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a vista.

Só tens compaixão por ti; conseqüência: teu hori-  


zonte é muito estreito. Teu amor é prisioneiro de ti
 
mesmo. Liberta-o, e já não serás infeliz.
 
Renuncia às tuas nocivas fraquezas e à tua insaciável sede
de bem-estar; ataca-as por todos os lados! Condena à  
morte o teu apetite de prazer. Não lhe deixes ar para res-  
pirar. Sê rigoroso para contigo; recusa a teu "eu" carnal as
migalhas de prazer que ele reclama obstinadamente. Pois  
o hábito se fortifica pela repetição dos atos; morre, porém,
se não for alimentado.  

Mas, toma muito cuidado para não fechar ao mal a porta Caminho dos Ascetas 
principal, deixando entreaberta a porta dos fundos, por
onde ele poderá esgueirar-se, com habilidade, sob outra Tito Colliander 
forma.

De que serviria, por exemplo, dormir no chão, se, ao


mesmo tempo, procurasses a satisfação em banhos quen-
tes? Para que deixar de fumar, se dás livre curso ao desejo
de tagarelar? Qual o benefício de não tagarelar, se lês ro-
mances cativantes? E de que servirá abster-te de ler, se
deixas em liberdade a imaginação, e te deixas embalar por
doces devaneios?

Tudo isso não passa de diferentes formas de uma só e


única realidade: a insaciável sede de satisfazer tua neces-
sidade de gozo.
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    6. É preciso extirpar o desejo do gozo

A Escritura diz que apenas um pequeno número encontra


o caminho estreito que conduz à vida; e que nos devemos
esforçar para entrar no caminho estreito, "... pois eu vos
digo que muitos procurarão entrar e não conseguirão" (Lc
13:24).

Devemos procurar a causa exatamente na repugnância


que temos em nos perseguir. Dominamos, talvez, os ví-
cios mais graves e mais perigosos, mas paramos por aí.
Deixamos as nossas pequenas fantasias se desenvolverem
livremente, como bem entenderem. Não cometemos rou-
bos nem trapaças; porém, os mexericos são a nossa delí-
cia. Não nos embriagamos, mas abusamos do chá ou do
café. Nosso coração continua repleto de desejos. As raízes
não foram extirpadas, e nós vagamos ao acaso na floresta
virgem que cresceu no solo fértil da ternura que sentimos
por nós mesmos.

Ataca de frente essa ternura para contigo, pois é ela a raiz


de todos os males de que sofres. Se não tivesses tanta pi-
edade por ti mesmo, perceberias imediatamente que és tu
que fazes a tua própria infelicidade, porque te recusas a
compreender que os males que te acontecem são, na rea-
lidade, uma coisa boa. A ternura por ti mesmo te escurece

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O homem espiritual pensa espiritualmente; sua esperança Sumário
é ouvir um dia os anjos se alegrarem "... por um só peca-
dor que se converte" (Lc 15:10), um pecador que não é
outro senão ele mesmo. Que sejam esses os teus sentimen- 1. Decisão inicial e perseverança ................ 5 
tos; trabalha animado por essa esperança, pois o Senhor 2. A insuficiência das forças humanas ........ 7 
nos deu este preceito: "... deveis ser perfeitos como o
vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5:48), e "Buscai, em pri- 3. A horta do coração ............................... 10 
meiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça" (Mt 6:33). 4. Um combate silencioso e invisível ........ 12 

Não te concedas repouso algum, nenhuma trégua, até que 5. A renúncia de si mesmo e a purificação do coração


tenhas condenado à morte essa parte de ti mesmo que pro-  .................................................................. 14 
vém da natureza carnal. Toma a resolução de descobrir em 6. É preciso extirpar o desejo do gozo ...... 19 
ti toda manifestação do homem animal, e de persegui-lo
7. É necessário transferir ao Cristo o amor por nós 
implacavelmente. "Pois a carne tem aspirações contrárias
ao espírito e o espírito contrárias à carne" (Gl 5:17). mesmos .................................................... 22 
8. É necessário estar sempre vigilante contra as 
Mas se temes tornar-te justo a teus próprios olhos, traba- repetidas ofensivas do inimigo ................. 26 
lhando para a tua salvação; se temes ser vencido pelo or-
gulho espiritual, examina-te a ti mesmo, e diz que aquele 9. A vitória sobre o mundo ....................... 30 
que teme tornar-se justo a seus próprios olhos, é cego. 10. Os pecados dos outros e os nossos .... 34 
Porque não vê que ele é justo a seus próprios olhos.
11. O combate interior é apenas um meio a serviço de 
um fim ...................................................... 37 
12. A obediência ....................................... 42 
13. Progresso e profundidade .................. 45 
14. Humildade e vigilância ....................... 47 
15. A oração ‐ I ......................................... 54 
18  3 
16. A oração ‐ II ........................................ 57  saem de dentro do homem, e são elas que o tornam im-
17. A oração ‐ III ....................................... 61  puro" (Mc 7:21-23). Por isso, ele exorta assim os fariseus:
"... limpa primeiro o interior do copo para que também o
18. A oração ‐ IV ....................................... 65  exterior fique limpo!" (Mt 23:26).
19. A sobriedade do corpo e do espírito: condição da 
Pondo em prática esse preceito de começar pelo interior,
oração ...................................................... 68 
devemos ter presente em nosso espírito que não é, de
20. O jejum ............................................... 72  modo algum, por nós mesmos, que purificamos o nosso
21. É preciso evitar o exagero .................. 75  coração. Não é para a satisfação pessoal que limpamos e
polimos o quarto de hóspedes, mas sim para que o nosso
22. Do uso das realidades materiais ........ 78 
hóspede se sinta bem. Nós nos perguntamos: "Será que
23. Os momentos de escuridão ............... 81  vai achá-lo a seu gosto? Irá ficar?" Todo o nosso pensa-
24. A respeito de Zaqueu ......................... 83  mento é para ele.

25. A Oração de Jesus .............................. 88  Depois nos retiramos, ficamos em segundo plano, sem es-


26. A pérola de alto preço ........................ 93  perar resposta.
  Como explica Nicétas Stéthatos, existem para o homem
três estados: o homem carnal, que quer viver para o pró-
prio prazer, mesmo em detrimento dos outros; o homem
  natural, que deseja agradar ao mesmo tempo a si mesmo
e aos outros; o homem espiritual, que quer agradar só a
Deus ainda que seja em detrimento de si próprio.

O primeiro está abaixo da natureza; o segundo está con-


forme à natureza; o terceiro está acima da natureza: é a
vida no Cristo.

