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No Whitehall Building (edifício em primeiro plano) localizava-se o escritório de Lobato em Nova York
Imagem disponível em http://lobato.globo.com
RESUMO ABSTRACT
N este artigo pretendo discutir um a concepção This article intends to discuss a conception
de sociedade norte-americana, vigente na primeira o f N o rth -A m eric an society, fo rm u lated at
m etade do século 20, m as cujos ecos ainda the beginning o f the tw entieth century, but
reverberam entre nós, dada a imensa e permanente extremely present-day because o f the enormous
influência de seu formulador. Tratam-se aqui das and perm anent influence o f its form ulator,
idéias de M onteiro Lobato e da inspiração que M onteiro Lobato, a Brazilian author and essayist
encontrou em N ietzsche para form ular sua visão , w ho has w ritten a vast literature for children
a respeito daquela sociedade. N o últim o Fórum and adults. Here I intended to show that the risks
Social M undial, José Saram ago nos advertia o f an utopia becoming “totalitarians fictions”, as
para os riscos das utopias tornarem -se ficções José Saramago advised in the last World Social
totalizantes. P retendo m ostrar aqui que essas Forum , w as very w ell understood by Lobato
im plicações foram plenam ente percebidas por when he looked at the paradox that is to base
Lobato, que se vê diante do paradoxo que resulta oneself in N ietzsche and to accept a model o f
em partir de N ietzsche e aceitar a existência de society as something desirable. The opportunity
um m odelo que funcione como utopia desejável. o f this return to Lobato is the possibility o f
Creio que este retorno a Lobato não deixa de reflection about our am bivalent relationship
ser oportuno e capaz de nos oferecer insights w ith “A m erica” that som etim es appears as a
esclarecedores, principalm ente se observam os desirable objects, sometimes as something that
ser constitutiva da condição do presente, em we should deny.
nossa sociedade, um a relação am bivalente com
a “A m érica”, seja com o objeto de desejo, seja
como aquilo que devemos repelir ou negar.
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tem as percorrem o conjunto da sua obra e ali são Para afilosofia, Nietzsche, que é um tanque des
sustentados de form a positiva e, creio, eviden bravador de tudo, e tem a coragem de nos dizer:
Vade mecum? Vade tecum Queres seguir-me? Segue-
ciando um a aposta no seu potencial de conferir
significado ao mundo. -te” (A barca de Gleyre , v.2, p. 155).
Também é certo que ele pretendia ir além de Dando por suposto que a filosofia de Nietzsche
Nietzsche. Faz parte seu entendim ento do vade estará onipresente em tudo quanto Lobato escre
mecum vade tecum nietzschiano ultrapassá-lo e ve, alguns problem as deverão ser enfrentados,
isto significa, para Lobato, considerá-lo apenas na considerando a peculiaridade de sua leitura:
form a, pois acredita que alguém poderia seguir Lobato parece articular o vitalism o e o natura
preceitos totalm ente contrários a N ietzsche e lismo, ou seja, Lobato faz um a leitura naturalista
ainda assim estar de acordo com ele, ao valer-se do vitalism o nietzschiano, à qual se agregam as
da autodisciplina e da vontade. M as, no fundo, teses do darw inism o social. N este sentido, ele
nada seria tão nietzschiana quanto esta pretensão prom ove um a naturalização da força e da von
de superá-lo... tade: sua visão dos am ericanos como bárbaros
Por conseguinte, em um esforço de síntese, é conseqüência de um entendim ento da vontade
gostaria de sugerir que a incorporação de N ietzs e do interesse como determinações: prim eiro da
che por Lobato se dá em três direções: raça e do meio e, depois, das condições econô
A prim eira se faz em tom o do vitalism o. De micas, que, como pudem os observar, estão sendo
acordo com Aschheim, o vitalism o de N ietzsche definidos como processos objetivos e im pessoais
influencia decisivam ente a Filosofia da Vida com e que cumprem um a trajetória de evolução. Além
sua defesa “da prim azia da intuição e da vida disso, Lobato possui um ideal de homem natural
sobre a estupidez da razão” {idem, p. 13). Este que se tom a referência para um a crítica da moral
vitalism o afirmativo congrega a crítica eugênica e da sociedade.
