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c c  social groups¶ identities, which is the central point in Atualmente, os debates acerca do conceito de


   the alimentary culture SAN visam sua qualificação, do mesmo modo que
CULTURA ALIMENTAR: CONTRIBUIÇÕES DA debate. Second, the role of citizenship, which is the pretendem qualificar as ações que o envolvem.
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO prerogative for Food Isso pode ser percebido nos fóruns de debates da
2  
  and Nutritional Security. sociedade civil organizada, nas discussões

  
    ! "#  ALIMENTARY CULTURE ± FOOD AND envolvendo

  NUTRITIONAL SECURITY ± os governos e na atuação dos Conselhos
G  
    ANTHROPOLOGY OF FOOD. de Segurança Alimentar e Nutricional. O expressivo
       VIVIAN BRAGA* número de pesquisas acadêmicas na área,
 Na década de 90, cresceu a valorização   

  decorrentes
do respeito à cultura alimentar  
   do aumento do incentivo das
na construção da noção da segurança alimentar e   !"# instituições financiadoras para a realização de
nutricional $% 
&'"()* trabalhos
(SAN). Nesse sentido, o presente artigo explora a +,*-./0*12 * sobre SAN, também indica a relevância do
noção de cultura alimentar 030,/40/* !" tema.****
e o modo como ela é tratada no debate sobre vbraga@ibase.br Um dos temas da SAN que passam por esse
segurança alimentar c c  processo de qualificação é o tema da cultura
e nutricional. A abordagem teórica utilizada 5SAÚDE REV., Piracicaba, 6(13): 37-44, 2004 alimentar.
considera o conceito de cultura INTRODUÇÃO Nesse contexto, o presente artigo propõe
alimentar da antropologia e o papel da cultura nas m 2003, o combate à fome assume centralidade uma reflexão sobre a noção de cultura alimentar
práticas de alimentação. nas questões políticas do Brasil, com o e sua inserção nos debates sobre a SAN. Em
Dois aspectos são ressaltados. Primeiro, os governo Lula. A partir de então, o conceito primeiro
significados da de segurança alimentar e nutricional ganha lugar, aborda-se o conceito de cultura alimentar
alimentação, principalmente aqueles relacionados visibilidade e o papel da cultura na alimentação.
às identidades de grupos e força, no sentido de nortear o desenho Chama-se atenção para os significados da
sociais, que é ponto central na discussão sobre das políticas voltadas para a erradicação da fome. alimentação,
cultura alimentar. Segundo, Conceitualmente, segurança alimentar e nutricional principalmente aqueles que traduzem a
o papel da cidadania, a qual é prerrogativa para a (SAN) exprime a compreensão da alimentação identidade de um grupo social ± questão central
segurança enquanto um direito humano que deve do debate sobre cultura alimentar, bem como
alimentar e nutricional. ser garantido pelo Estado. Implica a garantia de daqueles
˜   CULTURA ALIMENTAR ± todos(as) a alimentos básicos de qualidade e em acerca de cidadania, prerrogativa da segurança
SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL quantidade suficiente, de modo permanente e alimentar e nutricional.
± ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO. sem comprometer o acesso a outras necessidades A seguir, mostra-se como os símbolos e
 2  During the nineties, respect for essenciais. O conceito também prescreve práticas significados
alimentary culture gained alimentares saudáveis, de modo a contribuir para que compõem a cultura agem sobre a alimentação.
importance in the building of the Food and uma existência digna em um contexto de Discute-se a distinção entre o que é
Nutritional Security Policy desenvolvimento alimento e o que é comida. Trata-se das
(SAN) notion. In that sense, this article analyses the integral da pessoa humana.* A essa preferências
notion of alimentary definição somam-se outros aspectos que vêm alimentares, não apenas como substância
culture and the way it is treated in the debate on sendo alimentar,
Food and Nutritional debatidos amplamente pelos militantes e/ou mas, sobretudo, como um modo, um
Security. The theoretical approach considers the acadêmicos que trabalham com SAN. Entre esses estilo, um jeito de se alimentar. Jeito de comer
anthropological concept aspectos, cabe citar a soberania alimentar,** a que define não só aquilo que é ingerido como
of alimentary culture and the role of culture in food defesa também aquele que o ingere. Assim, formação
practices. Two aspects da sustentabilidade do sistema agroalimentar das preferências alimentares e da identidade são
are emphasized. First, the meanings of food, baseado no uso de tecnologias ecologicamente elementos socioculturais distintos das percepções
specifically those related to the sustentáveis e, por fim, a questão da preservação nutricionais e econômicas acerca da alimentação.
da cultura alimentar.*** Esse é o enfoque dos estudos antropológicos sobre
a temática alimentar. CULTURA ALIMENTAR: CONTRIBUIÇÕES DA social. Desse modo, práticas alimentares revelam
Finalmente, apresenta-se como os estudos ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO a cultura em que cada um está inserido, visto
antropológicos partilhados entre os membros do sistema cultural, que  
são associadas a povos em particular.
sobre alimentação podem contribuir assumindo um caráter público e, portanto, não 11 No Brasil, por exemplo, o arroz e o feijão
para o desenho das políticas de segurança individual ou privado. Tal abordagem aceita a crítica são traços de nossa identidade nacional, pois são
alimentar de Marshal Sahlins16 à idéia de que a cultura consumidos diariamente, de norte a sul do país,
e nutricional. é formulada por meio da atividade prática e do por milhões de brasileiros. No plano regional, há
O QUE É CULTURA ALIMENTAR? interesse utilitário. Para esse antropólogo, a cultura alimentos que funcionam como