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Talvez te perguntes se isso é realmente necessário. Os 1. Decisão inicial e perseverança
santos Padres respondem com outra pergunta: Crês
mesmo que seja possível encher um vaso com água pura,
sem despejar primeiro a água suja que nele se encontra? Se queres salvar tua alma e conseguir a vida eterna, sacode
Ou gostarias de receber um hóspede amado, num quarto o teu torpor, faz o sinal da cruz e diz: «Em nome do Pai,
abarrotado com toda espécie de velharias e de objetos pos- e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.»
tos de lado? Não. "Todo o que tem esperança de ver o Se-
nhor tal como ele é, purifica-se a si mesmo," diz o após- Não se obtém a fé pela reflexão, mas pela ação. Não são
tolo São João (1Jo 3:3). as palavras e a especulação que nos ensinam quem é Deus,
mas a experiência. Para deixar entrar o ar fresco, é preciso
Purifiquemos, pois, o nosso coração! Joguemos fora todas abrir a janela; para bronzear a pele, é preciso expor-se ao
as velharias empoeiradas que aí se acumulam; lavemos o sol. Para adquirir a fé, é a mesma coisa; como dizem os
chão com escova, limpemos os vidros e abramos as jane- santos Padres, não se chega ao objetivo, permanecendo
las, para que o ar e a luz entrem no quarto, onde queremos confortavelmente sentado, esperando. Imitemos o filho
fazer um santuário para o Senhor. Troquemos enfim de pródigo: "Partiu, então, e foi ter com o pai" (Lc 15:20).
roupa, para que o nosso velho cheiro de bolor já não fique
em nós, e para que não sejamos lançados fora (cf. Lc Qualquer que seja o peso e o número de cadeias que te
13:28). Eis o nosso labor de cada dia e de cada instante. acorrentam à terra, nunca é tarde demais. Não é sem mo-
tivo que está escrito que Abraão tinha setenta e cinco anos
Fazendo isso, estaremos apenas cumprindo o que o Se- quando partiu; e os operários da undécima hora receberam
nhor nos ordenou por seu santo apóstolo Tiago: "... santi- o mesmo salário que os que trabalharam desde a manhã.
ficai os vossos corações" (Tg 4:8). Pede-nos o apóstolo
Paulo: "... purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do E também, nunca é excessivamente cedo. Nunca é cedo
espírito" (2Cor 7:1). Diz o Cristo: "Com efeito, é de den- demais para apagar um incêndio na floresta. Gostarias de
tro do coração dos homens que saem as intenções malig- ver tua alma devastada e queimada?
nas: prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambi-
No batismo, recebeste a ordem de te lançares num com-
ções desmedidas, maldades, malícia, devassidão, inveja,
bate invisível contra os inimigos da tua alma. Põe mãos à
difamação, arrogância, insensatez. Todas estas coisas más
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obra. Há bastante tempo, usas de subterfúgios. Mergu- desejos. Não creias que se possa separá-los uns dos ou-
lhado na negligência e na preguiça, desperdiçastes um tros: eles se prendem como os elos de uma corrente, como
tempo precioso. Só te resta recomeçar do princípio, por- as malhas de uma rede.
que lamentavelmente deixastes que se empanasse a pu-
reza que recebestes no batismo. Por isso, de nada serve atacar os vícios principais e os
maus hábitos que te opõem forte resistência, se ao mesmo
Começa, pois, a trabalhar desde já, sem demora. Não adies tempo não te esforças por vencer as pequenas fraquezas
a tua decisão para hoje à noite, para amanhã, para mais "inocentes": pequenas gulas, tentação de falar, curiosi-
tarde, "quando eu tiver terminado o que preciso fazer dade, hábito de se meter nos assuntos dos outros. Todos
agora." Um atraso pode ser fatal. os nossos desejos, de fato, grandes ou pequenos, têm o
mesmo fundamento: o nosso hábito constante de satisfa-
Não; é agora, no mesmo instante de tomar a decisão, que zer apenas a nossa própria vontade.
deves mostrar pelos teus atos, que te despedistes do teu
velho "eu" e que acabas de começar uma vida nova, à pro- É, portanto, a vontade própria que deve ser condenada à
cura de um novo objetivo, seguindo novos caminhos. Le- morte. Desde o pecado original, nossa vontade está exclu-
vanta-te, pois, corajosamente, e diz: "Senhor, concedei- sivamente a serviço do nosso próprio "eu." Assim, o ob-
me que comece agora. Ajudai-me!" Porque, acima de jetivo do combate é a morte da vontade própria. É preciso
tudo, tens necessidade da ajuda de Deus. começar sem demora, e prosseguir na luta sem descanso.
Tens vontade de fazer uma pergunta? Não a faça! Tens
Persevera em tua decisão, e não olhes para trás. Que o muita vontade de tomar duas xícaras de café? Toma ape-
exemplo da mulher de Ló te sirva de lição: ela se transfor- nas uma! Tens a tentação de olhar pela janela? Não olhes!
mou em coluna de sal, por ter olhado para trás (cf. Gn Tens desejo de visitar alguém? Fica em casa.
19:26). Abandonastes o homem velho: não retomes o que
é desprezível. Como Abraão, ouviste a voz do Senhor que Isso é perseguir a si mesmo. Através desse meio, com a
te disse: "Deixa teu país, tua parentela e a casa de teu pai, ajuda de Deus, faz-se calar a voz ruidosa da própria von-
para o país que te mostrarei" (Gn 12:1). De agora em di- tade.
ante, é nesse país que se deve concentrar toda a tua aten-
ção.
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5. A renúncia de si mesmo e a purificação do coração 2. A insuficiência das forças humanas

Desarmado, fraco e desprovido de poderes, empreende a Dizem os santos Padres, todos a uma só voz: "A primeira
mais difícil das tarefas: vencer teus próprios desejos ego- coisa que deves inculcar no espírito é que nunca, de modo
ístas. É exatamente isso a "perseguição de si mesmo" de algum, te deves apoiar em ti mesmo. O combate que vais
que depende, finalmente, o resultado do teu combate; enfrentar é extraordinariamente árduo, e as forças huma-
pois, enquanto a tua vontade egoísta dominar, não poderás nas, sozinhas, são de todo insuficientes para conduzi-lo.
dizer ao Senhor com coração puro: "Que seja feita a tua Se confias em ti mesmo, serás derrubado de imediato, e
vontade." Se não te podes desfazer da tua própria gran- perderás toda a vontade de continuar a luta. Só Deus te
deza, não poderás abrir-te à verdadeira grandeza. Se te pode dar a vitória, segundo o teu desejo."
agarras à própria liberdade, não poderás tomar parte na
verdadeira liberdade, que é o reino de uma única vontade. Para muita gente, a decisão de não colocar em si mesmo
a confiança é um sério obstáculo, que os impede de come-
O mais profundo segredo dos santos é este: não procures çar uma vez por todas. É necessário perseverar, sob pena
a liberdade, e a liberdade te será dada. de abandonar qualquer esperança de ir mais longe. Com
efeito, como poderá um homem receber conselhos, forma-
A terra não produzirá senão cardos e espinhos, diz a Es- ção e ajuda, se pensa que conhece tudo, pode tudo, e não
critura. É com o suor do seu rosto, com muito sofrimento, tem necessidade alguma de conselhos? Através de seme-
que o homem deve cultivá-la. Esta terra é o homem lhante muro de suficiência, nenhum raio de luz consegue
mesmo, sua própria natureza. Os santos Padres aconse- passar. "Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e in-
lham a começar pelas coisas pequenas; pois, como diz teligentes na sua própria opinião!" (Is 5:21); e São Paulo
Santo Efrém, o Sírio, como poderias apagar um grande nos dá este conselho: "... não vos deis ares de sábios" (Rm
incêndio antes de aprender a abafar um fogo de pequenas 12:16). O reino dos céus foi revelado aos pequeninos, mas
proporções? Se queres ser capaz de resistir a uma paixão continua oculto aos sábios e aos doutores (cf. Mt 11:25).
violenta — dizem os santos Padres — abate os pequenos
Devemos, portanto, nos despojar dessa confiança imode-
rada que temos em nós mesmos. Muitas vezes, ela está
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arraigada em nós tão profundamente, que já nem percebe- De agora em diante, deverás pensar que tudo o que te
mos o domínio que exerce sobre nosso coração. O nosso acontece, importante ou não, te é enviado por Deus, para
egoísmo, a preocupação com a nossa pessoa, o amor pró- ajudar-te no teu combate Só ele sabe o que te é necessário,
prio, são precisamente as causas de todas nossas dificul- e o que te falta no momento presente: adversidade ou
dades, de nossa falta de liberdade interior na provação, de prosperidade, tentação ou queda. Nada acontece por
nossas contrariedades, de nossos tormentos da alma e do acaso; não há nenhum acontecimento do qual nada tenhas
corpo. que aprender. Deves compreender bem isso, desde já, pois
é assim que aumentarás a tua confiança no Senhor, que
Olha um pouco para ti mesmo, e verás a que ponto estás escolhestes seguir.
aprisionado pelo desejo de dar prazer ao teu "eu," e so-
mente a ele. Tua liberdade está presa pelos laços estreitos Os santos nos dão ainda um outro conselho para a cami-
do amor por ti mesmo; assim, és balançado ao acaso, nhada: considera-te uma criança que apenas começa a fa-
como um cadáver inconsciente, da manhã à noite. "Agora, lar, e que esteja dando os primeiros passos. Toda a tua sa-
estou com vontade de beber," "agora, estou com vontade bedoria segundo este mundo, e todo o teu conhecimento,
de sair," "agora estou com vontade de ler o jornal." A cada não têm utilidade para o combate que te espera; tampouco
instante, teus próprios desejos te conduzem como por te servem a situação social e os bens. Tudo o que se pos-
meio de uma rédea; e, se algum obstáculo se coloca no sui, e que não é empregado no serviço do Senhor, é um
caminho, imediatamente perdes a calma, sob o efeito da fardo; um conhecimento do qual o coração não partilhe é
contrariedade, da impaciência ou da cólera. astéril e, logo, nocivo, uma vez que é pretensioso. Cha-
mam-no "ciência simples," porque é desprovido de calor
Se sondares as profundezas de tua consciência, descobri- e não alimenta o amor. Deves, pois, abandonar toda a tua
rás as mesmas coisas. O sentimento de desagrado que ex- ciência, e tornar-te ignorante, para seres sábio. Deves tor-
perimentas, quando alguém te contradiz, possibilita facil- nar-te pobre para seres rico, e fraco para seres forte.
mente essa verificação. Vivemos, assim, como escravos.
Mas "... onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liber-
dade" (2Cor 3:17).

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4. Um combate silencioso e invisível Que proveito poderás encontrar em gravitar assim, cons-
tantemente, em torno do teu "eu"? Não nos ordenou o Se-
nhor que amássemos ao próximo como a nós mesmos, e
Agora, que sabemos onde se deve travar o combate que que amássemos a Deus acima de todas as coisas? Mas, nós
acabamos de começar, e o que está em jogo, resta-nos o fazemos? Não estamos, ao contrário, sempre ocupados
compreender por que o chamam "combate invisível." É em pensar no nosso bem-estar?
que ele se desenvolve inteiro em nosso coração, em silên-
cio, bem no fundo de nós mesmos. Esse particular também Convence-te, pois, de que nada de bom pode vir de ti pró-
é importante, e os santos Padres insistem sobre ele com prio. E se algum pensamento desinteressado despertar em
veemência: "Conserva os lábios bem fechados sobre o teu ti, podes estar certo de que não vem de ti, mas que deriva
segredo!" Se abrirmos a porta durante um banho de vapor, da Fonte da Bondade, e que foi depositado em ti; é um
o calor vai-se embora, e o tratamento perde a eficácia. dom daquele que dá a vida. Do mesmo modo, o poder de
fazer passar ao ato esse bom pensamento, não vem de ti,
Assim pois, não fales a ninguém da tua recente decisão. mas te é concedido pela Santíssima Trindade.
Não digas nada da tua nova vida, nem das experiências
que fazes, ou daquilo com que, um dia, esperas ser favo-
recido. Deves tratar disso só entre Deus e ti, exclusiva-
mente. A única exceção deve ser teu pai espiritual.

