria P. 2003. “O que o professor de ensino básico deve saber de
linguística?” (Palestra proferida em 13 de dezembro de 2003, como parte da mesa-
redonda intitulada A Linguística e o Professor de Ensino Básico). Fortaleza.
Luft, Celso Pedro. Língua e Liberdade. São Paulo: Ática. 6ª edição. 1998.
Mioto, Carlos; Figueiredo Silva, Maria Cristina & Lopes, Ruth. 2004. Novo Manual de
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Neves, Maria Helena M. 2007. Gramática na escola (8.ª ed.). São Paulo: Contexto.
Pilati, Eloisa; Naves, Rozana Reigota; Vicente, Helena Guerra & Salles, Heloisa. 2011.
“Educação linguística e ensino de gramática na educação básica”. In Revista Linguagem
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Richards, Jack C. & Rodgers, 2001. Theodore S. Approaches and methods in Language
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Vieira, Sílvia & Brandão, Sílvia. Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo:
Contexto, 2008.
923
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 44 - Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas: implicações para a gramática das línguas naturais na
perspectiva dos estudos linguísticos formalistas, 925-940
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p925
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
A relação de concordância entre sujeito e verbo, segundo Berlink et al. (2009), é uma
relação sintática que não se traduz, necessariamente, na presença de marcas explícitas de
concordância verbal. No sistema de concordância do Português Brasileiro (PB), há uma
mudança em curso, que não pode ser descrita com base em regras categóricas, tendo em
vista a variabilidade com que ocorre na língua (cf. Naro & Scherre, 1998, 2007;
Scherre, 2005; Castilho, 2010; Vieira & Brandão, 2011; entre outros). Este trabalho tem
o objetivo de verificar, a partir de amostras de redações do ENEM 2012 e 2013, como a
concordância verbal se manifesta nos textos escritos de alunos da modalidade de
Educação de Jovens e Adultos (EJA). Essa verificação é feita de forma comparativa
com textos feitos por alunos de ensino regular. Para tanto, inicialmente faz-se um
levantamento das estruturas em que há manifestação explícita de concordância verbal e
das estruturas que não apresentam concordância verbal manifesta nos textos de EJA;
posteriormente, faz-se uma comparação dessas estruturas com as encontradas nos textos
produzidos por alunos do ensino regular. A partir desse levantamento, verificamos,
ainda, se os padrões de concordância encontrados denotam a tendência de variação
apresentada nos estudos supracitados, bem como analisamos a influência do ensino
formal na produção escrita dos estudantes. O corpus de análise deste trabalho constitui-
se de 100 redações produzidas por alunos da EJA no ENEM 2013 e de 100 redações
produzidas por alunos de ensino regular no ENEM 2012.
1. Introdução
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O ENEM
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11 Entende-se por interlíngua o sistema linguístico intermediário entre a língua materna e a língua
adquirida, que difere tanto da primeira língua do aprendiz quanto de sua língua-alvo. Nesse sistema, o
928
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
2. Concordância
aprendiz constrói uma gramática mental, que consiste em um sistema de regras linguísticas abstratas
baseado na produção e na compreensão da L2, para alcançar seus objetivos comunicativos na língua-alvo
(Pires, 2015).
929
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
concordância variável com sujeito coletivo (cf. (7)). Nas orações com verbo inacusativo,
falantes cultos optam pela ordem verbo-sujeito (VS), especialmente com verbos
existenciais, tais como existir e aparecer (cf. (8)), mas denotam que a concordância com
o sujeito pós-verbal não é natural para os falantes cultos (cf. (9)); em construções
passivas, predominam as formas que não exibem marcas de concordância (cf. (10)).
(3) os veteranos ofereciam um piquenique aos... calouros então nós fomos até
Itaparica.
(4) Eu levei as minhas filhasi. Elasi adoraram, né? [∅]i não queriam ir, mas no
fim [∅]i foram, porque [∅]i sabiam que iam outros jovens também.
(5) Não podíamos deixar de falarmos novamente no externo.
(6) O importante é que o professor proponha diferentes
atividades que envolva diferentes processos mentais.
(7) a. A molecada adorou o filme.
b. O pessoal gozou com aquela turmai, quei levaram o dia inteiro para
arrumar a canoa.
(8) Então existe uma época pra ter maçã.
(9) Então aí mudou mudaram-se os hábitos.
(10) a. Não se usava botinhas.
b. Aquelas carroças vinham cheias de defuntos para serem enterrado.
930
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Para esta análise, foram analisadas 100 redações de alunos da EJA participantes
do ENEM 2013 e 100 redações de alunos de ensino regular participantes do ENEM
2012. Foram considerados para análise todos os contextos de verbos flexionados no
931
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
gramaticais foram consideradas como substantivos (p. ex., “[Beber e dirigir] são duas
ações que deveriam ser instintas do pensamento”), por se encaixarem melhor nas
características desse grupo do que nas de outro. Em caso de dois verbos coordenados
pela conjunção “e” e flexionados na mesma pessoa, tempo e número, o segundo verbo
foi considerado como tendo sujeito nominal (ou outra categoria, se fosse o caso), e não
pronominal (p. ex., “[Adultos] bebem e esquecem que logo após irão dirigir”).
Consideramos como sujeito pronominal pleno aquele cujo núcleo fosse um
pronome – pessoal, indefinido, demonstrativo, entre outros (p.ex., “[Eles] precisam da
ajuda do poder público”, “[Muitos deles] não estavam preocupados”). Já os sujeitos
pronominais nulos correspondem ao que a gramática denomina de sujeito oculto ou
elíptico, isto é, os casos em que os verbos têm referente recuperável no contexto, mas
ele não aparece explicitamente na oração de que o verbo considerado participa (p.ex.,
“(Vários imigrantes) preferem permanecer, já que não [Ø] podem ser expulsos, assim se
[Ø] submetem a levar uma vida não legalizada”, em que os parênteses indicam o termo
referente do verbo e o símbolo Ø indica a posição vazia do sujeito). Verbos flexionados
na 1ª. pessoa do plural não foram considerados, por não serem representativos para a
análise. No caso de o verbo concordar com o sujeito, mas não o predicativo que o seguia
(p. ex., “Todos estão certo”), consideramos que fazia mais sentido avaliar o caso como
de concordância adequada, uma vez que os casos aqui analisados dizem respeito à
concordância verbal, e não à concordância nominal. Assim como na categoria dos
sujeitos nominais, os dados classificados em sujeito pronominal aqui não se repetiram
em outras categorias. Se isso acontecesse, os dados eram encaixados sem outro grupo
(p.ex., “[Os] que conseguem emprego na construção civil” foi encaixado na categoria
das orações adjetivas, e não dos sujeitos pronominais).
Nos contextos de oração adjetiva, consideramos apenas o primeiro verbo das
orações adjetivas – explicativas e restritivas – e seu referente (p.ex., “O objetivo da lei
seca é diminuir [os acidentes] que acontecem raramente no trânsito”). Os dados
encaixados no grupo das orações adjetivas podem se repetir em outras categorias. Por
exemplo, nos casos em que a forma verbal da oração adjetiva encontrava-se na voz
passiva, optou-se por classificar o caso tanto como de oração adjetiva quanto de voz
passiva (p. ex., “passados [ensinamentos e conceitos] que devem ser absorvidos”).
Na categoria dos sintagmas nominais pesados (SN pesados), foram
considerados os SN nucleados por um substantivo e estendidos por uma locução
adjetiva (“[os ditos números das estatísticas]”), por uma locução adverbial (“[Casos de
933
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
acidentes devido à bebida]”) e/ou por uma oração (“[As leis para quem se embriaga e
toma o controle do carro]”). Foram considerados os SN pesados nucleados por nomes
no plural (“[Os números de acidentes no trânsito por causa de bebidas alcoólicas]”) e
também no singular ([O percentual de mortes e acidentes relacionados ao álcool]”) – o
que, em princípio, não leva à flexão de plural no verbo. No caso em que os SN pesados
tinham como núcleo um nome no singular, foram considerados apenas os sintagmas em
cuja extensão havia vocábulos no plural (como em “[O percentual de mortes e acidentes
relacionados ao álcool]”). Os dados analisados do grupo dos SN pesados podem se
repetir em outras categorias (p. ex., “[Os números de acidentes no trânsito] diminuíram
de forma significante” ocorre na categoria SN pesado e em Verbo inacusativo – ordem
SV; “Foi reduzido com sucesso [o número de acidentes causados por motoristas
alcoolizados]” ocorre na categoria SN pesado e na categoria Voz passiva).
Na categoria denominada voz passiva, foram considerados os contextos de voz
passiva analítica e sintética, em ordem direta ou inversa, e, ainda, a ocorrência de voz
passiva em oração adjetiva. Por essa razão, os dados analisados por vezes se repetem em
outras categorias (p. ex., “Foi reduzido com sucesso [o número de acidentes causados
por motoristas alcoolizados]” ocorre na categoria SN pesado e na categoria Voz
passiva).
Na categoria denominada verbo inacusativo – ordem SV, foram considerados
os contextos de ocorrência de verbo inacusativo – tais como “chegar”, “diminuir”,
“existir” – com sujeito nominal e pronominal, com sujeito formado por SN pesado e
com sujeito coletivo, mas somente em orações em ordem direta. Assim, os dados
analisados por vezes se repetem em outras categorias (p. ex., o período “[As taxas de
acidentes de trânsito com vítimas fatais] diminuíram bastante de 2008 até os dias
atuais.” ocorre tanto na categoria Verbo inacusativo - ordem SV quanto em SN pesado).
Na categoria denominada verbo inacusativo – ordem VS, foram considerados
os mesmos contextos de ocorrência de verbo inacusativo acima descritos – com sujeito
nominal e pronominal, com sujeito formado por SN pesado e com sujeito coletivo –,
mas as orações contempladas aqui correspondem somente àquelas que se encontram em
ordem inversa. Nesse sentido, os dados analisados dessa categoria também se repetem
em outras (p. ex., “Hoje em dia acontece [muitos acidentes de trânsito]” ocorre na
categoria Verbo inacusativo – ordem VS e também em SN pesado). Todos os dados
desta categoria estão em Ordem VS, em geral, como veremos a seguir.
934
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
não marcação de concordância nos dados do ensino regular, enquanto nos dados da EJA
há 28%. Comparando-se AC e DF (tabelas 2 e 3), os dados revelam frequência de
ocorrência de marcas de concordância bem mais próximas. No AC, 81% dos dados
denotam marcas de concordância verbal; no DF, essa frequência é de 85%. No AC, 19%
dos dados não apresentam marcas explícitas de concordância; no DF, 15%.
4. Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Berlink, Rosane de A.; Duarte, Maria Eugênia L. & Oliveira, Marilza de. 2009.
Gramática do português culto falado no Brasil. Coordenação Geral: Ataliba T.
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
de Castilho; organização: Kato, Mary Aizawa & Nascimento, Milton do. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, vol. 3 - A construção da sentença, cap. 3 – “Predicação”.
Castilho, Ataliba T. de. 2010. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo:
Contexto.
Ferrari-Neto, José & Tavares Silva, Cláudia Roberta. (Org.) 2012. in Programa
Minimalista em foco: princípios e debates. Curitiba: Editora CRV. Cláudia Roberta
Tavares Silva, Maria Denilda Moura, Mirian Santos de Cerqueira. Entendendo a
concordância sob o viés minimalista. p. 237-268.
Kato, Mary. 2005. A gramática do letrado: questões para a teoria gramatical. In:
Marques, M. A. et al. (orgs). Ciências da Linguagem: trinta anos de investigação e
ensino. Braga, CEHUM (U. do Minho).
Naro, Anthony J. & Scherre, Maria Marta Pereira. 1998. Restrições sintáticas e
semânticas no controle da concordância verbal em português. Fórum Linguístico,
Florianópolis, n.º 1 (45-71), jul.-dez.
Scherre, Maria Marta P. 2005. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística,
mídia e preconceito. São Paulo: Parábola.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Bransford, John D. et al. (orgs.). 2007. Como as pessoas aprendem: cérebro, mente,
experiência e escola. SP: Ed. Senac SP, p. 19-47.
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York.
__________. 1988. Language and problems of knowledge. Cambridge: MIT.
__________. 2001. Derivation by Phase. In Ken Hale: A Life in Language, ed. Michael
Kenstowicz, 1–52. Cambridge, Mass.: MIT Press.
Costa, João & Figueiredo Silva, Maria Cristina. 2006. Nominal and verbal agreement in
Portuguese. In Studies on Agreement. (editado por Costa, João & Figueiredo Silva,
Maria Cristina), John Benjamins.
Salles, Heloisa. 2005. A gramática na escola: por uma educação científica. SBPC.
940
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 44 - Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas: implicações para a gramática das línguas naturais na
perspectiva dos estudos linguísticos formalistas, 941-955
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p941
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Esse trabalho tem como objetivo analisar de modo comparativo as metodologias de
ensino formal da língua portuguesa aplicadas no Brasil e em Portugal sob dois aspectos:
1. o arranjo hierárquico que combina Abordagem, Metodologia e Técnica dentro de um
design instrucional e 2. o foco nos processos de aprendizagem. Como metodologia de
ensino no Brasil, serão analisadas as orientações didáticas propostas nos Parâmetros
Curriculares Nacionais e, no que diz respeito ao ensino de língua portuguesa em
Portugal, será analisado o Guião de Implementação do Programa de Português do
Ensino Básico (2011), em que se realiza uma proposta voltava para o Conhecimento
Explícito da Língua. Tais propostas serão analisadas sob duas perspectivas: a) a
apresentada por Richards & Rodgers (2001), em seu livro Approaches and methods in
Language Teaching, na qual a combinação de métodos e técnicas se mostra
imprescindível dentro de um arranjo hierárquico que combina Abordagem, Metodologia
e Técnica dentro de um design instrucional e b) o que se propõe no livro Como as
pessoas aprendem: cérebro, mente e ensino (2007), do Comitê de Desenvolvimento da
Ciência e da Aprendizagem, que traz o foco do ensino para a construção do
conhecimento. Os estudos serão analisados e comparados sob as duas perspectivas
apontadas. A contribuição dessa pesquisa consiste em trazer novas perspectivas para o
ensino de Língua Portuguesa, conciliando a prática pedagógica com concepções
metodológicas de design instrucional e com os processos de construção do
conhecimento.
1. Introdução
Nas últimas décadas, tem-se percebido que a linguística pode oferecer grandes
contribuições para o ensino de língua materna. Richard (2004), em seu artigo Why
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Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
education needs linguistics (and vice versa), defende que a linguística tem uma
interface importante com a educação. De acordo com o autor, o ensino da Gramática de
modo “tradicional” já está ultrapassado, e as escolas simplesmente o transmitiam (ou
transmitem) de geração em geração, sem que houvesse (haja) algum debate ou
entendimento. Além disso, tal abordagem não tem raízes na linguística moderna ou
mesmo nas linguísticas pré-modernas de séculos anteriores. A Gramática Tradicional,
quando utilizada como técnica de ensino, é fragmentária, dogmática e prescritiva, ou
seja, muito diferente da linguística moderna.
Tendo isso em vista, trabalho tem como objetivo analisar de modo comparativo
as metodologias de ensino formal da língua portuguesa aplicadas no Brasil e em
Portugal sob dois aspectos 1. o arranjo hierárquico que combina Abordagem,
Metodologia e Técnica dentro de um design instrucional e 2. o foco nos processos de
aprendizagem.
Pesquisas atuais sobre o ensino/aprendizagem de língua materna e sobre a
aprendizagem de um modo geral já demonstram que o ensino deve ser baseado no
desenvolvimento das capacidades do estudante de identificar padrões significativos de
informação, isto é, associar novas informações a conhecimentos pré-existentes e
conseguir recuperá-las de maneira adequada a fim de resolver situações-problema. Pois
são esses padrões que irão fornecer as condições que desencadeiam o acesso ao
conhecimento relevante para as tarefas a serem executadas.
As informações relevantes devem ser seletivas e facilmente recuperadas, e isso
se dá, acima de tudo, com o desenvolvimento da metacognição, capacidade de
monitorar a própria aprendizagem. Um conceito importante que acaba por ser fazer
também uma habilidade imprescindível para a aprendizagem formal de língua materna.
Com base nas atuais concepções de aprendizagem, como o reconhecimento de
padrões e a metacognição, e em trabalhos anteriores, que vinculam pressupostos
gerativistas ao ensino formal de língua matern, como Vicente & Pilati (2012), Pilati
(2014) e Silva (2015), esse trabalho se organiza de modo a apresentar, primeiramente,
uma revisão dos estudos sobre a aprendizagem de modo geral (ou seja, estudos sobre
como a aprendizagem ocorre), Com base na obra Como as pessoas aprendem: cérebro,
mente e escola (2010), e sobre abordagens de ensino (isto é, como propiciar a
aprendizagem), na qual serão apresentadas as resenhas de Richards & Rodgers (2001) e
Fink (2003). Em seguida, a partir de tal revisão, serão analisadas duas propostas
metodológicas de ensino de português, para o ensino de língua portuguesa no Brasil, os
942
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
2. Desenvolvimento da aprendizagem
943
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
De acordo com Richards & Rodgers (2001), as seguintes reflexões que devem
944
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
No entanto não se pode esquecer das contribuições do Gerativismo para tal, uma
vez que a abordagem da língua como algo inato ao indivíduo, assim como os conceitos
de Faculdade da Linguagem, Gramática Universal e Competência, pertencentes a tal
teoria, proporcionam a mudança de postura a ser adotada no ensino de língua, uma vez
que considera o conhecimento prévio para a aprendizagem e a intuição do aluno para
reconhecer as estruturas do idioma.
Com base nos estudos de Antony (1963:63-67), Richards & Rodgers (2001)
apontam que o arranjo que combina abordagem, método e técnica é hierárquico. A
chave da organização é que as técnicas realizam o método, o qual é consistente com
uma abordagem. Para organizar esse arranjo, são apontados os seguintes conceitos:
945
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
O que se observa na utilização desse arranjo para o ensino é que o método pode
ser descrito a partir de questões que identificam os níveis de: abordagem, design e
procedimento, os quais se utilizam dos princípios teóricos e as práticas que derivam
deles.
Os apontamentos de Richards & Rodgers (2001) reforçam o que se aborda no
livro Como as pessoas aprendem: cérebro, mente e escola (2010) no que diz respeito à
necessidade de considerar de que maneira a aprendizagem acontece para que se elabore
metodologias de ensino que sejam capazes de desenvolvê-la.
Com um olhar mais voltado para o desenvolvimento do que o os autores
chamam de Design Instrucional, deixa-se claro que as práticas pedagógicas devem ser
muito bem pensadas e arquitetadas antes de serem levadas para a sala de aula. Não
946
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
apenas no que se refere ao “planejamento de aula”, mas, sim, algo muito maior: tratar o
conteúdo dentro de uma abordagem baseada em uma teoria sobre língua, que combina
uma seleção de metodologias que se realizam na técnica a ser aplicada nas aulas.
3.2. Fink (2003)
947
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948
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
o conceito de texto literário bastante discutível por ter se tornado um tanto quanto
arbitrária a classificação do que de fato é literatura.
Os PCN’s não tratam de uma metodologia de ensino e muito menos apontam
uma metodologia a ser adotada, na verdade, seu objetivo é apenas traçar diretrizes para
a educação no país, isto é, são um ponto de partida para orientar escolas e professores
em relação ao ensino.
No entanto, o problema se encontra justamente na efetivação dessa nova
abordagem do ensino, uma vez que se fala muito sobre ela, mas não se testemunha sua
prática. Os motivos para isso são inúmeros: professores não têm uma formação
acadêmica condizente com o que se propõe nos PCN‟s, os livros didáticos continuam
valorizando excessivamente a gramática normativa, as atividades de leitura e escrita se
mantêm excessivamente escolarizadas, isto é, fogem às situações cotidiana de uso da
escrita por parte dos alunos, dentre outras coisas.
O trabalho de Pilati; Naves; Vicente & Salles (2011) apontou o fato de os PCN‟s
não tratarem de metodologias específicas para o ensino de língua. No que diz respeito à
realização das atividades, o documento diz que as atividades gramaticais devem estar
relacionadas às práticas textuais, no entanto não há orientações a respeito de como isso
deve ser feito. Não há formas práticas para que os objetivos ali propostos sejam
alcançados. Falta-lhe também menção direta ao ensino de gramática, na verdade, os
PCN’s apenas fazem críticas às práticas de ensino tradicionais, permitindo a inferência
de que o “ensino” de gramática está perdendo espaço na sala de aula.
Faz-se necessário operacionalizar as orientações presentes nos PCN’s, uma vez
que esse é fonte de consulta, reflexão e debate. Ao tratar das atividades, faz-se apenas
uma diferenciação entre atividades epilinguísticas, aquelas que “brincam” com a
linguagem, e as metalinguísticas, as que descrevem a língua. Sem apresentar exemplos
específicos, diz que as atividades devem sistematizar a linguagem interiorizada pelo
aluno, incentivando sua verbalização, assim como o domínio de outras variedades
linguísticas utilizadas nas diferentes esferas sociais. Os PCN‟s consideram que tanto o
ponto de partida quanto a finalidade do ensino é a produção/ recepção de discursos, ou
seja, direciona o “ensino” à ampliação da competência discursiva sem tratar da
competência linguística como algo de igual importância.
O documento traz o texto como a unidade básica do ensino e considera os
saberes linguísticos necessários ao exercício da cidadania, além de atribuir o “fracasso”
escolar à ineficácia da aprendizagem da leitura e da escrita. Vê-se que os PCN‟s
949
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Quanto ao que é proposto pelo livro Como as pessoas aprendem: cérebro, mente
e escola (2010), o trabalho com o Conhecimento Explícito se apresenta, na teoria,
compatível com o conceito de Conhecimento Utilizável, além de apresentar um conceito
mais eficaz de conhecimento prévio para o ensino, isto é, correspondente com o que os
estudos gerativistas consideram como conhecimento prévio. O trabalho com a
abordagem do Conhecimento Explícito ainda prioriza a metacognição no processo de
tornar explícito o conhecimento até então inconsciente e o reconhecimento de padrões,
quando aponta que a metodologia visa à capitalização de regularidades da língua. No
entanto, tal consonância teórica não se verifica por completo na prática, uma vez que as
atividades sugeridas não apresentam exercícios destinados à utilização do
conhecimento.
Como aponta o trabalho de Xavier (2012), o a metodologia pela descoberta, que
trabalha com o Conhecimento Explícito da Língua, tem um objetivo triplo: a)
desenvolver a consciência linguística nos alunos; b) sistematização e explicitação das
regularidades da língua e c) mobilização dos conhecimentos adquiridos na produção e
compreensão de textos. Prioriza-se a manipulação da língua no sentido laboratorial,
refletindo e tirando conclusões.
São, assim, objetivos principais da abordagem ativa de descoberta fazer
compreender as grandes regularidades do funcionamento da língua; remeter para as
capacidades de observação, experimentação, raciocínio dedutivo, indutivo e
argumentação e contribuir para a construção progressiva dos conhecimentos
gramaticais (Xavier, 2012:470-471).
A autora, baseada nos estudos de Chartrand (1996), sugere o que seriam as seis
etapas dessa abordagem:
952
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
3ª – verificação das hipóteses: as hipóteses são testadas com outros dados para
serem validadas, ou não, e então tornarem-se regras.
4ª – formulação e regras e estabelecimento de procedimentos: os alunos
formulam as regras com suas próprias palavras e checam o que criaram com o que as
gramáticas indicam.
5ª – prática: aplicar as descobertas a contextos diversificados gerando
“automatismos” quanto à resolução de situações-problema.
6ª – avaliação/reinvestimento dos conhecimentos: transferência dos novos
conhecimentos nas atividades de leitura, escrita e oralidade.
Para que a abordagem tenha sucesso, Xavier (2012) aponta a necessária relação
entre os fenômenos estudados e a produção textual, sempre se atendo aos erros dos
alunos, pois são esses que demonstram os conhecimentos que não foram desenvolvidos.
A autora faz a ressalva de que não se pode dizer que a abordagem tem o sucesso
garantido, e nem que seja o método garantido para todas as situações de estudo
gramatical, além de exigir certo nível de preparação linguística e de tempo na
organização das atividades. No entanto, a abordagem ativa da descoberta já
demonstrou resultados, como: aumento da curiosidade por parte dos alunos,
desenvolvimento da autonomia e pensamento científico desses.
5. Considerações finais
953
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
metacognição nos alunos, pois é com essa habilidade que eles são capazes de monitorar
a própria aprendizagem.
Constatou-se com o livro Como as pessoas aprendem: cérebro, mente e escola
(2010) e confirmou-se com o Guião de Implementação do Programa de Português do
Ensino Básico (2011) que o “ensino”, atualmente, segue a tendência ao reconhecimento
de padrões, desenvolvimento da metacognição e capacidade de mobilização dos
conhecimentos para outros contextos de aplicabilidade, isto é, a capacidade de
transferência, desenvolvendo, assim, o pensamento crítico, criativo e prático.
Viu-se, também, que as práticas pedagógicas, além de observarem tais aspectos,
devem ser elaboradas de maneira sistematizada com vistas a seguir um arranjo
hierárquico, que não se resume ao mero planejamento de aula, mas que combina
abordagem, metodologia e técnica dentro de um design instrucional que norteia os
objetivos que se pretende alcançar com a combinação de métodos.
Com relação às diretrizes do ensino de Língua Portuguesa adotadas no Brasil e
em Portugal, observou-se que o documento de orientação para o “ensino” de língua
portuguesa implementado em Portugal se mostra muito mais bem sistematizado,
organizado e prático, do que o implementado no Brasil. Na realidade, não se tem no país
um guia oficial para as práticas docentes, apenas diretrizes a serem tomadas no “ensino”
de língua, mas que não se comprometem com nenhuma abordagem específica sobre
concepção e linguagem e não indica nenhuma metodologia a ser aplicada em sala de
aula. Falta-nos um documento que operacionalize as diretrizes apontadas pelos PCN‟s,
lacuna essa que o Guião preenche no que se refere ao “ensino” em Portugal. No Brasil,
as discussões sobre as abordagens metodológicas permeiam os discursos, mas ainda não
tomaram forma para que se tornem soluções práticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
954
Simpósio 44 – Diversidade dialetal, multilinguismo e contato de línguas
Richard, Hudson. 2004. Why education needs linguistics (and vice versa). Journal of
Lingustics, v. 40, p. 105 – 130.
Richards, Jack C. & Rodgers, Theodore S. 2001. Approaches and methods in Language
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Xavier, Lola Geraldes. 2012. Ensinar Gramática pela Abordagem Ativa de Descoberta.
Exedra, p. 468 – 478, dezembro, 2012.
955
SIMPÓSIO 46
GRAMATICALIZAÇÃO, SUBJETIFICAÇÃO E MUDANÇA
LINGUÍSTICA: ESTUDOS DE CASOS NAS DIVERSAS
VARIEDADES DO PORTUGUÊS
COORDENADORES
Jussara Abraçado
(Universidade Federal Fluminense)
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos nas diversas variedades do português, 959-
979
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p959
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Sob a perspectiva teórica da Linguística Funcional, em sua vertente norte-americana
(Hopper, 1987, 1991, 1998, 2008, 2010; Heine et al., 1991a/b; Hopper; Traugott, 2003),
este trabalho tem como objetivo geral investigar, com base em propriedades
morfossintáticas e semântico-pragmáticas, o processo de gramaticalização de AQUI, AÍ,
ALI e LÁ, como formas indicadoras de especificidade em sintagmas nominais
indefinidos. Inicialmente, esboçou-se uma possível trajetória de gramaticalização por
que AQUI, AÍ, ALI e LÁ teriam passado de sua função fonte como dêiticos espaciais
até a indicação de especificidade. Em seguida, descreveu-se o comportamento desses
itens marcadores de especificidade no que diz respeito aos seguintes fatores de natureza
morfossintática e semântico-pragmática: existência ou não de material interveniente
entre o item marcador de especificidade e o nome nuclear do SN; função sintática do
SN especificado; status informacional dos SN a que se adjungem AQUI, AÍ, ALI e LÁ
marcadores de especificidade. Os resultados apontam para a existência de formas com
diferentes graus de emergência no domínio funcional da especificação nominal, sendo
AÍ, provavelmente, o item mais gramaticalizado, seguido por LÁ, e depois por ALI e
AQUI, cuja permanência no domínio funcional ainda não aparenta estar consolidada.
Introdução
A evolução linguística faz com que novas formas surjam na codificação de uma
determinada função linguística. Hopper (1991) refere-se a esse fenômeno como
estratificação (layering) e afirma que ele é muito comum nas línguas em geral. Essa
1 UFRN, Editora Universitária (EDUFRN). Avenida Senador Salgado Filho, 3000, Campus
Universitário, Lagoa Nova. CEP: 590780-970. Natal, Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail:
wildsonconfessor@icloud.com.
959
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
diversidade formal surge, segundo Hopper (1991:23), na medida em que uma forma ou
um conjunto delas, ao emergir em um dado domínio funcional2, não substitui
imediatamente – ou mesmo nunca vem a substituir completamente – o conjunto já
existente de formas equivalentes funcionalmente; mas, ao contrário, esses dois
conjuntos de formas passam a coexistir, podendo ser especializados para itens lexicais
particulares, classes peculiares de construções ou registros sociolinguísticos; podem
ainda ter significados levemente distintos ou apenas serem reconhecidos como
alternativas estilísticas.
Neste estudo, sob a égide do funcionalismo linguístico de vertente norte-
americana (Hopper, 1998, Givón, 2001, Hopper; Traugott, 2003, Furtado da Cunha,
Oliveira e Martelotta, 2003), é discutido o processo de gramaticalização de AQUI, AÍ,
ALI e LÁ, como marcadores de especificidade de Sintagmas Nominais indefinidos, com
base em algumas propriedades morfossintáticas e semântico-pragmáticas. De acordo
com a proposta aqui advogada, esses itens linguísticos, por intermédio do processo de
gramaticalização, migraram do domínio funcional da dêixis espacial para o da
especificação nominal, passando a atuar em alguns como marcadores de especificidade
de sintagmas nominais indefinidos (cf. Confessor, 2013).
Para tanto, este trabalho estrutura-se da seguinte forma: na próxima seção são
apresentados alguns aspectos fulcrais dos estudos funcionalistas voltados à
gramaticalização; em seguida, são tecidas considerações acerca do domínio funcional da
especificação nominal e, por último, é disposta a análise dos dados.
2 A expressão domínio funcional é empregada neste trabalho, no sentido proposto por Givón (1984), isto
é, para denominar as áreas funcionais que compõem a gramática, que podem corresponder a áreas
funcionais gerais (ou macrodomínios), como TAM (tempo/aspecto/modalidade), caso, referência, ou a
áreas mais estritas (microdomínios), como o tempo futuro, o sujeito, a dêixis, a especificação nominal,
etc.
960
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
em busca de sua constituição, mas nunca chegando a se constituir de fato. (cf. Hopper,
1987, 1998).
Esse processo de mudança permanente da gramática das línguas é o foco dos
estudos de gramaticalização. Heine e Kuteva (2007) concebem a gramaticalização como
a gênese e o desenvolvimento de formas gramaticais. Para os autores, a função fulcral
dos estudos de gramaticalização é descrever como as formas gramaticais e construções
aparecem e se desenvolvem ao longo do tempo e espaço, a fim de explicar o modo
como foram estruturadas. Por isso, os estudiosos da gramaticalização devem se
preocupar com as regularidades de uso da língua mediante a observação da fala e
escrita, como também com os diversos aspectos de mudança na língua.
Heine et al. (1991b) postulam que existe um processo de problem-solving
(resolução de problemas) subjacente à gramaticalização que é metaforicamente
estruturado, isto é, se dá pela expressão de uma coisa nos termos de outra, podendo ser
descrito na forma de algumas categorias básicas, organizadas da seguinte maneira:
PESSOA > OBJETO > PROCESSO > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE
961
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
962
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
Segundo Hopper e Traugott (op. cit.), apesar de somente a reanálise poder criar
novas estruturas gramaticais, o papel da analogia não deveria ser subestimado no estudo
da gramaticalização, já que seus produtos, por serem manifestos, são em muitos casos a
principal evidência para os falantes de uma língua – e até para os linguistas – de que
uma mudança aconteceu.
Hopper (1987, 1998, 2008, 2010), por sua vez, desenvolve o construto teórico
da gramática emergente, postulando que a gramática emerge do discurso e é moldada
por ele num processo contínuo. Assim, a gramática é marcada por seu caráter provisório
em busca de uma estabilidade que não ocorrerá efetivamente, posto que é notório que as
línguas evoluem com o tempo. No entanto, esse processo é extremamente lento,
geralmente não sendo percebido pelos usuários da língua.
Para Hopper: “uma estrutura que é emergente […] nunca é fixa, nunca
determinada, mas está constantemente aberta e em fluxo. O termo emergente se refere à
incompletude essencial de uma língua, e vê a instabilidade entre forma e sentido como
uma situação constante e natural” (1998:157).
963
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por mês ... uma na semana ... aí deixe eu ver ... eu demorei cinco aulas
... pra poder aprender a partitura todinha (informante masculino, D&G
Natal).
(08) Quando cheguei ali na outra casa lá em cima (choro de criança) [Aí
disse] aí bati na porta, minha senhora aí abriu a porta, quando ela
disse: "Tu aqui uma hora dessas?" Eu disse: "É." Eu disse: "O que é
que está acontecendo aqui?" Diz ela assim: "Não, [eu] já está tudo
resolvido." Eu disse: "Não! O que que é isso?" Aí o rapaz, que com o
engenheiro ficou me esperando [segunda feira] que eu voltasse
segunda feira para nós seguirmos viagem. Aí, não voltei mais. Eu
disse: "Não! Prefiro devolver todas as diárias, que eu ia ganhar, mas
não volto mais." Acho que, revoltado com aquilo, eu disse: "Agora eu
tenho que resolver." Aí fui lá [na] na Universidade, né? aí fui lá, já aí
entrei em contato lá e, eu disse: "É, nós temos que resolver um
negócio LÁ e tal". Mas [o] o tratorista que esteve ali que ele estava
cavando o terreno do lado, aí ele disse que ia botar a cerca no chão e
tal [e] e que ia botar a casa no chão, e ela ficou apavorada, né? ficou
apavorada (informante masculino, VARSUL Florianópolis).
966
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
específico que ele teria de resolver, sobre o qual, provavelmente, não seria necessário
apresentar mais informações naquela situação de comunicação.
O processo de gramaticalização de AÍ e LÁ (e dos outros marcadores) parece vir
a reforçar o princípio de unidirecionalidade preconizado pelos estudos de
gramaticalização, visto ser o significado de AÍ, LÁ, ALI e AQUI marcadores de
especificidade bem mais abstrato do que seu significado fonte de advérbio de lugar, e a
categoria QUALIDADE ser a última da trajetória de gramaticalização proposta por
Heine et al. (1991a/b), portanto a mais abstrata.
967
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
(09) dessa última escala estamos chegando em Porto Alegre ... e eu senti
uma alegria tão grande ... um ... um ... uma ... era como se eu
retornasse a uma terra que eu nunca encon/ que eu nunca tinha
deixado de estar lá ... porque ... eu num sei se eu já te falei ... Marcos
... é ... desde pequeno eu falo ... eu falava pra minha família do Rio
Grande do Sul sem nunca ter ido ao Rio Grande do Sul ... ((riso)) um
fenômeno paranormal AÍ que ... é ... hoje eu sei ... um pouco por
onde é que passa essas histórias né ... mas eu me sentia como que ...
chegando em Areia Branca ... minha cidade do ... na/ natal né ...
(informante masculino, D&G Natal).
(10) I: é ... mas ninguém sabia ... né ... aí ele ficou contente e tudo mais ...
aí chegou e disse ... tem uma pessoa que pode me ajudar e tudo mais
porque no um ... ele só volta através de uma tempestade ... que
justamente é nesse dia ... que tá chovendo ... que há tempestades de
raios e tudo mais ... com trovões e raios ... então ... ele:: no um ele só
consegue voltar para mil novecentos e oitenta e cinco por causa desse
raio ... porque eles sabiam que ia cair um raio na torre da igreja ...
então eles fizeram uma canalização com ... com uma ligação elétrica
LÁ ... né ... um fio que ligava no carro né ... que dava justamente para
chegar na hora h ... aí o carro tinha que tocar aquele fio ... aí quando
tocasse ... aí por causa do raio ... né ... a potência do raio ... levaria o
carro para o futuro ... né ... (informante masculino, D&G Natal).
(11) minha mãe ... não gosta ... quando uma pessoa diz ... eu fiquei ... eu
fiquei com fulano ... fiquei com sicrano ... sei o que ... mãe num gosta
... minha mãe tem ódio desse nome ficar ... aí é como que a pessoa vai
dizer ... eu num ... eu num sei ... eu acho por exemplo ... aí eu num
sabia nem o que dizer ... eu tinha que dizer “eu fiquei com fulano ... a
na festa” ... mas não ... mãe não gosta disso ... aí eu ... tem gente como
... tá certo que tem ... tem muitas pessoa como ... uma amiga minha
ALI que ela disse que não gosta de ficar ... ela disse que nunca vai
ficar ... mas ... eu ... eu di/ eu também dizia isso ... que eu nunca ia
ficar ... aí sempre quando eu vou numa festinha ... tem vez que eu fico
... mas é muito difícil ... só quando aparece um ... que eu queira ficar
... (informante feminino, D&G Natal).
(12) E* Você conhece alguém que fala diferente de você?
I* Tenho, tenho sim. Pur ixemplo: tem uma uma conhicida minha
AQUI, pur sinal ela tava aqui, ela num sabe falar direito. Ela num sabe
968
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
chamar você, num sabe chamar Jorge direito, falta uma letra pra ela
dizer a palavra certa. Então eu cunheço (informante feminino,
VALPB).
Nesse fator, os SN especificados por AÍ, LÁ, ALI e AQUI foram classificados
de acordo com a função sintática que desempenham. Essa classificação foi baseada em
Castilho (2010), uma vez que esse autor apresenta uma nomenclatura baseada no uso
real dos falantes, em uma perspectiva funcional. As funções encontradas foram as
seguintes: sujeito, objeto direto, complemento oblíquo, adjunto adverbial, adjunto
3 De acordo com Payne (1997), os clíticos são morfemas que atuam no nível sintagmático e se unem
fonologicamente a uma outra palavra, conhecida como hospedeiro, a fim de poderem ser integrados ao
discurso, no qual não poderiam ocorrer sozinhos.
969
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
4 No tocante a funções sintáticas que não são codificadas por SN, mas geralmente por sintagmas
preposicionais, como os adjuntos adverbiais, ressalto que considerei o SN como constituinte do sintagma
preposicional maior, vez que qualquer sintagma pode conter um SN menor (TRASK, 2006), o que pode
ser conferido no dado a seguir: “meu pai... estava numa crise enorme AÍ...” (informante feminino,
Corpus D&G Rio de Janeiro).
5 Convém salientar que, por questão de espaço, para cada função sintática é apresentada apenas uma
amostra com um dos quatro marcadores emergentes.
970
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
correspondente, assume a função de sujeito; (iii) pode ser preenchido por SN de núcleo
nominal ou pronominal; (iv) seu papel temático é /paciente/, mesmo com verbos
causativos.
(14) banco ... entrego conta ... resolvo assim ... por exemplo ... uma
entidade manda uma carta lá pra clínica ... dizendo que:: que tá
abrindo credenciamento pra médicos ... aí eu vou ter que saber o que
que precisa pra gente se credenciar ... pegar relação de documentos e
resolver ... sabe ... até ... a gente ter o credenciamento ... é muita
responsabilidade ... sabe? é muita mesmo ... porque num é todo
mundo que agüenta esse rojão não ... porque se você faz só uma coisa
... é muito bom ... tem vários funcionário ... cada um tem sua função ...
é bom demais ... mas você fazer tudo ... você tem que ter uma agenda
ALI ... bem certinha ... sabe? e num esquecer de nada ... porque se
esquecer ... (informante feminino, D&G Natal).
6 Castilho (2010:253) ressalta ainda a distinção entre apresentar – “introduzir no discurso um novo
participante” – e predicar – “atribuir propriedades semânticas ao argumento de um operador”.
7 A esse respeito, Castilho (2010, p. 289) afirma: “Esse tratamento pode ser assim esquematizado: em sua
primeira menção, o tópico discursivo novo ainda não se integrou na memória de curto prazo, exibindo o
traço semântico de /indefinitude, não identificabilidade/. À medida que o respectivo referente vai sendo
retomado, ele se fixa em nossa memória, passando a /definido, identificável/, independentemente de sua
articulação por um ou o”.
971
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
(15) I* Ave Maria! foi uma briga tão feia, você nem imagina. A minha
pressão ficou a vinte e um nesse dia, + vinte e um, só eu só num murri
porque as duas num tavam porque num tem que ser as duas, né? a
máxima e a mínima num tava + foi. Que ele veio dizeø que eu tinha:
eu queria prejudicar ele mayø eu num queria prejudicaø ele não,
porque ele saiu porque o secretário num queria mesmo que ele ficasse.
Aí ele ele veio de lá pra cima de mim, comigo num tem boquinha não.
+ Eu gostava dele, tanto, gostava que só, todo mundo gostava dele.
Mas ele veio pra cima de mim querenøo, como se fosse dá em mim. +
Mayø eu num ia prejudicar ele não, eu ia me prejudicar. É um código
LÁ que, a menina eu tava de férias quando eu voltei aí esse código
tava dentro + da produtividade; e eu não vi que a educação mandou
errado, mandou no código duzentos falta, e o código era cento e vinte
e cinco, se eu tivesse se tivesse saído isso nas folhaø de pagamento, ia
sair umas cinqüenta faltas, das cinquenta pessoas. Eu ia prejudicar
ele? Eu ia prejudicar a mim que eu ia eu ia explicar o povo, porque
quer dizer, falta de atenção, irresponsabilidade. E eu disse ao
Secretário, digo: “Olhe, eu num ia prejudicar ele não, eu ia prejudicar
a mim, e na faixa de cinqüenta funcionárioø, somente”, e eu ia teø
como é que eu ia dizeø não gente, porque eu eu num olhei, olhe aí. Ele
foi burro demais, saiu porque quis. + Ele também ele era muito
taxativo assim, ele queria um negócio era o que ele queria (informante
feminino, VALPB).
972
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
(iii) ocorre mais frequentemente com verbos de movimento; (iv) seus papéis temáticos
mais comuns são /locativo/, /alvo/, /origem/ e /comitativo/. Na amostra analisada, todos
os complementos verbais preposicionados foram complementos oblíquos.
(16) no prédio três ... vão ser construídas ... construído também uma ... uma
quadra né ... na parte esportiva ... vai ser construído também mais uma
... uma quadra ... um ginásio ... falam num ginásio AÍ ... num sei se
vai ser lá ... lá dentro ou fora ... e também é ... andaram falando aí que
vai ser construída uma ... uma unidade aqui no Jiquí ... né ...
(informante masculino, D&G Natal).
(17) F Então [ele] [ele está] ele está fazendo agora o cursinho à noite, ele
faz [com um] com um tenente-coronel ALI [da] da Aeronáutica que
faz curso pra ele assim, particular. Ele vai todo dia, se termina o
expediente às [é] o expediente dele é das nove às cinco. Termina o
expediente às cinco horas, daí ele vai lá pro cursinho e chega em casa
[é <de>] é dez pras dez. Sete e meia às nove, nove e meia. |Tudo dia|.
Ele dá [é] Português, Matemática e Física. Que são só [esses três]
essas três provas que caem, sabe? pro especialista. É Especialista de
Sargento da Aeronáutica. Quer dizer que aquele que passa aqui nisso,
daí ele [não] não permanece aqui em Curitiba. Daí ele vai [pra] pra
Guaratinguetá, em São Paulo. Fica dois anos lá, assim em regime de
semi internato, tipo de uma Escola Militar, daí quando ele volta de lá,
daí já volta [daí] daí dois anos |concursando| fazendo curso lá, daí
volta como Sargento. Entende como? (informante feminino, VARSUL
Curitiba).
973
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
eixo espaçotemporal. A partir dessa atuação semântica, é possível distinguir três classes
de adjuntos adnominais, as quais reproduzem as propriedades semânticas dos adjetivos.
São elas: (i) adjuntos adnominais modalizadores; (ii) adjuntos adnominais de
verificação – classificadores; (iii) adjuntos adnominais dêiticos.
(18) F É, esse cara, não sei, né? Não tenho nada contra o PT, mas [todas]
todas as prefeituras que têm aí que eles [estão] estão governando aí
estão viradas numa bagunça, né? São Paulo, a Erundina lá, está
fazendo nada, nem aqui, né? Porto Alegre também, né?
E Não é que a Jane tinha falado há muito tempo atrás que tinha o
problema de uma árvore AÍ. I Já tem.
F Nós temos aqui ainda aqui. I Até agora é um horror (informante
masculino, VARSUL Porto Alegre).
(19) *A mestra de noviça era muito autêntica mesmo. *Aí ela me falou
pra: “*Porque [cê-] num vai seø é Franciscana?” *Eu disse: “*Olhe,
eu sei o que é uma Franciscana e sei o que é uma carmelita. *Eu
freqüento aqui há muitos anos, desde a idade que eu morava aqui
perto. *Eu tinha uma tia que era carmelita e queria entraø, mais
casamento é pra num aborrecer marido, né? Porque tem aquelas
reuniõeø, aquele aí pra num haver confusão, né? Deixei. *Quando eu
fiquei viúva aí entrei. *Aí ela disse: “*Não, pode ser que eu {inint}
ser Franciscana”. *Eu disse: “*Não”. *Aí depois ela falou cum um
que era da mesa, ele chegou, disse: “*Ave-Maria, Ivonete? Aquele é
gente fina, pode ingressaø lá na ordem terceira que ninguém vai se
arrepender não.” *Um mesário LÁ, aliáis esse já morreu. *Aí ela foi
lá em casa, me pediu mil desculpas, a mestra de noviça, né? *O nome
dela é Da Paz, me pediu mil desculpas, eu disse: “*Olhe, eu só vou
lhe garantiø uma coisa: eu vou entrar na ordem de cabeça erguida e
974
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
vou sair quando chegaø meu meus últimos dias de cabeça erguida”
(informante feminino, VALPB).
Fica claro a partir dessa distribuição que as funções sintáticas preferidas dos SN
especificados pelos marcadores emergentes são as de objeto direto e absolutivo, uma
vez que, juntas, correspondem a 62,5% das ocorrências de AÍ, 69,7% das de LÁ, 75%
das de ALI e 100% das AQUI. Essa predominância dos marcadores acompanhando SN
objetos diretos e absolutivos se coaduna com o resultado de pesquisa anterior a respeito
de AÍ marcador de especificidade (Confessor, 2008:70),8 na qual, embora a quantidade
de dados tenha sido bem menor do que nesta, também houve essa predominância. É
provável que, quanto mais gramaticalizado estiver um marcador de especificidade, mais
ele será empregado junto a SN de funções sintáticas variadas, deixando de estar restrito
a SN objetos diretos e absolutivos. Os SN objetos diretos e os absolutivos
possivelmente representam os contextos sintáticos preferenciais para a emergência dos
marcadores de especificidade, já que é nesses contextos que os quatro marcadores de
especificidade em tela são mais empregados, além de serem os únicos em que AQUI
aparece, e dois dentre os três em que ALI aparece. Portanto, os SN com função de
objeto direto e de absolutivo podem representar o ponto de partida para o uso de um
marcador de especificidade, que, depois de aí emergirem, podem passar a ser
empregados em outras funções sintáticas.
8 Ressalta-se que, na referida pesquisa, apareceu apenas um dado que corresponde à função que nesta foi
classificado como absolutivo. Na época, ele foi considerado como objeto direto.
975
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
Esse fator diz respeito à maneira como os referentes nominais são apresentados
no discurso. Na análise desse fator, utilizei a nomenclatura utilizada por Prince (1981,
1992), que classifica as entidades discursivas em três grupos: novos, velhos (ou
evocados) e inferíveis. Na Tabela 3, encontram-se os resultados concernentes ao status
informacional dos SN acompanhados por AÍ, LÁ, ALI e AQUI.
976
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
Algumas considerações
977
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
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EDUFRN. [CD-Rom].
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Oxford University Press.
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Hopper, Paul J. 1998. Emergent grammar. In: Tomasello, M. (Ed.) The new psychology
of language. New Jersey: Lawrence Erlbaum, p. 155-175.
978
Simpósio 46 - Gramaticalização, subjetificação e mudança linguística: estudos de casos...
Hopper, Paul J. 2008. Emergent serialization in English: pragmatics and typology. In:
Good, Jeff. (Ed.) Language universals and language change. Oxford: Oxford
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Prince, Ellen. F. 1981. Toward a taxonomy of given-new information. In: Cole, P. (Ed.)
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Thompson, Sandra; Mann, William (Eds.). Discourse Description: Diverse Analyses of
a Fundraising Text. Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins, p. 295-325.
979
SIMPÓSIO 47
PORTUGUÊS DO BRASIL:
HISTÓRIA, CONTATOS E VARIEDADES
COORDENADORES
Konstanze Jungbluth
(Universität Viadrina)
RESUMO
O presente trabalho perscruta a influência do contato linguístico de afrodescendentes do
Rio Grande do Sul (RS). A análise nele proposta deu especial atenção aos fenômenos
que remontam a uma Origem Africana ou que rumem para o Português Contemporâneo
e alinham-se teoricamente a outros estudos de línguas africanas e de seu contato com o
português (VOGT; FRY, 1996; FIORIN; PETTER, 2009; LUCCHESI, 2009). Tem-se
no Brasil 155 comunidades afro-brasileiras, com 3831 famílias. Dentre elas, as
comunidades selecionadas para este trabalho foram: 1) Região do Litoral/Lagunas –
Morro Alto (Osório); 2) Região Metropolitana – Família Fidelix (Porto Alegre); 3)
Região das Antigas Charqueadas – Maçambique (Canguçu); 4) Região dos Pampas
– Palmas (Bagé); 5) Região da Depressão Central – Cerro Formigueiro (Formigueiro);
6) Serrana/Imigração – São Roque (Arroio do Meio); e 7) Região das Missões –
Comunidade Quilombola Correa (Giruá). Consideram-se condicionamentos sócio-
históricos distintos, entre os quais o grau de isolamento; a localização rural ou urbana; a
microrregião sociocultural; a presença de outras línguas no entorno; e a antiguidade da
comunidade ou topostática da população. Verificaram-se as marcas de africanidade que
distinguem a variedade do português dessas comunidades do português falado no seu
entorno e em que medida se transferem variantes linguísticas do entorno para o
português dessas comunidades. Os resultados advindos do trabalho de campo
identificaram se o comportamento linguístico dos membros desse tipo de espacialidade
linguística era mais conservador e seguia, desse modo, uma orientação mais centrípeta
(para dentro da comunidade) ou se tendia a uma abertura para fora (orientação
centrífuga), perdendo/abandonando, nesse sentido, as marcas de africanidade que
distinguem sua variedade da variedade do português do entorno.
983
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Introdução
984
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
985
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Dialetologia
Pluridimensional Espaço variacional e disciplinas da variação
Dialetologia Dialetologia Sociolingüística
tradicional: valoriza
a análise espacial, z
mas deixa de y
abordar diferentes
variáveis
extralinguísticas;
A B C
Sociolinguística:
aborda diferentes D N y
dimensões em
apenas um x v
determinado espaço; A
z
Dialetologia Dialetologia pluridimensional e relacional
pluridimensional:
busca suprir as
lacunas existentes A1 B1 N1
nessas duas
abordagens ao
analisar diferentes
variáveis A2 B2 N2
y
extralinguísticas em
diversos pontos de
pesquisa (Thun, A3 B3 N3
1998, 2010).
A4 B4 N4
986
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
apontados pelos dados dos diferentes pontos de pesquisa (dimensão diatópica), grupos
etários GII e GI (dimensão diageracional) e falantes homens e mulheres (dimensão
diassexual).
Frente à impossibilidade de se poder considerar o Rio Grande do Sul como um
bloco linguístico uniforme, é preciso partir do pressuposto de que o português sul rio-
grandense comporta subvariedades que podem ser associadas à microáreas de variação,
condicionadas por fatores históricos, sócio-culturais e geográficos, entre os quais áreas
de fronteira, de campo, de serra e de litoral, bem como áreas de imigração, de
colonização antiga e recente, urbanas e rurais.
As contribuições de projetos como o Atlas Linguístico-Etnográfico da Região
Sul do Brasil (ALERS, 2011a e 2011b) e Variação Linguística Urbana da Região Sul
(VARSUL) têm mostrado a relevância dos contatos linguísticos para essa configuração
linguística do território (Altenhofen, 2008). Torna-se necessário, assim, considerar a
dimensão diatópica das comunidades afro-brasileiras, seu contexto histórico e
geográfico, a fim de evitar generalizações que impediriam a observação e análise de
processos regionais particulares que, além de caracterizarem as respectivas
comunidades, permitem comparar e compreender melhor os diversos fatores sociais
subjacentes ao comportamento linguístico dos falantes em cada ponto de pesquisa.
Língua minoritária pode ser entendida como toda e qualquer língua falada por
uma minoria num estado nacional. Partindo deste princípio, o Grupo de Trabalho da
Diversidade Linguística do Brasil (GTDL), em Seminário realizado no ano de 2006,
começou a discutir acerca da Criação do Livro de Registro das Línguas.
Segundo o Livro de Registro de Línguas do IPHAN, no Brasil, além da Língua
Portuguesa, temos mais de 200 línguas sendo faladas. As nações indígenas do país
falam cerca de 180 línguas (chamadas de autóctones), e as comunidades de
descendentes de imigrantes cerca de 30 línguas (chamadas de línguas alóctones). Além
disso, usam-se pelo menos duas línguas de sinais de comunidades surdas, línguas afro-
brasileiras, e práticas linguísticas diferenciadas nos “quilombos”, muitos já
reconhecidos pelo Estado, e outras comunidades afro-brasileiras. Finalmente, há uma
987
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
988
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
afro e afro-brasileiro, e também como língua secreta, usadas, por exemplo, nas atuais
comunidades afro-brasileiras, ou seja, as referidas representações linguísticas existentes
hoje estão em grupos pequenos e com um número de léxico bastante reduzido:
989
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Dimensões de análise
De acordo com os objetivos propostos para esta pesquisa, serão controladas três
dimensões e parâmetros da amostra, segundo o Quadro a seguir.
990
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
diarreferencial Lg: fala “objetiva” Análise qualitativa de dados obtidos por meio da
MLg: fala metalinguística técnica de entrevista em três tempos: perguntar –
insistir - sugerir
diareligiosa Mafri: cultos de matriz NÃO será considerada, será dada atenção à religião,
africana porém de forma qualitativa.
Crist: cristão (católico,
evangélico etc)
dialingual Conta: monolíngues e/ou NÃO será considerada, porém será dada atenção para
(contatual) contato com língua situações de contato línguas autóctones e línguas
alóctones alóctones e para praticantes de línguas ritualísticas de
Lafri: praticantes de religiões de matriz africana.
línguas ritualísticas de
religiões de matriz africana
991
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Esta pesquisa tem um caráter inovador, uma vez que fizemos uma macroanálise
pluridimensional e relacional do português falado por afrodescendentes de comunidades
afro-brasileiras do Rio Grande do Sul situadas em sete pontos distintos entre si.
Após a etiquetagem dos dados, investigamos ponto por ponto como se constituiu
e constitui a variedade local das comunidades quilombolas, buscando descobrir se elas
mantêm ou substitui variantes de origem africana ou mais arcaicas, ou seja, se
configuram uma variedade mais conservadora ou mais contemporânea. Em seguida
verificamos se a variedade local do português convergia ou divergia do português do
entorno; por fim, se se distancia ou aproxima do standard/substandard do português do
Brasil, ou melhor, se, mostram uma variedade mais normatizada ou mais popular,
levando-se em conta os traços característicos:
[+ peculiar] [+ nivelamento]
[+ conservador/ arcaico] [+ mudança linguística]
[+ africano] [+ substituição linguística]
[+ popular] [+ normatização]
992
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Macrotendências observadas
993
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
se explicar pelo papel social das mulheres que mantinham um contato maior com
falantes lusos, tendo em vista sua atividade como servindo os senhores/os donos.
c) Os falantes homens GII, em contrapartida, parecem constituir o grupo mais
conservador. Entre os jovens, é também primordialmente o grupo GIm que mais
mantém variantes [+afro] no português.
d) A análise da variação lexical do português das comunidades afro-brasileiras
analisadas no RS sinaliza fortemente uma mudança em curso em dois sentidos:
1) de um lado constata-se, através dos dados cartografados, uma perda
significativa de variantes [+ afro] da GII para GI;
2) de outro lado, verifica-se no sentido contrário uma reintegração de formas [+
afro], provavelmente resultantes em grande parte do português geral falado
no entorno destas comunidades tanto de/quanto de uma consciência
identitária acentuada por meio do movimento negro; a comparação
diageracional permite levantar essa hipótese.
Considerações Finais
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Eu enquanto autor, que se considera parte dessa história, já se dará por satisfeito pela
contribuição prestada. Entender como se constitui ou desconstitui a língua de um grupo
humano é, aliás, o primeiro passo para a afirmação de sua identidade.
A realização deste estudo permitiu, enfim, entender um pouco melhor a
dinâmica de formação do português em comunidades desse tipo, historicamente
segregadas em virtude de sua condição de opressão, porém não
descontextualizadas, tampouco tão isoladas que só se possa pensar em formas
arcaicas. Um ponto central que não se pode esquecer é que essas comunidades se
constituíram, acima de tudo, “em situações de contato linguístico” com a sociedade do
entorno. O português dos afro-brasileiros, nos dias atuais, é essencialmente o
resultado dos contatos linguísticos desses grupos de fala com o português da sociedade
e cultura dominante em que estão inseridos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Unicamp.
Anexos
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
1000
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
1001
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
1002
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 47 - Português do Brasil: História, contatos e variedades, 1003-1012
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1003
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO4
Muito recentemente a sociedade brasileira se autopercebeu como uma comunidade de
fala com uma só língua, o Português Brasileiro (PB). Nesse contexto, e também com a
crescente divulgação dos meios de comunicação, a pressão para assimilar-se a essa
sociedade monolíngue aumentou. As/os descendentes de imigrantes alemães, por
exemplo, que durante três gerações conseguiram dar continuidade ao uso de sua língua
de origem, agora já não podem assegurar a aquisição dessas competências (Zinkhahn-
Rhobodes 2012). Hoje em dia, a preocupação das minorias no contexto nacional se
volta também para as comunidades que falam outras línguas do/no Brasil: línguas
autóctones amazônicas ou ameríndias, línguas crioulas ou línguas alóctones europeias
ou asiáticas, entre outras. Todos esses contextos geram um espaço multilíngue no
Brasil, fazendo com que os falantes bilíngues se afiliem a duas culturas distintas: a de
sua origem e a nacional. A partir de dados empíricos, a minha comunicação enfoca atos
de fala de informantes bilíngues que expressam a sua ancoragem dupla. Há dados
gravados no campo perto de Florianópolis onde escutamos: «Halb das Blut ist Deutsch
und nacionalidade é brasileira. Então sind wir so durchgeschnitten ne, aber coração
chora pros dois.» (Laudien 2010; Rosenberg 2015). Entretanto, nem sempre a divisão
entre as duas línguas está tão nítida. A coconstrução entre interlocutores bilíngues
mostra um uso bilíngue que não respeita fronteiras morfossintáticas. Parece que a
penetração é muito mais forte. Os atos de identidade demonstrados pelos atos de fala,
como esse, também revelam ser mais intercruzado. Diante desses dados, pretendo
analisar as diferentes manifestações de realizações bilíngues ao nível do discurso, da
sintaxe e da palavra.
2 Agradeço a Layla C. Iapechino Souto pelos comentários construtivos sobre o presente artigo.
3 Europa-Universität Viadrina (EUV), Fakultät für Kulturwissenschaften, Lehrstuhl für Sprachgebrauch
und Sprachvergleich, Große Scharrnstraße 59, 15230 Frankfurt (Oder), Deutschland, jungbluth@europa-
uni.de
4 Agradeço os comentários dos participantes do SIMPÓSIO 47 – PORTUGUÊS DO BRASIL:
HISTÓRIA, CONTATOS E VARIEDADES no V Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa,
8-11 outubro de 2015, Lecce (Itália) http://www.simelp.it.
1003
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Introdução
A expressão «nacionalidade é brasileira [..] aber coração chora pros dois», que
introduz o tema dessa contribuição, pode ser caraterizada como um ato de fala bilíngue
representando também um ato de identidade (Le Page/Tabouret-Keller, 1985) que
indica biculturalidade (Savedra 20XY). Esse trecho pertence a um corpus de dados
colhido em Pelotas (Laudien, 2010), uma zona rural perto de Rio Grande na Região Sul
do Brasil, não muito longe da fronteira com Uruguay, como ilustra a figura 1. Nesse
lugar, moram descendentes de alemães da quarta geração e gerações mais novas. Os
mais velhos ainda hoje falam o seu dialeto, o pomerano. Alguns sabem falar também o
alemão padrão, em certa medida, e naturalmente todos falam português brasileiro.
1004
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Coconstruções
Em sentido lato, todo discurso pode ser compreendido como uma coconstrução
entre falante e o/s seu/s ouvinte/s. O ato da fala e o/s ato/s da recepção representam uma
atividade igualmente importante para realizar o discurso (Mondada, 2015). Além disso,
o fato da existência de pares de atos de fala como pergunta e reposta nas línguas do
mundo evidenciam que a troca entre o papel do falante e do ouvinte deve ser
considerada como básica para a comunicação humana.
O trabalho conversacional entre vários interlocutores negociando assuntos de
trabalho pode ser observado nos dados seguintes, onde três pessoas pretendem projetar
entre todos uma mudança de lugar. Resumindo o discurso, a proposta consiste em dar
continuidade ao discurso em andamento almoçando juntos. A finalidade de atingir um
acordo sobre atividades compartilhadas, no futuro, precisa de um entendimento anterior.
Os turnos conversacionais mostram uma determinação progressiva que, passo a passo,
avança do geral ao específico, sempre dependente da ratificação pelos atos de fala ou
respostas multimodais com valor afirmativo dos outros.
1005
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
1ʹʹʹʹ B Right.
Dados 1: Co-constructing: adjustment between one and another (Hobbs, 2012:39-40).
A teoria da fronteira
6 Outros autores como Greco/Renaud/Taquechel 2012 usam o termo coconstrução para denominar
neologismos criados em contextos multilíngues (veja mais embaixo; Jungbluth submitted).
1006
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
por alguns autores. Essa fala emergente pode representar um protocriolo ou pode ter
semelhanças com as línguas protoromanas (compare, por um lado, o sermo vulgaris do
Latim tardio / proto-Romano ou, por outro lado, a emergência das glossas interpretando
textos em língua latina a partir do séc VI). Eu proponho denominar uma variedade de
fala com esse potencial como um leto liminal. O leitor pode ler a discussão mais
adiante.
2. E…eu respond/ auf Hochdeutsch oder auf Platt? Ach auf Platt está bom
ʻem alemão padrão ou em dialeto? Aí em dialetoʼ
Dados 2: Língua padrão ou dialeto Platt? (0132_Laudien_RS_Pelotas 64w POM_4gen)
3. Hoje em dia assim ca.. äh heiraten sie und kurze Zeit später sind sie schon
ʻse casam e pouco tempo depois já se separamʼ
O mesmo não vale para o nível do sintagma. Os dados seguintes mostram que a
1007
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
4. [..] tragen ne, [die Hose cintura baixa]SN ne, hängt der Speck so drüber
ʻestão vestindo calças a barriga sobressai de foraʼ
Dados 4: Cintura Baixa ʻHüfthoseʼ (0339_Laudien_RS_Pelotas 64w POM_4gen)
5. [die fsg neue fsg geração fsg]SN ist so [.] der Kerl tut auch kochen
ʻa nova é assim [.] o homem cozinha tambemʼ
Dados 5: Die neue geração (0438_Laudien_RS_Pelotas 64w POM_4gen)
A transferência dos traços de número e/ou gênero está evidenciado tanto nos
dados 4 como nos dados 5. O artigo determinado die concorda em número e gênero com
o substantivo geração, e o mesmo vale para o adjetivo. Tanto no sintagma nominal
(SN), usado em dados 4, die Hose ʻas calçasʼ alargada com a determinação cintura
baixa, como na forma ainda razoavelmente um grau mais integrada do outro sintagma
audível nos dados 5, fica evidente essa c o m b i n a ç ã o , mostrando que as fronteiras
entre as duas línguas agora são p e r m e á v e i s .
Palavras bilíngues
1008
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
6. das Hoch ist (.) mais romântico, wenn ich so […] Mädchen [..] namoriere
ʻa língua padrão éʼ ʻquando flerto com as moçasʼ
Dados 6: Namoriere (0538_Laudien_RS_Pelotas 64w POM_4gen)
7. Meine ersten beiden Kinder [..] die sind ja auch grudiert
ʹOs meus filhos maiores tiverem que reaprovar issoʼ
1009
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Conclusões
Acho que a mudança evidente nesses dados refletem um leto liminal em estatus
nasciendi. Faz pouco tempo que o Brasil mudou sua política linguística e o leto
identificado só pode se fixar se as gerações novas continuarem a falar o alemão, seja na
variedade padrão, seja em dialeto (o pomerano, nesse caso). Sem a continuação do uso,
essa variedade vai desaparecer com os seus falantes.
Como todos os atos de fala representam ao mesmo tempo atos de identidade (Le
Page/Tabouret-Keller 1985), essa prática precisa de uma revitalização por parte dos
jovens. Os falantes decidem se acham importante preservar um uso bilíngue no futuro
que lhes permita expressar a sua biculturalidade por meio de uma fala bilíngue.
Acabo com a citação de uma das informantes que expressa muito bem essa
postura e as pertinências duplas que eles formaram:
«Nacionalidade é brasileira [..] aber coração chora pros dois»
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1010
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Rampton, Ben. 1995. Crossing: language and ethnicity among adolescents. London:
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1011
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Wiese, Heike. 2012. Kiezdeutsch. Ein neuer Dialekt entsteht. München: C. H. Beck.
1012
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 47 - Português do Brasil: História, contatos e variedades, 1013-1026
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1013
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O dicionário de “vocábulos triviais” (VT) do português brasileiro é um projeto em
desenvolvimento no âmbito do GAMPLE (GP-CNPq), que objetiva estudar os discursos
engendrados no léxico e seu percurso histórico até a constituição atual, criando uma
abordagem léxico-discursiva. Esse é um fator relevante para o reconhecimento de grande
parte de vocábulos como “aperreado”, “atarantado”, “baita”, “boléu”, “cafundó”,
“chuchar”, “danura”,“estropício”, “fiúza”, “inhaca”, “piti”, “ralé”, “tabefe”etc., muitas
vezes marginalizados na escrita culta-formal, mas recorrentes na oralidade e na
informalidade. Esses VT merecem destaque em um dicionário que contemple questões
histórico-sociais da Língua Portuguesa do/no Brasil e podem ter origem clássica, indígena e
africana como também estrangeira, além de outros tipos de criações vernáculas; geralmente
são usados por todas as classes socioeconômicas, mais reconhecidos como variantes
diafásicas que diastráticas ou diatópicas. Evidencia-se necessário um estudo histórico-
discursivo visando a reconstituir a formação desses VT e sua representatividade enquanto
caráter do povo brasileiro para reunir em uma obra esse rico material que leva ao
autoconhecimento de nossa cultura e das diferentes ideologias. O resultado do projeto, o
futuroDicionário de Vocábulos Triviais do Português Brasileiro poderá congregar o
português de uso e o português normativo, para queseja possível apresentar à escola um
material de pesquisa e de aplicação, levando ao público um conhecimento sobre as
diferentes identidades da Língua Portuguesa e seus múltiplos processos de construção de
sentidos.
7 UNESP– Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas. Endereço: CEP 15054-000, Rua Cristóvão Colombo, 2265, São José do Rio Preto, SP –
Brasil. E-mail: cristinaparreira@sjrp.unesp.br. Apoio: FAPESP e FAPERP.
8 FATEC– Faculdade de Tecnologia de Catanduva-SP. Endereço: CEP 15800-020, Rua Maranhão, 898,
Catanduva-SP – Brasil. E-mail: rosimar@fateccatanduva.edu.br. Apoio: FAPERP.
1013
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Contextualizando a Pesquisa
9 http://www.ibilce.unesp.br/#!/pesquisa/grupos-de-pesquisa/gample/
10 Consideramos linguagem oral de base escrita os textos informais, com marcas de oralidade, que circulam
em espaços de comunicação virtual, notadamente a WEB.
1014
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
O dicionário que propomos coloca-se como uma obra que permitirá ao falante uma
melhor compreensão desses vocábulos na língua, seja para o uso cotidiano ou para um
estudo mais aprofundado. Realçando esse discurso sobre o léxico e buscando explicações
para seu uso, o DVT do PB pode auxiliar também no ensino de LP, que por uma tradição
normativa, tende não raramente a impedir o uso de certos vocábulos como se eles não
fizessem parte do acervo vocabular da língua.
Nesse contexto, ao observarmos que o falante usa determinadas unidades
lexicais e relata dificuldade em encontrá-las no dicionário, percebemos que
poderíamos contribuir elaborando uma obra descritiva, sincrônica, de uma seleção
lexical de uso diafásico que auxiliaria também para a função prescritiva, uma vez
que proporcionaria o acesso ao conhecimento mais aprofundado não só do
significado, da história e uso dessas unidades, mas também das razões que as
levaram a serem marginalizadas e/ou terem formas diferentes na escrita e na
oralidade.
Se por um lado, de tanta intimidade com esses vocábulos, não parece necessário
consultar seu significado em um dicionário, por outro, muitos aspectos interessantes sobre
essas unidades são obscuros. É nesse ponto que acreditamos que é importante a realização
de uma obra que possibilite e facilite a consulta dessas unidades mais coloquiais, tanto para
incluir o léxico desse falante no universo da LP quanto para auxiliá-lo na compreensão de
sua ortografia, de seus sentidos e de seu percurso histórico-discursivo.
1017
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
A relação entre léxico e discurso tem sido tratada em diferentes perspectivas, por
vários autores. O termo “lexicografia discursiva”, por exemplo, já havia sido abordado por
Orlandi, como se pode ratificar quando a linguista afirma que:
“A lexicografia discursiva vê, nos dicionários, discursos. Desse modo, na escuta
própria à análise do discurso, podemos ler os dicionários como textos produzidos
em certas condições, tendo o seu processo de produção vinculado a uma
determinada rede de memória ante a língua.” (Orlandi, 2000:97).
Essa afirmação valida nossa pesquisa de modo que, pela relevância
metodológica que se tem na elaboração de um dicionário, propõe–se, então, uma
organização dos vocábulos do PB com discursos evidenciados em determinadas
épocas e culturas. Aspectos dessa natureza podem ser encontrados nos
dicionários etimológicos que subsidiarão, ancorados em teorias discursivas, um
estudo que considere os diferentes níveis de análise linguística desembocando no
discursivo.
O percurso léxico-discursivo difere de outras propostas de análise por
distinguir-se do “puramente linguístico” e considerar aspectos sociais, históricos
e culturais como elementos intrínsecos à semântica lexical. Conforme Parreira e
Schinelo:
Podemos afirmar, então, que um olhar discursivo sobre o léxico nos permite: a)
perceber que a relação entre linguagem e cultura não se dissocia; b) acompanhar
o léxico como acontecimento de linguagem, ou seja, seu sentido se faz no
presente a partir de um passado e já possibilitando significados futuros; c)
questionar como o desenvolvimento tecnológico interfere na relação homem,
cultura e linguagem. (Parreira e Schinelo, 2014:193)
A proposta de organização desses vocábulos em categorias discursivas
considerando a não estaticidade dos sentidos apreendidos no léxico de uma língua
constitui-se em grande desafio teórico deste projeto. A ideia inicial, passível de
reflexões e consequentemente alterações, será descrita a seguir:
1019
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
APERREADO
Adjetivo 1. tratado como um perro ('cão') ou perseguido por perros. 2. Derivação: sentido
figurado - sem liberdade; oprimido, preso. 3. sujeito a, subordinado a (alguém ou
alguma coisa). Ex.: aperreado às formalidades. 4. Derivação: sentido figurado -
que foi vítima de alguma contrariedade; aborrecido, apoquentado. Ex.: criança
aperreada.
PLD ?A formação discursiva e ideológica desse vocábulo é marcada pela relação país
colonizador e país colonizado. A origem espanhola do vocábulo e a formação pela ação
realizada pelos perros remetem a uma relação de poder entre grupos sociais distintos. O
sentido migra, mas o discurso subliminar permanece no vocábulo.
ATARANTADO
Adjetivo. aturdido, atrapalhado, estonteado.
PLD O sentido se constitui a partir de uma ação para eliminar o veneno da tarântula na
região da Sardenha, sul da Itália, migra para uma ação lúdica coletiva e acaba chegando ao
Brasil, com os imigrantes italianos. Ficar atarantado em nossos dias significa estar
zonzo,decorrente historicamente do efeito do veneno da tarântula e, além disso, confuso
pelo movimento rápido da dança (Tarantela).
A organização do dicionário
15 De caráter colaborativo, trata-se de uma obra em constante elaboração pelos falantes comuns, online desde
2006, disponível em http://www.dicionarioinformal.com.br/, sendo que o linguista Marcelo Muniz concebeu e
1021
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Essa classificação prévia ainda terá mais subdivisões, como, por exemplo, a
separação das línguas-fonte dos estrangeirismos, os tabuísmos e a inclusão de
fraseologismos com unidades que não são usadas livre e sincronicamente na língua (“dar na
veneta”, “meter o bedelho”, “estar nos trinques”), conforme analisamos em trabalho
apresentado na Europhras, 201416 e em artigo aceito para publicação nos anais do evento.
Paradigma do verbete
16 La phraséologie dans le « Dictionnaire des mots non conventionnels du portugais brésilien » M.-C.
Parreira, 2014 - http://www.europhras.org/.
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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1025
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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1026
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 47 - Português do Brasil: História, contatos e variedades, 1027-1040
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1027
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
A partir da segunda metade do século XIX o Brasil recebe um número expressivo de
imigrantes italianos, muitos deles direcionados ao estado de Minas Gerais por conta de um
acordo assinado entre os governos mineiro e italiano. A principal porta de entrada dos
imigrantes nesse estado era a cidade de Juiz de Fora, que se ligava ao Rio de Janeiro pela
estrada União-Indústria, primeira estrada pavimentada da América Latina. O perfil dos
italianos era marcado pelas diferenças culturais e linguísticas. Provinham de toda a
península itálica e eram, na maioria, dialetófonos. Embora o escopo do governo mineiro
fosse enviar os imigrantes para a lavoura, muitos deles acabaram por ocupar áreas urbanas,
onde houve intenso contato com as diversas variedades do italiano e o português brasileiro
(PB), o que levou os imigrantes à apropriação da variedade da língua majoritária (PB) e
consequente não transmissão da língua de origem às gerações seguintes. Entretanto, há
sentimento de italianidade entre os descendentes (Gaio, 2013), que vem se transformando
ao longo das gerações e sugere o reconhecimento de uma identidade sincrética, marcada em
comunidades de prática de imigrantes urbanos. Com auxílio do referencial teórico e
metodológico de Redes Sociais (Milroy; Milroy, 1985; Milroy, 2003; Bortoni-Ricardo,
2011) e Comunidades de Prática (Wenger, 2006; Eckert, 2000), investigamos em que
medida as gerações mais jovens representam uma “etnicidade em movimento”. A pesquisa
é parte da tese de doutoramento. Tem cunho etnográfico e pretende buscar evidências que
endossem a importância das Redes Sociais/Comunidades de Prática na transmissão
linguístico-cultural no eixo Rio-Minas.
1027
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Introdução
O Brasil, com seus mais de oito milhões de km2 - quase a metade de toda a América
do Sul - tem sua população formada por diversas etnias, provenientes de diversas partes do
mundo. No fim do século XIX um acordo entre os governos do estado de Minas Gerais e o
governo italiano promoveu um fluxo migratório muito importante de italianos em direção a
esse estado brasileiro e o município de Juiz de Fora se destacou na recepção de muitos
desses imigrantes. A cidade, localizada quase na divisa com o estado do Rio de Janeiro, já
se destacava como polo industrial e ali foi instalada uma hospedaria18 para a recepção e
triagem desses imigrantes. Embora o objetivo primeiro do governo do estado fosse suprir as
fazendas de café com mão de obra imigrante, muitos desses italianos acabaram por se
estabelecer em área urbana, o que gerou incômodo nas relações entre os dois governos
(Gaio, 2013).
Hoje o Brasil é um país plurilíngue e pluricultural, rico e diverso etnicamente, onde
coexistem línguas autóctones, alóctones, línguas de contato com fronteiras hispanófonas,
francófonas (Guiana Francesa) e anglófonas (Guiana).19 Sua população é composta por
elementos étnicos de quase todas as partes do mundo. A sociedade brasileira é multiétnica
em movimento (Savedra; Gaio, 2013). Essa pesquisa de doutorado, ainda em
desenvolvimento, trata dos processos de transculturalidade, como definida por Welsch
(1999),20 característicos de sociedades como a brasileira. A transculturalidade, numa macro
visão, é “uma consequência da distinção interna e da complexidade das culturas
modernas21”. Culturas que se interpenetram ou emergem umas das outras (Welsch, 1999).
Também no nível do indivíduo, ou numa micro visão, a transculturalidade está ganhando
terreno porque a sua formação cultural vem sendo cada vez mais influenciada por múltiplas
conexões culturais. “Somos híbridos culturais22”, como afirma o mesmo autor, e a
população brasileira é certamente um bom exemplo. Acreditamos que a etnicidade híbrida
1028
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Delimitação e objetivos
1029
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
1030
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Metodologia
Nossa pesquisa tem cunho etnográfico e pretende buscar evidências que endossem a
importância das Comunidades de Prática (CP) (Wenger, 2006; Eckert, 2000) na
transmissão linguístico-cultural no eixo Rio de Janeiro-Juiz de Fora. A Comunidade de
Prática como entendida por nós pode ser associada a Redes Sociais como definida por
Milroy & Milroy (1985) e Milroy (2003), e também explorada por Bortoni-Ricardo (2011).
É nossa opção usar a terminologia Comunidade de Prática pela característica particular
dessa última. Acreditamos que toda CP seja uma Redes Social, mas nem toda Rede Social é
uma CP. O ponto de partida são as Associações que promovem a cultura italiana na região
delimitada. Através de seus responsáveis queremos identificar possíveis CP existidas e/ou
existentes cujo mote seja a relação com o legado cultural deixado pelos imigrantes.
Identificadas as CP, pretendemos, através de uma enquete sociolinguística, identificar
qualitativamente marcas linguístico-culturais nas CP e avaliar os processos de
transculturalidade ocorridos/em andamento.
Identidade
1031
Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
e ‘os outros’. Imigrantes italianos que se deslocaram para o locus da pesquisa não se
identificavam como ‘iguais’, havia diferenças linguísticas e culturais muito importantes
(Bertonha, 1998; Gaio, 2013), enfatizadas pela célebre frase de Massimo d’Azeglio24 ainda
na época da Unificação Italiana:25 “fizemos a Itália, agora é preciso fazer os italianos”.
Nesse caso, apesar da origem nacional comum (mesmo passaporte, no fim das contas), os
grupos eram divididos pelas origens, o que enfraquecia o sentimento de ‘identidade
nacional’. Porém, características comuns a vários membros de uma comunidade podem
criar laços afetivos e identitários, o que, no nosso caso, podem vir a criar CP
espontaneamente, cujo mote de pertencimento seja a ascendência italiana e a busca por
resgate dessa cultura já entranhada nos costumes locais.
Embora a língua dos imigrantes tenha desaparecido na região, motivada sobretudo
pela não transmissão intergeneracional e por fatores inerentes à migração do tipo urbana
(Gaio, 2013), há indícios de núcleos ligados pela ascendência comum no locus de nossa
pesquisa.
Certamente a língua é um forte elemento de referência identitária, mas não é
imprescindível para a manifestação da própria identidade. Do ponto de vista de quem não
migra o contato com imigrantes revela que um grupo social tem diversas maneiras de
manifestar a sua identidade e os membros desse grupo social devem perceber que esse
sentimento de identificação com o seu próprio grupo se manifesta de diversos modos, dos
quais um deles é a língua (Jungbluth, 2007).
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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italiano colaborou financeiramente, mas com parcela pequena. A Casa funcionou durante
poucos anos, mas foram certamente muito intensos do ponto de vista cultural. Colhemos
relatos documentados de italianos que frequentaram a escola italiana mantida na época.
Percebe-se o tom nacionalista e patriótico do governo.
“Eles [os professores] despertavam na criança um amor pela Itália muito grande,
maior do que o amor pelo Brasil. Os professores que vinham de lá já vinham
preparados para isso, e então (...) na hora de cantar um hino, por exemplo
italiano, você cantava com muito mais satisfação do que o hino brasileiro. Isto é
errado, depois com o tempo é que vi que estava errado – nós somos brasileiros e
não temos intenção nenhuma de voltar para a Itália, absolutamente” (Processo de
tombamento da Casa d’Italia, p. 10)
Os relatos, porém, indicam pormenores que apontam para a etnicidade em
movimento através de um já aflorado sentimento de brasilidade mesclado com a
valorização do legado cultural dos antepassados italianos. O primeiro deles, a evidência de
que a língua, fosse qual fosse, não era transmitida no núcleo familiar, como, aliás, já havia
detectado Gaio (2013). Os depoimentos enfatizam o aprendizado do italiano na escola e não
fazem nem mesmo menção a dialetos. Diferentemente dos modelos de escolas
internacionais de hoje, o governo italiano pretendia que as escolas fossem italianas, como
se observa a partir dos depoimentos colhidos em documento anexado ao Processo de
Tombamento do prédio da Casa d’Italia:
“... Na idade de 9, 10... Anos você aprende com muita facilidade tudo o que
ensinam (...) e eu aprendi a falar italiano”. (Dante Zanzoni)
“eu estudava numa escola (italiana, Umberto I) de Juiz de Fora e aprendi o
italiano porque os meus pais tinham interesse...” (Tisio Arcuri)
“... Além da parte cultural de ensinar os (sic) filhos a língua e as canções
italianas...” (idem)
“eles tinham (...) a oportunidade de convivência nos moldes da Itália” (idem)
(todos os grifos são nossos)
A Casa d’Italia de Juiz de Fora funcionou de 1939 até 1942, quando o Brasil entrou
na 2ª guerra mundial. A Casa, então, foi tomada pelo governo brasileiro e passou a abrigar
o Círculo Militar. Foram apenas três anos de funcionamento, mas certamente muito
intensos e profícuos (Ferenzini, 2008). Em 1955 o governo brasileiro devolve a Casa ao
governo italiano. Houve então uma tentativa de retomada dos ideais de centro cultural e de
congraçamento de italianos, mas já sem intenção nacionalista. Buscava-se um centro com
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
marcas italianas, que pudesse reunir os italianos e fosse voltado à cultura. A década de 60
foi marcante e a Casa d’Italia permaneceu como importante centro cultural até meados dos
anos 70, quando entrou em decadência. Já nos anos 80 suspeitou-se de que havia tratativas
para venda do prédio e alguns italianos e descendentes, além de outras pessoas ligadas à
cultura da cidade, se mobilizaram para buscar seu tombamento como patrimônio cultural
municipal.26 A movimentação deu certo e o prédio foi tombado em 1985.
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Resultados iniciais
Apesar do título, acreditamos que seja prematuro falar em resultados, embora sejam
dados importantes que nos direcionam na identificação das CP a partir da cidade de Juiz de
Fora. A partir da observação do atual funcionamento da Casa d’Italia ali presente,
identificamos núcleos potencialmente importantes para a manutenção e divulgação de
língua e cultura na cidade. Igualmente, buscamos informações a respeito de núcleos
culturais na cidade de Petrópolis, que é bem mais conhecida pelo seu legado de história
alemã. Na cidade serrana do estado do Rio de Janeiro identificamos o Circolo Italiano di
Petropolis e a Casa d’Italia Anita Garibaldi. Essa última, embora carregue o nome Casa
d’Italia, não tem relação com as Casa d’Italia criadas pelo governo de Mussolini. No
estágio atual de nossa pesquisa, temos alguns dados somente de Juiz de Fora. Realizamos
um questionário simulando uma entrevista que foi enviado aos principais responsáveis
pelas três Associações que funcionam no prédio da Casa d’Italia atualmente. Observamos
perfis de associações diferentes, mas que apontam para a existência de CP motivadas pela
italianidade.
A Associação San Francesco, no seu papel de gestora da Casa d’Italia, tem em seu
quadro 250 associados. Chama a atenção, porém, o fato de que a maioria dos associados
tem mais de 50 anos de idade e não tem havido renovação. Segundo o seu responsável,
35% dos associados “falam ou entendem bem o italiano”27 e 34% tem dupla cidadania. O
dado mais relevante é a existência de um grupo de oito associados que se reúne
semanalmente para a prática de bocha e de jogos de cartas. Esses associados são italianos,
27 Evidentemente não aprofundamos a questão de forma a entender o que o informante quer dizer com ‘falar
ou entender bem’ a língua. O valor da resposta é demonstrar que uma parte consistente dos associados tem
interesse, de alguma forma, pela língua.
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
de idade mais avançada. Mantém hábitos que indicam uma CP bastante viva, mas frágil
pela falta de renovação.
A Associação de Cultura Ítalo-brasileira é um curso privado de língua e cultura
italiana e é mais conhecido pelo nome de ‘Cultura Italiana’. Funciona ininterruptamente há
mais de 60 anos, conseguiu superar a pior fase da Casa nos anos 70. Usam as mesmas
dependências da escola Umberto I, da época do fascismo. Gaio (2013) relevou que 60% dos
seus alunos são descendentes de italianos, 63% têm mais de 40 anos e 70% são mulheres.
No entanto, sua presidente nos revela que a descendência, embora seja motivo de procura
pelo aprendizado da língua, não é o mais relevante, e que atualmente tem aumentado o
número de jovens em busca do aprendizado da língua por conta dos programas
universitários de internacionalização. Já em 2013 Gaio observou que 29% dos alunos
matriculados tinham até 30 anos de idade. Porém, o número total de alunos tem diminuído
ao longo dos anos, mesmo com mensalidades mais baixas do que a média cobrada por
outros cursos de idiomas. Isso não nos autoriza a relacionar esse decréscimo ao desinteresse
pela língua, uma vez que nossa análise está restrita apenas à ‘Cultura Italiana’. Detectamos
um indício da formação de CP dentro da escola a partir da necessidade de formação de
turmas chamadas ‘suplementares’, surgida entre os próprios alunos, após o término do
curso regular. Essa interação, que permite e estimula a manutenção de alguns alunos, tem
como mote o interesse comum, motivador de prazer, pela língua e cultura italianas.
A Associação Cultural Grupo de Dança Folclórica Italiana Tarantolato, conhecida
como Grupo de Dança Tarantolato, ou simplesmente Tarantolato, nasceu no ano 2000, por
iniciativa de uma professora da ‘Cultura Italiana’. Segundo a própria idealizadora, era uma
vontade antiga que pôde se concretizar a partir de um convite de um órgão da Prefeitura. O
grupo é amador, mas a organização tem nível profissional. Já se apresentaram inúmeras
vezes em diversos eventos em todo o Brasil. Por razões logísticas o grupo nunca ultrapassa
a quantidade de nove pares de dançarinos. Atualmente tem quinze membros (sete pares
mais uma pessoa de apoio). Estão constantemente renovando figurinos, coreografias e
buscando novas danças. É um grupo muito dinâmico. Os componentes pertencem a faixas
etárias variadas e equilibradas, e há sempre interessados em tomar parte do grupo, o que
garante a renovação quando necessária. Seus trabalhos já foram aceitos em eventos
internacionais, embora não tenham conseguido participar por falta de patrocínio. Percebe-se
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
uma CP bastante forte, criada a partir do interesse pela dança. Entre os componentes não há
italianos, mas alguns28 são descendentes. Através do grupo alguns membros se interessam
em aprender italiano, mas o foco principal é a dança. O objetivo do grupo, quando da sua
criação, era a divulgação da cultura italiana através da dança.
Considerações finais
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 47 - Português do Brasil: História, contatos e variedades, 1041-1054
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1041
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Na sociedade brasileira as comunidades de quilombos formam parte importante da
população. Hoje em dia muitos quilombolas ainda reivindicam direitos e terras,
conforme o artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de
1988. Alcançar a auto-sustentabilidade em cada âmbito da vida (trabalho, alimentação,
educação, cultura, religião...) é o principal objetivo de muitos Quilmbolas o que ainda
se revela dificil em vista de conflitos socioculturais, racismo e preconceitos: "É
necessário então entender a constituição da identidade quilombola face à necessidade de
luta pela manutenção ou reconquista de um território material e simbólico" (Rezende da
Silva 2012: 7). Nesse artigo quero concentrar-me na construção desse "território
simbólico". A memória cultural muitas vezes é transmitida oralmente pelos griôs ̶ as
pessoas mais velhas e sábios da comunidade. Então, a cultura quilombola deve-se
manifestar nas narrativas dos próprios quilombolas. Vou analisar um fragmento de um
corpus da língua falada gravado durante meu período de pesquisa de campo etnográfica
em setembro de 2012, seguindo a metodología da análise de conversação „enriquecida“
(Deppermann 2000). Nas narrativas (Georgakopolou 2006), alguns quilombolas contam
a historia do seu quilombo, das lutas, das condições de vida e das tradições africanas
que tentam resgatar. Empregam narrativas para marcar o seu "território simbólico"
como população quilombola. Partindo do exemplo de uma narrativa sobre o evento da
"Folia de Reis" no quilombo mostrarei como os falantes participantes desenvolvem a
narrativa como um projeito de co-construção.
29 Agradeço a Konstanze Jungbluth da Viadrina e Mario Luis Monachesi Gaio da UFF pelos comentários
construtivos sobre o presente artigo.
30 Europa-Universität Viadrina (EUV), Fakultät für Kulturwissenschaften, Lehrstuhl für Sprachgebrauch
und Sprachvergleich, Große Scharrnstraße 59, 15230 Frankfurt (Oder), Deutschland, vallentin@europa-
uni.de
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A base de dados analisada aqui vem de uma das narrações de história com griôs
para um grupo de visitantes. Neste caso, era um grupo de estudantes do Ensino
Fundamental com três professores que vieram para aprender sobre a história
quilombola. A situação pode ser entendida como uma "encenação" de uma prática
identitária. A história (comunitária) concebida oralmente e contada pelos velhos da
comunidade ̶ os griôs ̶ forma parte de um gênero cultural nos quilombos no Brasil (e
em outras comunidades tradicionais). Os velhos nas comunidades quilombolas, tendo
ligação mais direita ao passado, têm um papel bem importante na construção da
"identidade quilombola":
Particularmente a questão da “memória dos velhos” nos interessa, [...] ela
teve lugar de destaque, não só porque os velhos, os antigos, como preferem
dizer boa parte dos recordadores, foram testemunha de outros tempos, mas
também porque quando exercem sua função social de recordar, ou refazer o
passado eles impulsionam o seu entorno social a agir no presente. Eles são
como alicerces em uma casa em construção (Rezende da Silva, 2012:12).
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Aspectos metodológicos
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
pode encaixar a conversação em um campo de prática linguística e/ou social, pode se-
aprofundar sobre a relevância, a frequência e a tipicalidade do fenômeno linguístico em
relação à prática social (ibid.:105f.). Além disso, pode aplicar o conhecimento que tem a
respeito dos falantes, observando se a fala na conversação em questão é típica desse
falante ou se provêm de outros contextos. Partindo dessa análise "enriquecida" o
pesquisador pode incluir informações relevantes para a interpretação, que de outra
forma teriam sido omitidas. Esse conceito se beneficia quando o próprio pesquisador
que faz a análise estava presente na situação. Para concluir, o método explicado aqui
situa a conversação num contexto específico e exige mais que "bom senso" do
pesquisador. Requer conhecimento etnográfico para interpretar os atos linguísticos dos
falantes:
[…] our events are human events, events of meaning. Their description,
explication, and analysis require a synthesis of ethnography - with its concern
for context, meaning, history, and intention - with the sometimes arid and
always exacting techniques that conversation analysis offers for locating
culture in situ (Moerman 1988: xi).
Tem sido argumentado que os griôs (os "antigos"/os "velhos") representam parte
importante na construção e conservação do „território simbólico“ das comunidades
quilombolas no Brasil. Na apresentação desse gênero discursivo para um público
externo certas pessoas da comunidade falam sobre assuntos diferentes da comunidade,
geralmente: 1. a história do quilombo relacionada à sua fundação por três mulheres ex-
escravas; 2. a luta pela terra, começando nos anos 70, relacionada com o
desenvolvimento da região, especialmente no ámbito do turismo, e a especulação
imobilária concomitante; e 3. a situação do quilombo hoje em dia, a organização social
e politica e os projetos iniciados pela associação de moradores. Existem vários idosos
na comunidade que trabalham para a associação com foco no turismo sustentável.
Curiosamente, pelo menos de acordo com minhas observações, há mais mulheres
assumindo a função de griô. Elas são procuradas pela associação, se tiverem tempo e
disposição para contar a narrativa a um grupo de visitantes. Nas três sessões que eu
observei como pesquisadora, há várias pessoas da associação que acompanham a griô.
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Os grupos são recebidos com cantos acompanhados por um tambor numa sala do
restaurante comunitario. Depois que todos se sentam, começa a narrativa. Geralmente, a
parte da fundação e da luta pela terra é narrada pela quilombola que acompanha a griô.
A griô então é apresentada como uma testemunha dos tempos passados que pode dar
um toque pessoal, completando a narrativa oficial do quilombo. Elas realizam um
"trabalho de memória", contando histórias pessoais da sua infância, ou histórias que elas
conhecem, contadas pelas suas avós. A colega quilombola retorna para falar da
organização atual do quilombo, que acompanha a griô na sessão. Ela também modera as
discussões e perguntas que emergem na sessão e intermedia entre a griô e o público se
for necessário.
No caso que vamos analisar agora, a griô "Di" está sentada na frente do público,
que forma um semicírculo. Ao seu lado se senta "Da", uma quilombola muito mais
jovem e que é membro da associação. Sentada com o público e posicionada do lado
oposto às duas oradoras "oficiais" se encontra "Ga", outra quilombola que trabalha na
associação. Os professores dos estudantes, que formam parte do grupo também estão
sentados no semicírculo. Antes do fragmento sobre a "Folia de Reis", Da já contou a
história da fundação do quilombo e falou sobre a luta pela titulação da terra. A griô é
apresentada como personagem que pode contar sobre "a vivênca que ela tem de lá para
cá". Di começa narrando como era o quilombo no passado, antes do auge do fluxo
turístico, como eram as práticas sociais diárias e as festas. Ela menciona rapidamente a
festa da Folia de Reis no quilombo no passado. Depois de uma intervenção de Da, ela
aprofunda a descrição da folia para o público.
É interessante para nosso foco de pesquisa que Di tenha o direito de falar nessa
passagem da sessão. Também pode-se supor que ela seja a única com um direito
"legítimo" de falar na passagem porque é a única que realmente vivenciou o tempo
narrado. Num contexto planejado e encenado assim a observadora pode assumir que a
narrativa tem uma qualidade monológica. Por isso, é surpreendente que na narrativa de
Di várias vezes surgem sequências de "condensação". Nessas passagens os outros
participantes da cena empenham-se em uma co-construção da narrativa e a transformam
em um projeto colaborativo. Mesmo que a organização e a estrutura na narrativa de Di
siga uma definição "clássica" (Labov, 1972), nas sequências de condensação se
encontram traços de uma construção interacional (Georgakopolou, 2006:85). A seguir
apresento a transcrição da sequência correspondente.
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32 Os dados orais são transcritos com o pacote do programa EXMARaLDA (Schmidt; Wörner, 2009,
www.exmaralda.org). As convencões de transcrição se encontram no anexo do artigo e se orientam no
sistema HIAT (Ehlich; Rehbein, 1976) e GAT2 (Selting et al., 2009).
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Síntese
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
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spoken language corpora for pragmatic research. Pragmatics. 19(4), p. 565-582.
Anexo
· - micro-pausa
·· - pausa mais breve que 0,5 segundos
··· - pausa entre 0,5 e 1 segundos
(1s) - pausa mais longa que 1 segundo
(inc. 0,5s) - duração de partes incompreensíveis
tenhaa or tenhaaa - vogais estendidas
carIOca - ênfase
tiv/tem - auto-correção do falante
° - inspiração audível
... - ruptura no final do turno (perda ou renúncia do turno)
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ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1055
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RESUMO
Este trabalho tem como propósito descrever as ocorrências de uso dos verbos irregulares
fazer, ter e ir no pretérito perfeito do indicativo verificadas na fala da comunidade
quilombola Siricari-PA. Siricari está situada no município de Salvaterra, na ilha de
Marajó, estado do Pará, Brasil. Constatamos que as formas verbais fiz:fez e fui:foi são
empregadas indistintamente, tanto para indicar a primeira pessoa, quanto a terceira
pessoa do singular, como por exemplo em alternâncias do tipo: (eu, ele) fiz ora (eu, ele)
fez; bem como, (eu, ele) fui ora (eu, ele) foi. Também verificamos a alternância das
formas tive:teve diante de pronome de primeira pessoa: eu (tive, teve) ao passo que em
presença de pronome de terceira pessoa ocorre tão somente a forma teve: ele (teve).
Essas ocorrências nos têm conduzido à hipótese de que algumas variações do português
falado em Siricari podem estar relacionadas a resquícios de herança linguística
decorrente de situação de línguas em contato ocorrida no passado. O contexto da
investigação aponta estratos sociais, culturais e étnicos da inter-relação entre
descendentes africanos e indígenas. Com isso, este estudo toma como enfoque a
etnolinguística e princípios relativos ao Português Afro-Indígena, adotando como
fundamento estudos de Oliveira & Praça (2013), Silva (2014), Campos (2015), entre
outros.
1. Introdução
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entre outros se projeta sobre os falares de comunidades rurais que detêm evidentes
traços de miscigenação indígena e africana. A presença de espaços inter-relacionais
dessas matrizes é apontada por Salles (apud Pacheco, 2011), o qual nos revela uma
constituição étnica particular no corredor da Amazônia35 desde o período colonial,
destacando um cenário pluriétnico com a presença de:
Nações indígenas Aruans, Cajuais, Marauanás, Sacacas, Caias, Araris,
Anajás, Muanás, Mapuás, Mamaianases, Chapounas, Pacajás, dentre
inúmeras outras, erigiram por campos, rios e florestas “zonas de contato”
com nações africanas de Angola, Congo, Guiné, Benguela, Cabinda,
Moçambique, Moxincongo, Mauá ou Macuá, Caçanje, Calabar ou Carabá, de
origem banto, e Mina, Fãnti-Achânti, Mali ou Maí ou Mandinga, Fula,
Fulope ou Fulupo, Bijogó ou Bixagô, de origem sudanesa, além de
indicações duvidosas como Bareua ou Barana, Lalu ou Lalor, Pabana ou
Babana. (p.45)
Este exemplar revela a sobreposição de terras de índio e terras de preto, como
aponta Almeida (2002:70). Entretanto, apesar de se tratar de uma visão geral
amazônica, o estudo do historiador é um referente para a composição étnica do
arquipélago de Marajó, região no qual nos debruçamos para este estudo. Nela,
reconhecemos histórica formação étnica entre povos indígenas e africanos, resultando
em uma constituição cultural e linguística fortemente miscigenada.
Com vistas ao exame da variação linguística nesta região de Marajó elegemos,
como campo de investigação, a comunidade quilombola de Siricari por: (i) situar em
uma localidade com registros históricos de confronto entre grupos sociais minoritários,
a priori negros, indígenas e mestiços, como a Revolta dos Cabanos, do qual nos serviu
de subsídio etnográfico; e, (ii) por encontrarmos uma língua portuguesa mantida ao
longo dos tempos apenas por meio da oralidade, haja vista a baixa ou quase nenhuma
escolaridade, fator que contribuiu para a manutenção de uma variação particular do
português nesta comunidade.
A escolha do quilombolo Siricari deu-se em virtude de sua localização
geográfica e histórica. Está situado no município de Salvaterra – pertencente à região
amazônica de Marajó - estado do Pará, e particulariza-se pelos acentuados fatores de
miscigenação herdados desde a sua formação anterior ao ano de 1835 (sic moradores).
A proposta de se observar aspectos linguísticos em uma comunidade quilombola com
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Baxter (1995), Mattos e Silva (2004), Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA-
UFPA) entre outros.
Os dados linguísticos utilizados neste estudo foram coletados em trabalho de
campo entre os meses de março de 2014 a abril de 2015, em aproximadamente 10 horas
de gravação em modo digital. O corpus foi obtido a partir de gravações de conversas
livres in loco em gênero narrativo de informações colhidas sobre o modo de vida,
atividades habituais, tradição, mitos, saberes amazônicos, entre outras. O alvo das
gravações consistiu na obtenção de registros de fala espontânea como amostragem
linguística em narrativas que descrevessem a história da comunidade. Abaixo listamos
os temas mais abordados na constituição das amostras de fala espontânea.
3. História da comunidade: trajetórias como a cabanagem, desafios no
início da vida na comunidade, primeiras casas, etc.
4. Costumes e tradições: festas locais, narrativas populares (lendas e mitos)
o modo de vida na comunidade, o extrativismo, a caça, o trabalho.
5. Sabedoria adquirida dos antepassados: desafios das parteiras,
conhecimento das ervas, as doenças e as curas, a religião, o sobrenatural.
6. Desafios: dificuldade de acesso à cidade, escolarização deficiente,
invasões, reconhecimento da posse da terra, carência de investimento
público, projetos federais “Luz para todos” e “Minha casa minha vida”.
Como se pretendiam narrativas de modo informal, os locais em que elas se
realizaram foram os mais diversos como na cozinha, no quintal, na mesa do café, no
caminho para o tanque escavado, na carroça de búfalo etc. Com isso, em alguns
momentos tivemos ruídos de crianças, de chuva, de animais entre outros elementos que
nos levaram a inutilização de alguns trechos ininteligíveis.
O critério de seleção dos informantes priorizou a variante idade ou aqueles que
tivessem maior tempo de permanência na comunidade. Posteriormente, registramos
depoimentos de familiares com idade mínima de 40 anos, com vistas a obter dados
linguísticos para um possível cotejo destes com os primeiros.
Deste modo, tivemos para a variante idade o seguinte arranjo (faixa 1: 40 a 59
anos; faixa 2: 60 a 79 anos; faixa 3: acima de 80 anos). A amostra consistiu em três
células, com três informantes em cada uma, num total de 09 informantes. Apesar de
atentar para o foco na variante demonstrada, destacamos no quadro abaixo informações
adicionais que adiante vimos importantes para as considerações de análise, tal como a
variante escolaridade.
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4. Português Afro-Indígena
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3a pessoa do (4) Ele fez um círculo assim no chão aí daqui ele riscô um risco pra cá, um pra cá, um
singular pra cá, um pra cá, cinco.
a
1 pessoa do (5) Tenho. Eu teve onze filhos.
singular
a
3 pessoa do (6) O meu pai falava assim que... que quando ele se entendeu aí o... o... o pai dele, o avô
singular dele, né? Teve o... antes dele teve o bisavô, né? Tataravô dele, né?
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Notamos que dos nove aspectos observados em Helvécia (BA) sete deles estão
presentes também em Siricari. Deste modo, parece-nos, então, razoável o argumento de
que essas variações referem-se, de alguma forma, à relação de contato, uma vez que
ambas comunidades Siricari e Helvécia trazem históricos de contato (i) africano e
indígena, e (ii) africano, respectivamente. Ainda sobre a interferência interétnica na
estrutura linguística, cabe mencionar Baxter (1995:78) ao apontar a presença da língua
banto como substrato do português L1 e L2 de angolanos e moçambicanos. Mais adiante,
Baxter (ibidem) considera, também, a possibilidade de haver a mesma interferência em
se tratando de po A autora também assinala que o paradigma de duas posições incide
sobre falantes menos escolarizados ou não-escolarizados, sobretudo procedentes de
áreas rurais. rtuguês indígena, ao dizer que “a aprendizagem do português em contextos
ameríndios também levanta a possibilidade de uma influência substratal ameríndia” no
português brasileiro.
Concomitante a isso, Siricari apresenta alternância na flexão verbal de primeira
pessoa em situação de terceira pessoa pronominal. Constatamos esse tipo de alternância
no uso do verbo ir no pretérito perfeito do indicativo, no emprego da forma verbal fui
em posição pronominal de terceira pessoa do seguinte modo:
Em busca de explicações para essa alternância nas formas verbais fui:foi como
demonstrado acima, chegamos a um artigo de Mattoso Câmara (1943), intitulado “A
alternância portuguesa ‘Fui:Foi’” no qual esclarece que:
Dois fatos citados das falas populares indicam, antes de tudo, um estado de
indiferença no jogo flexional fui:foi, visto que ora se empregam “ambas as
formas nas duas pessoas”, ora se invertem elas, usando-se “de Foi na 1ª, e de
Fui na 3ª, e tal situação é também apreensível na língua antiga [...]. Com
efeito, num documento de 1262, por exemplo, depara-se-nos
expressivamente:
“Esta carta fui iij dias antes calendas Novembris su era MaCCCa e V” (p.278)
E aponta que o mesmo se verifica nos documentos galegos e na poesia da escola
provençal:
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“a auer deuo por uoz de meu padre Johan Çacoto, que ffuy filho de Maria
Crualliça...”
“...non lhe empeesca porque uay escrito so o sinal, que ffuy erro”
“que non fui o vosso pesar...” (ibidem: 278)
Para essas ocorrências, Mattoso Câmara (1943:285) procura esclarecer a origem
da alternância ora apresentando fatores sincrônicos, ora diacrônicos e assinala que:
Durante algum tempo, a consciência linguística coletiva se conformou com
essa confusão, ora usando-se (eu, ele) foi, ora (eu, ele) fui, mas a
“tendência para o contraste vocálico entre as duas pessoas” [...] não tardou a
impor uma distribuição sistemática das duas formas, na maioria dos dialetos
portugueses e na língua literária ou comum. (p.285) grifo nosso
Como destacado acima consideramos, em um primeiro momento, que a
alternância (Quadro 4) verificada em Siricari poderiam tratar-se de vestígios de uma
estrutura linguística quinhentista. Apesar da afirmação de Mattoso Câmara (1943:286)
de que houve ao longo do tempo “distribuição sistemática das duas formas”, o que
vemos em registros de fala em Siricari, hoje, é a mesma alternância fui:foi de outrora.
Igualmente o mesmo ocorre com os verbos fazer (pretérito perfeito do
indicativo) em que há o emprego da forma verbal fiz em posição de terceira pessoa
como em:
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herança dialetal dos falares remotos em Siricari. No entanto, embora consideremos essa
hipótese bastante atraente, partilhamos da possibilidade de estes elementos
morfológicos estarem relacionados a apenas alternância vocálica < u:o > e < i:e >
associados, de algum modo, à flexão verbal.
6. Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Acevedo Marin, R. E. 2009. Quilombolas na ilha de Marajó: território e organização
política. In: Godoi, E. P. D., et al. Diversidade do campesinato: expressões e
categorias. São Paulo: UNESP, v. 1. Cap. 9, p. 209-227.
Almeida, Alfredo Wagner Berno de. 2002. In: O’Dwyer, Eliane Quilombos identidade
étnica e territorialidade.
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Simpósio 47 – Português do Brasil: História, contatos e variedades
Mattos e Silva, R. V. 1988. Sete estudos sobre o português Kamayurá. Bahia: Centro
Editorial e Didático da UFBA.
Mattoso Câmara Jr., J. 1943.A Alternância Portuguesa "fui : foi". Revista de Cultura,
Rio de Janeiro, v. 34, p. 98-106.
Mattoso Camara, J. 2001. Estrutura da Língua Portuguesa. 33. ed. Petrópolis: Vozes.
Neves, M. H. D. M. 2011. Gramática de Uso do Português. 2a. ed. São Paulo: UNESP.
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Pacheco, A. S. 2010a. As Áfricas nos Marajós: visões, fugas e redes de contato. In:
Schaan, D. P.; Martins, Muito Além dos Campos: Arqueologia e História na Amazônia
Marajoara. Belém: GKNoronha. p. 201.
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SIMPÓSIO 50
A ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA PORTUGUESA:
ABORDAGENS RETÓRICO-DISCURSIVAS
COORDENADORES
RESUMO
Neste artigo, por meio de um “diálogo” entre a análise do discurso francesa (AD) e os
estudos da argumentação na língua, buscamos chegar às imagens que os três candidatos
mais proeminentes – Aécio Neves, Dilma Rousseff e Marina Silva – ao 1º turno da
eleição presidencial brasileira de 2014 construíram de si (éthos) e dos adversários, via
enunciados destacados/aforizados pelas mídias (impressa e digital). Essas “pequenas
frases” destacadas de textos, que (re)apareciam como títulos, intertítulos ou legendas de
foto das matérias divulgadas no mês anterior ao 1º turno da referida eleição, foram
examinadas por meio das marcas da argumentação na língua: conectores, índices de
avaliação, modalidades etc. Se os resultados foram compatíveis com o que
esperávamos, ou seja, a construção de uma imagem positiva de si e negativa do(s)
outro(s), no contexto em foco (eleição), os índices linguísticos estudados foram
fundamentais para desvelar essas imagens e a forma como são forjadas por cada sujeito.
Não podemos também perder de vista a influência das mídias na construção desse
complexo “jogo de imagens”, ao destacarem certos enunciados em detrimento de outros
igualmente disponíveis.
1 Este trabalho foi apresentado no V SIMELP (Lecce – Itália), com apoio financeiro da FAPEMIG
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais).
2 Professora da Faculdade de Letras da UFMG. Endereço: Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha
31.270-010 - Belo Horizonte, MG – Brasil - E-mail: gmplara@gmail.com.
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
apreender as imagens (ou representações) que cada um dos três candidatos constrói de si
(éthos) e dos outros (adversários).
Para tanto, analisaremos os enunciados destacados ou aforizações atribuídos(as)
a esses três candidatos por revistas e jornais de ampla circulação em nosso país (no
formato impresso ou na versão online) e em portais, blogs e sites da internet, no período
compreendido entre 1º de setembro e 4 de outubro de 2014 (portanto, em torno de um
mês antes desse 1º turno). A noção de aforização, tal como foi cunhada por D.
Maingueneau (2012), define-se, em linhas gerais, como uma “pequena frase”, isto é, um
enunciado curto e propenso a retomada(s) que, destacado de um texto, passa a ser
(re)utilizado como legenda de foto, título ou intertítulo.
Em consonância com pesquisas anteriores (ver, por exemplo, Lara, 2014),
tomamos as aforizações como um poderoso recurso de que as mídias lançam mão para
forjar o éthos de um dado ator político. Ocorre, assim, uma co-construção de éthos, já
que as falas são do ator político (é ele a fonte da enunciação e, como tal, o “fiador”
dessas falas), mas a decisão e a forma de destacá-las (em detrimento de outras falas,
igualmente disponíveis) são de responsabilidade das mídias.
Essa relação entre aforização e éthos (enquanto imagem de si que o locutor
constrói) será ampliada, no presente trabalho, para abarcar também as imagens que esse
locutor constrói de seus adversários políticos, já que se trata de uma situação de disputa
de poder, em que não basta falar de si; é preciso também falar do outro para vencer a
acirrada disputa eleitoral. Quanto ao dispositivo de análise para a apreensão desse
complexo “jogo de imagens”, recorreremos às “marcas linguísticas” da argumentação
presentes nas aforizações selecionadas, fazendo, pois, dialogarem essa vertente dos
estudos sobre a argumentação (aquela que se inscreve na língua) e a análise do discurso
francesa – AD.
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
investigações, aquelas que “dizem respeito à ação humana realizada pela linguagem,
indicando suas condições e seu alcance”. Nesse quadro, o autor se pergunta por que é
possível usar certas palavras para influenciar o outro, ou seja, por que “certas palavras,
em certas circunstâncias, são dotadas de eficácia”.
Trata-se, pois, de uma pragmática/semântica de base linguística, em que a noção
de argumentação é crucial. Assim, é preciso admitir que há enunciados cujo traço
constitutivo é o de serem utilizados com a pretensão de orientar o interlocutor para
certos tipos de conclusão, com a exclusão de outras. Cumpre, portanto, determinar sua
“orientação argumentativa”, isto é, as conclusões para as quais podem servir de
argumento. Nessa perspectiva, a argumentatividade não constitui algo apenas
acrescentado ao uso linguístico; pelo contrário, ela está inscrita na própria língua,
podendo manifestar-se por meio de elementos como: os operadores argumentativos, os
indicadores modais, os índices de avaliação, os indicadores atitudinais, os marcadores
de pressuposição, entre outros.
Como foi dito anteriormente, são esses elementos que nos permitirão, a partir do
estabelecimento de um estreito diálogo entre os estudos da argumentação na língua e a
AD, apreender em enunciados destacados (aforizações) pelas mídias, em torno de um
mês antes da realização do 1º turno da eleição presidencial brasileira, como os três
principais candidatos: Aécio Neves, Dilma Rousseff e Marina Silva, vão construindo
imagens discursivas do “eu” (éthos) e do(s) outro(s).
Maingueneau (2012) define a aforização como uma “frase sem texto”. Isso
porque, no seu entender, ela implica um tipo de enunciação que obedece a uma outra
lógica, distinta da do texto. Do ponto de vista mais imediato, isso significa que a
aforização não é nem precedida nem seguida de outras frases com as quais estaria ligada
por relações de coesão, de modo a formar uma unidade textual, ancorada num gênero de
discurso. Logo, o que caracteriza a aforização é a recusa em entrar na lógica do texto e
do gênero de discurso, o que não significa, por outro lado, que ela seja destituída de
contexto. O que ocorre é que, no caso das aforizações que nos interessam aqui – as
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
3 As aforizações podem ser primárias (autônomas), como é o caso dos provérbios, máximas e adágios, ou
secundárias (aquelas que são destacadas de um texto). O presente trabalho volta-se, de forma
privilegiada, para esse segundo tipo de aforização.
4 Por exemplo, em situações de disputa política, como a que aqui se examina, as aforizações tendem a
perder seu caráter generalizante e a investir mais na oposição “eu/nós” versus “ele(s)”, por meio da qual
as imagens em jogo vão sendo construídas.
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fazer” e suporte de identificação à sua pessoa, pois “para aderir às suas ideias, é preciso
aderir à sua pessoa” (Charaudeau, 2006b:118).
Esses dois aspectos podem ser reunidos em dois éthe: o éthos de credibilidade e
o éthos de identificação que subsumem outros éthe. Nessa perspectiva, o éthos de
credibilidade compreenderia os éthe de “competência”, de “sério” e de “virtude”
(Charaudeau, 2006b:119-125), enquanto o éthos de identificação se desdobraria nos
éthe de “inteligência”, de “potência”, de “caráter”, de “chefe”, de “humanidade” e de
“solidariedade” (op. cit.:137-166).
Como dissemos em outras oportunidades, além da imagem (éthos) que cada
“aforizador” dá de si mesmo ao destinatário/eleitor, há também imagens dos adversários
que vão sendo paralelamente construídas (e que, evidentemente, também interferem, por
comparação/oposição, na construção da própria imagem). Nesse sentido, podemos
adiantar que, em se tratando de uma situação de acirrada disputa política, cada
candidato tenderá a construir uma imagem positiva de si e outras – negativas – dos
“inimigos”. O que nos interessa, particularmente, é verificar como uma e outras vão
sendo “tecidas”, no fio do discurso, por procedimentos linguísticos específicos.
Em outras palavras: neste artigo, privilegiaremos os enunciados destacados
(aforizações) coletados em fontes midiáticas diversas no contexto brasileiro, procurando
apreender, por meio das “marcas linguísticas da argumentação” (operadores
argumentativos, escolhas lexicais, indicadores modais, índices de avaliação etc), como
se dá a construção da imagem de si (éthos) de cada ator político e das imagens
correlatas que ele projeta para seus concorrentes.
Esclarecemos, finalmente, que nossa análise não buscará tecer juízos de valor
sobre a pessoa ou sobre a atuação político-partidária dos três candidatos selecionados,
mas apenas apreender a forma como eles constroem, via aforizações
destacadas/divulgadas pelas mídias, as imagens de si e dos outros que vão alimentar os
imaginários sociodiscursivos em jogo no cenário político brasileiro. Dito isso, passemos
às aforizações e suas análises.
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5 Nesse caso, não analisaremos todas as “marcas”, mas apenas as que nos parecem mais relevantes
na/para a construção de sentidos. Assumimos, assim, a posição de que nenhuma análise esgota seu objeto,
que permanece aberto para novas investigações.
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Aécio Neves
1. Aécio por Aécio:
* “Eu sou a mudança segura.” (Istoé, ano 38, n. 2337, 10/09/2014– DFo1/ DFr (capa de revista, retomada
como título da entrevista com o candidato).
* “Nossa proposta vai ser compreendida, na hora da decisão, como a melhor para o Brasil.” (Istoé, ano
38, n. 2337, 10/09/20140 - DFr (intertítulo, retirado da entrevista citada)
* “Eu sei fazer sonho virar realidade.” (Veja, ano 47, ed. 2392, n. 39, 24/09/2014) – DFo1 (capa da
revista).
* “Eu estarei no segundo turno. Tem de perguntar a Marina o que ela vai fazer.” (Época, n. 852,
29/09/2014). – DFr (legenda de foto de reportagem).
* “Vamos mudar na direção correta”, diz Aécio Neves em MG. (Disponível em:
http://www.jornaldooeste.com.br/eleicoes-2014/2014/09/vamos-mudar-na-direcao-correta-diz-aecio-
neves-em-mg/1190685/) – DFr (título de reportagem publicada em 06/09/2014).
* “Preciso de Minas para ser presidente”, afirma Aécio. (Disponível em:
http://atarde.uol.com.br/politica/eleicoes/noticias/preciso-de-minas-para-ser-presidente-afirma-aecio-
1624723) - DFr (título de reportagem publicada em 22/09/2014).
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
* A melhor frase de Aécio: “É a Marina que se calou no escândalo do mensalão e continuou no governo
petista?” (Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/2014/09/04/a-melhor-frase-de-
aecio-e-a-marina-que-se-calou-no-escandalo-do-mensalao-e-contin) – DFr (título, retomado como
intertítulo, em artigo de opinião).
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
inviabilizaria um 2º mandato).6
Isso, evidentemente, remete ao “candidato da mudança” (o próprio Aécio) que se
opõe, portanto, à continuidade representada por Dilma, mas também por Marina, já que
eleger Marina para o lugar de Dilma é “trocar seis por meia dúzia”, uma espécie de
provérbio ou dito popular que recupera, polifonicamente, o discurso do senso comum (a
doxa), e já que ambas representam, ainda que em vertentes diferentes, o mesmo partido
– o PT, o que lembra o passado petista de Marina. Dilma é, além disso, qualificada
como candidata “que mente” (índice de avaliação).
Ora, se Dilma é representada, no discurso de Aécio, como inexperiente,
incompetente, distante do povo e mentirosa, no caso de Marina, uma seleção lexical não
menos cuidadosa remete à imagem de uma candidata volúvel e incoerente, pois ela “se
desmente o tempo inteiro”, “nega” o que admitia antes e é dada a “improvisos”. Além
disso, foi conivente com escândalos, como o Mensalão, já que “continuou no governo
petista” (no caso o do ex-presidente Lula), enunciado em que o verbo continuar,
indicando permanência de estado, funciona como marcador de pressuposição. Isso quer
dizer que aos olhos de Aécio, Marina, no fundo, não perdeu o seu viés petista, mesmo
tendo rompido com Lula e mudado de partido; pelo contrário, mesmo diante de
escândalos que abalaram o prestígio do governo, ela nada fez para mudar a situação, ou
seja, foi conivente com o PT. Aqui funciona o ditado: uma vez petista, sempre petista.
Portanto, também ela aponta para a “mesmice” e destoa, assim, da promessa de
mudança representada por Aécio.
Em suma: no que se refere aos éthe de credibilidade, apontados por Charaudeau
(2006b), Aécio, por meio de um tom firme e engajado e do que diz de si mesmo,
constrói, predominantemente, dois éthe que se sobrepõem: o éthos de “sério”, ou seja, o
de um político com energia e capacidade para governar (mais especificamente, de
investir na “mudança segura”), e o éthos de competência, marcado por um poder/saber
realizar seus objetivos (até mesmo o de “fazer sonho virar realidade”). Podemos ver aí a
tentativa empreendida por Aécio de confirmar o éthos prévio de herdeiro do avô
Tancredo Neves, visto como um político competente e hábil, mas, ao mesmo tempo, a
6 Tanto o pressuposto quanto o subentendido são implícitos. A diferença é que, enquanto o pressuposto é
marcado linguisticamente, o subentendido depende do contexto, da interpretação do outro. Ao associar o
pressuposto à sua teoria polifônica da enunciação, Ducrot (1987:191-192) atribui o conteúdo implícito
(pressuposto) a um enunciador E1, assimilado à vox populi, ao senso comum, e o conteúdo explícito
(posto) a um enunciador E2, com quem o locutor se identifica.
