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Resumo:
1
Na minha vida existem muitas janelas
e muitos túmulos
Às vezes eles trocam de papel:
então uma janela se fecha para sempre
então através de um túmulo
eu posso ver
muito longe
Yehuda Amichai1
Raymond Aron2
1. Enunciado do problema
1 AMICHAÏ, Yehuda. « Fenêtre et tombes ». In : Perdu dans la Grace – poèmes choisis. Paris: Gallimard, 2006.
Tradução do hebraico de Emmanuel Moses.
2 A frase de Raymon Aron é citada por Claude Lanzmann no início de seu documentário O relatório Karski (2010)
e, provavelmente, foi recolhida das memórias do autor (Memoires, Paris: Julliard, 1983, p.176). O contexto da
frase, sobre a reação de Aron quando soube do genocídio perpetrado pelo Terceiro Reich, é mencionado no livro
Images malgré tout, de Georges Didi-Huberman (Paris: Minuit, 2003, p.96).
3 Será muito interessante investigar de que formas certas produções midiáticas contemporâneas, aquelas que
circulam em redes sociais de compartilhamento de textos e imagens (como Facebook, Instagram, Youtube),
ativadas voluntariamente por cada um de nós, elaboram a relação entre trabalho de luto, criação narrativa e
desejo de visibilidade, em uma relação bastante ambígua, se não sintomática, entre partilha pública e
espetacularização da dor.
2
de si. A partir da formulação de alguns problemas comuns, tendo em vista que esses três
campos teóricos operam como modos de “narração” que colocam em questão os limites da
representação, visamos interrogar as interseções entre as esferas pública e privada, a
história e a memória, o pessoal e o coletivo, defendendo a necessidade de uma escrita do
luto, aliada à potência política da imaginação, como tarefa primordial – cultural e social –
face à elaboração do passado e, sobretudo, à construção de nosso presente.
Por meio da escolha de um corpus incialmente amplo e heterogêneo, mas articulado
por formas compartilhadas de violência de Estado, perda e desaparecimento, procuraremos
mapear, selecionar e analisar obras cinematográficas e literárias, ficcionais e documentais,
nacionais e estrangeiras, que, de distintas formas, problematizam nosso hipertrofiado
“espaço biográfico” (Arfuch, 2010) e atrofiado campo político. No contexto de uma virada
testemunhal4 nos estudos da cultura e de uma sociedade, simultaneamente, marcada pela
catástrofe e mediada pela imagem, talvez seja preciso, como tarefa política urgente, narrar
o trauma, escrever o luto e imaginar, apesar de tudo – para, desse modo, desprivatizar a dor.
Pois uma sociedade é tanto mais democrática quanto menor for a desigualdade na
distribuição do luto público (Butler, 2016, p.32) e maior for sua capacidade de imaginação
(Didi-Huberman, 2003, p.225).
Face à convergência entre teorias da imagem, teoria literária, cinema e literatura,
sem perder de vista importantes inflexões com as artes visuais e certas manifestações
midiáticas, acreditamos que a filiação ao Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos
Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da USP faz-se pertinente e imensamente
estimulante. Por meio do diálogo com as linhas de pesquisa e publicação desenvolvidas no
Programa, a realização do presente projeto certamente nos permitirá aprofundar parcerias
com docentes e discentes, participando de laboratórios, seminários, atividades de docência
e extensão, bem como contribuindo para o desenvolvimento de um campo de pesquisa entre
cinema, literatura e mídia, tal como propõe os itens do projeto “Resultados esperados” e
“Plano de atividades”.