O silêncio é necessário, porque falar com facilidade de


seus próprios assuntos só pode incitar à preocupação con-
sigo mesmo, além de alimentar a confiança em si. Ora, são
tendências que devem ser reprimidas, antes de tudo. Gra-
ças ao silêncio, cresce a nossa confiança naquele que vê o
que está escondido; graças ao silêncio, falamos àquele que
ouve sem necessidade de palavras. Procura apenas dirigir-
te a ele; é nele que deve estar a tua confiança. Estás anco-
rado na eternidade, e na eternidade, toda palavra emudece.
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3. A horta do coração mundo e não tem fim. Nenhuma autoridade terrestre tem
poder sobre ela, e a descobrimos no fundo do coração.

A vida nova, que acaba de começar, tem sido muitas vezes "Persegue-te a ti mesmo, diz santo Isaac, o Sírio, e teu ini-
comparada à de um agricultor. O solo que ele cultiva é um migo será derrotado só pela tua aproximação. Faze a paz
dom de Deus, como as sementes, o calor do sol, a chuva e contigo, e contigo farão a paz o céu e a terra. Esforça-te
a força que faz crescer os legumes. Mas o trabalho lhe foi para entrar na tua cela interior, e verás a morada celeste,
confiado. pois elas são a mesma e única coisa: penetrando em uma,
contemplarás também a outra. A escada do Reino está em
Se o agricultor quiser obter uma colheita abundante, deve ti, escondida no teu coração. Se te desfizeres do fardo de
trabalhar de sol a sol, escavar, afofar a terra, regar, podar, teus pecados, descobrirás em ti o atalho que tornará pos-
pois suas culturas são ameaçadas por muitos perigos que sível a tua ascensão."
comprometem a colheita. Deve trabalhar sem descanso,
estar sempre alerta, sempre preparado para o que der e A morada celeste, de que fala o santo, é um outro nome
vier, sempre pronto a intervir. E apesar de tudo isso, afinal da vida eterna. Também é chamada Reino dos céus, Reino
de contas, a colheita depende inteiramente do tempo e dos de Deus, ou simplesmente Cristo. Viver no Cristo, é viver
elementos, isto é, de Deus. na vida eterna.

A horta que nos dispusemos a cultivar, e pela qual deve-


mos velar, é o nosso próprio coração; a colheita é a vida
eterna.