 
A proposta desta seção é tratar dos determinantes define a vida não por meio das pressões materiais 
  , ou seja, pratos que estão
culturais para a alimentação. Para isso, impostas pelo cotidiano, mas de um sistema associados
busca-se melhor precisar o que é cultura alimentar, simbólico. Complementa essa concepção o à sua região de origem: o churrasco gaúcho,
a partir de algumas abordagens antropológicas. argumento o vatapá e o acarajé baianos, o pão-de-queijo
Mais especificamente, pretende-se apontar de Mary Douglas5 de que as regras que mineiro, entre outros.10
que papel a cultura desempenha na alimentação constituem o sistema simbólico são, em sua O PAPEL DA CULTURA NA ALIMENTAÇÃO
humana. formulação, ³Toda substância nutritiva é  , mas
Na antropologia, a cultura pode ser entendida arbitrárias e possuem uma nítida intenção nem todo alimento é  
.´ A afirmação de
como um   6, ou seja, um conjunto de disciplinar o comportamento humano. Da Matta remete ao aspecto da alimentação
de mecanismos de controle, planos, receitas, regras À luz dessas afirmações, pode-se afirmar que e, por conseguinte, àquilo que a transforma
e instruções que governam o comportamento nossos hábitos alimentares fazem parte de um em  
-A partir da diferenciação estabelecida
humano.9 Esses símbolos e significados são sistema pelo autor entre alimento e comida, é possível
* Definição extraída do documento oficial brasileiro cultural repleto de símbolos, significados e verificar
preparado para a Cúpula Mundial de Alimentação classificações, de modo que nenhum alimento o papel da cultura na alimentação.
(CMA) em Roma, 1996. está livre das associações culturais que a sociedade Alimento é algo universal e geral. Algo que diz
** Soberania alimentar é o direito dos países lhes atribui. Nesse caminho, vale dizer que essas respeito a
definirem suas próprias políticas e estratégias de associações determinam aquilo que comemos todos os seres humanos: amigos ou inimigos, gente
produção, distribuição e consumo de e bebemos, o que é comestível e o que não o é. de
alimentos. (Cf. projeto Fome Zero. Uma proposta de Símbolos, significados, situações, comportamentos perto e de longe, da rua ou de casa, do céu e da
política de segurança alimentar para o Brasil. e imagens que envolvem a alimentação terra.
Instituto da Cidadania, São podem ser analisados como um sistema de Mas a comida é algo que define um domínio e põe
Paulo, out. 2001). comunicação, as
***O tema cultura alimentar surge no debate da no sentido de que comunicam sobre a coisas em foco. Assim, a comida é correspondente
segurança alimentar e nutricional como algo a ser sociedade que se pretende analisar.5 ao
respeitado. Segundo o conceito, É possível, ainda, argumentar que a cultura famoso e antigo
4 , expressão equivalente a
³Todo país deve ser soberano para assegurar sua alimentar é constituída pelos hábitos alimentares refeição,
segurança alimentar, respeitando as características em um domínio em que a tradição e a inovação como de resto é a palavra comida. Por outro lado,
culturais de cada povo, manifestadas têm a mesma importância.11 Ou seja, a cultura comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma
no ato de se alimentar.´ Definição extraída do alimentar não diz respeito apenas àquilo que tem coisa
documento oficial brasileiro preparado para a CMA, raízes históricas, mas, principalmente, aos nossos que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo,
em Roma, 1996. hábitos cotidianos, que são compostos pelo que é por
**** No ano de 2003, o Conselho Nacional de tradicional e pelo que se constitui como   isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa. (Da
Pesquisa (CNPq) disponibilizou cerca de nove 86. Matta,4 p.
milhões de reais para projetos de pesquisa Um outro aspecto da cultura alimentar referese 22)
de interface com a segurança alimentar e aquilo que dá sentido às escolhas e aos hábitos Portanto, o que se come, quando, com quem,
nutricional. alimentares:  


 - Sejam as por que e por quem é determinado culturalmente,
 escolhas transformando o alimento (substância nutritiva)
c c  modernas ou tradicionais, o comportamento em comida. Comida de criança, comida de

  7 relativo à comida liga-se diretamente ao sentido domingo, comida de festa etc. Esses são exemplos
que conferimos a nós mesmos e à nossa identidade de classificações dadas aos alimentos. E ainda,
como diria Barthes:1 ³Cada situação possui a sua  e de indivíduos dentro das classes. identidades práticas, preferências, repulsões,
própria situação alimentária´. Cabe citar, como Essa oposição seria entre os alimentos
* ritos e tabus, isto é, no aspecto simbólico da
exemplo, as particularidades das comidas de festa.  , de um lado, e os alimentos  * alimentação.
Os docinhos tipicamente servidos em festas de 6
 
