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Resumo
Refletimos sobre o setting analítico e o manejo clínico de nossa prática cotidiana, à luz
da teoria psicanalítica. Inicialmente nos referimos à visão freudiana e posteriormente
nos detemos em Ferenczi e Winnicott, dois clássicos nas teorizações sobre o setting/ma-
nejo de pacientes com maior comprometimento psíquico ou mesmo resistentes ao pro-
cesso terapêutico, para facilitar mudanças psíquicas no processo psicanalítico. Alguns
fragmentos de uma análise, de nossa clínica ilustram uma experiência bem-sucedida e
reforçam nosso convencimento de que o movimento do analista é fundamental para o
estabelecimento da comunicação no setting terapêutico. Sua adaptação às necessidades
do paciente constitui fator primordial para o manejo clínico, sendo o manuseio do set-
ting o principal recurso no tratamento de pacientes muito regredidos. O recebimento
inicial mais caloroso, a flexibilização da duração das sessões para ouvi-la e acolhê-la,
e a disponibilidade para atender algumas necessidades manifestadas pela paciente se
mostraram de suma importância. Acredito que a criação de um setting adaptado às
necessidades de Marina durante uma etapa do seu processo analítico, propiciou seu
fortalecimento e seu crescimento.
para seu desenvolvimento, assim como os lítica (FERENCZI, 1921a e 1921b). Ele esta-
princípios da própria relação, transferencial belece a técnica ativa como medida a ser uti-
e contratransferencial, estabelecida entre lizada com pacientes resistentes ao método
analisando e analista. interpretativo.
No seu texto Recordar, repetir e elaborar O percurso clínico de Ferenczi é todo
(1914) Freud faz um histórico do desenvol- pautado no desafio de acolher o sofrimento
vimento da técnica psicanalítica, sublinhan- dos pacientes chamados “difíceis” (1926). Ele
do “as alterações de grandes consequências conclui que as dificuldades enfrentadas nes-
que a técnica psicanalítica sofreu desde os ses processos eram decorrentes da “insen-
primórdios” (FREUD, 1969, p. 193). Ele sibilidade” dos analistas, que não queriam
concebia o setting analítico, como um lugar se deixar afetar pelo encontro analítico, se
específico para que a relação terapêutica se pronunciando por introduzir a faculdade de
desenvolvesse; é composto por um conjunto “sentir com”, pelo projeto de “soltar a língua”
de elementos que podem ser compreendidos (1927).
como variáveis independentes, que devem Para o autor seria preciso tornar a téc-
permanecer sob controle, para assegurar o nica mais elástica, de maneira a favorecer
êxito do tratamento: o analista; o paciente; o a expressão afetiva. O privilégio dado à
cerimonial; o tempo; o dinheiro; a regra fun- expressão de afetos na análise provocou,
damental; a atenção flutuante. assim, uma ampliação cada vez maior dos
Nos textos Recomendações aos médicos limites do permitido na clínica, chegando-
que exercem a psicanálise (1912) e Sobre o se à formulação de um princípio de relaxa-
início do tratamento (1913), Freud ressalta mento como contraponto ao de abstinência
que o que garante efetivamente a situação (1927).
analítica é não tanto os dispositivos propor- Ferenczi introduz seu projeto de “soltar
cionados pelo setting, mas a posição simbó- as línguas” nas análises, implicando e con-
lica assumida pelo analista no percurso de vocando o analista à adoção de um estilo clí-
uma análise. Para ele o conjunto de deriva- nico diferenciado, resgatando a criatividade
ções dessa posição interna do analista é que do analisando, exercitando a sua capacidade
dá consistência ao tratamento. de brincar, fantasiar e imaginar. Ele aborda
No V Congresso Psicanalítico Internacio- o conceito de contratransferência como algo
nal (1918) Freud recomenda uma mudança que não dificultaria a análise, mas que faz
de atitude do analista nos casos em que a aná- parte da própria técnica a ser empregada. O
lise da transferência não se apresenta como manejo técnico deve dosar bem a empatia
recurso suficiente para vencer as resistências e a capacidade de “sentir com”, e o processo
e desentravar o processo, e ao analista cabe é conduzido melhor a partir da análise pes-
adotar uma postura mais ativa. Ele transfe- soal do analista, que o capacitará para ava-
re a incumbência de prolongar a duração do liar a situação analítica a distância. Esse é o
tratamento e de encontrar técnicas capazes entendimento que Ferenczi tem do analista
de atestar o sucesso do método analítico para elástico.