Ela é eterna porque não é medida pelo tempo e pelo es-


paço; não está ligada às circunstâncias exteriores. É a vida
verdadeira, uma vida de liberdade, de amor, de misericór-
dia e de luz. Não tem nenhum limite, e por isso é eterna.
É uma vida espiritual, que transcorre numa esfera espiri-
tual. É uma nova dimensão da existência. Começa neste
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A liberdade é o objetivo do homem; porém, ele não a pode Precisas decidir-te a extirpar o simples desejo de possuir
dar a si mesmo, nem recebê-la do seu próximo; ele só a objetos agradáveis, de experimentar um sentimento de
obterá em Deus, diz o bispo São Teófano. bem-estar, de ter conforto. Deves aprender a amar as con-
trariedades, a pobreza, o sofrimento, as privações. Deves
Na verdade, o convite à liberdade toma esta forma: "Ar- aprender a seguir os preceitos do Senhor: não dizer coisas
rependei-vos!" E o Senhor nos dirige este chamado: inúteis, não se vestir com excessivo aprimoramento, obe-
"Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do decer sempre à autoridade, não olhar uma mulher com
vosso fardo e eu vos darei descanso" (Mt 11:28). De que concupiscência, não ter acessos de cólera, etc... Todos es-
cansaço se trata? Daquele que se sofre para assegurar a ses preceitos nos foram dados para que os pratiquemos;
própria felicidade temporal? E qual é esse fardo? O dos não para que nos comportemos como se eles não existis-
cuidados e preocupações terrenas? De modo nenhum, res- sem. Senão, eles não nos teriam sido impostos pelo Deus
pondem os santos. Por isso o Senhor diz ainda: "Tomai de misericórdia.
sobre vós o meu jugo e aprendei de mim — de mim, que
jamais pensei em meu bem-estar temporal, nem levei o "... Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo"
peso dos cuidados deste mundo, durante a minha vida na (Mt 16:24): o Senhor confia, assim, na vontade de cada
terra." um ("se alguém quer") e ao esforço pessoal ("negue-se a
si mesmo").
Mas, o que obterão os que sofrem por sua salvação e que
se cansam sob o peso da oposição do mundo, interior e
exteriormente ao mesmo tempo? Qual será a parte atribu-
ída aos que tomam sobre si mesmos o jugo do Cristo, que
vivem como ele viveu, e que aprendem, não dos homens,
nem dos anjos, nem dos livros, mas do Senhor mesmo?
Que são instruídos por sua própria vida, pela luz e pela
ação, no fundo de si? Que podem dizer, também eles: sou
doce e humilde de coração, não me tenho em alta conta,
nem ao que posso dizer ou fazer? Todos estes encontrarão
o repouso para sua alma. Irão recebê-lo do próprio Senhor.
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7. É necessário transferir ao Cristo o amor por nós dera um prisioneiro entre outros prisioneiros; a seus pró-
mesmos prios olhos, ele não se separa de seus companheiros: é um
pecador entre os pecadores, nas entranhas da terra. Porém,
enquanto os outros, resignados e sem esperança, dormem
"Se sairmos de nós mesmos, o que encontraremos?" per- ou jogam baralho para passar o tempo, ele avança e traba-
gunta o bispo Teófano, o Recluso. E ele próprio dá, ime- lha. Encontrou um tesouro, mas escondeu-o de novo (cf.
diatamente, a resposta: "Encontramos Deus e o próximo." Mt 13:44); ele leva, escondido dentro de si, o Reino de
Essa é a verdadeira razão pela qual a negação de si mesmo Deus, isto é, o amor, a fé, a esperança de chegar um dia
é uma condição — e a principal — que deve ser cumprida ao ar livre, fora. No momento, sem dúvida, ele só entrevê
por quem procura a salvação no Cristo: é assim que o cen- a liberdade como num espelho (cf. lCor 13:12), mas em
tro de gravidade de nosso ser se pode deslocar de nós para esperança já está livre: "Pois fomos salvos em esperança"
o Cristo, que é, a um só tempo, Deus e nosso próximo. (Rm 8:24). No entanto, o Apóstolo acrescenta: "e ver o
que se espera, não é esperar," para compreendermos me-
Isso significa que toda a solicitude, todo o cuidado, todo lhor o alcance do que precede. Com efeito, quando o pri-
o amor que prodigalizamos a nós mesmos é, pois, sem que sioneiro obtém a liberdade e a vê face a face, não é mais
percebamos, completa e naturalmente transferido para um prisioneiro entre os outros, sobre a terra. Ele se encon-
Deus e, por ele, para o nosso próximo. Só então é que po- tra, então, no mundo da liberdade, daquela liberdade na
derás fazer o bem de modo que "... não saiba a tua mão qual Adão fora criado, e que nos foi restituída no Cristo.
esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fi-
que em segredo" (Mt 6:3-4). Como o prisioneiro, já somos livres em esperança; mas a
realização de nossa salvação situa-se para além de nossa
Até que isso se realize, não será possível estar "... repletos vida terrena. Só então poderemos dizer definitivamente:
de todo conhecimento e em grau de vos poder admoestar "Estou salvo!" De fato, o mandamento de ser perfeito
mutuamente" (Rm 15:14), de modo real, não apenas ma- como nosso Pai celeste é perfeito (cf. Mt 5:48), não pode
terial. Todas as nossas tentativas nesse sentido são defor- ser plenamente cumprido no homem enquanto permanece
madas na base, porque são "nossas" e procedentes do neste mundo. Logo, por que nos foi dado? Os santos res-
nosso desejo, de nos agradar. É particularmente necessá- pondem: Para que possamos começar desde já o nosso tra-
rio compreender bem isto; senão, corremos o risco de nos balho, mas tendo diante dos olhos a eternidade.
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batismo. Sem uso, não terão nenhum proveito. Porém, uti- desviar com facilidade, entrando pelo caminho de um pre-
lizados com discernimento, permitirão que abras o cami- tenso devotamento aos outros e em obras bem intenciona-
nho para a liberdade e para a luz. das, mas que nos conduzem inevitavelmente ao lodaçal de
nossa própria satisfação.
"... é preciso passar por muitas tribulações para entrar no
Reino de Deus" (At 14:22). Devemos, como o homem Por conseguinte, não te ocupes demais com vendas de ca-
preso no subterrâneo, renunciar a descansar, a dormir, a ridade, reuniões de obras assistenciais e de outras ativida-
aproveitar os prazeres da vida; como ele, devemos perma- des semelhantes. A agitação, sob todas as suas formas, é
necer alertas e utilizar, da melhor forma, todos os instan- um temível veneno. Sonda o teu coração, examina-te com
tes que os outros homens passam dormindo, ou ocupados cuidado, e reconhecerás que muitas dessas atividades em
com ninharias. Não devemos largar a pá e a picareta, que que parece que nos doamos aos outros, procedem, na rea-
representam a oração, o jejum, as vigílias, e todas as ou- lidade, da necessidade de atordoar nossa consciência; sua
tras atividades pelas quais pomos em prática tudo quanto verdadeira origem é a nossa invencível tendência de pro-
o Senhor nos ordenou (cf. Mt 28:20). E, se nosso coração curar o que nos agrada e nos satisfaz (cf. Rm 15:1).
encontra dificuldade em aceitar tal disciplina, devemos
empregar toda a força de vontade para obrigá-lo a se su- Não; o Deus de amor, de paz e de total sacrifício não pode
jeitar, se quisermos realizar nosso propósito. estar onde se procura a própria satisfação, no barulho e na
agitação, mesmo sob nobres pretextos. Este é um princí-
Que recompensa terá nosso prisioneiro? Pode-se dizer que pio de discernimento: se a paz do teu espírito se perturba;
terá alguma recompensa? se estás desanimado ou um pouco irritado, porque uma
razão qualquer te obrigou a renunciar a uma boa obra, para
A recompensa será o seu próprio labor; ela consiste no a qual tinhas projetos, isso mostra que a sua origem era
amor que ele sente em si mesmo pela liberdade, na espe- equívoca.
rança e na fé que o fizeram tomar nas mãos as ferramen-
tas. À medida que ele trabalha, aumentam a esperança, o Talvez te perguntes: por quê? Os homens que têm experi-
amor e a fé: quanto mais ativo for e menos esforço des- ência da vida espiritual responderão que os obstáculos e
perdiçar, mais aumenta a sua recompensa. Ele se consi- as oposições exteriores só podem atingir os que não entre-
garam a Deus a própria vontade. É impensável que Deus
38  23 
tenha pela frente um obstáculo. Ora, um ato realmente de- 11. O combate interior é apenas um meio a serviço de
sinteressado não é "meu," mas sim de Deus; nada pode um fim
impedir a sua realização. São apenas os meus próprios
projetos, meus próprios desejos — estudar, trabalhar, des-
cansar, comer, prestar serviço ao meu próximo — que po- Ao te desfazeres das cadeias exteriores, tu te livras igual-
dem ser contrariados por circunstâncias exteriores. Então, mente dos laços interiores. Quando te libertas das preocu-
eu me entristeço. Mas, para quem descobriu o caminho pações de fora, teu coração também fica livre dos sofri-
estreito que conduz à vida, isto é, a Deus, só resta um obs- mentos de dentro. Por conseguinte, o rude combate, que
táculo possível: sua própria vontade pecadora. Se quer fa- és obrigado a travar, não passa de um meio: como tal, não
zer alguma coisa, mas não pode levá-la a bom termo, por é nem bom, nem mau; os santos o têm muitas vezes com-
que se entristecerá? Aliás, ele já não faz projetos (cf. Tg parado a um tratamento médico. Embora seja muito pe-
4:13-16). noso sujeitar-se a ele, não deixa de ser um simples meio
de recobrar a saúde.
Mas este é um outro segredo dos santos.
Lembra-te sempre de que não realizas nada de virtuoso,
Não te iludas. Um cristão deve "... andar como ele (Cristo) esforçando-te para te dominares. De fato, que virtude há
andou" (1Jo 2:6), ele, que jamais procurou a sua vontade em tomar pá e picareta para tentar sair de uma galeria sub-
(cf. Jo 5:30), mas nasceu sobre a palha, jejuou quarenta terrânea, onde se tenha caído por falta de atenção? Não é
dias, passou longas noites em oração, curou doentes, ex- natural, pois, utilizar as ferramentas entregues por alguém
pulsou demônios, não tinha onde pousar a cabeça, e final- de fora, para escapar dessa atmosfera sufocante e tene-
mente foi cuspido, flagelado e crucificado. brosa? O contrário não seria pura estupidez?
Pensa, o quanto estás longe dele! Pergunta continuamente Essa parábola te pode ensinar a sabedoria. As ferramentas
a ti mesmo: Passei uma única noite velando e orando? Je- são os instrumentos da salvação, os mandamentos do
juei um só dia? Expulsei um único demônio? Deixei-me Evangelho, os santos sacramentos da Igreja, que foram
insultar e bater sem resistir? Realmente crucifiquei a mi- postos à disposição de cada cristão por ocasião do santo
nha carne (cf. Gl 5:24)? Renunciei a buscar a minha von-
tade?
24  37 
O abatimento desaparece; pois, como poderá ser derru- Tenhas sempre presente, tudo isso, em teu espírito.
bado, quem se mantém constantemente prostrado em es-
pírito? Doravante, seu ódio se voltará, inteiro, para o mal Por que é necessário negar-se a si mesmo? Porque aquele
que está nele, e que o impede de ver claramente o Senhor; que verdadeiramente se negou a si mesmo já não se per-
ele odeia a sua própria vida (cf. Lc 14:26). Esse homem guntará: Sou feliz? Estou contente? Tais perguntas não se
não é mais atingido pela dúvida, pois experimentou e viu colocarão mais diante de ti, se de fato tiveres negado a ti
quanto o Senhor é bom (cf. Sl 34:8); só o Senhor o sus- mesmo. Com efeito, fazendo isso, terás ao mesmo tempo
tenta. Seu amor se dilata sem cessar e, com ele, a fé. Ele abandonado todo desejo de procurar a tua satisfação pró-
colhe o fruto da humildade. Mas tudo isso só se encontra pria, na terra ou no céu.
no caminho estreito, e são poucos os que o encontram (cf.
Essa vontade obstinada de encontrar a própria satisfação,
Mt 7:14).
é a causa da inquietação e da divisão da tua alma. Aban-
dona-a e luta contra ela: o resto te será dado sem esforço.

36  25 
8. É necessário estar sempre vigilante contra as repe- De que inimigo o santo fala aqui? Evidentemente, daquele
tidas ofensivas do inimigo que tomou, um dia, a forma de serpente e que, desde en-
tão, excita em nós o descontentamento, a insatisfação, a
impaciência, a precipitação, a ira, a inveja, o medo, a an-
As primeiras vitórias sobre ti mesmo devem ter, para ti, siedade, o ódio, o abatimento, a indolência, a tristeza, a
valor de sinal: agora estás no bom caminho. Mas não te dúvida, e tudo o que envenena a nossa existência e se en-
consideres virtuoso; apenas agradece a Deus, pois foi ele raíza em nosso amor próprio e em nossa auto piedade.
que te deu força; não te alegres em demasia, mas apressa-
te em prosseguir na tua estrada. Senão, o demônio vencido Como poderá, pois, querer que os outros lhe obedeçam,
reerguerá a cabeça e te pegará pelas costas. Lembra-te do aquele que verifica, com o sofrimento profundo inspirado
mandamento que os israelitas tinham recebido de Deus, pelo amor, que ele jamais obedece a seu Mestre? Como,
para te servir de lição: "... Quando tiverdes atravessado o então, poderá ele perturbar-se, impacientar-se, irar-se, se
Jordão, em direção à terra de Canaã, expulsareis de diante as coisas não se passam de acordo com seus desejos? Esse
de vós todos os habitantes da terra. (...) aqueles que dei- homem acostumou-se, por uma longa prática, a não dese-
xardes dentre eles se tornarão espinhos nos vossos olhos jar mais nada, e — como explica o abade Doroteu — a
e aguilhões nas vossas ilhargas" (Nm 33:51-52,55). quem já não tem desejos tudo acontece segundo os pró-
prios desejos. Sua vontade ajustou-se, exatamente, à de
A aparente importância dessa vitória sobre ti mesmo conta Deus, e ele obtém tudo o que pede (cf. Mc 11:24).
pouco. Pode-se tratar de suprimir o cigarro da manhã, ou
até de uma coisa — à primeira vista tão insignificante — Poderá sentir inveja aquele que, bem longe de querer ele-
como não voltar a cabeça ou evitar uma troca de olhares. var-se, está consciente de suas próprias deficiências, e
O que importa não é o que se vê de fora. As pequenas pensa que os outros, mais do que ele, merecem estima e
coisas podem ser grandes, e as grandes, pequenas. consideração? Poderá sentir medo, angústia ou ansiedade,
quem, como o ladrão crucificado, vê em tudo o que lhe
Mas, é preciso estar sempre à espera de uma nova fase do acontece apenas o justo salário de seus atos (cf. Lc 23:41)?
combate. Deves estar sempre pronto. Não há tempo para A negligência o abandona, porque ele descobre em si
descansar. mesmo os seus menores traços e persegue-a sem cessar.