da fraqueza e das forças negadoras de vida e, con Lobato transform a o problem a da individua
seqüentemente, a celebração da força e da saúde.2 lidade pessoal no problem a da individualidade
N esta m esm a direção cam inha Lobato, quando, coletiva. Resolvendo desta m aneira a oposição
por exemplo, analisa a novela de J.A .Nogueira, entre o utilitarismo e a filosofia nietzschiana, a que
“A vida de La R ioja”, na qual o pessim ism o da me referi anteriorm ente — o problem a ético aqui
personagem não resulta em suicidio porque é traduzir interesses pessoais (vontade pessoal)
(...) a vulgaridade do remedio não sôa bem aos em interesses coletivos. A questão mais geral que
espíritos fortes[...] subsiste sempre um fundo sub estará sendo colocada é a de como Lobato concilia
consciente de resistencias em reserva. Isto explica
porque não se suicida Schopenhauer, reflorindo a ênfase na individualidade e um a política com
mais tarde, ao contrario disso, em Nietzsche, na vistas à constituição da nacionalidade, com sua
mais esplendorosa afirmação da vida (Idéias de própria ênfase em processos coletivos.4
Jéca Tatú, p. 155). Lobato está plenam ente consciente desse di
lema, tanto que aponta a urgência de se buscar
Com o correlato desta adoção do vitalism o, cam inhos novos para o indivíduo num m undo
N ietzsche norteia a crítica de Lobato à razão, que tende para a massificação. N o entanto, o faz
esboçada desde 1906: subordinando a questão ética, um a ética individu
(...) [q]ue é que chamamos felicidade senão a alista, ao problema prático em que entram em jogo
perfeita harmonia entre corpo e alma, o perfeito interesses coletivos Deste modo, na construção da
funcionamento de ambos - a direção da vida entre idéia de homem e sociedade norte-americanos, o
gue aos instintos ou a vozes misteriosas do nosso prognóstico de Lobato já está presente no diag
ignoto? Nunca entregue à razão. A razão é uma nóstico: ao prever o fim do indivíduo na América,
coisa cheia de padres e bispos, de professores e
filosofos, de tiranias e sedimentações de vontades como parte da tendência da sociedade industrial,
alheias (A barca de Gleyre ,v.l, p. 127) ele conta com um a concepção de força que desin-
dividualiza os membros daquela sociedade.5Para
Porém, o que tem em vista é um a teoria da isto, a principal operação que realiza será a de
Vida Perfeita, um a busca do equilíbrio: converter a idéia de indivíduo, central na filoso
fia de N ietzsche, nas individualidades históricas.
(...) escuto a voz do corpo e a voz do espírito e E, de m odo correlato, converter um a questão de
ponho a Vontade ali de pé, muito solícita, para dar
estilo pessoal na de identidade nacional.
às duas vozes tudo quanto elas pedem (idem)?
Por outro lado, de m odo coerente com a na
Esta é a segunda via de incorporação de N iet turalização da força que promove, Lobato une o
zsche, na qual se m anifesta o irracionalism o do voluntarism o irracionalista de N ietzsche a um
filósofo. voluntarism o coletivista o que torna problem á
Em terceiro lugar, N ietzsche estará no centro tico atribuir a ele o desejo de form ulação de um
de sua preocupação com a form ação de um estilo projeto de desenvolvim ento nacional, dada sua
literário e artístico próprio: crença na irracionalidade dos processos coletivos.
Assim, o voluntarism o de Lobato não é de tipo
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individualista, o que fica explícito em sua crítica ca — a presença das teorias deterministas (“U m a
aos futuristas: criatura nascida e desenvolvida aqui não pode ser
igual aos demais seres humanos. H á de ser m ais” .