seus discípulos. E foi Ferenczi quem mais se Seguindo a mesma linha de pensamento
destacou nessa tarefa. de Ferenczi, Winnicott sentiu que era vital
A percepção da dificuldade apresenta- reexaminar sua técnica, pois suas observa-
da pelos pacientes bastante regredidos que ções clínicas apontavam para a necessidade
frequentavam a clínica de Ferenczi o levou de uma adaptação do setting para promover
à formulação de que a técnica e o enquadre uma evolução favorável do paciente e ajudá-
utilizados eram responsáveis pela produção -lo no fortalecimento e na evolução de sua
de “resistências objetivas” à experiência ana- personalidade.
zações ele “apresenta o manejo como um ele- Tempo, paciência e tolerância eram vitais
mento importante, facilitador de mudanças nesse processo, tanto para ela quanto para
psíquicas no paciente”. mim. Marina caminhava muito lentamente
nas suas elaborações. Nós não poderíamos
Da teoria psicanalítica ter pressa. Juntas, passamos a viver em mui-
à pratica clínica tos momentos uma experiência de mutuali-
Nesse contexto, quero apresentar Marina, dade.
paciente que bem se adéqua às nossas refle- Winnicott (1993) afirma que o paciente
xões do tema que escolhemos para discutir busca no terapeuta as funções de que neces-
neste momento. Minha supervisora havia sita. Se o terapeuta compreende a situação,
me indicado para que Marina continuasse temos um momento mutativo. E nos fala ain-
seu processo terapêutico comigo e, apesar da em formas especiais de conduzir o setting
de saber que iria encurtar duas horas para como uma metáfora dos cuidados maternos.
chegar ao local de seu tratamento, ela não Observa-se que ele privilegia o modelo de
se sentia tranquila para fazer essa passagem. cuidado materno, transportando-o para o
Coincidentemente eu a encontrei na saída de setting, incluindo o analista como parte do
sua sessão, e esse encontro foi decisivo para setting, que é visto como o lugar que pro-
que ela me procurasse depois do parto, já porciona o desenvolvimento. Nas situações
que estava no final de sua terceira e última vividas neste caso, a analista privilegiou esse
gestação. modelo de cuidado a partir da compreensão
Ao chegar para a primeira sessão, Marina do processo de Marina.
diz “O seu olhar, sorriso e o aperto de mão Marina havia iniciado sua primeira análi-
no nosso primeiro contato abriram caminho se por causa de um quadro depressivo grave.
para que eu decidisse vir até aqui”. Após qua- Com esse acompanhamento, pôde elaborar
tro meses do parto, ela me procura. Vinha e enfrentar o seu medo de engravidar, rela-
sempre acompanhada de seu bebê e do ma- cionando seu quadro ao abuso sexual sofrido
rido. aos 5 anos, pelo marido de uma tia. Ela fazia
Traremos alguns fragmentos da análise de referência ao fato como “o estrago que esse
Marina, que durou cerca de doze anos e, até fato provocara na sua vida”.
hoje, através dos contatos telefônicos manti- A mãe dizia para Marina esquecer o
dos nos seus momentos de alegria e aflição, ocorrido e, em determinada ocasião, ela foi
constatamos a importância do acolhimento obrigada a fazer um tratamento dentário no
sustentado ao longo de todo o seu processo tio, como forma de agradecimento e paga-
para a manutenção de um campo de con- mento, pois ele havia transportado no seu
fiança e um vínculo transferencial. Marina, caminhão os móveis de consultório dela.
32 anos, odontóloga, era casada, tinha três Marina se sentia desamparada e incom-
filhas, mas não exercia a profissão naquele preendida pela família, não acreditava que
momento. sua depressão tivesse relação com o abuso
Quando iniciou sua análise comigo, ainda sofrido, afirmavam que aquilo tudo era “coi-
era grande a sua fragilidade. Depois de al- sa do diabo”. Eles eram evangélicos e diziam
guns anos, conseguiu falar sobre o abuso se- para ela rezar, ter mais fé e que se ela fosse
xual que havia sofrido na infância e, a partir à igreja não precisaria fazer terapia nem to-
daí, esse tema ia e vinha ao longo de muitos mar remédios.
anos de seu processo psicoterapêutico, sen- Diante de tal situação, como enquadrar
do trabalhado intensamente. Depois de um o caso que eu tinha na minha frente me de-
tempo de calmaria, esse tema voltava a bailar safiando e me fazendo ver que algumas mu-
novamente com toda a força. danças no manejo deveriam ser adotadas?
