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O setting analítico na clínica cotidiana

O setting analítico na clínica cotidiana


Analytical setting in everyday clinic
Glória Barros

Resumo
Refletimos sobre o setting analítico e o manejo clínico de nossa prática cotidiana, à luz
da teoria psicanalítica. Inicialmente nos referimos à visão freudiana e posteriormente
nos detemos em Ferenczi e Winnicott, dois clássicos nas teorizações sobre o setting/ma-
nejo de pacientes com maior comprometimento psíquico ou mesmo resistentes ao pro-
cesso terapêutico, para facilitar mudanças psíquicas no processo psicanalítico. Alguns
fragmentos de uma análise, de nossa clínica ilustram uma experiência bem-sucedida e
reforçam nosso convencimento de que o movimento do analista é fundamental para o
estabelecimento da comunicação no setting terapêutico. Sua adaptação às necessidades
do paciente constitui fator primordial para o manejo clínico, sendo o manuseio do set-
ting o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. O recebimento
inicial mais caloroso, a flexibilização da duração das sessões para ouvi-la e acolhê-la,
e a disponibilidade para atender algumas necessidades manifestadas pela paciente se
mostraram de suma importância. Acredito que a criação de um setting adaptado às
necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico, propiciou seu
fortalecimento e seu crescimento.

Palavras-chave: Setting analítico, Psicanálise, Manejo clínico.

Introdução siderações serviram de base ao trabalho que


O setting analítico tem a ver com os dois in- apresentamos no V Congresso Internacional
tegrantes do processo analítico: analista e pa- de Psicopatologia Fundamental (BARROS,
ciente. A sensibilidade do analista é funda- 2012) e posteriormente retrabalhado, no
mental, e isso tem que levar em consideração Círculo Psicanalítico de Pernambuco, por
tanto as características do paciente quanto as ocasião de nossa passagem para analista, em
do analista, que se derivam de seu próprio março de 2013. Com várias modificações e
percurso. correções, apresentamos agora o texto aos
Temos nos deparado no exercício da clí- leitores.
nica psicanalítica com as múltiplas faces
do sofrimento humano. Situações inusita- Sobre a técnica psicanalítica:
das nos colocam frente a desafios que mui- o setting e o manejo
tas vezes põem em xeque o arsenal teórico No campo psicanalítico, o setting é um es-
que nos embasa. Diante desse panorama paço que se oferece para propiciar a estru-
nos sentimos instigados a fazer uma refle- turação simbólica dos processos subjetivos
xão teórico-clínica sobre o setting analítico inconscientes, reunindo as condições técni-
e seu manejo clínico. No presente estudo cas básicas para a intervenção psicanalítica.
tentaremos tecer considerações sobre algu- Nesse campo são englobados todos os ele-
mas situações clínicas especiais que exigiram mentos organizadores do setting: o espaço
mudanças no setting terapêutico. Essas con- físico de atuação, o contrato estabelecido