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Dilma Rousseff7
1) Dilma por Dilma
* “Queria comunicar a vocês que sou humana, não sou marciana.” Dilma Rousseff (PT), presidente e
candidata à reeleição, questionada sobre se aparecer cozinhando no horário eleitoral era uma tentativa de
humanização. (Época, n.847, 25/08/2014) – DFo (citação na seção “Dois pontos”).
* “O maior risco é não se comprometer com nada, ter somente frases de efeito e genéricas. Quando se é
presidente, tem de explicar como vai ser feito.” Dilma Rousseff, no debate no SBT entre os candidatos à
Presidência da República. (IstoÉ, ano 38, n. 2337, 10/09/2014). DFo (citação na seção “Semana”).
* “Não tem coitadinho na Presidência. Quem se sente coitadinho, não pode chegar lá.”. Dilma Roussef,
presidenta do Brasil, sobre a reclamação da candidata do PSB à Presidência da República, Marina Silva,
do teor da campanha do PT. (IstoÉ, ano 38, n.2339, 24/09/2014) – DFo (citação na seção “Semana”).
* “Todos os meus antecessores usaram o palácio. Caso contrário, eu seria uma sem-teto, não teria onde
dar entrevista.” Dilma Rousseff (PT) presidente e candidata, comentando a entrevista de José Antônio
7 É importante observar aqui que não encontramos, no período considerado, aforizações atribuídas a
Dilma que fizessem referência direta a Aécio, talvez porque, naquele momento, os institutos de pesquisa
apontassem Marina como a provável adversária de Dilma no 2º turno. Cabe esclarecer que Marina Silva
era candidata a vice-presidente na chapa de Eduardo Campos (PSB), que morreu em acidente de avião
durante a campanha. Na esteira da comoção provocada por esse trágico acontecimento, Marina assumiu a
liderança da chapa e chegou mesmo a ser apontada por alguns como favorita na eleição presidencial de
2014. Pesquisas como a do instituto DataFolha, feita em 26/09/2014, indicavam intenções de voto da
ordem de 47% para Dilma Rousseff e de 43% para Marina Silva.
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Dias Toffolli, ministro do Supremo Tribunal Federal, a Época, em que ele critica o uso do Palácio da
Alvorada para a agenda de campanha. (Época, n. 852, 29/09/2014) - DFo (citação na seção “Dois
Pontos”)
*”Alicerce do meu programa é o meu governo”, diz Dilma Rousseff. (Disponível em:
http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-09-28/alicerce-do-meu-programa-e-o-meu-governo-diz-
dilma-rousseff.html) – DFr (título de reportagem publicada em 28/09/2014).
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Esse tom marcante, que perpassa o discurso de Dilma, corrobora o seu éthos
prévio: o de uma mulher forte, corajosa e determinada que sempre lutou por seus ideais,
mesmo que, para isso, tenha sido necessário “desafiar” o governo militar (1964-1985) e
sofrer duras sanções (prisão, tortura). Em menor grau, Dilma faz apelo ao éthos de
humanidade (outro éthos de identificação), ao revelar ao eleitor momentos de sua
intimidade, talvez para derrubar o estereótipo de que presidentes não são seres humanos
comuns, que fazem coisas comuns. Ou até mesmo para reverter a imagem (um outro
éthos prévio) de que ela seria uma pessoa austera, distante e altiva, um viés negativo do
éthos de sério, que comprometeria sua credibilidade, já que pessoas assim não
costumam ver as dificuldades dos outros.
Se Dilma se mostra como competente e forte, nada melhor para desqualificar
Marina do que representá-la pelo oposto, ou seja, pela sua incompetência já
demonstrada (nas obras em atraso quando ela participou do governo Lula) ou a
demonstrar (já que ela pode comprometer empregos) e pela sua fragilidade (visto que
ela se faz de vítima, de “coitadinha”), defeitos esses que, em última análise, depõem
contra ela, desabilitando-a para ocupar um cargo como o de Presidente da República.
Marina Silva
1) Marina por Marina
* “É assim que vamos governar, reconhecendo os ganhos alheios. Não ter complacência com os erros
cometidos, que são muitos.” De Marina Silva para Aécio Neves, sobre o projeto de governo do PSB.
(IstoÉ, ano 38, n. 2336, 03/09/2014) – DFo (citação da seção “Semana”)
*“Não faço de palanques púlpitos nem de púlpitos palanques. Minhas decisões políticas são elaboradas,
discutidas e implementadas nos espaços da institucionalidade da política.” Marina Silva, candidata do
PSB à Presidência da República, afirmando que nunca instrumentalizou sua crença religiosa para fins
políticos. (IstoÉ, ano 38, n. 2337, 10/09/2014) – DFo (citação da seção “Semana”)
* “Não é um discurso, é uma vida.” (Veja, ano 47, n. 39, ed. 2392, 24/09/2014) – DFo1 (capa da revista).
* “Tudo o que a minha mãe tinha para oito filhos era um ovo e um pouco de farinha e sal. Eu me lembro
de ter olhado para o meu pai e minha mãe e perguntado: ‘Vocês não vão comer?’ E minha mãe
respondeu: ‘Nós não estamos com fome’. Quem viveu essa experiência jamais acabará com o Bolsa
Família.” (Veja, ano 47, n. 39, ed. 2392, 24/09/2014) – DFr (legenda de foto em reportagem).
*“Sempre tive medo. Mas meu compromisso sempre foi maior que meu medo.” (Época, n. 852,
29/09/2014) – DFo1 (capa da revista)
*“Manteremos o Bolsa Família. Sabe o que não vamos manter? O Bolsa Empresário.” (Época, n. 852,
29/09/2014) – DFr (intertítulo em entrevista).
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* “Não satanizo ninguém que defende legalização de aborto e maconha”, diz Marina Silva. (Disponível
em: http://www.brasilpost.com.br/2014/09/01/marina-aborto_n_5749276.html).– DFr (título de
reportagem publicada em 01/09/2014)
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posições que assume). Mesmo assim, o que fica claro para o destinatário (eleitor), na
sua (re)construção do éthos de Marina, é que ela destoa da imagem de líder político
poderoso e combativo, frequentemente associada a Dilma Rousseff. Por outro lado, ao
reafirmar sua coragem e mostrar que se identifica com os que sofrem, Marina explora
seu lado sensível e humano, o que pode atuar no páthos de modo bastante positivo.
Quanto aos demais candidatos, Dilma é vista por Marina não apenas como uma
pessoa agressiva e desrespeitosa, mas também – e principalmente – como incompetente
para governar, já que não tem autonomia (“reza pela cartilha” do seu marqueteiro),
enquanto Aécio é mostrado, sobretudo, como aquele que fala, mas não faz (seu
programa é “feito a língua e saliva”), o que remete a um certo descompromisso da parte
do senador mineiro, já que a escrita, ao contrário, implicaria maior capacidade de
reflexão e de planejamento prévio, qualidade essencial para algo que se apresenta – e se
“registra” – como um programa de governo.
Resta dizer que as imagens de si e do(s) outro(s) que aqui apreendemos por meio
das aforizações, com as marcas linguístico-discursivas que as caracterizam, não se
esgotam nos aspectos que exploramos, visto que outras imagens/outros éthe vão sendo
construídos em muitos outros textos (orais ou escritos) que circularam na sociedade
brasileira às vésperas do 1º turno da eleição presidencial. Nesse sentido, o complexo
“jogo de imagens” que se constrói na cena política ultrapassa largamente o domínio das
aforizações. Porém, não podemos esquecer-nos dos muitos “leitores apressados”, cujo
olhar não vai muito além dos títulos, das manchetes e das chamadas via internet. Daí, a
relevância desses “fragmentos” na construção de imagens de si e dos outros.
A título de conclusão
1094
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amossy, Ruth (org). 2005. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São
Paulo: Contexto.
_______. 2008. A propósito do éthos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana
(orgs.). Ethos discursivo, São Paulo: Contexto, p. 11-29.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 50 - A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas, 1097-1112
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1097
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este trabalho9 consiste em um estudo sobre o processo de persuasão engendrado pelos
valores/lugares retóricos para a formação da imagem (ethos) do enunciador construída
no/pelo discurso. A constituição do ethos é parte componente do processo de persuasão,
e visa a engendrar no público uma disposição em relação ao orador. A visão adotada é
do ethos como construção discursiva, ou seja, que pressupõe a existência de um sujeito
inscrito no discurso. A esse conceito aliam-se o de entendimento da Língua como
interlocução e a noção de discurso como troca entre parceiros do ato comunicativo. O
arcabouço teórico do trabalho está alicerçado nas lições de Aristóteles (2005), Perelman
e Tyteca (2005), Amossy (2011), Charaudeau (2009) e Maingueneau (2013), sobre
retórica, ethos, discurso e argumentação. O objetivo do trabalho é demonstrar como a
utilização de diferentes valores/lugares pode influenciar na construção do ethos do
orador. O percurso metodológico abrange analisar as estratégias linguístico-discursivas
de que se valem os sujeitos para a construção dos ethé em textos midiáticos. Como
resultados preliminares advoga-se a ideia da construção de um percurso que leva à
identificação do enunciatário com aquilo que é exposto pelo enunciador. O leitor é
colocado na posição de co-enunciador do texto a partir da incorporação dos valores
veiculados pela publicação midiática.
1. Introdução
8 UNIFA – Universidade da Força Aérea – Pró-Reitoria de Ensino Av. Marechal Fontenelle, 1200 –
Campo dos Afonsos – 21740-002 – Rio de Janeiro - Brasil
UFRJ – Faculdade de Letras – Departamento de Letras Vernáculas - Laboratório de Pesquisa do CIAD
(Círculo Interdisciplinar de Análise do Discurso). claudia.sousa@yahoo.com.br
9 Este estudo é parte de pesquisa de doutorado em andamento pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), sob orientação da Profa Dra. Maria Aparecida Lino Pauliukonis.
1097
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
ainda, a articulação das dimensões discursiva e institucional do ethos, tal como propõe
Amossy (2011).
A perspectiva teórica adotada leva em conta os pressupostos de Perelman e
Ducrot, Oswald. La sémantique argumentative peut-elle se réclamer de Saussure?
Saussures, Louis de. 2006. Nouveaux regards sur Saussure : Mélanges offerts à René
Amacker. Genève: Droz, p. 153-170.Tyteca (2005) para retórica, ethos, valores e
lugares; relaciona os princípios da alteridade, influência e regulação, presentes na teoria
de Charaudeau (2009), com a noção de ethos como construção linguageira e posição
institucional (conjuntamente) de Amossy (2011); e considera os conceitos de “ethos” e
“incorporação” de Maingueneau (2013).
Para exemplificar os procedimentos abordados, serão utilizadas análises de
textos midiáticos provenientes da seção “Carta do Editor” da edição de outubro de 2012
da revista Men’s Health (doravante MH) e da edição de setembro de 2012 da revista
Claudia (doravante CLA), duas publicações mensais brasileiras. A seção “carta do
editor” tem por objetivo convencer o leitor da importância de sua escolha: a leitura da
revista, por meio da abordagem dos tópicos que farão parte da edição. Serve também
para ratificar os objetivos da publicação e promover a aproximação com o leitor.
Nesse sentido, o conceito de ethos auxilia no estudo do processo de adesão dos
sujeitos a uma determinada posição discursiva, e deixa entrever as representações nas
quais os enunciadores se apoiam para promover o convencimento e buscar a
identificação com os leitores (“As leitoras extraem dessas revistas e de outras fontes as
representações com as quais elas buscam se identificar para serem valorizadas.”
(Maingueneau, 2013: 109).
2. Retórica e ethos
1098
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
3. Teoria Semiolinguística
10 Non pas « ce qu'il y a dans la tête » du public, mais ce que le public croit que les autres ont dans la
tête.
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
4. Valores e lugares
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
(6) o empenho de se cuidar e ficar mais bonita é válido, mas beleza e magreza
não são garantia de felicidade
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
seguida, localiza este tópico em relação às demais edições (existem duas edições
especiais no ano) e, depois, elenca os motivos pelos quais as “126 soluções”
apresentadas pela revista são importantes. Já na apresentação observa-se o recurso ao
lugar da quantidade. Logo no primeiro motivo, “Estamos vivendo mais”, o locutor traz
dados estatísticos sobre o aumento da expectativa de vida do homem brasileiro.
Recorrer ao valor da quantidade é mais comum na MH do que na CLA.
O lugar da quantidade também pode ser percebido nas seguintes passagens do
texto de MH:
(8) Nesta edição estão 14 páginas para você reforçar essa ideia e sair bem na foto
(9) 126 soluções e produtos
(10) expectativa do homem brasileiro cresceu 22 anos
(11) Atingimos em média cerca de 70 anos, contra 48 em 1960
(12) nunca vimos tanta solução legal
1105
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
anterior, das causas, dos princípios. Esse lugar pode ser usado para mostrar que aquilo
que vem primeiro é melhor. O lugar da ordem aparece nos seguintes trechos:
1106
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
mais cortês, um corpo que percebe a passagem do tempo, uma voz mais centrada e
sensata. O enunciador passa uma imagem de equilíbrio e fala do lugar da ponderação.
Em MH, o locutor se vale de um ethos da jovialidade, e se utiliza dos valores da
quantidade e da qualidade com o objetivo de um fazer crer no leitor da veracidade das
informações veiculadas pela revista. O locutor de MH expõe que “durante anos, a
masculinidade foi identificada com uma vida espartana e prazeres broncos”. Apresenta,
então, um distanciamento dessa ideia, acrescentando que, nos dias atuais, “nunca vimos
tanta solução legal, feita com base científica e focada nas características do macho”.
Traz, ainda, expressões como “elas [as mulheres] têm vantagens competitivas naturais:
têm mais poder de comunicação e se adaptam mais facilmente do que nós [homens]”.
Há uma tentativa de aproximação através do uso de termos que incitam o outro a uma
mudança de atitude, como nos exemplos abaixo:
6. Conclusão
Todo texto ambiciona exercer alguma influência no outro pela orientação dos
diferentes modos de ver e de pensar o mundo. Para isso, o locutor lança mão de
1108
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amossy, Ruth. 2011. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, R.
(org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto.
1109
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
______. 2010. Discurso das mídias. [trad. Angela M. S. Corrêa]. 2ed., São Paulo:
Contexto.
______. 2013. O discurso político. [trad. Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz]. 2
ed. 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto.
Maingueneau, Dominique. 2008. A propósito do ethos. In: Motta, Ana Raquel; Salgado,
Luciana (org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto.
1110
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
ANEXOS
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 50 - A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas, 1113-1126
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1113
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Helcira LIMA12
Introdução
11 Parte do artigo será publicada com o título “As emoções e sua implicação na construção
argumentativa” em: Eduardo Lopes Piris, Eduardo Lopes; Olímpio-Ferreira, Moisés. Discurso e
argumentação: múltiplos enfoques. Coimbra: Grácio Editor, 2016.
12 Professora nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Letras da UFMG. Líder do
grupo de pesquisa “Retórica e argumentação”, credenciado no CNPq (FALE/FAFICH).
helciralima@uol.com.br.
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Emoções e Linguística
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
13 Em 2011, Plantin lançou a obra “Les bonnes raisons des émotions. Principes et méthode pour l’étude
du discours émotionné”, na qual apresenta de forma mais detalhada os resultados de suas pesquisas sobre
as emoções ao longo dos últimos anos.
1115
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
as três dimensões, destacamos, agora, o papel das emoções a partir da leitura de alguns
fragmentos de um vídeo-resposta, divulgado na internet pelo Grupo Procure Saber.
Antes de iniciar a leitura, apresentaremos algumas considerações sobre o imbróglio que
deu origem à produção do vídeo e à formação do grupo.
As origens do imbróglio
1118
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
fala da Ministra Carmem Lúcia merece atenção por refletir o rechaço à censura que poderia advir em caso
de uma possível proibição: “Censura é uma forma de calar a boca. Cala a boca já morreu. É a
Constituição brasileira que garante”.
1119
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
18 Moeschler (1982) assim define o ato de retificação: ele incide sobre um simples constituinte do
enunciado rejeitado e corresponde aos enunciados negativos, nos quais o foco é indicado por um
encadeamento que se dá sobre a enunciação negativa. Sua estrutura formal é bastante estável,
necessitando da presença de um conjunto antonímico que possua as propriedades seguintes:
(i) possa ser introduzido pelo conector pragmático “mas”. Nesse sentido, o conector “mas” é um
marcador indicativo de retificação.
(ii) conserve uma relação de oposição semântica (contradição ou contrariedade).
1120
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
associação com o termo “individual” pudesse ser vista de uma maneira ainda mais
negativa.
De acordo com Hanna Arendt (2003), a consequência imediata das mudanças
pelas quais a modernidade passou em relação ao trabalho e as consequentes mudanças
em relação ao par opositivo público e privado é que a vida e a necessidade assumem
lugar central da questão política, reduzindo cada vez mais a política ao campo das
necessidades. Como consequência dessas relações, a esfera da vida privada se tornou a
única preocupação comum que restou. O fragmento abaixo parece ser ilustrativo dessa
problemática:
Por acreditar nesta fantástica conquista do direito à intimidade é que
colocamos nossa cara a tapa, com todo respeito, no entanto, à liberdade
de informação. Nossa vida é nossa melhor defesa.
O uso da modalidade, que sinaliza um trabalho com a face, regula a entrada em
cena dos sujeitos participantes e o jogo de forças que se instaura nessa encenação. Ao
colocar em destaque a expressão “com todo respeito”, os sujeitos não só protegem a
própria face, mas também resguardam a face do outro. A seleção lexical “fantástica
conquista” aponta para a rede sígnica da luta pela liberdade, o que traz à cena a
memória da ditadura, ressignificada, nesse caso.
Nesse perigoso jogo entre relações públicas e privadas, talvez o que incomodou
mais e incitou a publicação de tantos artigos de opinião seja uma ambiguidade própria à
vida dos artistas, o que faz com que a manifestação pública predomine sobre a privada
em determinados momentos. Momentos em que se mesclam paixões variadas e que não
é fácil manter o controle da distância em relação ao outro. Além disso, o debate foi
mediado por múltiplos interesses da mídia e os fatos foram noticiados exaustivamente.
As críticas que recaíram sobre o Procure Saber podem ser pensadas em sua
relação com um medo que assombra a mídia desde sempre: qualquer coisa que aponte
para a regulação, para o controle da informação pode desencadear na censura. Ademais,
é importante lembrar algo inegável: a vida de pessoas públicas tem uma dimensão
pública. A respeito disso, Souza (2011:29) afirma que “O mercado de notícias
sensacionalistas do mundo globalizado opera, portanto, a diluição gradativa das esferas
pública e privada, graças ao enfraquecimento dos valores que definiriam os seus
componentes”.
Disso resulta que a vida dos artistas é esmiuçada em jornais e revistas, os quais
se valem do desejo do público de se aproximar do “star” e o sustentam com elementos
1121
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
que, ao suscitarem paixões diversas, criam a ilusão de diminuir a distância que separa o
admirador de seu ídolo. A relação é complexa, porque, ao mesmo tempo em que a mídia
cria e recria informações de cunho íntimo – o que é recriminado e alvo de processos –,
em uma tentativa de nunca cair no esquecimento, estes mesmos artistas alimentam a
mídia de informações sobre sua vida privada a fim de fomentar esse desejo pelo que é
escondido, íntimo, proibido.
É relevante lembrar que o argumento usado vai contra a própria defesa do grupo:
“nossa vida é nossa melhor defesa”. Se a vida deles é pública como defender a
privacidade desse modo?
Nós estamos onde sempre estivemos: pregando a liberdade, o direito às
ideias, o direito de sermos cidadãos que têm uma vida comum, que têm
família e que – acreditem – sofrem e amam, às vezes a dois ou na solidão,
sem compartilhar com todos, momentos que são nossos.
No 3º fragmento em destaque, o termo “família” surge como um valor. Na
verdade, trata-se de um dos valores mais fortemente evocados na argumentação do
Procure Saber e que ainda constitui um elemento forte na cultura brasileira, apesar de
todas as mudanças pelas quais nossa sociedade vem passando. Mesmo com a
modificação da estrutura basilar da família (mãe, pai e filho), ainda assim ela se
apresenta como um valor, um cimento social. Além disso, o ethos prévio de sujeitos que
lutaram contra a ditadura brasileira e a toda forma de repressão é resgatado, de modo a
minimizar o peso das afirmações divulgadas pelo Grupo. A relação entre liberdade e
privacidade é apoiada por termos de emoção: “sofrem, amam, solidão”. Tais termos
funcionam como “detonadores de emoção”. Se não há como defender a liberdade de
expressão e o direito de impedir a divulgação de fatos de sua vida a partir de outros
argumentos, a construção pela emoção funcionaria como o recurso necessário e
adequado à demanda do momento. Isto porque, na verdade, os defensores da proibição
estão longe de serem cidadãos comuns. Optaram pela vida artística! É o pacto!
Ao se referir à polêmica sobre a censura por parte de determinados biografados,
a historiadora Heloisa Starling, juntamente com Lilia Moritz Schwarcz, retomando
Sérgio Buarque de Hollanda, afirma que
No Brasil, a vida privada ocupa ainda hoje o papel de nossa principal
referência. A interpretação mais frequente desse fenômeno aposta na ideia de
que a ancoragem no privado é sinal de maturidade democrática. O suposto é
que essa expansão democrática se sustenta em direitos e, uma vez que os
1122
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aristóteles. 1998. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. 14ª Ed.
Rio de Janeiro: ediouro.
1124
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Aristóteles. 2003. Retórica das paixões. Trad. Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo:
Martins Fontes.
Arendt, Hanna. 2003. A condição humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense.
Gnerre, Maurizzio. 2001. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes.
Lima, Helcira Maria Rodrigues de. 2017. Emoções e discurso: notas sobre a vergonha.
In: Chauvin, Jean-Pierre (org.). Interfaces. SP: Editora Mackenzie.
1125
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Mosca, Lineide do Lago Salvador (org.). 2004. Retóricas de ontem e de hoje. 3ª Ed. São
Paulo: Associação editorial Humanitas.
Souza, Enedia Maria de. 2011. Janelas indiscretas. Ensaios de crítica autobiográfica.
Belo Horizonte: UFMG.
Starling, Heloisa & Shscwarcz, Lilia Moritz. 2003. Medos privados em lugares
públicos. São Paulo: Folha de São Paulo/Ilustríssima, 03/11/2003.
Eemeren, Frans H. van & Houtlosser, Peter. 2004. Une vue synoptique de l’approche
pragma-dialectique. In: Doury, Marianne, Moirand, Sophie (éds). L’argumentation
aujourd’hui. Positions théoriques en confrontation. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle,
p. 45-75.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
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ISBN 978-88-8305-127-2
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Natalia TAMMONE19
Artur Daniel Ramos MODOLO20
RESUMO
O presente artigo objetiva estabelecer comparação sobre as dimensões argumentativas
dos sermões do Pe. Antônio Vieira, no século XVII, e de Antero de Quental, no século
XIX. Partimos da hipótese de que a construção e lógica argumentativa dos sermões e
conferências produzidos, respectivamente, pelos autores supracitados, são reveladores
de suas estruturas discursivas e das mutações pelas quais a retórica passou ao longo do
período. Em sua dimensão teórica, pode-se analisar o processo de abandono progressivo
de um referencial religioso com estruturas textuais clássica e escolástica (Pe. Antônio
Vieira) e a influência cada vez maior do iluminismo e das mudanças da mentalidade
europeia. Esse processo de transição culmina em uma retórica predominantemente
moderna, influenciada pela ideia de laicização e concepções de progresso, de verdade e
de objetividade, bases do nascimento das ciências humanas (Antero de Quental). Em
dimensão prática, perceberemos essas mutações a partir da estrutura dos textos, das
escolhas lexicais e das propostas de atuação desses indivíduos na sociedade de sua
época. Para tanto, partiremos das formulações de história da retórica e das escolhas
lexical. Tal componente retórico-discursivo propiciará possibilidades de revelar
filiações ideológicas, inserções em diferentes esferas de atividade humana, assim como
componentes históricos e da linguagem que influenciavam ambos os autores no
momento de sua produção verbal. Ademais, as escolhas lexicais indicam como a opção
de determinados léxicos pelos autores cristalizam um projeto argumentativo, que cada
vez mais se descola de uma lógica escolástica e religiosa e se ampara em um discurso
laico e progressista.
Quero dizer, amigo leitor, que se fordes inimigo da verdade, sempre vos ha-
de amargar, e nunca haveis de dizer bem della, com ella ser de seu natural
muito doce, e formosa, porque he filha de Deos. Verdades puras professo
dizer, não para vos offender com ellas, senão para vos mostrar, onde, e como
19 USP - ICS, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Avenida Professor Lineu Prestes 338,
Cátedra Jaime Cortesão, 05508-900 São Paulo, SP, Brasil, ntammone@gmail.com
20 USP - QMUL, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Rua Ascenção 144, 03415-070,
São Paulo, SP, Brasil, adrmodolo@gmail.com
1127
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
vos offendeis vós a vós mesmo, e á vossa Republica, para que vos melhoreis,
se vos achardes comprehendido.
(ANTONIO VIEIRA)
Não posso apelar para a fraternidade das ideias: conhecem que as minhas
palavras não devem ser bem aceitas por todos. As ideias, porem, não são
felizmente o único laço com que se ligam entre si os espíritos dos homens.
Independente delas, senão acima delas, existe para todas as consciências
rectas, sinceras, leais, no meio da maior divergência de opiniões, uma
fraternidade moral, fundada na mútua tolerância e no mútuo respeito, que
une todos os espíritos numa mesma comunhão- o amor e a procura
desinteressada da verdade.
(ANTERO DE QUENTAL)
1. Introdução
1128
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
que argumenta, o seu ethos, incluindo nele valores éticos, é fundamental para
a aceitação de seu discurso, constitui este, logo de partida, um forte
argumento para facilitar a adesão aos seus propósitos. O argumento de
autoridade, usado para reforçar o seu ponto de vista mediante citações,
referências e outros expedientes, estabelece um jogo de relações que vai
delineando o seu caráter, a sua atitude, finalizando por atribuir-lhe o crédito
requerido (Mosca, 2007:306).
Quental, por outro lado, escrevendo quase três séculos mais tarde, evoca a
exposição das ideias, o seu eco dentro de cada individuo e seu desinteressado debate por
meio da sociedade como o motor para a construção de verdades puras. Sendo assim, a
tolerância, o respeito e a divergência de opiniões seriam os meios para a produção das
mesmas verdades.
Por fim, pretende-se mostrar o abandono progressivo de um referencial religioso
com estruturas textuais clássica e escolástica e a influência cada vez maior do
iluminismo e das mudanças da mentalidade europeia. Assim, trataremos os textos do Pe.
António Vieira como um momento de transição desse processo que culmina em uma
retórica predominantemente moderna, influenciada pela ideia de laicização e
concepções de progresso, de verdade e de objetividade. Os textos de Antero de Quental
são exemplares desse momento histórico.
António Vieira nasceu em Lisboa, em 1608. Aos sete anos de idade, mudou-se
com a família para a Bahia, em uma viagem conturbada na qual o navio que os
transportava quase naufragou. Chegado à Bahia, iniciou os estudos do colégio dos
jesuítas. Vieira manifestou, desde cedo, seu interesse e vocação pela pregação e retórica,
enfrentando oposição familiar a sua escolha. Em 1823, Vieira fugiu de casa para o
colégio dos Jesuítas para iniciar sua formação. Em 1825 concluiria os estudos passando
a ordem dos escolares, com votos secretos. Aos dezoito anos foi nomeado para a cadeira
de retórica no colégio de Olinda e, posteriormente, filosofia dialética.
Logo que a sua idade o permitiu, galgou os diversos níveis da hierarquia
jesuítica, iniciando cedo sua atividade como pregador. No contexto da restauração do
reino de Portugal, separando-se de Castela e proclamando rei D João IV, António Vieira
1129
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
desloca-se a corte portuguesa e cai nas graças do novo monarca. Esse seria o inicio de
uma grande atividade política que o levou a muitas viagens e ao conhecimento dos
grandes de sua época, exercendo significativa influência sobre o papado. Sua defesa da
tolerância religiosa e do retorno ao reino dos cristãos novos custou-lhe um processo
inquisitorial, do qual foi absolvido. Já no final da vida retornou ao Brasil, onde veio a
falecer na Bahia, em 1697.21
Essa pequena síntese biográfica do Pe. António Vieira é importante para
percebemos as duas influências mais marcantes em seu pensamento: por um lado a
formação clássica e escolástica, típica do pensamento português do século XVII e, por
outro, o contexto de dificuldades políticas e diplomáticas que Portugal enfrentava no
ambiente europeu, tanto em relação à própria soberania, como em relação a manutenção
de suas colônias. É a partir desse contexto que analisaremos algumas obras do autor.
Os sermões do Pe. António Vieira são bem conhecidos e destacados tanto pelo
seu teor religioso, como pelas obras literárias. Esses textos revelam elevado domínio da
língua, grande erudição, uso de documentos da história e costumes de sua época.
Interessa-nos, no âmbito deste trabalho, observar sobretudo como esses textos aliam o
método retórico e argumentativo predominantemente escolástico a um conteúdo que
mistura elementos da simbologia cristã com traços do avanço da modernidade.
Assim, a forma de seus textos prende-se ao método argumentativo escolástico,
pois seguem a estrutura de apresentação, exposição do conteúdo – com os argumentos
de autoridades – e finalizando com a moral, ou lições oferecidas pela exposição do
arguidor, ou seja, um exercício de retórica. Quanto ao conteúdo, apesar de abordar
questões da moral e simbologia cristã – trata-se de sermões – o autor mescla tais
questões com elementos do desenvolvimento contemporâneo das ciências e com
argumentos baseados em evidências empíricas.
No Sermão de Santo António aos peixes, por exemplo, a estrutura da pregação
está essencialmente ligada ao cânone da escolástica. A estrutura argumentativa do autor
pode ser dividida da seguinte forma:
Cap. 1 – Introdução (Exórdio/Exordium): Expõe o tema do sermão. Apresenta a
passagem de Cristo “vós sois o sal da terra” e o histórico da vida de Santo
António, chegando a ocasião em que ocorreu a famosa pregação aos peixes.
1130
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
o perigo do mandar. Aparelhai nos entendimentos a fé, porque sem ela não se
pode crer, nem se poderá imaginar o que de novo haveis de ouvir (Vieira
1644).
Nesse sentido, o sermão da Sexagésima, provavelmente o texto mais conhecido
de Vieira, é também o mais revelador do seu entendimento sobre o trabalho do pregador
e a importância da retórica para seu êxito. Poder-se- ia dizer que o texto é quase
metalinguístico,
constitui verdadeiro paradigma teórico, de base aristotélica, do procedimento
discursivo do orador jesuíta. Lá se evidencia, independentemente da
motivação ditada pela questão temporal com os dominicanos, a concepção do
discurso como expressão e, principalmente, como evento, cujo ponto de
chegada o ultrapassa, em vista do propósito persuatório (Rodrigues Filho,
1996).
O objetivo do sermão é investigar as causas porque a pregação do evangelho
surte poucos efeitos na colônia: se por falha do pregador, do ouvinte ou de Deus. Assim,
o texto constitui-se de certa maneira em exercício de retórica sobre as artes retóricas e
discursivas do pregador. Quanto à estrutura do texto, destacamos a forma Aristotélica,
baseada nos princípios da escolástica:
Capítulo 1-2 Exórdio: tema do sermão a função do pregador- Parábola do
Semeador.
Capítulos 3-9 Desenvolvimento e exposição: dos três elementos que compõe a
pregação, só o sacerdote/orador é responsável pelo seu sucesso. Enumera os
fatores que compõe um sermão e os erros que os pregadores podem cometer.
Capítulo 10 Conclusão: modo como se deve fazer um bom discurso-pregação.
Assim, na conclusão do texto, após avaliar todas as variáveis envolvidas na
composição de um sermão, Vieira faz uma análise de como deve ser composto o bom
sermão. Nota-se em seus argumentos, a importância das escrituras e da eloquência na
elaboração do discurso, mas conferindo igualmente importância a razão, aos exemplos e
a persuasão na tarefa do bom pregador. Somente a presença de todos esses elementos
combinados atingiriam os objetivos do bom pregador.
Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la para que se conheça,
há-de dividi-la para que se distinga, há-de prová- la com a Escritura, há-de
declará-la com a razão, há-de confirmá- la com o exemplo, há-de amplificá-la
com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências
que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há-de
responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades, há-de impugnar e
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caminhos para o povo e para o Reino. Conforme já ressaltamos acima, essa concepção
da monarquia absoluta está muito ligada ao movimento tomista da península ibérica, ou
seja, ligada a uma das correntes escolásticas do pensamento Ibérico. Nesse sentido, o
autor afirmava que:
Quer Deos que haja Reys no mundo, e quer que o governem assim como elle,
pois lhes deu suas vezes, e os armou de poder contra as violências; e como a
mayor de todas he tomar o seu a seu dono, em emendar esta se devem
esmerar (Vieira, 1643:ix).
O que torna o pensamento de Vieira singular dentro dessa perspectiva, é a
associação criada por ele entre o poder divino do Rei e a sua preeminência como maior
sábio do reino, seja em matéria de ciências, seja em questões liberais.
E porque este não basta, se não ha sciencia para alcançar quem merece o
castigo; digo, que vemos em V.A. tanta sabedoria, que parece infusa; porque
não há Arte liberal, em que não seja eminente ; não há Sciencia especulativa,
em que não esteja consummado ; não ha habito de virtude moral, que o não
tenha adquirido, efeito natural com o uso. (Vieira, 1643:xii).
Torna-se, assim, novamente aparente a dualidade entre a tradição e modernidade
no pensamento do Pe. António Vieira. Por fim, é preciso salientar como as escolhas
lexicais de Vieira demonstram as bases retóricas do autor que são de fundo
religioso/cristão: “Deos”, “castigo”, “virtude moral”, “divino”, assim como a menção à
narrativas bíblicas como as de Davi, Moisés e S. Roque.
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“lógico” e “moderno” são alguns dos termos utilizados pelo autor que demonstram o
seu anseio de transformações modernizantes em Portugal.
4. Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Azevedo, João Lúcio de. 1914-15. Alguns escritos apócrifos, inéditos e menos
conhecidos, do Padre António Vieira. Boletim de 2ª Classe da Academia de Ciências de
Lisboa, Lisboa, v. 9 (1914-15), p. 537-547.
1139
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Azevedo, João Lúcio de. 1818. A Evolução do Sebastianismo, Lisboa: Livraria Clássica
Editora.
Coelho, Alessandro Manduco. 2003. O empenho de Antonio Vieira. Lua Nova, São
Paulo, n. 59, p. 115-135.
Gandra, Manuel J. 2008. O quinto império em António Vieira. Subsídio para uma
bibliografia impressa da obra e dos estudos concernentes ao tema. Ericeira: Biblioteca
Municial.
Hansen, João Adolfo. 1997. Vieira: tempo, alegoria e história. Brotéria, v. 145, n. 4-5
(Out-Nov 1997), p.541-55.
Hespanha, António Manuel (dir.). 1997. Vieira. Oceanos, n. 30-3 (Abr.-Set. 1997).
______. & Tyteca, L. 2002. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica, São Paulo:
Martins Fontes.
Rodrigues Filho, Nelson. 1996. Padre António Vieira: Dizer é agir. Semear, n.2.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V 6,0(/36impósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 50 - A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas, 1141-1156
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1141
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Neste trabalho, pretende-se refletir sobre a falácia da mentira, mais especificamente
sobre a mentira na política, sob as perspectivas da ética, da retórica e da erística. Desde
os sofistas clássicos até os estudiosos contemporâneos, os diversos modelos de
argumentação reconhecem argumentos falaciosos. Embora devamos a Aristóteles o
estabelecimento da teoria da argumentação que é a base na qual se apoiam seus
sucessores na abordagem da argumentação, esse filósofo não se ocupa da falácia da
falsidade. É nos sofistas, mais especificamente na erística, que se encontram
contribuições substanciais para o entendimento da mentira, tipo de falácia mais perigoso
e, do ponto de vista sofístico, mais eficaz.
Apresentam-se também, para melhor abordagem da mentira, especialmente da mentira
na política, um histórico dos tratamentos dados a esses temas através dos tempos, dos
clássicos até a contemporaneidade. Feitas essas reflexões, pretende-se , na sequência,
apresentar exemplos desse tipo de falácia, rastreados em discursos políticos brasileiros
autênticos e atuais.
Introdução
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
1. Ética e mentira
Começamos por um breve histórico dos tratamentos dados à mentira, sob o viés
da ética: sobre a mentira de modo geral e , especificamente, sobre a mentira e política.
1. 1 Sobre a mentira
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Nenhum homem, porém, tem o direito a uma verdade que prejudica outro.
(Constant, 1993:76)
Schopenhauer (2001:147-149) diz que, se é legítimo contrapor à maldade de
outros a nós dirigida uma resistência física, guarnecer os muros do jardim com pontas
aguçadas e soltar cães bravos no nosso quintal, também é legítimo mantermos em
segredo aquilo cujo conhecimento nos poria a nu diante da agressão do outro.
Admitindo-se a intenção má do outro, temos de tomar antes as providências contrárias.
Para esse filósofo, tanto a mentira como a força representam originariamente uma
injustiça que se converte em direito quando há uma situação na qual um indivíduo
queira apenas afastar a injustiça alheia.
Vejamos agora como a relação da mentira com a política tem sido abordada. É
uma longa história que remete à pólis no contexto clássico grego. No entanto, é pouco
pesquisada pelos pensadores posteriores.
O uso autorizado da mentira em política é referido por Platão, que compara sua
aplicação ao uso que o médico faz da sonegação da verdade ao paciente e do veneno
com finalidade curativa. (Platão, República, 1993:97)
Quintus Tullius Cícero [64 a.C.], (2012:32) , quando seu irmão, Marcus Tullius
se candidatou a cônsul da República Romana, escreveu um interessante manual, Como
vencer uma eleição, no qual disse sobre a mentira: “O povo prefere uma mentira
graciosa a uma recusa imediata. Ou seja: um político que proclame, com toda a
honestidade, que não pode prometer o que não tem a certeza de cumprir, é um candidato
acabado.”
Maquiavel [1515], (1973:99) , que excluiu a ética do núcleo da nascente ciência
política, concede ao governante o direito ao uso de meios excepcionais para alcançar os
fins almejados e , assim, confere à mentira um estatuto especial no seu corpo teórico.
Dentre os pensadores contemporâneos, o nome mais importante no que se refere
ao tema mentira e política é Hannah Arendt. Em seu ensaio “Verdade e Política”, afirma
que política e verdade nunca conviveram em harmonia e que nenhum pensador
1143
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
defendeu alguma eficácia para essa convivência: “Até hoje ninguém, que eu saiba,
incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade.” (ARENDT, 2004: 283).
Arendt constata que a história da humanidade é repleta de casos em que os que
somente falaram verdades, e que propuseram uma transformação do pensar em suas
épocas, foram perseguidos e calados sob ameaça e até mesmo executados.
Pelo contrário, constata que no curso da história “[...]a falsidade deliberada e a
mentira descarada, são usadas como meios legítimos para alcançar fins políticos desde
os primórdios da história documentada.” (Arendt, 2004:15).
Para Arendt, a convivência entre mentira e política será sempre tentadora, na
medida em que governantes e governados estarão sujeitos às tensões naturais que
envolvem a gestão das questões públicas, em que há interesses convergentes, mas que
podem ser permeados por outros interesses que não se coadunam com as aspirações da
população.
Arendt admite, pois, a existência de casos em que a mentira é justificável: a
história registra momentos em que se reconhecem justificativas para o uso da mentira
para salvaguardar os interesses e a sobrevivência das pessoas. Nesse sentido, para ela as
mentiras podem ser consideradas “instrumentos relativamente inofensivos no arsenal da
ação política” (Arendt, 2004:284).
Outra justificativa para a mentira discutida por Arendt é o sigilo de estado,
(arcana imperi – os mistérios do governo). O assunto que requer segredo é algo que
necessita ser encoberto, por ter em sua origem um fato que, se tornado público, poderá
gerar uma situação desfavorável ou hostil, podendo também expor alguém a
dificuldades, ameaças ou perigos. Por outro lado, há uma crença sedimentada de que
nem todos os temas podem ser debatidos abertamente com a população, por tratarem de
abordagens que ensejam segurança da nação e boa condução do Estado. Assim,
justifica-se também a mentira, que “atua como um antídoto contra os revezes dos
assuntos políticos.” (Arendt, 2004:287)
Segundo (Bobbio, 1984:410), o saber técnico embora se pretenda verdadeiro, é
para a massa (inculta) um sigilo, fonte de mentira:
O saber técnico cada vez mais especializado torna-se cada vez mais um saber
de elites, inacessível à massa. Também a tecnocracia tem seus arcana
(segredos), é para a massa também uma forma de saber esotérico, que é
incompatível com a soberania popular [...]
1144
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Isso esclarece também a questão abordada por Arendt acerca dos assessores,
donos do saber técnico, que elaboram os documentos de estado, impondo muitas vezes
suas mentiras como verdades. Referindo-se às mentiras contadas pelo presidente
Lyndon Johnson sobre a guerra do Vietnam, entende que foi o saber técnico o grande
responsável por essas mentiras:
Estranhamente, a única pessoa passível de ser uma vítima ideal de completa
manipulação é o presidente dos Estados Unidos [...], supostamente o mais
poderoso homem do mais poderoso país, é a única pessoa deste país cuja
possibilidade de escolha pode ser determinada. (Arendt, 2004:18).
Por fim, cumpre lembrar, também, que o Direito também justifica a mentira. Nos
tribunais do júri, tanto a acusação e a defesa se utilizam de mentiras, autorizadas e
legitimadas.
Num mundo que vem superando o positivismo, não é mais admissível falar em
“verdade” e não mencionar a “opinião”, a “doxa”.
Arendt, como não poderia deixar de ser, discute também a relação verdade e
opinião e admite que não existem falsas opiniões no âmbito político, porque a opinião
nasce da experiência política da convivência entre os indivíduos e se torna aceita por
meio da argumentação e da aceitação dessa opinião como verdade inerente ao acordo
entre pessoas.
Para essa filósofa, portanto, não se pode considerar uma superioridade absoluta
da verdade em relação à opinião no âmbito político, mas, pelo contrário, deve-se evitar
que a opinião seja desprezada por meio da aferição da verdade dos enunciados políticos.
Arendt considera perigoso que critérios de aferição da verdade racional se imponham à
liberdade do jogo de opiniões, impedindo o debate profícuo por meio do qual o mundo é
humanizado, fechando a abertura humana para o mundo e dissolvendo a a pluralidade
que é constitutiva do espaço público (Duarte, 2000:182).
Ela questiona, assim, a validade de expurgar as opiniões ou de confrontá-las
cientificamente, sob pena de retirar das pessoas a sua capacidade de falar do mundo que
as cerca. A destruição das opiniões pode também ser compreendida como o fim dos
debates políticos, da liberdade de expressar a maneira de compreender o mundo e dele
1145
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
tomar parte. Portanto, não concebia algo como opinião falsa, à qual se contraporia uma
verdade, mas apenas uma outra opinião que pudesse pretender, por meio da
argumentação, ser mais persuasiva do que a primeira (Duarte, 2000:179).
Daí a razão de Arendt insistir no ponto de que
[...] toda pretensão na esfera dos assuntos humanos a uma verdade absoluta
cuja validade requeira apoio do lado da opinião atinge na raiz mesma toda a
política e todos os governos” [...] O pré-requisito que confere legitimidade ao
poder político não se encontra na verdade e sim na opinião [...] (Duarte apud
Arendt, 2000:181).
Como se pode constatar, grande parte dos pensadores, não só os
contemporâneos, adota uma posição, digamos, conformista em relação à mentira,
principalmente à mentira na política, defendendo a posição platônica de que ela é muitas
vezes justificável. Celso Lafer (1992:230), incomodado por isso, indaga: “[...] por que,
na tradição do pensamento ocidental, só Santo Agostinho e Kant sustentam sem
vacilação o dever da veracidade?” A resposta de Arendt a essa questão de Lafer seria
que o conflito entre moral e política é tão antigo e complexo que de nada adiantaria
estabelecer uma discussão ou denúncia moral acerca desse tema. Assim sendo, o que
Arendt pretendeu, então, foi encontrar um caminho viável para a compreensão de que a
mentira seja reavaliada, antes de ser julgada com rigor, na medida em que se poderá
chegar à conclusão de que há interpretações baseadas em observações dos fatos,
equivocadas ou não, mas que, em última análise, resultam da forma como pessoas
compreenderam, com liberdade, o que ocorre na cena pública.
Para ela, uma opinião não anula a validade de outra opinião e somente o debate
constante pode estabelecer as bases frágeis sobre as quais recai o consentimento
provisório a favor de uma opinião em relação à outra. (Duarte, 2000:180).
1146
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
enganar, ou seja, mentindo. Mas não mente quem acredita naquilo que diz,
mesmo que isto seja falso. (Derrida, 1996:8).
Para ele, apenas em nossa modernidade é que a mentira teria alcançado seu
limite absoluto e teria se tornado “completa e definitiva”. Citando Arendt, diz que ela
[...] diagnostica um crescimento hiperbólico da mentira no campo político,
que teria chegado a seu limite, ou seja, à mentira absoluta, não se tratando no
caso do saber absoluto como fim da história, mas da história como conversão
à mentira absoluta (Derrida, 1996:12)
A propósito, para essa filósofa,
A veracidade dos fatos nunca é forçosamente verdadeira. Os historiadores
sabem como é vulnerável a textura de fatos na qual passamos nossa vida
cotidiana; está sempre em perigo de ser perfurada por mentiras comuns, ou
ser estraçalhada pela mentira organizada de grupos, classes ou nações, ser
negada e distorcida, muitas vezes encoberta cuidadosamente por camadas de
falsidade, ou ser simplesmente deixada cair no esquecimento (Arendt,
2004:16).
E Derrida acrescenta, ainda, à ideia de Arendt sobre esse tópico: “ O processo da
mentira moderna já não seria a dissimulação que veio encobrir a verdade, mas a
destruição da realidade ou do arquivo original” (Derrida, 1996:14).
Para Duarte, a mentira torna-se mais grave quando ela passa a abranger todo o
contexto em que os fatos contingentes tornam-se significativos, bem como quando ela
passa a redefinir os contornos do presente e do passado por meio da reescritura da
história. (Duarte, 2000:186).
Nesse sentido, é interessante lembrar Derrida quando em Uma história da
mentira: prolegômenos, ilustra a utilização da mentira na política, focalizando a história
francesa, especificamente durante a ocupação alemã e seus desdobramentos. Constata
que a partir do fim da segunda guerra até 1995, houve nos discursos dos presidentes
franceses sucessivas dissimulações e omissões quanto aos fatos ocorridos durante a
guerra, uma incessante tentativa de explicar o injustificável. Distorceram-se os eventos
que originaram os dados históricos, inclusive com discursos organizados para suavizar
as agruras provenientes da assunção dos atos ilícitos cometidos. Mentira como distorção
da história.
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Esse tipo de argumento costuma levar a que o adversário, não tendo uma
explicação para o fato relatado, ou não tendo uma explicação melhor, saia derrotado.
Daí seu interesse para o debate político.
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Obs: A primeira premissa é omitida e pode ser inferida como: O consumo tem
relação direta com o salário. Embora essa premissa seja falsa, ela não foi expressa.
O entimema é ainda mais útil para a mentira, pois a inferência é de
responsabilidade do ouvinte.
3.2 Schopenhauer
Retomando as idéias de Duarte sobre a mentira, vemos que para ele o problema
da mentira na política torna-se grave e urgente quando ela deixa de ser tópica e passa a
abranger todo o contexto em que os fatos contingentes tornam-se significativos. Para
ele,
[...] nessas circunstâncias, a mentira já não é mais a antiga arte de ocultar ou
dissimular, correlatos da liberdade humana para agir e mudar o mundo, mas
sim a arte de destruir toda evidência que a contradiga, destruindo assim o
1151
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Para Bacon, essas são as falácias mais profundas da mente humana: “pois elas
não enganam em detalhes, como as outras, por turvação e esparramar do acórdão
silogístico; mas por uma predisposição corrupta e mal ordenada da mente, que sendo
pervertida, infecta todas as antecipações do intelecto. (Bacon, Livro IV, 1887:431)
Em suma, são falácias de nível macro, do nível do discurso, da ideologia,
diferentemente das tradicionais, de nível micro, pontuais, sejam lógicas ou linguísticas.
Prestam-se a todo tipo de manipulação das massas. O manipulador que tem poder e
ciência do que diz, contra o manipulado que não tem poder e que não processa o que se
diz.
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
5. Mentira e mídia
Considerações finais
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Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agostinho, Santo. 426 dC. De doctrina christiana.
Arendt, Hanna. 2000. Verdade e Política. Tradução de Manuel Alberto. Lisboa: Relógio
D’Água Editores.
________. 2004. Crises da República. 2. ed. Tradução de José Wolkmann. São Paulo:
Perspectiva. Coleção Debates – Nº 85.
Bobbio, N. 1984. Ética e política. In: Tega, Walter (org.) Etica e Politica. Parma:
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Cicero, Quintus Tullius. 2012. How to Win an Election. An Ancient Guide for Modern
Politicians. Transl. Philip Freeman. Princeton University Press.
Kant, I. 2000. Über ein vermeinliches Recht, aus Menschenhliebe zu lügen (trad.) On a
presumed right to lie from love of mankind. In: Gregor, M.J. (org.) Practical
Philosophy. Cambridge University Press.
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Fundação Calouste Gulbenkian.
________. 2003. A arte de insultar. Trad. Eduardo Brandão e Karina Jannini. São
Paulo: Martins Fontes.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V SIMELP - Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 50 - A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas, 1157-1173
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1157
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RESUMO
A produção de textos acadêmicos, especialmente resumos, é uma das atividades a que
os docentes recorrem com muita frequência para avaliar o entendimento que um aluno
teve de determinado texto cuja leitura lhe foi solicitada. Essa atividade, entretanto,
requer, além da habilidade de leitura e escrita – especialmente da escrita acadêmica –,
também o conhecimento a respeito do modo como se constroem resumos. Neste
trabalho, propomos algumas reflexões a respeito da escrita do gênero resumo,
especialmente com relação a um dos mais importantes aspectos envolvidos nessa
atividade de escrita: a seleção do conteúdo semântico do texto base que deverá constar
no resumo. Como suporte teórico, para o desenvolvimento desta pesquisa, escolhemos a
Teoria da Argumentação na Língua, desenvolvida por Marion Carel e Oswald Ducrot.
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1. O conceito de resumo
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produção de um resumo, mas sempre que realizamos uma leitura e é orientado por
algumas regras, às quais Köche, Boff e Pavani (2009) denominam apagamento,
generalização e construção. Segundo a primeira regra, há o apagamento de alguns
conteúdos, como aqueles que podem ser inferidos a partir de nosso conhecimento de
mundo, apagamento de exemplos, de justificativas de uma afirmação, de termos
sinônimos ou explicativos, entre outros. Já a segunda e a terceira regras se assemelham,
visto que sempre que há generalização há, também, construção. A aplicação dessas duas
últimas regras acontece quando há a reformulação de informações através do uso de
termos mais genéricos. Pela sumarização, é possível, portanto, iniciar o processo de
seleção das informações do texto base que deverão constar no resumo.
Tal processo mental de sumarização, além de ser orientado pelas regras
supracitadas, é também orientado pelos objetivos que o autor do resumo tem ao redigi-
lo. Esses objetivos estão intimamente ligados à situação em que nos encontramos e que
motiva a escrita do resumo. No caso do resumo acadêmico, o objetivo da produção do
resumo é demonstrar ao professor, destinatário do texto, que houve a leitura e a
compreensão de determinado texto. O professor já é conhecedor do texto base e de seu
conteúdo, entretanto, é necessário que o resumo apresente as informações centrais do
texto base, de modo que o docente seja capaz de avaliar se houve ou não a compreensão
do texto. Isso significa que o resumo deve apresentar independência semântica e
temática em relação ao texto do qual ele é fruto, que, a partir da leitura unicamente do
resumo, sejamos capazes de apreender o sentido construído no texto base e o ponto de
vista assumido pelo seu locutor.
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realizados pelo autor do texto base vão desde argumentar em favor de determinada tese,
definir determinado conceito, exemplificar, conceituar, descrever, classificar,
caracterizar, acreditar, esclarecer ao leitor, discorrer, finalizar, entre outros.
O gerenciamento de vozes e a menção ao autor do texto base aparecem como
uma espécie de descrição de ações: o autor do resumo descreve os atos realizados pelo
autor do texto base e os relaciona aos conteúdos dele extraídos, respeitando a
linearidade e a ordem em que as ideias são apresentadas.
Para os fins de realização deste estudo, foi escolhido um resumo26 produzido por
alunos de uma disciplina de Produção de Textos Acadêmicos partir de um texto base
que lhes foi sugerido, do gênero artigo de opinião, denominado “Os pássaros, a canção e
26 Para este trabalho, foi escolhido um resumo a fim de ilustrar a hipótese que aqui desejamos verificar.
Foram analisados, entretanto, outros resumos produzidos a partir do mesmo texto base, alguns
considerados bons, tanto do ponto de vista da textualidade quanto da seleção das ideias, e outros não tão
bons, analisados segundo esses mesmos critérios. Compõem, ainda, o corpus da pesquisa “A escrita, a
reescrita e a construção do sentido no discurso”, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação
em Letras – Mestrado em Leitura e Cognição da Universidade de Santa Cruz Do Sul, resenhas críticas,
textos das tipologias expositiva, argumentativa, descritiva, narrativa, além de notícia de jornal, notícia de
rádio e propagandas.
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discutida, a tese defendida pelo autor do texto base e seus argumentos a ela favoráveis
ou contrários, o resumo deve conter (ou espera-se que contenha) os mesmos blocos
semânticos do texto base, inclusive a apresentação dos mesmos aspectos argumentativos
assumidos pelo seu locutor.
Tais apontamentos foram realizados por Graeff (2006:127), para quem o resumo
“ocorre pela seleção de apenas um discurso de cada encadeamento argumentativo em
donc (portanto) ou pourtant (mesmo assim) associado ao bloco semântico que instaura
o debate no texto”. Tal formulação significa que é necessário identificar qual é o
aspecto argumentativo do bloco semântico que instaura a construção do sentido no
discurso que o locutor quer dar a conhecer ao seu interlocutor, sendo que todos os
demais enunciados, que representam a progressão temática no texto base, seriam
desdobramentos do bloco semântico apresentado no início do debate. A identificação
do(s) bloco(s) semântico(s) e dos aspectos argumentativos assumidos pelo locutor do
texto base pode ser uma resposta a uma das questões acima colocadas a respeito da
construção dos resumos: que critérios utilizar e como proceder para identificar quais são
as principais ideias do texto base que deverão constar na construção do resumo.
Para ilustrarmos tal aspecto, trazemos o texto base e um dos resumos produzidos
a partir dele.
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O texto base escolhido para a escrita do resumo está constituído por sete
parágrafos. O locutor inicia seu texto, no primeiro parágrafo, usando de uma
exemplificação a respeito do tema sobre o qual será instaurado o debate: a aceleração do
tempo. O exemplo sobre o uso do telefone celular e a lembrança da morte de Antônio
Carlos Jobim são dois temas que, aparentemente, no início do texto de Toledo, parecem
não ter conexão entre si, entretanto, a aparente desconexão desfaz-se à medida que o
texto progride semanticamente.
No segundo parágrafo, é possível identificar qual é o tema do texto, ou seja, qual
é o bloco semântico a partir do qual o locutor desenvolverá sua argumentação, e qual é
o aspecto argumentativo assumido por ele. Tal bloco semântico, como afirmado acima,
nasce da interdependência de dois segmentos relacionados por um conector, seja do tipo
normativo, seja do tipo transgressivo. O enunciado que apresenta a temática sobre a
qual o locutor argumentará é A aceleração do tempo é uma das características do
século XX, talvez a principal delas. As coisas chegam e vão embora com
impressionante rapidez, do qual identificamos os seguintes segmentos:
X = aceleração do tempo;
1167
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
28 Para mais detalhes sobre a relação entre aspecto argumentativo e encadeamento argumentativo,
recomendamos a leitura de Carel (2011).
1168
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
2.2.2. Resumo
1169
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
1170
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
3. Para finalizar
1171
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
indivíduo para o outro, o que pode gerar resultados distintos de uma produção para
outra, uma vez que cada leitor-locutor partirá do seu conhecimento para sumarizar as
ideias contidas no discurso a partir do qual será produzido o resumo.
Acreditamos que a proposta aqui apresentada pode ser mais eficaz, tendo em
vista que analisa o sentido construído pelas relações que são estabelecidas
linguisticamente. Segundo essa proposta, o critério a ser utilizado pelo autor do resumo
para selecionar os sentidos do texto base que deverão ser transpostos para o resumo
seria a identificação dos blocos semânticos apresentados pelo locutor do texto a ser
resumido. Esse critério, além de parecer-nos mais objetivo, pois parte daquilo que é dito
no texto e não do conhecimento de mundo de um indivíduo, levaria em conta questões
discursivas e semânticas, visto que o objetivo de um resumo, como apontamos no início
deste trabalho, é reproduzir o sentido, e não a forma.
Com relação à segunda pergunta proposta, as ideias que deverão ser
selecionadas a partir do texto base pelo autor do resumo devem ser os aspectos
argumentativos dos blocos semânticos assumidos pelo locutor do texto base. Como
vimos, um bloco semântico, resultado da interdependência semântica entre dois
segmentos, possui várias formas de materializar-se discursivamente, através dos
aspectos argumentativos. Um locutor poderá manter relações diferentes com esses
aspectos argumentativos, assumindo um, concordando com outros ou rejeitando outros.
Para a escrita de um resumo, é preciso que esses dois passos sejam observados –
identificação dos blocos semânticos apresentados no discurso e identificação dos
aspectos argumentativos assumidos pelo locutor – assim, uma das características que
definem um bom resumo, a “fidelidade” ao texto base, estaria presente.
Tendo em vista as reflexões apontadas acima e o contínuo aprendizado da
escrita, acreditamos que a ANL pode ser um bom subsídio para o ensino da escrita, não
apenas de resumos acadêmicos, como também de outros gêneros, uma vez que seu
objetivo é explicar como se dá a construção do sentido através da língua. O que nos
parece é que sempre que escrevemos (ou falamos) nosso objetivo é transmitir
determinado sentido e dar a conhecer nosso ponto de vista a respeito daquilo sobre o
que falamos. Isso é ser argumentativo. A ANL, especialmente por estar ancorada em
pressupostos saussurianos, pode constituir-se como uma ferramenta para o ensino da
escrita, já que pressupõe que o sentido se constrói pela relação entre as palavras e entre
frases – tratando-se, portanto, do embrião do discurso.
1172
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ducrot, Oswald. 2005. Introducción. In.: Carel, Marion; Ducrot, Oswald. La semántica
argumentativa: una introducción a la teoría de los bloques semánticos. Buenos Aires:
Colihue, p. 11-25.
Köche, Vanilda S.; Boff, Odete M. B.; Pavani, Cinara F. 2006. Prática textual:
atividades de leitura e escrita. 6ª ed. Petrópolis: Vozes.
Machado, Anna R.; Lousada, Eliane; Abreu-Tardelli, Lília S. 2004. Resumo. São Paulo:
Parábola Editorial.
Machado, Anna R. 2010. Revisitando o conceito de resumos. In: Dionisio, Angela P.;
Machado, Anna R.; Bezerra, Maria A (Orgs.). Gêneros Textuais e ensino. São Paulo:
Parábola Editorial.
1173
Simpósio 50 – A argumentação na língua portuguesa: abordagens retórico-discursivas
Silva, Jane Q. G.; Da Mata, Maria A. 2002. Proposta tipológica de resumos: um estudo
exploratório das práticas de ensino da leitura e da produção de textos acadêmicos.
SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, 2º sem., p. 123-133.
1174
SIMPÓSIO 52
ESTUDOS HISTÓRICOS
DO LÉXICO E LEXICOGRAFIA DO PORTUGUÊS
COORDENADORES
RESUMO
Neste artigo é apresentada uma amostra preliminar de uma investigação em curso sobre
os nomes das cores ('cromónimos') e do 'campo das cores' no DHPB − Dicionário
Histórico do Português do Brasil (séculos XVI-XVIII). A partir do Banco de Textos do
DHPB, corpus que reúne documentos do período colonial no Brasil, realizou-se um
levantamento de alguns nomes de cores atestados nessa base de dados mas também de
muitas expressões ou combinações sintagmáticas por meio das quais são nomeados e
descritos vários matizes cromáticos. Embora nos últimos anos se tenham registado
estudos sobre o campo das cores na língua portuguesa, quer de um ponto de vista
diacrónico, que de um ponto de vista sincrónico, o presente trabalho tem a originalidade
de assentar num recorte de três séculos relevantes para a história do português e
brasileiro. Por outro lado, a inclusão de muitos matizes ou gradações de várias cores, e
não apenas dos cromónimos diretos, decorre do facto de ser necessário descrever
realidades ou referentes desconhecidos a partir daquilo que o olhar europeu desconhecia
ou conhecia mal. Daí o recurso a aproximações, comparações inusitadas que, visando
pintar os referentes brasileiros − principalmente os animais e as plantas − perante os
olhos dos europeus, revelam uma enorme criatividade linguística. Este é, na verdade,
um dos grandes contributos do Banco de Textos do DHPB para o estudo dos nomes das
cores, em português, entre os séculos XVI e XVIII.
Nota preliminar
1177
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
em 2005 pela Profª Maria Teresa Biderman e que, com financiamento do CNPq, no
âmbito do programa Institutos do Milénio, foi desenvolvido no Laboratório de
Lexicografia da UNESP/FCLAr, Brasil. Após o infausto desaparecimento da sua
criadora, em 2008, a coordenação do projeto foi assegurada pela Profª Clotilde A. A.
Murakawa, que o conduziu a bom porto, com a produção dos 12 vols. do DHPB
(Biderman e Murakawa, 2012), que aguardam publicação para breve.
O DHPB (Murakawa, 2014) assenta num Banco de Textos que não é menos
relevante do que o próprio Dicionário, visto reunir centenas de textos relativos ao Brasil
no período colonial, incluindo os mais diversos géneros textuais e discursivos,
produzidos entre de 1500, ano da Carta de Pêro Vaz de Caminha ao rei D. Manuel para
relatar o “achamento” do Brasil, e 1808, data da chegada de D. João VI (1767-1808) a
território brasileiro (Murakawa e Gonçalves, 2015). Com efeito, o corpus textual
conhecido como “Banco de Textos I”2 reúne documentos (manuscritos e impressos)
referentes ao Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII, num total de 23.858 páginas
digitalizadas e 7.492.472 ocorrências.
A partir deste Banco de Textos, e graças às facilidades de busca proporcionadas
pelo programa Philologic, o objetivo deste trabalho é trazer dar notícia de um primeiro
levantamento tanto de “cromónimos” como de expressões e combinações cromáticas,
com vista a estudos posteriores sobre o sistema das cores num recorte de três séculos de
diacronia lexical do Português.
2 Existe também um Banco de Textos II, o que permitirá engrossar o número de ocorrências. Porém, na
fase actual, este Banco ainda não está preparado para a busca automática.
1178
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
percepção sensorial, além dos óbvios aspectos físicos e fisiológicos, a cor envolve
aspectos psicológicos e culturais que se refletem nos nomes atribuídos às cores
percepcionadas pelos olhos e interpretadas pela mente humana.
Ora, se nomear de algum modo comporta sempre uma forma de definição, no
caso da denominação das cores, essa afirmação aplica-se perfeitamente, porquanto a
nomeação decorre não só da observação do real mas sobretudo do modo como este é
captado, interpretado e, inclusive, metaforizado. Por isso mesmo, descrever e analisar o
microssistema das cores (i.e. o conjunto de nomes usados para denominar as cores,
nomes esses que se inter-relacionam), supõe reunir e definir não apenas as unidades
lexicais desse campo como também as 'nuances' percepcionadas e nomeadas para cada
cor, vale dizer, as expressões ou locuções que traduzem aproximações ou
metaforizações cromáticas (Mollard-Desfour, 2011:90).
Embora tenhamos já vários estudos relevantes acerca dos nomes das cores, quer
para o Português Europeu – cf. Correia (2007), Silvestre et al. (2015) –, quer para o
Português do Brasil – cf. Biderman et al. (2007), Zavaglia (2006, 2007), e Martins e
Zavaglia (2013, 2014) –, no que diz respeito à perspectiva histórica ou diacrónica não
são poucos os aspectos que continuam a carecer de uma investigação equivalente à que
vem sendo realizada para o francês (Mollard-Desfour, 2008, 2011) ou o alemão (Jones,
2013), para apenas referir dois exemplos. Não obstante incluírem, como poderia deixar
de ser, dados de natureza histórica, aqueles trabalhos não preenchem todas as lacunas
existentes no que tange à diacronia do microssistema das cores, nem tampouco
oferecem respostas para a datação das expressões de cor ou, ainda, para o significado
destas no contexto da cultura de séculos passados. Por isso mesmo, repertoriar os nomes
das cores e as expressões cromáticas num corpus histórico, será seguramente o principal
contributo deste trabalho, uma vez que a maioria dos estudos não assenta em corpora
desta natureza.
A partir do “Banco de Textos I” extraiu-se uma amostra daquilo que, segundo
Mollard-Desfour (2011:90), se chama “nomes directos” (i.e. cromónimos propriamente
ditos), desde a sua origem criados para nomear cores ou percebidos na actualidade como
tal, e, ainda, os chamados “nomes indirectos” ou “referenciais”, os quais, em linha com
a mesma autora, constituem as “dénominations créées métaphoriquement par analogie
avec des référents d'origine très variée” (Mollard-Desfour, 2011:90).
Por outro lado, importa salientar que no Banco de Textos alvo de pesquisa, e em
concordância com a observação de Martins e Zavaglia (2013), a fauna e a flora são os
1179
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
domínios em que, com efeito, mais se verifica uma elevada frequência de nomes de
cores, ainda que não sejam os únicos campos em que a referência cromática coopera de
maneira relevante na descrição de realidades próprias do Brasil. Como é evidente, estas
descrições visavam apresentar aos olhos do leitor, com todo o pormenor, referentes que,
por serem desconhecidos dos europeus, convinha “pintar” fazendo apelo a todas as
dimensões sensoriais, o que não raro acontecia por meio de comparações entre as
características físicas dos referentes desconhecidos e as de referentes conhecidos,
processo que em lexicografia se designa como “definição por género próximo”. No
contexto de descrição da natureza, a cor constituía, como é evidente, um elemento
imprescindível; porém, não bastavam as chamadas “cores básicas”,3 motivo por que os
autores dos textos se socorriam de analogias, comparações e metáforas capazes de
transmitir matizes cromáticos, alguns dos quais soarão estranhos ou curiosos aos
ouvidos de um leitor/falante actual, conquanto seguramente fossem entendíveis pelos
leitores a que se destinavam nos séculos XVI, XVII e XVIII.
Na impossibilidade de se apresentar aqui o inventário geral dos cromónimos
registados no DHPB e, ainda, como era objectivo deste trabalho, as expressões que
incluem cada nome de cor, a amostra4 aqui exposta e comentada reteve unicamente as
cores vermelho/encarnado, verde e azul e alguns dos seus derivados, e bem assim
algumas expressões cromáticas, deixando de remissa, para futuros trabalhos, quer a
apresentação quer a análise de todos os nomes de cor (e respectivos derivados)
compulsados a partir do Banco de Textos.
3 Não é objectivo deste trabalho fazer uma revisão da literatura sobre as chamadas cores básicas ou
primárias e as secundárias à luz dos modelos conhecidos como “RGB” (“red, green, blue”), baseado na
teoria das cores de Leonardo da Vinci, e o "CMYK”. Salienta-se apenas que as primeiras, como o nome
indica, e ao contrário das segundas, são as que não se obtêm a partir da combinação de outras.
4 Para maior facilidade de identificação, os exemplos extraídos do corpus são encabeçados pelo autor
(quando é conhecido), título e datação do documento. Todos os trechos são transcritos segundo a forma
(gráfica) que apresentam na base textual. Onde foi necessário, apenas foram introduzidos parênteses
rectos para assinalar o corte feito no início, no meio ou no final de um exemplo. Em cada trecho, o nome
de cor ou a expressão cromática foi destacado em negrito.
1180
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
5 Note-se que este exemplo serve igualmente para atestar a ocorrência do nome de cor “branca”.
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
6 Estre trecho serve também e ilustração do registo de outros nomes de cor: verde, amarelo.
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
7 “Jalde” é também um nome de cor. Parece provir de “jalne” (do fr. ant. “jalne”, i.e. 'da cor do ouro,
amarelo' que, por sua vez, provém do lat. galbìnus, a, um 'de verde-pálido ou amarelo '). Em Houaiss
(2001), tem 1608 como datação, sendo ali definido como “a cor do amarelo-ouro ou tirante a ela”.
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
8 Provém do lat. RUSSEU - ʽvermelho escuroʼ. De acordo com Houaiss (2001), é diacronismo que
nomeava o que tinha uma “cor avermelhada”.
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
9 Em Houaiss (2001), tem datação de 1651. Porém, no nosso corpus a forma feminina “amarelada” ocorre
em 1625, ao passo que a masculina tem registo em documento de 1653.
10 No corpus encontra-se "laranjado" em documento de Fernão Cardim, de 1585: "Tangará. Este he do
tamanho de um pardal: todo preto, a cabeça tem de hum amarello laranjado muito fino [...]". De acordo
com Houaiss (2001), "alaranjado" estará atestado desde 1516.
11 Nem esta unidade nem a seguinte – “acastanhado” – se regista no Banco de Textos. Em Houaiss,
acastanhado recebe 1783 como 1ª datação.
12 Em Houaiss (2001), esta forma tem 1851 como 1ª datação.
13 Esta forma está registada no Corpus do DHPB em texto do Pe. João Daniel, de 1757, conforme mostra
o exemplo: "Tem a dureza, fortidão, e solidez do pinima; e resiste a todo o temporal por séculos, e sempre
muito inteiro: é apretado com pintura vermelha tirante a roxa por modo de ondas".
1185
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
DHPB, “azul” tem 239 ocorrências, nas quais se detectam combinações que servem
para designar várias gradações de azul.
Vejam-se a seguir exemplos de “azul”, “azul claro”, “azul muito vivo”:
PADRE FERNÃO CARDIM. III - INFORMAÇÃO DA MISSÃO DO...
1587
Os mordomos são os principaes e mais virtuosos; têm sua mesa na igreja com
seu panno, e elles trazem suas opas de baeta ou outro panno vermelho,
branco e azul; servem de visitar os enfermos, ajudar a enterrar os mortos, e ás
missas […].
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
cor de pecotilho pois se gastão bem 6 duzias de meias de seda p.a molheres
encarnadas e azuis e cor de ouro 100 pares de sapatos […].
Fica igualmente registada a cor “azul anilada” (“anilada, der. “anil”),
GABRIEL SOARES DE... . DA AGRICULTURA DA BAHIA -
(PARTE... 1587
[…].ha outras batatas que são roxas ao longo da casca e brancas por dentro;
ha outras que são todas encarnadas e mui gostosas; ha outras que são côr azul
anilada muito fina, as quaes tingem as mãos; ha outras verdoengas muito
doces e saborosas; e ha outra casta, de côr almecegada, mui saborosas[…].
Em texto de 1789, verificou-se igualmente a ocorrência da combinação “azul
celeste”:
HENRIQUE JOÃO […]. MUHURAIDA OU O TRIUMFO DA FÉ
[…].
[…] De azul celeste veste os firmamentos; O Zefiro mais brando, sendo o
Vento. Effeitos naturaes, ja são portentos; Não ha na Omnipotencia, o
violento. Chega aos Povos, navéga pelos Rios Muhura feliz, sem susto, e sem
desvios […].
Ficam igualmente atestados os derivados “azulado, a”, consoante mostram os
exemplos abaixo, sendo que o masculino ocorre em texto de 1726 e a forma feminina
tem registo em documento de 1587, se bem que Houaiss aponte 1500 como primeira
datação:
FRAN.co DA CRUZ. CARTAS REMETIDAS PARA LISBOA-MINAS
[…] 1726
[…] mais de huma duzia de vezes mo adevertice o menistro pois hera
vergonha ver me o meu de pano azulado por quanto todas as costas da
cazaqua o tinha esboracado das negregadas baratas, q. iço he sem numero, e
tão desaventuradas q. couza de pano não escapa, esta he a cauza […].
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
14
(39) Cor de "pecotilho"
14 Deve sr uma variante de "picotilho", isto é, um pano feito de pelo de cabra,"menos grosso que o
picote". De acordo com Houaiss (2001), "picotilho” está atestado desde 1789, no Dicionário de Morais
Silva.
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
15 Em Houaiss (2001), “sinopla”, variante de “sinople” com atestação desde 1615, é a denominação de
uma “cor vermelha, ocre”. Houaiss regista, ainda, preto e verde como equivalentes de “sinople”. No
domínio da heráldica é, segundo o mesmo Dicionário a “cor negra, o negro [Na heráldica francesa, a cor
verde.]”. “Sinople”, por sua vez, foi registada em 1720 por Rafael Bluteau.
1191
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
NOTA FINAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Biderman, Maria Teresa; Nascimento, Maria Fernanda B.; Pereira. L. 2007. Uso das
cores no português brasileiro e no português europeu. In: Aparecida Negri Isquierdo;
Alves, Ieda Maria. (Eds.). As ciências do léxico: Lexicologia, lexicografia,
terminologia, vol. III. Campo Grande/São Paulo: UFMS/Humanitas, p. 105-124.
Cunha, Antônio Geraldo da. 1994. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua
Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
Jones, W. J. 2013. German colour terms: A study in their historical. Evolution from
earliest times to the present. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins.
Mollard-Desfour, A. 2008. Les mots de couleur: des passages entre langues et cultures.
Synergies Italie, n° 4, p. 23-32.
Murakawa, Clotilde; Gonçalves, Maria Filomena. 2015. The corpus of the Dicionário
Histórico do Português do Brasil (DHPB). In: Silvestre, João Paulo; Villalva, Alina
(Eds.). Planning non existente dictionaries. Lisboa/Aveiro: Centro de Linguística da
Universidade de Lisboa/Universidade de Aveiro, p. 19-41.
Silvestre, João Paulo; Villalva, Alina; Pacheco, Paulo. 2014. The Spectrum of red.
Colour names in Portuguese. In: Proceedings of the 50th Anniversary Convention of the
Society for the Study of Artificial Intelligence and the Simulation of Behaviour. London,
1-4 April 2014. Disponível em: http://doc.gold.ac.uk/aisb50/AISB50-S20/aisb50-S20-
silvestre-paper.pdf. Acesso em 20.08.2015.
Zavaglia, Cláudia. 2006. Dicionário e Cores. Alfa. São Paulo, 50 (2), p. 25-41.
1193
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V SIMELP - Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 52 - Estudos históricos do léxico e lexicografia do português, 1195-1220
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1195
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O presente estudo visa apresentar um projeto dicionarístico para elaboração de um
glossário do linguajar regional popular no romance Memorial de Maria Moura (1992),
de Rachel de Queiroz que compõe a tese defendida na Universidade Federal do Ceará-
Brasil, em outubro de 2013, intitulada A linguagem regional-popular nos romances de
Rachel de Queiroz. O objetivo maior é descrever o léxico regional característico do
Nordeste brasileiro, de modo especial, o do Ceará, terra natal da escritora. Trata-se de
uma pesquisa de natureza sócio e etnolinguística, a qual investiga a variação da
linguagem em seu contexto social, mais precisamente, no que diz respeito ao processo
linguístico e à cultura regional nordestina, anotados no glossário a que nos propusemos
realizar. Este estudo desenvolveu-se à luz dos princípios teóricos da Lexicologia e da
Lexicografia, que foram utilizados conforme Aragão (2006), Krieger et al (2006),
Biderman (2001), Isquerdo (1998) e Barbosa (1991), para a elaboração de um glossário
dos itens lexicais que constituem o regionalismo presente em Memorial de Maria
Moura (1992). Ao término da nossa proposta de glossário, confirmamos, que o léxico
dos diferentes personagens do romance marca, além da variação regional, outros tipos
de variação, como as sociais e as culturais. As variações linguísticas na linguagem
regional-popular são marcadamente léxico-semânticas; e as variáveis regionais e
socioculturais empregadas pelos personagens do romance em estudo advêm da relação
entre linguagem, sociedade e cultura.
16 SOUZA, Carlos Alberto de. UFC, Curso de Letras, Departamento de Letras Estrangeiras, Av. da
Universidade, 2683 – 60.120 – Fortaleza - CE.-BR. carlosalsouza@hotmail.com
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
17 Souza, Carlos Alberto de. 2013. A Linguagem regional-popular nos romances de Rachel de Queiroz,
p. 20. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.
18 Ibidem, p. 21.
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Para a estruturação do Glossário, que terá como público alvo não somente
interessados em estudos do léxico de uma maneira geral, mas também especialistas e
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AMONTAR v.
Fugir (o animal doméstico) para o mato e tornar-se bravio. (AURÉLIO)
“Mas veio dois anos de seca, o gado foi morrendo, o pouco que escapou amontou pela
serra...” (M.M.M., p.240/41)
ILDAE no (AURÉLIO), no (HOUAISS), no (SERAINE) e no (GIRÃO). ILDAD no
(CABRAL). ILND no (MICHAELIS).
APRAGATA s.f.
V.L. albarca alparca, alparcata, alpargata, alpergata, apragata, paragata, pracata,
pargata, pragata, (AURÉLIO)
Sandália sem salto que se prende ao pé por tiras de couro ou de pano. (AURÉLIO)
“Lavei o resto do corpo, sai do banho me sentindo outro. Lavei até as apragtas. Lavei
muito bem a cabeça: apalpei a coroa.” (M.M.M., p.252)
N.L. 1. (HOUAISS, 2009) aponta como sendo um regionalismo do Brasil de uso
informal. 2. (CABRAL, 1982, p.37) chama atenção para a denominação LEPE-LEPE. –
Som produzido pela alpercata, na planta do pé, quando a pessoa anda. ILDAE nos três
Dicionários padrão de língua, no (CABRAL) e no (GIRÃO). ILND no (SERAINE).
ARÇÃO s.m.
V.L. ação (SERAINE, 1991, p.34)
Armação da sela de montaria, de madeira revestida de couro, formada por uma arcada
na dianteira e outra na traseira. (HOUAISS)
“O visitante foi até junto da burra, tirou um saco que tinha pendurado do arção da sela,
do saco puxou com cuidado um registro de santo, num quadro.” (M.M.M., p.63)
N.L. (SERAINE, 1991, p.34) afirma ser termo popular de uso corrente. Linguagem
rural. ILDAE em todos os Dicionários consultados.
AREAR v.
V.F. ariar (CABRAL, 1982, p.56)
Escovar (os dentes). (AURÉLIO)
“Como é que eu ia poder acordar com o sol, lavar o rosto, arear os dentes...” (M.M.M.,
p.135).
ILDAE no (AURÉLIO), no (HOUAISS) e no (CABRAL). ILDAC no (MICHAELIS).
ILND no (GIRÃO) e no (SERAINE).
ARRANCHAR-SE v.
Hospedar-se ou estabelecer-se provisoriamente. (AURÉLIO)
“Tinha ficado vaga a casa de uma viúva que se mudou pra longe, depois da morte do
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Espécie de caldo feito com farinha de mandioca, rapadura e água. (GIRÃO, 2000,
p.144)
“Mas João Rufo tratou logo de fazer um chibé com rapadura raspada, farinha e água...”
(M.M.M., p.143)
N.L. 1.Tanto (HOUAISS) quanto (AURÉLIO) apresentam jacuba como sinônimo e
afirmam ser um regionalismo do Norte e Nordeste. 2. (AURÉLIO) ainda apresenta
como sinônimo no Nordeste sebereba.
ILDAE no (AURÉLIO), no (HOUAISS), no (CABRAL), no (GIRÃO) e no
(SERAINE). ILND no (MICHAELIS).
DAR DE MARCHA exp.
Pôr-se em marcha; seguir caminho; andar. (SERAINE, 1991, p.126)
“Os outros riram. Roque meteu o relho na burra, nós demos de marcha aos cavalos.”
(M.M.M., p. 260)
N.L. Termo não encontrado em nenhum dos Dicionários padrão de língua. Acredita-se
ser termo do linguajar regional popular.
ILDAE no (GIRÃO) e no (SERAINE). ILND nos Dicionários padrão de língua e no
(CABRAL).
DE BORCO exp.
De barriga para baixo. (AURÉLIO)
“Dei boa noite, entrei no meu quarto, bati a porta. Aí me atirei de borco na cama; e
chorava com tanta fúria que até cheguei a rasgar o lençol com os dentes.” (M.M.M.,
p.404)
ILDAE nos três Dicionários padrão de língua e no (CABRAL). ILND no (GIRÃO) e no
(SERAINE).
DE COMER s.m.
V.L. de-comer (HOUAISS); decomer (SERAINE, 1991, p.126); dicumê, de-cumê,
cume (CABRAL, 1982, p.274)
Coisa de comer; alimento, comida. (AURÉLIO)
“Eles ficaram ruminando aquela novidade. Depois a Rana falou: - Nas casas não tem de
comer pros outros. Só dá pra gente.” (M.M.M., p.276) “
N.L. (HOUAISS) apresenta como sendo regionalismo de uso informal. (SERAINE,
1991, p.126) afirma ser de uso plebeu rural.
ILDAE no (AURÉLIO), no (HOUAISS), no (CABRAL), no (GIRÃO) e no
(SERAINE). ILND no (MICHAELIS).
1205
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
1206
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
DESEMPENADO adj.
Desenvolto, desembaraçado. Elegante. (CABRAL, 1982, p.288)
“O Irineu era o melhorzinho, o mais desempenado; mas tinha uns olhos vermelhos,
como
se sofresse do mal da sarapiranga.” (M.M.M., p.35)
ILDAE nos três Dicionários padrão de língua e no (CABRAL). ILND no (GIRÃO) e no
(SERAINE).
DESTRIORADO adj.
V.L. deteriorado (SOUZA, 2013)
Danificado, estragado. (Adaptado do AURÉLIO)
“E esta calça eu só visto quando vou ver gente. Como hoje, com vocemecê. O pano está
destriorado, mas ainda encobre o corpo...” (M.M.M., p.242)
N.L. Item lexical não encontrado em nenhum dos Dicionários consultados. É, portanto,
um neologismo.
ILND em nenhum dos Dicionários consultados, seja naqueles padrão de língua, seja
naqueles de regionalismos.
DONA s.f.
Referência a determinada pessoa, cujo nome se desconhece. (CABRAL, 1982, p.309)
“E então apareceu a Dona. Calçava botas de cano curto, trajava calças de homem,
camisa de xadrez de manga arregaçada.” (M.M.M., p.10)
ILDAE em todos os Dicionários consultados, seja naqueles padrão de língua, seja
naqueles de regionalismos.
DOR DE VEADO exp.
Dor forte que se manifesta do lado direito do abdome, resultante de uma árdua corrida.
(AURÉLIO)
“Quando o cavalo chouteava forte, me atacava aquela dor que chamam dor de veado, a
que dá uma pontada forte nos vazios.” (M.M.M., p.87)
ILDAE no (AURÉLIO), no (MICHAELIS) e no (CABRAL). ILND no (HOUAISS), no
(GIRÃO) e no (SERAINE).
EMBORNAL s.m.
V.L. borná, bornó, bornal, bornoz (CABRAL, 1982, p.126)
Sacola de couro, de pano ou de folha de carnaubeira, trançada, que se porta a tiracolo.
Destina-se à condução de utensílios, alimento, munição ou petrechos de caça.
(CABRAL, 1982, p.126)
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
“As moedas de cobre entreguei a João Rufo no saquinho onde estavam e que ele enfiou
no embornal.” (M.M.M., p.63)
ILDAE nos três Dicionários padrão de língua, no (CABRAL) e no (GIRÃO). ILND
apenas no (SERAINE).
ENCABULAMENTO s.m.
Ato ou efeito de encabular (-se). (AURÉLIO)
“Eu não morria de encabulamento porque Valentim estava ao meu lado, com o braço
passado no meu ombro.” (M.M.M., p.216)
N.L. 1. Acredita-se ser um termo pertencente ao linguajar popular. 2. (HOUAISS)
Apresenta encabulação como sinônimo.
ILDAE no (AURÉLIO) e no (HOUAISS). ILND no (MICHAELIS) e nos três
Dicionários de regionalismos.
ENXERIR-SE v.
V.L. enxirir-se ou inxirir-se (CABRAL, 1982, p.348)
Procurar namorar; arrastar a asa a alguém. (AURÉLIO)
“Os meus rapazes foram logo se enxerindo para o lado das índias.” (M.M.M., p.150)
N.L. 1. (HOUAISS) afirma ser um regionalismo do Norte e do Nordeste do Brasil. 2.
(CABRAL, 1982, p.348) apresenta a acepção Tentar conquista amorosa com
impertinência.
ILDAE nos três Dicionários padrão de língua e no (CABRAL). ILND no (GIRÃO) e no
(SERAINE).
ESBOFAR v.
Causar grande fadiga a, cansar. (Adaptado do AURÉLIO)
“– Capina você, seu preguiçoso. Fica o dia todo esparramado dormindo, e a mulher e as
crianças que se esbofem! A mulher do preguiçoso exibiu o primeiro sorriso da noite: -
Lá isso é ...” (M.M.M., p. 279)
“Nós não puxamos demais, para não esbofar os cavalos.” (M.M.M., p.431)
ILDAE nos três Dicionários padrão de língua. ILND nos três Dicionários de
regionalismo.
ESCOLADO adj.
V.L. escolista (CABRAL, 1982, p.354)
Esperto, vivo, sabido, ladino. (AURÉLIO)
“A gente ia aprendendo. O Roque era escolado e nós um bando de aprendiz chucro.”
(M.M.M., p.260)
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“...João Rufo me dizia que o pobre do Beato estava tão fraco que até um pé-de-vento era
capaz de dar com ele em terra.” (M.M.M., p.369)
N.L.:1. Em Cabral (1982, p.750), encontramos esta expressão com o sentido de
‘ventania forte e súbita’. 2. Em Girão (2000, p.290), encontramos o sentido de ‘ventania
violenta’.
ILDAE no (AURÉLIO), no (CABRAL) e no (GIRÃO). ILND no (HOUAISS), no
(MICHAELIS) e no (SERAINE).
PISAR DE CAÇULA exp.
V.L. pilar (AURÉLIO)
Ato ou efeito de duas pessoas pisarem no pilão, ao mesmo tempo, de maneira alternada.
(SOUZA, 2013)
“Pilador não era difícil, todo mundo ali era acostumado a pisar milho de caçula; duas
pessoas, cada uma com a sua mão de pilão, batendo de feição: quando uma ia com a
mão pro alto a outra descia.” (M.M.M., p. 329)
ILDAE nos três Dicionários padrão de língua. ILND nos três Dicionários de
regionalismos.
PLANTAR A LÍNGUA exp.
Falar mal de alguém, difamar. (SOUZA, 2013)
“Pouco tempo passado que Pai morreu, quando Mãe começou a amizade com o Liberato
e o povo plantou-lhe a língua, eu só sentia vergonha e raiva...” (M.M.M., p.121)
N.L. Expressão não encontrada em nenhum dos Dicionários consultados. É, portanto,
um neologismo.
ILND em nenhum dos Dicionários consultados, seja naqueles padrão de língua, seja
naqueles de regionalismos.
POLVARIMs.m.
Utensílio onde se leva pólvora para a caça. (AURÉLIO)
“Os dois vinham cada um com o seu polvarim de chifre, chumbo grosso e fino, num
saco;...” (M.M.M., p.41)
N.L.: Polvarim é variação fonética de polvarinho ou povarinho ambas as forma
encontradas em Cabral (1982, p.613) significando polvorinho. No Aurélio, no Houaiss
e no Michaelis Eletrônicos encontramos a forma polvorinho.
ILDAE nos três Dicionários padrão de língua e no (CABRAL). ILND no (GIRÃO) e no
(SERAINE).
PRA MOLHAR O CUSPE exp.
1213
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
“Está estudando. Diz que vai ser doutor médico, surjão.” (M.M.M., p.315)
N.L. Trata-se de um neologismo por não estar registrado em nenhuma das obras
lexicográficas da Língua Portuguesa tomadas como referência nesta pesquisa.
ILND em nenhum dos Dicionários consultados, seja naqueles padrão de língua, seja
naqueles de regionalismos.
TACO s.m.
Bocado, pedaço, tico. (AURÉLIO)
“Derreteram na caneca uma banda de rapadura que Zé Soldado tinha trazido no bisaco
‘pra roer um taco na hora da sentinela.’” (M.M.M., p.81)
N.L. (HOUAISS) afirma ser um regionalismo do Nordeste e de uso informal.
ILDAE nos três Dicionários padrão de língua, no (CABRAL) e no (GIRÃO). ILND no
(SERAINE).
TER CABELOS NAS VENTAS exp.
V.L. ter cabelinho na venta (SILVEIRA, 2010, p.822)
Ter muito gênio; ser de mau gênio, irritável, atrevido; ter mau feitio; ser ríspido.
(SILVEIRA, 2010, p.822)
“A Moura nos enxotou a nós, mas com a autoridade ia ser diferente. Com autoridade,
cabelo na venta não vale.” (M.M.M., p.53)
“Aquela bichinha é de cabelo na venta, bem capaz de botar eles pra correr.” (M.M.M.,
p.46)
ILDAE somente no (SILVEIRA, 2010). ILND em nenhum dos Dicionários padrão de
língua, bem como naqueles de regionalismos.
TER TENÊNCIA exp.
Ter prudência; acautelar-se. (SERAINE, 1991, p.366)
“Eu e ela não se passava de uns meninos, mas já se tinha tenência.” (M.M.M., p.241)
Ver tomar tenência
N.L. 1. Forma alterada de ‘tomar tenência’. (SOUZA, 2013) 2. Termo não encontrado
nos Dicionários padrão de língua. Acredita-se pertencer ao linguajar regional popular.
ILDAE nos três Dicionários de regionalismos. ILND nos três Dicionários padrão de
língua.
TERNANTONTE adv.
V.L. trasantonte, trasanteontem (CABRAL, 1982, p.710)
“...dizia ele que ‘ternantonte’ lhe apareceu um homem na estrada, quando ele saía do
pátio, levar os cavalos pro cercado.” (M.M.M., p.370)
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
“– Ah, pode crer, tudo vai dar certo, Duarte. Nesta casa, mão-de-obra de mulher anda
muito vasqueira.” (M.M.M., p.301)
ILDAE no (AURÉLIO), no (HOUAISS) e nos três Dicionários de regionalismos. ILND
no (MICHAELIS).
VAZIO s.m.
A virilha dos animais de maior porte ou, por detração, do homem. (CABRAL,1982,
p.746)
“Basta dizer, por exemplo, que estranhou tanto a cela de andilha, pra montar de lado,
que vivia só querendo cair, se queixando de uma dor no vazio.” (M.M.M.,p.142)
N.L.: Cabral (1982, p.746) apresenta a variante vazilho. Seraine (1991, p.390) dá como
definição: flanco e circunvizinhança até a região do hipocôndrio. A firma ser uma
linguagem plebéia e rural. Pl. ilhargas (doanimal). Uso popular corrente de acento
plebeu.
ILDAE em todos os Dicionários consultados, seja naqueles padrão de língua, seja
naqueles de regionalismos.
VERSIDADE s.f.
V.L. diversidade (HOUAISS)
“Soldado, em campanha, só anda com comboio atrás, carregando toda versidadede
abastecimento.” (M.M.M., p.87)
N.L. 1. (HOUAISS) afirma ser um regionalismo do Nordeste. 2. (SERAINE, 1991,
p.394) aponta como sendo de uso plebeu e rural.
ILDAE no (AURÉLIO), no (HOUAISS) e nos três Dicionários de regionalismos. ILND
no (MICHAELIS).
VIVER DA MÃO PRA BOCA exp.
Ter de trabalhar de manhã para comer de tarde. (SILVEIRA, 2010, p.923)
“- Aqui não tem vizinhança; Não tem onde se comprar nada. A gente vive da mão pra
boca.” (M.M.M., p.117)
N.L. Item lexical registrado somente em (SILVEIRA, 2010, p.923). Acredita-se ser de
muito pouco uso. (SOUZA, 2013)
ILND nos três Dicionários padrão de língua, bem como naqueles de regionalismos.
ZAROLHO adj.
V.L.zanoio (ou zanolho) (CABRAL, 1982, p.766)
Diz-se de pastagem quando começa a amadurecer. (Adaptado de HOUAISS)
1217
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
“Saí do caminho, puxando o Veneno pela rédea, meti-me pelo mato já zarolho, àquela
altura de julho.” (M.M.M., p.7)
N.L.: 1 – Em Seraine (1991, p.404), há a definição de zarolho como “o mato que na
quadra começa a ressentir-se dos ardores do sol. Uso sertanejo, rural.
ILDAE no (AURÉLIO), no (HOUAISS) e nos três Dicionários de regionalismos.
ILDAC no (MICHAELIS).
Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aragão, M. S. S. de. 2006. Motivações significativas de itens lexicais da linguagem
regional-popular nos atlas lingüísticos regionais brasileiros. Disponível em
19 Aqueles Dicionários não-padrão de língua, obras lexicográficas que não se enquadram nem como
Dicionários padrão de língua nem como Dicionários de regionalismos, quais sejam: Locuções
tradicionais no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo; Dicionário de formas e construções opcionais da
língua portuguesa, de José Alves Fernandes; Adagiário brasileiro, de Leonardo Mota; Dicionário de
Provérbios: francês, português, inglês, de Roberto Cortes de Lacerda et al.; Dicionário de expressões
populares da língua portuguesa: riquesa idiomática das frases verbais: uma hiperoficina de gírias e
outros modismos luso-brasileiros, de João Gomes da Siveira; Tesouro da fraseologia brasileira, de
Antenor Nascentes.
1218
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
Barros, Lidia Almeida. 2004. Curso básico de terminologia. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo.
Biderman, Maria Tereza Camargo. 1981. A estrutura mental do léxico. In: Estudos de
Filologia e Linguística. Homenagem a Isaac Nicolau Salum, São Paulo:
T.A.Queiroz/Edusp.
Krieger, Maria da Graça et al. 2006. Glossário de gestão ambiental. São Paulo: Disal.
Proença Filho, Domício. 1986. A linguagem literária. São Paulo: Editora Ática.
Dicionários
Cabral, Tomé. 1982. Novo dicionário de termos e expressões populares. Fortaleza:
Edições UFC.
1219
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
Cascudo, Luís da Câmara. 1977. Locuções tradicionais no Brasil. 2. ed. rev. e aum. Rio
de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais,
Fundação Nacional de Arte – FUNARTE, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro,
Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Fundação José Augusto, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. 1999. Dicionário Eletrônico Aurélio Século XXI
versão 3.0. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira e Lexikon Informática.
Lacerda, Roberto Cortes de; Lacerda, Helena da Rosa Cortes de; Abreu, Estela dos
Santos. 2000. Dicionário de Provérbios: francês, português, inglês. Lisboa: Contexto
Editora, Ltda.
Michaelis. 1998. Dicionário Eletrônico versão 5.0. Rio de Janeiro: DTS Software Ltda.
Mota, Leonardo. 1987. Adagiário brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo.
1220
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do V SIMELP - Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 52 - Estudos históricos do léxico e lexicografia do português, 1221-1237
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1221
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O Dicionário Histórico do Português do Brasil: séculos XVI, XVII e XVIII (DHPB) é
uma importante obra da Lexicografia brasileira, ainda inédita, idealizada e iniciada pela
Profa. Dra. Maria Tereza Camargo Biderman e concluída sob a coordenação da Profa.
Dra. Clotilde de Almeida de Azevedo Murakawa. Essa obra reúne um conjunto de dez
mil verbetes elaborados a partir de um corpus com textos produzidos no Brasil e sobre o
Brasil durante os séculos em questão. Dentre as inúmeras informações presentes em
seus verbetes, essa obra registra também o que se denominou “expressões
sintagmáticas”. Entendemos, em nossa pesquisa, essas expressões no âmbito da
Fraseologia. A Fraseologia é “um dos ramos das ciências da palavra que tem por objeto
de estudo as “‘unidades lexicais’ constituídas de dois ou mais vocábulos ou de
sintagmas ou de frases [...]” (BARBOSA, 2012, p. 491). Assim, essa pesquisa tem por
objetivo analisar as unidades ditas sintagmáticas arroladas no DHPB. Por questões
metodológicas, limitar-nos-emos às denominadas “expressões sintagmáticas” formadas
a partir de um verbo (dar as costas, falar aos cotovelos, fazer das tripas coração etc.) e
que possuam algum de seus significados usados atualmente no Português do Brasil.
Introdução
En un principio surgió la palabra;
pero más tarde, surgió otra; y,
algo más tarde, ambas se combinaron.
(MOLINA GARCÍA, 2006:1)
1221
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
É, pois, sobre essa “combinação das palavras” à qual faz referência Molina
Garcia (2006) que trata o presente texto. Nosso objetivo é descrever e analisar o registro
dessas “combinações” em um dicionário histórico. Entendemos, no presente artigo,
“combinações” no sentido primeiro da palavra, qual seja, o de ação ou resultado de
combinar ou combinar-se, agrupar. No caso de nosso objeto de análise, a palavra, duas
ou mais que se combinam e formam expressões idiomáticas, refrães, adágios, ditados
populares, provérbios etc., isto é, fraseologismos.
A obra analisada é o Dicionário Histórico do Português do Brasil – Séculos
XVI, XVII e XVIII22 (doravante DHPB). Este Dicionário é uma importante obra da
Lexicografia brasileira, ainda inédita, idealizada e iniciada pela Profa. Dra. Maria
Tereza Camargo Biderman e concluída sob a coordenação da Profa. Dra. Clotilde de
Almeida Azevedo Murakawa. Essa obra reúne um conjunto de dez mil verbetes
elaborados a partir de um corpus23 com textos produzidos no Brasil e sobre o Brasil
durante os séculos em questão. O primeiro documento considerado foi a Carta de Pero
Vaz de Caminha sobre o “descobrimento do Brasil”, escrita em 1º de maio de 1500 e os
últimos documentos foram os de 1808, data da chegada da Família Real portuguesa ao
Brasil.
Dentre as inúmeras e relevantes informações presentes em sua macro e
microestrutura, o DHPB registra em seus verbetes também o que se denominou
“expressões sintagmáticas”, embora este não fosse o objetivo primeiro do projeto, de
acordo com Murakawa (2015:172).
Conforme a busca ao banco de dados foi progredindo, percebeu-se a
importância e a necessidade de se registrar expressões sintagmáticas e
locuções. Num primeiro momento, tal informação não tinha sido levada em
conta, mas ao longo da pesquisa, verificou-se que o registro dos
fraseologismos era um resgate que se fazia de formas linguísticas já
desusadas, de outras desconhecidas e de tantas outras tão usuais ainda, que
fazem pensar que são expressões recentes mas que na verdade já
estavam documentadas nos séculos XVI, XVII e XVIII. (grifo nosso).
1222
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
1. Fraseologia e fraseologismos
1223
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
[...] são unidades léxicas formadas por mais de duas palavras gráficas em
seu nível inferior, cujo limite superior se situa no nível da oração
composta. Ditas unidades se caracterizam por sua alta frequência de uso, e
de co-ocorrência de seus elementos integrantes; por sua institucionalização,
entendida em termos de fixação e especialização semântica; por sua
idiomaticidade e variação potenciais; assim como pelo grau no qual se dão
todos esses aspectos nos diferentes tipos.25 (COrpas Pastor, 1996:20. Grifos
nossos).
24 El término fraseologia, al igual que los fenómenos léxicos individuales a los que denomina en general,
no está libre de controversia. Los lingüistas no se ponen de acuerdo sobre cuál deba ser el término general
que abarque tales fenómenos, y mucho menos aún, sobre la clasificación que se deba emplear en su
análisis. (Corpas Pastor, 1996:20).
25 [...] son unidades léxicas formadas por más de dos palabras gráficas en su límite inferior, cuyo límite
superior se sitúa en el nivel de la oración compuesta. Dichas unidades se caracterizan por su alta
frecuencia de uso, y de coaparición de sus elementos integrantes; por su institucionalización, entendida en
términos de fijación y especialización semántica; por su idiomaticidad y variación potenciales; así como
por el grado en el cual se dan todos esos aspectos en los distintos tipos. (Corpas Pastor, 1996:20).
26 Sobre esse tema, ver, por exemplo: Ortiz Álvarez; Huelva Unternbäumen (2011), Xatara; Ortiz
Álvarez (2012).
1224
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
2. Metodologia
1225
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
(DHPB)
1226
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
em: <http://www.futebolecialtda.com.br/2012/06/uma-opiniao-sincera-sobre-
rio20.html>. Acesso em: 20/12/2015).
Entretanto, se eliminamos a forma plural, a ocorrência da expressão ‘bater no
peito’ apresenta frequência bastante significativa no uso do PB atual como podemos
observar nos contextos abaixo relativos aos discursos do futebol e da política. No
exemplo 2 é evidente o significado de ‘vangloriar-se’ registrado pelo DHPB. Nos
exemplos 3 e 4, no entanto, os significados não estão relacionados com os três
registrados no DHPB. Parece-nos que estes exemplos possuem o significado de ‘chamar
para si’ certa responsabilidade. Ambos os contextos estão relacionados ao futebol e
possuem na sequência o verbo ‘assumir’, o que pode corroborar a hipótese de que, além
de manter o significado de ‘vangloriar-se’ cujo uso foi registrado no DHPB no século
XVI, esta expressão adquiriu no PB atual outro significado, o de ‘chamar para
si/assumir a responsabilidade sobre determinado fato ou ação’.
2. “Vocês terão o orgulho de bater no peito e dizer: Augustão, este me
representa”. (Entrevista com o pré-candidato a prefeito Carlos Augusto
(Augustão). 03/11/2015. Disponível em:
<http://diarioilheus.com.br/blog/ilheus/voces-terao-o-orgulho-de-bater-no-
peito-e-dizer-augustao-este-me-representa/>. Acesso em: 15/11/2015).
1227
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
uma coisa por outra de modo fraudulento” e foi usada, por exemplo, no século XVIII
por Alvarez de Araujo em cartas escritas na Bahia e enviadas a Lisboa.
No segundo caso – cozinhar gato por lebre – possui o significado não de
enganar alguém, mas de enganar a si mesmo. O DHPB registra este uso por Pe. João
Daniel também no século XVIII.
6. Comprar gato por lebre é algo que é muito mais comum do que se
imagina. Pode-se comprar gato por lebre em qualquer área da vida. Dos
negócios, à política, ao casamento, aos livros e notícias que se lê. É
decorrente de uma interpretação e avaliação mal feitas de uma situação, entre
outras coisas, em função da ilusão de benefícios inexistentes ou da não
identificação de custos ocultos. 09/06/2015. Disponível em:
<http://www.administradores.com.br/artigos/negocios/cuidado-para-nao-
comprar-gato-por-lebre-pois-voce-pode-se-dar-muito-mal/87871/>. Acesso
em: 15/12/2012.
1228
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
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Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
Atualmente, embora não seja usual atualmente no PB, é possível ainda encontrar
usos com o mesmo significado, o de apresentar, sob aspecto favorável, algo
desagradável, como no contexto que transcrevemos abaixo em que a economista Miriam
Leitão usa a expressão dourar a pílula em sua análise sobre o escândalo da Petrobrás.
10. É preferível a verdade, mesmo dura, a dourar a pílula. Se a Petrobras
apresentasse um número pequeno para as perdas, o resultado não seria crível
para o mercado. O balanço da companhia foi aprovado sem ressalvas pela
auditoria independente, um ótimo sinal. Miriam Leitão. 23/04/2015.
Disponível em: <http://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/petrobras-
preferiu-verdade-dourar-pilula-565409.html>. Acesso em: 10/12/2015.
29 Não temos neste texto o objetivo de discorrer sobre as origens das expressões idiomáticas aqui
tratadas, porém, neste caso especificamente, parece-nos pertinente observar que essa expressão surge,
segundo algumas hipóteses, no final do primeiro milênio da era cristã quando o médico persa Rhazés,
teve a ideia de revestir remédios sólidos ou pílulas, para que fossem mais facilmente ingeridos. Dessa
forma, essa substância envolvia a pílula, tornando-a mais doce e fácil de engolir.
(http://www.significados.com.br/dourar-a-pilula/). Posteriormente, da ideia literal de embrulhar o remédio
para tornar mais fácil para engolir, surgiu a metáfora de tentar fazer algo ruim parecer aceitável.
1230
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
11. Ministro do TCU falou pelos cotovelos e fechou pacto com a velha
mídia. 05/10/2015. Disponível em: <http://www.esmaelmorais.com.br/
2015/10/ministro-do-tcu-falou-pelos-cotovelos-e-fechou-pacto-com-a-velha-
midia/>. Acesso em: 15/10/2015.
12. Sem poder usar a sua principal pauta-bomba resta a Cunha fazer das tripas
coração para não virar pauta-bomba e ir pelos ares ainda em 2015. 14/10/15.
Disponível em: <http://brasileiros.com.br/2015/10/dia-de-luto-no-leblon/>. Aceso
em: 10/12/2015.
1231
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
30 No banco de dados do DHPB há o registro desta expressão com o verbo ‘tratar’ – Trato com o
demônio – em textos do Pe. Vieira de 1605.
1232
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
referente a Moçambique. Ou seja, estes usos parecem ser mais comuns nas variantes
europeia e africana da língua portuguesa.
No PB atual, talvez pelo fato de o verbo ‘meter’ possuir certa carga semântica
relacionada ao contexto da sexualidade, não é usual na formação desta expressão. O
mais comum, pelos contextos que pudemos observar, é a formação com os verbos ‘pôr’
e ‘colocar’, com maior frequência em sites com domínio .br para a formação com o
verbo ‘colocar’.
14. Tem que colocar a mão na consciência. A gente pagou um mico aqui
hoje – desabafou Mattis na saída do gramado. Disponível em:
<http://globoesporte.globo.com/futebol/times/vitoria/noticia/2015/11/mattis-
classifica-derrota-como-mico-colocar-mao-na-consciencia.html>. Acesso em:
22/12/2015.
15. Salientou ainda, que muitos partidos que pregam a saída da presidente,
são os que se utilizam de espaços, no mesmo governo, se aproveitam, são os
vão em caravana para Brasília para conseguir suas reivindicações, e depois
vão até às rádios de suas regiões apresentar os avanços conquistados. "Estes
partidos deveriam colocar a mão na consciência”. Disponível em: <
http://www2.al.rs.gov.br/noticias/ExibeNoticia/tabid/5374/Default.aspx?IdM
ateria=301448>. Acesso em: 22/12/2015.
16. Não estou pedindo para você pôr a mão na consciência porque acho
que você já sabe das coisas, mas para pôr a mão na massa e mudar a
realidade a partir da consciência que já tem. Disponível em: <
http://revistatrip.uol.com.br/trip/diga-nao-as-drogas-do-alemao>. Acesso em:
22/12/2015.
Registramos, também, com poucas ocorrências, o uso com o verbo ‘botar’ –
botar a mão na consciência – e com o verbo elíptico - mão na consciência. Embora
não sejam frequentes esses usos, podem sinalizar para uma mudança nestas formações.
No corpus usado para a elaboração do DHPB as ocorrências são sempre com o verbo
‘meter’.
1233
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
1234
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
A modo de conclusão
1235
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
diferentes formas, mas também pudemos observar, em contextos muito recentes (2014,
2015) usos tais como se usavam nos séculos XVI, XVII e XVIII que comprovam, para
além da relevância do DHPB para a História do Brasil, de nossa língua e de nossa
cultura, o quão viva é a fraseologia de uma língua.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Barbosa, Maria Aparecida. 2012. Fraseologia e linguagens: a fraseologia na literatura e
no discurso publicitário. In. Isquerdo, A. N.; Seabra, M. C. T. C. de. (Orgs.). As
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Ortiz Álvarez, Maria Luisa; Huelva Unternbäumen, Enrique. (Orgs.). 2011. Uma
(Re)Visão da Teoria e da Pesquisa Fraseológicas. Campinas: Pontes Editora.
1236
Simpósio 52 – Estudos históricos do léxico e lexicografia do português
Ortiz Álvarez, Maria Luisa; Huelva Unternbäumen, Enrique. Apresentação. In: Ortiz
Álvarez, M. L.; Huelva Unternbäumen, E. (Orgs.). 2011. Uma (Re)Visão da Teoria e da
Pesquisa Fraseológicas. Campinas: Pontes Editora, p. 7-23.
1237
SIMPÓSIO 54
GLOBALIZAÇÃO LINGUÍSTICA, MOBILIDADE E
METAREFLEXIVIDADE
COORDENADORES
Inês Signorini
(Universidade Estadual de Campinas)
Marilda Cavalcanti
(Universidade Estadual de Campinas)
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 54 - Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade, 1241-1248
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1241
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Inês SIGNORINI1
RESUMO
Dividido em duas partes, o trabalho situa em primeiro lugar o campo dos estudos da
língua(gem) que, no Brasil, é designado genericamente por Linguística Aplicada e, em
segundo lugar, aponta duas principais contribuições desses estudos para o ensino do
português, tanto em nível nacional, quanto em nível transnacional. Chama a atenção
para o comprometimento de estudos transdisciplinares inscritos nesse campo com a
construção de um objeto de estudo não purificado e independente, autoconsistente, nos
termos da tradição analítica clássica, e para o foco nas realidades concretas e
“moventes”, ou seja, na mobilidade e na fluidez próprias dos usos da língua(gem) nas
práticas sociais. E em função desse comprometimento e desse foco, atribui aos estudos
aplicados o papel de trazer para os participantes das pesquisas sobre o ensino de
português, e também para os aprendizes de português de modo geral, alguns dos
elementos necessários para que melhor compreendam e possam participar de processos
de indexicalização escalar que os posicionem mais favoravelmente nos espaços-tempos
em que atuam.
1241
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
Mas apesar de ser um campo não unificado, a denominação genérica dada a esse
campo continua sendo a que foi criada nos anos 1940-50 nos Estados Unidos para
designar uma disciplina específica destinada à aplicação de teorias linguísticas ao
ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras. Desde então, a disciplina Linguística
Aplicada ao ensino de língua estrangeira e, posteriormente, ao ensino de línguas, com a
inclusão da língua materna, tem dado nome a esse campo no círculo mais restrito dos
estudos linguísticos (no sentido de estudos inscritos no campo da ciência Linguística).
Mas, paralelamente, sob essa mesma denominação genérica - “Linguística
Aplicada” - têm-se desenvolvido no Brasil estudos que sistematicamente atravessam a
fronteira disciplinar dos estudos aplicados em Linguística para, sobretudo a partir dos
anos 1990, atenderem a uma vocação outra, específica e diferenciada em relação à da
disciplina de origem. Ou seja, uma vocação específica e diferenciada em relação à da
disciplina originalmente voltada à aplicação de teorias linguísticas ao ensino de línguas.
De fato, desde os anos 1990, diferentes autores brasileiros têm caracterizado essa
vocação outra como eminentemente metareflexiva e crítica da tradição dita
“modernista” dos estudos linguísticos (teorias da gramática, do texto e do discurso), por
um lado, e, por outro lado, como comprometida com a construção de um objeto de
estudo espaço-temporalmente situado, isto é, não isolável de configurações espaço-
temporais específicas e dinâmicas, próprias da vida social ativa, no sentido de não
estagnada.
Nessa perspectiva, o campo aplicado tem se constituído no Brasil como um
campo de estudo dos processos, mais que dos produtos de entextualização/des-re-
contextualização dos recursos linguístico-discursivos na vida social. Vale dizer, como
um campo de estudo dos processos de produção de sentidos, de subjetividades e de
ações em que a língua(gem) é um elemento constitutivo, mas não isolável de outros
recursos, que também são constitutivos desses processos, como os imagéticos, os
gestuais e os proxêmicos, além dos sócio e psicocognitivos, sociointeracionais e
também materiais, como o tipo e natureza da mediação tecnológica, por exemplo. E
como as configurações espaço-temporais em que se dão tais processos não são
homogêneas e nem estáticas, os recursos linguístico-discursivos se articulam aos demais
de diferentes modos e segundo diferentes ordens e escalas de indexicalidade.
Sendo assim, variáveis como a heterogeneidade, a mobilidade, a fluidez e, por
conseguinte, a complexidade deixam de ser externas ou contextuais ao objeto
língua(gem) nesse campo de estudos, para serem constitutivas desse objeto. E esse me
1242
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
1243
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
Dito isso, volto à questão colocada para a mesa: que contribuições o campo
aplicado assim compreendido tem trazido para o ensino do português? Eu diria duas
principais contribuições interrelacionadas: uma visada ou inflexão metareflexiva e
crítica dada às políticas (oficiais e não oficiais) e aos objetos de ensino (o que está sendo
ensinado? em nome de quê?), por um lado; e, por outro lado, um compromisso politico
e ético com a questão da diversificação e valoração dos repertórios linguísticos
diversificados e heterogêneos que constituem a língua(gem) em uso.
1244
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
1245
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
pesquisa e dos aprendizes de língua. Não se coloca, pois, uma ordem indexical pré-
estabelecida, como a de taxonomias sociolinguísticas que associam marcas linguísticas
discretas a distinções contextuais ou regionais, por exemplo. Os participantes tanto
devem se dar conta da variedade dos repertórios individuais de comunicação, quanto
dos processos de (des)valorização desses repertórios em diferentes contextos e
estruturas de participação em redes sociointeracionais.
Um exemplo significativo é o da ressignificação do conceito de preconceito
linguístico quando o foco é posto na engenharia dos processos sociais de construção e
manutenção de ordens e escalas de indexicalização em práticas específicas e que têm a
participação dos envolvidos na pesquisa ou no ensino. Sem essa reflexão e esse
envolvimento, a questão do preconceito linguístico vai continuar sendo tratada como
fato pré-estabelecido e alheio às ações de pesquisadores, professores e aprendizes.
Considerando as duas contribuições mencionadas, eu acredito que os estudos
aplicados podem trazer para os participantes das pesquisas sobre o ensino de português,
e também para os aprendizes de português de modo geral, alguns dos elementos
necessários para que melhor compreendam e possam participar de processos de
indexicalização escalar que os posicionem mais favoravelmente nos espaços-tempos em
que atuam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Sociolinguistics 15.5 (2011), p. 707-720.
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García, Ofelia. 2009. Bilingual education in the 21st century: A global perspective.
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Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
Hine, Christine. 2008. "Virtual ethnography: Modes, varieties, affordances." The SAGE
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Rampton, Ben (1995). Crossing: Language and ethnicity among adolescents. London,
UK: Longman.
1247
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 54 - Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade, 1249-1264
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1249
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RESUMO
Embora nos últimos anos tenham-se ampliado as pesquisas e publicações que rompem
com a visão do Brasil como um país monolíngue, é fato inegável que, no contexto
escolar, ainda persiste fortemente esse mito, mesmo em contextos de fronteira em que a
‘superdiversidade’ (Vertovec, 2007; Blommaert; Rampton, 2011) salta aos olhos. A
Linguística Aplicada, em sua vertente ‘indisciplinar’ e transcultural (Moita Lopes, 2006,
2013; Cavalcanti, 2013; Signorini, 2013, entre outros), no âmbito das novas
epistemologias que propiciem a apreensão de fenômenos ou eventos compartilhados em
que todos são participantes, contribui para a interconexão entre os saberes acadêmicos e
os saberes locais, abrindo espaço para a discussão e/ou a solução de problemas
relacionados a práticas de linguagem situadas. É sob esse enfoque que se coloca como
objetivo apresentar, nessa comunicação, os encontros entre o letramento escolar e os
‘multiletramentos’ (Rojo, 2012), como forma de legitimação dos saberes locais e da
superdiversidade, no contexto escolar transfronteiriço, na divisa entre Brasil, Paraguai e
Argentina. Para tanto, apresentamos exemplos provenientes de uma pesquisa etnográfica,
focando em um evento na sala de aula de Língua Portuguesa em que professora e alunos
trabalham colaborativamente na construção de uma peça teatral. Com a finalidade de
contar a história do bairro, colocando seus moradores como protagonistas da própria
história, evidenciou-se a importância da negociação entre os saberes escolares
institucionalizados e os saberes locais da vida vivida.
2
Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, Programa de Pós-Graduação em Linguística. E-mail:
lucena.inez@gmail.com
3
Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE. Programa de Pós-Graduação em Letras e Pós-
Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras. E-mail: mepires@gmail.com
1249
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
Introdução
1250
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
4
Disponível em http://www.brasil.gov.br/turismo/2015/01/parque-de-foz-do-iguacu-recebe-recorde-de-
visitantes-em-2014, acesso em 15/02/2015.
5
Disponível em http://www.pmfi.pr.gov.br/conteudo/?idMenu=1007, acesso em 15/02/2015.
6
Disponível em http://www4.pr.gov.br/escolas/frmPesquisaEscolas.jsp, acesso em 27/09/2015.
1251
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
Assim, nesse espaço urbano, indivíduos das três cidades transitam e ‘reinventam a
vida local em suas performances cotidianas’ (Moita Lopes, 2008: 309) em um fluxo
contínuo, como se as cidades fossem amalgamadas. Mesmo que a vida institucional e
burocrática insista em lhes separar e impor uma suposta territorialidade definida, línguas
e culturas se entrelaçam na ‘dinamicidade [territorial] da fronteira’(Frasson; Szumilo
Schlosser, 2015: 70).
Nesse cenário, a vida apresenta imensas complexidades. Segundo dados da
Unicef, uma grande proporção da população da Tríplice Fronteira é formada por crianças
e adolescentes, sendo que muitos deles vivem em situação de risco e estão vulneráveis à
exploração de trabalho infantil, à exploração sexual, a drogas, e a todo tipo de violência.
Com indicadores econômicos não muito favoráveis, o emprego informal, como, por
exemplo, servir de ‘laranja’, aparece como um modo de compensação financeira para os
jovens que vivem em situação de pobreza.
Essa complexidade social e também política e linguística, intensificada pelas
complexidades do mundo contemporâneo, direcionam nossos olhares para o modo como
a escola e a sala de aula de línguas vem lidando com a configuração do espaço fronteiriço
em tempos de um mundo desterritorializado. Se o acesso à norma padrão representa uma
possibilidade de reorganização espacial e de movimento de ‘escalas’ locais (Blommaert,
2007) para escalas translocais, para que esse movimento seja possível, torna-se central o
deslocamento de perspectivas pedagógicas voltadas apenas para detalhes das variações de
uma língua, para perspectivas centradas nas complexidades dos processos sociais,
culturais, políticos e históricos que nos possibilitam entender as diferenças não como
ameaça, mas como criatividade e riqueza. E, nessa perspectiva, os saberes locais têm um
papel central. Embora imperativa e urgente no ensino de línguas, pesquisar, entender e
discutir essas práticas de linguagem criativas e inovadoras e também como suas normas
de uso vão sendo questionadas ou alteradas, não é tarefa fácil (Bloomaert; Rampton,
2011).
Na sequência, então, para entendermos como os alunos reivindicaram o
protagonismo de suas práticas em um espaço periférico apresentamos, ainda que
brevemente, algumas etapas da etnografia acerca do projeto de letramento.
Adicionalmente, descrevemos o Bairro Iguaçu, o Colégio Iguaçu e o Projeto Memória,
1252
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
com a intenção de apresentar o cenário em que a pesquisa, geradora das reflexões aqui
apresentadas, foi desenvolvida.
1253
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
em suas próprias vidas, faz com que a importância de um distanciamento das ações
isoladas e individuais seja redimensionada, para que ações interdisciplinares e coletivas
sejam construídas.
O Bairro Iguaçu nasceu de uma inciativa de desfavelamento de famílias que
viviam em condições de pobreza extrema às margens do rio Paraná. As negociações para
o reassentamento dessas famílias em um novo local envolveu a negociação e resistência
dos futuros moradores que não aceitavam os possíveis lugares e casas oferecidos pelos
governantes. O processo foi de luta e de agência daquelas famílias e após muitas
reuniões, foi feito um acordo sobre o local onde seria formado o bairro Iguaçu. A
construção das casas foi iniciada em 1999 e nesse bairro foi construído e inaugurado, em
2002, o colégio Iguaçu, para atender as crianças e adolescentes das famílias que ali
moram.
Dada a sua origem inicial, o bairro passou a ser estigmatizado pela sociedade do
entorno, por considerá-lo local de violência e, por isso, perigoso. Assim também passou a
ser visto o Colégio Iguaçu, como pode ser observado pelo relato de uma das professoras.
Encontrei uma colega que eu não via há muito tempo e ela me
perguntou onde eu estava trabalhando. Eu disse que era no Colégio
Iguaçu e ela fez o seguinte comentário: – Nossa, você foi rebaixada?
(Diário de Campo, abril/2011).
A correlação estabelecida entre o local de trabalho da professora com o
desprestígio profissional revela a marginalização daquele espaço, visto como periférico.
As dificuldades econômicas dos moradores de lá, cuja renda mensal da maioria das
famílias dos alunos é de até dois salários mínimos, as quais lutam pela sobrevivência por
meio de atividades informais ou até mesmo de risco, facilitadas e impulsionadas pela
configuração social, econômica e política do cenário de fronteira reifica-os,
homogeneizando-os e desqualificando-os culturalmente.
