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(adios Intermactonats de Ceteloyacio na Publieanae (CP) (Gémera Brasitere do Livro, SP, Brast] ‘Agastinho, Santo, Bispo de Hipcnsa, 354-430. A Trindace / Senta Agostinno ; fascia de ariginel anna e introsucao. ‘Agustino Boimunte ;ravisdo e rolas complemeniares Nats Assis Clvera). = ‘Si9 Paula : Paulus, 1894 — (Pakistca) Bicliogratia, ISON a5-249.0008-1 1. Teglogia dognidiica — Hislova — lareia prmitva, ca, 30-600 2, Trindade | Titulo. I. Série 92-2000 ©00-231.044 Incices para ealdiogo sintornaticn: 1. Teslogia tnmidna : Teologa dogmtiva eis 281.028 2, Tringade : Tesloga dogenates oista 231.048 Colegio PATRISTICN + Parkes Aposttlizas + Badhes Anologistas +s Justine de Roma, Ireneu de Leo + Sanio Agostinho, A Trindade SANTO AGOSTINHO A TRINDADE Paulus a pparocide y Thule arginal Do Frintate Q texto latina de base # 9 da Edigdo Maurina, conforma BA... 1. ¥.A reveado, da tradugSo foi coisjada com adiges em frances © espana, ‘Traduglo do originel latino @ Intredu go Fret Agustina @stmonie, OAR. Revista e notas complementares Ir, Nai de Assis Obvera, OSA. Revista Hi Daibasco Diragtio editorial Pe, Meroe! Quinta PAULUS - 199 Rua Francisco Oruz, 228 2117-091 Sao Paulo (Brasil Fax (011) 875-7408 Tel. (011) 572-2362 ISBN 85-s49-0098- APRESENTAGAO Surgiu, pelos anos 40, na Europa, especialmente na Franca, um movimento de interesse voltado para os anti- gos escritores cristtos e suas obras conhecidos, tradicio- nalmente, como “Padres da Igreja”, ou “santos Padres”. Esse movimento, liderade por Henri de Lubac e Jean Dani¢lou, deu origem & colegio “Sources Chrétiennes”, hojecom mais de 300 titulos, alguns dos quais com vdrias edigées. Com o Coneilio Vaticano If, ativou-se em toda a Igrejao desejo ea necessidade de renovagdo de liturgia, da exegese,da espiritualidadeeda teologia a partir das fontes primitivas, Surgiu a necessidade de "voltar us fontes” do cristianismo. No Brasil, em termos de publicacéo das obras destes autores antigos, pouco se fez. Paulus Rditora procura, agora, preencher este vazio existente em lingua portugue- sa. Nunca é tarde ou fora de época para se rever as fontes da fé crista, os fundamentos da doutrina da Igreja, espe- cialmente no sentido de buscar neiasa inspiracéo atuante, transformadora do presente, Nao se propde uma volta ao passodo através da leitura e estudo dos textos primitivos como remédio ao saudosisme. Ao contrério, procira-se ofere- cer aquilo que constitui as “fontes” do cristianismo para que o leitor as examine, as avalie ¢ colha 0 essencial, 0 esptrito que as produziu, Cabe ac leitor, portanta, a tarefa do discernimento, Paulus Editera quer, assim, oferecer ao piiblico de lingua portuguesa, leigos, elériges, religiosos, aos estudiosos do cristianisme primevo, uma série de ttulos, ndo exaustiva, cuidadosamente traduzidos e pre- parados, dessa vast titeratura cristé do perlodo patristico. APRESENTAGAO 6 Para néo sobrecarregar o texto e retardar a teitura, procurou-se evitar enotacées excessivas, os longas intro dugSes estabelecendo paraletismos de versées diferentes, com. referéncias aos empréstimos da literatura pagé, filo- stifica, veligiosa, juridiea, 4s infindas controvérsias sobre determinados textos e sua autenticidade, Procurou-se fa- zer com que o resultado desta pesquisa original se tradu- zisse numa edigho despojada, porém, séria. Cade autor e cada obra teréo uma introdugdo breve com os dados biogrdficos essenciais do autor ¢ um comen- tdrio sucinte dos aspectos literdrios e do conietido da obra suficientes para uma boa compreensiio do texto. O que tnteressa ¢ colocar o leitor diretamente em contato com o texto. O leitor deverd ter ent mente as enormes diferencas de géneros literdrios, de estilos em que estas obras foram redigidas: cartas, sermées, comentérios btblicos, pardfra- ses, exortagdes, disputas com os heréticos, tratados tealé. gicos vazudos em esquemas e categorias filosdficas de tendéncias diversas, hinos liturgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade de tratamento e de esforgo de compreensio a um mesnto tema. As constantes, e por uezes longas, citagées biblicas ou simples transeri- gées de textos escrituristicos, devem-se an fato de que os Padres escreviam suas reflexes sempre com a Biblia numa das mdos. Julgamos necessdrio um esclarecimento a respeito dos termos patrologia, patristic e padres ou pais da Igraja. O terme patrologia designa, propriamente, o vstu- do sobre a vida, as obras e a doutrina dos pais da Igreja. Ela se interessa mais pela historia antiga ineluindo tam- bém obras de escritores leigos, Por patréstica se entende 0 estudo da doutrina, as origens dessa doutring, suas de- pendincias e empréstimos do meio cultural, filoséfico pela evolucdo do pensamento teolégico dos pais da Igreja. Foi no século XVU que se criou a expressdo “teologia " APRESENTAGAO patristica” para indicar a doutrina dos Padres da Igreja distinguindo-a da “teologia biblica”, da “teologia escoldstica’, da “teologia simbdlica” ¢ da “teologia especulativa”, Finalmente, “Padre ow Pai da Igreja™ se refere a escriior leigo, sacerdote ov bispo, da antiguidade crista, considerado pela tradigéo posterior como testemu- nho particularmente autorizado da fé. Na tentatioa de eliminar as ambigtiidades em torno desta expressiio, o8 estudiosos convencionaram em receber como “Pai da Igre- Ja” quem iivesse esiae qualificagées: ortudoxia de doutri- na, santidade de vida, eprovagaovelesidstica caniiguida- de. Mas, os préprios eonceitos de ortedoxia, santidade ¢ antiguidade séio ambiguas. Nau se espere encontrar neles doxtrinas ccabadas, buriiadas, irrefutdveis. Tuco estar ainda em ebulicto, fermentando. O conceito de ortodoxta &, poriante, bastante largo. O mesmo vale para o conceito de santidade, Para o conceito de antiguidade, podenros tdmitir, sem. projuize para a compreensao, a opinito de inuitos especintistas que estabslece, para 0 Ocidente, Igre- Jalatina, 0 periodo que, a partir da geragdo apostdlica, se estende atd Isidoro de Sevilha (560-636). Pare o Oriente, Tavein grega, a antiguidade se estende um pouco mais até amorte des. Jolie Damasceno (675-749). Os “Pais da Igreje” sto, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos, foram forjando, cons. truindoedefendendiva fé, a liturgia, «disciplina, os costu- mes, ¢ os dogmas cristéos, decidindo, assim, os rumos da Igreja, Seus textos se tornaram fonies de discussdes, de inspiracoes, dz referéncias obrigatérias ao longo de toda Lradigéio posterior. O valor dessas obras que agora Paulus Editora oférece ao piiblico pode ser avatiado neste texto: “Além de sua ireportancia no ambiente eclesidstico, os Padres da Igreja acupam laigar procminente naliterahira @, particularmente, na literatura greco-romane. Si eles os iltimos representantes da Antiguidade, cuja arte literd- APRESENTACAO 8 ria, no raras vezes, britha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores. For- mados pelos methores mestres da Antiguidade classica, poem suas palavras-e seus escritos a servigo do pensamen- to cristo. Se excetuarmos algumas obras retéricas de cardter apologético, oratério ou apuradamente epistolar, o8 Pacires, por certo, néio queriam ser, em primeira linha, literatos, e sim, arauios da doutrinae mored cristas. Aarte adquirida, néo obstante, vem a ser para eles meio parc aleangar este fim. ..,) Hade se thes aprozimar o leitor com 0 coragao aberto, cheto de boa vontade e bem disposto & verdade crist@. As obras dos Padres se lhe reverterdo, assim, em fonte de luz, clegria e edificagao espiritwal” (B. Altaner; A. Stuiber, Patrologia, Paulus, $, Paulo, 1988, Bp. 21-22), AEditora INTRODUCAQ* Otempo decorrido do ano 400 a 416, perfodo dedicado a elabogdo deste monumento teoldgico ¢ filosdfico, que é 0 tratado De Trinitate, revela, por um lado, a profundidade do tema e, por outro, a seriedade com que o bispo de Hipona encarou seu projeto. E verdade que ngo foram dezesseis anos’ dedicados apenas a conatrugde deste mo- numento, pois, além de seus afazeres pastorais, sua pena incansavel estava a servico da fé catélica, em sua defesa e ensino, mediante outros escritos.? Abra estamnpa oretrato de homem pertinaz em suas investigagées, mestre do bem escrover, fiel & Rovelagao A Tradigao, eximio exeafandrista nas éguas dos textos escrituristicos, esgrimista versatil nas refutagdes dos erros, Revelando-se, porém, nao apenas como tratadista de Deus, mas também alma de profunda picdade e de ardenie caridade, as dissertagies esto salpicadas de reflexdes piedosas, de veementes protestos do fidelidade 4 ortodoxia catclica, de amorosos, embora enérgicos, in- centivos ao abandono do erro, aos que persistiam em suas opinides demolidoras da unidade no mistério trinitario. O enfoque de vérios aspectos do mistério tradus sua época, pois, o estudos de hoje talvez dispensassem dis- cursos t4o prolixos. Tenha-se ein conta, porém, os recur- sos de que se valiam os ensinamentos heréticos para impor seus principios e enredar na trama de seus sofis- mas os fidis despreparados e, portanto, ameacados na pureza de sua fé. INTRODUGAO 10 Vivia-se ainda a transigao do paganismo para o cristianismo, cujos dogmas estavam rouite distantes das crengas vigentes sobre a divindade. A fé catdlice em Deus uno ¢ trino, impossivel de ser vislumbrade por inteligén- ciay carentesde fé, xdquiria forosde maiorineompreensao perante o mistério da encarnagio, tao intimamente asso- ciado ae mistério trinitario. E no seio da propria Igreja, a revolts ou a fé vacilante levou muitos batizados a envere- darem pelos caminhos da heresia, opugnando crengas ja arraigadas na espirito dos erentes. Oleque de doutrinas heréticas apresentavaas varie- dades mais diversas, alguinas partindo diretamente do mistério trinitario e outras considerando a pessoa de Cristo em suas relagies com 0 mesmo mistério. No séeulo Tl, erguendo © lema de Monarchiam tenemus (Temos monarquia), surgiu a doutrina da existéncia de um s6 Deus com exclusio das diferentes pessoas. Para uma faecio des manarquinianistas, Cristo era um simples homem, e representava apenas o dinanismo de Deus {dinamistas), para outra, era téo sé filho de Deus pela graca (adopcionistas). Os monarquianos modalisias aase- guravam a divindade de Cristo, mas somente como um rosto diferente de Deus; os patripassistas nao -viam dife- renca entre o Paie o Filhoe receberam essa denominagao pela doutrina que defendiam, ou seja, atributam ao Paios sofrimentes de Cristo. O sabelianismo se insurgiu contra a fé em trés pessoas, as quais seriam apenas denomina- gdes diferentes para uma esséncia divina. 0 adopcionismo considerava o Verbo encarnado como filho natural de Deus na natureza divina, e filho adotive na natureza humana. Negando a primeira parte da heresia anterior, o arianismo excluia o Filho da esfera da divindade e 0 considerava apenas como filho adotivo de Deus, Com relagao a pessoa divina do Espirito Santo, levantaram-se prineipalmente os pneumaticos que lhe negavama divin- a iNTRODUGAO dade ¢, conseqientemente, apregoavam sua inferiorida- de com relagao ao Pai e a0 Filho, As vozes dos defensores da ortodoxia levantaram-se em todos 03 momentos em favor da autenticidade da fé com base nas préprias Eserituras ¢ também com argu- mentos de razaio. Santo Ireneu notabilizou-se nesse eam- pocomsuaobra “Adversus Haereses” (Contra oshereges). Tertuliano, ne séeulo TI ainda, colocou seu talento princi- palmente contra os modalistas com a obra “Adversus Praxeas” {Contra Praxéias). Clemente de Alexandria, Origenes, Basilio foram também propugnadores imper- térrites da fé, sem esquecer Dionisio de Alexandria, no seul empenho em refutar a argumentacio dos sabelianos; e Novaciano, notavel peio métodoe elegancia na exposicio do simbolo da fé, assim como santo Ambrésio. Na Iuta contra os arianos destacaram-se santo Atanasio e Santo Hildrio. O primeiro, no século IIT, bispo de Alexandria, foi o homem enviado por Deus para fazer frente aos impetos da hetesia, a qual enfrentou com energia mediante seus escritos apologéticos sobre a Trindade. O segundo, cha- mado o Atandsio do Ocidente, celebrizou-se também nes- sa luta com sua obra “De Trinitate” — uma exposiciio ortodoxa da fé no mistério trinitario, em estilo elegante e com firmeza de argumentagéo. Essa luta, que se travava hé séculos, reclamava da Tgreja uma proclamagao oficial que viesse pér ponto final nas discussées que se alongavem, tumultuavam o am- biente e confundiam os esptritos. Nada mais convincente do que a realizagSo de um concilio universal, onde os pastores do rebanhe de Cristo, dispersos nas diversas partes do mundo, se reunissem para expressar sua comu- nhao e a unidade da fé. A grande assembléia realizou-se em Nicéia, em 325, coma presenca de 318 bispos catélicos € 22 arianos. No final, foi apresentado 0 simbolo da £%, onde a profissfo de fé no mistério da Trindade eondessa a wsTRODUGAO 2 existéncia de um s6 Deus em trés pessoas: Pai, Filho e Espirito Santo. Devido a uma doutrina errdnea sobre o Espirito Santo, 0 segundo concilio ecuménico de Cons- tantinopla em 381 esclareceu o pensamento eatélieo como acréscimo de expressdes que elucidavam a questao. O simbolo da fé, elaborado no primeiro conetfio o completado no segundo é, por isso, denominade niceno-constantino- politano. ‘As definigdes conciliares nao foram suficientes para a exting&o des movimentos heréticos. Eis porque Agosti- nho langou-se & elaboragaa de sua obra, contando certa- mente com a ajuda de muitos escritos ortodoxos anterio- res a seu tempo ou contemporaneos, ¢ com as definicbes dos coneflios. Mas como ele préprio afirma na obra, a maioria desses tratados estavam redigidos em grego — obras, portanto, fora do alcance da Igreja do Ocidente ¢ dele proprio, que nao era muito versado nesse idioma. Havia assim uma ansia geral pelo aparecimento de um tratado que iluminasse mesmo de longe, og arcanos da verdade sobre 0 mistério do Deus tno ¢ trino, explicasse os conceitos, mostrasse a eoncordaneia dos textos escrituristicos, apesar de aparente contradigao, langasse luz sobre o mistério com argumentos de razio, mais acomodados & mentalidade humana, e refutasse, com a Biblia na mao, as proposigdes heréticas apresentadascom. subtileza para ocultar a falsidade.* Na investigagéio da verdade, ao mesmo tempo que alga. véos altaneizos em exposigées brilhantes, curva-se perante o mistério insondavel quando percebe os limites da pesquiea humana e, longe de se arvorar em mesire infalivel, incita os leitores a procura de outros esclareci- mentos, dispondo-se a corripir o resultadede suas buscas, se descobrirem que ele nao atingiu a verdade. 13 myTRODUGAG Estratura da obra O tratado agostiniano sobre a Trindade consta de quinze livros, duzentos e trés capitulos, quantro prélogos e trezentos ¢ sessenta e trés itens ou. mimeres. A carta 174, por decisdo do préprio Agostinho, antevede o inicio do tratado. Transcrevemos na fntegra essa carta, mais adiante. Nos primeiros capitulos do I livro, o autor assentao fundamento da construcéio que pretende erguer: a {8 catélica no mistério trinitario, a qual assegura, conforme testemunho das Escrituras e da Tradigao: “que o Pai, 9 Filho e 0 Espirito Santo perfazem uma unidade divina pela insepardvel ignaldade de uina e mesma substancia”. Desenvolve, em seguida, as conseqtiéncias dessas afirma- gGes argumentando sobre a consubstancialidade do Filho e do Espirito Santo em relagio ao Pai, assim como a inseparabilidade de operagdes ¢ a igual imortalidade. As implicdncias do mistério do Verbo enearnado com 0 mis~ tério da Trindade nao contradizem o fundamento da fé catélica, pois as aparentes divergéncias so explicadas pelas duas naturezas de Cristo (I Livro). No segundo e no terceiro livros, aborda as missées divinas, estabelecendo antes as regras da hermenéutica, on seja: por um lado, textos eserituristicos atestam a unidade e igualdade de esséncia do Pai e do Filo; por outro lado, outros textos falam do Filho na forma assumi- da de criatura. Sdo investigadas entao as aparigies a ‘Addo, a Abraiio, a Lot, a Moisés e a Daniel e as manifes- tagdes mediante a nuvem e a coluna de fogo no deserto. Conciui sempre que essas visdes se verificaram mediante uma criatura corpérea. Para esclarecimento da verdade sobre ag referidas aparigées, Agostinho disserta sobre a causalidade das coisas, concluindo ser a vontade de Deus a lei superior de todas as coisas e ser a esséncia divina INTRODUCAO 4 invisivel. As teofanias acontecem por meio de anjos « servico do Criador (II e HI Livros ). Disserta, depois, especificamente sobre a missio do Filho, cuja tnica morte é remédio para a dupla morte do homem; e sobre a mediagio de Cristo para a vida. Apesat de enviados, o Filho eo Esptrito Santo s&o iguais a0 Pai {IV Livro }. Apés apresentar os conceitos filosdficos de substan- cia e acidente, o santo lembra que, embora sobre Deus nada se possa afirmar quanto aos acidentes — pois nele no existem, contudo, pode-se edmitir nele a categoria de relagio. Com essa disting&o, refuta o argumento dos arianos baseados nos conceitos de ingénito e gerado, Como conseqiiéncia, reafirma a igualdadena Trindade, a consubstancialidade do Espirito Santo com Pai eo Filho, ¢ conclui pela existéncia de um 36 Deus e nao de trés deuses (V e VI Livros }. A afirmagéo do apéstole Paulo: “Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”, da ensejo para dissertar sobre a tese da unicidade da sabedoria na Frindade, assim como de unicidade de esséncia, Preoeupa-o, em seguida, a pergunta: “O que s&o os trés?” E apresenta duas respos- tas: os trés so uma esséncia e trés substincias, para os gregos; ¢ uma esséncia e trés pessoas, para os latinos. Embora dé preferéncia ao modo de se expressar dos latinos, conclui que se trata de recursos da linguagem humana a qual é inadequada para exprimir o que nao foi revelado (Livros VI ¢ Wil). Depois de acentuar mais uma vex a igualdade das trés pessoas, agora, por meio de um argumento de razdo, o santo estabelece que, para a compreensio de Deus, deve-se deixar de lado qualquer imagem corpérea, mas que se pode entender algo da natureza de Dous pela intelecgao da verdade, pelo conhecimento do Sumo Bem e pelo amor justiga, O caminko mais breve, porém, é 2 15 INTRODUCAD, vivéneia do amor, no qual se percebe certo vestigio de Deus (VIII Livre), ‘Langa-co ento a procure de uma imagem de Deua até enconiré-la na mente do homem, onde se depara com atrindade: inteligéncia, conkecimentoe amor, com oqual ama o seu proprio conhecimento. Aprofundando a pesqui- 3a, descobre na mente uma trindade mais importante: a memeéria, o entendimento e a vontade (IX e X Livros). Como que dando um passo atrés, mas justificando seu procedimento pela necessidade de exercitar # inteli- géncia dos leitores, investiga depois a existéncia de uma imagem de Deus no homer exterior, # encontra a primei- ra, na visdo exterior das coisas, constituida pela visto do objeto, a imagem dele formada no olhar do vidente, ¢ & jntenedo da vontade como elemento de ligacdo. As trés realidades, porém, ndo sao da mesma substancia, Encontra a segunda imagem, cujos elementos sdo da mesma substineia, constituida pela imagem do corpo retida na meméria, pela informagao obtida pelo olhar do pensamento, e pela intencdo da vontade como terceiro elemento {XI Livre). Prossegue a investigacio sobre a imagem de Deus no hornem. Depois deestabelecer a diferenea entre sabedoria a ciéneia, surge a descoberta de uma imagem, ainda inferior, na ciéncia, embora prépria de homem interior. E enfoca 6 assunto da ciéncia relacionando-o com a f, que 6 comum ¢ Una em todos os crentes, ¢ necessaria para a felividade do homem,. A felicidade verdadeira tem a nota da imortalidade, a qual o homem pode almejar a alcangar pelos méritos da vida, morte e ressurreigho do Verbo encarnado (XII e XIII Livros). Chegando ao fim da pesquisa, encentra a imagem de Deus no homem segundo @ mente, que se renova no conhecimento de Deus conforme a imagem daquele que o eriou & sta imagem, Com 2 mente, o homem pereebe a INTRODUGAO 16 sabedoria, contemplagio do eterno. Contudo, a Trindade, nesta vida, o homem a vé tao-somente em eapelho e em enigma, pois esse visio acontece por meic da imagem de Deus, que é 0 préprio homem — semelhanga obscura ¢ dificil de se discernir. Essa descoberta permiteexplicar de algum modo a geragio do Verbo divino, ou seja, mediante a geragio da palavra em nossa mente. As ultimas reflexdes versam sobre a procedéncia do Espirito Santo, a qual 6 explicada como sendo o amor entre 0 Pai e 0 Filho (XIV e XV Livros). A obra nas “Retratagées” No ano de 427, Agostinho escreveu a obra “Re- tractationes” (Retratagées), om dois livros, em que revé afirmagées contidas em obras suas j4 publicadas, e sobre as quais julga necessArio apresentar esclarecimentos ou até correcies. Com relagio a “De Trinitate” faz referéacia trés vezes. Bi-las: 1) ‘No livro XI (cap. 5 n. 9), quando tratava do corpo vistvel, disse: Portanto, amé-Lo, isso é loucura, Referi-me ao amor com que se ama algo, a ponto de oamante pér sua felicidade na sua fruigio. Pois nao ésinal de loucura amar a formosura corporal para loavor de Criador.” 2)“No mesmo livra(cap. 10 n. 17), quando disse: “Nao me recordo de uma ave quadrtipede, porque nunca a vi. Mas posso contemplar com facilidade esse ser ficticio, pois, comojé vi outras aves, acrescentando outros dois pés semelhantes aos que ja observei”, ao dizé-lo, nfo me lembrei das aves quadripes mencionadasna Lei (Lv 11- 20). A Lei néo considera como pés, as duzs patas poste- riores que permitem 6 salto aos gafanhotos, tidos como animais puros. Distingue-os dos voliiteis que néo saltam 47 INTRODUCAO com 0 auxilio dessas patas, como os escaravelhos. Todos esses volateis sao denominados quadrupedes na Lei”. 3) “No livro XII (cap. 1 n. 15), ¢ comentério das palavras do Apéstolo: “Todo outro peeado que o homem. cometa, é exterior a0 seu cozpo” (1Cor 6,18), ndo me agrada, E aspalavras:"Aquelequeseentregar’ fornicacao, peca contra © proprio corpo” (1Cor 8,18}, nao se hao de entender no sentido de que aquele que comete esse peca- do, comete-o para ter as sensagées que o corpo percebe, de tal modo que nelas ponha seu ultimo fim. Isso abrange muitos outros pecades além da fornicagao perpetrada mediante uniac ilicita, da qual o Apéstolo fez referéncia 20 dizer isso.