Formamos, os escritores, uma elite inteiramente América, p.255.) não é contraditório com a idéia
divorciada da terra [...] o público não os lê porque de homem norte-am ericano indissociavelm ente
não lhes entende mais as idéias nem a língua. O
resultado da campanhafuturista irá apressar opro ligada às noções de força (Lobato repetidas vezes
cesso de unificação entre línguafalada/escrita. [Mas demonstra ver o homem americano como um hér
isso] “[n]ão é obra de um homem, nem de um grupo. cules, um titã).6 E quando Lobato fala de Henry
E obra do tempo e do povo (Na antevéspera, p. 112). Ford que o argumento se tom a ainda mais claro.
Ford, como portador da força natural comum a
E o sentido como Lobato trabalha com a idéia todos os americanos, é o protótipo de um a natu
de um a vontade coletiva parece bastante próximo reza hum ana em sua expressão livre, voluntária.
da vontade orgânica de Tonnies, para quem Tal qual os bárbaros de que fala N ietzsche em
(...) é a vontade profunda do ser, aquela que ex Genealogia da moral, prescinde de modelos,
pressa a espontaneidade e o movimento da própria prescinde até de Lincoln.
vida. Como tal, é a fonte de toda criação e de toda O Lobato crítico da razão e o Lobato adepto
originalidade individual [...] Tendo sua origem no do vitalism o, e em busca de um a individualidade
passado, é motivada e evidente, manifestando-se essencialm ente original, estão unidos neste resu
no prazer, no hábito e na memória (Freund, p.211). m o de biografia, escrito em 1926:
Evidentem ente, Lobato não chega a form ular [Ford] Nasceu mecânico e jamais trocou o estu
tais conceitos, nem a defender a com unidade do direto das coisas pelo estudo falaz dos livros.
contra a sociedade, que, como sabemos, é o caso Educou-se a si mesmo e vem disso grande parte
de Tônnies, como pelo contrário, dada a inter da sua vitória. Quem entope a mioleira com a vida
venção de seu utilitarism o e, creio, tam bém por morta dos livros, é inábil para bem compreender
a vida viva das coisas humanas. Olhava com seus
um a avaliação da debilidade da nossa “vontade olhos, pensava com seu cérebro, fazia com suas
de força” , a “vontade reflexiva” deveria passar mäos'XPrefácio a “Minha Vida e Minha Obra”, p.
comandar o processo social, tal como verificamos 64, grifo meu).
em “A Grande Ideia”, onde ele afirma que
Esta atitude de um Ford tinha como funda
(...) progredir, hoje, é menos encher a caixa dos
bancos ou o pé de meia plebeu do que aperfeiçoar, m ento algo que percebera com o essencial em
cultivar o cerebro. Só esta culturafornece indestrutí um artigo de 1932, quando Lobato com entava a
veis bases economicas [...]0 nosso magno problema idéia de Cicinato B raga sobre a possibilidade de
é, pois, o homem, o cerebro. E como a escola é o que extração do azoto do ar:
ofaz e o refaz, o nosso magno problema se reduz a
escolas (Na antevéspera, pp.215 e 220). Se tivermos espírito de iniciativa,7se aquelaflama
que chameja no cerebro norte-americano ardesse
Se em nosso caso, resta a saída artificial, em tambem no nosso, em vez de estarmos aqui a brunir
contrapartida, conform e sugeri, em América, a cidade para regalo do real olho de SM Alberto,
estavamos a armar turbinas nos despejadouros
Lobato localiza um a única fonte, a natureza, para do rio Paraná. E dentro de um ano, com todos os
a força do homem americano, sendo que esta pode problemas resolvidos, olharíamos d ’alto para a
ser representada tanto pelas “virtudes troglodí- soberba, ex-perfida albioon, e daríamos boas gar
ticas”, que com põem algo como um a natureza galhadas quando nos falassem do milhardarismo
hum ana em estado puro e outra, “a força moral yankee (Na antevéspera, p.310, grifo meu).