E foi nesse cenário demográfico e sócio-econômico que pesquisadores iniciaram
um projeto radical no Colégio Iguaçu, cujos resultados parciais foram utilizados para fins
deste artigo como já mencionado anteriormente. A premissa do projeto – batizado pelos
professores daquela instituição como “Projeto Memória”– de trabalhar colaborativamente
com os participantes foi alcançada, justamente por se ancorar nas reflexões sobre práticas
de multiletramentos. Desde o início das atividades (novembro/2010 a janeiro/2014),
1254
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
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Os alunos optaram, portanto, por manter Eles procurava / os tal dos problema,
ao lado de elaboraram algumas propostas. Dessa forma, eles mantiveram a alternância
em que a concordância verbal se aproxima das práticas de linguagem locais e também os
momentos em que a concordância se estabelece de acordo com a norma de prestígio que,
conforme manifestado por uma aluna nós os filhos, que estamos estudando, é que usamos
mais concordâncias e uma linguagem mais formal. A fluidez local reivindicada na
produção do texto pelos alunos, não definida por regras fixas, mostra que a finalidade não
é caricaturizar as vozes mas, ao contrário, evidenciar a dimensão ‘performativa’
(Pennycook, 2010) que possibilita a autenticação e legitima falares, no contexto escolar.
Ao explicar a mudança feita na refacção do texto e diante da observação dos
alunos, a professora, diante do fato de os alunos buscarem romper com a naturalização
das práticas escolares, reflete sobre sua própria ação, destacando que:
Ao escrever, tentei usar uma linguagem mais formal, como uma voz de um
narrador que representasse a comunidade, mas que estivesse de fora (Diário
de campo da Ana, professora do Colégio Estadual).
Alinhada a pedagogia dominante de ensino de línguas nesse primeiro momento, a
professora procurou conduzir a refacção do texto, seguindo a forma padrão da língua e,
somente a partir da agentividade dos alunos, ela se dá conta da importância de tal
protagonismo para legitimar suas falas naquele cenário.
Mesmo a professora estando completamente envolvida com o projeto de
multiletramentos e mesmo em um tempo-espaço de escutar o outro, os modos de
escolarização tendem a ver a linguagem dos alunos em termos deficitários e há um
movimento naturalizado de a escola “querer impor ao outro, dominá-lo, silenciá-lo ou
reduzir sua diferença à semelhança do nosso eu" (Menezes de Souza, 2011). É o princípio
de ‘língua pura’, linguisticamente homogênea, ainda perpetuado na escola, que vem à
baila (Rampton; Bloomaert, 2011) quando se discute linguagem no espaço escolar. No
entanto, no caso desses alunos, a ideologia linguística da língua padronizada
nacionalmente é contestada por eles.
Nesse caso, o projeto de multiletramentos contribuiu para que a “linguagem local
pass[asse] a ser social e politicamente construída como objeto de orgulho local e como
um índice de identidade” (Wang et al., 2013:36) para aqueles alunos e o que antes era
visto, negativamente, como atraso linguístico da comunidade, passou a ser visto como
1259
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
traço identitário legítimo. Os jovens no Colégio Iguaçu parecem entender com mais
propriedade como as variedades linguísticas são utilizadas e com que propósitos, em sua
comunidade. Eles conseguiram perceber com sensibilidade como a sua língua importa
para marcar quem fala e quem fala o que, e demonstraram não sentir a ‘vergonha
linguística’ (McCarty, 2009:138). Segundo MacCarty, ao explicar tal conceito,
argumenta que as habilidades linguísticas de indivíduos podem ser escondidas quando
não consideradas adequadas diante da norma padrão, explicando que a ‘vergonha
linguística’ não é uma “função por si só, mas é fruto de discursos sociais mais amplos
que marginalizam [...] línguas e seus falantes, associando-os com pobreza,
tradicionalismo e atraso” (McCarty, 2009:138).
A escola como um cenário de disputas de usos da língua que também marginaliza,
envolve ajustes das estruturas postas em movimento pela ação dos sujeitos naquele
espaço. Os modos de escolarização tentam podar o aluno de ‘indexicalizar posições,
papéis e identidades sociointeracionais’ (Signorini, 2008:141). No entanto os alunos,
como no caso específico deste estudo, podem avaliar a adequação referencial e a
compreensibilidade da fala, mostrando sua consciência metapragmática e reivindicando a
igualdade de condições entre os falantes. Como mostraram os alunos do colégio Iguaçu,
sua falas puderam ser representadas na peça de teatro, “sem anular a diferença numa dada
ordem sociolinguística” (Signorini, 2008:142).
Ao contrário de vergonha, os alunos mostraram resistência, colocando-se como
protagonistas ao reivindicar o direito de utilizar a língua da comunidade nas falas da peça
de teatro. Em um espaço em que reivindicam o uso da transliguagem, suas práticas de
linguagem passam a trazer para a peça de teatro mais criatividade e crítica. Nesse sentido,
como Wei e Garcia explicam, a translinguagem pode transformar o espaço em termos de
valores e práticas. De acordo com os autores, tal prática dá vazão a duas vertentes: a da
criatividade e a da criticidade. Em relação à primeira, os alunos criam novos usos
diferenciados da norma e, em relação à segunda, os alunos agem, “utilizando as
evidências para questionar, problematizar e expressar seus pontos de vista” (Garcia; Wei,
2014: 24).
A contingência local da tríplice fronteira revela práticas sociolinguísticas de
pessoas de carne e osso, evidenciando que a sala de aula de línguas precisa ser entendida
1260
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
Considerações finais
1261
Simpósio 54 – Globalização linguística, mobilidade e metareflexividade
espaços, nos parece bastante ambígua e difícil. O protagonismo dos participantes, a partir
da valoração dos saberes locais, no entanto, mostra-se um caminho interessante, desde
que eles consigam conquistar espaço para exercer suas agencias. A escola, portanto, ao
aceitar que os alunos não são descorporificados nem desvinculados de laços afetivos,
possibilita o deslocamento das histórias de passividade para histórias de agentividade, de
criatividade e de criticidade.
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1263
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1264
PARTE II
ESTUDOS LITERÁRIOS
SIMPÓSIO 3
LITERATURA EM TRÂNSITO:
EM VIAGEM À CASA DO OUTRO
COORDENADORES
Giorgio de Marchis
(Università degli Studi Roma Tre)
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1269-1284
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1269
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este trabalho é uma leitura das configurações de bastardia, a partir das personagens
criadas pela autora brasileira Ana Paula Maia. Para tanto, pretendo pensar em alguns
problemas que se traduzem no encontro dos bastardos com o outro, figura hipotética
que se recria na cena de leitura como o desvelador de um embate hostil entre projeções
identitárias e leis, logo, conduzindo à perspectiva de abandono operada pela mítica
representação do que engendramos sobre a pólis, ora compreendida com espaço social
de poder. Entre vinganças inscritas em assassinatos sob encomenda e mortes com
assinatura, lemos também uma condição de anonimato daqueles aos quais são
destinados o subsolo e os dejetos como espacialidades de resistência aos cenários de
desabrigo e deslegitimação. Assim, é pela borda que transborda, expulsando de si a
condição precária de um abrigo poroso à bastardia, que essas personagens encontram,
na errância, na ameaça e no binômio “ataque-defesa”, as credenciais para (sobre)viver
nessa bricolagem de enredos sociais e polaroides tarantinescas.
O nascimento bastardo
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pensou em matar alguém que atire a primeira pedra. E, entre o desejo e o ato, talvez o
problema seja mais a ausência de coragem que o excesso de zelo à vida alheia. Enfim,
entre conflitos éticos ou “medo de pecar”, sempre haverá alguém disposto ao “trabalho
sujo dos outros”, a meter a mão na massa e atentar contra as cartilhas de catecismo, sem
muito a perder porque, nesse jogo, resiste quem mais perdas coleciona, quem aprendeu
a fazer da deslegitimidade sua condição de enfrentamento e precária identidade nas
bordas da bastardia.
É dessa condição bastarda que parto para pensar na bricolagem de personagens
posta em cena pela escritora Ana Paula Maia. Quem já leu alguns dos livros da autora
sabe que, ao menos, um tiro de raspão levará dessa leitura. Incólume, ninguém sai.
Numa mistura arriscada de referências aos westerns de Sergio Leone, e às violentas e
absurdamente risíveis cenas que compõem os enredos de Quentin Tarantino e Robert
Rodriguez, Maia destina seu projeto literário à aposta nos brutos, aos que vagam entre a
ilegalidade e a recriação de novas leis para os anulados socialmente. Com “ofícios”
pouco caros à pólis da democracia, essas personagens ocupam os espaços vazios à
manutenção de um estado de direito e bem estar. Assim, elas e seus trabalhos passam a
existir dentro de uma demanda extraoficial que, sempre às escondidas, expõe a
fragilidade sobre a qual se edificam as mínimas e míticas paisagens de ordem, progresso
e, por que não, cidadania.
Entre parágrafos onde o riso se colide com o espanto, propondo quase uma
leitura pulp-contemporânea do Teatro do Absurdo, a gargalhada emerge de uma
violência grifada pelo flerte com o nonsense. Como na cinematografia de Quentin
Tarantino, as personagens da autora nos questionam sobre nossos limites e fazem, de
nosso riso, uma potente arma crítica aos nossos hábitos-preconceitos, ao que rejeitamos.
É no sangue que “esguicha” do livro e da tela de cinema que, ao nos fazer fechar os
olhos e não querer ver, a miséria social da qual somos parte nos atinge (ou tinge?), seja
de raspão ou direto na cara, como nos muitos tiros em primeiro plano do diretor
americano.
Como uma leitura em tradução da linhagem dos westerns aos quais Tarantino
também se inscreve como legatário, temos em Maia o grifo periférico de muitos “cães
de aluguel” 2 que, sem terno, gravata e maleta, brigam por trocados sujos e mal pagos
nas escondidas rinhas de cachorros brasileiras. Nesse jogo, subúrbio e subsolo dividem
2 Referência ao filme Cães de aluguel (1992), de Quentin Tarantino, e ao livro Entre rinhas de cachorros
e porcos abatidos (2009), de Ana Paula Maia.
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mais semelhanças que somente uma derivação prefixal: eles se transformam nas
espacialidades hostis capazes de apartar e recriar outros sentidos de exílio.
Lançado em outubro de 2014 como “o novo folhetim virtual”, Desalma3 é
dividido em sete capítulos que, ao estilo brutal que marca a filiação ficcional de Maia,
apresentam ao leitor a trajetória de Carnicara, um assassino de aluguel que em sua
composição desvela o resgate de outras personagens de seus romances anteriores,
marcando mais uma referência à bricolagem tarantinesca. Como num palimpsesto,
vemos os nomes de outras produções retornarem à obra atual, seja como uma repetição
capaz de construir uma personagem única e reiterativa, ou mesmo como sugestões às
conexões que devem feitas por leitores e telespectadores que partilham (e se filiam)
desses projetos e com eles formam certa comunidade afetiva.
Aderido à atualidade da potência das redes sociais e à linguagem dos blogs, o
texto foi anunciado no site de mesmo nome, bem como na página de Facebook da
autora, e os leitores deveriam acompanhar semanalmente a publicação de cada capítulo.
A narrativa veio ao público em 15 de outubro de 2014, com a palavra “estreia”, em
lugar de outra para marcar o início do projeto e, ao mesmo tempo, com a finalidade de
demarcar o caráter folhetinesco, “noveleiro”, da entrega em partes. Com
aproximadamente dois meses de duração, o livro permaneceu no ar por pouco tempo,
sendo retirado para, naquele momento, ganhar um novo formato ou se misturar a outros
projetos.
No entanto, por ter sido disponibilizado durante o percurso da “novela”, muitos
leitores tiveram acesso e, embora longe das estantes das livrarias ou dos sites da autora,
Desalma ganhou corpo, vida, e um grupo de personagens que traduz a bastardia como
uma condição capaz de dar um espaço simbólico aos que parecem despejados de
quaisquer margens, bordas ou mesmo cordas bambas. Como “okupas”, só que sem uma
marca político-social definida de suas ocupações, os bastardos de Maia habitam a
precariedade sem endereço certo. O lugar provém da ocasião dada pela brecha, pelo
abrigo onde convergem a ilegalidade e a instabilidade, no qual galpões abandonados
podem ambientar o refúgio, a cena de assassinato e/ou um “hospital” clandestino a seus
cães de aluguel feridos.
Nesse folhetim, mais uma vez, estamos diante de um assassino cuja trágica
história de vida se torna responsável por sua frieza; alguém que mata por encomenda e
3 A versão do texto presente neste artigo foi gentilmente cedida pela autora.
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Assim, Tio Luiz e Chico participam desse encontro onde a vingança medeia perda e
ausência, quase como numa versão masculino-brasileira da lendária Beatrix Kiddo,
protagonizada pela atriz Uma Thurman, em Kill Bill (Tarantino, 2003). Logo, é dessa
partilha de uma dor a ser vingada que ambos passam a atuar juntos para honrar seus
mortos e os de quem tem a tragédia como credencial de entrada nesse cenário.
Após a apresentação da personagem que mata uma infanticida e dos motivos por
que Chico se tornou Carnicara, o leitor vai sendo apresentado também à composição
necessária a essa passagem do jovem que perdeu a família ao bastardo hábil em suas
encomendas. Se, inicialmente, as mortes lhe são apresentadas como tradução de uma
justiça que o estado não prevê, pois julgar ainda lhe parece pouco e a impunidade para
uns ainda é bem maior que para outros, achar o bando e matar um por um é a sentença
final de seu último apelo ao afeto. Porém, como dirá Tio Luiz, o ofício dá gosto e vicia:
“Eu adoro matar desgraçados. É melhor que fumar maconha” (Maia, 2014:12).
No terceiro capítulo, ao ser contratado pelo pai de uma menina que fora
estuprada por “quatro bastardos” (Maia, 2014:16), vemos a inscrição da vingança que, se
não restitui a perda, ao menos rescreve com suas próprias regras os sentidos de honra e
justiça, nesse cenário em que quem paga pelo crime também evidencia seu abandono:
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sujeito. Eu não faço isso. Enfiar cabo de vassoura no cu dos outros é demais pra
mim.
- Entendo... mas eu gosto da ideia de capá-los.
- Eu acho perfeito em casos de estupro. É muita humilhação pro resto da vida.
O que é um homem sem seu pau, não é verdade?
- Disse bem. Pro resto da vida. É isso então... quero que os quatro sejam
capados.
- O senhor quer assistir? (Maia, 2014:17)
Contratado para dar um jeito nos meninos que, mesmo chamados de bastardos,
têm pais e sobrenomes que lhes conferem a liberdade de uma inimputabilidade quase
absoluta, Carnicara espetaculariza a violência, relativizando os valores que se atribuem a
determinadas vidas em detrimento de outras. Assim, leitor e personagens transitam entre
corpos sem membros, sem vida, contudo marcados por uma identidade que emerge da
ausência de práticas de alteridade, do encontro com o outro. Com relação a isso, vale
ressaltar que a sugestão precária de uma mínima empatia só se constrói entre os
habitantes do subsolo, os ilegais, mais uma vez reiterando o caráter bastardo presente na
espinha dorsal dessas personagens.
Absurdos e críticos, os enredos suportam um amálgama entre a gargalhada e o
choro (sem que esse responda a relações com o temor que vemos emergir nas catarses
provenientes da tragédia, por exemplo). Nas narrativas de Maia, como nos filmes de
Tarantino, o outro é hostil e, nessa sintaxe, com equivale a contra, bem como a honra
perde seu signo heroico para uma encenação de resistência brutal entre os que são odiados
socialmente.
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imigrantes nos Estados Unidos, bem como em certas formas de privação dos direitos que
se converteram em táticas de guerra a longo prazo. (Butler; Spivak, 2007:52).
O livro é um jogo de entrevistas entre as duas teóricas, nas quais ouvimos os
ecos dos pensamentos marxista e gramisciano, caros sobretudo a Spivak, bem como sobre
a questão da performatividade na composição dos refugiados, discutida por Butler a partir
dos enlaces com Austin e, unindo ambas as autoras, Jacques Derrida. Nessa arena, o
trabalho aparece como uma fenda por onde ambas enxergam alguns problemas, uma vez
que junto a marcadores como idade, raça, gênero e nacionalidade, o status laboral compõe
os atributos viáveis à desqualificação para a cidadania e à conversão “qualificada
ativamente” dos sujeitos em condição de “sem-estado”. Desse processo, derivam-se a
perda de direitos e o apagamento, a começar, pois:
Tornam-se sem-estado a cumprir com certas categorias normativas. São
produzidos como sem-estado ao mesmo tempo que são despojados de formas
jurídicas de pertencimento. Trata-se de um modo de entender como alguém
pode ser um sem-estado dentro do estado, como parecem ter bem claro aqueles
que estão encarcerados, escravizados ou que residem e trabalham de maneira
ilegal. De diferentes formas, todos estão significativamente confinados dentro
da pólis como seu fora interiorizado. (Butler; Spivak, 2007:54)
Valho-me, então, da perspectiva derridiana para pensar em como esses problemas
podem dialogar com as personagens de Maia. E, embora os bastardos de Desalma e das
narrativas anteriores não evidenciem uma forçosa circunstância de exílio ou desterro,
leio-os como os despojados de um tecido social que os aloca no subsolo. Logo, é da
possibilidade de desfazer a fixidez do cenário onde Carnicara e Tio Luiz existem na
precariedade que lemos a composição de um novo território nômade onde as personagens
lutam contra sua própria aporia. Desta forma, vemos uma linha narrativa se construir
junto ao percurso de Chico-Carnicara, indicando-nos a estranheza e a assimilação como
vistos para esse ingresso clandestino.
Como alguém que aprende uma nova língua, as personagens de Maia tateiam por
sentidos que se constroem com a experiência marcada no crime, na exclusão e na
irredutível solidão que evidenciam com sua história de vida em abandono. Nessa
desfiliação, a certeza de uma justiça que não se inscreve pelas leis da pólis define a
bastardia que, diferente da orfandade, não garante nem mesmo tutela.
Voltando às teóricas, um pouco mais adiante, Butler e Spivak tocam nas
estratégias discursivas que operam no campo do poder como fatores indissociáveis para a
deslegitimação dos sem-estado. Nesse sentido, elas propõem um olhar à relação entre
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essas vidas abandonadas e as leis que não deixam de regê-las, “a vida abandonada pode
estar, inclusive, saturada juridicamente sem por isso gozar de direitos, como ocorre tanto
com os prisioneiros como com os que vivem baixo uma ocupação” (Butler; Spivak,
2007:66).
Ora, e o que fazem as personagens de Maia (e de Tarantino, por exemplo) senão
entenderem para si novas leis capazes de corrigir, a seu modo, um cenário onde todas se
sentem rejeitadas pelo estado, pela pólis? As vinganças pessoais ganham um sentido que,
como já mencionado, embora não restitua a ausência, ao menos reestabelece um código
de honra às avessas a personagens desfiliadas e, forçosamente, sem pertencimento. Com
isso, elas evidenciam a violência que o poder opera sobre os que são apagados
socialmente, os que não têm sobrenome ou pai conhecido. Elas recriam, a seu modo, o
périplo inglório e vingativo de Caliban, personagem de A Tempestade, de Willian
Shakespeare, que aprende a língua do dominador para poder insultá-lo e desvelar os
horrores que formam parte dessa ocupação pelo poder, sem, contudo, alcançar a
consciência para a sua liberdade.
O diálogo teórico com Who sings the Nation-State obviamente não para por aqui.
Ademais de problematizarem sobre esses sujeitos produzidos pelas sociedades
capitalistas, os sem-estado, Butler e Spivak discutem amplamente sobre os sentidos que
se recriam e se performatizam na condição migrante, sobretudo no exemplo dos hinos
nacionais, sua relação com a língua dos imigrantes e nas transformações que surgirão a
partir da assimilação de determinados códigos de pertencimento por aqueles aos quais o
direito de pertencer não é legitimado.
Por agora, penso mais detidamente nesse diálogo entre os sem-estado e os
bastardos. Se não posso dizer que um implica o outro, pelo menos, como uma hipótese,
posso questionar o que de um há no outro. Ou seja, também produzidos discursivamente
por uma sociedade que os coloca no subsolo, mas que deles se vale para “o trabalho sujo”
(como o escravo Caliban, outrora dono de sua terra, e sua relação com Próspero, o duque
mago que lhe rouba o território), os bastardos vagam sem tutela, porém presos e
conscientes de que há uma lei que se aplica contra eles. Assim, justiça e injustiça perdem
a valência opositiva para se tornarem, para essas personagens, algo que só pode ser
realizado a partir de um código que, retomo a língua estrangeira, é compreendido na
experiência com aquele outro que o aponta em sua condição forasteira e estranha.
Entre hotéis de beira de estrada e fazendas abandonadas que servem de cenário
para os crimes, Carnicara vagueia como num western de Sergio Leoni reatualizado por
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Tarantino. Ele deambula, anda sem rumo à caça de novas mortes, à prática de seu ofício
que, de vento em popa, não lhe permite as férias no Paraguai, lugar que, ao aparecer na
narrativa, grifa a projeção da deslegitimação operada econômica e discursivamente com
aqueles aos quais não vemos inscrita uma perspectiva de irmandade sul-americana,
baseada no respeito e na valoração sociocultural. Nesse jogo, só o contrabando nos une e,
preferencialmente, com a inscrição explícita da vantagem econômica de um nós sobre
esse apartado nosotros.
Com efeito, é de imagens como o subsolo, a fronteira interditada e a terra
dominada, que aprendemos a traficar identidades e reinventar o que nos (des)honra. Nesse
encontro onde o pulp nos empresta sua composição residual, como um palimpsesto viável
à leitura do que compreendemos como resto, a primeira escrita ressurge, trazendo à luz a
necessidade de uma leitura social, através da ficção. É uma historiografia que se desvela
em pulp fiction4, na qual os bastardos criados pelo desejo da pólis higienista resgatam a
memória de homens e mulheres construídos narrativamente como sem-estado. Assim, os
miseráveis de Maia também traduzem, ora com outros problemas, a xenofobia posta em
cena por Tarantino em sua referência crítica à relação dos brancos norte-americanos com
os mexicanos e com os negros, estes mais presentes em seus filmes recentes, como
Django Livre (2012) e Os oito odiados (2105). Ou, ainda numa perspectiva de relação
com o que a história coleciona como seu maior evento brutal, o genocídio de milhões de
judeus pelo estado nazista, recuperado em Bastardos Inglórios (2009), como aposta numa
vingança, ora sinonímica de empatia.
Tomadas as distâncias necessárias, não penso que tais eventos possam ser
comparados de maneira equivalente. No entanto, acredito que, quando levados às telas do
cinema e às páginas literárias, a ficção nos ajuda a ler com suas ferramentas os fatos de
uma realidade hedionda, que só pode ser verossímil quando o nonsense está presente.
Aqui, é pela capacidade de “dar forma ao informe”, como nos lembra Karlheinz Stierle
sobre o primeiro ato de figere, palavra da qual provém etimologicamente o termo ficção,
que a figura criada convoca a uma nova leitura, justamente por não ser mimética, questão
também imbricada em sua compreensão conceitual. Assim, ao lermos os bastardos de
Maia, não estamos diante de um assassino de aluguel ou de um traficante de órgãos, bem
como nas ambientações recriadas por Tarantino com referências à Shoah ou às guerras
estadunidenses. Essa con-figuração nos apresenta outros agentes, que trazem a realidade
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como pano de fundo, servindo como uma potente imagem palimpsêstica viável a novos
questionamentos e pontos de vista, minimamente, menos iníquos.
Se é pela voz de Caliban que temos acesso às metonímias dos processos de
colonização, logo, dominação e reconstrução de poder, e são pelos nossos olhos e pela
nossa experiência como colonizados que compreendemos a violência de Próspero, a
bastardia se desvela como uma criação sine qua non para a deslegitimação. Ao
transformar o outro em ninguém, seja por sua língua, sua origem, sua cor ou outros tantos
marcadores que socialmente são empregados de maneira ostensiva para o apagamento, a
empatia não dá como uma construção a partir do encontro. O sujeito bastardo vive no
confronto e seu ponto de partida já se inaugura com a desigualdade imposta às suas
credenciais. Ficcionalizado ou real, ele mora numa casa em ruína que esconde uma
violência antiga, todavia, nunca passada.
Para ensaiar uma breve conclusão às inevitáveis bricolagens que ao presente artigo
fui agregando como pontos em diálogo, penso ainda no que isso poderá representar na
Itália, país em que se compilarão as Atas do último V Simelp e nas quais figurará meu
texto. Mais uma vez, volto ao duque de Milão traído por seu irmão e banido para uma ilha
na companhia da filha: Próspero. É-me, no mínimo, curiosa a relação (antecipada às
avessas) que a peça de Shakespeare trava com a história atual dos “bastardos” meridionais
e seus “compatriotas” setentrionais, na cartografia social italiana. Longe de qualquer
pretensão politológica ou mesmo de chegar a concluir algo a respeito, alinho-me distante
e modestamente a um desejo de compreensão posto em projeto por Maia e Tarantino. E é
da cidade em que o congresso foi realizado que partirei para localizar um novo ponto de
vista sobre o espaço que, desde pequena, se inscreveu em minha filiação não-bastarda
num país tropical, pós-colonial ou, como considera Spivak sobre panoramas afins,
neocolonial.
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Situada lá na pontinha do salto da bota que desenha o mapa italiano, está a cidade
que recebeu o V SIMELP (Simpósio Mundial da Língua Portuguesa), em outubro deste
ano e, no muro de uma pracinha do centro histórico, onde entre uma mesa-redonda e uma
conferência, eu tomava meu café, estava a frase pichada: All (algo rabiscado) the
bastards! Em inglês, em letras de forma, pretas e com um marcado ponto de exclamação
ao final.
Embora a possiblidade de a palavra riscada ser cops, ou seja, “polícia” em inglês,
e isso se remeter às pichações que desde a década de setenta começaram a surgir na
Inglaterra, o que nela me desloca é a tentativa de apagamento pelo exagero de um grafite
sobre outro. Uma escrita que em riscos também se traduz com novos significados e
imagens, tomando a potência da letra em forma de rasura para a recriação de sentidos.
Como as bonecas russas, nas quais cada uma guarda uma menorzinha, inicialmente
parecidas, mas com detalhes que as diferenciam entre si, a frase All cops are bastards
acarreta múltiplas apropriações, que se variam entre grupos bastante heterogêneos
insurgidos contra o que chamam de “sistema”, palavra ainda mais complicada e embutida
de compreensões em tensão.
No Brasil, confesso que até hoje não vi em muro algum e, se não fosse um bom
amigo italiano me contar sobre a relação que se estabeleceu entre a frase e os fatos que
marcaram a reunião do G8, em julho de 2001 na cidade de Gênova, eu ficaria até agora
achando que era só mais uma pichação num muro qualquer de um lugar a mais entre
tantos outros pichados e com grafites rabiscados. Se eu não tivesse chegado à informação
dos abusos cometidos pela polícia contra o grupo de manifestantes que se organizavam
em protesto à cúpula dos “oito países mais poderosos do mundo” e ao assassinato do
estudante Carlo Giuliani, talvez aqueles bastardos da frase permanecessem anônimos para
mim por muito tempo. A questão é que a frase, depois dos crimes policiais contra os
ativistas, ganhou os muros de várias cidades da Itália e se ressignificou nas páginas do
livro ACAB – All cops are bastards, do jornalista Carlo Bonini, em 2009, e no cinema,
como uma adaptação do mesmo livro, pelo diretor Stefano Sollima, em 2012.
Agora, mais que uma matrioska, penso na frase como colcha de retalho, em que
um evento se costura ao outro e juntos mostram as violências da pólis, a repressão
policial, o grifo do poder sobre a vida do outro, sobretudo sobre vidas que parecem à
disposição de um regime que se instaura na coerção e se escreve sobre o apagamento.
Sobre a rasura. Volto, então, ao “estado” de desconhecimento do termo ilegível para ler o
que a palavra de origem desconhecida me propõe, afinal, nada mais sinônimo de bastardia
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do que a imagem de uma palavra rabiscada. Finjamos que eu não saiba de nada.
Recomeço como se fosse, a seguir, meu primeiro parágrafo e, mal parindo, nasce outro
início.
Quem resolve adotar a bastardia em suas pesquisas não olha para uma coisa assim
sem enxergar. Mais que uma simples pichação, aquela frase naquele muro reivindica
alguns questionamentos dos quais não podemos nos furtar quando decidimos pisar nessa
pontinha do salto e, sobretudo, caminhar com ele, afinal estou em Lecce, na Puglia!
Entretanto, para um brasileiro desavisado, ou apenas de turismo, o que também confirma
certo perambular despretensioso, all the bastards naquela paisagem bucólica só ganha
sentido se os bastardos forem os outros, num possível you rasurado pela escrita que a
subversão do picho traduz.
Fotografei o muro e, por vários momentos, revia a foto entre tantas outras,
bastante díspares como costumam ser as fotos de uma viagem, e me perguntava se a
tradução que melhor se adequava àquele contexto se conjugava com somos, inclusivo, ou
são, logo, vocês, os outros, afinal, as guerras se travam entre you e we.
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Entretanto, devo admitir que o italiano – ou ao menos essa língua criada que
aprendemos como língua oficial também de um país engendrado num projeto de nação
atroz e violento do século XIX – me é familiar e, pelo afeto e pela memória construída
por aqueles que de lá emigraram sem, contudo, deixar de reivindicar um pertencimento,
traduz um espaço simbólico onde muitas filiações me foram ofertadas, ainda que sem ter
conhecido o longínquo “pai” do pai do meu avô que acabou morrendo brasileiro e sem
papéis que viabilizem, hoje, uma “cidadania europeia” tão cobiçada pela classe média
brasileira.
Divagações à parte, a Itália que eu quis aprender está em mim. E, num primeiro
impacto, aqueles bastardos eram os outros, não o nós ao qual eu, mesmo sem visto, me
filio. Por outro lado, dialogar com a bastardia implica a tentativa de uma prática na qual
os bastardos parecem impossibilitados, ou melhor, sem repertório afetivo capaz de dar
conta das negociações presentes na experiência da alteridade.
Embora a primeira tradução seja “Todos são bastardos”, sabendo um pouco sobre
como se constituiu o estado-nação italiano e procurando ver as fendas que deflagram a
fragilidade das relações históricas entre o norte e o sul, para mim, a frase ganha mais
sentido quando inclui nessa bastardia o nós. Logo, are é somos. Mas quem somos? Somos
os do sul versus os do norte? Somos os mafiosos da Sacra Corona Unita, máfia mais low
profile, em comparação com a histórica e cinematográfica Cosa Nostra, siciliana, ou a
Camorra, napolitana, ou ainda a temível e tentacular ‘Ndrangheta, da região também
meridional de Regio Calabria? Ainda: somos nós que nos tornamos, com o sangue e a
violência, forjadas na bravura de Garibaldi, uma só nação e, pelas vias de uma
discursividade nefasta, apagaram nossas línguas, transformando-as em dialetos e nos
fizeram crer que não passamos de uma terra de mafiosos que atrasa o processo de
crescimento dessa mitíco-megalomaníaca pátria italiana? Somos as mulheres em transe
que dançavam em Galatina, por causa da aranha capaz de desatar nossa teia-asfixia
social? Ou somos os milhares de imigrantes africanos sobreviventes das tragédias em
Lampedusa? Afinal, com qual “somos” a palavra rasurada pode escrever nossa empatia?
Nessa terra em que a figura da mãe se mostra sacroprofanada em todos os espaços
e relações (basta ver a formação dos insultos na língua italiana. Grande parte envolve a
relação familiar, principalmente a imagem materna), chamar-se bastardo ou nomear um
outro como bastardo é, em certa medida, colocar em questão as relações de pertencimento
que os cidadãos podem experienciar com esse lugar que precisa requisitar a
heterogeneidade e a pluralidade linguística como mínimos restitutivos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agamben, Giorgio. 2004. O poder soberano e a vida nua: homo sacer. Barcarena:
Editorial Presença.
Butler, Judith e Spivac, Gayatri. 2007. Who sings the Nation-State? Calcuta: Seagull
Books.
Maia, Ana Paula. 2009. O trabalho sujo dos outros. Rio de Janeiro: Record.
______. Desalma. Folhetim virtual, disponível no blogue da autora entre outubro de 2014
e janeiro de 2015. A versão utilizada é uma cópia do texto, em arquivo word 97,
gentilmente cedida pela autora.
Sierle, Karlheinz. A ficção. Tradução: Luiz Costa Lima. Organização: Carlinda Fragale
Pate Nuñez, Francisco Venceslau dos Santos. Rio de Janeiro: Caetés, 2006.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Derrida, Jacques. 1998. Apories. Mourir – s’attendre aux “limites de la verité”. Paris:
Éditions Galilée.
Spivak, Gayatri. 2010. Pode o subalterno falar? Tradução: Sandra Regina Goulart
Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
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ISBN 978-88-8305-127-2
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RESUMO
Neste artigo apresentamos nosso percurso de pesquisa, partindo de nossos trabalhos
realizados no espaço carcerário, até nossas recentes observações acerca do que
Conceição Evaristo, poeta, contista, romancista e ensaísta afro-brasileira, define como
escrevivência. Intencionamos, com as reflexões que propomos, pensar a escrevivência
como meio de emancipação e retomada de poder sobre meios de produção de
subjetividades negras pelo povo negro. Esse movimento, de colocação de si na posição
de narrador da própria história, por meio do qual se recobra o poder de produção da
própria memória e subjetividade, pôde ser observado, por nós, em nossas pesquisas
iniciais no espaço carcerário, tendo como sujeitos desse processo, os apenados. Dessa
forma, este artigo visa trançar as pontas de nossas duas pesquisas, reconstruindo um
pouco de nossas contribuições acerca do contato com a arte como meio de resistência à
adversidade e tomada de poder sobre o próprio corpo.
Molhar os pés
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uma intensa depressão. Charlotte Delbo, na solidão de sua cela, resiste com Fabrice del
Dongo, de Stendhal; e Alceste, o misantropo de Molière, faz-lhe companhia em
Auschwitz. O próprio Todorov não pode dispensar as palavras dos poetas, as narrativas
dos romancistas, pois que elas lhe permitem dar forma aos sentimentos que
experimenta; a “prosa incandescente de Marina Tsvetaeva” é seu único recurso quando
mergulhado em desgosto. “A literatura pode muito” é o que diz o autor, “Ela pode nos
estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais
próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o
mundo e nos ajudar a viver” (Todorov, 2010:73-5).
O início de nossas pesquisas se deu no espaço carcerário, durante o ano de 2013.
Vinculados ao programa Remição pela leitura, da Secretaria de Justiça, Cidadania e
Direitos Humanos do Estado do Paraná, implementamos um projeto de pesquisa sob o
título: As marcas dos momentos de entrada no mundo da leitura nas construções
textuais-discursivas de alunos-detentos: vestígios de infâncias encarceradas. A ideia
surgiu com o objetivo de buscar formas de lidar com os sujeitos apenados; expostos
constantemente a uma série de mecanismos de contenção e sufocamento subjetivo.
Amparados em estudos sobre o potencial (trans)formador da literatura (Candido,
Todorov, Petit), na psicanálise winnicottiana (em especial o conceito de espaço
transicional), e passando pelo conceito de performance (Zumthor), procuramos pensar o
ensino de literatura no espaço carcerário como recurso de reinscrição de si e do próprio
espaço e (re)tomada do poder de narrar a própria vida pelos rapazes em detenção.
Estabelecemos como meta contínua e circular a observação do ambiente
carcerário e de cada apenado, atentando especialmente para textos, orais ou escritos,
onde pudéssemos notar a emersão de referências às subjetividades contidas pelo
sistema. Memórias de infância, de família, de tragédias ou alegrias impronunciáveis por
detentos, estes homens sobre quem pesa o silêncio e o medo da repressão por um
simples olhar não baixado (visto como resistente, insistente, subversivo). Vasculhar e
reunir as pontas soltas da tessitura que se pretende homogênea da população carcerária
consistia no primeiro passo para um objetivo mais amplo: revigorar, nos apenados, o
sentido de tecer as próprias narrativas de vida, de colocar-se no centro do próprio
caminho e perceber-se como capaz de criar, criar-se e buscar um caminho de inserção
social, objetivo fundamental do ensino no espaço carcerário.
De posse de nossos registros de observações e das resenhas e resumos
produzidos pelos alunos, de acordo com as normas do projeto Remição pela Leitura,
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conseguiam, com letras apertadas, preenchendo esse outro espaço com o que
transbordava de seus corpos e não poderia caber entre as quatro paredes de seus
pequenos cubículos: poesias, peças teatro, contos, romances e canções. Ainda que não
tivéssemos acesso à maioria das produções artísticas dos apenados, encontrar essas
pontas soltas que destoavam da repressão, nos instigou a promover oficinas de leitura e
escrita, nas quais procurávamos dar maior abertura e liberdade de escritura e fala aos
alunos, libertando-nos da abordagem marcada pelas avaliações que tendem a engessar a
criatividade, solidificar normas e padrões.
A partir do trabalho que realizamos na penitenciária, começamos a perceber que
as reflexões que desenvolvemos naquele espaço, poderiam nos servir como ponto de
partida para pensarmos outras escritas, outras leituras. Nesse sentido, encontramos na
escrevivência (Evaristo, 2005) de Conceição Evaristo, um ponto chave para
continuarmos a pensar a criação artística como meio de emancipação.
Não há povo e não há humano que possa viver sem fabular, aponta Antônio
Candido (1995:242-3). Inúmeros relatos nos mostram como a arte se torna recurso de
resistência ao sofrimento. Para Conceição Evaristo “Ler foi (…) um exercício
prazeroso, vital, um meio de suportar o mundo”, é nessa esteira que tencionamos
construir nossas reflexões: que pode a literatura? Que potência é essa que, segundo
Todorov, resgatou Mill do fundo de uma depressão? Que é isso que Evaristo chama de
escreviver? Esse “modo de ferir o silêncio imposto”, esse “movimento de dança-canto
que o meu corpo não executa” (Evaristo, 2005:202).
Em A identidade cultural na pós modernidade (2005), Stuart Hall traz a
literatura como um dos aspectos mais importantes na construção da identidade de um
povo. O capítulo 3, As culturas nacionais como comunidades imaginadas, nos é caro na
medida em que podemos pensar o significado da literatura afro-brasileira para a
constituição de um povo negro como (com)unidade. Amparados em Winnicott,
procuraremos explorar o quanto a arte e a criação artística são importantes na
constituição das subjetividades.
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas
também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso –
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publicado em 2015, em livro que leva o título do conto; faremos isso esboçando pontes,
ao longo da leitura, que nos servirão às reflexões posteriores. Na medida em que
avançarmos, retomaremos as linhas esboçadas, na intenção de aprofundar as ideias em
diálogo com alguns teóricos, ampliando nossa perspectiva de modo a observar a escrita
de Conceição Evaristo.
2. Inundar
2.1. Mergulhar
Estamos agora no meio da noite, ela acorda bruscamente, o chão sob os seus pés,
o teto e as paredes, o quarto: é tudo dúvida, é tudo exílio, diáspora. De que cor são os
olhos de sua mãe? A voz do griot, que cantava a cor dos olhos das mães parece tão
longe... Atordoada, custa a “reconhecer o quarto da nova casa” em que está morando e
não consegue lembrar-se de como “havia chegado até ali” (Evaristo, 2015:15).
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Durante os dias de forte chuva, quando a mãe agarra as filhas em cima da cama,
na voz da narradora “alguma coisa se perde e por isso se acrescenta.” (Evaristo,
2011a:9). Os olhos da mãe se confundem com os olhos da natureza, chove e chora,
chora e chove; e a voz do griot novamente se faz ouvir de longe: a mãe se expande, é
um corpo-refrão que contorna o mundo com suas notas. E a mesma pergunta retorna,
rebordando o texto.
Movida pela dúvida sobre a cor dos olhos da mãe, ela retorna à cidade natal. Ela
nunca se esquecera das mulheres da família, e já naquele tempo “entoava cantos de
louvor” (Evaristo, 2015:18) às ancestrais “que desde a África vinham arando a terra da
vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue.” Ela não se esquecera das
ancestrais, mas não se lembrava ainda da cor dos olhos de sua mãe. A dúvida repete,
encarnada num ritmo que desestabiliza. “Tomada pelo desespero” ela abre o círculo,
não “do lado onde vêm acumular-se as antigas forças do caos, mas numa outra região,
criada pelo próprio círculo. Como se o próprio círculo tendesse a abrir-se para um
futuro, em função das forças em obra que ele abriga ” (Deleuze; Guattari, 1997:116-7).
Ela sai de casa “no fio de uma cançãozinha”, resquício da voz do griot? É essa canção
que ainda mantém o chão sob os seus pés, mesmo que se lance para fora de um
território.
Na viagem a protagonista vive a sensação de estar “cumprindo um ritual em que
a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta na cor dos olhos de” sua mãe; “a partir de
ritmos, de cantos, de danças, de máscaras, de marcas no corpo, no solo nos Totens, por
ocasião de rituais e através de referências míticas que são circunscritos outros tipos de
Territórios existenciais coletivos” (Guattari, 1992:27).
Estamos diante dos rios caudalosos que escorrem pela face da mãe. A filha
entende que a mãe traz, “serenamente em si, águas correntezas”, ela traz, porta as
águas, “riacho sem início nem fim, que rói as duas margens e adquire velocidade no
meio” (Deleuze; Guattari, 1995:36). A cor dos olhos da mãe é cor de olhos d’água,
águas de Oxum, que é a vida em si, puro rio, sempre no meio, intermezzo.
No abraço as lágrimas se misturam, desaguam num mesmo rio, não é mais só o
corpo da mãe que se expande, mas o da filha também, não há mais sujeito e objeto, só
um rio, um rizoma. E isso fica ainda mais claro (ou confuso?) quando, posteriormente, a
pergunta se repete, mas agora tudo se inverteu, ou se con(fundiu) (Evaristo, 2011a:9), e
a canção do griot segue a se repetir, de olhos em olhos, ela mantém os elos da corrente,
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e, ao mesmo tempo, abre os círculos para outros círculos, é onda que ora empurra para a
praia, ora para alto mar.
2.2. Desaguar
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seja na própria demolição da favela, no grande buraco que cresce próximo aos barracos
ou no vazio que resta em Tio Totó, após atravessar o rio “são, salvo e sozinho”. A
reconstrução. “Quando ela já estava quase dormindo, escutou longínquos sons da caixa
de congada de Tio Totó. Ele ficara lá, era um dos últimos, vinha tocando a caixa pelo
caminho. Ela apurou os ouvidos. O batuque vinha de fora e de dentro dela. Vinha de
suas raízes, vinha do seu recôndito eu” (Evaristo, 2013:245). O refrão de dentro-fora
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pela fissura no “real”, a alteridade e colocar-se em cena como sujeito, para que, então,
possa narrar e narrar-se, recolar os estilhaços das constantes quebras de si?
A protagonista de Olhos d’Água lembra-se das brincadeiras com a mãe-boneca-
negra, recorda a rainha sentada em seu trono, recebendo as flores das princesas. Traz
também à memória os dias em que se sentavam na soleira da porta onde, das nuvens, a
mãe fazia algodão-doce. Maria Nova (Evaristo, 2013:30) insiste que precisa contar a
história de seu povo, de homens, mulheres e crianças que se amontoavam dentro dela,
como amontoados eram os barracos da favela. É um modo de tomar posse da própria
história, assumir o controle. Lumbiá (Evaristo, 2011b) contava histórias de mentira, no
início por safadeza, mas, no contar, encontrava-se nelas, e “em meio às lágrimas
ensaiadas, o choro real, profundo, magoado se confundia” (Evaristo, 2011b:34-40).
Ponciá Vicêncio (Evaristo, 2003) faz do barro sua memória, sua resistência, seu corpo-
avô, por meio do qual resiste. Duzu-Querença (Evaristo, 1993) enfeita a vida e o
vestido, e desfila num outro espaço, onde a dor se torna arte. Mary Benedita e Rose
Dusreis (Evaristo, 2011a) dançam e pintam com seus corpos, são meios de ocupar o
espaço, de transbordar-se e marcar o chão, ser e tomar posse de si.
Assim, a escrevivência alterna entre a ruína (como vimos no item anterior) e a
(re)construção. Indo e vindo, diluindo e inventando terras sob os pés das personagens.
Essa alternância se dá em oscilações entre o que Deleuze e Guattari chamam de
ritornelos (Deleuze; Guattari, 1997; Guattari, 1992). Durante a leitura de Olhos d’Água,
referimo-nos, por vezes à voz do griot; falamos dessa voz como algo que funciona como
um centro de atração e repetição, ritornelo que contribui no movimento das ondas que
reterritorializam e desterritorializam dentro da escrevivência de Evaristo.
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O conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou
coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-
referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade
ela mesma subjetiva (Guattari, 1992:19).
Nesse sentido, a subjetividade é entendida como linhas que ora se cruzam numa
individuação, ora se espalham numa coletividade, sendo esta última compreendida
como multiplicidade não exclusivamente social, que se desenvolve tanto além do
indivíduo, no socius, quanto aquém dele, “junto a intensidades pré-verbais, derivando
de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos”
(Guattari, 1992:20).
As condições de produção evocadas nesse esboço de redefinição implicam,
então, conjuntamente, instâncias humanas inter-subjetivas manifestadas pela
linguagem e instâncias sugestivas ou identificatórias concernentes à etologia,
interações institucionais de diferentes naturezas, dispositivos maquínicos, tais
como aqueles que recorrem ao trabalho com computador, Universos de
referência incorporais, tais como aqueles relativos à música e às artes
plásticas... Essa parte não-humana pré-pessoal da subjetividade é essencial,
já que é a partir dela que pode se desenvolver sua heterogênese” (Guattari,
1992:20).
Dessa forma, quando tratamos de subjetividade aqui, estamos lidando mais do
que com subjetividades individualizadas, mas também máquinas de subjetivação
posicionadas tanto em regiões pré-pessoais e não-humanas quanto no meio social.
Consideramos importante apresentar esse conceito de subjetividade, pois que é em
paralelo com ele que Guattari, recorrendo constantemente a Bakhtin novamente,
discorre sobre o conceito de Ritornelos Existenciais.
Os ritornelos são fragmentos que se destacam do conteúdo, por uma função de
isolamento semelhante ao que acontece com a música, cuja composição torna-se relevo
no silêncio-de-fundo, e ainda o que acontece com o refrão dessa música, que se torna
relevo na música como um todo. Os ritornelos são como espaços onde se enroscam
diversas linhas temporais, provocando a cristalização de:
Agenciamentos existenciais, que eles encarnam e singularizam.
Os casos mais simples de ritornelos de delimitação de Territórios existenciais
podem ser encontrados na etologia de numerosas espécies de pássaros cujas
sequências específicas de canto servem para a sedução de um parceiro sexual,
para o afastamento de intrusos, o aviso da chegada de predadores... Trata-se a
cada vez, de definir um espaço funcional bem-definido. Nas sociedades
arcaicas, é a partir de ritmos, de cantos, de danças, de máscaras, de marcas no
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3. Transbordar
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Até aqui, procuramos demonstrar como o rio dos olhos da mãe – refletido na
pergunta insistente ao longo de Olhos d’Água – funciona como ritornelo existencial da
protagonista, e, mais ainda, da cadeia geracional da qual ela faz parte, ou seja, é na
verdade um ritornelo existencial em torno do qual giram produções de subjetividades
coletivas de um povo. Mas ainda há uma outra relação a ser pensada, a qual nos
referimos como cadeia de ritornelos da escrevivência. Para tanto, recorreremos a mais
algumas palavras de Conceição Evaristo a respeito da escrevivência, desta vez em
entrevista a Eduardo Assis Duarte:
O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta é gerado por
alguém. Alguém que é o sujeito autoral, criador/a da obra, o sujeito da
criação do texto. E, nesse sentido, afirmo que quando escrevo sou eu,
Conceição Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que não me desvencilho de
minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora,
oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá etc.,
condições essas que influenciam na criação de personagens, enredos ou
opções de linguagem a partir de uma história, de uma experiência pessoal que
é intransferível (Duarte, 2011:115).
Com essa afirmação, é possível observar como Conceição Evaristo produz
mecanismos de referenciação: o texto literário é puxado para fora das letras que o
compõem (ou mergulhado mais fundo em sua composição?), as frases, as imagens, os
sons são afirmados como parte do corpo da escritora, mas, mais que isso, seu corpo é
distribuído sobre vários dentes-do-tear nos quais se enrosca e tece sua escrevivência.
Ao destacar esses dentes-do-tear (brasileira; negra; mulher; viúva; professora;
etc.), Conceição Evaristo levanta universos de referência, ritornelos que ressoam em
direções diferentes, atraindo a escrita-vida de um lado para outro, alternando os fios na
tessitura escrevivente. Deleuze e Guattari começam Mil Platôs 1 com a seguinte frase:
“Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente”
(Deleuze; Guattari, 1995:10). O discurso da escrevivência cria um elo entre os ritornelos
da escrita ficcional de Evaristo e os seus próprios como sujeito, projetando, ainda, uma
cadeia que se estende na produção de memórias coletivas em torno de um devir-negro
(também um devir-mulher e outros devires).
[A respeito de uma obra de Kafka] O rato Josefina renuncia ao exercício
individual do canto para fundir-se na enunciação colectiva da «inúmera
multidão de heróis do [seu] povo». Passagem do animal individuado à
matilha ou à multiplicidade colectiva: sete cães músicos. Ou então, ainda nas
Pesquisas de um cão, os enunciados do investigador solitário tendem para o
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Memória (Evaristo, 2013) e Ponciá Vicêncio (Evaristo, 2003); contos publicados nos
Cadernos Negros (2011b; 1993), e nos livros: Insubmissas Lágrimas de Mulheres
(Evaristo, 2011a) e Olhos d’Água (Evaristo, 2015).
Juntando as linhas, tecemos observações a respeito de três aspectos, buscando
demonstrar como eles funcionam, nas memórias da narradora, e em outros textos em
prosa de Evaristo, dentro de um movimento oscilatório entre ritornelos, ora estilhaçando
os territórios, ora inventando outros campos de possível a partir dos cacos
desterritorializados.
Ao fim aproximamo-nos mais das falas de Conceição Evaristo acerca da
escrevivência, procurando demonstrar como sua escrita parece retomar a função do
griot, resgatando o poder sobre meios de produção da memória relacionada ao devir-
negro. Conceição Evaristo dialoga muito também com a representação do feminino, e
mais especificamente do feminino negro, no entanto optamos por nos focar mais, aqui,
na questão afro-brasileira.
É importante ressaltar novamente que por vezes preferimos nos referir a um
“devir-negro” mais que a um “povo negro”, essa opção se dá por acreditarmos que a
escrevivência atua num campo maior que apenas na construção da memória do povo
negro. Ao dizermos que sua escrita abre campos de possível de um devir-negro,
apontamos para uma construção emancipatória narrativa e memorialística que extrapola
a história do povo negro, na verdade a voz de Evaristo (quando pensamos na questão
afro-brasileira), acreditamos, pode atuar como ritornelo existencial coletivo para além
de uma minoria (seja negra, feminina, etc.), engrenando de forma importante na
produção de subjetividades através de processos de singularização inclusive naquele
campo pré-pessoal, não-humano, das subjetivações parciais.
Com este artigo esperamos contribuir com os estudos em torno da obra de
Conceição Evaristo e da literatura afro-brasileira. Como já dito anteriormente, este não é
um trabalho fechado, ainda estamos em movimento em nossos questionamentos e
reflexões, e não pretendemos com ele dar respostas mais do que levantar perguntas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Candido, Antonio. 1995. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 1995. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. São
Paulo: 34.
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Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 2003. Kafka – para uma literatura menor. Lisboa:
Assírio e Alvim.
Duarte, Eduardo Assis; Fonseca, Maria Narazeth Soares (orgs.). 2011. Literatura e
afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, p. 103-116.
Evaristo, Conceição. 2005. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In:
Moreira, Nadilza Martins de Barros; Schneider, Liane (Orgs.). Mulheres no mundo:
etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, p. 201-212.
Evaristo, Conceição. 2011b. Lumbiá. In: Ribeiro, Esmeralda; Barbosa, Márcio (Org).
Cadernos negros: contos afro-brasileiros, v. 34. São Paulo: Quilombhoje.
Guattari, Félix. 1992. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: 34.
Hall, Stuart. 2005. A identidade cultural na pós modernidade. Trad. Tomás Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. Ed. 10, Rio de Janeiro: DP&A.
Jesus, Carolina Maria de. 1960. Quarto de Despejo. São Paulo: Lino Gráfica Editora.
Petit, Michele. 2009. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. São Paulo: 34.
Zumthor, Paul. 2007. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e
Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1305-1320
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1305
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Com base na literatura de Mia Couto e na convergência estrutural e linguística deste
com Guimarães Rosa, pretendemos identificar correspondências simbólicas e alegóricas
entre o universo ficcional e a história da guerra colonial em Moçambique, bem como
seus desdobramentos pós-coloniais. Ao mesclar ficção e documentário, tal literatura
traça um retrato poético e alegórico da Moçambique contemporânea, de cujo contexto
despontam inventários de fragmentos, modulações melancólicas de vozes a reverberar
rastros de tradições, ritos e mitos de um país em ruínas. Por sua feita, Guimarães Rosa,
escritor brasileiro, implode e estilhaça, kafkianamente, os hábitos linguísticos
cristalizados na Língua Portuguesa, fazendo cintilar — nos interstícios minados da
língua formal — uma outra língua, “sua língua brasileira”, instrumento mediante o qual
ele postula o direito de renovar a língua, para renovar a literatura e a vida: “Minha
língua é a arma com a qual defendo a dignidade do homem (...). Somente renovando a
língua é que se pode renovar o mundo” (1994: 52). Este trabalho salientará, enfim, não
apenas acontecimentos traumáticos, perdas e luto, mas também instantes de superação e
travessia – cintilações a iluminar devires, espaços ainda desabitados, práticas nômades,
a hibridez de histórias, culturas e zonas fronteiriças de que fala Mia Couto, escritor cuja
literatura confere visibilidade à história traumática da Moçambique pós-colonial. Para
tanto, ancorar-nos-emos nas imagens de entre-lugar ou de não-lugar, obscuros limites
fluviais através dos quais Guimarães Rosa faz um barco à deriva deslizar n’ “A terceira
margem do rio”, conto com o qual Mia Couto entabula um fecundo diálogo.
6 UFMG, Faculdade de Letras, Rua Sagitário, 81/302, Bairro Santa Lúcia, CEP 30360230, Belo
Horizonte, MG, Brasil, marlifan@terra.com.br; Este trabalho pode ser produzido graças à Bolsa de
Produtividade em Pesquisa e à Bolsa Pesquisador Mineiro a mim concedidas pelo CNPq e,
respectivamente, pela FAPEMIG.
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fluidos entre literatura e história de que trata a literatura de Mia Couto. Como supra
margem”, viaja pelas “ilhas e croas” do conto “A terceira margem do rio” (ROSA,
1969). Quiçá um “estar no mesmo barco” que se deixa singrar à deriva, bordejando ilhas
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que nem sei, da dor em aberto, no meu foro. Soubesse-se as coisas fossem outras. E fui
tomando ideia” (Rosa, 1969: 36).
Ao tentar recorrentemente modificar, no presente, um acontecimento já
consolidado no passado, o narrador sempre falha em seu empreendimento. Primeiro,
porque o passado já não existe mais. Segundo, porque o que aconteceu no passado só
existe como memória, como lacuna, como falta. Assim, buscar no “real” o pai ausente
não vai trazê-lo de volta. Quando, por conseguinte, o narrador se oferece em sacrifício
para ocupar o lugar do pai na canoa, já fica aí inscrito o malogro. A empresa será vã,
como é vão o apelo: “— Pai, o senhor está velho, já fez seu tanto... Agora, o senhor
vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas
vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa...” (Rosa, 1969: 37).
Todavia, cada um é cada um, e cada canoa é uma canoa: ambos únicos,
singulares e não intercambiáveis. Portanto, ocupar o lugar do pai na canoa é o mesmo
que entrar no lugar dele, no que ele viveu, na história dele, em suma, no “real”. Isso
todavia não é possível, ainda que o pai chegue a franquear ao filho a permuta. É assim
que, um dia, este finalmente vê sua demanda quase realizar-se: o pai rema a canoa em
direção ao filho, acenando sinais de aceitação de que ele ocupe seu lugar (dele, o pai) na
canoa. O filho, contudo, recua, já não mais podendo assumir o que pretendeu por tanto
tempo.
E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá,
num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de
além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o mais frio dos
medos, adoeci. Sei que ninguém mais soube dele. Sou homem depois desse
falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado (Rosa, 1969:37).
Sem nome e sem saída, o narrador e prot/post(agonista) do conto é sujeito-objeto
da travessia que simultaneamente comporta presença e ausência. Mal se equilibrando na
borda da linha onde o excesso de lucidez desliza para a loucura, ele rejeita a lógica
hegemônica impingida à condição errante do pai, quando afirma: “Ninguém é doido.
Ou, então, todos” (Idem: 36). Deixando-se, enfim, atravessar pela perspectiva do
“outro”, o filho, contra todas as expectativas, opta pela surpreendente e paradoxal
eleição da “alteridade”, do fluxo em mão dupla, de formas não consensuais do habitar,
da desterritorialização, do vir-a-ser, o que lhe torna finalmente possível saltar do “real”
ao relato. Vale dizer: ele não se cala. E é justamente por falar, por realizar o relato de
seu vivido, que lhe é dado ocupar sua própria canoa, sua própria construção simbólica.
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Travessia possível, mas realizável tão somente na linguagem, esta terceira margem onde
o homem se reconhece em sua humanidade.
Ora, importa salientar que o medo, o luto e a culpa não se redimem no real, visto
este ser para sempre irrecuperável. Ao agenciar a constituição do sujeito enquanto ser
constituído pela linguagem, o “acontecimento” foucaultiano, posto desencadear e
reavivar, posto que parcial e fragmentariamente, experiências de perda e sofrimento,
solidão e culpa, constitui uma “ponta deslocada do presente”, cuja astúcia reside na
transformação paradoxal da ausência, da perda, do silêncio no “primeiro lugar do
discurso” (Foucault, 2006: 31). Justamente a transformação “indispensável para a
constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos”, com aptidão, portanto, para
interferir na reconstituição e renovação de histórias individuais e mesmo coletivas.
Portanto, é na linguagem, tão-somente na própria linguagem, conforme o postula De
Man, que a ‘culpa’ se resolve” (Apud Foucault, 2006: 16).
Caminhando para a fragmentação, a opacidade e o inacabamento, o conto aposta
na emergência de uma “terceira margem”, onde as singularidades são plurais e regidas
pelas águas da palavra. Onde o sujeito da enunciação faz da ausência do pai o lugar
onde principia seu próprio discurso, sua autonomia e liberdade. Somente, enfim, pela
terceira margem - as margens das palavras - é-lhe dado instituir seu lugar como sujeito
do discurso. Ele, homem, canoa, rio, fluxo em interminável travessia simbólica: Mas,
então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem numa
canoinha de nada, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a
dentro – o rio (Rosa, 1969: 37).
Como o faz em sua literatura em geral, Guimarães Rosa, também neste conto,
implode e estilhaça, kafkianamente, os hábitos linguísticos cristalizados7 na Língua
Portuguesa, fazendo cintilar — nos interstícios minados da língua formal, imposta pelo
colonizador — uma outra língua, sua “língua brasileira”. Em entrevista a Gunther
Lorenz, Rosa postula o direito de renovar a língua, para renovar a literatura e a vida,
devolvendo, assim, a dignidade ao homem: “(...) minha língua brasileira é a língua do
homem de amanhã, depois da purificação (...). Minha língua (...) é a arma com a qual
defendo a dignidade do homem (...). Somente renovando a língua é que se pode renovar
o mundo” (Rosa, 1994: 52). Mais do que a temática, são as quebras dos hábitos
linguísticos, a inventividade sintática e vocabular, os paradoxos do não-lugar, da
7 Ver a respeito Deleuze, Gilles, Guattari, Félix. 1977. O que é uma literatura menor? Kafka: por uma
literatura menor. Rio de Janeiro: Imago.
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alteridade e do devir que irão estimular o diálogo da literatura de Mia Couto com a
literatura de Rosa e, de forma mais consequente, com a imagem rosiana da “terceira
margem do rio”.
O cenário preferencial dos livros de Mia Couto, uma das mais relevantes
expressões da literatura africana em Língua Portuguesa, são as guerras coloniais e seus
traumáticos desdobramentos. Ao mesclar ficção e documentário, suas narrativas (de Mia
Couto) traçam um retrato poético, político e alegórico da Moçambique contemporânea,
de cujo contexto despontam inventários de ruínas, fragmentos, modulações
melancólicas de vozes a reverberar rastros de tradições, ritos, mitos de seu país.
Durante os 11 anos em que Moçambique foi palco da sangrenta guerra pela
libertação, distintos grupos internos se associaram contra a colonização portuguesa.
Conquistada a independência, em 1975, esses grupos começam a polarizar-se na disputa
pelo poder. Encabeçada por duas facções rivais, Frelimo e Renamo, a disputa toma a
forma de uma sangrenta guerra civil que irá transformar Moçambique num grande
território minado, em cujo solo cerca de um milhão de bombas serão semeadas. “Finda a
disputa ideológica, uma transição patrocinada pela ONU conduziu Moçambique ao
pluripartidarismo democrático em 1992, deixando pelo caminho 16 anos de guerra civil
e o saldo de um milhão de mortos”. Posto a intervenção ter dado cabo à guerra civil,
ainda hoje se colhem os frutos podres do plantio de minas terrestres por todo o país, que
se tornou um dos campeões mundiais em número de mortos e mutilados em decorrência
desse meio de destruição em massa.8
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Não sabia, porque, como é possível perceber, com base na leitura de Grande
sertão: veredas de Guimarães Rosa, o tempo da travessia é o tempo da experiência,
sobre o qual só teremos oportunidade de refletir, depois que já atravessamos, ou seja,
depois que passamos do vivido ao relato, da experiência à vivência. O tempo do vivido
é o tempo da guerra, do trauma, do real em estado bruto, como bem o percebeu
Riobaldo, narrador do romance rosiano: “Digo: o real não está na saída nem na chegada:
ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1984: 60). Assim sendo, é
somente através do relato ou a partir dele que nos damos conta do que nos aconteceu,
daquilo que ganhamos ou que perdemos durante nossa “travessia”.
Procurado pelo tio que lhe mente, prometendo realizar-lhe o sonho de poder
frequentar a escola, o menino volta do meio de sua travessia, mas é surpreendido por
uma explosão:
O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem.
De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno
pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas
migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:
- Vens pousar quem, ndlati?
O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem.
De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno
pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas
migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:
— Vens pousar quem, ndlati? (...)
— Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal das
contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me?
E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem
de sua chama (Couto, 1987: 54; grifos do autor).
O pequeno guardador de rebanhos viu descer o ndlati, a ave do relâmpago, que o
deixa tão bestializado e tão sem alternativas quanto o boi, ambos à mercê de bombas
que não oferecem às suas vítimas nenhuma alternativa de fuga, já que, quando não são
cuspidas do céu, brotam do fundo da terra.
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Um ilha pós-utópica
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ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem:
vou ao enterro de meu avô Dito Mariano. Cruzo o rio” (Couto, 2002: 15).
Todavia, ele se vê às voltas com a obrigação de restaurar a história familiar e
coletiva, as tradições, os segredos e a corrupção responsáveis pela presente miséria e
degradação da ilha, com os quais, todavia, dado seu afastamento, não se identifica nem
se acha implicado. Espaço arcaico e mítico, povoado de intrigas e vinganças e marcado
pela prática de feitiços e ritos primitivos, a ilha, malgrado separar-se geograficamente a
cidade apenas por um rio (Madzimi), dela se mostra distante, como se ambas – cidade e
ilha – fossem duas nações estrangeiras e, portanto, irredutíveis uma à outra:
Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a
cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam
mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito.
São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de
duas gentes, duas almas (Couto, 2002: 18).
Ao abordar a questão da modernização da nação moçambicana, José Luís
Cabaço afirma que “a nação moçambicana unitária e solidária era o desígnio da
FRELIMO”, salientando que a (re)construção da identidade moçambicana decorreu de
um conceito nacional unitário (Cabaço, 2009: 318-319). Indissociável da proposta de
fundação de uma nova identidade nacional, evidencia-se o combate aos vícios e defeitos
herdados tanto do colonialismo quanto das tradições, combate este consubstanciado pela
“criação do homem novo” (Cabaço, 2009: 304-305). Samora Machel, eleito presidente
da FRELIMO em 1970, concede, neste mesmo ano, uma entrevista em que pleiteia que
“a ciência vença a superstição”. Tendo tal projeto em vista, propóe uma nação
unificadora que, no nosso entendimento, ignora as alteridades, a diversidade cultural e,
portanto, as tradições e valores de uma ilha tão heterogênea quanto a de Moçambique.
Sua palavra de ordem é, nesse sentido: “Unir os moçambicanos, para além das tradições
e línguas diversas, [o que] requer que na nossa consciência morra a tribo para que nasça
a nação. [...] Devemos adquirir uma atitude científica, aberta, livre de todos os pesos da
surspertição e tradições dogmáticas” (Machal, apud Cabaço, 2009: 300).
Curiosamente, o “homen novo”, que vem da “nação” para libertar a ilha de seu
encarceramento, fará, na ficção de Mia Couto, um caminho inverso à trajetória
programática imposta ao “homem novo” preconizado pela FRELIMO dirigida por
Machal. Em clima de realismo fantástico, o (quase defunto) avó (ficcional) não pode ser
enterrado, uma vez que, depois da guerra, a terra se fecha, irredutível à abertura de
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novas covas: “Soterraram muita gente baleada, o chumbo transvazara dos corpos
enterrados para o chão. Agora já não havia cova, nem fundo. Já nem terra poderíamos
extrair da terra. É a vingança da terra, [o coveiro] repetia” (182). Outra razão da morte
inacabada deriva do fato de que, sendo o avô o “mais velho” dos Malilares, cabe-lhe a
tarefa de transmitir ao neto os valores ora perdidos, de fazê-lo inteirar-se de mistérios
insondáveis, de ensinar-lhe a decifrá-los para, a partir de então, restaurar a paz, a ordem,
as tradições – familiares e coletivas. Ou seja: fundar um “mundo novo” sem
paradoxalmente destituí-lo de suas tradições.
A sabedoria e as revelações necessárias às mudanças vão ocorrendo à medida
que o avô agonizante dita cartas ao neto. Assim, somente depois de clarear o obscuro e
o nebuloso (sobretudo a revelação de que Dito Mariano, o suposto avô de Marianinho,
é, na verdade, seu pai) é que a morte do patriarca poderá consumar-se. Ele será, então,
enterrado na margem do rio. Num esvoaçar mágico, as folhas escritas soltam-se das
mãos do narrador e se adentram no solo, onde o corpo do patriarca dos Malilanes
encontrará seu repouso.
Me faça um favor: meta no meu túmulo as cartas que escrevi, deposite-as
sobre o meu corpo. Faz conta me ocuparei em ler nessa minha nova casa.
Vou ler a si, não a mim. Afinal, tudo o que escrevi foi por segunda mão. A
sua mão, a sua letra, me deu voz. Não foi senão você que redigiu estes
manuscritos. E não fui eu que : ditei sozinho. Foi a voz da terra, o sotaque do
rio (Couto, 2002: 238).
Vista sob a perspectiva alegórica, a narratica do romance ancora-se no impasse
cultural, religioso e sócio-político da Moçambique contemporânea. Marianinho encarna
os filhos da terra cuja missão utópica é restituir ao continente os antigos valores e
tradições esfacelados pelas guerras e, posteriormente, por novas formas de poder
hegemônico bem como pela globalização. Na enigmática ilha Luar-do-Chão, onde um
rio armazena a memória dos espíritos, e a terra sofre com feitiços arcaicos (e modernos),
a tarefa de Marianinho é encontrar uma forma de levar adiante uma história que, além
de pessoal e familiar, é também política e sócio-culturalmente parte da Moçambique
pós-colonial. É necessário, conforme o testemunho de Marianinho, que os jovens
subsumam a voz dos pais, dos avós, dos guardiães da memória e das tradições, pois,
caso contrário, a África e especialmente Moçambique — com cada uma de suas “ilhas”
— corre o risco de desaparecer no fluxo do rio, o divisor de águas entre o passado e o
presente, o colonial e o pós-colonial, a guerra e a paz.
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Bhabha, Homi K. 1998. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila et al. Belo Horizonte:
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_________. Diálogo com Guimarães Rosa. Guimarães Rosa: ficção completa. 2 V. Rio
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1320
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1321-1336
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1321
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Júlia ALMEIDA9
RESUMO
No esteio dos estudos pós-coloniais e culturais, em que se inscrevem as narrativas de
sujeitos deslocados pela violência e precariedade herdadas dos dispositivos de poder-
saber coloniais, colocam-se em questão os modos de viver e narrar da diáspora africana,
disseminada pela escravidão transatlântica. Não raramente, a produção cultural dessa
diáspora reescreve, de uma perspectiva afro-identificada, experiências de remoção e
despejo vividas por sujeitos que, excluídos dos benefícios do nacional e dos direitos à
cidade, são levados a resistir ou a deambular pelas periferias das cidades
contemporâneas. Os romances Becos da memória, da escritora brasileira Conceição
Evaristo (2013), e Texaco, do escritor martinicano Patrick Chamoiseau (1992),
ficcionalizam processos de remoção urbana na segunda metade do século XX e podem,
em cotejo, através de crítica comparatista e interdisciplinar, produzir cartografias muito
vívidas de nossos espaços urbanos e suas fortes heranças coloniais, que ainda exigem de
nossas sociedades um esforço grande na direção de sua superação.
9 UFES, Departamento de Línguas e Letras, Av. Fernando Ferrari, n. 514, Goiabeiras, 29060-900,
Vitória, Espírito Santo, Brasil, almeidajulia@terra.com.br
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que poderíamos estender às Américas em geral são também atravessadas pela diferença
e pelo modo como povos e países foram negociando as relações entre: uma
presença/ausência africana ao mesmo tempo reprimida, resistente e redescoberta; uma
presença dominante europeia, que institui a diferença colonial, mas é também
sincretizada, contagiada; e a presença do Novo Mundo, a do território e dos numerosos
deslocamentos de colonizadores, povos indígenas, escravos, imigrantes, o lugar das
diásporas e suas narrativas de deslocamentos.
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palavras, sons, vozes ouvidas na infância e que são transformados em histórias para
incomodar o sono injusto das elites:
Escrevo como homenagem póstuma à Vó Rita, que dormia embolada com
ela, a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas, às
crianças vadias que habitam os becos da minha memória [...] Homens,
mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados
eram os barracos de minha favela (Evaristo, 2013:30).
Vários pesquisadores que se debruçaram sobre a obra registraram essa
pluralidade de vozes que aí se inscrevem: romance coletivo, na compreensão de
Eduardo de Assis Duarte na orelha do romance, justamente ilustrando aquilo que a
partir de Zilá Bernd (1988) passa a ser um aspecto da compreensão dessa literatura afro-
brasileira: a ampliação da voz individual em direção à coletividade.
Mas o sentido que se tece dessas narrativas ouvidas não é outro que a incômoda
relação passado-presente: “duas ideias, duas realidades, imagens coladas machucavam-
lhe o peito. Senzala-favela” (Evaristo, 2013:104). Eis a contração tempo-espacial que a
protagonista passa a viver no decorrer das escutas e andanças pela favela e que será a
chave de seu aprendizado e da vontade de escrever essa “história viva que nascia das
pessoas, do hoje, do agora” (2013:209):
Pensou em Tio Totó. Isto era o que a professora chamava de homem livre?
[...] Tinha que contar sobre uma senzala que, hoje, seus moradores não
estavam libertos [...] olhou novamente a professora e a turma. Era uma
história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do
agora. Era diferente de ler aquele texto” (Evaristo, 2013: 209-210).
Uma outra história que “um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as
vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, o grito abafado de cada
um e de todos. Maria-Nova um dia escreveria a fala de seu povo” (Evaristo, 2013: 247,
grifo nosso).
Em Texaco, Marie-Sophie Laborieux é quem narra as muitas histórias de seu pai
Esternome ao urbanista da prefeitura que chega ao bairro para tratar da remoção, por
fim registradas em cadernos junto à Biblioteca Schoelcher, cujas notas o romance
apresenta aqui e ali, indicando o número do caderno, a página e o ano. Num deles,
registra-se a voz viva de Esternome à filha Marie-Sophie (Chamoiseau, 1993:87, grifo
do autor):
Oh, Sophie, meu coração, você diz “a História”, mas isso não quer dizer
nada, há tantas vidas e tantos destinos, tantas trilhas para fazer nosso único
caminho. Você, você diz a História, eu, eu digo as histórias. Aquela que você
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acredita ser a raiz de nossa mandioca é apenas uma raiz entre um bocado de
outras...
Caderno no. 6 de Marie-Sophie Laborieux
Página 18. 1965. Biblioteca Schoelcher.
Aqui também há uma reescrita da história nessas histórias contadas oralmente
por seu pai Esternome e recontadas por Marie-Sophie, que nos levam ao espaço-tempo
das fazendas de cana, onde os pais de Esternome viveram como escravos: o pai, deixado
morrer numa masmorra por sua resistência à escravidão, a mãe insistindo em ter um
filho em meio às palavras de ordem “nada de filhos da escravidão”. Os relatos de
Esternome vão, assim, das histórias de seus pais à sua história de escravo casualmente
liberto por salvar a vida do senhor de escravos, que deambula entre fazendas e cidades
no período pré e pós-abolicionista atraído pelas cidades de Saint-Pierre e Fort-Royal,
posteriormente chamada de Fort-de-France. Pelos “jardins da memória cultivados por
Esternome – “a memória tem seus jardins: ela não brota como capim” (Chamoiseau,
1993:65) – temos acesso ao mundo dividido da escravidão que, mesmo com seu fim e
com o avanço do tempo, apresenta-se segregado entre campo e cidade, entre negros do
campo e da cidade, entre sujeitos em escalas de cor – “Meu Esternome aprendeu a
designar cada pessoa de acordo com seu grau de brancura ou o azar de sua negrura”
(1993:71) –, entre liberdade e trabalho, entre “rostos da cidade” que o urbanista aprende
a ler a partir dos relatos de Marie-Sophie (1993:155):
Ela me ensinou a reler os dois espaços de nossa vida crioula: o centro
histórico, que vivia das novas exigências do consumo; os cinturões de
ocupação popular, ricos em vestígios de nossas histórias. Entre esses locais, a
palpitação humana que circula. No centro, destruímos a lembrança,
inspirando-nos nas cidades ocidentais e e à guisa de renovação. Aqui, no
cinturão, eles sobrevivem da memória. No centro, perdemo-nos no moderno
do mundo; aqui têm raízes muito antigas, não profundas e rígidas, mas
difusas, profusas, espalhadas no tempo com a leveza que a palavra confere.
Esses pólos, unidos ao sabor das forças sociais, estruturam com seus conflitos
os rostos da cidade
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras
Pasta no. 3, Folha XVI. 1987. Biblioteca Schoelcher
Os dois romances nos levam, assim, a pensar a memória e a preservação desses
vestígios de homens e mulheres como estruturantes das experiências negras no processo
de ocidentalização forçada da diáspora, estando a sobrevivência e o entendimento do
mundo atrelados à escuta e à escrita dessas outras histórias que a história oficial
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Chamoiseau que iremos abordar nesse segundo subtópico do cotejo dessas duas
narrativas de remoção.
A questão dos tropos discursivos presentes nas literaturas da diáspora negra nas
Américas tem sido proposta de diferentes abordagens: Henry Louis Gates Jr. (1988),
numa perspectiva bakhtiniana, entende a produção de significados e formas discursivas
a partir da tradição vernácula negra como crucial para entender a produção literária
afro-estadunidense que, nas margens do discurso, envelopa sua linguagem com
metáforas, ambiguidades, jogos de palavras, ironias paródias etc. Stuart Hall (2003),
sobre a produção cultural no Caribe e nos Estados Unidos, mostra como um substrato
metafórico próprio à experiência do sofrimento e exílio, do livramento e da redenção,
que está nas narrativas judaicas da Bíblia, serve, nas diásporas negras, para tratar para
tratar da fuga da escravidão, do cativeiro, em um jogo de metáforas paralelas,
constituindo um duplo texto que interessou aos estudos culturais.
Em Texaco, esse substrato metafórico associado ao texto bíblico e seus
significados é ativado explicitamente por Chamoiseau pelas escolhas lexicais dos
títulos que dividem as partes: “Anunciação”, “O sermão de Marie-Sophie Laborieux”,
“Tábua primeira”, “Tábua segunda”, “Ressurreição” etc. Nossa leitura observou no
corpo dos dois romances a recorrência de metáforas relacionadas à terra, ao plantio, ao
território, que nos parecem constituir significados muito ricos da condição de
desenraizamento e de territorialização precária dessas populações negras nas Américas,
que atestam a grande oposição formativa do século XIX entre campo e cidade, a
partição entre centro e periferia no século XX e anunciam o que seria a possível
oposição crucial do século XXI entre os que têm casa e emprego e os que vagam à
procura de um alojamento provisório e algum recurso para subsistência (Haesbaert,
2014:311)
Em Becos da memória, as referências à terra, ao território e à cidade constituem
uma via de acesso pela linguagem ao processo de desenraizamento constante da
população negra, sobretudo pelas narrativas de Tio Totó, que nasce após a “Lei do
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de Becos da memória: “mais duas ou três torneiras foram retiradas. Era preciso
pressionar e encurralar o pessoal” (2013:207), até o momento em que “as mudanças,
trouxas, latas, meninos e grandes, cachorros, desamparo, merda e merda, tudo era
acomodado desacomodadamente no caminhão” (2013:115) ou, na falta disso, “houve
pessoas que assumiram a mendicância e foram morar na rua” (2013:243)
É Negro Alírio, no romance, “o único que pisava num solo que sabia ser seu”
(2013:215), pois aprendera não só a “ler cada palmo da terra, cada pé de cana, cada
semente de milho”, como lia a realidade, “o que estava e o que não estava escrito” e
“cada rosto de um irmão seu” (2013:90). A territorialização comunitária que constrói ao
seu redor faz frente ao sofrimento isolado de cada um, de cada família desterrada pelo
processo do desfavelamento. O “solo” em que Negro Alírio planta sua vida é o da
leitura, da compreensão do mundo, da libertação, da luta, da construção da vida.
“Direitos sonegados” é o que resulta de sua leitura da realidade: “que todo mundo
fizesse uma voz única em coro, que fosse capaz de produzir um som eternamente
audível, ressoando os lamentos e os direitos sonegados de todos” (2013:230).
Texaco dilata ao infinito as dobras e o espaço narrativo de uma possível
remoção, entre a “Anunciação”, que traz a visita do urbanista ao bairro a “questionar a
utilidade de nossa insalubre existência” (1993:21), e a “Ressurreição”, que fornece uma
imagem cristalina do bairro sendo consolidado com a interrupção do processo de
despejo. Entre essas duas pontas, as muitas narrativas que reconta Marie-Sophie
Laborieux, de seu pai e avô e de si própria preenchem, com linguagem desconstrutora,
essas grandes temporalidades rasuradas que vão de “tempos de palha” do século XIX
aos “tempos de fibrocimento” e “tempos de concreto” do século XX, quando em 1950
funda Texaco. Até que no início da década de 1980, ocorre a visita do urbanista para a
demolição do bairro, mas, por conta de sua longa narrativa e luta, torna-se a
“reabilitação” de Texaco, a quem ela chama: “minha obra, nosso bairro, nosso campo de
batalha e de resistência. Ali levávamos adiante uma luta pela Cidade, começada já havia
mais de um século” (Chamoiseau, 1993:33).
Essa “luta pela cidade”, que é uma luta pelo território, começa, no entanto, na
escravidão de seu avós, relembrando “uma terra impossível que ele murmurava África”
(1993:45), passa pela “conquista da casa-grande” por seu pai, que erguia-se
panopticamente no centro da fazenda e era avistada “de qualquer lugar onde
trabalhassem” – com o “olhar furtivo que teríamos mais tarde diante das cidades ou de
suas catedrais” (1993:48) –, pela descoberta da cidade “aberta aos ventos” pelo pai
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alforriado, fugindo dos campos e assumindo os trejeitos de “negro livre da Cidade”, que
lhe fazem se distanciar dos “negros da roça”, “negrões” ou “negros na coleira”. Difícil
decisão, com a abolição e a substituição da ilusão da divisão das terras pela “cantiga do
Trabalho”, entre ficar no campo – onde “os negros teriam preferido [...] para existir. O
campo para se alimentar. O campo para ser compreendido, o campo para morar”
(1993:81) – e a cidade: “Cidade alta. Cidade maciça. Cidade portadora de uma memória
da qual estavam excluídos” (1993:80); “cidade apinhada de negros errantes”
(1993:107), cidade-enigma. Errando pelas cidades com seu pai está Ninon e, depois de
sua morte, Indoménée, ex-escrava de uma fazenda próxima a Fort-de-France, que será a
mãe de Marie-Sophie.
Aos poucos, em novos “tempos de madeixa e caixote” que iniciam o século XX,
essa oposição entre campo e cidade vai dar lugar a uma rica semântica que dividirá os
dois espaços da cidade entre “centro histórico, ocidental” e “cinturões que sobrevivem
da memória”, entre centro e “bairro dos miseráveis”, entre “oceano” e “havre”, entre
“cidade” e a pergunta “e isso é uma cidade?”, entre cidade e “terra instável” que luta
contra a água, entre homens, que têm por única tarefa construir o próprio barraco, e
mulheres, que precisam encontrar comida “sem ter uma roça”, devendo “plantar em si
mesmas um pequeno roçado de astúcias” (1993:156-157).
É o tempo de Marie-Sophie criança, que encontrará mais tarde, com a morte dos
pais e a perda do barraco, seus próprios meios de sobrevivência na cidade, vagando de
“casa em casa, de patroa em patroa” (1993:202) até a primeira fundação de Texaco, em
“tempos de fibrocimento”, seguida de expulsão policial, quando a cidade, mesmo com
uma prefeitura de esquerda, “não se oferecia fácil como um prato de mingau”
(1993:274). Foi preciso que “os comunistas compreendessem” esse “proletariado sem
fábricas, sem oficinas, e sem trabalho, e sem patrões, perdido nos biscates, mergulhado
na sobrevivência [...] Que gente é essa? (1993:279, grifo do autor), que apoiassem sua
instalação nas colinas e Texaco foi então refundada por um “bando aquilombado, ainda
desorganizado no centro da batalha” (1993:280).
A rica construção de imagens, em Texaco e Becos da memória , da saga dessas
famílias em busca de um território entre várias gerações fala desse processo caótico de
territorialização da diáspora negra nas Américas, que desde a perda de seu território na
África, como mostra Evaristo, deambula pelas margens de nossas sociedades que lhes
negou reiteradamente o direito à terra, ao campo, o que deveria ter sido a primeira
opção para a fixação do grande contingente de escravos deslocados das fazendas, e
1333
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
também lhes nega o direito à parte estável e organizada dos território das cidades,
empurrando-os para os morros, para construírem por conta própria seus territórios
possíveis até que outras forças de desterritorialização os atinja, remova-os de território
precário em território precário ou, como no final de Texaco, que a cidade se reconcilie
com a cidade, com a reabilitação de Texaco, “a absorção progressiva que a Cidade fazia
daquele local mágico” (Chamoiseau, 1993:345).
Palavras finais
1334
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
coletiva da escravidão transatlântica e de sua diáspora, que se fez e se faz silenciar por
vários meios, inclusive pela não criação pela França do prometido “Centre nacional pela
memória das escravaturas e duas abolições”, idealizado por Glissant para ser
exatamente o espaço de porosidade e transversalidade entre povos na pesquisa da
escravidão e de suas heranças.
Se podemos convocar com alguma propriedade o conceito de estrutura de
sentimento de Raymond Williams (2011) para abarcar essas escritas diaspóricas que se
fazem à distância, entre línguas, países e espaços diversos, é exatamente nesse sentido
de escrita de histórias transversais que ligam os muitos fios soltos de nossa memória
coletiva. A literatura faz, assim, esse trabalho transversal de tornar menos “opacas”,
“indistintas” e “impermeáveis” as várias escravidões do povo negro, fazendo “o
movimento contrário do que se passa nas histórias das escravaturas” (Glissant,
2007:147), tornando-se um vetor da memória coletiva e da solidariedade entre os povos
que viveram a escravidão transatlântica.
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1336
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1337-1352
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1337
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este estudo objetiva ler na poesia de Manoel de Barros o desenho de uma cartografia
linguística singular. Aponta-se hipótese de que o texto de Barros revela na construção
semântica do pantanal imagens que permitem viagem à casa do outro. O Brasil de
Barros é “estranho” a muitos brasileiros e até mesmo à Língua enquanto registro oficial.
A representação poética permite refletir a relação entre literatura e lugares do mundo, e
ainda que de modo ficcionalizado, a experiência do outro, levantará questões acerca da
língua materna, sua morada e alteridade. As palavras em Barros não representam apenas
variação linguística regional, mas também singular, quando desvia de um vocabulário
oficial. Uma nomeação criativa que em sua inventividade, ao personificar a estrada, por
exemplo, desloca o personagem para o objeto e traz neste diálogo que estabelece com a
estrada marcas de uma violência/intolerância na relação com o outro. No resultado desta
pesquisa, entende-se que Barros encena lugar emblemático da cultura brasileira em
torno de elementos que constituem a paisagem de um espaço regional e contribui na
formação de uma identidade histórica pretérita e presente do país, quando busca realçar
a natureza exuberante e singular do Brasil. Isso inaugura novos desafios estéticos e
reposiciona o discurso literário. Metodologicamente, descrever-se-á noções acerca da
ética da hospitalidade; da subjetividade linguística e da dominação cultural linguística;
suporte teórico que fundamenta conclusão e destaca a relevância do espaço poético
como representação de uma cultura estrangeira ao próprio país.
Introdução
10 - Professora no CEUEJF – Centro Universitário Estácio Juiz de Fora. Doutora pela UFF. Rua José
Honório Loures, 191. Alto dos Pinheiros/São Pedro-36036680 – Juiz de Fora – MG – Brasil -
maravioli@yahoo.com.br
11 - Professora no CEUEJF - Centro Universitário Estácio Juiz de Fora. Doutoranda pela UFJF. Rua
Benjamin Constant, 1073/701 – Santa Helena – 36015-400 – Juiz de Fora – MG – Brasil -
paula.castro@estacio.br
1337
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta
que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão
abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. eu
ando por aqui desde pequeno. e sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho
que ela mancha que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Ela não tem indiferença pelo meu passado. eu sinto mesmo que ela me
reconhece agora, tantos anos depois. eu sinto que ela melhora de eu ir
sozinho sobre seu corpo. De minha parte eu achei ela bem acabadinha. Sobre
suas pedras agora raramente um cavalo passeia. E quando vem um, ela o
segura com carinho. Eu sinto mesmo hoje que a estrada é carente de pessoas
e de bichos. Emas passavam sempre por ela esvoaçantes. Bando de caititus a
atravessavam para ver o rio do outro lado. Eu estou imaginando que a estrada
pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser.
Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como deve se
comportar na solidão. Eu falo: “deixe, deixe meu amor, tudo vai acabar.
Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vai
desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe, meu amor. (Barros,
2003a)
A estrada pensa. Não, ela não pensa. O poeta é que, ao dar voz a ela, passa a se
expressar também por ela, para ela, através dela. O abandono da estrada, embora possa
ser sentido por ela, apenas é pensado quando o poeta se dispõe a falar dele. Ele imagina
que a estrada pense; e, inclusive, que ela pense que ele seja como ela – “uma coisa bem
esquecida”. Nisto os abandonos se mesclam, o do poeta e da estrada, distinguindo-se
somente a equívoca pretensão de o poeta pensar que é ele quem ensina como se deve
comportar na solidão. Talvez ele acredite nisto porque possa verbalizar o sentimento de
abandono: “Eu falo:”, mas a estrada poderia buscar sua expressão, quem sabe, de
abandono não nas palavras, mas nos espinheiros, os quais a estão abafando pelas
margens.
Torna-se possível dizer que a representação aqui trazida nasce da capacidade de
ver as coisas fora de seu lugar comum. As sensações que Barros revela neste poema são
intrínsecas a uma pensatividade que se divide entre o homem e a coisa. A coisa não
pensa sem ele e ele não pensaria tal ideia a não ser a partir dela. O poema passará a
existir em si mesmo, valerá por si mesmo e excederá qualquer vivido.
Valer por si mesmo e existir em si mesmo evoca a teoria da significância de
Julia Kristeva (1970), pautada na polifonia das vozes, na intertextualidade e
principalmente na subjetividade, que orientará uma forma de análise na qual as coisas e
os nomes tanto para o escritor quanto para o leitor terão um caráter irrestringível.
Kristeva, com a noção de intertextualidade, procurou vias de superação do fechamento
estruturalista e apontou uma direção nova para a pesquisa literária – a dinâmica da
subjetividade, passando a considerar o sujeito não de forma clássica como sujeito do
saber, mas como sujeito do desejo.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Para explicar sua análise Kristeva considera que tanto a semiótica como a
simbólica (tendências das pesquisas linguísticas) são modalidades inseparáveis para o
processo de significância, que constituem a linguagem, pois o sujeito é sempre
semiótico e simbólico; é na dialética entre elas que se definem os discursos, narrativos,
teóricos, poéticos, ou outros.
A simbólica consiste na denotação da troca codificada pelo seu sentido simples,
ou seja, ela pensará a relação entre linguagem (palavra) e sentido, porém esse sentido
será dado pelo sujeito da enunciação, sujeito fenomenológico, marcado pela sua história
e cultura. A semiótica, preocupada em especificar o modo de funcionamento das
práticas significantes (artes, poesia, mito), irredutíveis à linguagem, representará uma
crítica à noção de signo, capaz de desobjetivar seu objeto e de pensá-lo a partir de uma
fragmentação que oferece à sua conceitualização um desvio, ou seja, um novo modo de
se (in) defini-lo e/ou percebê-lo. Isso permitirá que a leitura da poesia se afaste cada vez
mais de um discurso didático e demonstrativo, ou ainda, de um convencionalismo
linguístico.
O signo poético participará de uma linguagem sem um lastro fixo, a qual não se
limita à significação convencional ou arbitrária; ele não cessa de ressignificar-se e
poderá ser motivado por diferentes instâncias. Ao ser motivado, o signo poético
experimenta um fenômeno de significância particular; e, embora faça parte do domínio
de articulação linguística, o seu sentido pode ser diferentemente recortado, obtendo um
valor menos classificatório e mais fenomenológico.
O signo representado pelo seu respectivo significado e significante normativos
servirá como motivo de inquietação poética, impelindo o poeta a remodelá-lo, seja por
contestação, por insatisfação ou, simplesmente, por percebê-lo como realmente
transformado. O signo, que por natureza histórica e social é arbitrário, torna-se passível
de alterações quando percebido pelos sentidos corporais, principalmente no poema. Sua
inscrição visual e acústica, a princípio inalterada, é desviada no discurso poético,
quando um outro sentido é sugerido pela percepção.
A noção de significância na linguagem, descrita por Kristeva, será tomada, aqui,
a fim de ler esse desenho cartográfico singular em Barros, referido na introdução. São
textos contemporâneos que apontam para uma linguagem plural; e que, além disso, em
conformidade com Kristeva, são discursos nos quais se estruturam o conjunto das
relações inconscientes, subjetivas e sociais do sujeito numa atitude de ataque,
apropriação, destruição e construção; numa atitude de violência positiva contra o
1340
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
12 - Chora seria, portanto, o não-reapropriável, a palavra para a qual não há interpretação consistente e
que, segundo Derrida: “permanece absolutamente impassível e heterogênea a todos os processos de
revelação histórica. Ela não é o Ser, nem o Bem, nem Deus, nem o Homem, nem a História.” (Derrida,
2000:33)
1341
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
representações de uma cultura não apenas regional, mas singular aos olhos daquele que
a observa. A leitura de Barros, ou seja, a leitura poética, não é, neste caso, intolerante.
Não há violência na relação com o outro, ainda que ele seja o objeto. Há disponibilidade
nesta chegada, há hospitalidade neste diálogo e sua porosidade não condiz à exatidão e à
lógica prescritas por uma língua normativa. A impermeabilidade do diálogo indefine
sem cessar a representação deste desenho, mapeando uma cartografia linguística
singular, porque é tentando dizer a e à estrada que Barros “desdiz”; é buscando
reconstruir determinada marca histórica-cultural, a partir deste diálogo, que o poeta dá
às palavras motilidade.
Assim, Barros parece desenhar seus poemas que captam imagens simples e
díspares e que, segundo ele, são escavações de coisas inúteis. Na busca das coisas
simples e na tentativa de lidar com a linguagem fora dos padrões convencionais, este
poeta evoca para sua criação um tempo anterior, em que a temática se direcionará à
infância e/ou à origem das coisas. Barros parece buscar chegar às coisas sem o
intermédio da língua: “Era só água e sol de primeiro este recanto. Meninos cangavam
sapos. Brincavam de primo com prima. (...) Não havia instrumento musical. Os homens
tocavam gado. As coisas ainda inominadas. Como no começo dos tempos.” (Barros,
2003b:37). Ele alimenta, assim, um sentido particular que pode ser reduzido ou morto
pela arbitrariedade das palavras ou mesmo pela intolerância cultural, tal como se lê em
O livro das Ignorãças XIX:
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse:
Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem. (Barros, 2001:25)
Em outros versos, também em O livro das Ignorãças III, Barros diz, sobre o
gosto de desnomear. Desnomear seria, pois, como vimos em Kristeva: não sistematizar,
não axiomatizar ou querer dizer definitivamente.
... Mas eram coisas desnobres como intestinos de moscas que se mexiam por
dentro de suas palavras.
Gostava de desnomear:
Para falar barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra.
Rede era vasilha de dormir.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de uma gruta, chamou:
desenhos de uma voz.
Penso que fosse um escorço de poeta.
(BARROS, 2001:79)
Desacostumando as ideias, desarrumando os padrões, desinventando e
descobrindo os nomes e as coisas, Barros, pelos deslimites das palavras, recria os
sentidos, confirmando-nos que o nome pode inscrever uma morte em suspensão, isto é,
o nome apagaria a coisa que precisa ser pensada além desse nome como simples
referente visível.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
que chega é denominada pela filosofia como “espanto” (Dufourmantelle, 2003), mas o
espanto não é outro sentimento a não ser o desamparo por parte daquele que recebe; por
isso, a abordagem linguística que se faz do lugar é uma construção simbólica que
poderá tanto ser estranha ou familiar àquele que chega. Agir com hospitalidade vai
depender, pois, da disponibilidade recíproca dos sujeitos envolvidos nas chegadas.
Aquele que recebe também chega ao outro, porque o estrangeiro é também estereótipo
da alteridade nesta relação.
Se a chegada é, pois, uma mediação de lugares, culturas, memórias, e até mesmo
loucura, podemos na esteira de Jacques Derrida, dizer que a hospitalidade habita a
língua. Porém, qual é a língua dos tempos atuais? Onde caminha o homem atual? Quais
são seus portos de partida e chegada? Impossível dizê-los, mas ele caminha..., e deparar
com o espanto, com o desamparo é uma frequente em sua estrada, marcada
ininterruptamente por um destino que só lhe garante o desconhecido. Por isso o sentir-se
bem-vindo é tão caro. Bem-vindo precisa ser dito e ouvido na acolhida, precisa ser bem
textualizado. É preciso uma textualidade que acolha.
Com vista nestas considerações, arrisca-se dizer que a morada em Barros tanto é
acolhida como estranhamento. Na porosidade do texto poético cabe chegar e partir; cabe
não chegar; chegar e ficar; ou, ainda, chegar e transformar aquilo que é do outro
também em nossa morada.
13- Tuiuiu é uma ave de grande porte (chegando a 1,60m de altura), de corpo robusto, grande bico e
longas pernas. Possui o pescoço preto, com parte da papada vermelha, e as penas brancas. É considerada
o símbolo do pantanal e, cerca de, 50% de sua população mundial vive na região do Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Identifica-se nisto um não-saber ou um saber tão “ínfimo” que será próprio a compor o
Livro sobre nada. Por isso, parece-nos que o fato do tu-you-you aparecer neste Livro,
com forma gráfica de língua inglesa não é gratuito, pois se fosse usado na sua grafia
original, o Tuiuiui poderia não ser nada mesmo. Para ter significância precisa ser you ou
corre risco de não se fazer conhecer.
Afigura-se em Barros o resgate de cultura através da descrição de cenários e
personagens comuns à região do Pantanal Brasileiro que, de certa forma, é “estrangeira”
a muitos brasileiros. Trata-se do resgate de uma cultura popular, regional e, ainda que
tratada como uma experiência individual, retrata traços identitários ao trazer suas
recordações para o imaginário coletivo. Barros traz com maestria a arte como uma
forma de expressão que liga o indivíduo, leitor, ao seu mundo e sua história. História
que trará uma herança de subalternidade inerente de sua origem de país colonizado,
onde contrastes são observados não só na paisagem como também na cultura. Segundo
Shiff (1992:111) alguns artistas e seus escritos buscam trazer à obra um retrato de seus
mundos, "mesmo que esse retrato nunca se complete, pois estamos continuamente
passando por novas experiências e novas imagens de realidade".
Na perspectiva de análise sobre dominação e linguagem, Spivak (2010)
questiona os discursos hegemônicos e as crenças dos leitores e produtores de saber e
conhecimento, ou seja, questiona a construção dos discursos que controlam e
manipulam o outro e "seu intento é principalmente pensar a teoria crítica como uma
prática intervencionista, engajada, contestadora" (p.8). Há, pois, em Spivak (2010), uma
grande "preocupação em produzir um discurso crítico que procura influenciar e alterar a
forma como lemos e apreendemos o mundo contemporâneo" (p.8). Para ela, tanto o
subalterno, como o colonizado possuem um discurso intermediado pela "voz do
outrem", que se coloca em posição de reivindicar algo em seu lugar, porém essa prática
pode ser comprometida quando o intelectual não conhece a fundo o discurso do "outro
da sociedade". Nesse contexto, fica claro uma pretensão do intelectual ou do
colonizador em “achar” que pode falar pelo outro. Mas como falar pelo outro sem que
haja influências? Sem que haja comprometimento de significados e sentidos? Ou ainda,
será mesmo que o outro deseja que falem por ele? Ele (o outro) teria sido perguntado
sobre isso? Ou está sendo vitimado pela violência de uma influencia cultural
dominadora?
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
A poesia em Barros parece negar essa dominação. Barros “ao tomar o partido
das coisas”14 fala por elas em defesa de singularidades e embora isso pareça corroborar
a teoria de Spivak, a textualidade em Barros escapa ou tenta escapar deste lugar de
dominação linguística. O poeta, ao refletir sobre a importância das coisas ínfimas a
partir da geografia do Pantanal, aponta preferências que vão além da intelectualidade e
se aproximam mais da sabedoria popular. Observa-se, portanto, uma enunciação
simbólica como pensado por Kristeva em imagens que encenam, paradoxalmente,
máquinas estragadas e flores; latrinas desprezadas e Deus.
(...)Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo - elas
podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)
Também as latrinas desprezadas que servem pra ter
grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável! (Barros, 2004)
Para Spivak, a tarefa do intelectual, seria criar mecanismos e abrir espaços para
que o sujeito subalterno possa se representar. A autora defende que "não se pode falar
pelo subalterno, mas se pode trabalhar contra a subalternidade, criando espaços nos
quais o subalterno possa se articular e, como consequência, possa também ser ouvido".
(2010:14). Sabe-se, porém, que isso não é simples, pois quando esse subalterno passa a
ter voz, deixa de ocupar essa condição. Trata-se da descentralização do sujeito, do
acesso ao espaço reservado à classe dominante que monopoliza a produção intelectual e,
muitas vezes, aparece como cúmplice de interesses econômicos. Cabe aqui o
questionamento levantado por Spivak (2010) de que o sujeito subalterno é um efeito do
discurso dominante, uma construção; bem como a questão cultural que acaba tendo sua
diversidade oprimida por força imposta como superior ou como mais importante.
Decorrente deste raciocínio, ainda que reconheçamos a produção poética de Barros em
parâmetros da cultura editorial de prestigio no país, há nesta textualidade imagens
cartográficas de “coisas desimportantes” aos olhos dessa cultura; e os índices
linguísticos que pertenceriam à cultura de prestigio não expressam seus valores
convencionais neste contexto poético; ao contrário, são diminuídos quando encenados
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
de modo comparativo, que ladeiam “cu de formiga e usina nuclear; mosca dependurada
no ralo e joia pendente.
Mosca dependurada na beira de ralo -
Acho mais importante do que uma jóia pendente.
Os pequenos invólucros para múmias de passarinhos
que os antigos egípcios faziam.
Acho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.
O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto -
Acho mais importante do que uma Usina Nuclear.
Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais
importante do que uma Usina Nuclear.
As coisas que não têm dimensões são muito importantes.
Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante que seus
pronomes do que por seu tamanho de crescer.
É no ínfimo que eu vejo a exuberância.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo - elas
podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.)
Também as latrinas desprezadas que servem pra ter
grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!
(O abandono me protege) (Barros, 2004)
Para tentar analisar esse processo, precisamos entender o que acontece,
culturalmente, com a colonização. Para Glissant (2005:17) ocorre "um encontro de
elementos culturais vindos de horizontes absolutamente diversos e que realmente se
criolizam, realmente se imbricam e se confundem um no outro para dar nascimento a
algo absolutamente imprevisível, absolutamente novo". Assim se dá o nascimento de
uma nova cultura, que o autor denomina crioula. Porém, essa imbricação não ocorre de
maneira homogenia. O que se observou durante o período de colonização, não só das
Américas, foi uma falta de equilíbrio, onde a cultura do dominador tentou se sobrepor a
do dominado, desvalorizando-a e impondo a necessidade de um resgate futuro.
Tentativa presente hoje no discurso intelectual acadêmico. Em seus estudos, Glissant
(2005:20) defende a importância de uma relação em que as culturas "se intervalorizem"
sem a hegemonia de uma sobre a outra, "que não haja degradação ou diminuição do ser
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nesse contato e nessa mistura, seja internamente, ou seja, de dentro pra fora, seja
externamente, isto é, de fora pra dentro".
Não se trata apenas da cultura, mas também da língua. Essa fusão também
ocorre com a língua quando elementos linguísticos absolutamente heterogêneos entram
em contato. "A combinação desse léxico e dessa sintaxe que - não importa o que se diga
- começa sob a forma de um linguajar rudimentar" (Glissant, 2005:22) criando algo
absolutamente novo que reflete a relação estabelecida com o outro. Portanto, uma
língua, por mais que se sobreponha a outra, carrega consigo rastro desse hibridismo, não
permitindo que a língua, ou a cultura, dita subalterna desapareça. Ela se faz presente,
resurge e toma o seu lugar quando, em Barros, é associada à escrita. Esse renascimento
cultural é tratado pelo poeta em vários textos, não só quando traz os “retratos” nas
poesias descritivas; mas também, quando desloca a morte de lugar finito e transforma-a
em nascimentos. Uma poesia dissertativa, quiça, que anuncia outra possibilidade
cultural para a morte, sendo admissível que da boca – do corpo – cresçam plantas.
Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocaram as árvores por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca em meu olho.
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca pra crescer por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol. (Barros, 2002)
De uma forma poética, Barros nos mostra que a morte pode ser interpretada
como um renascimento sob uma nova perspectiva e que mesmo tendendo ao extermínio,
uma cultura dominada não se extingue, reaparece em pequenas coisas gestos e
contextos. Como no caso da oralidade da língua, que se repete durante o tempo, se
modificando, se afirmando e corroborando para a perpetuação da cultura e o surgimento
de uma nova. Para Glissant (2005:37) "os lugares comuns não são ideias preconcebidas,
mas sim, literalmente, lugares onde o pensamento do mundo encontra um pensamento
do mundo."
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Considerações finais
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ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1353
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RESUMO
No romance Comissão das lágrimas, de Lobo Antunes, a personagem Cristina, uma
mulher angolana, aos quarenta e tantos anos, encontra-se em uma clínica em Lisboa a
escrever, a falar, a lembrar os horrores da Comissão das lágrimas, nome que se deu ao
massacre dos dissidentes do regime de Agostinho Neto em Angola entre 1977 e 1979. O
leitor de Comissão das lágrimas percebe que a voz de Cristina é desdobrável, na
verdade são múltiplas vozes (ao mesmo tempo uma só) que vão construindo o relato, de
maneira fragmentada, embaraçada, descontínua. Este texto tem por objetivo refletir
sobre o testemunho, sua eficácia, sua constituição, e como ele se processa na narrativa
de ficção, estabelecendo um diálogo entre o romance de Lobo Antunes e textos de
Maurice Blanchot, Jacques Rancière, Didi-Huberman e Giorgio Agamben, e tentando
articular respostas para as questões que se seguem. É possível representar o
irrepresentável, se é que ele existe? É possível testemunhar? Como e em que condições
pode um texto literário servir de testemunho e representação do horror? A hipótese este
texto é que, em que pese toda a precariedade da linguagem, o testemunho se manifestará
como um ressoar do evento, uma vibração que o mantém distante da literatura, mas que
confere ao inimaginável o estatuto de hiperimaginável.
O horror e a arte
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16 A partir daqui, as referências ao romance Comissão das lágrimas serão assinaladas apenas com a data
e o número da página entre parênteses.
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[...] this discovery of yours will create forgetfulness in the learners’ souls,
because they will not use their memories; they will trust to the external
written characters and will not remember of themselves. The specific which
you have discovered is an aid not to memory, but to reminiscense, and you
give your disciples not truth, but only the semblance of truth; they will be the
hearers of many things and will not have learned nothing; they will appear to
be omniscient and will generally know nothing; they will be tiresome
17
company, having the show of wisdom without the reality. (Plato, 1991, p.
138).
A idéia da perturbação da letra órfã, que Rancière vai relacionar ao advento da
democracia, aparece em Platão como uma ameaça à verdade, ou à adequação entre o
enunciador, o discurso e o receptor:
And when they [the speeches] have been written down, they are tumbled
about anywhere among those who may or may not understand them, and
know not to whom they should reply, to whom not: and, if they are
maltreated or abused, they have no parent to protect them; and they cannot
protect or defend themselves.18 (Plato, 1991, p. 139).
A escrita propiciaria aos homens não a verdade, mas algo semelhante a ela;
simularia proporcionar o saber, mas os tornaria ignorantes; dar-lhes-ia o vislumbre do
saber desprovido de realidade. O crítico da escrita prossegue em suas considerações,
acentuando seu caráter errante, desprovida de um pai que a proteja, ela que não pode se
defender, entre pessoas que possam ou não compreendê-la, e que não saberão a quem
responder.
O irrepresentável na representação
17 Trad. do autor: “Sua descoberta vai criar o esquecimento nas almas dos aprendizes, porque eles não
usarão suas memórias, irão confiar nos caracteres externos escritos e não vão se lembrar de si mesmos. O
específico que você descobriu é uma ajuda não à memória, mas à reminiscência, e você dá aos seus
discípulos não a verdade, mas apenas a semelhança da verdade, eles serão os ouvintes de muitas coisas e
não terão aprendido nada; eles parecerão oniscientes, mas em geral não saberão nada; eles serão uma
companhia aborrecida, possuindo a aparência de sabedoria sem a realidade”.
18 Trad. do autor: “E, quando eles [os discursos] estiverem escritos, eles irão circular por aí entre os que
poderão ou não entendê-los, e não saberão a quem replicar nem a quem não replicar e, se eles são
maltratados ou abusados, não têm um pai que os proteja ou os defenda”.
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segundo uma hierarquia de legitimação. Essa heresia foi combatida pelas categorias da
inventio (assunto), dispositio (organização das partes) e elocutio (tons e complementos
convenientes à dignidade do gênero e à especificidade do assunto) que edificam o
templo mimético, ou o que Rancière chama regime representativo das artes.
É nesse contexto que o pensador francês situa a ideia de representação. Para ele,
as noções de irrepresentável e de representável não estão relacionadas ao realismo da
representação ou à não-figuração ou, ainda, à intransitividade. Primeiramente, ele recusa
a noção de irrepresentável como a impossibilidade de figuração ou de descrição ou de
narração como fidelidade aos fatos narrados, descritos, figurados, o que para ele é uma
“fábula cômoda” (Rancière, 2012:129). O regime representativo não tem como função
produzir semelhanças, mas organizar os modos de ver e fazer, subordinando-os a uma
regulagem ligada a uma contenção da visão, ao equilíbrio entre efeitos de saber e efeitos
de páthos, e a submissão da ficção a critérios de verossimilhança e conveniência. Em
oposição ao regime representativo, Rancière opõe o regime estético, que vem desfazer
essas obrigações. Tudo então na arte torna-se representável, detonando as fundações do
sistema representativo. No novo regime, a palavra não faz ver o que se situa do outro
lado de sua transparência, mas manifesta sua opacidade, impondo sua própria presença.
A desestabilização da relação clássica entre sensível e inteligível é mais uma
ilimitação dos poderes da representação do que a irrepresentabilidade em si. Para se crer
na segunda possibilidade, é necessária, segundo Rancière, uma dupla sub-repção: uma,
referente ao acontecimento; outra, referente à arte em si. Consideremos o evento
Auschwitz: como acontecimento seria impensável, como arte seria irrepresentável. O
espírito diante desse acontecimento e dessa arte torna-se miserável, tomado pelo terror,
pelo choque inicial que o transforma em refém do Outro, que, “na tradição ocidental,
teria tomado o nome de Judeu” (Rancière, 2012:141). A responsabilidade de pensar o
impensável é transferida ao Outro, cujo testemunho deve ser exterminado: “Deduz-se
daí que o extermínio dos judeus está inscrito no projeto de si do pensamento ocidental,
na sua vontade de aniquilar a testemunha do Outro, a testemunha do impensável no
cerne do pensamento” (Didi-Huberman, 2004:141).
No regime estético da arte, a quebra das adequações não impede a representação;
antes, amplia suas possibilidades, elimina o irrepresentável ao recusar os limites: “Não
há mais limites intrínsecos à representação, não há mais limites para suas
possibilidades” (Rancière, 2012:147).
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O indestrutível
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25 Trad.: “O abismo que os acontecimentos abriram entre nós não podem ser medidos... Pois, na verdade,
é impossível dar-se conta do que aconteceu. O caráter incompreensível relaciona-se à essência mesma do
fenômeno: impossível compreendê-lo perfeitamente, isto é, integrá-lo à nossa consciência.” Impossível,
portanto, esquecê-lo, impossível lembrá-lo. Impossível, também, quando se fala dele, de falar dele ― e,
finalmente, como não há nada a dizer a não ser esse acontecimento incompreensível, é a palavra apenas
que deve narrá-lo sem dizê-lo.
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lo, resta ao discurso narrá-lo ― entretanto, sem dizê-lo. Novamente o inimaginável cede
lugar à imagem do grito de horror. As imagens veiculadas pela enunciação obscurecem
o evento (que se torna mais de memória ― e de esquecimento ― do que de história), é
algo que não pode ser delimitado ou delineado nem pela linguagem nem pelo saber; é
inacessível à subjetividade da representação, às convenções de representatividade, à
construção de conceitos, não há como retê-lo ou elucidá-lo. E, em Comissão das
lágrimas, a comandar (ou descomandar) isso tudo há um perplexo escritor, o António,
que não sabe aonde vai: “... ele que deixara de ser padre há anos, trabalhava num
ministério e no entanto, por onde ias António, e no entanto nada, reparem nos olhos
ocos de medo...” (2011:31-32).
Testemunhar e falar
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exerce nenhuma forma de poder. Cristina não consegue exercer controle sobre a escrita,
que se revela dolorosa, difícil: “... que penoso dizer isso, dá a impressão de ser fácil e
como a caneta demora, as vozes principiam a rarear...” (2011:131). Em outro momento
a enunciadora parece limitar-se a obedecer mecanicamente ao que lhe ditam, ainda sem
controle, ainda sem apreender o sentido da escritura, mas aparentemente sem dor, de
forma automática: “... não percebo o que este livro diz, limito-me a escrever o que as
coisas ordenam...” (2011:138).
As vozes ditam o livro a Cristina; quando estas se calam, ela se torna um ser
“sem substância nem contornos” (2011:167), de lembranças apagadas, de frases sem
sentido, de balbucios incompreensíveis, e “o pavor a crescer” (2011:167). E Cristina
escreve. A escrita é verdadeira? “E se fosse tudo mentira, o que contava mentira, o que
o director da Clínica chamava a sua doença mentira...” (2011:201). A doença então é
mentira, a escritura do livro também é mentira? E portanto a escritura é a doença de
Cristina? O que é então doença, o que é sanidade? O livro então precisa acabar: “...
decidi que este livro vai acabar dentro em pouco...” (2011:201). Que verdade é essa,
uma vez que o livro é mentira? Tudo se abala nas indefinições, na instabilidade do
discurso: “... a Cristina não existe, há frases que principiam a aparecer, tornando o que
digo evidente, mas quando vou escrevê-las somem-se, trago notícias incompletas, não a
verdade inteira...” (2011:204).
O que parece ser uma narrativa é algo próximo a um grito. Mesmo chorar parece
ser da ordem da impossibilidade, como diz Alice, mãe: “se ao menos me dissessem
como se consegue chorar” (2011:22). É como o canto de Orfeu, “le langage qui ne
repousse pas l’enfer, mais y pénètre, parle au niveau de l’abîme et ainsi lui donne
parole, donnant entente à ce qui est sans entente” (Blanchot, 1969:27426).
Cristina escreve, ela espera que sua mãe responda às perguntas que sua escrita
não sabe responder, mas o ferro repousa no apoio metálico e a mãe permanece calada,
não à espera da morte, que esta “chega sempre sozinha, simpática, prestável”: “― O teu
corpo ficou pesado demais para ti eu ajudo” (2011:184). O que se escreve é como o que
sai da boca, fragmentos de uma verdade misteriosa sem relação com a vida, nem a luz
do dia basta, nem para clarear a verdade da escritura e das vozes, nem para revelar o
próprio nome dela, “que nome, sob o Cristina, é o meu” (2011:184). E a voz pensa na
possibilidade de Deus ser interrogado pela Comissão das Lágrimas por conspiração, e
26 Trad. do autor: “a linguagem que não rechaça o inferno, mas penetra nele, fala ao nível do abismo e
assim lhe concede a palavra, propiciando acordo àquilo que é sem acordo”.
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ela continua tentando construir um passado, “conforme desenterro defuntos que pilho à
minha mãe e ao meu pai porque não sei qual de nós três fala agora” (2011:187). A voz
segue pensando na maldade dos brinquedos, que podiam agredi-la enquanto dormia,
lembra um gato bordado em uma almofada que ela liquidou com uma faca para proteger
a família, até que comparece a voz do diretor da Clínica e classifica a fala de Cristina
dos altos da ciência: “— Faz parte do delírio dela” (2011:188). E o delírio continua com
a imagem do pai com uma chave nas costas, que funciona por corda, os horrores da
guerra, dos mortos mutilados, do pai a fugir da plantação dos brancos porque se
recusava a trabalhar sem paga. Ele mistura o horror da Comissão das Lágrimas com o
tempo de seminário e o pavor de ser caçado em Lisboa para responder por seus crimes
de comissário interrogador, refere-se à mulher como alguém a quem não pode amar por
ser preto e ela branca, ouve a filha a perguntar “qual de nós fala agora” (2011:190),
sugere que ele próprio é criação da filha, “existo na cabeça dela para que consiga
existir” (2011:191). Daí em diante a voz parece pertencer ao pai, que, como integrante
da Comissão das Lágrimas, portanto agora com poder, sai em busca dos brancos que o
expulsaram da igreja, que o impediram de ser padre porque ele é preto.
O discurso literário é inquieto, contraditório, instável. Interessa-se pelo sentido,
pela ausência da coisa, e quer alcançar o sentido nela mesma, por ela mesma
(independente da coisa, que agora não tem existência mortal), visando à compreensão
do que não se pode compreender. Aqui, Cristina não é apenas uma não-Cristina, mas
uma não-Cristina-palavra que se ergue sobre o nada, uma realidade linguística
determinada e objetiva. Essa é uma dificuldade e uma mentira, mas a missão do texto
literário não pode cumprir-se aí: apenas transpor a realidade de Cristina para a da
palavra é pouco. Isso seria uma redução que ignora a impossibilidade de compreensão: a
palavra é pouca para o tanto de verdade que contém. O nada luta e trabalha na palavra
literária, tornando-se a ampliação infinita do sentido, ou seja, o tudo. O lacre se parte, o
excesso de sentido, o deslizamento sem fim se desencadeia.
Não obstante, a literatura vai mais além: é a própria impossibilidade da morte.
A figuração da morte como impossibilidade, é uma questão fundamental do pensamento
blanchotiano: a escrita literária é algo fora do poder, da possibilidade. A morte confere
sentido à existência, torna possíveis as coisas, porque possibilita o fim, prerrogativa do
reino humano. Fim é objetivo, é busca dentro do finito, do que pode morrer. Ao
proclamar a impossibilidade da morte na literatura, Blanchot quer enfatizar o caráter
inumano do texto literário, por mais que se considerem as semelhanças que a literatura
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estabelece em relação ao mundo dos humanos, ou por causa mesmo desse dominó de
semelhanças em sua relação especular infinita: a semelhança da semelhança da
semelhança... até assemelhar-se a nada. Eis o neutro, o désœuvrement, o que não pode
agir verdadeiramente no mundo real.
O escritor possui o infinito: o que parece abundância é sua grande carência.
Carência de limites, de crenças, de regras. Assim, ele é condenado a escrever na falta,
na negação, na incerteza, a proferir um discurso que nada diz, que recua diante da
existência. A literatura existe para nada dizer, o escritor não fala para dizer algo, a
ficção fala para não dizer nada, seu sentido não está na busca do que existe, mas em seu
recuo diante da existência.
Decepção, frustração? Fracasso do relato? É possível, mas salva-se a literatura,
a exibir o vazio do que não existe, a desvelar a ficção, que se veste como se fosse uma
espécie de ser, que recebe um nome, narra uma história e uma semelhança com o
mundo real. E ergue-se de seus próprios restos, edifica-se de suas próprias ruínas.
O homem honesto
27 Trad.: “a obra de ficção não tem nada a ver com a honestidade: ela trapaceia e só existe trapaceando”.
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que uma sombra da realidade (Levinas, 1994:107-127); segundo Blanchot, a ficção não
representa nada, apenas apresenta os seres e objetos, ao invés de tornar-se um sinal
deles, “para que os sintamos e para que vivam através da consistência das palavras sua
luminosa opacidade de coisa” (Blanchot, 1977:80); para Rancière, tudo é representável,
uma vez que o irrepresentável só existe no sistema representativo, mas é uma
representação sem conteúdo determinável, sem “relação estável entre mostração e
significação” (Rancière, 2012:147); na opinião de Agamben, a representação e o
testemunho do horror (particularmente de Auschwitz) tornam-se uma enunciação cuja
possibilidade se sustenta na impossibilidade de dizer (Agamben, 2012:127-160);
consoante Didi-Hubermann, a imagem nunca trará a verdade que espera o pesquisador
da história, será sempre inadequada, incompleta, fragmentada, estará sempre em falta,
mas é a imagem que estimulará a imaginação (Didi-Huberman, 2004).
A arte, portanto, se quiser ser arte, jamais poderá ser o testemunho documental,
intencional, do horror ou do que quer que seja. Se incluímos no conceito de
representação a sombra pálida da realidade, ou se consideramos, como Rancière, que a
libertação dos modos codificados de ver e sentir rompe o lacre da representação,
podemos reelaborar esse conceito no sentido de reincorporá-lo à arte contemporânea.
Nesse caso, o testemunho se manifestará como um ressoar do evento, uma vibração que
o mantém distante da literatura, mas que confere ao inimaginável o estatuto de
hiperimaginável. A literatura, assim, transforma o evento em outra coisa, que
costumamos chamar obra de arte. O fato histórico não está mais ali, submerso nas
formas que a arte elegeu para se manifestar, mas pode ser evocado, de maneira
fragmentada, incompleta, infiel, na imaginação de quem se coloca diante da imagem,
ainda que o horror jamais possa ser superado em força pela linguagem. Nessa categoria
de representável, ou de testemunhável, insere-se o romance Comissão das lágrimas, de
António Lobo Antunes.
Mais importante do que ensejar ou não uma imagem funcional do evento,
parece-nos cara para esta pesquisa a ideia de desencontro, ligada ao foco principal
destas reflexões: como se relaciona a escritura literária com os eventos que de algum
modo parecem jazer na base das narrativas aqui examinadas? Aqui o desencontro entre
os sentidos rejeitados que se fecham e as possibilidades criativas que se abrem conduz à
essência de nossas reflexões: longe de selar o encontro entre fato e escritura, o texto
literário mantém em suspenso o evento, para se fazer ouvir. E essa suspensão se deve ao
próprio estatuto da linguagem literária, cuja dimensão estética recusa o fechamento. A
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
verdade do texto, assim, não pode nem de longe equivaler a uma verdade de verificação
ou cotejo, verdade apofântica ou histórica, mas uma verdade poética, emanada do texto,
que assinala o acontecer da verdade, como quer Heidegger em sua A origem da obra de
arte. Uma vez recusada a verdade de verificação, tudo o que vier da ficção é
imaginável, sem limite. Poder-se-ia supor, a partir destas considerações, que o horror
seja literariamente irrepresentável, ou inimaginável. Ao contrário, o que a linguagem de
ficção faz, ao fazer valer sua opacidade de coisa, é levar o representável ao extremo,
vazar-lhe os limites, transformar em hiperimaginável o que se supõe inimaginável. O
evento em suspensão, oriundo do desencontro, ao recusar a acomodação entre palavras e
coisas, mantém infinitas possibilidades entremeadas a suas lacunas, cuja audição a
escritura enseja, juntamente com o que se esconde sob a construção estética. A arte,
assim, mostra além, sem recuar diante do acontecimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Agamben, Giorgio. 2012. Quel che resta di Auschwitz. L’archivio e il testimone.