Em tempos marcados por aquele movimento que a ensaísta argentina Beatriz Sarlo
cunhou de “guinada subjetiva” (2007, p.18), com a eclosão de uma verdadeira indústria dos
relatos confessionais (considerados fontes sempre mais confiáveis, legítimas e autênticas),
do dispositivo dos reality shows e de um “voyeurismo” agora consentido e midiatizado, é
fundamental questionar os efeitos culturais, estéticos e políticos da inundação das
4Segundo Annette Wieviorka, o julgamento do oficial nazista Adolph Eichmann em Israel, em 1961, inaugura
uma “Era do testemunho” em países como França, Estados Unidos e Israel, quando o testemunho (sobretudo
aquele decorrente dos genocídios e da violência de Estado) passa a reivindicar um lugar privilegiado no espaço
público e na construção das identidades individuais e nacionais. Ver WIEVIORKA, A. L’ère du temoin. Paris:
Hachette, 2009, p.81
3
narrativas em primeira pessoa. Como pretendemos investigar, em diversos relatos
testemunhais, autobiográficos e autoficcionais contemporâneos, seja no cinema ou na
literatura, a escrita de si, ao invés de ser mero sintoma cultural de nossa época, tem
comparecido como uma escrita do trauma e do luto, mas um luto que, embora transite pelas
margens do íntimo, não apela, nos melhores casos, nem à comiseração fácil nem ao registro
confessional.
Em sua forma mais potente, o “teor testemunhal” (Seligmann-Silva, 2010) desses
relatos pode operar como parte importante de um trabalho de luto, de imaginação e
desprivatização da dor, restituindo a identidade, o nome ou um traço àqueles que,
anonimamente, individualmente ou coletivamente, foram massacrados. “Tornei-me
escritora para encontrar meios de dar uma sepultura aos meus mortos”5, diz a escritora
africana Scholastique Mukasonga, sobrevivente do massacre dos Tutsi em Ruanda, para
quem a escrita exerce a função de mortalha, seja para sua própria mãe ou para os outros,
desconhecidos. Nesse sentido, a reflexão sobre o luto torna-se também uma importante
reflexão sobre a alteridade, pois a testemunha do desaparecimento “já não é aquela que sabe
mais que os outros, e sim aquela que precisa dos outros para saber de si mesma”
(Kamenszain apud Kanzepolsky, 2012, p.10).
Antes de avançarmos, é preciso enfatizar que a problemática da dificuldade ou
mesmo impossibilidade de representação da experiência traumática, com a exigência de um
trabalho de luto e de criação narrativa por parte das escritas autobiográficas, nos foi
originalmente colocada pelo Diário 1973-1983, de David Perlov, cineasta brasileiro-
israelense, quem, ao longo de dez anos, filma sua família, suas viagens ao Brasil e a realidade
política de Israel, fundindo, através da mediação operada por suas janelas, o privado ao
político (Feldman, 2017a). Na abertura dessa obra, formada por seis capítulos de uma hora
cada, Perlov inicia sua jornada com a seguinte epígrafe, à primeira vista, apenas à primeira
vista, um pouco enigmática: “Nas terras de pobreza e analfabetismo, aqueles que não sabiam
assinar colocavam duas cruzes sobre suas fotografias: nome e sobrenome”.
Filho de uma mãe analfabeta, Perlov conhecia essa cruz como ninguém. Ao longo de
seus diários, filma alguns túmulos e vai por duas vezes ao cemitério israelita de Belo
Horizonte, onde sua mãe, Anna, fora enterrada. Na primeira visita, no sexto capítulo do
Diário, Perlov percebe que o nome de Anna, em sua lápide de pedra, havia sido grafado
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errado, “Anna Perlof”, com “f”, em vez de “Perlov”, com “v”. Tal inscrição do “f”, letra que
para ele se assemelha ao signo da cruz, opera no Diário como uma espécie de sombra a
acompanhar a busca de Perlov pela “imagem fatal” da mãe, a mãe iletrada que não podia
assinar seu próprio nome. A mãe iletrada que não podia, pela miséria, pela loucura, se
inscrever na ordem simbólica da linguagem.
Já na segunda visita, quase vinte anos depois, no terceiro capítulo dos Diários
revisitados 1990-1999, o nome de Anna é finalmente corrigido a pedido do filho. No lugar do
“f”, Anna recupera o “v” de seu nome, reavendo também, contra o fluxo do esquecimento e
do anonimato, a inscrição de sua própria identidade6. Por isso, é justamente por Anna
habitar o lugar do trauma, o “irrepresentável” por excelência, que voltar ao túmulo, fazer o
luto e, através da necessidade da imaginação, construir uma narrativa, constituem o sentido
mais amplo da jornada de Perlov ao longo de todos esses anos. Pois, como bem sabem os
sobreviventes, “onde não existe túmulo, o trabalho de luto nunca termina” (Klüger, 2005,
p.87). Não é por outra razão, como ressalta Jeanne-Marie Gagnebin a partir de Jean Pierre
Vernant, que a palavra grega sèma tem como significação originária a de “túmulo” e, só
depois, a de “signo”, já que o túmulo é signo dos mortos. Túmulo, signo, palavra escrita,
imagem: todos lutam contra o esquecimento (2006, p.112). Assim, corrigir o nome de Anna,
inscrevê-lo na memória dos que vivem, já que ela própria não sabia escrever – e, como os
analfabetos, assinava o sinal da cruz no lugar do nome –, será o compromisso de Perlov ao
longo de toda sua obra autobiográfica.