* (Retra ef. IT 15,23) Essa obra, excetuando-se a carta que a encabega, corneca assim: Quem se entregar & leitura do que escrevemos sobre a Trindade... (Lecturus haec quae de Trinitate disserimus). CARTA PROLOGO Carta 174 De Agostinho, ao beatissimo, muito amado e veneraval papaAurelio santo irmaoecolega no sacerdocio, saudagao no Senhor.” Sendo ainda muito jovem, iniciei a elaboragao destes meus livros sobre a Trindade, que é 0 Deus sumo e verdadeiro. Agora, entrado em anos, trago-os a puiblico* Interrompi esta obra, apés ter constatado que mos ha- viam tirado 4s escondidas ov mesmo furtado, antes de os haver terminado ¢ revisto, como era o meu desejo, Propu- sera-me publicd-los nao em livros separados, masemuma obra completa, pois assuntos subseqientes ligam-se aos precedentes no transcurso da pesquisa. Como nao me foi possivel executar esses planos (pois, contrariamente A minha vontade, os volumes chegaram as mAoa de alguns), interrompi o ditado dos livros, pensando Lamentar o fato em outros escritos, e assim fosse tomado conhecimento, 0 quanto possivel, de que os referides livros me foram furtados antes que os julgasee digaos de virem A luz. Atendendo, porém, aos insistentes pedidos de muitos irmaos e principalmente, obrigade pela tua ordem, deter- minei terminar com a ajuda de Deus t&o penoso empreen- dimento. Pelas maos de nosso carissimo filhoe co-dideono, fago-os chegar as tuas méos ja corrigidos — no tao bem como 0 desejava, mas de acordo com minhas possibilida- CARTA 174 20 des —, para assim nio se diferenciarem tanto dos que, levados por alguém, escaparam-me das maos. E dou autorizagdo a todos 03 que queiram escuté-los, copid-los ou [é-los, Se tivesse podido realizar meu desejo, conser- vando o mesmo contetido, a minha exposigao teria sido mais explicita e clara, isso na medida que as dificuldades, quo envolvem a oxplanagao de assuntos tao profindos 2a nossa prépria capacidade o tivesse permitido. HA pessoas que tém consigo os quatro ou, talvez, 08 cinco primeiro livros sem os devidos prélogoseo duodéeimo livro sem uma parte final consideravel. Se esta presente edig&o chegar-lhes as m&os, poderdo fazer as corregies, se oquiserem ou puderem. Solicito, como medida de prudén- cia, que mandes transcrever esta carta a parte, antes do inicio de todos os livros. Adeus! Reza por mim! Lelam-se também as Notas camplementares a Tntrodugan: 18.9; Origem do emprego da “Trindade” 1 10: A famosa lenea do Anjo na prsia, 11: Contribto trazide 8 doutrina trinitéria da Tgreja “Vés a Trindadey se vés a Caridade”’ (Vides Trinitatem. si charitatem vides? (VII, 8,12)- “Lembre-me eu de tis conhega-te a tis ame-te a ti Faze-me crescet e reforma-me por inteiro”- (Meminerim tui, intelligam te, diligam ¢e- Auge in me ista, donec me reformes ad integrum? (XY, 28,51» LIVROI —Unidade e igualdade da Trindade nas Esorituras — Refutagio dos erros contra a igualdade do Filho GAPETOLO 1 Precauegiéo contra os heresies. A verdadeira imortalida- de. A fee « compreenséa das coisas divinas 1. Quem se entregar & leitura do que escrevemos sobre a Trindade, deve teremeonta, primeiremente, que nossa pena esi atenta para repelir as falsas afivmagdes daqueles que, desprezando os prineipios da {6, deixam-se enganar por um ireaturo e desordenedo amor pela razio, Alguns petendem aplicay is coisas incopsreas e cspirituais 28 nogiies adquixi- das sobre coisas corpsreas, mediante es sentidos, ou gracas a forga da rarao umana e a potencialidade da investigacao; ou ainda coma ajuda de ulguma arte, pretendendo medir as coisas espirituais pelas corporais e conjeturar sobre aquelas coma fazem com estas. Ha outros que pensam sobre Deus —se éque pensam alguma coisa —, apoiados na natureza da alma humana ou em seus sentimentos. Desse erro sao levados a fixer regras falsas e falazes em suas doutrinas, quando discor- rer sobre Deus, Ha ainda uma torceira espécie de indivi- duoa que eo esforgam por tranaeeder ns coisas eriadas, certamente mutéveis, para se aplicarem & substancia imutavel, que 6 Deus. Onerados, porém, pelo peso da mortalidade, querem fingir saber que niio saber; mas como nao se capazes de conhecer o que almejam, afir- mar com todo atrevimento suas opinides hipatéticas, LIvRo 24 fecham asi mesmosos caminhos da inteligéncia, preferin- do nao se corrigirem de suas falsas afirmagies, a modifi- carem o que defendem.' Egse 6 0 mal dos trés grupos de individuos aos quais. me referi ou seja: os que enfocam o tema de Deus como ‘uma substancia corpérea; 0s que o abordam confarme os seres espirituais, como a alma; e os que nap obedecem a nenhum dos dois critérios e emitem opinides falsas a respeita de Deus. Esto eles tanto mais longe da verdade quanto mais seus conhecimentos ndo apéiam, nos senti- dos corporais nem no espirito criado; nem no préprio Griador. Quem julga, por exemplo, que Deus é braneo ou louro, engana-se, ainda que de qualquer maneira encon- tremos esses acidentes no corpo. Quem considera que Deus agora se esquece e depois se lembra, ou tém outras opiniées semelhantes, esta totalmente em erro, ainda que de qualquer forma, essas faculdades se encontrem na alma. Quem, porém, pensa que Deus é dotado de tal forea que tenha gerado a si mesmo, incorre em maior erro ainda, ja que Deus nao somente nao é assim, e tampouco & uma criatura espiritual ou corporal. Nao é criatura alguma que seja capaz de gerar a si mesma para existir, 2. Com a finalidade de purificar o espirito humane de semelhantes erros a santa Escritura, acomodando-se aos pequetios, nao evitou expressdes designando esse genero de coisas temporais, mediante as quais nosso entendi- mento, como que alimentado, pudesse ascender por de- graus, as coisas divinas e sublimes. Por isso, empregou palavras tomadas das coisas corporais ao falar de Deus come, por exemplo, quando diz: Protege-me & sombra de tuas asas (81 16,8). E apropriou-se também de muitas expresstes referentes ao espirito para significar aquilo que, embora no seja desse modo, era precisa que fosse dito assim, como: Eu sou um Deus ciumento (Ex 20,5), € 25 123 também: Pesa-me de ter feito o homem (Gn 6,7), Em se tratando de coisas inexistentes, a Escritura nao registrou expresstio alguna que envolvesse locugies figurativas ou enverrasse enigmas. Daf, que se perdem em afirmacdes ‘vas eperniciosas os que se afastam da verdade, abragando aquela terceira espécie de erro. Conjeturam a respeito de Deus elementos que nao se encontram nele mesmo, nem em criatura algumas. Com elementos préprios das criaturas, a Escriture divina costuma compor como que jogos infantis, com a intengao de que os sentimentos dos simples sejam estimu- lados, como que passo # paaso, 4 procura das coisas superiores, no abandono das inferiores.” O que, porém, é dito com propriedade somente a respeito de Deus e que no se encontra nas criaturas, a divina Eseritura rara~ mente registra, como o que foi dito a Moisés: Eu sox o que sou, e também: Aguele que é, enviou-me a ués (Ex 3,14). ‘Ainda que 0 verbo “ser” seja empregado também om. relagdo ao corpo e & alma, a Esctitura nfo o empregaria, se ndo quisesse dar a essas palavras um sentido todo especial, a0 se referir a Deus. Do mesmo modo quando 0 Apéstolo diz: O tinico quve possui a imortalidade, 0 senkor dos Senhores (1Tm 6,16). Visto que se diz a alma ser imortal, como de fato é, a Eseritura nao diria: “O ténico”, sea verdadeira imortalidade néo fosse a imutavel, da qual nenhuma eriatura 6 dotada, j4 que esta imortalidade per- tence somente ao Criador, @ mesmo da entender o apés- tolo Tiago: Todo dom preciosoe toda dadiva perfeita vem doalto, deseendo do Pai das luzes, no qual néo hd mudan- ganem sombra devariagio(T¢ 1,17). Ha tambémoquediz Davi: 2 como uma vestidure, tu as mudas e ficam muda- das; tu, porém, és sempre o mesmo (S| 101,27-28). 8. Desse mode torna-se dificil intuir ¢ conhecor plena- mente a substancia de Deus,’ que faz as coisas mutaveis, Lavo 26 sem mudanca emsi mesmo, ¢ cria ascoisas temporaissem qualquer relagao com o tempo. Faz-se mister, por isso, purificar nossa mente para podermos contemplar inefa- velmente o inefavel. Ao nao conseguirmos ainda essa purifieagao, alimentamo-nos da fé, somos conduzidos por caminhos mais praticaveis a fim de sermos capazes de cheger a compreender a Dens.*Nesse sentido, afirmou 0 Apéstolo que todos 03 tesouras da ssbedoria e da ciéncia esto escondides em Cristo (Cl 2,3), mas apresentou-o aos que, embora renascidos pela graga, séo ainda carnais e animais, e portanto tais criancas. Aasim, apresenta 0 Cristo nao com o poder divino pelo qual é igual ao Pai, mas na fraqueza humana na qual foi crueificado. Diz textual- mente: Pois eu ndo quis saber outra coisa entre vds a ndo ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. E, prosseguin- do: Estive entre vés cheio de fraqueza, receio ¢ temor (1Cor 2,2-3), E mais adiante: Quanto a mim, irmdaos, néo vos pude falar comoa homens espirituats, mas téo-somen- fe coma @ homens carnais, como a crianeas em Cristo, Dei-vos a beber leite, no alimento sélido, pois nao o podteis suportar. Mas nem mesmo agora o podeis (1Cor 3,1-2). Quando se fala tudo isso a certas pessoas, elas sko tomadas de furor e consideram-no um insulto. Preferem acreditar néo terem o que dizer os que isso dizer, antes de se considerarem a si mesmos incapazes de compreen- der ¢ que Ihes é dito. As vezes, lhes apresentamios certa argumentacao, nao justamente o que pedem quando in- vestigam sobre Deus, pois eles nao tém capacidade de compreendé-lo — nem nés talvez tenhamos para com- preendéto e explicé-lo, Somente expomos alguns argu- mentos que demonstram a sua incompeténcia e inido- neidade para entenderem o que exigem. esas pessoas como nado ouvem aquilo que desejam — ou pensam que agimos com asticia para ocultar nessa incapacidade, ou 27 24 talvez que agimos com maldade, por thes invejarmos a competéncia —, indignadas ¢ confusas, afastam-se de nds, caPiTuLo 2 O procedimento neste estudo sobre a Trindade 4. Considerando o precedente, com a ajuda de nosso Deus e Serhor e conforme nossa capacidade, empreende- remos a tarefa que nos pedem, ¢ assim demonstraremos que « Trindade é um a6 e verdadeiro Deus, ¢ quao retamente se diz, ee cré e se entende que o Pai, o Filho e ¢ Bspfrito Santo possuem uma sé ¢ mesa substéncia ou esséncia.° Assim nao poderde afirmar, por assim dizer, que enganamos os adversdrios com nossas pretensies. ‘Mas que se convencam pela prépria experiéncia de que existe aquele sumo Bem, 86 visivel 2s mentes muito puras. Ese eles ndo podem compreender, é porque o limitado olhar da inteligéncia humana nao é capaz de se fixar nessa luz sublime, se no for alimentado pela justicn fortalecida pela £6. Primeiramente, porém, é preciso demonstrar pela autoridade das santas Eserituras, a certeza de nossa fé, Em seguida, se Deus assim quiser e ajudar, atenderemoa a esses garrulos raciceinadores* — mais cheios de si do que capazes, vititnas de um mal deveras perigoso—, a fim de que encontrem uma doutrina da qual nao possam duvidar. Sendo quiserem se convencer, queixem-se antes da debilidede de suas mentes do que da verdade, ou mesmo da nossa argumentacdo. Se neles ainda restar algum. amor ou temor a Deus, retornem aos principios ¢& ordem da f6, e assim experimentem a saudavel medicina TIVROL 28 dos Adis, existente na Igreja, de modo que uma piedade auténtica cure « mente doentia incapaz de pereeber a verdade imutavel, ¢ Jeve a evitar que a temeridade desre- grada os faca emitir opinides maldosamente falsas. Nao me cansarei de procurar, se tiver alguma duivida;endome envergonharei de aprender, se cair em algum erro." CAPITULO 3 Pacto do autor com os leitares 5. Todo aquele que ler estas explanagées, quando tiver certeza do que afirmo, caminhe lado a lado comigo; quan- do duvidar come eu, investigue comigo; quando reconhe- cer que foi seu o erro, venha ter comigo; se 0 erro for meu, chame minha atencéo.® Assim haveremos de pelmilaar juntos o caminho da caridade em diregdo Squele de quem esté dito: Buscai sempre a sua face (81 104,4). Pago eate pacto piedoso e seguro na presence do Senhor nosso Deus, com todos aqueles que lerem nao somante este tratado, mas tedas as minhas outras obras, principalmente no tocante & unidade da Trindade, que é 0 Pai, o Filhoe o Espirito Santo. Por certo nenhuma outra questao existe que oferega mais risco de erros, mais trabalho na investi- gagdo e mais fruto na descoberta.!? Aquele portanto, que ao ler, disser: “Istenaoesté bem explicado, pois ndoentendo”, culpe o meu modo de expres- sar, nao porém, a minha fé. Poder-se-ia com efeito dizer algumas coisas com mais clareza; contudo, ninguém ja- mais falou a ponto de todes o compreenderem, em tudo o que diz. Quem nao estiver de acordo com o que digo, procure examinar outros autores mais versados nesses. assuntos, j4 que ndo compreende a minha explicagao. Se 29 35 isso acontecer, feche meu livre ou, se achar melhor, ponha-o de lado, e dedique seu tempo eesforgo na leitura daqueles escritores que lhe sio mais compreensiveis. Nem por isso, contudo, julgue ele que eu deva me calar por nio conseguir explicar tio expedita e claramen- te come os autores que compreende. Nem tudo o que esta escrito, chega a circular nas maos de todos. Pode aconte- cer que algumas dessas pessoas venham a ter em mios pelo menos estes nossos livros, ¢ que tenham capacidade pera entendé-los, sem ter podido dispor de outros mais dlaros. Por isso, 6 vantajoso que diversos, assim como os roesmos assuntos sejam tratados por varios autores erm diferente estilo, nao, contudo, com fé diferente. Desse modo, chegarao ao conhecimento de muitos leitores a uns de um modo; a outros, diferentemente. E se alguém se queixar de no compreender minha explicagao, porque nunca foi capaz de entender acarea desses assuntos, embora tratados diligente ¢ profundamente, faga votos no seu intimo e dedique-se mais ao estudo para tirar algum ‘proveito em vex de pretender me fazer calar com suas Jamentagées e censuras. Aquele leitor que disser: “Estou compreendendo 0 que se diz, mas nao esté bem exato", apresente a sua explicaco, se 0 quiser, e impugne a minha, se puder. Caso, motivado pela caridade e a verdade, o levar ao meu conhecimento — se ainda estiver eu vivo — estarei co- Ihendo frutos copiosos deste meu trabelho. Se nao lhe for possivel trazer ao meu conhecimento, dar-me-ia alegriae prazer se fizer a observagao aos que puderem me corrigir. De minha parte, medito na lei do Senhor, sendo diae ncite (SI 1,2), pela menos em todos os momentos em que me é possivel. Para que nao venha a eaquecer minhas conside- rages, confio-as a pena esperando da divina misericérdia 4 perseveranca em todas as vardades que eu considerar LIVROI 30 come certas. Se, porém, eair em erro, ele me esclarecers (F18,15), seja mediante inspiragoes ¢ admoestagées inti- mas, seja por meio de stra palavra manifesta, seja ainda através de coldquios com os irmios. Isto pego, ¢ esta determinagio e este desejo coniio-o3 20 seu poder, pois ele Sotinicocapaz deguardar o que medeue decumpriroque prometeu,4) 6. Penso com razdo, que alguns mais tardos de inteli- géncia vao opinar, em certas passagens de meus livros, que eu disse aquilo que nfo disse; ou que nio disse o que disse, Quem ignora que o erro alheio nao nos deve ser atribuido? Esses tais pareciam seguir-me, mas néo me tendo compreendido, desvicram-se para alguma falside~ de, enquanto eu me via obrigado a caminhar por densos obscures caminhas.'? De medo semelhante ninguém tera o descare de atribuir aos santos autores dos Livros sagra- dos 05 muitos ¢ variados erros dos hereges, que se etnpe- nham em defender suas falsas e enganadoras opiniées com a autoridade das mesmas Escrituras. Alei de Cristo, com delicadissima autoridade, isto 6, a caridade, admoesta-me e ordena-me que, quando 03 homens julgam que em meus livros defendi algum erro que nao defendi, se 0 suposto erro desagradar a este agradar Aquele, que eu prefira ser repreendido pelo cen- sor da suposta falsidade a ser louvado por um adulador.”> Pois, emnbora sqja criticado pelo primeizo som razao, 0erro 6 censurado; no entanto, nem eu serei leuvado com razao pelo adulador — pois me atribui uma opinido contréria & verdade —, nem a prépria afirmagao ser elogiada com raaio; poie ofende a verdade. Emnome doSenhor, pois, demos inicio obra que nos propusemos empreender. ai 36-47 CAPITULO 4 Doutrina da fé catélica sobre a Trindade 7. Todos os comentadores catélices dos Livros divinos do Antigo edo Novo Testamento, que tive oportunidade de ler e que me precederam coro seus eserites sobre a Trin- dade, que € Deus," expuseram sua doutrina conforme as Eserituras nestes termos: 0 Pai, o Filhoe o Espirito Santo perfazem uma unidade divina pela inseparavel igualdade de uma tinicae mesma substancia. Nao s&o, portanto, trés deuses, mas um s6 Deus, embora e Pai tenha gerado o Filho, e assim, o Filho nfo éoque é 0 Pai.O Filho foi gerado pelo Pai, ¢ assim, o Pai nao 60 que Filho é. Eo Esptrito Santo nao 60 Pai nemo Filho, mes somente o Espirito do Pai ¢ do Filho, igual ao Pai ¢ ao Filho ¢ pertencente & unidade da Trindade. Contudo, a Trindade nao nasceu da Virgem Maria, nem foi crucificada sob Péncio Pilatos, nem ressuscitou ac terceiro dia, nem subiu aos esus; mas somente o Filho. A Trindade nao desceu sob a forma de pomba sobre Jesus batizado (Mt 8,16), nem no dia de Pentecostes depois da ascensio do Senhor, vindo do céu como um ruide seme- Thante ao soprar de impetuoso vendaval e, em linguas de fogo, que vieram pousar sobre cada um deles; mas somen- te o Espirito Santo (At 2,2-4). A Trindade nao fez ouvir do eau: Tu és meu Filho (Me 1,11), quando Cristo foi batizado por Joao eno monte quando com ele estavam trés diseipu- Jos (Mt 17,5); nem quando soou a voz que dizia: Zu 0 glori- fiquei eo glorificarel novamente (Jo 12,28), mes somente a voz do Pai foi dirigida ao Filho, se bem que o Paieo Filho e o Espirito Santo, como sic insepardveis em si, s80 também insepardveis em suas operagées.? Esta é minha fé, pois esta 6 a fé catélica. LIVROT 82 CAPITULO 5 Questionamentos sobre a unidade na Trindade ¢ as operacées inseparduvis 8. Algumas pessoas ficam confusas quando ouvem falar que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espirito Santo, ou seja, a Trindade, ndo so trés deuses, mas um s6 Deus. E procuram entender como isto seja possivel, principalmen- ta quando se diz que a Trindade atua inseparavelmente em tudo 0 que Deus faz, No entanto, a voz do Pai, que se ouviu, no a voz do Filho; somonte o Filho nasceu, padeceu e ressusciton e subiu ao céus; e somente o Espi- rito Santo aparecen em forma de porba, Querem com- preender como aquela voz somente do Pai, pode ser operagio da Trindade; como aquela carne, na qual somen- te0 Filo nasceu, a mesma Trindade a cricu; como aquela forma de pomba, na qual somente o Espirito Santo apare- ceu, tena sido operacao da Trindade. Case as operagies nao fossem insepardveis, mas o Pai fizesse uma coisa, o Filho outra, e o Espirito Santo outra; ou se operassem algumas vezes em conjunto, ou- tras vezes em particularcada uma; nao se poderia afirmar a inseparabilidade da Trindade. Preocupa-cs também o fato de que o Espirito Santo esteja na Trindade e nic foi gerada nem pelo Pai nem: pelo Filho, mas 6 0 Espirito do Pai e do Filho. Essaa pessoas levam-nos ao cansago com suas perguntas. Se nossa fragueza receber ajuda do dom de Deus, daremos explica- 9628, como pudermos, no caminharemos porém, com aquele que se corrdi de invoja (Sb 6,23) Se afirmarmos que tais questées nao soem preocu- par-nos, estamos mentide, Reconhecemos, porém, que ocupam nossos pensamentos, pois somos arrebatates pelo aff de investigar a verdade," e os amigos suplicam, pelo direito da caridade, que lhes comunicueroa o que puder- 33 58-69 mos descobrir. Nao quero dizer que jé tenha aleangado a meta ou seja perfeito, pois, se o apdstolo Paulo diz nao a ter aleancado, muito menos euque estou Jonge delee como que sob seus pés. Discorrerei, noentanto, conformeminha cadéncia e, se me esqueco do que disse atrase volte ao que A disse, proesigo conforme meu propésito a fim de obter ‘aprémioda vocacgdo do alto. Aqueles aquemacaridademe obriga a servir, desejam que Ihes manifeste quanto tenha andado neste caminho, aonde pretendo chegar eo que me reste de caminho até a fim, E mister, porém, e Deus me concederé que, servindo aos leitores, eu mesmo faga progressoze, ao responder aos, que perguntam, eu mesmo encontre o que procuro, Assu- mieste trabalho, por ordeme com a ajuda do Senhor nosso Deus, nao tanto para dissertar com autoridade sobre assuntos que conhego, mas para os conhecer eu mesmo, mediante uma piedosa dissertaco.7 caPitcLos Consubstancialidade do Pai e do Filho, Imortalidade da Trindade. O Filho é também criador. A deidade do Espirito Santo e a igualdade com 0 Pai eo Filho 9. Aqueles que afirmaram que nosso Senhor Jesus Cristo nao é Deus, ou que nao 6 verdadeiro Deus, ou que nao éum s6 Deus com 0 Pai, ou que nao 6 imortal por ser mutdvel!