 , de outro. A observação reforça o argumento de que comer
crianças, casamentos etc. revelam a presença Na sociedade brasileira, destaca-se a preferência não é apenas uma mera atividade biológica.
portuguesa pelo o que é 9
em detrimento do que é Do mesmo modo, suas razões não são estritamente
em nossa cozinha.8 . Aqui, o 9
se apresenta em oposição ao econômicas. A comida e o comer são, acima
Um outro aspecto do papel da cultura na que é , da mesma forma que  está de tudo, fenômenos sociais e culturais e a
alimentação para  
-Nesse sentido, o alimento cozido é nutrição, um assunto fisiológico e de saúde. Nesse
está na formação do . Experiências algo social por definição.4 Cabe ressaltar a caminho, vale o argumento de Barthes,1 para
de culturas em particular afetam a maneira importância quem as unidades alimentares que rodeiam a
como os indivíduos concebem e classificam as social do cozido enquanto um prato em alimentação
qualidades do gosto e como se formam as nosso cardápio, bem como sua simbologia de e que normalmente orientam o comportamento
preferências congregação, expressada na mistura de variedade e as decisões dos consumidores ± as
pelos sabores (doce, amargo, salgado, picante dos artigos alimentares, num mesmo prato, servidos socioculturais ± são muito mais sutis que as
etc.) de populações e individualmente. em ocasiões que envolvem comensalidade. unidades,
Além disso, em muitos sistemas culturais, o gosto A história do liga-se à história do cotidiano normalmente manejadas por nutricionistas
e o olfato identificam e hierarquizam as classes em suas sutilezas e às estruturas sociais, culturais e economistas.*
de alimentos naquilo que é comestível em e ideológicas. Esse argumento está ancorado No entanto, a comida, enquanto tal, foi menos
oposição ao que não é. De igual maneira, as em Brillart-Savarin2 que, ao escrever a obra interessante para a antropologia do que as
propriedades : suas implicações sociais. Dos anos 30 aos 60, o
visuais e de textura são outras características
, aponta caminhos socioculturais tema aparece em monografias sempre atrelado
sensoriais que determinam se os de compreensão para tal questão que, a princípio, aos capítulos sobre sobrevivência e economia
alimentos são apropriados ou não dentro uma parece estar apenas sobre o domínio fisiológico. doméstica.
sociedade. Assim, a textura e o sabor constituem, Em termos mais gerais, procurou-se demonstrar Somente em 1966, nas obras de Raymond
em boa medida, o que é familiar nos alimentos que o significado simbólico e a significação & Rosemery Firth, é que a comida assume
e o que pode influir na aceitação de nutricional dessas dimensões variam segundo o o papel central. Isso talvez porque a comida e sua
novos alimentos.13 As características visuais, contexto cultural, assim como a inclinação individual preparação fossem vistas como trabalho de mulher,
c c  em obedecer as regras impostas pela cultura. e a maioria dos antropólogos fossem homens,
3/SAÚDE REV., Piracicaba, 6(13): 37-44, 2004 QUESTÕES ANTROPOLÓGICAS GERAIS ou porque o estudo da comida fosse
como a cor, forma e aparência de conjunto, também A alimentação vem sendo analisada sob várias considerado prosaico e pouco importante,
afetam a aceitabilidade e as preferências abordagens independentes e ao mesmo tempo comparado
alimentares, complementares: a 6
   , na a outros, como a guerra.11
pois configuram aspectos do qual a relação entre a oferta e a demanda, o As análises antropológicas se propõem, em
simbolismo alimentar. Sobre essa dimensão abastecimento, grande medida, ao estudo de hábitos alimentares.
simbólica, os preços dos alimentos, renda e acesso Daí surgem as especificidades atribuídas a cada
Bourdieu (1989) afirma que as pessoas e aos alimentos são os principais componentes; estudo para o desvendamento da cultura e das
os extratos sociais se distinguem pela maneira a 6
  , com ênfase na culturas alimentares, revelando comportamentos
como as pessoas usam os bens materiais e composição diversos centrados na comida. Ainda assim, até os
simbólicos dos alimentos, na preocupação com a saúde e anos 80, o tema não era relevante para a
de uma sociedade de acordo com o acesso com o bem-estar de grupos e indivíduos; a antropologia.
a esses bens, dando sentido ao mundo social. 6
  A partir da década de 90, ocorrem mudanças
Sobre as propriedades de textura, Barthes1 , voltada para as associações entre a significativas nesses estudos, ligados
chama atenção para o importante papel que ela alimentação e a organização social do trabalho, a principalmente ao forte crescimento de um mercado
ocupa na seleção dos artigos alimentares. Na diferenciação social do consumo, os ritmos e estilos mundial de alimentos.
cultura de vida; a 6
 , interessada nos * Essa afirmação não exclui a possibilidade, ou
ocidental, por exemplo, há uma oposição gostos, hábitos, tradições culinárias, mesmo a necessidade, da troca de percepções
simbólica que determina a escolha por parte de representações, entre os campos de conhecimento
referidos, sendo essa troca uma diretriz alimentares ameaçadas pelos efeitos da estão em foco. Por exemplo: a identidade étnica
metodológica fundamental para os estudos sobre 69;1. pode estar estreitamente relacionada a uma
alimentação. Entre os efeitos nocivos, destaca-se a perda tradição
c c  da soberania desses países em decidir o que culinária particular.5 Além disso, é possível

