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Penso
Afroperspectivas filosóficas
para pensar o samba
Sambo,
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Penso
Afroperspectivas filosóficas
para pensar o samba
Organização:
Wallace Lopes Silva
Coordenação:
Renato Noguera
Marcelo Moraes
Sylvia Arcuri
Diretoria Executiva
Myriam Lewin
Coordenadoria de Editoração
Raquel Fabio
4
SUMÁRIO
Introdução:
Concentrando e esquentando os tamborins......... 11
Praças Negras
Territórios, Rizomas e Multiplicidade nas
margens da Pequena de África de Tia Ciata
Wallace Lopes e Renato Noguera........................................19
Roda de samba
“Mandala” que (en)canta o samba:
um território de anunciação
Sylvia Helena de Carvalho Arcuri........................................85
Bezerra da Silva,
a máquina de guerra do samba
Felipe Ribeiro Siqueira......................................................125
5
A força de Leci Brandão
Marcelo José Derzi Moraes................................................137
6
Notas sobre os autores
7
Marcelo Moraes é professor de Filosofia da Rede Pública do Estado do Rio
de Janeiro. Doutorando em Filosofia pelo PPGFIL da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), Bacharel e Licenciando em Filosofia pela UERJ. É colab-
orador do Laboratório de Licenciatura e Pesquisa sobre Filosofia (LLPefil) da
UERJ. Suas áreas de atuação são: ética, política, alteridade, diferença, descon-
strução. Nasceu na Tijuca, morou na Ilha do Governador, em Realengo, foi cria-
do em Vila Isabel. Ogan de Oxóssi, rodou desde cedo as quadras da Mangueira,
da Vila Isabel e do Salgueiro. Atravessando a zona norte para as rodas de samba
no terreiro de seu babalorixá Antonio Carlos de Oxóssi em Marechal Hermes,
e os sambas no Cacique de Ramos, Portela, Abraxas, Arranco do Engenho de
Dentro, buraco quente da Mangueira e buraco do Galo. Em casa, ao lado de
seu pai, Mario Octavio Moraes, cresceu ouvindo Leci Brandão e os clássicos
do samba.
8
no Sul do país. Integra o corpo redatorial da revista eletrônica Satori Livraria,
onde escreve mensalmente artigos sobre filosofia, história da arte, filosofia da
arte, estética e história da cultura. Sua ligação com o samba se faz presente
desde a infância. Filipi é neto de João Gradim e sobrinho-neto de Tia Eulália,
Sebastião Molequinho e Tia Maria, fundadores do GRES Império Serrano e do
Jongo da Serrinha.
9
ser voluntário no CIEP Doutor Magarinos Torres Filho (localizado na área do
Morro do Borel, na Tijuca, zona norte do Rio). Nascido nessa mesma cidade,
foi criado na Tijuca, mais precisamente nas adjacências do Morro da Formiga
(berço da tradicional escola de samba Império da Tijuca) onde aprendeu a
apreciar samba por influência de seus familiares e dos moradores do local; no
mesmo bairro, morou durante três anos em uma rua de acesso ao morro do
Salgueiro aprendendo a admirar a famosa escola de samba acadêmicos do Sal-
gueiro. Mergulhado nesse ambiente cultural, tornou-se fã de sambistas como
Bezerra da Silva, Jovelina Pérola Negra, Moreira da Silva, Almir Guineto, Pau-
linho da Viola, Martinho da Vila, Candeia, João Nogueira e muitos outros.
10
Introdução
concentrando e esquentando
os tamborins!
11
argumentos dançarem, tocar conceitos, abrir alas para que as ideias
percorram a avenida com seus enredos e alegorias. O que pretendemos
com este livro é fazer partido alto; trabalhar como as carnavalescas e
os carnavalescos das escolas de samba, encantando o povo na arte de
contar uma história ricamente ilustrada com fantasias; criar e solidifi-
car rodas de filosofia – encontros em que as relações entre o samba e a
filosofia são estabelecidas insistentemente.
Diante desse quadro, o nosso recorte é intercultural, interdisci-
plinar, com caráter antirracista e em favor da equidade étnico-racial,
configurando um panorama fértil para florescimento das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004). O sul1 deste
trabalho está em perfeita harmonia com a proposta das Diretrizes pu-
blicadas em 2004, assim como as regulamentações do Plano Nacional
de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (2008), “O ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito
próprio de ser, viver e pensar manifestado tanto no dia a dia, quan-
to em celebrações como congadas, moçambiques, ensaios, maraca-
tus, rodas de samba, entre outras” (BRASIL, 2004, p. 22) 2. No campo
da filosofia é recomendado o “estudo da filosofia tradicional africana e
de contribuições de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade”
(BRASIL, 2004, p. 24)3. Nosso trabalho tem relação direta com esses
aspectos, incluindo leituras multiculturais e interculturais da filosofia
ocidental e as proposições antirracistas advindas das escolas filosóficas
europeias e estadunidenses.
Além de trabalhos de filósofas e filósofos ocidentais conhecidos
como Nietzsche e Deleuze, vamos transitar num campo multidiscipli-
nar que envolvem pensadores de várias áreas, inclusive filósofos (as)
africanos (as) e da América latina. Nomes como Kabengele Munanga,
1 Nós usamos os termos sul e sulear no lugar de norte e nortear por razões políticas e epistemológicas.
O termo foi usado pelo educar brasileiro Paulo Freire. Os estudos sobre colonialidade têm feito um
debate muito profícuo sobre os usos políticos do norte como metáfora da orientação adequada para
a produção de conhecimento, o que aparece, por exemplo, na bússola e nas cartografias do globo
que insistem em colocar o hemisfério norte na parte de cima. O que está longe de ser uma imposição
cartográfica; mas, tão somente uma escolha geopolítica com muitos desdobramentos no campo da
exploração e dominação simbólica.
2 Grifo nosso.
3 Grifos nossos.
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Abdias Nascimento, Muniz Sodré, Ana Célia da Silva, Gislene Apa-
recida dos Santos, Lélia Gonzalez, Mogobe Ramose, Dismas Masolo,
Marimba Ani, Molefi Asante, Ama Mazama, Santiago Castro-Gomez,
entre outros (as). O mais importante vai ser trazer à luz, filósofas
africanas, filósofos africanos, filósofas (os) afrodiaspóricas (os) ou
afrodescendentes que na maioria do caso são desconhecidas (os) do
grande público, seja por parte de pessoas “leigas” ou com formação
acadêmica.
A filósofa indiana Gayatri Spivak que nasceu em 1942 e trabalha
na Universidade de Columbia e tem um belo texto que dá a dimensão
de nossas inquietações, Pode o subalterno falar? (1988). Ela faz uso das
leituras de autores como Foucault, Deleuze e Derrida. Mas, critica os
dois primeiros pela ausência de envolvimento político, denunciando
que a violência epistêmica do ocidente em relação aos “outros” não
é problematizada devidamente. Derrida é um filósofo africano, um
judeu-argelino de nacionalidade francesa, porém, visto por muito tem-
po como um estrangeiro na academia francesa; mas, politicamente se
ocupa mais, de algum modo, da desconstrução do status quo ocidental.
Não quer dizer que Foucault e Deleuze não o façam; afinal, são dois
grandes filósofos que tecem muitas das parcerias deste livro; mas, em
certa medida, permanecem alinhados ao logos grego. Spivak questiona
o silêncio imposto aos outros pela ordem eurocêntrica. Ora, as mulhe-
res são outros, incluindo em menor proporção as brancas em relação às
mulheres não brancas, pouco falam. Os homens não brancos são outros
que pouco falam. Ainda que mulheres e homens não brancos falem,
dificilmente são ouvidos, e quando são, recebem críticas mais duras,
muitas vezes alegando que a sua razão não é universal.
Por fim, as leituras filosóficas permanecem privilegiando auto-
res brancos do sexo masculino. Os departamentos de filosofia, assim
como as aulas de filosofia no ensino médio tem um dream team que se
mantém intacto e não aceita substituições. Ora, não estamos queren-
do abandonar o legado ocidental. Porém, deixar que a filosofia fique
restrita a esse universo é muito empobrecedor. Outro aspecto impor-
tante é a crítica à “universalidade”, conceitos como universo e universal
merecem especial atenção. O filósofo sul-africano Mogobe Ramose,
nascido em 1945, professor da Universidade da África do Sul, esmiú-
ça o conceito de pluriversalidade sem se opor à universalidade; mas,
a inclui como um conceito de menor extensão dentro da perspectiva
pluriversal. Para Ramose (2011), universal é a redução das alternativas
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(versus) a uma possibilidade. Enquanto, pluriverso é o reconhecimento
de várias possibilidades, de muitas perspectivas. A pluriversalidade é
o reconhecimento das diferenças, da diversalidade radical, do mun-
do como um vasto conjunto de interpretações e perspectivas, siste-
mas e teorias. Tal como, algumas leituras do cosmos como multiverso
por algumas pessoas do campo da física quântica no lugar de universo.
Dentro das Ciências Humanas e Sociais, a pluriversalidade é o reco-
nhecimento de muitos sujeitos, diversas culturas, de quesitos como
gênero, cor/etnia/raça, sexualidade, geopolítica, colonialidade etc. na
produção de conhecimento.
Sem dúvida, trazer o samba para os “laboratórios” das investi-
gações filosóficas como objeto pode ser muito enriquecedor e isso não
pode ser feito sem que “subalternas (os)” falem, sem considerarmos
que a pluriversalidade é mais rica como “paradigma” ao invés da uni-
versalidade e que o pensamento deve ser encarado como polirracio-
nal como nos diz o filósofo ugandense Dismas Masolo. Diante desse
quadro, nós vamos fazer um passeio por nomes do samba como Leci
Brandão, Jovelina Pérola Negra, Dona Ivone Lara, Bezerra da Silva,
Zeca Pagodinho e Almir Guineto. A ideia é promover afroperspecti-
vas filosóficas. Ou seja, exercícios perspectivistas que levam em conta
os protagonismos africanos e afrodiaspóricos ou ainda, o afro no seu
significado de restauração, o sentido de estimulante da saúde, elixir
para vitalidade. Para enegrecer4 o samba é preciso afroperspectivizá-lo
filosoficamente. A palavra “enegrecer” tem um sentido muito positivo,
usando o radical níger do termo ngr, nós temos o significado de res-
tauração, o poder regenerativo “da água em trazer vida à terra árida”
(FORD, 1999, p. 38). Enegrecer quer dizer elucidar, revitalizar, recu-
perar o sentido. Com efeito, enegrecer os mistérios do samba à luz da
filosofia precisa ser feito por meio de conceitos muito peculiares. O
que pode, em termos deleuzeanos, ser cumprido pelo exercício cria-
tivo de produzir conceitos para problemas. Com Nietzsche podemos
fazer uma genealogia do samba. Com Dismas Masolo é possível pensar
modelos de racionalidade em que o samba pode ser entendido como
um conjunto de enunciados filosóficos presentes na musicalidade tal
como na letra.
4 O conceito de enegrecer é usado no lugar da ideia de esclarecimento. Porque nós chamamos atenção
para fontes etimológicas de línguas bantufonas e línguas de raízes nilóticas em que negro significa
revitalização.
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A respeito do título do nosso livro, sambo logo penso, nossa pre-
tensão não é produzir uma axiomática, uma sentença verdadeira e co-
erente, clara e distinta, assegurada pelo rigor lógico do princípio de
identidade e de não contradição. Apesar da aparente formulação se-
mântica se pretender a isso. Ora, sabemos que a contradição exprime a
força de um desejo, é uma força propulsora. A estrutura seduz quando
não mais se tem a força, nesse sentido, a expressão produzida como
título desse livro, é uma expressão guiada pelas forças e pelos desejos.
Deste modo, pretendemos um possível golpe na metafísica, na filosofia
dita ocidental, um golpe na história e na tradição filosófica que sempre
manteve o corpo, o desejo e a paixão num plano secundário e inferior.
O título do nosso trabalho exprime, por exemplo, a força e uma
tentativa de ataque à estrutura clássica da filosofia. Assim, pretende-
mos operar uma certa inversão hierárquica, desorganizar o corpo es-
trutural e organizado da filosofia. Além de abrir a partir de um deslo-
camento, uma nova possibilidade de se pensar a filosofia ou de deixar
o pensamento filosófico acontecer.