® sejam convencidos de seu erro pelo clarissimo testemunho ¢ pela afirmacio unanime dos Livros santos, dos quais so estas palavras: No prineipia era 0 Verbo, ¢ a Verbo estava em: Deus, eo Verbo era Deus. Est claro que nés reconhecemos o Verbo de Deus como o Filho tinico do Pai, do qual se diz depois: E o Verbo se fez carne ¢ habitou LIVROT 84 entre nds (Jo 1,1-14), em referéneia ao nascimenta pela sua enearnagao, ocorrida no tempo, tendo a Virgem como mae. ‘Nessa passagem, o evangelista declara que o Verbo ndoésomente Deus, mas consubstancialao Pai, pois, apds dizer: Eo Verbo era Deus, acrescenta: No principio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito do que existe (Jo 1,2-3). Diz tudo, de modo a incluir tudoe que foi criado, ow seja, todas as criaturas. Consta ai claramente que ndo foi criado aquele por quem tudo foi eriado. E se nao foi criado, nao ¢ criatura, ¢ se nao é criatura, 6 consubstancial ao Pai. Toda substancia que n4o 6 Deus, é criatura, ea que nao é criatura, é Deus. FE se o Filhe nao 6 consubstancial ao Pai, 6 uma substineia eriada; ¢ se é uma substéncia criada, todas as coisas nao foram feitas por ele. Ora, esta escrito: Tudo foi feito por ele; portanto, 6 consubstaneial ao Pai. Assim, n&a é 30- mente Deus, mas verdadeiro Deus. 10, © meamo afirma com clareza 0 apéstole Joao na sua carta: Nos sabernos que veio o Filho de Deus ¢ nos deu a inteligéncia para conhecermos o verdadeiro Deus. E nds estamos no verdadeiro Deus, no seu Fitho Jesus Cristo. Este é 0 Deus verdadeire e a vida eterna (1 Jo 5,20). Podemos também tirar a concluse de que néo se refere somente ao Pai aquelas palavras do Apéstolo: 0 unica que possui a imortalidade (17m 6,16), mas a ur 36 Deus, que é a propria Trindade," Jamais a vida eterna pode ser mortal com alguma mutabilidade; por isso, 0 Filho de Deus, porqueé Vidaeterna, esta incluide também como Pai, na citacao acima: O unico que possui a imorta- lidade, Nés, participantes de sua vida eterna, tornamo- nos imortais, conforme nosaa condigio. Mas uma coisa & a vida eterna da qual fomos feitos participantes, outra coisa somos nés que viveremos para sempre por forga dessa participagio, Se. pois, 0 Apéstolo tivesse dito: “O 35 410-11 Pai, (em vez de: Jesus Cristo) —o Bendito e tinico Sobera- no, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, 0 tinico que possui @ imortatidade, mostrard nos tempos estabelecidos... nem assim se poderia concluir que o Filho esta excluido. 0 Filho também nao se separou do Pai ao falar pela vou da Sabedoria (pois é a Sabedoria de Deu: fiz todo o giro do mundo (Eclo 24,8). Com mais raz, portanto, ndo é I{cito que se entenda 6 do Pai, excluindo 0 Filho, quando se disse: O vinico que possui a imortalida- de, jf que a afirmagao é esta: Guarda 0 mandamenta imaculado, irrepreenstvel, até a aparigéo de nosso Senor Jesus Criste, que mostraré nos tempos estabelecidos, 0 bendito e unico Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o unico que possui a imortatidade, que habita uma iuz inacessivel, que nenhum homem viu, nem pode ver. A ele, honra e poder eterno! Amém (13m 814-16). ‘Nessas palavras, no hé mengio propriamente dita do Pai nem do Filho nem do Espirito Santo, mas do bendito ¢ nico Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, 0 que corresponde ao tinieo e verdadeizo Deus, & propria Trindade. 11. Ando ser que as palavras seguintes pudessem torcer ainterpretagéo dada, pois disse: Que nenhum homemviu, nem. pode ver, porque poderiam ser entendidas camo referentes a Cristo nz sua divindade, a qual os judeus nie viram, embora tenbam visto o seu corpo e o tenham crucificado, Mas a divindade nao pode ser vista de modo algum por olhos humanos; pode, porém, ser vista com aqueles olhos de quem ja nao so homens, mas super- homens. Portanto, com toda razao deve-co ontender 0 proprio Deus-Trindade quando esta dito: 0 bendito etinico Soberano, referindo-se & apari¢do de nosso Senhor Jesus Cristo nos tempos estabelecidos. Quande o Apostolo disse: O tinico que possui a imortalidade, era como se dissesse: O tnico que faz maravilhas ($1 71,18). LIVROL 36 Desejaria saber a quem os adversérios atribuem 23 referidas palavras: pois se apenas ao Pai, como pode ser verdade o que o préprio Filho diz: Tudo aquile que 0 Pai faz, 0 Filho o faz iguatmente? (Jo 5,19). Qual 6 0 prodigio entre 0s prodigios, sendo ressuscitar e dar a vida aos mortos? Pois,o mesmo Filho diz: Como o Pai ressuscita 08 mortos ¢ os faz viver, também o Filho dé a vida a quem quer (Jo5,21). Como dizer quesomente oPai faz prodigios, se essas palavras no dio lugar a que se entenda que é somente o Pai ou apenas o Filho, mas 0 Deus tinico ¢ verdadeiro, ou seja, o Pai, o Filho ¢ 0 Espirito Santo? 12. Alémdiss0, quandoo Apéstolo diz: Pare nds, contudo, existe um sé Deus, o Pai, de quem tudo procedee para quem nés somos; e um sé Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe @ por quem nds somas (1Cor 8,6), quem hé que duvide de ele falar de todas as coisas criadas, do mesmo modo que Joao: Todas as coisas foram feitas por ele? (Jo 1,3). Pergunte também: 2 quem se refere quando diz em outro lugar: Porque tudo dele, por ele e nele;a ele agloria pelos séculos! Amém (Rm 11,36). Se essas palavras fazem referéncia ao Pai, ao Fitho e ao Espirito Santo de modo a atzibuir a cada Pessoa uma das expresses: Dele ao Pai, por ele a0 Filho, nele a0 Espirito Santo, fica claro que o Pai 0 Filho eo Espirito Santo é um 6 Deus, pois o Apéstolo acrescenta no singular: A ele a gidria pelos séculos. Por onde se v6 que uson esse sentido, também ao dizer: Oh abismo da riqueza, da sabedoria e ca eféneia; nao do Pai, do Filho e de Espirito Santo; mas,da riqueza, da sabedo- riae da ciéncia de Deus. Como sio insonddveis seus juteos e impenetraveis seus caminhos! Quem, com efeito, conhe- ceu 0 pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro? Ou quem primeiro the fez.odom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele ¢ nele. A ele a gloria pelos séculos dos séextos! Amém (Rm 11,33-36). 37 612-18 Se, portanto, os adversarios querem entender essas. palawras como referentes somente ao Pai, como entender que todas as coisas foram feitas pelo Pai, como é dito aqui; ¢ que tudo foi feito pelo Filho, como é dito na carta 203 Corintios: E um sé Senhor Jesus Cristo por quem so todas ascoisas; e como se lé no evangelho de Joao: Tudo foi feito por meio dele? Se umas coisas foram feitas pelo Pai, outras pelo Filho, conclui-se que nem tudo foi feito pelo Pai, tampouco tude pelo Filho. Se tudo, porém, foi feite pelo Pai ¢ tudo pelo Filho, as mesmas coisas feitas pelo Pai foram feitas pelo Filho. Portanto, o Filho é igual ao Pai, e a atuagio do Pai e do Filho é insepardvel. Com efeito, se oPaicriouo Filho, que nao foi feito pelo proprio Filho, nem tudo foi criado pelo Filho; mas a verdade ¢ que tudo foi feito pelo Filho. Entdo concluimos que o Filho nao foi criado, mas que com o Pai fez tudo o que foi feito. Tanto que o Apéstolo nao omitiu 0 Verbo 20 dizer de modo bem claro: Ele tinha a condigao divina e néo considerou o ser igual a Deus como algo aque se apegar ciosamente (F12,6); e chamando ao Pai, de Deus, como vemos nesta outra pessagem: A cabeca de Cristo ¢ Deus (1Cor 11,8). 13. Sobre o Espirito Santo, recolheram-se também teste- munhos abundantes dos quais fizeram uso todos os auto- res que antes de nés esereveram acerca destas matérias, nos quais se prova que o Espirito Santo é Deus e nao criatura. E se ndo é criatura, é ndo somente Deus — pois os homens foram também chamados deuses (S1 81,6) — mas Deus verdadeiro. E, portanto, igual em tudo ao Pai e ao Filho, consubstancial e coeterno na unidade da Trindade, ‘Acitagdo, onde aparece com maior elareza o Espirito Santo nao ser criatura, 6 aquela onde nos é dadoo preceito de nao servirmos & criatura, mas ao Criador (Rm 1,25). Quanto ao modo de servi-lo, difere porém, do revelade no LuyROL a8 preceito de servimos uas 208 outros pela caridade (Cl 5,13), que em grego se design com o verbo doulewein, enquanto o serviga a Deus esté expresso pelo verbo latredein. Dai denominarem-se idélatras os que prestam aos simalacros dos deuses 0 culto devido omente a Deus. O culte a Deus € proclamado nas palavras: Adorards 0 Senhor teu Deus, somente a ele servirds (Dt 6,13) Ao empregar 0 termo latreuseis, 0 texto grego é mais explicito 2? Se esse culto a criatura nos é proibido, pois esté escrito: Adorards o Senhor tex Deus, ¢ somente a ele servirds, e 0 Apéstolo maldiz os que cultuam a criatura e aservem, enaoao Criador, conclui-se quec Espirito Santo ndoé criatura. Ele,ao qual todos os santosprestam aquele culto, no dizer do Apéstolo: Os verdadeiros cireuneidadas somos nds, queservimos ao Espirito de Deus (F13,3). Bem grego esto designados pelo termo/atredontes. Em muitos exemplares mesmo nos latinos assim se Ié: Que servimas ao Espirito de Deus; ¢ asi se encontra também na majoria ou quase em todos os eédices gregos. Em algumas cépias latinas, porém, 0 texto ndo é: Servimas ao Espirito de Deus, ras: Servimos a Deus, no espirito, Os que erram a esse respeito e se reeusam ase dobrar perante o peso da autoridade, seré que eneontram, por neaso, versdes diferentes nos eddices com relagao as pali vras: Ou néio sabeis que c vosso corpo ¢ temeplo do Espirito Sunto, que esti em ods que recebestes de Deus? (1Cor 8,19) Que maior insensatez e sacrilégio do que alguém ousar dizer que os membros de Cristo sdo, conforme dizem, templos de uma criatura inferior a Cristo? Em outra passagem o Apostolo diz: Vossos corpos sto mam- bros de Cristo (1Cor 6,15). Se, porém, os mambras de Cristo sao templos do Espfrito Santo, o Espirito Santondo é uma criatura, pois, aguele de quem nossos corpos sao templos ¢ mister que devamos a adoragiodevida somente 39 714 a Deus, que em grego é designada com otermolatreta. Por isso acrescenta: Glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo (1 Cor 6,20). CAPITULO? Sentido da afirmagao: 6 Filho € inferior ao Pai e a si mesmo 14, Com esses e semelhantes testemunhos das divinas Escrituras, oom os quais come disse antes, os autores que nos precedem rebateram copiosamente as calinias e 03. erros dos hereges, comprova-se a unidade ¢ a igualdade professada pela nossa fé.2* Masdevido a encarnagiiodo VerbodeDeus, realizada para a conquista de nossa salvacéio ¢ para que Cristo Jesus se tornasse o mediador de Deus e dos homens (1m 2,5), muitas passagens dos Livros santos insinuam e mesmo abertamente declaram, que o Pai é maior que o Filho. Dai os homens errerem pela descuidada investiga- géo e pela falta de consulta a todo o conjunto das Escritu- ras. F por isso, iransferirem essas efirmagées acerca de Cristo Jesus como homem, aplicando-as 4 sua substancia, que era sempiterna, antes da encarnagio — e que é sempre sempiterna. Dizem que ¢ Filho é inferior 20 Pai, porque esté eserito e o disse o préprio Senhor: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28). A verdade, porém, mostra que neste sentido o Filho ¢ inferior a si mesmo. Como ndo ha de ser inferior a simesmo aquele que “esuaziou-se de si mesmo, eassumiu wcondigéa de servo? (F12,7). Recebendo s forma de servo, nao perdeu a forma de Deus, na qual era igual ao Pai. Portanto, revestido da forma de servo, nao ficou privade LIVROT 40 da forma de Deus, pois, tanto na forma de servo, comona forma de Deus, ele é 0 Filho Unigénito de Deus Pai, igual ao Pai na forma de Deus, ¢ mediador de Deus e dos homens, ohomem Cristo Jesus, na forma de servo. Nesses termos, quem hé que néo compreenda que na forma de Deus, ele é superior a si mesmo e, na forma de servo, 6 também inferior a si mesmo? Por isso, « Eseritura afirma, nao sem razdo,ambasas coisas, ou seja, que o Filho € igual ao Paie o Pai é maior que o Filho. Nao ha, pois, lugar & confuséo: é igual ao Pai pela forma de Deus, 6 inferior aoPai pela forma de servo. Esta regra, para resolver o assunto em pauta, com base em todos os Livros sagrados, é tomada de um capitu- Joda carta de Paulo, onde essa distincaoaparece com toda clareza. Diz assim: Ble tinha a condigéo divin, ¢ no considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se de si mesmo, ¢ assumiu a condigdo de servo, tomando a semelhanga humana, tido pelo especto como homem (#1 2,6-7). O Filho de Deus 4, portanto, igual ao Pai pela natureza, inferior pela condi- go exterior. Na forma de servo de que se revestia, 6 inferior ao Pai; na forma de Deus que ja possuia antes de assumir nossa condigio, 6 igual a0 Pai, Na forma de Deus, 60 Verbo pelo qual todas as coisas foram feitas(Jo 1,3); na forma de servo, “nasceu de mulher, sob oimpério da Lei, para remir os que estavam sob a Lei” (Gl 4,4-5). Conse- qiientemente, na forma de Deus eriou o homem, na forma deserva fez-se homem. Pois, se somente 0 Pai, semo Filho, tivesse criado o homem, nio estaria escrito: Fagamos 0 homem @ nossa imagem e semelhanga (Gn 1,20). Desse modo, pelo fato de a forma de Deus receber a forma de servo, ele é ao mesmo tempo Deus e Homer. # ac mesmo tempo Deus, porque era Deus quem a recebeu; ao mesmo tempo homem, porque recebeu a condigio humana. No fato de assumir no ha conversio ou mudanga de condi- al $35 do: nem a divindade modifica-se ao tornar-se criatura, nem a criatura tornou-se divindade, deixando de ser eriatura.® capiTuLo8 Sujeigto do Filho ao Pai. A entrega do Reino ao Pui. A contemplagéo prometida. 0 Espirito Santo ¢ a nossa felicidade 15. Asentenca do Apéstolo: E quando todas as coisas ihe tiverem sido submetidas, entéo o praprio Filho se subme- terd aquele que tudo the submetew(1Cor 15,28), foi escrita, segundo a opinifo de alguns, para que ninguém julgasse que o aspecto exterior de Cristo, recebido da criatura humana, se haveria de transformar depois na prépria divindade, ou expressando-me melhor, na deidade,*6 que nao é criatura, mas a unidade incorpérea da Trindade, incomunicavel, consubstancial a si mesma e coeterna. Outros contrapéem afirmande que as palavras: Eo proprio Filho se submeterd aquete que tudo lhe subme- teu, devern ser entendidas como a mudanga e conver- sho futuras da criatura na propria substdncia ou esséncia do Criador, ou seja, que a substancia que fora da criatura se transformara na substiincia do Criador. Pode-se acei- tar essa interpretaeao com a condicio de que tal trans- formagdo nao se tenha verificaco no tempo em que 0 Senhor dizia: O Pai ¢ maior do que eu, palavras que ele pronunciow nao somente antes da sua ascenséo ao céu, maa também antes de padecer ¢ ressuscitar dentre os mortos. Os que opinam que a substéncia natural ha de se transformar em substancia da deidade, julgam que isso se LIVROT 42 dara depois do juizo, quando ele entregar o Rein a Deus Pai (10or 15,24), apoiados nag palavras: Entdo o proprio Filho se submeterd aquele que tudo the submeteu, como se dissesse: entao o prdprie Filho do homem e a natureza humana recebida pelo Verbo de Deus se transformara na natureza daquele que Ihe submeteu todas as coisas. E por isso também, de acordo com a reforida opiniao, © Pai é maior do que a forma de servo recebida da Virgem Maria. E se alguns afirmam que o homem Cristo Jess ja se transformou na substancia de Deus, nao podem negar que permanecia ainda a natureza de homem, quando dizia antes da paixan: Porque o Pai é maior doqueeu. Dai, que ninguém duvida que, conforme o que foi dito, 0 Pai é maior que o Filho na forma de servo, mas 0 Filho é igual ac Paina forma de Deus. A vista das palavras do Apéstolo: Quando ele disser: “Tudo estd submetido”, evidentemente excluir-se-d aquele que tudo the submeteu (1Cor 16,27), ninguém pense que se héde interpretar como se oPai submetesse todas as coisas ao Filho, de modo que seja o préprio Filho que tenha submetido tudo a si mesmo. O Apéstolo, escrevende aos filipenses, esclarece seu pensamento, ao dizer: Mas a nossa cidade esta nos céus, de onde também esperames ansiosamente como Saluadar 9 Senhor Jesus Cristo, que transfigurard 0 nosso corpo humithado, conformando-o ao seu corpo glorioso, pela operacao que the dd poder de submeter asi todas as coisas (F13,20-21). A atuagao do Pai e do Fitho 6, pois, insepardvel. Alids, nao foi o Pai que submeteu a si todas as coisas, mas foi o Filho que as submeteu a ele e ao The entregar o reino, anularé todo principado, toda potestade e todo dominio. Com efeito refere-se ao Filho a sentenga: Quando ele entregar o reina a Deus Pai, depois de ter destruido todo Principado, toda Autoridade, todo Poder (\Cor 15,24). que entrega é aquele que destrdi. 43 56 16. Naodevemos accitar que Cristo ao entregar oreinoa Deus Pai, dele ficard privado. Assim acreditaram certos tagarelas. Quando se diz: Entregard o Reino a Deus Pai, Gristo nao se excluiu a si mesmo, pois é Deus com o Pai, Leitores superficiais ¢ inclinados a divergir de tudo sao traidos pelo termo ai empregado: até. Pols, em seguida esta escrito: E preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos debaixo de seus pés (iCor 15,25), coma se depois de colocar os pés, deixasse de reinar. Nao entendem essas palavras, que tam idéntico sentido a estas: Inaiterdvel estd 0 seu coragdo, nda temerd, até que veja og seus adversdrios confundidos (81 111,8). Nao se conclua, pois, que se encheré de temor, depois de ver confundidos seus adversdrios. O que, entac, significa: Quando entregar 0 Reino a Deus Pai? Acaso Deus Pai nao tem Reino? A razao dessa expresstio € indicar que todos os justos, nos quais 0 mediador de Deus ¢ dos homens, Cristo Jesus, reina pela £6, serao levados & contemplagao que o Apéstolo descreve como face a face, quando disse: Quando entregar 0 Reino a Deus Pai, ou seja, quando conduzir os crentes & contem- plagao de Deus Pai. Pois, assim diz 0 Senhor: Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, seniio o Pai, ¢ ninguém conhece o Pai, sendo o Filko e aquele a quem o Filho o quiser revelar (Mt 11,27). O Pai sera revelado pelo Filho depois de ter destrutdo todo Principa- do, toda Autoridade, todo Poder (1Gor 15,24), isto 6, depois que niio mais for necesséric governar easas coisas por seus semelhantes, isto 6, pelos principados, autorida- des € poderes angélicos. Com nao pouca propriedade podem-se-Ihes aplicar as palavras dirigidas & esposa: Nés te jaremos umas cadeias de ouro, marchetadas de prata, estando 0 rei no seu diva (Ct 1.10-11, na versao da LXX), ou seja, enquanto Cristo permanece em seu segredo, pois, vossa vida estd escondida com Cristo em Deus; quando LIVROT a4 Cristo, que ¢ vossa vida, se manifestar, entéo vds também comele sereis manifestadosem gloria(C13,8-4). Antox que isso acontega, vemos agora em espelho e de maneira confusa, isto eta semelhangas; depois vereros face a face (Gor 13,12). 17. Essa contemplagao é-nos prometida como término de todas os nossos trabalhos e perfeita plenitude da alegria. Visto que ja somos filhos de Deus, mas 0 que nds seremos, ainda nao se manifestou. Sabemos que por ocasido deste manifestagdo seremos semelhantes a ele, porque overemos tal camo ele é (1do 3,2). Chegaré a realidade das palavras dirigidas a seu servo Moisés: Eu sou o que sou. E assim dirds aos filhos de Israel: Aquele que é, enviou-meavds(Ex 3,14), pois nés0contemplaremosna vida eterna. O mesma disse Cristo: Ora, a vidaeterna éesta: que eles teconhegam ati, o Deus tinico e verdadeiroe aquele que enviaste, Jesus Crista (Jo 17,3). Cumprir-se-do essas palavras quando vier oSenhor e puser as claras o que est oculto(1Cor 4,5), quando se desvanecerem as trevas da mortalidade e corrupgao. Esse dia seré nosso amanhecer, ao qual o salmista se referiu: De manha, te apresento as minkas preces e espero ($1 5,5). Fa esta contemplagio que se referem, conforme entendo, as palavras: Quando entregar o Reino a Deus Pai, ou seja, quando o mediador dos homens e Deus, Crista Jesus, conduzir a contemplacéo de Deus Pai os justos, nos quais agora reina, pela vida de fé. Se me equivoco nisso, corrija-me quem tiver melhor conhecimento; quanto a mim nao encontro outra solugio. ‘Nio estaremos no encalga de nada mais quando chegar- mos a essa contemplagéo. Agora ela nao existe ainda, embora nossa alegria esteja na esperanga. Ver 0 que se espera, ndo é esperar. Acaso alguém espera o que ja ue? E se esperamos 0 que néo vemes, é na esperanca que o aguardamos (Rm 8,24.25). Cumprir-se- o que esté eseri- 45 817-184, to: Encher-me-ds de alegria na tua presenga (SI 15,11). Essa alegria seré completa, pois nada mais havera para ge desejar. Ser-nos-4 mostrado 0 Pai, ¢ isso nox bastard. ‘Assim o entendeu Filipe, quando disse: Mostra-nos 0 Pai into nos basta. Ele nao entendera, porém, que poderia dizer também: “Senkor, mostra-nos a ti mesmo, e isto nos basta’, Para chegar a esea compteensio, o Senhor Ihe respondeu: He tanto tempo que estou convoscoe tu nto me conheceste, Fitipe? Quem me viv, viu o Pai. E como qquisesse queo diseipulovivesse pelafé, antes de contempla- 1o, acrescentou: Nao orés que estou no Pai eo Pai em mim? (Jo 14,8-10). Pois,enguanto habitamas neste corpo, estamos jora da nossa mansdo, longe do Senkor, pois caminhamos pela fé, e nao pela visdio (2Cor 5,6.7) A contemplagio € a recompensa da fé. Com vistas & recompensa, nossos coraghes sé purificados pela {8, como est escrito: Purificou seus coragdes pela fé (At 15,9). Pode-se alegar outro argumento que prova a necessidade da purificagdo dos nosses ceragves; € aquela sentenga: Ben-aventurades os puros de coragéo, porque vero a ‘Deus (Mt 5,8). Que essa seja a vida eterna, di-lo Deus no galmo: Sacid-lo-e de dilatados dias, e mostrar ihe-ei a minha saivagéo (Si 90,16). Quer ougamos: mostra-nos 0 Filho, quer ougamos: mostra-nos 0 Pai, o pedido encerra 0 mesmo significado, pois um nao pode ser mastrado sem 0 outro. Sao portanto um, como ele disse: ew e 0 Pai somos um (do 10,30). Concluindo: devido & inseparabilidade, as ‘vezes, é suficiente nomear apenas o Paiouséo Filho, para indicar quem nos encheré de alegria na sua presenga. 18a. Também nao se ha separar, de ambos, o Es; Santo, ou seja, 0 Espirito do Pai e do Filho. Este Espirito Santo 6 denominade com propriedade Espirito da Verda- de, 0 quai o mundo néio pode acolher (Jo 14,17), Portanto, a plenitude de nosso gozo —e maior do que ele ndo ha — LIVROL 46 conaiste em gozar de Deus Trindade, & enja imagem fornos criados.