Foi também lutando para conseguir fazer o luto da mãe que Roland Barthes escreveu
seu belo ensaio autobiográfico, A câmera clara. Nesse ensaio sobre a fotografia,
contemporâneo aos diários de Perlov, Barthes inventa uma forma de narrar, misturando
reflexão crítica, imagens, aforismas e narrativa biográfica para dar conta da dificuldade de
sustentar o olhar sobre a fotografia de sua adorada mãe, cuja imagem ele não consegue ou
não pode publicar. “Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo”, escreveu Barthes,
“ela vai morrer. (...) Que o sujeito já esteja morto ou não, qualquer fotografia é essa
catástrofe” (1984, p.142). Nesse sentido, se tudo o que desaparece vira imagem, como
Benjamin já assinalou, algumas fotografias – como “a imagem fatal” da mãe de Perlov ou a
imagem da mãe de Barthes aos cinco anos, prenhe de futuro, sobre uma ponte à frente de
um jardim – jamais poderão ser reproduzidas e serializadas, pois certas imagens são
verdadeiras e únicas feridas.
6 Para a tradição judaica, a inscrição do nome na forma do sepultamento é um de seus momentos estruturantes,
como se vê na cerimônica da Matzeiva, quando se coloca a pedra tumular com o nome do morto um ano depois
de seu falecimento, para que sua memória seja mantida viva. No site da Associação Religiosa Israelita Chevra
Kadisha, responsável por garantir as regras e os rituais de sepultamento judaico, encontram-se on-line alguns
“manuais de luto” que seria interessante investigar.
5
De fato, tal como câmaras escuras, essas imagens que não podem ser representadas
já estão presentes, pelo negativo, pela ausência, no interior das obras que as contêm.
Portanto, à estética da presença, segundo a qual a fotografia seria um ápice do real e da
inscrição do referente, tanto Perlov como Barthes, assim como outros cineastas e escritores
que pretendemos investigar, propõem uma estética da ausência, da perda e da desaparição7.
Uma estética do “impossível”, no dizer de Alain Badiou (2005) – quem sabe uma “imagem
impossível” no lugar daquela “imagem fatal” da mãe de Perlov – que possa fazer frente à
impotência do trauma, sustentando a necessidade do luto e o imperativo da criação. Porque
só um trabalho de luto, mais precisamente, uma “erótica do luto”, como postula Jean Allouch
(2004), articulado a um trabalho de imaginação, a maior das faculdades políticas, como
defende Georges Didi-Huberman (2003) a partir de Hannah Arendt, pode colocar a vida –
pública e privada – em movimento.
2. Justificativa
7 Ao longo de sua obra, Maurice Blanchot não cansou de salientar que a característica da imagem seria a de
afirmar as coisas em sua desaparição, a de tornar presente a ausência que a funda. Para o autor, se a literatura é
o Fora, um não-lugar sem intimidade, sem interior oculto, também a imagem “consiste em ser inteiramente sem
intimidade e, no entanto, mais inacessível e mais misteriosa do que o pensamento do foro íntimo”. Ver: O espaço
literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p.36.
6
impossível do encontro com o Real (tal como postula a psicanálise), ao invés do lugar fácil
da queixa e da vitimização, o lugar da melancolia, ao qual seria muito fácil aderir. Por isso,
segundo a filósofa, demandar reconhecimento não implica pedir que se reconheça o que
cada um já é, mas invocar um porvir, estar à espreita de uma transformação, exigir um
futuro.