Acreditamos poder promover esse abalo no momento em que
invertemos os elementos expostos na estrutura, ou seja, se antes o
corpo, o samba, a carne, a terra, a poesia, o mito ocupavam um lugar
secundário na hierarquia, sendo rebaixados, recalcados e reprimidos
pelo pensamento racional, pela ideia, pela alma ou pela razão, agora
podemos pensar essa hierarquia desorganizada, desorientada e sem
segurança. Invertemos os valores para agora acabar com a hierarquia
e promover uma horizontalidade dos elementos em questão. Assim,
todos elementos acabam por não possuírem valores que excluem ou
diminuem o outro. Todos passam a ter uma relação de suplemento e
de agenciamento.
Portanto, o samba deixa de ser e de estar preso simplesmente e
somente a uma história ou a um lugar definido, com uma origem de-
terminada, não se reduzindo mais a uma representação cultural, uma
cultura artística e musical de segundo plano que expressaria somente a
alegria e tristeza de um povo, um tipo de música comprometida com
os valores do corpo, da carne e da paixão. Para o grupo, o samba é tudo
isso e mais. Deste modo, sambar é pensar, samba é pensamento. E o
pensamento samba.
Nesse sentido, o deslocamento se dá no momento em que consi-
deramos os afetos e as forças produzidas pelo samba como modo ope-
rante, de estratégias e meios de se produzir pensamento. Em outras pa-
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lavras, para o nosso grupo, afeto, paixão, força, corpo e pensamento são
elementos fundamentais, se colocam como nosso imperativo categórico.
Liberar o samba a partir da filosofia, retirando-o de um ponto
fixo de origem, pensando fora de um historicismo clássico, deslocan-
do-o para o pensamento e para a filosofia, pensando a partir das forças,
nosso projeto está alinhado com as perspectivas da escola de espaço-
logia, que procura pensar a partir de estratégias desconstrutoras, de
modo rizomático.
Se ao longo da história da filosofia, da filosofia ocidental, se re-
primiu e excluiu do campo do pensamento o samba, a cultura negra, o
corpo, a carne, a terra e o sangue, esse livro seguindo numa linha afro-
perspectivista, não se preocupa se por vezes operar ao mesmo tempo
com centrismos ou com deslocamentos. O que está em jogo é trazer
para o campo de batalha, para o pensamento, o que ficou excluído por
séculos: o pensamento negro. Se por vezes caímos num centrismo
ou numa exaltação daquilo que estava rebaixado é porque por muitos
séculos o subalterno não pode falar e para que se faça justiça é preciso
que o processo de inversão na hierarquia não passe tão depressa.
Apesar da nossa preocupação ser com um pensamento que re-
flita na prática onde não haja mais hierarquia, nossa proposta é que o
samba não fique rebaixado diante das outras músicas, como por exem-
plo, a música clássica, como também, que o corpo não seja inferior a
alma, que a razão não se sobreponha ao mito e que o homem, o bran-
co, o hetero, europeu, ou seja, o pensamento eurofalogocentrismo,
não seja o único modo de fazer filosofia. E que, portanto, o subalterno
posso falar.
Não pretendemos e não queremos destruir a filosofia, a metafí-
sica, sabemos que é quase impossível de um golpe só, destruir ideias
amadurecidas durante tantos séculos. A metafísica constituiu um sis-
tema de defesa exemplar contra as ameaças de fora. Portanto, nosso
trabalho é apenas uma tentativa e pensar a diferença, de conseguir
respirar dentro dessa estrutura sufocante chamada de filosofia.
Uma das questões-chave que atravessa o nosso trabalho é a
circulação de uma filosofia brasileira, de uma filosofia negra, de uma
filosofia afrodiaspórica, de uma filosofia do samba. Ou ainda, uma
filosofia sambista. Para isso, precisaremos algumas vezes mergulhar
na polissemia da “filosofia” sem querer esgotar ou nos estendermos
nas especulações acerca do sentido da filosofia. Mas, ficando com a
formulação que funciona como um conceito guarda-chuva. Filosofia
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afroperspectivista ou afroperspectivas filosóficas é uma atividade de
pensamento que reivindica a pluriversalidade da filosofia, o seu caráter
intercultural e pluralista, a necessidade de pensarmos as cartografias
políticas da produção e visibilidade das diversas filosofias que existem,
principalmente as que têm sido silenciadas. Por outro lado, a filoso-
fia afroperspectivista pretende trazer temas como civilizações antigas
como Kemet (Egípcia), Maia, Asteca, Inca, Iorubá, Fon, Senegâmbia na
antiguidade, entre outras, a cultura Batwa, o pluriverso bantufono, o
pluriverso guarani, a capoeira, o samba, o jongo, o maracatu, o frevo,
o futebol, o candomblé, a umbanda, a malandragem, o antirracismo,
o antissexismo, a discriminação positiva e afins como intercessores.
Ora, Deleuze (1988) nos diz que os intercessores são todos os en-
contros que fazem com que o pensamento saia de sua inércia. Neste
registro, a filosofia afroperspectivista vai se ater a pensar o ser e o espaço,
pensar a futuridade, pensar “personagens conceituais melanodérmicas
(...) criar conceitos afroperspectivistas” (NOGUERA, 2011, p. 3)
Os personagens conceituais melanodérmicos são diversos, como
por exemplo: o griot, a mãe de santo, o pai de santo, o (a) angoleiro
(a), a (o) feiticeira (o), a (o) bamba, o (a) jongueiro (a), o zé malan-
dro, o vagabundo, orixás (Exu, Ogum,Oxóssi, Oxum, Iemanjá, Oxalá
etc.) inquices (Ingira, Inkosi, Mutacalambô, Gongobira etc.), voduns
(Dambirá, Sapatá, Heviossô etc). Entre os conceitos afroperspectivis-
tas, cito alguns: denegrir, vadiagem, drible, mandinga, enegrecimento,
roda, cabeça feita, corpo fechado etc. Esses conceitos dizem respeito
a muitos problemas. Os problemas são de várias ordens e clivagens,
tais como: (a) Por que o Ocidente é o berço da filosofia?, (b) O que
uma filosofia incorporada e dançarina tem a dizer para uma proposta de
educação que se orienta a partir de uma desvalorização do corpo?, (c)
Como conceber o “direito” de uma filosofia afroperspectivista, se os
cânones seriam estrangeiros? (NOGUERA, 2011, p. 4)
A agenda filosófica afroperspectivista tem no samba uma par-
ceria muito cara (como se fossem duas comadres). Porque o samba é
um exercício de resistência negra. A história do samba brasileiro foi a
reunião de mulheres e homens que pensavam e criavam condições de
intervenção a partir da música cantada, dançada em eventos que pri-
mavam pela fartura de comidas e bebidas. Neste sentido, uma filosofia
(afropersperctivista) do samba só pode ser escrita como um exercício
de resistência, um exercício de fartura de povos que cultivam ideias
e criam conceitos em ambientes festivos. O espaço do debate é sem-
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pre muito sério, muito hospitaleiro, com belas iguarias da culinária
afro-brasileira e bebidas de vários tipos, as pessoas cantam, dançam e
festejam. Pois bem, é sobre esse território que a filosofia afroperspec-
tivista vai se debruçar. O modo de “escrever” leva em considerações
fontes que não são grafocêntricas. A oralitura é levada em conside-
ração quando se estuda uma filosofia (afroperspectivista) do samba.
Vale mencionar de maneira genérica que, oralitura é o conjunto de
obras registradas e transmitidas oralmente, tal como aponta o linguis-
ta ugandense Pio Zirimu. Com efeito, vamos trabalhar com oralitura,
com as prosas de bambas. E, faremos uma roda de filosofia em que os
versos servem para criar argumentos e conceitos pouco usuais que fa-
zem da encruzilhada, considerando que a “cultura negra é uma cultura
das encruzilhadas” (MARTINS, 1997, p. 26) a rota em que passam
conceitos de uma filosofia que tem gênero e estilo bem distintos dos
que estamos acostumados a ver circular nos departamentos de filoso-
fia, nas universidades, nas escolas e nos manuais que são usadas para
ensinar filosofia. Porque a filosofia afroperspectivista brota de territó-
rios epistêmicos interculturais, africanos, afrodiaspóricos e, portanto,
não se filia à ideia de que a filosofia seja invenção grega. O que a tor-
na capaz de auscultar partideiros, passistas, sambistas, compositores,
velha guardas como fontes legítimas de exercício filosófico. Por isso,
começamos esquentando os tamborins! Na composição de Monsueto e
Arnaldo Passos ouvimos: “para quê rimar amor e dor”. Ou seja, não se
trata de clichês. E com Candeia se ouve Filosofia do samba: “Para cantar
samba não preciso de razão/Porque a razão está sempre com os dois
lados”. Ou seja, não se trata de razão, de universalidade; mas, de algo
que é de outra ordem. Porque se “mudo é quem só se comunica com
palavras”. As camadas de racionalidade que o samba faz desabrochar
podem ser maravilhosas fontes para um outro modo de filosofar. Um
modo de filosofar em que “sambar” é um verbo filosófico que faz par
perfeito com “pensar”. O que faz deste livro um ensaio de coreografias
de um pensamento sambista... leitoras e leitores, nós desejamos um
excelente show!
Wallace Lopes
Renato Noguera
Marcelo Moraes
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PRAÇAS NEGRAS
Territórios, Rizomas e Multiplicidade nas
margens da Pequena África de Tia Ciata
Renato Nogueira
Wallace Lopes Silva
Foram me chamar
Eu estou aqui,o que é que há
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
(Alguém me Avisou – Dona Ivone Lara)
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Renato Nogueira e Wallace Lopes Silva
1 Expressão cunhada por Heitor dos Prazeres para designar aglomerado/comunidade de negros afro-
baianos na espacialidade da região da Cidade Nova.
2 FRIDMAN, Fania. Paisagem estrangeira: memórias de um bairro judeu no Rio de Janeiro. Rio de Ja-
neiro: Casa da Palavra, 2007.
3 Compreendo como praças negras movimentos múltiplos, fluidos, móveis, flexíveis, elos de afetividade
e que possuem uma dinâmica própria de resistência do cenário pós-abolição.
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Praças Negras
4 KARACH, Mary C. As nações do Rio. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:
Companhia das Letras. 2000.
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Renato Nogueira e Wallace Lopes Silva
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Praças Negras
5 Entendo como rede a partir de Egler (2013), estruturas que emergem por meio das articulações es-
tabelecidas pela transversalidade dos campos. Essas redes são fluidas e se deslocam conforme os
interesses dos atores sociais.
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Renato Nogueira e Wallace Lopes Silva
6 No Dicionário Banto, de Ney Lopes, a definição é um pouco diferente: ZUNGU, s.m. (1) cortiço, caloji.
(2) desordem, barulho (FF). (3) Baile reles. (4) Habitante de cortiço (CT) – do quimbundo zangu, barulho,
confusão, conflito. Q. v. tb. O quicongo nzungu, panela, caldeirão.
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Praças Negras
Atravessamentos:
Rizomática entre Rio de Janeiro e Bahia
Uma multiplicidade de culturas transbordam nos limites geográfi-
cos de uma cidade marítima... Gritos pluriétnicos emergem na urbe
negra do Rio de Janeiro. A cidade vira uma arena de tensões e onde
encontrar a tal “Pequena África?” Num jogo de tensões o corpo ne-
gro desenha seu território... Macumba, feitiço, dança, política e es-
7 Pimenta Velloso, As Tias Baianas Tomam Conta do Pedaço. Espaço e identidade cultural no Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 11.