*” Por isso, as vezes, se fala do Espirito Santo como se somente ele bastasse para nossa felicidade. De fato basta, porque é insepardvel do Pai ¢ do Filho; assit como 6 suficiente somente o Pai, porque ¢ inseparavel de Filho e do Espirito Santo ¢ basta somente o Filho, porque 6 insepardvel do Pai ¢ do Espirito Santo. © que significam estas palavzas: Se me amais, observareis os meus mandamentos, ¢ rogarei ao Pai e ele vos dard outro Pardclito para que convosco permancea para sempre, oEsptritoda Verdade, que omnundo nao pode acolher (Jo 14,15-17), istoé, aquele que sio0s amantes do mundo? Poi, 0 homem animal nia aceita o que vem do Espirito de Deus (20or 2,14). Mas as palavras: ¢ eu rogarei ao Pai, 0 ele vos dard outro Pardclito, podem parecer como se somente o Filho no bastasse, Em outra passagem, porém, Crista fala do Espirito Santo, como se somente ele fosse suficiente: quando vier o Esptrito da Verdade, ele vos conduzira & verdade plena (Jo 16-13), Preseinde-se entao desse modo do proprio Filho, como se ele nie ensinasse toda a verda- de, ou que o Espirito Sante viesse suprir o que o Filhondo pode ensinar? Digam, portanto, se o quiserem, que o Espirito Santo 6 maior que o Filho; eles que costumem. considerar que o Espirito Santo émenor que o Filho. Sera que pelo fato de nao ter sido dito: “somente ele”, ou: ninguém sendo ele vos ensinaré toda a verdade”, esses adversdrios concordardo que com o Espirito Santo, o Filho também ensina? O Apéstolo teria excluido o Filho do conhecimento das coisas referentes a Deus, quando disse: da mesma forma, o que estd em Deus, ninguém conhece, senio o Espirito de Deus (1Cor 2,11)? Por forca dessas palavras, esses perversos ousaram afirmar que somente o Espirito Santo ensina zo Filho o que esté em Deus, como um superior ao inferior, e também porque o préprio Fitho 47 9,18 Ihe atribui tanto poder, quando diz: Mas porque vos disse isso, @. tristeza encheu og vossos coragdes. No entanto, ew vos digo a verdade: é do vosso interesse que eu parte, pois se eu néo for, 0 Pardelito néo vird a u6s (lo 16,8-7). caPiTULO 9 A referencia a uma Pessoa no exclui as outras 18b. Cristo nao disse as referidas palavras afirmando a Gesigualdade do Verbo de Deus ¢ do Espirito Santo; mas quis significar que a presenca do Filho do Homer, junta deles seria come um obstaculo a que viesse aquele que nao The era inferior, — pois o Espirito nfiose tinha aniquilade, recebendo a condigo de servo como o Filho o fizera (FI 2,7). Convinhs, portanto que essa condig&o de servo desa- parecesse de seus olhos, pois vendo-o assim, acreditavam que Cristo era somente oque viam, Dat, o Senhor dizer: Se me amdsseis, alegrar-vos-ieis por eu ir para 0 Pai, porque o Pai é maior do que eu (Jo 14,28). Quis dar a entender: “E preciso que ou va para o Pai, porque, vendo-me assim & julgando pelo que aparece, pensais que sou menor que 0 Pai; e atentos ao aspecto de criatura ¢ 4 condigao assumi- da, ndo chegais a compreender a igualdade que existe entre mime oPai”. A mesma coisa quis dizer, mediante as palavras: Néo me retenhas, pois ainda nao subi ae Pai (do 20,17). Osentido dotacto como que delimita o conhecimento. E Cristo nao quis quea intengao do coracio se fixasse nele de modo a pensarem que era apenas o que viam. A ascensiio ao Pai, porém, mostraria que era igual ao Pai, @ entao, seria oobjetc daquela viedo que nosbasta. As vezes, esta afirmado a respeito do Filho ser ele quem nos basta, LIVROI 48 6 prometido apenas a recompensa de sta visio ao nosso amor edesejo. Assim ele disse: Quem tem os meus manda- mentos ¢ os observa é que me ama; e quem me ama, serd amado por meu Pai. Eu oamarei ea ele me manifestare’ (Jo 14,21). Mas nessa passagem, pelo fato de elo nao dizer: “manifestar-lhe-ei o Pai” estar excluindo 0 Pai? Pelo contrario, como ele mesmo disse: eu ¢ 0 Pai somos um (Jo 10,30). Quando se manifesta o Pai, manifesta-se tamhém © Filho que est4 nele; e quando se manifesta o Filho, manifesta-se também a Pai que esta nels. E assim, como quando diz: ele me manéfestarei, subentende-se também 0 Pai, e quando a Escritura afirma: Quando entregar Reino a Deus Pai (1Cor 15,24) nao esta excluido o filho. Portanto, quando levar os crentes & contemplac&o de Deus Pai, leva-los-4 & contemplagio de si mesmo, aquele que disse: e a ele me manifesterei. E mais: tendo-lhe perguntado Judas: Senhor, por que te manifestards a nés endo ao mundo?, respondeu Jesus: Se alguém me ama, guardaré minha palavra.e a ele viremose nele estabelece- remos morada(Jo 14,23-23), Eis porque ndo se manifesta sozinho ao que o ama: porque vem a ele junto com o Pai e nele estabelecera morada. 19. Julgar-se-4 talvez que, 20 estabelecerem morada 0 Pai eo Fitho naquele que o amam, fica excluido dessa mango © Espirito Santo? O que disse ele aeima, sobre 0 Espfrito Santo? Nao foi: O Espirito da verdade que a mundo néo pode acother, porque néo 0 vé nem 0 conhece: vds 0 conheceis, porque permanece convosco e este em vis? (Jo 14,17), Assim, nao pode ficar excluidoaquele de quem se disse: permanece convasco e estd em vés. A niio ser que haja alguém tao equivocado a ponto de pensar que, vindo oPaico Filho fazerem moradaem quem sama, o Espirito Santo se afastard, como que cedenco lugar aos superiores. 49 9,19:10,20 A esta suposicio inspirada pela carne opée-se a Escritura quando diz anteriormente: E rogarei ao Paieele vos dard outro Pardelito, para que convoseo permaneca eternamente (do 14,16). Logo nao se afastaré com a vinda do Paie do Fitho, mas permanecera eternamente com eles na mesma mansio, pois, o Espirito Santo nfo vern sem 0 Pai eo Filho, nem estes virdo som o Espirito Santo. Para insinuar a Trindade, ainda queseja atribuindo separade- mente certas coisas a uma das Pessoas divinas e certas outras 4 outra Pessoa, nao se deve entender como se as Pessoas estivessem separadas entre si. Visto que o Pai, 0 Filho eo Espirito Santo ndo possuem na Trindade senio uma s6 ¢ mesma unidade, uma 86 e mesma substancia e uma s6 e mesma deidade. CAPITULO 10 Aentrega do Reino ao Pai eo fim da mediagdo 20, Cristo entregaré o Reino a Deus Pai, nao excluindo a si mesmo, nem o Espirito Santo, quando conduzir os fidis & contemplacao de Deus, fim de todas as boas acées, repouso sempiterno e goze que nunca nos sera tirado. Ele indica essa garantia com as palavras: Mas eu vos verei de novo eo vosso coragao se alegrard e ninguém vos tirard a vosse alegria (do 16,22). Uma imagem desse gozo foi-nos oferecida por Maria sentada aos pés do Senhor, atenta ds suas palavras. Livre de toda ocupagao e de certo modo arrebatada perante a verdade, » quanto possivel nesta vida, prefigurou a reali- dade futura e eterna, Marta, sua irmao, estava atarefada no trabalho, embora titil e bom, mas transitério até vir LIVROT 50 deseanso que perdura; quanto a Maric, repousava na palavra do Senhor. Por isso, a Marta, queixosa de que sua, irmA n&o 4 ¢stava ajudando, o Senhor respondeu: Maria escolheu a melhor parte, que néo the serd tirada (Le 10,39,42).% O Senhor nao afirmou ter sido mé a parte de Marta, mas disse ter sido étima a parte eseolhida por Maria, que nao Ihe serd tirada. A parte de Marta, a servigo da indigéncia, sera tirada quando terminar a indigéncia. A reeompensa de uma boa agdo transitéria 6 0 repouso perene. Na contempiacao, Deus seré tudo em todos (1Cor 15,28), porque fora dele nada mais ee poderd desejar,e nos bastarA sermos iluminades por ele ¢ dele gozarmos. E 0 que suplica aquele que o Espirito inspira com gemidos inefaveis (Rm 8,28): Ume 6 coisa pego ao Se- nhor, esta solicito: é que eu habite na casado Senhor todos os dias da minka vida, para gozar da suavidade do Senior, e contemplar 0 seu templo (S1 26,4). Contemplaremos, pois, a Deus Pai, Filho e Espirito Santo, quando o mediador de Deus e dos homens, o homem Cristo Jesus, entregar o Reino a Deus Pai (Tm 9,15). Ent&o nao mais rogard por nés, como nosso media- dor e sacerdote, o Filho de Deus e Filho do Homem. Mas quanto a ele, enquanto sacerdote que 6 — revestido da forma de servo por noasa causa —estd sujeito aquele que tndo Ihe submeten e 2 quem tudo submete. Desse mado, como Deus, mantém-nos sujeitos a ele. Eenquanto sacer- dote, submete-se a ele conosco (1Cor 15,24-28). Por isao, sende o Filho, Deus e Homem, com uma esséncia como Deus, e outra come homem, écomohomem, no Filho, mais diferente na esséncia que o Filho, no Pai. Assim como a carne com relagdo & minha alma: 6 maior a diferenga na substéncia entre minha carne @ minha alma, embora existentes em um 96 homem, do que a alma de outro homem com relagdo & minha, 51 1023 21. Portanto, quando entregar o Reino a Deus Pai, ou seja, quando os erentes ¢ of quo-vivem da fé, pelos quais agora roga como mediador, ele og levar & contemplagao, pela qual suspiramos e gememos, quando passarem 08 trabalhose os sofrimentos, nao mais intezpelara por nés apés ter entregadooReinoa Deus Pai. Este éo sentido das palavras que pronuneiou: Disse-vos estas coisas por com- paragées, Chega a hora em que néio vos falarei mais por figuras, mas claramente vos falarei do Pai (Jo 16,25), ow seja, nao mais havera comparacoes, porque a visio sera “face a face”. Este € 0 significado do que disse: Mas claramente vos falarei do Pai. Comose dissesse: “Manifes- tar-vos-ei claramente 0 Pai”. Manifestarei, disse ele, por ser a Verbo de Deus. A seguir, diz ainda: Nesse dia, pedireisem meu nome endo vos digo que rogarei ao Pai por vds, pois 0 prépria Pai vos ama, porque me amastes ¢ crestes que vim de Deus, Sat do Pai e vim av mundo; de novo deixo 0 mundo e vou para o Pai (Jo 16,26-28). O que quer dizer: Saf de Pai, sen&o que me manifes- tei, no na forma em que sou igual ao Pai, mas em outra, na inferior assumida como criatura? E o que significa: Vim a este mundo, senao que manifestei 20s olhos mesmo dos pecadores, qne amam este mundo, acondigao de servo que recebi, aniguilando-me? Qual 0 sentida de: de nove deixo 0 mundo e vou pare o Pai, endo que retire da vista dos mundanos o que viramn? E 0 sentido destas palavras: vou parao Pai, naoé:“Ensino aos meus seguidores que me devern considerar como igual ao Pai?” Os que nissocréem, serio considerados dignos de serem conduzidos da fé a realidade, isto 6, propria visio daquele de quem esté eserito que entregar4 o Reino a Deus Pai. Os figis remidos pelo seu sangue sao 03 cidadéos desse Reino, pelos quais agora interpela; mas 14, onde é igual ao Pai, juntando-os a si, n80 mais rogard ao Pai por eles, Assin cle o disse: Pois 0 proprio Pai vos ama, Aqui, LIVROT 52 onde é inferior a0 Pai, ele roga; onde ¢ igual ao Pai, ouve com o Pai. Pelo sentido das palavras: poiso préprio Pai vosama, 0 Filho ndoé separavel do Pai, Pelo contrério, as palavras dao a entender o que antes observei e insinuei muitas vezes, ou seja, que geralmente ao ser citada uma das pessoas da Trindade, subentendem-se as outras duas. Assim, as palavras: Pois o préprio Pai vos ama, compre- endem também o Filho ¢ © Espfrito Santo, E nfo porque no nos ame agora aquele que 140 poupoui seu prépric Filho, entregando-o& morte por todos nda (Rim 8,32), mas porquenosama tal comoseremose niio come agora somos. Os que ele agora ama, conserva-los-4 para a eternidade, Tso acontecera quando entregar o Reino a Deus Pai aquele que agora roga por nés; entdo ndo mais rogar4, porque o préprio Pai nos ama. Como merecé-lo senao pelo mérito da £8, que nos leva a acreditar na promessa antes de vermos a realidade? Por ela chegaremos & clara visio, e assim, ele nos ama para que sejamos tais como ele quer que sejamoa: nae nos odeia como somos porque somos maus;masexorta-nose ajuda-nos para ndoquerermos ser sempre maus, CAPITULO 13, Inferioridade e iguaidade de Fitho nas Escrituras 22, Estaéa norma para acompreensao das Escrituras no tocante ao Filho: distinguir o que elas dao a entender conforme a sua condicio de Deus, na qual é igual ao Pai; © 0 que deciaram conforme a sua condigio de servo, na qual é inferior ao Pai. Desse modo, nao ficaremos pertur- bados perante as sentencas des Livros santos, aparente- mente contrdrias e contraditérias entre si. 53 11,22 Na forma de Deus, ¢ igual ao Pai e ao Espirito Santo, pois nenhuma das Pessoas écriatura, coma ja demonstra- mos; na condigao de servo, é inferior ao Pai, pois ele afirmou: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28). E inferior também a si mesmo, pois dele esta escrito: Aniquilou-se a si mesmo (Fl 2,7}; inferior ainda ao Espirito Santo confor- me disse: Se alguém disser uma palavra contra o Filho ser-lhe- perdoado, mas se disser uma blasfémia contra 0 Esptrito Santo, néo the ser perdoado, nem neste mundo, nem no vindouro (Mt 12,32), E ele exercita seus poderes em nome do Espirito Santo, de acordo com « afirmagao: Contudo, se é pelo Espirito de Deus, que eu expulso 08 deménios, entaoo Reino de Deus jd chegowa vos (Le 11,20). Diz também por meio de Isaias, em palavras que ele recitou na sinagoga, mostrando, sem qualquer sombra de diivida, que a ele se referiam: O Espirito do Senhor esta sobre mim, porque ele me ungix para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remisséo dos peca- dos, ete, (Le 4,18.19), Considera-se enviado para cumprir a missao, porque o Espirito Sante esta sobre ele. Na forma de Deus, criou todas as coisas (Jo 1,3); na condig&o de servo, nasceu de uma mulher, sob a Lei (G1 4,4). Na forma de Deus, ele ¢ o Pai sao um (Jo 10,30); na condigdo de servo, nao veio para fazer sua vontade, mas a vontade daquele que oenviou(Jo6,38), Na forma de Deus: Assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida em si mesmo (Jo 5,26); na condicao de servo: Minka alma eatd triste até a morte, e: Pai, se & posstvel, que passe de mim este célice (Mt 26,38.39). Na forma de Deus: Este é o Deus verdadeiroea vidaeterna (1Jo 5,20); na condigao de servo; Foi obediente até & morte, e morte de eruz (F1 2,8). Lavror Ba CAPITULO 12 ignoriineia de Cristo. Palavras de Cristo como Deus e como homem. Sentido da entrega do Reino por Cristo. Crisio ¢ 0 juizo 23, Como Deus, tudo o que pertence a0 Pai, pertence ao Filho: E tudo o que meu ¢ teu, e tudo 0 que tea é meu Jo 17,10}. Revestide da natureza humana, a doutrina nao é sua, mas de quem 0 envion (Jo 7,16). E disse sinda: Daquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céti nemo Fitho, somenteo Pai (Me 13,32). Ele ignoraoque nao quer dar a conhecer, isto 6, ignorava-o, pata manisfests- o aos disefpulos, Assim se den com Abraao, a quem foi ito: Agora, sei que temes a Deus (Gn 22,12), ou seja, “agora te dei a conhecer”, pois provado na tentacao, ole mesmo passou a conhecer que tamia a Deus. © Senhor revelaria aos diseipulos no tempo oportuno, o segredo sobre o dia ¢ a hora. Falando desse futuro como que do passado, ele disse: Nao mais vos chamo de servos, porque servo ndo sabe o que 0 seu amo faz; mas eu vos chama de amigos porque tudo 0 que ouvi do Pai, euvos dei a conhecer (Jo 15,15). O que ainda naofizera, mas porque certamente © faria, falou como se ja tivesse feito. Pois, a cles mesmos thes declarou: Tenho ainda muito a vos dizer, mas ndo podeis agora compreender (do 16,12). Entre essas coisas esta compreendido: daquele dia ¢ hora. No mesmo sentido, disse 0 Apdstolo: Pois ndo quis saber outra coisa entre vba a nao ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo erucifieado (1Cor 2,2). Dirigia-se aos que nao ti- nbam capacidade de compreender as coisas sublimes sobrea deidade de Cristo. Aeles diz um pouce depsia: Nao vos pude falar como a homens espirituais, mas tGo-sormen- te como a homens carnais (1Cor 3,1), Ignorava, portanto, juntodeles o que ndio poderiam compreender sobre os seus ensinamentos. E ensinava apenas 0 que convinha que 55 a2a34 soubessem por meio dele. Finalmente, sabia junto aos perfeitos o que ignorava junto aos imperfeitos. Por isso diz: E da sabedoria que falamos entre 08 perfeitos (10or 26). Bese modo de falar, alegando ignorancia, usa-se quando se quer ocultar alguma coisa, assim como se diz que uma fossa 6 cega, quando ele esta escondida. A Escritura, no seu modo de expressar, acomoda-se aos, costumes humanos, pois fala a criaturas humanas. 24, Conforme a forma de Deus, esté escrito a respeito do Filho: Antes de hauercolinas, ext jé tinha nascido (Pr 8,25), ou seja, antes de todas as criaturas maiz sublimes. Est escrito ainda: Antes da aurora, eu te gerei (S] 109,3), isto 6, antes de todos os tempos e de todas aa coisas tempcrais. Conforme a forma de servo, eonsta: O Serhor me possuiu no prinetpio de seus caininios (Pr8,22).Conforme a forma de Deus, disse: Eu: so a verdade; na condigae de servo: Eu sou 0 caminho (Jo 14,6). Sendo 0 primogenito dentre os mortos (Ap 1,5), tragou parao Reino de Deusea vidaeter- na ocaminho da sua Igreja, da qual 6a cabega para levar a imortalidade todo o corpo, pois foi criado para isso, no prinefpio dos caminhos de Deus, quando eriou o mundo. Na natureza divina, ¢ 0 Principio que nos fala (Jo 8,25), no qual principio, Deus criouocéuea terra(Gn 1,1); na natureza de servo, porém: esposo que sai do seu tdlamo (Si 18,6), Na natureza divina, é primogénito de toda criatura, ele é antes de tudo o tudo nele subsiste; ne natureza humana: eleéa Cabega da Igreja, que é seu corpo (C11,15.17.18). Na natureza divina, é o Senhor da gléria (1Cor 2,8), o que demonstra que ele glorifica seus santos, pois, aqueles que predestinou, também os chamou; os que chamou também os justificou, ¢ 0s que justificou, também os glorificou (Rr 8,30). Dele se afirma que justifica o impio; dele esta escrito que ¢ justo e igualmente aquele o LAVROT 56 que justifica (Rm 8,26). Se, portanto, as que justificou, também os glorificou, oquejustiticae glorifica é,conforme disse, o Senhor da gléria. Na natureza humana, porém, respondet aos discfpulos preocupados com uta recompen- sa: Sentara minha direita ou a minhe.esquerda, naocabe a mim concedé-io; mas é para aqueles acs quais meu Poi o preparou (Mt 20,23). 25. O que o Pai preparou, preparou-o também o Filho, porque € um com 0 Pai (Jo 10,30), J4 demonatramos que na Trindade, segundo o testemunho de mmuitas passagens das divinas Escrituras, o que seafirma a respeitode todas as pessoas, diz respeito a cada uma, em virtude da atuacdo insepardvel da Unica e mesma esséncia. Assim, ele diz a respeito do Espirito Santo: Quando eu for, envidi lo-ei a.vds (Jo 16,7). Nao disse: “enviaremos”, mas “envid- lo-ei”, como se somente o Filho sem 0 Pai o haveria de enviar, Mas diz.em outro lugar: Estas coisas vos tenho dito estando entre v6s. Mas 0 Pardelito, o Espirito Santo que o Pai enviard em meu nome, é que vos ensinard tudo Wo 14,25-26). Nesta passagem, flea parecendo que o Filho nao o enviar, mas somente o Pai, Mas, tanto nesta citagdo como na outra, quando diz: mar aos que meu Pai o preperou, ele deu a entender que com o Pai preparé os assentos de gléria para quem determinar. Mas aiguémn poderé acrescentar: na passagem onde fala do Espirito Santo que hd de enviar, est claro que nao exclui o Pai;e na outra passagem (Jo 14,26), ficou patente qne 0 Pai enviar, no exeluindo o Filho. Aqui, porém, diz com taeda clareza: nda cabe a mim concedé-to (Mt 20,23), como se somente o Pai tivesse preparado. Maséjustamen- te o que preestabelecemos, como palavras proferida con- forme a sua condicdo de servo, Assim, a afirmacao: N&o cabea mim concedé-to, ha de seentender eomo se dissease: 87 19,98-26 “Nio é competéncia do poder humano concedé-lo”, enten- dendo-se 0 “dar”, como o poder divino, no qual é igual a Deus. Niio cabe a mim concedé-lo, ou seja, “née o dou em virtude do poder humano”, mas aos que 0 Pai o preparou (Mt 20,23): mas has de compreander que se tudo 0 que 0 Pai tem é meu (Jo 16,15), este poder também é meu e, assim, junto com o Pai, o prepare”. 26. Pergunto agora: qual é 0 sentido desta sentenga: se alguém néo ouvir minkas palavras, ex nao o julgo (Jo 12,47). Talvez tenha dito: ndo 0 julgo, com 0 mesmo sentido que naquela outra afirmacdo: nao cabe a mim concedé-lo, Mas, a0 que vem em seguide: Néo vim para Julgar 0 mundo, mas para salvar 9 mundo, acrescenta imediatamentee diz: O que rejeita e néo acolheas minhas palavras tem seu juiz, Aqui todos entenderiamos que ele se refere 20 Pai, se néo tivesge acrescentado e dito: A pelavra que proferi é que 0 juigaré no tiltima dia, Portan- to, ser4 qte nem o Filhojulgara, pois disse: eu néoojulgo, nem 9 Pai, mas sim, a palavra que o Filhe proferiu? Escutemos ainda as palavras que seguem: Porque no falei por mim mesmo mas 0 Pai, que me enviou, presere- ueu-me o que dizer ¢ de que falar, e sei que seu preceito ¢ vida eterna. O que digo, portanto, eu o digo comoo Pai me disse (Jo 12,47-50). Se, portanto, o Filho nao julga, mas quem julga é a palavra proferida pelo Filho, e se a palavra proferida pelo Filho julga, nao é enquanto fala por si mesmo, masa Pai, que o enviou, é que Ihe deu » mandato sobre 9 que dizer ¢ do que falar. Conelui-se dai que quem julga ¢ 0 Pai, cuja palavra é 0 Filho, porque o Verbo do Pai é o préprio Filho. ‘Nao existe diferenga entre o ordem do Pai eo Verbo do Pai. Verbo (palavra)e ordem (mandato) tem omesmo sentido, ‘Vejamos se a afirmagao: Eu nao falei por mim mesmo (Jo 12,49) possuui o mesmo sentido desta outra: “En nao LIVROT 58 nasci por mir mesmo”, Pois seo Verbo do Pai fala, ele fala por si mesmo, por ser o Verho do Pai. Na maior parte das vezes, que o Senhor diz: Pai me dew (Ja 5,26), 6 para fazer compreender que o Paio gerou, nio no sentido de o Pai lhe ter dade algo como a alguém que ja existisse, sem contudo nada possuir. Mas ter-lhe sido dado significe ter sido gerado para sar (o Filho de Deus), nie para ter. Nao foi, pois, como acontece com a criatura, para quem uma coisa é ser e outra ter. O Filho de Deus, antes de se encarnar ¢ assumir a natureza humana — 0 Unigénito, por quem tudo fei feito, Aquele que é—é oque tem. Aquele versiculo diz isso claramente — para quem for idéneo de compreender: Assim como o Pai tema vida em si mesmo, também concedeu ao Fifho ter a vida em si mesmo (do 5,26). Née lhe foi dado, pois, comoa alguémquejéexistesse, mas que tivesso a vida em si mesmo, vista que desde que cle 6, é 0 vida, Portanto, as palavras: dew ao Fiiho ter a vida em si mesmo, significam: gerou o Filho que é a vida imutavel, a qual é a vida eterna.” Assim, pois, se o Verbo de Deus € 0 Filho de Deus, e esse Filho de Deus é Deus verdadeiro, 2 a vida eterna, conforme diz séo Jodo na sua carta (1Jo 6,20), por que veriamos nestas palavras do Senhor: “...¢ a palavra que proferi que 0 julgard no iiltimo dia” (Jo 12,48) — outra coisa que # mesma Palavra, que 60 Verbo e ordem do Pai, ordem que nao ¢ outra coisa que a vida eterna? Pois ele mesmo diz: “Eu sei que sua ordem é a vida eterna”. 