26  35 
10. Os pecados dos outros e os nossos Além disso, ainda uma vez, permanece em silêncio. Que
ninguém saiba o que se passa em ti. Trabalhas para o Ser
invisível. Que teu trabalho seja invisível. Os santos nos
Agora tomaste consciência da tua miséria, da tua pobreza, dizem que, se jogarmos migalhas em torno de nós, elas
da tua propensão para o mal; por isso clamas ao Senhor, serão avidamente recolhidas pelos pássaros enviados pelo
como o publicano: "... Meu Deus, tem piedade de mim, diabo. Fica sempre alerta contra a vanglória: de um bo-
pecador!" (Lc 18:13). E acrescentas: "Sou mesmo bem cado, ela pode devorar o fruto de muitos trabalhos.
pior que o publicano, pois não consigo deixar de olhar o
fariseu com desprezo; meu coração se enche de orgulho e Por isso, os Padres aconselham discernimento no agir. De
diz: ‘Eu vos dou graças, porque não sou como ele!' " dois males, escolhe o menor. Se estás sozinho, escolhe o
que há de mais humilde; mas se alguém te observa, toma
Mas — dizem os santos — quando verificares as trevas um caminho intermediário, para atrair a atenção o menos
do teu coração e a fraqueza da tua carne, perderás toda a possível. Fica o mais escondido e despercebido que pude-
vontade de julgar o teu irmão. Para além da tua própria res; que seja esta a tua regra em qualquer circunstância.
escuridão, verás então brilhar a luz celeste em todas as Não fales de ti mesmo; não contes como dormiste, o que
criaturas, que resplandecem com o seu reflexo; pois, não sonhaste, o que te aconteceu; não dês tua opinião sem que
poderás mais notar os pecados dos outros, uma vez que os a peçam; não faças confidências sobre tuas preocupações
teus são tão grandes. Com efeito, quando procurares com e cuidados. Tais assuntos de conversa só te podem incitar
ardor a perfeição, é que vais começar a descobrir a tua a te ocupares excessivamente de ti mesmo.
imperfeição. Somente quando tiveres visto o quanto és
imperfeito, é que a perfeição te será acessível. Portanto, a Não mudes nada na tua casa, no teu trabalho, nem nas ou-
perfeição sai da fraqueza. tras coisas. Lembra-te de que não há lugar, nem ambiente,
nem qualquer circunstância exterior, que não seja própria
Só então conseguirás o que santo Isaac, o Sírio, prometeu ao combate que empreendeste. A única exceção seria uma
aos que se perseguem a si mesmos: "E teu inimigo fugirá, ocupação que favorecesse diretamente os teus vícios.
só porque te aproximas."
Não procures situações nem títulos importantes; quanto
mais humilde for o teu estado e mais te puseres a serviço
34  27 
dos outros, mais livre serás. Fica satisfeito com a tua con- é iníquo também no muito" (Lc 16:10). Não temas o so-
dição atual. Não tenhas pressa de fazer valer os teus co- frimento: ele é que te ajudará a sair desse vale estreito em
nhecimentos e o teu saber-fazer. Evita observações; não que vives nos desejos da carne, satisfazendo as vontades
digas: "Assim não, nem assim... Faz assim, e deste outro da carne e dos pensamentos condenáveis (cf. Ef 2:3).
modo." Não contradigas ninguém, não discutas com nin-
guém, deixa que os outros sempre tenham razão. Não pre- Faze a ti mesmo essas perguntas, sem descanso. Mas,
firas nunca a tua vontade à dos outros. Isso te ensinará a faze-as apenas a ti. Jamais, em caso algum, nem mesmo
difícil arte da submissão e, ao mesmo tempo, da humil- em pensamento deves fazê-las em relação aos outros. No
dade. Ela é indispensável. mesmo instante em que fizeres uma pergunta desse gênero
a respeito de alguém, te erigirás em juiz, e por isso tu
Recebe as advertências sem recriminações. Dá graças mesmo serás julgado. Serás despojado do que tinhas ga-
quando és desprezado, esquecido, ignorado. Porém, não nho com teus esforços. Tinhas dado um passo à frente,
cries ocasiões de humilhação: elas te serão fornecidas ao mas acabas de dar dez para trás. Então, tens mesmo razão
longo do dia, à medida que delas necessitares. Às vezes se de chorar por tua obstinação, pela queda dos teus progres-
notam pessoas que conservam sempre a cabeça baixa e sos e por teu orgulho.
forçam situações para se colocarem em último lugar. En-
tão, talvez digas: "Como ele é humilde!" Mas o verdadeiro
humilde tem a arte de não se deixar notar. O mundo não o
conhece (1Jo 3:1). Para o mundo ele é, o mais das vezes,
"um zero."

Quando Pedro e André, Tiago e João largaram as redes e


seguiram Jesus, o que pensaram os companheiros que eles
abandonavam à beira do lago? Para estes, os outros discí-
pulos não existiam mais; tinham ido embora. Não hesites,
não temas desaparecer, tu também, longe "desta geração
adúltera e pecadora." Que desejas ganhar: o mundo, ou tua

28  33 
essas coisas provêm do mundo; elas se associam contra alma? (cf. Mc 8:34-38). Ai de vós, quando todos vos ben-
nós para nos enganar e nos conter em pesadas correntes. disserem! (cf. Lc 6:26).

Se queres libertar-te, examina-te com a ajuda dessa lista e


vê claramente contra o que tens de lutar para te aproxima-
res de Deus. Pois ".. a amizade com o mundo é inimizade
com Deus. Assim, todo aquele que quer ser amigo do
mundo torna-se inimigo de Deus" (Tg 4:4). Os largos ho-
rizontes só se descobrem aos olhos se abandonarmos os
vales estreitos, com as ocupações e os prazeres que lhe são
próprios. "Ninguém pode servir a dois senhores" (Mt
6:24); é impossível permanecer, ao mesmo tempo, no vale
e nas alturas.

Para poderes subir com maior facilidade, e para te alivia-


res o mais rapidamente possível do teu pesado fardo, faz
a ti mesmo, com freqüência, perguntas como esta: "Não é
para o meu próprio prazer, mais do que para o dos outros,
que vou a esse concerto, ou ao cinema? É crucificar a mi-
nha carne, ir a essa festa? É vender tudo o que tenho, fazer
essa viagem de recreio ou comprar esse livro? É tratar du-
ramente o meu corpo e reduzi-lo à servidão (1Cor 9:27),
deitar-me para ler? Essa lista de perguntas pode ser modi-
ficada ou aumentada, em função dos teus hábitos e da re-
lação deles com o modo de viver que o Evangelho pres-
creve. E lembra-te de que "quem é fiel nas coisas míni-
mas, é fiel também no muito, e quem é iníquo no mínimo,

32  29 
9. A vitória sobre o mundo 12:30). Despoja-te, dia após dia, de tuas necessidades e de
teus hábitos, no campo das relações sociais; faze-o calma
e refletidamente, sem rupturas por demais bruscas, mas,
São Basílio, o Grande, disse: "Não nos podemos aproxi- no entanto, de maneira radical. Elimina pouco a pouco
mar do conhecimento da verdade, com o coração inqui- tudo o que puderes dos laços que te prendem ao mundo
eto." Por isso nos devemos esforçar para evitar tudo o que exterior: convites, concertos, recepções e, de modo geral,
agita o nosso coração, tudo que é causa de falta de aten- "tudo o que há no mundo — a concupiscência da carne, a
ção, de super excitação, tudo o que desperta as paixões ou concupiscência dos olhos e o orgulho das riquezas — ",
nos torna ansiosos. Na medida do possível, devemos nos pois tudo isso "não vem do Pai, mas do mundo" (1Jo
libertar do barulho, da agitação e da inquietação que se 2:16), e combate contra nossa alma.
produzem por objetos sem importância. Pois, quando ser-
vimos ao Senhor, não nos devemos "inquietar e agitar por O que é, pois, o mundo? Não o imaginemos uma realidade
muitas coisas," mas lembrar sempre que "uma só é neces- exterior e tangível, que carrega a marca do pecado. O
sária" (Lc 10:41-42). mundo, diz São Macário do Egito, é a cortina de chamas
que circunda o coração e fecha o acesso à árvore da vida.
Para tomar banho, é preciso despir-se. O mesmo acontece O mundo é tudo aquilo a que estamos apegados e que nos
com o nosso coração: ele deve ser libertado de todos os traz satisfações terrenas; é o que, em nós, "não conheceu
revestimentos exteriores deste mundo, para que possa ser a Deus" (cf. Jo 17:25).
atingido por Aquele que deve purificá-lo. Os raios benfa-
zejos do sol só poderão agir sobre a pele, se esta a eles se Nossos desejos e impulsos fazem parte do mundo. Santo
expuser a descoberto. Assim é também com a virtude sa- Isaac, o Sírio, enumera-os: atração pelas riquezas; propen-
lutar e vivificante do Espírito Santo. são a acumular e a apropriar-se de todos os tipos de obje-
tos; inclinação para os gozos sensíveis; desejo de ser ob-
Portanto, deves despir-te. Recusa a ti mesmo — mas sem jeto de honras, de onde procede a inveja; desejo de domi-
que seja excessivamente visível — tudo o que causa gozo nar os outros e de se fazer escutar; orgulho da glória e do
e prazer, bem-estar e distração; tudo o que diverte ou sa- poder; preocupação por ser admirado e amado; sede de
tisfaz aos olhos, aos ouvidos, ao paladar e aos outros sen- louvores; preocupação com o bem-estar do corpo. Todas
tidos. "Quem não está a meu favor, está contra mim" (Mt
30  31 
Muitas vezes, um criminoso endurecido não tem consci- Ficarão livres das tentações, dos sofrimentos, das humi-
ência de sua culpa; é próprio do endurecimento. É esse o lhações, do desânimo, da ansiedade, e de tudo o que per-
teu caso. Mas, que não te assuste o endurecimento do teu turba o coração do homem.
coração: a oração o abrandará, pouco a pouco.
Essa é a interpretação de São João Clímaco (Escada, De-
grau 25,4). Ao apresentá-la, ele fala de cristão para cris-
tão. Pois a um coração recriado pela graça, a experiência
revela, cada dia mais, que o jugo do Cristo é leve para os
que o amam.