  3, produzir resgatar alimentos que faziam parte do cardápio
CULTURA ALIMENTAR: CONTRIBUIÇÕES DA e comer. Também é denunciada a tendência dos antepassados e que, hoje, estão relegados a
ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO global à massificação do gosto alimentar, observada um segundo plano. Modos de preparo, ingredientes,
Nesse contexto, vale a pena citar os objetos de a partir da preferência dos consumidores a condimentos e uma série de elementos típicos
alguns estudos que se ocupam do tema. São eles: produtos industrializados em detrimento dos da culinária de grupos determinados podem
a investigação da alimentação de populações produtos . No Brasil, como em outros ser recuperados a partir desses estudos. As
humanas países em desenvolvimento, é possível perceber a pesquisas
e grupos sociais e a relação com seu meio ocorrência desse processo de massificação. Nos sobre alimentação contribuem, ainda, para
ambiente; a construção simbólica das culturas; as últimos 30 anos, os hábitos alimentares dos a valorização da diversidade alimentar, reforçando
relações e estruturas sociais das sociedades; os brasileiros aspectos referentes à saúde e à nutrição.
determinantes mudaram bastante. Essas mudanças são No âmbito da segurança alimentar e nutricional,
socioculturais do consumo de alimentos, conseqüência dos variados processos de ressalta-se a relevância dos estudos das estruturas
com ênfase doméstica às investigações transformação alimentares para a compreensão dos riscos
dietéticas e de nutrição; e, por último, as relações relativos à produção e ao consumo de ligados à adoção de práticas alimentares novas e
históricas e evolutivas entre dieta e consumo no alimentos. A crescente padronização e distintas das tradicionais. Isso implica afirmar que
mundo e em culturas específicas. homogeneização a elaboração de políticas específicas deve
A existência de diferenças entre o bem-estar da alimentação por meio da produção considerar
nutricional de diferentes povos, ou mesmo dentro industrial em massa e o aumento de monoculturas as características culturais dos grupos beneficiados.
de uma mesma sociedade, também é considerada. (como o caso da soja, no Brasil) geraram, ao É o caso, por exemplo, das políticas voltadas
Isso é feito com base nas disponibilidades longo das ultimas décadas, o desmantelamento * A grande maioria da população brasileira (81%)
ecológicas e do mercado de alimentos, e as dos sistemas locais de produção, impactando reside, hoje, nas cidades (Dado do Censo 2000 ±
diversas diretamente IBGE).
questões culturais que restringem ou limitam na distribuição e consumo de alimentos. c c 
o acesso aos alimentos por grupos ou indivíduos. Além disso, esses processos afetam a 30SAÚDE REV., Piracicaba, 6(13): 37-44, 2004
Conseqüências nutricionais e médicas das pautas diversidade alimentar e, conseqüentemente, o para remanescentes de quilombos, indígenas e
culturais de consumo particulares, incluindo as direito de cada pessoa ou grupo de exercer a livre caiçaras. Nesse sentido, o fracasso de algumas
pautas de divisão dos alimentos entre os membros escolha sobre o que consumir. Somam-se a políticas
do sistema cultural, também são consideradas. essas transformações aquelas ligadas ao processo públicas pode estar associado à ignorância
Embora a abrangência dos temas seja de urbanização e o ritmo de vida das cidades, dos seus executores. Ao desconhecer a realidade
notável, essas possibilidades de estudos ainda não regiões cultural de uma determinada população, eles criam
foram suficientemente exploradas. metropolitanas e periferias metropolitanas,* políticas que não atendem adequadamente às
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA CULTURA onde prevalece o consumo alimentar fora necessidades desses grupos.
ALIMENTAR PARA A SAN do domicílio. Veja-se o que ocorreu, por exemplo, com o
Entre os aspectos que compõem o conceito Diante desse quadro, cabe destacar a importância programa do leite e óleo. Ligado à Secretaria de
de segurança alimentar e nutricional, sublinhase dos estudos de antropologia da alimentação, Saúde do Estado do Rio de Janeiro, o programa
a preocupação com o respeito e a preservação que possibilitam a compreensão dos nossos visa atender famílias em situação de fome e
da cultura alimentar de cada povo. Nesse sentido, padrões alimentares, suas origens, composição, desnutrição.
cada país deve ter condições de assegurar seus valores simbólicos e uma série de aspectos Nesse programa, são distribuídos leite
sua alimentação, sem que lhe seja imposto um que nos auxiliam na conscientização sobre o que em pó e óleo de soja para que sejam misturados,
padrão alimentar estranho às suas características somos por meio do que comemos. Isso significa já que essa mistura proporciona um aumento
e tradições. dizer que a análise da cultura alimentar permite calórico.
Essa concepção surge como uma reivindicação refletir sobre a especificidade dos diferentes Assim, é explicado às pessoas atendidas
feita por grupos que percebem suas práticas campos pelo programa que o óleo facilita a absorção de
que interagem quando práticas alimentares nutrientes do leite. No entanto, grande parte das
mães não prepara essa mistura. Por quê? provedora dos alimentos para a família, agindo CULTURA ALIMENTAR: CONTRIBUIÇÕES DA
Simplesmente como porteiro;* 2) ela é compreendida a partir ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO
porque não temos o hábito de beber leite da noção de ) 9;1
6 9, que evidencia razão devem ser buscados na história de cada
com óleo, mas, sim, beber o leite e usar o óleo que a fome, assim como outros problemas sociais, sociedade
para fritar, cozinhar etc. Esse é um caso de atinge mais mulheres do que homens.7 Para ou cultura. De igual maneira, quando se
ineficiência além desses, estão outros estudos que apontam fala em alimentação, devem ser observados os
de uma política pública que não considera para o lugar ambíguo que a mulher ocupa na contextos marcados pela sua ausência. Em outras
as práticas alimentares  . questão da SAN. Ela continua como responsável palavras, deve-se lançar luz sobre a fome e seus
Questões relativas à 
) também pelo ambiente doméstico e, daí, pela alimentação. significados, bem como as estratégias de
precisam ser trabalhadas em cenários como o do Entretanto, no campo político, não ocupa arenas sobrevivência
Brasil, em que a fome se apresenta como um importantes de decisão como sujeito de políticas criadas pelos grupos vulneráveis para suprir
resultado que afetam seu cotidiano.14 Usualmente, tais a fome, que podem contribuir muito para a
fisiológico de um processo histórico, político, políticas compreensão de suas causas e, posteriormente,
econômico e cultural. Sobre esse ponto, ignoram as experiências construídas pelas sua erradicação.
refiro-me a situações em que a fome é sentida e mulheres ao exercerem a responsabilidade pela No entanto, o conhecimento sobre esses aspectos
associada aos ou de uma sociedade, amamentação e a alimentação da família. A partir ainda é muito incipiente. A experiência
deslocando o sentido de compreensão da fome desse quadro, é preciso pensar o papel da mulher brasileira revela o desconhecimento, por parte de
como um problema de caráter social para um e o lugar que ela ocupa nas decisões políticas sobre seu povo, de questões importantes ligadas à
problema espiritual ou religioso. É imprescindível SAN. alimentação.
o melhor entendimento sobre os significados CONSIDERAÇÕES FINAIS O que comemos, por que comemos, a
atribuídos Pode-se dizer que as situações em relação à origem dos alimentos, suas conseqüências para a
à fome por aqueles que a sentem, bem comida são aprendidas bem cedo e que o que saúde etc. são assuntos pouco debatidos.
como sobre as estratégias coletivas e individuais aprendemos está inserido em um corpo substantivo Obviamente,
para superá-la. E, ainda, os quadros referentes ao de materiais culturais historicamente derivados. uma população mal alimentada e com
contexto da alimentação mundial. Nele assistimos 11 A comida e o comer assumem, assim, uma fome não se detém sobre tais questões. Todavia,
a um deslocamento de pessoas e alimentos, posição central no aprendizado social por sua os debates promovidos pela sociedade no Brasil e
uma separação crescente de produtores e natureza o papel protagonista que o país ocupa nessa
consumidores, vital, essencial e cotidiana. Esse aprendizado, temática
uma tendência cada vez mais em se consumir inserido em diferentes gramáticas culturais, ensinam que há alternativas. Talvez nossa
produtos industrializados ± tendência esta determina as categorizações dos diferentes fragilidade alimentar seja nossa maior força. Ela
que afeta o cotidiano e as práticas alimentares de alimentos traz a indignação e, conseqüentemente, a energia
toda a humanidade. por intermédio de princípios de exclusão necessária para se debater e produzir
Por fim, não esgotando as possibilidades de e associação entre alimentos, das prescrições e conhecimento
estudos acerca da cultura alimentar e suas proibições tradicionais e religiosas, dos ritos da sobre o tema.
contribuições mesa e da cozinha, ou seja, de toda a estrutura da A antropologia da alimentação se propõe,
para a SAN, destaco a importância da questão alimentação cotidiana. Os diferentes usos de cada grosso modo, a realizar esses estudos. E, apesar
de gênero no conteúdo desse tema. Vários um dos alimentos, sua ordem, sua composição, das possibilidades apresentadas, os estudos dos
estudos antropológicos apontam que a mulher suas combinações, a hora e o número das refeições antropólogos tiveram e têm, ainda, pouco impacto
estabelece diárias, tudo está codificado de um modo sobre as políticas alimentares e nutricionais,
uma relação estreita com a alimentação, preciso. Isso influi na eleição, na preparação e no talvez pelo fato de estarem distantes de questões
em seu aspecto cultural. Destacam-se os estudos consumo dos alimentos, sendo resultado de um que, de fato, envolvem diretamente a política, ou
que abordam a relação entre a comida e a imagem processo social e cultural cujo significado e cuja seja, que proporcionariam o melhor desenho de
do corpo; outros tratam da relação entre * Expressão empregada por Rossi para designar o políticas por meio da compreensão sobre as
domesticalidade papel da mulher como aquela que determina os 
e liberação das mulheres; outros, alimentos que entram na casa   . São necessários estudos que
ainda, das ligações entre comida e autoidentificação para o consumo posterior. apontem as causas socioculturais, políticas e
com gênero. Entre esses estudos, sublinhamse c c  econômicas
algumas definições: 1) a mulher vista como 
  3 que estão na raiz das mudanças nas pautas
alimentares e nutricionais de cada país, em 3. Contreras J, org. Alimentação e cultura:
todo mundo.13 Ou como as famílias, grupos ou necessidades, gostos e costumes. Barcelona:
indivíduos organizam seus recursos alimentares Universidade de Barcelona; 1995.
potenciais. Mais especificamente, pesquisas que 4. Da Matta R. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de
apontem os efeitos dos diferentes tipos de políticas Janeiro: Rocco; 1986.
alimentares e econômicas sobre a escolha dos 5. Douglas M. Pureza e perigo. São Paulo: Editora
alimentos, quais alimentos são consumidos, assim Perspectiva; 1976.
como o significado desse consumo. E, ainda, vemos 6. ______. Deciphering a Meal e Self-evidence. In:
hoje a necessidade de estudos que apontem Implicit Meannings. London: Routledge & Kegan
para uma compreensão sobre as )  