Torino: Bollati Boringhieri Editore.
Antunes, António Lobo. Comissão das lágrimas. Lisboa: Dom Quixote, 2011.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Rancière, Jacques. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1369-1379
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1369
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
A obra do escritor João Gilberto Noll tem construído, pelo viés do imaginário ficcional,
uma certa ética da deriva. Personagens permanentemente em trânsito, desapossados de
seus lugares de origem, em fuga, errância voluntária, exílio ou retorno frustrado,
tematizam, em qualquer dessas situações, a condição de estrangeiridade. Em
Estrangeiros para nós mesmos, Julia Kristeva afirma que o estrangeiro é “a face oculta
da nossa identidade” e “o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia”,
carregando em sua trajetória de desenraizamento tanto uma “memória magoada” quanto
uma “promessa de felicidade”. Este artigo pretende analisar, em particular, como a
prosa de ficção de João Gilberto Noll tem-se valido dessa ética da deriva para colocar
em xeque lugares identitários e lugares de passagem, intercambiáveis, “não-lugares”, na
formulação de Marc Augé. Porto Alegre, Rio de Janeiro, Berkeley, Bellagio, Chicago,
Cidade do México compõem uma geografia rarefeita e precária marcada antes por
deslocamentos ininterruptos do que por fixidez e enraizamento.
28 IFF (Instituto Federal Fluminense Fluminense), Coordenação da Licenciatura de Letras, Rua Dr.
Siqueira, nº 273, CEP: 28030-130, Campos dos Goytacazes, Rio de janeiro, Brasil,
analice.martins@terra.com.br
29 Entrevista concedida por Ricardo Piglia ao caderno Mais! da Folha de São Paulo, em 15 de junho de
2003, intitulada Letras mestiças, em que ele comenta o romance que estava escrevendo, da mistura de
gêneros que define a literatura moderna, da preferência deste leitor pelas narrativas policiais e da
substituição da ideia de destino pela de complô nos romances contemporâneos.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
30 Nelson Brissac Peixoto resgata, em artigo intitulado “É a cidade que habita os homens ou são eles que
moram nela?”, publicado na revista USP, número 15, set.-out.-nov. de 1992, as alegorias benjaminianas
de “construir topograficamente a cidade”: o flâneur, o viajante e a criança.
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abandonado tudo. Pessoa por pessoa. Os objetos eu não os tinha trazido, salvo um
dinheiro que daria por alguns dias” (Noll, 1997: 334).
Esse desengajamento, evidenciado na ausência de pertences, de qualquer mala
que fosse, não é superado, como poderia parecer, à primeira vista, no reencontro
familiar. Não há encontro, nem resgates, nem pai. O encontro que se dá não está na
volta a casa, à família, mas na aproximação com o garoto — atualização de seu passado
de partidas, promessa de outros portos, reafirmação do trânsito ininterrupto.
O personagem que retorna a Porto Alegre reafirma sua condição de viajante na
experiência observada em outrem. O personagem que retorna a Porto Alegre é amante
da geografia, não da história:
... e falei que às vezes eu pensava dedicar o resto da minha vida ao estudo da
geografia. Para mim poucos prazeres se igualavam ao de abrir um mapa e de
estudá-lo com empenho quase religioso: abrir pontes, irrigar, destruir
exércitos e intrigas — tudo isso poderia no futuro representar para mim quase
a salvação (Noll, 1997: 339)
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31 Em A céu aberto, não há nem Porto Alegre nem Rio de Janeiro (só na alusão ao carnaval
televisionado), nem Boston, nem Berkeley, nem Bellagio, embora haja a Suécia, que é apenas um nome
ou pouco mais do que isso na economia da narrativa.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Augé, Marc. 2001. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas, SP: Papirus.
Kristeva, Julia. 1994. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução: Maria Carlota
Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco.
Moriconi Jr., Italo. Maio/dez. 1987. Tentando captar o homem-ilha. Matraga. vol. 1, n.
2/3, Rio de Janeiro: UERJ.
__________. 1997. Romances e contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras.
32 Depoimento publicado no livro O lugar do escritor, de Eder Chiodetto, em 2002, pela Cosac & Naify
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1381-1384
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1381
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Giovanni RICCIARDI33
Minha comunicação tenta responder à pergunta: por que nos primeiros três
romances – Caetés, São Bernardo e Angústia – o autor usa a 1ª pessoa e no último,
Vidas secas, passa para a 3ª ? Apenas uma opção estilística ou também ideológica?
Ronald de Carvalho em sua Pequena história da literatura brasileira,
apresentando José Veríssimo, autor da fundamental História da literatura brasileira
(1916), escreve: “apenas via a obra e nunca o homem, exaltava ou condenava o escritor
sem se importar com a sua categoria social ou mesmo literária. O autor para ele era uma
figura secundária, sem interesse imediato, a não ser quando havia na sua vida um ou
outro pormenor [negrito meu] que pudesse explicar com mais segurança certas
particularidades da obra” (Carvalho, 1984: 268).
Gosto muito dessa passagem acerca do pormenor, pois eu também estou sempre
mais convencido da importância do “acidente” biográfico, do pormenor, na
interpretação de um testo.
“Acidente, é ideologia; é classe de origem, é formação, é condição econômica,
relacionamento com coisas e pessoas, família, carreira paralela; é linguagem. Acidente é
história. Claro que os acidentes não explicam o testo, que entre o texto e, por exemplo, a
biografia há uma relação “superficial e mentirosa”, como afirma o narrador-escritor de
Bufo & Spallanzani (Fonseca, 1985: 235). O riso, a ironia, o drama, as máscaras de um
texto contradizem qualquer história e projeto individual. Mas, às vezes, é o
conhecimento das variáveis históricas, dos “acidentes”, que permitem compreender uma
obra ou as mudanças na trajetória de um autor.
É lançando um SOS à biografia de Graciliano Ramos que eu encontro o
pormenor que modificou a sua ideologia e a sua escrita: esse pormenor é o cárcere, de
março de 1936 a fevereiro de 1937, porque acusado de comunismo.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Graciliano comunista não era – tinha alguma simpatia pela Aliança Nacional
Libertadora – era porém um pessimista ou como disse Milton Hatoun, abrindo a Flip,
edição 2013, “um pessimista radical”, e assim também entende a maioria dos críticos do
autor alagoano34. Eu acrescentaria moralista. Era um pessimista moralista. Um
moralista vê, sente, aponta o bem; individua e define comportamentos. Há um perigo:
que suas palavras não consigam o objetivo; há o perigo de ele continuar a gritar ao
vento e inutilmente. Aí, o moralista religioso apela para a misericórdia e os castigos de
Deus, para o inferno ou o paraíso, enquanto o leigo, o não crente se refugia no “homo
homini lupus” e no destino. Vendo-se impotente, torna-se pessimista ou ainda mais
pessimista. Este pessimismo é que caracteriza os seus primeiros três romances,
contaminando fortemente os protagonistas. Estes, traçando um balanço da própria vida
reconhecem-se uns vencidos, uns inúteis.
Afirma João Valério de Caetés: “Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente
polido, com uma ténue camada de verniz por fora?” (Ramos, 1961: 268)
E Paulo Honório de São Bernardo: “O que estou é velho. Cinquenta anos
perdidos, cinquenta anos gastos sem objectivo a maltratar-me e a maltratar os outros...
Cinquenta anos! Quantas horas inúteis. Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem
saber para quê.” (Ramos, 1961, p. 216).
Luís da Silva, de Angústia, confirma a falência: “Vivo agitado, cheio de terrores,
uma tremura nas mãos, que emagrecem. As mãos já não são minhas: são mãos de velho,
fracas e inúteis.” (Ramos, 1961, 5).
Algo de importante tem acontecido naqueles dez meses de prisão. Em primeiro
lugar o confronto direto com o poder. Nos anos anteriores, Graciliano tinha gritado,
falado, escrito contra. Como prefeito de Palmeiras dos Índios e como responsável da
instrução pública de Alagoas tinha começado a modificá-lo, o poder, a desconstruí-lo
“ab interno”. Mas no cárcere o confronto com o poder é físico. A luta trava-se entre
Fabiano e o soldado amarelo. E vale lembrar ainda a experiência interessante do
Pavilhão dos Primários: a convivência com os comunistas de verdade, a solidariedade e
a nobreza dos presos políticos impressionaram-no fortemente: “Realmente a desgraça
34 Uma pequisadora da USP, Ieda Lebensztayn, está para publicar a correspondência ativa e passiva de
Graciliano Ramos, com muitas cartas inéditas, que abrandariam o pessimismo do Mestre.
1382
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
nos ensina muito”, confessa (Ramos, I, 1960, p. 89). A meu ver o cárcere mudou o
homem e também a sua literatura.
Muitas são as novidades de Vidas secas:
1. é o seu primeiro e único romance nordestino e ganha seu lugar na literatura
radical daqueles anos Trinta, na linha de autores como José Américo de Almeida (A
bagaceira, 1928), Rachel de Queiroz (O Quinze, 1930), Amando Fontes (Os Corumbas,
1933) Jorge Amado (Cacau,1933 e Seara vermelha, 1946). “Escritores rebeldes”, no
dizer de Josué de Castro.35
2. sobre o câmbio da primeira para a terceira pessoa, da memoria e da
subjetividade para a objetividade e o distanciamento, lembro o critico Álvaro Lins:
“Não será isto um sinal de que antes deixava os personagens entregues à própria sorte,
enquanto agora se identifica com os desgraçados nordestinos de Vidas secas?” (Lins,
1969: 36);
3. o texto torna-se absolutamente enxuto, sóbrio, econômico. Para Graciliano a
sobriedade do estilo e a secura da linguagem são sinônimos de seriedade e moralidade.
Rodolfo Chioldi, o militante argentino do Pavilhão dos Primários impõe-se-lhe antes e
sobretudo pelo equilíbrio verbal que tornava “sérias” as suas palestras. A secura do
estilo manifesta-se também através do progressivo predomínio da frase nominal, que
proclama alto proibições, necessidades, asperezas de um retirante: “Impossível
abandonar o anjinho aos bichos do mato”; “Difícil mover-se”; “Perigoso entrar na
bodega”; “Indispensável ouvir qualquer som” (Ramos, 1961: 8, 93, 121, 148). Um
estilo por sentenças, à la manière dos moralistas.
4. Os protagonistas de Vidas secas – Fabiano, Sinha Vitória, o menino mais
velho e o menino mais novo, a saber uma família sertaneja qualquer, uma família
severina –, contrariamente aos protagonistas dos primeiros três romances, são uns
fortes, são uns vencedores, capazes de modificar o próprio destino e a própria vida.
Cito: “[Fabiano] Olhou os quipás, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que
tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas”; “Tenho comido toicinho com mais
cabelo, declarou Fabiano desafiando o céu, os espinhos e os urubus” (Ramos, 1961: 21
e 151). Fabiano, o Capaneu nordestino, que desafia a Zeus. Depois de tantos
35 Vide: Josué de Castro, Una zona explosiva: il Nordeste del Brasile, trad. it. di G. Fofi, Torino,
Einaudi, 1968, pp. 151-152 e também Giovanni Ricciardi, Il cerchio di fuoco, in Idem, Avanguardia e
stabilizzazione della coscienza creatrice, Bari, Libreria universitária, 1988, ps. 73-97
1383
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Carvalho, Ronald de. 1984. Pequena história da literatura brasileira. Belo Horizonte:
Itatiaia.
Castro, Josué de. 1968. Una zona explosiva: il Nordeste del Brasile. trad. it. di G. Fofi.
Torino: Einaudi.
Fonseca. Rubem. 1985. Bufo & Spallanzani. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Lins, Álvaro. 1969. Valores e misérias das Vidas Secas. Prefácio a Graciliano Ramos,
Vidas Secas, São Paulo: Martins.
1384
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1385-1392
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1385
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Nosso trabalho aborda o conceito de Intercultura que està se desenvolvendo nos paises
europeus, incluindo a Itália, como consequência da imigração das últimas décadas. O
princípio da Intercultura, de um diálogo intercultural è poder se enriquecer no encontro
das diferenças. É a constatação de que as culturas resultam de mútuas trocas e
empréstimos, onde a diversidade constitui uma das raízes do desenvolvimento delas.
Partindo de vários elementos históricos e através de contribuições de estudos sobre
Multiculturalismo e Transculturação, para uma reflexão crítica da noção de Alteridade,
este trabalho busca problematizar as relações entre o conceito de Alteridade e o
pensamento do escritor brasileiro Jorge Amado (1912-2001) que fez da literatura uma
ferramenta para lutar contra os preconceitos raciais. Analisando alguns elementos de
mediação simbólica, presentes em obras literárias como "Gato Malhado e Andorinha
Sinhá" (1948), "Dona Flor e seus dois maridos" (1966) e "Tenda dos Milagres" (1969),
mostramos a modernidade e atualidade do pensamento de Jorge Amado em relação ao
conceito de Intercultura. O trabalho aqui proposto é parte integrante das pesquisas que
viemos desenvolvendo desde 2010 e que apresentamos no Curso Jorge Amado 2012 - II
Colóquio de Literatura Brasileira, na Academia de Letras da Bahia (Brasil).
1385
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
1386
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
humana, uma forma de estar presente na história. Apesar destes conceitos, ainda hoje
em dia, infelizmente, as vezes, pela midia, este tipo de Literatura continua sendo
considerada experimental e difícil de incluí-la no status de literatura italiana
reconhecida por todos os níveis da intelectualidade como tal. Mas é a partir desse
contexto que, com enorme esforço e pelas vanguardas sócio-culturais, surgiu na Itália o
conceito de Multiculturalidade que indicava apenas a coexistência de diversos grupos
culturais na mesma sociedade, sem apontar para um política de convivência. Só depois
se passa ao termo Interculturalidade, usado para indicar um conjunto de propostas de
convivência democrática entre diferentes culturas, buscando a integração entre elas, sem
anular sua diversidade. É interessante notar como nos últimos anos se fale também de
Transculturação, um termo que analisa Armando Gnisci, ex prof. de Letterature
Comparate dell'Università La Sapienza de Roma. Este novo conceito nasceu e prospera
– como conceito antropológico cultural - na parte central, naquela antilhana e naquela
meridional do Mundus Novus das Américas. Trata-se de nações não pobres, mas
empobrecidas e devastadas, não domadas nem pelo colonialismo europeu, nem por
aquele norte americano. Gnisci assinala que a Transculturação ajuda a reconhecer como
evidente a história particular de cada cultura para hibridizar com outras culturas e gerar
novas formas crioulas e imprevisíveis.
Assim como nos ensinaram Fernando Ortiz, Oswald de Andrade, Aimé
Césaire, Frantz Fanon, Édouard Glissant, Roberto Fernández Retamar,
Eduardo Galeano, Sub-comandante Marcos, Leonardo Boff e muitos outros.
O pensamento e a praxe transcultural indicam que isto acontece na
mutualidade da troca e na transformação imprevisível. "Nós acreditamos que
o Multiculturalismo e a Interculturalidade sejam duas palavras-conceito que
devem ser revistas profundamente na Europa ocidental e na União Européia.
O Multiculturalismo atravessa uma evidente crise política, a
Interculturalidade, por sua vez, parece um barquinho nas mãos mediterrâneas
de uma crise de sentido". (Gnisci, 2011).
Conforme Gnisci, precisa se desconstruir, escarnificar, para se reencontrar com o
“Outro”, deixando de lado as estruturas rígidas para poder dialogar de verdade com este
o Outro. Isso requer respeito e modéstia. Do ponto de vista histórico, a questão da
interculturalidade ultrapassa os limites da cultura eurocêntrica a partir do final do Séc.
XX com o crescimento dos processos globalizadores mercantis operados por
instituições transnacionais e a diminuição do poder do Estado-nação. Por um lado o
processo de globalização, com tendências de integração reveladas em práticas
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
das mais belas historias de amor e respeito à diversidade, um verdadeiro tratado contra o
racismo, contra a intolerância ao "Outro", ao diferente de si. A narrativa mostra como
duas criaturas bem diferentes podem não apenas conviver em paz, mas também podem
ser capazes de mudar a maneira como cada um vê o mundo para finalmente poder se
amar: símbolo mais delicado deste não há. Leve metáfora e livro universal, contém já
nas primeiras frases o conceito completo que podemos encontrar em toda a obra
amadiana: "O mundo só vai prestar para nele se viver, no dia em que a gente ver um
gato maltês casar com uma alegre andorinha. Saindo os dois a voar. O noivo e sua
noivinha, Dom Gato e Dona Andorinha". Essa frase de Jorge Amado expressa
claramente a atualidade dele, a importância e a possibilidade do encontro com a
Alteridade, como única possibilidade de uma verdadeira democracia entre os povos. Só
seguindo esse seu pensamento o mundo irá prestar para nele se viver em Democracia.
A democracia que respeita, que tolera, que se alegra e se enriquece com a diversidade.
Uma democracia que prega a Paz e dela se alimenta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amado, Jorge. 2012. Gato malhado e andorinha Sinhá. São Paulo: Companhia das
Letras.
Amado, Jorge. 1996. Dona Flor e seus dois maridos. Rio de Janeiro: Record.
1391
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Rouanet, Sérgio Paulo. 2012. L'utopia meticcia di Jorge Amado. Tradução para o
italiano de Antonella Rita Roscilli. Revista Sarapegbe, A. I, n. 2. Número Monográfico.
Centenário de Jorge Amado.
http://www.sarapegbe.net/articolo.php?quale=49&tabella=articoli (Acesso em: 30 abril
2012)
Santos, Milton. 2006. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro: Record.
1392
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1393-1408
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1393
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Edvaldo A. BERGAMO37
RESUMO
Nosso objetivo, neste trabalho, resultante de um projeto de pesquisa pós-doutoral
desenvolvido na Universidade de Lisboa, é analisar as implicações estéticas e
ideológicas da relação literatura e história no romance brasileiro Desmundo (1996), de
Ana Miranda, e no romance moçambicano Choriro (2009), de Ungulani Ba Ka Khosa,
por intermédio, principalmente, do exame da trajetória da personagem protagonista que
dá a ver, em ambas as composições ficcionais, o processo de colonização dos territórios
coloniais, sob domínio de Portugal, no tempo das descobertas, no Brasil, e no tempo dos
prazos, em Moçambique. Está em questão o estudo do romance histórico pós-colonial
como uma forma narrativa que ao figurar o passado reivindica uma outra interpretação
de períodos significativos, pela interposição de uma perspectiva notadamente crítica que
incide sobre os impasses e as controvérsias que marcaram a vida pública e privada de
sujeitos subalternos no momento da colonização dos trópicos.
Considerações iniciais
37 UnB. Instituto de Letras. Departamento de Teoria Literária e Literaturas. L2, Asa Norte, Campus
Darcy Ribeiro, Brasília/DF, CEP 70000-000, Brasil. Email: edvaldobergamo@gmail.com.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
aos vencidos, num ímpeto revisionista que tomou conta do romance histórico mais
recente, principalmente aqueles oriundos de países que vivenciaram a experiência
histórica da colonização européia, como América e África (Dalley, 2014). Ao retratar o
passado, tal romance procura explorar os meandros negligenciados ou intencionalmente
obscurecidos pela chamada história oficial ou, ainda, procedendo à humanização de
importantes heróis que o mármore da história parecia haver esculpido em definitivo.
Tais prerrogativas obtiveram igualmente repercussão no mundo lusófono e africano,
configurando uma ocasião ímpar para o ex-império e as ex-colônias rever/reavaliar esse
passado comum partilhado, cujas características marcantes foram a opressão e a
repressão de um ordenamento social hierarquizado com papéis bem definidos para
colonizadores e colonizados (Leite, 2012).
A característica fundamental do citado gênero é a releitura crítica da História.
Sem desprezar prontamente as fontes históricas, o romancista prefere retratar os fatos
por uma perspectiva preferencialmente paródica ou carnavalizada dos eventos. No afã
de revisitar o passado, o escritor procura demonstrar que não tem compromisso com as
ideologias conservadoras vigentes, optando por uma visão dialógica dos
acontecimentos. O interesse sempre em evidência pela temática histórica demonstra que
o "breve século XX" não superou definitivamente a fé historicista, desencadeada com o
romantismo. Porém, sob novos pressupostos estético-ideológicos, o romance histórico
da contemporaneidade repensa a história, optando por uma visão problematizadora do
passado. A metaficção é uma dos instrumentos narrativos mais relevantes do romance
histórico da segunda metade do século XX. Toda inquirição metaficcional, tendo em
conta a ambivalente relação entre história e ficção, tem por característica ser auto-
reflexiva para questionar seus próprios instrumentos de configuração narrativa e, ao
mesmo tempo, apropriar-se de acontecimentos e personagens históricos
desconcertantes. Como fator determinante do relato, o processo de escrita do romance
deixa, à mostra, os “andaimes” de edificação do texto e as redes intertextuais
estabelecidas, num procedimento formal em que importa tanto o enredo propriamente
dito quanto a apresentação do método ou do roteiro de elaboração da obra. Tal
procedimento, como se pode perceber, exige uma participação mais efetiva do leitor,
que se torna um cúmplice do escritor na montagem dos constructos textuais e na
compreensão dos signos da história.
Num esforço de síntese, pode-se enumerar e sistematizar algumas das principais
características do novo romance histórico das últimas décadas do século XX: a
1397
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
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romance histórico metaficcional e pós-colonial, vale a pena recorrer a Edward Said, que
reafirma certas premissas fundamentais do gênero em causa:
A invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas
interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a
divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido esse passado,
mas também a incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado, ou
se persiste, mesmo que talvez sob outras formas. Esse problema alimenta
discussões de toda espécie – acerca de influências, responsabilidades e
julgamentos, sobre realidades presentes e prioridades futuras (Said, 1995:33).
1400
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não pudessem construir um discurso crítico sobre a sua própria condição, como
acontece de certa maneira no romance em questão. Mas essa marca de consciência não
permanece na crônica histórica de louvação da empreitada colonial lusitana, visto que
não possui uma expressão sócio-política plena, ideologicamente impossível para a
época em tela, a qual não permite que tal alocução crítica torne-se válida, enquadrando-
a de modo estigmatizado e marginal.
Desse modo, a apropriação do discurso e fato históricos não se dá pela
reprodução do ambiente original de onde ele emerge. Ocorre certamente pela criação
ficcional, uma realização estética que incorpora e subverte o discurso historiográfico,
figurando uma realidade historicamente plausível para redimencioná-la sob a ideologia
de gênero, notadamente, uma vez que centra o ponto de vista dos fatos históricos e
ficcionais narrados, amparandando-se na ótica excepcional de uma mulher-órfã
subjugada em todos os planos pela máquina colonial lusitana operante.
1403
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
igualmente, que a figura histórica do padre cronista certamente foi o modelo para
Nhabezi (António Gregódio) e não propriamente para a personagem Chicuacha, de
acordo com as fontes historiográficas disponíveis, o que demonstra a liberdade criativa
do autor em reesquacionar fatos e figuras históricas moçambicanas, tendo em vista o
modo de figuração ficcional do passado nacional moçambicano, caracterizado por
embates identitárias de outrora que reverberam no presente, pois a varanda do Índico é
um mosaico cultural propiciado pela empresa colonial européia em movimento na
modernidade.
Visto que na região da Zambézia culturalmente/socialmente ficam borrados os
limites entre preto e branco, colonizado e colonizador, escravo e senhor, matriarcado e
patriarcado, a trajetória de António Gregódio (Nhabezi) no romance não constitui algo
extraordinário do ponto de vista histórico. Trata-se simplesmente de um posicionamento
identitário possível e, portanto, verosímil dentro de uma ampla gama de possibilidades
que existiam na época. A voz narradora principal e indeterminada do romance de Ba Ka
Khosa, que tanto pode ser a do cronista Chicuacha como a de um narrador omnisciente
típico, objetiva certamente dar respaldo literário a relatos silenciados de sujeitos
subalternos que protagonizaram a(s) História(s) africana(s) de modo surpreendente e
promissora em contexto periférico. Esta indeterminação traduz uma configuração
cultural e histórica complexa e contraditória, em que se entrecruzam vozes subalternas e
hegemônicas, cuja articulação formal na trama romanesca de pontos de vista múltiplos e
díspares acerca de um colonizador que aderiu irrestritamente ao mundo do colonizado é
transformada em estratégia narratológica relevante estética e ideologicamente, porque
retrata o passado de olho nos desafios do presente. E, assim, a figuração narrativa de
destinos individuais, resultantes da ação primeva de europeu aculturado, mostra uma
ampla combinação de identidade plurais no vale da Zambézia, optando uns pelo legado
português e inclinando-se outros pela cultura africana, mas nenhum abstendo-se da
condição de pertencer originalmente a um espaço historicamente atravessado por formas
culturais e sociais híbridas.
A História havia-lhes traçado destinos diferentes. A Hermenegildo Carlos de
Brito Capelo e Roberto Ives, destemidos exploradores da causa imperial,
como ficaria registado à posteridade na História das explorações coloniais,
não lhes interessava os homens e os seus hábitos, mas os traços sinuosos dos
rios, os montes e vales, a geografia da exploração. O sextante e o
magnetómetro eram instrumentos de maior valia que os cansados
carregadores de amostras da selva e savana africanas. A Nhabezi, trânfuga do
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Considerações finais
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ba Ka Khosa, Ungulani. 2009. Choriro. Maputo: Alcance.
Dalley, Hamish. 2014. The postcolonial historical novel. Realism, allegory and the
representation of contested pasts. New York: Palgrave Macmillan.
Kohut, Karl (org.). 1997. La invención del pasado: la novela histórica en el marco de la
posmodernidad. Frankfurt: Vervuert; Madrid: Iberoamericana.
Lukács, Georgy. 2011. O romance histórico. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo:
Boitempo.
Said, Edward. 1995. Cultura e imperialismo. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo:
Companhia das Letras.
1407
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1409-1432
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1409
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Ler Dentro do segredo, Uma viagem na Coreia do Norte, de José Luís Peixoto é abrir
uma porta para um mundo desconhecido, quase ignorado, como o pode ser a Coreia do
Norte. O autor procura com esta obra mostrar como a literatura pode tomar conta de
assuntos que remetem para a esfera política, sociológica e até antropológica, de forma a
colocar em cena uma sociedade enclausurada, assim como um dos regimes ditatoriais
mais fechados do mundo. A representação literária e geográfica da Coreia do Norte
permite ao autor entrar na “casa do Outro” e perceber de que forma a visão de um
ocidental sobre essa cultura pode contribuir para a construção do texto e de que forma o
contacto com a mesma possibilita a desconstrução dessa visão sobre um dado lugar no
mundo.
Por outro lado, a escolha do país é a forma encontrada pelo autor de viver a sua aventura
quixotesca, posto que o exílio momentâneo na Coreia do Norte, corresponde a um
desejo profundo de busca de si e o encerramento numa sociedade tão fechada é uma
forma de se descobrir e de descobrir a sua pertença ao pequeno retângulo pintado a
amarelo no globo terrestre encontrado numa escola coreana. A referência a D. Quixote
não é gratuita, dado que o livro, escondido numa mala, acompanha o autor ao longo da
viagem e será o ponto de partida para uma reflexão sobre a realidade vivida e a
realidade retórica do regime de Pyongyang.
Partida
38 UBP – Universidade Blaise Pascal, Faculdade de Letras Línguas e Ciências Humanas, Departamento
de Estudos Portugueses e Brasileiros. 34 avenue Carnot, 63000 Clermont-Ferrand, França.
Email: vcarego@gmail.com
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
1410
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Viagens na minha terra (1846), viagens que sendo curtas – de Lisboa a Santarém –
permitem colocar à vista os problemas políticos e de infraestruturas, causas do atraso de
Portugal face às potências europeias.
Mas foi o terceiro tipo de viagem que mais frutos deu à literatura portuguesa,
nomeadamente no século XX através de nomes como Vitorino Nemésio (1901-1978) ou
de Cristóvão de Aguiar (n. 1940), para citar apenas dois exemplos de autores que se
servem da viagem como um meio para efetuar uma proveitosa busca do Eu e para
procurar um melhor conhecimento de si mesmos. Tanto nas crónicas de viagem do
primeiro quanto nos diários e romances do segundo, como Passageiro em trânsito
(1988), muitas vezes é a viagem à terra natal, aos Açores em ambos os casos, viagem
efetuada, sonhada ou revivida com a ajuda da memória, que proporciona ao Eu a
possibilidade de rever os caminhos da sua vida, de rememorar a infância, esse território
impossível de reconquistar e ao mesmo tempo tão presente dentro de cada um de nós.
No entanto, a viagem não significa necessariamente um reencontro feliz, dado que
voltar nunca pode significar viver as mesmas coisas e é, por vezes, com um sabor
amargo que o Eu toma consciência da impossibilidade para o ser humano de reviver o
passado, reencontrar as gentes que povoam a sua memória ou simplesmente voltar a
sentir um dia as emoções desejadas. O Eu que viaja e contacta com outras realidades é
um Eu que muda e que se torna também Outro e esta constatação assume, por vezes,
contornos dolorosos.
Este tipo de narrativa de viagem associada à memória permite uma descoberta
do Eu na dualidade temporal entre passado e presente, nomeadamente através do
desdobramento do Eu entre aquele que viveu a viagem, aquele que rememora a mesma
e aquele que escreve e que se descobre outro depois da experiência. Não estamos longe
neste caso da questão ontológica do sujeito enquanto Outro e da dialética entre
identidade e alteridade, questão abordada por Paul Ricoeur no livro Soi même comme un
autre.
O século XXI traz-nos outros exemplos de autores que trabalham o tema da
viagem em diversos sentidos, não podemos ignorar a anti-epopeia de Gonçalo M.
Tavares Viagem à Índia (2010), na qual o autor faz Bloom (personagem de James
Joyce) viajar pela Europa, sonhando com uma viagem à Índia que o libertaria dos
fantasmas do presente, uma Índia já mais sonhada do que propriamente real, mas que
ainda encerra uma aura de atração para a personagem que deixa Lisboa de forma
precipitada para tentar encontrar respostas num périplo que relembra ora o presente
1411
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
europeu de Portugal ora o passado histórico. Numa outra perspetiva, O retorno (2012)
de Dulce Maria Cardoso põe em perspetiva a viagem traumática de meio milhão de
portugueses, vindos das ex-colónias, comummente designados retornados, e que
viveram o trauma de perder tudo, assim como de serem mal acolhidos em Portugal, num
país que não tinha condições nem infraestruturas para tal; acresce a este trauma um
outro que é o de encontrar uma metrópole subdesenvolvida, mais pobre e mais triste do
que os territórios abandonados.
É numa outra perspetiva que concentrarei o olhar neste trabalho, posto que me
debruçarei sobre o livro de viagens Dentro do segredo, uma viagem na Coreia do Norte
(2012) de José Luís Peixoto. A escolha do autor de visitar aquele que é considerado
como “o país mais isolado do mundo” (p. 25) e logo depois de contar a experiência
numa narrativa de viagens não é anódina. Ao fazê-lo, o autor abre uma janela para um
mundo desconhecido, procurando dar a conhecer um pouco daquele que é o país mais
fechado do mundo e o regime político que o governa. A “casa do Outro” revelar-se-á
um espaço de estranhamento para o Eu que visita o país pela primeira vez, para se
transformar em seguida num espaço de descoberta do Eu, no qual se reflete também
sobre a oposição entre a retórica do regime e a realidade sentida e observada pelo autor,
mostrando a ténue distância entre realidade e ficção, numa dialética não muito diferente
da que é colocada em cena ao longo do Don Quixote de Cervantes, livro que
acompanha, de forma ilegal, o autor nesta viagem.
1412
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
39 Contar uma viagem à Coreia do Norte é algo que não é inédito, outros escritores levaram a cabo
projetos semelhantes em diversos países, cito como exemplo dois desses livros: Au pays du grand
mensonge de Philippe Grangereau, Serpent de mer, col. Terrae Incognitae, Paris, 2000 e Voyage en Corée
du Nord de Nicolas Righetti, Olizane, Paris, 2003.
1413
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
nos de introdução para conhecer de onde surgiu o plano de viajar. A partir do terceiro
capítulo, o ponto de vista adoptado é quase sempre cronológico seguindo a lógica da
viagem que durou 15 dias na Coreia do Norte. Desta realidade atesta a listagem de
nomes de cidades, monumentos e acontecimentos que fazem com que o percurso seja
vivido pelo leitor. De uma certa forma, nomear o lugar ou o monumento cria esse
monumento aos olhos do leitor, trá-lo para uma realidade mais palpável.
Mas como é que José Luís Peixoto apresenta a Coreia do Norte? Responder a
esta primeira pergunta permite-nos observar como a narrativa da viagem de Peixoto
permite construir uma representação sobre o país Coreia do Norte. Tal como a grande
maioria dos leitores, o autor conhece apenas a imagem que os livros ocidentais dão
sobre a Coreia do Norte (p. 25). No entanto, ao fazer esta viagem, o autor pôde ter um
ponto de vista que lhe permitiu escrever o livro que temos em mão, ao longo de todo o
livro, o olhar de Peixoto conduz a nossa imaginação a criar uma imagem mental de um
povo submetido a uma “ordem e disciplina” (p. 9) que escapam à nossa compreensão.
Para isso o autor vai formular vários juízos e observações sobre o comportamento
organizado dos norte-coreanos, observações que podem ir do detalhe pontual das
“roupas bem engomadas” (p. 12) à descrição das “marchas militares” (p. 11) que se
ouvem nos altifalantes espalhados pela cidade de Pyongyang ou colocados em carrinhas
que se deslocam de manhã à noite nas cidades do interior e que não fazem mais do que
repetir as proezas dos líderes ou destilar a ideologia do regime controlando o quotidiano
das pessoas através de um som constante que só termina no início da noite.
Constantemente descritos como “organizados com geometria militar” (p. 54), a
imagem dos norte-coreanos dada por José Luís Peixoto ainda no aeroporto de Pequim
materializa a imagem de um país fechado, pobre e submetido a um regime ditatorial
feroz: “as roupas de uma pequena multidão, muito organizada, de pessoas sisudas. Os
coreanos vestidos com fatos austeros, de fazenda austera e cores austeras, falavam baixo
entre si.” (p. 40), pessoas que têm obrigatoriamente de usar “[a]o peito, [...], o emblema
com a cara de Kim Il-sung, Kim Jong-il, ou de ambos.” (p. 52). A repetição constante
de expressões ligadas à ordem e à organização do texto ditadas pela focalização do olhar
do autor que sabemos subjetivo, instalam uma impressão de clausura e de controlo
permanentes da população que acabam por criar uma sensação de asfixia no leitor.
Ao mesmo tempo, as diferenças culturais são responsáveis por uma certa
desorientação do narrador que se vê confrontado a uma língua e a um alfabeto
diferentes, responsáveis por um certo desconforto, traduzido de forma metafórica para o
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Por outro lado, estes apontamentos gastronómicos e até certo ponto etnográficos
servem para ajudar a construir a imagem do Outro, tão diferente da do Eu do autor e do
leitor, fomentando a imaginação deste último e estimulando-o a pensar a diferença:
l’image de l’Autre sert à écrire, à penser, à rêver autrement. [...] à l’intérieur
d’une société et d’une culture envisagées comme champs systématiques,
l’écrivain écrit, choisit son discours sur l’Autre, parfois en contradiction
totale avec la réalité politique du moment: la rêverie sur l’Autre devient un
travail d’investissement symbolique continue. Si, au plan individuel, écrire
sur l’Autre peut aboutir à s’autodéfinir, au plan collectif, dire l’Autre peut
aussi servir les défoulements ou les compensations, justifier les mirages ou
les fantasmes d’une société. (Pageaux, 1994: 151).
A diferença é apresentada de um ponto de vista subjetivo, posto que o autor
seleciona os detalhes que descreve ao leitor, dentro dessa subjetividade podemos
enquadrar, por exemplo, o tratamento do tempo na narrativa. Estamos perante um tempo
trágico que fecha o autor numa viagem – de quinze dias – mas que está associado à
percepção subjetiva das visitas a museus ou das intermináveis explicações repetidas
sobre os feitos dos grandes líderes. A repetição é aliás uma das estratégias usadas pelo
autor para mostrar a frequência com que os viajantes são bombardeados de dados sobre
os fantásticos acontecimentos na Coreia do Norte, a grandeza do país, a sua riqueza ou a
perfeição dos seus líderes, provocando a sensação de que as visitas se sucedem e são
todas iguais, acentuando mais uma vez a impressão de clausura e de asfixia que já
mencionámos anteriormente.
Não obstante, uma das características da literatura de viagens é o objetivo de
informar o leitor e o autor respeita este critério ao resumir em quatro páginas a história
recente da Coreia do Norte (p. 25-28). Assim, o autor respeita a expectativa do leitor
que quer saber mais informações acerca de um lugar antes de conhecer as impressões
subjetivas que a viagem provoca no narrador.
No seu célebre ensaio de 1755 Discours sur l’origine et les fondements de
l’inégalité parmi les hommes, Rousseau criticava o universalismo das descrições feitas
na literatura de viagens dos seus predecessores, mostrando como uma perspectiva
eurocêntrica não podia dar conta das diferentes realidades do mundo e lamentando
como os europeus descreviam os restantes povos – originando por exemplo mitos como
o do bom selvagem, as noções de primitivismo, entre outras criações que sabemos hoje
historicamente nocivas no estabelecimento das relações entre povos.
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excêntrico.” (p. 23). No entanto, este contacto não existe sem perigos e, no caso da
Bielorrússia, esse perigo acaba por se revelar através da instrumentalização do interesse
de Peixoto pelo país, visto que o regime de Lukashenko vai publicar num jornal
nacional a mensagem deixada pelo autor num fórum como uma prova do interesse
internacional pelo país e o autor vai ser assim estudado e traduzido na universidade de
Minsk.
Por outro lado, não podemos esquecer o facto do autor ter nascido em 1974, ano
em que terminou em Portugal a ditadura do Estado Novo e, tal como a maioria dos
escritores da sua geração, de este sentir um enorme vazio, quase um sentimento de culpa
por não ter estado presente, facto que provoca uma enorme curiosidade sobre como é
viver sob uma ditadura: “sentia curiosidade por sociedades fechadas e sistemas políticos
totalitários. […] [T]entar perceber o quotidiano de quem vive nessas sociedades.” (p.
22-23) No entanto, esta necessidade de compreender uma parte da história da sociedade
portuguesa sob a ditadura – pensemos nos seus pais, emigrantes em França durante
vários anos, tendo voltado a Portugal já depois do fim do regime –, não faz com que o
autor pactue com o regime norte-coreano. Desde o início do texto, Peixoto tem o
cuidado de repetir diversas vezes a frase: “Sou contra todos os regimes totalitários e
ditaduras.” (p. 22)
A ideia de ir conhecer a Coreia do Norte nasce, curiosamente, num país
considerado pelo regime norte-coreano como inimigo, nos Estados Unidos, em Los
Angeles mais precisamente. Durante uma leitura literária, o autor conhece um poeta
norte-coreano, Chiwan, que lhe fala nas dificuldades atravessadas pela sua família na
fuga da Coreia do Norte, na dificuldade em viver com essa identidade norte-coreana e
em algumas características do regime político do país.
Tomada a decisão de visitar o país, a opção escolhida é relembrada de forma
bem-humorada: “Kim Il-sung 100th birthday Ultimate Mega Tour (Ultimate Option).”
(p. 27), a viagem de quinze dias que vamos acompanhar durante a narrativa compreende
para lá dos festejos e de todos os monumentos e lugares mais emblemáticos
da Coreia, fazia parte do itinerário a passagem por algumas cidades pouco
visitadas e, mesmo, por algumas fábricas onde nunca tinham entrado
estrangeiros. Uma alternativa que também considerei teria lugar durante a
celebração dos setentas anos de Kim Jong-il, em Fevereiro de 2012, e seria
levada a cabo pela Associação de Amizade com a Coreia [...]. [...] contava ter
de calar as minhas opiniões com frequência, sempre, mas fazer uma viagem
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é uma possibilidade de conhecer o Eu, uma vez que o Outro acaba por servir de
contraponto, como uma etapa necessária para o conhecimento do Eu e é por isso que à
pergunta “O que faço eu aqui?” (p. 77) o autor sente que algo se vai desencadear no seu
interior e a resposta pode não ser a esperada “Essa pergunta vinha desde tão de dentro
que o seu caminho feria-me.” (p. 77)
A busca de si num espaço totalmente desconhecido, buscar o humano além da
geopolítica e da ideologia, revelar-se-á para um leitor atento da obra de Peixoto como
um caminho essencial, podemos mesmo dizer iniciático. É preciso referir que a
publicação de Dentro do segredo, uma viagem na Coreia do Norte surge num momento
em que se tinha fechado um ciclo na escrita do autor, um ciclo de cerca de dez anos que
vai da publicação de Morreste-me até Abraço. Nesse intervalo de tempo, tudo mudou na
vida do escritor e ele reflete sobre o medo sentido de “estar a criar uma distância
insuperável entre [ele] e as pessoas que [lhe] são queridas.” (p. 19), apontando para o
perigo não da distância física que ele impôs com esta viagem organizada em segredo,
mas
o perigo é deixarmos de nos entender. [...] A experiência que temos do
mundo diverge cada vez mais. utilizamos palavras, são as mesmas, mas têm
significados diferentes. Tenho medo de deixar de entender a minha mãe,
tenho medo que ela deixe de me entender a mim. [...] o que significa aquilo
que não dizemos? Tenho medo que os meus filhos nunca cheguem a entender
aquilo que lhes conto quando ficamos em silêncio [...]. (p. 19-20)
A viagem à casa do Outro é por diversas razões necessária, visto que ela provoca
um estranhamento que permite ao Eu pôr-se em questão. Esta circunstância é visível
desde o encontro com o guarda alfandegário e porque o autor tirou fotografias e
apontamentos durante a viagem que sabe proibidos “O seu olhar punha o meu corpo
inteiro em tensão.” (p. 9), circunstância que alimenta o medo do autor que não sabe qual
poderá ser a reação do guarda ou o castigo aplicado nestes casos e “não saber era muito
pior do que saber porque, assim, acabava por imaginar. E eu estava na Coreia do
Norte.” (p. 18), imaginação que despoleta o medo e o terror, porque ao saber-se fechado
no país o narrador imagina que lhe podem acontecer situações extremas, como ser
mantido refém em caso de conflito com a comunidade internacional, facto que o assusta
“Eu não queria estar no meio disso, tenho dois filhos.” (p. 31)
As muitas críticas dirigidas a José Luís Peixoto após a publicação desta narrativa
de viagens, críticas que apontavam sobretudo para o facto de o autor não criticar
suficientemente o regime político, não tiveram em conta a dimensão literária da obra e
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para mim, encheu-me. Esse foi o momento mais intenso que vivi na Coreia do Norte.”
(p. 228)
Colocar em perspetiva a sua existência, nomeadamente o seu reconhecimento
enquanto escritor, viver um momento único no qual faz parte de uma massa de pessoas
alegres a partilharem um momento, sem saberem que estão na presença de um escritor
que já não consegue escapar à sua imagem dentro de Portugal, despir a pele do escritor
José Luís Peixoto, solicitado incessantemente, sujeito a “Pedidos, pedidos, a maioria
dos quais acrescidos de chantagem emocional mais ou menos velada” (p. 133), para ser
só, por momentos, o homem José Luís Peixoto, eis a procura que o autor foi fazer num
país longínquo e sob muitos aspetos inóspito, no qual o escritor consegue através do
contacto com uma natureza ainda bastante selvagem imaginar “o mundo antes da
humanidade” (p. 190).
A orientação autobiográfica, tão frequente no resto da obra do autor, assegura
nesta narrativa uma coesão ao texto, um certo dinamismo, por um lado há o escritor que
se descobre e por outro há o ponto de vista emitido sobre aquilo que observa no país e
nos costumes diferentes:
“Dans le récit de voyage, l’écrivain-voyageur est producteur du récit, objet
privilégié du récit, organisateur du récit, et metteur en scène de sa propre
personne. Il est narrateur, acteur, expérimentateur et objet d’expérimentation,
mémorialiste de ses propres faits et gestes, héros de sa propre histoire sur un
théâtre étranger dont il se fait l’annaliste, le chroniqueur et l’arpenteur
privilégiés. Il est surtout persuadé, parce qu’il est voyageur, qu’il est un
témoin unique.” (Gannier, 2001: 156).
O Eu sobressai no contexto da viagem e nesse aspeto toca os outros romances do
autor, construindo assim uma certa intertextualidade entre este romance e os demais
romances do autor. Já desde o segundo capítulo do romance Livro que o autor nos
habituou a considerações mais ou menos longas sobre o trabalho de escritor. Nesta
narrativa, essas considerações pesam mais sobre a organização do horário do escritor, os
encontros literários e o peso de uma agenda que se enche de forma desenfreada ou de
estruturas que pressionam o autor para aceitar todos os convites:
Na primeira semana, está toda a gente em pânico. Há os textos que têm de ser
entregues, os convites que precisam de uma resposta urgente. urgente,
urgente. na primeira semana, é tudo urgente. A ansiedade sufoca até as
palavras escritas por email, sente-se. Na segunda semana, sem resposta, sem
sinal de vida, uma parte grande dessas pessoas deixa de ligar ou escrever.
Aquelas que ainda insistem, deixam mensagens no telemóvel sem terem a
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certeza de que vão ser ouvidas. Então, têm a consciência de que podem estar
a falar sozinhos. Falam muito mais pausadamente do que antes, desanimados,
fazem pausas, como se tentassem ouvir o próprio eco. Na terceira semana,
quase ninguém tenta ligar. Passam-se dias sem uma única mensagem. Ao
abrir o email, só publicidade. A urgência acabou, começa apenas a passar o
tempo. Na Coreia do Norte, experimentava outro tipo de morte. Ali, era eu
que estava desligado e guardado numa gaveta. Aquela era uma morte sem
notícias do que deixava para trás. Não sabia quem me tentava ligar, nem que
mensagens me deixava. Não sabia que emails havia para responder. Ali, era
apenas o corte, apenas a escuridão. (p. 134)
Ao mesmo tempo que descobrimos mais sobre o autor, descobrimos também
mais sobre a sua relação com Portugal, a sua necessidade de compreender o país que é o
seu e onde estão fincadas as suas raízes. Além das poucas chamadas telefónicas
efetuadas, o único contacto com país dá-se num momento em que o autor descobre um
globo terrestre e a possibilidade de tocar nesse globo vai fazer com que o autor se
encontre num devaneio nostálgico em relação às saudades que sente daquele pequeno
ponto no globo terrestre: “procurei Portugal. E, por instantes, foi como se olhar para
aquela pequena figura preenchida a amarelo-torrado, com a indicação de três cidades,
me aliviasse a falta. Até aquela imagem impessoal, de fronteiras desenhadas
grosseiramente, era capaz de evocar uma ligeira familiaridade.” (p. 195) A visita à casa
do Outro torna-se assim uma ocasião de redefinição também do sentimento
relativamente ao espaço pátrio.
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procura de aventuras através de viagens, viagens essas que constroem mundos, que
modificam o mundo.
Entrar na Coreia do Norte com o livro de Don Quixote de la Mancha, sendo que
o material impresso vindo de fora é proibido no país, representa um risco para o autor,
mas torna-se ao mesmo tempo um símbolo da busca literária a que vamos assistir ao
longo da viagem:
Não era permitido entrar no país com qualquer tipo de material impresso. Eu
tinha comigo um exemplar de D. Quixote de la Mancha, 845 páginas que
seriam encontradas se alguém as procurasse. [...] D. Quixote, Sancho Pança e
restante multidão de sombras iam entrar clandestinos. Se fossem descobertos,
esperava que a língua portuguesa, incompreensível ali, atenuasse a minha
falta. Ao mesmo tempo, sentia que esse momento, a acontecer, faria de mim
uma espécie de mártir literário, o que, em teoria, não me desagradava
completamente. (p. 39-40)
A importância da referência ao Don Quixote assume um relevo maior não tanto
em relação à manipulação do real levada a cabo pelo escritor José Luís Peixoto, embora
saibamos que ele nos dá a ler impressões subjetivas de viagem, mas sobretudo em
relação à propaganda levada a cabo pelo regime norte-coreano, que mistura sempre uma
proporção desfasada de ficção com a realidade. Assim, ficamos a saber que os grandes
líderes são capazes de controlar a meteorologia, por exemplo, “O grande líder sabia
fazer um bonito dia de Primavera.” (p. 51) ou aquando da morte de Kim Jong-il, em
2012
enormes bandos de pássaros que foram ao local onde estava a ser velado; um
inédito brilho vermelho que cobriu o topo do pico Jong-il, a neve
transformou-se em trovões e relâmpagos em Kaesong, na manhã em que
morreu, a terra tremeu no monte Paektu, acompanhada pelo rugido do gelo a
rebentar nas margens dos lagos. (p. 47)
Da mesma forma, descobrimos que Kim Il-sung escreveu mais de dez mil livros
(p. 53) ou que durante a inauguração do primeiro campo de golfe de Pyongyang, Kim
Jong-il
precisou apenas de uma tacada para cada um dos onze buracos do campo. Na
linguagem do golfe, chama-se hole in one. Kim Jong-il conseguiu fazer onze
consecutivos. Os seus dezassete guarda-costas, assim como alguns quadros
superiores foram os únicos que testemunharam esta façanha [...]. No final, o
querido líder desinteressou-se por esse desporto demasiado fácil e não voltou
a jogar. (p. 29)
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Chegada
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Para quem “estava farto de tanto controlo, da lógica que norteava aquele culto,
estava farto do medo” (p. 230), a valorização imediata dos pequenos prazeres da vida e
entre eles da liberdade sobre a qual não pensamos todos os dias fazem com que o nosso
quotidiano seja colocado em perspetiva: “Atravessar a rua pode ser um prazer imenso.
Ninguém atrás de mim, nenhuma vigilância. Não se deve subestimar o valor de respirar
fundo.” (p. 232)
Por outro lado, assistimos a uma tentativa de descentramento do Eu, operada
através de um distanciamento da imagem que representa o nome José Luís Peixoto. Ao
colocar o Eu à prova no espaço do Outro, o autor mostra como a alteridade pode
funcionar como um espelho para o Eu e, ao mesmo tempo, como um espaço de
redescoberta de si.
Ao acompanharmos o autor na sua busca interior percebemos que a reflexão
sobre as ideologias que escravizam a mente dos povos, assim como as reflexões de foro
mais pessoal acabam por dar-lhe as respostas que o autor procurava: “O meu mundo
passou a fazer mais sentido.” (p. 235) Será com certeza uma experiência inesquecível
que o autor procura imortalizar através de um postal enviado a si mesmo com as
seguintes palavras: “Para que, quando já não estiveres aqui e fores outro, possas receber
estas palavras e, com elas, um pouco de estares aqui e seres o seu significado.” (p. 198)
No entanto, o estilo de escrita do autor está sempre presente e o corte anunciado
tanto no género quanto na temática aquando da publicação deste livro acaba por ser
apenas parcial, dado que a vontade de refletir sobre a literatura, a construção do texto
literário, as influências literárias, a posição do escritor na sociedade ou ainda a presença
da ficção na realidade, mostram-nos como o autor nunca está longe dos seus temas de
predileção.
O tema da viagem à casa do Outro, já tão explorado ao longo de séculos de
literatura continua a ter hoje todo o seu sentido, não é por acaso que comparar a vida a
uma viagem é algo de frequente; esta afirmação encontra plenamente o seu sentido nas
palavras finais de José Luís Peixoto das quais nos servimos para concluir este trabalho:
É tão fácil comparar a vida com uma viagem. Faz tanto sentido. Viagem ou
vida, chegamos sempre aqui. Como se estivéssemos no alto de uma
montanha, podemos olhar em volta. Aqui é o lugar onde tudo acontece. Há
serenidade nesta certeza. Tens o dever livre de aproveitá-la. Se estás a ler
estas palavras é porque estás vivo. (p. 236)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Philippe, Antoine; Gomez-Géraud, Marie-Christine (Ed.). 2001. Roman et récit de
voyage. Paris: Presses de l'Université de Paris-Sorbonne.
Garnier, Xavier; Zoberman, Pierre (Ed.). 2006. Qu'est-ce qu'un espace littéraire?. Saint-
Denis: Presses universitaires de Vincennes.
Tverdota, Gyorgy (Ed.). 1994. Écrire le voyage. Paris: Presses de la Sorbonne nouvelle.
1431
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 3 - Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro, 1433-1446
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1433
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Enrico MARTINES
40 Cardoso Pires J., Lisboa, livro de bordo: vozes, olhares, memorações, Dom Quixote, Lisboa, 1997.
41 Saramago J., Viagem a Portugal, 16ª ed. (1995), Caminho, Lisboa, 1981.
42 Pessoa F., Lisboa: o que o turista deve ver – what the tourist should see, Livros Horizonte, Lisboa,
1992.
43 Fargue L. P., Le piéton de Paris, Gallimard, Paris, 1939.
44 Sansot P., Poétique de la ville, Klincksieck, Paris, 1973.
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da cidade. A relação de profunda complicidade que ele mantém com o espaço urbano
consente-lhe a busca de um significado mais profundo nele. Para que esta busca tenha
um sentido é necessário que o segredo se esconda por detrás da aparente objetividade
dos elementos citadinos e que seja apenas alcançável por meio de uma experiência
pessoal, de uma vivência45.
Aquele que viaja pela sua própria cidade – é Saramago quem o sublinha – é
diferente do turista que “vai, olha, faz que entende, tira fotografias”46 e, no entusiasmo,
pensa que conhece. Conhecer é um processo muito mais gradual, significa atingir uma
intimidade que consente – como sugeriu Barthes – habitar a dimensão erótica do
discurso urbano, de reconhecer a sua natureza infinitamente metafórica47.
O escritor torna-se então sujeito errante, viaja sem mapas ou itinerários pré-
estabelecidos – sendo dali mesmo, não precisa dessas coisas – não procura a
confirmação reconfortante de uma imagem já vista, mas perde-se volutariamente na
rede dos sinais, dispondo-se a descodificar a sua mensagem recôndita48. No seu Livro de
bordo, Cardoso Pires afirma que “ninguém poderá conhecer uma cidade se não a souber
interrogar, interrogando-se a si mesmo”49. Num comentário a este mesmo livro, em
entrevista ao Jornal de Letras, irá mais longe, desmentindo-se parcialmente: para
compreender a realidade urbana, para a viver, é preciso ser capaz não só de lhe colocar
perguntas – “isso qualquer turista faz”50, diz Cardoso Pires – mas é necessário que uma
pessoa se sinta interrogada pela cidade e posta em causa, é necessário interagir com ela,
é necessário que faça parte do seu tecido: “nas cidades de que gosto […] sinto-me
interrogado. Em toda a parte há bocados de mim”51.
Viajar pelo próprio país, pela própria cidade, significa – como realça Saramago
– viajar até ao interior de si mesmo, refletindo dentro de si as imagens da sua própria
identidade cultural52. Seguramente Cardoso Pires não ignora a sua cultura quando
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decide dar ao seu texto a definição de “livro de bordo”: a imagem que preside à
descrição dos meandros mais íntimos da Lisboa piresiana é a de cidade-navio que olha
para o Oceano, com quem tem uma relação milenar feita de atração e dependência, e
volta as costas à Europa53, é um lugar de fronteira, jangada de pedra mas em miniatura,
em relação à de Saramago que incluía toda a Peninsula Ibérica54:
Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de
navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o
mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-
nave, barca com ruas e jardins por dentro e até a brisa que corre me sabe a
sal. Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras, há
sereias. O convés, em praça larga com uma rosa dos ventos bordada no
empedrado, tem a comandá-la duas colunas saídas das águas que fazem
guarda de honra à partida para o oceano. Ladeiam a proa ou figuram como
tal, é a ideia que dão; um pouco atrás, está um rei-menino montado num
cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés
vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto
no terreiro batido pelo sol. Em frente é o rio que corre para os meridianos do
paraíso. O tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-o de
tritões a cavalo de golfinhos55.
Mas nesta mesma imagem inicial de navio-cidade existe, evidentemente, uma
visão de conjunto do objeto da sua posterior atividade de decifração, uma condensação
de símbolos, uma alegoria preliminar que implica um distanciamento, único modo de
obter uma visão total. E esta mesma distância é indispensável ao ato de reencontrar um
sentido nos lugares da cidade que, de outra forma, se esvaziariam, devido à sua
constante exibição, à quotidianidade do seu uso; a distância de quem, porém, tem já
uma extrema confiança com o tecido citadino e recusa explicitamente o contentamento
das imagens panorâmicas – “para mim, panorâmicas e vistas gerais são quase sempre
frases feitas ou cenários de catálogo”56 – para depois se predispor à exploração dos seus
percursos mais misteriosos, já que, no fundo, “a distância inventa cidades”57, dá-lhes
uma imagem falsa.
em trânsito e processo, as impressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo”. Saramago J., op.
cit., págs. 13-14.
53 Mais adiante o autor escreverá mesmo: “Tal como estou tenho a cidade pelas costas. Comércio,
multidão, Europa, fica tudo para trás”. Cardoso Pires J., op. cit., pág. 113.
54 A referência é ao romance de José Saramago, A Jangada de Pedra, de 1986.
55 Cardoso Pires J., op. cit., pág. 7.
56 Ibid., pág. 10.
57 Ibid., pág. 11.
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Se a viagem pela cidade é também uma viagem ao interior de nós próprios, não é
por acaso que a deambulação começa no bairro que é também o bairro da infância: José
Cardoso Pires parte de Arroios, tal como Fargue, no seu Piéton de Paris, intitula o
primeiro capítulo “Mon quartier”, a Chapelle, o microcosmos que lhe está mais perto e
que melhor conhece, uma espécie de porto seguro, onde se volta para depois se dar
início ao seu próprio itinerário de peão:
Il y a des années que je rêve d’écrire un «Plan de Paris» pour personnes de
tout repos, c’est-à-dire pour des promeneurs qui ont du temps à perdre et qui
aiment Paris. Et il y a des années que je me promets de commencer ce voyage
par un examen de mon quartier à moi, de la gare du Nord et de la gare de
l’Est à la Chapelle, et non pas seulement parce que nous ne nous quittons
plus depuis quelque trente-cinq ans, mais parce qu’il a une physionomie
particulière, et qu’il gagne à être connu.58
Tal como escreveu Cardoso Pires:
O que faz com que uma cidade seja habitada, não é a população que
deambula nas suas ruas sem dialogar com a paisagem por onde ela caminha.
O que faz com que uma cidade seja habitada, que ela tenha uma alma, é o seu
engajamento cultural com relação ao traçado que a configura e aos habitantes
que a fazem viver.
Mais ainda: são também, com sua permissão, a cor e voz que os artistas e
escritores descobrem pouco a pouco nela, e que permitem melhor vê-la e
sublinhar-lhe a singularidade59.
São precisamente estes os elementos que mais revivem no diário piresiano: em
relação à cor, o nosso escrivão de bordo rejeita – de forma bastante ressentida – o cliché
postiço da “Ville blanche”, aplicado por Alain Tanner ao filme que fez sobre Lisboa, e
abraça a imagem pessoana de uma “Lisboa, com suas casas de várias cores”, cores
contrastantes e mutáveis:
Cor. De Lisboa è caso para dizer que até os daltónicos lhe discutem a cor.
Veja lá, de preferência o ocre pombalino, recomenda un byroniano de
passagem. O verde, o verde, contrapõe alguém logo a seguir, com os olhos no
Terreiro do Paço, «até o cavalo de D. José vai ficando verde, comido de
mar», já lá dizia Cecília Meireles. Ou o branco, o branco lembra espumas de
oceano, cal de muros, Mediterrâneo, «sente-se uma nostalgia branca...»,
escreveu Mary McCarthy numa Carta de Portugal e Alain Tanner, cineasta
civilizado, não esteve com mais aquelas e chamou a isto Cidade Branca.
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Cidade Branca, que cegueira a deste Tanner lumière. É cor, o branco do filme
dele ou é metáfora? Interroga as impetuosidades duma luz que no mesmo
lugar, no mesmo instante e na mesma cor nunca se repete? Pergunto60.
Quanto às vozes, Cardoso Pires demonstra uma extraordinária capacidade de
colher o aspeto fónico e prosódico da linguagem citadina, a sintaxe particular de cada
bairro, como sinal que revela o espírito de um determinado sítio e de quem ali vive. A
rua tem, na verdade, o poder de realizar uma libertação da linguagem, uma palavra viva
e criativa que rompe com as barreiras impostas pelo sistema e que tende a transformar-
se no interior do espaço físico que a torna percetível, carregando a experiência do seu
uso quotidiano61.
A mais-valia do falar lisboeta não reside apenas no léxico do calão ou na
construção da frase, traços que por si só revelam a ironia caraterística dos habitantes de
Lisboa: estes elementos, que diferem de bairro para bairro, são típicos de todas as
grandes cidades; a verdadeira peculiaridade está naquilo a que o autor define como
“sintaxe vocal”62, o tom de uma “acidez quase gutural” herdado da velha tradição dos
pregões da rua63, e os “reforços expletivos” – o cuspir fininho64, o mandar vir65, o ponto
mosca – através do qual o genuíno lísbia66 exprime o seu peculiar humor. Este mesmo
60 Cardoso Pires J., Lisboa, livro de bordo: vozes, olhares, memorações, cit., págs. 41-42.
Na já citada entrevista a Rodrigues da Silva (1997) publicada no JL, n° 707, acrescenta: “O Tanner
desembarcou cá como um janota da Suiça que veio ver o que é que se passa aqui com estes pobres
rapazes do Sul, que não sei que língua falam ou se comem com os pés ou como é que é, esses trogloditas,
coitados. E foi ao Casbah. O que é que o filme conta de Lisboa? Coisa nenhuma, rigorosamente nada. [...]
Porque é que Tanner chamou branca a Lisboa? Porque é fácil, porque todo o sapateiro, todo o tipo de
imagens rápidas chama-lhe branca. Há bocados de Lisboa que são brancos, mas há muitas cidades mais
brancas que Lisboa. O que eu acho espantoso em Lisboa é o que Pessoa disse dela. E ele nunca disse que
era branca, disse sempre que era a cidade das mil cores” (pág. 18).
61 Sansot P., op. cit., págs. 177-181.
62 Na entrevista ao JL, n° 707, Cardoso Pires diz: «Esse “espírito do lugar” revela-se, entre outras coisas,
no discurso lisboeta, já sabemos. Mas ao falar do discurso, não é o linguajar, nem o achado vocabular e,
muito menos, o calão que eu aponto como mais-valia. Não, o que deslumbra é a sintaxe – outra sintaxe,
esta agora da voz –, a sintaxe em que o lisboeta de raiz assenta a frase, os reforços expletivos, por
exemplo, com que ele transmite um humor, e que não é mais do que uma outra expressão do seu “espírito
do lugar”» (pág. 17).
63 “Na circunstância há uma acidez quase gutural a rematar a voz mas quem for de ouvido e preceito
saberá que muitas vezes não se trata de um espalhafato, duma arruaça. Que se resume a um travo natural
que será talvez um resto dos antigos pregões da rua”. Cardoso Pires J., Lisboa, livro de bordo: vozes,
olhares, memorações, cit., pág. 35.
64 A definição que lhe dá Cardoso Pires na pág. 35 do seu Livro de Bordo é: “Contestar com argúcia pelo
avesso”.
65 Cardoso Pires explica-o como uma genérica provocação, escrevendo na pág. 32 do seu Livro de
Bordo: “Para já, ao discurso chama música e à provocação mandar-vir, quer-se melhor?”.
66 Explica o autor na pág. 32 do seu livro: “Desta sorte, se um lísbia da Madragoa, de Alcântara ou de
Campo de Ourique – um lísbia, pronto, um praticante vivido de Lisboa – me estivesse a ouvir falar para
aqui de heresias e de assuntos ao desmando faria a tudo que sim e não acrescentaria mais nada. ‘Ponto-
mosca’, é o termo com que se designa essa forma de pautar e, que me lembre, ainda não vi arte mais
expedita para dar fio ao assunto e avaliar os intuitos”.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
discurso sobre a sintaxe citadina, embora sugerido com os tons rápidos e vivazes que
caraterizam este diário de bordo – que, segundo o seu autor, é “uma coisa leve, um
ponto de partida para um dia aprofundar”67 – foi alvo de uma promessa por parte de
Cardoso Pires: numa edição sucessiva deste seu trabalho seria examinado mais
demoradamente.
O itinerário proposto pelo escritor é também, inevitavelmente, uma rota cultural
da própria cidade. De facto, é o que se espera dele: que saiba evidenciar os lugares onde
a cultura se manifestou, que seja capaz de ligar ambientes e intérpretes da literatura a
que ele próprio também pertence, com especial referência aos escritores que compõem o
seu itinerário literário-sentimental pessoal. Desta forma, a sua escrita tende a revisitar e
a atualizar a escrita dos outros, a sublinhar a herança da palavra literária passada que
vive no presente. Não só a palavra do outro, mas também a sua própria palavra: a Daisy
a quem Cardoso Pires se dirige num capítulo do Livro de Bordo, a destinatária dos
versos de Álvaro de Campos, cujo nome é ostentado pelo mosaico no passeio da
Avenida de Roma, ecoa também num precedente escrito piresiano, O Viajante
Anunciado, texto de abertura da recolha A Cavalo no Diabo. Analogamente, os
lendários corvos de São Vicente, descritos pelo autor como apaixonados frequentadores
de tascas, remetem para o Corvo Taberneiro, protagonista da narrativa que abre o
volume A República dos Corvos68.
Nesta cidade de escritores e de escrita não é um puro acaso o facto do Chiado –
local onde foi ambientada tanta literatura e onde surgiram tantos movimentos –
representar, para Cardoso Pires, o bairro que poderá transformar Lisboa numa
cidade-símbolo:
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
cidade capaz desta e de tantas variantes sobre cada tema, longe de se repetir,
recria e ganha uma unidade plural. Para mim, a Lisboa que se diz de mármore
e granito é antes, uma capital de calçadas em renda negra a espelharem-se
nos azulejos que a enriquecem de cor e brilho75.
Uma das realizações mais recentes, o metropolitano com as suas estações
artísticas, conduzem-no a uma sugestiva exploração subterrânea, onde se instaura uma
interessante dialéctica entre o “dentro” e o “fora”, entre o “abaixo” e o “acima”, que
evidencia a significativa rede de remissões recíprocas entre o subsolo e a superfície:
Exacto. Uma cidade que se desdobra, espelhando-se. [...] Vou num comboio
de estações de arte, diz-me o olhar. [...] esta continuidade do exterior com o
interior e do real com o figurativo dá uma outra dimensão ao nosso olhar.
Depois da geometria das calçadas que se continua em geometria de mosaico
nos corredores do metropolitano, depois da versão subterrânea do Marquês
de Pombal que acompanha a da estátua a céu aberto da Rotunda, depois do
Zoo Municipal seguido do Zoo imaginário de Júlio Resende, depois dos
empedrados decorativos que saem das ruas e se renovam, por exemplo, nas
estações de Sete Rios ou do Campo Grande, a cidade espelha-se, desdobra-se.
De passagem em passagem, os murais e as esculturas que vou percorrendo
aproximam-me cada vez mais da Lisboa que me está por cima e da minha
identificação com ela76.
Na avaliação de textos como os que inicialmente citei é preciso não perder de
vista não só a personalidade específica do autor, mas também as motivações que o
levaram a escrever uma homenagem literária à sua própria cidade. Nos casos aqui em
estudo, estamos frente a textos de natureza diversa.
Cardoso Pires foi, ao longo de toda a sua obra, o cronista de Lisboa, a cidade
onde não nasceu, mas que foi também sua a partir dos oito anos. Para além das já
citadas crónicas, dedicou-lhe um outro texto, Lisboa: vistas da cidade (incluído no
volume colectivo Um olhar português), onde pôs em marcha a sua atividade
interpretativa da capital, vista como um “corpo para ler e decorar”. E o estatuto de
escritor de Lisboa era aceite por Cardoso Pires com prazer e orgulho. O Livro de bordo
foi esboçado numa primeira versão alargada em 1994, coincidindo com a designação de
Lisboa como “Capital Europeia da Cultura”, e foi depois retomado e publicado por
ocasião da Expo 98; trata-se do momento final da sua apaixonada relação com a cidade
ou, como declara o próprio autor, de “um ajuste de contas comigo mesmo para com uma
cidade que eu me fartei de ver, e vejo sempre interpretada de uma maneira um bocado
75 Cardoso Pires J., Lisboa, livro de bordo: vozes, olhares, memorações, cit., pág. 95 e pág. 98.
76 Ibid., pág. 99 e págs. 106-107.
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monumental, mas procurar defini-la é difícil”85. Podemos assim dizer que Saramago
abdica do papel de eventual anfitrião da própria cidade, mas também do papel de
decifrador de símbolos em busca de um significado profundo. Limita-se a propor uma
experiência pessoal e a sugerir ao leitor que realize essa mesma experiência por sua
conta e risco.
Seguramente que o nosso escrivão de bordo não se terá identificado no
didascálico guia turístico elaborado por Fernando Pessoa, escrito em inglês para que o
mundo ocidental se apercebesse do valor da cultura lusitana. O seu itinerário de um dia
por entre as riquezas da capital, com os seus monumentos e os seus museus, é um texto
que parece destoar na produção de um autor que considerava a admiração pela cidade
um inequívoco sintoma de provincianismo86 (e disto condenava também o amigo Mário
de Sá-Carneiro87). Mas Pessoa, é inútil dizê-lo, é um autor de mil caras, e uma destas
caras, segundo Teresa Rita Lopes, correspondia ao homem de ação que escrevia textos
dotados de finalidades práticas, como os artigos para a Revista de Contabilidade e
Comércio88; neste caso, a finalidade era, precisamente, a propaganda da imagem de
Portugal aos olhos dos estrangeiros, pelo que Pessoa usa um estilo muito sóbrio para
exaltar, com grande acuidade de informações e de detalhes, o património cultural
patente na capital lusitana:
We shall now ask the tourist to come with us. We will act as his cicerone and
go over the capital with him, pointing out to him the monuments, the gardens,
the more remarkable buildings, the museums – all that is in any way worth
seeing in this marvellous Lisbon. After his luggage has been handed to a
trustworthy porter, who will deliver it at the hotel if the tourist is staying
awhile, let him take his place with us in a motor-car and go on towards the
centre of the city. On the way we will be showing him everything that is
worth seeing89.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Cafés crasseux, cafés pour hommes du Milieu, cafés pour hommes sans sexe,
pour dames seules, cafés de tôliers, cafés décorés à la munichoise, esclaves
du ciment armé, de l’agence Havas, tous ces Noyaux, ces Pierrots, ces cafés
aux noms anglais, ces bistrots de la rue Lepic, ces halls de la place Clichy,
donnent asile aux meilleurs clients du monde. Car le meilleur client de café
du monde est encore le Français, qui va au café pour aller au café, pour y
organiser des matches de boissons, ou pour y entonner, avec des camarades,
des hymnes patriotiques92.
O olhar experiente de Fargue encena os sujeitos típicos dos diversos bairros,
muitas vezes sujeitos de uma obra de narração. O autor acaba por ser identificado com o
seu “piéton de Paris”, com a imagem do viandante num perene caminho através das ruas
da cidade em busca de si mesmo, pois a cidade vive dentro dele, é o espelho dos
segredos da sua alma, é o lugar poético onde se reencontra.
1444
Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Arias, J. (2000): José Saramago: o amor possível, Lisboa, Dom Quixote.
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Simpósio 3: Literatura em trânsito: em viagem à casa do outro
Cardoso Pires, J. (1997): Lisboa, livro de bordo: vozes, olhares, memorações, Lisboa,
Dom Quixote.
Lepecki, M. L. (2003, a cura di): José Cardoso Pires. Uma vírgula na paisagem, Roma,
Bulzoni.
Lopes, T. R. (1997): «Pessoa, cicerone» in JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano
XVII, n° 707, de 19 de Novembro a 2 de Dezembro de 1997, pp. 19-20.
Margato, I. (2000): «“A primeira vista é para os cegos”» in Revista Semear 3 (Revista
da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portegueses, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro), consultabile al sito www.letras.puc-
rio.br/catedra/revista/3Sem_04.html.
Pessoa, F. (1992): Lisboa: o que o turista deve ver – what the tourist should see, Lisboa,
Livros Horizonte.
Rodrigues da Silva (1997): «Cidade, minha cúmplice» in JL, Jornal de Letras, Artes e
Ideias, Ano XVII, n° 707, de 19 de Novembro a 2 de Dezembro de 1997, pp. 17-19.
1446
SIMPÓSIO 19
ESCRITAS POÉTICAS EM LÍNGUA PORTUGUESA:
DIÁLOGOS CRÍTICOS
COORDERNADORES
Alexandre Pilati
(Universidade de Brasília)
Alexandre PILATI2
RESUMO
A obra de Mário de Andrade Carro da miséria, apropria-se literariamente do clima
histórico da Revolução de 1930 e da Revolução Constitucionalista de 1932 e dos
desdobramentos desses fatos durante a década de 1930. Como um tributo ao espírito da
época, Mário produz uma das mais interessantes reflexões poéticas sobre o que é o
progresso no Brasil e qual é o sentido da história brasileira na primeira metade do
século XX. Os eventos históricos fazem o autor reconsiderar, agora de modo mais
dialeticamente tensionado, as ilusões do modernismo e as possibilidades de um lirismo
nacional profundamente vinculado à tradição popular. Mário produz, então, um texto
consciente da exigência expressiva do presente do país exige expressão poética. Isso
leva o autor a desmobilizar certezas modernistas e criar um poema estranhamente
desconexo, que, segundo alguns críticos, não possui “integridade estética”. O desafio
desta leitura é interpretar as desconexões da obra como valores de sua integridade
estética, assumindo a hipótese de que o poema é um todo complexo, armado em chave
de disjunção.
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É bom lembrar que no ensaio o crítico está tratando da faceta especulativa da obra de
Mário de Andrade, que conseguiu construir, para além das limitações de alcance
sistematizador que se exigiriam de um esteta rigoroso, um sistema explicativo das
necessidades renovadoras da arte e da literatura brasileiras no contexto da viração
modernista. Entretanto, embora a divisão proposta por Schwarz valha imediatamente
para a reflexão estética de Mário, não é impossível fazermos um exercício de
transposição dessa estrutura para as suas obras poéticas, claro, levando em conta as
indispensáveis mediações adaptativas. Na divisão proposta por Schwarz, os “três
reinados” da poética de Mário de Andrade ordenam-se segundo um princípio
cronológico, embora evidentemente não se trate de um seccionamento estanque, uma
vez que as três dimensões se intercambiam e contaminam-se mutuamente, e isso de
modo especial se observamos a sua poesia.
O termo central para a leitura de Schwarz dessas três atitudes fundamentais é
psicologismo, de onde derivaria, segundo o crítico, “um quadro conceitual de
polaridades irredutíveis” (Schwarz, 1981: 15), composto por antinomias tais como
“lirismo-técnica”, “subconsciente-consciente”, “indivíduo-sociedade”, “ser-parecer”.
No mais das vezes, na obra especulativa de Mário de Andrade, essas antinomias
subsistiriam como algo tão dicotômico que resistiriam a realizar-se em um terceiro
plano, essencialmente dialético, que consistiria na síntese superadora do impasse, capaz
de complexificar a experiência artísticadotando-lhede mais fibra e exigência.
Assim, por exemplo, no caso da primeira atitude, sempre conforme Schwarz, a
poesia seria concebida como “pura grafia do lirismo”, para a qual seria deletéria, por
mínima que fosse, qualquer interferência de ordem material ou intelectual. O conjunto
de argumentos do crítico aqui está amparado nas afirmações de Mário em A escrava que
não é Isaura. Ali, para Schwarz, o autor de “O Carro da Miséria” considera poesiaalgo
que respeita, de modo integral, os movimentos do subconsciente. O limite desse gesto é
a substituição da “ordem exterior”, tão obcecadamente perseguida pela estética
parnasiana que se desejava destruir, pela “(des)ordem interior”, num gesto poético que é
capaz de fazer continuar o movimento da subjetividade no mundo. Para Schwarz, ao
levarmos ao ponto mais intenso essa concepção de poesia como lirismo, a consequência
mais radical seria a de cristalizar-se como poesia a exigência da vida e não a da
escritura. Ou seja, para o crítico, a poesia perderia o seu papel criador, uma vez que se
completa exatamente quando comprometida com a verdade subconsciente, que passa a
ser critério de valor.
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classes. Uma superação que implicava pensar um modelo de técnica poética que não
desprezasse nenhum elemento da dinâmica dos encontros dilacerados do eu com o
mundo e com a linguagem. A soluçãoencontrada Mário de Andrade em “O Carro da
Miséria”, segundo Lafetá, passa por um emprego da coloquialidade que não seria nem
aquela pitoresca do primeiro modernismo, nem aquela do estilo médio do Ferreira
Gullar de Poema sujo. Em suas palavras fica assim definida essa dicção especialmente
política de “O Carro da Miséria”:“o destampatório rude [que] imprime ao coloquial uma
contundência que o Poema sujo não tem” (Lafetá, 2004: 239).
A partir do que relacionamos até aqui, é possível delinear algumas linhas de
força do que desejamos caracterizar como integridade artística de “O Carro da
Miséria”, que passa por aquilo que dois críticos importantes da poética e da poesia de
Mário de Andrade concebem como um salto qualitativo estético que garante força
política à sua obra. Relembrando os termos essenciais da caracterização que desejamos
estabelecer, diríamos, na esteira de Roberto Schwarz (1981) que “O Carro da Miséria”
dá forma poética ao salto qualitativo que faz o autor superar a dicotomia psicologismo e
técnica de fases anteriores de sua produção especulativa, crítica e poética, alçando a
noção de técnica pessoal como uma representação dialética da tensão “eu” X “mundo”
que encaminha a forma a uma superação do particularismo no sentido da
universalidade. Do que recolhemos em Lafetá (2004), podemos sublinhar, sobretudo, a
noção de “estilo destruidor”, cuja imanência “dilacerada” ou “destampatória” tem o
condão de expressar poeticamente o núcleo político de luta de classes como fronteira
que a literatura do tempo estava empenhada em romper. Esses podem ser concebidos até
aqui, a nosso ver, como elementos fundamentais da integridade artística do poema, os
quais podem ser tomados como pressupostos para a chave de leitura que estamos
empenhados em construir.
Caberá agora agregar a esses elementos algo da visão do próprio Mário de
Andrade acerca dos textos de “O Carro da Miséria”, a fim de complexificar um pouco
tal chave.
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Até aqui delineamos as “origens” do poema. Do que vimos até aqui na “Carta”,
podemos depreender que “O Carro da Miséria” deriva de dois “surtos catárticos”
iniciais, intimamente ligados a fatos políticos de relevo nacional, e um terceiro
momento ordenador, que visava limpar um pouco o poema de sua terminologia suja
impregnada da raiva catártica daqueles primeiros momentos criativos. A necessidade de
estouro, no entanto, vinha de uma complexa dialética entre ressentimento individual e
noção política da sociedade e da arte.
Nesse caso, tratava-se do mal-estar do poeta com a sua insuperável condição
burguesa, do fato de reconhecer-se burguês “da pior burguesaria”. Esse é o núcleo de
inquietação social e individual, ou seja, as “causas profundas” de “O Carro da Miséria
segundo seu próprio autor. Mário começa a explanar essa inquietação fundamental
recuperando o artigo de 1934 onde se auto-declarava “comunista”, como forma de
contribuir para (e de dar vazão a)o que ele chamava de necessidade de uma “mudança
drástica de ideologia” (Andrade, 2004:276) para a correção dos rumos da história. A
reflexão que doidamente atravessa o poeta no decorrer dos anos 30 leva-o a encarar
várias vezes a ideia de suicídio. Esse “drama” vivido no íntimo é, segundo o autor, o
verdadeiro assunto psicológico de “O Carro da Miséria”. E o drama é o reconhecimento
pelo poeta dessa inexorável condição burguesa, que seria necessário ultrapassar, no
plano da qual “O Carro da Miséria” se ergue, ao mesmo tempo, como documento e
tentativa de ruptura. Nas palavras de Mário, fica assim delineada a dimensão política e
íntima do assunto do poema:
E esse assunto do poema, que agora vai esclarecer o sentido dele todo e de
numerosos versos e mesmo partes inteiras dele, é a leitura do burguês
gostosão, satisfeito das suas regalias, filho-da-putamente encastoado nas
prerrogativas da sua classe, a luta do burguês pra abandonar todos os seus
preconceitos e prazeres em proveito de um ideal social mais perfeito. Ideal a
que a inteligência dele já tinha chegado por dedução lógica e estudo, e que a
noção moral aprovava e consentia, mas a que tudo o mais nele não consentia,
não queria saber. Simplesmente porque estava gostoso. (Andrade, 2004:277)
A dialética entre o ser burguês, confortável em seu posto de escritor, ainda que
empenhado em escrever contra o sistema, e o imperativo de impulso revolucionário
votado a transformar o mundo é, portanto, um importante dado para recolhermos paraa
construção da chave de leitura de “O Carro da Miséria”. Segundo Mário, esse conjunto
de movimentos essenciais presentes poema advêm da consciência “muito ‘sentida’ e
muito ‘vivida’ de atualmente”. As dimensões ética, moral, política, logo, não adentram
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Considerações finais
Até aqui, tentamos construir uma chave de leitura, da qual os elementos centrais
são:
1. O desenvolvimento em ato de uma técnica pessoal que supera a dicotomia
psicologismo técnica poética;
2. A articulação do poema a certas linhas de força do sistema literário brasileiro
dos anos 1930.
3. A força politizante da tensão eu burguês x mundo a se transformar que constitui
o princípio estético fundamental do texto.
Todos esses são elementos que estruturam a proposta de chave de leitura para o
“Carro da Miséria” que até aqui expusemos. Chegar a uma especificação maior dessas
tendências só será possível, entretanto, se for empreendida uma leitura miúda dos
diversos aspectos literários que o constituem como um todo homogêneo e múltiplo que
é capaz de revelar as contradições do progresso e o sentido da história a contrapelo
deseu funcionamento burguês. A radicalidade de “O Carro da Miséria” (e, portanto, a
sua integridade estética) deriva dessa sua necessidade incontrolável de compor uma
outra narrativa para a história futura, nem que para isso, tenha de assumir o risco de
desagregar si mesmo como peça literária.
A presença fundamental dos vencidos, que é estruturante, reconhecível na
camada mais evidente do poema, ao mesmo tempo aguda, permanente e incidental,
configura a profunda “ordem” na desordem aparente do texto. Delineiam-se, assim, as
suas duas constâncias, garantidoras de sua integridade estética: o poeta revirado pelo
avesso querendo transformar-se negando o seu próprio mundo e o universo popular, que
não se afirma no texto sem carrear junto consigo os dilemas e as contradições da miséria
que passa em desfile e que, portanto, não fosse a raiva contra si mesmo e a negatividade
do estilo destruidor, poderia ser consumida também como beleza anódina, à distância
alheia do olhar do leitor/autor burguês. É um poema que nos interpela politicamente
enquanto leitores de literatura brasileira e modernista. Eis aí talvez o seu sentido último
em contato com o sentido da história brasileira.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Andrade, M. de. 1983. “O carro da miséria”. In: De Paulicéia desvairada a Café
(Poesias Completas). São Paulo: Círculo do Livro.
_______. 2004. Carta de Mário de Andrade a Carlos Lacerda. Revista Brasileira. Nº39.
Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro.
Paes, J.P. Sobre “O carro da miséria”. 1994. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros.
Nº 36. São Paulo.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1465-1484
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1465
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este texto pretende ler o poema “Boi morto”, de Manuel Bandeira, como uma forma
estética realista, isto é, como reflexo artístico do que existe. Considerar o texto poético
como um reflexo, implica em aceitar que ele mantém relações estreitas com a realidade
de onde partiu; entretanto, trata-se de um tipo específico de reflexo, o artístico; o que
demanda também a compreensão de que os elementos que conectam o texto literário ao
seu mundo de origem se constituem como forma mediada de representação da realidade,
nunca como cópia ou como imitação imediata do mundo. Assim, o texto é reflexo de
algo que existe a despeito da consciência humana, mas, ao mesmo tempo, é também
prova viva da marca que o homem imprime no que existe para além dele mesmo. No
interior do texto literário, portanto, toma forma (estética) a relação dialética, histórica e
ontológica entre objeto e sujeito, entre mundo natural e mundo humano, como
realidades específicas que, no entanto, caminham uma em direção a outra.
3UnB, Instituto de Letras, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, ICC Ala Sul, Sobreloja sala
B1-012, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, CEP: 70910-900, Brasília, DF, Brasil,
analaura@unb.br
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
BOI MORTO
Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto,
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
“Boi morto” é parte do livro Opus 10,de Manuel Bandeira, publicado em 1952. É um
poema da maturidade do poeta, que, nesse momento, já contava 66 anos. Mas “Boi
morto” é também um poema que, como tantos outros do conjunto da obra de Bandeira,
evoca a infância no Recife, condensada em imagens, especialmente a do boi morto
arrastado pelas águas da enchente. Esse acontecimento vivido na infância se refere
muito claramente à relação entre os homens (a família do poeta, ele mesmo ainda
criança, as pessoas que compunham aquela realidade) e a natureza (a enchente das
águas do rio Capibaribe e o boi). Como fato, foi retomado literariamente pelo escritor
em vários textos de gêneros diferentes, antes e depois da concepção de “Boi morto”: no
poema “Evocação ao Recife”, de Libertinagem, em 1930; no relato memorialístico
Itinerário de Pasárgada, de 1954; na crônica “Cheia! As cheias!”, de 1960. Essa
referência, explícita nos textos citados e implícita em tantos outros momentos da obra
de Bandeira, fez desse acontecimento autobiográfico um tema recorrente, ora atado à
lembrança que pode ser recuperada e contada, ora, afrouxando o laço com o episódio
vivido, aumentado no tom “descomedido” de “Boi morto”.
O percurso diversificado na obra de Bandeira da memória desse episódio vivido
testemunha o seu impacto na vida do menino e destaca o fato vivido como elemento
significativo na sua formação como homem e como poeta. Mas as modulações de tom
no reaparecimento do episódio vivido, entre o autobiográfico e o transfigurado, dão
conta de algo mais: o problema do realismo na lírica. Aparentemente, o escritor está
mais próximo da realidade ou da verdade do fato, quando opta pela prosa
memorialística, enquanto a transfiguração poética do fato parece tomar distância e saltar
para um mundo muito mais amplo que o da infância do poeta, sem, no entanto, se
desligar totalmente do ponto de partida que apoia o gesto poético, este sim, a alavanca
para alçar a singularidade do fato à dimensão espantosamente universalizada que
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
adquire em “Boi morto”. Logo, este poema de Bandeira de que agora nos ocupamos é e
não é autobiográfico. Em “Boi morto”, é possível perceber de que maneira a atividade
lírica transporta o vivido ou sentido pelo poeta, em última instância o biográfico ou o
singular ou o cotidiano, para outra esfera, a da arte.
Sendo assim, no interior do poema “Boi morto”, estão o núcleo original do
vivido e, ao mesmo tempo, a sua dilatação em imagem universal, não mais apenas
relativa ao acontecimento em si, mas amplificada nadimensão mais funda da
subjetividade estética. O gesto poético, a atividade lírica, submete o vivido à lei interna
que vai compondo o poema, que, neste caso, como veremos adiante, parece ser a do
ritmo dos versos. Importa ressaltar agora que a vida do menino, o vivido, não mais
conformado em memorialística, crônica ou mesmo evocação, permanece,
subjacentemente, em “Boi morto”, mas, modulado pela atividade lírica do poeta, faz
crescer e avultar o que antes era circunstância singular, vivência infantil, mundo
familiar, para chegar ao canto lírico, a uma melodia mais grave e universal,
amadurecida, mundificada. Entre o singular do vivido e o tom universalizante da lírica,
erige-se o mundo particular do poema, onde se articulam, se movem e se tocam o que
foi e o que será.
Nessa conformação que se ergue para mediar a relação entre o singular e o
universal, é nela que reside, talvez, o realismo da lírica, como um particular que alcança
o típico, isto é, o nervo vivo da vida, que não é apenas o fato vivido, nem estritamente a
sua elevação à universal, mas, antes, a conexão entre ambos. O particular que se erige
no poema não se restringe ao singular do vivido, embora o inclua, nem tampouco se
encastela no universal, ainda que ele seja, aparentemente, o efeito estético final. Dessa
forma, o particular é a relação entre o singular e o universal, posta em ação na dança das
palavras que compõem o mundo particular do poema. Antes de entrar nesse movimento
ritmado, ainda que monocórdico, das palavras em relação umas com as outras, é preciso
entender como o particular, essa conexão entre singular e universal, se apresenta na
lírica, marcadamente subjetiva.
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Pode-se dizer, então, que “Boi morto” nasce de uma situação objetiva – a
vivência das cheias do Capibaribe pelo poeta na infância –, mas essa situação objetiva é
submetida à subjetividade lírica: “las relaciones de los objetos y sus vinculaciones no
están determinadas por la objetividad misma, sino precisamente por la subjetividad para
expresar cuyo estado e cuyo movimiento momentáneos nació el poema”(Lukács, 1965a:
328). Mas, se é assim, se na lírica a fusão indissolúvel entre externo (a situação objetiva
vivida) e interno (o que dessa situação restou de mais significativo para a alma do
sujeito que a viveu) resulta da subjetividade, como motor último ou como centro
sensivelmente poético da obra, de que maneira o poema pode alcançar a totalidade, ou
seja, pode inserir a dupla objetividade do metabolismo natureza e sociedade? Em suma,
como um poema lírico pode ser realista?
Na medida em que “la forma lírica nace del reflejo sintetizador de las
interacciones entre el hombre entero de la cotidianidad y el ámbito vital que suscita em
él la vivencia actual del momento”(Lukács, 1965a: 331). Ou seja, na lírica, o sujeito
poético é uma síntese entre criador e criado, ativo e passivo, momentâneo e duradouro,
por isso trata-se de uma particularidade em gênesis ou de natura naturans (Lukács,
2009). Na subjetividade lírica se configura o particular, conforme já dito, e é nesse
particular que se apresenta o sujeito lírico como elemento típico, que se refere “al
comportamiento subjetivo del hombre” em geral, mas não como uma abstração
generalizante, pois “el mundo conformado del poema hace visibiles la subjetividad
privada situada em la realidad que sirve de modelo y la relación de esa subjetividad com
el género humano”(Lukács, 1965a: 331), isto inclui, no interior do sujeito poético, as
relações com as formas objetivas, históricas e sociais, isto é, o metabolismo natureza e
sociedade.
Em “Boi morto”, como se configura esse metabolismo? Para compreendê-lo, é
preciso acompanhar o ritmo do poema que vai gerando a cada estrofe, de forma
estruturalmente crescente, o reflexo artístico da realidade “entre os destroços do
presente”. Antes, porém, é preciso, para fechar este tópico, ressaltar algo que mais tarde
será significativo para compreender de que maneira o metabolismo natureza e sociedade
se configura artisticamente no poema. O mundo natural em “Boi morto” não se
conforma como beleza natural, ou pelo menos não é a beleza das árvores da paisagem
calma que prevalece como forma sintetizadora no poema, mas sim a imagem
hiperbólica do boi morto: algo que fica fora do conhecimento, algo que pode ser
inclusive ameaçador?
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Ao analisar o poema “Boi morto”, Arrigucci Jr. (1990) afirma que os elementos
poéticos que transfiguram o motivo tirado do espaço da memória compõem uma “dança
das palavras”. A partir dessa perspectiva do movimento interno das palavras no poema,
o crítico faz uma acurada análise do ritmo dos versos. Dessa análise detalhada convém
retomar, para o que queremos ressaltar aqui, o quanto os versos octossílabos articulam
as palavras em uma cadência própria, plena de significado poético que ancora a fatura
das imagens e a organização das estrofes em três quintetos arrematados sempre pelo
mesmo verso, ditado em ritmo monocórdico: “Boi morto, boi morto, boi morto”.
A música dos versos orquestra a dança das palavras, das imagens poéticas,
acentuando nuances que, consteladas, vão compondo o mundo do poema. O ritmo
compõe uma cena, entrelaçando o tom à visão de um quadro vivo, não descritivo, mas
móvel (cinematográfico, no dizer de Arrigucci Jr.): o ritmo dos versos recria a imagem
das águas do rio subindo e arrastando consigo o que pode ser levado – o eu lírico, o
corpo, o boi morto, que se misturam sob a figura da comparação que abre o poema:
“Como em turvas águas de enchente”. Entretanto, não se trata de uma recriação
descritiva, ela não se esgota na reprodução do movimento natural das cheias, mas, ao
contrário, captura esteticamente a força natural do rio para dobrá-la ao curso imposto
pelo ritmo poético.
O ritmo, pensamos, gera o metabolismo próprio do poema, que internaliza em si
o metabolismo natureza e sociedade. Nesse metabolismo interno há a crescente
prevalência do “o” fechado, que marca o ritmo do refrão – “Boi morto, boi morto, boi
morto” –, e vai se avolumando pouco a pouco nas estrofes até se tornar predominante no
último quinteto:
Boi morto, boi descomedido,
Boi espantosamente, boi
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é boi morto,
Essa predominância gradativa se compõe no contraste com as vogais “e”, predominante
na primeira estrofe, e com a vogal “a” que vigora no segundo quinteto:
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Esse belo (e difícil) poema já tem ele mesmo uma história, problematizada por
Wilson Flores (2011) no sentido de demonstrar que a fortuna crítica que liga, às
vezesmonoliticamente, a poesia de Bandeira a uma poética “menor”, da humildade, da
cotidianidade, da banalidade, não se verifica em “Boi morto”, poema que “surge de
reminiscências, mobiliza pulsões, culpas, recalques, emerge dotrabalho intenso de
forças profundas, pouco afeitas a visadas conciliatórias e características daliteratura
moderna, ao menos, desde Baudelaire” (Flores, 2011: 04.).
“Boi morto” foi publicado pela primeira vez em um suplemento dominical de
1951, e, desde então foi lido diversas vezes pela crítica literária. Sua aparição inicial
provocou intensa polêmica, alimentada pelo seu autor, que, se divertindo com o
dissenso na recepção do poema, comparado à pedra no caminho de Drummond,
declarou que o nascimento do poema se deveu à audição de um disco arranhado em que
o poema “Evocação ao Recife” travava e repetia indefinidamente a expressão “boi
morto”.
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nação dão influxo às águas que produzem o boi morto. A violência lírica que se
amiudava nas formas que compensavam o atraso social se conforma como imagem
descomedida e ameaçadora no “Boi morto”.
O dilaceramento do eu lírico, sua submersão, divisão e subdivisão sintetizam o
dilema do poeta periférico, a quem já é possível produzir uma forma artística refinada
com matéria prima decomposta. O fluxo, portanto, é local e universal e o problema que
ele arma é enorme, descomedido.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
O que nos dizem essas camadas mais profundas, para as quais o poema nos
traga, nos arrasta? Primeiramente, é possível reconhecer nelas, pela dissonância com a
representação artística da beleza natural na tradição lírica, um elemento autorreferente,
ligado ao próprio oficio do poeta no presente:
Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o boi morto
O caráter dilacerado dos versos, em que o eu lírico se confessa submergido,
dividido e subdividido, alcança com potência lírica uma área extensa: “Onde rola,
enorme, o boi morto”. Onde? No mundo do poema, na vida do poeta, na história? A
imagem feroz, definida plasticamente como “boi morto”, é decomposta ao longo do
poema a ponto de chegar a uma indefinição: “sem forma ou sentido/Ou significado”.
Indefinição que deforma esteticamente os limites imediatos do sentido natural da
imagem até que ela se diferencie do original e se torne “boi descomedido, Boi
espantosamente, boi”. Não é possível ao leitor reconhecer o boi como ele era
originalmente: “O que foi/ Ninguém sabe”. Prevalece o espanto do que ele é agora, da
forma em tempo presente: “Agora é boi morto/ Boi morto, boi morto, boi morto”.
O eco desse canto fúnebre ou elegíaco repete, em sonoridade, a extensão do
espaço a que nos remete o poema. Esse espaço extenso, intensificado na forma (imagem
e sonoridade poética) de “Boi morto”, inclui a subjetividade do poeta (a doença, a
morte, o passado revisitado, o presente dilacerado), mas alcança também a dimensão da
subjetividade estética, que articula o mundo natural à dinâmica da vida social. A
conformação artística do “Boi morto” não se dá como alegoria, uma vez que o trabalho
poético deixa turvas as águas, descomedidos os limites da imagem, indefinido o passado
e fixado o presente – “Agora é boi morto”. Não é possível entrincheirar o sentido do
poema na perspectiva da memória, do existencial ou do meramente factual. O enigma,
que se assemelha ao da pedra no meio do caminho de Drummond, impossibilita a
perspectiva alegórica, tragando o leitor para dentro do mundo do poema e intensificando
a experiência de cisão e morte, em suas camadas mais profundas. O caráter cindido do
eu lírico entre alma (“Convosco – altas, tão marginais! – Fica a alma, a atônita alma”) e
corpo (“ esse vai com o boi morto”) é uma contraposição dialética, porque forma um
conjunto único em construção – o mundo do poema –, e se expressa na oposição entre o
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4De acordo com Lukács, na segunda metade do século XIX, o capitalismo entra em uma nova fase, após
as derrotas das revoluções de 1848, em que ficam evidentes os efeitos da decadência ideológica burguesa,
agora em sua fase apologética, isto é, uma classe que permanece como dirigente, mas sem
representatividade efetiva que lhe garanta a capacidade de atender a necessidade do historicamente novo,
da superação das contradições e do avanço no progresso do gênero humano.
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poema permite ao leitor a experiência viva de nossa própria história, submergida nos
versos e condensada na imagem do “Boi morto”, tão descomedido e informe que nele
cabem nossas dores e contradições individuais e coletivas.
É evidente que a ligação íntima do poema com a história não está na superfície
do texto, tampouco se quer afirmar aqui que as contradições históricas vigentes no
momento de sua fatura, e agora reemergidas na vida imediata do Brasil de 2015,
estavam no cálculo da arquitetura poética de Bandeira.Mas como responder ao enigma
que o poema nos apresenta – o boi morto – sem considerar a nossa realidade em relação
ao todo de nossa história, de nossa vida, aquela que “o que foi ninguém sabe”? A
história, como turvas águas de enchente, invade sem pedir licença a subjetividade lírica
e o mundo do poema, e nos faz encarar o “boi morto”.
O poema “Boi morto” é reflexo da história e das lutas de nosso tempo não
porque fale delas abertamente, mas porque refletepara o leitor movimentos e formas em
contradição: disputando o espaço do poema, onde rola, enorme, o boi morto, está tanto a
força das turvas águas da enchente, que em seu movimento cego tudo arrasta e deixa a
alma atônita;quanto a força daquilo que permanece na imagem das árvores da paisagem
calma, que resistem, altas e duradouras, às margens dos destroços do presente. Assim se
reflete no poema a dialética viva da história de cada um e de todos, entre a tumultuosa
aparência e a permanência do essencial: a ação do homem na natureza e na sociedade, à
procura da forma exata para dobrar as determinações naturais e para dar, como o fez
Bandeira,forma poéticaàs grandes contradições e lutas de seu tempo. Diante do poema o
leitor compreende e se pergunta: Agora, ainda, é boi morto, até quando?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Globo.
Arrigucci Jr, Davi. 1990. “Entre destroços do presente”. In: Humildade paixão e morte:
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Bandeira, Manuel. 2009.Poesia completa e prosa. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Lukács, György. 1965b. “Narrar ou descrever”. Tradução Giseh Vianna Konder. In:
Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Lukács, György. 2009. “A característica mais geral do reflexo lírico”. In: Arte e
sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Tradução José Paulo Neto e Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: UFRJ.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1485-1498
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1485
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Discussão da relação de Carlos Drummond de Andrade com poetas franceses,
especialmente Baudelaire e Valéry, ao escrever sua obra situada nos anos 50 do século
XX, em especial os livros Claro enigma e Fazendeiro do ar. Este estudo procura revelar
aspectos da forma literária que compõe reflexão e provocação para reelaborar
contradições e dilemas da cultura e da experiência histórica brasileira.
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las, acaso/ se lembrem demais em nós.6 Neste poema o possível diálogo carinhoso e
quase erótico (meu bem) não chega a ser diálogo, é um jogo de provocações em que o
poeta vai construindo o mundo em nossa frente para o desmontar na frase seguinte,
numa dança feérica de ditos e desditos. De especial pungência é o punhado de poemas
dedicado a Minas Gerais, pátria e província deste mineiro solidamente estabelecido no
Rio de Janeiro. Dentre eles, destaca-se longo e majestoso Os bens e o sangue, onde os
antepassados dirigem-se ao poeta urbano e crítico: Mais que todos deserdamos/ deste
nosso oblíquo modo/ um menino inda não nado/ (e melhor não fora nado)/ que de nada
lhe daremos/ sua parte de nonada/ e que nada, porém nada/ o há de ter desenganado.
O poema prossegue e lá pelas tantas Drummond responde aos terríveis e irônicos
antepassados: Ó monstros lajos e andridos que me perseguis com vossas barganhas/
sobre meu berço imaturo e de minhas minas me expulsais./ Os parentes que eu amo
expiraram solteiros./ Os parentes que eu tenho não circulam em mim./ Meu sangue é
dos que não negociaram, minha alma é dos pretos (...). Renegando seu passado e
afirmando seu vínculo tenso e irremediável com ele, o poeta alcança, aqui e no conjunto
do livro, um patamar de provocação e beleza que altera a cena da literatura brasileira.
Porém, ao que parece, a nova disposição do eu-lírico drummondiano implica
distanciamento da disposição empenhada, a qual teria caracterizado a formação da
Literatura Brasileira segundo a célebre tese de Antonio Candido, e permanecido entre
nós mesmo depois do sistema já constituído. Examinar os resultados formais do nova
disposição permitiria avaliar também a posição específica de Drummond no sistema
literário brasileiro, cujo grau de especialização e organicidade naquela quadra pode ser
melhor caracterizado se nos valermos do conceito de campo literário, nos termos de
Pierre Bourdieu.
Mediante o conceito de campo literário e sistema literário, podem-se revelar
dilemas e impasses da forma literária em Drummond em diálogo e polêmica com os
tensões e rupturas da cultura brasileira. Para escândalo dos nacionalistas mais estritos,
torna-se necessário e possível captar dados estruturais da experiência brasileira na forma
literária justamente quando a poesia se torna mais cosmopolita e exigente, quando
Drummond reelabora e reconfigura a melancolia e a ironia de Baudelaire, a ambição
classicizante e dilacerada de Valéry, a disposição elevada e estoica de Supervielle.
6 Todos os poemas de Carlos Drummond de Andrade provém de Obra poética. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002.
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entretanto, que os poetas escolhidos por Drummond – Valéry, Rilke e Pessoa são
os que mencionamos – são todos heróis da “profissão”, que ou superaram
períodos de silêncio, ou viveram sua vida em função da poesia. Sua fé na
validade e na necessidade de sua arte foi, podemos ter certeza, uma inspiração
para Drummond. (GLEDSON, 2003, p. 168)
Uma inspiração não isenta de resistência, já que Drummond sente-se pouco à
vontade no solipsismo racionalista de Valéry, com o mineiro tratando de desequilibrar a
influência construtiva e harmônica do francês. Se como querem Antonio Candido e
Leda Tenório da Mota, esta autora ainda mais enfática do que aquele, há presença forte
de Baudelaire em Claro Enigma, tratar-se-ia de um livro em que a disposição para a
harmonia classicizante viu-se subvertida pela verve insubordinada modernista,
temperada pelo ennui baudelairiano. Se Gledson não vê Baudelaire aí, nem por isso
deixa de mencionar a culpa que atormenta o poeta, afastado de sua pretérita crença de
elaborar seus poemas no contato solidário com a vida do país. Voltaremos a Baudelaire
enunciado por Antonio Candido em breve, mas cumpre notar que os achados de John
Gledson dão continuidade a comentários e análises de João Guilherme Merquior, Luiz
Costa Lima e Silviano Santiago, que estão longe de esgotar o assunto.
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Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.
(...)
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Daí viria boa parte dos dilemas do poeta altamente qualificado que escreve para
o escasso público de poesia em um país de analfabetos em uma língua desconhecida do
resto do mundo. O Brasil está se preparando para deixar de ser predominantemente
agrário, e este país, em que a literatura fora crucial para discussão e estabelecimento do
destino nacional, vê surgir a poesia suprema de Claro Enigma, no bojo da guinada
classicizante que é coletiva na poesia (veja-se Invenção de Orfeu de Jorge de Lima,
Ouro Preto de Murilo Mendes e o Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meirelles).
No caso da poesia de Drummond, tal guinada classicizante convive com o tédio, a
provocação e a eventual agressão ao leitor, além de agregar a disposição irônica que
busca a parceria alerta - faca só lâmina - a suprema exigência que inclui o hermetismo
injurioso e o ajuste de contas sem nostalgia, entre patético e irônico, com o passado
latifundiário e patriarcal.
Com relação à memória e à história, a seção de poemas Selo de Minas, em Claro
Enigma, registra que o passado mineiro é enfrentado sem condescendência, o que
permite o contraste com os demais poetas. É um momento específico da dinâmica
cultural brasileira que reavalia o passado:
É interessante no caso contrastar a posição heterodoxa de Claro Enigma ao
tipo de posição mais oficialista ou, no limite, patriótica mesmo, assumido
pelo Romanceiro ceciliano. A comparação é nos quase imposta pelo fato de
que nessas duas obras máximas enfrenta-se a questão de Ouro Preto. Na
primeira metade dos anos 50, já como resultado do acúmulo de saberes e
práticas culturais impulsionado pelo Serviço de Patrimônio Histórico, cria-se
a situação, aqui anteriormente mencionada, em que a poesia dispõe-se a
assumir sua responsabilidade histórica. Ouro Preto apresenta-se como tema
ou mote privilegiado.
A cidade, declarada monumento histórico, é simbólica. A Inconfidência é um
referencial heróico. Nos anos 50, Ouro Preto desempenha o papel que depois
do tropicalismo veio a ser desempenhado pela Bahia. Relíquia viva, fonte e
foco da nacionalidade. Assim como o Romanceiro de Cecília e os poemas de
Drummond, há Contemplação de Ouro Preto, de Murilo, há sonetos de
Bandeira e há seu pioneiro Guia daquela cidade, há, enfim, a poesia de
Henriqueta Lisboa. (MORICONI, 2002, p. 91)
Do que resulta uma poesia ambiciosa, que renega o caráter empenhado – sem perder o
gume crítico, muito pelo contrário - que viria desde os autores do séc. XIX e da
formação da literatura brasileira, para que se configurar um salto de qualidade e
exigência. Assim o conceito de campo intelectual, na linha de Bourdieu, ilumina a
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
posição peculiar do poeta, mas necessitaria passar pela noção de sistema literário tal
como enunciado por Antonio Candido para desvendar a cena literária no país de
andamento combinado e desigual em relação ao centro capitalista. Até porque em
Antonio Candido temos, antes de mais nada, um crítico literário que também é
sociólogo e historiador, para quem, portanto, o juízo estético é fundamental para se
avaliarem historicamente as obras. Para Pierre Bourdieu, o interesse propriamente
estético e a avaliação da forma são relativamente secundários, o que tornaria fecundo
um debate entre a perspectiva de um e outro. No mínimo porque para Bourdieu as
noções de mercado, hierarquia e disputa simbólica são muito mais precisas do que
aquelas esboçadas por Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira.
De resto, cabe situar historicamente a culpa detectada pelo citado Antonio Candido em
um ensaio famoso, Inquietudes na poesia de Drummond.
Na obra de Drummond a inquietude com o eu vai desde as formas ligeiras do
humor até à autonegação pelo sentimento de culpa -, que nela é fundamental
como tipo de identificação da personalidade, manifestando-se por meio de
traços duma saliência baudelaireana:
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Remissão
Tua memória, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Se a poesia virou pasto dos vulgares, onde ficou a proposta de apelo ao homem do povo
e ao público em geral? Desqualificando o público, o poeta exprime desamor pelo
próximo e também por si mesmo, mas a poesia de sintaxe maleável, rigor métrico e
argumentação mais ou menos abstrata faz exigência à capacidade do leitor, assim como
demonstra a perícia do poeta. Os procedimentos classicizantes e as metáforas
herméticas bloqueiam a desqualificação, que a rigor já vinha carregada de ironia e
paradoxo. Um impasse configurado na forma literária aqui tensionada na semântica, na
fonética, na sintaxe, etc. Uma solução estética muito refinada que estaria reverberando
culpa de classe, consciência artística e crise do tardio empenho formativo. Assim é
possível esboçar uma redefinição do diagnóstico apresentado por Vagner Camilo, para
quem o poeta, acossado pela melancolia das ilusões perdidas do engajamento, teria
reagido através de certo formalismo e hermetismo poéticos ao barateamento panfletário
do realismo socialista, mas também teria escapado da convenção estreita da geração de
45 mediante a tematização reiterada do risco alienante da torre de marfim.
Se a culpa está aqui presente, como nota Antonio Candido, cabe estudá-la em
sua dinâmica de morbidez e de autonegação sem confundir tal dinâmica com um
abstrato pessimismo. O Drummond ressabiado e cultor de Valéry dos anos 50 faria uma
síntese poderosa com os procedimentos de Baudelaire, também ele mórbido, irônico e
complexo a ponto de poder ser reivindicado pelo marxismo visionário de Walter
Benjamin, pelo esteticismo espiritualista de Jean Pommier ou ainda pela rebeldia
existencialista de Sartre. Como se vê, uma discussão de razoável complexidade e que
está demandando o exame da obra de Baudelaire e de pelo menos parte de sua vasta
fortuna crítica a fim de que se melhor avalie o impacto sobre a poesia de Drummond.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARAÚJO, Homero Vizeu. Futuro pifado na Literatura Brasileira. 2014. Porto Alegre:
Editora da UFRGS.
CAMILO, Vagner. Drummond – Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas. 2001. São Paulo:
Ateliê Editorial.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
____. Vários escritos. 1995. 3.ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas cidades.
GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. 1981. São Paulo:
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MORICONI, Italo. Como e porque ler a poesia brasileira do século XX. 2002. São
Paulo: Objetiva.
MOTA, Leda Tenório da. Sobre a crítica literária brasileira no último meio século.
2002. São Paulo: Imago.
SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. 1992. Rio de Janeiro: Paz e
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VALÉRY, Paul. Variedades. 1991. Org. João Alexandre Barbosa. São Paulo:
Iluminuras.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1499-1512
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1499
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Descrevemos aqui, de forma sucinta, o itinerário poético de José Terra. Fundador das
revistas Árvore e Centopeia, José Terra representa uma das vozes mais significativas da
poesia portuguesa do início da segunda metade do século XX. A sua obra que se insere
por completo nas grandes linhas de orientação e preocupações estéticas que marcaram a
poesia portuguesa e europeia de então, revela ao mesmo tempo um constante
antagonismo entre a expressão lírica do eue a permanente reflexão sobre a necessidade
dessa mesma expressão.
Sobre José Terra pode dizer-se que o essencial da sua poesia se encontra nos
quatro livros que em Lisboa se publicaram entre 1949 e 1959. Apesar de a sua atividade
poética ter sido permanente ao longo da vida (como se verifica pelos poemas publicados
em algumas revistas nacionais e pelos inéditos que, juntamente com a obra já
conhecida, recentemente foram editados na cidade do Porto8), foi durante esse período
de dez anos que o poeta se revelou e atingiu a plenitude da sua criatividade. É sobre o
seu itinerário poético, que, de forma sucinta, aqui falaremos. Itinerário que nos permite
verificar o ponto de partida e a evolução da sua poesia, constatando ao mesmo tempo
que o seu percurso se enquadra por completo nos pressupostos teóricos e estruturais que
uma grande parte da poesia portuguesa e europeia da segunda metade do século XX
teve como linhas de orientação. Nesta perspetiva, destaca-se a importância da revista de
poesia Árvore que no início da década de 50 do século passado muito contribuiu para a
evolução da poesia portuguesa, constituindo uma ponte entre as várias sensibilidades e
tendências poéticas nacionais, e na divulgação das mais inovadoras sensibilidades
7UDI-IPG, Unidade Técnico Científica de Línguas e Culturas. Av. Dr. Francisco Sá Carneiro, 50, 6300-
599 Guarda, Portugal. carmino@ipg.pt
8Obra Poética, Porto, Modo de Ler, 2014.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
internacionais, especialmente a francesa. Por ter sido um dos fundadores, e um dos seus
principais impulsionadores, o nome de José Terra é indissociável da revista Árvore.
9José Manuel Esteves, no seu prefácio à Obra Poética de José Terra, pp.13,14, cita, como exemplo
demonstrativo da possível influência destas Elegias de Duíno sobre José Terra, as páginas 645-652, da
dissertação de doutoramento de Maria Antónia Henriques J. F. Horster, Para a História de uma Recepção
Rainer Maria Rilke em Portugal (1920-1960). Lisboa, F. C. Gulbenkian, 2001.
10Árvore, folhas de poesia,1ºfascículo, outono de 1951, pp.13,14.
1500
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
para os editores da revista, “a mais perfeita expressão do homem, a sua mais alta
operação espiritual”, ideia expressa pelo poeta e crítico francês Jean Cassou, que junto
com René Char, Paul Éluard e Henri Michaud, Vicente Aleixandre, Garcia Lorca,
Antonio Machado, Rafael Alberti, e outros, constitui uma referência para os editores da
revista. A poesia deveria ser a expressão da autenticidade do poeta mas também a
manifestação pela arte da sua confiança nos destinos do homem, crença que será, como
veremos, o ponto de partida da poesia de José Terra, para depois evoluir e se
transformar na expressão de um antagonismo entre o pessoal e o social, o ser e o dever,
acabando por se tornar a expressãodo seu desencanto para com o mundo mas também
um refúgio e único remédio para irremediável condição humana.
Conforme assinalamos, o essencial da poesia de José Terra foi publicado num curto
período de tempo. Com vinte e um anos o poeta publica, em edição de autor, Canto da
Ave Prisioneira, e dez anos depois Espelho do Invisível, entre estas datas publica Para o
Poema da Criação, em 1953, e Canto Submerso, em 1956. Nestes dez anos verifica-se
na obra do poeta a passagem de uma entusiasta declaração de solidariedade humana, e
apelo à liberdade, a uma introspetiva e dilacerante interrogação e, finalmente, um
questionamento sobre a essência da matéria poética e sua necessidade numa época que
parecia ter esquecido que o “sentido da verdadeira poesia é a prodigiosa ascensão do
homem”, conforme se podia ler nas páginas iniciais do 1º fascículo da revista Árvore.
Se descrever é uma forma de clarificar também é, quase sempre, uma forma de
limitar, portanto, é plenamente conscientes dos limites de toda e qualquer interpretação
que nos propomos seguir aqui o itinerário poético de José Terra, a partir daquilo que
efetivamente o poeta diz e não sobre o que sepode pressupor que ele tenha dito.
Deixamos, assim,o comentário sobre o comentário para outros comentários e
seguiremos, numa perspetiva diacrónica, o percurso da sua evolução poética que
julgamos poder resumir nas palavras autenticidade, necessidade, desencanto,
distinguindo, deste modo, três fases do seu itinerário.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
2.1.Autenticidade e Necessidade
O conjunto de poemas que constitui o Canto da Ave Prisioneira tem como tema
principal, numa perspetiva herdada do romantismo tardio, a autodefinição do poeta e
qual a sua finalidade num mundo, sombrio, impiedoso, privado de liberdade. Assim, o
poeta deve abandonar a sua torre de marfim e abrir os olhos para o presente, tornando-se
a voz dos homens esmagados pelas circunstâncias históricas, políticas e sociais. “O
benjamim dos poetas portugueses”, conforme o autor se apresenta logo no primeiro
poema, interpela, no soneto intitulado «Canto para o Próprio Poeta», os outros poetas
para lhes indicar o caminho a seguir:
Poeta!, meu amigo, desce à rua,
Cheira a bafio a torre de marfim,
Vem transformar num lírico jardim
Ao sol da poesia a terra nua!
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
dor hei-de morrer” («Dois poemas de Angústia e de Esperança»), sabe também que a
ternura, o amor, e a alegria, são um sono, um engano, ao qual não deve ceder para poder
assim cumprir a sua missão:
Tenho medo de ti, ó meu irmão,
Dessas palavras mansas tenho medo.
1503
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Buscava-te na aragem.
Entre o lume do sonho tacteava-te no escuro.
Desenhava o teu nome na fonte das montanhas,
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
1505
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
2.2. Desencanto
Três anos depois da elegia à natureza que constitui Para o Poema da Criação,
desse diluir do ser na sua poesia, surgem, em Canto Submerso, as primeiras notas de um
desencanto perante o mundo, os homens e a própria poesia. Numa forma clássica
bastante apreciada pelo poeta, o soneto, o quotidiano do poeta aparece agora sufocante:
Em Lisboa acorda-se com o crânio apertado
entre duas mãos ou entre duas sombras.
Abrem-se as janelas e entra o nevoeiro
que nos sufoca e reduz ao ângulo da casa. («Soneto para o estrangeiro»)
Sufocante e desesperante, é um quotidiano sem outra expectativa que a
consciência desse sufoco:
O céu não existe. Estamos nós. E se falam
de céu, fundo do mar, abismo, noite opaca,
é de nós que falam. Contudo, nós fingimos
que não. E inventamos céu e superfície.
Estamos sob a pedra. É um facto. A única saída
Existe em nós, Nós sabemos isso. E mais: que não podemos nada.
Consciência que leva o poeta a rejeitar o que antes desejava. A noite deixou de
ser recebida de braços abertos, “como se recebe a amante”, numa espécie de êxtase,
para ser agora sentida como causadora de angústia e dor, num registo e tonalidade que
nos remetem indiretamente para Álvaro de Campos:
noite desamparada noite irmã dos suplícios
noite da redução ao absurdo noite dos jardins suspensos noite subterrânea
noite aérea […]noite perpendicular à morte
(eu a estrangulo em minhas mãos e lhe arranco os olhos
enterro-a no canavial ponho-lhe o coração por cima)
[…] noite intrínseca e múltipla onde procuro incessantemente a minha
definição. («Noite a Ocidente»)
Os momentos anteriores, sentidos e vividos poeticamente a cada instante, estão
agora carregados de amargura, expressos numa tonalidade suscetível de descrever o seu
estado de espírito:
Escreve-se um poema com uma rosa de tempo
que esfolhamos para ver quem menos nos odeia
[…] Esquecer, por exemplo, a torneira do gás
é um belo truque para escrever um poema”. («Escreve-se um poema com
uma rosa de tempo»)
1506
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Inconformado, o poeta reconhece então que o seu percurso é pessoal eadmite ter
sido vão o caminho que escolheu percorrer, daí, talvez, o seu momentâneo despeito para
com os seus contemporâneos, os mesmos a quem exortava alguns anos antes:
1507
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Os outros passam,
dizem adeus.
Olho-os de frente.
E o riso breve
na minha boca
é esse seco
protesto ao fácil
caminho deles. («Construo o barco»)
Não surpreende, portanto, que nos trinta e cinco sonetos que constituem o último
livro de José Terra, O Espelhodo Invisível, se torne dominante uma tendência já
expressa em alguns poemas anteriores, sobretudo em Canto Submerso, e isto porque
“farto de lidar com homens, deuses, o eterno e o efémero” («Mas de onde vem este
fluído frio») o poeta prefere agora refletir, quase exclusivamente, na essência da sua
poesia, embrenhar-se nos mistérios da língua, mas sem ingenuidade e generoso
deslumbramento:
As palavras reduzem-se ao esqueleto
E o esqueleto o tempo o espolia
[...] que ingénuo era quando sorrias, quando
a leve brisa te servia de alma
e um verso era cada teu gesto puro.(«As palavras reduzem-se ao esqueleto»)
A poesia torna-se assim autorreflexiva, procura, ao desvendar-se, compreender a
sua essência e o seu mistério:
perscrutando
Estou o reino aonde o olhar não chega,
Aonde as mãos mergulham mas não vêem. («Sereno resplendor por onde
descem»)
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
meramente económicos, sair da sua suposta torre de marfim sem correr o risco de se
silenciar? A resposta, pelo que acabamos de ver na poesia de José Terra, parece tão
evidente que qualquer palavra mais seria supérflua. No entanto, e apesar da adversidade
das circunstâncias, a necessidade da poesia mantém-se inerente à condição humana.
Resta-nos, por isso, continuar a acreditar nas palavras de outro dos fundadores da
revista Árvore, o poeta António Ramos Rosa, para quem: “A primeira coisa por que
devemos lutar é pela confiança nos destinos da poesia que nós confundimos com o
próprio destino do homem”11.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Carreira, Maria Helena Araújo (Org.).2003. Árvore et la poésie portugaise des années
cinquante (1951-1953), Actes du colloque international. Paris: Éditions Lusophone.