de um Lincoln”, produto da interação daquela “Espírito de iniciativa” que significa vontade
natureza com a civilização. de poder, e de que dependem as realizações m a
Eu me acho capaz de escrever para os Estados teriais, é um atributo am bicionado por Lobato
Unidospor causa do meu pendor para escreverpara não para um ou alguns - aqui, ele fala na prim eira
as crianças. Acho o americano sadiamente infantil pessoa do plural - mas para a sociedade brasileira.
(A barca de Gleyre, v. 2, p.293). N esse sentido, para entender este salto, da atitude
individualista de um Ford para qualidades perten
Isto porque: centes ou necessárias a um povo, encontramos
O lindo da criança, o ultra lindo das crianças na literatura um a referência a um a experiência
está em que são naturais. Com o crescer mete-se histórica que procurou
a educação a fazer do animalzinho natural o ani-
malejo social. Educar vale dizer socializar, isto é, (...) conciliarpressupostos nietzschianos, a ênfase
artificializar. Daí a estupidez adulta. Educação... na individualidade com a necessidade de conduzir
Meio de arruinar a exceção em proveito da regra, uma política coletiva e nacional com uma tendência
disse Nietzsche. Meio de destruir a coisa única que burguesa para incorporá-la numa moldura coletiva
dá valor - personalidade, individualidade. Mas... e nacional (Aschheim, 1992, p. 116)
(América, p. 211).
O que se traduziu num a tensão pois, na verda
Assim, o argumento desenvolvido em Améri
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de, este não se constituía num problem a nietzs- visão de sociedade norte-am ericana fundada na
chiano, ou seja, para N ietzsche a “personalidade idéia de força . Cabe-m e agora exam inar mais
autônom a era posse de poucos e seria um grande detidam ente esta hipótese, confrontando-a com
erro generalizá-la” (idem, p. 117). Aschheim, em o que chamarei de a Am érica do espírito, quando
sua análise sobre as várias interpretações pelas Lobato assume um a perspectiva de análise que
quais passou o pensam ento de N ietzsche na A le parece dificultar a constituição de um m odelo de
manha, associa àquela preocupação ao “Youth sociedade a ser incorporado.
M ouvem ent” .8
A transição efetuada por Lobato da individuali Cada vez me sinto mais americano. Tudo na Amé
dade à coletividade9 parece, então, se resolver no rica me interessa, e se leio coisas antigas daí, ou
sentido semelhante ao desse m ovim ento alemão, vejo desenhos antigos, como os vistos nas revistas de
livros que me tens mandado, sinto uma tal saudade...
resultado de um a leitura de N ietzsche em que a Creio que na última encarnação fui americano. Ou
fui americano em muitas encarnações. Uma gravura
(...) se a personality tiver realmente importância,, antiga daqui não me diz nada. Um aspecto qualquer
a raça futura não poderia existir numa isolada doAlden Pond, de Concord, da velha Charleston ou
auto-absorção; ela teria que estar integrada numa da Filadélfia do Velho Penn me comove. Estranho,
comunidade. A realização pessoal nietzschiana foi isto. Tão estranho que só me explico como efeito
portanto dissolvida [por este movimento] na nação. de vidas anteriores passadas aí. Comprova isso o
[...] Uma cultura saudáveF, ou, seu principaljornal fato de que o que me interessa nos States (é) ser o
proclamava, “uma vida nacional saudável, precisa país antigo, dos trails, dos wagons, dos salloons de
de uma devoção dionisíaca (Aschheim, 1992, pp. Denver. Um romance de Alencar ou Macedo não me
117 e 119). acorda coisa nenhuma na alma; já os livros de Jack
London, de Melville e mesmo os de Mark Twain com
Confirmando m inha suposição de que, em re cenas do Mississipi bolem comigo. E minha fúria
petrolífera e ferrífera talvez não passem de ecos
lação a Nietzsche, M onteiro Lobato dem onstrou
(Cartas escolhidas, v.2, p. 216).