 Paul; 1975, 37-53.
 9;1relacionadas com a dieta, como é o 7. Field D. Putting food first. In: Barndt D, org.
caso da obesidade, da hipertensão e da diabete ± Women working the NAFTA food chain: women,
sendo esta última relacionada a possíveis conexões food and globalization. Toronto: Second Stories
com o gosto. Press;
Essas são, portanto, algumas das possibilidades 1999.
de estudos sobre a alimentação. Possibilidades 8. Freyre, G. Açúcar: uma sociologia do doce com
que não se esgotam neste artigo nem no presente, receitas de doces e bolos do Nordeste do Brasil.
tendo em vista o caráter dinâmico da cultura e as Companhia das Letras; 1968.
mudanças culturais que esse dinamismo 9. Geertz, C. A interpretação das culturas. Rio de
proporciona. Janeiro: Zahar; 1979.
No entanto, para a questão aqui em foco, c c 
vale sublinhar uma característica cultural que 33SAÚDE REV., Piracicaba, 6(13): 37-44, 2004
pouco mudou durante toda a história de nossa 10. Menasche R, Maciel ME. Alimentação e cultura,
civilização, identidade e cidadania. Rev Democ Viva. Especial
qual seja, o importante papel que a mulher Segurança Alimentar 16. Rio de Janeiro: Ibase;
desempenha na alimentação. Em termos mai-jun 2003, 3-7.
objetivos, ocorreram mudanças ligadas ao ritmo 11. Mintz S. Comida e antropologia: uma breve
de vida moderno impactando sobre o ambiente revisão. Rev Bras Ci Soc 2001;16 (47):31-42.
doméstico e familiar, bem como a conquista pela 12. Menezes F. Segurança alimentar: um conceito
mulher de espaços antes não ocupados. Entretanto, em disputa e construção. Rio de Janeiro: Ibase;
eles não foram suficientes para romper a estreita 2001.
relação estabelecida entre as mulheres e a 13. Messer E. Perspectivas antropológicas sobre a
alimentação. Relação simbólica e concreta dieta. In: Contreras J, org. Alimentação e cultura.
observada Barcelona: Universidade de Barcelona; 1995.
nas situações mais cotidianas. Portanto, destacar 14. Nobre M. As mulheres e as políticas de combate
esse problema significa ressaltar a relevância à fome. Folha Femin 2001; 29.
que a questão da mulher deve assumir não só nos 15. Rossi PH. Study of the basis for changing food
estudos sobre cultura alimentar, mas em todos os atitudes, quartermaster food and container. Institute
temas ligados à SAN. Armed Forces, Research Engeneer Com. Chicago:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Quartermaster Corp US Army; 1958.
1. Barthes R. Toward a psychosociology of 16. Sahlins M. Cultura e razão prática. Rio de
contemporary food consumption; In Forster E, Janeiro: Zahar; 1979.
Forster RL (edi.) European Diet from Pre-Industrial Submetido: 10/maio/2004
to Modern Aprovado: 2/jul./2004
Times. Nova York: Harper & Rom; 1975, 47-59.
2. Brillat-Savarin J A. A fisiologia do gosto. São
Paulo: Companhia das Letras; 1995.
ââ de posições evolucionistas. da complexidade da sociedade nordestina, em
6 : < '   ;1
 O campo etnológico revela-nos geral, e pernambucana, em particular. Uma vez que
      outras formas de mundo que o a complexidade não é apenas uma característica
Graduado em História pela Universidade de eurocentrismo exacerbado ofuscava. dos povos de clima temperado, mas dos de clima
Pernambuco ± UPE. Aluno do curso de Sobre essa perspectiva, sublinha tropical também; fator que leva-nos à civilização
Especialização em História Regional François Dosse: ³o Ocidente fica com cultural. Quase que predominantemente, ou
do Brasil: Nordeste, pela Universidade Católica de a impressão [, desde então,] de que não predominantemente,
Pernambuco ± UNICAP. faz mais a história humana, mas a história assente nos voláteis cheiros do
; 