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para seu desenvolvimento, assim como os lítica (FERENCZI, 1921a e 1921b). Ele esta-
princípios da própria relação, transferencial belece a técnica ativa como medida a ser uti-
e contratransferencial, estabelecida entre lizada com pacientes resistentes ao método
analisando e analista. interpretativo.
No seu texto Recordar, repetir e elaborar O percurso clínico de Ferenczi é todo
(1914) Freud faz um histórico do desenvol- pautado no desafio de acolher o sofrimento
vimento da técnica psicanalítica, sublinhan- dos pacientes chamados “difíceis” (1926). Ele
do “as alterações de grandes consequências conclui que as dificuldades enfrentadas nes-
que a técnica psicanalítica sofreu desde os ses processos eram decorrentes da “insen-
primórdios” (FREUD, 1969, p. 193). Ele sibilidade” dos analistas, que não queriam
concebia o setting analítico, como um lugar se deixar afetar pelo encontro analítico, se
específico para que a relação terapêutica se pronunciando por introduzir a faculdade de
desenvolvesse; é composto por um conjunto “sentir com”, pelo projeto de “soltar a língua”
de elementos que podem ser compreendidos (1927).
como variáveis independentes, que devem Para o autor seria preciso tornar a téc-
permanecer sob controle, para assegurar o nica mais elástica, de maneira a favorecer
êxito do tratamento: o analista; o paciente; o a expressão afetiva. O privilégio dado à
cerimonial; o tempo; o dinheiro; a regra fun- expressão de afetos na análise provocou,
damental; a atenção flutuante. assim, uma ampliação cada vez maior dos
Nos textos Recomendações aos médicos limites do permitido na clínica, chegando-
que exercem a psicanálise (1912) e Sobre o se à formulação de um princípio de relaxa-
início do tratamento (1913), Freud ressalta mento como contraponto ao de abstinência
que o que garante efetivamente a situação (1927).
analítica é não tanto os dispositivos propor- Ferenczi introduz seu projeto de “soltar
cionados pelo setting, mas a posição simbó- as línguas” nas análises, implicando e con-
lica assumida pelo analista no percurso de vocando o analista à adoção de um estilo clí-
uma análise. Para ele o conjunto de deriva- nico diferenciado, resgatando a criatividade
ções dessa posição interna do analista é que do analisando, exercitando a sua capacidade
dá consistência ao tratamento. de brincar, fantasiar e imaginar. Ele aborda
No V Congresso Psicanalítico Internacio- o conceito de contratransferência como algo
nal (1918) Freud recomenda uma mudança que não dificultaria a análise, mas que faz
de atitude do analista nos casos em que a aná- parte da própria técnica a ser empregada. O
lise da transferência não se apresenta como manejo técnico deve dosar bem a empatia
recurso suficiente para vencer as resistências e a capacidade de “sentir com”, e o processo
e desentravar o processo, e ao analista cabe é conduzido melhor a partir da análise pes-
adotar uma postura mais ativa. Ele transfe- soal do analista, que o capacitará para ava-
re a incumbência de prolongar a duração do liar a situação analítica a distância. Esse é o
tratamento e de encontrar técnicas capazes entendimento que Ferenczi tem do analista
de atestar o sucesso do método analítico para elástico.
seus discípulos. E foi Ferenczi quem mais se Seguindo a mesma linha de pensamento
destacou nessa tarefa. de Ferenczi, Winnicott sentiu que era vital
A percepção da dificuldade apresenta- reexaminar sua técnica, pois suas observa-
da pelos pacientes bastante regredidos que ções clínicas apontavam para a necessidade
frequentavam a clínica de Ferenczi o levou de uma adaptação do setting para promover
à formulação de que a técnica e o enquadre uma evolução favorável do paciente e ajudá-
utilizados eram responsáveis pela produção -lo no fortalecimento e na evolução de sua
de “resistências objetivas” à experiência ana- personalidade.

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O trabalho psicanalítico winnicottiano de em que o paciente se encontra para guiar