ter sido sempre um excelente discípulo (“N unca
o li totalm ente, de mêdo de assim ilá-lo demais e O interesse de Lobato por esta A m érica “não
tornar-m e nietzschiano” [Conferências, artigos convencional”, tom a-se surpreendente se o con
crônicas, p.223]),10verem os que, em América, é frontam os com a idéia de força, fundam ento de
efetuada operação semelhante à desse movimento sua narrativa, quase sem pre elogiosa, de um a
alemão: os Estados Unidos, em vez de ponto final m odernidade radicada na idéia de progresso,
de um processo evolutivo de caráter universal, são em busca de riqueza e poder, um a sociedade da
(como coletividade e nacionalidade) um a indivi força, em tudo oposta à com preensão da América
dualidade única. Conforme veremos, a principal como associada a orientações no sentido da per
conseqüência disto é que, de form a coerente com manência, estabilidade e agrupando em torno de
o irracionalism o nietzschiano, Lobato percebe si as noções de cultura e tradição.11 Confirmando
o quão problem ático será vê-los como m odelo a hipótese das “ duas A m éricas” , a referência
a ser copiado, ou seja, os EU A não são apogeu sem mediações entre a A m érica do passado e o
da racionalidade. C aberá então, considerá-los abandono de sua “fúria petrolífera”, no texto que
como referência, como form a e não exatamente acabei de citar, estaria claram ente indicando a
em seus conteúdos, o que nos leva a crer que sua passagem de uma concepção d e Am érica da força,
A m erica da fo r ç a seja na verdade o resultado de produto de seu voluntarism o, para &Am érica do
um a estilização do real. espírito, produto de um desejo de com preensão
O modo de incorporação de N ietzsche por L o do significado, do sentido daquela sociedade.
bato parece ter, portanto, um alcance mais amplo, Assim sendo, Lobato com põe um a visão de
configurando tam bém a relação deste últim o com A m érica peculiar. D ados os atributos de sua na
a Am érica da força. tureza e de sua cultura, os EU A preservaram vivo
aquele ímpeto original não generalizável, excluin
do um a única via, um único movim ento global
A A m érica que Lobato nos apresenta é fruto em direção à racionalização e à burocratização
de um certo ponto de vista que, inevitavelm en contínuas. D oravante, passa a com partilhar do
te, traz em si um a avaliação. Am erica e alguns espectro de preocupações do autor o m odo como
livros da obra adulta de Lobato expressam um os valores tradicionais deveriam ser incorporados,
posicionamento, em geral positivo, diante daque o que dará outra feição ao ideal lobatiano de cul
la sociedade, e, por conseguinte, o objetivo de tura, cuja prim azia antes estava na produtividade
exam inar em que m edida é possível que ela nos voltada para resultados e projetada para o futuro.
sirva de modelo. Teria a experiência am ericana E, tal como há duas Américas, não é singular o
algum a utilidade para nós, é a pergunta im plícita entendim ento da história e da sociedade que atra
que percorre o texto de Lobato, qualquer que seja, vessa sua obra, ou seja, constituem perspectivas
quando se trata daquele povo e daquele país. diversas que, conjugadas, irão configurar suas
Com o vimos, Lobato procura responder afir visões diferenciadas de A m érica.12
m ativam ente àquela pergunta, através de um a N a A m érica da força, como poderem os ob-
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servar na passagem citada a seguir, está presente que produzira um a A m érica singular, produto da
um a certa noção de m onum entalidade,13 a partir ação cotidiana de seus membros, começa a ganhar
da qual são enfatizados caracteres gerais, capa destaque em sua interpretações.