9   [de uma parcela] da humanidade´ açúcar derretido aliado ao sabor cítrico de nossos
 1   ù. Questão que permite aos historiadores frutos tropicais nativos e exóticos. Uma civilização
-%8 * *
 = reverem conceitos e valores ³açucarocratizada´, pois, dotada ³de um paladar
);> -)*
  acadêmicos os quais acreditavam que brasileiro histórico e (...) também (...)
    fossem supremos e absolutos. Pois, dentro ecologicamente
)  
 

 dessa perspectiva, Gilberto busca condicionado, e como tal, (...) predisposto a estimar
8   
  9  relativizar a partir de um olhar sobre o o doce e até o abuso do doce. Esse (...) gosto


   ' mundo tropical, por muitos marginalizado, de doce é, para outros paladares europeus ±
-?   mais pelo prisma espacial (o do nórdicos,
   
)  homem situado) do que temporal (o do boreais, mediterrâneos, greco-romanos,
@ 6 


A- homem cronológico). Lançando-se ao calvinistas, clássicos ±, excessivamente doce. Um
(Rodrigo Alves Ribeiro) local, ao regional pela ótica sincrônica doce ± o da preferência brasileira ± como que
; ;  ---#
;  para ressaltar as especificidades de uma barroco

 
6  1 
 região tropicalizada: a nordestina. Contudo, e até rococó em termos que se transferissem
 
  9;1- o autor de %4
C 9 das artes e da música à arte talvez mais sensual da
2 48
  8- entende que ³tudo se torna objeto sobremesa. Aliás, das gentes situadas em terras

- 
  de curiosidade para [o cientista humano quentes ou em espaços tropicais, várias se
 A- e social], que [deve enfocar] seu apresentam
(Gilberto Freyre) olhar para as margens, para o avesso com predisposições semelhantes à brasileira:
; ---#
 B*

  dos valores estabelecidos, para os loucos árabes e mouros são famosos pelo seu gosto
*4  
 [como o fez Michel Foucault], para pelos alimentos ou regalos doces e até
)*

;> * as feiticeiras, para os transgressores´ 2 , extremamente
  
 6


  para a cultura material. doces.´ 3 .


A- __________________________ Gilberto ao ecologizar o doce, ³manufatura´
(François Dosse) 1 C.f. DOSSE, François. D E8'  do açúcar, está revelando a sua análise
É no interior da antropologia histórica
 F D-Trad.: Dulce A. etnobotânica,
que podemos visualizar os novos, Silva Ramos. São Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. ou etnobiológica4 , como preferiria, por
e muitas vezes curiosos, objetos de estudo da Universidade Estadual de Campinas, 1992. considerar com propriedade o empírico e o
da ciência histórica. Logo, a história, 2 Op. Cit. (1992), p.168. semiótico da sociedade açucarocratizada do mais
baseada nos estudos etnológicos 
   6 : <  tropical dos Brasis: o Nordeste. Sendo assim,
consegue perceber as permanências do â  Freyre
tempo social/mental e os valores Gilberto Freyre ao apropriar-se do passa a destacar as atitudes mais simples
irredutíveis que norteiam uma dada etnológico, do etnográfico, pretende revelar o impressas
sociedade. tradicional, no cotidiano, como a ação culinária, que expressa
O fazer etnológico, ou melhor, o o popular, o miscigenado do Brasil nortista. além da satisfação degustativa, o status do poder.
etnográfico, segundo a visão freyriana Retratando exaustivamente uma das maiores Para que o poder seja identificado nas entranhas
de compreender a realidade existencial expressões do complexo civilizatório: a das mais distintas expressões e manifestações
humana, desperta no historiador a culinária. Culinária esta, que emerge, para ele, da humanas, ³é necessário saber descobri-lo
capacidade de relativizar, de conhecer ³açucarocracia´. onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais
o outro. Buscando, portanto, alijar-se Para Freyre, o açúcar marca o desenvolvimento completamente
ignorado [e], portanto, reconhecido: 3 FREYRE, Gilberto. ; ... São Paulo: os alimentos das cozinhas patriarcais e dos
o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível Companhia das Letras, tabuleiros
o qual só pode ser exercido com a cumplicidade 1997. de rua.
daqueles que não querem saber que lhe 4 Ver FREYRE, Gilberto. G6  
 Negras dos tabuleiros, como anunciavam os
estão sujeitos ou mesmo o exercem´ 5 . Seja esse - jornais do Brasil da era imperial das principais
poder executado na esfera das ações da vida __________________________ capitais de províncias. Mulheres como ³a crioula
pública 5 BORDIEU, Pierre. G
 6-Trad.: de nome Simoa, vendedeira de bolinhos, negra
ou privada, que se materializa nas superestruturas Fernando fula, bem-falante, estatura regular, que um belo
de um Estado e nas convenções sociais. Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. dia do ano de 1837 fugiu dos Aflitos, no Recife,
O poder, que num passado recente acreditávamos Fragmento da casa de um Sr. Pimentel.´ 11
que partia de uma ³elite´ à uma determinada das pp.07/08. Gilberto lança-se ao estudo sistemático em torno
³ralé´, transita no campo das relações sociais 6 FREYRE 
BURKE, Peter. µA Cultura Material da cultura material quando ainda era colaborador
de forma indiscriminada entre os indivíduos. em Gilberto do ³Diário de Pernambuco´ nos anos de 1920.12
Um poder que se revela naquilo que a antropologia Freyre.¶ -'   