27. Pergunto agora, que sentido darmes a sentenca de Cristo: Zu név julgo, mas ¢ palavra que proferi é que 0 Jjulgard (Jo 12,48)? Pelo contexto, se deduz que se expres- soucomo se dissesse: “Eu nao julgarei, mas simo Verbo do Pai”. Ora, 0 Verbo do Pai é 0 proprio Filho de Deus. Com 59 227 rigor, havemos de entender: “Eu nao julgarei, mas julga- reil” O sentido deve ser este: “Eu no julgarei pelo poder human, pois sou Filho do Homem; mas julgarei pelo poder divino, pois sou Filho de Deus”. E caso pareca contraditério: “Eu niojulgare!, mas julgarei”, oque dizer das palavras antes citadas: minha doutrina nao ¢ minha (Jo 7,163? Como pode ser “minha” ¢ 20 mesmo tempo “no minha”? © Senher nao disse: “Essa doutrina nao é mi- nha”, mas: minha doutrina néo € minka, como a dizer: “gna” e ao mesmo tempo: “nao sua”, Essas palavras 36 podem ser verdadeiras, entendendo “sua” num sentido, ¢ “nao sua”, em outro sentido, Ou seja: “cua” conforme a condigao divina;e “nao sta” conformea condigao humana. Quando diz; Nao é minha, mas daquele que me enviou, ¢ preciso valer-nos de proprio Verbo, Pois a doutrina de Pai 60 Verbo do Pai, o qual é 0 mesmo Filho Unigénito. Igualmente, o que significam estas palavras: Quem créam mim, néo éem mim. que cré (Jo 12,44)? Como pode ser: crer nele ¢ 20 mesmo tempo nao erer? Como entender palavras tao contraditérias e opostas como estas: Quem cré em mim, nao & em mim que cré, mas em quem me enviou? A solugiic esta em entendermos deste modo: Quemeré em mim, ndiocré no que vé, [sso para quea nossa esperanga nao repouse numa criatura. Mas cré naquele que se uniu & natureza humana, na qual se revelou aos olhos humans. Purificou assim os nossos eoragdes pela f6, para podermos contempl4-lo como igual ao Pai, Desse modo, referindo ao Pai a inteneao dos crentes edizendo: néio gem. mim que cré, masem quem me envior, ele nao deua entender que esta separado do Pri, ou seja, daquele que o enviou; mas sim, que se cresse nele, do resto modo como se eré no Pai, a quem ¢ igual. B o que ele diz claramente, neste outro ugar: Crede em Deus, erede também em mint (Jo 14,1), ot seja, assim como credes em Deus, erede também em mim, porque eu eo Pai LIVROL 80 somos umn 6 Deus. Mas como que desviando de sia fé dos homens, disse na passegem citada: nao eré em mim, mas em.quem me enviow. Contudo, n&o se excluiu a si mesmo, como o fazem outro lugar: nda cabea mim concedé-lo, mas # para aqueles aos quais meu Pai o preparou (Mt 20,23). Croio quefica assim esclarecide como seha de enten- der as duas sentengas em questdo°! 0 mesmo se diga daquela outra frase: eu ndo jugarei Jo 12,47), pois, certamente, ele julgara os vives e os mortos (2 Tm 4,1). Mas como nfo ser4 pelo poder humano que hé de julgar, chama a atengio para a sua divindade, eleva ao alto os coragaes dos homens, visto que foi para os clevar que cle desceu. CAPITULO 13 Operagies de Cristo nas dias naturesas, Ainda Cristo e 0 julzo 28. Se ele nao fosse ao mesmo tempo Filho do Homem, pela forma de servo assumida; ¢ Filho de Deus, por causa da forma de Deus, ne qual existe, o apéstolo Paulo nao teria dito, falando dos principes deste mundo: se 0 fives- sem conhecido, néo teria crucificado 0 Senhor da gléria (Cor 2,8). Com efeito, foi erueificado na condigio de servo, e contudo ele era o Senhor da gloria. Esta é a conseqtiéneia do empréstimo feito 4 natureza humana;*? que Deus seja homem e que o homem seja Deus. Mas oque 6 dito em relacdo a um e outro, todo leitor prudente, diligente e piedosoha de entender, com a ajuda doSenhor. Ja dissemos que, conforme a natureza pela qual é Deus, ele glorifica os setse, conforme essa condigdo, écertamen- te oSenhor da gloria. Afirmamos, porém, com proprieda- de, que o Senhor da gléria foi crucificado, no no poder da 61 1328 divindade, mas na fraqueza da carne (2Cor 13,4). Assim como dissemos que na natureza de Deus ele julga — ou seja, pelo poder divine e no pelo poder humano —, como homem também ha de julgar, assim como foi erucifieado 0 Serhor da gléria. Assim o diz claramente: Quando 0 Filho do homem vier em sua giériae todos os anjos com ele, entéiose assentaré.no tron dasuagloria. E sero reunidas em sua presenga todas as nagdes (Mt 25,31.32), e as demais coisas que se dizem, nessa citacio, até a sontenca final, ¢ 0s judeus, par permanecerem na sua maldade hio de ser punidos nesse juizo, como esta escrito: Kies pordo os olhos em. mim, a quem transpassaram (Ze 12,10). Como bons e maus ho de contemplar o juiz dos vivos e dos mortos, 05 maus, sem dtivida, nao poderao vé-lo a nao ser na forma em que é Filho do homem — nao porém humilhado, como quando foi julgado, mas na majestade de juiz. Com toda certeza, os {mpios nao contemplarao a forma divina em que ¢ igual ao Pai, pois nao s4o puros de coragao de: Ber-aventurados os puros de coragdo, porque verdo @ Deus (Mt 5,8). E esta vido, prometida aos justos como o maior galardio, sera “face a face” (1Cor 13,12), e dar-se-4 quan- do ele entregar o Reino a Deus Pai, Nesse Reino, ole quer der a entender estar inclufda & visio de sua condicdo divina, apés ter submetido toda criatura a Deus, inclusive aformaem que 0 Filhode Deus se tornou Filho do Homem. Conforme esaa forma, entio, 0 proprio Filho de Deus se submeterd aquele que tudo Ihe submeteu, para que Deus seja tudo em todos (1Cor 15,24-28). Se 0 Filho de Deus, comojuiz, aparecesse aos impios na forma em que é igual ao Pai, qaando vier para julgar, o que estaria prometendo de incomum aos que o amam, guando diz; Ew o amarei ¢ @ ele me manifestarei? (Jo 44,21. Portanta, o Filho do homem julgaré, nao pelo seu poder humane, mas pelo poder pelo qual é Filho de Deus. LIVROT 62 Por outro lado, o Filho de Deus julgaré niivaparecendo na forma em que igual ao Pai, masna formaem que é Filho do Home. 29. Podem-se dizer, portanto, ambas as coisas: o Filho do Homem julgaré eo Filho do Homem nio julgara. 0 filho doHomem julgaré para assegurar a verdade do que disse: quando o Filho do Homem vier, entéo seréo reunidas em sua presence todas as nagées (Mt 25,31) e o Filho do Homem no julgard para ser verdade o que disse: cu ndo julgo (Jo 12,47)e: nao procure a minha gléria, hd quem a ‘procure e julgue (Jo 8,50). Portanto, como hé de aparecer no juizo nao na forma de Deus, mas na forma de homem, nem o préprio Pai julgaré. Em apoioa esta interpretacdo, lemos: porqueo Pai a ninguém juiga, mas confiou ao Filho todo julgamento. Pode-se confirmar essa afirmagao com as palavras que jd comentamos, cu seja: também concedeu ao Filho ter @ vida em si mesmo (Jo 5,22.26), para assim indicar que gerouo Filho, ou com aquelas outras palavras do Apéstolo, que diz: per isso, Deus 0 sobreexaltou. gran- demente e oagraciou com 0 Nome que € sobre tado nome (Fl 2,9), Essas sao palavras referentes ao Filho do Homeim, ressuscitado dentre os mortos, em gua qualidade de Filho de Deus. Aquele que na condigao divina ¢ igual ao Pai, da qual se esvazion ao receber a forma de servo, nesta mesma forma de servo age, sofre e recebe o que o Apéstalo observa aseguir: Humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz! Por isso, Deus 0 sabreexaltou grandemente ¢ 9 agraciou com o Nome que & sobre todo nome, de modo que, ao nome de Jesus, se dobre todo joetho dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob c terrae, para gléria de Deus, 0 Pai, toda lingua confesse: Jesus é 0 Senhor (1 2,811). Estas palavras esclarecem 0 sentido do que ele disse: confiow ao Fithe todo julgamento (Jo 5,22), e apdia- 63 13,29-30 se na primeira ou na segunda afirmagao. Se tivesse dito conforme o sentido da seguinte afirmagio: Concedeu ao Fiiho ter a vida em si mesmo, n&o teria dito: O Pai « ningudm julga. Pelo fato de o Pai ter gerado um Filho igual a ele, o Pai também juigara. Portanto, conforme as Ultimas palavras, no juizo, aparecer4 nao na forma de Deus, mas na forma de Filho do Homem. Nac quis significar que nao fara julgamento, aquele que entregou ao Filho todo julgamento, pois dele se diz: lid quem procure @ minke gloria (Jo 8,50), mas estas palavras: porque meu Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento, significam: “ninguém contem- plard 0 Pai nojuizo dos vivos e dos mortos, mas todos veraio o Filho”. Como é também Filho do Homem, podera ser visto pelos impios, os quais verde a quem transpasearam (Ze 12,10), 30, Para que no estejamos apenas a conjeturar ao invés de demonstrar, citemos « explicita e evidente sentenca do mesmo Senhor, com a qual paderemos comprovar o moti- vode sua afirmagio:o Pai a ninguém julgard, mas confiow ao Filho todo julgamento (Jo 5,22). B que o Juiz aparecera na forma de Filha do Homem, que niio € a forma do Pai, mas nado Filho, isto é, nao na formaem que ¢ igual ao Pai, masna qual inferior ao Pai, e assim serd visivel aos bons @ aos maus. Diz, pois, um pouco adiante: Em verdade, em verdade vos digo: quem escuta a minha palaura ¢ cré naquele que me enviou, tem a vida eternae néovema juizo, mas passou da morte i vida (Jo 5,24). Esta vida eterna ¢ a visdo da qual os maus ficardo privados. Prossegue em seguida: Em verdade, em verdade vos digo: Vem a hora —-e é agora — em. que os mortos ouvirao a woz do Filho de Deus, eos que a ouvirem viver&o (Jo5,25). Eisto se refere aos homens piedosos que, ouvindo falar de sua encarnagio, créem que ele é 0 Filho de Deus, ou seje, LIVROT 64 acolhem-no como feito homem por eles, inferior ao Pai pela natureza humana, ¢ créem que é igual ao Pai na natureza divina. E continua o texto, confirmando o que acabamos de dizer: assim como 0 Pai tem a vida em si mesmo, também concedeu aa Filho ter a vida em si mesmo (05,26), Alude a seguir, & visto de sua claridade, da qual. se revestird no juino, visto que seré comum aos impios e 208 justos: ele lhe dew o poder de juigar, porque ¢ Filho do Homem (So 52D. Creio que nada ha mais evidente. Pois, sendo 0 Filho de Deus igual ao Pai, nao recebe o poder de julgamente, mas o tem com o Pai, em segredo. Mas como é Filho do Homem, recebe-o para que bons ¢ maus o contemplem como juiz. A visio, portanto, do Filho do Homom sor4 manifesta também aos maus, mas a contemplagao da forma de Deus, sornente aos puros de coragdo, porque eles verao a Deus, ou seja, manifestar-se-4 somente aos bons, a cujo amor ele fez essa promessa (Mt 5,8). Veja agora o que diz em seguida: no vos admireis com isto, O que nos proibe ele de admirar, senao do que se admira toda aquele que nao entende, isto 6, de ter dito que © Pai lhe concedeu o poder de julgamento, porque é Filho do Homem, quando esperavam que dissesse: porque é Filho de Deus? Mas como 03 impios nao podem contem- plar o Filho na forma em que é igual ao Pai, é mister que Justos ¢ impios contemplem ojuiz dos vives e dos mortos ‘quando, nasua presenca, serdojulgados. Diz pois: Nao vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nes sopulcros, ouviréo a sua oe e seiréo: os que tiverem feito o bem, para uma ressurreigéo de vida; 0s que tiverem praticado o mal, para uma ressurreigéo de conde- nagio (Jo 5,28-29), Para isso, era mister que recebesse aquele poder, porque é Filho do Homem, e todos os ressuscitados 0 pudessem ver na forma em que pode ser visto por todas; 65 1381 auns, para a condenagdo ¢ a outros, porém, para a vida eterna. B 0 que é a vida eterna senfo aquela visio nao concedida aos impios? Que te conhegam ati, o Deus unico 2 verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo (lo 17,3). E como os justos conheceréo Jesus Cristo, senfio como Uinico Deus verdadeiro, que se manifestard a eles, e como nao se deixard vor pelos condenados na forma de Filho do Homem? 31, Deus é bom na visao er que aparecer aos puros de coracho, pois esta escrito: Qudo bom ¢ o Deus de Israel para os retos de coracéo! ($1 72,1). Quando, porém, 08 maus virem 0 Juiz, nao Thes pareceré bom, porque na sua. presenga néo estarav de coragdo alegre, mas todas as tribos da terra baterdo no peito (Ap 1,7). Nesae niimero estara compreendida a multiddo de todos os maus e infidis. Por isso, ao jovem que ochamou bom Mestre e lhe pediu orfentagdo para aleangar a vida eterna, ele respon- deu: Por que me perguntas sobre o que é bom? Bom é um 6: Deus (Mt 19,17), No entanto, o mesmo Senhor chama bom ohomem, quando dizem outro lugar: O homem bom, do seu tesouro tira coisas boas; mas 0 homem mau, do seu tesouro tira coisas mids (Mt 12,35). O jovem procurava a vida eterna, e a vida eterna consiste naquela contemplacio em que se vé a Deus, ndo por castigo, mas para o gozo eterno. Mas como ignorasse com. quem estava falando, considerando-o apenas um filho do homem, o Senhor diz: Por que me perguntas sobre o que é bom? Queria dizer: Por que me petguntas sobre 0 que é bom nesta forma em que me vés e me chamas bom Mesire, olhando apenas o que te 6 visivel? Esta forma de filho do homem, esta forma foi assumida, esta forma aparecerd no juizo tanto para os justos como para os impios. Ba visdo desta forma nao ser4 um bem para os que fazem 0 mal, Além dessa, existe ainda a visdo da minha A Ton LIVROT 66 forma propria, na qual, quando nela estava, nao conside- rei oser igual ao Pai, comaalgoa que me apegar ciosamen- te, mas esvaziei-me dela para assumir esta (FI 2,6-7), Portante, 0 Deus unico, Pai, Filho © Espirito Santo, aparecerd para 0 g070 que nao seré tizado dos justos, Suspira por esse gozo aquele que diz: Una 86 coisa peco ao Senhor, esta solicito: € que habite na casado Senhor todos os dias da minha vide, para gozar da suavidade do Senhor (Si 26,4). Esse tinico Deus 6, pois, 0 tinico bom, ja. que ninguém o vé para a dore o pranto, mas somente para asalvacaoe alegria verdadeira. Se és capaz de me enten- der bem, é nessa forma divina que eu sou bom; se, porém, somente na forma humana por que me perguntas sobre 0 que é bom? Pois se te encontras entre aqueles que verde quem transpasseram (Ze 12,10), essa viséo servir-lhes-4 de desgraca, pois é uma visdo que se identifica com um castigo. Por essas consideragdes anteriores conclui-se que é esse 0 sentido provavel da sentenga proferida pela Se- nhor: Por que me perguntas sobre o que é bom? Ninguém. bom, somente Deus, porque é essa visdode Deus que nos dara ensejo para contemplarmos a ess¢neia de Deus, irmutavel e invistvel aos olhos humanas, prometida s0- mente aos justos; a visio que o apéatolo Paulo desereve como um face a face(1Cor 13,12). Aela refere-seo apéstolo dodo, quando diz: seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal qual é(1J03,2). Sobre ela proferia, asalmista: Uma sé coisa pego ao Senhor... (3126,4),¢ a respeito dela diz o proprio Senhor: Ku o amarei e a cle me manifestarei (Jo 14,21). E essa a visao de Deus para s qual nos preparamos somente pela fé, purificando nossos coracées, para sermos os felizes puros de coracéo, que verde a Deus (Mt5,8). Como diversas outras passagens foram escritas sobre essa visdo, e estéo abundantemente dispersas nas Escrituras, qualquer lhes hd de dirigir 0 olhar do amor oT 13,31 para a alcangar. Ella é o nosso sumo bem; para aleangd-la somos admoestados a fazer todo o bem que fazemos.*? ‘Mas quanto aquela visio do Filho do Hormem que foi profetizada para quando, na sua presenga, se reunirem todos os povos que lhe diraa: Senhor, quando foi que te vimos com fore e te alimentamos, com sede e te demos de beber, essa visio no sera um bem para os impios queirao para o fogo eterno, nem mesmo sera o sumo hem para 03 justos, Pois o Senhor ainda og chamaré depois disso para a posse do Reino que Jhes est preparade desde o inicio do mundo. Assim como dira aos primeiros: Ide para a fogo eterno, dir para os outros: Vinde, benditos de meu Pai, recebei por heranca o Reino preparado para vds (Mt 25,34- 41), Como os impios irae para o fogo eterna, os justes irae para a vida eterna, Eo que é a vida eterna, sendo que eles conhecam a ti, 0 Deus tnico € verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo?(Jo17,3.5). Trata-seagora daquela claridade de que falou ac Pai: com a gléria que eu tinka contigo, antes que 0 mundo existisse (Jo 17,35). Entao, entregaré o Reino a Deus Pai (1Cor 15,24), para que 6 servo bom entre no gozo do seu Senhor (Mt 25,21,23), e liberto das pertidias dos homens aqueles que Deus posstii noocultode sua face. Serdioesses pérfidosque se perturbardo ouvindo aquela sentenga, enquanto ojusto nao se atemorizard anescutar esse som terrivel (SI 111,7), pois agora se protege no tarbendculo, ou seja, na reta vivéncia da fé catélica; livre da contradigao das linguas (SI 30,21), isto 6, das cahinias dos hereges. Todavia, qualquer outro modo de entender estas palavras do Senhor: Por que me perguntas sobre o que é bom? “O Bom ¢ um s6: Deus”, néo se desvia da sf doutrina, contanto que niio se considere a bondade do Pai maior que ada esséncia do Filho, pela qual ele é 0 Verbo de Deus, por quem todas as coisas foram feitas. Com seguranga, atenhamo-nos nao apenas a uma sé interpretacao, mas Liveot 68 apoiemo-nos em todas as que houver. Peis oa hereges poderfio ser convencides com tanto mais forea, quanto mais saidas se abrirem para serem evitadas as suas, ciladas, Entretanto, o que ainda devemos considerar, exige agora novo exérdio. LIVRO If —A igualdade na Trindade — Nas missdes do Filho e do Espirito Santo, 03 enviados ndo so inferiores ao Pai — Inseparabilidade de operagdes na Trindade PROLOGO 1. Quando os homens investigam sobre Deuse aplicam- se 4 compreensdo da Trindade, dentro das limitagdes humanas, experimentam sérias dificuldades, seja por causa do olhar da mente que empreende a penetragao de Juz inacessivel, seja devido aos muitos ¢ variadoa modos de expressdo das Escrituras sagradas, perante as quais a alma, segundo penso, deve humilhar-se, para que possa brilhar, iluminada pela graca de Cristo. Aqueles que chegam a uma certeza, apés dissiparem todas as suas dtividas, devem desculpar com indulgéncia os que ainda vagueiam na investigacdo de tao grande mistério. Mas ha duas coisas dificilmente toleraveis no erro humano. Sao elas: a presungac, antes de ser esclarecida a verdade; e a obstinagao no erro, fruto da presungao, apés a manifestagio da verdade. Se Deus, como suplico ¢ espero, me defender e me proteger, com 0 escudo da sua santa vontade (S15,13)e com a graga desua misericérdia, desses dois defeitos, frontalmente hostis A procura da verdade @ pesquisa nos Livros santos, nao serei indolen- tena investigagao da esséncia divina, tanto pelas Escritu- ras, como pela via das coisas criadas. Ambas as fontes sdo oferecidas A nossa consideragao com a finalidade de que o amemos ao investigarmos, pois LIVRO IT 10 ele mesmo inspirou as Escrituras e fez as criaturas. Nao vacilarei em emitir minha opiniio, aqual mais desejoseja apreciada pelos de reta intencdo, do que temo seja alvo da mordida dos perversos. Pois a muito madesta e formo- sissima caridade compraz-se com alegria no olhar da pomba; mas quanto aoe dentes caninos, ou ela os evita pela humildade eautelosa, ou faz recuar pela luz da verdade sdlida, Prefiro ser criticado por qualquer um, a ser lonvade pelo que erra ot! adula. Quem ama a verdade nao se atemoriza perante o critico, pois ele ou critica como 6 amigo, ou come o inimigo. Se insultar como inimigo, tolerar-se-d; porém, ae se enganar como amigo, mereceré ser doutrinado e caso nos ensine, merecera ser escutado. Mas 0 que louva, errando, confirma o nosso erro; ¢ 0 adulador incita-nos mais ainda a0 erro. Pertanto, corrija- me o justo e repreenda-me; o leo, porém, do pecador no ungird minha cabeca (SI 140,5). CAPITULO 1 A doutrina sobre o Filho de Deus em duas regras. Trés géneros de expressies 2, Ha uma regra canbnica,! disseminada nas Escritu- ras e adotada pelos doutos intérpretes catélicos das mes- mas Escrituras, & qual nés nos atemos com firmeza para compreender como o Filho de Deus é igual ao Pai na condicao divina que possui; e inferior ao Pai, na natureza humana que asaumin (Fl 2,6.7). E como nessa natureza humana, ele é inferior nao somente ao Pai e ao Espirito Santo, mas também a simesmo; nao pelo que foi, mas pelo que ¢, pois, ao assumir a forma de servo, nao perdeu sua forma divina, de acordocom os ensinamentos das Escritu- a 123 ras que j4 mencionamos no livro anterior. Hé, porém, em diversos oraculos divinos, certas expressbes que oferecem ambigdidade com relagio a regra a que se refere: se aquela pela qual entendemos que o Filho é inferior na forma de criatura assumida; ou se & outra, pela qual entendemos que o Filho nao é inferior ao Pai, mas igual, embora seja Deus de Deus, Luz de Luz. Dizemos, com efeito, que o Filho é Deus de Deus, mas dizemos que 0 Pai é simplesmente Deus, e no Deus de Deus. Esta claro, portanto, que 0 Filho tem alguém de quem procede ¢ do qual é Filko; o Pai, porém, ndo tem um filho do qual proceda, mas apenas do qual é Pai. Todo filho recebe do paioser, e¢filhocomrelagio a seu pai;nenhum pai reeebe do filho o ser, mas é pai com relagao ao filho. 