Mas "... aquele que perseverar até o fim, esse será salvo"
(Mt 10:22), e não os desanimados e negligentes. A pro-
messa do Senhor não é para eles.

Portanto, não devemos jamais nos cansar. Sejamos firmes,


inabaláveis, fazendo incessantes progressos na obra do
Senhor, cientes de que a nossa fadiga não é vã no Senhor
(lCor 15:58). Uma vez que começamos, não deixemos
nunca de realizar as obras de uma sincera conversão. Parar
seria recuar.

60  41 
12. A obediência Na criança, o desejo de ler aumenta à medida que ela pro-
gride no aprendizado da leitura; quando aprendemos uma
língua estrangeira, é tanto maior o prazer que sentimos fa-
A obediência é outro instrumento indispensável, na luta lando-a, quanto melhor a dominamos. O prazer aumenta
contra a própria vontade. Segundo são João Clímaco, a com o progresso. O progresso vem pela prática. A prática
obediência é a condenação à morte dos membros do nosso se torna mais fácil com o progresso. O mesmo se pode
corpo, em benefício da vida do espírito. Ela é ainda a se- dizer da oração. Não esperes, pois, nenhuma inspiração
pultura da vontade própria, e a ressurreição da humildade extraordinária, para pôr mãos à obra.
(Escada, Degrau 3:3).
O homem foi criado para orar, como o foi para falar e para
Lembra-te de que, livremente, te deste ao Senhor como pensar. Mas ele foi mais especialmente criado para orar,
escravo; a cruz que levas no pescoço te deve recordar isso. pois "Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim
É através dessa escravidão, que chegarás à verdadeira li- de Éden para o cultivar e o guardar" (Gn 2:15). E onde
berdade. Mas, pode um escravo ter vontade própria? Ele encontrarás o jardim de Éden, a não ser em teu coração?
deve aprender a obedecer.
Como Adão, deves chorar sobre o Éden perdido pela tua
Talvez perguntes: A quem devo obedecer? Os santos res- intemperança. Estás vestido de folhas de figueira e com
pondem: obedece aos teus dirigentes (cf. Hb 13:17). Mas uma túnica de pele (cf. Gn 3:21), que são a tua condição
continuas: Quem são os meus dirigentes? Onde encontra- mortal, com suas paixões. Entre ti e a estreita entrada do
rei um, quando é hoje tão difícil descobrir um dirigente atalho que leva à árvore da vida, interpõem-se as tenebro-
autêntico? A isso, respondem os santos Padres: a Igreja o sas chamas dos desejos terrenos; e somente aos que ven-
providenciou. Desde o tempo dos apóstolos, ela nos deu ceram esses desejos é concedido "comer do fruto da ár-
um mestre que supera a todos os outros, e que nos pode vore que está no paraíso de Deus" (Ap 2:7). Adão infrin-
alcançar em toda parte, onde quer que estejamos, e em giu só um mandamento de Deus, e tu, como diz Santo An-
qualquer circunstância. Quer moremos na cidade ou no dré de Creta, tu os transgrides todos, cada dia e a cada
campo, quer sejamos casados ou solteiros, pobres ou ri- momento. Das profundezas de teu estado de pecado, e de
cos, esse mestre está sempre conosco, e sempre temos teu endurecimento, tua oração deve elevar-se para ganhar
as alturas.
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O artista e o cientista devem fazer muitos sacrifícios e ocasião de obedecer-lhe. Queres conhecer o seu nome? É
muitos esforços para chegar à maturidade da sua arte ou o santo jejum.
de seu saber, e jamais atingem toda a perfeição que ambi-
cionam. Se esperassem sempre a inspiração para se porem Deus não precisa do nosso jejum. Nem tem necessidade
a trabalhar, nunca poderiam aprender nem mesmo os ru- da nossa oração. Ele é perfeito, nada lhe falta, e não pode
dimentos de sua profissão. É necessária ao violinista uma precisar de coisa alguma que nós, suas criaturas, possa-
prática perseverante, para se iniciar nos segredos de seu mos oferecer-lhe. Nada temos para lhe dar; mas, diz São
instrumento tão delicado. Façamos a mesma coisa; quanto João Crisóstomo, ele aceita que lhe apresentemos as nos-
mais delicado ainda é o coração humano! sas ofertas, para nossa própria salvação.

"Chegai-vos para Deus e ele se chegará para vós" (Tg A maior oferenda que poderemos apresentar ao Senhor,
4:8). Cabe a nós, pôr mãos à obra. Se dermos um passo somos nós mesmos; e, só o poderemos fazer, abando-
para ele, dará dez para nós — ele que, avistando o filho nando a ele nossa vontade. Aprendemos isso pela obedi-
pródigo, que vinha ainda longe, encheu-se de compaixão, ência; e aprendemos a obedecer pela prática. A melhor
correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos maneira de praticar a obediência é a que a Igreja nos for-
(cf. Lc 15:20). nece ao prescrever dias e períodos de jejum. Ela nos diz,
então, de certo modo, como Deus a Adão: "... Podes co-
É preciso, pois, que te decidas, uma vez por todas, a dar mer de todas as árvores do jardim; mas do fruto da árvore
os primeiros passos, ainda inseguros, para Deus, se real- que está no meio do jardim, não comerás" (Ge 2:16, 3:3).
mente queres aproximar-te dele. Que não te perturbe a
falta de jeito, no início do caminho da oração. Não cedas Além do jejum, temos outros mestres a quem devemos
ao respeito humano, à indecisão, aos risos zombeteiros obedecer. Nós os encontramos a cada passo, nas pequenas
dos demônios que tentam convencer-te de que teu com- coisas de nossa vida cotidiana: basta sabermos reconhecer
portamento é ridículo, de que teu disígnio é uma bobagem a sua voz. Tua mulher diz que deves levar a capa imper-
que não passa de fruto da tua imaginação. Não há nada meável; faz o que ela deseja, e estarás praticando a obedi-
que o Inimigo tema tanto quanto a oração. ência. Um dos teus colegas de trabalho te pede que vás
com ele até um ponto do caminho; acompanha-o, e estarás
praticando a obediência. Sentes que uma criança precisa
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que se ocupem dela e que lhe façam companhia: faze o 16. A oração - II
que podes, e estarás praticando a obediência. Um noviço,
no mosteiro, não terá mais ocasiões que tu, na tua casa, de
praticar a obediência. E outro tanto encontrarás no traba- O que precede esclarece que, quando os Padres falam de
lho e nas relações com teus vizinhos. oração, não estão se referindo a orações ocasionais, nem
às orações da manhã e da noite, nem das que se fazem
A obediência derruba muitas barreiras. Conseguirás a li- antes das refeições; para eles, oração é sinônimo de oração
berdade e a paz, à medida que teu coração praticar a não- perpétua; de vida de oração. Tomaram ao pé da letra a or-
resistência. Mostra-te obediente, e cercas de espinhos dem "... orai sem cessar" (1Ts 5:17).
abrir-se-ão diante de ti. Então, o amor terá lugar para se
dilatar. Por meio da obediência, aniquilarás o orgulho, o Compreendida desse modo, a oração é a ciência das ciên-
espírito de contradição, a pretensa sabedoria e a teimosia, cias e a arte das artes. O artista trabalha com argila, tintas,
que te aprisionam numa grossa carapaça. Enquanto esti- palavras ou sons; na proporção de seu talento, ele lhes
veres aninhado nela, não poderás encontrar o Deus de confere harmonia e beleza. A matéria com a qual o ho-
amor e de liberdade. mem de oração trabalha, é viva, é a própria natureza hu-
mana. Por meio da oração, ele a modela, dando-lhe har-
Habitua-te, pois, a alegrar-te, quando se te apresenta uma monia e beleza. É ele o seu primeiro beneficiário, mas, por
ocasião de obedecer. É absolutamente inútil procurar criá- seu intermédio, essa transfiguração se estende a muitos
la; poderias cair, então, num servilismo artificial, e des- outros.
viar-te, deleitando-te na tua própria virtude. Não tenhas
dúvida de que encontrarás tantas ocasiões de obedecer O cientista estuda as coisas criadas e as aparências; o ho-
quantas forem necessárias; e serão exatamente aquelas de mem de oração se eleva até o Criador de todas as coisas.
que precisas. Se notares que deixaste escapar uma oca- Ele se interessa, não pelo calor, mas pelo Princípio do ca-
sião, censura-te por essa negligência. Agiste como um lor; não pelas funções vitais, mas pela Origem da vida;
marinheiro que não aproveitaste um vento favorável. não pelo seu próprio "eu," mas por Aquele que lhe dá a
consciência do seu "eu," pelo seu Criador.