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Renato Nogueira e Wallace Lopes Silva
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Praças Negras
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Renato Nogueira e Wallace Lopes Silva
8 Entende-se como rizoma um modelo descritivo ou epistemológico na teoria filosófica de Gilles De-
leuze e Félix Guattari (1987). A noção de rizoma foi adotada da estrutura de algumas plantas cujos
brotos podem ramificar-se em qualquer ponto, assim como engrossar e transformar-se em um bulbo
ou tubérculo; o rizoma da botânica, que tanto pode funcionar como raiz, talo ou ramo, independente
de sua localização na figura da planta, servindo para exemplificar um sistema epistemológico em
que não há raízes – ou seja, proposições ou afirmações mais fundamentais do que outras – que se
ramificam segundo dicotomias estritas. Deleuze e Guattari sustentam o que, na tradição anglo-saxã da
filosofia da ciência, costumou-se chamar de antifundacionalismo (ou antifundamentalismo, ou, ainda,
antifundacionismo): a estrutura do conhecimento não deriva, por meios lógicos, de um conjunto de
princípios primeiros, mas sim elabora-se simultaneamente a partir de todos os pontos sob a influência
de diferentes observações e conceitualizações. Isto não implica que uma estrutura rizomática seja ne-
cessariamente flexível ou instável, porém exige que qualquer modelo de ordem possa ser modificado:
existem, no rizoma, linhas de solidez e organização fixadas por grupos ou conjuntos de conceitos afins.
Tais conjuntos definem territórios relativamente estáveis dentro do rizoma.
9 Termo cunhado na monografia de especialização no IPPUR/UFRJ – 2011, orientado pela Professora
Doutora Tamara Egler, como proposta para pensar uma geografia múltipla do samba que transborda e
desloca a ideia de origem e unidade. Essa proposta pretendo desenvolver ao longo da dissertação de
mestrado e tese de doutorado. A Geossambalidade seria o processo de dinâmica das redes do samba
que ultrapassam os limites geográficos da Pequena África de Tia Ciata.
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Praças Negras
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Renato Nogueira e Wallace Lopes Silva
Referências
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1981.
ANDRADE, Mário de Andrade, Macunaíma, in Obras Completas, 3ª ed., São Paulo, Martins, s.
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KARACH, Mary C. As nações do Rio. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).
São Paulo: Companhia das Letras. 2000.
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Sambando para não sambar
afroperspectivas filosóficas sobra a
musicidade do samba e a origem da filosofia
Renato Noguera
Abre-alas/comissão de frente
O inicio deste capítulo é um abre-alas, tal como na marchinha
de Chiquinha Gonzaga: “oh abre alas que eu quero passar, oh abre alas
que eu quero passar”. Nós1 queremos passar e convidamos quem lê
para atravessar a avenida conosco, seguindo um bloco que pretende
filosofar através de conceitos pedestres, juízos passistas através dos mé-
todos da roda, usando como crivo de medição do desempenho de um
argumento estar odara2. Por outro lado, o bom raciocínio não pode se
separar da alegria, que ficou bem dito pelo filósofo brasileiro Oswald
de Andrade: “A alegria é a prova dos nove”. (ANDRADE, 2011, p.73).
Nós convidamos quem lê para adentrar em algumas questões
que somadas traçam um enredo. Uma indagação a respeito da origem
da filosofia que culmina com a recusa da hipótese corrente de que
a sua certidão é grega. O percurso do samba que de cultura margi-
nal passou à musicidade3 símbolo do Brasil é parte fundamental de
nossa pauta filosófica. Importante uma ressalva sobre essa maneira de
filosofar: a emergência desta filosofia não tem nada de original, tam-
pouco de inédito; apenas, reaparece buscando mais atenção para a sua
agenda de pesquisa. A agenda filosófica afroperspectivista tem temas
como: samba, futebol, o drible como método intelectual, a roda como
metodologia de pesquisa, capoeira e seus movimentos como conceitos
argumentativos, jongo, candomblé, greve, black blocs, Lei Maria da Pe-
1 Uma observação, eu escrevo na primeira pessoa do plural, por uma razão simples. Eu falo através dos
que vieram antes (ancestralidade) e de quem está por vir (futuridade).
2 Palavra do idioma ioruba que significa “bom”.
3 O elemento distintivo que separa música da não música.
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Renato Nogueira
Enredo
O problema que pretendemos colocar na nossa roda intelectual diz
respeito à filosofia e ao samba. O que está em jogo é um enredo que
tem como tema: o nascimento da filosofia; a trajetória do samba de
marginal a símbolo da cultura nacional, e, por fim, como as filosofias
africanas, ameríndias, afrodiaspóricas, indígenas, latino-americanas,
femininas, queer, suburbanas, da infância, dentre outras que desconhe-
cemos, têm sido excluídas do mainstream acadêmico, fora o potencial
intelectual e as possibilidades futuras dessas filosofias.
No caso do samba no Brasil, encontramos uma trajetória bastante
curiosa. Vale situar de modo panorâmico e ligeiro o contexto histórico
de emergência do samba. Alguns historiadores do samba, tal como Ti-
nhorão (1997, 1998), Cabral (1996) e Lopes (2003) parecem concordar,
ainda que parcialmente, com o cenário de meados do séc. XIX e início do
séc. XX, período histórico marcado por um fluxo migratório de um sig-
nificativo contingente da população negra5 baiana para o Rio. A Revolta
dos Malés (1835) e a Guerra de Canudos (1896-1897) tornaram o Rio
de Janeiro ainda mais atraente para negras(os) baianas(os). A população
negra, em busca de oportunidade de emprego, passou a se instalar na re-
gião portuária. O compositor Heitor dos Prazeres batizou esse complexo
geográfico que compreendia os bairros da Saúde, Gamboa, Cidade Nova,
Praça Mauá, Praça Onze e alguns trechos do centro da cidade do Rio de
Janeiro de “Pequena África” (MOURA, 1995; LOPES, 2003). Na Peque-
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Sambando para não sambar
O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido.
Perdido! Pior que comunista, muito pior, Isso que eu estou lhe contando é ver-
dade. Não era brincadeira, não. O castigo era seríssimo. O delegado te botava
lá umas 24 horas (pág. 26).
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Renato Nogueira
7 Uma grande confusão em torno do termo mistura é a crença de que o casamento heterossexual de
dois negros, assim como o de dois brancos, não produz mistura. Ora, uma ucraniana branca que tenha
uma filha com um russo branco produz descendência tão misturada quanto um nigeriano iorubá que
tem filho com uma senegalesa da etnia bambara. Um dos impasses estava na ideia injustificada que a
mistura seria tão somente, por exemplo, africano(a) com europeia(eu).
8 Conforme Campos (2002), Artur Ramos (1943), em Guerra e Relações de Raça, narra sua intervenção
numa conferência nos Estados Unidos em 1941 em que diferencia democracia política de racial.
9 A tese da mistura não invalida a existência de diferenças étnico-raciais, essas diferenças são históri-
cas e sociais, não é um discurso de identificação social baseado nos genes; mas, no fenótipo e na
história dessa aparência, nos elementos simbólicos, estéticos e políticos socialmente estabelecidos e
dinâmicos que organizam a realidade.
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10 A disputa entre alemães e franceses permanece bastante acirrada entre os filósofos de orientação
continental. Mas, britânicos, em geral com orientação analítica, italianos e espanhóis também par-
ticipam do embate. A disputa entre franceses e alemães é relevante para entender a configuração
geopolítica do mundo acadêmico brasileiro.
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11 O filósofo faz uma nota mencionando que existem esforços nas décadas de 1970 e 1980 por parte de
filósofos latino-americanos, tal como Enrique Dussel, e estadunidenses – neste caso na solidificação
da agenda do pragmatismo filosófico que buscam se desvincular da Europa como território exclusivo
do pensamento filosófico.
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12 “Branco” aqui é usado com a conotação de esquecimento baseado no dito popular que diz: “deu
branco” quando se refere à perda de memória.
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Ora, esse discurso clichê não nos ajuda em nada, parece, somente,
mais do mesmo. Por isso, nossas fontes de pesquisa são textos núbios,
maias, astecas, egípcios, tupinambás, chineses, ubuntu, dentre outros
ainda pouco lidos nos centros oficiais de filosofia. Filósofos africanos an-
tigos como Amen-em-ope e Ptah-Hotep têm muito mais a nos dizer so-
bre filosofia que a maioria dos manuais pode supor (NOGUERA, 2013).
Afroperspectividade tem muitas referências, vários registros,
engloba várias vozes, trazendo à tona racionalidades distintas, consi-
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13 Conforme Mogobe Ramose (2011), pluriversal, assim como pluriverso, ultrapassa o conceito de univer-
sal e universo sem se contrapor a eles. Mas, os inclui por ser mais amplo. O universal não passa de um
sistema local que pretende fazer de sua lógica peculiar uma perspectiva válida em todos os casos. A
pluriversalidade é o reconhecimento que todo sistema é local, particular e o geral é a coexistência de
muitos particulares: pluriversalidade.
14 Norte da África, África Ocidental, África Central, África Oriental, África Austral e Afrodiáspora – esta
última é uma região fora do continente que é formada por todos os descendentes dos africanos e das
africanas que foram por meio de vários dispositivos de deslocamento levados para América, Europa
ou Ásia.
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gros, nestes dois países, são forçados a sentir que tanto eles como o
seu grupo são marginalizados. Só muito raramente as crianças ne-
gras leem ou ouvem falar dos africanos como participantes activos
na história. E isto tanto vale para discorrer sobre a Revolução Ame-
ricana como para uma discussão sobre O Inferno de Dante; exemplo
disto é o facto de que a abordagem do tráfego europeu de escravos,
na sala de aula, se concentra nas actividades dos europeus ignoran-
do a resistência dos africanos a esse comércio. Um indivíduo edu-
cado de uma forma verdadeiramente cêntrica valoriza como igual-
mente significativas e úteis as contribuições de todos os grupos. Isto
inclui pessoas brancas que, educadas neste sistema, não assumem
uma posição de superioridade ancorada em concepções racistas. A
Afrocentricidade é um quadro de referência onde os fenómenos são
analisados e entendidos a partir da perspectiva da pessoa africana
enquanto agente da sua própria narrativa. (ASANTE, 2013, p. 24).
15 “Tal é a lógica de um discurso, comumente conhecido como ‘ocidental’, cujo fundamento ontológico
reside em uma separação dos domínios subjetivo e objetivo, o primeiro concebido como o mundo inte-
rior da mente e do significado, o segundo, o mundo exterior da matéria e da substância” (Ingold 1991:
356).
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Renato Nogueira
16 A minha participação em algumas edições do Cheikh Anta Diop viabilizaram diálogos com africanas
e com africanos de várias regiões. A partir da minha presença mais frequente nesse evento desde o
fim da primeira década do século XXI, pude ampliar meus canais de diálogos e passei a estudar as
etnografias feitas por africanas e por africanos a respeito de povos que mantém maior independência
política e cultural em relação ao ocidente.
17 Nós fizemos a leitura dos Ensinamentos de Ptah-Hotep, Ensinamentos de Ame-Em-Ope, Ensinamentos
de Meri-Ka-Rá dentre outros anteriores aos textos gregos.
18 De (Incompleta?)
19 A visitação de rodas de samba no subúrbio do Rio de Janeiro são atividades da minha agenda de pes-
quisa e festejo pessoal desde os anos de 1990. É importante registrar que nasci no tradicional bairro
de Oswaldo Cruz o que proporcionou uma convivência com rodas de samba da Velha Guarda da Portela,
do Buraco do Galo, além de atividades de samba na quadra do Império Serrano no bairro de Madureira.
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Evolução
Se este capítulo for comparado a um desfile de escolas de samba
no Rio de Janeiro, poderíamos comparar Porta-Bandeira e Mestre-Sala
com Afrocentricidade e Perspectivismo Ameríndio, respectivamente.
No caso da avaliação pelos jurados [crivo intelectual-acadêmico], a ca-
pacidade da Porta-Bandeira em proteger o estandarte da escola – neste
caso a afroperspectividade – está sendo avaliada durante todo o desfile.
O Mestre-Sala corteja, acompanhando e protegendo a Porta-Bandeira,
se a bandeira da Escola de Samba (filosofia afroperspectivista) ficar, em
algum momento, enrolada ao mastro, a dupla perde pontos. Sem dúvi-
da, outros descontos também são feitos se Porta-Bandeira e Mestre-Sala
ficarem de costas um para o outro ao mesmo tempo. O estandarte não
pode encostar no Mestre-Sala, tampouco no rosto da Porta-Bandeira.
Essa metáfora cai muito bem para definir o que é a afroperspectividade
e sua relação com afrocentricidade e perspectivismo ameríndio.