3. Ha, com efeito, passagens nas Escrituras sobre o Pai ¢ o Filho que revelam a sua unidade e igualdade de esséncia, como: Eu eo Pai somos um (Jo 10,20) e:eletinha & condigéo divina, e néo considerou o ser igual a Deus come algo a que se apegar ciosamente (Fl 2,6), e outras semelhantes. Hd outras, porém, mostrando que o Filo é inferior ao Pai pela condigao de servo, isto 6, por ter assumido a substancia de criatura mutavel e humana, como: porque o Pai é maior do que ex (Jo 14,28) e: porque 0 Pai a ninguém julga, mas confiou ao Fitho todo julga- mento (Jo 5,22). E, conseqientemente é acrescentado um powco depois:e thedeu o poder de julgar, porqueé Fitho do Homem (Jo 5,27), Outras passagens no entanto, nao revelam nem a inferioridade nem a igualdade, mas ape- nasafirmam sua procedéncia do Pai:assim comooPaitem avida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida. em si mesmo (Jo 5,26) e: 0 Filho por si mesmo nada pode fazer, mas s6 aquilo que vé o Pai fazer (Jo 5,19). Se esta Ultima afirmagao quissesse dizer que o Filho é menor na forma assumida de criatura, terfamos que coneluir que o LAVRO TL 72 Pai teve de ser o primeiro a andar sobre as aguas (Mt 14,26), ou a abrir os olhos de algum outroeego de nascenga com: saliva e barro (Jo 9,6.7); ou a fazer as demais coisas que 0 Filho encarregado fez entre os homens. $6 assim poderia ele ter feito essas coisas, pois disse que o Filho nada poderia fazer, se nao visse o Pai executa-las, Quem 6 vitima de desvario tal, que assim pense? Resta, portanto, admitir que a Senher assim afirmou para significar que a vida do Filho ¢ imutavel come a do Pai, mas que o Filho € do Pai; e que ha inseparabilidade de operagées entre o Paie o Filho. Masa atuagéo do Filho édaquele de quem possui o ser, isto ¢, do Pai; ede tal modo 0 Filho vé o Pai, que pelo fato de vé-io, por isso mesmo, é Filho. Nao ha diforenga entze ser do Pai, isto é, naacer do Paievero Pai, ou vero Pai atuar,atuandojunto com o Pai; mas ndo por si mesmo, pois, nao se gerou a si mesmo. Portanto, aquilo que vir 0 Pai fazer, isso o faz também o Fitho (Jo 5,19) significa que é do Pai. Nio se pode fazer comparacdo com o pintor que reproduz figuras tais como as vé pintadas por outro; nem com a mao que reproduz as. letras ditadas pela mente; mas conforme disse: tudo 0 que 0 Pai faz, o Filho o faz igualmente (Jo 5,19). Ao dizer tudo 2 igualmente, indica a inseparabilidade ea igualdade de operagao entre o Paie o Filho, mas 6 do Paique recebe sua acdo. Eis porque o Filho nada pode fazer por si mesmo, a no ser o que vé 0 Pai fazer. Devido a essa regra, segundo a qual ensinam as Eacrituras que um néo ¢ inferior ao outro, mas revelam apenas quem procede de quem, alguns entenderam que o Filho é inferior ao Pai. Entretanto, alguns de nossos escritores ndo bastante doutos, nao eruditos nesses as- suntos, quando tentam aplicar aquelas palavras a Cristo, conforme a condicao de servo, confundem-se, ao perceber que nie aio seguidos pelos homens de reta razio. Para que isso nao aconteca, devemos nos ater Aquela regra 3 24 nesse sentido de queo Filho néo é inferior ao Pai,mas vem do Pai, Aquelas expressiies mencionadas acima néo ates- tam desigualdade, mas sim geragao2 CAPITULO 2 As duas regras e a compreensdo sobre o Filho 4, Como comecei a dizer, h4 certas expressées nos Livros santos, de tal modo formuladas que dificultam a percepgao sobre o que se referem, Nao se tem certeza se dizemrespeito ao Filhocomo inferior a0 Pai pela natureza humana assumida, ou se a ele como igual ao Pai, embora indiquem que ele procede do Pai. Parece-me que, se 0 sentido 6 ambiguo dificultando a explicagdo on a diferen- ciagéo podem, no entanto, ser entendidas sem maior perigo, tendo como base qualquer das regras, Por exem- plo, a afirmagio: minha doutring ndo é minha, mos daquele que me enviou (Jo 7,16). Pode ser aplicada a forma de serva, como jd discorremos no livro anterior (I, cap. 12,23-27) @ também a forma de Deus, na qual é igual a0 Pai, embora proceda de Pai. Com efeito, na forma de Deus, no é uma realidade ser Filho e outra ter sua vida, pois 0 Fitho 6 a propria vida. Nao é também uma realidade ser Filho e outra ser doutrina, pois o Filho 6 a prépria doutrina. Assim como a afirmagao: dew a vida ao Filho (Jo 5,26), deve-se entender como: “GerouoFilhoqueé a vide”, assim a sentenca: “deu ao Filho adoutrina”, temo sentido de: “Gerou o Filho que 6 a doutrina”. Por isso, quando o Filhe diz: minha doutrina ndo € minha, mas daquele que me enviou, deve-se entender como se dissesse: “Eu nao existo por mim mesmo, mas por aquele que me enviou”. LIVEOT TA CAPITULO 3 Outra regra para a doutrina sobre o Espirito Sento 5. Sobre o Espirito Santo, do qual no esté dito: esva- ziou-se de si mesmo e assumiu a condigdo de servo, diz 0 proprio Senhor: Quando vier 0 Espirito de Verdade, ete vos conduziré & verdade plena, pois nao falard de si mesmo, mas dird tudo 9 que tiver owvido e vos anunciard, as coisas fuuturas. Ble me glorificard porque receberd do que é men @ vos anunciard {Jo 16, 13.18). Poder-seta pensar que talvez.o Espirito Santo seja nascide de Cristo, como este o é do Pai, Com efeito, falando de ai mestno dissera ele: Minha doutrina ndo ¢ minha, mas daquele que me envicu (Jo 7,16). Do Espirito Santo, porém, diz: néo jalard de si mesmo, mas dird tudo 0 que tiver ouvido e: porque receberd do que é inew, @ vos anunciard (Jo 16,13). Apresentou, contudo, a razao da assertiva: recebe- 14 do que é meu, ao dizer: tudo o que 0 Pai tem. € meu; por isso vo-to disse: ele receberdt de mim (Jo 16,15). Resta-nos agora provar como o Espirito Santo tam- bém recedeu tudo do Pai, tal como o Filho. © proceso, conforme dissemos, deve ser mediante a reflexfio sobre a sentenea: Quando vier o Paréclita que vos enviarei de junte do Pai, o Espirito da Verdade que vem do Pai, ele dard testemenho de 1aim (Jo 18,26). Como procede do Pai, diz-se que nao fala desi mesmo, eassim como o Filho, no é inferior por ter dito: o Filho por si mesma nade pode fazer, mas somente aquilo gue vé o Pai fazer (J05,19). N&o disse estas palavras tendo om conta a forma de servo, mas a forma de Deus, como ja demonetramos. Blas néo insi- nuam que seja inferior, mas que procede do Pai. Do mesmo modo, nao se infere que o Espirite Santo soja inferior, pelo fato de Cristo dizer: Nao falara de si mesmo, mas dird tudoo que tiver ouvido (Jo 16,13). Esta sentenca indica apenas que 0 Espirito Santo procede do Pai. 6 35-46 ‘Mas ceque modoo Filho procededo Paie também, como o Espirito Santo procede do Pai, dissertaremos em outro lugar se Deus me concedereo quantomeajudar, assim como sobre a azo de ambos nao serem chamados Filhos, nem gerados, mas o primeiro ser chamado Filho unigénito; eo Espirito Santo nem filko nem gerado; pois, se fosse gerado, seria também FiJho (cf. liv. XV, cap. 25,4.5). caPLTULO 4 A glorificagio do Filho pelo Pai néio prova a desigualdade 6, Hstejam, agora atentos, se puderem, os que, com a pretensda de demonstrar que o Pai é superior ao Filho, julgaram servir-lhes de argumento 0 fato de o Filho dizer: Pai, glorifica-me (Jo 17,1), pois o Espirite Santo também oglorifica. Ser, por isso, maior que o Filho? Se o Espirito Santo glorifica 0 Filho, porque recebera do Filho, e dele receber4, é porque tudo aquilo que o Pai tem, é dele também (Jo 16,14). Assim esta claro que, quande o Espt- rito Santo glorifica o Filho, € o Pai que glorifica o Filho. Deduz-se dai que tudo oque o Pai tem, nao é somente do Filho, mas também do Espirito Santo, pois o Espirito Santo tem o poder de glorificar 0 Filho, 0 quai o Pai glorifica (Jo 8,54). Assim, se aquele que glorifica, é maior do que aquele a quem glorifica, concordem og adversarios que sejam iguais os que se glorificam mutuamente. Esta escrito que o Filho glorifica 0 Pai, pois diz: Eu te glorifica- rei na terra (Jo 17,14), Precavenham-se, pois, de incorrer em erro.ao pensarqueo Espirito Santo ésuperior aos dois, porque giorifica o Filho, a quem o Pai glorifica, pelo fato de nao se encontrar nenhuma citago onde o Espirito Santo seja glovificado nem pelo Pai nem pelo Filho. LIvRO 1 16 caPiTuLo 5 A misséo do Filho e do Espirito Santo. A missdo do Filho por si mesmo. A missdo do Esptrite Santo 7. Conveneidos de seu erro em relacaa a esse ponto da doutrina, os adversérios apresentam outro argumento dizendo: Aquele que envia 6 maior do que o enviado; portanto, Pai émaior do que o Filho—poiso Filho varias vores assevera ter sido enviado pelo Pai. Z também é ele maior do que o Espfrite Santo, pois Jesus disse a act: respeitn: que o Pai o enviard em meu nome (do 14,26). Eo Espirito Sante ¢ inferior a ambos, porque o Paio envia, como jé lerabramos; e o Filho também o envia ao dizer: se eu for, envid-to-ei a vds (Jo 16,7) Nesta quest&o, pergunto primeiramente de onde e para onde o Filho foi enviado, Dizo Filho: Sai do Paievim co mundo; de nove deixo 0 mundo e vou para o Pai (Jo 16,28). Portanto, sair do Pai e vir a este mundo é ser enviado. O que significa entoo que o mesmo evangelista escreve a seu respeito: Estava ne mundo eo mundo foi feito por ele, maso mundo nao conheceu3 (Jo 1,10). E em seguida: Velo para oqueera sex (ib. 1,11). Comefeito, veio para onde foi enviado. Ora, se foi enviado a este mundo, porque saiu do Paie veio a este mundo, e se “estava neste mundo”, foi entéo enviado aonde jé se encontrava. Aliés, siopalavrasde Deus registradas nas profecias: Porventura ndo encha eu océue a terra (Jr 23,24). Se dizem referéneia ao Filho (alguns afirmam que este tenha falado aos profetas ou pelos profetas), aonde foi envidado sendo nonde ja se encontrava? Estava presente em todas as partes aquele que disse: Porventura niio encho eu o céu ea terra? Sea sentenca faz referéncia ao Pai, onde podia ele estar, sem seu Vero, € sem sua Sabedoria que atinge fortemente de uma extremi- dade it outra, e dispée todas as coisas com suavidade? (Sb cod 528 8,1), Mas nfo podia estar em todas as partes sem seu Espirito. Assim, se Deus est4 presente em toda parte também af esté oseu Espirito. Assim, aquelesalmista que nao encontrou uma lugar aonde ir, ao se afastar da face de Deus, diz: Se subo ao céu, tu td ests: se me prostro nos infernes, neles te encontras presente (Si 138,8). Querendo dizer que Deus ostd presente em todas as partes, citou antes oseu Espitito, aodizer: Para onde irei, a fant de ficar longede teu Espirito? E para onde fugirei da tua presenca? ($1 138,7). 8. Com base nessas citegies, pode-se perguntar: se 0 Fithoe o Espirito Santo sfoenviados aondej4 seencontra- vam, como se ha de entender essa misao do Filho ¢ do Espirito Santo? Pois a respeito do Pai,em parte alguma se 18 que tenha sido enviado. A respeito do Filho, o Apéstolo de fato escreve: Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, envicu Deus e seu Filho, naseido de mulher, nesci- do sob a Lei, para remir os que estavam sob @ Lei (Gl 4,4- 5). Disse ele: Enviou o seu Filho, nascido de mulher, Todavia nenhum catélico iguora que, com esse termo — mulher — no quis insinuar a privacio da virgindade, mas indicar apenas a diferenga de sexo, conforme o modo hebraico dese expresear.* Assim, quande diz:enviow Deus 0 seu Filho, nascide de muther, indica com toda elareza que 0 Filho foi enviado ac lugar onde nasceu formado de roulher. Portanto, enquanto nascen de Deus, encontrava- s2 j4 neste mundo; porém, enquanto nasceu de Maria chegou a este mundo como enviado. Porisso, nao péde ser enviado pelo Pai sem o Espirito Santo, no somente porque esta insinuado que, quando o enviou, on seja, quando c fez nascer de mulher, nao o fez sem o Espirito Santo, mas também porque o Evangelho testemunha, manifesta e evidentemente, que a Virgem que pergunta- ‘va: Como é que vai ser isso?, 0 anjo respondeu: O Espirito LIVROIL 78 Santo vird sobre ti, e 0 poder do Altissimo ai te cobrir com sua sombra (Le 1.34.35). B Mateus escreve: Achou-se grivida pelo Esptrito Santo (Mt 1.18). Além disso, no profeta Igaias, 0 propric Cristo fala deste mode sobre sua futura chegada: Bagorao Senkor Deus meenviou com seu Espirito (Is 48,16). 9, Epossivel que algném nos force a dizer que o Filho foi enviado por si mesmo, pois a concepeao eo parto de Maria so operagées da Trindade que, pela sua ago criadora, tudo criou. Ora, como o Pai o teria enviado, se ele a si mesmo se enviou? Respondo solicitando, primeiramente, que me di- gam, se puderem, como o Pai o santificou, se ele proprio se santificou? Pois, ambas as coisas afirma omesmoSenhor, ao dizer: Aquele que o Pai santificou e enviow ac mundo dizeis: “Blasfemas!”, porque eu disse: sou Filho de Deus(do 10,36), Fem outra passagem, diz: E por eles, a mim mesmo me santifico (do 17,19). Pergunto ainda, como Paioentregou,se ele proprio se entregou? Pois,o Apéstolo afirma ambas aseoisas:quem ndo poupou 0 sew proprio Filho, eo entregou por tados nds (Rm 8,32), E em outra passagem, o mesmo diz sobre o Salvador: elemeamaneseentregowasi mesmo por mim (G12,20). Creio que eles responderdo, se conhecerem bem essas palavras, que éuma 86a vontade doPaie do Filho, einsepardveis so suas operagées. Se, portznto, concordam que a encarnagao e © nascimento no seio da uma Virgem, em que est com- preendida a missio do Filho, foram realizados de modo inseparavel, através de uma e mesma operagio do Pai o do Filho, nao se pode tampouco excluir dessa operagio o Espi- Tito Ganto, pois est escrito com toda clareza: achou-se gravida pelo Espirito Santo (Mt 1,18). Se prosseguitmos na investigac&o, talvez fique mais claro 0 que estamos indagando: como Deus envio seu | | 19 69 Filho? Ordenou-the que viesse, e ele logo obedecendo, veio; suplicou-o de vir, ou somente 0 exortou? Seja como for, 0 certo é que a vinda se fez pela palavra;e a Palavra de Deus ¢ 0 mesmo Filho de Deus. Por isso, quando 0 enviou pela Palavra, ocorreu que ele foi enviado pelo Pai ¢ seu verbo. Portanto, o mesmo Filho foi enviado pelo Pai 0 Filho, porque 0 Ver'v0 do Pai é o proprio Filho. Quem havera que abrace tio sacrilega opiniao & chegue a pensar que 0 Pai fez tdo-somonte seu verbo temporal, a fim de que o seu eterno Filho fosse enviado e aparecesse no tempo, revestido da carne? O certo € que 0 proprio Verbo de Deus, que estava desde o principio junto de Deus e era Deus, isto 6, a propria Sabedoria de Deus que existia fora do tempo, nesse mesmo tempo, manifes- tou-se na carne, O certo éque ele devia aparecor na carne, no tempo, mas no proprio Verba de Deus que estava desde 0 principio junto de Deus e eva Deus, e na propria Sabe- doria de Deus que existia sem o tempo. Assim, como ser qualquer inicio do tempo, no prinefpio existia 0 Verboe 0 YVerbo era Deus, do mesmo modo sem qualquer relagao com o temps, existia nele o Verbo e, nesse tempo, o Verbo se fez carne @ habitou entre nés (Jo 1,14). ‘Ao chegar a plenitude do tempo, enviou Deus 0 sew Filho, nascido de mulher (Gi 4,4), ou seja, criaciono tempo parasurgir entre os homens como Verboencarnado, Oque estava no Verbo sem o terapo, foi criado. Pois 2 ordem dos tempos na eterna Sabedoria de Deus, carece de tempo. Quando 0 Paieo Filhoagiram para quee Filho aparecesse na carne, foi chamado “enviado” aquele que apareceu na carne, tendo side enviado por aquele que nao se revestiu da carne, Pois, as coisas que se fazem no exterior perante a3 olhos corporais, tém sua origem na disposigao interior da natureza espiritual e so por isco chamadas suas projegdes ou “enviadas”. Contude, a pessoa que recebeu a condigao humana ¢ a do Filho, nfio a do Pai® LIVROIL 30 Por isco, quando o Pai invisivel em uniao com o Filho também invis{vel, tornou visivel o mesmo Filho, sfirma- se que ambos o enviaram. Se, entretanto, 0 Filho ao se tornar vistvel deixasse de ser invisivel com o Pai, ou seja, se a esséncia invisivel, do Filho se mudasse ¢ se transfor- magsise toda em criatura visivel, dir-se-ia que o Filho seria apenas enviado, e nao estaria mais na posigao de quem envia junto com o Pai. Tendo, porém, asstmido a condigsio humana, e tendo permanecido imutsivel a sua condigso divina, é evidente que o Pai e o Filho invistveis, ambos fizeramn 0 que apareceu no Filho, ot seja: o mesmo e 0 préprio Filho invisivel foi enviado pelo Pat invisivel e pelo Filho igualmente invisivel. Por que entio ele diz: néo venko por mim mesmo? (Jo 8,42). Isto o afirma conforme a sua eondigaio de servo, do mesmo mode como disse: eu a ninguém julgo (So 8,15). 10. Se, portanto, denomina-se 0 Filho — o Enviado —, pelo fato de se ter tornado viivel numa criatura corporal aquele que sempre permanece ceulto ns sua natureza espiritual para os olfnos dos mortais, torna-se facil entio entender por que o Espirito Santo é também denominade “enviado”. Pois ele tornou-se igualmente, no tempo, uma espécie de criatura na qual péde se revelar visivelmente. Isso quando desceu por sobre o préprio Senhor na figura corpérea de uma pomba (Mt 3,16); ou quando dea dias apds a ascensio, no dia de Pentecostes, veio, de repente, um rutdo semelhante ao soprar de impetuoso vendaval e apareceram umas como linguas de fogo que foram pousar sobre cada um dos apéstolos(At2,2.3). Essa operacdo visivel, oferecida aos olhos dos mortais, denomi- nou-se missdo do Espirito Santo, nic porque se tenha manifestado em sua esséncia, que é invisivel e incomuni- cavel comoa do Pai ea do Filho, mas para que as coracies dos homens, comovides por tais sinais exteriores, se 81 5,10-6,11 voltassem — através da manifestaao temporel daquele que veio—, para a eternidade ocuita daquele que sempre est presente. CAPITULO SG Sobre as epifanias do Espirito Santo 11. Em passagem alguma est escrito que Deus Pai seja maior do que o Espirito Santo, ou que o Espfrito Santoseja menor do que o Pai. Isso porque a criatura assumida, em que o Espirito Santo se manifesto, nao foi assumide como o Filho do homem a assumiu, quando nela s¢ manifestou a pessoa do Verho de Deus, A encarnacaodeu- se, no para o Filho do Homen: possuir 0 Verbo como 0 posstier og santos. sAbios,” mas sim para o possuir como nenhum de seus companheiros (Hb 1,9). Tampouco, por- que 0 Verbo viesse com mais plenitude ou para possuir uma sabedoria mais sublime que os demais santos, mas por ser ele 0 préprio Verho. ‘Uma coisa é 0 Verbo na carne, outra coisa é 0 Verbo feito carne, ou seja, uma coisa é0 Verbo no homem e outra © Verbo feito homem. O termo “carne” é emprogado no sentido de ‘homem”, quando se diz: e 0 Verbo se fez carne (Jo 1,14),e também: e toda a carne vera a salvagto de Deus {Le 8,6). Carne indica ai o homem, no sem alma ou sen inteligéneia; mas “toda a carne”; equivale a: “tode ho- mem”, Nas aparigdes do Espirito Santo nao foi assumida a crintura do mesmo modo que o Verbo assumiu a carne ea forma humana no seio da Virgern Maria. O Bepirite Santo n&o santificou a pomba nem 0 vento nem 0 fogo e nem os uniu eternamente a si e A sua pessoa, de modo a perfazer Livro a2 com ele uma unidade e uma forma, a nfo ser que se queira dizer que a natureza do Espirito Santo é de tal modo mutavel e transformdvel que ele se transformou nas figuras mencionadas, como a 4gua se converte em galo. Essas figuras apareceram quando foi eportuno, como um gesto de servigo da criatura a seu Criador, obedecendo a um sinal de quem permanece imutével em si mesmo, com 0 finalidade de significd-lo e mostra-to. Assim, foi oportuno para os mortais, que realidades mudedas e transformadastivessem um significadce revelassem algo diferente. Por isso, embora aquela parba seja denomina- da Espirito Santo (Mt 3,16), ¢ ce tenha dito a respeito do fogo: E apareceram umas como itnguas de fogo, que se distribuiram e foram pousar sobre cada um deles, comegaram a falar em outras linguas, conformeo Espirito ‘Santo os impelia que falassem (At 2,3-4), para signifiear 0 Espirito Santo, por esse fogo assim como pela pomba, nao podemos, contudo, chamer o Espirito Santo de Deus- pomba, nem Deus-fago, do mesmo modo como chamamos © Filho de Deus e Homem. E nao podemos tampouco denomin4-lo desse modo quando o Filho é chamado Cor- deiro de Deus ne dizer, nao somente de Joao Batista: Eis o Cordeiro de Deus (Jo 1,29), mas também de Jodo evangelista, o vidente do Cordeiro imolado do Apoealipse (Ap 5,6), Pois 2 visio profética nao se mostra aos olhos corporais mediante formas corpéreas, mas se mostra ao espirita, pormeio de imagens espirituais deserescorporecs. ‘Todos os que viram a pomba e o fogo viram-nos com seus olhos, ainda que, a respeito do fogo, se possa discutir se foi visto pelos olnos ou pelo espirito, tendo em conta as palavras empregadas. Nao esta dito: “Viram linguas divididas como de fogo”, mas: pareceram-thes, Nao tem 0 mesmo significado: “pareceu-me” e “vi”, Nessas vistes espirituais de imagens corp6reas, costuma-se dizer: “pa- receu-me a mim e porém, nas manifestadas por 83 wae figuras corpéreas percebidas pelos olhos, n&o se costuma dizer: “pareceu-me a mim, mas simplesmente: “vi”. Pode haver discussie sobre come foi visto aguele fogo: se com 0 olher interior no espizito, ou se com os olhos corporai ‘Com relagdo 4 pomba, como esta eserito, desceu em figura corporal; ¢ ningném duvida que tenha sido vista com 08 olhos. Se dizemos que o Filho é a pedra (pois esté escrito): A pedra, porém, é Cristo (1Cor 10,4), nao podemoe dizé-lo negse mesmo sentido que o Espfrite Santo é pomba ov. fogo. A pedrajé existia comocriaturae, pela sua contextura, foi aplicada a Cristo por ela significado, do mesmo modo como a pedra, que servira de travesseiro a Jacé e por ele foi ungida, tendo servide para significar a presenca do Senhor (Gn 28,18). Eigualmente como se diz. que Isaacera Cristo por ter levado sobre os ombros a lenha pata 0 sacrificio (ib. 22,6). Nessas realidades j4 existentes, este- ve oculta uma agao significativa, o que nao acontece com a pomba ¢ 0 fogo que se manifestaram em certo momento para figurar aquelaa reslidades. Considero que as figuras da pomba e do fogo so mais semelhantes A chama que apareceu a Moisés na sarea (Ex 8,2) e aquela coluna que acompanhava o povo no deserto (Hx 13,21.22) e aos raios e trovées, por ocasido da promulgaao da Lei no monte Sinai (Ex 19,16). A figura material desses elementos surgiu com wma finalidade representativa e passageira. CAPITULO 7 Dividas sobre as aparigées divinas 12. Devido a essas formas corporais, que serviram para significar o Espirite Santo, e que tiveram uma existéncia passageira para impressionar os sentidos humanos, afir- LIvRO 1 ad ma-se que ele também foi enviado. Nao se pode dizer, porém, que por isso ele seja inferior ao Pai, como se diz do Filho na forma de servo. Esta foi inerente & unidade da pessoa, ao passo que aquelas figuras corporais aparece- ram de modo transaitério para demonstrar o que era preciso, ¢ loge depois deixaram de existir, Por que entéio nao se diz queo Pai fai enviado através daquelas figuras corporais: fogo da sarga, coluna de nu- vem ow de fogo, relampagos na montanha, e outros fend- menos, quando, segundo as Escrituras, falou aos patriar- cas, se ora ele que se manifestava através desses tipos de cristurag e aquelas formas corporais, apresentadas aos olhares humanos? E ce era o Filho que se manifestava mediante essas figuras, por que se chama enviado, apenas depois que nasceu de mulher, conforme diz 0 Apéstolo: Quando chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nasvido de mulher (G1 4,4), se antes jé havia sido enviado a0 aparecer ace patriareas mediante equelas formas mnutdveis ¢ criadas? Se no se pode dizer com propriedade que o Filho foi enviado senao quando o Verbose fez carne, por que se diz que o Espirito Santo foi enviado, se no houve encarnagtio? B se, por meio daquelas realidades visiveis encontradas na Lei ¢ nos Profetas, nao se mani- festavar nem o Pai, nem o Filho, mas 86 o Espirito Santo, por que se diz agora ser ele enviado, se j4 antes fora envindo mediante aquelas figuras? 