Reynaud, Maria João. 2005. “Árvore um olhar transversal”, in, Estudos em
homenagem ao Prof. Doutor Mário Vilela. Porto: Univ. do Porto. Faculdade de Letras,
pp.679-683. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4597.pdf>,
consultado em 19.09.2015.
11Árvore, fascículo nº 1.
1511
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Capa do primeiro livro de José Terra publicado Capa do segundo livro de José Terra publicado em
em Lisboa, em 1949 Lisboa, em 1953
Capa do terceiro livro de José Terra publicado em Capa do quarto livro de José Terra publicado
Lisboa, em 1956 em Lisboa, em 1959
1512
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1513-1528
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1513
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O presente estudo pretende investigar no poema “Não-coisa”, de Ferreira Gullar, a
natureza da relação estética entre a linguagem poética e os dilemas do mundo
representado. Procura-se como essa relação se estrutura no texto, como os problemas do
mundo objetivo se relacionam com os problemas subjetivos, quais são os expedientes
formais de um poema autorreferente que supera o texto metalinguístico. Opera-se uma
observação dos elementos do processo comunicativo, das vozes da enunciação e da
recepção, e a natureza formal dessas vozes. A história dos sentidos humanos de fruição
estética é plasmada numa representação simultaneamente crítica e criativa, capaz de
revelar na natureza humana o duplo processo de conhecimento: consciência e
autoconsciência. Ferreira Gullar discute ainda a poesia como trabalho, como atividade
necessariamente humana. Mas o mundo representado no poema “Não-coisa” é o mundo
da representação literária, e também o da impossibilidade da representação. Contudo, se
já é impossível dizer, o poema teima em dizer.
1. Introdução
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2. O todo do poema
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes
só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,
um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos
No entanto, o poeta
desafia o impossível
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
e tenta no poema
dizer o indizível:
subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
De que se compõem, portanto, as partes que irão constituir o poema, que irão
compor os elementos dessa unidade contraditória? À primeira vista, parece-nos evidente
a divisão do poema em duas grandes partes, ou momentos. (Opto aqui por adotar o
termo momento, pois creio que são partes que se sucedem não de modo mecânico e
metafísico, mas se complementam e se superam dialeticamente e historicamente.) Os
dois momentos do poema se apresentam nitidamente, o primeiro se encerrando na 7ª
estrofe, e o segundo entrando em cena na 8ª estrofe, na qual o problema anunciado na
primeira estrofe é retomado em outro nível, mais elevado, quantitativa e
qualitativamente.
Nota-se, já numa primeira leitura do poema, o esforço da voz da enunciação em
expressar o problema do escritor (isto é, do intelectual brasileiro), o esforço quase
retórico em apresentar a dificuldade do poeta em revelar o mundo objetivo no poema, a
objetividade do mundo contraditório e impenetrável, indecifrável, irreconhecível. Esse
esforço se apresenta inicialmente como inútil, como tentativa vã, e deixa transparecer o
sentimento de quem executa um ofício em desuso, superado pelo tempo e pelo mundo
das necessidades práticas, imediatas13. Ao sentimento derivado desse anacronismo e
impotência da arte, poderíamos chamar, talvez, de angústia ou dilaceramento. O que nos
leva a tal hipótese? Ela se oferece como chave de leitura inicial, quando lemos versos
iniciais:
O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.
É verdade que a primeira coisa que nos chama a atenção aqui é que se trata de
um poema autorreferente, pois o ofício a que se refere o poema que lemos (e cuja
dificuldade e necessidade o poema analisa) é exercido também por quem constrói este
mesmo poema. Mas, logo que identificamos e aceitamos esse fato, reconhecemos o
problema que o poeta nos anuncia: a impossibilidade de dizer. Por outro lado,
13 Kafka, no conto “Um artista da fome”, apresenta, alegoricamente, o ofício do escritor (do artista, da
arte) como algo ameaçado e aniquilado pelo mundo moderno, isto é, pela hostilidade da forma capitalista.
Um jejuador (o artista da fome), admirado e exaltado pela sua capacidade de jejuar, permanece trancado
em uma jaula por muitos dias. O público reveza-se, dia e noite, infatigavelmente, na vigília frente à jaula
do jejuador, fazendo valer as regras daquele ofício. Mas, com o passar dos anos, os circos, vindos de
longe, se apresentam com novidades, entre as quais, animais exóticos e feras que vivem em jaulas; a jaula
do jejuador, agora uma entre tantas outras, é ignorada pelo público; ninguém mais se interessa pela antiga
profissão e, esquecido pelos funcionários do circo, o jejuador morre de fome: seu o corpo acaba por
confundir-se com a palha seca da jaula.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
observando com cuidado esta mesma estrofe, virando-a pelo avesso, nota-se,
imediatamente, que há, declarada, uma insistência, uma teimosia do poeta, em querer
dizer, em procurar formular, conceitualmente, alguma coisa não compreendida, em
enunciar um problema, mesmo que esse problema seja a incapacidade da linguagem
discursiva. Essa teimosia (ou ousadia, como dito na nona estrofe) apresenta, como
alternativa à impossibilidade do discurso, uma possibilidade. Possibilidade de revelar
algo que ainda não se sabe, ou seja, que nem o emissor nem o referente e nem o receptor
sabem, procuraram formular e tornar inteligível. Ou seja, afirma-se que o poeta tem algo
a dizer (mas que não cabe no discurso); mas também tem algo a aprender. Logo, se quer
dizer algo (“O que o poeta quer dizer”), isso não pode ser mais dito (“no discurso não
cabe”); mas, apesar da impotência, ele aposta na hipótese de dizer (“e se o diz...”), pois,
dizendo, quer aprender, quer conhecer: “...é pra saber o que ainda não sabe”
A voz da enunciação, nas estrofes 2 e 3, se propõe a demonstrar, a partir de
exemplos da vida cotidiana, a natureza contraditória e dinâmica do impasse apresentado
inicialmente, entre a coisa e o entendimento da coisa. Da estrofe 4 à estrofe 7, o poema
descreve o método de apropriação pelo homem das propriedades do mundo natural, o
processo de assimilação pela consciência, pelo discurso racional-intelectivo, das
características físicas e químicas do mundo orgânico-material. Processo que, como
sabemos, explica o desenvolvimento dos cinco sentidos estéticos do ser social. Mas
trataremos disso, de modo mais detalhado, só no tópico seguinte, no qual nos
dedicaremos à investigação das partes do poema.
A voz do poeta, espécie de eu lírico que – mesmo não falando em primeira
pessoa – reflete aqui sobre o seu próprio ofício, reaparece na oitava estrofe, com a qual
se inicia o segundo momento do poema:
No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
inicial; nesta, a coisa não cabe no discurso, pois a coisa desconhecida (“o que ainda não
sabe”). Entretanto, o advérbio “ainda” sugere que o conhecimento é possível no futuro,
ao menos no campo do desejo. A subsequente incursão no processo da aquisição dos
conceitos, da linguagem discursiva, que deriva do contato empírico do homem com a
coisa, atribui uma relativa – pequena – certeza ao poeta (emissor, referente e, no limite,
receptor) de que o conhecimento do mundo objetivo pode ser possível; por isso ele
“desafia o impossível/e tenta no poema/dizer o indizível”. Se a coisa é indizível,
(“fechada à humana consciência”, linhas 40/41), o poeta, no poema, teima em dizer o
impossível.
Nas estrofes seguintes (o segundo momento do poema) o poema opera uma
segunda incursão, agora no mundo da natureza poética, das suas necessidades estéticas.
Poderíamos, aqui, nos fazer as seguintes perguntas: como a proposição (teimosa,
insana) de “dizer o indizível” pode ser aceita? O que ainda faz do poema uma
possibilidade? Como o trabalho poético pode ser justificado? Qual é – em que reside – a
possibilidade de êxito dessa tentativa ousada?
“Dizer o indizível” encerra uma contradição aparentemente insolúvel, mas, se
(como se verifica no primeiro momento do poema) alguma coisa nova saiu da unidade
contraditória “não-coisa”, é porque há algo de novo e necessário que se opõe à completa
coisificação, logo, sugere-se que há uma possibilidade para o ressurgimento do par
antitético da coisa, ou seja, a não-coisa; retoma-se, portanto, a quase apagada
perspectiva do sujeito, da coisa humanizada, do mundo humano.
O texto poético que analisamos apresenta, já no fechamento deste segundo
momento, o próprio poema como coisa, como parte e produto do mundo humano
reificado. No entanto, a estrofe final contradiz a fatalidade de uma reificação completa.
Nesse sentido, embora o poema seja “uma coisa que não tem nada dentro”, linhas
47/48), ele é logo “rendido” por uma ressalva, a de uma recôndita possibilidade: “a não
ser o ressoar de uma imprecisa voz/que não quer se apagar – essa voz somos nós.”
(Linhas 49 a 52). Mas, a maneira como essa possibilidade é intuída permite ainda outras
variáveis para a nossa interpretação, que precisamos fundamentar melhor. É o que
faremos em seguida.
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3. As partes do poema
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só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas
invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,
um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
processo de aquisição, de apropriação. Aquilo que estava fora do mundo humano foi
agora apropriado por ele, torna-se, inclusive linguagem, recebe um nome. Quando um
cientista da natureza descobre, por exemplo, uma nova espécie animal ou vegetal, ele
precisa pesquisar suas características, seus hábitos, suas propriedades físicas e químicas
etc. Desse modo, este novo ser deixa de ser pura coisa, coisa-em-si, para constituir-se
em coisa-para-nós.
Esse “tomar conhecimento” e “conferir nomenclatura” pressupõe que as
propriedades naturais devam ser conhecidas, experimentadas, apreendidas
empiricamente. É essa a natureza do processo do trabalho no entendimento de Marx
(2004). O trabalho cria sempre a partir da natureza, de onde vem toda a riqueza humana.
Nada pode ser criado “sem o mundo exterior sensível (sinnlich)”. O trabalhador “se
apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho” (Marx,
2004: 81). Esse é o fundamento filosófico do qual parte o poema na 4ª estrofe.
As três estrofes seguintes são o desenvolvimento deste princípio, representado
por um exemplo específico, o exemplo de um dos cinco sentidos humanos, antes
assinalados simbolicamente. Há uma forma humana da apropriação do mundo exterior
(a coisa) que o poema irá apresentar e desenvolver. Para tornar viva a experiência
expressa no exemplo, o poema cria aqui uma outra pessoa, uma segunda pessoa, um
“tu” que “escuta” o eu-lírico: “mas o gosto da fruta/ só o sabes se a comes.” Mas
trataremos da importância desse interlocutor mais adiante. Por enquanto precisamos
analisar como o poema descreve o processo de apropriação da coisa pelo homem.
Aqui, a coisa é representada simbolicamente, pelo objeto “fruta”, apropriada por
outro objeto, já humanizado, o corpo humano, dotado de sentidos humanos, estéticos. O
paladar é capaz de fruir (desfrutar) “o gosto da fruta”. Mas esse sentido não está dado a
priori, nem é meramente conceitual e abstrato, ele é formado, apreendido, apreensão
operada materialmente, no corpo, através do ato de “comer”. Logo, “saber” e “comer”
são facetas de um único processo ontológico: do saber e do fazer, isto é, do saber fazer,
da práxis. Trata-se aqui, portanto, simbolicamente, do processo da aprendizagem, da
formação dos cinco sentidos, formação ontogênica e histórica (ontológica).
É “no corpo”, então, que se dá a atividade da apropriação conceitual da coisa. A
aprendizagem é assimilação, é apropriação sensível: “só o sabes no corpo/ o sabor que
assimilas”. No corpo, mais especificamente pela boca, na qual o sabor da fruta é
experimentado (“festa de saliva e papilas”). A experiência empírica é apresentada como
vivência decisiva, determinante, a ponto de fazer submergir a fala, de suspender
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dado e definitivo, mas como uma realidade em sua processualidade, como realidade
passível de superação.
A linguagem poética proposta pelo poema “Não-coisa” exige que nela a coisa
esteja contida, dando a ela densidade e complexidade; mas esse mundo factual não deve
ser apresentado de maneira ininteligível, opaca, pois a coisa “é fechada/ à humana
consciência”. O poema precisa revelar as leis universais da vida social representada, as
suas determinações materiais, seus limites concretos, suas possibilidades de superação.
Logo, não basta fazer referência aos dados factuais, é preciso dar lhes transparência: “O
que o poeta faz/mais do que mencioná-la [a coisa]/é torná-la aparência pura – e iluminá-
la”. O mundo ficcional criado é “aparência pura”, uma segunda aparência, similar ao
mundo real (verossímil), mas é também outro, puro, iluminado, em que as contradições
do nosso mundo se elucidem em sua historicidade.
Todos os objetos e forças sociais criados pelo homem se voltam contra ele,
exercendo suas potências obscuras, ocultas. O ocultismo interessa apenas à ordem
opressora; aos oprimidos interessa que o poema lance luz sobre os nexos sociais reais,
obscurecidos pelo fetichismo da mercadoria, pela reificação das relações sociais. “Toda
coisa tem peso:/ uma noite em seu centro./O poema é uma coisa/ que não tem nada
dentro”. O poema também é coisa, é objeto criado pelo homem objeto aparentemente
inútil, vazio. Não atende a nenhuma necessidade material imediata. Mas, como já
havíamos esboçado acima, apesar de se tratar de um negativismo real, não ficcional, ele
é “rendido” por uma vaga ressalva, por uma recôndita possibilidade: aparentemente o
poema é uma coisa “que não tem nada dentro”, “a não ser o ressoar de uma imprecisa
voz/que não quer se apagar – essa voz somos nós”.
Para finalizar as nossas observações sobre o segundo momento do poema, o fato
que aqui ainda nos chama a atenção é essa nova modalização do discurso, quando o
traço fundamental de uma fatal reificação é relativizado pela presença de uma “terceira”
voz, que ressoa de modo impreciso, talvez confuso e rouco, mas que “não quer se
apagar”, que reluta e, cismado com o discurso da ordem naturalizada, simplesmente
destoa. Essa terceira voz, que aqui aparece, não é outra voz qualquer, de uma terceira
personagem. Não, lembremos: ouve-se “o ressoar de uma imprecisa voz/que não quer se
apagar/ - essa voz somos nós” A voz que se ouve não é de outrem, mas a “nossa”, ou,
melhor, é voz coletiva, é a voz de um coletivo. Ou, para ser fiel ao texto: “essa voz
somos nós”. A voz não pertence a alguém, ela é alguém. Mas a voz da enunciação, até o
momento falando em terceira pessoa, aqui se manifesta em primeira pessoa. E mais: na
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apropriação do mundo social. O mundo dos homens, objetivo, real, pesado, obscuro,
precisa ser conhecido, precisa da luz que a poesia pode lançar.
O que o poeta diz no poema sobre o ofício de um poeta é compartilhado com
uma segunda pessoa. Esta é tragada pela experiência e pelo desafio proposto, pois, tal
qual o poeta, é arrastado para um desafio vital, como o desafio lançado pela esfinge de
Tebas: “decifra-me, ou te devoro”. Só que, como vimos, as duas vozes conhecidas se
reúnem no final, em uma única voz. E se mesmo assim não são uma só voz, ou vozes
que podem ser, passivamente, ouvidas, é porque, pela inflexão da sintaxe, as vozes que
ouvimos somos nós mesmos. Não há, portanto, no poema, separação entre aquilo que é
dito ou que dizemos (voz) e aquilo que somos, pois: “essa voz somos nós”.
Nesse sentido, a voz e o dono da voz são inseparáveis. Então, entre a voz do
leitor e a voz do poeta, coloca-se, como sugestão, a comunhão. Em “uma luz do chão”,
Gullar afirma: “O ato de ler, assim, funda a verdade da literatura. Porque de fato, a
página é rasa e a palavra não é mais que um rabisco impresso nela. Só a carência de
outro homem pode oferecer um corpo onde de novo se faça vida o que o poeta falou.”
(Gullar, 1978:42).
A poesia de Ferreira Gullar quer descobrir na obra (como uma espécie de
“sismógrafo”) os ecos das relações sociais que nos cercam desde então, e que nos
apontam a “natureza social” do mundo atual, suas carências, seus limites, suas
necessidades e possibilidades futuras.
A busca da apropriação do conhecimento literário se torna uma questão política,
porque a literatura é já em si um processo social e político, é o grito que não quer se
calar, é a teimosia da comunicação num mundo sem comunicação. O poeta tem algo a
dizer, e existe no outro extremo do poema – e da comunicação – um outro que também
tem o que dizer, que, nesse anseio, se confunde com o poeta. Vozes, muitas vozes, que
encontram eco na voz do poeta, ou a voz do poeta que quer colher o “ressoar”de uma
voz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Gullar, Ferreira. 1978. Uma luz do Chão. Rio de Janeiro: Avenir.
Gullar, Ferreira. 2004. Toda poesia (1950-1999). Rio de Janeiro: Ed. José Olímpio.
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Aristóteles. 1987. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto: Casa da Moeda.
Bastos, Hermenegildo. 2012. As artes da ameaça: ensaios sobre literatura e crise. São
Paulo: Outras expressões.
Candido, Antonio. 2002. Textos de Intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34.
Frederico, Celso. 1997. Lukács um Clássico do século XX. São Paulo: Moderna.
Gullar, Ferreira. 2010. Poema Sujo. Rio de Janeiro: Ed. José Olímpio.
Lafetá, João Luiz. 2004.A dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades/Ed.34.
Lukács, György. 2010. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular.
Turchi, Maria Zaira. 1985. Ferreira Gullar:A busca da poesia. Rio de Janeiro:
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1528
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1529-1544
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1529
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Nesse estudo, propõe-se a ouvir a voz feminina pela enunciação lírica das poetas
brasileiras Dora Ferreira da Silva e Hilda Hilst em consonância com a poeta portuguesa
Ana Luísa Amaral, quando as três abordam em sua poesia o mito do labirinto e seus
mitemas, evocando a visão do sujeito feminino sobre esse mito, especialmente
enfocando a figura de Ariane, cuja voz parece ser a voz de todas as mulheres que são
sempre coadjuvantes na história em que o homem ocupa o papel principal. Com a
abordagem a esse tema da tradição clássica, as poetas releem a narrativa mitológica
dando aos personagens a importância que lhes convêm para um ajuste do papel social
feminino em nossos tempos. Tal sujeito poético se revela e se esconde em situações
marcadas pela tensão que se estabelece por meio das imagens que falam por si mesmas,
as quais serão analisadas ao longo do estudo. Para o corpus, selecionou-se uma parte do
livro Júbilo, Memória e Noviciado da paixão, de Hilda Hilst, parte do livro Poemas da
estrangeira, de Dora Ferreira da Silva, e alguns poemas do livro Imagens, de Ana Luísa
Amaral. O estudo será realizado por meio de pesquisa bibliográfica em autores que
abordam a importância do imaginário na fertilização da poesia em todos os tempos, na
relevância da subjetividade na poesia contemporânea e na questão da voz lírica feminina
frente aos desafios dos tempos atuais. Para tal, autores como Gilbert Durand,
Dominique Combe, Alfonso Berardinelli, Michel Hamburger, entre outros, darão
suporte teórico ao estudo. Espera-se que a pesquisa contribua com a fortuna crítica da
poesia lírica do final do século XX e início do atual e, sobretudo, com o diálogo entre as
produções poéticas de Portugal e do Brasil.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
O aprendizado é inútil:
teces a partir da origem
neblinas duros perfis de pedra
[ e a imagem que não ensina
de si mesma aprendiz
Dora Ferreira da Silva
Convocada pela imaginação a se expressar por meio das imagens, a poesia busca juntar
o fora e o dentro da realidade das coisas num todo forjado no excesso de significado que
o jogo entre as palavras pode produzir. As imagens são produtos de uma experiência
interior que busca conhecer o âmago das coisas por suas qualidades e semelhanças,
reproduzindo as sensações que essas qualidades provocam. Todavia, não se conhece
uma qualidade por meio de descrições ou argumentos, frutos da capacidade racional do
humano. As qualidades de um ser se revelam pelas sensações que produzem e pelas
similaridades entre o abstrato e o concreto. Sendo assim, conhecer por imagens é fazer
sentir, é tornar a coisa uma presença pela força da imaginação e desta uma experiência
muda ao ato da palavra, valendo-se da concretude da imagem que esta pode criar. Só
conhecemos bem as qualidades das coisas com as quais temos um contato amoroso e,
por isso, se tornam presença sensível em nossa existência. Dessa forma, a qualidade
imaginada nos revela a nós mesmos, pois acrescentamos a elas um valor subjetivo e
uma linguagem própria. O canto poético se elabora pelas imagens e por elas evidencia
as qualidades dos seres, provocando-nos sensações como se fossem as mesmas sentidas
pelo sujeito lírico porque essa voz tem raízes nas origens de cada um.
Na poesia em que ecoa a voz feminina, essas imagens se inserem num universo
poético e político-ideológico próprio da situação da mulher, pois essa voz suprimida por
uma tradição patriarcal se eleva também como manifestação de uma energia represada,
de uma necessidade premente de se fazer ouvida para afirmação de um sujeito que quer
mostrar sua capacidade de organizar sua experiência e se identificar. Nesse artigo,
propõe-se a ouvir essa voz feminina pela enunciação lírica das poetas brasileiras Dora
Ferreira da Silva e Hilda Hilst em consonância com a poeta portuguesa Ana Luísa
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Amaral, quando as três abordam em sua poesia o mito do labirinto e seus mitemas,
evocando a visão do sujeito feminino sobre esse mito, especialmente enfocando a figura
de Ariane, cuja voz parece ser a voz de todas as mulheres que são sempre coadjuvantes
na história em que o homem ocupa o papel principal.
Com a abordagem a esse tema da tradição clássica, as poetas relêem a narrativa
mitológica dando aos personagens a importância que lhes convém para um ajuste ao
papel social feminino em nossos tempos. Tal sujeito poético se revela e se esconde em
situações marcadas pela tensão que se estabelece por meio das imagens que falam por si
mesmas, as quais serão analisadas ao longo do estudo. Para o corpus, selecionou-se
uma parte do livroJúbilo, Memória e Noviciado da paixão, de Hilda Hilst, parte do
livro Poemas da estrangeira, de Dora Ferreira da Silva, e alguns poemas do livro
Imagens, de Ana Luísa Amaral.
A opção por estudar as três autoras se deve principalmente ao intento de pôr
em evidência um traço representativo da lírica contemporânea pela consonância dessas
vozes ao entoar o canto lírico num tom inconfundivelmente feminino, utilizando o mito
do labirinto de forma a desvelar algo essencial da natureza feminina de das identidades
que se formam nessa constante busca do Outro. As três têm em comum a mesma língua,
são coevas, partilham, portanto, o mesmo momento histórico e vêm de uma tradição
ibérica com a mesma influência da cultura ocidental herdada dos gregos.
Sendo assim, as três poetas pousam um olhar crítico-ideológico sobre o mito
do labirinto e seus mitemas, que reflete uma visão de mundo semelhante, revisando o
cânone literário e os arquétipos mitológicos ao confrontar pontos de vista da tradição
literária num sentido revisionista. Ariane é elevada ao estatuto de protagonista da
narrativa mitológica pelas escritoras e investida de um poder de agenciamento que
esteve soterrado pela tradição patriarcalista por longos anos. Pela revisitação dos
arquétipos culturais helenistas, as poetas apropriam-se do cânone clássico e fazem uma
releitura da tradição, subvertendo o discurso dominante ao dar voz à personagem
feminina, cujos sentimentos não foram ainda expressos como experiência lírica em sua
própria voz.
Os mitos são considerados vertentes culturais de onde emanam variadas fontes
de conhecimento. Reutilizar essas fontes com outra leitura, adaptando a situações
históricas peculiares e determinadas visões de mundo poderá revelar meandros e
emaranhados de fios de nossos próprios labirintos, pois através do mito é dado ao ser
humano a oportunidade de se situar, além de redescobrir ou reavaliar seus caminhos. A
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
recuperação dessa cultura grega se faz geralmente para repensar modelos de identidades
formadas sob o júdice de normas morais impostas pela classe dominante de
determinado momento histórico. A utilização do labirinto e suas variantes pelas poetas
deixa entrever um caráter de denúncia, virando-se do avesso a tradição, num diálogo
em que a subversão de valores mostra a mesma perspectiva em relação a uma ideologia
em comum. A figura feminina nas três autoras detém o conhecimento dos meandros
labirínticos e assume o discurso para falar de si, de seus desejos, de sua posição social e
da iniciativa de procurar seu próprio caminho para encontrar a felicidade. Trata-se de
uma mulher que sabe dos obstáculos que encontrará pelo caminho e os enfrenta com a
mesma coragem com que Teseu enfrenta o Minotauro.
Na introdução de seu livro A imaginação simbólica (1988), Durand diz que há
duas maneiras de representar o mundo: uma direta, em que a coisa se apresenta à mente
como percepção ou simples sensação e outra indireta, na qual o objeto ausente é re-
apresentado à consciência por uma imagem15, essas imagens se configuram por meio de
símbolos, por sua vez configurados em signos complexos como alegorias, apólogos,
emblemas, para assim chegar à imaginação simbólica, “quando o significado não é mais
absolutamente apresentável e o signo só pode referir-se a um sentido, não a um objeto
sensível” (DURAND, 1988, p. 13-4). Sendo assim, por meio de uma relação natural,
algo ausente ou difícil de ser percebido é evocado e aparece como numa epifania, em
que o inefável se torna evidente, o indizível dito de forma indireta e o inapreensível uma
sensação da sublimidade. Daí a imagem simbólica ser uma “transfiguração de uma
representação concreta através de um sentido para sempre abstrato” e o símbolo “uma
representação que faz aparecer um sentido secreto; ele é a epifania de um mistério”
(DURAND, 1988, p. 15). O trabalho do/a poeta consiste em fazer surgir, por intermédio
de uma combinatória inesperada de palavras ou pelo jogo de uma narrativa com caráter
de exemplaridade, a presença física da imagem para comunicar uma ideia. Para tanto,
símbolos há muito condensados na memória são evocados e renascidos, de onde falam
aos nossos sentidos a linguagem nova, que nos remete ao mais verdadeiro e profundo de
nosso ser. Assim, o texto poético vem imbuído desse caráter sagrado, da crença no
mistério, mas também como repositório da cultura, onde se deposita a memória
ancestral revivida nos mitos e lendas.
15 Imagem num sentido mais amplo, como um grau extremo de representação, em que o signo é
destituído de seu significado direto para se tornar símbolo.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
O labirinto é um dos mitos mais evocados ao longo dos tempos, quer no todo
ou em seus mitemas constituintes, e é também o que melhor representa a complexidade
dos tempos modernos. Dédalo, Minotauro, Ícaro, e a figura feminina de Ariane (ou
Ariadne) são símbolos que fertilizam a literatura, em especial a poesia lírica da tradição
herdada dos gregos e romanos, chegando até nós impregnados de significados e valores
antigos.
Os textos mitológicos são narrativas que passaram da oralidade para a escrita
lançando reflexos de luz do passado no presente e futuro da humanidade. Esse nada que
é tudo, conforme diz Fernando Pessoa, é resultado de um processo simbólico que opera
a partir da realidade empírica para se estender a um agenciamento simbólico capaz de
traduzir ou explicar situações humanas com uma validade perene e universal. O mito,
pelo seu aspecto fabular, aproxima-se mais da épica e do dramático do que da lírica.
Entretanto, a tendência já constatada na poesia lírica contemporânea de utilizar de
fragmentos narrativos para estruturar poemas em blocos, envolvendo personagens
atuando numa fábula, combinando diferentes gêneros, predispõe à utilização de partes
das narrativas mitológicas para exprimir os conflitos da alma humana.
Há mitos que são criados na literatura e há outros que preexistiam e foram
colhidos da cultura popular oral para ilustrar e dar vida aos processos da ficção literária,
constituindo-se elemento de identidade cultural coletiva ou individual. Há, portanto,
mitos que antecedem o texto literário, mas sobrevive através dele, e outros engendrados
na ficção literária que são vivificados na memória popular. Enquanto texto literalizado,
ou seja, um registro posterior a sua origem, essas narrativas funcionam de diferentes
maneiras em contextos variados, de acordo com sua reconstrução. Assim, os mitos são
construtos ou reconstruções socioculturais que recebem diferentes conotações tanto no
nível coletivo quanto individual em diferentes épocas. Na poesia lírica contemporânea,
principalmente a escrita por mulheres, o símbolo é um meio de dar significado ao
mundo, em especial ao universo feminino, tão carregado de menosprezo, de valores
impostos, de dores caladas, de desejos reprimidos: “Povoa-se o mundo de sinais/dizeres
mudos” (SILVA, 1999, P. 272), que essa voz vai desvelando para si mesma e para os
leitores.
Na poesia das três autoras em estudo, os poemas são estruturados em uma
linguagem tão depurada que beiram o silêncio. A economia da linguagem se faz com a
técnica das eliminações sucessivas, com a depuração ou purificação da linguagem até
atingir o ponto chave, o cerne da palavra despojada capaz de registrar fiapos da
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
16Alguns críticos de ALA: Arnaldo Saraiva, Rosa Maria Martelo, Osvaldo Manuel Silvestre, Paula
Morão, Isabel Allegro de Magalhães, Maria Irene Ramalho e outros/as.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Defronte, agora,
ao monte mais sereno do Olimpo,
as cores eram já outras: não azul.
Mas o salto em vazio e sobre o mar,
e uma esplanada quente sobre nada
de Corfu, Creta, Rodes,
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
É o final do novelo que já fora todo tricotado, deixando o real intervir no sonho, numa
junção perfeita do sujeito do conhecimento com o sujeito da imaginação, a forma
sonhada apropriada pelo intelecto, o mundo sensível é o mesmo inteligível, tornando
possível ao ser organizar sua experiência para torná-la consciência de um sujeito de
muitas faces: grego, troiano, cristão. Esse sujeito se faz durante o caminho percorrido, o
labirinto e seus obstáculos dão a exata medida da condição humana, sempre sonhando
que o bem vencerá.
Hilda Hilst tornou-se bastante conhecida depois que a Editora Globo
republicou quase toda sua obra e também graças às polêmicas amplamente noticiadas
pela imprensa sobre as vozes do além que afirmava ouvir em sua chácara nas
proximidades de Campinas (SP), porém nem tanto lida ou compreendida, já que
adquiriu fama de escritora difícil. Talvez pelo desafio que representa, há uma fortuna
crítica bastante vasta sobre sua poesia, teatro e prosa, principalmente sobre o livro A
obscena Senhora D (1982). Levando, na cidade de São Paulo, uma vida social intensa
que não conciliava com o desejo de se dedicar exclusivamente à literatura, Hilda Hilst
passou a viver quase reclusa na Casa do Sol de 1963 até 2004, quando morre, deixando
mais de vinte obras publicadas.
Em Júbilo, memória e noviciado da paixão(2004),há um bloco de poemas
com intenção direta: De Ariana a Dionísio. Narra o mito que Dionísio, tendo a mãe
Sêmele morta antes de ter-lhe dado à luz, o pai, Zeus, tê-lo-ia costurado no interior de
sua coxa para que ali aguardasse o momento de nascer. Perseguido por Hera, esposa de
Zeus, o menino teve que se camuflar, vestir de mulher, transformar-se em bode, para
não ser pego. Daí a relação de Dionísio com a perda da identidade, com a fuga, com a
loucura. Morto e esquartejado, esse deus simboliza a dissolução da personalidade, a
regressão para as formas primordiais da vida e a tendência de se livrar de toda sujeição.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Nos dez poemas que compõem o bloco de poemas de Hilda Hilst, a voz do eu
lírico é a voz confessional de Ariana que se eleva para cantar o amor dionisíaco em
versos que se constroem da “sábia ausência do amado”, pois é dessa falta que sobrevive
sua poesia. O ser de linguagem que é Dionísio é dádiva da criação poética, pois, como
exprime a voz enunciadora: “Tu sabes Dionísio/ Que a teu lado te amando,/ Antes de ser
mulher sou inteira poeta./ E que o teu corpo existe porque o meu/ Sempre existiu
cantando.” (...). Sabe-se que, de acordo com a narração mítica, Ariana (ou Ariadne) foi
a jovem que deu o novelo para que Teseu, após matar o Minotauro, encontrasse o
caminho de volta e, então, tomasse-a como esposa. Só que Dionísio era apaixonado por
ela e apareceu em sonho a Teseu ordenando que a abandonasse sozinha na ilha onde
descansavam antes de seguir viagem. Depois de se desesperar por se sentir rejeitada e
traída, a jovem é resgatada por Dionísio e vão felizes residir no Olimpo, segundo a
lenda.
A voz que clama pelo amor de Dionísio na poesia de Hilda é a da mulher que
ressente a falta do amado, cobra sua presença e quer ser amada não por um deus, mas
por um homem. No entanto, a Casa como o espaço do corpo, busca a permanência que o
deus nega por ser casado com outra. A eloqüência amorosa aparece com intensidade no
poema VII (2001, p. 65):
É lícito me dizeres, que Manan, tua mulher
Virá à minha Casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?
Canção e liberdade não se aprendem
(...)
Luxúria, embriaguez e até loucura são os sentimentos expressos nos versos dionisíacos
de Hilda Hilst. A ausência do amado é a causa principal de sua ‘dialética lírica’, que se
concentra no jogo entre o dionisíaco e o apolíneo. A ‘intensa e difícil’ dialética impele o
sujeito ao reconhecimento de sua condição e ao enfrentamento próprio de quem quer se
afirmar como pessoa com uma personalidade complexa: “Reverso de sua própria
placidez/ escudo e crueldade a cada gesto//Porque te amo, Dionísio,/ É que me faço
assim tão simultânea//madura, adolescente// E por isso talvez/ te aborreças de mim”.
Essa mulher decidida não se importa com a opinião alheia, para ela só importa o amor
de Dionísio. Sua condição de poeta é que sustenta a autoestima:
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida
Nessa condição de quem possui um dom especial, pode sugerir ao amado a não desejar
o impossível: “Que seja terra o que é celeste/ E que terrestre não seja o que é só terra”
(VIII, 2001, p. 66), pois, segundo a crença dos gregos, cada coisa já vem determinada
pelo destino. Os desígnios dos deuses é que regem os eventos e distribuem na justa
medida bônus e abonos dos mortais.
Entre as vozes pouco reconhecidas na poesia brasileira contemporânea, apesar
de seu tom bem definido, soa a de Dora Ferreira da Silva, poeta que escreveu desde
1948, mas que só publicou seu primeiro livro em 1970, década em que Hilda Hilst
também já se dedicava inteiramente à literatura com sua poesia provocadora,
exprimindo o universo feminino numa linguagem tensa entre o poético e o prosaico.
Essas duas vozes se somam a outras que exploram o mesmo veio da poesia lírica, porém
a consonância entre as duas não passa despercebida, seja pelos temas abordados, seja
pela forma ousada como o discurso lírico feminino é elaborado, explorando as
narrativas mitológicas como forma de representação da condição da mulher, assim
como o faz também a portuguesa Ana Luísa Amaral.
Dionísio representa também a humanização dos deuses e a divinização do
homem. É considerado ainda a seiva da vida, a energia sexual, o deus do vinho. Deus
também da alegria, seus adeptos visam a escapar de sua condição humana pelo êxtase
da unção divina. Assim, esse impulso para a vida convive com a fatalidade irreversível
da morte, ambas unindo as duas pontas do mesmo novelo. Essa convivência impõe dois
movimentos arquetípicos da consciência que conduzem à indagação metafísica e, em
alguns casos, à experiência poética (PEIXOTO, 2003). No poema Dionisos dendrites
(PR, 1999, p.358), Dora Ferreira canta o deus, segundo o próprio título indica, como
figura petrificada que recorda a voragem do rito dionisíaco: (...) “Faces mergulham à
sombra corpos se avizinham:/ trêmulas tríades presas ao peito/ de Dionisos trácio.
Sussurra a noite/ e os corpos deslizam no vórtice da festa consagrada”.
No livro Poemas da estrangeira, da mesma autora, há um bloco intitulado Ciclo
de Teseu, composto de seis poemas em que a autora relê o mito do labirinto começando
no poema I com os versos “Não contratei os serviços de Dédalo/ ele mandou-me o
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
labirinto de graça”. A esse eu junta-se a figura de Ariana como um duplo que procura
por Teseu. O segundo poema menciona poetas de leitura mais recente, como Joyce e
Borges bem como o faz Ana Luísa Amaral ao evocar alguns poetas coevos. No terceiro
bloco, o eu já fala como a própria Ariana, dirigindo-se a Teseu e trazendo à luz a
imagem dos espelhos para configurar a duplicidade. No quarto poema a busca de si
mesma na figura do outro:
Dois espelhos se confrontam mudos:
Entre eles nós dois nos interpomos.
Alguém sabe quem somos? Simples nomes
Ou reflexos falantes de um espelho?
[...]
Os cegos vivem sempre pelo avesso
Mas a trama do direito é o sentido.
O espelho é atrás da face que se vê
Que sendo verdadeira não hesita.
Levy Strauss (Apud DURAND, 1988, p. 46) diz que o ser humano traz, ao nascer,
certas estruturas mentais esboçadas que vão definir suas relações com o mundo. Assim,
o ser se constitui numa polimorfia em que, além dessas heranças, o meio cultural impõe
também seus valores, censurando ou reforçando formas de ação e pensamento, no
entanto o que fica depositado no fundo de reservas está pronto para se manifestar
quando a vigilância se descuida. As proibições e interditos vigoram no nível da
consciência, mas imagens daquele universo primitivo e original pode se manifestar
como uma irrupção inesperada ou mesmo camuflada. O olhar que se volta para o
interior do ser reflete essas imagens muitas vezes pelo seu avesso. Só o simbolismo
daria sentido a essas manifestações quando são representadas por meios que fogem ao
controle do eu lírico, pois há surpresas e novidades neste campo, já que a capacidade
criadora do ser humano é ilimitada e não há explicações convincentes sobre a fonte de
que se origina.
No gesto da criação expresso por Dora, ouve-se o grito de louvor da Sibila em
agonia, por tempos silenciada, cruzando as camadas do inconsciente e intuindo os
vazios, as carências da humanidade. As lendárias profetisas, que deveriam ser castas e
viver como esposas da divindade, eram as vozes do oráculo, de onde emanava toda a
sabedoria como revelação dos desígnios celestes. A adivinhação, matéria essencial da
criação, é um dom ou uma maldição conferida à mulher. Escrever é adivinhar a si e ao
outro. O desejo de recriar os espaços e torná-los individualizados e sagrados tem
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Diz Virgínia Woolf, em Um teto todo seu (2004), que a “mestra suprema dos
cânticos” é a poesia, no entanto quando as mulheres, no século XIX, começaram a
sobressair na literatura, foi com romances, que exigem menos concentração, já que a
mulher não tinha nem espaço nem tempo para si mesma. O labirinto e seus mistérios era
trilha para mentes aventureiras e corajosas, à mulher coube quase sempre o papel de
coadjuvante. Além do mais, “uma vez que a liberdade e plenitude de expressão são da
essência da arte” (WOOLF, 2004, p. 86), a impossibilidade de usufruir desses requisitos
certamente afetou a produção literária das mulheres, que agora querem redimensionar
seu papel. Sendo assim, “a revolução feminista na sociedade, na cultura e na literatura
deixa para o século 21 o legado de um bruta imbróglio nas relações entre masculino e
feminino” (MORICONI, 2001, p. 19), que o estudo da ressignificação da figura
feminina perante o mito labiríntico na obra das três poetas contemporâneas pode ajudar
a esclarecer.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
SILVA, Dora Ferreira da. 1999. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks.
WOOLF, Virgínia. 2004.Um teto todo seu.Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1545-1562
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RESUMO
O presente trabalho, produção de pesquisa de Doutorado em andamento, se propõe a
cartografar práticas de invenção (escrita e produção poética) postas em ação por sujeitos
em uma comunidade de escritores, a partir de um trabalho de interlocução com um
grupo que atua de maneira não formal com produção de poemas. Propõe-se pensar sobre
o poder da escrita em diálogos como grupo, que atua no litoral sul paulista com o
objetivo de fazer pensar sobre questões sociais, políticas e cotidianas. O grupo,
denominado Sarau das Ostras, constitui-se por cinco integrantes escritores de poemas e
tem como inspiração a ostra, elemento comum no litoral, que diante dos obstáculos,
resiste e produz a pérola, assim como o grupo que, frente às dificuldades, produz a
poesia. A pesquisa pretende trazer à discussão, entre outros temas, o papel e o lugar da
escrita poética e o modo como dela se utiliza, nos dias atuais, para manifestar
pensamentos e inquietações. Entre o referencial teórico utilizado estão aportes da
história cultural, tendo Chartier e Certeau como autores chaves, além dos estudos da
linguagem, com Rancière, Foucault e Bakhtin, que entendem a escrita enquanto
processo na totalidade de sua relação entre locutor/autor-palavra (falada/escrita) -
ouvinte/leitor, bem como suas relações com o campo da arte. Desvendar sentidos dos
processos de escritas contemporâneas a partir de situações de interlocução e atividades
artísticas é uma forma de conhecer e valorizar os saberes trazidos por poetas não
canônicos que compõem e atuam nos espaços de produção escrita.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
No momento em que começo a pensar sobre a estrutura desse texto, um livro me chega
às mãos: La analfabeta, de AgotaKristof (2006). Escrito em espanhol, uma língua que
não é aquela na qual fui alfabetizada, mas em um momento da minha vida, tive que
aprender. Descubro que a autora, que o publica como um relato autobiográfico, não o
escreveu nessa língua. Trata-se de uma tradução. Nascida e alfabetizada na Hungria,
local onde, logo na infância, se apaixonou pela leitura e tomou para si o ato de escrever,
foi obrigada, após os 21 anos de idade, quando passou pela fronteira entre países até
chegar à Suíça, a atravessar outra fronteira: aprender a língua francesa, considerada por
ela e por seu povo como uma língua inimiga.
Refugiada de seu país, considera que, ao atravessar tal fronteira, encontra-se
numa situação de perda de parte de si mesma:perdeu a pertença a um povo, pertença que
envolve uma língua, uma cultura, um modo de ser. Essa situação é considerada por ela
como um “deserto” e ela tem que reaprender e descobrir um novo modo de ser quem é,
escritora, diante de uma nova situação: analfabeta em um novo país.Escrever, para ela,
passa a ser umanecessidade: “(…) para soportar el dolor de la separación, sólo me
queda una solución: escribir”. (Kristof, 2006: 18).
Como pensar a condição de um refugiado? Quantos exemplos temos de pessoas
foram excluídas de uma cultura por um sistema político, que se reinventaram para
continuarem existindo enquanto pessoas que escrevem.
Também o Brasil possui um histórico de pessoas que viveram algo parecido com
o que a autora relata. Paulo Freire, em À sombra desta mangueira (2001) reflete sobre
sua situação de exilado. Em diálogo com esse texto, o escritor Fernando Batinga escreve
o texto Carta a Paulo Freire, no qual apresenta também a visão de língua enquanto
cultura, bem como a angústia de quem tem a função de escrever em outro país:
O escritor exilado sofre as mesmas agruras que os demais exilados, embora
carregue uma outra cruz, que é a língua, a comunicação, a necessidade de
contato com outros escritores e leitores. No exílio, o escritor se depara com a
mais brutal das solidões. (...) o escritor no exílio está mais só; resta-lhe
apenas o papel, a máquina; e nesta luta desigual ele deve expressar o sussurro
de seu povo, resistência de uma cultura encurralada. (Batinga, 1978: 286).
Artistas como Chico Buarque, Caetano e tantos outros que, em suas canções, enviavam
seus recados.
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar,
ao mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação da mão que traça linhas
ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o
anima e com os outros corpos com os quais ela forma uma comunidade;
dessa comunidade com a sua própria alma. (Rancière, 1995: 7).
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Cómo explicarle, sin ofenderle, y con las pocas palabras que sé de francés,
que su bello país no es más que un desierto para nosotros, los refugiados, un
desierto que hemos atravesado para llegar a lo que se llama “integración”,
“asimilación”. En ese momento, todavía no sé que algunos nunca lo
lograrán.(Kristof, 2006; 64).
Num país colonizado, cuja história é marcada por explorações e injustiças, diferenças
sociais, alguns autores se autodenominam “marginais”, buscando subverter os padrões
da literatura, desde a década de 1970, com o contexto da ditadura militar, em que jovens
de classe média ou alta, ligados a universidades e atividades artísticas, tais como
cinema, música e teatro produziam literatura. Escondidos atrás de pseudônimos, por
meio da escrita, estes poetas denunciavam, em universidades, bares e demais ambientes
frequentados pela classe média, situações de exploração, quase sempre políticas,
utilizando-se de palavrões e estruturas que rompiam com as vanguardas da época, como
é o caso do concretismo. Nos dias atuais, esse termo,marginal, é utilizado por poetas de
periferia, para denunciar situações de violência, carência de bens materiais e práticas
das classes populares, expressando-se por meio de poemas e músicas do rap e hip hop.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Tais poetas não precisam esconder sua identidade, assim como o faziam aqueles que
viviam num regime de ditadura. Pelo contrário, fazem questão de dizer quem são, de
mostrar seus rostos e revelar sua voz. É possível identificar nesses movimentos as
estratégias e táticas de que trata Certeau: “ ‘o Povo fala’. Palavra ora sedutora ora
perigosa, única, perdida...” (Certeau, 1998: 222).
Érica Peçanha do Nascimento (2006), em sua pesquisa de Mestrado realizada na
Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, analisa a apropriação recente da
expressão “literatura marginal” por escritores oriundos da periferia de São Paulo e
estabelece algumas comparações entre a geração dos anos 70 e a atual. Uma das
diferenças apontadas pela autora é que “esses dois movimentos brasileiros de literatura
marginal se concentraram em espaços geográficos diferentes. Os poetas marginais dos
anos 1970 proliferaram em maior número no estado do Rio de Janeiro e a nova geração
de escritores marginais, constituída por escritores da periferia, é predominantemente
composta por moradores de São Paulo – embora seja preciso considerar que os dois
estados componham o eixo cultural dominante no país”. (Nascimento, 2006: 20).
Alguns representantes do movimento atual da literatura marginal, à qual se acrescentou
o termo “periférica” são Ferréz, que é considerado um dos precursores, Sacolinha,
Alessandro Buzo e Sérgio Vaz, o último deles também fundador de uma cooperativa e
um sarau que ganhou espaço nos últimos anos na periferia de São Paulo, à qual se deu o
nome de Cooperifa.
Nascimento (2006), ao analisar três edições da Revista Caros Amigos que
abordaram a temática, apresentando poemas periféricos, destaca algumas características
dessa escrita e dos seus escritores:
textos relacionados aos problemas sociais, à vida e à prática social dos membros das
classes populares, ou nos termos dos escritores estudados, do “povo da periferia”.
Os temas privilegiados foram: o cotidiano das classes populares, a violência urbana,
a carência de bens e equipamentos culturais, as relações de trabalho e a precariedade
da infra-estrutura urbana – sempre calcados numa ideia comum sobre o espaço
social da periferia. Do mesmo modo, a descrição física dos cenários (das casas, das
favelas, das ruas sem asfalto, do esgoto a céu aberto, etc.) e das características das
personagens (negros humilhados pela polícia e pela sociedade, mães que se tornaram
arrimo de família, pais alcoólatras, jovens sem oportunidades educacionais e de
trabalho, trabalhadores explorados por maus patrões, vizinhos solidários, etc) estão
relacionados aos problemas encontrados neste espaço. (Nascimento, 2006: 34).
A autora, a partir dos estudos da Antropologia, interpreta a literatura marginal como um
“movimento literário-cultural” e observa também que “a maior parte dos autores demonstrou
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
pouco domínio dos códigos tidos como cultos, construindo seus textos a partir de recursos
literários simples”, assim como o uso da linguagem coloquial, o emprego de gírias das periferias
urbanas brasileiras e palavrões. “Um diferencial importante é que os escritores apresentaram
regras próprias de concordância verbal e do uso do plural que destoam das normas da língua
portuguesa, tanto nas construções das frases como nos neologismos exibidos”. (Nascimento,
2006: 35). Em continuidade da análise, a autora afirma que as produções podem ser
consideradas como “materializações bem-sucedidas de escritores originários de um grupo social
que, tradicionalmente, está excluído como sujeito do processo literário. (2006:56).
Enfim, pode-se afirmar que tais escritores se propõem a produzir uma literatura que seja
porta-voz dos marginalizados sociais, que possa transformar em palavras, vozes e sons aquilo
que moradores das periferias urbanas vivem e pensam sobre o mundo. É um movimento que
têm, a cada dia, conquistado seguidores, como é o caso do grupo ao qual nos reportaremos a
seguir, protagonista da pesquisa aqui apresentada.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
O Sarau das Ostras nasceu da ideia que a ostra é um ser presente na natureza
e que vive no mar, essência dos moradores do litoral. Por outro lado, também
vemos a ostra, como motivo de cobiça, por parte de exploradores sem
escrúpulos que visam somente o lucro, em busca das pérolas preciosas. Estas
por sua vez, são reações do molusco a corpos estranhos que invadem seu
organismo, assim, como vermes ou grãos de areia. Nós a nossa maneira, com
o sentimento de reação contra tudo o que nos incomoda, produzimos versos,
poemas e letras, muitas de protestos e de conscientização dos problemas de
nossa sociedade, estas traduzem, veemente, o valor de nossas pérolas. (Blog
do grupo Sarau das Ostras. Disponível em:
<http://saraudasostras.blogspot.com.br/>)
Hoje, eles contam que para cada um deles o nome do grupo tem um significado
singular. Nem todos sabem colocar esse sentido em forma de palavras. Porém, a ideia:
“a poesia é a nossa pérola” permanece, assim como o objetivo de deixar registrada para
o mundo a mensagem de transformação social que cada um traz consigo.
Abaixo, apresento, em poucas linhas, cada um dos poetas que participam / compõem o
grupo Sarau das Ostras:
Ludimar- a conheci por entre as carteiras da sala de aula, como professora de
uma faculdade de Pedagogia. Aos 59 anos de idade, ela realizava o sonho de cursar o
ensino superior, após ter concluído o ensino fundamental e médio na Educação de
Jovens e Adultos e após passar muitos anos escrevendo poesias e, de forma autodidata,
estudando Língua Portuguesa. Muito me surpreendeu a qualidade de escrita de seus
poemas, alguns premiados por meio de Concursos regionais e nacionais, bem como dos
conhecimentos que trazia consigo. Ela me contava que, durante muito tempo, impedida
de estudar pelos pais e pelo marido, em momentos escondidos, lia romances e, inspirada
pelas leituras, escrevia poemas. Seus escritos ficaram, durante muito tempo, guardados
na gaveta, e pareciam “gritar”, como se pedindo para serem mostrados, divulgados. Até
que, no momento em que retoma os estudos e começa a apresentá-los a seus
professores, que a acompanhavam na EJA, ela resolve inscrevê-los em concursos
literários e, com isso, consegue sair do anonimato, tornando possível “dizer sua palavra”
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
ao mundo. Alguns poemas são ficcionais, outros, autobiográficos. Há aqueles que foram
escritos em momentos difíceis, em que a autora passou por uma síndrome do pânico,
ficou viúva, perdeu amigos queridos. Outros são homenagens a pessoas que a
acompanham e incentivam – filhos, professores, amigos. Ao mesmo tempo em que
volta a frequentar a escola, ela é também apresentada a diferentes grupos de poetas, que
criam espaços para trocar experiências e divulgar sua arte. Acompanhei o lançamento
de dois de seus livros – Entre pedras e gavetas (2011a) e Ludicidade (2011b). Em
contato com diversos grupos de poetas, o Sarau das Ostras é o que, no momento, tem
ocupado suas atividades, e junto com o grupo, ela tem se apresentado em escolas,
fundações de recuperação de adolescentes, eventos diversos. Ela me conta que,
atualmente, seus poemas têm saído com a batida do rap. Escrever é, para ela, uma
necessidade:
Por que eu escrevo? Porque eu preciso viver. Eu escrevo porque... nossa,
escrever pra mim é uma das prioridades da minha vida. Eu preciso escrever.
Assim como eu preciso ler eu preciso escrever. Escrever é o que me faz sentir
viva. É o que me faz sentir livre. É o que me faz crescer. É o que me faz me
comunicar. Praticamente é tudo. (Ludimar, informação verbal, em uma das
Conversas Poéticas, realizadas em 2014).
Poeta Fernandes, nascido na Praia Grande há 32 anos. Começou a escrever poesia
por influência da escola, entre a 7ª e 8ª série, quando foi premiado por alguns poemas
que escreveu:
(...) ganhei prêmio com isso na escola. E aí eu falei: “cara, esse negócio de
fazer poesia é legal!” Aí depois veio “droga é uma droga” que ficou uma
droga, mas ficou legal também... na época, 14 anos. Aí eu falei: Cara! Dá
pra você expor as suas ideias em forma de poesia. Foi aí quando eu comecei
a descobrir. Uma era uma paródia e a outra era que droga é uma droga.
Foram duas poesias que deram um sopetão assim pra mim.E influências
vieram depois, que com o Ensino Médio a gente começa a estudar os autores
da própria literatura portuguesa e a brasileira e a gente vai pra Camões,
passa um pouco em Gregório de Matos, vou passear um pouco em Gil
Vicente, dou uma passeadinha de leve no cara dos 100 sonetos, o Bocage. E
Bocage já não soa nos poemas que eu mais gosto, porque ele nega tudo
aquilo que afirma o que ele é, é um soneto. E foi quando eu me prendi aos
sonetos... fiz quase 100 sonetos em um ano, era quase um soneto a cada 3
dias, foi quando eu fui participar da Casa do Poeta pela primeira vez e
mostrei um soneto que eu havia feito. (...) Depois veio o Modernismo,
algumas inspirações. Quando eu conheci... tive o meu encontro com
Drummond e com Fernando Pessoa, foram duas paixões, e aí eu esmiucei
nos próximos dois anos lendo tudo sobre eles. E com o advento da internet
foi quando eu pude buscar e caí de cabeça neles. Drummond e Fernando
Pessoa, foram os dois ícones. Aí tem um pouco de Augusto dos Anjos, mas
esses dois assim são mais presentes. (Fernandes, informação verbal, em uma
das conversas poéticas, realizadas em 2014).
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Seu livro publicado, Minhas pegadas na areia (2011), apresenta alguns de seus
poemas, escritos ao longo desse processo. Atualmente, diz estar mais aberto aos versos
livres, sem a necessidade da métrica. Em sua fala, Fernandes enfatiza também as
subjetividades que coloca em seus poemas. Uma delas é a margem do papel. Fernandes
conta que, em alguns poemas, escritos para serem declamados e que têm em vista a
oralidade, gostaria de inserir todas as ideias numa linha só.
Nego Panda - rapper e representante da literatura marginal periférica no litoral
de São Paulo. Seu livro publicado é intitulado Poemas de um mundo louco. Foi
estudante de Pedagogia na mesma faculdade que Ludimar. Como professora, sempre me
chamou a atenção seu olhar atento e crítico, questionador.
Cheguei aqui na Praia Grande eu tinha 11 anos de idade e agora tenho 38. 27
anos de Praia Grande. Eu comecei a escrever eu tinha 12 anos de idade. Eu
comecei a escrever através das histórias em quadrinhos, de super heróis.
Quando eu morava na Cohab a gente tinha um grupo de amigos (...) e a gente
ficava criando as histórias de super heróis, criava os personagens, criava as
histórias, ficava lendo pra molecada da rua. Daí eu comecei a desenvolver
minha escrita. Escrever mais... Quando eu comecei a escrever rap o auge era
Racionais, Taíde e eu disse: “eu tenho que cantar rap”. (...) O hip hop mudou
minha vida. A partir do momento que eu conheci o hip hop eu passei a ver o
mundo de uma forma diferente. (Nego Panda, informação verbal, em uma das
conversas poéticas, realizadas em 2014).
Como apresentado no capítulo anterior, foi o idealizador do grupo, a partir da influência
dos saraus realizados na periferia de São Paulo. Quando questionado se considera sua
escrita como autobiográfica, traz como resposta:
Quando a gente escreve sobre injustiça social, essas coisas e a gente é pobre,
basicamente muita coisa já aconteceu com a gente. Quando a gente escreve
sobre preconceito por ser pobre, preto, morador da favela, o pessoal já te olha
assim com o olhar torto então muita coisa já... não é... você não faz uma
autobiografia, mas muitas coisas acabam sendo, meio que acabam
caminhando lado a lado. (Nego Panda, informação verbal, em uma das
conversas poéticas, realizadas em 2014).
Vemos em sua resposta, indícios que mostram um papel coletivo da escrita. Uma escrita
que retrata o social, uma cultura de comunidade, uma relação entre a alma de quem
escreve e a comunidade na qual está inserido, tal como evidencia Rancière (1995).
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
RO3P – participante do grupo, tem 32 anos e nasceu em Praia Grande. Diz não
ter recebido influências da experiência escolar, mas, assim como Nego Panda, do
contato com o rap.
A paixão pela escrita foi muito pouco de ler assim, até hoje. Antes quando eu
era mais novo eu não lia por não ter tanto interesse de leitura porque na
escola a gente não tinha incentivo de professor algum pra poder ler. Não
tinha... E hoje atualmente eu não leio tanto por falta de tempo. (...) A minha
participação no movimento hoje na literatura foi por conta do Fernandes, do
Panda. Comecei escrever rap, fazer rap em 96 e automaticamente o rap me
forçou um pouco a ler também. Por mais que eu leia pouco a gente tem que
procurar estar se informando por causa da nossa escrita, o que a gente
escreve é a nossa vivência, então adquirindo informação, conhecimento
ajuda mais ainda. (RO3P, informação verbal, em uma das conversas
poéticas, realizadas em 2014).
Sobre seu processo de produção artística, destaca o hábito da escrita:
Escrever... bom, acho que é dom divino. É engraçado que eu não tinha o
hábito de ler, mas eu escrevia que era uma barbaridade, principalmente no
começo do rap assim... 96, 97, era coisa de eu escrever 2 ou 3 músicas por
dia. Eu já tinha uns 16 anos, 17 anos. Quando era criança nada eu não
escrevia nada, mal estudava, até falei hoje que se eu pudesse voltar atrás e
pudesse estudar tudo de novo acho que eu encarava porque faz falta. (...)
Escrevo mais letras de rap, os poemas surgiram... em muitos saraus que a
gente participa eu recito minhas próprias letras e apenas eu vou adaptar elas
da forma pra interpretar, é mais a
interpretação. (RO3P, informação verbal, em uma das conversas poéticas,
realizadas em 2014).
Ao comentar sua participação no Sarau das Ostras, enfatiza também o papel da literatura
marginal periférica:
O Panda me conhece desde pivete, andava muito com o meu irmão, ia pro
baile com o meu irmão. Quando eu comecei a me envolver com o hip hop,
com o rap em si, o Panda já cantava e foi aí que despertou o dom da escrita,
eu comecei a escrever a gente já tinha uma proximidade de longos anos. Aí
quando o Panda veio com a ideia ele falou assim: ‘Negão, eu to com um
projeto, cara, aí de fazer um sarau.’ Aí ele me explicou o que eu já sabia, que
era o que rolava na Cooperifa com o Sérgio Vaz, sobre a literatura periférica,
ele me abriu um pouco mais minha mente, e ele falou: isso que a gente
escreve é poesia, você sabe disso, só que agora a gente vai adaptar a nossa
poesia de outra forma para que as pessoas possam entender, a gente sabe o
quanto que é difícil às vezes num rap a pessoa entender o que você ta
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
faixa vai ser contínua da outra sem parar, sem parar e sem repetir nenhuma
coisa e vai trocando as faixas, mas vai continuar, vai voltar, sem refrão, sem
nada...’ (Abel, informação verbal, em uma das conversas poéticas,
realizadas em 2014).
Poemas que não terminam... textos que extrapolam as margens do papel...palavras de
protesto... vivências coletivas... experiências singulares... O que pode haver por trás do
processo de autoria de um texto ou de um poema?
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o texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse
contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente,
iniciando dado texto no diálogo. Salientamos que este contato é um contato
dialógico entre textos (enunciados) (...). Por trás desse contato está o contato
entre indivíduos e não entre coisas. (Bakhtin, 2003: 401).
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Os poetas do Sarau das Ostras, por entre relatos da constituição do grupo, nos contam
histórias de amizade. Pessoas que foram se conhecendo, se acolhendo e, juntos,
construindo seus caminhos em poesia.
“Não dá pra imaginar um sem o outro. E tudo o que vou fazer, penso numa
forma de incluir todos eles. (...) Já que eles me aceitaram com tanto carinho no grupo...
Parece que é tudo meu filho... A gente é muito unido. Um pensa muito no outro. A gente
quer fazer tudo junto.” (Ludimar).
Penso, então, nos caminhos da formação, repletos de encontros, contato com o
outro e o que se produz em tais encontros. Reporto-me aos caminhos que o grupo
pesquisado propõe enquanto formação. Não uma formação engessada, que pretende
formatar o outro aos padrões desejados, mas uma formação que instiga pensamentos,
fomenta processos criativos e convida cada participante a, também, produzir seus textos.
Formação que não pressupõe alguém superior que ensina a quem, supostamente, não
sabe. Formação que se torna “emancipação de saberes”, como propõe Rancière:
Mais ainda, o homem sabe que há outros seres que a ele se assemelham e aos quais
poderá comunicar os sentimentos que experimenta desde que os situe nas
circunstâncias às quais deve suas penas e seus prazeres. Assim que ele conhece o
que o comoveu, ele pode se exercitar em comover os outros, se ele estuda a escolha
e o emprego dos meios de comunicação. É uma língua que ele deve aprender.
(Rancière, 2002: 76).
Aprender essa língua, comover-se e comover os outros é um ato que requer
abertura e convida a conhecer outros mares, trilhar outros caminhos, não apenas os já
trilhados – requer abertura para navegar, compartilhar.
Olhando para o grupo, penso em cada um e em suas experiências,
particularidades de suas produções escritas:
Ludimar... excluída de oportunidades de frequentar a escola, encontra caminhos
para ler e escrever, estudando junto com os filhos, lendo após a casa estar em ordem...
guardando nas gavetas os seus escritos poéticos...
Fernandes... em suas experiências escolares, aprende poesia. Será que era aquilo
mesmo que a escola pretendia ensinar? Ou encontrou táticas para aprendera partir de
seu encantamento pela poesia?
Nego Panda e RO3P, que por meio do rap encontram um modo de dar sentido às
palavras escritas e rimadas, e passam, a partir daí, a rimar as experiências do povo da
periferia....
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Abel, que escreve em um caderno suas palavras, criando textos que não querem
terminar...
Kristof... Chico Buarque...e tantos outros... como encontram seus caminhos
singulares de deixarem escritos nos espaços por onde passam, a si mesmos, às suas
visões de mundo, as suas emoções?
Letras, palavras, poemas, romances... escritos que se formam por meio de
políticas e estéticas, partilhas... formam, deformam, transformam... pessoas, lugares,
caminhos, mundos... em seus espaços infinitos...
Reporto-me, então, ao meu próprio caminho para chegar até aqui, educadora /
pesquisadora. Caminho que iniciou quando uma menina de aproximadamente 7 anos de
idade decidiu ser professora, trilhou diferentes rotas – algumas retas, outras tortuosas,
algumas floridas, outras pedregosas - encontrou algumas “inspirações” em pessoas que
encontrou – professores (as), alunos de diferentes idades, companheiros de jornada - e
até os dias de hoje busca quebrar limites, ultrapassar fronteiras, romper hierarquias e
encontrar formas inusitadas de encontrar brechas e valorizar diferenças / singularidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bakhtin, Mikhail M. (1990).Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec,
1990.
______. (2003). Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Batinga, Fernando. (1978). Carta a Paulo Freire. In: Cavalcanti, Pedro C. Uchôa;
Ramos, Jovelino. (org.). (1978). Memórias do Exílio. Brasil: 1964-19??. 1. De muitos
caminhos. São Paulo: Editora do Livamento Ltda. p. 277-286.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. (2003). Kafka:para uma literatura menor. Lisboa:
Assírio e Alvim.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Freire, Paulo. (2001). À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho Dágua.
Molina, Ludimar Gomes. (2011a). Entre pedras e gavetas. São Vicente: Costelas
Felinas.
Nascimento, Péricles. (2013). Crônicas de A a Z. In: RO3P. O sonho dus guerreiros não
morre! CD. Praia Grande.
______. (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalho et al. Rio de Janeiro:
Editora 34.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1563-1582
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1563
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Esta comunicação propõe uma leitura das confluências entre poesias de João Cabral de
Melo Neto e Carlos de Oliveira, buscando evidenciar a presença de Cabral na Literatura
Portuguesa. Ao centrar-se nos livros Paisagens com figuras de Cabral e
Micropaisagemde Carlos de Oliveira, será abordada a reflexão sobre o papel do poeta
como construtor no processo de elaboração poética. O livro de Cabral selecionado
apresenta forte traço construtivo, movimentando-se entre o plano poético que se
subordina ao plano metalingüístico, bem como de Carlos de Oliveira que dentre sua
vasta obra destaca-se pela orientação metapoética. Além desse pendor construtivo dos
livros em diálogo, há também uma preferência, conforme já sugerido pelos títulos dos
livros, pela representação imagética de uma realidade concreta, especificamente o sertão
nordestino, em Cabral, e Gândara, em Carlos de Oliveira, ambas as realidades
sugerindo esterilidade, aridez e escassez; qualificadores da realidade representada que
também adjetivam a escrita dos poetas. Essa preferência dos poetas pela figuração de
uma dada realidade exterior faz com que a poesia deles reconfigure o conceito
romântico-hegeliano de poesia lírica, segundo o qual a poesia é a expressão da
subjetividade do poeta e, mesmo quando ele se volta para uma realidade que lhe é
exterior, esta é apenas o ponto de partida para a expressão dos seus sentimentos.
Diferentemente dessa tradição, na poesia de Cabral e Carlos de Oliveira, o eu só se dá a
conhecer por meio da representação do objeto selecionado, “fora de si”, como diria
Michel Collot.
Introdução
A alusão à influência efetiva de João Cabral de Melo Neto em pesquisas embora não
seja uma constante, tem se apresentado profícua entre estudos de literatura brasileira e
portuguesa, mas é somente a partir do ano de dois mil que pesquisadores no Brasil
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O livro Paisagens com figuras de João Cabral de Melo Neto é formado por dezoito
poemas, dos quais oito tematizam o nordestee, um em particular aborda tanto a
paisagem de Pernambuco quanto a da Espanha. Alvo de interesse desse estudo e
justificando-se por remeter à memória da infância do poeta, possibilitando um diálogo
mais direto com a obra de Carlos de Oliveira, os poemas selecionados são aqueles que
se centram na paisagem pernambucana. “Pregão Turístico do Recife”, o poema de
abertura do livro aponta já a recusa de uma possível recordação no reduto lírico da
infância, já que a cidade de Recife desde o título aparece leiloada em ordem inversa,
numa licitação a baixos preços expressa pela escolha da palavra “pregão”, notabilizando
o tratamento social da paisagem que, marcado pela motivação regional, se submete ao
processo de reflexão a que o poeta se propõe.
Partindo das várias formas da memória oferecidas pela experiência pessoal, a
paisagem é conduzida ao tratamento consciente da necessidade de apuração linguística
própria do fenômeno poético, já que o poeta transforma o objeto de uma experiência
empírica em objeto de um conceito do Recife, segundo Nunes (2007) . A memória
desfaz-se da sua intenção de recordação quando o poeta opta antes por uma
problematização “narrativa” que pela composição descritiva da paisagem, uma vez que
a linguagem intensifica a experiência através da atitude crítica, refigurando-a ao invés
de nomeá-la.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Entre aquilo que é latente para o Recife turístico encontramos o mar, a cidade, o
rio e o homem pernambucano numquadro imagético fragmentário com que o poeta
recompõe a paisagem da cidade de Recife.Cabral encontra na paisagem, segundo a
perspectiva de Collot (2013a) uma fonte de criação literária, que se abre a partir da
própria realidade do poeta, um horizonte de possibilidades de trabalho de criação. No
intento de desintegrar a paisagem da cidade turística, segundo os preceitos pelos quais
ela se faz conhecida, o poeta compartimenta-a e a refigura pelo desdobramento da
figura do mar, em“montanhas” “arrecifes” e “mangues rasos”, pelo desdobramento da
figura da cidade em “velhos sobrados”,do rio em“sangue-lama”e do homem que
representando a vida se desdobrada em morte. A desintegração sofrida pela cidade é
evidenciada no processo metonímico criado a partir de suas partes que se tornam símiles
do Recife, fadada à lama, à estagnação, ao apodrecimento e consequentemente a morte.
As imagens iniciais, tal como mar, cidade, rio e homem pernambucano,
apresentadas por Cabral são utilizadas para referir-se à imagem da imagem do objeto,
ou seja, guardam ainda em si uma visão decorativa da paisagem do Recife. As imagens
que se ramificam das iniciais adquirem autonomia e passam a se ligar diretamente a essa
paisagem evidenciando uma face oculta da mesma.Os atributos negativos conduzem da
abstração do conceito pré-concebido à concretude, uma vez que evidenciam a essência e
a verdade da paisagem, que como ressalta Collot (2013a) despojada de ornamentos
denuncia seus próprios artifícios com que disfarçava a realidade.
Sob a perspectiva de Collot (2013a), observa-se que a paisagem do Recife
parece desfigurada quando altera consideravelmente sua iconografia tradicional
substituindo-a por outras figuras. Esse processo conduz à purificação da linguagem que
gradualmente torna-se a paisagem que já não pode ser representada. Devido a essa
impossibilidade é que João Cabral conduz a abstração à concretude da paisagem, que
surge como nova forma de expressão, em que embora o homem pareça estar ausente,
encontra-se, enquanto ser de linguagem, “inteiramente na paisagem”.
O poeta extraindo do real aquilo que é exemplo de lucidez e lhe permite captar a
verdade da paisagem, aquilo que possibilita, segundo Secchin (2014), escavar além da
aparência constituirá segundo a perspectiva de análise que aqui se realiza a primeira
lição de refiguração da paisagem que remete mesmo que analogamente à lição de
poesia.Se a paisagem vai ganhando concreção na passagem do mar à montanha, aos
arrecifes até se consolidar como “fio de luz precisa,/ matemática ou metal” (Cabral,
2008:123) e da cidade ao se firmar sobre “ombros calcários” caracterizando a precisão,
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
o mesmo vai ocorrer com a linguagem, que impressa em quadras e com recorrência
constante ao enjambement,acentua o caráter discursivo da poesia e imprimi-lhe um tom
seco, de corte que mineraliza a linguagem, aumentando sua justeza.
Em “Vale do Capibaribe”, João Cabral retrata a paisagem do rio que banha
Pernambuco e que tem seu alto e médio curso situado no polígono das secas, onde se
apresenta em regime temporário, desaguando no Oceano Atlântico depois de passar pelo
centro da cidade de Recife. Recorrendo à imagem do Vale do Capibaribe em Santa Cruz
e Toritama, municípios participantes do polígono das secas, o poeta ao constatar que a
paisagem pudesse tornar-se “cena para cronicões,/ para épicas castelhanas” (Cabral,
2008:128) sobrepõe a paisagem ao seu conteúdo, estabelecendo crítica a uma possível
narrativa grandiloquente de uma literatura que tivesse o intento de romantizar uma
fingida história.
O poeta apresenta-se, segundo Barbosa (1975), como consciência desperta ao
introduzir pela adversativa uma ressalva sobre o Vale do Capibaribe: “Mas é paisagem
em que nada/ ocorreu em nenhum século/ (nem mesmo águas ocorrem/ na língua dos
rios secos)” (Cabral, 2008:128). Esvaziando o sentido histórico da paisagem, já que não
permeou os cronicões pela ausência de fatos históricos, tampouco os livros de geografia
pela ausênciada água, o Vale do Capibaribe só pode ser legitimado na linguagem
literária, em que aparece expresso agora. O poeta numa sondagem lúcida do solo, cuja
paisagem renega toda e qualquer forma de sublimação, atenuando antes o que lá falta
que o que existe, faz com que a paisagem sobre nova configuração, não encontre nem
um modelo geográfico, nem antecedentes históricos.
O esvaziamento do sentido histórico e geográfico da paisagem constitui forma
de espacialização do vazio e se apresenta como fundo que realça as figuras de carência e
escassez em que a paisagem se define, construindo um modo de significação a partir da
rarefação. Ironicamente o poetacria uma história mítica para as ruínas do vale, com a
existência de um “deus da seca” e aprofunda ainda mais a ideia de aridez que a palavra
“seca” já anuncia no verso anterior:
Nada acontece embora
a pedra pareça extinta
e os ombros de monumentos
finjam história e ruína.
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20 As informações sobre a história de fundação da cidade de Toritama, bem como a origem do nome são
disponibilizadas no site da Prefeitura de Toritama, no link “A cidade” – Conheça Toritama:
http://www.toritama.pe.gov.br/conheca-Toritama
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(...)
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levadas
pelo seu peso,
suaves acidentes
da colina
silenciosa para
a cal
forir
nesta caligrafia
de pétalas
e letras.
(OLIVEIRA, s/d:35)
Segundo Collot (2013a) o posicionamento do sujeito fora de si se apresenta pela
recorrência às metáforas espaciais, que exprimem o espaçamento do próprio sujeito para
se propagar por todo o espaço circundante. Sob essa perspectiva a emoção da paisagem
faz com que o sujeito lírico a experimente saindo de si, o distanciamento regido pela
memória e a consequente atitude crítica do poeta assumida frente a paisagem, direciona
essa evasão do sujeito para a necessidade de uma poesia que se volte sobre si mesma,
evidenciando seu próprio processo de construção.
Em “Estalactite” há um paralelo constante entre a forma de construção da
paisagem e a forma de construção do poema. A formação da estalactite “(...) donde
morosas gotas/ de água ou pedra/ hão-de cair/ daqui a alguns milénios/ e acordar/ as
ténues flores/ nas corolas de cal (...)” (Oliveira, s/d:31) se apresenta análoga à formação
do poema “(...) um outro movimento/ mais subtil,/ o da estrutura/ em que se geram/
milénios depois/ estas imaginárias/ flores calcárias,/ acharia/ o seu micro-rigor.”
(Oliveira, s/d:33). Aqui tal como em Cabral estabelece-se a noção de poesia como
trabalho oficinal, que conduz a produção do poema pelos caminhos da depuração da
linguagem, reagindo ao tom confessional que a memória poderia imprimir ao poema.
O poema “Estalactite” é dividido em vinte e quatro segmentos, compostos de
quatorze versos cada, sem divisão estrófica, assinalando a preocupação com o rigor da
forma. A prévia delimitação na forma, daquilo que se dará no plano do conteúdo,
possibilita uma duplicidade de efeito produzido: os poemas assumem uma feição
discursiva, acentuada pelo uso frequente do enjambement, que atua como “o ponto
morto/ onde a velocidade/ se fractura/ e aí/ determinar/ com exactidão/ o foco/ do
silêncio.” (Oliveira, s/d:34).
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inédita, o próprio sujeito criador assume uma nova figura, ou seja, frente a uma
paisagem desfigurada, ele faz a tentativa de sua própria desfiguração, favorecendo que a
poesia supere o testemunho autobiográfico graças àquilo que Combe (2009-2010)
nomeou “ficcionalidade alegórica”.
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Edições Cotovia.
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Oliveira e João Cabral de Melo Neto. Comunicação no Congresso Internacional de
Lexicografia e Literaturasno Mundo Lusofônico, organizado pela Academia Brasileira
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BARBOSA, João Alexandre. 1975.A imitação da forma: uma leitura de João Cabral de
Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades.
COELHO, Eduardo Prado. 1972.A palavra sobre a palavra. Porto: Portucalense
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SECCHIN, Antonio Carlos. 2014. A natureza rarefeita [Paisagens com figuras]. In: João
Cabral: uma faca só lâmina. São Paulo: Cosac Naify.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1583-1600
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1583
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Poeta e intelectual, Bandeira se tornou, no decorrer do século XX, um artista admirado e
reverenciado e um historiador, crítico e teórico referenciado. Carlos Drummond de
Andrade, por sua vez, igualmente se empenhou na arte poética, no exercício crítico, nas
experiências formais e tem sido constantemente retomado por escritores, seja de modo
explícito, como faz Adélia Prado e Cacaso, seja por meio de alusões. Esta comunicação
pretende discutir as tendências da poesia brasileira contemporânea e refletir sobre o
modo como poetas das últimas décadas do século XX e deste início do século XXI
mantêm com Bandeira e Drummond um expressivo diálogo criativo e, por vezes,
teórico e estilístico. A base desta comunicação é a obra poética dos dois autores
modernistas e a evidência de sua presença em textos poéticos de autores como Cacaso,
Ana Cristina César, Sérgio Alcides, Angélica Freitas, Bruna Beber, Mário Alex Rosa
dentre outros poetas brasileiros do final do século XX e do início do século XXI. O que
se pretende é evidenciar que ritmos, temas, formas e concepções são retomados pelos
novos autores e que alguns conceitos dos escritores modernistas são também
experimentados pelos que hoje fazem a nova poesia brasileira.
21 PUC Minas, Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Letras. Rua Vital Brasil, 231/102.
31.270-190. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. raquel.beatriz@oi.com.br.
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modo explícito, como faz Adélia Prado e Cacaso, seja por meio de alusões, ironias
indiretas ou diretas, como o que ocorre nas poesias de Roberto Piva e Angélica Freitas.
Esse fenômeno, aqui discutido por meio do que ocorre nos processos de citação
da poesia desses dois escritores modernistas, faz parte de uma tendência do
procedimento criativo dos poetas contemporâneos qual seja o de “não tomar o novo
como critério de valor, por não se fundamentar mais na estética da mudança”
(Yokozawa; Bonafim, 2015: 7).
Juntamente com esse fenômeno próprio da Literatura, o de se retomar e se
reescrever, como processos de retrospecção e prospecção, observa-se em publicações
recentes que vários escritores, por diversos meios, passaram a reivindicar a herança de
Bandeira e Drummond. Em alguns casos, os leitores especializados ou os editores dos
novos escritores reivindicam essa herança poética.
Nossa comunicação pretende discutir os modos como a herança de Drummond e
Bandeira é reivindicada pela crítica e pelos poetas das últimas décadas do século XX e
deste início do século XXI. Supõe-se que um importante número de escritores mantém
com Bandeira e Drummond um expressivo diálogo criativo e, por vezes, teórico e
estilístico. A base dessa comunicação é a obra poética dos autores que constroem esse
diálogo e tem a função de apresentar as primeiras notas de uma pesquisa que se inicia.
Para isso, trazemos exemplos de textos críticos e poéticos de Cacaso, Ana Cristina
César, Orides Fontela, Roberto Piva, Angélica Freitas, Bruna Beber, Sérgio Alcides e
Mário Alex Rosa. O que se pretende é evidenciar algumas formas, ritmos, temas e
concepções poéticas que são retomados pelos novos autores, ao fazerem um movimento
de certa adesão ao cânone, afirmarem a tradição literária brasileira e, por vezes,
ironizarem-na ao tentarem se distinguir dela para, de certo modo, participarem de sua
criação.
Nosso interesse nessa questão iniciou-se pela observação de algumas
apresentações editoriais e críticas dos novos autores, principalmente os do início do
século XXI. Dentre esses podemos citar o texto de Newton Bignotto na orelha do livro
Píer, de Sérgio Alcides, publicado em 2012:
O Mergulho de Sérgio Alcides nas profundezas do ser não faz dele, no
entanto, um poeta metafísico. Na universalidade de seus temas, encontramos
não apenas a referência à musa de carne e osso, que o transporta para além do
cotidiano mesquinho das grandes cidades, mas também uma ligação com seu
tempo literário e com seu país. Herdeiro de poetas como Drummond e
Bandeira, ele é também o escritor sensível à natureza e à história do Brasil.
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Roberto Piva, em seu poema “Visão 1961”, parece nos remeter à noção de caos presente
em “Visão 1944”, de Carlos Drummond. Na visão da guerra, o poeta modernista se vê
menor do que precisa, com seus olhos pequenos para ver o caos.
Meus olhos são pequenos para ver o mundo
que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
– mas vêem, pasmam, baixam deslumbrados. (Andrade, 2007:207)
O espanto provocado pela guerra vem contido pelas quadras, numa surpreendente
regularidade estrófica que, de certo modo, agudiza o caos do que não se pode ver, por
confrontá-lo com a forma poética regular que representa os limites do olhar lírico.
Assim, o mundo que se esvai em sangue e o que brota como nelumbo, numa referência
às plantas cujas raízes ficam submersas à lama e cujas flores desabrocham com os raios
de sol, se encontram no olhar contido, assombrado e inquieto do sujeito poético.
Roberto Piva, com seu poema “Visão 1961” traz outro caos, o das alucinações:
as mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo
Invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma
flor de saliva
(...)
minhas alucinações pendiam fora da alma protegidas por caixas de matéria
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
De outra geração, Angélica Freitas também elege o poeta itabirano para estabelecer seu
diálogo com a tradição. Em Rilke shake, primeiro livro da autora, encontramos os
seguintes versos:
Ai que bom seria ter um bigodinho
além das lentes dos óculos ficar
escondida por trás de uma taturana
capilar
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Esses versos nos remetem, por contraponto e ironia, ao “Poema de 7 faces”, de Carlos
Drummond de Andrade, em especial em sua terceira estrofe:
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode. (Andrade, 1967)
Se contrapontearmos o “Poema de 7 faces” com os versos de Freitas, a voz feminina soa
irônica por desejar ter um bigodinho, pois desnuda o homem ao denunciar que o bigode
é mais um modo ocultar, do que de revelar a tessitura humana do sujeito que se afirma
“sério”. É também forma de fragilizar o homem forte, ao evidenciar sua necessidade de
se esconder, e mais, salienta o olhar de cobiça dos olhos que “não perguntam nada”
diante do bonde que “passa cheio de pernas/ pernas brancas pretas amarelas.”
É, também, em Angélica Freitas que podemos avistar um diálogo com “Os sapos”,
poema de Bandeira. No poeta pernambucano podemos ler nos versos do famoso poema:
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
(...)
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — Meu cancioneiro
É bem martelado. (Bandeira, 1986:158)
Freitas também nos leva para a figura do sapo saltador. No poema “casino”22, palavra
que alude a um só tempo à casa e ao jogo, a poeta parece dialogar com os que preferem
a poesia rasa. Numa primeira estrofe pode-se ler:
você prefere o cru
ao creme:
boca ostra língua
lago lua lugar
paisagem com pinheiros
ao fundo. (Freitas, 2007:27)
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Com esses versos, apresenta-se uma reflexão sobre o fazer poético apressado, sem a
maturação adequada, feito de imagens comuns. A segunda estrofe do poema oferece
como que uma saída para os que preferem “o cru ao creme”:
você precisa
habitar as elipses
precisa dissecar
o sapo da poesia
— não abole o poço
salta saltador
o grande salto (Freitas, 2007:27)
Se, em Bandeira, o poema “Os sapos” ficou consagrado pela ironia aos parnasianos,
numa espécie de gesto retrospectivo em relação a seu tempo, como que a desdenhar do
passado e do gosto pela glória fácil de alguns escritores, na jovem autora a imagem do
sapo parece ser prospectiva, uma espécie de tomada de consciência sobre a composição
poética, a confissão sobre a necessidade de construir as elipses, dissecar palavras. E
mais, traz a significativa imagem de poço, ponto de encontro dos dois escritores, para
significar o fazer poético, palavra que traz consigo o sentido da escavação, da
exploração tão adequada para expressar figurativamente o gesto criativo do poeta. Se
“habitar as elipses” e “dissecar o sapo da poesia”, nos dizeres de Freitas, são saídas para
a escrita apressada, pode-se supor que ela adere às convicções de Bandeira no que tange
à necessidade de, no jogo da criação literária, realizar um trabalho poético cuidadoso
longe da grita, na densidade da noite infinita: “Lá, fugido ao mundo/ Sem glória, sem
fé” (Bandeira, 1986:159).
Mar de mineiro é o livro de poesia publicado por Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, em
1982, com 46 poemas, em sua maioria, muito breves, em um tom irônico e crítico e, às
vezes, íntimo e confessional. No poema “ O fazendeiro do mar”, publicado nesse livro,
já pelo título se observa certo jogo ao replicar, no sentido duplo desta palavra, fazer uma
réplica, cópia, e contestar o Fazendeiro do ar de Drummond. Cacaso, em um longo
poema descritivo-conceitual, como que glosa o mote retirado dos versos
drummondianos: “Dos cem prismas de uma joia, quantos há que não presumo”,
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- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. (Bandeira, 1986:207)
Bandeira com seu poema-manifesto combate o lirismo comedido; no final do século
XX, Cacaso como que usufrui do legado do poeta pernambucano e sem comedimento
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traz-nos a poética do devaneio, do pó, da náusea, como que a executar o lirismo que é
libertação.
Pelos exemplos de Roberto Piva, Angélica Freitas e Cacaso, percebe-se que os
escritores do final do século XX, Piva e Cacaso, e do início do século XXI, Freitas,
constroem sua poética em diálogo conceitual com os canônicos, mesmo que, em alguns
casos, por meio do confronto de ideias.
Ainda nessa linha de aproximação dos novos poetas com os escritores
canônicos, pode-se analisar o caso específico do uso de temas e formas musicais na
composição poética. Esse parece ser outro elemento que faz de alguns autores dessas
duas gerações das quais estamos tratando, herdeiros de Manuel Bandeira,
principalmente.
Cedo compreendi que o bom fraseado não é o fraseado redondo, mas aquele
em que cada palavra tem uma função precisa, de caráter intelectivo ou
puramente musical, e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem vibrar
cada parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores. Não sei
se estou sutilizando demais, mas é tão difícil explicar por eu num desenho ou
num verso esta linha é viva, aquela é morta.
Maior ainda foi em mim a influência da música. Não há nada no mundo de
que eu goste mais do que de música. Sinto que na música é que conseguiria
exprimir-me completamente. Tomar um tema e trabalha-lo em variações ou,
como na forma sonata, tomar dois temas e opô-los, fazê-los lutarem,
embolarem, ferirem-se e estraçalharem-se e dar a vitória a um ou, ao
contrário, apaziguá-lo num entendimento de todo repouso... creio que não
pode haver maior delícia em matéria de arte. Dir-me-ão que é possível
realizar alguma coisa de semelhante na arte da palavra. Concordo, mas que
dificuldade e só para obter um efeito que afinal não passa de arremedo
(Bandeira, 1986:50).
Além das características gerais dessa forma aqui mencionadas pelo poeta, a
forma sonata é frequentemente definida como uma oposição de temas breves e fáceis de
serem memorizados. E, como se costumava dizer na era romântica, também por ter um
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dos versos e, junto com isso, o valor das imagens, como que desenhadas pelas palavras.
Suas estrofes binárias ou ternárias formam um conjunto harmônico, como a dança
sugerida pelo título. Para além de suas danças, tal como Cacaso, Bruna escreve sua
Sonata:
não me emociona o heroísmo
o que arranha as unhas nas paredes
do precipício deixo cair
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
E, em silêncio,
detém-se o filho do jato,
claro, tubular, isento,
e, súbito, sem retorno,
espeta a mão no minuto. (Alcides, 2012:9)
Esse poema está composto por uma intensa e regular escolha sonora, evidenciada pelo
uso de palavras constituídas por pares fonéticos opostos, como t/d, b/p (quietude/ tudo/
parede/ branco), entrecortado por silêncios significativos, entre os quais se destacam o
espaço entre o fim da primeira e da segunda estrofe, e a ausência sonora no início do
primeiro verso da segunda estrofe. Além desses elementos, notam-se, ainda, versos com
pulsação intensa como em “O pêndulo apenas pensa/ no pulso, dentro da caixa”. A
pulsação, as aliterações, as pausas e a melodia sombria originada das assonâncias com
predominância dos sons em /u/ e /o/ criam o ambiente não só do Prelúdio da obra, mas
daquilo que a constitui substantivamente: a reflexão sobre o vazio, a morte, a violência.
Palavras finais
Pelo que se pode apurar até o momento, arrisca-se a dizer que, nos últimos 40 anos, nos
processos de inserção do autor na série literária brasileira, alguns escritores são
escolhidos como paradigmas e, neste pequeno levantamento aqui apresentado,
despontam as figuras de Bandeira e Drummond, ainda que outros sejam citados, como é
o caso de João Cabral de Melo Neto e Mario de Andrade. Com essas escolhas, os novos
autores realizam diálogos teóricos, existenciais e estilísticos com o cânone, e mais, a
crítica ou o mercado editorial, ao lançar um novo escritor, determina como critério de
valor a possível aproximação dos poetas mais jovens com os canônicos. Assim, seja
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pelo interesse do novo escritor pela natureza e a história do Brasil, seja pela junção do
clássico e o popular, o tradicional e o renovador, o tom contido e o exagerado, presentes
nas obras dos escritores referenciados, seja por temas que retomam a já conhecida
inquietação drummondiana, ou a chamada reinvenção do cotidiano de Bandeira,
lugares-comuns das leituras sobre os dois poetas modernos, as aproximações entre
escritores vão sendo realizadas e fazem parte do modo de construir a tradição literária
brasileira.
Pelos exemplos aqui apresentados, as gerações de poetas do final do século XX
e do início do século XXI mantêm diálogo com o cânone por meio de diferentes formas.
Pelo conjunto das obras, principalmente pelo que foi registrado por Heloísa Buarque de
Holanda, os escritores da geração “marginal” mantinham um diálogo mais estreito com
o modernismo de ruptura, ainda que atribuindo a ele “um sentido crítico alegórico mais
circunstancial e independente de comprometimentos com um programa
preestabelecido” (Hollanda, 2007:11).
Para Heloísa Buarque de Holanda, os novos poetas da década de 1970,
[...] voltam-se para o modernismo de 22, cujo desdobramento efetivo ainda
não fora suficientemente perseguido. Nesse sentido, merece atenção a
retomada da contribuição mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a
incorporação poética do coloquial como fator de inovação e ruptura com o
discurso nobre acadêmico. (Hollanda, 2007, p. 11)
A nosso ver, os jovens escritores do século XXI aqui citados não estão à procura de uma
ruptura compulsória, não pretendem nascerem novos, conformando uma espécie de
aliança estratégica com a percepção de Drummond em seu poema “Justificação”,
epígrafe deste texto. Os novos poetas confessam e procuram sua ancestralidade, e mais
parecem preocupados em afirmar formas, temas e críticas que reordenam o cânone, e
talvez por isso Bandeira e Drummond sejam os poetas escolhidos como paradigmas.
Para pensar sobre os efeitos desses diálogos, pode-se recorrer ao que Susana
Scramim e Vinícius Nicastro dizem na abertura de O que é contemporâneo, de
Agambem. Segundo eles, o filósofo considera que “a poesia é sempre retorno, mas um
retorno que é adiamento, retenção e não nostalgia, ou busca de uma origem; é um
caminhar, mas não é um simples marchar para frente, é um passo” (Agambem,
2009:19).
O próprio Agambem para responder à pergunta “De quem é que somos
contemporâneos” indica que:
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Pelo que pudemos perceber, tanto a geração dos chamados “poetas marginais”
quanto esta nova geração do século XXI se dedicam a temas considerados importantes
em nossa literatura, como parece ser o caso da aproximação das formas musicais com as
formas poéticas vistas aqui nos livros de Sérgio Alcides e Bruna Beber. O apreço
musical do poeta pernambucano parece criar descendentes e parece ser a grande herança
dessa geração. A trilha sonora dos poemas aparece na forma de composição, como as
suítes de Alcides, e no trabalho rítmico e melódico desenvolvido por Bruna Beber.
E, por fim, cabe dizer que essas aproximações entre os novos poetas, estes do
século XXI, com autores consagrados precisam ser desveladas seja para compreender
melhor o que significam, seja para romper com leituras redutoras ou sacralizadoras dos
autores eleitos como paradigmas.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
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ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1601
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
A volta à casa paterna é sempre um movimento de retorno às origens. Uns vivem com o
desejo de retornar ao passado, outros se negam a ele, ou hesitam por temer oreencontro.
No entanto,o caminho passa, predominantemente, pela via do imaginado. As autoras
africanas de língua portuguesa procuram fazê-lo estrategicamente no ato de poetizar
pela via da memória. Esta viaestabelece o elo entre o passado e o presente. Assim, a
memória deixa de ser artifício de uma “operação de ordenamento” do mundo, para se
configurar, semelhante à identidade, como lugar de negociação e de reconstrução de
mundos. A nova poesia africana de língua portuguesa, quando utiliza a memória como
um dos recursos de produção, efetua um discurso estético questionador, interpretativo
da história e constrói novas visões sobre o papel dos sujeitos. A poética de Paula
Tavares (Angola) e Conceição Lima (São Tomé e Príncipe) reincide o olhar sobre “a
casa do pai”, a fim de narrar as origens, efetuando uma negociação entre o lembrando e
o esquecido. Este artigo tem por objetivo produzir uma possível leiturados poemas
destas autoras, auxiliada pelas ideias de Jöel Candau, Kwame Anthony Appiah,
Inocência Mata e outros teóricos, com o propósito de verificar como as poetisas
procedem a busca às origens e revela seus desdobramentos na construção de suas
estéticas.
Introdução
Este artigo tem o objetivo desenvolver uma possível leitura de dois poemas:
umde Paula Tavares (Angola) e outro de Conceição Lima (São Tomé e Príncipe),
1601
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de construção de uma identidade cultural aos moldes evidenciados por Candau (2011),
mencionado no início deste artigo.
Compreende-se as literaturas africanas de língua portuguesa comoaquelas que em suas
gêneses trazem o caráter de efetuar estratégias contra o poder e discurso hegemônicos.
Odiferencial da nova poética é que a palavra vem revestida por um rigoroso labor
estético, embora não se isente de ressignificar os fatos históricos, aludir às tensões
socioculturais e evidenciar um novo olhar sobre a história,trazendo para o centro
segmentos sociaisaté entãomarginalizados. Uma nova poética que perscruta e
mobiliza estratégias contra-discursivas que visam a deslegitimização dum
projecto de nação monocolor pensado sob o signo da ideologia nacionalista.
Para reescrever a visão uniformizante de pátria, em que Homem e Natureza
se encontravam vinculados à Pátria, como acordes de uma mesma sinfonia, a
nova literatura opta por representar a alteridade, celebrando as várias raças do
homem; para reescrever a visão eufórica da História dos sujeitos africanos, as
exigências da consciência contrapõem agora uma contra-epopéia política e
social que visa referenciar a transformação dos ideais agónicos. (Mata, 2014,
s/p)
Assim, os escritos de autores/as africanos/as de língua portuguesa operam um
contra-discurso que intenta a mudança no contexto do discurso dominante (e
no âmbito do que tenho vindo a considerar o discurso dominante é a
“literatura consagrada” com nomes emblemáticos que todos conhecemos nos
quatro literaturas) – gerindo as suas potencialidades e as suas limitações
quanto a uma “renovação discursiva” (Mata, 2014, s/p)
Portanto, atessitura poéticacom marca do social étraço peculiar de Paula Tavares e de
Conceição Lima. E nos poemas, percebe-se que a perspectiva individual se desdobra
para o coletivo. Quando o eu poético fala de si também está falando de seu lugar
(morada ou filiação) e dos seus pares;de outro modo, quando eu poéticorevisita seu
passado pela memória afetiva e individual, redimensiona-o a história dos seus
antepassados, delineando origens, evidenciando as tensões que configuraram o processo
de formação das nações angolana ou são-tomense.
1604
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24Lugar de memória:considera-se aquele revestido de uma “aura simbólica”, como “objeto de um ritual”.
(Nora, 1993, p. 21-23)
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Ler o poema, a partir dessa chave de leitura propiciada por Inocência Mata,requer não
descuidar da importância dos elementos intra e extraliterários que o poema carrega.
Atentando para a concretização de uma dicção poética que demanda uma leitura da
história que se ajusta ao que Appiah evoca: a de estar “acostumado a ver o mundo como
uma rede de pontos de parentesco”. (Appiah, 1997, p. 11), “Canto obscuro às raízes” vai
pontuando, em sua extensão, a linha de parentesco que o eu poético quer privilegiar para
a composição de sua história.
Por razões de extensão e pelotempo exíguo para detalhá-lo nesta comunicação,
destaca-se apenas aquelas passagens poéticas que remetem a construção imaginária das
origens do eu poético e da afirmação de sua identidade. O eu poético vaigradativamente
tomando a dimensão deum eu biográfico, cuja identidade “móvel”, “instável” vai sendo
negociada pela carência de conhecimento das origens e pela dúvida. Assim, expande o
mosaico das possíveis filiações na construção de sua identidade como “filha da terra”,
herdeira da “inexorável”presença do avô.
Canto obscuro às raízes
Em Libreville
Não descobri a aldeia do meu primeiro avô.
25 Alexander Murray Palmer Haley, escritor estadunidense que escreveu “Roots: the saga of an
americanfamily” (1976) onde relata os feitos da escravidão.
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26Segundo Hamilton G Russel, “micondó é espécie nativa de São Tomé e Príncipe, do baobá, encontrada
em grande parte da África ao Sul do Saara. (...) Para muitos é uma árvore simbólica, mítica e mesmo
sagrada” (Russel, 2006, p. 257). Inocência Mata (2010) também reforça esse sentido simbólico e
argumenta que o micondó (imbondeiro, baobá) semantiza “a capacidade de resistência, de persistência,
de vivificação”. Desse modo, ela vai além e afirma: “Assim, pela remissão metafórica à “civilização
insular”, tal como o micondó dispersa as suas raízes pelas profundezas da terra, também a África
disseminou, de forma dolorosa, os seus filhos pelo mundo, sendo as ilhas de São Tomé e Príncipe uma
evidência desse destino diaspórico do continente. ” (Mata, 2010, p. 160).
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sua função primordial: plantar a grande raiz, mas em seguida, com “olhos de horror”
partemlevando a força da “verdade” e “das palavras”.
Os velhos griots que na íris da dor
plantaram a raiz do micondó
partiram
levando nos olhos o horror
e a luz da sua verdade e das suas palavras.
(Lima, 2012, p. 14)
A memória que percorre o poema dá lugar a ambiência de tensão e medo, quando o eu
lírico se revela “encolhido nas vielas”. Nesse estado de “medo adolescente”, só resta o
desejo de beber a seiva da grande raiz do micondó, disseminada metaforicamente no
espaço da oralidade são-tomense, que tem no âmago a herança deixada pelos griots: a
palavra fio tradutor em seu largo leito.
E no rasto do tam-tam revelarei
o medo adolescente encolhido nas vielas
beberei da planta no teu grão.
(Lima, 2012, p. 16)
Essa “internalização do olhar”nos poemas de Conceição Lima que Inocência Mata situa
como atualizadora de um “desencanto político-social” (Mata, 2010, p. 150), também
influencia outro modo de olhar: a “desmitificação de ‘memórias históricas’ fixadas na
poesia anterior, anticolonial e colonial” (Mata, 2010, p. 150) de São Tomé e Príncipe.
Pensando o poema em estudo por esse prisma, o olhar internalizado se realiza
explicitamente na aderência do estatutoautobiográfico que se prolonga de três formas:
1) na reserva do lugar da memória afetiva que prevalece o canto obscuro às raízes do eu
poético-autoral:
Por isso percorri os becos
as artérias do teu corpo
onde não fenecem arquivos
sim palpita um rijo coração, o rosto vivo
uma penosa oração, a insana gesta
que refunda a mão do meu pai
transgride a lição de minha mãe
e narra as cheias e gravana, os olhos e os medos
as chagas e desterros, a vez e a demora
o riso e os dedos de todos os meus irmãos e irmãs.
(Lima, 2012, p. 15)
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27Segundo o glossário de A dolorosa raiz do micondó (2012), puíta é uma cerimónia investida de funções
curativas e exorcizantes, marcada por um vertiginoso compasso musical e de dança. Originária de
Angola e preservada por gerações sucessivas de serviçais, a puíta organiza-se em terreiros com a
assistência formando um cordão no centro do qual pares de dançarinos vão progredindo, ora afastando-
se ora aproximando-se, até que os corpos se chocam entre estridentes aplausos. ” (Lima, 2012, p 74-75)
28 Conforme conta no Documentário (vídeo) “Eu sou África”, Conceição Lima diz ter na memória uma
visita que fez à casa do avô materno Francisco de Jesus Costa quando menina. Nessa lembrança
sobressai “a figura do homem que saltava a fogueira e expelia fogo pela boca”. O ritual ainda é comum
quando há acontecimento funesto. Segundo a poetisa uma maneira de entende-lo é pensar esse ritual
como “forma de aplacar a ira dos serviçais”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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http://www.mendzimesoso.com/medias/files/le-changement-par-paul-mba-abessole.pdf,
acessado em 30/09/2015.
Appiah, Kwame Anthony. 1997. Na casa de meu pai A África na filosofia da cultura.
(Trad.) Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto.
Candau, Jöel. 2011. Memória e identidade. (Trad.) Maria Letícia Ferreira. São Paulo:
Contexto.
Costa, Haroldo. (19??). Nossas negras raízes. In. Haley, Alex. Negras raízes. São Paulo:
Círculo do livro.
Lima, Conceição. 2012. A dolorosa raiz do micondó. Poesia. São Tomé e Príncipe:
Lexonics.
Nora, Pierre. (1993) “Entre história e memória: a problemática dos lugares.” Revista
Projeto história. São Paulo. Disponível em http://revistas.pucsp.br/index.php/
revph/article/viewFile/12101/8763, acessado em 25/10/2015.
Russel, G Hamilton. 2006. “A dolorosa raiz do micondó: a voz poética intimista, são-
tomense, pan-africanista e globalista de Conceição Lima”. In.Veredas Revista da
Associação Internacional de Lusitanistas. Porto Alegre. p. 253 -265.
Tavares, Paula. 2011. “A casa de meu pai”. In. Amargos como os frutos Poesia reunida.
Rio de Janeiro: Pallas.
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1618
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos, 1619-1638
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1619
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este trabalho se insere, dentro dos estudos da linguagem, na subárea filosofia da
linguagem, tendo como perspectiva de linguagem aquela de vertente radicalmente
pragmática como entendemos ser a de L. Wittgenstein. Tendo essa base teórica como
pano de fundo, nosso objetivo maior é pôr em diálogo dois poetas brasileiros
contemporâneos: Angélica Freitas e Paulo Henriques Britto. Esse diálogo se justifica na
medida em que Freitas e Britto são dois poetas que vêm se destacando no cenário da
poesia brasileira atual. Neste nosso trabalho, limitaremos nossa investigação a uma
aproximação (que pode resultar em afastamentos) de três livros, dos dois poetas,
lançados no mesmo ano de 2012: O útero é do tamanho de um punho, de Freitas,
Formas do nada e A tradução literária, de Britto, este último um livro teórico sobre
tradução de poesia. Entendemos que é difícil falar de resultados em uma pesquisa dessa
natureza; preferimos falar em relatos, confissões como resultado de gestos de
interpretação possíveis das obras de Freitas e Britto. Nesse sentido, levantaremos
hipóteses quanto ao trabalho que ambos fazem com a linguagem nesses tempos pós-
estruturalistas (ou pós-tudo, como diria outro poeta: Augusto de Campos...): uma
produção poética que pode gerar efeitos de sentido daquilo que vamos chamar de drible:
O útero é do tamanho de um punho não é, como poderia parecer, um livro feminista,
assim como Formas do nada não é, como poderia fazer supor, um livro de formas do
nada.
Angélica Freitas fala na língua do i. Angélica Freitas escreve: “uma mulher boa
é uma mulher limpa”. Angélica Freitas conta de mulheres indesejáveis, de “uma mulher
muito feia”.
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diferentes povos). Mas, para Aristóteles, esses sons pronunciados, embora não sejam os
mesmos para os diferentes povos (woman é diferente de femme, que é diferente de
mujer, and so on), são símbolos que correspondem a coisas iguais no mundo – ou seja,
woman, femme, mujer, mulher são símbolos de um mesmo objeto no mundo: A Mulher.
Essa relação entre linguagem e mundo não acaba aí, pois ainda temos o que,
contemporaneamente, chamamos de mente: de acordo com Aristóteles, não só a
referência no mundo é igual para todos os diferentes povos que pronunciam diferentes
sons, mas também as afecções da alma são as mesmas para todos. Isto quer dizer que as
imagens que fazemos dos objetos desse mundo são as mesmas para todos, os
pensamentos que temos dos objetos do mundo são iguais para todos – de modo que, ao
som pronunciado woman, femme, mujer, mulher, todos temos a mesma afecção da alma,
todos temos a mesma imagem, o mesmo pensamento que fazemos do objeto no mundo
Mulher. Ela será igual para todos os que a declaram, para que todos que compõem
proposições com ela.
Em outras palavras, podemos dizer que, se perguntássemos a Aristóteles o que é
necessário para que chamemos algo do mundo real a que corresponde uma imagem em
nossa mente ao som que pronunciamos, como mulher, ele dirá que, como essa imagem
mental é igual para todos, como a afecção da alma dos homens é a mesma, então o som
pronunciado mulher só terá uma interpretação possível.
Qual, Aristóteles? Angélica Freitas pronuncia o som mulher repetidas vezes (e,
em quase nenhuma dessas repetições, o significado parece ser o mesmo):
Uma mulher gorda
Incomoda muita gente
Uma mulher gorda e bêbada
Incomoda muito mais
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que é passível de ser julgado verdadeiro ou falso e, de outro, o que é espúrio – o que não
cabe, o que excede, o que só cabe na poesia – (também) é metafísica.
Declarar que a poética é aquilo que desvirtua, é o descaminho da linguagem, é a
linguagem sem nenhum caráter é supor uma duplicação na linguagem ordinária, é
pressupor uma espessura que não corresponde à fina linguagem, que desafina, que não
se afina.
Citar um poema e depois afirmar: “Quer dizer, isso é poesia, não é?” como se ali
pudesse, como se só ali fosse possível pular no vazio, é apostar numa fissura, é operar
uma fissura abstrata, posto que o uso da linguagem é sempre uma aposta, um pulo no
vazio.
A poesia tem lugar cativo nos textos de linguística; a poesia tem o honroso
direito de figurar nas epígrafes – Fernando Pessoa, Drummond, Mário Quintana podem
estar nos textos de linguística, claro, desde que venham logo depois do título, alinhados
à direita, tamanho da fonte 11, em itálico. A poesia só pode vir antes de se chegar ao
que é sério, ao que é passível de ser verdadeiro ou falso.
Mas e se as frases declarativas têm o mesmo status da poesia e da retórica? E se
as frases declarativas são linguagem, tanto quanto a poesia é linguagem? Então, a poesia
deve ser nosso objeto de análise – ela é nosso ganho cognitivo, ela não é exceção de
outra suposta “linguagem-regra”. Assim, deveria ser possível investigar a poética de
Angélica Freitas pelos olhos da lógica aristotélica – ou mostrar que a lógica aristotélica
não cabe à linguagem humana.
Diz Aristóteles que “Se o Sócrates é Sócrates e homem, também ele é Sócrates-
homem, e se é homem e dípode, também é ele homem-dípode” (Da interpretação,
21a1). Sim, Aristóteles nos legou também uma semântica lógica que subsiste em teorias
linguísticas contemporâneas. Uma semântica lógica de traços que estabelece o que as
coisas são; por exemplo, o que é um homem: dípode, animal, social etc. A semântica
formal quer isolar o que é meramente acidental e definir os nomes por aquilo que, no
jargão aristotélico, subsiste.
O que subsiste numa mulher? Um útero? Um útero que é do tamanho de um
punho? A mulher é uma Mulher-útero? Afinal, pergunta Angélica Freitas: “para que
serve um útero quando não se fazem filhos / para quê / piri qui” (Freitas, 2012a:59) –
lembre-se de que Angélica Freitas fala na língua do i. Então: piri qui serve uma mulher-
útero se ela não usa seu útero? O que subsiste? Dípode, animal, social...
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afastamento) entre seus postulados (um tanto polêmicos) por uma objetividade na crítica
tradutória e sua própria prática como autor, a do poeta Paulo Henriques Britto.
Em 2012, Britto lançou A tradução literária, livro que está no escopo de seu
trabalho como teórico da tradução. No mesmo ano de 2012 foi publicado seu mais
recente livro de poemas, Formas do nada.
A tradução literária começa com uma definição do tema do livro: a tradução
literária é “recriar obras literárias em outros idiomas” (Britto, 2012a:11, grifo nosso),
ou seja, o poeta principia por postular, em seu fazer teórico, uma criação (poética?) na
tradução. O trabalho do tradutor seria então uma práxis que consiste em criar a partir da
criação alheia. Traduzir, em suma, não é uma atividade automática, mas criativa (Britto,
2012a:18-19). Contudo, apesar desse início em que Britto sugere seguir os preceitos
pós-estruturalistas que parecem ser hegemônicos atualmente no campo dos estudos da
tradução, conforme se lê logo a seguir, o tradutor não teme em nadar contra essa maré.
Quero com isso dizer que, uma vez que Britto reivindica a atividade tradutória
como uma criação, então ele poderia estar influenciado por perspectivas pós-
estruturalistas que, desde a década de 1980, vêm embasando muitos estudos da
tradução, reivindicando o texto traduzido como um texto com valor literário próprio
(Britto, 2012a:21). Entretanto, Britto acredita que alguns teóricos têm chegado a
conclusões extremas (Britto, 2012a:21).
Uma dessas conclusões extremas trilha o seguinte caminho: uma vez que foi
mostrado (por autores como Bakhtin, Barthes, Derrida etc.) não haver um texto original,
já que estamos sempre retomando discursos já-ditos, então o autor não é o princípio de
nada. Conclusão extrema: a tradução é um texto tão original quanto o texto traduzido –
ambos são textos sem uma origem. Nas palavras de Britto:
Alguns teóricos da tradução, como Lawrence Venuti e Rosemary Arrojo –
seguindo o caminho aberto por autores como Roland Barthes –, passaram a
abolir tais distinções [entre tradução, adaptação e versão] em favor de uma
noção aberta de “textualidade”, em que autores-tradutores-adaptadores
produzem textos que são apenas textos, com graus variáveis de autonomia e
distinção em relação a outros textos (Britto, 2012a:22).
Não é a primeira vez que Britto se posiciona criticamente a essa vertente dos
estudos da tradução. Ele já havia feito uma crítica direta à tradutora Rosemary Arrojo
pelo menos uma outra vez, no artigo “Desconstruir pra quê?” (Britto, 2001). Naquela
ocasião, como neste A tradução literária, Britto parece entender, como teórico da
tradução, o passo dado por (por exemplo) Roland Barthes, aquele que decretou a morte
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do autor em favor de uma escritura sem corpo, sem origem, uma escritura que nasce à
medida que o leitor mata o autor, como um passo em falso. Segundo Britto, foi um
passo em falso porque esse pressuposto acaba por operar uma igualação de todos os
textos – e, como uma de suas consequências, produz uma falta de sentido em se falar em
fidelidade à obra quando se trata de tradução. Assim, alguns tradutores se viram no
direito de manipular o texto traduzido (Britto cita como exemplo um grupo de
tradutoras feministas de Quebec que alteram, propositalmente, traduções com a
finalidade de denunciar o machismo presente em alguns textos (Britto, 2012a:24)).
Outra das consequências em se igualar todos os textos é exemplificada, de novo,
na figura da tradutora Rosemary Arrojo. De acordo com Britto, Arrojo, em seu artigo
“A que são fiéis tradutores e críticos de tradução? Paulo Vizioli e Nelson Ascher
discutem John Donne”, acaba por defender o seguinte: como não nos é franqueada uma
objetividade absoluta para valorar traduções, então o que temos é a subjetividade
absoluta para julgar o trabalho tradutório. Dessa maneira, alguns preferirão uma
tradução, enquanto outros preferirão outra. Britto, ao contrário de Arrojo, crê que as
traduções devem ser valoradas:
As posições radicais de alguns teóricos, que causam frisson nos congressos
acadêmicos, se aplicadas ao trabalho prático da tradução literária, levariam a
imensa maioria dos leitores a rejeitar as traduções feitas com base nelas
(Britto,2012a:27).
As posições de Britto também causam frisson nos congressos acadêmicos –
porque vão radicalmente contra os preceitos pós-estruturalistas que tomaram de assalto
o campo dos estudos da tradução, da literatura, de algumas linguísticas etc. O ponto
defendido pelo tradutor Britto é que há um fosso enorme entre a teoria e a prática
tradutória: se o tradutor seguisse esses postulados teóricos, então ele estaria fazendo
outra coisa que não traduzir um texto de uma língua A para uma língua B.
É interessante ouvir o teórico Britto, pois trata-se de um teórico que conhece o
fazer tradutório – e o fazer poético. Suas teses, assim, são controvertidas para alguns
teóricos da tradução que vão às últimas consequências da tese da não apreensão
essencial de um significado imanente. Britto, sem postular uma essência imanente à
linguagem, defende, no fim das contas, um não ceticismo quanto à sua condição de
possibilidade de existência. Suas teses, atualmente revolucionárias pelo seu
conservadorismo, são assim resumidas por ele:
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Sustento que (a) tradução e criação literária não são a mesma coisa; (b) o
conceito de fidelidade ao original é de importância central na tradução; e que
(c) não só podemos como devemos avaliar criticamente traduções com um
certo grau de objetividade (Britto, 2012a :28).
Britto, então, convoca o pensamento de L. Wittgenstein para fundamentar as
questões envolvidas no fazer tradutório, suas regras, como num jogo de linguagem: o
jogo da tradução (Britto, 2012a:28). Com isso ele pretende, em suas próprias palavras,
não tratar o sentido a partir de uma perspectiva essencialista de linguagem. Ao
contrário, ele quer mostrar que a tradução, como uma prática social que é, só existe
historicamente, em dada sociedade: numa forma de vida sociocultural. A tradução é
uma prática, um jogo cujas regras são fixadas intersubjetivamente. Nossa comunidade
linguística acabou por convencionar chamar esse jogo de tradução. No futuro o que vai
responder pelo nome “tradução” será, provavelmente, outro tipo de prática – da mesma
forma que, no passado, o que respondia pelo nome “tradução” era uma prática diferente
da que é efetuada hoje. Afinal, as regras dos jogos mudam. Porém, afirmaria Britto, hoje
o jogo deve ser jogado assim: [...]
Em suma, Britto traz a visão wittgensteiniana de linguagem de modo a mostrar
oposição a ideias correntes nos estudos da tradução que ele considera absurdas: (i) a
ideia de que o julgamento da qualidade de uma tradução não pode ter qualquer
objetividade (restando, apenas, uma opinião completamente subjetiva neste juízo); (ii)
“a ideia de que a distinção entre original e tradução é um mero preconceito ocidental”
(Britto, 2012a:33).
Britto acha necessário fazer essa oposição de modo explícito uma vez que suas
premissas vão de encontro ao ideário de alguns dos principais nomes atuais dos estudos
da tradução – dentre eles os já citados Venuti e Arrojo (Britto, 2012a:33). Para ilustrar
sua tese, Britto lembra o fato de que uma tradução que se confunde com o próprio
original é um caso notável, excepcional – e é justamente o fato de essa tradução se
mostrar notável, excepcional que a torna uma exceção à regra. Aqui também Britto se
vale da perspectiva wittgensteiniana de linguagem para ilustrar como os limites entre
conceitos são flexíveis – e tal flexibilidade permite, vez ou outra, que haja semelhanças
em alguns pontos que fazem com que conceitos se mesclem.
O tradutor começa, assim, uma discussão sobre o que conta como o mesmo
poema para se dizer que há uma tradução ou não (que resulte no mesmo poema em outra
língua). Nos termos de Britto, se ele fizer uma tradução de um poema de Wallace
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Stevens, não se pode dizer, em termos absolutos, que se trata do mesmo poema; não
obstante, em um sentido relativo, sua tradução é o poema de Stevens (Britto, 2012a:36).
Seguindo a linha teórica proposta pelo próprio autor, vou me valer de certa
terminologia wittgensteiniana e afirmar que há aí uma espécie de identidade não
essencial: uma identidade por semelhança de família entre esses poemas. Quer isso
dizer que, em nossa forma de vida sociocultural, reconhecemos que existe uma prática a
qual chamamos tradução de poemas, em que um mesmo poema em uma língua A é tido
por nós como o mesmo poema em uma língua B – o mesmo poema não no sentido
quantitativo, em que posso dizer que eu e meu irmão temos o mesmo (único) carro, mas
no sentido qualitativo, em que posso dizer que eu e meu vizinho temos o mesmo carro
(da marca Volks). Afinal de contas, a expressão o mesmo, como qualquer expressão
linguística, não pode ser entendida aprioristicamente, mas em uma situação de uso.
Assim, em dada situação de uso, a expressão o mesmo pode significar que eu e meu
irmão temos o mesmo livro de poemas (o mesmo exemplar do livro Formas do nada) e,
em outra situação de uso, o mesmo pode significar que eu e meu irmão temos o mesmo
poema de Wallace Stevens (ele, no original, “The Emperor of Ice Cream”, eu, uma
tradução, “O Imperador do sorvete”, feita pelo tradutor Paulo Henriques Britto). A
conclusão do teórico da tradução Britto é no sentido de que
Ainda que concordemos que nenhuma obra é inteiramente original, e que não
há uma linha de demarcação absolutamente inviolável entre originais e
traduções […], isso não nos permite dizer que não há nenhuma
impossibilidade de estabelecer qualquer demarcação (Britto, 2012a:36).
Como o tradutor reconhece, ainda que haja textos que estão em uma situação
intermediária, entre o original e a tradução, há, em nossa forma de vida, obras que
chamamos de tradução. Pode-se dizer que é nesse espírito que encontramos, dentre os
jogos de linguagem possíveis elencados por Wittgenstein no seu notório parágrafo 23
das Investigações Filosóficas,30 “traduzir de uma língua para outra” (IF § 23). Também
pode-se dizer que é nesse espírito que Britto chega mesmo a, digamos assim, entender a
tradução como uma questão de princípios: ele estabelece que o (dito) tradutor que altera
propositalmente o original age de modo antiético (Britto, 2012a:37-38). Isso porque a
função do tradutor deve ser proporcionar a leitura de um texto a um leitor que não
conhece a língua na qual o original foi escrito. Se o (suposto) tradutor intervém no
original, então ele não pode se passar como tradutor – ele está enganando o leitor.
30 Doravante IF.
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E não é só: o poeta, tradutor, teórico da tradução Britto condena como antiéticas
tanto a posição dos tradutores como a dos estudiosos da tradução que defendem esse
tipo de prática tradutória, posto que estão ratificando a falta de ética desses tradutores.
Interesso-me aqui pela denúncia de Britto a essa espécie de ceticismo – tanto linguístico
quanto epistemológico. Entendo que Britto flagra nesses teóricos da tradução o mesmo
movimento que correntes céticas cumpriram ao longo de nossa tradição ocidental: nas
palavras de Britto, os argumentos de Arrojo são do tipo “ou tudo ou nada” (Britto,
2012a:39) – ou bem deveríamos ter uma objetividade absoluta para julgar traduções, ou
bem só temos subjetividades duvidosas. Esse movimento percebido por Britto é curioso
por mostrar que algumas visões radicalmente pragmáticas de linguagem, como é o
desconstrucionismo de Arrojo, acabam por repetir, paradoxalmente, a dicotomia de
visões radicalmente essencialistas de linguagem ao recusarem critérios que não
cumprem uma objetividade metafísica – e concluindo, então, que não há critério algum,
dada a (suposta) inutilidade de critérios flexíveis. A conclusão cética pela falta de
critério decorre de que, como apontava Wittgenstein, o ceticismo é a outra face do
essencialismo – isto é: o cético afirma a inexistência de critério porque quer um critério
absoluto. Contudo, wittgensteinianamente podemos dizer que o fato de não nos ser
franqueado um critério absoluto não implica na completa ausência de critério. Isso,
como defende o tradutor Britto, também é verdade no que tange à prática tradutória.
Quero aqui ressaltar que a escolha vocabular de Britto para defender este ponto
de vista um tanto polêmico é, igualmente, polêmica: ele fala em objetividade (o que
arrepia desconstrucionistas); ele fala em relativismo (o que apavora objetivistas).
Opondo-se à exigência por julgamentos absolutos, Britto oferece julgamentos relativos
(Britto, 2012a:40).
Wittgensteinianamente, entendo que seria mais exato (e a questão da exatidão
voltará daqui pouco) o poeta falar em critérios pragmáticos em vez de relativos:
critérios que não têm um fundamento em si mesmos, mas que têm um fundamento
contingente ao movimento de reconhecimento do que seja a prática tradutória em
determinada comunidade linguística. Critérios que não têm um fundamento absoluto,
mas que têm um fundamento antropológico: a vagueza constitutiva da linguagem ganha
determinação numa forma de vida.
De qualquer modo, entendendo esses critérios como relativos ou pragmáticos, o
fato é que Britto não se exime dessa que é uma das muitas tarefas do tradutor: julgar a
qualidade das traduções (pois, citando o teórico da tradução André Lefevere, só quem
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
não precisa de traduções, uma vez que pode ter contato direto com o original, pode
criticar traduções (Britto, 2012a:40)). Britto renuncia a um suposto cientificismo nos
estudos da tradução, cientificismo esse que se atém à descrição e condena a prescrição.