('6 : <  Período contemporâneo ao ³Movimento
social denomina de representação material; ? 1- Regionalista´
ou seja, na mobília, na arquitetura, na vestimenta Rio de Janeiro: TOPBOOKS/UNIVERCIDADE, o qual encabeçara. Deixando imprimir em seus
e na culinária. Antropologia social que objetiva 2001. textos
apreender e compreender a coesão das instituições 7 DUBY, Georges- -D  D- e artigos as representações de nossa cultura
sociais: a realidade integrativa da religião, da Lisboa: regional,
família e da moral a partir da representação sócio- Teorema, 1989. Esta obra é uma coletânea de nas quais encontrava os elementos em favor de
simbólica atuante no bojo da cultura material. entrevistas suas justificativas acerca da conservação de nossas
Fator que autoriza Gilberto Freyre a afirmar o de renomados historiadores franceses. Ver referências, de nossa tradição. Fazendo registrar a
seguinte, por exemplo: ³os homens e os livros sobretudo: LE sua
muitas vezes mentem. A arquitetura quase sempre GOFF, Jacques. µA História do Quotidiano.¶ noção de ³sociologia genética´.
diz a verdade através de seus sinais de dedos 
   6 : <  Ser tradicional para Freyre não significava ser
de pedra.´ 6 â conservador. Tudo porque a tradição é algo
É demasiado sabido que o cotidiano em Gilberto [mas que] revelam, porém, seu nexo[,] quando dinâmico
Freyre passa a ser o enfoque norteador às postos por sempre se encontrar em consonância com os
suas teses. Cotidiano que revela o jogo de relações contra uma medida de longo prazo.´ 8 novos elementos culturais que constantemente
entre indivíduos de uma sociedade de tempos Por conseguinte, afirma Michel de Certeau: ³o insurgem
idos (o de seus avós) e demonstrativa de suas que interessa [, e não só,] ao historiador do no decorrer das interações sociais. Contudo,
origens, de sua memória. cotidiano a tradição não é uma categoria de um tempo
A história do cotidiano7 era considerada exótica é o invisível...´ 9 Categoria que Gilberto identificava advindo
e apenas destinada à distração de leitores. Era nos cheiros, nos suores e na culinária vernácula de nossos antepassados que nos empurra ao
uma história que buscava dá espaço aos ³homens pernambucana. Afinal, ³(...) as virtuosidades retrocesso,
sem qualidade;´ haja vista que esse cotidiano é culinárias mas é um princípio, um referencial em favor
constituído instauram a linguagem plural de histórias de nossa caminhada em direção à criação de nossa
de fragmentos materiais e imateriais. Permitindo- estratificadas, de relações múltiplas entre [o] época; que num dado dia tornar-se-á num tempo,
se a ressurreição de alguns cacos de passados desfrutar numa tradição. Diferentemente do conservadorismo
intrínsecos nas permanências da ³longa duração.´ e [o] manipular (...) de linguagens fundamentais que apenas nos limita ao campo estético dos
O que para o sociólogo e historiador alemão Norbert soletradas em detalhes cotidianos.´ 10 conceitos
Elias, tem elevada importância porque os O estudo da culinária em Gilberto trata-se, e dos preconceitos absolutizantes. Todavia, a
³fenômenos indubitavelmente, de uma referência ³cultural ativa culinária é um fragmento cultural capaz de criar,
à primeira vista [são] carentes de sentido, se e criadora,´diluída nas combinações de elementos renovar
examinados comestíveis à base dos ditames da escravidão. e conservar muitos de nossos mais arraigados
a olho nu ou na escala do tempo imediato, À sombra das casas-grandes. Sob o trocar valores. Que são criados, por seu turno, sob a égide
__________________________ de dedos e mãos das negras quituteiras ao preparar da moral. Tudo porque a moral ³não é um traço
natural, nem legado da graça de Deus ± ela foi CEPE, a. 2, n. 2, 2001. Anual. Março/2000 mudanças; antes tão valorizadas pela historiografia
adquirida 15 G     : é o instante no qual surge a ocidental. Uma vez que tanto as sociedades
por um processo de [condicionamento, convenções memória. consideradas
e imposições] que terminou fazendo do Memória que se constitui de alegrias e frustrações, civilizadas quanto as taxadas de tradicionais,
homem (...) um µanimal interessante¶ (...)13 [no ato saudades são dirigidas pela força das permanências,
de falar, de caminhar, de vestir e de comer]. e repugnâncias advindas do passado; além das das continuidades. Daí sublinha François Dosse:
A culinária, ou melhor, a comida que vai à espectativas e angústias geradas da idéia ³Àqueles que relegam a história à simples descrição
mesa de uma família ou dos grupos humanos de prospectiva de tempo: dos fenômenos conscientes, os Annales respondem
um o futuro. O      é captado pela ótica como constituição [da] (...) história das
modo geral, demonstra o seu caráter socializador. sincrônica: fatos, ações comportamentais e gestos mentalidades, que tem por fundamento o nível
Constituindo-se até mesmo no elo favorável às de uma inconsciente das práticas sociais, o pensamento
articulações dada realidade existencial humana que ocorrem de coletivo e automático de uma época ou de um
políticas e ideológicas. O que remete Gilberto forma grupo social.´ 17
à seguinte idéia: ³(...) uma cozinha em crise interligada no mesmo espaço de tempo. G    Gilberto Freyre, por seu turno, destaca em
significa uma civilização em perigo.´ 14    sua produção ³acadêmica´ o ressurgimento do
A antropologia histórica nasce em meio às que passou a ser objeto de estudo do historiador descritivo, do narrativo a partir da ótica da
desilusões econômicas e sociais da década de que o denomina microhistória
1970. Possibilitando a redescoberta do passado, de 8  . Ou seja, a 8  não e da lógica própria do mundo informal
dos valores perdidos que no desenrolar das crises significa uma história desprovida de mudanças, mas que tão fortemente norteia uma sociedade.
puderam ser retomados e reinterpretados; gerando tratase Informalidade que se vale do ³ethos´ coletivo para
no historiador a oportunidade de solapar a idéia de uma história muito lenta. Sendo assim, reitera fazer surgir do anonimato os indivíduos dos gestos
a qual rezava que a real e verdadeira história era Philippe bruscos e dos pensamentos rotulados de
progressiva e teleológica; para melhor considerar Ariès: ³O historiador cedo se apercebe de que retrógrados.
o ³presente imóvel.´ 15 Como o fez, por exem- existem dois Indivíduos que falam ³suvaco´, ³pru
__________________________ tipos de aparências, as que são manifestas e estão mode´, ³catinga´, ³zuada´... sem pudor nem
8 RIBEIRO, Renato Janine. µApresentação a à vista de restrições
Norbert Elias.¶ todos, e as ocultas, subterrâneas, apenas notadas em virtude do poder de representação social
-'ELIAS, NORBERT. G % 9
'  pelos seus que tais expressões exercem no interior da
D contemporâneos.´ (ARIÈS, Philippe. µUma cultura popular. Expressões que tanto quanto a