busca promover o desenvolvimento de as- a ação terapêutica. Para ele é fundamental
pectos da vida psíquica que não puderam basear seu trabalho terapêutico de acordo
evoluir em função de falhas no processo ini- com o diagnóstico, permanecendo na elabo-
cial, além de valorizar o meio ambiente na ração de um diagnóstico, individual e social,
estruturação do self. A adaptação no setting, ao longo de todo o processo de tratamento,
na sua visão, auxiliaria os pacientes na bus- pois, assim procedendo, poderemos fazer
ca e no encontro de suas necessidades, fa- uma adaptação no setting se a situação emo-
vorecendo o estabelecimento de um campo cional do paciente naquele momento assim
transferencial propiciador de mudanças. requerer.
O manuseio do setting é para Winnicott Nesse sentido ele afirma:
(1993) o principal recurso no tratamento de
pacientes muito regredidos. Nas suas teo- [...] faço psicanálise quando o diagnóstico é
rizações ele “apresenta o manejo como um de que este indivíduo, em seu ambiente, quer
elemento importante, facilitador de mudan- psicanálise [tradicional]. Posso até tentar es-
ças psíquicas no paciente”. Um setting dife- tabelecer uma cooperação inconsciente, ainda
renciado é utilizado quando estamos diante quando o desejo consciente pela psicanálise
de alguns quadros clínicos que apresentam está ausente. Mas, em geral, a psicanálise [cujo
maior fragilidade psíquica ou quando exis- método por excelência é a interpretação do
tem necessidades especiais do ambiente exi- conflito reprimido inconsciente] é para aqueles
gindo cuidados mais específicos. que a querem, necessitam e podem tolerá-la.
Winnicott nos alerta para não trabalhar- (WINNICOTT, 1983, p. 154).
mos de forma rígida utilizando uma aplica-
ção cega a uma técnica, pois o paciente que Na visão winnicottiana, para que ocorra
procura análise precisa ser acolhido na sua o acolhimento de forma irrestrita, não pode-
dor e, isso ocorre à medida que ele se sente mos nos colocar de forma a manter a análise
compreendido no seu sofrimento. Nem to- protegida por um setting rigoroso, pois, des-
dos os pacientes que chegam à clínica bus- sa forma, correremos no risco de reforçar as
cando ajuda podem ser submetidos a uma nossas defesas como analista e as defesas do
análise. O método que iremos utilizar nesse paciente, impossibilitando o acolhimento ra-
processo dependerá das condições psíquicas dical da loucura. Assim, perderemos de vista
e clínicas em que ele se encontra. elementos fundamentais que mostrarão todo
A clínica winnicottiana está baseada o arsenal do sofrimento e da psicopatologia
numa teoria dos distúrbios psíquicos que manifestada pelo paciente.
tem como fundamento a teoria do processo O analista, na visão de Winnicott, deve
de amadurecimento pessoal do indivíduo. se abster do autoritarismo e da doutrinação,
Winnicott pontua: permitindo uma fruição mesmo desorgani-
zada ao longo das sessões. É fundamental
Precisamos chegar a uma teoria do amadure- que o analista vivencie um estado de rela-
cimento normal para podermos ser capazes de xamento e espontaneidade, acolhendo de
compreender as doenças e as várias imaturida- forma ativamente passiva e ativamente ex-
des, uma vez que não nos damos por satisfeitos pectante os conteúdos emergentes, a fim de
a menos que possamos preveni-las e curá-las estabelecer uma base de confiança para que
(WINNICOTT, 1983, p. 65). o processo caminhe.
O manuseio do setting é para Winnicott
Winnicott (1983) enfatiza a importância (1993) o principal recurso no tratamento de
do diagnóstico focando o grau de maturida- pacientes muito regredidos. Nas suas teori-