44  57 
Abandonar a oração, é desertar do posto quando se está de 13. Progresso e profundidade
guarda. A porta fica, então, aberta às hordas devastadoras,
e os tesouros que se acumularam são entregues à pilha-
gem. Os ladrões não precisam de muito tempo para fazer Depois das noções elementares e ainda exteriores que pre-
o seu trabalho: a ira, por exemplo, pode destruir tudo num cedem, chegamos agora ao combate que se trava nas pro-
instante. fundezas de nosso ser. Quando se descasca uma cebola,
retiram-se, uma após outra, as peles que a recobrem; fi-
nalmente se chega ao coração do bulbo, de onde sai o talo
para a luz. Quando chegares ao teu quarto interior, é que
perceberás a morada celeste, pois elas são uma única
coisa, segundo Santo Isaac, o Sírio.

Quando te esforçares por penetrar no teu quarto interior,


ali perceberás, além do teu rosto verdadeiro, aquilo que
Santo Hesíquio chama de face escura dos etíopes, isto é,
os pensamentos maus. São Macário do Egito compara-os
a uma serpente escondida em teu coração, e que feriu os
órgãos mais vitais da tua alma. Se mataste essa serpente,
diz ele, podes orgulhar-te de tua generosidade diante de
Deus. Porém, se não a mataste, prostra-te com humildade,
como um pobre pecador, e ora a Deus, pois o inimigo está
sempre oculto, à espreita.

Mas, como poderíamos começar a luta, uma vez que nem


mesmo penetramos em nosso coração? Ficamos à porta;
mas é preciso bater, com o jejum e a oração, como nos
recomendou o Senhor: "... batei e vos será aberto" (Mt
7:7). Bater é agir. Se permanecermos firmes na palavra do
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Senhor, na pobreza, na humildade, e em tudo o que nos A oração é, segundo São João Clímaco, o fundamento do
prescreve o Evangelho; se dia e noite batermos à porta de mundo. Um outro santo comparou o universo a um globo,
Deus, então, poderemos obter o que procuramos. Quem que deve a sua estabilidade à Igreja que ali está implan-
quer sair do cativeiro e das trevas, deve entrar na liberdade tada; mas a própria Igreja é sustentada pela oração.
por essa porta. Ali, diz São Macário, receberá a liberdade
espiritual, e poderá alcançar o Cristo, Rei celestial. A oração é uma troca e um encontro entre a humanidade
e Deus. É a ponte pela qual o homem passa para além do
seu "eu" carnal e de suas tentações; e acede ao verdadeiro
"eu" espiritual e à liberdade. Ela é a muralha contra todas
as desordens, a arma contra a dúvida; acaba com a tristeza
e contém a ira. A oração é um alimento para a alma e uma
luz para o espírito; consegue para nos, já neste mundo,
uma parte da alegria que virá. Para aquele que ora verda-
deiramente, a oração é a sentença, o tribunal, o trono de
Juiz; antecipa o julgamento final para agora, para o mo-
mento presente, no fundo do coração.

A oração e a vigilância são a mesma e única coisa, pois é


em companhia da oração que deves ficar à porta do teu
coração. Olhos bem abertos percebem imediatamente a
menor modificação que se produza em seu campo de vi-
são; assim acontece com o coração que ora sem cessar.

Na aranha se encontra outro exemplo: ela fica no meio da


teia, ouve a menor mosca que venha prender-se nela, e
mata-a. Assim também, a oração deve ficar, como senti-
nela, no meio do teu coração: ao menor estremecimento
que revele a presença de um inimigo, ela o mata.
46  55 
15. A oração - I 14. Humildade e vigilância