Por essa razão, lhe ofereci o alimento. A par- de um rompimento da relação psique-soma
tir desse momento ela começou a restaurar sendo caracterizada por múltiplos splittings,
de forma visível uma subjetividade tão frag- múltiplas rupturas, encerrando, contudo, na
mentada, que se fazia presente no corpo. sintomatologia, uma insistência na integra-
Essa experiência não só mudou a visão ção da psique com o soma, sendo isso manti-
que a paciente tinha do mundo, das relações do como defesa contra a ameaça da perda da
objetais, e de si mesma, mas também rein- união psicossomática ou contra alguma forma
tegrou no seu psiquismo aspectos que até de despersonalização (WINNICOTT, 1993, p.
então se encontravam dissociados. A partir 424).
daí ela aprendeu também a se cuidar e a se
alimentar com mais carinho e cuidado quan- Constantemente Marina apresentava sin-
do se encontrava mais fragilizada. O alimen- tomas manifestando dores por todo o corpo.
to oferecido resgatava, assim, cuidados bem Eram verdadeiros espasmos que denuncia-
primitivos que lhe faltaram na vida. vam o contínuo estado de tensão em que
O analista se encontra no papel de ob- se encontrava. Junto com as dores surgiam
jeto subjetivo, e este é necessário para que ímpetos de destruir, arrancar a parte afetada,
a transferência e contratransferência acon- como se pudesse lhe trazer algum alívio.
teçam. O vínculo precisa ser estabelecido Cada emoção vivida tinha uma expres-
para gerar confiabilidade nessa relação e, são no seu corpo. O medo, a insegurança, a
dessa forma, o paciente se sentirá “cuida- excitação, o ódio se localizavam com exces-
do” como fora (ou não) por sua mãe (ou siva facilidade em um órgão do corpo que
outro cuidador) ao longo de sua vida. A entrava em espasmos. Não suportava muita
transferência é uma ferramenta que favo- tensão. O medo do amanhã vivia sempre a
rece o paciente na construção de uma ex- rondá-la, percebia que não tinha um lugar
periência completa para encontrar o seu eu para abrigá-la, se sentia desalojada. A cabeça
individualizado. a esquentar, o peito a explodir os excessos,
Marina apresentava um quadro clínico as pernas a fraquejar e os pés a querer cami-
que tinha uma variedade de sintomas somá- nhar, procurando uma saída.
ticos e/ou psíquicos, em várias ocasiões com A baixa capacidade de simbolização da
forte intensidade, bem como a necessidade paciente associada à paralisia estagnadora e
de uma elaboração para uma transcrição dos ao excesso de excitações — decorrentes tanto
seus sintomas e uma ressignificação no seu das vivências traumáticas quanto das fanta-
modo de ver a vida. O corpo continuamen- sias da paciente — exigiam continuamente
te se manifestava, para seu desespero. Ora uma sucessão de tradução do seu sentir. Sem
queimava, ora explodia de angústia, ora fica- essa tradução, era impossível dar um passo
va num vazio ou outras vezes sufocava, e em para sair da paralisia e do impasse, conse-
muitas ocasiões era despertado “um desejo guindo posteriormente fazer novas transcri-
enorme de arrancar a dor das entranhas”, re- ções no seu modo de viver.
latava ela. Ao longo do processo desse acompanha-
Em relação a essa questão, Winnicott, mento vivemos momentos mutativos, vitais
analisando ainda a relação psique-soma, diz para que o processo caminhasse mesmo a
que: pequenos passos: durante um bom tempo
não era possível para ela se defrontar com
O colapso das defesas leva ao surgimento da todas as suas experiências emocionais, sob o
ansiedade manifesta em diversos comporta- risco de ser aniquilada. As emoções surgiam
mentos. A doença psicossomática se manifesta em muitos momentos, de forma avassala-
em decorrência de uma fragilidade ou mesmo dora, tomando-a por completo. O medo da
fim de obtermos uma resposta clínica mais FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica
favorável para uma boa evolução do proces- (1927). São Paulo: Escuta, 1987.
so psicanalítico. FERENCZI, S. Escritos sobre técnica (1921a). São
Paulo: Escuta, 1987.