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zações ele “apresenta o manejo como um ele- Tempo, paciência e tolerância eram vitais
mento importante, facilitador de mudanças nesse processo, tanto para ela quanto para
psíquicas no paciente”. mim. Marina caminhava muito lentamente
nas suas elaborações. Nós não poderíamos
Da teoria psicanalítica ter pressa. Juntas, passamos a viver em mui-
à pratica clínica tos momentos uma experiência de mutuali-
Nesse contexto, quero apresentar Marina, dade.
paciente que bem se adéqua às nossas refle- Winnicott (1993) afirma que o paciente
xões do tema que escolhemos para discutir busca no terapeuta as funções de que neces-
neste momento. Minha supervisora havia sita. Se o terapeuta compreende a situação,
me indicado para que Marina continuasse temos um momento mutativo. E nos fala ain-
seu processo terapêutico comigo e, apesar da em formas especiais de conduzir o setting
de saber que iria encurtar duas horas para como uma metáfora dos cuidados maternos.
chegar ao local de seu tratamento, ela não Observa-se que ele privilegia o modelo de
se sentia tranquila para fazer essa passagem. cuidado materno, transportando-o para o
Coincidentemente eu a encontrei na saída de setting, incluindo o analista como parte do
sua sessão, e esse encontro foi decisivo para setting, que é visto como o lugar que pro-
que ela me procurasse depois do parto, já porciona o desenvolvimento. Nas situações
que estava no final de sua terceira e última vividas neste caso, a analista privilegiou esse
gestação. modelo de cuidado a partir da compreensão
Ao chegar para a primeira sessão, Marina do processo de Marina.
diz “O seu olhar, sorriso e o aperto de mão Marina havia iniciado sua primeira análi-
no nosso primeiro contato abriram caminho se por causa de um quadro depressivo grave.
para que eu decidisse vir até aqui”. Após qua- Com esse acompanhamento, pôde elaborar
tro meses do parto, ela me procura. Vinha e enfrentar o seu medo de engravidar, rela-
sempre acompanhada de seu bebê e do ma- cionando seu quadro ao abuso sexual sofrido
rido. aos 5 anos, pelo marido de uma tia. Ela fazia
Traremos alguns fragmentos da análise de referência ao fato como “o estrago que esse
Marina, que durou cerca de doze anos e, até fato provocara na sua vida”.
hoje, através dos contatos telefônicos manti- A mãe dizia para Marina esquecer o
dos nos seus momentos de alegria e aflição, ocorrido e, em determinada ocasião, ela foi
constatamos a importância do acolhimento obrigada a fazer um tratamento dentário no
sustentado ao longo de todo o seu processo tio, como forma de agradecimento e paga-
para a manutenção de um campo de con- mento, pois ele havia transportado no seu
fiança e um vínculo transferencial. Marina, caminhão os móveis de consultório dela.
32 anos, odontóloga, era casada, tinha três Marina se sentia desamparada e incom-
filhas, mas não exercia a profissão naquele preendida pela família, não acreditava que
momento. sua depressão tivesse relação com o abuso
Quando iniciou sua análise comigo, ainda sofrido, afirmavam que aquilo tudo era “coi-
era grande a sua fragilidade. Depois de al- sa do diabo”. Eles eram evangélicos e diziam
guns anos, conseguiu falar sobre o abuso se- para ela rezar, ter mais fé e que se ela fosse
xual que havia sofrido na infância e, a partir à igreja não precisaria fazer terapia nem to-
daí, esse tema ia e vinha ao longo de muitos mar remédios.
anos de seu processo psicoterapêutico, sen- Diante de tal situação, como enquadrar
do trabalhado intensamente. Depois de um o caso que eu tinha na minha frente me de-
tempo de calmaria, esse tema voltava a bailar safiando e me fazendo ver que algumas mu-
novamente com toda a força. danças no manejo deveriam ser adotadas?

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A teoria do setting de Winnicott (1993) nejo da clínica winnicottiana. No processo


estuda a estruturação, a significação, a fun- deve ser oferecido um lugar, um momento
ção e seu manejo pelo analista, inclusive a e uma abertura para que possa vir à tona a
possibilidade de sua ruptura parcial ou de problemática do paciente, que emergirá na
transgressão. Ele também estuda o problema dependência de muitos elementos, em espe-
das falhas do analista e a possibilidade de seu cial, do movimento do analista para o esta-
uso por parte do paciente. A experiência clí- belecimento da comunicação no setting tera-
nica levou Winnicott a reexaminar sua técni- pêutico.
ca no tratamento de pacientes muito regredi- Desde o início, percebíamos a fragilidade
dos. Ele pontua: e o desamparo de Marina e que seu trata-
mento, além de requerer muito cuidado no
As necessidades do paciente só podem ser defi- manejo, necessitava de muita disponibilida-
nidas a partir de um diagnóstico psicodinâmi- de nossa na condução do processo.
co considerando três grupos de pacientes. No Suas sessões não poderiam ter o tempo
primeiro grupo temos pacientes que operam normal (cinquenta minutos), e assim, suas
como pessoas totais e cujas dificuldades estão sessões duravam em média de uma hora e
nas relações interpessoais. Estes pacientes po- meia a duas horas. Desde as primeiras ses-
dem ser submetidos à análise clássica. Num se- sões, a paciente trazia uma enxurrada de
gundo grupo temos os pacientes depressivos no sintomas com suas longas histórias e, se não
qual a totalidade da personalidade está apenas fosse possível trabalhar grande parte das
se esboçando. Em relação ao manejo, devido à questões levantadas, a angústia era tão inten-
função do amor e ódio, a ideia da sobrevivên- sa que requeria depois muitos contatos tele-
cia do analista aos ataques do paciente é um fônicos até ela conseguir se acalmar.
fator importante. Num terceiro grupo estão As sessões tinham, desde o início, um ri-
os pacientes cuja estrutura pessoal ainda não tual. Ela sempre trazia um caderno com seus
está fundada de forma segura, e o tratamento escritos da semana. Falava sem parar, levan-
deve lidar com os estágios mais primitivos do tava inicialmente as dificuldades, depois seus
desenvolvimento emocional. A ênfase está no ganhos, seus sonhos e, assim, se sentia mais
manejo, funcionando como holding e estes pa- calma no final da sessão. Se não fosse assim,
cientes necessitam de um setting mais regressi- ela saía péssima, não suportando ficar na-
vo (WINNICOTT, 1993, p. 460). quele estado por toda a semana, o que muito
lhe pesava e torturava.
A cada sessão ia reforçando o diagnóstico Observava que seu nível de tolerância era
de que Marina se encontrava no terceiro gru- baixíssimo e sua mobilidade psíquica muito
po, funcionando de forma primitiva e preci- pequena. Qualquer tensão não era suportada
sava de um setting mais acolhedor. Dentro da por ela, e sua tendência era descarregar no
visão winnicottiana, o setting analítico deve corpo somatizando. Ela vivia em muitos mo-
comportar os aspectos relacionados à mãe- mentos a possibilidade de entrar em colapso.
-ambiente, em que o analista oferece cons- Acredito que a criação de um setting
tância, previsibilidade e confiabilidade, tanto adaptado às necessidades de Marina du-
pelo ambiente físico quanto pela qualidade rante uma etapa do seu processo analítico,
do cuidado pessoal, procurando se ajustar às propiciou fortalecimento e crescimento.
expectativas do paciente, para possibilitar o Numa sessão, ao chegar com dor de cabeça
estabelecimento de comunicações mais pro- por fome, Marina solicitou algo para comer.
fundas. Percebi que a fome de Marina era de outra
A adaptação do terapeuta às necessidades ordem, mas o seu desconforto físico não per-
do paciente será fator primordial para o ma- mitia que ela conseguisse usufruir da sessão.