A nossa pretensão não é, guardando as devidas proporções,
sugerir que a filosofia afroperspectivista ganhe, em termos intelectuais,
o mesmo título que o samba recebeu no plano musical. Mas, indagar
o que a afroperspectividade pode aprender com o samba? O que sam-
bistas de meados do século 20 podem ensinar para afroperspectivistas
do século 21? Afinal, o samba deixou de ser marginal para um tipo de
identificação coletiva, um signo estético que se configura como “iden-
tidade” musical brasileira. O samba se transformou na trilha sonora,
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Sambando para não sambar
alma, raiz e frutos de uma das festas mais populares do mundo: o car-
naval do Rio de Janeiro.
Sem dúvida, para muitos nada melhor para demarcar a especifi-
dade da produção musical brasileira do que o samba. O samba incre-
mentou o carnaval com contornos originalíssimos. O espetáculo car-
navalesco na cidade do Rio de Janeiro atrai multidões de vários lugares
do mundo, confirmando que a festa é marcadamente cadenciada por
uma musicidade que já foi marginal. A partir dessas considerações,
nossa leitura e aposta é que a filosofia afroperspectivista pode refazer,
guardando as devidas proporções, a trajetória do samba. Num outro
registro, o trabalho de filósofas e filósofos que comentam instigantes
questões tratadas por filósofos europeus e estadunidenses são de suma
importância; mas, não concordamos com o fechamento das portas do
mundo acadêmico para a produção filosófica em solo nacional. Com
efeito, podemos estar próximos de uma filosofia com selo exclusivo
made in Brasil20, quiçá, um “produto intelectual” de exportação.
20 Um Brasil que ressalta suas perspectivas africanas e indígenas. O que não significa recusar a Europa;
mas, buscar uma efetiva interculturalidade.
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Ora vejam só
(Sinhô)
Ora vejam só
A mulher que eu arranjei
Ela me faz carinhos até demais
Chorando, ela me pede
Meu benzinho
Deixa a malandragem se és capaz.
A malandragem eu não posso deixar
Juro por Deus e Nossa Senhora
É mais fácil ela me abandonar
21 Mapas geográficos, históricos, geopolíticos, cartografias econômicas, etnografias, etnologias que têm
como sujeito dos percursos situações em que a matriz/motriz africana, seja por meio de agentes in-
dividuais ou coletivos, se articula, reconstrói, cria e difunde perspectivas. Mapas afroperspectivistas
– para facilitar a circulação de corpos, ideias, perspectivas e valores dentro dos mais variados circuitos
Em outras palavras, afrocartografia é a reunião de mapas de rastros e nós, junções, injunções, camin-
hos de uma rede complexa de perspectivas negras atravessantes e atravessadas pelos jogos de poder
das sociedades contemporâneas.
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Lenço no pescoço
(Wilson Batista)
Meu chapéu de lado, tamanco arrastando
Lenço no pescoço, navalha no bolso
Eu passo gingando, provoco e desafio
Eu tenho orgulho de ser tão vadio
Sei que eles falam deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha andar no miserê
Eu fui vadio, porque tive inclinação
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Toda essa digressão serve para dizer que malandro, assim como
malandragem, deriva de “negro”. Negro significa fertilidade, caminho
transformador, nutrição e revitalização. Ora, a malandragem (melandra-
gem) é um tipo de fertilização por caminhos novos. Por isso, um dos pro-
tótipos, assim como estereótipo mais corrente, do malandro sempre foi
um homem negro. Na primeira metade do séc. XX, o imaginário coletivo
desenhou o malandro como um homem negro que vestia terno branco,
sapatos brancos brilhantes, gravata preta ou vermelha e chapéu Panamá.
Em termos filosóficos, uma ética da malandragem é um ethos que se orien-
ta através do modo de fertilizar caminhos, abrir caminhos férteis, irrigar
o deserto, o que só pode ser feito por trilhas pouco usuais. Daí, estamos
diante de uma ética que não se enquadra na lógica do “trabalho”, porque
não podemos entendê-lo através de uma perspectiva hegemônica que nos
remeteria ao tripalium, termo latino que significa, ao mesmo tempo, fer-
ramenta da agricultura e um instrumento de tortura. A dupla injunção do
termo “trabalho” numa de suas raízes latinas dá uma ideia de que a ação
de trabalhar é penosa, coisa de otário como nos disse Wilson Batista no
samba O Bonde do Januário. Ora, esta categorização do trabalho é estranha
ao arcabouço conceitual afroperspectivista. O trabalho do(a) malandro(a)
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Por fim, uma conclusão parcial e limitada, visto que esse trabalho
está inconcluso, deixa um papo reto sobre a ética da malandragem. A
vadiagem é o ethos ou odu malandro. O(A) malandro(a) samba para não
“sambar”, isto é, conjuga o verbo vadiar, caminha por modos férteis e
originais para revitalizar sua vida. Em termos filosóficos, o(a) malandro
(a) é um comportamento moral que afrocartografa possibilidades den-
tro das encruzilhadas existenciais. No nosso caso específico, estamos a
procurar caminhos com a filosofia afroperspectivista que possam fertili-
zar campos áridos, o sambar para não sambar do título pretende explicitar
uma ética malandra que possa criar condições de florescimento acadê-
mico de nosso modo de filosofar. Por fim, fique registrado um convite.
Leitoras e leitores se juntem, caso exista interesse, às trincheiras da filo-
sofia afroperspectivista. O objetivo é que possamos estar juntos a pensar
sobre assuntos muito diversos por meios ainda pouco explorados pela
filosofia acadêmica e dos manuais escolares. Abaixo a letra de um samba
que pretende correr nossas rodas de filosofia.
A filosofia da malandragem
Malandro samba para não sambar
Malandra samba para não sambar/
omo é bom vadiar
Vadiagem é coisa boa
malandro nunca está à toa
vem filosofar, vem sambar para não dançar
malandragem é querer bem
e se cuidar também
Vadiar é filosofia
filosofar é sublime alegria
linda viagem
viva a malandragem
viva a malandragem (Refrão)
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Sambando para não sambar
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55
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ARQUEOLOGIA DO SAMBA
ENQUANTO ARQUEOLOGIA DO PODER
Filipi Gradim
Introdução
No que tange ao interesse do presente artigo, instala-se uma
curiosidade científica que, por uma feliz coincidência, esbarra na mes-
ma curiosidade que inquietou Caetano Veloso ao escrever a singela
canção que gravou ao lado de seu parceiro Gilberto Gil: de onde vem o
samba? Ou melhor: o que é o samba desde que o samba é o que é? A
pergunta é ampla pelo extremo grau de abstração que ela parece nos
alçar e nos situar numa terra que considero sem fronteiras. Falo da
cultura brasileira, da expressão e da propagação de um de seus símbo-
los fundamentais: o samba. Caetano abre um leque de proposições
ainda mais amplas, tornando o que era difícil de responder, um enig-
ma quase indecifrável: “o samba ainda vai nascer/ o samba ainda não
chegou/ o samba não vai morrer” (1993). Segue-se daí que o samba
é, a rigor, a-histórico, isto é, não concilia com o elemento factual do
tempo-espaço – o que soaria absurdo frente ao fato de que ele, durante
muitos anos, acompanha uma evolução e construiu, nesse processo, a
linha evolutiva da música popular brasileira.
A verdade é que os versos de Caetano apontam para uma hipó-
tese que defendemos com firmeza: a de que o samba ultrapassa, de al-
guma forma, a esfera do meramente histórico, porque existe algo nele
enquanto tal que dura e que se mantém íntegro em face das transições,
instantes distintos e de seus momentos de vida e de morte. O mistério
que nos ronda é abordar esse “algo” que pertence ao samba, a esse “o
quê” subjacente e pertinente a uma manifestação cultural e, portanto,
histórica, mas que não se mistura de maneira alguma às condições que
o tornam um fenômeno notável.
Se quisermos tocar na origem do samba carioca, inspirados pela
investigação de Caetano, faz mister primeiro que alcancemos a origem
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Conclusão
Por fim, o samba, o mais ilustre símbolo da música popular bra-
sileira, é inaugurado na Praça XI, no lar de uma filha de Oxum – ori-
xá protetor dos rebentos a matriz carioca – através das mãos de uma
mulher, desse ser, cuja “mobilidade”, “agilidade de fera” sintomatizam
uma força de vontade cujo lado “inconcebível, desmesurado e extra-
vagante de seus desejos e de suas virtudes” transparece e “nos inspi-
ra respeito” (NIETZSCHE, 2009, § 239). Ironicamente, foi Tia Ciata,
negra, filha de escravos, mulher, quem deu um dos mais importantes
passos para a modernização do Brasil e sua liberdade cultural frente ao
resto do mundo. Em sua casa foram cultivadas tanto a estética quanto
a ética do samba, tratadas sob o prisma afetivo do amor, sentimento
que foi responsável pelo consolo de muitos corações dolentes – fato
que confirma a tese de Caetano de que a nascente do samba é a dor.
Mas, para isso se consolidar, o negro precisou dispor de ousadia e astú-
cia: enfrentar a ilegalidade e a clandestinidade, ser taxado de feiticeiro
e de baderneiro.
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Arqueologia do samba enquanto arqueologia do poder
Referências
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___________. Aurora – Reflexão sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. 1ª
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___________. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008. Tradução de Goetzen-daemmerung.
____________. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César
de Souza. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Tradução de Menschli-
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____________. Humano, demasiado humano – um livro para espíritos livres – Vol. II. Trad.
Paulo César de Souza. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
___________. O Nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2008. Tradução de Die Geburt der Tragödie.
83
Filipi Gradim
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das Letras, 1995.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: segundo seus gêneros. 7ª edi-
ção. São Paulo: Editora 34, 2013.
84
Roda de Samba
“Mandala” que (en)canta o samba:
um território de anunciação
O samba apareceu na minha vida através dos LPs que meu Tio
Zé, irmão da mamãe, que morava conosco, trazia para casa. Embai-
xo do braço, junto com as ferramentas de torneiro mecânico, vinham:
Partido em 5, Originais do Samba, Alcione, Beth Carvalho, Candeia,
Clementina de Jesus, e alguns anos depois Zeca Pagodinho, que ele
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Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
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Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
Sou de Arerê3
(Nelson Rufino/Paulo Daltro)
87
Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
(Eu sou!)
Sou de Arerê
Boto pra quebrar
Homem meu nenhuma piranha
Vai se debochar
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Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
minorias, que são a maioria nesse país. A proposta de Luiz Silva, co-
nhecido como Cuti, é mostrar que: “nasce o interlocutor negro do texto
emitido pelo “eu” negro, num diálogo que põe na estranheza, na condição de au-
sente, o leitor “branco”. Afinal, assim como a literatura, a fotografia é uma grande
possibilidade de se estar no lugar do outro e aprender-lhe a dimensão humana”4.
Incapacidade de conviver com a diferença é discriminação, é pre-
conceito, é ter do outro uma imagem distorcida e errada. Quando se
fala do “outro”, fala-se de máscara, do outro rosto, dos excluídos, dos
estranhos, dos bárbaros, dos ignorados, dos estigmatizados, dos vul-
neráveis, dos que estão alijados, daqueles que sofrem algum tipo de
violência e preconceito, do medo que esse “outro” causa e do lugar e
da posição desse “outro” no mundo.
Segundo o sociólogo polonês Zigmunt Bauman a identidade “é
uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de de-
vorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado”5. Portanto, negar
o “outro”, é negar a si mesmo, o “eu” não se reconhece, deixa de ter
cumplicidade e passa a não admitir a sua própria identidade, a querer
aniquilar o “outro”, a não aceitá-lo.
A partir dessas inquietudes, este texto pensará a narração, a me-
mória, a representação, a estética, a ideia de tempo/espaço e lugar que
aparecem inscritos nas rodas de samba que fazem parte do cenário
cultural, intelectual, social, político, religioso e anônimo desse país e
principalmente da cidade do Rio de Janeiro. Tentará pensar as rodas de
samba como um texto a ser lido e um território a ser explorado, onde
aparecem escritos: a “africanidade”, o negro (a) com voz, liberto (a) da
estética proposta pela sociedade, que se intitula hegemônica da nação,
território de afirmação da identidade e do resgate da memória, um ter-
ritório que funciona como ato de libertação de costumes tradicionais
do povo afro-brasileiro.