Quer dizer: é claro que a ciência deve descrever, e não prescrever – do mesmo modo
que está claro que é absurda a ideia de que haja uma tradução correta frente a todas as
demais possíveis, incorretas. O ponto defendido por Britto, entretanto, é que a tradução
não é como a linguagem natural que a linguística vai descrever (e não ditar normas
sobre) (Britto, 2012a:41-42).
Porém, ao mesmo tempo que defende a valoração de traduções, Britto condena
os críticos de suplementos literários que, ao resenharem uma obra traduzida, limitam-se,
quanto ao julgamento do trabalho tradutório, a procurar, detetivescamente, erros de
tradução como se fossem troféus conquistados às custas da (desejada) humilhação do
tradutor. Britto não economiza artilharia para acusar a incompetência destes na tarefa de
criticar traduções (Britto, 2012a:43). Sua crítica só não é mais feroz porque o pior – o
inadmissível, o estarrecedor – é que na Academia, onde não se espera menos do que um
conhecimento profundo da matéria (no caso, dos estudos da tradução), acabe-se por
admitir qualquer prática tradutória como aceitável devido a uma suposta falta de critério
avaliador.
Essa radicalidade também comparece na crença de que uma tradução ou bem é
absolutamente perfeita (isto é, uma tradução que contemple absolutamente todas as
demandas do original), ou bem é um fracasso. No entanto, Britto mostra como essa
exigência por uma perfeição idealizada está para além da própria língua. É absurdo
exigir uma precisão, uma perfeição que não são prerrogativas da linguagem humana –
porque, nas palavras de Wittgenstein, o jogo de linguagem “não é razoável (ou
irrazoável). Está aí – tal como a nossa vida” (Da certeza § 559). E nas palavras de
Britto, na atividade da tradução “devemos […] aprender a conviver com o imperfeito e
o incompleto” (Britto, 2012a:44).
(De novo) wittgensteinianamente entendo que seria mais exato dizer que a
imperfeição e a incompletude só podem ser definidas num jogo de linguagem. Entendê-
las de antemão de forma ideal é uma concepção metafísica de linguagem segundo a qual
há uma perfeição e uma completude absolutas.
Wittgenstein faz uma analogia dessa exigência por uma perfeição, uma exatidão
com o exemplo da medida um passo: essa medida pode ser tão útil, ou inútil, quanto a
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
medida exata “um passo é igual a 75 cm”. Conclusão: a exatidão é perspectivada; não
há apenas um ideal de exatidão:
“Inexato” é propriamente uma repreensão e “exato”, um elogio. E isto
significa: o inexato não alcança seu objetivo tão perfeitamente como o mais
exato. Isto depende daquilo que chamamos de “objetivo”. É inexato se eu não
indicar a distância que nos separa do sol até exatamente 1 m? E se não indicar
ao marceneiro a largura da mesa até 0,001 mm?
Um ideal de exatidão não está previsto; não sabemos o que nos devemos
representar por isso – a menos que você mesmo estabeleça o que deve ser
assim chamado. Mas ser-lhe-á difícil encontrar tal determinação; uma que o
satisfaça (IF § 88).
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
ipsum termina com um terceto, sendo o dístico em itálico: “Tudo resulta apenas neste
dístico: / Ninguém busca a dor, e sim seu oposto, / e todo consolo é metalinguístico”
(Britto, 2012a:11).
Um lorem ipsum é um lorem ipsum: seu fim é a forma. Um soneto perfeito: o
poeta, wittgensteinianamente, consola com palavras exatas, precisas, objetivas,
relativas, perspectivas – perspectivas metalinguísticas.
Angélica Freitas e Paulo Henriques Britto são dois poetas que têm se destacado
no cenário da poesia brasileira contemporânea. De gerações diferentes, Britto foi
agraciado em 2004 com o Premio Portugal Telecom pelo seu “Macau”, quando tinha
então 53 anos. A gaúcha Freitas é de 1973, e O útero é do tamanho de um punho,
finalista do mesmo prestigiado Prêmio Portugal Telecom no ano de 2013, é seu segundo
livro de poesia.
O útero é do tamanho de um punho, de Freitas, e Formas do nada, de Britto,
dialogam em sua genialidade própria – no universo do próprio poeta, seu modo de usar
a linguagem, sua forma de vida. Freitas esbanja espontaneidade; Britto mostra certa
preferência pela objetividade do rigor técnico.
Espontaneidade e ironia, pode-se dizer, são marcas de Angélica Freitas desde
seu primeiro livro, Rilke Shake. Talvez a ironia seja seu maior traço, a grande
recorrência em seu fazer poético – está presente nos títulos dos volumes, dos poemas,
nos poemas, em suas escolhas lexicais. Mesmo quando Freitas parece fazer de algo
muito sério, isso não acontece sem um sorriso no canto dos lábios – que se reflete em
um sorriso nosso, em nossos lábios.
“Um útero é do tamanho de um útero fechado” é uma descrição médica. Porém,
nas letras de Freitas, a insipidez da medicina respira. Se os poemas vão contando de
mulheres e se o leitor para, abaixa o livro, respira fundo e pensa: “Ah, nada mais é do
que um livro feminista”, provavelmente ele está de mau humor. Não quero com isso
afirmar que Freitas não narra, em sua poeticidade, mulheres; que ela não escreve, de
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
uma forma crítica, a nossa cultura gendrada. Todavia, reduzir O útero... a uma “poesia
de mulheres” (claro, de uma maneira que já é perniciosa) é, no mínimo, pouco.
Se conteúdo e forma são indissociáveis, a forma de Freitas conversa seu
conteúdo – sua linguagem é a linguagem ordinária (até porque pensar em outra é ver a
linguagem metafisicamente). Sua sintaxe não faz firulas, como suas mulheres não fazem
rodeios: são essas mulheres – qualquer uma, nenhuma, são mulheres comuns (porque
pensar em mulheres extraordinárias é ver a mulher metafisicamente idealizada).
As mulheres de Freitas são divertidos personagens, e ácidos remédios para
qualquer espécie de tédio, seja físico, seja moral. São personagens vivas, das vidas,
personagens encontramos por aí, como a própria Angélica Freitas: “Diz-me com quem
te deitas, Angélica Freitas” (Freitas, 2012a:69). Além disso, lembre-se de que Angélica
Freitas fala na língua do i
Paulo Henriques Britto, como já disse, busca explicitamente uma objetividade
tanto em sua prática tradutória quanto em seu trabalho poético. Esse primor à exatidão,
também como já destaquei, aproveitando-me do pressuposto teórico do próprio poeta,
pode ser aproximado à ideia de exatidão conforme pensada por Wittgenstein, quer dizer,
uma exatidão perspectivada, porque não absoluta. Resultado disso é que, da perspectiva
de nossa forma de vida, podemos dizer que os poemas de Britto são exatos: palavras
exatas, métrica matemática, rima cantada, ritmo, ritmo, ritmo, ritmo.
Da linguagem ordinária (porque não temos outra) Britto pinça uma palavra aqui
para combinar (exatamente) com aquela ali. Resultado disso são poemas
extraordinários. Formas do nada é – posto que forma e conteúdo não se desvencilham.
Entendo a composição dos poemas de Britto como primorosas pinturas –
figurativas. A disposição de suas palavras são como a disposição das cores e das formas
de uma pintura figurativa – formas e cores de uma pintura figurativa que, só nos
interessam, porque são exatas, abstratas.
Freitas e Britto nos driblam: Um útero é do tamanho de um punho resiste a um
rótulo feminista; Formas do nada dá status ontológico ao nada. Um não é livro
feminista, outro não é nada – são poesias.
Daí encontrarmos ao menos uma regularidade em ambos: o trabalho, digamos,
metalinguístico – marca, claro está, recorrente em toda a história da arte poética, mas
que, contemporaneamente, parece ganhar especial relevo entre os autores. Assim,
nossos poetas Freitas e Britto parecem problematizar repetidamente o próprio fazer
poético. Os poetas pensam a linguagem – não se trata, então, de (meramente) coletar
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
cotidianos. Wittgenstein então propõe trazer de volta as palavras da metafísica para seu
emprego cotidiano – de modo que, no uso, saberemos o que é ser, verdade, tempo.
Clarificar um conceito é, de acordo com Wittgenstein, recuperar sua gramática.
Não devemos aqui entender essa gramática como normativa, muito menos
gerativa – na perspectiva de linguagem wittgensteiniana, trata-se de investigar a
gramática de uso das expressões linguísticas. É assim que devemos entender a forma
provocativa com que Wittgenstein afirma em um de seus polêmicos aforismos: “A
essência está expressa na gramática” (IF § 371).
A essência expressa na gramática é expressa no uso – inessencial. A gramática
de uso se constitui na própria engrenagem do uso da linguagem. Logo, a essência da
gramática não é algo absoluto, eterno, imutável – caso se queira saber o significado de
um conceito, deve-se observar como ele é usado nos mais diversos jogos em uma forma
de vida.
Em nossa forma de vida, linguagem poética, realmente, tem um estatuto
essencialmente diferente de linguagem comum, ordinária. No entanto, essa diferença
não é metafísica ou transcendental; essa diferença se dá em nossas práticas
socioculturais. Na prática, intersubjetivamente, damos identidade ao poético e ao
ordinário. Uma identidade que vagueia pelas contingências de nossas práticas
linguísticas. Essa identidade contingente também tem poder valorativo: à medida que
separamos o que uma coisa quer dizer, que é diferente de outra, também dizemos que
aquilo a que chamamos A tem uma importância x, diferente da importância que tem
aquilo a que chamamos B.
E então olhamos e vemos que, em nossa forma de vida, o poético é aquilo que
identificamos como mais elevado, sublime, algo que supera o ordinário, o comum, o
corriqueiro. Aquilo a que chamamos poesia, em nossa forma de vida sociocultural, é
uma espécie de êxtase: se dissermos “Isso é um poema”, “Isso é poesia”, então dizemos
“Isso é arte”.
É nesse sentido que dizemos que Freitas e Britto são dois poetas brasileiros
contemporâneos – seus escritos transcendem o comum. Artistas das palavras, os poetas,
mesmo os mais “objetivistas”, “figurativistas”, só são poetas porque cuidam da forma –
na medida em que forma e conteúdo são indesgrudáveis. Freitas e Britto, pintores de
palavras, conhecem tão bem a linguagem comum que nos oferecem o sublime a partir
do ordinário.
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Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
Porque a linguagem que temos é esta que está já diante de nossos olhos. É claro
que, aqui, pode-se notar um nó no pensamento de Wittgenstein, pois, ao mesmo tempo
que ele afirma que a linguagem ordinária vai bem como está (posto que a linguagem
lógica não existe; trata-se apenas de um desejo dos lógicos por uma linguagem que
cumprisse um rigor, mas que, na realidade, não é sua prerrogativa), sustenta que ela
enfeitiça os filósofos – maiores vítimas de seus encantos, de seu canto de sereia.
Eis o paradoxo wittgensteiniano: a linguagem não precisa de reparos; não há que
se fazer qualquer análise lógica a fim de se descobrir alguma linguagem lógica
subjacente à linguagem comum. Contudo, é preciso ficar atento aos desmandos
enfeitiçadores da linguagem ordinária.
E é desse paradoxo, dessa ambivalência da própria linguagem comum que
identificamos os poetas Freitas e Britto. Freitas e Britto sabem enfeitiçar com seu canto
de sereia, com a linguagem ordinária; então, parece haver uma linguagem outra,
incomum, melhor, sublime, do tamanho que deve ser, exatamente perfeita.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Da interpretação. Tradução: José Veríssimo Teixeira da Mata. 1. ed.
São Paulo: Editora Unesp, 2013.
ARROJO, R. A que são fiéis tradutores e críticos de tradução? Paulo Vizioli e Nelson
Ascher discutem John Donne. In: ______. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio
de Janeiro: Imago, 1993.
BARTHES, Roland. O Rumor da língua. Tradução: António Gonçalves. Lisboa: Ed. 70,
1987.
______. Formas do nada. 1a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012b.
1637
Simpósio 19 - Escritas poéticas em língua portuguesa: diálogos críticos
______. Investigações filosóficas. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo: Abril
Cultural, 1975. (Coleção Os Pensadores).
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SIMPÓSIO 24
LITERATURA, HISTÓRIA E IMAGINÁRIO DO BRASIL
COLONIAL: ESCRITAS E REPRESENTAÇÕES
COORDENADORES
RESUMO
O lançamento, em 1989, do livro A sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen, trouxe
inúmeras contribuições para a compreensão do denominado período barroco da
literatura brasileira. Repensando as categorias que norteavam as descrições desse
tempo, bem como comparando as obras entre si mesmas, e ainda atrelando a isso uma
profunda leitura de documentos da época, Hansen pode reestabelecer como a
“literatura” da época deveria ser pensada por categorias diversas das até então usadas
como parâmetros, geralmente oriundas da obra de Heinrich Wölfflin. Segundo essa
nova leitura, os paradigmas tanto de matiz romântica, quanto os de matiz neokantiana
(caso de Wölfflin) seriam anacrônicas. Depois de reposicionar o nome de Gregório de
Matos no seu próprio tempo, Hansen desencadeia uma vertente analítica que seria
seguida em muitos passos por uma série de pensadores de calibre; esta vertente seria
mote para leituras de outros autores, como o Padre Antonio Vieira, ou a poesia aguda de
Portugal. Nosso artigo tentar rever os passos de A sátira e o engenho, pensando-a a
partir de outras leituras (especialmente românticas), e contemporâneas ao autor.
ESTADO DA QUESTÃO
1 Instituto Superior de Ciências Policiais (ISCP). CSB 03 Lote 03 Ap. 109, CEP: 72015-535, Taguatinga-
DF, Brasil. E-mail: jchilst@yahoo.com.br
1641
Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
eruditos ensaios de René Wellek. Inútil lembrar os esforços, algo, talvez, vãos, dessa
tentativa, e o termo, ainda flutuante, poderia facilmente ser cooptado como uma das
cláusulas aristotélicas de exclusão da ciência.
Até a década de 70 isso ainda era palpável nos estudos de literatura, quando o
assunto despertou renovado vigor a partir de A cultura do Barroco, de José Antonio
Maravall, publicado em 1975 na Espanha. Maravall se propunha dar mais consistência à
abrangência que o barroco sustentava. Alguns daqueles autores que citamos concebiam
o barroco como uma espécie de constante histórica a voltar tão logo seu Outro, o
Clássico, se tornasse um hiato. Quanto ao livro, no entanto, havia nele uma grave falta,
identificada por Adma Muhana no momento de seu lançamento no Brasil. Para ela,
houve, no estudo, uma “subordinação inconteste dos textos poéticos e das artes a uma
superordenação econômico-social” (1998: 53). Por isso mesmo, o livro não deixou de
despertar em muitos leitores a sensação de derrotismo frente ao conceito e a impressão
de vacuidade em face da abrangência estética supostamente alçada pela nominalização
do período compreendido entre os anos de 1600 e 1750, datas arbitrárias, claro, mesmo
que elas supusessem alguma coerência histórica.
Quando João Adolfo Hansen escreveu sua tese de doutorado, intitulada “A sátira
e o engenho (um estudo da poesia barroca atribuída a Gregório de Matos e Guerra,
Bahia 1682-1694)”, defendida, como se sabe, em dezembro de 1988, o quadro
epistemológico geral em torno das artes e das poéticas do seis e do setecentos não havia
sofrido nenhuma alteração drástica. Pelo menos é o que nos dá conta a historiografia das
últimas cinco ou seis décadas. A pensar nas muitas exegeses da obra gregoriana –
mesmo ela, recolhida com muita dificuldade em Códices errantes da Bahia e do Rio de
Janeiro, e dispersos Brasil e mundo afora – e desde a biografia escrita pelo Licenciado
Manuel Pereira Rabelo, no século XVIII, passando pelos românticos e contemporâneos,
Gregório de Matos sempre foi considerado uma persona envolvida em um drama, isto
em vista de sua variada obra: pouco se sabia de sua vida, e, de seus poemas, ainda não
havia uma sistematização que lhes pudesse dar a devida dimensão.
Desde então, as coisas já não são assim. Armado, à época, de um arsenal
incomum de erudição, e defendendo uma ideia às expensas da contrariedade, porque
completamente fora do senso comum, Hansen embarcou fria e solitariamente em um
barco, ébrio, num rio sabidamente mais ácido que a doçura daqueles engenhos. Embora
sua erudição realmente espantasse qualquer espécie de frivolidade que envolvesse o
assunto, a tese não deixou de despertar controvérsias na Esfera Pública, especialmente
1642
Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
2 Até onde alcançamos, identificamos o primeiro plano de repensar as letras coloniais na produção de
Hansen no texto “Vieira, estilo do céu, xadrez de estrelas”, publicado em 1978, na Revista de filosofia
Discurso, do Departamento de Filosofia da USP. Neste texto, encontram-se as principais linhas que
contornam e dão forma à hermenêutica de João Adolfo Hansen, no que se refere às Letras Luso-
Brasileiras, e pode ser considerado o ur-text das questões coloniais, com as quais Hansen se moverá até
os dias de hoje, daí sua importância.
1644
Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
seria, por sua vez, a quinta característica presente no ideário da crítica e uma constante
que também ecoará por muito tempo. João Carlos Teixeira Gomes estudou muito
seriamente a questão, em O boca de brasa, redimensionando-a. A par desses excertos,
fica claro o quanto se deve a este acolhimento o decantado gosto que se deu à obra
gregoriana.
No século XX, sucedem-se alguns biografismos levianos, segundo Antonio
Dimas, que dispensam maiores comentários, como o livro de Rossini Tavares de Lima,
Gregório de Matos, o boca do inferno, de 1942. O caldo começa a decantar melhor com
a publicação de Gregório de Matos e Guerra: uma revisão biográfica, de Fernando
Rocha Peres, da qual dispomos de uma cronologia mínima da vida do poeta, baseada na
revisão e no estudo de documentos da Colônia. Poucas obras, porém, reclamarão tanta
discussão quanto Formação da literatura brasileira. A tese central do livro, bastante
conhecida, seria aceita por muitos estudiosos. Exposta com muita elegância, ela indica
que nas obras anteriores à data arbitrária de 1750, sociologicamente, não se veria a
conjugação do termo literatura, congruente nos termos autor, obras e público. Anterior
a isso, teríamos obras inscritas como “manifestações literárias”. Antonio Candido
conjectura a hipótese de que, como só foi publicada por Vernhagen décadas depois da
morte de Gregório de Matos, já no romantismo, como dissemos, o poeta não teria
influído literariamente no seu ambiente, por isso, o paradigma de Candido não o pôde
conter.
Posteriormente, dúvidas seriam postas sobre alguns detalhes do livro,
especialmente no caso de Antonio Vieira e Gregório de Matos. Foi um ex-orientando de
Candido quem lhe apôs a tese até então mais séria a respeito disso. Haroldo de Campos,
armado do arsenal da Desconstrução derridiana, e apoiado em traços igualmente fortes
da semiótica moderna (especialmente Jakobson) e em Nietzsche, opera uma leitura
descentralizadora, rejeitando justamente o logus e a ideologia substancialista impressos
no texto de Candido. O ensaio de Campos foi publicado no mesmo ano que o de
Hansen. Mas levaria sete anos até que Campos aportasse algumas críticas ao livro de
Hansen na esfera pública brasileira.
Tautologicamente, é claro, história é história. No entanto, em todos os casos,
talvez tivéssemos melhor ancoragem crítica caso dispuséssemos, publicados sob
modernos critérios filológicos, do corpus literário destes séculos iniciais, infelizmente,
dispensado em quase todos os casos aqui mencionados. É o que perpassa a tese do
professor Marcello Moreira, ao estudar alternativas viáveis de edições críticas ao corpus
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
poético de Gregório de Matos, problema enunciado por Antonio Houaiss décadas atrás,
e incontornado pelos filólogos. Nos exemplos dados por Marcello Moreira, ex-
orientando de doutorado de Hansen, demonstra-se como as recentes propostas de edição
conformam um tipo de leitura, que acabará se estendendo por todas as edições que se
sucedem a ela. Daí que o aparato por que se move Moreira se resvale em seguros
tópicos motivados pela Estética da Recepção, especialmente em Hans Robert Jauss. É
importante lembrar que a iniciativa de Moreira encerra-se nos mesmos termos de
reavaliação das obras desse tempo. Por isso, o longo texto de Hansen como prefácio ao
livro de Marcello Moreira indicar com imensa profusão de nomes as mesmas tábuas de
salvação na leitura de Gregório de Matos. “A questão da autoria dos poemas é
radicalmente alterada, porém, quando se examina a materialidade mesma dos códices”
(HANSEN, 2001: 32)3. Hansen argui a respeito das manobras e tentativas de
materialização de edições críticas, até então, inviáveis, por fatores que não cabem no
espaço deste ensaio.
Claro, argumenta Moreira, as intenções e escolhas interpretativas dos
organizadores influiriam nas leituras posteriores. “A introdução dos poemas no interior
do códice promove parcialmente sua ressemantização” (1989: 88). Está claro também
não ser apenas a expansão crítica romântica a proceder em uma atualização
retrospectiva, antes, a própria condição dos poemas seria já a causa de releituras ou de
ressemantizações a posteriori. São muito consequentes as perguntas feitas por Marcello
Moreira em seu texto:
medeiam décadas entre as épocas em que viveu o suposto autor do corpus,
hoje enfeixado sob o seu nome, e a época em que a maioria dos códices foi
produzida. Como não restam manuscritos autógrafos de Gregório de Matos e
Guerra, temos apenas manuscritos apógrafos produzidos por letrados locais,
sobretudo ao longo do século XVIII. Como ponderar criticamente distância
que separa o poeta a quem é atribuído o corpus que leva o seu nome e que foi
produzido por outrem, décadas após sua morte, dos artefatos bibliográficos-
textuais que constituem a tradição? (1989: 88).
Hansen, em A sátira e o engenho, não se questiona a respeito das datações dos
manuscritos utilizados por ele, mas isso não desiste, ou abdica, dos problemas que essa
importante colocação admite; fica claro que Hansen está mediado pelos próprios
paradigmas levantados na sua leitura que estamos enunciando aqui. O trabalho de
3 Note-se que Francisco Topa publicou em 1999 uma edição crítica da obra gregoriana. Marcello Moreira
comenta, no primeiro capítulo de sua tese de doutorado, as decisões que se cercou Topa na composição
e escolha de textos.
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
O livro de João Adolfo Hansen revê todas essas questões no capítulo de entrada,
quando considera “o nome por fazer”, ponderando as recensões e as escolhas estéticas
proferidas nas muitas leituras da obra de Gregório de Matos. Um a um, eles vão
aparecendo para depois serem realocados dinamicamente.
Segundo Hansen, a sátira de Gregório pretende-se “simultaneamente como o
material e o produto de uma intervenção presente” (2004: 32). Como dissemos, a
recepção romântica acabou substancializando o nome, e Hansen enfatiza que, em
Gregório, mesmo dando lastro a uma intervenção presente, seu nome, “no sentido
subjetivado do termo, não tem importância, rigorosamente falando” (2004: 33). Foi
preciso um aggiornamento histórico bastante preciso das condições de produção e
recepção das obras na Colônia, bem como a identificação simultânea das condições
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
históricas que motivaram sua leitura. No ensaio “Razões de Estado”, Hansen afirma:
“Dissolvida a unidade da cristandade, os temas laicos se desatam e simultaneamente
convergem na demanda de um princípio, uma auctoritas” (1996: 135). De fato, o crack
produzido pela Reforma Protestante acabou produzindo nos países católicos um
repensamento das ordens políticas tradicionais, colocando no mesmo patamar tanto
luteranos quanto calvinistas, maquiavelistas, galicanos, tacitistas e anglicanos: em
pouco tempo isso tornou-se uma oposição de “teologias e teologias”. Como o reino de
Portugal e a Península Ibérica são pródigos de interpretações contrarreformistas, é claro
que isso seria sentido nas Colônias, dada a presença da Inquisição que foi uma constante
nelas. O principal teórico desse estado de coisas será Suárez, que recomenda uma
espécie de “pacto de sujeição”, promulgando, no Corpo Mystico do Reino, uma
“unidade de integração das partes do ‘corpo à cabeça’”, (1996: 138). “A metáfora do
corpo é substancializada nos textos neoescolásticos dos séculos XVI e XVII”, tornando-
se, também no Brasil, “os fundamentos do direito absoluto e do Direito ordinário”, que
o mesmo Gregório, segundo seus melhores biógrafos, estudou em Coimbra.
Claro que tudo isso figurou-se caro a Hansen, especialmente se se considerar
que toda a sua leitura pretende-se não-anacrônica, por isso, os densos capítulos que
formam o livro deveriam ser lidos por ótica similar. O tema da Cidade, candente em
todas as importantes leituras da fortuna crítica de Gregório, por exemplo, e presente
num sem número de poemas, será lido por Hansen não como um olhar exterior a ela,
mas, hierarquicamente, a partir dela: “[a cidade] inclui, em sua formulação, a mesma
teologia-política que rege o bom uso da república na teoria e no controle da natureza
humana” (2004: 49). Similar motivo se insere na leitura da persona satírica, já que ela
interpreta o que vive fazendo com que as leis positivas da cidade sejam um
efeito racionalmente proporcionado da lei natural da Graça (...) sua agudeza e
seu artifício montam um teatro extremamente móvel e inclusivo que postula,
pela translação metafórica dos conceitos, os pontos de falha e de falta de
antigas virtudes”, [tal que] ‘somente a natureza humana é objeto da sátira’
(2004: 49-50).
Atrelado a isso, está o conceito de Corpo Mystico, balizado na teologia
medieval, que se move nos termos da República, considerando-se a ordem do Estado
Português. Ernst Kantorowicz, um dos principais teóricos dessa leitura político-
teológica, postula que “os Dois Corpos do Rei (...) constituem uma unidade indivisível,
sendo cada um inteiramente contido no outro. Entretanto, não pode haver dúvida em
relação à superioridade do corpo político sobre o corpo natural” (1998: 23). Hansen
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
abona essa ideia, quando indica: “a doutrina do ‘corpo místico’ referida ao Estado
significa o estado de natureza como ‘simples corpo místico’ em que todos os membros
reconhecem as mesmas obrigações, pautam-se pelas mesmas regras e ‘são capazes de
ser considerados, do ponto de vista moral, como único corpo unificado’” (2004: 117). A
Colônia portuguesa seria também parte desse imenso esforço de identificação política
com a Coroa, que está, neste tempo, imersa nas considerações de estudiosos de teólogos
como Suárez, na sua leitura de santo Tomás de Aquino, no movimento
convencionalmente chamado Segunda Escolástica. Bernardo Vieira, irmão do padre
Antonio Vieira, diria, ademais, “quem diz Brasil diz açúcar e o açúcar é o corpo místico
deste corpo místico que é o Brasil” (2004: 132).
A sátira proferida por Gregório de Matos movimentaria uma tripla tensão,
baseada em uma “referência genérica”, e também apoiada em uma referência local,
todas fundamentadas em uma “articulação pragmática da enunciação ou dramatização
de posições hierárquicas e de intervenções críticas e prescritivas”, (2004: 70). Nela,
completa Hansen, “o plágio é estrutural”, (2004: 71). Logo, a sátira “estende-se a todos
‘desde que suas ações ponham em risco a integridade da hierarquia do corpo místico do
Estado’”, (2004: 52), a sátira é “reguladora”, “não está, de modo algum, contra a
moral”, (2004: 57, grifos do autor).
Uma das críticas mais acerbas à tese de Hansen é que ele não abre espaço para
nenhum tipo de “originalidade” referida nos poemas gregorianos, tamanha a rigidez do
círculo hermenêutico por ele configurado no contorno da obra gregoriana. Isso não seria
muito diverso de pensamentos a respeito da “literatura” produzida antes do século
XVIII romântico, pois que termos como “subjetividade”, “genialidade”,
“originalidade”, seriam, todos eles, colocados em circulação por este tempo. Também
por isso, nem Haroldo de Campos, nem Antonio Dimas se sujeitam ao paradigma
hanseniano, pelo contrário, verão em suas teses o principal ponto de partida de suas
inúmeras ressalvas. Dimas, por exemplo, assevera: “o estudioso minimiza o valor do
talento individual na construção poética ao insistir numa espécie de subserviência –
embora não seja esse o termo utilizado – do Poeta a códigos poéticos muito em voga
então (...) dito de forma mais clara: Gregório nada trouxe de novo a uma poética em
franca vigência” (1993: 341-2). Haroldo de Campos, paralelamente, vaticina: “Hansen
vanifica de uma vez por todas o próprio autor indigitado, transformando-o num mero
efeito semiótico (e fantasmal) do código que manipula” (1996: 5).
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Nesse sentido, a catarse operada pela sátira visa tão somente a manutenção do
corpo político da Colônia, dispensado de qualquer tipo de configuração literária
puramente falando, dispensado também de qualquer tipo de realização desinteressada,
no sentido dado por Kant ao termo. Pelo contrário, a sátira investe-se, interessadamente,
na sustentação do poder local, que é o representante do poder real, o corpo político que
é o corpo mystico. A sátira participa da ética contrarreformista. Por isso deve-se lê-la na
suposição de um tipo especial de decoro, já que ela é alegoria:
a sátira e sua obscenidade determinada têm uma função alegórica de
dirigismo político aristotelicamente determinada: propõem-se como catarse,
purgação de paixões, como arte de persuasão. Como caricatura, a sátira
menospreza o aptum e, reduzindo ao mínimo a verossimilhança com o
excesso e a mistura, tem em vista o destinatário, de quem espera a
cumplicidade e o deleite favoráveis à causa que a move. (2004: 200).
Nesta alegoria, que se move enquanto intervenção reguladora, “negros”,
“índios” e “mulatos” são “invisíveis e irrepresentáveis”. Eles estão, segundo Hansen,
em escala hierárquica inferior, daí que a sátira os proclame como indignos de se ver e de
se dizer. Eles são “sub-humanidade gentia”, (2004: 220). É aqui também que se pode
realocar a forte presença do léxico abrasileirado, especialmente de base indígena, que
permeia toda a produção gregoriana, respondida por Hansen nos termos da “prescrição
retórica da clareza pelo controle do barbarismo”, e somente distante dessa prescrição é
que se poderia entender “protonacionalismo”, ou “antropofagia cultural” ou mesmo
“forma revolucionária”, termos, não custa repetir, ausentes de toda a preceptística
adotada por Gregório de Matos, infenso, como se pode concluir, a essas manifestações
próprias à cadência romântica.
A sátira é parte dos próprios procedimentos da Inquisição, então vivíssima e
atuante. Por isso, as denúncias da sátira, pois é disso mesmo que se trata, serem
consideradas como propostas de conserto do mundo, no que assumem exemplaridade
notável. “Não se trata, por isso, de pensar mecanicamente as práticas inquisitoriais
como um resultado histórico que seria origem da sátira: não há tal relação de
exterioridade da representação entre seus discursos, mas uma simultaneidade que
impede ver a sátira como um reflexo ou cópia estilizada, decalque a posteriori de
formas preexistentes”, (2004: 246). A igreja é controladora dos corpos porque ela
mesma é corpo jurídico visível. Na época, esses são temas amplamente debatidos por
jesuítas e dominicanos desde 1546, sob a luz vigorosa do Concílio de Trento. “Por
analogia, o corpus hominis naturale é termo de comparação com o corpus Eclesiae
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mysticum: é o termo caput (cabeça) que, basicamente, efetua a relação”, (2004: 267). Os
termos, em sua maioria, são retirados às expensas de santo Tomás de Aquino, como o
leitor mais familiarizado pode perceber, e foram retomados, tanto pelo Concílio quanto
pela Segunda Escolástica (Francisco Suárez, Tirso de Molina, Pedro da Fonseca,
Francisco de Vitória etc.). Na colônia, aliás, embora as leis positivas fossem escassas ou
inexistentes, isso não significava ausência de lei, pois que a lei natural era uma espécie
de consenso legal e tinha tanto efeito quanto sua realização positiva, representada como
a “passagem do estado de natureza para a sociedade política”, (2004: 279).
Como dissemos, o plágio é estrutural, já que é gênero misto. A sátira “junta falas
heteróclitas e sobredetermina o discurso” (2004: 293). Nada na sátira gregoriana pode
ser identificado, segundo este paradigma, com os conceitos de liberdade, exuberância,
imaginação e outros incondicionados, que Hansen grifa com meticuloso cuidado.
Ainda pensando os temas discutidos por Gregório, figurações como “misoginia”,
“sangue limpo”, outra vez, “mulato”, fazem parte do mesmo lugar retórico, não
indicando, com isto, outra coisa senão o controle dos corpos, já expresso nas tópicas de
sua poesia. “Os paradigmas culturais da misoginia, da limpeza de sangue, da cultura
original e da desonra das artes mecânicas, que interpretam tais metáforas, são natureza
inquestionada gravada nos corpos e nas práticas, sem que se fale do conhecimento
náutico” (2004: 377). Trata-se de “desqualificação genérica segundo as tópicas da ‘raça’
e ‘origem’, não a especificidade da raça desqualificada”, p. 411. O judeu segue lido da
mesma forma. Como se vê, não há espaço para a tão declarada e difundida ideia de
transgressão nesses poemas.
É equivocado ler nesses poemas qualquer ética ‘transgressora’ de interditos
sexuais e religiosos, supondo-se que expressam a vida espantosamente
libertina de seu autor, o homem Gregório de Matos: não há nenhuma
evidência de que sejam efetivamente dele e, ainda que fossem, são poesia,
ficção, e seu antipetrarquismo é antes o dos efeitos monstruosos
cuidadosamente dosados, cujos estereótipos fazem visível não a afirmação de
bruxaria e seu pecado mortal, mas aquilo que os interpreta como sua
consequência lógica – a ortodoxia e sua obsessão maníaca de unidade e
unificação. (2004: 440).
Difícil não perceber a novidade trazida pela tese de Hansen. A originalidade da
abordagem foi imediatamente reconhecida pelos membros de sua banca de doutorado.
Logo após a defesa, Alfredo Bosi publicou parte do terceiro capítulo na Revista do
Instituto de Estudos Avançados (maio-agosto de 1989, v. 3, n. 6), e, um ano depois, a
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tese foi integralmente publicada pela Companhia das Letras, já então uma das maiores
editoras brasileiras. O autor recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor ensaio, fato amplamente
divulgado na Imprensa da época. Os jornais Folha de São Paulo e O Estado de São
Paulo perceberam a importância do fato a ponto de comporem cadernos com matérias
especiais, a expensas de notórios especialistas em literatura e história.
Retroativamente, duas décadas antes, os estudos literários da Colônia ainda eram
tratados com algum tipo de preterição pelos departamentos de literatura em algumas
universidades brasileiras, claro que, resultado, também, das dificuldades já aqui
evocadas. Repensando seus anos iniciais como professor de literatura brasileira na USP,
Alfredo Bosi – que vinha de uma experiência como professor de literatura italiana, não
custa lembrar – afirma que, na década de 70, os textos coloniais eram tidos sob a figura
da ignomínia, do desprezo, nos estudos literários brasileiros. Ainda hoje, em muitos
departamentos universitários, os trezentos e cinquenta anos iniciais do País acabam
sendo estudados por professores “novatos”, ou por aqueles que se integram à
universidade via contrato temporário. Naquela época, pelo menos em São Paulo, o
romantismo e o modernismo ainda eram os principais tópicos estudados. A própria
experiência de Hansen, segundo nos diz em inúmeras entrevistas, é similar à destes
professores novatos, isto é, como motivação inicial – Hansen já havia defendido uma
dissertação de mestrado sobre literatura brasileira contemporânea, como dissemos –
acabou flertado pela curiosidade em entender os períodos iniciais de nossas letras
coloniais.
Dois anos atrás, em palestra a respeito da função do estudo da retórica, Hansen
voltou a falar do estado dos estudos coloniais. Hoje em dia, segundo ele, mesmo na
própria Universidade de São Paulo, há já algum tempo o Barroco foi colocado como
disciplina optativa na grade dos alunos de graduação. Isso significa, como se sabe, o
purgatório das disciplinas que tendem a desaparecer com o tempo, dada a emergência
do tempo presente4.
No caso dos principais livros formadores da opinião crítico-literária no Brasil,
isso se pensarmos no caso da historiografia literária, como é o caso da Formação da
literatura brasileira, talvez essa opinião se acerbe ainda mais. Gregório e Vieira seriam
4 É esse o diagnóstico de Hansen, expresso em entrevista deste ano: “na literatura brasileira, os estudos
de colônia foram transformados em disciplina optativa do último ano. Há um consenso em toda
universidade de que esses assuntos devem ser excluídos da graduação. Caso alguém queira estudá-los,
talvez eles sejam objeto de especialização numa pós-graduação. Em 90% dos casos, a concentração é no
século XX”, in: Garcia, Bruno. “João Adolfo Hansen. Desencolher de cabeças”, Revista História da
Biblioteca Nacional, ano 10, n. 112, jan 2015, p. 46-7.
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parte de um efeito colateral. Outros livros de História Literária os estudam, mas não
deixam, também eles, de reprisar os inúmeros lugares comuns de fala a respeito do
Barroco. É o que parece: a tese de Hansen continua anti-intuitiva.
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5 Recentemente, na edição das obras completas do padre Vieira, Hansen afere que esta seria, de fato, a
melhor forma de ler autores como ele, tal que se expressa assim: “vou entrar na cabeça de Vieira,
ficando ao mesmo tempo fora dela (...) para tentar pensar com ele e dizer como ele pensa”, HANSEN,
João Adolfo. “A Chave dos profetas. Deus, Analogia, Tempo”. In: Calafate, Pedro (Org.). A chave dos
profetas. Lisboa: Universidade de Lisboa, Círculo de Leitores, São Paulo: Loyola, 2013, pp. 11-56
(grifos do autor).
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(2001: 33). O códice acaba sendo lido como uma espécie de pauta, ou partitura, em que
alguns elementos substantivos que motivariam as leituras contemporâneas na Colônia
deveriam ser recuperados para serem efetiva e inteligentemente lidos de forma não-
anacrônica.
A questão do público das obras do tempo é outro problema, visto ser realmente
muito difícil reconstituir a forma como se constituía a Colônia, embora muitos esforços
estejam sendo despendidos no momento. Hansen afere que o público poderia ser
reconstituído de acordo com algumas categorias expostas na própria poemática, e o
divide em discretos e vulgares, termos definidos em Portugal e Espanha, que sugerem
critérios éticos e teológicos e, ainda, retórico-poéticos. “O discreto é o tipo
caracterizado pelo engenho retórico e pela prudência política típicos de Corte divulgada
institucionalmente, no Estado do Brasil, no ensino organizado a partir de 1599 pelos
modelos da ratio studiorum da Companhia de Jesus”, (2001: 35). Por esse expediente,
sabe-se um pouco mais da forma mentis defendida por Hansen em outro texto, que
parece dirigir seu estudo até aqui. “Letrado”, diz Hansen, é termo que se vincula a
caráter, está atrelado a um éthos, não é uma “individuação autoral”.
Perto do final de seu texto, Hansen expõe algumas formas que seriam mais
pertinentes no estudo do período enfocado aqui. Retomando as categorias da
mentalidade da época, é possível repensar qual era o decoro a conduzir sermões e
poesias dos séculos XVI, XVII e mesmo da primeira metade do XVIII. O tempo era
sentido qualitativamente, segundo Hansen, de modo a indicar, nesta vivência, as
súmulas da “temporalidade como emanação ou criação de Deus que inclui a natureza e
a história”, (2001: 46). As categorias estudas por Vieira estariam condicionadas ao
“tempo figurado na representação dos sermões [que] subordina toda a história a si como
figura ou alegoria providencialista do divino” (1997: 9). Embora não tenhamos espaço,
as categorias históricas mobilizadas por Hansen mereceriam um desenvolvimento mais
agudo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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outubro de 1996, p. 5.
Dimas, Antonio. 1993. Gregório de Matos: poesia e controvérsia. in: Pizarro, Ana
(Org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas:
Edunicamp, p. 341-342
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Hansen, João Adolfo. 1996. Razões de Estado. In: Novaes, Adauto (Org.). A crise da
razão. São Paulo: Companhia das Letras, p. 135.
_____. 1997. Vieira: forma mentis como categoria histórica in: Voz Lusíada. Revista da
Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes, n. 9, pp. 7-29.
_____. 2001. Barroco, neobarroco e outras ruínas in: Revista Teresa, n. 2, p. 32.
_____. 2004. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2 ed.
São Paulo: Ateliê Editorial. Campinas: Edunicamp.
Kantorowicz, Ernst. 1998. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre a teologia política
medieval. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, p. 23.
_____. 2011. Critica textualis in caelum revocata? Uma proposta de edição e estudo da
tradição de Gregório de Matos e Guerra. São Paulo: Edusp, p. 62-3.
Muhana, Adma. 1998. O mundo às avessas in: Revista Cult, maio de 1998, p. 53.
Pécora, Alcir. 2001. Poeta é modelo de produção de viés satírico in: Estado de São
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Rodrigues, Antonio Medina. 1990. “Olhar cool recai sobre barroco e sátira gregoriana”,
Folha de São Paulo, 20 de janeiro de 1990, p. F-3.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações, 1661-1678
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1661
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Lucio LORD1
Adriano DORNELLES2
RESUMO
Este artigo analisa o papel que textos legais e documentos de viagens desempenharam
na construção do imaginário europeu português sobre o africano e o índio-americano a
partir de 1500. O estudo argumenta que desse processo construtivo resultou o
etnocentrismo europeu e o discurso de “civilização” em oposição aos “novos povos” da
África e América. A partir do estudo sobre Portugal, a análise sociológica aqui
apresentada generaliza ao considerar que foi do contato com os novos povos que a
sociedade europeia se redesenhou, se reinterpretou e se compreendeu no mundo como
civilização.
Introdução
1 UNEMAT, Faculdade de Educação e Linguagem, Avenida dos Ingás, n, 3001, CEP: 78555-000,
Cidade de Sinop, Estado do Mato Grosso, Brasil,
2 UNEMAT, Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, Avenida dos Ingás, n. 3001, CEP: 78555-
000, Cidade de Sinop, Estado do Mato Grosso, Brasil.
3 A opção nesse artigo foi utilizar o termo “sociedade europeia” no singular por referenciá-la em
contraposição às sociedades africanas e ameríndias. A opção tem um objetivo claro que é revelado ao
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longo do texto: trata-se de perceber que a Europa passa a representar a si mesma como uma sociedade
diferenciada das outras na medida em que utiliza o termo “civilização” para distinguir-se.
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Octavio Ianni (IANNI, 2008) e Milton Santos (SANTOS, 2001). Na perspectiva desses
teóricos os valores e o modo de vida ocidental foram impostos como legítimos,
racionais e superiores às demais sociedades. Um amplo sistema econômico, político e
cultural resultante de processos como a industrialização e o imperialismo teriam levado
à globalização.
A generalização dessa perspectiva sobre as ciências sociais e demais áreas de
estudos sociais, inclusive os estudos literários, fez com que as análises sobre a
colonização e a expansão dos domínios europeus a partir de 1500 fossem entendidos
como parte do processo de dominação e etapa inicial do que seria nos séculos XIX e
XX a globalização. Divulgada sobre tudo após a metade do século XX, essa perspectiva
teórica passou a influenciar os estudos sobre colonização, escravidão e produção nas
Américas. Daí porque dos estudos sobre colonização acabarem por adotar o conceito de
dominação.
A teoria sociológica mais difundida entende, assim como Ianni (2008), que a
ocidentalização ocorre no ritmo da industrialização. A ocidentalização, diretamente
ligada à ideia de capitalismo, tende à homogeneização das sociedades ao impor o modo
de vida, o modelo de governo e o pensamento ocidental. Segundo esta teoria, a
dominação ocidental se traduz, então, em dominação capitalista que se reconfigura em
diversos estágios do próprio capitalismo (HARVEY, 2009 e CHESNAIS, 1996).
A difusão atual desta perspectiva teórica ocorre porque nas décadas de 1990 e
2000 a produção acadêmica foi marcada pela posição marxista e avessa ao que chamou
de neoliberalismo. O conceito, em muitos casos superficialmente instrumentalizado, foi
utilizado como sinônimo de dominação capitalista, entendendo que o neoliberalismo
seria uma estratégia do capitalismo para resolver sua crise. O auge desta discussão pode
ser identificado na obra de MESZAROS (2011), amplamente citada nas análises
brasileiras e na organização dos diversos encontros do Fórum Social Mundial na cidade
de Porto Alegre.
Tal análise sociológica sobre o neoliberalismo foi desenvolvida, corroborada e
reproduzida em outras áreas do conhecimento científico, sobretudo na Educação,
Economia e História, chegando, inclusive, aos estudos culturais. Contudo, em que pese
a relevância destas análises, elas não apresentaram algo novo. De fato, estas análises
mantiveram-se muito próximas da teoria de dependência que marcou as análises do
pensamento social latino-americano desde a década de 1960. Isto é visível pois as
análises sobre o neoliberalismo enfatizam que as alterações nas políticas sociais e
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Foi partindo das constatações resumidas acima no primeiro e segundo caso que o
presente artigo foi elaborado. Por isto esse artigo se propõe alternativo à constatação das
análises sociológicas identificadas no segundo caso. Isto porque defende a ideia de que
grande parte da configuração da sociedade européia, desde 1500, ocorreu por influência
dos novos povos descobertos e pelos desafios que esses colocaram ao europeu.
Teoricamente, o argumento deste artigo aproxima-se das análises da Antropologia
quando consideram que o encontro entre sociedades diferentes gera influências sobre
cada uma, mesmo quando em níveis distintos (Wolf, 2003). Contudo, o argumento aqui
defendido não pode ser enquadrado no modelo de análise antropológico, visto que a
metodologia de pesquisa e o tipo de dados analisados são muito diferentes,
aproximando-se a metodologia do artigo mais da Ciência Jurídica e da Ciência Política.
Em tempo, cabe registrar que este artigo considera que a discussão proposta não é
novidade, mas para esta versão do texto não foi possível localizar e sistematizar estudos
latino-americanos na mesma perspectiva.
4 Vale a pena registrar o estudo próximo ao tema elaborado na área de História por Maristela Toma
(2006), que consta nas Referências Bibliográficas ao final deste artigo.
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5 Publicadas em 1512, as Ordenações Manoelinas somente receberão este nome em 1521, em função de
reedição.
6 A data de 1830 é válida para o Brasil, onde o Império Brasileiro substitui as Ordenações Filipinas pelo
Código Criminal do Império.
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Monarca aplicá-las e zelar por elas – e este foi o trabalho do Rei ou Príncipe. Deste
modo é possível entender que as Ordenações Afonsinas, além de reconhecer o peso que
a Igreja Católica ainda possuía no século XV, utilizou a noção de divindade para
justificar o poder do Monarca. Assim estas Ordenações estabeleceram um argumento
perfeito para a emergência do poder do Soberano e que seria garantido mediante o que
Pierangelli (1980) e Pieroni (2001) apontaram como “penas severas”. Neste momento o
poder do Soberano se institui justificado no Cristianismo e exercido severamente sobre
o corpo físico do indivíduo.
A diferenciação e definição das leis e das penas nas Ordenações Afonsinas se
deram em função do que cabia como matéria temporal e de pecado. No caso das
matérias temporais aplicava-se o direito romano, e naquelas onde o tema era o pecado
aplicava-se o direito canônico – mas nessas Ordenações as leis, o julgamento e as penas
eram executados pelo Estado. Aquelas matérias que estivessem fora dos dois direitos
eram resolvidas pelas normas compiladas da Glosa de Acúrsio, e outras pelo julgamento
próprio do Monarca (Pierangelli, 1980). As penas atribuídas variavam em função do
tipo do crime e da origem do réu, o que permite identificar uma clara estratificação
social normatizada pela lei. As penas menos severas eram atribuídas aos nobres ou
detentores de títulos ou relações de nobreza que cometessem crimes contra homens
comuns. Os homens comuns eram aqueles sem títulos ou relações com a nobreza ou
clero. Apesar das Ordenações proibirem o assassinato, a pena era relativizada em
função da origem dos envolvidos. Quando o réu era um nobre e a vítima um homem
comum a pena reservada era multa e chibatadas públicas, mas mesmo as chibatadas
poderiam ser aplicadas em sigilo ou não aplicadas dependendo do grau de nobreza do
réu. Diferentemente, quando o réu era homem comum e a vítima um nobre, a pena
atribuída era a morte. Raras penas de morte eram atribuídas aos nobres, e mesmo
quando a referência era a morte, esta poderia ser uma morte no sentido de exclusão
social e dos bens e títulos. Os crimes contra o Rei, contra a ordem do Império ou seus
representantes eram punidos de forma severa. Aqueles que atacavam o Rei ou
auxiliavam inimigos contra ele eram condenados à morte.
Uma categoria única de crimes tinha como pena o corte das mãos. Esta era
atribuída àquele que matasse seu pai ou seu senhor (no sistema feudal). Já os casos de
crimes cometidos por clérigos eram julgados pelo Clero a partir das leis eclesiásticas.
Após o julgamento e estabelecimento da pena o réu era encaminhado ao Estado que
avaliaria e mandaria executar ou não a sentença estabelecida pelo Clero. Neste ponto
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funcionários eram punidos com a retirada dos bens e exílio de alguns anos nas colônias
portuguesas na África ou no Brasil. A retirada dos bens dava-se de forma a incentivar a
denúncia de réus porque dividia os valores adquiridos pela pena ao meio, cabendo
metade ao Monarca e a metade ao denunciante. Outras penas foram estabelecidas
àqueles que feriam a moral com o adultério ou a prostituição, e àqueles que atentavam
contra o patrimônio de terceiros. Nos casos contra a moral as penas variavam: quando
leves, ficavam estabelecidas multas e chibatadas públicas; quando médias, exílio por
poucos anos na Ilha de São Thomé e Príncipe ou na África; e quando pesadas, um
período de dois, dez ou mais anos no Brasil. O exílio no Brasil representava a pena
máxima antes da morte e do trabalho perpétuo nos remos do convés dos navios. No caso
daqueles que possuíam bens, mesmo nobres quando condenados, a pena de exílio era
executada junto à retirada do patrimônio.
Essa inserção do Brasil e África como terras-presídio implicou um controle
maior sobre os navios com destino às colônias a partir de 1547 quando uma
normatização passou a exigir autorização por escrita do Governador da Casa Cível para
partida de Portugal. O Governador devia estar ciente dos navios que partissem para o
Brasil e da disponibilidade de enviar, através deles, os apenados condenados ao exílio
além-mar. Para garantir o cumprimento da ordem ficou estabelecida multa ao capitão
que partisse sem o conhecimento e consentimento do Governador da Casa Cível. Assim,
o domínio além-mar exigiu um conjunto complementar de leis, das mais simples às
mais complexas, bem como procedimentos e estrutura para cumpri-las. Trata-se de leis
com função administrativa que tornaram mais complexa a administração do Reinado.
No caso dos apenados uma nova lei exigiu a apresentação de carta oficial descrevendo
seu crime e pena para desembarque no Brasil. Os casais condenados por adultério ou
orgias passaram a ser destinados a capitanias diferentes dentro da colônia portuguesa no
Brasil. Expandiu-se desse modo para as colônias também o que seria mais tarde
chamado de direito civil.
Em 1603 entrou em vigor a nova e última Ordenação do Reino de Portugal que
influenciou o Brasil – as Ordenações Filipinas (1603-1830). Como apontou Pieroni
(2001), as Ordenações Filipinas foram implantadas em uma época de deflagração do
pensamento humanista no direito romano. Contudo no Reinado Português isso não
mostrou ser forte influência. Tal constatação resulta porque a compilação do “novo”
conjunto de leis foi determinada pelo Rei de Portugal Felipe I, de nacionalidade
espanhola. Importava ao Rei reunir todas as leis em vigor em uma única coleção sem,
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no entanto, causar desconforto aos portugueses. Para tanto seus juristas buscaram as
Ordenações Manoelinas, as publicações chamadas Extravagantes que tratavam de temas
extras e outras leis e decretos emitidos durante o reinado de Dom Manoel. Além da
compilação de todas estas leis e decretos, algumas poucas leis foram retiradas tornando
as punições mais brandas. Assim as Ordenações Filipinas, implantadas somente no
reinado de Felipe II (1603), não trouxeram inovações e seguiram a estrutura daquelas
ordenações anteriores. Tamanha foi a semelhança e conservadorismo das Ordenações
Filipinas em relação às leis e decretos portugueses anteriores que após o fim da
dominação de Castela sobre Portugal o novo Rei Dom João IV revalidou-as. A
característica principal mantida nas Ordenações Filipinas em relação ao direito que
vigorou em Portugal desde o século XV foi a inspiração no Direito Imperial, no Código
de Justiniano e no Direito Canônico. Assim violar as Ordenações Filipinas significava
desrespeitar o Rei, mas em muitos casos significava também profanar a ordem divina.
O Livro V das Ordenações Filipinas trouxe no Título II as leis que tratavam de
delitos de negação ou blasfema contra Deus ou santos. Nesse título constavam penas
diferenciadas ao réu conforme sua origem – uma característica constante das ordenações
do Reino. A lei estabelecia que sendo fidalgo a pena fosse multa de “vinte cruzados” e
degredo de um ano na África. Sendo cavaleiro ou escudeiro a pena era multa de “quatro
mil reis” e degredo de um ano para a África. Mas sendo peão (homem comum), a pena
era “trinta açoites ao pé do Pelourinho com braço e pagão” e multa de “dois mil réis”.
Esta lei também estabeleceu tratamento para reincidência no crime, sendo o dobro da
pena para a segunda infração e para a terceira vez cabia a pena segunda acrescida de
degredo de três anos para a África e, no caso do peão, três anos de trabalho remando no
porão dos barcos (pena chamada de envio às Galés).
Mas as Ordenações Filipinas ganham destaque na presente análise porque nelas
apareceram títulos específicos sobre o escravo africano. É mais perceptível nessas as
mudanças feitas na legislação para controlar as novas relações como a África e Brasil. O
Título XLI do Livro V, por exemplo, tratou do escravo que ferisse ou assassinasse seu
senhor ou o filho do seu senhor. Para o escravo que matasse a pena iniciava com
atenazar, em seguida ter as duas mãos decepadas e por fim ser enforcado. Se os
ferimentos que cometesse não levassem à morte do senhor ou familiar então a pena era
a forca. Mas se não ferisse, tendo simplesmente ameaçado seu patrão ou filho de seu
patrão com arma, a pena era ser açoitado publicamente com braço e pregão, e ter uma
mão decepada.
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A análise das Ordenações do Reino Português mostra que a legislação teve dois
papéis importantes naquele momento. Um porque constituiu o esforço de centralização
do poder no monarca, fato que em Portugal foi fundamental à emergência do Estado
Moderno. E o mesmo pode ser generalizado à Europa. Outro porque através delas o
Império português organizou seus domínios, inserindo as novas terras e os novos povos
na sua estratificação social. Por isto um olhar atento às Ordenações permite identificar
as manobras do poder monárquico para assegurar o domínio sobre as novas terras na
África e na América, bem como controlar as relações estabelecidas com estes novos
domínios e suas gentes. Mais ainda, a análise das Ordenações do Reino de Portugal
permite identificar um processo mediante o qual a sociedade europeia buscou
compreender-se e identificar-se em contraposição aos povos da África e América. Deste
modo, a legislação penal presente nas Ordenações hierarquizou terras e povos, servindo
como discurso e justificando as práticas de hierarquia social antigas na Europa e
reformuladas com os novos domínios.
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
quando média estabelecia o exílio por poucos anos na Ilha de São Thomé e Príncipe ou
mesmo na África, e quando pesada estabelecia um período de dez anos ou mais no
Brasil.
Observa-se neste aspecto que as penas consideravam a América como o pior
local de cumprir pena, ao menos no caso da América portuguesa pois outra já era a
realidade da América espanhola. Esta hierarquização ocorria em função dos estágios
diferenciados entre as regiões que compunham o Império português no período. Na ilha
de São Thomé e Príncipe, e em parte na África, Portugal havia identificado uma
complexidade maior nos povos lá residentes. Junto à extensão das terras e a organização
dos novos povos, outro aspecto negativo atribuído à América eram as doenças tropicais.
Este contexto fez com que dentre as colônias portuguesas, a da América fosse a que
menos recebesse europeus residentes. Consequentemente, a América portuguesa
representava no imaginário coletivo europeu o pior lugar para cumprir pena. Pior do que
o exílio no Brasil era somente a condenação perpétua às galés ou a morte.
A partir do contato com a África e a América o emergente Estado Português
configurou-se de modo que os novos povos e as novas terras fossem regrados pelas três
Ordenações do Reino. Isto auxiliou na elaboração do etnocentrismo europeu português.
Em face do africano e do índio americano, o português entendeu-se como civilizado.
Por isto, catequizar, dominar e escravizar foram processos interligados à
ocidentalização pré-capitalista. A partir dos contatos com o negro e o índio, a sociedade
portuguesa ressignificou sua posição na teoria social, passando a compreender-se como
povo civilizado, crente no único e verdadeiro deus, e com a missão de civilizar os
demais povos. Nesse contexto, a legislação penal do Império e o cristianismo foram
instrumento, e não fins, para o estabelecimento da ordem social emergente da relação
entre a Europa, a África e a América.
1674
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7 Certo é que a análise dessas obras exige estudo próprio, algo que não é possível nesse artigo. Por isso a
utilização de referências de estudos sobre elas no lugar da análise aprofundada sobre os textos como
objeto.
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Conclusões
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Bosi, Alfredo. 1999. Dialética da colonização. Rio de Janeiro: Companhia das Letras.
Cunha, Manuela Carneiro da. 1999. Imagens de índios do Brasil: o século XVI. Revista
Estudos Avançados. São Paulo: volume 4, n. 10, setembro a dezembro, p.91-110.
Medeiros, Bruno Franco. 2010. Leituras do passado e narrativas sobre o Brasil nas
primeiras décadas do século XIX: a contribuição francesa. Revista História da
Historiografia. Ouro Preto, número 4, março, p.88-103.
Meszaros, Istvan. 2011. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São
Paulo: Boitempo.
Pieroni, Geraldo. 2001. A pena do degredo nas ordenações do reino. Jus Navigandi
(Teresina), vol.1. (disponível em www.jus2.uol.com.br e acessado em 16/05/10).
Santos, Milton. 2001. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações, 1679-1692
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1679
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
1 Este trabalho se apresenta como produto parcial do projeto de pesquisa intitulado Mulher Difamada e
Mulher Defendida no Pensamento Medieval: Textos Fundadores, que, integrando a Rede Goiana de
Pesquisa sobre a Mulher na Cultura e na Literatura Ocidental da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Goiás (FAPEG), é coordenado pelo Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca, com apoio
financeiro dessa Fundação para o período de 2014-2016. Conta também com o apoio da Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação (PrP) da Universidade Estadual de Goiás.
2 UEG, Curso de Letras Português/Inglês e suas respectivas literaturas, Departamento de Estudos
Literários, Câmpus Pires do Rio, Rua Augusto Monteiro de Godoi, 56, Centro, 75200-000, Pires do
Rio, Goiás, Brasil, E-mail: marcimelo@gmail.com.
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ser observada nos motivos, tropos, topoi e modalidade literária escolhida pelo cronista
para suas elucubrações a respeito das coisas do Brasil.
Com interesses voltados para a exploração material e política das terras
brasileiras, os Diálogos das Grandezas do Brasil, ao classificarem os animais da
colônia segundo a sua imensa variedade em distribuição pelos elementos cósmicos (ar,
fogo, água e terra), apesar de não apresentar marcas mais visíveis de consideração
teológica, ainda refletiam aquela mesma atitude da cultura bestiária de encontrar-se em
estado de um constante maravilhar-se frente à natureza e ao mundo. Essa teoria da
distribuição dos animais pelos quatro elementos do cosmo, divulgada por Aristóteles,
mas primeiramente formulada por Empédocles, foi bastante preferida pelos naturalistas
medievais e mesmo renascentistas. A aceitação desse sistema classificatório, por parte
dos medievais, satisfazia plenamente a ideia da tradição judaico-cristã de que, a partir
dos ensinamentos bíblicos, Deus havia criado todos os seres perfeitos e em número
limitado em gênero e em espécie, dentro da sua própria natureza e do seu meio
ambiente; fato que atestava o poder da sua vontade e onisciência. Essa premissa viria a
servir a vários debates escolásticos, preocupados com a definição de conceitos e de
coisas em função da sua natureza e das suas propriedades.
No Diálogo quinto, Brandônio, imaginando haver relatado todas as grandezas do
Brasil, se mostra apreensivo por perceber que, ainda, muitas outras coisas deviam ser
tratadas, como as aves de diversas qualidades, habitantes do espaço brasileiro, peixes de
diferentes formas e natureza, ainda desconhecidos, e animais silvestres, de estranhas
figuras e inclinações. Mais uma vez, Brandão utiliza, os elementos cósmicos, desta vez
se vale do ar, para iniciar seu discurso sobre as aves.
Estas cousas me faziam grande carranca pera me haver de retirar do
promettido; mas, vendo que o não podia fazer sem ficar mal reputado,
arrazei-me a passar avante, com descorrer por aquellas cousas que os
elementos que rodeam a terra do Brasil encerram dentro de si, sem tratar do
mais alevantado delles, que é o fogo, porque de todo o tenho por esteril, que
a salamandra, que se diz criar-se nelle, entendo por fabulosa; porque, quando
as houvera, nas fornalhas dos engenhos de fazer assucares do Brasil, que
sempre ardem em fogo vivo, se deveram de achar. E como o seu consorte
mais vizinho é o ar, quero começar por elle o que pretendo, que será tratar
das aves, assim domesticas, como agreste, que se acham por todo este
terreno. (Brandão, 1930: 216).
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princípios e em preceitos da moral cristã, uma vez que feito por um pensamento
analógico arbitrário, notadamente orientado pela mentalidade religiosa, adquirindo um
caráter simbólico e metafórico.
Ao ouvir a descrição do gurainguetá, Alviano responde que “Não se escreve
mais dos pelicanos pera encarecimento do amor que têm aos filhos” (Brandão, 1930:
219). Daí, o motivo de remeter aos bestiários. Pois o pelicano, nesses livros, são
tratados como animais cristológicos por darem sua vida para que o filho não pereça.
Comparativamente, em Tratados da terra e gente do Brasil de Fernão Cardim
(1997), o imaginário bestiário medieval não comparece disseminado com
representações tipológicas emblemáticas, como é o caso de algumas referências notadas
nos Diálogos das grandezas do Brasil, em que, por exemplo, a fênix e o pelicano – aves
de significativa importância nos bestiários, dada a sua marcada simbologia cristológica
– servem de sugestivo contraponto para a caracterização, respectivamente, dos pássaros
gurainguetás, aos quais já nos referimos, e das serpentes boaçus, espécimes da
intrigante fauna brasileira. Sobre a boaçu, assim comenta Brandônio, primeiramente
discursando sobre a grande variedade de cobras existentes naquelas plagas:
Não quero calar as differentes castas de cobras peçonhentas, que se acham
por toda esta provincia, como são jararacas, saracucús, cobra de coral, e outra
a que chamam cascavel, porque tem uns nós no rabo semelhantes a elles, e
quando os meneia com força formam um som que se parece com elles. Estas
todas são peçonhentissimas, e matam as pessoas a que mordem em breve
termo, e por isso são mui temidas. Outra sorte ha tambem de cobra, muito
mais grande, a que chama boaçú, e nós cobra de veado, porque comem,
engulindo um inteiro, quando o tomam. Caçam dependuradas sobre arvores,
e de salto fazem a sua presa; e já succedeu arremessarem-se a homens que
mataram, com lhes metterem o rabo pelo sesso, por ser parte aonde logo
acodem com elle. E destas semelhantes cobras vi eu uma tão grande que
tenho temôr de dizer a sua grandeza, temendo de não ser crido, e se affirma
tambem dellas uma cousa assás extranha, a qual é que, depois de mortas e
comidas dos bichos, tornam a renascer como a Phenix, formando novamente
sobre o espinhaço carne e espirito. (Brandão, 1930: 254).
O tema do renascimento, aqui percebido pela estranheza causada pelo fato de a
boaçu renascer como a fênix, formando carne e espírito sobre o espinhaço, contrasta
com o motivo da desfiguração bestial do brasilíndio, como iremos ver mais adiante.
Ambrósio Fernandes Brandão, ao abordar a presença do demoníaco nos costumes e
modos dos brasilíndios, condena-os pelos seus hábitos e pelos seus costumes impuros e
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bestiais, tal como o que comenta Brandônio: “Costuma também este gentio, pera effeito
de mostrar maior fereza e bizarria, furar o rosto pelo beiço de baixo e tambem pelas
queixadas, por onde mettem umas pedras verdes ou brancas de feição de botoques, com
as quaes têm pera si que andam galantes e gentis-homens”, ao que Alviano retruca:
“Esse costume devia de lhes ensinar algum demonio, e á sua imitação o usam com
darem maior mostra nelle de sua grande barbaridade”. (Brandão, 1930: 286).
Brandônio comenta o costume das índias de parirem no rio, onde se lavam e se
recolhem a suas casas, onde acham o marido deitado na rede como se fosse ele que
parira. Assim descreve Brandônio:
Tudo o que até agora tenho dito dos costumes destes Indios, foi fallar em
geral; e vindo ao mais particular, primeiramene digo que, quando a este
gentio lhe parem as mulheres, a primeira cousa que ellas fazem no instante
que acabam de parir, e póde ser que ainda sem terem bem livrado, é ir-se
metter no mais vizinho rio ou alagôa de agua fria, que acham, no qual se
lavam muitas vezes, e, despois de bem lavadas se recolhem pera casa, aonde
já acham o marido lançado sobre a rede em que costumam dormir, como se
fôra elle o que parira, e alli o regalam, e é visitado dos parentes e amigos, e a
parida se exercita nos officios manuaes de casa, fazendo o comer, e indo
buscar agua ao rio, e lenha ao matto, como se nunca parira. (Brandão, 1930:
267).
A respeito desse costume, Rodolpho Garcia, em notas, comenta ser um fato
muito comum entre os povos naturais, “denominado couvade ou choco, e pertence ao
mesmo circulo de idéas primitivas em que se encontram a exogamia, o totemismo e a
anthropophagia” (Brandão, 1930: 292). O Brasil oferece os casos de couvade mais
típicos e menos conhecidos, como pode ser comprovado pelo recenseamento de
Rudolph R Schuller, no Boletim do Museu Goeldi (v. 6, p. 236-245), com extensa
bibliografia a respeito.
Sobre esse costume, Alviano assim comenta: “Não póde haver mais barbaro
costume desse que me tendes referido; e creio que por todo o mundo se não achara seu
semelhante, nem era lícito que houvesse senão entre estes Indios, que não faço
differença delles ás brutas feras”. (Brandão, 1930: 268).
Ainda sobre os costumes dos gentios, em outra passagem dos Diálogos das
grandezas do Brasil, Brandônio, de forma arguta, informa a Alviano que aos índios
falta bom entendimento, que ficam cegos com os feiticeiros, que usam de sua falsidade
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e mentira para enganá-los. Nessa mesma esteira está o discurso de Gabriel Soares de
Souza no Tratado descritivo do Brasil em 1587, onde escreve que:
Entre este gentio Tupinambá ha grandes feiticeiros, que têm este nome entre
elles, por lhe metterem em cabeça mil mentiras; os quaes feiticeiros vivem
em casa apartada cada um por si, a qual é muito escura e tem a porta muito
pequena, pela qual não ousa ninguem de entrar em sua casa, nem de lhe tocar
em cousa della; os quaes pela maior parte não sabem nada, e para se fazerem
estimar e temer tomam este officio, por entenderem com quanta facilidade se
mette em cabeça a esta gente qualquer cousa; mas ha alguns que fallam com
os diabos, que os espancam muitas vezes, os quaes os fazem muitas vezes
ficar em falta com o que dizem; pelo que não são tão cridos dos indios como
temidos. (Souza, 1987: 322).
Tanto Gabriel Soares de Souza quanto Ambrósio Fernandes Brandão comentam
que os pajés dos índios não são legítimos feiticeiros, devendo-se à falta de um governo
mais racional entre os indígenas, que terminam acreditando, por suas superstições
naturais, em mentiras e falsidades pregadas pelos ditos feiticeiros. Na passagem a
seguir, Brandônio comenta a respeito desses feiticeiros que, com suas profecias e
superstições, lançam os índios em situações complicadas, chegando mesmo a miséria,
como na história narrada a Alviano.
Nada basta a lhes tirar do pensamento semelhante erronia, em que seus pais
os puzeram, com haverem já recebido grandissimos damnos por darem
credito a estes feiticeiros; e, pera prova disto, vos quero contar uma historia
assás galante, a qual foi que nos tempos passados houve um feiticeiro destes,
que affirmou aos indios que a terra, pera adiante, havia de produzir os frutos
de por si, sem nunhuma cultra nem beneficio; portanto que bem podeiam
todos folgar e dar-se á bôa vida com se lançarem a dormir, porque a terra
teria cuidado de lhes acudir com os mantimentos a seu tempo. Tanto credito
lhe deram os pobres indios, que o fizeram da maneira que lhes elle
aconselhou, com virem a padecer, por esta via, a mais trabalhosa fome, que
nunca se sabe haver neste Estado; em tanto que chegaram, obrigados da
necessidade, a se venderem a si e as mulheres e filhos por uma espiga de
milho, que não póde ser maior miseria. (Brandão, 1930: 274).
Alviano, mais que depressa, os compara aos bugios, espécies de macacos, que
desprovidos de uma maior racionalidade se deixam prender porque não conseguem
largar o que apanharam:
Comparo isso ao dos bugios, que me contastes, que mettiam a mão pela boca
da botija vasia, e despois a não podiam tirar, e por não saberem largar o que
apanharam se deixavam captivar; donde infiro que gentes que a semelhante
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cousa dão credito, devem de ser da maneira dos mesmos bugios. (Brandão,
1930: 274).
Alviano refere-se a descrição dos bugios feita por Brandônio, destacando esses
animais por características que se assemelham aos seres humanos. Nos Dialógos de
Brandão, esses animais recebem um tratamento mais elaborado, portadores de
qualidades admiráveis. Ao discorrer sobre as diferentes habilidades e costumes dos
bugios, Brandônio dá um toque fabuloso a esses animais, que devido a suas habilidades
e capacidade de organização mais aproximadas da racionalidade humana, parecem
receber um status superior ao dado aos brasílindios. Embora o bestiário não trata dessa
casta de animais, há o símio, nele tratado, que recebe uma forte carga negativa ao ser
referido ao Demônio. Dessa forma o brasílindio mais se aproxima dessa carga negativa
encontrada nos símios dos bestiários. Essa maneira de perceber o outro indígena, numa
espécie de silogismo, no qual o índio é retratado com atitudes e comportamento de
animais, como o de um símio, e alguns animais, como os bugios, reconhecidos por suas
qualidades humanas, marca uma das estratégias retóricas usadas no discurso controlador
e dominante do colonizador europeu.
Desse modo, a bestialização ou animalização do ameríndio se verifica em
consonância com critérios muito semelhantes aos do bestiário medieval, sendo o nativo
descrito, tal como os animais, como movidos por atributos próprios da brutalidade,
ambos acostumados à liberdade natural e governados por seus próprios instintos. O
bestiário definia e classificava como bestas aqueles animais que, pela sua própria
natureza, tendem à violência e à brutalidade, regidos por seus próprios e irrefreáveis
instintos selvagens (White, 1984: 7).
Ao dialogar com Alviano sobre os tipos de onças e tigres perseguidores do gado
doméstico, Brandônio afirma que esse tipo de animal não mata homem branco, mas o
mesmo não acontece a índios e negros:
ALVIANO
Folgára de saber se assim como accommette e mata o gado, o faz também á
gente.
BRANDÔNIO
A homem branco não ouvi dizer nunca que matassem, mas aos indios e
negros de Guiné sim, quando se acham muito famintos. Tambem ha outra
sorte desta mesma especie, de menor corpo, a que chamam susurana, que
costuma de matar alguns bezerros e gado miudo. Não são tão damninhos
como os outros. (Brandão, 1930: 253-254).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Brandão, Ambrósio Fernandes. 1930. Diálogos das grandezas do Brasil. Rio de Janeiro:
Officina Industrial Graphica.
Cardim, Fernão. 1997. Tratados da Terra e Gente do Brasil; Ana Maria de Azevedo (ed.
lit). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses.
Souza, Gabriel Soares de. 1987. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo:
Companhia Editora Nacional.
White, T. H. 1984. The Book of Beasts: Being a Translation from a Latin Bestiary of the
Twelfth Century Made and Edited by T. H. White. New York: Dover Publications.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações, 1693-1708
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1693
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RESUMO
Antônio Vieira (1608-1697) é considerado um dos maiores autores da língua
portuguesa. A quantidade surpreendente de escritos que produziu é proporcional à
riqueza de temas que tratou de modo retoricamente exemplar. No entanto, a apreciação
positiva desse gigantesco legado não foi sempre unânime – e mesmo hoje não o é,
sobretudo quando são considerados os diversos gêneros utilizados pelo jesuíta. O
confronto dos diferentes juízos e seus critérios revela que as principais divergências têm
origem não no gosto, mas na própria concepção de linguagem que estrutura aqueles
textos: se a língua portuguesa se faz reconhecer no primor das palavras de Vieira, a
concepção de linguagem que as estrutura revela uma descontinuidade profunda. É essa
descontinuidade que motiva o exame atento dos fundamentos da linguagem e da
representação encontrados num texto particularmente problemático: a História do
Futuro. Seguindo os estudos pioneiros sobre as práticas de representação colonial de
João Adolfo Hansen (1989, 2013) e Alcir Pécora (1994), coloco sob exame o modo pelo
qual Vieira articula os conceitos de palavra e de discurso em relação à sua concepção de
história, buscando compreender o ordenamento de sentido de palavras e de eventos a
partir de uma perspectiva temporal particular – a escatologia cristã – em uma construção
essencialmente imagética.
Os escritos de Antônio Vieira revelam todo um arcabouço conceitual que sustenta tanto
a agudeza de sua forma quanto uma concepção retórica e teológica da própria
linguagem e da representação de um modo geral. Compreender essa arquitetura de
sentido é o passo necessário a qualquer leitura que procure dar conta das obras de Vieira
de uma perspectiva historicamente informada.
1 Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (São Paulo, Brasil). Endereço
eletrônico: patricia.camargo@usp.br
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
2 O processo inquisitorial a que Vieira foi submetido de 1660 a 1668 deu-se em torno justamente
de suas proposições a respeito do dom profético de Bandarra e do Quinto Império ou Reino de Cristo
Consumado na Terra – matérias da História do Futuro – provadas com as Trovas do sapateiro que
circulavam em Portugal no século XVII.
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
A imperfeição, neste caso, não é apenas uma circunstância do texto, mas uma
chave para a sua compreensão. Só é possível compreender a extensão e a importância da
obra especulativa de Vieira a partir desse conceito. Isto porque a imperfeição é tomada
como categoria temporal e teológica num discurso que é, ele mesmo, ordenado para
escrever nada menos que a própria história. Sim, trata-se de história, e história do
futuro: termos que não estavam em contradição em uma representação iluminada pela
luz da Graça.
A própria complexidade do estatuto filológico da História do Futuro tem origem
no conceito de representação, e não apenas na condição material dos manuscritos
autógrafos e apógrafos conhecidos. Ela surge principalmente da distância que separa os
códigos de representação neles utilizados e os códigos de recepção que definem o que é
uma obra literária, o que é um gênero literário, o que é representação. Começo por
este lugar de diferença, citando a definição de João Adolfo Hansen e Marcello Moreira
(2013) que é perfeitamente adequada a este tipo de objeto:
Representação é categoria histórica substancialista ou a forma cultural
específica da política católica portuguesa que, no século XVII, estrutura as
práticas discursivas e não-discursivas da Bahia. Categoria tabular, condensa
articulações e referências de sistemas simbólicos anteriores e
contemporâneos como cerrada unidade de metafísica, teologia, política, ética,
direito e retórica escolasticamente doutrinados. Inventada mimeticamente por
procedimentos retóricos, representação determina as representações
particulares como evidentia ou efeito sensível da presença de princípios
teológico-políticos católicos constitutivos das formas das posições sociais de
estamentos e indivíduos unificados como “corpo místico” subordinado no
pacto de sujeição.” (Hansen; Moreira, 2013:292).
No caso específico do discurso de Antônio Vieira, é absolutamente necessário
levar em conta não apenas a doutrina católica de representação como também a doutrina
jesuítica de ordenamento do tempo em função de um fim – no duplo sentido de termo e
finalidade. É a partir desta perspectiva que a História do Futuro se constrói como
instrumento para determinar a continuidade de um discurso e de um decurso como
representação retórico-teológico-política – uma espécie de ‘trindade’ (no sentido
católico) no plano da representação. Essa unidade, já demonstrada por Alcir Pécora em
seu estudo sobre os Sermões de Vieira (1994), confirma-se na leitura do Livro
Anteprimeiro da História do Futuro e das obras especulativas do jesuíta, abrindo um
campo de indagação que antecede a leitura dos escritos de Vieira como documentos ou
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obras de arte literária e que pode talvez fazer justiça a uma história e a uma forma que
envelheceram: a História do Futuro e a retórica teologicamente articulada.
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Lúcio Azevedo, seu biógrafo, não deixou de minimizar o valor histórico dos capítulos
da História do Futuro:
Menos interesse terão os fragmentos como trechos de filosofia da história,
quando desde que Vieira nela aventurou seus passos, enredados na educação
teológica do seu século e em preconceitos pessoais, tantas aquisições nêste
ramo do saber humano tem feito a crítica, e a investigação dos factos que ela
ilumina. Sem embargo não deixam de sêr bom cevo à curiosidade de quem
pretenda conhecer a complicada estructura mental de um homem famoso da
nossa raça, e mimo aos que estudam nos mestres a boa linguagem
portuguêsa. (Azevedo, 1918: 10).
Da História do Futuro não ha que fallar, porque não he propriamente historia,
he uma adivinhação, uma conjectura, uma predicção atrevida, antes um
monstro, de que não he acertado tirar prova alguma, ou contra ou a favor dos
talentos historicos d’aquelle, que a compoz. (Lobo, 1823:68).
Julgamentos fundados em concepções pós-iluministas de história não levaram
em conta o empenho de Antônio Vieira na definição de história como conceito e como
gênero. É no Livro Anteprimeiro que o jesuíta apresenta sua definição de história em
confronto com a definição de profecia:
Os profetas não chamão historias ás profecias, porque não guardão nellas
estylo nem leys de historia: não distinguem os tempos, não assinalão os
lugares, não individuão as pessoas, não seguem a ordem dos casos e
successos; e quando tudo isto vírão e tudo disserão, he envolto em metaforas,
disfarçado em figuras, escurecido em enigmas, e contado (ou cantado) em
frases proprias do espirito e estylo profetico, mais accommodado á
magestade e admiração dos mysterios que á noticia e intelligencia delles.
(Vieira, 1976: 74).
Duas são as características que Vieira aponta como distintivas do gênero
história: a distinção de tempos, lugares e pessoas na narração do que é particular,
segundo a “ordem dos casos e sucessos”, e o estilo utilizado – retoricamente, a matéria
de que se trata, sua disposição e o estilo da elocução (claro, sem enigma). Ao falar da
matéria, Vieira apresenta um paralelismo entre a sua História e as histórias dos
historiadores que ofereciam os modelos do gênero, e expõe a particularidade e
superioridade da sua história:
Pomos hoje no theatro do mundo esta nova historia, por isso chamada ‘do
Futuro’. Não escrevemos com Beroso as antiguidades dos Assyrios, nem com
Xenophonte as dos Persas, nem com Herodoto as dos Egypcios, nem com
Josepho as dos Hebreos, nem com Curcio as dos Macedonios, nem com
Tucidides as dos Gregos, nem com Livio as dos Romanos, nem com
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antes era desconhecido sobre o tempo. Essa analogia só tem valor de exemplo a partir
de um outro pressuposto teológico: o de que toda a Criação, que compreende o tempo, é
obra de Deus, supremo Artífice, que tudo criou para um fim providencial. Portanto, tudo
na Criação tem um sentido misterioso como obra que é, desde a eternidade, concebida
como perfeita e engenhosa, e cujo mistério não se revela inteiramente antes de seu fim –
ou da proximidade de seu fim. O discurso de Vieira se apresenta como imagem
iluminada desse “discurso divino” no decurso histórico: “Impossível pintura parece,
antes dos originaes, retratar as cópias. Assim forão retratos de Christo Abel, Isac,
Joseph, David, antes do Verbo ser homem.” (Vieira 1976:71). Eis o modelo
interpretativo da História do Futuro: como na história escrita por Deus, também na
história de Vieira o decurso histórico é lido como figura.
Antes da objeção de que a interpretação figural que realiza, as metáforas que
utiliza e o argumento de sua História (os eventos futuros) não são próprios da história,
mas da profecia, Vieira já dispõe na mesma metáfora do teatro do mundo solução do
paradoxo de seu “estylo”: ele emula os historiadores e imita o “perfeytissimo Exemplar
de toda a natureza e arte”:
E porque nós, em tudo o que escrevermos, determinamos observar religiosa e
pontualmente todas as leys da historia, seguindo em estylo claro e que todos
possão perceber, a ordem e successão das cousas, não nua e secamente, senão
vestidas e acompanhadas de suas circunstancias; e porque havemos de
distinguir tempos e annos, sinalar provincias e cidades, nomear nações e
ainda pessoas (quanto o sofrer a materia), por isso, sem ambição nem injuria
de ambos os nomes, chamamos a esta narração “historia”, e “Historia do
Futuro”. (Vieira, 1976:74).
Vieira não chegou a escrever essa história, que sobreviveu em seu anúncio.
Sabe-se, a partir do plano da obra (que tem entre seus títulos o de “Esperanças de
Portugal), que Vieira tinha a pretensão de escrever a história universal a partir dos
eventos particulares de seu “último e mais perfeito estado”: o Quinto Império, Império
de Cristo, perfeito porque estendido por toda a Terra, perfeito em seus súditos como
estado de Graça, justiça e paz universal, cujo “tempo, duração e ordem” sua História
pretendia representar. A definição do tempo, lugar e dos meios de instauração do Quinto
Império, a definição desse império, a definição da pessoa de seu imperador temporal
eram matérias próprias do gênero história; o meio para o reconhecimento da verdade e
do sentido dessa história (e requisito para que ela pudesse ser escrita) é a leitura de uma
escrita figurada na realidade dos acontecimentos, misteriosa e divina: a profecia figural.
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Como bem lembra Erich Auerbach em seu estudo Figura, de 1938, desde
Tertuliano (século III) o significado de figura
era totalmente literal e real, pois, até onde havia profecia figural, a figura
possuía tanta realidade histórica quanto aquilo que profetizava. A figura
profética, em seu entendimento, era um fato histórico concreto, preenchida
por fatos históricos concretos. (Auerbach, 1997:28).
Daqui, duas consequências importantes para a compreensão da História de
Vieira como uma interpretação figural dos acontecimentos históricos do passado, de seu
tempo e do tempo que ele supunha próximo: a primeira, a de que a sua História era, a
justo título, a história de fatos concretos; a segunda, a de que a história dos fatos
concretos era exemplo (e, retoricamente, prova) do substancialismo da linguagem pela
qual é possível revelar o mundo como forma concreta do discurso divino – linguagem
que Vieira utiliza quando apresenta metáforas e alegorias como argumentos.
Vê-se no discurso de Vieira uma concepção de linguagem que deve ser
compreendida como fenômeno de longa duração, que vinha dos Padres da Igreja e se
tornou corrente durante a Idade Média. Tanto o substancialismo da linguagem figural,
como a designação do preenchimento como veritas permaneceriam na definição de
figura como allegoria in factis:
O preenchimento é constantemente designado como veritas (...) e a figura,
por sua vez, como umbra ou imago: mas tanto sombra quanto verdade são
abstratas apenas em referência ao significado, a princípio ocultado para ser
revelado em seguida; são concretas em referência às coisas ou pessoas que
aparecem como veículos do significado. (Auerbach, 1997: 31).
Vieira tem a seu favor uma tradição interpretativa autorizada pela Igreja e
utilizada ao longo de séculos para a interpretação da Sagrada Escritura, que ele aplica à
história de seu tempo – o que é não-canônico (porque não autorizado por Concílio ou
decreto papal), mas não deixa de ser verossímil , porque toma como figuras fatos que
têm “realidade histórica” (como toda a história do povo escolhido de Deus nas
narrativas bíblicas, e como a própria história de Jesus e seus discípulos na expansão da
Igreja) e uma realidade literal: a realidade do sentido próprio ou figurado das próprias
palavras escritas com letras. É neste ponto – na definição de um sentido
simultaneamente próprio e figurado – que discurso e decurso se entrecruzam:
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intérprete da história escuríssima dos futuros, instrumento pequeno para uma gigantesca
empresa, para maior maravilha e glória do Autor de toda a história. Se a empresa dos
grandes navegadores parecia impossível, e foi completada (porque era chegado o tempo
de completá-la, como sabido a partir das promessas), também a sua empresa – o
descobrimento do futuro – seria possível, com o mesmo auxílio da Providência, com a
mesma esperança numa profecia – não a do campo de Ourique, mas a de Bandarra.
A interpretação figural autoriza Vieira a fazer uso poético-retórico das figuras de
elocução, que funcionam simultaneamente como argumentos da invenção, de modo que
o “estylo claro e que todos possão perceber” é o estilo que revela o sentido oculto dos
acontecimentos. Do mesmo modo, a interpretação figural autoriza Vieira a modificar a
usual “ordem e successão das cousas”, de modo que a disposição de sua História, por
exigência de seu caráter revelador da analogia entre eventos históricos, siga o princípio
dispositivo da figuração, pelo qual a lógica da relação entre dois eventos históricos não
é a causalidade imediata da sequência temporal, mas a causalidade em seu sentido
escolástico (a relação dos eventos como efeitos de sua Causa Primeira), fundamento da
analogia. Nesta segunda relação de causalidade, o lapso de tempo que separa os eventos
é irrelevante, porque, na qualidade de signos temporais, eles existem no tempo mas são
na eternidade. Na História do Futuro, Vieira também transforma em agudeza essa
diferença entre o lugar dos acontecimentos numa sequência histórica como “processo
horizontal indivisível” (Auerbach 1997:50) e na sua representação como figuras (na
qual os acontecimentos podem ser destacados desse lugar usual e reconhecidos em
eventos distantes e inesperados como ato de revelação da veritas): se os acontecimentos
narrados não são lidos como históricos, não podem ser figuras; se não são lidos como
figuras, não podem revelar a verdade encoberta no futuro.
Esse tipo de representação articula, portanto, uma doutrina teológica do
conhecimento histórico e uma dimensão retórica e política da ordem (de seres, coisas e
palavras) de modo indissociável, e talvez por isso mesmo pareça tão desconcertante. A
consequência dessa leitura dos eventos do tempo presente como um decurso revelador
do sentido das Escrituras, segundo a mesma chave utilizada para leitura das Escrituras
Sagradas como reveladoras da divindade do Cristo, é que ela transforma todo o universo
criado num grande discurso, que se revela como signo. Conhecer significa, para Vieira,
decifrar uma linguagem pela qual não se chega ao conhecimento da Coisa, mas pela
qual se “re-vela” a sua Verdade nas formas do universo visível – o modo sacramental
de representação (Pécora, 1994:112).
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Nesse sentido, talvez seja necessário ler o Livro Anteprimeiro como testemunho
desse ‘outro mundo’: um mundo estranho às categorias epistemológicas dos discursos
iluministas e pós-iluministas, mas teimosamente presente na instituição retórica – que
perdeu sua visibilidade, mas não perdeu a esperança de encontrar a verdade na história,
ou ao menos seus indícios.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações, 1709-1723
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1709
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O trabalho encontra-se filiado à linha de pesquisa dos estudos pós-colonialistas na
perspectiva do discurso do gênero (gender discourse). Com base em achados teóricos e
críticos pertinentes à postura feminista, o trabalho tem por objetivo examinar alguns
aspectos da representação da imagem feminina e de seu processo retórico de
feminização. Esses expedientes discursivos, além de seu propósito referencial,
encontram-se ideariamente carregados ao se fazerem estrategicamente presentes no
discurso dos primeiros textos da descoberta da América e da colonização do Brasil.
Nesse tipo de engendramento colonialista mundonovista, pode ser verificado que o seu
discurso figurativo e argumentativo sustenta a manipulação de uma forjada imagem da
ameríndia que é construída de forma ideológica e simbólica. Tanto em momentos
eufóricos quanto disfóricos dessa visão descobridora e colonialista, essa
sobredeterminação discursiva da imagem da ameríndia, por antonomásia representando
a imagem da própria América, torna-se sexualizada, na medida em que objetifica a
inferioridade do outro sexual por conferir-lhe natureza e atributos bárbaros e
bestializantes. Esse processo elaboradamente retórico visa preservar uma forma de
domínio baseada numa espécie de política sociocultural e histórica de prerrogativas
androcêntricas que, características da mentalidade fundadora da tradição civilizacional e
cultural da Europa ocidental, se apresentam desde sempre autoinvestidas de qualidades
e capacidades superiores.
A revisão a que tem se submetido a questão do gênero, examinada pela reflexão crítica
desconstrutora da dominância patriarcal, tem sido considerada, a exemplo do que faz
Ken K. Ruthven (1984: 9), como um determinante crucial na processo de formação e
consumo do discurso literário. Na esteira dessa postura revisionista propugnada pelas
* Este trabalho se apresenta como produto parcial do projeto de pesquisa intitulado Mulher Difamada e
Mulher Defendida no Pensamento Medieval: Textos Fundadores, que, integrando a Rede Goiana de
Pesquisa sobre a Mulher na Cultura e na Literatura Ocidental da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Goiás (FAPEG), é coordenado pelo Prof. Dr. Pedro Carlos Louzada Fonseca, com apoio
financeiro dessa Fundação para o período de 2014-2016.
1 UFG, Faculdade de Letras, Departamento de Estudos Literários, Campus II (Samambaia)Caixa Postal
131, CEP: 74.001-970, Goiânia, Goiás, Brasil, E-mail: pfonseca@globo.com.
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Tendo por base as reflexões acima, o presente estudo das imagens femininas e
de feminização, enquanto tropologias do discurso do gênero na conquista da América,
verifica que a questão do gênero carrega consigo uma verdadeira carga de valoração
simbólica que se apresenta motivada e agenciada em função de construções sociais,
históricas e culturais.
Uma das mais básicas disposições ideológicas e simbólicas da avaliação da
questão da alteridade, verificada no pensamento histórico e cultural do Ocidente de
origem greco-romana, consiste na consideração tropológica do Oriente como um locus
principalmente construído por imagens características da regência do feminino. De
forma estratégica, ideológica e politicamente informada, essa mesma visão
androcêntrica ocidental torna-se aplicada para representar a realidade das terras e das
gentes do chamado Novo Mundo. Dessa forma, e atendendo às disposições
masculinistas inerentes a essa hegemonia ocidental civilizadora, a sedução simbólica do
gênero feminino, entre outras funções correlatas, atribuída à realidade natural e humana
mundonovistas, devia ser controlada e consumida através da construção de um
imaginário formado por imagens da sensualidade e da sexualidade, num misto de prazer
e promocionalidade, senão de pragmatismo.
Essa vertente política ‘orientalista’ do discurso androcêntrico ocidental
conferido agora na realidade americana, tal qual no seu modelo oriental, conforme será
exemplificado em alguns textos referentes aos descobrimentos e conquista das novas
terras, torna-se envolvida com metáforas de escrutínio erotizado, de penetração e de
consumo. É nesse sentido que a recorrência a uma sexualização da paisagem, conforme
comentam Ella Shohat e Robert Stamm (1994: 146), comanda, nesse discurso que
conquista e coloniza falocentricamente, um observador masculino que antecipa o
completo conhecimento da natureza apresentada como um corpo feminino desnudo.
Um exemplo clássico, entre as várias iconografias feitas no contexto americano
das descobertas e conquista, dessa atitude de posse de novas geografias, que se tornaram
alegoricamente feminizadas pelo explorador e conquistador europeus, é a conhecida
gravura de Theodor Galle do século XVI que representa o encontro da América por
Américo Vespúcio.
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Figura 1. Alegoria da América feminizada e animalizada (ca. 1580). Theodor Galle (1571-
1633). Gravura em metal baseada em um desenho de Jan van der Straet (1523-1605). Recueil
Factice Historiques Amérique. Tome Unique, 1638.
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física e humana a ser conquistada e civilizada, projetada como lados tangíveis de uma
violenta e anárquica luxúria.
Essa lógica de oposições hierárquicas entre o europeu e o outro alienígena
representa-se, no contexto dos descobrimentos e colonização verificados tanto em
direção ao Oriente como em direção à América, sustentada por binarismos morais de
natureza sexual que sediam o descoberto e colonizado em imorais geografias selvagens
e erotizadas, verdadeiros territórios virgens e encobertos, imaginados prontos para
fantasias simbólicas de estupro e resgate (Shohat; Stamm, 1994: 141).
Essa construção tropológica da feminização da América e da sua realidade
natural, assim orientada por uma política sexual, torna-se, a partir dos primeiros textos
dos descobrimentos e colonização, um verdadeiro expediente retórico que se relaciona
com outras tropologias dela derivadas, conforme discute Hayden White (1992: 2), ao
tratar da importância dos tropos nesse tipo de discurso histórico, sem os quais ele não
pode realizar o seu trabalho, nem conseguir a sua finalidade.
Assim reduzida ao feminino, a América torna-se representada de forma
sobredeterminada pela complexa, senão ambivalente, visão patriarcalista que o seu
descobridor e colonizador têm da sua outridade sexual. Essa visão, ressoando aspectos
da sua formação misógina, completa-se ainda com o recurso a outros tropos
relacionados ao da feminização, como por exemplo, a animalização que, quando
referida à figura da ameríndia, torna-a frequentemente lembrada por sua incontida
lascívia associada à selvageria. É nesse sentido que Frantz Fanon (1963: 41-43) observa
que o descobridor e colonizador da América, quando preocupados em descrever o
nativo, de maneira completa e em termos exatos, constantemente se recorrem ao
bestiário para ilustrarem as suas descrições e comparações.
Esse tropos da animalização, intimamente ligado à visão da América enquanto
realidade feminina – e, portanto, trazendo no seu sentido íntimo aspectos derrogatórios
próprios do ideário androcêntrico europeu –, é comentado por Shohat e Stamm (1994:
137) como constituindo parte de um mais amplo, mais difuso mecanismo que consiste
em naturalizar a realidade alienígena, isto é, reduzir o seu componente cultural ao
biológico. Ao associar o colonizado antes ao vegetativo e instintivo do que ao instruído
e cultural – projetando, dessa forma, os povos colonizados mais como corpo do que
mente –, o mundo do gentílico é visto mais como material cru do que como atividade
mental e manufaturada.
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viagem ao Novo Mundo, na qual diz ter navegado bem próximo ao sítio sagrado da
tradição bíblica.
Na descrição, em que tudo deveria parecer motivo de piedade e de fé, o
misticismo do edênico se alia ao sensual buscado ao corpo feminino:
Yo siempre leí que el mundo, tierra e agua, era esférico, e las autoridades y
experiencias que Tolomeo y todos los otros escribieron de este sitio daban e
amostraban para ello, así por eclipses de la Luna y otras demonstraciones que
hacen de Oriente fasta Occidente, como de la elevación del polo de
Septentrión en Austro. Agora vi tanta disconformidad, como ya dije, y por
esto me puse a tener esto del mundo, y fallé que no era redondo en la forma
que escriben; salvo que es de la forma de una pera que sea toda muy redonda,
salvo allí donde tiene el pezón, que allí tiene más alto, o como quien tiene
una pelota muy redonda y en un lugar de ella fuese como una teta de mujer
allí puesta, y que esta parte de este pezón sea la más alta e más propinca al
cielo y sea debajo la línea equinocial y en esta mar océana en fin del Oriente.
[Sempre li que o mundo, terra e agua, era esférico, e as autoridades e
experiências que Ptolomeu e todos os outros escreveram deste lugar davam e
comprovavam isso, quer por eclipses da lua e outras demonstrações que
fazem de Oriente para Ocidente, como da elevação do pólo de Setentrião em
Austro. Agora vi tanta desconformidade, como já disse, e por isso passei a
considerar isto do mundo, e achei que não era redondo da forma como o
descrevem, mas é da forma de uma pera que fosse toda muito redonda,
exceto ali onde tem o pedículo, que ali é mais alto, ou como quem tem uma
bola muito redonda e em algum lugar dela fosse como um mamilo de mulher
ali posto, e que esta parte deste pedículo fosse mais alta e propínqua ao céu e
fosse debaixo da linha equinoccial e neste mar océano no fim do Oriente]
(Colón, 1986: 180-81; tradução minha).
Margarita Zamora, comentando sobre esse motivo da atração sensual exercida
pelas terras descobertas por Colombo, cita o exemplo da carta do Almirante a Santángel
descrevendo Cuba. O texto dessa correspondência
creates in the reader a longing for the land, through a rhetoric of desire that
inscribes ‘the Indies’ in a psychosexual discourse of the feminine whose
principal coordinates are initially beauty and fertility and ultimately
possession and domination.
[cria no leitor uma ansiedade pela terra, através da retórica do desejo que
inscreve ‘as Índias’ num discurso psicossexual do feminine, cujas principais
coordenadas são inicialmente beleza e fertilidade e finalmente possessão e
dominação] (1993: 162; tradução minha).
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Apreciações como essas acerca de ameríndia, feitas de forma ora negativa, ora
positiva, ocorrem em muitos textos sobre os descobrimentos e colonização da América
que, por afinidade no tratamento temático do assunto, devem ser cotejados. Essa
situação ambivalente evidencia de forma clara aquele comentado paradoxo da perfeição
feminina, em que se encontram misturados, de acordo com o complexo psicossexual do
conquistador europeu, a apreciação e a atração pelo feminino bem como a sua repulsa
femifóbica.
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
O curioso é que esse mesmo artifício, relatado por Vespúcio para se referir à
sexualidade mórbida e destruidora da ameríndia, é, mais de meio século depois, também
referido, com um tom mais carregado de censura moral, por Gabriel Soares de Sousa,
em seu Tratado descritivo do Brasil em 1587, no capítulo “Que trata da luxúria destes
bárbaros”, o qual merece ser transcrito na íntegra:
São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não
cometam; os quais sendo de muito pouca idade têm conta com mulheres, e
bem mulheres; porque as velhas, já desestimadas dos que são homens,
granjeiam estes meninos, fazendo-lhes mimos e regalos, e ensinam-lhes a
fazer o que eles não sabem, e não os deixam de dia, nem de noite. É este
gentio tão luxurioso que poucas vezes têm respeito às irmãs e tias, e porque
este pecado é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns
com suas próprias filhas; e não se contentam com uma mulher, mas têm
muitas, como já fica dito pelo que morrem muitos de esfalfados. E em
conversação não sabem falar senão nestas sujidades, que cometem cada hora;
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Simpósio 24 - Literatura, história e imaginário do brasil colonial: escritas e representações
os quais são tão amigos da carne que se não contentam, para seguirem seus
apetites, com o membro genital como a natureza formou; mas há muitos que
lhe costumam pôr o pêlo de um bicho tão peçonhento, que lho faz logo
inchar, com o que têm grandes dores, mais de seis meses, que se lhe vão
gastando espaço de tempo; com o que se lhes faz o seu cano tão disforme de
grosso, que os não podem as mulheres esperar, nem sofrer; e não contentes
estes selvagens de andarem tão encarniçados neste pecado, naturalmente
cometido, são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm
por afronta; e o que se serve de macho, se tem por valente, e contam esta
bestialidade por proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm
tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas (1987: 308).
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1723
SIMPÓSIO 29
ESTUDOS DO ESTILO EM DIFERENTES GÊNEROS
DISCURSIVOS
COORDENADORES
RESUMO
O estilo está diretamente associado ao enunciado e às suas formas características, ou
seja, aos gêneros do discurso. Embora cada gênero apresente características até certo
ponto estáveis, cada enunciado é individual e particular, reflete, pois, a individualidade
de quem fala ou escreve. Pode, portanto, apresentar um estilo individual. Portanto, na
esteira do pensamento bakhtiniano, de acordo com a natureza do enunciado se deve
voltar mais ou menos ao estilo individual. O literário está entre os gêneros mais
favoráveis, portanto, não pode ser estudado sem que se leve em consideração o estilo
individual. Além de se valorizar o estilo individual, o estilo do autor, é preciso ter em
mente que a literatura reflete os estilos da linguagem da época e reproduz em forma de
texto as transformações da língua e da sociedade.
O discurso literário é um ato linguístico e não pode ser isolado dos outros gêneros e
estudado apenas pela Literatura. Deve ser tratado também pela Linguística como um
gênero discursivo plural, refletindo o contexto, a ideologia do autor, o momento sócio-
histórico-cultural, etc (Bakhtin, 2003). A relação texto literário/dimensão sociocultural
pode ser entendida quando se parte do texto para o contexto, isto é, quando se analisa o
texto literário do ponto de vista discursivo.
Introdução
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Questões de estilo
1728
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
também quando se partilham vivências e experiências entre autor, leitor e texto. Para
Eco (1993, p.63), “um texto não é mais do que a estratégia que constitui o universo das
suas interpretações – se não são legítimas, pelo menos legitimáveis”. Dessa forma, “a
interpretação supõe sempre uma dialética entre a estratégia do autor e a resposta do
Leitor-Modelo” (1993:62) e está longe de simplesmente decifrar os sinais gráficos do
texto. Como diz Bosi:
Se os sinais gráficos que desenham a superfície do texto literário fossem
transparentes, se o olho que neles batesse visse de chofre o sentido ali
presente, então não haveria forma simbólica, nem se faria necessário esse
trabalho tenaz que se chama interpretação (BOSI, 1988).
De acordo com essa visão, o leitor está presente na própria constituição da obra,
que não pode, segundo Maingueneau (2012:36) ser concebida como um universo
fechado, “expressão de uma consciência criadora solitária”.
Ainda em se tratando da interpretação, é preciso lembrar que todo enunciado
deve ser relacionado a outros enunciados. Segundo Maingueneau (2012:42), o discurso
é considerado no âmbito do interdiscurso. “Ele só assume um sentido no interior de um
universo de outros discursos através do qual deve abrir seu caminho”.
Caso as relações interdiscursivas não sejam trazidas à tona, o contexto seja
esquecido, as finalidades de elaboração do texto não sejam compreendidas, tanto a
interpretação, quanto o significado do texto literário ficam completamente restritos. Em
relação aos estudos do léxico no discurso literário, percebe-se que muitas vezes se
restringiam apenas ao campo linguístico, priorizando o cotexto, preocupando-se com
estatísticas, com análises sêmicas ou morfológicas, não mirando seu olhar para a
realidade extralinguística. As unidades lexicais relacionam-se diretamente com os
fenômenos extralinguísticos, seja mostrando a visão de mundo do autor ou apontando
para o contexto sócio-histórico (MAINGUENEAU, 2012:33).
Finaliza-se este item com as palavras de Antônio Cândido sobre as obras
literárias:
Não podem ser desligadas do contexto, — isto é, da pessoa que as interpreta,
função das quais foram elaboradas e são executadas. Feitas para serem
1735
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
palavra atuante, são menos e mais do que um registro a ser animado pelo
Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADAM, Jean Michel, HEIDMANN, Ute. 2011. O texto literário: por uma abordagem
interdisciplinar. São Paulo: Cortez.
1736
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
BALLY, Charles. (1951) Traité de stylistique française. Genève: Georg & cie.
BAKHTIN, Michail. (2003) Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.
BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In: Folha de São Paulo, 05/03/1988,
disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br/bosi5.htm
CÂNDIDO, Antônio. 2006. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
1737
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1738
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos, 1739-1754
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1739
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Partindo do conceito de gênero discursivo, apresentamos neste artigo uma proposta para
o estudo dialógico-discursivo do estilo no gênero canção popular brasileira. O trabalho
com as teorias discursivas dialógicas exige a proposição de novas formas de abordagem
da canção popular que deem conta da complexidade de seu sincretismo entre a letra e a
melodia e, ao mesmo tempo, das relações entre o enunciado e seu contexto discursivo.
Este artigo detém-se especificamente nas relações entre o prosaico e o poético na
constituição das letras de canções populares, pretendendo mostrar que a sua principal
característica é o dialogismo entre a linguagem prosaica do cotidiano e a linguagem
poética. A fim de observar as características do estilo do gênero canção popular,
analisamos a letra de algumas canções, procurando compreender como se estabelecem
as relações entre o prosaico e o poético nesses enunciados e também como se
constituem as relações dialógicas entre os diversos enunciados desse gênero.
Introdução
1739
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1740
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
este artigo pretende mostrar que a principal característica do gênero canção popular é o
dialogismo entre a linguagem prosaica do cotidiano e a linguagem poética.
1741
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1742
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
tendendo assim à monoglossia. Para falar de mundos estranhos a ele, o poeta utiliza a
sua própria linguagem, dispensando a do “outro”; ao contrário do prosador que
representa o seu mundo utilizando outras linguagens. O prosador posiciona-se como
uma voz entre outras, já o poeta pretende ser a única voz:
Nos gêneros poéticos (em sentido restrito) a dialogização natural do discurso
não é utilizada literariamente, o discurso satisfaz a si mesmo e não admite
enunciações de outrem fora de seus limites. O estilo poético é
convencionalmente privado de qualquer interação com o discurso alheio, de
qualquer "olhar" para o discurso alheio (BAKHTIN, 2002a [1934-1935]:93).
Tanto o discurso poético quanto o prosaico são determinados social e
historicamente, entretanto no poético refletem-se processos linguísticos de longa
duração, visto que há uma tendência à preservação de estilos como escolas e
movimentos literários, tanto que as rupturas são bem visíveis. O estilo prosaico é mais
sensível às variações sociais cotidianas como os modismos e os jargões. A linguagem
da poesia pretende-se atemporal como "eco de uma música eterna" (MORSON, 2008,
p.337), ao contrário da prosa, que está viva no uso cotidiano da vida social.
O estilo poético pretende-se alheio às formas de heteroglossia. O vocabulário, a
semântica e as formas sintáticas das outras linguagens são evitadas, a fim de negar a
limitação histórica, a determinação social e a especificidade prosaica da língua. No
discurso poético, o plurilinguismo não pode predominar, pois a linguagem do poeta é
única, formada à parte de toda heteroglossia:
Por causa das exigências analisadas, a linguagem dos gêneros poéticos,
quando estes se aproximam do seu limite estilístico, torna-se frequentemente
autoritária, dogmática e conservadora, fechando-se à influência dos dialetos
sociais não literários. Portanto, em matéria de poesia, é possível a idéia de
uma "linguagem poética" especial, de uma "linguagem dos deuses", de uma
"linguagem sacerdotal da poesia", etc. (BAKHTIN, 2002a [1934-1935]:95).
Em suas polêmicas considerações a respeito do monologismo do discurso
poético, Bakhtin demonstra que o plurilinguismo social e histórico lhe é incompatível,
reinando a unicidade e a individualidade linguísticas2:
A exigência fundamental do estilo poético é a responsabilidade
constante e direta do poeta pela linguagem de toda a obra como sua
própria linguagem, a completa solidariedade com cada elemento, tom
2 Bakhtin tem como parâmetro para suas reflexões a poesia anterior ao século XX, principalmente a do
século XIX.
1743
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
3 O mesmo ocorreu com o advento da poesia concreta que buscou no visual gráfico uma nova alternativa
pós-modernista.
1744
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
poesia predomina o poético, sempre; entretanto, pode haver uma gradação do poético
para o prosaico.
O extremo poético caracteriza-se pela centralização linguística por meio de
recursos como o verso, a métrica e a rima, e pelo isolamento semântico-ideológico,
como voz única e soberana. Esses recursos característicos do estilo poético isolam a sua
linguagem das outras, demarcando e delimitando seu território na heteroglossia.
Nos gêneros poéticos inferiores como as sátiras e as comédias, há espaço para o
plurilinguismo, mesmo que apenas representado, reificado e não verdadeiramente como
consciência linguística do mundo. As diversas linguagens trabalhadas nos gêneros
"baixos", na maioria das vezes, são totalmente alteradas em sua entonação e ritmo de
acordo com a linguagem do autor e do estilo do gênero.
Para reelaborar o material linguístico do plurilinguismo com que está em
constante dialogismo, o discurso poético precisa suprimir as marcas discursivas da vida
ordinária. Um dos recursos mais importantes para isso é o ritmo dos versos que
caracteriza o estilo poético. O metro é uma força milenar da poesia, ponto de contato
com o canto, que se afasta da linguagem comum e da fala cotidiana; “cantar é um ato
que transforma o outro imediatamente em ouvinte passivo ou, no máximo, em eco da
voz que canta, repetindo-lhe o refrão” (TEZZA, 2006:208).
No caso do gênero canção popular, ainda que uma letra possa utilizar palavras,
expressões e gêneros da língua ordinária, esses elementos são retrabalhados pelo letrista
que lhes dará outra forma, outra entonação e outro ritmo poéticos.
Um dos elementos poéticos mais importantes nas letras das canções é a rima, um
recurso de coesão sonora, como podemos observar na marchinha Cidade maravilhosa,
de André Filho, gravada em 1934:
Cidade maravilhosa
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa
Coração do meu Brasil
1745
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
(Refrão)
1746
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Ainda que seja um recurso muito utilizado, a letra de uma canção não
necessariamente deve ser elaborada com rimas. Um exemplo é Súplica, de Otávio
Gabus Mendes, José Marcílio e Déo. Apesar dessa característica incomum para as
canções da época, essa valsa alcançou grande sucesso em 1940 na voz de Orlando Silva:
Aço frio de um punhal
Foi seu adeus para mim
Não crendo na verdade
Implorei, pedi
As súplicas morreram
Sem eco, em vão
Batendo nas paredes frias do apartamento
1747
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1748
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
4 Ainda que em 2010 a Academia Brasileira de Letras tenha reconhecido e homenageado Noel Rosa
como um dos mais importantes poetas da língua cantada.
1749
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1750
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
1751
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Nasce do coração.
O estilo da letra de Feitio de oração oscila para o poético em construções como
dor tão cruel desta saudade, [...] é chorar de alegria/ É sorrir de nostalgia/ Dentro da
melodia; e para o prosaico, ao recuperar expressões populares Quem acha vive se
perdendo e Ninguém aprende samba no colégio. O uso de palavras não poéticas,
segundo os padrões estéticos da poesia romântico-parnasiana que vigorava à época,
como morro, batuque, samba e minha morena remete ao léxico das classes populares e
não letradas.
O poético sempre foi característica das letras de canções. Na primeira metade do
século XX, vários letristas imitavam o estilo dos poetas romântico-parnasianos, como o
renomado Catulo da Paixão Cearense, que compôs os versos para a o sucesso
instrumental Talento e formosura, de Edmundo Otávio Ferreira, em 1905:
Tu podes bem guardar os dons da formosura
Que o tempo, um dia, há de implacável trucidar
Tu podes bem viver ufana de ventura
Que a natureza, cegamente, quis te dar
Prossegue embora em flóreas sendas sempre ovante
De glórias cheia no teu sólio triunfante
Que antes que a morte vibre em ti funéreo golpe seu
A natureza irá roubando o que te deu [...]
A escolha lexical do letrista nessa canção tem em vista os padrões da poesia
culta: as palavras são belas e raras, as metáforas, as inversões e as aliterações vinculam
o enunciado a uma estética que valoriza a poesia burilada. Esse enunciado distancia-se
do plurilinguismo prosaico e investe no poético.
A canção é um gênero que dialoga tanto com o prosaico quanto com o poético. O estilo
da letra de canção sempre é poético, o que interessa observar é o quão prosaica a canção
pretende ser. Se a canção tende ao poético, o seu dialogismo com a poesia é maior; se
ela tende ao prosaico, a fala do cotidiano predomina.
Todo discurso constitui-se pela heteroglossia, pois o seu potencial realiza-se na
interação com outras linguagens, logo ele não é elaborado a partir de uma língua neutra,
como um sistema virtual. As palavras são tomadas sempre da boca de outros falantes a
serviço de suas intenções discursivas e submetidas aos seus elementos estratificantes
(esferas discursivas, gêneros, entonações expressivas, léxico, organização sintática etc.).
Compete ao compositor tomar essas palavras "de segunda mão" e reelaborá-las segundo
suas intenções:
1752
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1753
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. 2002. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Tradução de Aurora Fornoni Bernardini [et al.]. São Paulo: UNESP.
1754
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos, 1755-1774
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1755
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Com o objetivo de avançar na definição do estilo dos gêneros digitais na educação,
continuamos nossa pesquisa – iniciada com a análise dos chats e fóruns – no estudo do
gênero blog, muito utilizado também em contextos de ensino-aprendizagem. As análises
são feitas pelo viés da teoria Semiótica Francesa, aliada à teoria dos gêneros de Bakhtin
(2010) e aos estudos sobre o estilo (Discini, 2004). Compreendemos, nesse estudo de
práticas educativas, os mecanismos de produção de sentido vinculados a ajustamentos
sensíveis necessários à adaptação dos sujeitos ao mundo digital. Tratamos das
regularidades e sensibilidades que constituem as práticas digitais, as quais, atreladas aos
gêneros, neles se manifestam como sistema de regras passíveis de inovações em uso. No
recorte de três blogs de interações realizadas em 2014, propomos uma análise baseada
em categorias já utilizadas em nosso estudo anterior, de chats de fóruns (Pereira, 2013):
vetores temática e composição como orientação do estilo do gênero e procedimentos de
ajustamento desenvolvidos pelos sujeitos, entre outras encontradas no estudo do blog.
INTRODUÇÃO
Este texto busca apresentar e discutir uma pesquisa em curso sobre o estilo dos
gêneros digitais na esfera educacional. Em nossa pesquisa de doutorado, concluída em
2013, realizamos um estudo de três chats e três fóruns de cada um dos dois cursos que
acompanhamos em 2010: “Pesquisa Acadêmica na Web” e “Games em Educação no
Second Life”. Algumas conclusões desse estudo apontaram para condições mais livres
de participação nas interações online relativas aos gêneros digitais, especialmente em
função da flexibilidade espacial, da permutabilidade de papéis conversacionais e, em
* Trabalho apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.
1 UFTM, Instituto de Ciências Exatas, Naturais e Educação, Departamento de Educação em Ciências,
Matemática e Tecnologias, Av. Dr. Randolfo Borges, 1400 – Univerdecidade
CEP: 38.064-200 - Uberaba-MG, Brasil, daniervelin@gmail.com
1755
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
alguns casos, das posições discursivas que remetem a papéis sociais definidos
(professor/aluno). Como gêneros digitais, entendemos que:
Trata-se de uma classe de gêneros determinada pela forma como são
realizados no ambiente digital, isto é, pelas especificidades que o modo de ser
digital implica para a configuração dos enunciados, no que diz respeito à
composição, à temática e ao estilo. Não basta, assim, que ele transite no
ciberespaço com suporte digital, mas, sim, que em seu “corpo” haja traços
caracterizantes desse pertencimento, como: produção e recepção do texto
online, presença de links e formas que facilitem a leitura em tela, entre
outros. No caso dos gêneros digitais realizados na esfera pedagógica, eles são
influenciados, também, em maior ou menor grau, pelo modo de ser
pedagógico, de acordo com as estratégias adotadas pelo enunciador para a
comunicação em cada tipo de gênero, sendo os mais recorrentes: chat, fórum,
e-mail, videoconferência, mural, portifólio e questionário, entre outros
(Pereira, 2013: 160).
Chats e fóruns, então, são só dois dos vários gêneros digitais que são
extensamente utilizados nas práticas educacionais contemporâneas. Sendo assim, faz-se
necessário analisar outros desses gêneros, se queremos chegar a resultados mais
científicos sobre o estilo do gênero digital em contextos educacionais. É por esse
motivo que aqui nos dedicamos a outros dos gêneros2 mais populares em atividades
didáticas, servindo mesmo como plataforma aberta para abrigar cursos: o blog
educacional.
Selecionamos para esta investigação que ora apresentamos três exemplos de
blogs, que têm, em comum, propostas educacionais. Apesar dessa afinidade, eles
mostram peculiaridades que nos permitem, já de início, afirmar sobre a versatilidade
desse gênero assíncrono (de interações não concomitantes). Passaremos à descrição dos
três, de maneira a demonstrar essa afirmação.
Caracterização geral:
2 Sabemos que, em muitos casos, o blog pode se configurar como suporte, acolhendo alguns tipos de
gêneros, como chat, aplicativos de estatística de acesso, mapas, entre outros. Na seleção feita para esta
pesquisa, foram escolhidos os que se especificavam como gênero blog educacional, cujo foco são as
postagens em torno de questões de ensino-aprendizagem.
1756
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1757
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
O BLOG
3 Web significa rede de computadores e log, registro, diário de navegação (bordo). O Weblog, segundo
Caiado (2007), foi assim batizado por Jorn Barger em dezembro de 1997.
1758
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
dizer que os textos, mesmo depois de publicados, podem sofrer atualizações por seu
autor. A frequência das postagens pode variar: há sites com postagens diárias, ou
mesmo várias ao dia; em outros casos as postagens ora são esparsas no tempo, ora
concentradas em determinado perío
período.
do. As postagens podem ser organizadas por
categorias (tags), que facilitam as buscas no blog, e são arquivadas pela data de
publicação, sendo possível, geralmente por um menu, visualizar o encadeamento dos
títulos, como podemos verificar no menu direito da Figura 1:
1759
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
O blog também não ficou limitado aos temas biográficos e hoje pode-se
encontrar blogs para divulgação de eventos, projetos, etc.; para realização de atividades
didáticas diversas; para realização de eventos, entre outros objetivos. A historização de
si mesmo é mantida como um perfil representativo dos blogs, mas também se
acrescenta a ele uma necessidade de documentar outros temas, externos. Ainda assim,
ambos apresentam em comum a reunião dos textos em um mesmo local, organizados
sob uma temática central e motivados por uma situação comunicativa semelhante: a
necessidade de compartilhar publicações, em geral diárias, entre um ou mais autores e
seus leitores. Essa observação nos permite aproximar as diferentes postagens de um
blog por um ou mais estilos autorais e um estilo genérico.
Ao contrário dos diários de suporte em papel, comumente conhecidos pelo
caráter intimista e discreto, podemos destacar que a divulgação online das informações
como prática inerente ao blog o insere em uma outra instância social, mais pública e
exposta, em que não se pode e nem se quer restringir as informações. Ao observar esse
desejo de difusão das informações compartilhadas, Komesu (2004: 117) lembra que o
usuário do blog busca tornar o ambiente de escrita o mais atraente possível, preocupado
geralmente com questões do tipo: “Como obter a atenção do Outro? Como dar
visibilidade ao blog para que ele seja acessado por outros milhares de usuários?”. A
escolha de templates4 coloridos, diversificados, ou mesmo a criação de imagens
estilizadas para o blog são soluções encontradas pelos seus usuários.
Ademais, nota-se a possibilidade de a autoria ser compartilhada, já que o
administrador do site pode permitir que outros sujeitos publiquem textos no mesmo
blog, como já antecipamos ao falar em estilos autorais.
Uma outra característica importante para nosso estudo é a interatividade,
garantida pelo diálogo com os leitores pelos comentários e pela habitual presença de
links nos textos e no próprio ambiente do blog. Pelos hiperlinks, a intertextualidade se
materializa explicitamente, como próprio do modo de escrita nos gêneros digitais, já
verificado em nossos trabalhos anteriores (Pereira, 2013, 2014).
1760
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
BLOGS EDUCACIONAIS
1761
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Esta descoberta, no meu caso foi como abrir cortinas, em meus olhos e o
começar de uma outra possibilidade de vivenciar o conhecimento e a
5
comunicação. Viva! (Sujeito 1 ).
Fonte: <http://lecampouftmturma1.blogspot.com.br/2015/01/bem-vindoa-
este-e-o-blog-da-turma-1-da.html>. Acesso em: 04 mar. 2015.
Por meio de metáforas (“abrir cortinas”, “criança dando seu primeiro passo”), os
alunos manifestam que, para eles, essa experiência é inicial, isto é, o objeto “uso de
blog”, antes desconhecido, passa a ser uma descoberta e um objeto de valor positivo,
que é um caminho para a aquisição de “conhecimento, comunicação” e “aprender algo
prazeroso”. Além disso, há comentário com um conjunto aleatório de letras:
“b2h3u6y4hj86rhnib”, possivelmente um teste do usuário para entender como funciona
a ferramenta. Em outras palavras, com base na semiótica, o uso do blog é um programa
narrativo de uso (pressuposto) para se chegar a um programa narrativo de base (final):
alcançar novos conhecimentos. Dessa forma, percebemos que a sequência de postagens
serviu para auxiliar os alunos a entender como utilizar o blog como uma ferramenta na
educação a partir do seu uso na prática.
O professor utiliza ainda como recurso os temas afins do curso, como propor
uma reflexão sobre o símbolo da educação do campo: o girassol, fazer uma enquete
sobre preferências de visitas a serem realizadas no próximo Tempo-Escola6 do curso.
Cabe refletir sobre o papel do professor nessa atividade. Ele fomenta as discussões, por
perguntas, poemas provocativos, votação, atividade que consiste em uma frase a ser
completada nos comentários, como em: “O poema "Cantiga dos Ais" é um importante
poema de língua portuguesa porque...”. É aquele que escolhe as atividades e temas, e
estipula normas, como data de entrega das tarefas.