Dessa forma, de acordo com Butler, a violência de Estado diz respeito não apenas à
maneira como as pessoas morrem, mas também como são (ou não são) enlutadas, o que
significa que, para que uma vida possa ser apreendida como precária, ela precisa ser
passível de luto (2016, p.33). Evidentemente, Butler não trata aqui da dimensão subjetiva e
clínica do luto, mas daquela social, ética e política, em um movimento crítico e filosófico que
vai ao encontro da desprivatização do trabalho do luto e até mesmo da própria dor.
Diferentemente da dinâmica da melancolia, caracterizada pela sensação de ausência de
lugar social e subjetivo e pela dificuldade de abandono e desligamento de um objeto
perdido, o que faria do melancólico um ser queixoso e autopunitivo, o luto, segundo a
psicanálise (Freud, 2011, p.61), consistiria no consentimento da perda e no
desinvestimento do objeto perdido, sendo provido de uma função de corte. Por essa razão,
se para o melancólico a perda do objeto ou do ser amado não é apenas a perda de algo, mas
sobretudo a perda do lugar que o sujeito ocupava junto a isso que foi morto (Kehl, 2011,
p.18), o trabalho do luto implica não o esvaziamento de si presente na melancolia, mas uma
elaboração cujo fim último é a afirmação da própria vida e de sua capacidade imaginativa.
Não é por outro motivo que pensadores como Freud, Bergson, Benjamin, Adorno,
Ricoeur e Derrida, pensadores que vivenciaram os efeitos das grandes guerras mundiais do
século XX, dedicaram-se a problematizar a narração e a memória diante da experiência
traumática, defendendo um lembrar ativo (como já havia postulado por Nietzsche no século
anterior), isto é, um trabalho de elaboração e luto em relação ao passado, mas realizado por
meio de um esforço de compreensão e esclarecimento do presente. Nesse sentido, se somos
estruturalmente sobreviventes, como acredita Derrida (2005, p.54), marcados pela
estrutura do rastro e do testamento, é porque a sobrevivência não se encontra do lado da
morte, do passado, mas da vida e do porvir. Para o filósofo, o luto, em sua relação com a
alteridade, sustentaria um paradoxo, entre o desejo de conservar na memória aquele ou
aquilo que foi perdido e o desejo de deixá-lo ir, numa aporia próxima àquela da própria
escrita.
Assim como a problemática do luto, é importante ressaltar que os conceitos de
testemunho e trauma (Seligmann-Silva, 2005, 2008 e 2010), igualmente caros a nossa
pesquisa, embora se encontrem no centro do pensamento psicanalítico e dos estudos
literários, têm se disseminado por boa parte da cultura em geral e do cinema em particular,
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sobretudo após as grandes catástrofes históricas que marcaram a experiência subjetiva no
século XX, como o Holocausto, as ditaduras latino-americanas, os genocídios indígenas e
toda forma de violência de Estado, necessidade de exílio e desagregação comunitária e
familiar. Se o cinema e a literatura encaram politicamente e encarnam formalmente uma
discussão sobre o luto que a vida social tende a excluir e a denegar, é porque a narração do
trauma e a escrita do luto não implicam a revelação de um segredo (de ordem pessoal ou
íntima) que estaria escondido pelo muro da linguagem, mas a inscrição, na linguagem, de
um evento (com sua dimensão sempre coletiva) que resiste à simbolização.
Se, como sabemos, de um lado, as escritas imagéticas e textuais delimitam a perda,
organizando e formalizando na linguagem o desparecimento, a ausência e o irrecuperável,
como um “ofício de obituário” (Kanzepolski, 2016) ou um “discurso funerário” (Derrida,
1998), de outro, elas procuram reter aquilo que da própria memória tende a ir embora com
a morte, a finitude ou o extravio do outro. De Platão a Freud, passando por diversos
pensadores fundamentais do século XX, tem-se afirmado que a escrita (do texto à
fotografia), na condição de dispositivo mnemônico, se dá contra a morte, mas inscrevendo
o desaparecimento e a ausência em seu próprio corpo8. Nesse sentido, seria interessante
pensar com Alain Badiou (2005, p.239), a partir da obra de Mallarmé, que apenas a
organização e formalização de um desaparecimento na língua poderia conseguir a vitória
sobre o desaparecimento inicial, fazendo surgir o impossível – a experiência do Real – onde
antes só havia impotência. Por isso, segundo o filósofo, tanto na escrita como na vida, para
se conseguir a vitória sobre a perda é preciso imaginar e criar uma forma, criação sempre
afirmativa.