Não cabe mais, deixar de fora esse olhar, essa leitura, que por
um lado, denuncia a falta de dignidade impingida a essa voz, e por
outro, mostra essa voz que narra, revela e escreve, de maneira altiva,
as suas qualidades, os seus feitos, a sua presença que não pode mais
deixar de ser percebida, vista e respeitada.
89
Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
6 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes
Louro. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2006, p. 12.
90
Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
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Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
Roda de Samba9
(Efson, Marquinhos Pqd e Franco)
8 RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da
Unicamp, 2007, p. 130.
9 Disponível em: http://www.vagalume.com.br/roberto-ribeiro/roda-de-samba.html. Acesso em: 01.03.2014.
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Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
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Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
11 MAINGUENEAU, apud CHIAPPARA, Juan Pablo. Ficções de vida de Carlos Liscano. Tese de Doutorado.
Faculdade de Letras UFMG. 2009, p. 18, 21, 23.
94
Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
12 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 20, 24.
95
Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
que questiona o lugar reservado para a cultura que canta tradição, que
mostra que não pode ser excluída do debate histórico. Ademais, a roda
de samba pode conter uma ação política, pode ser revolucionária, pode
ajudar a amenizar crises, ou mesmo a sair delas e também pode engen-
drar uma reação social. A questão passa pela capacidade de ação dentro
do espaço físico e/ou imaginário.
O que transmite a roda de samba? Qual é o encantamento que
está presente ali? Ela não é apenas o espaço de diversão, de encanta-
mento sonoro, da sinestesia, não é uma redução do território, muito
pelo contrário, existe uma proporção, uma perspectiva e uma amplia-
ção muito maior, que ultrapassa aquele limite e, na maioria das vezes
toca a memória ancestral. Todos que ali estão comungam de um mesmo
banquete dionisíaco, o espaço da roda de samba deixa de ser reduzido
e atinge um momento de transformação (sociológica, antropológica, ar-
tística, identitária, histórica etc.), das personagens, que atuam dentro
daquele espaço, trabalham e contribuem para a compreensão da identi-
dade dos afrodescendentes e de um momento histórico, permitindo que
suas identidades sejam propagadas e vistas como importantes, como
necessárias dentro do cenário sócio-histórico, político e social do país.
Esse espaço evidencia uma mensagem repleta de códigos, com um
discurso povoado de referências. Não são um simulacro de uma memó-
ria coletiva e nem de estereótipos, são vidas e desejos colocados em cena
com toda uma dimensão ideológica, com enunciação e dimensão crítica.
A roda de samba fala sobre a integração com a ação política, social e
cultural. Além disso, para a recepção e o entendimento desse espaço,
é necessário que os sujeitos contemporâneos aprendam novos códigos
para lê-la e, por consequência, ler a sociedade na qual estão inseridos.
A roda de samba pode ser a possibilidade de mostrar o mundo
esquecido e revelar a “verdade”. Essa atitude perpassa pelos deslo-
camentos desta capacidade de mostrar a “verdade”, de como isso foi
e está sendo realizado na dimensão artística, que pode converter o
samba em uma autêntica e reveladora “verdade”, podendo alcançar a
realidade interna, que está para além das aparências e dos códigos de
representação, tanto de quem está dentro da roda, como daquele que
aprecia e lê a sua mensagem.
A intenção dos que estão presentes nesse espaço, o da roda de
samba, é mostrar os rostos que foram apagados do cenário dentro de
um processo de higienização que se estende até os dias de hoje. Esses
rostos ocupam, nas rodas de samba, o lugar de destaque, deixam de ser
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Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
Roda de samba
(Fundo de Quintal)
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14 Idem.
15 SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes /
Márcio Seligmann-Silva (org). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003, p. 17.
98
Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
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Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
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Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
Todos têm sempre algo para dizer e o que dizem deve ser dito
de maneira diferente. O problema é entender o que se pode e o que se
quer dizer, essa é a parte mais importante e difícil que quem participa
desse espaço tenta resolver, pois a sua escolha está diretamente ligada
de como o individuo, que ali se apresenta, está envolvido com a cultura
e de onde parte sua formação. E a sua formação está associada a outros
elementos extras à roda de samba, não tem, muitas vezes, ligação com
aquele espaço em si, mas com a consciência de si mesmo, de quem e
qual é o seu papel no mundo.
Inconscientemente, o individuo, portanto começa a elaborar
questionamentos a partir da sua presença e do seu convívio na roda.
Sabe escrever com a música e com a palavra aquilo que deseja dizer
como denúncia, estética ou ética. Cria suas histórias, apresenta seus
ícones, seus símbolos, sua ancestralidade de modo convergente, pois
acredita que é um provocador de instantes que se perpetuarão como
registro histórico, está preocupado que o presente conte o passado
com respeito e que aponte para uma memória futura, pois o que está
registrado no lapso de um instante permanecerá.
Os integrantes da roda constroem uma estética musical que leva
os seus espectadores a perguntar e querer saber quem são as pessoas
que estão naquele espaço, tamanha plasticidade cunhada pelo artista
no momento da composição. Eles não fabricam um espaço ou uma arte
apenas comercial, o capital cultural se sobrepõe a qualquer necessida-
de de ganho.
A estética musical criada na roda de samba e ao entorno dela,
onde o movimento faz parte do conjunto, não se desfaz, não é fugaz,
assume um cunho político e, portanto, pode existir independente da
vontade dos que estão presentes, se forma como algo mágico, como
uma “mandala” que (en)canta o samba e a ancestralidade, criando um
campo afetivo, cheio de significantes e significados e se perpetua na
memória social de todos que ali se encontram por isso, arte.
Os componentes da roda trazem na sua leitura musical persona-
gens e temas que foram construídos a partir de uma ótica ocidental de
construção de sujeito, que foram marginalizados, mas travaram um di-
álogo, ainda que distante, com a nossa história. No momento do enten-
dimento construído com o canto e o toque dos instrumentos, há uma
aproximação para esse diálogo, fazendo com que ele não seja esquecido.
Denunciar e buscar a justiça, a “verdade” e a “utilidade” são atos fun-
damentais na concepção dos relatos dentro de uma roda, além, é claro,
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Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
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Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
17 RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora
da Unicamp, 2007, p. 241.
18 SANTACRUZ, Marcia. El asociacionismo negro en España. Disponível em: http://www.youtube.com/
watch?v=EYO2CeVSClQ&feature=player_embedded. Acesso em: 07.02.2013.
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Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
19 Documentário “As Divas Negras do Cinema Brasileiro” produzido pela Enugbarijô Comunicações em
1989. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=x9Y_mNH5nCY&NR=1. Acesso em: 31.05.
2011.
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Roda de Samba “Mandala” que (en)canta o samba
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RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas:
Editora da Unicamp, 2007.
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Sylvia Helena de Carvalho Arcuri
Vídeos
Documentário “As Divas Negras do Cinema Brasileiro” produzido pela Enugbarijô Comunicações
em 1989. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=x9Y_mNH5nCY&NR=1
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NOEL ROSA E WILSON BATISTA:
INTENSIDADE E CARTOGRAFIA NA EMBRIAGUEZ
DE UM ANDAR VADIO E DELIRANTE
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Felipe Ribeiro Siqueira e Wallace Lopes
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Noel Rosa e Wilson Batista: intensidade e cartografia
Conversa de botequim
(Noel Rosa / Vadico)
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Felipe Ribeiro Siqueira e Wallace Lopes
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Noel Rosa e Wilson Batista: intensidade e cartografia
faz a lua nascer mais cedo, o vagabundo que não aprende samba no colégio, o
vagabundo que fez da cama uma folha de jornal.
A cidade para Noel é pura intensidade e paixão. A Cidade é uma
prostituta do cabaré. A cidade é a cidade do orvalho que vem caindo e
umedece de orgia o panamá.
A composição musical Deleuze-Guattari atribui aos grandes
pensadores personagens conceituais. Sabemos da intensidade dos âni-
mas de Nietzsche. Em Noel o chapéu panamá é o seu personagem
conceitual. É com ele de aba curta, o panamá noturno, o panamá vadio
não deixa as morenas irem embora.
O coração para Noel faz a batida do pandeiro. O pandeiro, ins-
trumento de percussão dionisíaco, traz um devir que faz agencia-
mento com o balancê das belas bundas das prostitutas. O pandeiro
faz arranjar um fraseado, traz o silêncio de um minuto fazendo o
balão subir fugindo do inverno e entregando no inferno um bilhete
ao demônio.
Enquanto os homens conhecimento utilizam um local fechado
com o ar-condicionado como escritório, Noel faz do botequim seu me-
canismo de produção intensa. Apenas 26 anos e quanta intensidade!
Uma máquina de produzir afetos! Uma avalanche chamada Noel! Será
no botequim que se formará o agenciamento Noel-Vadico, Noel-Ceci,
Noel-Ismael, Noel-Wilson Batista.
Pobres dos historiadores da música que tentam alimentar uma
falsa intriga entre Noel e Wilson Batista. Quantos falsos problemas!
Não foram contaminados pelo vírus da boemia! Que Palpite infeliz des-
sa gente!
Pobres dos músicos e críticos de música que separam o cantor
Noel do compositor Noel, o letrista Noel, do músico Noel. Noel é uma
licença poética da vida. O seu modo de cantar cheira a espermas jor-
rados no chão imundo dos cabarés. O que importa ao sentirmos o
seu canto ecoar pelo sereno é a expressividade com que atinge nosso
espírito. Em um período que tínhamos os chamados cantores de rádio,
Noel nos apresenta uma voz vira-lata, uma voz tuberculosa, entretanto
intensa. Aí está a originalidade de Noel. A potência melódica do samba
e as contaminações de suas forças estão no ritmo. A cadência do samba
é a marca registrada de sua expressividade. Noel, apesar de uma voz
curta e, um tanto quanto desafinada, alcança a alma do ouvinte. Passa
expressão noturna no seu cantar. A estética do canto de Noel carrega
o cheiro do esperma dos cabarés.
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Felipe Ribeiro Siqueira e Wallace Lopes
Largo da Lapa
(Marino Pinto e Wilson Batista)
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Noel Rosa e Wilson Batista: intensidade e cartografia
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Felipe Ribeiro Siqueira e Wallace Lopes
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Dona Ivone reencanta o tempo
no sonho, no amor e no samba*
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Marcelo de Mello Rangel
Acreditar, eu não
Recomeçar, jamais
A vida foi em frente
E você simplesmente não viu que ficou para trás.
1 Dona Ivone Lara dedicou-se, prioritariamente, a sua formação profissional, foi enfermeira e trabalhou
junto a profissionais como Nise da Silveira, no Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, no en-
tanto, nunca deixou de compor, de se dedicar ao mundo do samba, com paciência, utilizando-se das
mais diferentes estratégias, ao menos até a sua aposentadoria. Como podemos ler: “(...) Nota-se que
Yvone possuía uma série de motivações para dar preferência à carreira de enfermeira, e elas não se
limitam à estabilidade financeira. Em seus relatos sobre esse momento em particular, ela surge como
um indivíduo ‘comprometido’ com a opinião alheia, com as regras do núcleo familiar em que estava
inserida: trabalhar duro, ganhar dinheiro, ter segurança e fugir da chamada ‘malandragem’”. Também
podemos ler: “As rodas de samba continuavam frequentes, mas ela já não podia participar com tanta
assiduidade. Conciliar o trabalho ao lazer tornara-se uma missão difícil, e a jovem precisou desenvolv-
er algumas estratégias para não abrir mão de nenhum dos dois. Uma delas era programar as férias no
Instituto de Psiquiatria para o mês de fevereiro. Assim, cumpria com todas as suas responsabilidades
e podia estar presente no momento mais importante: o desfile de carnaval”. E ainda: “Depois de muito
pensar, Yvone toma uma decisão: procura o primo, mestre Fuleiro, e propõe que ele apresente as
canções dela como se dele fossem. Ele, que acompanhava havia tantos anos a dedicação da prima à
composição e acreditava na qualidade do trabalho, aceitou de primeira. Sempre que a jovem chegava
com alguma novidade, lá ia Fuleiro mostrar aos amigos. ‘Era um sucesso. Ele tocava e todo mundo
gostava, elogiava, perguntava de onde ele tinha tirado a ideia. Eu ficava perto, vendo aquilo, ouvindo o
que diziam, e pensando que era tudo meu (...)’. Yvone submetia-se, respeitando aquilo que acreditava
serem ‘os limites naturais’ para uma mulher negra (...)”. (BURNS, 2009, p. 84-96)
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Marcelo de Mello Rangel
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Dona Ivone reencanta o tempo no sonho, no amor e no samba
Referências
ARAUJO, Ricardo Benzaquen de. O mundo como moinho. Prudência e tragédia na obra de Pauli-
nho da Viola. In.: Berenice Cavalcanti; Heloisa Starling, José Eisenberg (Org). Decantan-
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2004.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In.: Obras Escolhidas. Magia e técnica: ensaios
sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1994.