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Por essa razão, lhe ofereci o alimento. A par- de um rompimento da relação psique-soma
tir desse momento ela começou a restaurar sendo caracterizada por múltiplos splittings,
de forma visível uma subjetividade tão frag- múltiplas rupturas, encerrando, contudo, na
mentada, que se fazia presente no corpo. sintomatologia, uma insistência na integra-
Essa experiência não só mudou a visão ção da psique com o soma, sendo isso manti-
que a paciente tinha do mundo, das relações do como defesa contra a ameaça da perda da
objetais, e de si mesma, mas também rein- união psicossomática ou contra alguma forma
tegrou no seu psiquismo aspectos que até de despersonalização (WINNICOTT, 1993, p.
então se encontravam dissociados. A partir 424).
daí ela aprendeu também a se cuidar e a se
alimentar com mais carinho e cuidado quan- Constantemente Marina apresentava sin-
do se encontrava mais fragilizada. O alimen- tomas manifestando dores por todo o corpo.
to oferecido resgatava, assim, cuidados bem Eram verdadeiros espasmos que denuncia-
primitivos que lhe faltaram na vida. vam o contínuo estado de tensão em que
O analista se encontra no papel de ob- se encontrava. Junto com as dores surgiam
jeto subjetivo, e este é necessário para que ímpetos de destruir, arrancar a parte afetada,
a transferência e contratransferência acon- como se pudesse lhe trazer algum alívio.
teçam. O vínculo precisa ser estabelecido Cada emoção vivida tinha uma expres-
para gerar confiabilidade nessa relação e, são no seu corpo. O medo, a insegurança, a
dessa forma, o paciente se sentirá “cuida- excitação, o ódio se localizavam com exces-
do” como fora (ou não) por sua mãe (ou siva facilidade em um órgão do corpo que
outro cuidador) ao longo de sua vida. A entrava em espasmos. Não suportava muita
transferência é uma ferramenta que favo- tensão. O medo do amanhã vivia sempre a
rece o paciente na construção de uma ex- rondá-la, percebia que não tinha um lugar
periência completa para encontrar o seu eu para abrigá-la, se sentia desalojada. A cabeça
individualizado.  a esquentar, o peito a explodir os excessos,
Marina apresentava um quadro clínico as pernas a fraquejar e os pés a querer cami-
que tinha uma variedade de sintomas somá- nhar, procurando uma saída.
ticos e/ou psíquicos, em várias ocasiões com A baixa capacidade de simbolização da
forte intensidade, bem como a necessidade paciente associada à paralisia estagnadora e
de uma elaboração para uma transcrição dos ao excesso de excitações — decorrentes tanto
seus sintomas e uma ressignificação no seu das vivências traumáticas quanto das fanta-
modo de ver a vida. O corpo continuamen- sias da paciente — exigiam continuamente
te se manifestava, para seu desespero. Ora uma sucessão de tradução do seu sentir. Sem
queimava, ora explodia de angústia, ora fica- essa tradução, era impossível dar um passo
va num vazio ou outras vezes sufocava, e em para sair da paralisia e do impasse, conse-
muitas ocasiões era despertado “um desejo guindo posteriormente fazer novas transcri-
enorme de arrancar a dor das entranhas”, re- ções no seu modo de viver.
latava ela. Ao longo do processo desse acompanha-
Em relação a essa questão, Winnicott, mento vivemos momentos mutativos, vitais
analisando ainda a relação psique-soma, diz para que o processo caminhasse mesmo a
que: pequenos passos: durante um bom tempo
não era possível para ela se defrontar com
O colapso das defesas leva ao surgimento da todas as suas experiências emocionais, sob o
ansiedade manifesta em diversos comporta- risco de ser aniquilada. As emoções surgiam
mentos. A doença psicossomática se manifesta em muitos momentos, de forma avassala-
em decorrência de uma fragilidade ou mesmo dora, tomando-a por completo. O medo da