18, Nessa questao tdo complexa, a primeira coisa a investigar, com a ajuda de Deus, serd se 0 Pai, o Filho, o Espirito Santo apareceram aos patriarcas nessas for- mascriadas; se alguina ver apareceu o Pai, outroso Filho, outras 0 Espirito Santo; e se epareceu alguma vez 0 Deus uno sem distingao de pessoas, ou seja, a prépria Trindade. 85 7188.1 Qualquer seja o resultado dessa investigagao, serd preciso exeminar em seguida se, para aquela finalidade, foi formada uma criatura na quel Deus, se assim julgou oportuno, se mostrava de fato aos olhos humanos; ou se 0s anjos, j4 existentes, eram enviados para falarem nome de Deus, assumindo alguma forma de criatura corpérea, em aparéncia visivel necesséria para a sua missio; ou se, por um poder a eles concedido pelo Criader, transformavam e convertiam em figuras acomodadas e aptas para sua atuagao, © proprio corpo sutil, ao qual nao estiio sujeitos, roas governam.* Examinaremos finalmente, 0 que determinamos in- vestigar, ou seja, seo Filhoe o Espirito Santo foram antes enviados — e se foram enviados —, qual a diferenga entre aquela missao e a que lemoa no Evangelho, ou se nenhu- ma das pessoas foi enviada, a nao ser o Filho, quando nasceu da Virgem Maria; ¢ o Espirito Santo, quando apareceu om forma visfvel soja de pomba, soja de linguias de fogo® caPiTULO 8 Toda a Trindade é inuisivel 14, Nao demos importancia aqueles que, inspirados nas coisas carnais consideraram mutével e visivel a natureza ea Sabedoria do Verbo de Denso qual, permanecendo em simesmo, tudo renova, ea quem chamanos Filho tinico de Deus, Entregaram-se & investigacio das coisas divinas com 0 coragao empedernide e com mais atrevimento do que 0 espirito religioso. Sendo a alma uma substéncia espiritual e tendo sido criada no por outro, mas por aquele que tudo criou, embora mutavel, nao é vistvel. Estes principios eles os aplicaram ao Verbo ea Sabedoria LAVRO 1 88 de Deus, por quem tudo foi feito e que é ndo somente invistvel, mas também imutdvel; dotes estes que a alma nao posaui, Essa imutabilidade divina é meneionada na Eeeritura, onde se lé: permanecendoem si mesma, renova toda as coisas (Sb 7,27). Eeles, tentando sustentar o malogrode seu erro com testemunhos das divinas Escrituras, alegam em sua defe- sa a sentenga do apdstolo Paulo e atribuem somente ao Pai, excluindo o Filho eo Espirito Santo, o que éafirmado sobre o Deus tinico,ou seja, a Trindade: Ao Rei dos sécrlos, ao Deus incorruptivel, invisivel e tinico, honra e gloria pelos séculos dos séculos (1T'm 1,17); e, em outro lugar: 0 Bendito e unico Soberano, 0 Rei dos reis e Senor dos senhores, 0 tinico que possui a imortalidade, que habite uma luz inacesstvel, que nenhum homem viu, nem pode ver (ib, 6,15,16). Creio que j4 dissertei o suficiente sobre come entender essas citagées.° CAPITULO S As trés pessoas sdo imortais ¢ invistveis 15, Aqueles que atribuem esas verdades apenas ao Pai, com exclusio do Filho e do Espirito Santo, afirmam que 0 Filho é visivel tanto na carne assumida da Virgem, como j40 era antes em si mesmo. Pois, dizem eles, o Filho ‘apareceu aos olhos dos patriarcas, E se lhes disseres: “Se 0 Filho é visivel em si mesmo, seré também mortal em si mesmo”, querom que somente ao Pai sejam aplicadas as palavras: O tinico que possui a imortalidade (1'Tm 6,16); ese lhes disseres que, se o Filho 6 mortai pela carne assumida, devem concordar que pela mesma razéo tam- bém seja visivel. Mas eles respodem: Nao dizemos que 0 Filho seja mortal somente depois da encamagio, mas, 87 9415 assim como jé era antes visivel, também era mortal. Ora, dizem que o Filho é mortal devido & carne, mas nao é somente o Pai, excluindo o Filho, que possui a imortalida- de, pois 0 Verbo, pelo qual todas as coisas foram feitas, possui igualmente imortalidade. Nao ¢ pelo fato de se ter revestida de carne que perdeu: a imortalidade, pois isso nao acontece nem mesmo & alma humana, quando morre © corpo, conforme disse ¢ Senhor: Nao temais os que matam 9 corpo, mas nito podem matar a alma (Mt 10,28). Deveriain defender que o Espirito Santo também assumiua carne, ¢ isto, certamente, os deixaria um tanto confusos, Pois, se o Filho é mortal porque se revestiu de carne mortal, como poderdo crer que apenas o Pai, com exclusdiodo Filho e do Espirito Santo, possui a imortalida- de, se o Espirito Santo nfo assumin a carne? E se 9 Espirito Santo nao possui a imortalidade, o Filho tampouco é mortal por se ter revestido da carne. Se, porém, o Espirito Santo 6 imortal, conelui-se que nfo ¢e referem somente ao Pai as palavras: 0 tinico que possui a imorta- lidade. Julgam poder demonstrar desse modo a mortalidade do Filho antes daencarnacéo, alegando que amutabilidade pode chamar-se de algum modo mortalidade, no mesmo sentide em que se diz. que a alma morre; nao porque mude ou se transforme em um corpo ou em alguma outra substancia, mas se considera mortal porque tudo o que esta agora de modo diferente do que esteve antes, se considera mortal pele fate de existir em substancia agora diferente da de antes, deixando de ser 0 que era, Dizon eles: antes de o Filho de Deus nascer da Virgem Maria, apareceu aos patriarcas ndo numa mesma figura, massob muiltiplas aparéneias; ora de um modo, ora de outro, ¢ assim tornou-se visivel em si mesmo, j4 antes de se encarnar, esua esséncia era visivel aosclhos mortais; logo 6 mortal, porque foi mutavel, E dizem a mesma coisa a LIVRO IT 88 respeito do Espirito Santo que apareceu cra como pomba, ora como fogo. Concluem, por isso, que niio a toda a Trindade, mas somente so Pai se aplicam as palavras: Ao Deus incorrupitvel, invistvel e unico, e: Bendito, o unico que possui a imortalidade, que habita uma luz inacesst- vel, que nenhum homem viu nem pode ver (1'Tm 6,16). 16. Deixando de lado, portanto, eases adversarios que, nao chegando sequer a compreender a esséncia invisivel da alma, tornaram-se mais incapazes ainda de conhecer a esséncia invistvel da alma, tornaram-se mais incapazes ainda de conhecer a esséneia de um 36 e vinico Deus, ou seja, do Pai, do Filho e do Espirito Santo, a qual permane- co ndo somente invisivel, mas também imutavel, e que, por isso, possui a verdadeira e auténtica imortalidade. Nos, porém, que afizmames que nem o Pai nem o Filho, nem 0 Espirito Santo, jamais apareceram aos olhos corpéreos, a ndo ser na figura de um ser criado submetido ‘a0 seu poder, continuemos na investigacao dentro da paz catélica no esforgo tranqtiilo, dispostos a nos corrigir se formos chamados & atencilo, fraterna e honestamente, ¢ mesmo a sermos mordidos pelo inimigo, se ele estiver com averdade, E vejamos se Deus, sem distingao de pessoas, Apareceu aos pattiareas antes da vinda de Cristo na carne; ou se alguma das trés pessoas da Trindade; ou se uma apés outra, como que por turno, an CAPITILO 10 Aparigao a Ado. Visio de Abraio 17. Primeiramente, pelo fato de estar escrito no Génesis que Deus falou com o homem por ele formado do limo da terra, e deixando de lado o sentido figurado para apoiar- 8a 10,16-17 mos a credibilidade do fato no sentido literal, parece que Deus falou com o homem revestindo-se de uma aparéneia humana. E claro que no o diz explicitamente o Livro sagrado, mas se percebe pelas circunstancias da leitura, principalmente quando narra que Addo ouviu a voz de ‘Deus que passeava a tarde no paratso, dizendo-lhe: Adao, onde estds? Ao que ele respondeu: Ouvia tua voz eescondi- me de teu rosto, porque estow nu (Gn 3,8-10). Atendendo-nos a letra, nao vejo como nao entender esse passeio @ essa conversa a néo ser sob aparéncias humanas, Nao se pode dizer que somente se ouvin a voz, onde diz. que Deus passeawa, on que aquele que passeava no local nao estivesse visivel, pois esté escrito que Adaose escondeu do rosto de Deus. Quem era ele? O Pai, o Filho ouo Espirito Santo? Ou seria talves a propria Trindade indivisa que falava ao homem na aparéneia humana? Nunca se percebe que a Escritura faga passagem de pessoa a pessoa. Asaim, parece ter falado ao primeiro homem aquele que disse: Faca-se a luz €: Faga-se 0 firmamento (Gu 1,3.6), eas demais obrasem cada um dos dias, Feomum entendor-se tersido Deus Pai que dizia que se fizesse o que lhe aprouve fazer. Ora, tudo ele eriow pelo seu Verbo, o qual, como sabemos pela regra ortodoxa de {6, é seu Filho tinico, Se, portanto, Deus Pai falow ao primeirohomers, passeava no paraiso ao entardecer eo pecador escondeu-se de sua face no meio do arvoredo, por que ndo aceitar que ele mesmo tenha aparecido a Abrado ea Moisés ea outros a quem the aprouve, através de uma crietura mutdvel e visivel sub- metida & sua vontade, permanecendo ele imutdvel e invisivel em sua esséncia? Mas péde ocorrer que a Es- critura, sem dar a pereeber, tenha passado de pessoa para pessoa e, ao narrar que o Pai disse: Faca-se a luz e as demais coisas que afirma terem sido feitas pelo Verbo, esteja indicando que 0 Filho é que falou ao primeiro LIVROIL 20 homem, embora nio dé explicagées claras, mas oinsinge aos eapazes de entender. 18 Quem tiver meios para aprofundar esse segredo com a forea da inteligéncia, de modo a ser-lhe evidente que o Pai, nao somente o Filho ou o Espirito Santo, posse ou nao, ter aparecido 20s olhos humanos através de uma criatura visivel, prossiga em suas investigagies, se puder, a ponto desercapaz de expor e explicar eases assuntos. Na minha opinidio, tal assunto permanece obscuro no que diz respei- toaotestemunho da Eeeritura, segundo ogual Deus falou comohomem. Pois, nao esté muito claro se Adio costuma- va ver a Deus com os olhos corporais, j4 que existe controvéraia sobre o modo como seus olhos se abriram, ao saborear o frute proibide (Gn 3,7); por quanto os seus olhos estavam fechados antes de o ter experimentado, Se a Escritura, de fato, insinua a existéncia de um local eomo paraiso terrene, diria ser tomeridade que ‘Deus podia ali passear sob uma aparéneia corporal. Pode- se dizer também que o homem owvia apenas a voz sem ver forma alguma. Embora esteja escrito: Adao escondeu-se desua face, niose podera concluir que costumasse ver sua face, mesmo se pensdssemos—niio que ele podia ver, mas que temia ser visto por aquele cuja voz ouvira e cuja presenca sentira passeando no paraiso? Pois, Caim tam- bém disse a Deus: Esconder-me-ei de tua face (Gn 4,14),0 nem por isso somos levados a coneluir que ele costumasse ver a face de Deus com og olhos cerporais, em alguma forma visivel, emhora tenha cuvido a voz de quem o interrogava e The falasse sobre seu crime. dificil explicar, e nfo temos esse propésito no momento, o modo como Deus se fez escutar por ouvidos humanos, principalmente quando falava ao primeiro ho- mem, Contndo, ce apenas ge ouviam vozes e sons, através, dos quais se manifestava aqueles primeiros homens uma a1 10,18-19 presenga senstvel de Deus, nie sei por que nic admitir ali a manifestagdo da pessoa de Deus Pai, cuando sabemos que a mesma pessoa se manifeston numa voz quando Jesus, no monte, apareceu transfigurado aos trés disefpu- los(Mt17,5). Ede outra vez, quando a pomba desceu sobre o Batizado (ib. 8,17), e ainda naquela outra ocasiao quan- doclamou ao Pai pela sua glorificacaioe lhe foirespondido: Bu o glorifiquei e glorificarei novamente (Jo 12,28), & certo que no poderia ser ouvida a voz sem a cooperagio do Filho e do Espirito Santo — pois sabemos que a Trin- dade atua de modo insepardvel —, mas ali se ouvia uma vor gue demonstrava apenas a pessoa do Pai. Do mesmo modo, foi obra de toda ‘Trindade a forma humana tomada nosoio da Virgem Maria, sendo, porém, a pessoa encarna- da apenas a do Filho, posto que a Trindade invisivel atuou somente na pessoa visivel do Filho.” Nada nos impede de considerar aquelas vozes ouvi- das por Adao como proferidas nao pela Trindade, mas por ‘uma pessoa manifestandoamesma Trindade. Com efeito, somos levados a acoitar como voz somente de Pai, aquelas palavras: Este émeu Filho amado (Mt3,17), porque Jesus nao é filho do Espirito Santo nem se pode crerouentender que seja seu filko. R onde se ouviu: Ex glorifiquei ¢ glorificarei novamenie, reconhecemos somente o vor do Pai. Foi a resposta ao pedido do Filho: Pai, glorifica teu Filho, o que se pode atribuir somente a Deus Pai e nao ac Espirito Santo, do qual ndo era filho. No texto, porém, onde est escrito: E disse 0 Senhor Deus a Addo, nada se poile dizer, ser for entendido como palavras proferidas pela prépria Trindade. 19. O mesmo acontece onde esta escrito: E disse aSenhor a Abraito: “Sai de tua terrae de tua parentela edecasa de teu pai”, Nao esta claro ai se aos ouvidos de Abraaochegou apenas 8 vor ou se teve alguza visdio. Um pouco depois, LIVRO I 92 hid palavras mais claras: K 0 Senhor apareceu a Abratioe disse-the: “Eu darei esta terra aos teus descendentes" (Gn 12,1.7). Nao explicita, porém, em que forma o Senhor apareceu: se foi o Pai, o Filho ou o Espirito Santo, A ndo ser que se pense ter sidoo Filho Ihe aparecer, porque nao esta escrito: “E Deus Ihe apareceu”, mas: Eo Senhor the aparece. Pois, este titulo de Senhor parece ser atribuido com mais propriedade ao Filho, no dizer de Apéstolo: Se dem que existam aqueles que sao chamaidos deuses, quer no céu, quer na terra —e hd, de fato, muitos deuses ¢ senhores —, para nés, contudo, existe um sé Deus, 0 Pai, de quem tudo procede ¢ para quem nds somos, ¢ un 36 Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nds somos (1Cor 8,5-6). Mas om muitas passagens, Deus Pai é também cha- mado Senhor, como, por exemplo: 0 Senhor disse-me: “Tu és meu Fiiho, et hoje te gerei” (S} 2,7), e em outro iugar: Disse 0 Senhar ao meu Senhor: “Senta-tet minka direita (81 109,1). © préprio Rapirito Santo é também chamado Senhor, como diz 0 Apéstolo; pois o Senhor & 0 Espirito. B ovitando que se pense ser uma referéncia ao Filho, deno- minado Espirito pela sua natureza incopérea, o texto acrescenta: e onde se acha 0 Espirito do Senhor, af esté a liberdade (2Cor 3,17), Nao ha ditvida de que o Espirito do Senhor seja o Espirito Santo." ‘Tampouco ¢ evidente se apareceu a Abrafio uma das pessons da Trindade ou se. préprio Deus Trindade, tinico Deus, de quem esté escrito: Adorards o Senhor teu Deus e somenie a éle seruirds (Dt 6,13). Abrado viu, sem diivida trés homens debaixo do carvalho de Mambré, aos quais, uma vez convidados e aceitos como seus héspedes, serviu- Thes de comer. Todavia a Escritura, no comeco da narra- tiva desse episédio, nio diz: “Apareceram-lhe tréa ho- mens”, mas: apareceu-the o Senhor. E,86.a0 explicar como o Senhor Ihe apareceu, fala em trés homens, 08 quais 93 41,20 Abrado convida no plural e hospeda. E depois fala no singular, como se apenas estivesse falando com um. 5 ainda, ac Ihe prometor que Sara ter4 um filho, é um s6, 0 qual a Escritura denomina Senhor como no comego da mesma narrativa: o Senhor apareceu a Abrado. Assim, Abraao faz o convite um, contudo, lava os pés e acompa- nha como se fossem trés homens. Fale-lhes, porém, como ge fase com o Senhor Deus, quando lhe é prometido um filho, ou quando lhe é comunicada a iminente destruicao de Sodoma (Gn 18). eaPITULO 11 Dissertagéo sobre a mesma visto 20. Esia passagem da Fscritura exige uma investigagao profunda e demorada. Se, pois, um sé homem tivesse sido visto, os que afirmam que o Filho era visivel em sua esséncia antes de nascer da Virgem, levantariam a voz dizendo que esse homem erao Filho, pois a respeito do Pai, dizem eles, estA escrito: ao unico Deus invisivel (1Tm 4,17), Maa, poder-se-ia perguntar-lhes como antes de se revestir da carne foi viste em figura de homem, se Ihe foram lavados os pés e alimentou-se com manjares huma- nos? Como péde isso acontecer quando ainda tinha a condigdo divina, e nao considerowa ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamenie? Acaso, pois, tinka se esvaziado de si mesmo e assumido a condigéo de servo, tomando a semelhanca humena, ¢ achado em figura de homem? (F| 2,6-7). Sabemos que isso somente aconteceu. depois do parto da Virgem. Como, portante péde aparecer a Abrado como homem, antes que isso acontecesse? Acaso aquela aparéncia nao era verdadeira? ‘Tudo isso poder-ae-ia perguntar, se tivesse aparecido a Abrado um sé homem, que pudesse ser considerado LiVRO WL of como o Filho de Deus. Como, porém, apareceram trés homens, e nado se menciona que um deles fosse superior pela aparéncia, pela idade ou pela forca, por que nao se perceber ai insinuada visivelmente a igualdade da Trin- dade, mediante criaturas visiveis?" A mesma e idéntica substancia em trés pessoas? CAPITULO 12 A visto de Lot 21, Para evitar que alguém pense que um dos trés era superior e qne este seria 0 Senhor e Filho de Deus, ¢ os outros dois seriam seus anjos, pois, sendo trés as que aparecerarn, Abraio fala apenas com um, a Escritura sa- grada vem contradizer seus pensamentos eopinides quan- do diz logo depois, que dois anjos vieram ter com Lot, na pessoa dos quais esse variio justo, que mereceu ficar livre das chamas de Sodoma, fala a um sé Senhor. Pois, a Escri- tura prossegue dizendo: E o Senhor retirou-se depois que assim falou com Abrado, e Abrado voltou pare sua casa. A tarde, chegaram. os dois anjos a Sodoma (Gn 19,1-19). Devo investigar aqui com atencao o que determinei demonstrar. Abraao certamente falava com trés, e cha- mot Senhor a um deles no singular. Talvez diga alguém: “Ele reeonhecia 2 um dos trés como Senhor, os outros, porém, come seus anjos”. O que dizer ento do que afirma a Bscritura: E 0 Senhor retirou-se depois que assim falow com Abrada, e Abrado voltou para suacaso. (Ga 18,83). tarde, chegaram os dois anjos a Sodoma. Por acaso, se rotirara aquele que entre os trés era reconhecide como Senhor? E os dois anjos, que com ele estavam, enviou-os para destruir Sodoma? Vejamos o que esta escrita a seguir: A tarde, chegaram os dois anjosa Sedoma, quando Lot estava assentudo us portas de cidade. E ele, tendo-os 95 3321.22 visto, levantou-se e foi ao seu encontro, e prostrou-se por terra, e disse: Vinde, vos pepo, senhores, para a casa de vosso serve (Gn 19,1.2). Esté claro que foram dois os anjos ¢ que foram convidados no plural e chamados senhores, com toda a reveréncia, julgando Lat talyez, que fossem homens, 22, Mas surge aqui uma nova dificuldade: se nao fossem reconhecidos como anjos de Deus, Lot nose teria prostado por tetra. Por que, entao, como se fosse necessario esse gesto de urhanidade, convida-os 2 entrar e lhes oferece alimento? Seja o que for o que se eculta, prossigamos agora ao que nos propusemos. Aparecem dois, ambos sho chamados anjos, sto convidados no plural e no plural Lot fala com os dois até o momento da saida de Sodoma, Em seguida, a Esctitura diz: Eo tireram de casaeo puseram fora da cidade; ¢ ali lhe felaram, dizendo: “Saiva a tua vida; néo olkes para trés e nao paresem parte alguma dos arredores deste pais; mas salva-te no monie, para que nao perecas com os outros”. E Lot disse-thes: “Rogo-te, meu Senhor, visto que 0 teu servo achou graca diante de ti ete. (Gn 19,1758). Por que Ihe disse: Rogo-te, meu Semhor, se ja se afastara aquele que era Senhor ¢ enviara seus anjos? Por que disse: Rogo-te, mew Sehor, e no “Rogo-vos, meus senhores”? K se sua intengao foi dirigir-se a um deles, por que a Escritura diz: E Lot disse-thea: Rogo-te, meuSenhor, visto que o teu servo achou graga diante de ti? No plural, nfo eatfio compreendidas duas pessoas? E quando os dois so chamados como se fossem um, nao se subentende um Senhor Deus, de uma sé esséncia? Mas que duas pessoas esto af subentendidas? As do Paic do Filho, ou as do Pai ¢ do Espirito Santo, ou as de Filho e do Espirito Santo? Considero mais verossimil a altima hipétese. Foi dito: “terem sido enviados”, —o que se afirma do Filho e Livro tt 96 do Espirito Santo; visto que a Hseritura jamais afianca que o Pai tenha sido enviado. CAPITULO 13 Visdo da sarca ardente 23. Quando Moisés foi enviado para libertar do Egito o pove de Israel, assim narra a Eseritura, o Senhor Ihe ter aparecido: Moisds apascentava as ovelhas de Jetro, seu sogro, o sacerdote de Madié; e tendo conduzido o rebanho para 0 inlerior do deserto, chegou ao monte de Deus, a0 Horeb, #0 anjo do Sentr apareceu-tke numa chama de fogo que saia do meio da sarga, e Moisés via que a sarca ardia, sem se consumir. Disse, pois, Moisée: “Irei e verei esta grande visto, e vere! por que causa ndo se consome a sarga”, Mas o Senhor, vendo que ele se movie para ir ver, chamou-o.do meio da sarga, e disse: “Moisés, Moisés”. Eele respondeu: "Aqui estau”. Eo Senhor disse: “Nao te aproxi- mes dagui:tiraas sanditlias de teus pés porque olugar em. que estits é terra santa”. E acrescentou: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abrado, o Deusde Isaaceo Deusde Jace” (Ex3, 1-6). A mesma personagem é aqui chamada, primej- ramente, anjo depois Deus. Ser por ventura um anjo, o Deus de Abrado, o Deus de Isaac e 0 Deus de dacs? Aquele Anjo pode ter sido perfeitamente o proprio Salvador, de qual diz o Apéstolo: Sos israelitas pertencem os patriarcas e deles descende 0 Crista segundo a carne, que é, acima de tudo, Deus hendito pelos séculos (Rm 9,5)! “Aquele que ¢ acima de tudo, Deus bendito pelos séculos”, pode ser entendido aqui, sem se incorrerem absurdo, como o Deus de Abraao, oDeus de Isaac ¢ o Deus de Jacé. Mas por que teria sido chamado anteriormente anjo do Senhor, a0 aparecer no meio das chamas gue saiam da sarca? (Bx 3,2). 