Nesse contexto, grande parte da produção cinematográfica e literária
contemporânea – a partir do cinema e da literatura modernos, nascidos no pós-guerra – tem
elaborado formalmente essas questões, nos campos da ficção, do documentário, do
testemunho e do ensaio, por meio de uma filiação às escritas de si. Tal produção, comumente
marcada pelo nome próprio, vem problematizar os modos pelos quais a subjetividade
contemporânea se constitui por meio de uma dimensão performativa, que articula texto e
imagem. Com isso, o cinema e a literatura deixam de ser um lugar de representação e de
evocação de seu caráter testemunhal para se tornarem, intensamente, um lugar de
“performance” e “autoficção”, em tensão e em diálogo com a sintomática tendência
contemporânea à autoexposição, bem como com a difícil tarefa de simbolização da
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experiência traumática – que só consegue ser elaborada e compreendida através de um
trabalho de imaginação.
Na pesquisa “Narrar o trauma, escrever o luto e imaginar, apesar de tudo:
testemunho e autobiografia entre cinema e literatura”, procuraremos mapear, articular e
analisar obras cinematográficas e literárias que, de diversas formas, questionam a inflação
do teor testemunhal-confessional da cultura atual face ao déficit dos espaços públicos e
políticos. No contexto de uma “guinada subjetiva” (Sarlo, 2007) nos estudos da cultura e de
uma sociedade mediada pelo espetáculo (Debord, 2000) e marcada pela violência de Estado,
as obras que mais nos interessam são aquelas que problematizam, colocando em questão,
sua própria forma de narrar, capacidade de ver, disposição para imaginar, possibilidade de
compreender e de recordar, defendendo, como Sylvie Rollet em Une éthique du regard: le
cinéma face à la catastrophe, d’Alain Resnais à Rithy Panh (2011), uma “ética do olhar”.
“Você não viu nada em Hiroshima”, diz o amante japonês, a ela, uma atriz francesa
escalada para trabalhar num filme sobre a paz, no para sempre moderno Hiroshima, meu
amor (1959), de Alain Resnais. “Eu soube, mas não imaginei. E, como não imaginei, eu não
soube”, escreve Raymond Aron, frase que será mencionada por Claude Lanzmann na
abertura do documentário O relatório Karski (2010), desdobramento de seu monumental
Shoah (1985). “Eu quero ver”, proclama Catherine Deneuve, viajando pelo sul do Líbano
devastado após a guerra de 2006, no híbrido de ficção e documentário Eu quero ver (2008),
de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige. “Como é possível que os sírios estejam
documentando a própria morte?”, pergunta-se o artista libanês Rabih Mroué, em Revolução
em pixels (2014), misto de filme ensaio e performance a respeito das imagens amadoras,
produzidas com câmeras de telefone celular, por combatentes e homens comuns na Síria
hoje. “Uma imagem falta, e essa imagem somos nós”, narra o cineasta cambojano Rithy Panh,
em A imagem que falta (2013), tentando reconstituir a imagem de sua família exterminada
pelo Khmer Vermelho.
Como pretendemos mostrar, a partir da emergência da palavra no cinema moderno,
o cinema de depois dos campos, e da guinada documental e imagética da própria literatura
a partir do pós-guerra, o estatuto sempre paradoxal do testemunho, entre sua necessidade
e crônica dificuldade, acompanhado da tarefa do luto e do imperativo da imaginação, será
trabalhado por diversos cineastas e escritores empenhados em dar forma ao
desaparecimento, à perda e à violência de Estado, problematizando os enquadramentos
culturais e midiáticos tradicionais. Resultante da experiência das catástrofes que
traumatizaram o século XX e continuam a ferir sem trégua o XXI, a estética testemunhal no
cinema e na literatura precisa ser pensada na zona turva da memória e do esquecimento, da
verdade e da imaginação, da ficção e do documentário, da crença e da falta. Diante de
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imagens que faltam, daquelas que colocam em questão os limites da representação ou ainda
daquelas que existem, precárias e parciais, apesar de tudo, resta a transmissão pela
imaginação, sem a qual não haverá elaboração e luto.