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loucura e o medo de ser aniquilada sempre ding propiciador do descongelamento das


pairavam no ar. situações traumáticas iniciais, saindo assim
O setting, cultivando uma qualidade da paralisia vivida até então. O manejo no
de holding, para um cuidar das feridas de setting possibilitou o resgate da confiança,
Marina e um aconchego para seu fortaleci- passando a dispor de mais recursos internos
mento possibilitaram à paciente a constru- para o enfrentamento do mundo.
ção de vínculos novos com o mundo, com as Marina se sentia sufocada pelas contin-
pessoas, com o trabalho, vitais para seu cres- gências da vida; era difícil dar conta das exi-
cimento e sua transformação. gências tanto internas quanto externas, au-
mentando ainda mais os seus conflitos. Ela
Conclusão pôde construir na sua análise um caminho
São muitos os aspectos importantes que pu- num terreno mais confiável. O vínculo esta-
deram ser trabalhados com Marina no seu belecido abriu espaço para novas relações no
processo psicoterapêutico. Foi necessário seu cotidiano. O setting analítico teve a fun-
que a analista exercesse a função de espe- ção de transformação das suas dores, onde ela
lho olhando para Marina e refletindo para despejava as angústias de seu corpo travado
ela uma imagem com mais nitidez e amo- e dilacerado. Ela foi, aos poucos, no seu pro-
rosidade, ajudando-a a olhar o mundo com cesso, construindo novas imagens, refinando
um novo olhar e cores mais vivas. Somente seus valores. A sua mente precisou formular
quando a criança olha o espelho-rosto da novos caminhos e formas para fazer frente às
mãe e se descobre a si própria nesse espe- adversidades que a vida lhe impõe.
lho, ela poderá se permitir ver o novo e olhar Na situação analítica vivida, o setting foi
criativamente o seu mundo. facilitador de mudanças, e o processo analíti-
Inicialmente acreditávamos que Marina co pôde ajudar a paciente a funcionar de for-
apresentava um quadro depressivo. Pos- ma integrada, permitindo que ela entendesse
teriormente constatamos que seu quadro era a sua organização e funcionamento somáti-
bem mais complexo e que ela apresentava co e psíquico. Ocorreram muitas mudanças
uma estrutura borderline requerendo cuida- após um longo tempo de análise, relativas
dos mais refinados e um manuseio do setting à sua sexualidade e à forma de enfrentar a
se adequando às necessidades mais premen- profissão. Era tempo de calmaria, há quatro
tes dela. O olhar para a estrutura psíquica da anos não retornava ao tema do abuso se-
paciente segundo as ideias winnicottianas fa- xual. Todo o ódio vivido e elaborado no seu
voreceu a instalação de uma relação transfe- processo analítico foi apaziguado, deixando
rencial propiciando uma boa evolução clíni- marcas profundas.
ca com seu crescimento e desenvolvimento Entendemos que a transferência estabe-
emocional. lecida no setting analítico está intimamente
À medida que o processo analítico evo- vinculada à qualidade da experiência afetiva
luía com suas elaborações, o ego de Marina estabelecida no curso da análise apontando
se fortalecia e, como resultado, passamos a para a qualidade do encontro afetivo.
observar uma mudança clínica. Houve uma A reflexão sobre a função do setting e do
modificação nas suas defesas, que passaram enquadre se mostram, assim, adequada e im-
a funcionar de forma menos primitiva; a pa- portante para que se avance pensando sobre
ciente não ficou se sentindo mais aprisiona- esse importante dispositivo de tratamento no
da e paralisada nos seus sintomas. O proces- curso de uma análise. Concluímos, na práti-
so analítico forneceu à paciente elementos ca, que precisamos estar atentos, em algumas
que não foram vividos anteriormente: uma situações clínicas, para a necessidade de pro-
maternagem suficientemente boa, um hol- mover mudanças no manuseio do setting a