Sobre a composição do blog, há pouco emprego de recursos comuns ao meio
digital, como links e nota-se ausência de recursos midiáticos, como vídeos. Não se
empregam emoticons, comuns em gêneros digitais. Quando ocorre a menção a um
poema, esse não é citado, o que poderia ser facilmente feito com um link para uma
página da web que oferece o conteúdo.
5 Os nomes dos participantes do blog foram substituídos pela designação “sujeito” e numeração
sequencial, como critério metodológico deste trabalho.
6 Tempo-Escola é a expressão usada para se referir ao período de aulas intensivas que os alunos do curso
Licenciatura em Educação do Campo realizam nos meses de julho e janeiro.
1762
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
A temática, como lembra Fiorin (2008: 5), “não é o assunto de que trata o texto,
mas é a esfera de sentido de que trata o gênero. Assim, numa conversa de amigos, a
temática são os acontecimentos de nossa vida mesmo íntima”. No caso desse Blog 1, a
temática são as experiências tecnológicas que permitem aos envolvidos vivenciar a
ferramenta digital ao mesmo tempo em que abordam questões próprias do curso.
O Blog 1 é constituído pelo estilo “aula prática”, desmembrada em atividades didáticas,
como se pode exemplificar por esta postagem:
A aula de hoje terá a seguinte estrutura:
2. Pesquisa em blogs
Fonte: <http://lecampouftmturma1.blogspot.com.br/2015/01/aula-23-de-
janeiro-aula-de-hoje-tera.html>. Acesso em: 04 mar. 2015.
1763
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
7 Aquele que comunica ao destinatário não somente os elementos da competência modal (dever ou
querer, saber e poder), mas também os valores em jogo. É também quem sanciona a performance do
destinatário-sujeito (Greimas; Courtés, 2008: 132).
1764
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
sobre seu trabalho outros olhares e outros espaços de circulação, para além da sala de
aula.
Como todo evento aberto, as discussões pelos comentários manifestam a
diversidade, a polifonia. É o que mostra um curioso post que parte de um artigo crítico
sobre a disciplina e escolha temática e chega a uma polêmica, mas saudável, discussão:
<http://textolivre.pro.br/blog/?p=655>. Os alunos criticam a organização do Moodle
(plataforma digital para administração do curso) e manifestam a resistência não só à
modalidade a distância da disciplina como ao tema central que a orienta: Software
Livre. Sem entrar em detalhes, tomamos essa discussão como pista para a compreensão
da temática do Blog 2 como gênero: podemos dizer que são discussões em torno das
práticas textuais e discursivas de uma disciplina e que são levadas a público em formato
de evento online, permitindo diversidade de opiniões tanto por artigos como por
comentários a eles.
A estrutura composicional é mais complexa do que a do Blog 1, pois envolve
menu superior por categorias do site; menu da direita com lista de links pertinentes a um
evento (como “inscrição”, “datas importantes”, entre outros) e também com a
organização dos tópicos por edição do evento. São utilizados diversos recursos
midiáticos e em diversas linguagens, embora a verbal escrita seja a mais comum.
Curiosamente, o blog apresenta uma imagem no menu da direita referente ao “IBSN:
Internet Blog Serial Number” (Ver Figura 2). Nota-se, aqui, uma tentativa de dar
credibilidade ao blog, como espaço confiável para as práticas acadêmicas e extensivas.
A exemplo dos ISBN (para livros) e ISSN (para revistas), o blog ganha sua
institucionalização com esse recurso. As postagens se organizam, em geral, com a
publicação do resumo do artigo, nome e e-mail do autor, com o link para o trabalho
completo. Tais postagens são seguidas dos comentários dos participantes do evento.
1765
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
outros. Não se encontram apenas os gêneros artigo ou atividade didática, mas também
poemas, narrativas, receitas, entrevistas, enquetes, entre outros, que figuram ora como
tema de discussão, ora como gênero abrigado pelo blog. Os temas são diversificados e
muitas postagens são curtas, com um link, uma citação, uma enquete, sempre
encabeçados por uma imagem.
Importante destacar que o Blog 3, ao contrário dos dois anteriores, não apresenta
uma diagramação tradicional, com postagens em uma sequência vertical, uma seguida
da outra. Como pode-se notar na Figura 2, os títulos com link para o texto completo são
encabeçados por imagens e são postos de forma irregular ao lado, acima e ao lado dos
outros.
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
(Fonte: <https://dialogosassessoria.wordpress.com/2015/01/22/tecnologias-
da-informacao-e-resolucao-de-problemas/>. Acesso em: 10 mar. 2015).
Por esse enunciado, percebemos que o sujeito aluno é pensado como aquele que
precisa ser estimulado para seu desenvolvimento como aluno e cidadão, e o qual recebe
apoio da escola e da mediação pelas TICs que estão, aqui, positivamente associadas às
práticas educativas. Importante ressaltar que, por não ter um campo específico de
circulação, como a sala de aula ou participantes de evento, como nos casos anteriores, o
Blog 3 não apresenta muita interação por comentários, sendo essa em casos pontuais
orientados pelo interesse de algum visitante.
Em relação à língua, adota-se, no Blog 3, uma posição atrelada às tendências
sociolinguísticas muito difundidas, que podemos encontrar, por exemplo, nas obras de
Bortoni-Ricardo (2004) e Bagno (2009). As autoras do blog consideram que
O novo modo de olhar para a língua, como fenômeno social que é, sempre
mutável, está correto. A língua, nessa perspectiva, é estudada de acordo com
sua natureza, ou seja, como nascida dos processos de comunicação social,
transformada e viva pelo seu uso contínuo, histórico. Adotar esse modo de
ver a língua e seu ensino valoriza a pessoa, o cidadão, qualquer que seja seu
modo de falar (Fonte: <https://dialogosassessoria.wordpress.com/
2015/03/03/falar-corretamente-ou-falar-adequadamente/>. Acesso em: 10
mar. 2015).
Ao tomar a língua como social e histórica, o falante surge como sujeito de saber
e poder, não só apto a utilizar a língua do seu modo, mas também como merecedor de
valorização no contexto educacional. Ambos os enunciados apresentados sinalizam uma
concepção ideológica de respeito ao diálogo, à diferença e à colaboração,
principalmente.
Podemos dizer que o Blog 3 caracteriza-se pela universalidade em seu modo de
escolha de objetos de conhecimento (os assuntos vão desde os específicos da língua, da
relação professor-aluno até outros mais gerais, como postagens orientadas por dias
festivos e de conhecimentos gerais) e pela larga abrangência de formatos dos textos. Por
essa extensidade, muitas vezes o blog em si, como objeto de estudos, se torna
“escorregadio” e difícil de receber contornos nítidos nesta investigação. Dessa forma, o
estilo desse blog pode ser depreendido como “site” aberto à pluralidade de objetos,
manifestada na intertextualidade, na polifonia e na interdisciplinaridade em torno do
tema central “leitura e escrita”.
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
A análise dos três blogs que compõem nosso corpus, ainda que sucinta, nos
permite vislumbrar um perfil genérico e discursivo buscado neste estudo. Esse corpus
figura aqui como totalidade metodológica, por meio da qual identificamos uma
representatividade dos blogs educacionais, inclusive ao indicar a diversidade de
formatos e possibilidades temáticas.
Embora nem todos os blogs analisados façam uso das multimodalidades,
observamos que ele pode acolher tantas quantas linguagens há. Notamos como
característica a extensidade espacial (é importante que as postagens circulem e ocupem
lugar na rede), a manutenção na rede (temporal), apesar de dependente dos serviços da
web. Assim como o fórum e o chat, o sistema do blog também indica o momento de
publicação, adicionando automaticamente a hora. Valoriza-se a divulgação (pode ser
visto por todos que tenham acesso à internet), em oposição à conservação, característica
de gêneros afins, como o diário. Além disso, o blog pode ser editado e reeditado mesmo
após a publicação de um texto, que ressalta seu caráter mutável.
Pelas análises, percebemos que o blog, independente da plataforma que o acolhe,
permite maior concentração (um tema central e interação professor-alunos – Blog 1) ou
maior difusão (vários temas e interação com um público-alvo numeroso – Blogs 2 e 3).
Ele possibilita ainda diferentes estilos, de acordo com a situação comunicativa buscada:
aula, evento ou site de divulgação. Esse ajustamento já foi observado também em outros
gêneros digitais e é motivado pela necessidade de “realização mútua” (Landowski,
2006: 46) pela troca de saberes.
No que diz respeito à relação professor-aluno, enunciador-enunciatário,
observamos tanto a relação mais tradicional, entre professor e aluno, quanto uma
relação menos determinada, em que podem dialogar acadêmicos e comunidade externa.
Lembramos aqui o conceito de vetor estilístico de Discini (2012): segmento
orientador do estilo, sendo uma direção ou orientação a uma mesma expressividade.
Discini (2012) postula que composição e temática se arranjam na formação do todo de
um gênero e daí vem o estilo, como expressividade ou tom. A pesquisadora entende,
assim, que “a composição e a temática se firmam como vetores do estilo do gênero, na
medida em que orientam o gênero para essa mesma expressividade” (Discini, 2012: 78).
Ao longo desse texto, temos levantado a temática, composição e estilo de cada
um dos blogs analisados. Isso ocorre porque, de acordo com Bakhtin (2010), estão
1769
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
educação a distância, software livre (Blog 2), leitura e escrita, interação, língua
portuguesa (Blog 3). Esses temas são pouco figurativizados, uma vez que aparecem em
textos predominantemente abstratos, mas podemos mencionar algumas figuras como
exemplo: blog, wikispace, professor, aluno (Blog 1), evento, hackers (Blog 2), gênero,
livro, conversa (Blog 3).
Destacamos que o conceito de estilo tomado para este estudo é o de “um modo
próprio de dizer de uma enunciação, única, depreensível de uma totalidade enunciada”
(Discini, 2004: 17). Para se chegar a um estilo, é preciso, portanto, compreender como
se organizam, na forma do enunciado, os elementos expressivos que lhe garantem
especificidade e as significações que daí emergem no conjunto do gênero.
Nesse sentido, acreditamos que alguns elementos relevantes para a
caracterização do estilo do blog educacional são: predominância de enunciados em
registro formal; flexibilidade para acolhimento de diferentes temáticas; possibilidade de
edição da mensagem publicada; possibilidade de compartilhamento do papel de autor;
separação clara entre a parte dedicada à mensagem principal (em geral, em terceira
pessoa) e a parte para o diálogo com os visitantes do blog (em geral, em primeira
pessoa); identificação clara do tempo e espaço de enunciação; organização cronológica
das postagens; variedade de recursos midiáticos possíveis tanto na mensagem como em
menus do blog; interatividade marcada em todos os enunciados compartilhados para um
determinado público, definido pelos temas, figuras e modo de dizer, entre outros.
Desses traços, podemos compreender o blog como espaço que permite um vasto leque
de configurações (à moda de aula, pergunta-resposta, evento, site de divulgação, pelo
menos), de maneira a facilitar o ajustamento do sujeito no ambiente digital.
Esse ajustamento é o espaço para a subjetividade e se manifesta aqui na relativa
liberdade dos enunciadores para configurar os gêneros e, no caso do enunciatário, não
só no ato de tomada de turno, mas na inscrição de outras direções temáticas, o que
ocorre mesmo no caso do blog nos comentários.
É preciso ressaltar ainda, que a relação professor-aluno, determinante da
interação educacional formal, surge apenas explicitamente no Blog 1 e em alguns
1771
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
momentos do Blog 2, mas não é rígida. No blog educativo, essa relação é substituída
pela de autor-leitor, divulgador-participante, tendo em vista que não se sabe ao certo
quem serão os sujeitos que ocuparão o papel de destinatário da mensagem, o que na sala
de aula formal é previsível. Confluente com essa observação, o modo de enunciar se dá
em tom de convite, à leitura e à resposta, esta última especialmente no blog educacional.
Espera-se que a interação seja intensificada com a participação dos “comentadores”,
sem a qual o sucesso do evento educativo não pode ser verificado. Podemos ainda dizer
que, a partir da análise de outros gêneros digitais da esfera educacional, o gênero digital
dessa esfera se caracteriza por esse diálogo, não só previsto como condição para o
percurso cognitivo e pragmático do processo educacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base na pesquisa que fizemos, dos chats e fóruns (Pereira, 2013), e dos
blogs, aqui, podemos concluir que o estilo do gênero digital, assim como já indicado na
primeira análise, é marcado pela flexibilidade que ele permite em relação a outros
gêneros afins em suportes impressos.
Recuperamos em nosso trabalho anterior a definição de temática do gênero
digital na esfera educacional, que, a partir da análise de chats e fóruns, foi possível
formular: “diálogo em ambiente digital visando ao compartilhamento de objetos
cognitivos” (Pereira, 2013: 165). Quanto à estrutura composicional, encontramos:
Os gêneros digitais são marcados por uma mudança no seu modo de
composição textual, porque, embora se aproximem de outros gêneros por
estilização, como da aula, do bate-papo e do debate presenciais, eles
manifestam peculiaridades determinadas pelas situações comunicativas. O
espaço digital imprime ao gênero não só a condição de ser uma interação
escrita entre sujeitos separados por distância física (o que, por si só, já
desencadeia diversas alterações na comunicação), mas, também, pela
identidade linguística e discursiva que foi sendo construída desde o início de
sua ocupação pelos sujeitos-falantes (Pereira, 2013: 163).
Observou-se também nessa pesquisa a possibilidade de interação síncrona ou
assíncrona, a tendência a uma maior formalidade em gêneros assíncronos, a depender do
contexto, entre outros aspectos. A partir da análise proposta aqui, dos blogs
educacionais, podemos validar tais definições, acrescentando que tanto o modo de
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
composição como o modo de tematizar podem ganhar um tom menos “escolar” sem
necessariamente perder o vínculo com o evento educativo a que se propõe. Nos
exemplos do blog, o pertencimento à esfera educacional é de caráter mais geral, pois
não há reprodução rigorosa de atividades didáticas tradicionais. Entretanto, está lá a
essência dessa esfera: a relação mais ou menos livre entre sujeitos em torno de objetos
do conhecimento.
Outras pesquisas, dos mesmos gêneros digitais e de outros ainda poderão ser
feitas para garantir a estabilidade da definição de estilo do gênero digital da esfera
educacional, mas, sem dúvida, já avançamos um pouco mais ao concluir esta pesquisa
que aqui nos propomos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bagno, Marcos. 2009. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições
Loyola.
Bakhtin, Mikhail. 2010. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São
Paulo: Martins Fontes.
Caiado, Roberta Varginha Ramos. 2007. A ortografia no gênero Weblog: entre a escrita
do digital e a escrita escolar. In: Araújo, Júlio César (Org.). Internet & ensino: novos
gêneros, outros desafios. Rio de Janeiro: Lucerna. p. 35-47.
Discini, Norma. 2004. O estilo nos textos. 2. ed. São Paulo: Contexto/FAPESP.
Fiorin, José Luiz. 2008. A internet vai acabar com a língua portuguesa? Texto Livre:
Linguagem e Tecnologia [online], v. 1, n. 1, p. 01-8, outono de 2008. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/10>. Acesso
em: 03 mar. 2015.
1773
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Landowski, Eric. 2006. Les interactions risquées. Nouveaux Actes Sémiotiques. Nº. 101,
102 e 103. Limoges: Presses Universitaires de Limoges.
Pereira, Daniervelin Renata Marques. 2014. O estilo dos gêneros digitais. Estudos
semióticos. [online]. v. 10, n. 2,. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/esse/article/view/90146>. Acesso em: 02 mar. 2015.
1774
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos, 1775-1794
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1775
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
O proposito deste trabalho é investigar a relação contígua existente entre estilo
individual e estilo de gênero, tomando como base de análise dados do processo de
construção de dois resumos escritos por duas duplas de estudantes universitários. Ao
conceber gêneros como “tipos relativamente estáveis de enunciados” do ponto de vista
temático, composicional e estilístico, constituídos sócio-historicamente nas diferentes e
variadas esferas de comunicação verbal, Bakhtin afasta a ideia de determinismo dos
mesmos, dando aos sujeitos a possibilidade de criar, modificar um gênero. Partindo
dessas considerações de Bakhtin, perguntamo-nos: as duas duplas em questão usam as
mesmas estratégias para se apropriarem do gênero resumo ou as estratégias são
diferentes de dupla para dupla? O estilo do gênero prevalece sobre o estilo das duas
duplas ou ele deu margem para um posicionamento delas? Quanto aos aspectos
metodológicos, os resumos foram escritos conjuntamente, para que pudéssemos
registrar a conversa mantida entre os sujeitos a respeito do texto que estavam
produzindo. Essa conversa, juntamente com uma entrevista posterior que fizemos com
cada dupla, questionando-as a respeito das operações de reescrita que realizaram,
acrescentou dados valiosos sobre a apreensão desse gênero do discurso, constituindo
nossos dados processuais. Concluímos que o gênero resumo não é muito flexível, mas
sua estereotipia não impossibilitou que uma das duplas imprimisse nele seu estilo.
Introdução
O texto, tanto oral quanto escrito, tem sido analisado, nas pesquisas linguísticas,
sob a perspectiva sintática, semântica, pragmática, dentre outras, considerando-se o
produto final escrito, o texto. O enfoque que procuramos dar a ele, neste trabalho, é do
ponto de vista de sua criação, de sua gênese. Como nasce um texto? Esta é uma de
1775
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1776
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
evidenciaram a inserção desses sujeitos nos resumos que escreveram ou foi sua
estabilidade (força centrípeta) que prevaleceu?
Antes de explicarmos como registramos os dados processuais dos dois resumos
que estamos investigando, vamos discutir a noção de gênero discursivo que estamos
adotando para fazer nossa discussão.
1777
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
É preciso lembrar que, embora os gêneros tenham uma forma, a priori, eles não
são rígidos e imutáveis. Conforme lembra Brandão (2000), há, segundo Bakhtin, forças
centrípetas e forças centrífugas atuando nos gêneros. “O gênero é relativamente estável
enquanto conjunto de traços marcados pela regularidade, pela repetibilidade, mas essa
estabilidade é constantemente ameaçada por pontos de fuga, por forças que atuam
sobre as coerções genéricas” (Brandão, 2000:38).
Portanto, a relação do sujeito com a linguagem que estamos propondo investigar,
através dos dados processuais que nos servirão de análise, também deve ser pensada
tendo em vista a questão dos gêneros discursivos, conforme posta por Bakhtin, pois toda
vez que um sujeito enuncia, ele toma por base um gênero do discurso, definido por
Bakhtin como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, do ponto de vista temático,
estilístico e composicional. E será também no interior de um gênero que o estilo
individual emergirá.
Contudo, como a linguagem é dialógica por natureza, esse estilo não é
totalmente individual. Quando o sujeito escolhe um gênero e o organiza de maneira
subjetiva, ele contribui para sua alteração. Nas palavras do próprio Bakhtin:
O estilo é indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas e,
o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de
estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os
outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o
leitor, com o interlocutor, com o discurso do outro etc.). O estilo entra como
elemento na unidade de gênero de um enunciado. Isso equivale a dizer, claro,
que o estilo linguístico não pode ser objeto de um estudo específico,
especializado. [...] Quando há estilo, há gênero. Quando passamos o estilo de
um gênero para outro, não limitamos a modificar a ressonância deste estilo
graças à sua inserção num gênero que não lhe é próprio, destruímos e
renovamos o próprio gênero. [...] Mesmo a seleção que o locutor efetua de
uma forma gramatical já é um ato estilístico (Bakhtin, 1997:285-287).
1778
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
O gênero por meio do qual nossas duas duplas teriam que enunciar trabalha com
a capacidade do escrevente de sintetizar, estando bastante relacionado à leitura e à
escrita. Segundo Machado (2002), a sumarização, estratégia essencial na produção do
resumo, é um processo mental, muitas vezes inconsciente, usado durante a leitura,
quando se retêm as informações principais com o intuito de conseguir compreender a
ideia central. Nesse processo de sumarização mental, o leitor vai construindo a
“macroestrutura mental do texto”, ao processar as informações por meio de um vínculo
entre os novos dados do texto e o seu conhecimento enciclopédico, conforme postula
Van Dijk (1996). Sobre esse assunto, Machado (2002:162) salienta que o plano global
de organização dos resumos parece estar ligado ao plano global típico desse gênero e
não a um possível esquema superestrutural típico do texto resumido.
Machado, Lousada & Abreu-Tardelli (2010), elencam as características de
natureza mais formais que fazem parte do resumo. São elas: indicação de dados que
identifiquem o texto original (título, local, data de publicação e autoria), apresentação
do tema, associação entre o nome do autor original e as ideias colocadas em diferentes
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
2. Aspectos metodológicos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
2 “Os pássaros, a canção e a pressa” foi escrito por ocasião da morte do músico Antônio Carlos Jobim e
publicado na edição 1371 da Revista Veja, em dezembro de 1994.
1781
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Como nosso espaço de discussão é curto, é impossível mostrar a gênese dos dois
textos, passo a passo. Por isso, traremos momentos dessas duas produções textuais que
nos ajudarão a responder às questões que colocamos, neste artigo. Para efeito didático,
primeiro discutiremos dados do resumo escrito pela dupla de Letras; em seguida, entram
os dados da dupla de Ciências da Computação. Nossas discussões serão feitas tomando
por base esses dados, os quais serão apresentados da seguinte maneira: em forma de
tabela, sendo que, à esquerda, apresentaremos trechos da conversa mantida pela dupla
durante a elaboração textual; à direita, apresentaremos trechos da entrevista posterior
que fizemos com as estudantes, desse momento específico da elaboração textual.
L. e W. são nossos sujeitos do Curso de Letras. L. é do sexo feminino e W. do
sexo masculino. Ambos estavam cursando o sétimo semestre do curso de Letras
Vernáculas, quando a pesquisa foi realizada, em 2013. Este foi o resumo escrito por
essa dupla:
“[...] os celulares se multiplicam como saúvas, brotam como capim [...]”. A
frase citada foi extraída do texto “Os pássaros, a canção e a pressa”,
publicado pela revista Veja, edição 1371, p. 150 e escrito por Roberto
Pompeu de Toledo. O texto mencionado retrata a urgência do sistema, no
qual as pessoas estão inseridas, para compreender melhor esse sistema, o
autor chega a utilizar a expressão “indústria da urgência”, além de apresentar
exemplos situados no século XX. De acordo com o texto, o celular pode ser
destacado como um item que representa, efetivamente, a aceleração do
tempo, pois a necessidade de chamar e ser chamado das pessoas urge. E, por
fim, embora o assunto discutido seja uma característica da
contemporaneidade, o colunista mostra uma figura, a saber, Antônio Carlos
Jobim, que “andou na contramão da mistificação da pressa”, uma vez que
com essa percepção diferenciada do tempo, o grande brasileiro conseguiu
perenizar sua arte.
Vamos ver, agora, quais foram as primeiras palavras da dupla diante da
atividade que deveriam desenvolver:
L.: Éee... Tipo assim... (...) (Risos). Assim, o texto Pesquisador: Antes de fazer o resumo, era
vem de uma revista e tal, aí, logo no início, você necessário saber exatamente do que se tratava
pensa que vai falar de Antônio Carlos Jobim. o texto?
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L: A gente pode começar de uma forma diferente. Pesquisador: Porque a escolha em começar com
A gente usa um tópico frasal. Lendo esse tópico um tópico frasal?
frasal ela vai saber do que vai falar o texto L: Porque eu acho que... Éee... Eu tava cansada de
[...] começar “no presente texto”, sabe? Isso é bem
W.: Essa frase aqui também é interessante, ó. Dá clichê e tal, e eu queria algo diferente. [...] Porque
um bom tópico frasal, se a gente focalizar o “no presente texto”, fica aquela coisa muito
celular... Essa aqui também, ó. comum, aquela coisa que você aprende na escola e
L.: A gente pode copiar, colocar entre aspas, e tal, aquelas frases feitas que os professores dão...
depois colocar, tipo assim, é... Aí... [...] Eu acho que chama a atenção do leitor
W.: Isso aqui também, ó, que as pessoas usam o também, quando tem um tópico frasal que chama
celular como peça do vestuário. atenção, assim, ée... Sei lá, instiga o leitor a ver o
L.: É... A gente pode pegar uma frase, sabe? que tem ali no resumo.
Colocar entre aspas, e colocar assim, tipo assim...
W.: A frase apresentada foi extraída do texto tal,
tal, tal...
L.: É...
W.: E desenvolve.
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
aparência.
M.: É. Porque quem tem aquela doença também
fala sozinho né? A doença do filme. Como é que é
o nome do filme?
M. L.: Esquizofrênico?
M.: Anram. Também fala com alguém.
(Leitura silenciosa).
M. L.: Tem mentira nesse segundo parágrafo aí.
M.: Cadê a mentira, que eu não cheguei aí ainda
não?
M. L.: Aqui, ó.
M.: Oxe. É mesmo.
M. L.: Eu já brinquei, véi.
M.: Eu já brinquei de bambolê. (...)
[...]
M. L.: O texto é uma viagem. Fala de tanta
evolução e, no final, volta pra esse tal de Antônio
Carlos Jobim aí. Tipo, ele começa sendo a
contramão e, no final, também é a contramão.
M.: Ele fala de tudo e depois volta.
[...]
M. L: O texto fala de evoluções e evoluções, e aí,
vem uma pessoa que não tem nada a ver com a
evolução.
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
mais graves na sua produção, que é a mistura de vozes do autor do texto resumido e do
produtor do resumo.
Novamente o elemento “conhecimento de mundo”, um dos fatores responsáveis
pela coerência de um texto, segundo Koch e Travaglia (1998). M. pergunta a M. L. se
ela conhecia o autor do texto. M. L. responde que o único Pompeu que conhecia era do
cartão da Tim (referindo a uma propaganda veiculada na TV, naquele momento).
Chama a nossa atenção, também, a maneira bem-humorada com que M. e M. L.
encararam a atividade de escrita que tinham pela frente. Sentimos uma leveza maior
nesta dupla do que a apresentada pela dupla de Letras. Em outro instante, M. brinca:
“Uma pessoa que fala sozinha na rua é doida”. M. L. rebate: “Então, depende. Se ela
tiver no celular, é normal. Se não, ela é louca mermo”.
No entanto, mesmo com um humor melhor apurado, não encontramos um único
indício que evidenciasse um estilo dessa dupla, como encontramos na dupla anterior,
com a escolha da citação para iniciar o resumo. O que prevaleceu, em todos os instantes
dessa produção, foi o estilo do gênero. Vejamos um exemplo que ilustra essas
ocorrências:
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M. L.: Cê sabe que eu nem lembro? Só sei Pesquisador: As aulas ficaram encrustadas na
que eu fiz, mas não lembro pra que que foi memória. Isso é perfeito. E tentam vários
não. inícios para o resumo: Roberto, o escritor... –
M.: A última vez que eu fiz um resumo foi na, Não, soa muito pobre. Roberto Pompeu de
no... Toledo, escritor da revista Veja, escreveu na
M. L.: Pra Márcia? (Risos) edição... Essas opções eram muito pobres?
M.: Foi no primeiro semestre, foi no primeiro M. L.: É porque tem que... Se você, como diz
semestre. Porque eu escrevi, esses dias aí o caso, se você tá fazendo um texto, se ele não
atrás, um artigo, mas quem fez a parte do começar bem, o restante também não vai ser
resumo do artigo não fui eu, foi a outra pessoa bom. Então, assim, tudo... Uma coisa puxa a
do artigo. outra... É tudo encadeado no texto. Se você
M. L.: Taí, pô, a gente fez acho que em HC começar ele mal, a pessoa que vai ler teu
num foi não? Eu acho que foi eu que fiz... texto, ela não vai se prender, ela não vai achar
“Nossa!”. Por mais que o desenvolvimento e a
conclusão estejam bons, se o início não tiver,
a pessoa já vai ficar com aquele preconceito:
“Nossa, que texto ruim!”. Então, tem que ter
aquela ligação de que aqui tá bom, aqui
também tá bom, aí o outro pedaço também tá
bom.
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Conclusão
Nossos dados processuais mostraram que o estilo do gênero resumo foi muito
marcante. Vimos emergir, nos dados processuais, um estilo fruto de um trabalho
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bakhtin, Mikhail. 1995. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec.
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
BRANDÃO, Helena Nagamine. 2000. Texto, gêneros do discurso e ensino. In: Gêneros
do discurso na escola, São Paulo: Cortez. p 17 - 45.
Koch, Ingedore. e Travaglia, Luis Carlos. 1998. A coerência textual. São Paulo:
Contexto. 1998.
Machado, Ana Raquel. 2002. Revisitando o conceito de resumos. In: Dionísio, A. P.;
Machado, A. R.; Bezerra, M. A. Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola
Editorial.
Van Dijk, Teun A. 1996. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto.
1794
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos, 1795-1814
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1795
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Hoje, devido à globalização instaurada em todo o mundo, propiciada pela revolução
tecnológica informacional, o comportamento da sociedade contemporânea mudou.
Através da universalização do acesso a meios de comunicação, novas ferramentas
geradas pela informática passaram a exercer enorme influência nas pessoas, e a internet
assumiu sua face mais visível neste contexto, situando-se em uma posição de destaque e
tornando-se uma importante ferramenta para a transformação e difusão de distintos e
infindáveis gêneros discursivos. Por esse motivo, este trabalho, pautado em uma análise
bakhtiniana do discurso, tenciona observar como se materializam as formas de
constituição estilística do gênero videoaula youtubiana de escrita/redação científica, o
qual, devido à sua ancoragem neste novo paradigma informacional-tecnológico-
científico, transforma-se em um produto social, desuniforme e suscetível a mudanças.
Logo, pautando-nos nesse contexto, buscamos compreender como as videoaulas
analisadas possuem um estilo que se associa à própria temática de suas aulas, de modo
que o fazer científico nelas presente passa a direcionar até a forma composicional das
videoaulas, as quais têm como objetivo a disseminação da escrita/redação científica.
Através da análise de tais videoaulas, buscamos averiguar, também, como estas se
ressignificam com o objetivo de se amoldarem aos novos tempos e situações e, por
existirem novos propósitos, ampliam-se à medida que a esfera de circulação se
complexifica. Assim, podemos notar que as videoaulas de escrita/redação científica
youtubianas apropriam-se dessas novas características educacionais, decorrentes do
desenvolvimento tecnológico, de modo a ampliarem e desenvolverem os gêneros de
forma significativa.
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1. Introdução
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observar como o próprio gênero se atualiza neste acontecimento. Todavia, para essa
finalidade, faz-se necessário também frisar a relevância dos aspectos que envolvem tais
aulas no ciberespaço, mais precisamente no site de compartilhamento de vídeos do
YouTube, já que este funciona como um meio tecnológico para o objeto desta nossa
investigação.
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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Logo, é válido lembrar que o gênero nunca é em si mesmo, por essa razão não
pode ser abstraído da esfera que o cria e usa, como também de suas coordenadas de
tempo-espaço e das relações entre os interlocutores. Grillo (2010) ressalta que as esferas
estão ligadas ao destinatário, e há destinatários presumidos para cada gênero, além de
formas de atividades responsivas que são ligadas à determinada esfera; assim afirma:
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
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2 Tais itens foram mencionados, pois podem ser interpretados à luz da teoria bakhtiniana, a qual vê a
iconicidade como as escolhas operadas por um sujeito enunciador sendo sempre axiologicamente
motivadas, logo, são icônicas e possuem um caráter sígnico; a distintividade como um caráter distintivo
dos enunciados concretos, possibilitando, assim, o estabelecimento de distintas conexões com o contexto
extraverbal; e a recursividade como um modo de deslocamento de um gênero a outro, como, a título de
ilustração, pode-se mencionar a aula de escrita/redação científica que ao ultrapassar os limites da esfera
pedagógica lança-se a uma esfera midiática, provocando alterações no gênero e promovendo diversas
produções de sentido.
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procedimento uma vez que permite que o seu estilo seja atravessado pelo próprio
conteúdo temático das aulas em questão.
Tendo a posição do sujeito enunciador como um dos aspectos centrais das
videoaulas de escrita/redação científica a serem analisadas, a voz representada pelo
“professor-apresentador”, frente a outras vozes que ecoam tanto na esfera acadêmico-
científica, como na esfera midiática, reverbera posicionamentos enunciativos ancorados
nos modos de dizer do próprio projeto de dizer estipulado pelas ciências ditas hard.
A negociação que estabelece o gênero (videoaula) com a escrita/redação
científica determina aspectos centrais que devem ser enunciados nesta apresentação de
aula em vídeo. Por exemplo, o sujeito enunciador, o “professor-apresentador” das
videoaulas, necessita legitimar sua voz tanto dentro da comunidade científica a que
pertence, a área das ciências empíricas, apresentando-se como cientista pesquisador
neste campo do saber, de maneira que até o seu próprio discurso, materializado nos
conteúdos e gráficos apresentados durante as aulas, apresenta-se verbo-visualmente
imbuído de objetividade, a qual pode ser vista na sua forma de falar, de explicar ou de
apresentar os conteúdos. Da mesma forma, pode-se perceber a presença de um locutor
que se posiciona como um sujeito enunciador crível de confiança e credibilidade ao
apresentar suas credenciais, sua trajetória profissional, suas funções perante a sociedade.
Trava, pois, um diálogo com distintas formas de apresentação que os
“professores-apresentadores” das videoaulas querem passar de si. Para isso, constroem
uma voz de poder, que, ao expor sua posição, estabelece inter-relações dialógicas, por
meio de um ato responsivo que se legitima devido às informações por eles apresentadas.
Essa voz passa então a utilizar recursos de valoração, compromisso e seriedade para se
sobrepor a outras vozes que podem querer calar sua enunciação.
Ao observar as videoaulas sobre escrita/redação científica é necessário levarmos
em consideração as estratégias estilísticas, já retratadas por Weber (apud Coupland,
2007), bem como pelo próprio Bakhtin, as quais buscam evidenciar as possibilidades de
se operar as vozes sociais (vozes da vida) no cumprimento dos projetos de dizer de cada
videoaula.
A vida, materializada no próprio ethos científico, concebido pela sociedade ao
longo do tempo, emerge e evidencia-se nas/das práticas de linguagem e, como defende
Irvine, suas manifestações não devem ser ignoradas. Se observarmos como se dá o
efeito de objetivação e racionalidade entre a construção composicional das videoaulas,
tendo em vista o tema proposto, isto é, a escrita/redação científica, vemos como a
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=CZR0ptpPaR0&index=2&list=PL3yYSVIdSmKk-
79Gn240Pr3NUNe8Os0S0
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=e968B1PwIbs&index=3&list=PL3yYSVIdSmKk-
79Gn240Pr3NUNe8Os0S0
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É, portanto, pautado neste viés dialógico, travado com o próprio ethos do fazer
científico, que podemos observar mais exemplos extraídos das videoaulas analisadas
como forma de comprovar o diálogo entre as esferas midiática, científica e pedagógica3
no que tange ao estilo objetivo, racional e cartesiano apresentado nas aulas de
escrita/redação científica.
3 Midiática por se perfazer em videoaulas inseridas no YouTube, científica por tratar de aspectos da
escrita/redação científica e pedagógica por promover-se por meio de aulas e abranger aspectos atrelados
ao “ensino” de determinados conteúdos.
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=e968B1PwIbs&index=3&list=PL3yYSVIdSmKk-
79Gn240Pr3NUNe8Os0S0, https://www.youtube.com/watch?v=e968B1PwIbs&list=PL3yYSVIdSmKk-
79Gn240Pr3NUNe8Os0S0&index=3 e https://www.youtube.com/watch?v=-
awveTSmmIM&index=5&list=PL3yYSVIdSmKk-79Gn240Pr3NUNe8Os0S0
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=e968B1PwIbs&index=3&list=PL3yYSVIdSmKk-
79Gn240Pr3NUNe8Os0S0
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Como a imagem comunica de modo mais rápido e, muitas vezes, com mais
eficiência, em tempos de velocidade de informação, ela acaba rompendo barreiras de
modo a integralizar até seções de determinados gêneros antes povoadas somente pela
linguagem verbal, como é o caso do exemplo trazido pela figura acima.
Em razão da imagem, em seus diversos suportes, ter assumido um lugar central
na sociedade atual, ela tendo sido cada vez mais solicitada como um recurso discursivo.
No mundo científico, além de seu papel icônico ou representativo, ela também passa a
ser um meio de comunicação e de sensibilização científica. Desse modo, vejamos como
ela se materializa nos exemplos trazidos do curso “Método Lógico para Redação
Científica”:
Figura 5: Figuração da objetividade nas videoaulas de Redação Científica
Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=HGgDI3Bgj2A&list=PL838A236D33BA042E&index=2 e
https://www.youtube.com/watch?v=sztd3m2bgw0&list=PL838A236D33BA042E&index=21
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RC: “(...) Todas as partes do trabalho devem vir da lógica da ciência, deve
haver uma coerência. A proposta é a seguinte: Você está montando dentro
de um trabalho, você tá montando pedacinhos, então você tem um
pedacinho, você monta outro, se põe um outro aqui, você vai colocando
várias partes dentro do seu texto, o importante é que os preceitos lógicos
que você siga sejam coerentes de forma que nada no texto demonstre
alguma incoerência (...)”. (grifo nosso)
RC: “(...) O que seria a arte na redação científica? Essa arte na redação
científica vai justificar um ponto importante no estilo científico, no estilo
da redação científica. A arte, vocês sabem, se preocupa com a estética, isso é
um ponto básico na arte (...) mas existe uma arte na redação, tá? (...). A arte
equivale a construir um prédio, com as seguintes características: primeiro o
prédio tem que ser vistoso, as pessoas têm que olhar pra ele, se não for
vistoso ninguém vai ver. Não vai adiantar, vai ficar mais um artigo escondido
por aí. Ele tem que ser importante, porque senão não adianta fazer. Fazer um
prédio que não é importante é besteira. Fazer um artigo, fazer uma pesquisa
que não é importante, melhor não fazer. E a importância pode ser aplicada
tecnológica ou apenas acadêmica, não tem problema, mas tem que ter uma
relevância. Ele tem que ser sólido, que se esse prédio cair por qualquer
vento né, vai ser complicado. Então essa construção que você faz, esse
artigo que você faz, ele tem ser sólido, num pode ser derrubado. Só que pra
deixá-lo sólido, você não precisa colocar um monte de estaca, aí entra a arte.
Você tem que colocar só as estacas necessárias. Então ele tem que ser
econômico, embora sólido, econômico, com o menor número de
sustentações possível, porém suficiente para torná-lo sólido (...). Geralmente
os nossos textos são barrados na ciência internacional porque o grau de
objetividade, de síntese, que eles exigem é alto e nós estamos acostumados a
colocar um monte de coisa, faz parte da cultura brasileira falar demais,
escrever demais, pôr um monte de coisa, pra dizer um negocinho desse
tamanho (...). A arte é usar o mínimo possível pra resolver o que tem que
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resolver. Essa é arte na redação científica. Isso vem a favor né, de se fazer
textos sintéticos porém sólidos (...)”. (grifo nosso)
5. Considerações Finais
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. 1997. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes.
COUPLAND, Nik. 2001. Language, situation, and the relational self: theorizing dialect-
style in sociolinguistics. In: ECKERT, P.; RICKFORD, J. (Eds.). Style and
sociolinguistic variation. Cambridge: Cambridge University Press, p.185 – 210.
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Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. 2010. Esfera e campo. In: BRAIT, Beth (Org.).
Bakhtin Outros Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto.
IRVINE, Judith. 2001. Style as distinctiveness: The culture and ideology of linguistic
differentiation. In: STYLE AND SOCIOLINGUISTIC VARIATION. Cambridge:
Cambridge University Press, p. 21-43.
MEDVIÉDEV, Pavel Nikolaevich. 2012. O método formal nos estudos literários. São
Paulo: Contexto.
STAM, Robert. 2000. Bakhtin – da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática.
WEBER, Jean Jacques. 1996. The Stylistics Reader: From Roman Jakobson to the
Present. London: Arnold.
1814
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos, 1815-1832
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1815
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar as tipologias utilizadas na construção do
gênero prontuário médico. Partindo da perspectiva bakhtiniana, de que os gêneros do
discurso são concebidos como tipos relativamente estáveis de enunciado, marcados por
sua composição, conteúdo temático e estilo. Assim, a composição diz respeito à
estruturação e ao aspecto formal do gênero, enquanto que o conteúdo temático diz
respeito às escolhas e propósitos comunicativos do autor em relação ao assunto
abordado, já o estilo refere-se a um modo de apresentação do conteúdo traduzido no
plano composicional do gênero por meio da seleção de recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais da língua. Nesse sentido, o trabalho tem, também, como objetivo apresentar
o gênero prontuário médico no campo teórico da Linguística Textual, visando apontar
as relações entre tipos textuais, bem como analisar as escolhas linguísticas e seus efeitos
na composição desse gênero. Para a realização da tarefa pretendida, a metodologia foi
traçada tendo em vista o delineamento da pesquisa bibliográfica. O embasamento
teórico deu-se pela aplicação dos pressupostos de Bakhtin (1987, 2000 e 2003); Brait
(2005) e Travaglia (1991;2003;2007 e 2009). O corpus escolhido é constituído de dez
prontuários médicos, escritos no ano de 2014. Desse modo, constatou-se que as
tipologias descritiva, narrativa e dissertativa estão conjugadas na composição do gênero
prontuário médico e as abreviações e nominalizações marcam o estilo desse gênero.
1 INTRODUÇÃO
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Este artigo tem como objetivo apresentar o gênero prontuário médico no campo
teórico da Linguística Textual, visando apontar as relações entre tipos textuais, bem
como analisar as escolhas linguísticas e seus efeitos na composição desse gênero.
Ressaltando os tipos que se conjugam e/ou se fundem para compor o gênero de estudo.
Nesse sentido, o estilo, conforme Bakhtin (2000), fundamenta-se em uma dimensão
textual e discursiva caracterizadora dos gêneros do discurso. Desse modo, atrelado ao
conteúdo temático e à sua composição, o estilo relaciona-se às escolhas linguísticas
feitas pelo locutor mediado pela relação estabelecida com o outro.
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por exemplo, os textos que têm o tipo narrativo como necessário e dominante em sua
composição e são da espécie história (romance, conto, novela- literária, de rádio, dentre
outros) encaixam-se todos na superestrutura geral da narrativa, ou seja, “a narrativa
dessa espécie história apresenta introdução (anúncio e resumo), orientação
(cenário/contexto/situação, orientação), trama (complicação, resolução, resultado),
comentários e epílogo (fecho ou coda ou moral)” (TRAVAGLIA, 2007:49).
Ainda, segundo o autor, todas as categorias da superestrutura podem realizar-se
de modo diferente, conforme o gênero, o que é importante para caracterizá-lo.
Travaglia (2007:60) retoma os estudos de Fávero; Koch (1987) para tratar dos
objetivos ou função sóciocomunicativa. Conforme as autoras, os gêneros são
definidos por sua função sóciocomunicativa e os tipos também apresentam objetivos.
Assim, esses objetivos e funções sóciocomunicativas são identificados por muitos como
um ato ou macro-ato de fala.
Travaglia (2007: 60) revela que a descrição e a dissertação são discursos do
saber/conhecer e que a narração e a injunção são discursos do fazer/acontecer. Nesse
sentido, o autor propõe que os objetivos do enunciador ou funções comunicativas desses
tipos são:
Esse quadro será fundamental para definir, após a análise dos prontuários, quais
tipos compõem o gênero prontuário médico.
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Ainda, de acordo com o teórico,a caracterização por meio desse parâmetro não
se refere simplesmente ao recurso linguístico utilizado, mas também a sua relação com
as propriedades, por exemplo, as perspectivas definidoras dos tipos, a instauração de
locutor e alocutário enquanto enunciadores, os objetivos/funções das categorias de
texto, os objetivos/funções definidores de gêneros.
As condições de produção estão relacionadas a quem produz, para quem,
quando, onde (geralmente um quadro institucional), o suporte, o serviço, dentre outros.
De acordo com Travaglia (2007:71), o critério de “quem produz” inclui tanto o
indivíduo (geralmente ocupando um lugar social) como a comunidade discursiva, ou
esfera de ação social, ou formações sociais, ou domínio discursivo. Para Travaglia
(2007), a comunidade discursiva é importante na caracterização dos gêneros que
circulam e funcionam em dada sociedade e cultura. Assim, se o texto é da esfera
jornalística, forense/jurídica, médica, acadêmica, etc., podemos encontrar gêneros com
o mesmo nome, mas que identificam categorias distintas em comunidades discursivas
distintas.
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Após ser feito o embasamento teórico, faz-se a análise geral dos prontuários
médicos.
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2 Os prontuários médicos são textos escritos pela esfera médica, nesse sentido, são redigidos de médico
para médico, contudo, as enfermeiras podem acessá-lo.Além disso,o paciente tem direito de requerer seu
prontuário. As abreviações feitas geram dificuldade de leitura para o público não especialista, pois, como
já foi dito, é um texto direcionado aos médicos. Assim, no excerto apresentado, as abreviaturas significam
RN – recém-nascido, LA – líquido amniótico.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Portanto, a partir das análises feitas, pode-se concluir que os tipos textuais
narrativo e descritivo conjugam-se para estabelecer a dissertação, ao considerarmos, a
função sóciocomunicativa do gênero.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto e
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1987.
ANEXOS
Prontuario1
Paciente 32 anos, G3C2A0, IG:41sem +2 dias em trabalho de parto inicial, sem
comorbidades. Nega alergia medicamentosa. Pre-natal sem intercorrencias.
Tipagemsanguinea: o positivo, sorologias negativas
Ao exame:
DU: 2/10'/35"
Tonus uterino normal
MF presente
BCF: 144 bpm
TV: colo posterior, pérvio 2 cm, , amolecido, apagado 60%, cefalico, BI
Cd: indicada cesariana por iteratividade e trabalho de parto inicial
Facoprescricao medica e solicito a enfermagem passar SVD e encaminhar paciente ao
bloco cirurgico. Avisada pediatria.
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CESARIANA
Cirurgião:
Auxilixar:
Indicação: ITeratividade + trabalho de parto inicial
1- Paciente em decúbito dorsal sob raquianestesia;
2- Realizado assepsia e antessepsia de campo operatório;
3- Aposição de campos cirúrgicos estéreis;
4- Incisão a pfannenstiel em pele, subcutâneo e aponeurose;
5- Abertura de cavidade por planos anatômicos;
6- Histerotomia segmentar a Kehr;
7- Extração de RN vivo, às 14:38 h, único, cefálico, sexo feminino, banhado em LA
claro, chorou ao nascer, feito clampeamento do cordão, entregue ao pediatra em sala,
pesando 3870g, apgar 9/9;
8- Dequitação manual da placenta e curagem;
9- Limpeza de cavidade uterina;
10- Histerorrafia segmentar com vicryl0 e sutura em chuleio ancorado;
11- Limpeza e revisão de cavidade pélvica, útero e anexos;
12- Aproximação de músculos reto-abdominais com fio vicryl0 e sutura em barra grega;
13- Hemostasia de vasos perfurantes sangrantes com fio vicryl0 e sutura com pontos em
X;
14- Síntese de aponeurose com fio vicryl0 e sutura em chuleio simples;
15- Síntese de TCSC com fio vicryl0 e sutura com pontos simples separados;
16- Síntese de pele com fio mononylon 4.0 e sutura intra-dérmica;
17- Curativo compressivo e oclusivo.
Prontuario2
Paciente com diagnostico de prolapso uterino e distopia genital, com pre-operatorio ok e
indicado procedimento cirurgico. Descriçao abaixo
HISTERECTOMIA VAGINAL + COLPOPERINEOPLASTIA ANTERIOR E
POSTERIOR
Cirurgião:
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1º Auxiliar:
2º Auxilar:
Instrumentador:
Anestesista:
Circulante:
1. Paciente em posição ginecológica sob raquianestesia;
2. Assepsia, antissepsia, embrocação vaginal e colocação de campos cirúrgicos;
3. Exposição do colo uterino com válvula de Braisky;
4. Pinçamento do colo uterino;
5. Abertura de fundo de saco e peritônio posterior com colocação de válvula
pesante;
6. Abertura de fórnice anterior e rebatida a bexiga;
7. Pinçamento, secção, sutura e reparo de paramétrios e útero sacro bilateralmente;
8. Pinçamento, secção e sutura de artéria uterina bilateralmente;
9. Abertura de peritônio anterior;
10. Pinçamento, secção e ligadura de pedículo tubo-ovariano e ligamento redondo
bilateralmente;
11. Retirada da peça cirúrgica e enviada à patologia;
12. Hemostasia rigorosa;
13. Realizado ponto de Mc Call
14. Sutura de cúpula com fixação de útero sacros no ângulo da cúpula
bilateralmente;
15. Síntese da cúpula e síntese do Mc Call
16. Sondagem vesical de alívio
17. Incisão longitudinal da parede vaginal anterior
18. Dissecção do espaço vesico-vaginal e identificação da fáscia
19. Correção sitio-específica da fáscia vesíco-vaginal
20. Sutura da mucosa vaginal anterior após exerese da mucosa remanescente
21. Incisão longitudinal de parede vaginal posterior
22. Dissecção do espaço reto-vaginal e identificação da fascia
23. Correção sítio-específica da fáscia reto-vaginal
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Prontuario3
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Prontuario 4
Paciente em lista de cirurgia, aguardando histerectomia abdominal por miomatose
uterina, nao compareceu à consulta para mostrar exames pre-operatorios e agendar
cirurgia.
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos, 1833-1852
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1833
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RESUMO
A proposta central do presente artigo é a compreensão das alterações de estilo ocorridas
durante a inserção da divulgação científica em redes sociais, especialmente em nosso
objeto de análise no Facebook. Para atingir tal objetivo, examinar-se-á enunciados
oriundos das páginas das revistas Pesquisa FAPESP, Scientific American Brasil e
Superinteressante nessa rede social. Essa seleção visa contemplar três diferentes tipos
de produção de divulgação científica, resultando, do ponto de vista bakhtiniano, em
diferentes tipos de público leitor (interlocutor presumido), escolhas lexicais e
materialização do discurso. Por consequência da distinção de finalidade discursiva, será
possível observar como as particularidades de cada uma das revistas resultam, de fato,
em três variações estilísticas da divulgação científica. Como resultado da presente
análise, verifica-se como os recursos multimodais e tecnológicos presentes no
Facebookacarretaram mudanças de estilo em comparação com suportes mais
tradicionais (revistas, jornais). Antes da popularização da Internet para uso doméstico,
as revistas de divulgação científica propiciavam apenas um espaço delimitado de
interação verbal entre publicação-leitores em suas revistas impressas. Dessa forma, tal
possibilidade de interação estava basicamente restrita ao gênero do discurso “carta do
leitor”. As cartas dos leitores, entretanto, eram previamente selecionados pelos editores
e apenas parte delas era publicada. Por outro lado, após o crescimento da Internet,
sobretudo das redes sociais, a interação se diversificou. Essa interação se materializa
principalmente pelo uso de comentários, na qual se verifica que a pluralidade de estilos
é significativamente mais acentuada. O contraste supracitado explicita a maneira pela
qual a produção verbal na divulgação científica, tanto dos leitores, quanto dos
divulgadores, constitui-se por variadosgêneros e, consequentemente, estilos de gêneros
diversos. Os leitores podem interagir verbalmente com maior liberdade e variedade de
conteúdo e estilo, os divulgadores da ciência tendem a utilizar um grau ainda maior de
material visual nas publicações digitais.
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1. INTRODUÇÃO
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Cada vez mais, parte dos valores supramencionados deixam de ser finalidades últimas
de jornais, revistas e telejornais, que também buscam um apelo emotivo, flexibilizando
tanto no uso de gêneros, quanto no estilo, uso de imagens e temas.
A mass media por detrás de sua objetividade superficial, as informações
jogam com a emoção (...) Inclusive as publicações sérias se deixam
arrastar por essa moda: bastar ler os títulos dos periódicos, as revistas e
inclusive os artigos científicos ou filosóficos. O tom universitário dá lugar
a um estilo mais dinâmico feito de sacadas e jogos de palavras4
(LIPOVETSKY, 2000, p.136)
Até o presente momento analisamos a primeira camada, na qual foi possível
perceber influências do contexto contemporâneo sobre as esferas científica e
jornalística. A partir das reflexões bakhtinianas verificamos como as influências sócio-
históricas ecoavam no estilo de enunciados produzidos por tais esferas. Na próxima
seção analisaremos o papel da segunda camada que está relacionada com o gênero e
suas influências nas questões estilísticas. Ademais, verificaremos a sinergia entre as
duas primeiras camadas.
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atividade humana possam exercer suas mais diversas atividades. Mesmo em gêneros
digitais, há influência da esfera. Chats, por exemplo, podem variar em estilo em caso de
ser um chat de atendimento ao cliente que contrasta em diversos aspectos com um
chatconvencional em um portal ou rede social.
Os gêneros digitais mais utilizados nas páginas de divulgação científica são
basicamente: i) postagem (post); ii) capa (cover) e iii) comentários (comments5). Cada
um desses gêneros possui especificidades, como preponderância de conteúdo verbal,
visual, sincretismo etc. Analisaremos primeiramente o gênero e o estilo da postagem,
assim como sua composição e especificidades do material publicado pela revista
Superinteressante em sua página na rede social.
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evocação feita em negrito no título “Eles não bebem, não” e pela alusão ao título da
matéria publicada “10 mil anos de pileque”.
Deve-se ressaltar mais algumas características a partir da análise da Imagem
figura 3: i) a interação verbal se constitui não apenas no posicionamento dos leitores em
relação ao conteúdo publicado pela Superinteressante, como também na continuação da
interação pela resposta dada ao leitor/internauta Walace Santana, questionando e, em
certo grau, polemizando a maneira pela qual ele tornou comparável a escravidão
africana com a revolução feminina; ii) o conteúdo das cartas divulgadas no site está
relacionado ao tema da matéria publicada, assim como a resposta dada ao leitor se
enquadra nesse tema; iii) a seleção das cartas tem um caráter importante, há um espaço
previamente delimitado que contempla apenas um determinado número de cartas a
serem publicadas. Essa triagem executada pela revista faz com que haja padronização
estilística maior do que em outros gêneros digitais como os “comentários” no Facebook.
Em tais comentários há um grau de censura muito mais baixo se comparado ao gênero
“carta dos leitores”, possibilitando um número ilimitado de comentários. Já nas cartas
aos leitores, apenas os enunciados adequados aos padrões editorais da revista são
publicados, isso demonstra como a interação entre as publicações de divulgação
científica e seus leitores varia conforme mudanças históricas ocorridas na Internet e nos
gêneros do discurso, nesse caso, mais precisamente, nos gêneros digitais. “Os
enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre
a história da sociedade e a história da linguagem” (BAKHTIN, 2010, p.268). A
historicidade dos comentários se notabiliza igualmente pela “interação e luta com os
pensamentos dos outros” expressa no questionamento às comparações feitas na carta
enviada pelo leitor Walace Santana.
1846
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1848
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5. Considerações Finais
O exame das questões estilísticas advindas das obras bakhtinianas nos permitiu
elaborar um método de análise estilístico em três camadas: i)o estilo situado dentro dos
aspectos sócio-históricos; ii) o estilo do gênero e iii) o estilo autoral.
O estudo das três camadas nas páginas do Facebook das revistas
Superinteressante e Scientific American possibilitaram a averiguação da porosidade e
mútua influência do entre os três diferentes estratos estilísticos. Os avanços
tecnológicos, o aumento do uso do humor e entretenimento na esfera jornalística foram
um dos exemplos que demonstraram a influência do horizonte social mais amplo nos
gêneros digitais analisados (postagens, comentários e capa).
Redes sociais como o Facebook se valem da responsividade dos usuários para
que os conteúdos criados por diferentes páginas e membros da rede não sejam estanques
1849
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
e possibilitem a interação verbal direta entre eles. No caso das revistas tradicionalmente
impressas, o espaço para que os leitores pudessem enviar questionamentos era restrito
às cartas de leitores. O estilo das cartas dos leitores, entretanto, é mais homogêneo do
que os comentários no Facebook,pois não há limite para número de comentários e o
grau de censura de conteúdo é menor do que na revista impressa. Por fim, ressaltamos
que a segunda camada (o estilo do gênero) tem uma forte influência na possibilidade de
haver possibilidade de um estilo pessoal. Romances, comentários e réplicas no
Facebook são gêneros nos quais os autores do enunciado se expressam não apenas na
dimensão ética e discursiva, como também pela adoção de um determinado estilo. Por
outro lado, ofícios e formulários de cadastro são gêneros nos quais o papel do estilo
autoral tendem a ser mitigados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. de Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010a.
_____. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.
ed. São Paulo: Martins Fontes, p.261-306, 2010c.
_____. O problema do texto in: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
Lahud e Yara Frateschi Vieira. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
______. O freudismo: um esboço crítico. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva,
2009.
1850
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
KFOURI, J. Coragem de Mudar. in: TAVARES, M; FARIA, G [org]. CBN, a rádio que
toca notícia: a história da rede e as principais coberturas, estilo e linguagem do allnews,
jornalismo político, econômico e esportivo, a construção da marca, o modelo de
negócio. Rio de Janeiro: Senac, 2006.
1851
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1852
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos, 1853-1867
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1853
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Neste artigo pretende-se abordar aspectos estilísticos que atuam nas relações léxico-
semânticas e na construção discursiva, tomando como pano de fundo o futebol e tendo
como "corpus" crônicas escritas por Nélson Rodrigues (1912-1980). Elas estão
incluídas nos livros A Pátria em Chuteiras, com seleção e notas de Ruy Castro, e Brasil
em Campo, organizado por Sonia Rodrigues. Após o fracasso da seleção brasileira na
Copa de 2014, a famosa expressão "complexo de vira-latas" ressurgiu em solo brasileiro
recolocando a dicotomia "fracasso x sucesso" na ordem do dia. As crônicas
rodrigueanas fazem esse contraponto e defendem posições interessantes para a
discussão do tema. O assunto, por si só, já poderia despertar a curiosidade e o interesse
de leitores especializados e leigos, mas é provável que esta apresentação possa mostrar
uma faceta menos conhecida dos estudos estilísticos.
INTRODUÇÃO
1 Professor Titular de Língua Portuguesa do Instituto de Letras da UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524,
sala 11.139 – CEP: 20550-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: claudioch@uol.com.br
1853
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
clubes da FIFA, vencido pelo Real Madrid, o jornalista retoma a recorrente referência
ao Papa Francisco, torcedor do time argentino, e escreve:
Atribuído ao Papa, que não se furta a se identificar com os “cuervos” que
vêm do bairro de Boedo, o milagre foi o San Lorenzo não sair goleado pelo
Real Madrid, em jogo morno, chocho, sem graça como filme com final
previsível.
1854
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
também com a mídia”. Uma prova de que isso de fato é verdade é o trecho em que,
ironicamente, diz: “a seleção de Dunga, que fracassou na Copa América em jogos pra
valer, é uma força internacional em... amistosos”.
Eliminada nas quartas de final, o time nacional deixou a competição com derrotas para a
Colômbia e para o Paraguai e duas vitórias por 2a1, contra Peru e Venezuela. A torcida
e a mídia não poderiam mesmo elogiar uma campanha assim medíocre.
1855
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
2 As citações que transcrevem passagens de crônicas escritas por Nelson Rodrigues estão
acompanhadas da informação sobre a data de sua publicação.
3 Um único exemplo nos basta para mostrar como se dá a ficcionalização do jornalismo esportivo. Em
abril de 1966, no primeiro número de Realidade (considerada um modelo transitório entre as revistas
ilustradas e de informação), uma reportagem ficcional tinha o seguinte título: “Foi Assim Que Ganhamos
o Tri”. A revista foi publicada meses antes de nossa seleção ser eliminada na primeira fase da Copa da
Inglaterra e descrevia a campanha do “tri de 1966”.
1856
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
transmutando o real no produto textual que talvez o leitor queira para, por um lado,
divergir ou para, por outro lado, admirar e sentir-se despertado pelo prosaico para sua
própria condição humana.
(2) Amigos, foi a mais bela vitória do futebol mundial em todos os tempos.
Desta vez, não há desculpa, não há dúvida, não há sofisma. Desde o Paraíso,
jamais houve um futebol como o nosso. Vocês se lembram do que os nossos
entendidos diziam dos craques europeus. Ao passo que nós éramos quase uns
pernas de pau, quase uns cabeças de bagre. Se Napoleão tivesse sofrido as
vaias que flagelaram o escrete, não ganharia nem batalhas de soldadinhos de
chumbo. (1999b: 215 – 22/06/1970)
1857
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Outro ponto que não pode deixar de ser considerado é que essas relações
contrastivas entre os estilos são mediadas ideologicamente, o que no caso de Nélson
Rodrigues se fundamenta numa concepção existencial que recusa a realidade quando ela
não contempla suas convicções de vida (aqui, futebolísticas).
“Tudo o que aconteceu na Copa da Inglaterra – contra nós, os argentinos e os
uruguaios – teve a premeditação técnica de um crime perfeito.” (1999a: 121 –
26/07/1966) A Copa de 66, marcada por cenas de violência e por arbitragens
tendenciosas em favor dos europeus, propiciou uma passagem que ilustra essa
mediação:
(4) Amigos, é um equívoco funesto pensar que a última Copa [a de 66] está
morta e enterrada. As grandes humilhações nacionais são temas permanentes
e obsessivos. Assim como não esquecemos Canudos, nem esquecemos 50,
assim continuamos atrelados à vergonha de 66. Daqui a duzentos anos, a
derrota ainda será uma ferida a chorar sangue, e repito: – sangue vivo e
perene. (1999a: 135 – 12/10/1966)
1858
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1934:
(6) O segundo campeonato foi o de 1934. O ano da grande cisão entre a
Confederação Brasileira de Desportos e a Federação Brasileira de Futebol.
(...) Os dois lados só falavam em descascar a carótida do outro para chupá-la
como laranja. Está claro que, em tal clima, que papel poderíamos fazer num
Campeonato do Mundo? (1999a: 113 – 06/1966)
1938:
(7) Mais quatro anos e eis que o Brasil, pela primeira vez, teve uma chance
real de vitória. E justiça seja feita: – o escrete brasileiro amadureceu e, não só
isso, também a torcida. Já se insinuava uma dúvida na nossa humildade.
Muita gente começava a desconfiar que talvez o futebol brasileiro fosse o
melhor do mundo. (1999a: 113 – 06/1966)
1950:
(8) Depois de arrasar a Espanha, o Brasil tinha tudo para ganhar do Uruguai
(até a finalíssima, o Uruguai só fizera exibições medíocres). E o Brasil inteiro
esperava uma vitória por grande escore. No sábado, véspera do último jogo,
encontrei-me com o locutor Gagliano Netto. Perguntei-lhe: – “Quem
ganha?”. Eis a resposta fulminante: – “Brasil 8 x 0”. Pois entramos por um
cano deslumbrante, nas barbas de 200 mil brasileiros. Foi uma tragédia pior
do que a de Canudos. Só os cretinos fundamentais estavam radiantes. (1999a:
186 – 26/03/1977)
1966:
(9) Por motivos que variam de caso para caso, o entendido não gosta do
Brasil. Em 66, na Inglaterra, torceu pelo inglês, pelo alemão, pelo russo, pelo
búlgaro – menos pelo brasileiro. Voltou da Inglaterra anunciando a falência
do futebol artístico que era o nosso. Parece impossível que alguém seja
inimigo da beleza. Pois o entendido o era. Só promovia o futebol europeu, e
em especial o inglês, e aviltava o nosso. (1999a: p. 153 – 17/06/1970)
1974:
(10) A Holanda teve uma promoção furiosa. Mas perdeu para a Alemanha a
Copa de 74. Ora, se alguém quer saber o que fez o Brasil – qualquer um de
nós, baixando a cabeça rubro de modéstia, dirá: – “Ganhamos três
campeonatos mundiais”. Portanto, o Brasil tem um lastro acachapante. A
Holanda apenas perdeu uma finalíssima para os alemães. Não se diga que a
Holanda não usou todos os recursos. Usou. Em especial a arma original e
revolucionária do chuveirinho. Vocês tinham ouvido falar em tal? Nunca.
1859
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
1978:
(11) Os cretinos fundamentais da crônica queriam que o povo baixasse o pau
na seleção. (...) Agora, vocês não sabem por que os lorpas e pascácios
brigaram com o time nacional? Porque ele não imitou os defeitos do futebol
europeu. (...) A propósito da Copa de 78, dizem alguns jornais alemães: – “O
Brasil é o campeão secreto da Copa da Argentina”. Se a evidência quer dizer
alguma coisa, os brasileiros ganharam de todos os vencedores de chaves. E
mais: acabou maravilhosamente invicto. (1999a: 188-9 – 26/06/1978)
As três conquistas de Copa que Nélson viveu não foram, por isso mesmo, apenas
festejadas nos méritos dos protagonistas a quem tanto o autor devotava seu louvor. Ao
lado das descrições minuciosamente fantasiosas, o cronista compunha seu painel de
ataque aos detratores de nosso futebol e de nosso país – como mostram os próximos
trechos, que agora se referem apenas às Copas que o Brasil venceu:
1958:
(12) Um conhecido meu veio protestar: – “Pelé não pode ser craque! Com
dezessete anos, ninguém pode ser craque!”. Na minha cólera, tive vontade de
subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. Mas o meu consolo foi
que, ao mesmo tempo, saía no Paris-Match, que é uma revista mundial, uma
vasta, erudita e compacta reportagem sobre Pelé. Lá vinha escrito: – “Pelé,
rei do Brasil”. Enquanto aqui o brasileiro achava exagerado o próprio
entusiasmo, uma revista parisiense punha o garoto brasileiro nas nuvens.
Direi mais: – Paris-Match comportava-se diante de Pelé com a histeria de
uma macaca de auditório. (1999a: 54 – 01/1959)
1962:
(13) Após quatro anos de meditação sobre o nosso futebol, o europeu
desembarca no Chile. Vinha certo, certo, da vitória. Havia, porém, em todos
os seus cálculos, um equívoco pequenino e fatal. De fato, ele viria a apurar
que o forte do Brasil não é tanto o futebol, mas o homem. Jogado por outro
homem, o mesmíssimo futebol seria o desastre. Eis o patético da questão: – a
Europa podia imitar o nosso jogo e nunca a nossa qualidade humana. (1999a:
80 – 06/1962)
1970:
1860
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
(14) Quem devia escrever a história do tricampeonato era Mário Filho. Só ele
teria a visão homérica do maior feito do futebol brasileiro e mundial. Nunca
houve, na face da terra, um escrete tão humilhado e tão ofendido. (...) Até que
chegou a hora de partir. Escrevi: – “Partiu o escrete. Terminou o seu exílio”.
(...) Todavia, ninguém contava com o homem brasileiro. Cada um de nós é
um pouco como o Zé do Patrocínio. O “Tigre da Abolição” era suscetível às
mais cavas e feias depressões. (...) Para assumir a sua verdadeira dimensão, o
escrete precisava ser mordido pelas vaias. Foi toda uma maravilhosa
ressurreição. (1999a: 158-9 – 07/1970)
A ESCOLHA LEXICAL
1861
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
(16) Amigos, a bola foi atirada no fogo como uma Joana d’Arc. Garricha
apanha e dispara. Já em plena corrida, vai driblando o inimigo. São cortes
límpidos, exatos, fatais. E, de repente, estaca. Soa o riso da multidão – riso
aberto, escancarado, quase ginecológico. (1999a: 79 – 06/1962)
(18) Eu sei que o brasileiro e Satã têm algo em comum. Como se sabe, o
abominável Pai da Mentira é um impotente do sentimento. Não há, em toda
sua biografia, um único e escasso momento de ternura. E o Satanás daria a
metade de suas trevas por uma furtiva lágrima de amor. Pois bem. Já o
brasileiro é o impotente da admiração. (1999: 110 – 15/06/1966)
1862
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
cadelinha amestrada. Ai do teatro que não tem uma Sarah Bernhardt ou uma
Duse. (1999a: 130 – 04/08/1966)
1863
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
(24) Eu disse que se criou o hábito nacional de xingar Didi. E ele me lembra
um pouco o caso do Eça de Queirós e do Bey de Túnis. Em Túnis, existe um
Bey, ou deve existir. Se não existe faz de conta. E quando não havia outro
assunto, o Eça descompunha o Bey, dizia-lhe os piores desaforos. Pois bem:
– Didi também é uma vítima do torcedor sem assunto. (1999a: 58-9 –
21/03/1959)
N. do A.: Nélson faz uma crônica para enaltecer o futebol de Didi, acusado
pela torcida e pela crítica de ser um jogador muito lento (“Longe de ser um
chupa-sangue, trabalhou como um barqueiro do Volga”). Bey de Túnis, por
sua vez, era um título de nobreza do Império Otomano. Eça de Queirós, que
escrevia crônicas para um jornal de Lisboa, explica em carta a Pinheiro
Chagas como superou a dificuldade de entregar um texto para publicar: “Sabe
o que eu fiz numa destas agonias, sentindo o moço da tipografia a tossir na
escada, e não podendo arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito ou do
ventre? Agarrei ferozmente da pena e dei, meio louco, uma tunda
desesperada no Bey de Túnis... No Bey de Túnis? Sim, meu caro Chagas,
nesse venerável chefe de Estado, que eu nunca vira, que nunca me fizera mal
algum, e que creio mesmo a esse tempo tinha morrido. Não me importei. Em
Túnis há sempre um Bey: arrasei-o.”
1864
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
CONCLUSÃO
1865
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bilac, Olavo. 1916. Ironia e piedade. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Henriques, Claudio Cezar. 2011. Estilística e Discurso: estudos produtivos sobre texto e
expressividade. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier.
Irvine, Judith T. 2001. “Style as distinctiveness: the culture and ideology of linguistic
differentiation”. In: Eckert, Penelope & Rickford, John R. (Eds.). Style and
Sociolinguistic Variation. Cambridge: CUP.
Marques, José Carlos. 2012. O futebol em Nélson Rodrigues. São Paulo: EDUC.
1866
Simpósio 29 - Estudos do estilo em diferentes gêneros discursivos
Portela, José Luiz. 2014. “O berço esplêndido dos 7x1: Escravos de Jó”. Jornal Lance,
24 de dezembro de 2014, p. 24.
Queirós, Eça de. 1945. Obras completas de Eça de Queirós. Porto: Lello & Irmãos.
Rodrigues, Nélson. 1999b. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras.
Rodrigues, Sonia (Org.). 2012a. Brasil em campo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
__________. 2012b. Nélson Rodrigues por ele mesmo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
1867
SIMPÓSIO 49
LÍNGUA, DISCURSO, IDENTIDADE
COORDENADORES
Beth Brait
(Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Universidade de São Paulo/CNPq)
Cláudio DENIPOTI2
RESUMO
Este trabalho visa interpretar a valorização da língua portuguesa verificada em Portugal
ao final do século XVIII, através das traduções de livros “técnicos”, literários e
científicos. Para isso, voltar-se-á aos “paratextos” editoriais, (ou seja, textos adicionais à
obra, como prefácios, posfácios, cartas ao leitor, pós-escritos, etc.), particularmente
aqueles escritos pelos tradutores. Situadas no contexto de continuidade das reformas
pombalinas (apesar do afastamento do Marquês de Pombal do foco de poder) focadas
em um nascente nacionalismo imperial de cunho iluminista, tais traduções também
ocorrem em meio à crise do antigo regime português, proporcionando amplo material
para estudo das redes de relações e das formas de compreensão, à época, de questões-
chave como são o próprio Iluminismo e antigo regime, bem como a ideia central de uma
cultura escrita, na qual se inserem todos estes pontos. Um levantamento prévio e em
andamento sobre os livros traduzidos para o Português entre 1770 e 1820, revelou cerca
de 250 obras traduzidas impressas em Portugal e no Brasil (depois de 1808). Dessas,
pelo menos uma centena contém paratextos relativos às motivações que os tradutores
afirmaram ter para executar a empreitada, fornecendo os elementos necessários para as
análises desejadas, quais sejam: como os próprios agentes (neste caso, os tradutores)
percebiam a valorização da língua Portuguesa - e, consequentemente, uma certa
identidade imperial, no contexto de crise do Antigo Regime, e questões relacionadas a
este contexto, como as Luzes, a ciência e a sociedade.
Como podemos verificar algo tão subjetivo, e ao mesmo tempo, tão associado ao
fenômeno moderno do nacionalismo, como os processos de afirmação das línguas
nacionais? Embora muitas possam ser as respostas, este estudo focará um caso
específico, da virada dos séculos XVIII para o XIX, na produção editorial em língua
portuguesa. Embora os índices possam ser encontrados em diversas fontes,
1 Este estudo está sendo realizado como parte do projeto de pós-doutoramento na Universidade de Lisboa
(2015), intitulado “Homens do livro no início do século XIX: livreiros, cientistas, censores,
revolucionários no império Português”, sob supervisão do Prof. Dr. José Damião Rodrigues, e com
financiamento da CAPES.
2 UEPG, Departamento de História. Av. General Carlos Cavalcanti, 4748 - Uvaranas, Ponta Grossa - PR,
84030-900, Brasil – cnipoti@uepg.br.
1871
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
concentramo-nos no esforço de tradutores, ao longo das décadas entre 1770 e 1810, para
verter para a língua portuguesa uma enorme quantidade de trabalhos.
O primeiro passo é questionar a ideia contida na afirmação de partida – a de que
houve alguma valorização da língua portuguesa no período em foco, que possa ser
verificada naquilo que os tradutores escreveram sobre seu trabalho. A historiografia
afirma que sim, a partir da percepção da transição do uso do Latim ou do francês como
língua editorial predominante para as línguas nacionais, em especial no tocante aos
escritos científicos. Esta historiografia específica mostra o incremento das edições
traduzidas ou já escritas nos idiomas “pátrios”. No caso da língua portuguesa, podemos
citar os estudos de Antônio Gonçalves Rodrigues (1992), João Luís Lisboa (1991) e
Luís António de Oliveira Ramos (1986), entre outros. Segundo João Paulo Silvestre
(2007), os séculos XVI e XVII não foram particularmente fecundos em traduções para o
português em qualquer categoria editorial, havendo sim uma forte circulação, em
Portugal de obras em espanhol e latim (verificável nos catálogos das bibliotecas ou de
impressores portugueses), mas “o espaço das traduções do francês é lentamente
conquistado à medida que o século XVIII avança”. Rodrigues (1992) indica que a
primeira metade do século XVIII viu surgirem 442 traduções publicadas em Portugal,
contra 266 em todo o século anterior. Neste estudo, ainda incompleto e sem pretensão
de ser exaustivo, já foram localizadas aproximadamente 250 obras do período, das quais
pouco mais de uma centena ofereceu paratextos dos tradutores (ou dos editores das
traduções) para a realização da análise.3
Os “paratextos” editoriais, (ou seja, textos adicionais à obra, como prefácios,
posfácios, cartas ao leitor, pós-escritos, etc., mas também textos extrínsecos – epitextos,
como as censuras, as cartas e catálogos que dão o livro a conhecer), possuem força
ilocutória suficiente para que sua informação possa “dar a conhecer uma intenção ou
interpretação autoral e/ou editorial” (Genette, 2009:17). Buscar estes paratextos em seu
contexto – variável, portanto, historicamente – tem sido a abordagem adotada nesta
pesquisa, pois ela permite refletirmos sobre a historicidade da cultura escrita em foco,
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
1873
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
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4 Optou-se por manter, nos títulos das obras e nas citações, a grafia original.
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
olhei mais para as suas vantages, do que para minhas pequenas forças; e me
arrojei a fazer esta Traducção como pude, a fim de que os meus
Compatriotas, que ignoraõ a lingoa Latina, possaõ aproveitar-se destas
moralidades interessantes; e juntamente servir de commento a muitos outros,
que com facilidade pódem embaraçar-se em alguns lugares espinhosos, que
presenta o texto Latino.
A intenção de Soares era aumentar o conhecimento daqueles que não
dominavam (talvez pudéssemos dizer: “não dominavam mais”?) o Latim – e portanto
tinham pouco ou nenhum acesso às obras clássicas, que – neste período – serviam de
fundamento para aplicações modernas, se levarmos em conta que “europeus inteligentes
[consideravam, desde o século XVI,] a agricultura, as técnicas militares e até a medicina
da Roma antiga como modelo para suas próprias” (Hobsbawm, 1988:47). O mesmo
intento teve o poeta e dicionarista Miguel do Couto Guerreiro em sua tradução
(expurgada de toda a obscenidade) das Heroídes de Ovídio (1789), em cujo prefácio ele
afirmou ter realizado a tradução porque “[p]areceo-me, que promoveria muito os
singulares engenhos Portugueses, que não tem bastante intelligencia da língua Latina,
propondo-lhes hum exemplar de exquisito gosto para imitarem”.
Além do latim, o “ser util” passava também por processos educativos da língua
portuguesa, uma vez que as traduções poderiam ensinar sobre uma certa ortodoxia
gramatical, além de ajudar a desenvolver estilos. O mesmo João Rosado de Villalobos e
Vasconcelos, citado acima, em sua tradução de Os costumes dos israelitas do também já
mencionado abade Fleury (1778) afirmou ter traduzido para que os leitores portugueses
tivessem “importantes liçoens sobre a pureza da fraze, castidade da dicção, &
simplicidade de estilo, mui differente da affectação de alguns puritanos”. É neste
mesmo sentido que a tradução que João Guilherme Christiano Muller (1809), secretário
da Academia de Ciências de Lisboa, da Memoria sobre a literatura portugueza de
Robert Southey teve por objetivo mostrar aos seus leitores lusitanos o quanto a literatura
era conhecida fora das terras do Império:
Se publicamos pois a traducção deste Ensaio não hé por que estejamos em
todos os pontos de accordo com o seu Author, nem taõ pouco porque o
julguemos completo; senão para fornecer aos Portuguezes eruditos occasião
de saberem o conceito que novissimamente se forma em outros Payses cultos,
do merecimento literario desta Nação, e para [l]hes dar igualmente azo de
accressentarem, e corrigirem os juizos de hum Estrangeiro, que achou nossas
producções litterarias dignas de seu assiduo estudo e applicação.
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
médicos que não conhecessem a língua inglesa e, como utilidade maior, “ao mesmo
tempo instruir os outros homens, tanto quanto he necessario para que elles evitem certas
causas de molestias, e possão mais acertadamente fazer a escolha de hum Medico capaz
de dirigir sua saude”. Os tradutores do Curso completo de cirurgia theorica e pratica de
Benjamim Bell (1811), Francisco José de Paula e Manoel Alvares da Costa Barreto,
tiveram por objetivo a “utilidade pública” e “toda a satisfação se cooperarmos com este
nosso trabalho para a instrucção dos nossos Compatriotas”, retornando, portanto, ao
tema que permeia a ideia da utilidade das traduções.
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práticas “como até agora se fazia por falta de livros, que os dirijissem” fossem
substituídas por “principios luminosos” pelos agricultores de todo o Império.
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do Arco do Cego (Diniz Silva, 2006), ainda que o reconhecimento público do tradutor
seja dirigido exclusivamente ao príncipe regente (DeNipoti, & Pereira, 2013):
O louvavel desejo, que desde o principio de sua Regencia mostrou V.
ALTEZA REAL de ser util aos seos vassalos, introduzindo lhes o gosto para
as sciencias, mormente aquellas, que são de tanta utilidade, como as que se
empregaõ no conhecimento da natureza, a gloria, que naturalmente
acompanha a grade Obra de tirar do lethargo huma nação espirituosa, e como
dar lhe huma nova existencia, moveraõ a V ALTEZA REAL, mandar traduzir
para linguagem Portugueza muitas, e varias Obras, que sobre objectos uteis
nos faltavaõ, e como entre ellas occupe hum não despresivel lugar o
conhecimento das producções mortas da natureza, dignou se V ALTEZA
REAL mandar, se traduzisse o Manual do Mineralogico do celebre Sueco
Bergman, já antes traduziddo, e acrescentado em França, por Mongez, e De
la Metherie, tarefa esta, de que muita satisfação me encarreguei.
Em se tratando de uma ordem “superior”, não cabia ao tradutor escolher fazer ou
não o trabalho. Em diversos prefácios os tradutores deixam claro ter realizado a tarefa
contra sua vontade, ou, por falsa modéstia ou honestidade, para além de suas
capacidades. Ignácio Paulino de Moraes, tradutor do Compendio de agricultura e
collecção de maquinas e instrumentos novamente inventados (1802), em seu prólogo ao
leitor, explicou porque, apesar de suas dificuldades pessoais com os termos técnicos, ele
levou a tradução a cabo:
As grandes dificuldades, que em todos os tempos, conhecerao, e que sempre
assutarao, e temerao os melhores Traductores de Obras de Mecanismos, forao
as mesmas que eu receei, e descobri quando fui incumbido de fazer a
Traducção da presente Collecção de Maquinas e Instrumentos Agriculturaes;
e se não devesse obedecer á Ordem Superior, que assim o determinou, e
igualmente quisesse privar o Publico, e principalmente a minha Nação, do
conhecimento de humas tão engenhosas, e uteis peças de Mecanismo, com as
quaes se executa mais trabalho, em menos tempo, e com menos despeza […]
eu não me abalançára a uma impreza tão ardua, dificultoza, trabalhosa, e
algumas vezes até impossível de executar.
Manoel Jacinto Nogueira da Gama (futuro marquês de Baependi, no Império
brasileiro) ao traduzir o Ensaio sobre a theoria das Torrentes e Rios (1800), também
deixou claro que ficou contrariado em cumprir a tarefa, pois “de boa vontade ter-me-hia
subtrahido a esta tarefa, se me fosse licito deixar de obedecer”. Ele, porém realizou a
tradução porque “meu maior desejo [é] a utilidade publica, para evitar todos os
1886
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
embaraços, a que possa ter dado causa, e para por o Leitor em melhor estado de decidir
e emendar”.
1887
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 49 - Língua, discurso, identidade, 1893-1916
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1893
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este artigo analisa as construções discursivas do universo do trabalho do imigrante, em
Amar, Verbo intransitivo de Mario de Andrade. A abordagem se vale das reflexões de
Marx (1986), Engels (1990), Lukács (1980) e Antunes (1990), advindas da Sociologia
do trabalho e de Candido (1981, 1985), Bosi (1992) e Bakhtin/Voloshinov (1986) na
linha sociológico-literária, procurando ver como o discurso literário andradiano
constrói uma certa identidade para o trabalhador estrangeiro no Brasil. Focalizando-se,
mormente, Elza, a personagem governanta alemã, percebeu-se que há mudanças
significativas na recriação do universo laboral brasileiro do início do século XX, sendo
o trabalho fonte de status e sociabilidade, revelando relações mercantis e impessoais,
dentro de chave liberal-burguesa, sendo também metáfora para as novas configurações
laborais e de identidade nacional no período da Primeira República.
5 Professora Dra. da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Endereço: Avenida Sete de Setembro,
3165, Rebouças, Curitiba, PR, CEP 80230-901. E-mail: rubel@utfpr.edu.br. Bolsista de produtividade em
pesquisa pelo CNPq.
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
que vê essa articulação é Lukács (1980) para quem o trabalho é da ordem material,
porém, é partir dele que o homem manifesta sua capacidade de planejamento,
sociabilidade e subjetividade. O trabalho, para o teórico húngaro é a “protoforma
social”, sendo orientado por uma teleologia em que nitidamente se entrelaçam a questão
material e a imaterial. O pensador enfatiza que é através da linguagem que o homem vai
amadurecendo a sua capacidade de planejamento na ação laboral. Essa não é desprovida
de reflexão no âmbito da linguagem. Assim, trabalho e linguagem adquirem
fundamental importância na constituição do homem enquanto ser criativo e que
modifica o seu entorno. A obra de Marx (1986), majoritariamente, é destinada às
interpretações das contradições entre capital e trabalho, destacando neste, os reais
sujeitos das mudanças políticas e econômicas para a construção de outro cenário social,
demonstrando ser o trabalho coletivo e significativo e não alienado a condição de
emancipação dos sujeitos. No campo dos estudos literários não temos material
suficiente que explore o tema trabalho. Esta investigação se propõe a explorar essa
articulação entre universo laboral e texto literário por intermédio de um prisma
materialista da cultura, vinculando-se ao grupo de pesquisa “Estudos bakhtinianos”,
estudando como a temática trabalho se formaliza em termos discursivos literários, pois
o homem não só trabalha quanto escreve sobre a atividade laboral. Focalizaremos o
romance de Mário de Andrade, Amar verbo, intransitivo, um idílio, perquirindo aí sobre
a temática referida à luz da Filosofia da linguagem de orientação de Bakhtin e do
Círculo.
Os estudos sobre as articulações entre Literatura e História, no Brasil, datam,
mais especificamente do século XIX, com textos de José de Alencar, Machado de Assis,
Sílvio Romero e Araripe Júnior,6 para citarmos apenas alguns que se debruçaram sobre
essas interações. Alencar em vários escritos, mas sobretudo em prefácio a Sonhos`de
ouro, trata das fases da Literatura Brasileira, destacando a visão de literatura extensiva
que visa a acompanhar e recriar o nascimento e implantação da nação. Já Machado
(1971) em Instinto de Nacionalidade, mormente, faz a crítica a uma literatura somente
de cor local. Assis apontava o papel do escritor “como homem do seu tempo e de seu
país”. No entanto, segundo esse autor, essa ancoragem local não deveria limitar o
alcance de uma temporalidade mais longa a que toda obra literária deve almejar. O
escritor oitocentista critica o caráter descritivo majoritário de nossas letras e destaca a
6 Para uma síntese do pensamento crítico literário de Romero e Araripe, consultar Martins (1983).
1894
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
necessidade de haver uma literatura mais analítica e reflexiva sobre o real. Silvio
Romero, para quem a cultura brasileira é mestiça, apregoa o critério nacionalístico como
valorativo de nossa formação literária. Para Romero são cinco os fatores envolvidos e
articulados em nossa formação cultural e nacional: O português, o índio, o africano, a
imitação da cultura civilizada europeia e o meio, constituindo uma sociedade
miscigenada. Araripe, a partir de lentes deterministas, também enfatiza a ligação da
literatura ao meio, inclusive, destacando a questão da obnubilação local, que já de início
teria interferido na vida e visão portuguesas ao aqui aportarem. Nessa tradição, de se
destacar o vínculo entre literatura e o local, encontra-se boa parte da crítica sociológico-
estética que vem a se formar no século XX. Candido em Formação da Literatura
brasileira (1981), enfatiza o caráter “interessado e empenhado” de nossas letras em
dizer e retratar o real local. Já Bosi (1991) aborda, por exemplo, em Dialética da
colonização, as duas matrizes fundantes de nosso universo cultural, a saber o
humanismo e o mercantilismo, associados nesse período, expondo claramente a sua
concepção materialista da cultura. Dentro dessa mesma orientação, a exemplo, temos a
obra de Schwarz (2000) que trata, sobretudo, das contradições entre formas sociais e
culturais importadas e seu desvio, deformação e alteração em solo nacional,
exemplificando com textos literários. No século XX, no entanto, com os três autores
referidos, há uma mudança de perspectiva haja vista que o discurso literário é tratado
enquanto forma específica e não somente enquanto um reflexo da realidade. Afastam-se,
portanto, de uma visão leninista de reflexo, negando a condição fotográfica da obra
literária. Entretanto, esses estudos citados se orientam por uma concepção materialista
da cultura, ou seja, fazem a ligação de diferentes maneiras, da linguagem literária com
seu referente local, tendo, em parte, sua genealogia na crítica sociológica do século
XIX. Este artigo se vincula a esse marco teórico, estudando a vinculação entre discurso
literário e realidade local ao destacar as representações e recriações do universo laboral
na Literatura Brasileira. O artigo faz parte de um projeto mais extenso que visa mapear
como ocorrem nos séculos XIX e XX essa representação específica no discurso
literário. O universo do trabalho é um dado externo à literatura, mas essa o recria por
intermédio da linguagem artística. O homem não só trabalha como escreve, narra,
disserta e elabora teses sobre o trabalho. Nosso objetivo é refletir como o discurso
literário, em sua especificidade, reelabora, via palavra, o mundo do trabalho. No
discurso da História, da Sociologia e da Economia, essa temática já tem uma tradição
muito forte e cristalizada haja vista a vasta bibliografia encontrada tanto no cenário
1895
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
Machado de Assis, a partir de sua personagem Brás Cubas em que se afirma “...coube-
me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto”, explicitando, nessa
pequena frase, via redução estrutural (Candido), todo um universo de expropriação do
trabalho escravo e alheio. É a voz da elite dos barões, burocratas de alto escalão,
comerciantes de escravos e donos de plantagens extensas que não trabalhavam, mas
exploravam e gerenciavam o trabalho alheio, principalmente o escravo em uma
economia essencialmente agro-exportadora e não industrializada. Em confronto a isso,
já se vê na literatura, o trabalho sendo recriado em sua faceta de ascensão social e
material. O trabalho árduo da personagem João Romão de Aluísio Azevedo em O
cortiço também beneficia a sua trajetória ao baronato. Entretanto, a expropriação do
trabalho escravo (Bertoleza é escrava) e do trabalhador formalmente livre (os operários
da pedreira e as lavadeiras) é também fonte de ascensão para essa personagem. Essa
faceta de ascenso material por intermédio do trabalho já se encontra dentro de um novo
paradigma que está a adentrar o Brasil, ou seja, o ideário liberal-burguês em confronto
com o ideário patriarcal e escravista. Esses exemplos nos trazem discursos de dois
importantes escritores oitocentistas, demonstrando claramente que o trabalho é objeto
discursivo em nossas letras.
Enfocaremos a partir daqui a recriação do universo laboral doméstico na
literatura visto ser este o mais específico para a presente pesquisa. Apesar da sociedade
escravista e escravocrata direcionar o trabalho, havia um trânsito bem complexo entre a
casa-grande e a senzala. Freyre (1996) é um dos intérpretes do Brasil que se debruçou
sobre essas relações7 a partir do campo da Antropologia cultural, recriando a vida dos
7 Em Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, o
sociólogo se debruça sobre as relações sociais entre portugueses, índios e africanos,, analisando-as do
ponto de vista social e econômico. Dessa análise surge um conjunto discursivo sobre o modus operandi
do colonizador português. Alguns escritores apontam para que Freyre generaliza a atitude de
“democratização social” para todas as relações, envolvendo portugueses e escravos, não se dando conta
que deveria delimitá-la para o escravo doméstico, exceptuando-se o do eito. Freyre destaca que os
escravos domésticos eram selecionados com mais rigor e talvez por esse motivo eram tratados com mais
consideração. Comungavam da intimidade dos senhores e isso gerava um tratamento melhor: “A casa-
grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos
– amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família
ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas da casa. Espécie de parentes pobres nas famílias
européias. À mesa patriarcal das casas-grandes sentavam-se como se fossem da família numerosos
mulatinhos. Crias. Malungos. Muleques de estimação. Alguns saíam de carro com os senhores,
acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos.”(FREYRE, p.346). Freyre, no entanto, também
relata a violência do regime escravista: “Mas não foi toda de alegria a vida dos negros, escravos dos ioiôs
e das iaiás brancas. Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com
ervas e potagens dos mandigueiros. O banzo deu cabo de muitos, O banzo – a saudade da África. Houve
os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas. Não morreram: ficaram penando. E sem achar gosto na
vida normal - entregando-se a excessos, abusando da aguardente, da maconha, masturbando-se. Doenças
africanas seguiram-nos até a o Brasil, devastando-os nas senzalas. E comunicando-se às vezes aos
1897
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
brancos das casas-grandes. A África também tomou vingança dos maus-tratos recebidos da Europa. Mas
não foram poucas as doenças de brancos que os negros domésticos adquiriram; e as que se apoderaram
deles em conseqüência da má higiene no transporte da África para a América ou das novas condições de
habitação e de trabalho forçado. Trabalho forçado que nas cidades foi quase sempre em desproporção
com a nutrição.” (Freyre:415).
8 A personagem Pedro em Demônio familiar é escravo doméstico e tem acesso à intimidade dos patrões.
Essa relação, inclusive, o faz tomar atitudes que interferem diretamente na vida amorosa de seus
proprietários. A personagem tem um papel central na fábula. Entretanto, a partir dos problemas que gera
em decorrência de suas intervenções, o seu proprietário (Eduardo) decide libertá-lo e isso se faz quase
como um castigo. A libertação, no entanto, dá-se como uma grande metáfora para a abolição da
Escravatura. O escravo ganha a alforria, ficando à própria mercê, nada recebendo de seu antigo dono e
tendo que se sustentar doravante. O trabalho escravo sofre um descarte. Em Mãe, temos a escrava
doméstica (Joana) como progenitora do personagem principal (Jorge), reforçando-se a questão da
mestiçagem e concubinato do senhor-de-escravos com a escravaria feminina. Aqui a família burguesa (a
união de Jorge e Elisa) se dá pela venda da escrava e posterior, suicídio da mesma. A fábula remete à
eliminação do escravo, revelando já uma nova configuração social em que a família burguesa se constitui
já sem bases e vínculos escravistas. Em Escrava Isaura há a escrava doméstica que é amada pela
proprietária, remetendo a situações extra-verbais históricas em que vários historiadores relatam a íntima e,
muitas vezes, afetuosa relação entre escravos e senhores de escravos. Óbvio que a trama aí também
desvela a violência, posse e usurpação do escravo.
1898
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
é outro tema candente em nossas letras e história, comprovando-se essa intimidade entre
escravo e proprietário.
A partir mormente de 1870 em diante, a sociedade brasileira inicia um processo
de mudança muito grande, adentrando-se no país, cada vez mais, as ideias e práticas
liberais-burguesas e com elas a discussão sobre a implantação da República, a Abolição
da Escravatura e a vinda de imigrantes europeus para substituir o escravo tanto no
trabalho do campo quanto da cidade. Aqui já se pensa em um processo de implantação
de indústrias, afastando-se em parte, de uma economia majoritariamente voltada para a
exportação de bens primários, o café, sobretudo. Para essa implantação é necessário o
trabalho formalmente livre e o trabalhador mais qualificado. Esse será buscado na
Europa onde já estava afeito ao trabalho fabril. Também se passa a questionar cada vez
mais a formação do povo brasileiro e a sua identidade mestiça. Nesse momento,
embasados em teorias deterministas,9 discute-se, mais a miúde, a questão da
degenerescência racial de modo sistemático. As teorias e os discursos do
embranquecimento passam a ter voga e a vinda dos trabalhadores imigrantes resulta em
uma solução para se enfraquecer a mestiçagem. Nesse contexto de problematização de
nossas raízes africanas e de sua negação e de teorias deterministas raciais, surgem, na
literatura, obras que problematizam essa questão, como O Mulato de Aluísio Azevedo
que apresenta a não aceitação do mestiço, mesmo que este seja dotado de cultura letrada
ocidental. Na literatura de orientação realista há já a tematização sobre a substituição
dos empregados domésticos de origem africana por outros, a saber, advindos da Europa.
Em Quincas Borba10 de Machado de Assis e em Filomena Borges11 de Aluísio Azevedo
essa substituição é situação narrativa, explicitando-se o caráter de mudança do perfil do
empregado doméstico. Não se confia mais a casa ao descendente de escravo, mas ao
europeu que é visto de modo positivo por ser branco, mais educado e civilizado. Sua
9 A esse respeito consultar Schwarcz (1993) que trata sobre a questão das discussões brasileiras sobre
mestiçagem, política de embranquecimento, teorias eugenistas, de orientação monogenista e poligenista
que acirravam os ânimos nas faculdades de Direito e Medicina e outros institutos importantes no final de
oitocentos no Brasil.
10 Leia-se a seguinte passagem esclarecedora: “O criado esperava teso e sério. Era espanhol; e não foi
sem resistência que Rubião o aceitou das mãos de Cristiano; por mais que lhe dissesse que estava
acostumado aos seus crioulos de Minas, e não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu,
demonstrando-lhe a necessidade de ter criados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pajem, que
ele queria pôr na sala, como um pedaço da província, nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um
francês, Jean; foi degradado a outros serviços”. (Machado:10-11)
11 Leia-se o seguinte excerto em que na fábula a heroína deseja substituir a criadagem a fim de obter
mais prestígio na sociedade “Para a cozinha preferia um chim; para o serviço da copa um inglês, um
groom legítimo, e para sua criada grave alguma cousa de francesa ou russa ou espanhola, uma criada,
enfim, que não fosse de cor, nem tivesse a menor sobra de portuguesa”. (Azevedo:42) (Grifos nossos)
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
formal pelo discurso indireto livre, em que dois enunciados comungam do mesmo
contexto enunciativo, acarreta posições axiológicas complexas. No início do trecho, a
voz de Fräulein indica uma reprovação dada pelo vocábulo “horrorosa”, criticando a
miscigenação do povo brasileiro. Aqui, Elza mobiliza o discurso arianista, de pureza
étnica, cobrando dos brasileiros uma postura mais rígida que afastasse o perigo da
invasão cultural estrangeira. Percebe-se, como se verá em outras passagens do romance,
que Elza apresenta a sua posição ideológica a partir de solilóquios. Essa voz, cujo
interlocutor não é concretamente explícito, ocorre em virtude da posição social inferior
de Elza visto que ela não é paga para emitir opiniões sobre os brasileiros e sim para
apenas informá-los, repassando a eles um saber erudito, mas não crítico. Elza não pode
expor as suas ideias publicamente, principalmente se essas desmerecem o brasileiro que
é quem paga o seu salário. Entretanto, via discurso literário, Mário de Andrade, por
intermédio da voz narrativa, a faz discursar e se expor. Esse monólogo, no entanto, é
dado pelo contexto narrativo e, a partir daí, o narrador o colore com a sua voz. No
excerto, o contexto narrativo apresenta a nova configuração étnica e híbrida da
sociedade brasileira, em tom múltiplo. A hibridização cultural é construída de modo
axiológico-discursivo, ou seja, a partir de valores da personagem e do narrador, visto
que ambos instituem o enunciado com suas falas. O narrador está colado à Fräulein,
mas também dela distanciado. Há simultaneamente reprovação, aprovação e saudosismo
no excerto. A desaprovação está claramente anunciada nas duas primeiras linhas em que
a voz de Fräulein se destaca, contrariada com os brasileiros, vendo-os de fora,
reprovando-os visto que os estrangeiros dominam tanto o cenário laboral quanto o
econômico. Tanto Fräulein quanto o narrador se incomodam com a mudança de perfil
societal do Brasil. Fräulein talvez por se sentir inferiorizada, mas dependente dos
brasileiros, vê o estrangeiro tomando o protagonismo nacional e reprova a atitude dos
brasileiros em não terem soberania em relação ao imigrante. Já quando o enunciado
avança, vemos o narrador irromper, inclusive pela expressão “fazer a barba da gente” o
que se distancia do enunciado da personagem feminina. Na voz do narrador há menos
reprovação e mais benevolência com o perfil híbrido da sociedade brasileira. Essa voz
apresenta um panorama da vinda dos imigrantes e sua hibridização em uma cultura local
que vai formando um Brasil “arlequinal” e multiétnico em que os “peris” se associam
aos alemães e outras etnias. Todavia, o narrador, além de se admirar frente ao perfil
multiétnico do Brasil e aceitá-lo, é também saudosista. Sua voz irrompe no enunciado,
remetendo-o às suas memórias de infância, a um Brasil residual, rememorando a relação
1902
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
escravista a partir de uma chave positiva em que relembra o convívio com o empregado
doméstico de origem africana, recuperando um Brasil anterior à narrativa, colonial e
imperial. O cronotopo do presente (República Velha) mostra a realidade multicultural e
do imigrante europeu alemão; já o cronotopo do passado, revisita um Brasil escravista
em que o africano era o trabalhador majoritário. Dois momentos axiológicos se
confrontam no interior do enunciado: Fräulein desaprova a pluralidade étnica e cultural
e o narrador a aprova, mas com saudosismo, decepcionado com a quase ausência de
empregados domésticos mulatos e africanos no interior da casa brasileira. Uma nova
identidade para o trabalhador brasileiro, advindo da imigração europeia mais recente,
vai surgindo desse trecho, demonstrando que a literatura também é fonte de registro
histórico. O enunciado é riquíssimo em termos culturais e discursivos, pois aí,
percebem-se as tensões axiológicas advindas da mudança identitária nacional nas lentes
tanto de um discurso local, o do narrador, quanto na perspectiva do discurso do outro,
do estrangeiro. O enunciado reporta a uma condição cronotópica dual, ou seja, a um
tempo e espaço que tanto indicam o presente da República Velha quanto o Brasil
imperial e colonial, surgindo daí o tom de surpresa, descontentamento e aceitação pela
nova configuração étnica e de saudosismo pela ausência de um protagonismo africano
nos novos tempos. No enunciado, percebemos vários discursos da época, ou seja, do
arianismo, do sebastianismo, do facismo e da miscigenação racial e cultural tanto
positiva quanto negativa que circulavam na “ideologia do cotidiano” e que Mario de
Andrade faz migrar para o interior do texto literário, que é essencialmente composto de
um conjunto discursivo complexo.
O excerto citado destaca a nova ordem para o trabalho doméstico e é a partir
dessa perspectiva que investigamos o romance Amar, Verbo Intransitivo, um idílio, de
Mário de Andrade em que se tematiza essa questão. Na obra, demonstra-se claramente
uma nova configuração laboral, ou seja, o trabalhador doméstico deve possuir certa
cultura e ser civilizado para adentrar os palacetes das famílias ricas paulistanas. O fluxo
não é mais o da senzala para a casa-grande e sim da Europa pobre para o Brasil. Nesse
período, o afluxo de imigrantes da Itália e Alemanha é grande. As Américas são vistas
como uma oportunidade de ganho material.
A voz narrativa vai apresentando a governanta em situações narrativas concretas
e também a partir de uma linguagem descritiva em que há claramente o objetivo de
apresentar o imigrante, sobretudo o alemão, como nova etnia a configurar a sociedade
brasileira e o mundo do trabalho. Elza representa a ordem, a objetividade, o projeto
1903
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
planejado que não se desvia de seu intento. Essa outra matriz étnica está presente na
realidade e Mário vai dando o seu testemunho literário sobre ela. No excerto a seguir, o
contexto narrativo se configura primeiro por narrar uma situação particularizada, ou
seja, a entrada de Elza na mansão paulista como governanta. Essa informação é dada
por intermédio, de uma fala despretensiosa, de cronista e bastante coloquial. Porém a
descrição e apresentação particularizada de Elza é extrapolada e ocorre uma possível
definição generalista para os imigrantes alemães a partir de um discurso mais analítico
de chave antropológica, delineando tanto a identidade de Elza quanto a dos alemães.
Parte de um concreto, atingindo uma certa generalização, sem deixar de se instituir
também com certa estereotipia discursiva étnica por parte do autor:
Fräulein" era pras pequenas [as filhas do industrial] a definição daquela
moça... antipática? não. Nem antipática nem simpática: elemento.
Mecanismo novo da casa. Mal imaginam por enquanto que será o ponteiro do
relógio familiar. (Andrade:54)
Mas não tem dúvida: isto da vida continuar igualzinha, embora nova e
diversa, é um mal. Mal de alemães. O alemão não tem escapadas nem
imprevistos. A surpresa, o inédito da vida é pra ele uma continuidade a
continuar. Diante da natureza não é assim. Diante da vida é assim. Decisão.
Viajaremos hoje. O latino falará: viajaremos hoje! o alemão fala: viajaremos
hoje. Ponto final. (Andrade, 2002:54)
O trabalho de Elza apresenta caráter imaterial visto que está ligado a ensinar
música, a tocar instrumentos como o piano, a aprender outras línguas, a usar a etiqueta
social para as filhas e filho do casal. Trabalha com um fito bem específico, pois o ideal
da personagem é trabalhar em casa de famílias ricas, economizar e voltar à Alemanha
para se casar. Perceba-se que Elza exerce o trabalho imaterial e intelectual, revelando-se
claramente uma preocupação da elite em bem formar os seus filhos. Longe se está dos
séculos anteriores em que Gilberto Freyre descreve as mucamas a rezar, a cantar, a
ensinar a falar os sinhozinhos e sinhazinhas. As mucamas não detinham a cultura
erudita como Elza. A governanta possui uma cultura letrada e erudita alemã e ocidental
e deverá ser a preceptora dos filhos. “É a casa brasileira a se civilizar”. Metáfora para
um Brasil que deseja entrar na ordem da modernidade, deixando para trás a economia e
cultura escravistas. Porém, afora esse contrato de professora de cultura e erudição, há
outro acerto com o industrial, ou seja, ela deve iniciar o herdeiro na vida sexual.
Distante se está também dos períodos anteriores em que os sinhozinhos se iniciavam
1904
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
com as escravas, gerando, inclusive, os elementos mulatos. Aqui se percebe que não só
a mente de Elza serve à elite, mas também o seu corpo. Isso nos remete ao contexto
imediato histórico-econômico em que com a mudança de paradigma econômico, exige-
se a alteração do trabalhador. Não mais o escravo do eito, semi-desqualificado12, mas o
imigrante, sua mente e seu corpo para trabalhar nas indústrias têxteis e alimentícias e
outras que se implantavam no Brasil da Primeira República. Os milhares de imigrantes
que para aqui vieram, já detinham a tecnologia da maquinaria proveniente da revolução
industrial inglesa do século XVIII e XIX. Lá também eram vinculados, em boa parte, a
partidos socialistas, comunistas e anarquistas. Desse modo, trouxeram a habilidade com
a máquina mecanizada para a indústria, mas também outra visão política de luta e
resistência, formando os sindicatos, associações e jornais operários de início do século,
como também foram os responsáveis pelos movimentos grevistas e ludistas. Assim, esse
novo trabalhador mostra-se afeito à batalha contra o capital e não se sente intimidado
pelos patrões. Luta pelas suas conquistas a partir de associações o que vai
desencadeando em uma mudança nas relações entre capital e trabalho, sobretudo, na
legislação trabalhista que se altera e intensifica. O corpo e a habilidade intelectual do
trabalhador são agenciados para uma nova configuração do universo laboral. Este, no
entanto, não se dá sem resistência do trabalhador já formado dentro de um contexto
europeu de reivindicações. Elza representa, em parte, esse novo operariado, cujas
relações com o patrão são impessoais e mercantilizadas, mediante contrato e não mais
afetivas e de submissão. Sua mente e seu corpo passam por um processo de
mercantilização acordado entre ambos a partir de relações de trabalho livres e
assalariadas. Mario de Andrade dá voz a esse imigrante e lhe fornece uma narrativa de
vida dentro do romance. Apresenta-se um narrador que tanto se distancia de Elza quanto
se aproxima dela, configurando um discurso que tanto cria uma personagem única
quanto a generaliza. Esse expediente formal típico do discurso literário permite ao
escritor vincular a micro história pessoal à macrohistória econômica e política nacional.
Veja-se que, no excerto, Elza é dada pelo discurso do narrador em que a chave
econômica das relações impessoais e despersonalizadas no universo laboral já a definem
12 Escravos assenzalados nas grandes platagens d e cana-de açúcar e e café, não dispunham de
qualificação especializada. Podiam ser substituídos facilmente devido à padronização do trabalho,
Gorender (1992) assevera: “ Por fim, dado o tipo de mão-de-obra, a divisão qualitativa do trabalho no
interior da palntagem escravista implicava escassa especialização individual. Afora uns poucos ofícios,
entregeues ou não a assalariados, a regra geral para os escravos consistia na intercambialidade de funções.
De acordo com as exigências momentâneas do estabelcimento, o mesmo escravo estaria empenhado nas
tarefas agrícolas, no benefiamento, no transporte ou em qualquer setor de trabalho carente de baixa
qualificação” (Garender, 1992:84)
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(...) em tempos de calorão surgiam nos cabelos negros de dona Laura umas
ondulações suspeitas. Usava penteadores e vestidos de seda muito largos
apenas um gesto e aqueles panos e rendas e vidrilhos despencavam pra uma
banda afligindo a gente. Meia malacabada. Era maior que o marido, era. Lhe
permitira aumentar as fabricas de tecidos no Brás e se dedicar por desfastio à
criação do gado caracu.(grifo nosso).
(...) E quem diria que Souza Costa não era bom marido? Era sim. Fora tão nu
de preconceitos até casar sem por reparo nas ondas suspeitas dos cabelos da
noiva. Em bem me lembro que ficaram noivos em tempo de calorão... Dona
Laura retribuía a confiança d marido, esquecendo por sua vez que bigodes
abastosos e brilhantados são suspeitos também. (Andrade, 2002:55)
Tanto a mente quanto o corpo de Fräulein são agenciados pela elite, mas aqui, as
relações entre capital e trabalho são já orientadas por uma ótica menos senhorial em que
o compadrio, o apadrinhamento e a mestiçagem estão enfraquecidos. Os acertos e
contratos entre Elza e a família se dão de modo impessoal e comercial. Também há em
Elza a crença na superioridade do imigrante que exerce o trabalho como missão para
orientar, nos caminhos da civilização, o povo brasileiro. O trabalho imaterial que exerce
lhe confere um status visto que ensina aos filhos dos brasileiros a cultura civilizada.
Corpo e mente conjugados no trabalho a partir de uma perspectiva de superioridade
cultural europeia. No trecho a seguir, o narrador apresenta a cultura letrada de Elza. Isso
ocorre em outras passagens da obra também, indicando a superioridade cultural da
governanta em relação aos patrões. Todavia, apresenta a personagem de forma crítica,
com visão exotópica, pois assinala a ausência de juízo estético de Elza. A governanta lê
de modo mecânico grandes obras por lhe faltar autonomia de leitura e crítica.
Fräulein tinha poucas relações na colônia, achava-a muito interesseira e
inquieta. Sem elevação. Preferia ficar em casa nos dias de folga relendo
Schiller, canções e poemas de Goethe. Porém com as duas ou três professoras
a que mais se ligava pela amizade da instrução igual, discutia Fausto e
Werther. Não gostava muito desses livros, embora tivesse a certeza que eram
obras-primas. (Andrade, 2002:67)
1909
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1910
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
percebe-se imbuída de uma missão à medida que se vê de raça superior e isso mitiga o
contrato de relação carnal que acerta com o industrial. Além disso, o trabalho
proporciona a sua sobrevivência material e alimenta o seu sonho que é de retornar à
pátria natal. A passagem a seguir atesta a diferenciação entre o discurso de quem é
local, o narrador, e o discurso do estrangeiro dado a partir das lentes de Elza. Ela se
sente isolada, no exílio em terras brasileiras. Seu intuito é retornar. É uma “canção do
exílio” às avessas para o estrangeiro. Entretanto, o sonho da volta é cerceado pela
realidade circundante. O estrangeiro vai sendo assimilado pela cultura local. O narrador
apresenta o fluxo de consciência de Fräulein entremeado pelas vozes da multidão
carnavalesca e também pela concretude da aparição de Carlos a quem Elza se vinculou,
em parte, emocionalmente. A Alemanha está no sonho, no discurso interior, e o Brasil
está na situação concreta que a rodeia e circunda, alterando e enfraquecendo esse
devaneio. A bivocalidade do enunciado é uma constante na obra como já vimos em
situações narrativas anteriores. Interessante notar a construção discursiva do trecho, pois
duas vozes habitam o enunciado, uma resultado de sua fala interior e outra advinda do
meio e das vozes carnavalescas da multidão. Parece que Elza só pode apresentar um fala
particularizada se esta for isolada do meio externo, ou seja, estiver na condição de “em
si”. Novamente Mario se utiliza desse expediente composicional. A voz interna não
pode circular publicamente. O empregado não pode dizer tudo que quer. Se o fizer,
perde o posto que conseguiu. Todavia, a literatura lhe dá uma voz. Entretanto, as vozes
externas que adentram o enunciado, ou seja, do meio social e cultural, neutralizavam os
desejos e o discurso da personagem. O imigrante vai sendo assimilado pelo meio e
perdendo a sua identidade, mas também formando o Brasil multiétnico. O embate
discursivo entre discurso interior e vozes externas reinantes no mesmo enunciado é um
expediente composicional que formaliza a realidade de aculturação e assimilação do
imigrante em solo nacional. Esse pequeno trecho atesta como a linguagem literária
capta essa luta de duas culturas veiculadas pelas vozes sociais e de Fräulein. O
hibridismo das vozes é ainda atravessado pela figura concreta de Carlos por quem Elza
se apaixonara e esse fato também altera seus sonhos, demonstrando claramente a
diferenciação de classes sociais entre ela e ele e quão impossível é a relação entre os
dois, ou seja, o amor intransitivo. Um é o empregado e outro o patrão. A relação é
mercantil, mas Fräulein “instintivamente” lança uma serpentina em Carlos. Perceba-se
que, aqui, o espírito ordenado, racional de Elza é suplantado pelo instinto, pelo gosto do
ócio, da brincadeira, do amor descompromissado, pelas emoções. Entretanto, a fábula
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Assim a obra se vincula ao seu contexto não só histórico, mas também mais amplo de
leitura possíveis. Nossa Elza propicia uma certa história do trabalhador brasileiro dado
pelas lentas da Literatura Brasileira, permitindo se observar uma nova temática para a
leitura de um clássico.
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regime da economia patriarcal, 31.ed. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Record.
Lukacs, Georg. 1980. The ontology of social being: Labour. Londres: Merlin Press.
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
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forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 34. ed. São Paulo:
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1915
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
1916
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 49 - Língua, discurso, identidade, 1917-1936
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1917
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este texto discute representações de gênero em letras de canções brasileiras, de épocas e
estilos musicais diferentes, cuja temática focaliza questões de identidade do sujeito
contemporâneo, especificamente as que se referem aos papéis atribuídos ao feminino e
ao masculino, ao longo do século XX até a atualidade. Objetiva estimular a reflexão
acerca das desigualdades de gênero e, em decorrência, promover o debate em torno da
igualdade, ao aprofundar a compreensão das complexas relações provenientes de modos
de pensar que são fruto de milênios das sociedades ocidentais patriarcais. Apresenta
interpretação de três canções, desde a clássica Ai, que saudades da Amélia (1942),
passando por Camila, Camila (1987), que marca uma fase de denúncias sobre
problemas sociais, a Esse cara sou eu (2012). A partir de conceitos da Análise do
Discurso de Linha Francesa, adotando uma perspectiva interpretativista, procura
compreender o processo de constituição dos sujeitos e dos sentidos, levando em conta
suas condições de produção. As letras das canções, em sua maioria, mostram modelos
estereotipados de gênero, que são condicionamentos sociais apre(e)ndidos, histórica e
culturalmente, e continuamente reforçados pelo convívio social e pela ideologia dos
grupos que os produziram e nos quais circulam. Ao longo de décadas, as relações
sociais se transformaram, no entanto, até hoje, o discurso de superioridade masculina,
muitas vezes revestido de amor e de valorização da figura feminina, constrói os textos
analisados.
Introdução
13 PUC-Campinas; Faculdade de Letras; Rodovia D. Pedro I, km 136, Parque das Universidades, 13086-
900, Campinas, São Paulo, Brasil; migl@puc-campinas.edu.br.
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O gênero se relaciona com sexualidade, corpo, identidade, classe social, etnia, raça,
geração, o que justifica as pesquisas – em diferentes áreas do conhecimento – sobre
questões que perturbam a vida em sociedade.
Três canções brasileiras
14 Este texto é parte dos trabalhos da linha de pesquisa Discurso e identidade: representações de gênero e
de poder, da PUC-Campinas, do grupo Estudos do Discurso (CNPq-Brasil).
1919
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Amélia
1920
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15 A história por trás da música – Ai, Que saudades da Amélia. Disponível em:
<http://passeandopelocotidiano.blogspot.com.br/2011/08/historia-por-tras-da-musica-ai-que.html>
Acesso em 20 Ago. 2013.
1921
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1922
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
poderiam ser outras, mas foram estas: “Ai meu Deus que saudade da Amélia / Aquilo
sim que era mulher”. Ao chamar a mulher de “aquilo”, ele a coisificou; é a reificação
como figurativização do pensamento masculino típico dos anos quarenta, típico do
discurso machista.
O outro discurso que mencionamos, construído a partir do discurso machista, ou
para ocultá-lo, é o discurso de vítima, em que o locutor se coloca como “um pobre
rapaz”, explorado pela mulher que quer tirar tudo dele, quer “luxo e riqueza”. Ainda, em
confronto com esse, e complementar do discurso machista, o discurso de submissão,
protagonizado pela Amélia, que comentamos. Este quase se confunde com os efeitos de
um discurso maternal, em que a mulher é (super)protetora do amado, chamando-o de
“meu filho”.
Em confronto com esse, o discurso da mulher dominadora, “mandona”, que, do
ponto de vista masculino, seria o discurso da desobediência, da transgressão, da
indisciplina, é o da primeira mulher, a enunciadora que exige do companheiro sua cota
de regalias. Provavelmente, um falso discurso de dominação, pois é ocasional.
No jogo dos discursos que mencionamos, há ausência, na voz dos enunciadores,
do discurso do amor, como seria (deveria ser) previsto nas relações de gênero.
O fato de essa canção ter ficado famosa justifica-se porque seus interlocutores
(da época e de várias gerações seguintes) percebiam nela um efeito de identificação que
lhes dava certo prazer, gostavam de saber que outros pensavam como eles ou que
conheciam alguém que pensasse da mesma forma. O locutor da canção representa
grande parte das figuras masculinas da década de quarenta, que, como ele,
consideravam as mulheres inferiores aos homens. A canção permanece até hoje, não
somente na mesma formação discursiva, mas em outras, pois as “Amélias” ainda
povoam espaços do cotidiano de várias famílias ou ocupam parte da vida de muitas
mulheres. Há questões sociais decorrentes dessa, por exemplo nas áreas de trabalho,
dentre outras. Conforme Rocha (2012:59), “não é por mero acidente que um enunciado
permanece, ou seja, a remanência pertence de pleno direito ao enunciado”.
O contexto histórico e social fornece os parâmetros para a interpretação do que
foi dito. Os sentidos não nasceram ali, naquele texto, mas vêm de outros lugares, outras
épocas, são contruídos na memória discursiva. Tudo o que a sociedade disse e diz
significa e re-significa a cada momento em que se repetem os dizeres. A canção de que
tratamos não diz sozinha, pois há conversas que ouvimos, há depoimentos e registros de
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
Camila, Camila
Dentre os vários aspectos que podem ser abordados nas discussões sobre gênero,
um deles tem incomodado pessoas interessadas em propor soluções de melhoria nas
relações entre os gêneros masculino e feminino: a violência contra as mulheres. Os
sujeitos têm o dever de denunciar e protestar contra as atitudes discriminatórias e
agressivas e, também, de criar espaços para ouvir o que os envolvidos têm a dizer sobre
a questão.
Nosso papel de pesquisadores é compreender os discursos produzidos e em
circulação nas sociedades em que vivemos. Assim, nos propusemos a “ouvir” o que
uma canção disse sobre o tema da violência contra as mulheres. Sabemos que a
violência contra a mulher é a intimidação da mulher pelo homem que
desempenha o papel de seu agressor, seu dominador e seu disciplinador. É
geralmente praticado por pessoas as quais as vítimas mantêm relações
afetivas – maridos/ex-maridos, companheiros/ex-companheiros,
namorados/ex-namorados – em qualquer lugar, mas principalmente em casa,
lugar esse que deveria ser de segurança e proteção é o mais perigoso para as
mulheres. (Santos e Queirós, 2012:s/p)
As sociedades ocidentais, sobretudo por meio dos veículos midiáticos, expõem
frequentemente casos de violência contra mulheres, para que as autoridades ou grupos
sociais se senbililizem e proponham soluções ou formas de conscientização dos
envolvidos. Embora se conheçam os problemas e, teoricamente, algumas maneiras de
resolvê-los, não é simples buscar o ideal, pois o comportamento machista e violento de
muitos homens é fruto de uma longa história e de um discurso sexista fortemente
cristalizado no imaginário coletivo.
As categorias de gênero e de patriarcado são de grande importância para se
entender a história de opressão vivenciada pelas mulheres. Com a categoria
gênero pode-se relacionar as diferenças sociais, históricas e culturais entre
homens e mulheres. O patriarcado permite perceber como foram
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1927
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17 Opera Mundi publica com exclusividade os textos do blog "Por dentro dos Brics", em que quatro
jornalistas brasileiros trazem as novidades dos países emergentes direto de Rússia, Índia, China e África
do Sul. Disponível em:
<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/26881/violencia+contra+a+mulher+e+problema+social
+nao+geografico+alertam+ativistas.shtml> Acesso em: 09 Out. 2013.
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
encontra com severas sequelas pelo abuso contínuo, sofrido por anos de sua
vida. (Souza e Cassab, 2010:44)
Há situações cotidianas em que as mulheres se convencem de que são culpadas
pelas situações de agressão dos companheiros e vivem uma rotina de medo e culpa, na
tentativa de fazê-los felizes.
Mesmo que pessoas postadas fora do relacionamento abusivo tentem
convencê-la de que o companheiro a está violentando, ela insiste em afirmar
que a culpa é sua por não saber cozinhar direito, não realizar as fantasias
dele, não ser inteligente para acompanhá-lo numa conversa, etc. Quando se
chega a este estágio, o companheiro já conseguiu completar o processo de
lavagem cerebral. (...) tais mulheres precisam amar novamente, redescobrir
sua identidade que esqueceram quando se envolveram nessa relação de
conflito, de agressões. É preciso apoiá-las, no sentido de tratamento que
viabilize sua auto confiança, sua auto estima e fazê-las acreditar que podem
ser felizes novamente, em novos relacionamentos cuja condição seja de
respeito e afeto. (Souza e Cassab, 2010:45)
Os espaços de reflexão e análise do(s) discurso(s) de gênero são fundamentais
para a transformação social. A canção que escolhemos, aqui, representa uma fatia do
enorme contexto de discriminação contra as mulheres, ao longo da história das
sociedades. Ora valorizada, ora subjugada, ora gritando, ora calada, a mulher-musa do
cancioneiro brasileiro segue seu rumo à desejada igualdade de gênero.