BURNS, Mila. Nasci para sonhar e cantar. Dona Ivone Lara: a mulher no samba. Rio de Janeiro:
Record, 2009.
DIAS, Rosa Maria. Lupicinio e a dor de cotovelo. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária
São Francisco, 2008.
125
126
BEZERRA DA SILVA,
A MÁQUINA DE GUERRA DO SAMBA
Do que é feito samba? Provocações na
travessia do pensamento tectônico
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Felipe Ribeiro Siqueira
A fórmula do que é feito o samba foi traída por ele mesmo. Não
temos formula pronta e dada por alguma definição. A tarefa de definir
empobreceria o diagrama dessa explosão tônica; como se disséssemos
que tivemos uma língua vernácula ou origem, falamos uma multiplici-
dade de territorialidade constituindo planos de vida.
Se partirmos do tempo o samba possui uma explosão rizomática
que temos diversas matilhas históricas para criar tais acontecimentos e
durações com a vida. Vemos que para criar isso que chamamos de samba
foram necessários lamurias, gritos, sopros divinos, rezas, e transbordo
de afetos para termos instrumentos conceituais para criarmos essa ex-
pressividade. O samba estaria numa zona de agenciamentos coletivos de
povoalidade que brotam para fora da linguagem, onde o samba não co-
meça com os sambistas. Ele estaria nessa relação dos atravessamentos.
Essa expressividade do samba vem de movimentos matilhados
com outras estratificações de outros estilos que ultrapassam o limite
geográfico e ficcional da pequena África de tia Ciata, que é apenas uma
rostidade de eventos e expressões de redes negras do samba na Cidade
do Rio de Janeiro. Estaríamos tratando de uma rede de estilos polifô-
nicos de batucalidades negras e rizomáticas. Cada corpo pluriétnico é
um território do samba, configurados de acidentes. Não teríamos uma
“origem” no plano de fundo da historia da musical, mas sim planos de
composições de estilos que foram atrelados por necessidades e zonas
de relacionais. O sambista é apenas uma execução de emoções tônicas
que o corpo se desdobra com uma multidão apoteótica de outros afetos.
Matilhamentos do samba
O movimento matilhado do samba é povoado por muitas vozes
e camadas geológicas da cidade. Nas territorialidades do samba; todo
sambista é um território, um terreiro, um estilo, uma voz e um teatro
estético.
O Sambista quando se encontra com o samba produz vida – são
dos agenciamentos de forças apaixonadas numa espécie de desmedida
de relações que a linguagem se empobrece ao falar da vida. Falar da
vida talvez seja tarefa dos poetas, artísticas e músicos por esses denun-
ciam o esgotamento da vida para a entrada da arte. O samba emerge
como uma necessidade estética e uma necessidade do pensamento. O
sambista cria por necessidade não por funções orgânicas, mas sim por
planos de composição e linhas de fuga.
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Bezerra da Silva, a máquina de guerra do samba
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Felipe Ribeiro Siqueira
O sambista não pode olhar para as coisas como são. Mas sim do
que elas podem ser em seus agenciamentos musicais. Onde o samba
diz para ele o que você quer criar? Nisso gera uma relação entre aman-
te e criador. O samba cria junto com o sambista no ritmo do mundo e
na velocidade da vida. O que interessa a história para vida? No máximo
alguma farsa. E nessa farsa inventar o que não podemos responder.
É chegada a hora de gritarmos! É chegada a hora de criarmos no-
vas bifurcações e novas perfurações! Deleuze e Guattari tinham razão.
É preciso ser estrangeiro em nossa própria língua! Será que a filosofia
é realmente para poucos? Acreditamos que não. Filosofia e vida cami-
nham juntas! Por muito tempo a filosofia ficou amarrada pela camisa
de força do pensamento. Tivemos alguns gritos, algumas bifurcações.
Mas pouquíssimas placas tectônicas. A história da filosofia é uma his-
tória de disputa de ego, uma procura metafísica sexual para encontrar
princípios, verdades e transcendências. Mas afinal de contas meu caro
amigo desconhecido, o que é a verdade? A verdade não passa de um
delírio mentiroso do espírito!
As universidades produzem todos os dias novas máquinas, novas
diarréias mentais. Quando chegamos a um patamar de sentir nojo da
realidade sensível é um sintoma de que algo não vai bem. Nem mesmo
uma febre, uma íngua, uma ferida, um furúnculo as universidades pro-
duzem mais. Ora meu senhor, pensei que iria encontrar nos corredores
das faculdades de filosofia grandes pensadores! Que lástima! Motivo de
vergonha pertencer a uma geração que não tem suas bifurcações nas
universidades! E as ruas? Os becos? As vielas? As encruzilhadas? As
praças? Talvez chegamos a um ponto que sempre gostaríamos de che-
gar, ou melhor, retornar. Sem fazer do eterno retorno um retorno do
mesmo e sim uma seleção afirmativa da vida, chegamos a um ponto que
as novas Ágoras do século XXI estão gritando para nossos olhos! Isso
mesmo caro amigo desconhecido, gritando para nossos olhos!
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Bezerra da Silva, a máquina de guerra do samba
Senhora Razão,
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Assinado: Imaginação
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Felipe Ribeiro Siqueira
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A FORÇA DE LECI BRANDÃO*
* Este texto é dedicado a João Carlos (Diouf) de Vila Isabel e Lívio Medina. Grandes
amigos e filósofos que nas ruas e bares compunham comigo a relação filosofia e rua. E que
foram atingidos pela potência de Leci Brandão.
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Marcelo José Derzi Moraes
le, Paulo Freire, M. Ramose, Franz Fanon, Milton Santos, Abdias Nas-
cimento, Angela Davis e também a filósofa indiana Gayotrak Spivak
solicitando, então, a emergência da seguinte questão: Pode o subalterno
falar?
Para agenciar com a Leci nós trouxemos o filósofo Jacques
Derrida. Noções e operadores conceituais desenvolvidos por esse
filósofo africano vão estar sempre presentes, e as vezes ausentes, pro-
duzidos por efeitos de viseira, ou seja, somos vistos sem podermos ver.
Espectro, escritura, herança e força, serão palavras chaves para com-
preender melhor o texto. A obra deste filósofo é muito vasta e trata de
diversos assuntos. Mas uma coisa é certa, toda a obra dele tem um teor
ético-político. É o que tentaremos mostrar da obra de Leci. Lembrando
que nossa compreensão de político não se limita aos discursos presos
a essa temática num sentido stricto. O político se dá desde o momento
que, por exemplo, a arte ou a poesia está inserida num campo social e
acaba por transformá-lo. Acreditamos que algumas dessas noções de
Derrida correspondem exatamente com o movimento que operamos
ao “interpretamos” a obra da Leci Brandão. A escritura em Derrida,
por exemplo, é uma noção que não se limita ao ato de escrever, de re-
presentar a voz. A escritura é e está para e além do ato escrito. A escri-
tura está e é presente na voz, no corpo, no pensamento e no imaginário
operando no modo espectral, ou seja, está presente mas não é vista,
está ausente mas está inscrita. Em outras palavras, a escritura obsedia
e compõe todos os movimentos de expressão e de rompimento, de
criação e abertura, da explosão da lógica da presença. Promovendo,
portanto, a abertura dos devires. A escritura de Derrida nada tem a ver
com uma discussão acerca da filosofia da linguagem ou da possibilida-
de de comunicação. Escritura aqui, tal como a voz de Leci Brandão, é
da ordem do afeto, ou seja, toca através de uma lógicas dos sentidos,
de uma lógica das forças afetivas criadoras e transformadoras.
Assim, já podemos entender a noção de herança em Derrida.
Pois, a voz, ou seja, o logos vem carregado, espectrado pela escritu-
ra. O corpo, a escrita, a voz produzem um movimento escritural que
desenha e escreve um acontecimento. Não podem nunca negar a he-
rança pois ela é inegável. Já que é da ordem da necessidade. Toda essa
paisagem escritural e espectral que está conectada acaba montando a
nossa roda de samba que está presente em Leci Brandão em forma de
herança. É pela herança que ela é escolhida. E essa é a nossa compre-
ensão de força. Todo movimento transformador e deslocante, movido
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A força de Leci Brandão
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A força de Leci Brandão
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A força de Leci Brandão
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A força de Leci Brandão
lhe sacar de uma arma pra nos matar. Deixa ele escrever, deixa discursar, deixa
ele votar, é melhor, do que lhe sacar de uma arma pra nos matar. Deixa ele fazer
tudo que ele quiser, deixa ele ser moleque dessa mulher, deixa ele transar tudo de
onde vier, é melhor, do que lhe sacar de uma arma pra nos matar.
Leci abre o microfone para o Zé do caroço ou para Os Racionais,
ela nunca está só. Comprometida politicamente procura dar um senti-
do à formação político-social. acreditando na democracia e na justiça,
mesmo que tenhamos que construí-la. Mulher de fé, que acredita que
ainda seremos felizes, ela quer ser feliz. Essa é sua profissão de fé.
Um pensamento da alteridade, uma arte do outro, para o outro,
Leci acredita numa sociedade pautada nos valores da solidariedade,
na ajuda ao próximo e no reconhecimento e respeito ao outro. Nesse
sentido, a importância dos movimentos sociais em busca dos direitos
e da justiça para as minorias é de vital importância para uma socieda-
de mais justa. A desigualdade social, o preconceito racial, a violência
contra a mulher, a homofobia, o descaso com as minorias e com o povo
trabalhador, são os pontos principais da sua crítica social. Portanto,
combater esses males sociais causados por um grupo elitista e domi-
nante, para a satisfação dos seus interesses mesquinhos e egocêntri-
cos, pautados numa ideologia avassaladora, desleal e injusta, é a tarefa
de fé de Leci Brandão e da sua arte.
Na busca de pensar as origens e as memórias do negro, de uma
identidade negra, acompanha suas reflexões musicais, portanto, as
questões étnico-raciais, importantíssimas para serem discutidas e tra-
tadas do ponto de vista ético-político. Assim, cantando Jorge Aragão
ela lembra que elevador é quase um templo, exemplo pra minar teu sono e se
ser preto de alma branca pra você é exemplo da dignidade, não nos ajuda só nos
faz sofrer e nem resgata nossa identidade. E não esquece que somos filhos de
todo açoite, fato real da nossa história.
Deste modo, Leci mostra a importância das discussões étnico-
-raciais apontando para a necessidade de uma reparação histórica do
negro e do índio.
E se estamos pensando um Brasil mais justo, talvez o primeiro
passo seria a educação. Ora, a formação de uma sociedade passa e de-
pende de um projeto pedagógico educacional. A educação, a maneira
como ela procede dentro de uma sociedade é que vai dar sentido e
significado à formação do campo social. Sabemos que o modelo do-
minante em geral para as grandes maiorias não vem sendo suficiente
e nos leva a produzir uma série de perguntas: que tipo de cidadão
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Marcelo José Derzi Moraes
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A força de Leci Brandão
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Eu só quero te namorar
Leci fala de amor, de abandono, de ciúmes, de sofrimento, de
perdão, de superação, de autoestima. Fala também de corações va-
gabundos, fala de sonhos pintados, de no dias dos namorados juntar uns
trocados pro nosso jantar. Mostrar minha simpatia quando pra família me
apresentar. A bela caligrafia na fotografia pra te dedicar não pense que isso é
antigo mas um jeito amigo da gente se amar. Eu só quero te namorar deixa eu
te abraçar, deixa eu te beijar. Não sei o que você vai pensar, mas só quero te
namorar.