Neste ponto, é importante salientar que o papel central da imaginação como uma
das mais importantes faculdades políticas, abordado por alguns filósofos, de Kant a Hannah
Arendt ou de Walter Benjamin a Cornelius Castoriadis, será postulado por Georges Didi-
Huberman diante da dimensão radicalmente parcial, precária e lacunar dos únicos
testemunhos visuais do Holocausto: as quatro fotografias capturadas, em agosto de 1944 na
zona do crematório V de Auschwitz-Birkenau, por um membro do Sonderkommando, grupo
de prisioneiros judeus obrigados, sob pena de morte imediata, a realizar um trabalho atroz,
como direcionar os recém-chegados às câmeras de gás, recolher seus “pedaços” (“stücke”,
como os alemães se referiam aos cadáveres), arrastá-los aos fornos crematórios, limpar os
dejetos e dispersar as cinzas (Feldman, 2016).
A partir dos intensos debates travados com Claude Lanzmann, Gérard Wajcman e
Elisabeth Pagnoux, por ocasião da exposição de fotografias Memoire des camps -
Photographies des camps de concentration et d’extermination nazis 1933-1999, realizada em
2001 em Paris, Didi-Huberman escreve, como resposta à polêmica, seu importante livro
Images malgré tout (2003), no qual refuta a ideia de que a Shoah seria um evento
“inimaginável”, “irrepresentável” ou “impensável” – tese fartamente evocada por teóricos,
artistas, cineastas (como Lanzmann), psicanalistas (como Wacjman), formadores de opinião
(como Pagnoux) e, mais perigosamente, manipulada pelo negacionismo histórico. “O
inimaginável como experiência não pode ser o inimaginável como dogma”, defende Didi-
Huberman (2003, p.69), argumentando que o “inimaginável” corresponderia aqui à
“experiência vivida” diante de um espaço desmesurado de dor, e não a um dogma, norma
ou imperativo para a “experiência concebida” (2017, p.97)9.
Na entrevista “Alguns pedaços de película, alguns gestos políticos”, concedida
recentemente a nós a propósito da edição de seu Cascas (2017), misto de ensaio, relato de
viagem e narrativa biográfica, Georges Didi-Huberman também ressalta que não se pode
fazer da dor um privilégio, uma reserva de exclusividade, comportamento frequente nos
discursos de vitimização e nas práticas de legitimação adotadas por certos movimentos
minoritários. De acordo com ele, “o que é chamado de ‘vitimização’, ‘dever de memória’ e
que é objeto de tanto abuso, consiste em fazer da dor uma obrigação, uma palavra de ordem,
9
A esse respeito ver DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003;
FELDMAN, Ilana. “Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de ‘Shoah’ a ‘O
filho de Saul’”. In: Revista ARS, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da ECA/USP v.14, n.18 (2016); bem
como DIDI-HUBERMAN, Georges. “Alguns pedaços de película, alguns gestos políticos”, entrevista concedida a
Ilana Feldman. In: Cascas. São Paulo: Ed. 34, 2017.
10
um capital psíquico, um fundo de investimento político ou sei lá mais o quê” e esta seria
“uma maneira corriqueira de desvalorizar a dor dos outros” (2017, p.94). Por isso, o filósofo
e historiador das imagens é enfático ao afirmar que, se a dor não se qualifica e não pode ser
trocada por nenhuma outra coisa, o trabalho a ser feito consiste em “fazer da dor, e, logo, da
história e das emoções que a acompanham, nossos bens comuns” (2017, p.95), isto é,
partilháveis e transmissíveis. Pois é somente por meio da transmissão que nos tornamos
capazes de não nos resignar diante dos impasses do entendimento. Que nos tornamos
capazes, apesar de tudo, de pensar, dizer, olhar, refletir e, sobretudo, imaginar. Não é por
outra razão que, diante do “inimaginável”, a imaginação se afirme para Didi-Huberman
como uma necessidade política.