zes de servir de modelo, de exemplo, para outras Creio que duas passagens ilustram a percep
experiências nacionais. ção bem clara que Lobato tem da diferença entre
um uso abusivo do exem plo e um a utilização
pragm ática desse exemplo, seja sob a form a de
Washington é um simbolo de pedra. A historia
americana está toda ali. Basta uma visita á cidade m onum ento seja sob sua form a antiquária, e que
para que os fatos capitais da formação politico da venho aproxim ando do cotidiano, através da pre
America se desenhem para sempre em nosso espi ocupação comum com as minúcias.
rito. Daí a forte reamericanização que sofrem os
americanos de visita á capital. Saem de Washington
mais americanos, mais exaltados na tremendafé em Tendes sede? No bar só há chopps, grogs, co
si próprios que acima de tudo os caracteriza. Povo cktails, vermouths. Tendesfome? Dão-vos sandwi
eleito para os mais altos destinos, Washington é o chs de pão alemão e queijo suíço. Lá apita um trem:
crisol mistico onde se sublima essa fé cega. From é a Inglesa. Tomais um bonde: é a Light. Cobra-vos
Washington we go home better americans’’ (Amé a passagem um italiano. Desceis num cinema: E
rica, p.32). íris, Odeon, Bijou. Começa a projeção: é uma tolice
francesa de Pathé ou uma calamidade da Itália (O
Já na Am érica do espírito encontra-se presente Saci-Pererê: resultado de um inquérito, p. 12-3).
um a certa visão “docum ental”,14 com sua própria
ênfase no singular, nas tradições especificamente A outra passagem mostra justam ente o inverso,
nacionais. Tanto um a quanto a outra América car m antendo-se com edido no uso da perspectiva
rega consigo um conjunto de term os associados: antiquária, Lobato adota não a atitude reverente
em torno da Am érica da fo r ç a estão a virilidade, e o uso indiscrim inado do que é estrangeiro, mas
os negócios, a produção artificial da vida, a racio uma utilização pragmática deste mesmo elemento.
nalidade instrum ental; em torno da Am érica do Conheço um que não cessa de catonizar contra os
espírito, ou “do cotidiano”, estarão associados: Estados Unidos e sua nefasta influencia na vida bra
literatura, feminilidade, produção natural da vida, sileira. [...] No dia em que mo apresentaram estava
subjetividade e sensações. ele num bar a sorver regaladamente um ice cream
soda, muito bem posto em seu terno de Palm Beach.
M as, o uso que L obato pretende fazer da Viera da Tijuca de bonde, estivera no escritorio a
Am érica, sua utilidade para a “vida nacional” ditar cartas á datilografa, tinha falado tres vezes
encontra seus lim ites tanto na estetização15 que ao telefone e dado um pulo ao Leblon, numa Buick
constitui a A m érica m onum ental, como em seu de praça, para concluir um negocio. Depois do ice
espírito, nas coisas menores, nas quais se tropeça. iria ao Capitolio ver a Gloria Swanson na Folia.
[...] Sem a influencia do americano esse homem
M ais nietzscheano do que pretendia (“N unca o teria de via da Tijuca a pé, cavalo ou de carro de
li totalm ente, de mêdo de assimilá-lo demais e boi. Gastaria tres horas e chegaria escangalhado.
tom ar-m e nietzscheano” [Conferências, p. 223]) Sem o americano consumiria ele tres horas no
essa A m érica do espírito tam bém im porta na minimo para fazer o que fez com as telefonadas.
justa m edida de sua utilidade para a vida, mas Sem o americano teria de gastar seis horas para
a ida ao Leblon, se não morresse pelo caminho de
aqui, dada sua singularidade, aquelas m inúcias insolação. Sem o americano teria de escrever á
de que se compõem acabarão por constituir um unha suas cartas, com poucas probabilidades de
estorvo para o próprio Lobato, quando lhe dizem se fazer entendido no seu aranhol de gatafunhos.