Leci nos presenteia com muitas canções de amor que podem
colaborar na hora de fazer aquela pergunta clássica da filosofia: o que
é o amor? Através de Leci podemos dar outras abordagens sobre o que
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A força de Leci Brandão
Saravá
Em seu combate, na sua guerra, Leci invoca o deus do fogo, for-
ças da natureza, forças divinas onde está a fonte da vida. Reza as santas almas
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Marcelo José Derzi Moraes
Referências
Toda a obra de Leci Brandão (Interpretações, composições e entrevistas).
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. In.: Magia e
Técnica, Arte e Política. V. 01. São Paulo, 1987.
DAVIS, Angela. Woman, Race & Class. New York: Random House Inc, 1981.
152
A força de Leci Brandão
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Trad.: Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Du-
mará, 1994.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 1985.
SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Tradução e revisão
organizada por Margarida Gomes São Paulo: Cortez Editora, 2010.
SOLIS, Dirce Eleonora Nigro. Desconstrução e Arquitetura: uma abordagem a partir de
Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Editora Uapê, 2009.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina G. Almeida, Marcos
P. Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
153
Jovelina:
pérola do espírito partideiro
Eduardo Barbosa
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Eduardo Barbosa
156
Jovelina: pérola do espírito partideiro
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Eduardo Barbosa
Referências musicais
Sorriso aberto – LP Sorriso aberto, RGE, 1988 – composição: Guará
Feirinha da Pavuna – Coletânea Raça Brasileira, RGE, 1985 – composição: Jovelina Pérola Negra
158
ZECA PAGODINHO
E O TEMPO RUBATO
Pensamento tectônico:
da máquina de guerra à máquina do tempo
Talvez o problema mais belo da filosofia seja o problema do tem-
po. É preciso muita coragem para mergulhar nessas águas e respirar
desse ar. Zeca Pagodinho, com todo o seu estilo, se entregou a essa
tempestade.
Seria muita indelicadeza de nossa parte afirmar que os proble-
mas que a música traz para a superfície são problemas para os críti-
cos de arte ou para uma suposta filosofia da arte. Que lástima essas
derivações da filosofia! Os problemas que a música faz transbordar
são problemas que possuem a expressão maior da vida, são problemas
para uma metafísica do tempo.
Zeca é um surfista da imanência que não está preocupado com o
início e tampouco o fim das intensidades. Ele captura toda a intensida-
de no meio. Pensar com Zeca, não é analisar as letras do seu repertório
e tampouco a linha melódica e sim pensar uma nova imagem do pen-
samento, um pensamento tectônico. Com Bezerra da Silva, tivemos a
potência do pensamento tectônico como máquina de guerra e o anún-
cio de um novo tempo. Entretanto com o pensamento tectônico de
Zeca, temos a invenção desse novo tempo. Zeca faz de seu canto, um
canto rizomático, faz do seu canto não uma máquina de guerra e sim
uma máquina que produz tempo. Enquanto que Noel Rosa e Wilson
Batista se apresentam como pintores que emitem cores sonoras, em
Zeca temos um escultor do tempo.
Mas afinal de contas, que tempo é esse que o estilo de cantar
de Zeca Pagodinho encanta e inventa? Aqui não falamos do tem-
po cronos, do kairós e tampouco do âion. O tempo que Zeca faz
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Felipe Ribeiro Siqueira
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Zeca Pagodinho e o tempo rubato
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Felipe Ribeiro Siqueira
aplicar essa metafísica do rubato, iremos ter como resposta que é algo
do instinto, Instinto este que Zeca foi contaminado no quartel general
do partido, o Cacique de Ramos.
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Zeca Pagodinho e o tempo rubato
Será no partido alto que Zeca terá todas as condições para ins-
taurar o dionisismo no tempo e legitimar o tempo rubato. Será no par-
tido que o tempo será dilatado e encontrará sua mais bela bifurcação.
O tempo se torna independente do compasso, do acompanhamento e
completamente embriagado pela atmosfera do subúrbio, irá desabro-
char em um estado puro.
O partido nos dá um grande ensinamento em mostrar que a vida
é improviso. Talvez o que Deleuze chamou de concepção de aula como
uma espécie de execução musical seja devir do partido do alto. O parti-
do é uma rachadura, fragmentado, o partido é um metamorfose dentro
da música. Ser partideiro é ter pele de lobo.
É da repetição do refrão que virá toda carga afetiva para se es-
tabelecer a diferença temporal. Não há um dono do partido. Torna-
-se confuso a indústria cultural se apropriar do partido para gravar.
O partido se desmagnetiza após o seu canto, entretanto ressoa numa
outra dimensão. São os tambores da mãe África, o cordão umbilical do
mundo, que levarão o som incandescente do partido.
A filosofia faz do pensamento um partido alto. O que será um
filósofo se não um grande partideiro, um grande versador. Criar con-
ceitos e jamais fazer do pensamento um filho da representação. Fora
os papagaios reprodutores! Talvez seja esse o motivo pelo qual temos
muitos professores de filosofia e poucos filósofos.
Já dizia Deni de Lima, um outro grande partideiro da mesma li-
nhagem que Zeca, que não queria ser cantor e sim apenas cantar. Deni
e Zeca compartilham do samba vagabundo, do samba malandreado
que é partido. Pode parecer redundante chamarmos de samba malan-
dreado, entretanto queremos apenas deslocar o partido desse samba
de macarrão miojo que a grande mídia tenta vender.
163
Felipe Ribeiro Siqueira
A patota de Cosme
Talvez de todos os discos do Zeca Pagodinho, o que tem a capa
mais bela seja o seu segundo Lp que fora lançado em 1987 e intitu-
lado Patota de Cosme. Neste Lp, Zeca aparece numa favela tomado
por muitas crianças. As crianças estão, em sua maioria sem camisa,
sorridentes e com um olhar dionisíaco. Zeca, de boné, em um traje
bem simples segurando duas meninas no colo. O posicionamento das
crianças nos faz pensar em um posicionamento aleatório, nada combi-
nado. Os afetos que são produzidos ao contemplarmos a capa deste Lp
é o próprio tempo rubato em sua forma pictorial. Leveza, simplicidade
e liberdade para conectar as forças do cosmos e introduzir mais ritmo e
cadência na vida. Firma na palma da mão, entra na roda que o batuque
está formado!
164
Almir Guineto:
o moralismo do samba diante dos
impasses do gozo
Conselho1
(Adilson Bispo, Zé Roberto)
Deixe de lado esse baixo astral,
Erga a cabeça enfrente o mal,
Que agindo assim será vital (5) e (3)
Para o seu coração.
1 Gravações de Conselho: Almir Guineto, Universal, 1986; Almir Guineto, Universal, 1999; Todos os Pa-
godes, Paradoxx, 2001.
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Momento de análise em Conselho: Fórmula moralista ou Fantasia neurótica
(1) Fórmula moralista
(lugar transcendental de fala, felicidade para além do egoísmo e da solicitude)
Bem para si (egoísmo) – “dando”;
Bem para o outro (solicitude) – “vendendo”;
Bem em si (felicidade) – “nem dando, nem vendendo”.
(2) Aprendizagem moral sentimental.
(3) Pretensão Metafísica e Moralista
(desejo erótico co-implicado na ordem do mundo; merecimento)
(4) Método
(estratégia de definição do objeto do amor; possibilidade do êxito garantida na ordem do mundo).
(5) Função motivacional
=> Fantasia fundamental do neurótico = satisfação da demanda de felicidade
Insensato Destino2
(Maurício Lins, Chiquinho, Acyr Marques)
Oh, insensato destino pra que
Tanta desilusão no meu viver? (2)
Eu quero apenas ser feliz,
Ao menos uma vez, (1)
E conseguir o acalanto da paixão.
2 Gravações de Insensato Destino: Sorriso Novo, RGE, 1985. Almir Guineto, Universal, 1999; Todos os
Pagodes, Paradoxx, 2001.
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Mel na Boca3
(David Corrêa)
Oh, quanta mentira suportei
Neste teu cinismo de doçura. (1)
Pode parar
Com essa ideia de representação! (2)
Os bastidores se fecharam pra desilusão. (2x)
É mentira
Cadê toda promessa de me dar felicidade (3)
Bota mel em minha boca
Me ama, depois deixa a saudade, será...
Um raio de luz
Do sol voltará a brilhar, (5)
Que se apagou e deixou noite em meu olhar. (2x)
3 Gravações de Mel na Boca: Almir Guineto, Universal, 1986; Todos os Pagodes, Paradoxx, 2001 (na
faixa consta a sequência: Insensato destino, Conselho, Meiguice descarada e Mel na boca).
167
Introdução
Tomando a obra de Almir Guineto4 reconhecemos imediatamen-
te os imperativos morais comuns à cultura do samba (e do carnaval) na
forma de conselhos, admoestações, lamentos, elegias. Todavia há uma
ambiguidade muito interessante nesse moralismo, em especial na obra
desse autor. Por um lado há uma proposta clássica expressa por uma
fórmula moralista básica: extração de uma sabedoria prática a partir
de uma experiência (em geral de fracasso amoroso) que sirva para a
consecução de uma felicidade e bem-estar individual ou coletivo. Por
outro, podemos encontrar nesse mesmo a constatação da inviabilidade
da realização de seus objetivos sinceros, a realização da felicidade pela
via amorosa.
Reconhecemos com facilidade essa proposta clássica no seu Con-
selho quando diz “que em cada experiência se aprende uma lição. (...)
O meu conselho é pra te ver feliz.” Porém as coisas não se “resolvem”,
a felicidade que se pensou poder por meio de algum esforço e determi-
nação atingir, se mostra fatalmente arruinada pelo Insensato Destino: o
que se pensou “um dia viver”, esse mar de felicidade – nunca vai che-
gar – porque a felicidade é impossível. A fórmula moralista em algum
ponto tem de assumir o seu fracasso.
Mas nem tudo está perdido. Há uma atitude que se conquista
quando se aprofunda no doloroso de cada sintoma. Em algum mo-
mento as coisas mudam, a desilusão opera uma modificação nas ex-
pectativas, tão radical, que modifica o próprio espaço da representação
onde aparece o desejo de felicidade e a promessa do amor pleno. É
preciso dar um basta, como ele mesmo nos diz: “pode parar essa ideia
de representação, os bastidores estão fechados para a desilusão”. O
cantor em Mel na Boca nos coloca em meio a uma amarga desilusão.
Mas é somente estando realmente angustiado que se consegue as for-
ças suficientes para romper com as promessas pactuadas no momento
da fantasia.
Nosso objetivo aqui é o de recriar pelo samba moralista de Gui-
neto a crítica à promessa de felicidade pelo viés do pensamento do
psicanalista francês Jacques Lacan. Não para supor uma reflexão sub-
jacente às canções destacadas, mas tomando-as como estímulo ope-
rante de uma reflexão que as transborda. As canções de Guineto nos
4 Tomaremos aqui canções que ficaram imortalizadas na sua voz, mas que foram compostas por outros
sambistas que assinalamos acima nas letras destacadas.
168
servem assim para pensar a articulação de um sujeito com seu gozo,
através de três conceitos chaves: fantasia, sintoma e ato. Podemos en-
carar a sucessão dos três maiores sucessos do Rei do Pagode, como o
percurso clínico que vai da queixa ao fim de análise. O sujeito começa
na demanda de uma fórmula para sua felicidade, passa a ter de reco-
nhecer como fantasiosa tal pretensão, e por um ato que diz “chega!”,
“basta!”atravessa sua fantasia, o que significa que reconstrói a mesma
sem as ilusões do passado. Isso não significa que o Sujeito abandona
o amor, se tornando um covarde, mas que, quando o seu “feitiço” de-
saparece, é hora de assumir o que está para Além da Ilusão cuja marca
visível são os enunciados depreciativos daquela fonte onde se depo-
sitava toda promessa que se torna um dejeto para o desejo do sujeito
(ex)apaixonado. A Felicidade se torna então um conceito interessante,
não por nos dar a norma de seu êxito, como pretendia o pensamento
clássico, mas por mostrar como pela sua expectativa, fracasso, e refor-
mulação constante, nos mantemos assim, nos apaixonando e desapai-
xonando seguidamente.
169
(3) ainda uma fala que por supor o horizonte transcendental de
onde parte e discorre, supõe então existir uma ordem estável
do mundo e da vida (amorosa) que determinam o horizonte que
no limite que apazigua as dores e aflições, que promete assim a
felicidade;
(5) e por fim trata-se de uma fala que acalma e orienta determinado
curso de ação, que encara o sujeito no momento de desespero e
desesperança, oferecendo sentido e garantia, pretendendo não
menos que realizar uma função motivacional.