No prefácio de seu livro A cena interior: fatos (2017), coleção de fragmentos,
construídos na tensão entre memória e reinvenção, sobre sua família deportada durante a
República de Vichy, Marcel Cohen adverte o leitor: “Por mais que constituam pequenos
sedimentos, os fatos reunidos aqui são lacunares demais para que se possa esboçar um
retrato”. Tomando distância de uma literatura que reivindica para si a tarefa de
reestabelecer a verdade (baseada “em fatos reais”) e reconstituir a história (produzindo
uma ilusão de “continuidade” e “unidade”), esse breve livro, estruturado por oito fotografias
e oito fragmentos, é constituído por lembranças de infância, fatos recolhidos de terceiros,
testemunhos de parentes, fotografias restantes, imagens de objetos sobreviventes, acasos,
sensações e esquecimentos. A pesquisa de toda uma vida encontra-se aqui, tracejada em
torno da lacuna e do silêncio, do presente e do passado, como retratos sempre inacabados
e biografias faltantes. “Que a linguagem tem algo a ver com a perda e o luto, isso eu sabia
desde a infância”, escreve o narrador do livro, enquanto recupera fotografias e objetos
perdidos, “documentos” afetivos ou vestígios deixados por sua família deportada para
Auschwitz (Feldman, 2017b).
Não por acaso, a figura do artista, escritor ou cineasta como coletor e colecionador
de rastros e ruínas, espécie de detetive e arqueólogo, também está presente em K – Relato
de uma busca (2014), investigação de Bernardo Kucinski a respeito do desaparecimento de
sua irmã Ana Rosa, militante política durante a ditatura civil-militar brasileira, e em Dora
Bruder (2014), busca incansável de Patrick Modiano pelas pistas rarefeitas deixadas por
uma jovem, até então anônima e desconhecida do autor, que, como outros milhares,
desapareceu durante a ocupação alemã em Paris. Também no cinema, os filmes de found
footage ou “metragens encontrados”, feitos com materiais de arquivo das mais diversas
procedências, a partir de acervos públicos ou pessoais, são cada vez mais frequentes e
contundentes, juntos aos documentários de busca articulados pela primeira pessoa do
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singular – de Chris Marker a Harun Farocki, de Péter Forgács ao mais recente filme de João
Moreira Salles, de Patricio Guzmán a Flavia Castro e Maria Clara Escobar (Feldman, 2017c).
Como discutiremos no decorrer da pesquisa, cada uma dessas obras trabalha a
autobiografia e a dimensão parcial da enunciação, por vezes num jogo entre a primeira e a
terceira pessoas, de modo completamente distinto e singular, em uma investigação sobre o
desaparecimento que é também formal, ética e estética. Na impossibilidade de consolo
diante daquilo que se perdeu, essas buscas têm de lidar com rastros e ruínas. E é com esses
vestígios, com aquilo que não se escreve e que se inscreve, que resta e que se perde, enfim,
com aquilo que falta, que certas obras podem legar a nós uma fundamental reflexão sobre a
parcialidade radical do texto e da imagem, bem como sobre os limites, ou mesmo
impossibilidades, da representação. O que nos permite aventar que, com frequência, as
escritas de si, autobiográficas, tornam-se escritas do trauma e do luto, como se a singular
experiência da dor e da separação, vivida por cada um como irreparável, fosse a condição
mesma para que se efetivasse uma passagem do singular ao coletivo, do pessoal ao político.
Mas não nos esqueçamos: o singular, no âmbito da autobiografia, seja no cinema ou na
literatura, não pode ser pensado como o primado do indivíduo, e sim como efeito da marca
que cada um – com seu “ativo da dor”, segundo Barthes (2011, p.41), com seu estilo –
inscreve no coletivo.
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em rede. A oportunidade de desenvolver o projeto junto ao LAICA, grupo de pesquisa aberto
a problemáticas transversais, que cortam meios, formas, períodos históricos e filmografias
nacionais, se fará muito importante pela interlocução com alunos sintonizados nos debates
a respeito das intersecções disciplinares e da materialidade das imagens, apoiadas na
centralidade da análise fílmica. Dessa maneira, uma reflexão conjunta sobre a relação entre
as imagens e a política contemporânea – ou, melhor dizendo, sobre uma política das
imagens, que, mais do que nunca, ocupam o centro da vida cotidiana, da violência, da mídia
e do poder, poderá ser efetivada de maneira integrada, interdisciplinar e atenta à
materialidade das obras.