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fim de obtermos uma resposta clínica mais FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica
favorável para uma boa evolução do proces- (1927). São Paulo: Escuta, 1987.
so psicanalítico. FERENCZI, S. Escritos sobre técnica (1921a). São
Paulo: Escuta, 1987.

Abstract FERENCZI, S. Prolongamentos da técnica ativa em


We pondered about the analytical setting and Psicanálise (1921b). São Paulo: Escuta, 1987.
the clinical handling of our everyday prac- FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem
tice under the light of the psychoanalytical a psicanálise (1912). In: Edição standard brasileira
theory. We first referred to the Freudian vision das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
and, later on, we approached Ferenczi and Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de
Winnicott, two classic authors in the theori- Janeiro: Imago, 1969, v. XII.
zing of setting/handling of patients with lar- FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1914). In:
ger psychic endangerment or even resistant Edição standard brasileira das obras psicológicas com-
against the therapeutic process, so as to faci- pletas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução
litate psychic changes in the psychoanalytical de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII.
process. Some fragments of an analysis in our
FREUD, S. Sobre o início do tratamento (1913). In:
clinic show a well-succeeded experience and Edição standard brasileira das obras psicológicas com-
reinforce our certainty that the analyst’s move pletas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução
is fundamental to establish communication de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XII.
in the therapeutic setting. His adaptation to
the patient’s needs constitutes the primordial WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de
paturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento
factor for the clinical handling, with the set- emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
ting handling being the main resource in the
treatment of   much-regressed patients. The WINNICOTT, D. W. Textos selecionados da pediatria
warmest initial reception, the flexibility of the à psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
sessions duration to listen to her, to welcome 1993.
her and the availability to assist on some of WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo:
the patient’s manifested needs showed to be of Martins Fontes, 1995.
great importance. I believe that the creation
of a setting adapted to Marina’s needs during
a stage in her analytical process provided her R ecebido em : 1 1 / 0 9 / 2 0 1 3
A provado em : 2 9 / 1 0 / 2 0 1 3
with strengthening and growth.

Keywords: Analytical setting, Psychoanalysis, S ob r e a au tor a


Clinical handling.
Glória Barros
Psiquiatra. Psicanalista. Especializações

Referências em psiquiatria, psicologia clínica/psicanálise,


medicina psicossomática, homeopatia
e psicoterapia somática/biossíntese.
Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco
BARROS, G. O Setting Analítico: Situações Clínicas e do Espaço Psicanalítico da Paraíba (EPSI-PB).
Especiais. Disponível em: <www.fundamentalpsycho-
pathology.org/uploads/files/v_congresso/mr_58_-_ Endereço para correspondência
gloria_barros.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2013. EPSI - Espaço Psicanalítico
Rua Nevinha Cavalcanti, 46 - Miramar
FERENCZI, S. Contraindicações da técnica ativa 58043-000 - João Pessoa/PB
(1926). São Paulo: Escuta, 1987. E-mail: gloriacarvalhobarros@yahoo.com.br

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