% -Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Educação do culinária tradicional são continuamente agregadas
1994 Olhar.¶ -'D  D- p. 24) a novos elementos materiais ou imateriais
9 CERTEAU, Michel.   ;1
%
- 
   6 : <  (psicológicos)
Trad.: Ephraim â que lhes consolidam e petrificam.
F. Alves e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, plo, Philippe Ariès ao publicar em 1973 a sua ³A O estudo da culinária leva-nos, sem sombra
2002 História da Morte no Ocidente´ posição que de dúvidas, a compreender os vários códigos, as
10 Op. Cit., (2002) reintroduz no processo de construção da ciência intenções
11 Cf. FREYRE (1997). Op. Cit. histórica o estudo acerca ³das culturas anteriores e os significados do comportamento social.
12 Ver FREYRE, Gilberto. H 
 
9- à industrialização.´ 16 Freyre, ao publicar em 1939 o livro ³Açúcar...´
Organizado por A terceira geração dos Annales, a da Nova expõe direta ou indiretamente como os ingredientes
José Antônio Gonsalves de Mello. Rio de Janeiro: História de Jacques Le Goff, vê na oralidade, no de um modo geral, tipicamente das bases
IBRASA/ artesanato e na língua, elementos capazes de alimentares
MEC, 1979 revelar negra e indígena, passam a compor a elaboração
__________________________ o íntimo de um povo. Entendendo que a dos pratos de ostentação da sociedade
13 RIBEIRO, Renato Janine. µApresentação... .¶ História deveria lançar-se aos novos documentos, patriarcal. Pratos barrocamente açucarados.
14 LODY, Raul. H   H     como a cultura material (aqui representada pela Dosse, em ³A História em Migalhas´, demonstra-
6  culinária), para entendermos mais o funcionamento nos, com destaque, ³como a arte culinária,
: < - -'Suplemento Cultural: Coletânea 2000. das instituições sociais que regem e culturalizam a consumação ostentatória nos restaurantes,
Recife: um povo, do que as suas factuais e imediatistas se torna lugar privilegiado de investimentos para
a burguesia, que nisso imita a aristocracia e, pelo
refinamento dos pratos, quer mostrar sua diferença
em relação ao povo. O burguês se afirma pela
acumulação do perecível.´ 18
Há, ainda, nos centros acadêmicos uma leve
e incômoda resistência acerca do estudo em torno
da cultura material. Comportamento que não
deve limitar os novos investimentos em tal
empreendimento
por entendermos que a dinâmica
social cria valores e linguagens que denunciam ou
camuflam desejos e intenções intrínsecos na eterna
insatisfação humana. Uma insatisfação que
ambiciona a estabilidade, o status social e o
exercício
do poder no decurso das relações humanas.
Portanto, a culinária não é apenas a constatação
do imediatismo material ou orgânico-funcional
humano, mas é a constatação do mediatismo
subjetivo.
Pois, o homem não é só a racionalidade
como tanto pregou a ³Era Moderna.´ Isto porque
a culinária não é uma simples produção material,
mas uma representação social. Que possibilita-nos
ter, através dos cheiros dos pratos, assaltos de
memórias. Memórias que se tornam muitas vezes
inexistentes graças aos ³fast foods´ e aos
³selfservices´
de nossa contemporaneidade.19
__________________________
18 6
*p.175.
19 Ver G *%C de Gilberto
Freyre. Há um
breve ensaio do autor de três páginas sobre 2
E -
__________________________
16 C.f. DOSSE (1992). Op. Cit.
17
, p.173.

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