Visando tais objetivos, elencamos dez problemas na forma de tópicos a serem
investigados, articulando filmografias e bibliografias específicas, seguidos pelas produções
cinematográficas e literárias de referência:
▪ O retorno do exilado:
Crônicas palestinas de um presente ausente
(Elia Suleiman, Michel Kleifi, Edward Said...)
13
▪ Narrar o trauma, escrever o luto:
Da impotência à afirmação do possível
(David Perlov, João Moreira Salles, Marcel Cohen, Patrick Modiano...)
A cena interior (fatos), Marcel Cohen, São Paulo: Ed. 34, 2017.
Dora Bruder, Patrick Modiano. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
A mulher de pés descalços, Scholastique Mukasonga. São Paulo: Nós, 2017.
Charlotte, David Foenkinos, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016.
14
A língua absolvida, Elias Canetti. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
Posta restante, Cynthia Rimsky. Buenos Aires: Entropía, 2016.
El arte de perder, Mirta Rosenberg. Buenos Aires, Bajo la luna nueva, 1998.
O gueto / O eco de minha mãe, Tamara Kamenszain. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.
O brilho do bronze (um diário), Boris Fausto. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
O que os cegos estão sonhando, Noemi Jaffe. São Paulo: Ed. 34, 2012.
Desterro – memórias em ruínas, Luis S. Krausz. São Paulo: Tordesilhas: 2011.
K – Relato de uma busca, Bernardo Kucinski. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
Os visitantes, Bernardo Kucinski. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
Formas de voltar para casa, Alejandro Zambra. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
A resistência, Júlian Fuks. São Paulo: Cia das Letras, 2015.
Diário da queda, Michel Laub. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
Vozes de Tchernobyl, Svetlana Aleksievitch. São Paulo: Cia das Letras, 2016.
Austerlitz, W. G. Sebald. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
Hiroshima, mon amour, Marguerite Duras. Paris: Gallimard, 1960.
A dor, Marguerite Duras. São Paulo: Círculo do livro, 1985.
Cadernos de guerra e outros textos, Marguerite Duras. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
L’élimination. Rithy Panh e Christophe Bataille. Paris: Grasset & Fasquelle, 2011.
L’image manquante, Rithy Panh e Christophe Bataille. Paris: Grasset & Fasquelle, 2013.
Shoah, Claude Lanzmann. Paris: Gallimard, 1997.
Ma mère rit, Chantal Akerman. Paris: Mercure de France, 2013.
Et tu n’est pas revenu, Marceline Loridan-Ivens. Paris: Grasset e Fasquelle, 2015.
Rua Ordener, Rue Labat, Sarah Kofman. Rio de Janeiro: Caetés, 200.
A escrita ou a vida, Jorge Semprun. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
Paisagens da memória, Ruth Klüger. São Paulo: Ed. 34, 2005.
A tabela periódica, Primo Levi. Rio de Janeiro Relume Dumará, 1994.
É isto um homem?, Primo Levi. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
4. Resultados esperados
15
e) Participação nos seminários e workshops promovidos pelo LAICA, de maneira que a
pesquisa possa ser efetivada de forma integrada, interdisciplinar e atenta à materialidade
das obras;
f) Divulgação e difusão dos resultados da pesquisa, por meio das atividades acadêmicas e
culturais elencadas acima, somadas à participação no debate público via de textos em
jornais, revistas e periódicos;
Atividades do 1º Semestre
Atividades do 2º Semestre
d) Elaboração de um ensaio que servirá de base para o relatório final da pesquisa, em que
serão apresentados os resultados da investigação;
Título do curso:
16
Ementa
Conteúdo programático
Metodologia
Critérios de avaliação
17
A avaliação levará em conta a participação em aula, a contribuição efetiva com o curso e a
entrega do trabalho final, a ser realizado a partir dos conceitos, textos e filmes analisados e
discutidos.
Plano de curso
Dos vestígios dos desaparecidos à poeira das estrelas – documentário de busca na América
Latina: Nostalgia da luz, Patrizio Guzman (2010) + Os ruivos, Albertina Carri (2003)
18
Memória, autobiografia e política: o Oriente Médio arde
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