ser im possível dar form a à A m érica (ou ao B ra E se acaso depois de tamanha trabalheira inda lhe
sil), constituir-se num semideus, através de sua restassem forças para tomar uma hora de teatro,
sem o americano teria de ir ver a sua beiçuda e
vontade modem izante. morrinhenta cozinheira afigura de “estrela negra”
N a verdade, em bora Lobato aprofunde e ra no Largo do rocio, em vez de maravilhar-se com o
dicalize sua crítica à estetização rom ântica do encanto da sereia de olhos de gata, que é a Gloria
mundo, quando concebia a A m érica da fo r ç a , Swanson (Na antevéspera, p. 197).
ele não deixava de operar com um a vontade es-
tetizante. (“ O ferro esponja, Rangel! Eis a beleza O que norteia esse m ovim ento de Lobato na
suprem a” [A barca de Gleyre, p.312]). Se seu direção do pragm atism o é a preocupação com o
pensam ento se coloca contra a visão rom anti presente e a form ação da nacionalidade; seja em
zada de nossos bacharéis, contra um a literatura 1916, com a “urgência em resgatar o elemento
preocupada com “o chazinho que beberica no nativo brasileiro, fosse ele um papagaio, cur-
A lvear”,16 a estrutura polifônica com que conce rupira, macaco, bicho preguiça, tico-tico ou o
be América tanto reitera a crítica à estetização ...saci “(Inquérito, p.64), seja em 1933, quando
rom ântica do m undo,17 como abre cam inho para ainda procura contra os “nossos bucolizantes”
um a autocrítica (não serão poucas as referências à desvencilhar-se de um olhar arm ado pelo es
sua própria ingenuidade, vide subtítulo de Na an trangeiro, tom ando-se capaz de transm itir a “ [a]
tevéspera: “Reações mentais de um ingênuo”)18 sensação da m ata virgem, a inicial, a envolvente,
e isto precisam ente quando a “visão docum ental” a sensação a que todas as mais se ligam, como
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as cam biantes se ligam ás cores fundamentais, é Trata-se de um a visão evolucionista que pro
única e inesquecível” (Na antevéspera, p.259). cede segundo o m étodo nietzschiano de destruir
Assim, o modo como Lobato vê a incorporação para criar:
das tradições, a partir de um a perspectiva pragmá N este sentido, as idéias verdadeiras não se
tica da história,19term ina por apresentar a m oder m antêm em virtude de sua antigüidade mas de
nidade ianque como um m ovim ento de ruptura sua tradução de sentimentos e m anifestações co
com o passado. “Corromper, Mr. Slang, não será letivas. D iante das “intrépidas m anifestações do
um sinônim o colérico de evoluirT \ América, am ericanism o”, a atitude dos “verdadeiros gran
p .58). Essa ruptura não supõe entretanto partir de des homens do país” (que produzirão o Nietzsche
um a tabula rasa. “O que foi, foi. D eixou os seus am ericano por ele aguardado) deveria ser “ costas
residuos positivos em nosso im o com o material voltadas para a Europa e berros dionisíacos na
para a construção do A m anhã” (idem, p.260). boca” (idem).
E deste futuro20 portanto que se retira os Com o acabamos de ver, essa dialética entre a
critérios para julgar criticam ente o passado, um preocupação com a permanência, com a dura
passado que, entendido como civilização, deve ção, visível na identificação que estabelece entre
ser superado para dar lugar a novas formas (idem, perpetuar e glorificar,22 e a preocupação com a
p. 102, 105). O arranha-céu é então a nova forma mudança im porta em que o entendim ento de
para um novo conceito de habitação. A m archa Lobato sobre os móveis do progresso sofra da
para frente em m atéria de arte, realizada na A m é m esm a ambigüidade, ora operados por um prin
rica, está calcada num a atitude de “desrespeito cípio de destruição criadora, ora por resquícios
barbaresco, cujo alcance não pode ser com preen do passado como “resíduos positivos em nosso
dido de longe [da perspectiva européia]” (idem, im o” constituindo “material para a construção do
p .121). A m anhã” {idem, p.260).