97 19.25 ‘Talvez, porque era um dos muitos anjos, que por disposi- cdo divina representava a pessoa do seu Senhor? Ou seria porque assumin a aparéncia de alguma ecriatura para aparece de modo visivel e fazer ouvir palavras adaptadas aos ouvides humanos e indiear assim a presenga do Senhor, por meio da criatura? E caso foase um dos anjes, quem poderia afirmar, com verossimilhanga, que foi-Ihe confiads a missdo de anunciar a pessoa do Filho, ou a do Espirito Santo ou a do Pai, ou mesmo a pessoa da propria Trindade," que é um s6 Deus de modo a ter podido dizer: Eusowo Deus de Abraiio, Deus de Isaac eo Deus de Jac6? ‘Nao podemos dizer que o Deus de Abrado, 0 Deus de Isaaceo Deus de Jacé seja o Filho deDous, ¢ nao seja oPai, E ninguém se atreverd a negar que o Espirito Santo ou a propria Trindade — que aceitamos e cromos como 0 tinico Deus -— soja o Deus de Abrado, o Deus de Isaac eo Deus de Jacé. Nao é o Deus dos patriareas, somente quem niio é Deus. Portante, n&o somente o Pai é Deus — 0 que todos, mesmo os hereges aceitam —, mas também o Filho, o qual assim devem confessar, queiram ou nao, pois diz 0 Apés- tolo: 0 Cristo que acima de tudo é Deus bendito pelos séeulos (Rr 9,5); ¢ também o Espirito Santo, pelo dizer do mesmo Apéstolo: glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo, © pouco antes: ou nde sabeis que a voseo corpo é temple do Espirito Santo, que esta em vos e que recebestes de Deus? (1Cor 6.10.19). E os trés sdo um 86 Deus, conforme ensina a {é catélica. Nao 6 facil, pois, determinar nessa ocasiio (Ex 3,2), quala pessoa da Trindade —se uma delas, ou sea propria ‘Trindade — estava af representada por um anjo, caso tenha sido mesmo um anjo. Se porém, para aquela circunsténeia, foi assumida a forma de uma criatura para poder aparecer sos olhos humanos e se fazer ouvir a seus ouvidos, e foi chamado AT LIVROT, 98 anjo do Senhor, e Senhor e Deus, entdo nao se pode entender que esse Deus seja o Pai, mas sim o Filho ou 0 Espirito Santo. Embora nfo me recorde que o Espirito Santo seja chamado anjo em alguma passagem da Eseri- tura, pode-se assim entender pela sua atuagio, pois assim est escrito a seu respeito: o Ksptrito de verdade vos anuaciaré as coisas futuras (Jo 16,13). Além disso, 0 termo grego “anjo” traduz-se em latim por “mensageira” Do Senhor Jesus Cristo, lemos claramente que o profeta 9 chama Anjo do grande conselho (Is 96). E 0 Espirito Santo, assim como Filho de Deus, é Deus e Senhor dos anjos. CAPITULO 14 A visto na coluna de nuvem.e de fogo 24. Na saida dos filhos de Israel do Egito, estd escrito: E 0 Senhor ia adiante deles para lhes mostrar o caminho, de dia numa coluna de nuvem, ¢ de noite numa coluna de Fogo, para thes servir de guia num e outro tempo. Nuncase retirou de diante do povo a coluna de nuvem, durante o dia, nem a coluna de fogo, durante a noite (Ex 18,21.22). Quem duyida que Deus, nessa passagem, lenha aparecido acs olhos dos mortais servindo-se deumacriaturacorpérea, dele dependente, e n&o em sua prépria esséncia? Mas também ndo esta claro se era o Pai ou o Filho ou o Espirito Sante ou a prépria Trindade, Deus uno, que ee manifes- tou. Tampouco nada esclarece, na minha opiniao, o texto que dis: E eis que a gliria do Senhor apareceu no meio da nuvem. E 9 Senhor falou ¢ Moisés, dizendo: Eu ouvi as murmuragées dos filhos de Israel etc. (Gb. 16,10-12), 99 14,34-18,25 CAPITULO 15 A visdo no monte Sinai 25. Quando faz referéneia as nuvens, as vezes, relampa- gos, trombeta e fumaga no monte Sinai, a Exeritura diz: Todo 0 monte Sinai fumegava, porém Deus descera sobre ele no meio da fogo; e dete, como de uma fornalha, se elevava fumo, e todo o monte eausava terror. Eo som da. trombeta ia aumentando pouco a pouco, e se espalhava mais ao longe, E Moisés falava, e Deus respondia-lthe (Ex 19,18-19}. E logo apés ter sido dada a Lei em dez manda- mentos, diz: E todo 0 povo ouvia os trovées e o som da trombeta, e via relémpagos ¢ o monte fumegando. E um pouce depois: O pows, pois, ficow longe: e Moisés aproxi- mou-se da escuridao, em que Deus estava, e o Senhor disse a Moisés... etc. (ib. 20,18-21), O quedizer desea citagio? Creio que nao hé ninguém tao insensato a ponto de aereditar que a fumaca, as nuyens e a escuriddo e outros fenémenos similares sejam a esséncia do Verbo e da Sabedoria de Deus — a qual é Cristo — ou do Espirito Santo. Nem mesmo os arianos ousaram afirmar isso a respeito do Pai. Portanto, tudo foi feito com a ajuda da criatura a servico do Criador e exposto aos sentidos humanos para atender de modo conveniente naquela circunstancia, A nao ser que 0 pen- samento carnal porque est escrito: e Moisds aproximou- se da nuvem.em que Deus estava, julgue que o govo via a nuvem e que Moisés, com olhos carnais, via dentro da nuvem o Filho de Detts, o qual og hereges, em seus devaneios, afirmam ter sido em sua esséncia. ‘Moisés teria visto, sem drivida,com osolhosfisicos, se pudesse ser vista com esses olhos nao 86 2 sabedoria de Deus, que é Cristo, mas a sabedoria de qualquer homem sAbio. Pelo fata de estar escrito a respeito dos ancidos de Israel queviramo Deus de Israel, eque debaixe de seus pés Liveo I 100 estava como que uma obra de pedra de safira, que se parecia com océu, quando esta serenc (Ex 24,10), seremos levados a crer que o Verbo, a Sabedoria de Deus, ocupou espaco em lugar terreno em sua esséncia, a qual se es- tende de um extremo ao outro e tudo dispie com suavida- de (Sb 8,1)? E que Verbo de Deus, por quem todas as coi- sas foram feitas (Jo 1,3), ¢ de talmodo mutavel que ora se contrai, ora se dilata? Que o Senhor purifique os coracoes deseus fiis de tais pensamentos! Pois, como vérias vezes Ja dissemos, todas essas coisas visiveise sensiveis nos si0 mostradas por meio de alguma criatura submetida a0 Criador, para significar a presenga de Deus invisivel e inteligivel, néo s6 do Pai, mas também do Filho e do Espirito Santo, do qual, pelo qual e no qual sao todas as coisas (Rm 11,36). Pois, desde a criagdo do mundo, pelas coisascriadas podemoschegar aoconhecimentodo invisivel de Deus, do sen poder e de sua divindade (ib, 1,20). 26, Pelo que diz respeito ao assunto que agora desenvol- ‘vemos, com relagdoa todos aqueles acontecimentos quese mostraram de mode to terrivel aos sentidos dos mortais, ignorose era o Pai, oFilho ou Bspirito Santo quem falava, Contudo, se é permitido conjeturar sem temeréria afir- macao, mas com humildade ehesitagdo, esese pode supor ter sido uma pessoa da Trindade, daria preferéncia ao Expfrito Santo. Pois, quandoa Lei foi entregue em tabuas de pedra, a Bscritura diz que foi escrita pelo dedo de Deus (Ex 31,18); ora, com essa expresso sabemos que o Evan- gelho designa o Espirito Santo (Le 41,20). Além do mais, cinqienta dias transeorreram do sa- crificio do cordeiro e da celebragdo da Péscoa até o dia em que esses fatos comecaram a acontecer no monte Sinai; assim come cingiienta dias se passaram da paixio do Senhor e de sua ressurrei¢io até o dia em que veio 0 Espirito Santo prometido pelo Filho de Deus. Ena sua ton 15,28-16,27 vinda, narrada nos Atos dos Apéstolos, ele apareceu em linguas de fogo que se distribuiram e foram pousar sobre cada um deles (At 2,1-4), Este acontecimento se asseme- Iha ao do Exodo, onde esta escrito: Tado o monte Sinai fumegava porque Deus tinha descido sobre ele no meio do fogo. E um pouco depois: O aspecto da majestade do Senhor, como fogo ardente sobre 0 cimo do monte na presenca dos jilhos de Israel. B, talvez, tadoissoaconteceu por que nem 0 Pai e nemo Filho poderiam ali se apresen- tar sem o Espirito Santo, por quem convinha ser escrita a Lei. Sabemos, no entanto, que Deus apareceu ndo na sua esséncia, que permanece invisivel ¢ imutavel, mas por meio da aparéneia de uma criatura. Com a minha capaci- dade, porém, nao chega a perceber por meio de algum sinal, qual das pessoas da Trindade apareceu. CAPITULO 16 Acaparigéio de Deus a Moisés 27. Ha outra passagem da Escritura que costuma con- fandir muitas pessoas, onde enté escrito: Eo Senhor falou a Moisés face a face, como se fale a um amigo; e um pouco depois diz o proprio Moisés: Se eu, pois, achei graga na tua presenca, mostra-mea tua face, poraeuteconhecer eachar igraga diante de teus olhos, # para ter certeza de que este é o feu povo; emais adiante disse Moisés ao Senhor:mostra- mea tua gloria (Ex 33,11,13.18). O que significa isto? Pelo fato de que em todos esse acontecimentos se pensasse que Deus era visto na sua eacéncia, aqueles desgragados hereges acreditavarn queo Filho de Deus era visivel em si endo mediante uma realidadecriada. E tendo que Moisés entrara na nuvem, parecia-Jhes que tinha entrada a fim de que — mostrando-se aos olhos do povo apenas um TAVRO IT 102 nevoeiro espesso — ele, no entanto, dentro da nuvem, ouvia as palavras de Deus como que contemplando sua face. Por que estd escrito: Bo Senhor falava a Moises face «a face, como quent fala a um amigo. Mas aqui lemos que ele proprio diz: Se eu, pois, achei graca na tua presenga, mostra-me a tua face? (Ex 33,13}. Moisés percebendo de fato, o que via corporalmente e implorava agora uma verdadeira visdo espiritual de Deus. Com efeito aquelas palavras, produziam-ce em vores, e de tal medo eram moduladasque pareciam as de um amigo falandoa um amigo. Mas, quem pode vera Deus Pai com os olhos do corpo? E quem pede ver com eases mesmos olhos aquele que no principio era o Verbo, e 0 Verbo estave em Deus, eo Verbo era Deus, por quem todas as coisas foram feitas? (Jo 1,13) E quem pode ver o Espirito da sabedoria com os alhos corporais? O que significa, pois: mostra-me tua face para eu te conhecer, senao: mostra-me tua esséncia? Se Moisés nao tivesce dito essus palavras, poder-se-ia desculpar aqueles insensatos que, devido as palavrase aos gesios antes referi- dos, pensam que a esséncia divina se manifestou a seus othos, Como, porézn, jd se demonstrou aqui de modo convin- cente, que ndo Ihe foi concedido, embora o desejasse, quem cusaria asseverar que, por meio das sobreditag formas apareeidas visivel mente, tenha sidecontemplada aesséncia de Deus, e nao uma criatura, a servico de Deus?!” CAPITULO 17 A viséo das costas de Deus. A fé na ressurreigéo de Cristo. Ainda a visto dos patricreas 28, Fo Senhor diase em seguida a Moisés: Nao poderds vera minha face, porque o homem néo pode ver-me eviver. Edisse mais: Bis um lugar juntode mim, etuestarés sobre 403 728 aquela pedra. E, quando passara minha gloria, eu te porei no alto da pedra ete cobrirei com a minha direita, até que tenhe passado. Depois tirarei a minka mao, ¢ tu me verds pelas costas; mas o meu rosto néo o poderds ver (Ex 83, 11- 23), Estas palavras costumarn ger interpretadas, com muito fundamento, como prefiguragdo da pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo — as costas significando sua carne, na qual nasceu da Virgem, morreue ressuscitou. Denomi- na-se parte posterior seja por causa da posterioridade de sua condigao mortal, seja porque se dignou assumila quase no fim dos séculos. Sua face, porém, é 2 condigio divina, na qual nao considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente (FI 2,6}, a qual condigao ninguém pode ver e continuar vivendo, Pode chamar-se também parte posterior porque, depois desta vida — na qual peregrinamos em diregdo ao Senhor (2Cor 5,6),¢ na qual, o corpo corruptivel pesa sobre 2 alma (Sb 9,15) —, voremos a Deus face a face, como diz 0 Apéstole (Cor 13,12). A respeito desta vida é que rezara os salmos: Sim, todo homem néioé mais que um sopre (81 38,6);e ainda: Por que nenhum vivente é justo nc tua presenca (Sl 142.2). Nesta vida, conforme Joao: O que nés seremos ainda nao se manifestou. Sabemos que por ocasiio deste manifesta- Go seremos semethuntes a ele, porque 0 veremos tal qual é(1 Jo 8,2), ov seja, depois desta vida, quando tivermos page tributo a morte erecebido a ressurreigao prometida. Enquanto peregrinamos, s¢ nos aprofundamos espi- ritualmente na Sahedoria de Deus, pela qual todas as coisas foram feitas, morreremos para os afetos carnais e, considerando morto para nés este mundo, morreremos também para este mundo e poderemos dizer com 0 Ap6s~ tolo: O mundo esté crucificado para mim @ eu para mundo (G16, 14). A respeito dessa morte diz outra vez: Se morrestes com Criste paraoselementos do mundo, por que Livro, 404 vos sujeitais, como se ainda vivésseis no mundo? (C1 2,20). Cota razéo, portanto, ninguém pode ver a face, isto é, a manifestagdo da Sabedorie de Deus e viver. Esta 6, pois, a beleza por cuja contemplagao suspira todo aquele que se empenha em amar a Deus com toda 0 coragdo, com toda a alma, com todo o entendimento, E pata chegaraessacontemplagdo, procura também edificar seu préximo e amé-lo como a si mesmo, pois, desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas (Mt 22,37-40). E isto esta também prefigurado no proprio Moisés. Depois de dizer pelo amora Deus queoinflamava: Seeu, pois, ackei graga na iua presence, mostra-me tua face paraeu te conhecere achar gragadiante de teus olhos, acrescentou logo por amor ao préximo: Para que ea saiba que este pova € teu (Ex 33,13). Esta ¢, portanto, aquela beleza que arrebata em desejos toda alma racional, dese- jos tanto mais ardentes quanto maia pures, tanta mais Puros quanto mais espirituais, tanto mais espirituais quanto mais mortos pera as coisas carnaig,'8 Mas enquanto “peregrinamos longe do Senhor e ca- minhamos & luz da fé © nao pela visio” (2Cor 5,6), vemos as costas de Cristo, ou seja, sua carne, A liz da mesma fé, permanecenda no sélido alicerce da fé simbolizado pela pedra, isto 6, a Igreja catélica, da qual esté escrita:e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (Mt 16,19). Tanto mais amaremos a face de Cristo e com mais seguranga a desejaremos ver, quanto msia profundamente reconhe- cermos nas suascostas —ou seja, na sua carne—oquanto ele nos amou por primeiro. 29, A fé na ressurreigdo dessa care nos salva ejustifica. Se creres em teu coragéo que Deus o ressuscitou dantre os mortos, serds salva (Rm 10,9), e ainda: O qual foi entregue elas nossasfaitas ressuscitado paraa nossa justificagéo (ib, 4,25). Por isso, o mérito de nossa fda ressurreigaa do. 105 17.29.80 corpo do Senhor. Que sua carne tenha morrido nomartirio da cruz, até seus inimigos créem, mas ndo créem que tenha ressuseitado. Nés, porém, crendo com toda firmeza a contemplamos como que permanecendo na solidez da pedra e, com a esperanga fundamentada na adocao, espe- ramos a redengao de nosso corpo (Rm 8,23). Ieso, porque esperamos que se verifique nos membros de Cristo, que somos nés, o que sabemos pela fé jé ter-se realizado nele, queé pose Cabeca, Dai o fate de ele néo querer, a nio ser quando tiver passado, que vejamos suas costas, ou seja, para que creiamos na sua ressurreicio. O terme hebraico “pascoa” signifiea “passagem”. Por isso, o evangelista Joao diz: Antes da festa da Pascoa, sabendo Jesus que che- goua sua horadepassar deste mundo parao Pai (Jo 13,1). 30. Os que créem na ressurreigio, mas ndo estdo na Igreja catélica, é sim em alguma heresia ou cisma, véem as costas de Cristo, porém, ndo de um lugar junto a ele. E 0 que significam as palavras pronunciadas pelo Senhor: Eis um lugar perto de mim, e tu estards sobre aquela pedra? (Ex 33,21). Qual o lugar terreno que estd junto do Senhor sendo o daquele que lhe esté contiguo espiritual- mente? Mas, que lugar naoest perto do Senhor, jaqueele atinge fortemente de uma extremidade a outra e dispée todas as coisas com suavidade (Sb 8,1), e do qual o céu 6 seu trono ea terra, oescabelo de seus pés, e que disse de simesmo: Que casa ¢ essa que u6s edificareis para mim, e que lugar ¢ esse do meu descansof Todas as coisas ndo as fee a minka mao? (Is 66,1). Neste caso, o lugar perto dele, no qual se permanece sobre a pedra, é a Igreja catéliea, onde aquele que cré na ressurreigao vé com vantagem Pasta do Senhor, ou seja, a sua passagem e suas enstas, isto 4, seu corpo” F tu estards, diz a Bseritura, sobre aquela pedra, quando passar a minke gloria. Com efeito, no momento em que LIVROH 106 passouagléria do Senhor nasua glorificagio, quando pela ressurreigao aubiu ao Pai, nés firmamo-nos sobre a pedra. Eo préprio Pedro firmou-se para pregat com seguranga— cle que trés vezes negara antes de se firmar. Jé estava colocado no alte da pedra por predestinagio, mas nada vie devido & mao do Senhor colocada sobre ele. Havia, pais, contemplade suas costes, mas o Senhor sinda néio havia pasado da morte para a vida, ainda nie fora glorificado pela ressurreigdo. BL Segue-se no Exodo: Eu te cobrirei com minha mio direita, até que tenha passado; depois tirarei a minka méo, ¢ tu me verds pelas costas (Hx 38,22). Por ai muitos israclitas, prefigurados em Moiaés, creram no Senhor depois de sua ressurreicaio, como se contemplassem suas costas, 20 ser retirada a mao de seus olhos. O evangelista recorda, nesse sentido, a profecia de Isaias: Embota 0 coragdio deste poua, ¢ endurace-Lhe os ouvidos, ¢ fecha-hes os olhos (Is 6,10). Finalmente, nao € fora de propésito aplicar-Ihes as palavras do salmo: Porque a tua méo pesava sobre mim, dia e noite (8131,4). Dedia, talvez, por no © terem reconhecide ao fazer milagres; de noite, pela morte apés a paixdo, quando 0 consideravam aniquilado e destruido como um homem qualquer. Mas depois que passara e puderam ver suas costas, ao ouvirem, na pregagao de Pedro, que era conveniente que Cristo morresse e ressuscitasse, sentiram 0 coragio transpassado pelo arrependimento. Verificou-se entao nos batizados o que esté escrito no principio desse mesmo salmo: Bem-aventurado aquele cuja inighidade foi per- doada e eujos pecados sto apagados (SI 31,1). Por isso, depois das palavras: Tua mao pesava sobre mim, como se Senhor passasse e retirasse a mao para poderem ver suas costas, vem a voz do arrempendido e confesso, rece- bendo a rerieséo dos peeados pela fé na ressurreigao: 107 ta1-32 Converti-me para ti na afligdo, como atravessado por um espinko, Eu te confessei o meu pecado e néo ocultei a minha cuipa. Eu disse: Confessarei ao Senhor a minha inigitidade, ¢ tu perdoaste @ malicia do meu pecado (Sl 31,4-5). ‘No entanto, nfo nos devemos deixar envolver pela espessa nebulosidade da carne a ponto de pensar que 0 roste do Senhor ¢ invisivel, mas que suas costas sao visiveis, visto ambas terem sido visiveis na sua condigao de servo. Longe de nés, porém, pensar 0 mesmo com relagao & natureza divina, ou que 0 Verbo de Deus ¢ Sabedoria de Deus tenha rosto e costas como o corpo humano, ou que seja mutével na forma ou no movimento, em relagao a lugar e a tempo. 82. Portanto, se naquelas vozes, de que fala o Exodo, nas outras manifestagées corporais, aparecia o Senhor Jesus Cristo, ou em umas se manifestava Cristo, como insinuaa circunstancia decertas passagens; ouem outras o Espirito Santo, como sugerem os textos citados, nao se pede concluir que Deus Pai nao tenha aparecide aos patriarcas, sob algume figura. Com efeito, muitas vistes aconteceram naqueles tempos sem indicacio precisa se era o Pai ou Filho ou Espirito Santo. Por alguns indicios provéveis, porém, seria muita temeridade afirmar que Deus Pai nunca aparecen aos patriarcas ou aos profetas, por meio de formas visiveis. Sustentaram essa opiniao 0s que nfo chegaram a compreender o que esté escrito sobre aunidade da Trindade: Ao Rei dos séculos, ao Deus incor- ruptivel, invistvel e tinico (1Tm 1,17), e: Aquele a quem nenhum homem viu nem pode ver (Ib 6,16), S80 palavras que a fé catélica auténtica refere a suma esséncia, divina e imutavel, Pai, Filho e Espirito Santo, o Deus tinico. As visées narradas, pois, aconteceram por meio de uma criatura mutavel depedente de Deus imutavel, para LuvRom 108 manifestar a presenga de Deus nao na sta eseéncia, mas de modo figurativo, conforme exigéneias das cireunstin- cias e dos tempos. CAPITULO 18 A visio de Daniel 33. Ignore como os noseos contraditores interpretam a apariedo de Daniel, em que vino Ancitio dos dias, do qual 0 Filho do homem, que assim se dignou ser por amor de nés, recebeu o reino; daqueles, pois, que Ihe diz nos salmos: Tu és meu filho, ew hoje te gerei; pede-me, eeu te darei as nagdes em heranca (SI 2,7.8), 0 qual sujeiton todas as coisas debaixo de seus pés (SI 8,7). Be portanto, 0 Pai, entregando o reino, eo Filho recebendo-o, aparece- ram a Daniel em forma corporal, como entio dizem eles que o Pai nunca apareceu aos profetas e que ele é 0 Ainico invisivel, que nenhum dos homens viu e nem pode ver? (1Tm 6,16).24 Eis como Daniel narra aaparigao: Estava ew atentoao que via, até que foram postos uns tronos, e a Ancitio dos digs sentou-se; a sua veste era branca como a neve, ¢ 0s cabetos de sua cabega como a pura 1a; 0 seu trono era de chamas de fogo, eas rodas deste trono um jogo ardente. De diante dele safa um irpetuoso rio de fogo: eram milharee de milhares os que 0 serviam, e mil milhoes os que assistiam diante dele. Assentou se pare julgar, e foram abertos os livros ete. E um pouco depois: Eu estava, pois, observando estas coisas durante a viséo noturna, eeis que vi uma personagem que parecia o Filho de homem, que vinha com as nuvens do céu, e que chegow até o Ancidio dos dias; ¢ 0 apresentaram diante dele. E ele deu-the o poder, a honra e 0 reino; € todos os povos, tribos ¢ linguas 0 109 18,33-84 serviram; o seu poder é um poder eterno que nao lhe serd tirado; ¢ 4 seu reino nao. serd jamais destrutdo{Dn 79-14). Eis o Pai entregando e o Filho recebendo o reino sempiternoe ambos esto em forma visivel na presenga do profeta, Portanto, nfo é uma crenca infundada que Deus Pai costumasse aparecer desse modo aos mortais. 84. A nao ser que alguém diga que o Pai nao € visivel porque apareceu em sonhes ao profeta, e que 0 Filho e o Espirito Santo sao visiveis por terem aparecide a Moisés em estado de vigilia. Coma se Moisés tivesse visto o Verbo ¢.a Sabedoria de Deus com olhos fisicos, ou comose acaso pudeage ser visto o espirito humano que vivifica a carne, ouo ser corpéreo denominade vento. Assim sendo, muito menos pade ser visto o Espirito de Deus que transcende as mentes de todos os homens e anjos, pela inefavel supe- rioridade de sua esséncia. Ou haveré alguém que incorra em erro tal que ouse dizer que 0 Filho e o Espirito Santo so vistveis aos homens em estado de vigilia, mas que 0 Pai se manifesta apenas em sonhos? Por que aplicar somente ao Pai as palavras: o qual nenhum dos homens vin ¢ nem pode ver? (1'T'm 6,16). Quando os homens estéo dormindo, deixam de ser ho- mens? Aquele que pode criar semelhanca de corpo parase manifestar em sonhos por meic de visées, nao teria poder para formar uma eriatura corporal para se manifestar aos quevelam? Atenhamo-nos & certeza de que a esséncia divina, pela qual Deus 6 0 que 6, nao pode manifestar-se emsonhosmediante nenhuma forma corporal, ¢tampouco a alguém em estado de vigilia. Isso com respeito no apenas ao Pai, mas também ao Filho e av Espirito Santo. Aqueles que se entusiasmam com as visbes emestado de vigilia e créem que o Pai nao apareceu aos olhos humanos, mas somente o Filho 01 o Espirito Santo — deixando de lado o grande mimero de testemunhos dos

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