5 Moralismo que vai de Aristóteles a Kant. Podemos encontrar em diversas outras canções de Guineto,
em versões mais ou menos atenuadas. Lições Moralistas (negativas): Jiboia, O destino de Maria,
Insensato destino (que analisaremos em detalhe, mais adiante) etc., poderíamos resumir a fórmula
da felicidade assim: amar alguém com o máximo de intensidade que me ame também em intensidade
equivalente, “pois amar sem ser amado não é mole de aturar”.
170
felicidade. Estou insatisfeito hoje com o amor que não tive, então
tento aprender com isso, para poder ser feliz com o amor que con-
seguirei num amanhã próximo se eu conseguir afinal corresponder
à ordem do ser.
Porém nada sutura uma incompletude que é estrutural, ou
melhor, nada senão a fantasia, é claro. Conselho é uma canção tão
bem sucedida porque reconduz o neurótico ao seu lar costumeiro,
como o tapinha nas costas motivacional dado por um livro de auto-
ajuda ou um amigo no bar: “não deu dessa vez, na próxima vez vai
dar”. A felicidade assim pensada é um bem não apenas desejável,
mas também realizável, pelo menos no ponto de vista da relação
amorosa entre as pessoas. Não enxergaria essa instância como a
voz propriamente garantidora, que fala de um lugar divino e meta-
linguístico do sofrimento que pode por ela assim se apaziguar, mas
vejo pelo contrário a voz como tela de uma fantasia suposta pelo su-
jeito que deseja uma divindade assim garantidora de sentido, para
que seu sofrimento não seja em vão. Trata-se certamente de um
efeito ideológico de sutura bem comum, aquele que surge toda vez
que o sintoma bate à porta.6
6 Uma sutura assim ideológica pode ser facilmente o motivo de a indústria cultural norte-americana
nos últimos dez, quinze anos, ter se dedicado com tanto afinco no retorno dos super-heróis da
Marvel e da DC, isso justamente no período de terríveis crises nas sociedades e identidade
estadunidense, alavancadas por guerras fracassadas e crises econômicas insuperáveis. Parece
que a solução conservadora é a primeira coisa que sobrevém ao sujeito em momentos de crise das
coordenadas simbólicas que organizam seu espaço vital, em vez de reformular essas coordenadas,
contenta-se em retomar a fantasia ideológica que sustenta a imagem do seu ego, recuando ante a
violência do real
7 Sem dúvida há proximidades harmônicas, elementos da própria construção poética que aproximam
tais canções, mas deixaremos aqui assinalada a proximidade exclusivamente no que elas rementem à
subjetivação inconsciente.
171
sabe lhe indicar o caminho da felicidade de maneira motivacional e
coerente, deste modo ele fica desamparado pela própria “ordem do
ser” garantidora, que mantinha a realidade em razoável estabilidade
de princípio. O sujeito fica assim inerte na impossibilidade de se poder
formar um saber útil para a vida, está por um lado desamparado do
enquadramento que a voz do Conselho proporcionara, por outro, se
dirigindo contra a direção de onde provinha essa voz, agora desapare-
cida, e busca interrogar-lhe a sua falta de sentido. O sujeito sofre, ele
se queixa da maneira como a tal divina providência vem arruinando,
destruindo suas expectativas (fantasiosas) de felicidade (amorosa). Se-
não arruinando pelo menos não contribuindo.
Por um lado uma vida nua, sem divindade (Morte de Deus), sem
sabedoria moral possível de ser aprendida, há por outro a indignação
diante do infinito do cosmo inacessível. No fundo a canção celebra
um difícil momento, o da frustração da demanda, aquele que coloca
um sujeito em análise no divã, seu momento de queixa, a hora que
percebe que algo vai mal, que isso que vai mal é da ordem do croni-
camente inviável. Muito de patético e mesquinho do sujeito aparece
nessa hora. Mas também é nessa hora que aparece a voz do próprio
sujeito, não mais a do Deus que ele supunha lhe proteger, do Pai que
lhe aconselhou a carreira, muito menos do Palestrante que lhe dava
conselhos motivacionais. Ou seja, chega a hora em que se começa a
perceber que o grande Outro é barrado, ou dito de outro modo, que
não há realmente uma instância na Natureza, ou na Lei que lhe garanta
evitar a falta que constitui seu desejo. Sade, um dos primeiros autores
a escrever a partir do esgotamento do pensamento clássico, ancora-
do na “representação” e na “ordem do ser”, faz aparecer um Deus da
suprema maldade, uma Natureza que é nela mesma cruel e perversa
(“Oh, Insensato Destino!”).
O sujeito de Guineto constata a insensatez do destino, pois não
consegue entender o sentido do sofrimento que assim encontra, fican-
do na angústia de não saber a finalidade última da (sua) existência. É
preciso interrogar o outro sobre seu desejo que se locupleta com essa
infelicidade. A grande lição do moralismo aqui é negativa: o outro não
deseja nunca algo correlativo ao amor que lhe dedicamos, ele aborda
nosso coração buscando algo que não nos diz respeito, ou seja, vale
aqui a máxima lacaniana “o gozo do outro não é o signo do amor”. Mas
ainda não há um grande outro, uma ordem de ser no real, que garanta
por direito o bem àqueles que lhe devotarem o aprendizado (“Não há
172
outro do outro”). Parece que o destino e a amante infiel fazem parceria
na minha mágoa, como se me desprezassem.
Essa canção admite muitas interpretações, sem dúvida, depen-
dendo especialmente das canções que lhe precedem e sucedem. Feliz-
mente a sequência escolhida aqui corresponde a quase todas as que
podemos encontrar na Internet8. Sem dúvida essa musica faz par com
a anterior, o que pode indicar um processo que vai da fantasia à quei-
xa, ou vice-versa. Deste modo, podemos supor que o sujeito enfrenta
a fantasia moralista ao se deparar com a angústia de um “Che Voi?”
(Frase que marca o momento chave na clínica lacaniana, em italiano
significa “o que você quer de mim”, o que na versão cristã tem a versão
do “Pai por que me abandonaste?”). O sujeito se encontra fraturado
diante da “outra satisfação” enigmática do destino, da pessoa amada
que não lhe corresponde, mas se aproveita disso de alguma forma9.
A constatação da “falha ontológica” do destino aqui é equipara-
da ao desencontro dos sexos (a “impossibilidade da relação sexual”).
O sujeito pode muito ficar por aqui mesmo, e buscar restaurar a fan-
tasia, retomar o “Conselho”, ou cantá-lo se ainda não o foi. Restaurar
a fantasia para encontrar o “alguém que me ame de verdade”, confiar
no conselho e modificar não o enquadramento, mas o objeto do amor
digno, enfim, “se entregar a quem te merecer”.
Agora se formos confiar em uma análise mais clínica, veremos
que para além do sofrimento e angústia da demanda frustrada não há
nada – o desejo está fadado (“destinado” sem a grandiloquência de um
insensato destino) ao seu fracasso. Se o discurso motivacional segue a
tradição clássica buscando emplastros discursivos (ou farmacêuticos)
para curar o tédio e a melancolia, a psicanálise não, a direção do tra-
tamento não busca curar a falta no desejo, porque ela é constitutiva,
8 Cf. vídeos de Almir Guineto em <www.youtube.com>, com Ronaldo Boldrim registro do programa Sr.
Brasil; com Arlindo Cruz; e com Fundo de Quintal, em todos esses casos as três canções aparecem na
ordem aqui selecionada. Ver também versão com somente as duas primeiras: Pique Novo e Arlindo Cruz.
Há ainda os que invertem, como na gravação de Pique Novo, colocando Conselho como fechamento,
certamente indicando o efeito de sutura apresentado anteriormente. Não acredito que sejam realmente
interessantes essas que colocam a série nessa sequência ID, Conselho antes de Mel na Boca fazendo
parecer que o conselho moralista é o que permite a ato de basta, quando na verdade se dá o contrário:
ele é o que sutura, impedindo qualquer transformação efetiva no estado de coisas.
9 Há alusões aqui e em diversas outras canções de Guineto a algo que nunca fica totalmente enfocado
que é a figura do “coquetismo amoroso” que fascina e aterroriza o poeta. A coquete é aquela que se
envolve sem se envolver, que se faz desejada sem comprometer seu desejo, num misto de má-fé com
a arte da sedução, a que melhor exerce o “cinismo de doçura” que veremos na sequência em Mel na
Boca. Ver “Psicologia da Coquete” em Filosofia do Amor de George Simmel.
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mas sim direcionar o exercício ético de lidar com essa falta para além da
ilusão10 da fantasia amorosa.
10 Cf. canção Além da Ilusão. Guineto ainda retoma algumas vezes o tema do basta amoroso em varia-
ções como em Passe Bem e Motivo.
11 Há um caso, no disco Todos os Pagodes de 2001 no qual no interior dessa sequência é introduzida
Meiguice descarada entre as duas primeiras, e Mel na Boca. Consideramos MD pouco relevante para
nossa análise por não apontar para o ponto de basta que reconstrói a fantasia amorosa, e por ser não
mais que a descrição dessa que tem o “dom de enganar”, cujo coquetismo aparece já prenunciado em
Insensato destino, e plenamente figurado nas metáforas teatrais de “Mel na Boca”, um interlúdio que
sublinha certos aspectos das músicas que lhe envolvem e hesita um pouco frente ao ato.
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No fim, o sujeito tem de se conciliar com o fato de que o destino
será o que “deus quiser”, no caso, vida amorosa, a divindade em ques-
tão12 é claramente Iemanjá para quem se deposita as esperanças nas
ondas do mar que levam e trazem flores e amores. E quanto à navega-
ção possível aqui, nesse caso, pouco ou nada se pode aprender de con-
creto, nada de sabedoria moral edificante, não existe uma técnica ou
ciência do amor, por isso ele “é feitiço”. Eu não posso aprender o que
é o amor, mas aprender a respeitar seus acasos, e a apostar as minhas
fichas, como quem espera ao jogar uma flor no mar agitado, fazer che-
gar seu pedido e lance na própria divindade que rege o mar (e o amor).
No fim, o que há mesmo é uma tarefa ética sendo reassumida
pelo sujeito que aceita transpor sua própria fantasmatização neurótica,
que passa a aceitar que não há nada, do além, garantindo sua aposta.
Não é no outro que se deve buscar o sentido do amor, nem na pessoa
amada, nem no grande outro Deus Destino que nos ensina as leis do
universo e do coração, mas na própria falta que nos mobiliza a buscar
no outro o amor que se deve perceber e tentar dar conta, assumir a va-
gueza que é lançar ao mar uma oferenda e se responsabilizar, não pelo
que advém disso, sucesso ou fracasso, mas pelo ato de desejar que se
lança para o mar das possibilidades humanas. No fim, o que há é uma
erótica e uma pragmática situadas para além de todo moralismo.
12 Sobre a abordagem imanente da divindade, ver Murmúrio da Cachoeira: “Xangô na cachoeira é rei”.
Destaque para o jogo de equivalências segundo a imanência que se desenvolve na singularidade
estruturante, “para o prisioneiro a liberdade”, “para o povo muita paz e muito amor” etc., que decide o
campo de determinação essencial da divindade. E ainda nessa linha, há a canção Quem me Guia que
faz uma Ode ao Zé Pilintra, divindade da noite e da malandragem, nela uma orientação para a vida é
enunciada como só podendo provir da razão mesma que já está em todos nós. O velho tema comum ao
paganismo grego, mitologia ioruba, e sincretismo afro-brasileiro: a transcendência na imanência.
175
Referências
FORBES, Jorge. “Felicidade não é bem que se mereça”. Trabalho apresentado no XVII Encon-
tro Brasileiro do Campo Freudiano. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em <http://www.
jorgeforbes.com.br/br/artigos/felicidade-nao-e-bem-que-se-mereca-versao-completa.
html>
GUINETO, Almir. Discografia Completa. Disponível para consulta das informações em <almir-
guineto.com.br/blog/?page_id=32>.
______. O Seminário livro sete: A ética da psicanálise. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1988.
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