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
Considerações finais
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
interpretativo fica pequeno, não retrata as tantas voltas que o mundo deu – nem seria
nossa pretensão fazê-lo – e, nas canções, não dá conta do vai-e-vem dos sentidos do
amor e da paixão ou dos discursos de dominação e de poder, nas relações de gênero,
entretanto representa uma mostra significativa para reflexão sobre a questão.
Houve mudança nas formas de representação do feminino nas canções, mas não
o desejável para uma sociedade igualitária. Embora tenha havido diferenças entre as
representações do perfil feminino, nas décadas do século XX e início do XXI, os
momentos de retorno à ideologia da sociedade paternalista e de desvalorização das
mulheres permanece em alguns trechos de canções mais recentes, pois as imagens da
dominação/submissão estão cristalizadas no inconsciente dos sujeitos. É a história dos
sentidos do discurso sobre o feminino determinando modos de interpretação ora em
favor, ora contra a emancipação das mulheres.
Portanto, se ideologia, história, sociedade e discurso não se separam, de acordo
com os pressupostos da AD, o discurso das canções populares brasileiras revela os
valores e a história dos sentidos que a sociedade (ocidental, neste caso) tem atribuído
aos assuntos de identidade e gênero, desde o passado.
Em linhas gerais, o sexismo presente até hoje nas relações de gênero é
resultado de uma história mais ampla, que contempla o início das
civilizações, que passa por outras instâncias como a religião, a política, a
economia e a cultura, só para citar alguns exemplos. E vai contribuir para a
proliferação das desigualdades entre homens e mulheres. Cabe a nós, diante
disso, desnudar e problematizar em nossa cultura as representações que
provocam o retorno ao status quo da inferioridade da mulher e de qualquer
outro indivíduo que não corresponda aos padrões instituídos pelo pensamento
patriarcal. (Jacomel e Pagoto, 2009:121)
As diferenças de papéis sociais entre homens e mulheres estão diminuindo,
entretanto, originadas nas diferenças de sexo (biológico) e, parafraseando Bauman
(2001), devido ao fato de que os indivíduos têm a obrigação social de posicionar-se ao
preencher os dados de sua “carteira de identidade”, as marcas da divisão de tarefas
permanecem em muitos lugares das sociedades ocidentais – em menor escala, é claro,
do que nas orientais.
Os problemas de gênero provêm de relações de poder cultural – de dominação e
de subordinação – (Hall, 2003) que fazem parte da história das sociedades em que
vivemos. A desigualdade de gênero envolve problemas de poder, de preconceito e de
exclusão social (mercado de trabalho, liberdade de locomoção, abusos sexuais etc).
1931
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
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Thedy Correa (Banda Nenhum de Nós), 198719
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1935
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1936
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 49 - Língua, discurso, identidade, 1937-1946
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1937
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
A língua crioula aparece e reaparece nos contos de Manuel Lopes, sobretudo em Galo
cantou na baía e outros contos ([1959] 1998, 2a edição), doseada com grande
parcimónia, como as mezinhas da avó passadas de geração em geração, que curavam
possíveis males inócuos que dispensam a presença e a ciência de um médico. O motivo
pelo qual o autor decide introduzi-la durante a narração é sobejamente evidente e
propositada, pois parte e partilha do objetivo proposto pelos escritores da revista
Claridade (de que ele também fazia parte como membro fundador), isto é, renovar e
redimensionar a literatura ‘portuguesa’ escrita em Cabo Verde. Contudo, com esta
proposta de comunicação pretendo analisar nos contos de Manuel Lopes precisamente a
dosagem da língua crioula e o valor que esta teve na distinção da produção literária
cabo-verdiana dentro do cânone português, como forma de auto-valorização identitária.
21 Università degli Studi di Napoli “L’Orientale” – Studi Letterari, Linguistici e Letterari – CEL
(Collaboratore ed Esperto Linguistico di Portoghese) – Via Duomo, 219 – 80138 Napoli –
mgomesdepina@unior.it.
1937
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
1938
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
22 ‘Silêncio e abandono’ que durarão mais ou menos até finais dos anos ’50, isto é, até ao início da
criação dos movimentos nacionalistas por toda a África de língua portuguesa.
1939
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
crioulo – «Negoce tá ruim» (1998: 44) – que vão aparecendo aqui e ali ao longo da
narração, refiro-me também à ‘tradução’ para português, se assim se pode dizer, de
expressões que deveriam ser ditas em crioulo e que, de certa maneira, destoam
propositadamente no texto, mas não o tornam ilegível.
A mim, soberba de fora, eu não a queria pra nada, diziam os despeitados.
Dinheiro que queima na mão não me entra no coração, disse uma vez
Salibânia, entre parênteses, não fosse o Toi saber (1998: 18).
Esta breve citação retirada do primeiro conto, que dá o nome à coletânea, mostra
de forma clara que Manuel Lopes tinha em mente um certo tipo de expressão verbal
crioula que só um falante das ilhas seria capaz de emitir. Na realidade, o Autor como
que retroverte uma frase que, pronunciada e/ou escrita diretamente em crioulo num
texto dos anos ’5023, certamente não soaria correta nem compreensível a um leitor da
Metrópole, razão pela qual, ao transformá-la sintaticamente durante a narração,
consegue aplicar uma espécie de medicação da prosa, ou seja, dá o primeiro passo para
‘caboverdianizar’ (para usar uma expressão dos Claridosos) a literatura criada no
Arquipélago.
A meu ver, são estas pequeninas frases – inseridas à maneira de gazes para sarar
uma ferida aberta por onde se poderia esvair a linfa literária do Arquipélago –, mais do
que as autênticas citações em crioulo, que coadjuvam o Autor e todos os Claridosos na
sua busca por uma identidade literária cabo-verdiana.
Como afirma Assis (2009: 11), «[...] na obra de Manuel Lopes há uma clara
dedicação ao retrato da fala e das situações comunicativas dos habitantes das ilhas
[…]».
Note-se, por exemplo, que Manuel Lopes usa propositadamente o crioulo
quando cita a letra da morna que Toi, personagem do primeiro conto, está a compor:
Sê rosto ê sol de nha tristeza,
23 A frase seria mais ou menos a seguinte em ALUPEC: «A mi, soberba di fora, N ka kreba-el pa nada
[..]. Dinher ki ta kema-m na mon ka ta entra-m na corason […]».
1940
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
O cúter pairava entre o céu e o mar, entre as estrelas, tão trémulas como se
estivessem prestes a soltar-se dos engastes, e os seus reflexos fugazes na
superfície oleosa, e sem fosforescência, das vagas de calema.
24 O termo recém-nascida não deve ser entendido à letra, isto é, como se antes dos Claridosos não tivesse
havido literatura nas ilhas (cf. Cordeiro, 2011: 33-61). O que se pretende com esse adjetivo é indicar a
transformação que o estilo literário dos Claridosos introduziu na produção literária cabo-verdiana.
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
A personagem que fala é uma jovem prostituta que vai no encalço de Rui, o
protagonista que se arrependeu de não ter partido com o pai no barco que o levaria a
outras terras distantes – oferecendo-lhe a possibilidade de escapar à vida carenciada das
ilhas –, e que agora se apressa a reembarcar. Rui é uma chalupa em mar borrascoso,
perdeu o norte e procura alcançar o Jamaica em todas as etapas da sua partida. A
prostituta, pelo contrário, com a sua voz de sereia, é um empecilho que o atrasa na sua
busca do vapor.
Da sua fala pode retirar-se uma notação importante que, em parte, já foi
mencionada. Manuel Lopes introduz pelo menos dois termos crioulos – «agorinha
assim» e «sabe»25 – com o propósito de tornar mais desviante a passagem do discurso
oral ao escrito. Ou melhor, o que o Autor pretende é que o leitor faça uma espécie de
experimento mental, em que a sonoridade das palavras que lê lhe soem distantes mas
não silentes, isto é, o remetam para uma dimensão linguística que, apesar de se religar à
língua portuguesa e depender dela, todavia deixe ver a base crioula.
Pode parecer oposto ao que defende Pires Laranjeira (1995: 196), isto é, que
Manuel Lopes, «[...] partindo da concepção aristotélica da obra literária como “mimese”
ou imitação da vida, defende, por outras palavras, aquilo que Aristóteles afirmava na
sua Poética: [...]», contudo, entendo que o ‘desvio’ por ele provocado na narração é
precisamente uma representação mimética da vida, sem, por isso, ser um mero
1943
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ativa
Lopes, Manuel. (1998, 2a edição). Galo cantou na baía e outros contos. Lisboa:
Caminho.
Passiva
Almada, José Luís Hopffer C. (2011). In: «Que caminhos para a poesia caboverdiana?
Antigos e recentes debates e controvérsias sobre a identidade literária caboverdiana».
Navegações, volume 4 n° 1, pp. 92-106.
Assis, Maria Isabel Azevedo. (2009). «Os Flagelados do Vento Leste e Vidas Secas: o
espelho da realidade social e psicológica dos ambientes e sua gente como um laço entre
a literatura brasileira e a cabo-verdiana». In: Revista Crioula, n° 6, pp. 1-13.
Barros, Maria Luzia Carvalho de. (2010). «O canto do galo, o pouso da mosca: esboço
de exclusão em Manuel Lopes e Graciliano Ramos». In: Revista Crioula, n° 8, pp. 1-9.
Carreira, António. (1977). Cabo Verde (Aspectos sociais, Seca e fome do século XX).
Lisboa: Ulmeiro.
1944
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
Gomes, Simone Caputo. (2008). Cabo Verde: Literatura em chão de cultura. São
Paulo: Ateliê Editorial; UNEMAT; Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro.
Gomes, Simone Caputo. (2010b). «Flashes de estética comparada: lendo imagens cabo-
verdianas». In: Abril – Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e
Africana da UFF. Vol. 3, n° 5, pp. 45-64.
1945
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
1946
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 49 - Língua, discurso, identidade, 1947-1959
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1947
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Parte de uma pesquisa, apoiada pelo CNPq, sobre a construção da identidade de sujeitos
em situação de exclusão (moradores de rua) no Estado de São Paulo, esta comunicação
pretende apresentar resultados parciais da análise discursiva das narrativas orais
(histórias de vida) de vinte sujeitos, no que diz respeito aos modos de endereçamento e
de referência. Como toda narrativa, a história de vida é, ao mesmo tempo, história e
ficção (COSTA, 1988): contada a posteriori, é sempre interpretação e esta é sempre
violência (FOUCAULT, 1965), no sentido de que o tempo e o espaço transformam o
texto interpretado, além do testemunho factual. Feita a coleta das narrativas, gravadas
em áudio, tanto na rua quanto em um abrigo diurno, procedeu-se à transcrição e à
análise, com base na orientação discursivo-desconstrutivista, centrada no pensamento de
Bakhtin e Foucault (discurso, relações de poder e agenciamentos), de Derrida
(problematização do pensamento dicotômico racionalizante) e de Freud e Lacan (sujeito
– descentrado, inconsciente – e identidade). Resultam da análise marcas linguístico-
discursivas, rastros de si e do outro na materialidade do dizer, encontrando-se, com
frequência, formas indeterminadas de referência a si e ao outro: terceira pessoa para
falar do outro (e de si), quando envolve drogas, álcool ou violência nas ruas ou, ainda,
quando se refere a passantes que, de certa forma, detêm o poder na sociedade, sem, no
entanto, nomeá-los; primeira pessoa (eu), para emitir opinião pessoal sobre o governo
ou sobre o que a sociedade poderia fazer por eles, repetindo o que ouvem como
verdades, eximindo-se, porém, de responsabilidade. Com relação às formas de
endereçamento, observa-se, dentre outros, o uso frequente de “a senhora”, cujo efeito de
sentido é de distanciamento: neste caso, marcado por relações de poder. Nos demais, o
efeito de distanciamento ocorre entre o enunciador e o outro (ausente) – moradores de
rua ou passantes, que, em geral o desprezam, mas cuja presença – ainda que imaginária
– constroi neles e deles representações, que constituem sua identidade – sempre vinda
do outro (DERRIDA, 1996), imaginária e ilusória, que deixa traços indeléveis na
subjetividade de cada um.
26 Unicamp-IEL/DLA, coracini.mj@gmail.com
1947
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
Este texto se insere numa pesquisa, apoiada pelo CNPq, sobre a identidade de
sujeitos em situação de exclusão, dormindo nas ruas de Campinas (SP), Brasil. O
objetivo principal é compreender, a partir da materialidade linguística, como esses
sujeitos, chamados moradores de rua, se representam – que imagens têm de si mesmos
(ou seja, como constroem a sua identidade), as diferenças entre essas representações ou
imagens e as representações do outro (interlocutor, transeuntes e companheiros de rua),
considerando que o que se pensa de si vem, de certo modo, do outro (vemo-nos pelo
espelho do olhar do outro, como diria Lacan).
Tal como considera Bakhtin (1979 [1992, p.388]), “o ego está escondido no
outro, nos outros, quer ser o outro para outros, estar no mundo dos outros como o outro,
rejeitar seu eu no mundo (o-eu-para-mim)”, daí o ressentimento daqueles que vivem em
situação de rua por serem rejeitados pela família ou pela sociedade hegemônica que os
chama de “vagabundos”, excluindo-os, tornando-os invisíveis, apagando-os: “Não sou
nada”, frase enunciada por alguns dos participantes de pesquisa.
Foucault (2001), em sua obra intitulada Os Anormais, define como anormais os
excluídos, marginalizados, discriminados na sociedade, que ele reúne em três grupos em
três contextos diferentes: 1) anormais são as pessoas que têm “defeitos” físicos,
anomalias biológicas – monstros (contexto biológico); 2) anormais são os incorrigíveis
(contexto social); 3) anormais são os masturbadores que são mais numerosos do que os
outros dois grupos (contexto: familiar).
Interessa-nos focalizar o segundo grupo, já que os participantes de nossa
pesquisa são considerados incorrigíveis pela sociedade hegemônica. Os incorrigíveis se
situam no entre, no hífen – entre o corrigível e o incorrigível: “o que define o indivíduo
a ser corrigido é que ele/ela é incorrigível” (FOUCAULT, 2001, p.73). Por ser
incorrigível, cria-se “um certo número de intervenções educativas e corretivas e
superintervenções em relação às técnicas educativas familiares e cotidianas”. Desse
modo, técnicas são construídas e aplicadas.
No caso dos moradores de rua, foram criadas, em São Paulo, ONGs, como a
ONG da sopa e os Anjos da Noite, que levam comida e roupas de inverno aos
moradores de rua, tarde da noite. Abrigos são criados, alguns funcionam dia e noite,
outros, só de dia, empregando psicólogos, assistente social, com o apoio da prefeitura
ou de movimentos religiosos, na tentativa de promoverem nos chamados moradores de
rua o desejo de voltarem para a família, para a sociedade, assumindo a responsabilidade
de suas vidas. A estrutura de apoio conta com a família, com a escola, com oficinas,
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
com a vizinhança, com a paróquia, com a polícia. Este é o espaço que abriga os
indivíduos a serem corrigidos (FOUCAULT, 2001, p. 72).
Queremos, no entanto, dar voz aos (in)corrigíveis, na busca efeitos de sentido
que indicam representações ou imagens de si e do outro; é o que pretendemos rastrear
compreendendo que “expressar-se significa tornar-se um objeto para o outro e para si”
(BAKHTIN, 1992, p. 337). Essa tentativa de objetificação promove uma certa distância
de si, o que permite um olhar diferente, de outro modo impossível, como um meio de se
interrogar, se possível for, de organizar suas observações e experiências, “de modo a
encontrar uma resposta” (BAKHTIN, 1992, p. 341) para si (mais do que para o outro).
Procedimentos de pesquisa
Em primeiro lugar, vale notar que a maioria dos participantes de pesquisa são
semiletrados, embora tenhamos entrevistado vários escolarizados, alguns dos quais
haviam até mesmo cursado o ensino médio ou até mesmo o primeiro ano de
universidade.
O baixo nível de educação e a classe social em que se encontra a maioria dos
participantes explica a linguagem usada, sempre atravessada por aspectos culturais que
os distinguem das classes hegemônicas da sociedade brasileira; basta dizer que a
maioria deles vivia, antes da rua, em favelas e/ou na periferia das grandes cidades.
Os registros foram produzidos a partir de histórias de vida, incentivadas pelo
seguinte enunciado: “Eu gostaria que você falasse de sua vida na rua, como você foi
para a rua, enfim, tudo o que você considerar importante para que o(a) conheçamos
melhor e conheçamos melhor o que significa viver na rua”. Como toda narrativa, a
história de vida é história em dois sentidos: história ficção e história factual, já que
contar a história de alguém ou nossa própria história é sempre “inventar”, interpretar e,
ao mesmo tempo, testemunhar. Além disso, acreditamos que falar de si para alguém
permite o auto-conhecimento, permite construir-se uma identidade, que, embora
ilusória, é imprescindível, podendo, ainda, levar o sujeito a livrar-se de seus traumas,
sobretudo quando, raramente ou nunca, se é ouvido. Depois de gravadas em áudio, as
narrativas são transcritas, o que, obviamente, traz modificações ainda que sejam apenas
aquelas decorrentes da paralisação da vida, do movimento, e da própria transcrição que
exige sempre interpretação. A seguir, os relatos são analisados.
1949
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
No que diz respeito aos aspectos filosóficos que orientam nosso olhar e nossa
interpretação, postulamos a abordagem discursivo-desconstrutivista, baseando-nos,
dentre outros, em Foucault (1969; 1971; 1976; 1979), sobretudo no que diz respeito a
noções como formação e prática discursivas, relações de poder-saber, verdade dentre
outras; Bakhtin (1992), com a noção de polifonia que orientou Authier-Revuz (1998) a
postular a heterogeneidade enunciativa); Derrida (1972) com a desconstrução,
problematização da racionalidade ou do logocentrismo, questionando a herança
epistemológica da cultura occidental, ancorada nas oposições dicotômicas
hierarquizantes e excludentes; e, por fim, a psicanálise freudo-lacaniana, sobretudo no
que diz respeito à noção de sujeito do inconsciente, identidade como conjunto de
representações ou imagens de si e do outro, ilusão de completude, que provem do outro
e se oferece ao outro.
As representações que constituem o imaginário – instância da aparência, das
identificações com o outro, que possibilitam ao sujeito se adequar ao que querem dele
para que ele agrade ao outro, para que seja o desejo do outro, instância onde é
construída a identidade: ilusão de totalidade, coerência e controle – são imagens
subjetivas de si e do outro, construídas a partir do espelho do olhar do outro, que se
deixam flagrar na materialidade linguística. Desse ponto de vista, importa observar, no
dizer dos participantes de pesquisa, as instâncias enunciativas ou os pronomes usados
(eu, ele/ela, eles...) – e os efeitos de sentido que daí resultam, dentre os quais o
testemunho, ao qual retornaremos adiante –, o vocabulário, hesitações, interrupções, a
heterogeneidade enunciativa ou, de acordo com Bakhtin, a polifonia, entendida como
pluralidade de vozes, para depreender da materialidade linguística as auto e hetero-
representações.
Passemos, então, a alguns resultados de pesquisa, pautados no que se denomina
“linguagem de rua”, que por si só faz emergir representações ou imagens de si e do
outro que habitam o imaginário dos participantes.
1950
Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
de pesquisa, mais refratários a mudanças que se manifestam no dizer, que, por sua vez,
aponta para aspectos culturais em transformação. Neste item, apontaremos as
características mais relevantes que denunciam a situação em que vivem, como
(in)correções gramaticais, jargão, pausas.
a) (in)correções gramaticais
É frequente o uso de palavras no plural sem a desinência – por exemplo, “os
policial” -, o uso de verbos sem terminação de pessoa ou sem concordância verbal –
como “nóis vai”, “a gente somos”, “eles pensa”, “eles bebe e fica junto” -, o uso de gíria
e do jargão de rua, que constituirá o próximo item. Essas formas do dizer são comuns
no falar do povo, sobretudo nos menos letrados e, portanto, só constituem erros ou
incorreções para os brasileiros letrados, que reconhecem aí marcas das condições
sociais em que vivem essas pessoas (no campo, na rua, na periferia...).
b) Jargão
O uso do jargão, bem como das chamadas incorreções gramaticais, orientam,
como dissemos, para o reconhecimento de que os participantes de pesquisa, no caso em
questão, pertencem a um grupo social particular – os moradores de rua –, o que concede
ao falante um lugar sem lugar, um não lugar como descreve Marc Augé (1995 [2007]):
o não lugar corresponde àquele espaço em que não se faz história, não se criam raízes,
como o mercado, um aeroporto, a rua para nossos participantes que são compelidos a
uma vida nômade, para não serem perseguidos pela polícia ou por outros companheiros
de rua ou transeuntes, embora muitos tracem seus roteiros (“hoje, vou dormir na frente
da catedral, amanhã na rodoviária, depois, no bairro x ou y”). Se não podem ocupar o
espaço verticalizado das construções – casas, edifícios, bancos de jardim... –, ocupam o
espaço horizontal, que é de todos e de ninguém.
Assim, o jargão, ou melhor, a linguagem de rua contribui para a construção de
uma identidade, ainda que esfacelada e ilusória, que corrobora o enunciado: “eu não
estou sozinho; há outros como eu por aí; falo como eles e com eles”. Observem-se
alguns exemplos dessa linguagem:
Renato: eu não julgo também / ‘cê passa pela igreja lá pela catedral está
cheio de gente mesmo jovens forte / todo mundo segurando uma corotinha
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
que é uma merda de pinga todo mundo usando essa droga e eles ainda pensa
que eles são: como se diz / então eles fala: ei você ladrão
P: o que você disse cora:tinga?
R: Corotinha é uma garrafa pequena de plástico como essa... pinga [...] eles
bebe lá e fica junto em rodinha / certo? / eu não gosto de rodinha e não fico
em rodinha é dois três que fala um co’outro então eles fala de drogas de fute
eu não gosto de rodinha
c) Pausas
Ainda parte das formas de expressão, as pausas [interrupções] na fala são muito
frequentes e apontam para a dificuldade que os participantes têm de escolherem a
palavra certa, ao falarem de si, evocando momentos de fortes emoções tal como a
infância, quando foram estuprado(a)s, quando apanharam de seu pai ou quando sua
mãe, amada ou não, os(as) deixou: “Eu não quero falar a respeito disso // tenho
vergonha”, disse Norma, uma participante que fora abusada sexualmente quando
criança; por ser negra – seu pai era negro –, nunca foi à escola como as suas meio-irmãs
brancas: sua mãe a discriminava e, por isso, aconselhou-a a se prostituir: ela só servia
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
para isso; a prostituição era seu destino. Outras vezes, as pausas denunciam a tentativa
de escolha das palavras “certas”, evitando, assim, dizer o que não quer.
d) Interrupções na narrativa
A fala desorganizada, não-linear, entrecortada por pausas ou por assuntos que
escapam ao tema central da conversa, retornando a explicações previamente
interrompidas, indica, em muitos casos, a falta de hábito de se auto-narrar ou de ser
ouvido(a), o mutismo em que vivem seu dia-a-dia, as consequências neurológicas do
uso frequente de álcool ou de outras drogas. Mas isso aponta também para a não-
linearidade da memória que é feita de lampejos, fragmentos do passado, sempre
incompleta.
e) Formas de endereçamento
Os chamados moradores de rua frequentemente falam de si na terceira pessoa,
sobretudo quando narram crimes, falam do vício das drogas ou álcool, isto é, quando se
referem a algo que poderia comprometê-los. Provavelmente, essa é uma estratégia
inconsciente de auto-proteção. Foi possível notar que, quando a entrevista se dá no
abrigo, é mais frequente o uso da primeira pessoa (eu) do que quando se trata de
entrevistas na rua, provavelmente por causa do entorno, que lhes dá mais segurança,
sem a presença de pessoas desconhecidas que poderiam ouvir e denunciá-los ou,
mesmo, de policiais. Entretanto, em geral, eles usam a primeira pessoa especialmente
quando expressam sua opinião sobre alguém ou algum fato (Ex: “na minha opinião…”;
“eu acho…”).
Além disso, hesitações e momentos de silêncio tanto quanto o uso de verbos
modais com o pronome de tratamento em sua forma de indeterminacão “você”, isto é,
qualquer um (você pode, você precisa fazer…, tem que…) podem ser interpretados
como modos (inconscientes) de se descomprometer, evitando um engajamento pessoal
com relação ao que está sendo dito.
Mas, eles também se referem ao outro, detentor do poder, àquele que passa pela
rua e não os olha ou vira o rosto, tampa o nariz ou lhes dirige palavras ofensivas,
grosseiras, na terceira pessoa do plural (“eles”) sem nomeá-lo(a).
É curioso também observar que, enquanto a pesquisadora se dirige aos
participantes servindo-se da forma de tratamento “o Sr ou a Sra, eles evitam se dirigir a
ela através de formas de tratamento, talvez como uma estratégia inconsciente de manter
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
Cícero: e aí quando passou uns vinte dia o médico falou ó por que sua perna
tá uma pra lá e outra pra cá? Tem que tá junto/ mas não consigo dói direto/
ele falou a:h/ tem que fazer uns exame aí// aí já tinha passado dez dia
Bastião: aí eu tava na casa boa e falei nã:o / voltá pra vida que eu tava? De
apanhá direto? Com você batendo em mim? Ah: porque nós vamo mudar eu
falei não não/ tô aqui também o rapaz tá me tratando direito/ o senhô pode ir
com a sua mulhé pra onde o senhor quisé eu vou ficar aqui/ aí tá bom/ peguei
os documento com ele que eu tinha [...] falei agora cada um vai pra sua
[casa]/ o dia em que eu me formar ser alguém aí eu sei/ que o senhor vai / me
procurar// às vezes eu até posso ajudar o senhô mas pra morá não / falei /
che:ga sofri demais na sua mão
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
Observem-se os segmentos: “ó por que sua perna tá uma pra lá e outra pra cá?
Tem que tá junto” (...) “tem que fazê uns exame aí”, fala entrecortada por outra, de
Cícero: “mas não consigo / dói direto”. Diálogo semelhante ao narrado por Bastião:
“nã:o / voltá pra vida que eu tava? De apanhá direto? Com você batendo em mim?”, fala
entrecortada pelo padrasto “Ah: porque nós vamo mudar”, a que Bastião retrucou: “não
não / tô aqui também o rapaz tá me tratando direito/ o senhô pode ir com a sua mulhé
pra onde o senhor quisé eu vou ficar aqui”. A veracidade do discurso direto impede
inclusive que se questionem as frases ditas, embora se saiba que há aí uma dose maior
ou menor de ficção.
O mesmo ocorre com o discurso indireto, embora neste as palavras sejam da
escolha do falante e não daquele(a) que não se encontra presente. Vejamos as palavras
de Roberto: “ele não falou aonde que era / falou que é próximo aqui da ponte e tal”.
Toda a história narrada por Roberto se faz de detalhes impossíveis de serem recordados
anos depois e depois de ter sofrido um atropelamento de trem. A reconstituição da
história é claramente ficcional com base no desastre que sofreu, que deixou fortes
sequelas em seu corpo: corpo que manca e que marca um pequeno texto escrito por ele
– manuscrito – sobre sua vida, com vírgula depois de cada palavra, como se o ruído do
seu andar que falhase manifestasse em seu texto, que é tessitura, tecido, corpo...
História que é verdade e é invenção: o modo como Roberto narra sua própria
vida transforma-a num espécie de conto. Note-se que Roberto não presta atenção ao que
diz o pesquisador (“o senhor não gritou de do:r?”): sua narração continua como se ele
estivesse tomado pela história e não houvesse mais ninguém na sala. Ele procede como
narrador, personagem e autor da história.
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
g) Polifonia ou Heterogeneidade
Todo e qualquer dizer carrega a voz do outro, vozes outras que, consciente ou
inconscientemente, constituem o dizer de cada um: não há palavras que não remetam a
outras palavras, já pronunciadas, num contexto e num momento diferentes, combinadas
a outras ou a parcelas de palavras, formando outras e assim indefinidamente. Entretanto,
há formas de trazer o outro – alusões, provérbios, ditados populares, retomadas de
frases moralizantes –, que remetem ao outro (definido ou genérico, como o povo de uma
cidade ou país, os praticantes de uma seita ou religião). Para reconhecer como forma
marcada da voz do outro, ou seja, como heterogeneidade mostrada, é preciso que o
ouvinte ou o leitor reconheça essa voz que emerge e se faz presente. O dizer de alguns
dos participantes de pesquisa estão eivados dessas marcas. Senão, vejamos.
Renato (ver abaixo) conta histórias (que podem ou não ser verdadeiras) de
natureza moral, submetendo-se à voz do outro, que está fora dele (alienando-se,
portanto). O que diz não parece combinar com ele ou melhor não parece sair dele, como
algo que estaria integrado ao seu ser e se ex-põe (põe-se para fora), como parte do seu
modo de agir e pensar. O que diz soa falso, como a voz de outro, que vem de fora. Em
geral, suas narrativas envolvem acidentes, mortes, mas trazem sempre uma moral
explícita, de fundo religioso. Não fala de si, mas de outro, com as palavras do outro,
inteiramente alienado, ainda que narre na primeira pessoa do singular. Em suas
narrativas, ouve-se frequentemente a voz da sociedade, do povo, da religião, através de
provérbios, dizeres outros, como nos excertos seguintes:
Renato: Que a gente tem que dar a quem precisa de ajuda e infelizmente eu
vi tantas pessoas dar o alpiste / mas eu acho que você tem que dar um certo /
você não tem que dar a semente e se você só dá você estraga a pessoa
Roberto: você ma:rcou deixou alguns dado incerto/ mas exatamente o ponto
assim / você fica meio perdido [...] a mesma coisa que achá uma palha / uma
agulha debaixo do palheiro
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
palheiro” remete a uma parábola do Evangelho, segundo a qual é mais fácil encontrar
uma agulha num palheiro do que um rico entrar no reino dos céus. Nos dois casos,
percebe-se uma certa confusão: no primeiro caso, dar a semente remete à necessidade
de ensinar a plantar (ou a pescar); no segundo caso, trata-se de encontrar uma agulha no
palheiro e não “debaixo” do palheiro. Nos dois casos, os participantes deixam claro que
se converteram a alguma religião, daí a presença de fragmentos do discurso religioso, ao
lado de afirmações do tipo:
Renato: [...] eu comecei a frequentar uma igreja que é aqui perto no centro
da cidade / um grupo de oração [...]
Concluindo...
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Simpósio 49 – Língua, discurso, identidade
otimistas e pessimistas; por vezes, se representam como pessoas que trabalham, que
lutam, que são honestas, outras vezes, como vítimas da sociedade, da família, das
drogas, do álcool, sentindo-se deprimidas, sem esperança, sós, completamente sós.
Essas são as principais representações de si, que constituem a identidade que é
obviamente construída pelo outro, que, por sua vez, funciona com um espelho para eles
(LACAN, 1949 [1977]). As representações do outro reveladas pelos participantes de
pesquisa apontam para o seguinte: ora, eles são colaborativos, piedosos, ora,
discriminam, excluem, apagam-nos. A bem da verdade, se não os apagam, veem-nos
como anormais “in-corrigíveis”, que precisarim ser corrigidos, recuperados, para
poderem retornar à sociedade e constituir cidadãos.
A análise da materialidade linguística das narrativas, como foi possível observar,
indicia a posição subjetiva dos participantes como testemunhas não apenas de suas
próprias vidas, mas da vida do outro, da violência inflingida aos moradores de rua pelos
colegas, pela polícia e por outros cidadãos. Testemunhar implica falar na primeira
pessoa sobre o que se acabou de ver - você e nenhum outro (de acordo com DERRIDA,
2001) - e ser digno de crédito, o que nem sempre (ou quase nunca) ocorre com nossos
participantes de pesquisa. Não são dignos de crédito, porque seu dizer é desconsiderado:
são viciados, vagabundos, sem valor porque são considerados pelos chamados
“cidadãos de bem” sem valia.
Entretanto, assumimos os relatos que nos foram feitos como testemunhos de
vida, que expõem, ainda que não intencionalmente, o modo como os participantes se
veem e como representam o outro, seus sentimentos, segredos (im)possíveis de serem
partilhados. Nessa medida, é possível falar de autobiografia, se por ela entendermos
uma narrativa que é sempre ficção e realidade. E isso pudemos constatar, acredito eu, a
partir dos excertos aqui trazidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COSTA, Ana Maria Medeiros da. A ficção do si mesmo. Rio de Janeiro: Companhia de
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TANNEN, Deborah. Gender and Discourse. London: Oxford University Press, 1994.
1959
SIMPÓSIO 55
CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DE FRONTEIRAS
GEO-LINGUÍSTICA, SÓCIO-CULTURAIS E LITERÁRIAS
COORDENADORES
Paula Limão
(Università degli Studi di Perugia)
Mariagrazia Russo
(Università di Viterbo)
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 55 - Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias, 1963-1982
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1963
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Esta comunicação faz parte de um projeto maior de pesquisa, cujo interesse se centra na
investigação de um dos temas que mais se tem destacado na narrativa brasileira
contemporânea, a da representação da realidade marginal e periférica. O mais
importante destas narrativas, que trazem para o centro da discussão os excluídos sociais,
é o lócus (além de geográfico, também espaço social e afetivo) de onde fala o autor
(lugar de enunciação), bem como a sua intenção que, não raro, dedica-se à defesa das
causas e das experiências dos oprimidos, criando, deste modo, uma escritura de
testemunho. Exemplos desta produção são as obras de escritores como Luiz Alberto
Mendes, que escreveu o romance Memórias de um sobrevivente, e de outros relatos de
presos, como a coletânea de contos Letras de liberdade, ou ainda Literatura Marginal:
talentos da escrita periférica, antologia organizada por Ferréz (2005). Diante do exposto,
por meio de uma abordagem teórico-reflexiva, cujo referencial teórico está alicerçado
em estudos que analisam a produção literária pós-moderna e contemporânea, dentre eles
Miranda (2010), Resende (2008), Schollhammer (2011), Patrocínio (2013), Hollanda
(2014), Hall (2006), este trabalho tem por objetivo analisar o prefácio da antologia
Literatura Marginal, intitulado “Terrorismo literário”, no qual o autor assume-se como
porta-voz da realidade periférica, vocalizando não apenas as experiências de quem está
à margem, mas também posicionando-se contra a ordem estabelecida, que é de
exclusão, segregação e hierarquização. Verifica-se, pois, que emprestando a sua voz aos
antes silenciados, Ferréz defende a afirmação das suas identidades, bem como a
transposição das fronteiras literárias.
O diálogo explícito ou implícito com o Outro é uma realidade cada vez mais
intensa na cultura contemporânea, caracterizada pela heterogeneidade e simultaneidade
de apelos vindos das mais diferentes fontes, dentre elas do questionamento de um
1963
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
conceito de nação que reduz e abole todas as diferenças. Segundo Wander Melo
Miranda (2010), a demanda de uma totalidade sem fissuras é herdeira da visão
iluminista que a revolução burguesa não mediu esforços para ver firmada no decorrer
do século XX e resiste, ainda hoje, em certos setores que se definem como
progressistas. A fim de rasurar esta concepção de história, que se quer oficial,
construída numa temporalidade linear e contínua, que evolui por etapas sucessivas, sob
um ponto de vista superior e excludente que visa anular ou unificar, e cujo valor maior é
definir valores constitutivos de uma identidade nacional, Miranda traz à tona
considerações de Homi K. Bhabha (1990), para quem “[…] escrever hoje sobre a
história das nações demanda questionamento da metáfora progressiva da moderna
coesão social – muitos como um – deslocando o historicismo das discussões baseadas na
equivalência linear e transparente entre eventos e ideias” (Miranda, 2010:21). Para
tanto, propõe, para dar fim a esta lógica conjuntiva, formas disjuntivas de representação:
de um povo, de uma nação, de uma cultura.
Um outro teórico que ajuda a equacionar o conceito de nação como uma questão
problemática é Stuart Hall, que aponta para os efeitos gerados pela globalização na
contemporaneidade, dentre eles o enfraquecimento das formas nacionais da identidade
cultural. O deslocamento das ideologias estabelecidas para uma postura múltipla,
multifacetada, contribui para o que Hall denomina de descentramento de identidades,
cuja consequência é, de um lado, a fragmentação da ideia de nação: “Existem
evidências de um afrouxamento de fortes identificações com a cultura nacional e um
reforço de outros laços e lealdades culturais acima e abaixo do estado-nação” (Hall,
2006:73). E, de outro, a fragmentação da identidade:
A identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo, ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num
diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses
mundos oferecem. (Hall, 2006:11).
Também Anthony Giddens, em consonância com Hall, explica que
[...] o fenômeno se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que
atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações
em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e
experiência, mais interconectado. A globalização implica um movimento de
distanciamento da ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem
delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a
vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço. (Giddens, 1990:64 apud Hall,
2006:68).
1964
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1965
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1967
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capitães do mato, policiais que são pagos para nos lembrar que somos
classificados por três letras de classes: C, D e E. (Ferréz, 2005:10).
Além da indicação de que no exercício da representação literária há, igualmente,
uma representação política e, portanto, ética, erigida pela necessidade de fundamentar
historicamente o movimento, a fala de Ferréz também assume uma perspectiva raivosa,
substituindo a notação crítico-sensível da circunstância precária dos setores
marginalizados, como no trecho acima transcrito, pela ameaça rancorosa e ideológica do
ajustes de conta:
Ao contrário do bandeirante que avançou com as mãos sujas de sangue nosso
território, e arrancou a fé verdadeira, doutrinando nossos antepassados índios,
ao contrário dos senhores das casas-grandes que escravizaram nossos irmãos
africanos e tentaram dominar e apagar toda a cultura de um povo massacrado
mas não derrotado.
Uma coisa é certa, queimaram nossos documentos, mentiram sobre a nossa
história, mataram nossos antepassados. [...]
Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim
chamados “excluídos sociais” e para nos certificar que o povo da
periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história, e que não fique mais
quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de sua
própria cultura, a literatura marginal se faz presente para representar a cultura
de um povo, composto de minorias, mas em seu todo uma maioria. (Ferréz,
2005:11).
Esta perspectiva entre a revolta e o ressentimento, levado a cabo pelo desejo de
cisão com o “outro” lado da sociedade, o “sistema”, comparece também em alguns
vocábulos que compõem o campo semântico do texto: “quebrar”, “arrombar”, “lutar”, “
gritar”, “guerra”, “agredir”, e ainda uma outra dualidade “aliados” versus “inimigos”:
A maior satisfação está em agredir os inimigos novamente e em trazer o
sorriso na boca da dona Maria ao ver o livro que o filho trouxe para casa.
Prus aliados o banquete está servido, pode degustar, porque este tipo de
literatura viveu muito na rua e por fim está aqui no livro. (Ferréz, 2005:12).
A urgência na tomada de uma posição que se quer antagônica a um estado de
coisas, seja ele político, ético e/ou estético, evoca o caráter combativo de toda
doutrinação reformista, como aquela adotada pelo grupo modernista, por exemplo.
Mesmo antes da Semana de Arte Moderna, que ecoaria escandalosamente para marcar,
de maneira definitiva, a divisão dos campos artísticos, muitas foram as declarações
públicas da ruptura entre as correntes artísticas e literárias antiga e moderna que, não
raro, assumiram um caráter agressivo. É o caso, por exemplo, do discurso proferido por
1968
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Oswald de Andrade, por ocasião do banquete oferecido a Menotti del Picchia, pela
publicação de As máscaras, ocorrido em 09 de janeiro de 1921, no qual estavam
reuniram políticos, escritores da velha guarda, gente das finanças e da alta sociedade
paulistana, além de alguns representantes modernistas. Segundo Mário da Silva Brito,
“O discurso assume foros de manifesto e nele o autor faz questão de acentuar a posição
divergente do grupo modernista em meio aos que festejavam Menotti del Picchia,
apesar de, como os demais, o louvarem” (Brito, 1997:12). O estudioso também lembra o
artigo publicado pelo próprio Menotti, em 24 de janeiro de 1924, no Correio
Paulistano, “Na maré das reformas”, no qual veicula o programa teórico que constituiria
o embasamento da ação modernista. Sem falar em Pauliceia Desvairada, obra
conhecida pelos modernistas antes da Semana, e primeiro livro de poesia integralmente
novo, seja por fundar a temática da cidade moderna na poesia brasileira, no seu esforço
de criar entre nós o verso moderno, capaz de representar a agitação e o tumulto da vida
nas grandes cidades, seja por explorar, de tantos ângulos, a cultura internacional e
brasileira.
Dentre outras ações, cujo objetivo foi promover constantes ataques ao passado e,
assim, atualizar as letras nacionais, sob novas coordenadas estéticas e ideológicas, estão
os artigos escritos por Oswald de Andrade, no Jornal do Comércio, “O meu poeta
futurista”, em 27 de maio de 1921, e por Mário de Andrade, cujos textos, publicados
nos dias 12,15, 16, 20 e 23 de agosto e 01 de setembro de 1921, no Jornal do Comércio,
compuseram a série “Mestres do passado” - sete estudos que analisaram os maiores
expoentes do Parnasianismo, como Francisca Júlia, Raimundo Correia, Alberto de
Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho. Série de artigos que, segundo Silva Brito
(1997), significou um marco nas letras nacionais, pelo exercício crítico de examinar, em
termos estéticos, um grupo de escritores que, apesar de mestres, “[...] também defuntos,
poetas de missão cumprida, e que nada mais tinham a oferecer de interesse às novas
gerações” (Brito, 1997:14).
Assim como aconteceu com o grupo modernista, também os autores
denominados marginais foram paulatinamente construindo um percurso, voltado para
um terreno específico de produção e atuação, que se manifesta pelas inúmeras
publicações, eventos culturais, música, criação de grife de roupa e editoras, cuja
1969
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
2 Na primeira edição da revista Caros Amigos, Ferréz afirma: “Mas estamos na área, e já somos vários, e
estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e
eternizados”. Vale destacar que este trecho é reproduzido em “Terrorismo Literário”.
1970
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
3 “Manifesto de abertura: Literatura Marginal” foi o título da primeira edição da revista. “Terrorismo
Literário” e “Contestação”, títulos da segunda e terceira edições.
1971
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
merecem ser discutidas. Por isso, tomou-se como objeto de análise a versão mais
completa, entendida aqui como um manifesto.
Dentre alguns significados evocados pelo vocábulo “manifesto” está:
“Declaração pública e solene, na qual um governo ou um partido político, um grupo de
pessoas, ou uma pessoa expõe determinada decisão, posição, programa ou concepção”
(Houaiss, 2001:1837). Não é outro o sentido que o texto de Ferréz assume, haja vista os
trechos anteriormente transcritos que não somente expõem a feição política do
movimento, mas também põem à mostra o estatuto da literatura marginal: movimento
comprometido com a afirmação identitária das comunidades periféricas e engajado no
seu auto-conhecimento como grupo, dotado de uma determinada cultura e de um caráter
coletivo e cooperativo. Este último aspecto encontra eco nas considerações de Paulo
Patrocínio (2013), que afirma que o desejo desses autores em consolidar a diferença da
periferia frente aos demais setores da sociedade, não está inscrita apenas na literatura.
Acrescida a ela estão outras manifestações culturais e sociais, cujos signos - música, a
arte, vestimentas, editoras, eventos culturais, etc – foram criados para conformar
espaços próprios voltados para a reflexão sobre os setores marginais, isto é, vozes
coletivas em prol de um mesmo objetivo: afirmar e firmar a identidade cultural
periférica. Dentre as ações, Patrocínio (2013) cita o movimento/grife1 da Sul, criado por
Ferréz, a Semana de Arte Moderna da Periferia, organizada por Sérgio Vaz e outros
poetas da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), a criação das editoras Toró e
Literatura Marginal/Selo Povo, por Allan Santos Rosa e por Ferréz, respectivamente,
ambas destinadas exclusivamente à publicação de autores periféricos.4
Além dos aspectos já apresentados, o caráter programático de “Terrorismo
Literário” revela-se também na relação estabelecida entre a literatura marginal e o
compromisso social: “Literatura de rua com sentido, sim, com um princípio, sim, e com
um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que constrói esse país mas não recebe sua
parte (Ferréz, 2005:10). Ou então: “Não vou apresentar os convidados um a um porque
eles falarão por si mesmos, é ler e verificar, só sei que com muitos deles tenho lindas
histórias, várias caminhadas tentando fazer uma coisa, o povo ler (Ferréz, 2005:13). Não
é outra a função assumida por esta produção literária, segundo Sérgio Vaz, quando
perguntado sobre o objetivo da Cooperifa, cujos saraus semanais reúnem grande
4 Sobre as diferentes instâncias de legitimação e consagração empregadas pelos autores marginais e/ou
articuladores culturais para promover a circulação da produção literária marginal, ver artigo intitulado “A
literatura marginal e seus mecanismos de legitimação e consagração”, publicado por mim na Revista
Boiatatá, no.21, jan-jun.2016.
1972
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
1973
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
5 A relação que o rap mantém com a Literatura Marginal pode ser exemplificada pela apresentação visual
do primeiro romance publicado por Ferréz, Capão Pecado. Dentre os registros ganha destaque os textos
1974
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
identidade periférica e o mesmo teor de protesto e crítica social. Além disso, ambas têm
na arte – ou que se quer como arte – um instrumento de denúncia de um cotidiano
marcado pela miséria e desigualdade, cujo papel não é apenas denunciar, mas oferecer-
se como “verdade”. Trata-se, portanto, de uma opção ética, de subordinar o discurso
artístico a uma função política e, não raro, pedagógica.
É o caso do conto “Colombo, pobrema, problemas”, de Gato Preto, retirado da
mesma coletânea Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Em um registro
fortemente oral, disposto num fluxo quase contínuo, o narrador dispõe-se a narrar
estórias de vida daqueles que moram na favela Colombo, localizada na periferia de São
Paulo. Dentre outras, a estória de um migrante nordestino, seu Chico, que com a família
se muda para a favela do Colombo “[...] seguindo a lenda de melhores dias pra sua vida,
e quando chega bate a cara no muro da desilusão” (Preto, 2005:64). Entre as desilusões
está o envolvimento da filha com homens casados e a prisão de um dos filhos (motivos
que o impedem de voltar para a terra natal): “Creusa essa mia fia, ói como ela anda toda
impiriquitada, toda sirigaita pus lado dos home, um monte de muié casada vem aqui na
porta reclamá que ela saiu cum marido da zôta, i u oto meu fio... inté preso já foi...”
(PRETO, 2005:67). Já o outro filho deu certo na vida, catador de papelão há 7 anos:
“[...] num deu pa ruim, num é reberde” (Preto, 2005:67).
Ao lado desta vertente mais ficcional, corre, de forma paralela, uma inflexão
fortemente autobiográfica, na qual o autor claramente se implica, como quando trata da
briga entre marido e mulher – “E aí vem a pergunta: e aí Gato Preto? Vai se envolver ou
ficar só preocupado no canto? (Preto, 2005:67); quando relata a compra de um carro que
se transformou na ambulância comunitária da favela: “No dia 18 de julho de 2004, eu,
Ney e Vavá juntamos uma merreca que tínhamos e compramos um carro [...] a gora não
é mais um carro comum, pois se transformou na ambulância comunitária da favela do
Colombo” (Preto, 2005:69), ou ainda no desfecho do conto, que acena para o papel da
leitura e do saber na emancipação das comunidades periféricas: “Na direita trago um
livro e na esquerda um revólver” (Preto, 2005:69).
Sob uma perspectiva ainda referencial, o narrador (autor) trata de outros
aspectos do universo da favela do Colombo: do espaço fronteiriço entre a ordem e a
de rap de grupos musicais, os quais aparecem na abertura de capa um dos capítulos. Na edição de 2005,
publicada pela Editora Objetiva, em comparação com a edição de 2000, desaparecem as fotos da favela e
do autor, bem como os textos de rap; também uma nota do autor registra o processo de escrita do
romance, além da inversão do prefácio para posfácio. Na edição anterior, Mano Brown, do grupo
Racionais MC’s, assinava o texto que abria a primeira parte, na de 2005, o texto é deslocado para a
orelha.
1975
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1976
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1977
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1978
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
1979
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
como as prisões, trouxe a reboque a representação de uma certa “cor local” que, em
síntese, expressa a realidade cotidiana dos que vivem à margem.
O retorno a um certo tipo de exotismo reside na atração do leitor pelo pitoresco
das classes marginalizadas, pois não familiarizado com a realidade do pobre, do
homossexual, da mulher, da prostituta, do negro, do (ex) preso, etc, o que arrasta esta
literatura para a esfera do mercado: “O mercado editorial e audiovisual, esperto, percebe
e começa a se interessar por esses relatos que respondem ao crescente interesse da
classe média em saber mais sobre o lado de lá” (Hollanda, 2014:29). Mas, ao contrário,
do “turismo de lugar”, como no período romântico, o que há agora é a criação de um
novo exotismo, que se pode chamar de “turismo de classe”, “de gênero”, de “raça”, etc.
Desapareceu, portanto, a “fome de espaço” e a “ânsia topográfica de apalpar todo país”
(Candido, 1993), e surgiu a “fome” pela figuração do “outro”, sendo o “outro” aquele
que se encontra em situação desprivilegiada em relação a uma ideologia então reinante,
qualificada de “machista”, “imperialista”, “burguesa” e “branca”, segundo os
culturalistas.
Estar em sintonia com a diversidade é abrir-se à percepção de uma outra voz
com a qual se confronta na prática sociocultural, tanto mais produtiva quanto mais o
jogo dialético tecer sua dinâmica de contradições. Por isso, passado o momento da luta,
da reivindicação e de um certo tom de revide, como é possível notar em trechos
anteriormente destacados do manifesto “Terrorismo Literário” e também em outros
porta-vozes da Literatura Marginal, como Sérgio Vaz6, é chegada a hora de repensar a
cópia que se tenta fazer do filme real e triste que se passa do lado de fora. Nesse sentido,
os desafios que se impõem aos escritores marginais são de um lado não aceitar os
parâmetros de um engajamento fácil, isto é, da literatura transformada em panfleto
político e, de outro, não ignorar a necessidade de fazer sua obra interagir com o seu
tempo.
Como escritores que são, deveriam saber que as palavras jamais darão conta do
vivido, que só lhe resta a tarefa de tentar aproximações e de insistir, ainda que o
resultado não seja o desejado. Talvez resida aí grande parte da força da literatura: o
conflito permanente entre o autor e a palavra. São estas as lições ensinadas por
Drummond em “Procura da poesia”. É, então, nesse esforço de integrar política e
6 Quando perguntado sobre o principal papel da poesia na sua vida, ele respondeu: “A minha é poesia e
luta. Ela serve para eu não enlouquecer. Escrevo para me vingar do passado” (2013, p.17). Em outro
momento da entrevista, Vaz ainda diz: “As pessoas estão escrevendo sobre suas dores, destilando seus
ódios e rancores em forma de poesia” (2013, p.16).
1980
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
estética que a Literatura se constrói como um espaço de resistência, como arma de luta,
de subversão e de denúncia. Ou seja, é preciso descobrir o que há de político no interior
do próprio fazer literário, sob pena de se tornar, num futuro não muito longínquo, em
palavras inócuas, como bem lembra Resende:
Quando esse realismo ocupa de forma tão radical a literatura, excesso de realidade
pode se tornar banal, perder o impacto, começar a produzir indiferença em vez de
impacto. O foco excessivamente fechado do mundo do crime termina por recortá-lo
do espaço social e político, da vida pública. Torna-se então, ação passada em uma
espécie de espaço neutro que não tem mais nada a ver com o leitor. Corre o risco de
resultarem disso tudo, o mais das vezes, obras literárias que temo considerar
descartáveis. (2008:38).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brandileone, Ana Paula Franco Nobile; Oliveira, Vanderléia da Silva. 2014. A narrativa
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Agró, Ettore. Possibilidades da nova escrita literária no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.
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Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Mendes, Luiz Alberto. 2005. Cela forte. In: Ferréz (org.). Literatura marginal: talentos
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1982
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 55 - Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias, 1983-2004
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p1983
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RESUMO
O ensaio sobre o conto A Outra, da escritora portuguesa nascida na Ilha da Madeira, Ana
Teresa Pereira, pretende desvelar interferências entre literaturas de línguas diversas. No
caso em estudo, trata-se de mostrar a influência decisiva e marcante que a literatura de
língua inglesa (especificamente britânica e norte-americana) tem na obra desta escritora.
A análise do conto A Outra, publicado em 2010, procura fazer ressaltar a forma como o
texto em causa, partindo da declarada paixão da escritora pelas narrativas de Henry James,
consegue ir para além da ousada ambiguidade que carateriza a obra do escritor norte-
americano do início do século XX.
Henry James bem como outros escritores, essencialmente anglófonos, marcaram de forma
indelével a obra pereiriana, perpassando as narrativas de forma persistente e demarcando o
seu universo circular, sempre em construção. As diegeses funcionam, pois, numa
interdependência declarada, como se a sua obra fosse sempre a mesma.
Em A Outra não é só A Volta no Parafuso, de Henry James, que está em questão.
Implicitamente, outras obras do escritor foram fundamentais para que Ana Teresa Pereira
se aventurasse neste exercício aliciante e ousado de homenagear Henry James, “virando do
avesso” a história clássica e para sempre ambígua do autor de alguns dos romances, contos
e textos de crítica literária mais marcantes da Literatura Inglesa.
Introdução
7 IPG, UDI - Unidade de Investigação para o Desenvolvimento do Interior, Escola Superior de Turismo e
Hotelaria, Unidade Técnico-científica de Línguas e Culturas, Rua Dr. José António Fernandes Camelo –
Arrifana 627-588 Seia, Portugal, asardo@ipg.pt.
1983
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Ana Teresa Pereira assume abertamente o imenso amor e a admiração que sente
pelos escritores que obsessivamente refere, a ponto de a obra dos mesmos modelar a sua
sensibilidade e vida, bem como cada um dos seus livros. São eles que delineiam os seus
textos, demarcam existencialmente as suas personagens, inspiram os seus cenários e, em
última instância, impulsionam a autora portuguesa, num ato criador de extrema
coragem, a escrever livros a partir de obras dos escritores que tanto a assombram.
É o que acontece, por exemplo, com O Verão Selvagem dos Teus Olhos, título
sublime da obra escrita em 2008, que nasce a partir da história Rebecca de Daphne Du
Maurier, uma “revisitação” de Ana Teresa Pereira à obra da escritora britânica e à
personagem Rebecca, como “se a vida viesse depois da literatura e por ela fosse
determinada” (Amaro, 2008: 8). O mesmo se passa com A Outra, obra publicada em
2010. Contudo, em A Outra, não é só A Volta no Parafuso, de Henry James, que está
em questão. Implicitamente, outras obras do escritor foram fundamentais para que Ana
Teresa Pereira se aventurasse neste exercício aliciante e ousado de homenagear Henry
James, “virando do avesso” essa história clássica e amplamente debatida.
A Volta no Parafuso/The Turn of The Screw, livro escrito em 1898, teve ao
longo dos tempos diversas interpretações que levaram à existência de uma discussão
crítica inflamada, mas que veio a revelar-se insolúvel, sobre a realidade dos fantasmas
e/ou a sanidade de uma das personagens, a precetora de Bly. Brad Leithauser (2012)
1984
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
1985
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Deste modo, para Hafidh, eram os desejos sexuais da precetora que provocavam
as aparições de Quint, o empregado da propriedade, entretanto morto. Cada vez que ela
imaginava ou desejava poder estar como o seu patrão, pensava avistar o espectro de
Quint: “It was her own wish-fulfilment, her desires that appeared in the form of
apparitions” (Hafidh, 2006: s. p.).
Para além desta controvérsia gerada em torno das questões de interpretação da
obra jamesiana, outros críticos e teóricos da ficção preocuparam-se em analisar a
técnica narrativa usada pelo autor em A Volta no Parafuso/The Turn of The Screw,
concluindo que a introdução, o enquadramento e a narrativa em primeira pessoa
conseguem convencer ou até mesmo manipular os leitores, o que impele à inevitável
hesitação nas interpretações.8
Linda Kauffman escreve, no livro Discourses of Desire: Gender, Genre, and
Epistolary Fictions (1988), que a imagética da obra de James é uma reminiscência do
género gótico, bastando atentar nas descrições de Bly e da propriedade circundante.
Chama também a atenção para o facto da precetora de Bly se referir claramente ao livro
Os Mistérios de Udolpho e, de forma indireta, à obra Jane Eyre, evocando-se uma
analogia entre a personagem de James e a protagonista Jane Eyre e também Bertha, a
mulher demente confinada em Thornfield.
À semelhança do livro Rebecca de Daphne Du Maurier, que deu origem à obra
O Verão Selvagem dos Teus Olhos de Ana Teresa Pereira, também The Turn of The
Scew teve adaptações cinematográficas, como, por exemplo, em 1956, numa realização
de John Frankenheimer. Neste caso, o papel da precetora é desempenhado pela
belíssima atriz Ingrid Bergman9, diversas vezes mencionada nas narrativas pereirianas,
surgindo até na capa do livro Até que a Morte nos Separe (2000), numa foto com Cary
Grant, na cena inesquecível do filme Notorious/Difamação de Hitchcock. Em 1961, há
uma nova e extraordinária adaptação, num filme a preto e branco realizado por Jack
Clayton, tendo Deborah Kerr no papel de precetora. Intitula-se The Innocents e é
considerada, ainda hoje, como uma das melhores adaptações cinematográficas do livro
de James10. O escritor, realizador e produtor de cinema Guillermo del Toro, num artigo
8 Como refere Todorov, na obra Introdução à Literatura Fantástica, a hesitação acontece em narrativas
que se caracterizam não pela simples presença de acontecimentos sobrenaturais, mas pela maneira como
os percebem o leitor e as personagens.
9 Pode aceder-se a esta informação no sítio Web IMDb. Disponível em
http://www.imdb.com/title/tt0053384/, consulta a 02/12/ 2012.
10 Esta é uma adaptação cinematográfica que marca decisivamente a obra de Ana Teresa Pereira.
1986
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
escrito para o jornal USA Today (2011), escolheu este filme como um dos seus filmes
de terror favoritos.11
Estas referências às adaptações das obras literárias à Sétima Arte procuram
reforçar a importância que o Cinema tem na obra de Ana Teresa Pereira e
consequentemente ajudar a perceber a génese de livros como O Verão Selvagem dos
Teus Olhos e A Outra. Muitas vezes, a interpretação que a escritora faz das obras, que
obsessivamente menciona, ou a sua compreensão muito própria das mesmas, são
combinações da leitura dos livros e do visionamento das adaptações cinematográficas
dos mesmos (bem como de outros filmes), o que lhe permite atribuir sentidos novos e
diversos às diegeses.
11 A expressão utilizada pelo realizador é ‘fright flicks’. Podemos ter acesso a este comentário em
http://www.imdb.com/title/ tt0055018/trivia, consulta a 01/12/2012.
12 Edição de 2003 de Relógio D’Água Editores.
1987
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1988
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1989
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1990
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Miles” (Pereira, 2010: 7), apenas inteligível e reveladora para o leitor que conheça a
obra de Henry James, colocando no cerne da história a precetora e o menino Miles. A
escolha do excerto da obra de James é ardilosa, porquanto aumenta a ambiguidade do
conto pereiriano.
A Outra é uma obra elíptica, composta por seis partes sem título, constituídas
por séries de textos breves, alguns formados apenas por uma frase. A narração é feita na
primeira pessoa, coincidindo com a protagonista da diegese, a precetora que conta a sua
história, enfatizando essencialmente a sua estada em Bly, a propriedade para onde vai
trabalhar, incumbida da educação de duas crianças órfãs. Nesta narrativa, ainda mais do
que em O Verão Selvagem dos Teus Olhos, Ana Teresa Pereira surpreende-nos com
uma história que tem por base um outro livro, mas que é efetivamente outra.
O primeiro capítulo, totalmente dedicado à vida da protagonista antes da partida
para Bly, começa na primeira página apenas com duas frases curtas, de uma beleza e
ambiguidade extraordinárias. Só mais tarde perceberemos serem as mesmas que iniciam
todas as outras partes: “A porta abriu-se sem que ninguém lhe tivesse tocado./O vento
trouxe as folhas para dentro de casa, num movimento suave, com algo de musical”
(Pereira, 2010: 9).
A personagem principal e narradora enfatiza Bly, lugar onde descobriu a sua
beleza como mulher, porque em Bly havia um espelho grande: “Eu penso que tudo
começou no dia em que me vi, de corpo inteiro, no espelho do meu quarto em Bly”
(2010: 10). Teve, então, consciência de que era “muito bonita” (Id. Ibidem) e percebeu
“o que ele queria dizer ao falar das mulheres pintadas por Dante Gabriel Rossetti” (Id.
Ibidem, destaque nosso). Atente-se em dois aspetos relevantes na narrativa: a percetora
tem uma beleza artística e isso tinha-lhe sido dito por alguém, “ele”, personagem que o
leitor, nesse momento da história, ainda desconhece.
No texto seguinte, a protagonista/narradora recorda a história da sua infância e
adolescência, momentos da vida onde tudo é comparado a situações e personagens
literárias. A primeira referência surge quando se traz, para o texto, aquele que é
considerado um dos grandes poetas românticos ingleses, William Wordsworth (1770-
1850), que fazia parte dos chamados “Lake Poets”. A precetora compara as brincadeiras
de infância com as suas irmãs com as de uma menina num poema de Wordsworth “que
se sentava a fiar junto aos irmãos mortos no cemitério” (Pereira, 2010: 11). Insinua-se o
estado da protagonista, conclusão a que só mais tarde o leitor conseguirá chegar.
1991
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
13 Recorde-se a cena em que os criados (mortos) dizem a Grace (também ela fantasma tal como os filhos)
que os vivos têm de aprender a conviver com os mortos.
1992
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
necessidade de alguém para cuidar da sua educação e “resolver todos os problemas que
[pudessem] surgir” (Pereira, 2010). Imediatamente, no espírito da protagonista,
começam a formar-se entendimentos que vão para além daqueles que a situação real
deixa revelar. O dono de Bly quer apenas “alguém que se dedique às crianças de corpo e
alma” (Pereira, 2010: 16), de modo a que nunca seja “importunado” (Id. Ibidem). A
precetora sente, todavia, que eram como se fossem “velhos amigos” (Id. Ibidem) e que
estavam só “a concluir um pacto” (Id. Ibidem).
Ainda que alguns destes aspetos se assemelhem àqueles que podemos ler na
narrativa de James, Ana Teresa Pereira adiciona, ao seu texto, outros que aí não estão
presentes e uma componente que nunca falta nas suas histórias: os conhecimentos sobre
Literatura e Pintura e as referências literárias e pictóricas, como comprovam as citações
anteriormente trazidas para a presente análise e como podemos verificar, por exemplo,
no seguinte excerto: “Com a sua cor de cabelo não devia usar cinzento. (…) Conhece os
quadros de Dante Gabriel Rossetti? (…) Uma mulher com a sua cor de cabelo deve usar
verde, talvez vermelho Ticiano” (Pereira, 2010: 17).
A partida para Bly ocupa uma página e resume-se a uma frase: “Na manhã
seguinte parti para Bly” (Pereira, 2010: 19), revelando a importância deste espaço
extraordinário e fantástico na narrativa em estudo e confirmando, igualmente, a
influência do mesmo em toda a obra de Ana Teresa Pereira.
A parte 2 de A Outra principia como a parte 1, acrescentando-se apenas a
estação do ano, outono, uma das estações prediletas das personagens pereirianas:
A porta abriu-se sem que ninguém lhe tivesse tocado.
O vento trouxe as folhas para dentro de casa, num movimento suave, com
algo de musical. (…)
Devia ser Outono. (Pereira, 2010: 21)
Reiteradamente se instala a ambiguidade e a perplexidade no leitor, quando, no
texto subsequente, se verifica que esse início e essa estação do ano não coincidem com a
chegada da precetora à propriedade: “Cheguei a Bly num fim de tarde de Abril”
(Pereira, 2010: 22). Esse momento é representativo da obsessão das personagens em
relação aos seus sonhos, normalmente modelados pela Arte: “Quando a carruagem se
aproximou da casa, lembrei-me do meu velho sonho. (…) Estava a chegar a um castelo.
(…) chegava a um lugar onde tudo ia acontecer. Porque na minha vida ainda não tinha
acontecido nada” (Id. Ibidem).
1993
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
1994
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
cor versos de Nilton. Conhecia as constelações. Sabia o nome dos mares. (…) tocava
muito bem piano” (Id. Ibidem). Flora, tal como a narradora, gostava de dançar.
Num texto brevíssimo, que ocupa a página 30, a narradora e protagonista conta a
primeira visita ao “espaço assombrado” (Pereira, 2010) do lago, como se fosse uma
aventura a três, que lhe lembrava os livros de Stevenson que ela e Miles conheciam
bem.
A terceira parte começa exatamente do mesmo modo que a segunda, fragmento
no qual as duas primeiras frases eram as que compunham o texto da primeira parte. Tal
como a segunda acrescenta à primeira parte duas novas frases, a terceira introduz três
novas proposições ambíguas e misteriosas. A ambivalência advém de diversos aspetos
dos quais se destacam a referência à rapariga de vestido castanho e a utilização dos
pronomes “ele/eles”:
A rapariga de vestido castanho estava imóvel num canto. Olhava para a porta
com uma expressão assustada.
Era ainda mais jovem do que eu e muito bonita. Ele gosta de nós jovens e
bonitas.
Eles gostam de nós jovens e bonitas. [destaque nosso] (Pereira, 2010: 33)
O texto não permite ao leitor compreender quem é a rapariga que surge como se
se tratasse de uma aparição. Contudo, uma análise cuidada e a comparação com o livro
de James e com o filme The Others permitem-nos perceber e reafirmar a mestria de Ana
Teresa Pereira. A escritora não se limita a escrever uma nova história a partir da
narrativa de James, vira-a mesmo do avesso e, para tal, usa novamente a questão da
perspetiva para o fazer. A narradora do texto pereiriano é a precetora morta, aquela de
quem nunca se ‘ouve’ o nome, aquela que, em The Turn of The Screw, se chamava Miss
Jessel. A Outra mostra, portanto, como escreve José Mário Silva, “o ponto de vista de
Miss Jessel, o fantasma” (2011: s.p.).
Ana Teresa Pereira revela o outro lado da história, sugerida pela governanta em
The Turn of The Screw, e entendida de forma distorcida pela precetora substituta. Em
The Turn of The Screw, Mrs. Grose conta à jovem precetora que a sua predecessora,
Miss Jessel, e um outro empregado, Peter Quint, tinham tido uma intensa relação
amorosa e que ambos haviam morrido. Alguns críticos sugerem que Quint teria
molestado sexualmente Miles, bem como outros membros da casa. Deste modo, a
ambiguidade interpretativa nasce sem nunca se dissipar, como já referimos.
1995
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
1996
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
2008: 47). Estes versos são excertos do poema, cujo tema é a morte, da autoria do poeta
japonês Kobayashi Issa, reforçando, no livro de 2008, a situação de Rebecca no seu
regresso a Manderly. Em A Outra servem, de igual modo, para indiciar a situação da
precetora e de Quint, duas personagens que já não pertencem ao mundo dos vivos.
A precetora repara que ambos estavam “vestidos como atores” (Pereira, 2010:
36). Interroga-se, então, sobre a peça diabólica que se preparavam para representar. Esta
pode ser uma das interpretações de The Turn of The Screw. Contudo, não é este o
sentido que nos é oferecido em A Outra, uma vez que a resposta aparece na página 49 e
nada tem de malévolo: “Muitas vezes imaginei que Miles e Flora eram os nossos filhos.
E Deus sabe como aquelas crianças precisavam de pais. (…) E Miles e Flora
caminhavam num mundo criado por nós. E sentiam-se protegidos e felizes (Pereira,
2010: 49). Já na página 37 se podia ler: “Não demorei a perceber que Miles adorava
Quint. (…) E Quint parece gostar dele” (Pereira, 2010).
A circularidade ressurge de novo com a repetição de uma frase inquietante e
indiciadora: “é como se tivéssemos desenvolvido um hábito inquietante de espreitar
pelas janelas” (Pereira, 2010: 38 e 39), revelando o ‘estado’ da precetora e de Quint.
Recorde-se que, em The Turn of The Screw, os presumidos fantasmas eram vistos,
através das janelas, como se estivessem espreitando de pontos diversos: do cimo da
torre, do outro lado da janela, na ilha de juncos no lago.
No final da parte 3, o texto justifica o envolvimento de Miss Jessel e Quint,
incompreendido e reprovado pela sociedade e a muito custo aceite pela própria
narradora: “Eu era uma senhora. (…) não havia nada de comum entre mim e aquele
homem rude” (Pereira, 2010: 49). Como em outras narrativas de Ana Teresa Pereira, os
relacionamentos têm algo de profundamente físico, assomando como uma atração fatal
à qual é penoso ou quase impossível escapar: “E acho que quase senti um alívio quando
ouvi a leve pancada na porta. (…) Eu sabia quem era. / O meu corpo sabia quem era”
(Pereira, 2010: 41).
Na parte 4, repete-se o mesmo texto do início das anteriores, acrescentando-se
mais um parágrafo que se refere à jovem precetora de cabelo castanho: “Ela tinha um ar
que eu conhecia. O que eu tinha há algum tempo. Como se ninguém lhe tivesse tocado”
(Pereira, 2010: 43). A dúvida coloca-se sobre quem vê quem e sobre qual das duas é a
intrusa em Bly.
O relacionamento de Quint e Jessel continua a ser sumária, mas intensamente
descrito, fazendo sobressair a diferença entre os dois amantes: “E o meu corpo torna-se
1997
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
mais leve nos seus braços pesados” (Pereira, 2010: 45). A bela e sensual precetora
reforça a ideia de continuar a pensar no senhor de Bly, mas afirma ter aprendido “a
importância dos substitutos” (Pereira, 2010: 47). Para reforçar o lado libidinoso da
precetora de cabelo ruivo, na qual podemos reconhecer algumas personagens
pereirianas, há a referência a dois livros, um dos quais diversas vezes mencionado ao
longo da vasta obra da escritora portuguesa, o outro referido pela primeira vez em A
Outra: “chamava-se Fanny Hill e a história era mais estranha do que a das Mil e Uma
Noites. Mas foi assim que o li, como um conto das Mil e Uma Noites” (Pereira, 2010:
46).
Fanny Hill (Memoirs of a Woman of Pleasure) é o nome pelo qual é conhecido o
romance erótico do escritor inglês John Cleland (1709- 789), publicado em 1748. É
referenciado como “the first original English prose pornography, and the first
pornography to use the form of the novel” (Foxon, 1965: 45) e é considerado como um
dos livros mais perseguidos e banidos da História da Literatura. A sua menção reforça
um conceito presente na obra pereiriana, a ideia de que o sexo pode existir apenas para
dar prazer e não por amor. Embora em A Outra, Miss Jessel afirme ter-se apaixonado
por Quint com o corpo e com a alma, como se pode ler na página 54, ela sente a ligação
com esse homem como uma “Degradação. Era assim que as pessoas à nossa volta viam
a nossa relação. A preceptora degrada-se com o criado” (Pereira, 2010: 55), exatamente
pelo facto de nela se sobrepor essa componente fortemente carnal e pelo facto de Quint
não passar de “um substituto”.
O início da penúltima parte acrescenta nova informação acerca da mulher de
quem jamais se conhece o nome: “Ela não tinha nome. Pelas conversas que ouvi, era a
única filha de um pároco de aldeia e este era o seu primeiro emprego” (Pereira, 2010:
51). É-nos também revelada a morte de Quint, “Um homem que bebera demasiado na
aldeia e ao voltar para casa escorregara no gelo” (Pereira, 2010: 46), e insinuada a ideia
de que está morto assim como a precetora sua amante. O texto deixa supor que Miss
Jessel se teria suicidado: “(…) Mas nada se movia à minha volta. (…) E então vi-o no
meio do nevoeiro. (…) Dei uns passos entre os juncos e senti vagamente que o meu pé
entrava na água” (Pereira, 2010: 59). Afirma-se no texto que a precetora e Quint
pertencem ao grupo daquelas pessoas que “não encontram o caminho para o Céu ou o
Inferno. (…) alguns ficam para trás. Os que não acordaram antes de morrer” (Pereira,
2010b: 52). Notemos, de novo, a circularidade e a repetição. Ana Teresa Pereira tem um
livro intitulado Se Eu Morrer Antes de Acordar (2000).
1998
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
A primeira página da última parte do texto coincide com o momento em que, por
fim, as duas mulheres se reconhecem e se enfrentam, desvelando o “segredo” mais
profundo do texto: “Pela primeira vez, ela dirigiu-me a palavra. / A casa é minha. Eles
são meus” (Pereira, 2010: 61). Entre ambas, há semelhanças físicas e de gostos
literários: “Entre os livros que ela colocou na estante, há um exemplar de Jane Eyre”
(Pereira, 2010: 62).
Os últimos seis breves textos de A Outra revelam a intenção de Ana Teresa
Pereira, confirmada pela mesma na crónica que escreveu, no jornal Público, em 2004,
intitulada “A noite dá-me um nome”, quando assevera que os fantasmas de Bly são os
nossos e, tal como em relação à história original de James, “é o nosso desejo e o nosso
medo que vamos encontrar.”
Neste final, existem inúmeras semelhanças com o filme Os Outros: “É um
mundo [o dos mortos] estranho o nosso. O mundo que os outros pressentem quando se
perdem num bosque ou quando o vento que entra pela janela apaga a única vela acesa
no quarto” (Pereira, 2010: 63). Recordemos, a propósito destas frases, a inscrição inicial
do livro e o significado da mesma no contexto desta narrativa pereiriana: “‘Why the
candle’s out!’ I then cried./‘It was I who blew it, dear!’ said Miles” (Pereira, 2010: 7).
É no momento do confronto entre as duas precetoras, na página 67, que
finalmente se consegue alcançar o intuito pereiriano ao escrever uma história baseada
em The Turn of Screw. Quem leu o livro de Henry James e conhece a obra Jane Eyre,
reiteradamente mencionada em A Outra, entenderá que o perigo não está nos fantasmas,
porque esses talvez apenas espreitem pelas janelas e pelas portas. Miss Jessel e Quint
pressentiram “desde o primeiro dia, que ela era uma inimiga” (Pereira, 2010: 64); que
faria “qualquer coisa para os ‘salvar’” (Pereira, 2010: 64).
Finalmente podemos colocar a questão: por quem está apaixonada a precetora de
cabelo castanho? Pelo senhor de Bly, seria a resposta mais óbvia, mas talvez não a única
possível. Contudo, e apesar de conseguir manter magistralmente a ambiguidade, tanto
na crónica de 2004 como em A Outra, insinua-se no texto de Ana Teresa Pereira, à
semelhança do que fazia notar James, que o fantástico serve apenas para falar da
realidade. Evidentemente que, tal como acontece com os textos de Henry James,
podemos ler os de Ana Teresa Pereira com um duplo sentido. Deste modo, pode ler-se a
narrativa como a história da loucura da nova precetora de Miles e Flora, percebendo-se
que a verdadeira paixão da jovem de cabelos castanhos seria Miles, com todas as
consequências e interpretações que tal facto possa ter:
1999
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Conclusão
2000
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
onde Lillian Gishe Robert Mitchum cantam o mesmo hino, a casa de Londres
onde Ingrid Bergman enlouquece aos poucos, enquanto Charles Boyer se
afasta no nevoeiro, o hotel de S. Francisco onde Kim Novak volta de entre os
mortos para os braços de James Stewart. Acontece o mesmo com os meus
livros. (Nunes, 2008: 10 - 11)
A escritora reconhece que, nos seus livros, existe permanentemente um rasto de
outros escritores e que sempre desejou reescrever os livros que a “tocam”, mas que,
como a própria afirma, essa tarefa “não é possível, a não ser que nos transformemos em
Pierre Menard14 (e mesmo ele não conseguiu), criamos um mundo que nunca existiu
antes, onde nos podemos perder de novo, e ser felizes, ou infelizes, como fomos uma
vez” (Nunes, 2008: 10-11).
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14 Recorde-se o conto de Jorge Luis Borges Pierre Menard, autor del Quijote (Ficciones, 1944), obra
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Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 55 - Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias, 2005-2020
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p2005
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
Carlo PELLICCIA15
RESUMO
Esse artigo tem como objectivo evidenciar o fenómeno do enriquecimento do léxico que
se criou entre a língua portuguesa e a língua japonesa nos séculos XVI e XVII, por meio
da introdução e assimilação de alguns empréstimos linguísticos pertencentes a vários
âmbitos e áreas do saber. Será analisado, de maneira específica, o trabalho e a
contribuição dos missionários europeus, sobretudo dos membros da Companhia de
Jesus, através de uma análise do códice Reg Lat. 459 conservado na Biblioteca
Apostolica Vaticana, o qual é atribuído ao jesuíta português Manoel Barreto (1564-
1620), cuja redação em rōmaji (letras romanas) é datada de 1591. Evidenciaremos,
também, o fenómeno da expansão e da importância da língua portuguesa durante as
viagens marítimas rumo às Índias Orientais durante aqueles séculos, a qual será um
instrumento e um veículo de comunicação que permitiu estabelecer o diálogo e o
conhecimento entre os dois mundos, o Ocidental e o Oriental, longe e distantes entre si,
não somente do ponto de vista geográfico.
O Português é hoje falado, como língua materna e/ou como língua oficial,
em Portugal, no Brasil, nos países africanos de língua oficial portuguesa, em
Timor e em Macau. Línguas crioulas de base lexical portuguesa foram (e são
ainda hoje para algumas) a língua materna de comunidades diversas, em
África, na América do Sul e na Ásia. Dezenas e, nalguns casos mesmo,
centenas de palavras de origem portuguesa, consequência do contacto
directo de falantes seus com as mais variegadas gentes, são ainda de uso
corrente em línguas tão distintas como o Japonês, o Quicongo, o Bahasa
indonésio, o Suaíli, o Tetum, o Tupi, o Concani, o Malaio, o Singalês e
muitas outras línguas, cuja enumeração exaustiva cansaria certamente o
leitor (Tomás, 2008: 432).
2005
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Introdução
16 A última embarcação portuguesa deixa o porto de Nagasaki a 3 de Agosto de 1639 com a proibição de
qualquer barco um porto japonês (Malena, 1995: 19).
2006
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
ampla bibliografia sobre a temática, são individuados vários campos e categorias (tendo
em conta a contribuição de Tai Whan Kim, publicado em 1976), onde é possível rastrear
a presença de empréstimos do português. Estes penetram em diversos âmbitos, do
vestuário à cozinha, incluindo algumas tipologias de doces, da botânica à zoologia, do
comércio e meios de transporte às construções e mobiliário, e ainda da medicina e
veterinária à geografia, sobretudo topónimos (da Fonseca, 1992: 173-202). Elencando
rapidamente alguns exemplos, procura-se analisar concretamente o que acabámos de
referir, ou seja, que o elemento português vai enriquecer a língua e da civilização
nipónicas e, como tal, contribuir para o seu crescimento. De facto, estes anos
caracterizam-se pela introdução de novos produtos de vários géneros e de novas
tecnologias. Paralelamente, deve observar-se igualmente o processo de transliteração
que envolve esses vocábulos, os quais são assimilados e transcritos de acordo com as
regras e os parâmetros da fonologia japonesa.
JAPONÊS PORTUGUÊS
Karuta Carta
Juban/Jiban Gibão
Tenpura Tempero
Pan Pão
Konpeitō Confeito
Tabako Tabaco
Perikan Pelicano
Kapitan Capitão
Batēra Bateira
Beranda Varanda
Barusamu/barusamo Bálsamo
Miira Mirra
Porutogaru Portugal
Oranda Holanda
Igirisu Inglês/Inglaterra
Deve precisar-se, ainda que com brevidade, que este fenómeno de assimilação
de empréstimos linguísticos não diz respeito exclusivamente ao japonês, tanto assim
que parece ter sido uma peculiaridade que se manifestou em diversas línguas orientais,
como demonstra Shihan de Silva Jayasuriya em The Portuguese in the East: A Cultural
History of a Maritime Trading Empire, especialmente no capítulo Portuguese
2007
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Expansion and Language Contact, no qual a autora, servindo-se também das pesquisas
de Sebastião Rodolfo Dalgado (1855-1922), afirma que os vocábulos portugueses foram
“adoptados” por mais de cinquenta línguas asiáticas, entre as quais «I have also
included Portuguese borrowings in Divēhi, Urdu17, Bahasa Malaysia (Malaysian) and
Bahasa Indonesia (Indonesian)» (Jayasuriya, 2008: 72).
Não se esqueceu igualmente de mencionar a presença no japonês de termos
portugueses relativos ao mundo cristão, até porque estes representam um número
elevado e assim pode afirmar-se que o contributo mais relevante é levado precisamente
pelo “jargão” eclesiástico e missionológico.
Ana Paula Laborinho escreve num seu artigo:
Também João de Barros, no Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem,
publicado em 1540 juntamente com a Gramática da Língua Portuguesa,
defende o valor do português, atribuindo-lhe uma função na estratégia
imperial mas associando outra finalidade: a difusão do cristianismo
(Laborinho, 1994: 371).
A difusão da língua portuguesa encontra-se ligada, assim, não apenas ao
fenómeno da colonização (ainda que o Japão não fizesse parte do império português) ou
ainda à actividade mercantil que vê nos portugueses os protagonistas deste tempo, mas
também e talvez sobretudo à difusão do cristianismo. Na nascente comunidade católica
japonesa a língua portuguesa torna-se, bem cedo, um veículo de comunicação (língua
veicular), instrumento através do qual é possível entrar em contacto com a população
local. Assim, o português torna-se língua de referência também para os jesuítas de
outras nacionalidades, como espanhóis e italianos. Isto não significa que estes fossem
pouco atentos e interessados em estudar e assimilar a língua local e a acolher, ainda que
com dificuldade e às vezes com distanciamento, os usos, tradições e costumes do País.
Inicialmente, a tradução de algumas orações cristãs, o Credo e os mandamentos,
que se realiza graças à colaboração de Francisco Xavier (1506-1552) (Gouveia, 2005) e
do neófito Anjirō (De Rosa, 2005: 548), apresenta a adopção de termos budistas da seita
Shingon com a finalidade de exprimir realidades cristãs (Cohen, 2013: 25). Mas, cedo,
os missionários apercebem-se que certas escolhas tradutivas não podem veicular
características basilares da doutrina cristã: de facto, é fácil cair no risco de gerar
17 Mohsin Khan afirma que «Loanwords from Portuguese in Urdu are far older than English loans, and
function like native Urdu words with a little phonological change or without any change in the original
form of the words. These changes occur due to the process of ‘nativization’, which means the
pronunciation, and sometimes the morphology, is changed to match the regular patterns of the recipient
language» (Khan, 2014: 248).
2008
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
JAPONÊS PORTUGUÊS
Bateren Padre
Iruman Irmão
Kirishitan Cristão
Kurusu Cruz
Misa Missa
Rozario Rosário
Sakaramento Sacramento
2009
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Toma-se em exame o códice Reg. Lat. 459, sem título, mencionado no catálogo
da Biblioteca Apostolica Vaticana (a partir daqui BAV), onde se conserva, como
Manuale di preghiere e lettura in lingua giapponese. No frontispício, apresenta a
assinatura de Manoel Barreto (1564-1620) (Machado, 1762: 193-194), bem como a data
do final da compilação do volume de 1591 (Schütte, 1940). Neste ponto não é
necessário determo-nos a acompanhar o percurso deste manuscrito do Japão para a
Europa até chegar à biblioteca da rainha Cristina da Suécia (1626-1689) para ser
ulteriormente incorporado na BAV, nem muito menos recordar os principais eventos da
biografia deste jesuíta português, originário da Feira, chegado ao Japão em Julho de
1590. Não é tampouco necessário determo-nos a recordar as dúvidas e perplexidades
que surgem sobre a paternidade do códice, nem as hipóteses do local em que se
desenrolou o trabalho de cópia, uma vez que alguns defendem que dois terços da
miscelânea (contendo 391 fólios, dos quais 5 fólios iniciais ou internos e 4 fólios finais
em branco) teriam sido transcritos entre Goa e o Japão (Schwemmer, 2014: 477).
Deve-se, ao invés, indicar que esse códice, de natureza doutrinal e catequética,
2010
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
redigido em rōmaji (letras romanas),21 é composto por quatro trabalhos, entre os quais
uma história de uma cruz milagrosa descoberta na véspera de Natal de 1589 na cidade
de Obama (Kyūshū), uma recolha de passagens evangélicas do ano litúrgico, alguns
milagres recebidos por intercessão da Virgem Maria e biografias breves de 32 santos
(Russo - Pelliccia, 2015: 80).
O elemento no qual queremos deter a nossa atenção, especificamente, é a
presença da língua portuguesa no manuscrito, que se manifesta seja no aspecto
lexicológico, através de numerosos empréstimos, seja mediante algumas páginas
escritas nesta língua, como por exemplo o índice dos milagres e, ocasionalmente, glosas
e anotações rastreadas nas margens. Ao mesmo tempo, deve recordar-se que esse
idioma é utilizado também para escrever a dedicatória que aparece no frontispício
(Russo, 2011: 454) e para escrever a maior parte dos títulos das secções com os
repectivos parágrafos, entre os quais: Historia breve da cruz que milagrosamente
apareceo em Jappão (fl. 1) e Vidas gloriosas de alguns Sanctos E Sanctas (fl. 164),
bem como para alguns índices Index das Dominicas S. Evangelhos de todo o anno que
aqui estão Escriptos (fl. 108).
A maior parte dos termos portugueses que aparecem no Manuale estão, então,
inseridos com a finalidade de exprimir os elementos fundadores e caracterizadores da
doutrina católica. De facto, a presença conspícua dessas palavras mostra a ânsia
justificada da língua japonesa de transmitir a verdade europeia. Existem vocábulos
relativos a festividades religiosas como Natal (fl. 1v) e Pascoa (fl. 22); a alguns
sacramentos como, antes de mais, a própria palavra: Sacramento (fl. 319v), Baptismo
(fl. 5v) e confissão e, ainda, termos ligados à liturgia e às várias práticas religiosas como
altar (fl. 7v), anima (fl. 40), graça (fl. 81v), gloria (fl. 82), inferno (fl. 82), iustiça (fl.
82). Encontram-se, além disso, nomes de personagens bíblicas e figuras relevantes das
Sagradas Escrituras, a começar com o vocábulo Evangelho (fl. 4v), e continuando com:
Judeo (fl. 5v), Herodes (fl. 5v), Phariseo (fl. 5v), pastor (fl. 7), Evangelista (fl. 8), anjo
(fl. 8v), discipolo (fl. 8v), profeta (fl. 45), antes ainda aparece Isaia profeta (fl. 5v),
publicano (fl. 35v), filho (fl. 57), Judas Escariotes (fl. 61v), Pilatos (fl. 69v), Centurio
(fl. 77), Apostolo (fl. 91v), Christão (fl. 116), martir (fl. 225v), e personalidades do
mundo eclesiástico: Pontifice (fl. 60), Papa (fl. 182) e Bispo (fl. 182). São diversos os
21 É uma técnica promovida pelos próprios jesuítas, difundida no País precisamente a partir de 1591 com
a publicação de Sanctos no gosagveo no vchi nvqigaqi, que parece ser o primeiro kirishitan-ban (edições
cristãs) realizado com a imprensa de Kazusa, instituída no ano anterior (Ward, 2015: 493).
2011
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
22 A língua portuguesa, como já referido, é colocada ao lado da latina, de facto, no texto, é possível
rastrear diversos termos: Pontio Pilatus (fl. 5v), Scripturam (fl. 4v), Domine (fl. 57), crux (fl. 81v),
disciplina (fl. 81v), Ecclesia (fl. 162) e também algumas expressões, entre as quais Prima dominica
adventus (fl. 4) e Effectus Angeli Custodis (fl. 102v).
2012
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
23 Since 1591, the Dochiriina Kirishitan どちりいな きりしたん (“The Christian Doctrine”), published
“for the purpose of popular edification” (Higashibaba 2001: 53), became the standard Japanese catechism
for evangelisation work. It was printed by the Jesuit printing press and distributed among the missionary
personnel all over Japan, which amounted in 1592 to about 600 people. (Higashibaba 2001: 72). In
contrast to Xavier’s catechism it did not include the refutation of Japanese religions; rather, it contained
modifications and additions to the Portuguese original as a response to problems or questions arising in
Japanese encounters with Christian theology. (Higashibaba 2001: 56-64): (Schrimpf, 2008:40-41).
24 Doctrina Christã Ordenada a maneira de Dialogo, pera ensinar os meninos, pelo Padre Marcos
Jorge da Companhia de Iesu, Doutor em Theologia, impresso em Lisboa em 1566.
25 Foi igualmente importante a comunicação de José Miguel Pinto do Santos com o título Mincing
words: the Vocabulary of the Dochirina Kirishitan (1591), apresentada no congresso internacional
Interactions between Rivals. The Christian Mission and Buddhist Sects in Japan during the Portuguese
Presence (c. 1549-c. 1647), realizado a 13 e 14 de Março de 2015 em Lisboa.
2013
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
língua europeia que mais influências asiáticas apresenta no seu vocabulário» (Thomaz,
2010: 95). O autor defende que a língua portuguesa apresenta no seu vocabulário
diversas palavras relativas a certas realidades asiáticas, algumas retiradas do japonês, e
assim é possível afirmar, como já fizemos na introdução, que se trata, antes de mais, um
fenómeno de interacção cultural.
O famoso jesuíta Luís Fróis (1532-1597), autor de História de Japam, do qual se
conservam 111 cartas todas em língua portuguesa (20 autógrafas e as restantes divididas
entre originais ditados e assinadas pelo mesmo jesuíta e cópias posteriores) e ainda 11
cartas em castelhano (das quais 4 autógrafas) e 8 redigidas em italiano (5 originais e 3
traduções), recorre algumas vezes, para a composição dos seus documentos, à utilização
de orientalismos, frequentemente substantivos que se podem considerar um exemplo
concreto e um sinal tangível do seu contacto directo com as línguas naturais das
diversas regiões do Oriente. Como defende Eduardo Javier Alonso Romo, que se
ocupou do estudo da língua utilizada pelo jesuíta em 6 textos consideravelmente longos
que se estendem de 1552 a 1557, durante a sua permanência na Índia e em Malaca,
muitos dos termos de origem oriental usados pelo missionário lisboeta penetraram no
português em finais do século XV e primeira metade do século seguinte (Alonso Romo,
2000: 818-819; 828). É provável que o filólogo espanhol faça referência também à
política de expansão da potência portuguesa para alguns países da África Occidental e
Oriental.
Através da apresentação de algumas palavras mostra-se que cada encontro e
tentativa de diálogo entre dois mundos diversos e distantes contribui para uma fase de
enriquecimento recíproco da cultura e da língua enquanto expressões peculiares e
identificativas de um povo. Partimos do termo bonzo, do japonês bōzu o bōnzu ou ainda
bonsō, que parece ter sido utilizado pela primeira vez pelo capitão português Jorge
Álvares (?-1552) e pouco depois por Francisco Xavier na chamada “Grande carta” que
escreve a 5 de Novembro de 1549 aos seus companheiros residentes em Goa. Segundo o
já citado Dalgado, parece que este termo foi precedentemente utilizado, em 1545, por
Fernão Mendes Pinto (c. 1509-1583) na sua famosa Peregrinação (Dalgado, 1919:
138), obra publicada postumamente em Lisboa, em 1614. Passamos agora à palavra
biombo, do japonês byōbu, que designa os painéis dobráveis de papel ou seda que se
difundem particularmente durante a época Azuchi-Momoyama (1573-1603) e nos
inícios do período Tokugawa (Kraemerová - Gaudeková, 2014: 97) e, seguidamente, a
catana de katana (com as variantes catanada e catanar), que designa a típica espada dos
2014
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
2015
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
(Cardeira, 2010: 82). É possível considerar, portanto, esse idioma como língua franca,
uma vez que espanhóis, holandeses e ingleses27, estantes no Japão no final do século
XVI e nos inícios do seguinte (respectivamente 1592, 160928, 1613) se servem deste
canal para instaurar iniciais contactos e para encetar as primeiras relações comerciais
(Boxer, 19502: 58).
Murakami Naojirō defende que: «Os espanhóis, holandeses e ingleses, que mais
tarde vieram ao Japão, usavam a linguagem familiar aos japoneses. Por esta razão, o
português passou a ser a língua franca no Japão» (Murakami, 1942: 37). Isto foi
igualmente defendido por Tai Whan Kim no volume The Portuguese Element in
Japanese: A Critical Survey with Glossary, no qual refere que: «Portuguese served as a
lingua franca in Japan until the early part of the eighteenth century despite the fact that
the last Portuguese were forced to leave Japan in 1639» (Kim, 1976: 9). E, ainda, Silva
e Álvares que afirmam:
A língua portuguesa era a língua franca no Japão, bem como em outras partes
do Oriente desde meados do século XVI e continuou a sê-lo até meados do
século XVIII, embora os Portugueses tivessem sido forçados a abandonar o
arquipélago nipónico em 1639 e tivessem sido substituídos pelos Holandeses
e Ingleses que, no entanto, eram obrigados a usar o português nas suas
relações com o povo japonês (Silva - Álvares, 1986: 15).
Por fim, Marcos Bagno na sua A Língua de Eulália: Novela Sociolingüística
escreve:
— Muito importante, sim senhora — responde Irene. — Antes que o francês
se transformasse na língua mundial, no século XVIII, e o inglês, no século
XIX, foi o português que desempenhou este papel. A partir da segunda
metade do século XV ele já era falado nas regiões costeiras da África
Ocidental. No século XVI, estava disseminado por todo o Oriente. Era tão
importante que mesmo os navios de exploradores de outros países,
holandeses, franceses e ingleses, levavam sempre uma ou mais pessoas que
soubessem falar português, para estabelecer contato com os povos nativos,
que usavam o português como língua de comunicação com os europeus...
(Bagno, 1997).
27 Parece que durante os dez anos (1613-1623) de presença da potência inglesa no Japão nenhum termo
tenha sido introduzido na língua. Gillian Kay afirma: «The study ‘Nihon no Sankōtosho’ (Reference
Books on Japan’), published by Nihon Toshokan Kyōkai (Japan Association of Libraries) in 1980,
showed that over half the 25,000 loanwords in Kadokawa’s Loanword Dictionary entered the language
after World War Two, most of them from English. Since 1945, aided by an expanding mass media,
thousands of English loanwords have been absorbed into Japanese» (Kay, 1995: 68).
28 A 19 de Abril de 1600 chega acidentalmente o primeiro navio holandês ao Japão (na costa de Bungo):
«William Adams, a Cornishman who arrived as pilot of the Dutch ship Liefde in 1600, remained in Japan
until his death in 1620» (Jansen, 2000: 72).
2016
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
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29 Earns defende que durante o período de isolamento do Japão face ao resto do mundo entraram no
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De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 55 - Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias, 2021-2036
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p2021
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Este estudo é resultado das leituras e discussões acerca de conceitos, geralmente
polissêmicos, tais como cultura e identidade cultural, língua e linguagem, colonização e
globalização e da reflexão sobre as confluências culturais das diásporas africanas
advindas das colonizações. A pesquisa justifica-se devido à necessidade do
aprofundamento da reflexão acerca das práticas e estratégias discursivas presentes nos
textos ficcionais produzidos nas ex-colônias portuguesas, levando-se em consideração
os aspectos da relação entre as culturas e a resistência ao pensamento hegemônico
uniformizador, a fim de se construir um discurso crítico em relação à textualidade pós-
colonial. Para fins de análise, foram delimitados para esse estudo, textos do escritor
moçambicano Mia Couto, em especial o conto “O embondeiro que sonhava pássaros”
do livro Cada homem é uma raça, além de textos de suas palestras do livro
Pensatempos que relatam sua experiência enquanto escritor de fronteiras. A reinvenção
da linguagem observada em Mia Couto utiliza-se da ressignificação da palavra
inserindo nela uma pluralidade de sentidos que provocam uma dilatação das
potencialidades virtuais do signo linguístico. O escritor expressa, igualmente, em sua
escrita uma sofisticada forma de dialogar com a tradição da oralidade das línguas
africanas que se veem intertextualizadas em seus contos. Assim, em Mia Couto, as
recombinações linguísticas e semânticas provenientes desse pluralismo cultural se
apresentam em um caleidoscópio de riquezas culturais híbridas.
Reflexão inicial
30 UFJF, Faculdade de Letras, Programa de pós-graduação em Estudos Literários, Rua Tenente Lucas
Drumont, 240, Jardim Natal, 36.083-390 – Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil, e-mail:
cinthia.lopes@ufjf.edu.br.
2021
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
2022
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
2023
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Não há nenhum de nós que seja cidadão de uma só nação. Repartimo-nos por
universos vários. Somos cidadãos da oralidade, mas também da escrita.
Somos urbanos e rurais. Somos da nação da tradição e da modernidade. [...] E
é assim que terá que ser: partilhamos mundos diversos sem que nenhum
desses universos conquiste hegemonia sobre os outros (Couto, 2005:93).
Leite ressalta que logo depois da segunda guerra, com a independência de vários
países colonizados, o termo pós-colonial designava um sentido estritamente
cronológico, mas a partir dos anos de 1970, o termo se ressignificaria e a crítica o
utilizaria como reflexão sobre os efeitos da colonização na cultura. Segundo ela, o
termo pós-colonialismo pode “estender-se como incluindo todas as estratégias
discursivas e performáticas [...] que frustram a visão colonial, [...] implicando um
alargamento do corpus, capaz de incluir outra textualidade que não apenas das
literaturas emergentes” (Leite, 2003:5). Sob esse enfoque o termo englobaria os escritos
da época colonial, provenientes das ex-colônias da Europa com objetivo de analisar as
práticas discursivas nas quais a resistência às ideologias colonialistas, aparentemente,
fosse predominante.
Para Stuart Hall, o termo pós-colonial não se restringe a descrição de uma
determinada sociedade ou época, “ele relê a ‘colonização’ como parte de um processo
global essencialmente transnacional e transcultural – e produz uma reescrita
descentrada, diaspórica ou ‘global’ das grandes narrativas imperiais do passado,
centradas na nação” (Hall, 2013:119). Hall adverte que o termo global não se referiria a
um sentido de totalidade universal, nem poderia ser interpretado como específico a
alguma nação ou sociedade em particular. Essa ressignificação do termo global remete
ao conceito de relação, desenvolvido por Glissant. Hall se identifica, ainda com as
relações transversais e laterais que Paul Gilroy denomina diaspóricas, no sentido em
que se complementam, e, ao mesmo tempo, se deslocam entre os sentidos de local e
global, centro e periferia, através das inter-relações e justaposições culturais, também
observadas no conceito de Atlântico Negro. Sobre o trânsito entre as diversas margens,
Mia Couto reflete: “Um homem é uma ponte ligando as diversas margens” (Couto,
2005:91).
2024
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
2025
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
continente tão rico e tão vasto culturalmente não poderia ser resumido em uma imagem
devido a sua constituição fragmentária e estilhaçada em mil formas de representação:
Este continente é, ao mesmo tempo muitos continentes. Os africanos são um
entrançar de muitos povos. A cultura africana não é uma única, mas uma rede
multicultural em contínua construção. Os teóricos e analistas afligem-se com
esta indefinição. Estão apressados em balizar a africanidade. Habituados ao
retrato fácil, à revelação instantânea do discurso mais ideológico que
científico, eles acabam frustrados. Mas é exatamente nessa indefinição que
pode estar uma das maiores riquezas do continente (Couto, 2005:79).
Por não existir uma identidade pura pré-colonial absoluta a que se possa
retornar, dessas novas textualidades pluralizadas advêm novos campos literários que se
caracterizam pela reinvenção de um entre-lugar entre o passado nostálgico e utópico e a
recuperação das vozes culturais. É um processo de ressignificação, filtragens,
descentramento e reconfigurações que revitalizam a percepção do passado e questionam
os legados históricos e literários apreendidos:
Uma das questões mais permanentes nos estudos críticos africanos no
decorrer das últimas décadas tem a ver com a demonstração das relações que
a literatura africana, escrita em línguas europeias, estabelece com as fontes
indígenas orais. A tendência geral tem sido mostrar como a configuração
especial que a oralidade, ou oratura, institui nos textos literários, leva à
caracterização da especificidade e autonomização destas literaturas em
relação às suas origens coloniais (Leite, 2003:35).
Ao caracterizar as culturas atávicas e compósitas, Abdala Junior observa uma
diferenciação na veiculação das mesmas: “as atávicas foram difundidas sobretudo
através de textos impressos; as compósitas, na oralidade, por meio dos ‘causos’, contos,
mitos e lendas populares” (Abdala Junior, 2002:16). Pautando-se nessa diferença, serão
analisados aspectos da oralidade, recursos intertextuais e hibridismos linguísticos no
conto “O embondeiro que sonhava pássaros” do escritor moçambicano Mia Couto que
representaria apropriações textuais do legado cultural africano no interstício da pós-
colonização.
2026
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
africanos da atualidade. Seu romance Terra sonâmbula (1992) foi considerado um dos
dez melhores livros africanos do século XX. Recebeu vários prémios e é traduzido para
vários países.
O próprio escritor se apresenta:
Sou moçambicano, filho de portugueses, vivi o sistema colonial, combati
pela independência, vivi mudanças radicais do socialismo ao capitalismo, da
revolução à guerra civil. Nasci num tempo de charneira, entre um mundo que
nascia e outro que morria. Entre uma pátria que nunca houve e outra que
ainda está nascendo. Essa condição de um ser de fronteira marcou-me para
sempre. (Couto, 2005:106).
O livro Cada homem é uma raça teve sua primeira edição em 1990 e é
constituído de onze contos nos quais se pode observar, além da sensibilidade poética
das narrações de histórias moçambicanas, uma forte conotação da realidade colonial
vivenciada por aquele povo. O universo mágico dos contos se mescla à denúncia da
violência da colonização resultando em contos de extraordinária prosa poética que
desassossegam as almas acostumadas somente à fantasia da realidade.
Cada conto do livro Cada homem é uma raça vem acompanhado de uma
epígrafe em forma de frase, diálogo ou provérbio. Mia Couto disserta sobre as várias
representações que cabem em cada ser, representando as trocas culturais como
intercâmbios internos da alma que seria destituída da unidade como forma de nação. Em
conformidade com essa ideia, Couto cita na epígrafe do conto “A Rosa caramela” uma
frase que encerra o significado das imbricadas trocas culturais advindas da colonização:
“[...] No arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara” (Couto, 2013:11).
O conto “O embondeiro que sonhava pássaros” apresenta como epígrafe a frase:
“Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada” (Couto, 2013:61). Mafalda Leite
compartilha com Ruth Finnegan a observação do uso de provérbios, que começam,
sublinham ou terminam uma história como forma de resgate da memória e da tradição
de oralidade africana: “O provérbio parece ser uma das formas ideais para preencher o
papel de iniciador, que assume o escritor africano, à maneira do contador de histórias, e
ao mesmo tempo serve-lhe para caracterizar a mundividência dos mais-velhos, em
especial do mundo rural” (Leite, 2003:45-46). Pode ser ainda uma forma de controle
narrativo, ou uma reiteração da história contada, ou ainda, um mote de abertura ou de
posteriores desenvolvimentos desta. Essas observações são atribuídas pela pesquisadora
ao romance Terra Sonâmbula, mas poderiam ser estendidas aos contos de Mia Couto.
2027
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onírica, pois não se encontra ligada nem ao sol e nem a lua, não é solar, nem é a cor da
aurora, representa o vazio entre a noite e o dia, é a cor da alvorada.
Entre sufistas, também se encontra a relação simbólica do branco e do
vermelho. O branco é a cor essencial da Sabedoria, vinda das origens e
vocação do devenir do homem; o vermelho é a cor do ser, mesclado às
obscuridades do mundo e prisioneiro de seus entraves; tal é o homem sobre a
terra” (Chevalier; Gheerbrant, 2003:144).
Tiago procura pelo passarinheiro que tem sua gaita atirada pela janela. Tiago
junta as partes do instrumento como se juntasse os pedaços de sua alma, ferida pelo
sofrimento do amigo e toca uma melodia como se fizesse um embalo até adormecer.
“Acordou num chilreino. Os pássaros! Mais de infinitos, cobriam toda a esquadra. Nem
o mundo, em seu universal tamanho, era suficiente poleiro”. (Couto, 2013:70).
O efeito das justaposições e aglutinações de palavras, em Mia Couto, a exemplo
de “sonolentidão” e “chilreino” é descrito por Mafalda Leite como naturalização pelo
“modo de enquadrar valores específicos da cultura oral e tradicional moçambicana no
contexto atual de modernização e da escrita” (Leite, 2003:39), ou seja, convoca o leitor
a assumir o papel do ouvinte do contador de histórias. Ela se utiliza, ainda, de um termo
de um nigeriano Ato Quayson para explicar essa relação entre a literatura africana e o
contexto da tradição de oralidade: interdiscursividade – o texto literário não seria visto
como um espelho refletor de elementos culturais, mas sim, um campo prismático de
interações entre discursos culturais e literários.
O estudo dos gêneros, enquanto processo de representação da oratura
africana nos textos literários, tem dedicado especial atenção à caracterização
de uma textualidade formal manifesta, que se observa pela detecção de
técnicas narrativas características, como o uso da máxima, do conto, de
lendas e de mitos, pela presença de certas expressões, como as fórmulas, ou
ainda através de declarações de intenção nas introduções, dedicatórias títulos
ou subtítulos (Leite, 2003:38).
Além dos neologismos, os contos apresentam palavras da cultura africana
incorporadas ao texto, como os termos “muska” e “mezungueiro”. Para tais termos é
oferecido um glossário ao final do livro. Outras palavras ampliam sua significação pela
alteração sufixal alcançando elevado valor poético. É o caso de “barulhosos” e
“arvorejado”.
A linguagem metafórica se revela em expressões solares: “ correram-se as
cortinas, as casas fecharam suas pálpebras” (Couto, 2013:66).
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2032
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2034
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próprias de dialogar com as tradições, seja pela apropriação de termos da oralidade, seja
pela recriação sintática e lexical e “através de recombinações linguísticas, provenientes,
por vezes, mas nem sempre, de mais do que uma língua, veja-se o caso de Mia Couto”
(Leite, 2003:15).
Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abdala Junior, Benjamin. 2002. Fronteira múltiplas, identidades plurais. São Paulo:
Senac.
Cabaço, José Luiz; Chaves, Rita. 2004. Frantz Fanon: Colonialismo, violência e
identidade cultural. In: Abdala Junior, Benjamim (Org.). Margens da cultura:
mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo. p. 67-86.
2035
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
Couto, Mia. 2013. Cada homem é uma raça. São Paulo: Companhia das Letras.
2036
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 55 - Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias, 2037-2050
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p2037
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
A presente comunicação visa apresentar uma análise a nível conversacional das
estratégias interativas verbais empregadas no tecido narrativo das obras Contos da
Montanha, Novos Contos da Montanha e Bichos do autor trasmontano Miguel Torga
(1907-1995). Através de uma específica seleção de diálogos, será apresentado o estudo
conversacional dos estratagemas comunicativos que os interlocutores põem em prática
durante o fenómeno discursivo, dando origem a uma real ação social que permite
estabelecer relações interpessoais graças ao emprego de normas de polidez linguística.
Sendo os diálogos circunscritos ao contexto situacional/social da região transmontana
do norte de Portugal, o objetivo da comunicação consiste em descrever como as
variantes tanto diatópicas como diastráticas, empregadas pelos interatantes do
respectivo ambiente rural, representam efetivas fronteiras linguísticas entre o norte e o
restante território continental português. De facto, o assim chamado painel tosco e
montanhês representa um núcleo territorial caraterizado, a nível tanto linguístico como
conversacional, pelo emprego de determinados elementos lexicais e estruturas coloquais
que são típicas das camadas sociais mais baixas da paisagem de referência e que,
inevitavelmente, marcam uma profunda fronteira linguística tanto diatópica como
diastrática entre o norte e as outras regiões portuguesas.
1. Introdução
31 Maria Antonietta Rossi, Docente integrado de Língua e Tradução Portuguesa I e II junto da Libera
Università degli Studi Maria SS. Assunta de Roma (LUMSA) e de Língua e Tradução Portuguesa e
Brasileira II e III junto da Università degli Studi Internazionali de Roma (UNINT). Itália; Correio
eletrónico: rossi-maria-anto@libero.it
2037
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2038
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33 Para um estudo detalhado sobre as formas de tratamento utilizadas por Miguel Torga na obra Contos
da Montanha cfr. Maria Aldina Marques, Formas de tratamento e construção da relação interpessoal em
Contos da Montanha de Miguel Torga, in Revista Galega de Filoloxía, ISSN 1576-2661, 2010, 11: 61-
78. Disponível em: http://ruc.udc.es/bitstream/2183/8389/1/RGF%2011%20art%202.pdf. Acesso em: 04
de Janeiro de 2016.
2039
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como a língua reflete a cultura do povo que a utiliza como meio de comunicação e as
respetivas estruturas sociais: de facto, já o filósofo Wilhelm von Humboldt (1767-1835)
afirmava que havia uma forte ligação entre língua e cultura, conceito posteriormente
desenvolvido e aprofundado pelos especialistas do setor da Linguística Cognitiva, da
Etnolinguística e da Antropologia Linguística. Até o próprio Ferdinand de Saussure
(1857-1913) (Saussure, 1916) afirmava que a associação entre o significado e o
significante de um signo linguístico é completamente arbitrária, uma vez que cada
conceito é expresso com um sinal gráfico e acústico diferente conforme as várias
línguas exixtentes, hipótese que antecipou portanto a teoria da forte relação que existe
entre as línguas e as respetivas culturas.
As mais recentes abordagens de análise linguística permitem realizar uma
tipologia de investigação conversacional aplicável também ao género textual do
discurso literário que, em relação às interações dialogais autênticas (principal objeto de
estudo da análise conversacional e comunicativa), é criado de propósito para a diegese
narrativa. Os diálogos escolhidos, de facto, mostrarão que se baseiam na pragmática da
linguagem em uso na época sócio-cultural de Miguel Torga e no painel tosco e
montanhês onde se desenrola toda a fição narrativa.
A análise visa ressaltar as fronteiras linguísticas do corpus escolhido a nível
tanto diatópico como diastrático, tendo em conta duas vertentes paralelas: a esfera
lexical que marca geograficamente o fenómeno comunicativo e os atos linguísticos
formulados entre pares para atingir determinados fins conversacionais.
2040
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O leque lexical escolhido pelo autor, por conseguinte, representa una real
variante linguística diátopica, uma vez que conota a nível regional a fala interacional
dos personagens das obras analisadas.
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que pertencem ao mesmo nível social, uma vez que não há uma distância diastrática
entre os participantes do rumo discursivo. Além disso, podemos ver no exemplo n. 3 um
evidente caso de impolidez linguística, uma vez que o interlocutor estrutura o
enunciado direto de maneira a ofender o destinatário ameaçando, desta maneira, a
respetiva «imagem» ou «face» positiva, circunstância que mostra como na linguagem
coloquial não sempre os interatantes respeitam o uso da cortesia conversacional dado
que os interlocutores pertencem à mesma camada social.
Além disso, o autor utiliza também muitos idiomatismos relacionados com o
ambiente rural das personagens protagonistas e que caraterizam ainda mais as variantes
linguísticas tanto diatópicas como diastráticas nas próprias obras em prosa. Os
exemplos extraídos dos textos analisados são os seguintes:
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bakhtin, Mikhail. 1986. Speech Genres and Other Late Essays. Austin, Texas:
University of Texas Press.
Bilmes, Jack. 1988. Category and rule in Conversation Analysis. IPrA Papers in
Pragmatics 2, 1-2, pp. 25-59.
Goffman, Erving, 1959. The Presentation of Self in Everyday Life. Garden City, New
York: Doubleday.
Grice, Paul. 1975. Logic and conversation. In Cole, Peter, Morgan, Jerry, Syntax and
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2049
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Torga, Miguel. 1955. Contos da montanha. 2ª ed. Rio de Janeiro: Irmãos Pangetti.
Tunnen, Deborah. 1996. Gender and Discourse. Oxford: Oxford University Press.
2050
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 55 - Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias, 2051-2062
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p2051
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RESUMO
A literatura oral no Brasil confluiu para o desenvolvimento da nossa diversidade
cultural. Porém, ainda hoje encontramos uma visão vaga e equivocada quando a matéria
se refere à produção oral dos indígenas. Sabendo das dificuldades de tal abordagem, o
recorte que fizemos acerca da temática se restringe ao lugar que ocupa a literatura oral,
considerada por alguns críticos literatura “marginal” quando comparada à literatura
“oficial”. Diante disto, pretendemos compartilhar o mundo indígena por meio da
literatura, a fim de desconstruir a imagem jocosa que lhes são conferidas. Por isso,
partimos dos Estudos Culturais para atentarmos à potencialidade que essas narrativas
fornecem à cultura de uma sociedade, ponderando que vivemos num país plural. Nesse
sentido, nos valemos da ideia de que as discussões somam-se àquelas que, no campo
dos estudos da literatura, valorizam as narrativas orais indígenas como expressão
literária e identitária de um grupo social. Mesmo não fazendo parte do cânone é um
gênero provocador na literatura contemporânea, uma vez que os ensinamentos estão
impressos nas narrativas orais, e são consideradas por aqueles que relatam um espaço
para manifestação das práticas culturais. Logo, a nossa intenção é contribuir para uma
reflexão a respeito da literatura indígena no cenário acadêmico, com o propósito de que
a cultura e as narrativas dos povos indígenas possam ser reconhecidas e consideradas no
contexto das relações étnico-culturais e literárias ainda bastante desiguais no Brasil.
1. Introdução
34 Universidade Estadual de Roraima. Rua Moisés Teixeira Hausen, 1761, Cep. 69.313.582, Boa Vista,
Roraima, Brasil. E-mail: georginapinho@hotmail.com
35 Universidade Estadual de Roraima. Rua Moisés Teixeira Hausen, 1761, Cep. 69.313.582, Boa Vista,
Roraima, Brasil. E-mail: mdmvale72@gmail.com
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mesmo viés Bend (2003) realça que as literaturas minoritárias estão voltadas para a
estabilização de um desenho identitário. Complementando essa ideia Castells (2010: 24)
comenta que “a construção da identidade sempre ocorre em um contexto marcado por
relações de poder”. Kleiman (1998: 275) aponta ainda que a interação “ocupa um lugar
central na explicação do constructo da identidade, e seu conceito implicado, o da
alteridade, da diferença”. É nesse sentido que a construção da identidade indica uma
relação formada com o outro, marcada pela diversidade e diferença cultural.
Os escritores indígenas procuram validar um novo olhar sobre a identidade
cultural dos povos indígenas manifestados na cultura brasileira. E o modo de
demonstrar essa visão é por meio da literatura, que está permeada de símbolos, do
mítico e do real. Todavia, muitas vezes o pensamento mítico é norteado pelo padrão do
outro. A perspectiva indígena de Daniel Munduruku abre espaço para abrigar uma
diversidade de existências, como por exemplo, a do menino Kaxi que tem uma infância
feliz, e descreve sobre o início da vida adulta, apresentando a cultura indígena a partir
do olhar indígena.
Em entrevistas concedida a Empresa Brasil de Comunicações S/A (2010),
Daniel Munduruku comenta que existe uma literatura escrita na língua dos povos
indígenas, porém fica mais restrita às comunidades, considerando o número resumido
de leitores. Além disso, explicou que existem escritores indígenas produzindo livros
para serem adotados nas escolas brasileiras, em virtude da Lei nº. 11. 645/2008, que
estabelece obrigatoriedade de temáticas indígenas nas escolas brasileiras. Sobre essa
discussão Olívio Jekupé (2013) realçou a importância do conhecimento da lei e dos
escritores indígenas, mas demonstrou uma preocupação pelo fato de que os professores
não estão preparados o suficiente para trabalhar a temática indígena na sala de aula, por
não conhecer de fato a história dos índios.
“os professores vão ter que falar sobre nós. O que eles vão falar? Se não
têm assunto, eles vão falar um monte de besteiras sobre a gente. Então,
por isso, que é importante o surgimento dos escritores indígenas”
(Entrevista: 2013).
A lei colaborou de forma significativa para impulsionar a produção e divulgação
de literaturas indígenas no ambiente escolar. Discutir esse espaço de interação é
reconhecer a identidade cultural dos indígenas. Olívio Jekupé (2013) comenta que os
conhecimentos e as tecnologias dos brancos é uma maneira de proteger a cultura
indígena.
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“Quando não tinha nada disso, eles falavam que o índio é atrasado.
Quando a gente começa a pegar tudo isso, eles falam que o índio é
aculturado, que está perdendo a cultura. Não, não está perdendo. Essas
coisas que a gente usa hoje são uma forma de defesa”. (Entrevista: 2013)
Observamos a tensão na fala do escritor em relação ao pensamento do outro, no
caso o homem “branco”, devido à imagem estereotipada perpassada pela sociedade
dominante, de que o índio um povo “sem cultura e sem civilização”. Essa perspectiva
ainda recorre na atualidade, porque as academias só reconhecem a produção literária
indígena se esta for “baseada unicamente [e obrigatoriamente] na existência do livro
[‘branco’] tal como o conhecemos na atualidade” (Graúna apud, Capriles, 1987: 5).
Contudo, é um pensamento que vem sendo desconstruído gradativamente, porque a
cultura, as línguas e as histórias indígenas estão sendo reveladas como configuração de
um processo que refletiu na construção e na formação da identidade brasileira.
Logo, sabemos que acultura decorre de uma multiplicidade de práticas políticas,
econômicas, sociais e ideológicas, que vão sendo modificadas ao longo do tempo e nos
espaços, conforme as interações e construções sociais que ocorrem no âmbito das
relações internas e externas aos grupos indígenas. Diante disso, será que a cultura
indígena estaria ameaçada pela modernização? Compreendemos que não, porque a
cultura indígena, assim como as outras culturas, é constantemente recriada, todavia o
importante é que os povos indígenas reconheçam e valorizem os saberes culturais, de
modo que a modernização não comprometa o contexto de produção e de transmissão
das práticas culturais.
Os valores surgidos na contemporaneidade e as expectativas indígenas em
relação ao futuro parecem entrar em dilema com os valores tradicionais. Esse processo
pode ser entendido como um procedimento de transformação cultural a que estão
sujeitas todas as sociedades. Mas, vale lembrar que a ausência da escrita no contexto da
sociedade indígena não foi pretexto para que as tradições apagassem, pelo contrário
foram repassadas de geração a geração. Nesse caso, a escrita e a oralidade se
complementam para fortalecer e perpetuar as origens culturais dos povos indígenas.
Esse ponto é interessante para recolocarmos que a cultura de uma sociedade ou
de um grupo pode ser considerada inconstante frente às ações no mundo, não como um
conjunto de práticas coerentes, uniformes, imutáveis, observando que, com o grupo
indígena não é diferente.
2058
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36 A história foi relata pelo Sr. Severino Barbosa, morador mais antigo da Comunidade São Jorge. Vale
lembrar que algumas informações contidas nesse trabalho é um recorte da dissertação de mestrado
intitulado “ Filigranas de vozes: performance do narrador e o jogo de significados nas narrativas orais
2059
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2060
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Le Goff, Jacques (2010). História e Memória. Trad. Bernardo Leitão et al. Campinas-
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2061
Simpósio 55 – Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias
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2062
De volta ao futuro da língua portuguesa.
Atas do 96,0(/36Lmpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa
Simpósio 55 - Construção e desconstrução de fronteiras geo-linguística, sócio-culturais e literárias, 2063-2076
ISBN 978-88-8305-127-2
DOI 10.1285/i9788883051272p2063
http://siba-ese.unisalento.it, © 2017 Università del Salento
RESUMO
Nas literaturas africanas de língua portuguesa Caliban foi adquirindo contornos de um
mito fundador, símbolo da libertação, escapando ao domínio de Próspero que lhe
ensinou a sua língua para o escravizar. A libertação dos vínculos criados pela
colonização e a busca de uma identidade matricial africana marcou os intelectuais e
escritores africanos nas ex-colónias portuguesas. Embora dominando a língua do
colonizador continuavam agrilhoados pelas leis e censura coloniais. Após a Guerra de
39/45, na sequência do Movimento da Negritude, Caliban vai transpondo a linha de
fronteira e progride no território “inimigo”: contesta a exploração económica, o
racismo, a falta de liberdade. Emergem na ficção narrativa e na poesia os valores da
África Negra, o orgulho da raça e da sua ancestralidade, ideias igualmente veiculadas
pelos jovens ultramarinos que viviam em Portugal na Casa dos Estudantes do Império e
expressas no Boletim Mensagem. Nos anos 60, em Angola Luandino Vieira publica
Luuanda, onde os habitantes dos musseques de Luanda rompem a fronteira do asfalto e
fazem ouvir a sua voz. Luís Bernardo Honwana dá a palavra aos camponeses das
machambas moçambicanas em Nós Matámos o Cão Tinhoso. As balizas cairão com as
independências, um novo ciclo inicia-se. Pouco a pouco, os temas e linguagem revelam
a desconstrução da fronteira colonialista, questionando o papel do indivíduo na
sociedade, clarificando a procura da identidade individual e nacional.