Evidentem ente, encontramos na obra de L o
bato um a crítica à sociedade industrial. O meu
A arquitetura limita-se a ser a arte de construir
honestamente [autenticamente ou de acordo com ponto, porém, é que essa crítica é mais extensa,
sua natureza ou essência que é a funcionalidade], pois encontra-se aplicada à própria civilização em
logicamente, sem vergonha, sem pretensão ou sub- seu todo. Por outro lado, o enigm a da existência
serviencia para com as formas do passado que já sim ultânea de um a crítica à sociedade norte-
não se coadunam com a vida moderna (idem, p. 155). -am ericana e o nascim ento de um a civilização
natural nos Estados Unidos resolve-se com a in
Lobato é prolixo ao afirmar (e aprovar) essa re corporação da idéia de duas Américas. Ou seja, se
lação pragm ática dos am ericanos com os valores não distinguirmos as duas visões de Lobato sobre
tradicionais; além das que já foram apresentadas, a A m érica não entenderem os porque os Estados
há várias outras dem onstrações em Am erica. Por Unidos podem vir a ser a fonte de criação de um a
exemplo, a relação de afinidade que Lobato es nova sociedade.
tabelece entre as linhas helénicas e o caráter de Assim, o que cham o a A m érica do espírito
Lincoln. E certo que viria do passado sua força é tam bém o resultado de um a visão irônica de
moral. M as, independentem ente de sua origem, Lobato a respeito da A m érica da força. O futuro,
transform ado em puro símbolo (herói ou semi com preendido sob o signo da força, embora tenha
deus), Lincoln torna-se também fonte inesgotável sido experimentado, tom a-se um a saudosa utopia
da nacionalidade. Assim, ao invés de ocorrer uma a partir do m om ento em que se verifica sua im
rarefação dos valores tradicionais com a conso possibilidade de realização em terras nacionais.
lidação da racionalidade cap italista,21 tem -se, Faz sentido, portanto, que ele abandone um
sim ultaneam ente à crítica desta racionalidade, o voluntarismo da ação, com seu ímpeto estetizante,
resgate daqueles valores, através de um consu e adote um a postura voltada para a pedagogia,
mo que não im plica em perda, em desgaste do através de sua literatura infantil, contribuindo
objeto. “Consom e-se Lincoln com o se consome dessa form a para a obra coletiva que é a feitura
‘hot-dog’. Consome-se George W ashington como da sociedade.
se consome sorvete”(A m érica, p.33). Há, neste P o r conseguinte, in terp reto o pessim ism o
caso, obediência à um etos, pois Lincoln, George de Lobato com o estritam ente relacionado à sua
W ashington são fontes de valores, mas ao mesmo vontade de estetizar a realidade (as tentativas re
tempo, dada a intim idade profana com que os formistas dos personagens - refiro-me à Reforma
am ericanos os tratam, eles são pragm aticam ente da Natureza e à A chave do tamanho - são m al
utilizados com o objetivo de torná-los signos de fadadas), à possibilidade da vontade de im por um
força moral. projeto utópico, do qual faz parte a A m érica da
Defato é assim tudo na America. Evolução a galo força. Por outro lado, este pessimismo desvincula-
pe, mas sempreprocurando conciliar asformas [não -se da crença na possibilidade de que a sociedade
a essência, o espírito] do passado com a essencia do conduza sua própria transform ação, da crença no
presente. [..JA coragem dasformas novas não vem espírito criador dos seus membros, que se revela
de chofre. Leva tempo a formar-se (idem, p. 105).
CONFLUÊNCIAS - REVISTA INTERDISCIPLINAR DE SOCIOLOGIAE DIREITO-PPGSD-UFF - página 09
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