Do que precede, conclui-se que a oração é o primeiro e, Aquele que empreende o combate interior necessita, a
sem comparação, o meio mais importante que devemos todo momento, de quatro coisas: humildade, grande vigi-
empregar no combate. Aprende a orar, e vencerás todas as lância, vontade de resistir e oração. Trata-se de vencer,
Potências do mal que possam, algum dia, te assaltar. com a ajuda de Deus, os "etíopes dos pensamentos," ex-
pulsando-os pela porta do coração e esmagando seus ne-
A oração é uma das asas que nos erguem para o céu; a nês contra a rocha (cf. Sl 137:9).
outra é a fé. Com uma asa só, não se pode voar: a fé sem
a oração é tão vã quanto a oração sem a fé. Mas, se tua fé A humildade é uma condição prévia, pois o homem orgu-
é frágil demais, é bom clamar: "Senhor, dai-me a fé!" É lhoso é eliminado do combate, uma vez por todas. A vigi-
muito raro essa oração não ser atendida. O grão de mos- lância é necessária para reconhecer imediatamente os ini-
tarda, como disse o Senhor, torna-se uma grande árvore. migos, e para conservar o coração livre dos vícios. A von-
tade de resistir deve estar presente assim que o inimigo
Quem quer receber sol e ar, abre as janelas. Seria ridículo seja reconhecido. Porém, visto que "... sem mim, nada po-
ficar por trás das cortinas fechadas e queixar-se: "Não há deis fazer" (Jo 15:5), a oração é o trunfo mais importante,
luz; não há nem um pouco de ar!" Essa imagem mostra o do qual depende todo o combate.
papel da oração: o poder de Deus e a sua graça estão sem-
pre e em toda parte ao alcance de cada um de nós; porém, Um rápido exemplo te ajudará a compreender: através da
só podemos receber a nossa parte se a desejamos e se agi- vigilância, percebes um inimigo que se aproxima da porta
mos conforme esse desejo. do teu coração: és tentado a pensar mal de um de teus ir-
mãos. Sem demora, fica alerta a tua vontade de resistir, e
Sem a oração, não esperes encontrar o que procuras A ora- afastas a tentação. Mas, no último instante, és assaltado
ção é o início e o fundamento de todo esforço para Deus. por um pensamento de amor-próprio: "Escapei, graças à
É ela que faz brilhar o primeiro raio de luz, que te faz sen- minha vigilância!" E tua vitória aparente se torna uma ter-
tir antecipadamente o gosto do que procuras, e que des- rível derrota. A humildade soçobrou.
perta o desejo de progredir.
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Se, ao contrário, abandonares a teu Senhor todo o com- Mestre estava fora de casa, deixaste os ladrões e os mal-
bate, já não terás razão de estar contente contigo mesmo, feitores entrarem e pilharem tudo à vontade. Roga a Deus
e continuarás livre. Notarás bem depressa que não há arma que isso não se repita.
com mais poder do que o Nome do Senhor.
Perguntaram a um monge: "Que fazeis aqui, no mos-
Esse exemplo mostra que o combate deve ser travado sem teiro?" Ele respondeu: "Caímos e nos levantamos, caímos
descanso. As sugestões más penetram em nós como uma e nos levantamos, caímos e nos levantamos outra vez."
rápida torrente, e é preciso barrar a estrada com grande
rapidez. São os "... dardos inflamados do Maligno" (Ef. De fato, em tua vida, poucos minutos se passam sem que
6:16), de que fala o apóstolo; e eles chovem, sem cessar, caias pelo menos uma vez. Então, ora para que Deus tenha
sobre nós. Sem cessar, também, por conseguinte, deve- piedade de ti.
mos clamar ao Senhor. "Pois o nosso combate não é con-
Ora para obter perdão e graça; suplica, como o pode fazer
tra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principa-
um criminoso condenado à morte, e lembra-te de que é
dos, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste
somente pela graça que fomos salvos (cf. Ef 2:5). Não po-
mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam
des, de modo algum, reivindicar a libertação e a graça
as regiões celestes" (Ef 6:12).
como algo que te é devido. Considera-te um escravo fu-
O combate se inicia pela sugestão, conforme explicam os gido que, prostrado diante de seu senhor, suplica que o
santos. Vem depois a relação, quando penetramos mais no poupe. Essa deve ser a tua oração, se queres seguir a dou-
que a sugestão nos deu. A terceira fase é o consentimento, trina de Santo Isaac, o Sírio, e "abandonar o fardo interior
e a quarta é o pecado cometido exteriormente. A passa- de teus pecados, para descobrir, dentro de ti mesmo, o ata-
gem de uma para a outra, dessas quatro fases, pode ser lho que sobe, tornando possível a ascensão."
instantânea; mas também é possível que elas se sucedam
como tantos outros degraus, o que permite distingui-las.
A sugestão bate à porta, como um vendedor ambulante
que oferece a sua mercadoria. Se o deixarmos entrar, ele
começa com a sua lábia, e é difícil livrar-se dele, mesmo
percebendo que sua mercadoria não vale nada. Vem o
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A única desgraça que pode acontecer a um cristão é o pe- consentimento, e finalmente a compra, muitas vezes a
cado. contragosto. Deixamo-nos vencer por um enviado do Ma-
ligno.
Se te sentes amargurado por teres caído, de um modo ou
de outro; se te censuras duramente e se multiplicas as re- A respeito da sugestão, disse Davi: "A cada manhã eu fa-
soluções de "nunca mais recomeçar," é sinal certo de que rei calar todos os ímpios da terra" (Sl 101:8), pois "em
estás no caminho errado: isso provém do fato de que tua minha casa não habitará quem pratica fraudes" (ibid. 7).
autoconfiança se sente ferida. Sobre o consentimento, disse Moisés: "Não farás aliança
nenhuma com eles" (Ex 23:32). O primeiro versículo do
Quem não confia em si mesmo, fica profundamente sur- Salmo l fala da relação, segundo a interpretação dos Pa-
preso de não ter caído mais baixo, e se sente cheio de re- dres: "Feliz o homem que não vai ao conselho dos ím-
conhecimento. Agradece a Deus por lhe ter enviado, a pios." De fato, é muito importante resistir aos inimigos "às
tempo, o socorro sem o qual ele teria sido completamente portas" (Sl 127:5), sem deixá-los entrar.
esmagado. Levanta-se rapidamente, e começa a oração
por um triplo "Deus seja louvado!" Mas pode acontecer que seja numerosa a multidão que se
comprime diante da porta; sabemos também que "... o pró-
Uma criança mimada fica muito tempo chorando, quando prio Satanás se transfigura em anjo de luz" (2Cor 11:14).
cai. Procura atrair uma manifestação de simpatia, uma ca- Por isso nos advertem os santos Padres: que conservemos
rícia que a console. Mas tu, não sejas pretensioso; pouco o coração puro de qualquer sugestão, sensação ou imagi-
importa se sofres. Ergue-te e recomeça o combate. É nor- nação, sejam de que natureza forem. Com efeito, não está
mal que se fira aquele que luta. Só os anjos não caem em nossas mãos separar as sugestões más das boas: só o
nunca. Mas roga a Deus que te perdoe e não permita que Senhor o pode. Devemos, pois, abandonar tudo nele com
sejas novamente surpreendido. confiança,sabendo que "... se Iahweh não guarda a cidade,
em vão vigiam os guardas" (Sl 127:1).
Não sigas o exemplo de Adão, jogando a culpa em tua
mulher, ou no demônio, ou em qualquer outra causa exte- Em contrapartida, depende de nós ficarmos vigilantes
rior. A causa da tua queda está em ti mesmo: enquanto o para que não surja nenhum pensamento vil em nosso co-
ração (cf. Dt 15:9); para que ele 'não se transforme num
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mercado onde uma multidão heterogênea se agita num olhar. Assim, o teu coração será protegido de todos os la-
contínuo tumulto, de maneira que se torna impossível re- dos ao mesmo tempo. O Senhor mesmo enviará os seus
conhecer o que se passa. Ladrões e malfeitores podem, anjos para guardar-te, à direita e à esquerda, impedindo
então, encontrar-se ali; mas os anjos da paz, em vão os que sejas atacado pelas costas.
buscarias. A paz e o Senhor da paz fogem de um lugar
assim. Em outras palavras, quando fores perseguido pela tenta-
ção, não te deves deter para examiná-la, refletir, pesar
Por isso, ele nos disse por seu apóstolo: "... santificai os prós e contras. Agindo assim, já maculas teu coração, per-
vossos corações" (Tg 4:8); e ele próprio nos adverte: des tempo; já é uma vitória para o inimigo. Ao contrário,
"Atenção, e vigiai" (Mc 13:33). Pois, se ele vier e encon- volta-te sem demora para o Senhor e diz: "Senhor, tende
trar impuros os nossos corações, e nós mesmos adormeci- piedade de mim, pecador!" Quando tiveres retirado os
dos, dirá: "... não vos conheço!" (Mt 25:12). A hora dessa teus pensamentos da tentação, o Senhor virá.
vinda é sempre iminente: se não for no momento presente,
será no seguinte; e se não for no seguinte, será agora. Por- Nunca fiques seguro de ti mesmo. Não formes jamais no
que, como o Reino dos céus, a hora do julgamento está teu espírito uma boa resolução deste gênero: "Oh, sim!
sempre presente em nosso coração. Vou fazer tudo muito bem!" Nunca tenhas confiança em
tuas próprias forças, para resistir a uma tentação, seja ela
Assim, pois, se o guarda não vigiar, o Senhor também não qual for, grande ou pequena. Pensa, ao contrário: "Tenho
vigiará; mas se o Senhor não vigia, o guarda vigia em vão. certeza de que cairei, quando ela vier." A confiança em si
Por conseguinte, vigiemos à porta do nosso coração, mas é um aliado perigoso. Quanto menos te apoiares nela, mais
sempre chamando o Senhor, incessantemente, para que seguro estarás. Reconhece que és fraco, totalmente inca-
nos ajude. paz de resistir à menor insinuação do demônio. E então
espantado, descobrirás que não podes absolutamente
Não olhes para o lado do inimigo. Não te ponhas jamais a nada. Visto que farás do Senhor o teu refúgio, poderás
discutir com ele, porque não conseguirás resistir. Devido imediatamente proclamar que "a desgraça jamais te atin-
à sua experiência milenar, ele sabe exatamente como pro- girá" (Sl 91:10).
ceder para te abater de imediato. Porém, fica no meio do
campo de batalha do teu coração, e dirige para o alto o teu
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lado, o sinal da cruz é uma arma contra os espíritos maus: 17. A oração - III
utiliza freqüentemente essa arma, atento ao que fazes.

Para construir uma casa, é necessário montar uma estru- Quando decidimos começar regularmente a oração da ma-
tura. Só um homem forte não precisa de apoio externo. nhã, nós o fazemos, em geral, não porque já tenhamos
Mas, serás um homem forte? Não serás, antes, um fraco uma certa facilidade natural para orar, mas sim com a fi-
entre os fracos? Será que és mais que uma criança? nalidade de conseguir alguma coisa que ainda não possu-
ímos. Ora, quem possui uma coisa, corre o risco de se pre-
ocupar, com medo de perdê-la; e quem não a possui ainda,
fica ansioso por consegui-la. Por isso, deves começar a
praticar a oração, sem nada esperar de ti mesmo, sem pro-
curar "chegar a alguma coisa."
Se tens a possibilidade de um quarto só teu, podes seguir
ao pé da letra, e tranqüilamente, as indicações do Manual
de Orações:

"Quando acordas, antes de começar o dia, coloca-te res-


peitosamente diante de Deus, que tudo vê. Faz o sinal da
cruz e diz: Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo. Amém."

"Depois de ter invocado assim a Santíssima Trindade, fica


em silêncio por alguns instantes, para que teus pensamen-
tos e teus sentimentos se libertem das preocupações deste
mundo. Em seguida, recita, sem pressa e de todo coração:
Ó Deus, tende piedade de mim, pecador."

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Vêm depois as outras orações, começando pela do Espí- progresso, enquanto prossegues o teu caminho rumo a um
rito Santo, da Santíssima Trindade, e o Pai Nosso, que objetivo mais distante.
precedem o conjunto das orações da manhã. É melhor ler
apenas algumas, tranqüilamente, do que lê-las todas, com Não temas a manifestação exterior do amor que tens pelo
pressa. teu Senhor misericordioso e cheio de amor; beija a cruz e
os ícones; enfeita-os com flores. Se apenas impedíssemos
Essas orações são fruto da experiência que a Igreja acu- que se exprimisse exteriormente o mal que está em nós, a
mulou ao longo dos séculos. Através delas, entras na vasta nossa boa vontade poderia respirar livremente. Se rece-
comunhão do Povo de Deus em oração. Não estás sozi- bêssemos com amor o que nos é dado por amor, a ativi-
nho; és uma célula no Corpo da Igreja, que é o Corpo de dade do nosso amor se tornaria mais ampla e mais pode-
Cristo. Pela recitação dessas fórmulas, aprenderás tam- rosa; e é exatamente esse o objetivo de nossos esforços.
bém a constância e a paciência, necessárias, não apenas Quanto mais copioso é um rio, mais se alarga a sua embo-
para o corpo, mas também para o coração e o espírito, para cadura.
que se fortaleça a tua fé.
Utiliza o teu próprio corpo como um auxiliar no teu com-
A verdadeira oração é aquela em que o espírito e o coração bate. Submete-o e torna-o independente dos caprichos do
se põem em uníssono com as palavras; a atenção é, pois, homem velho. Faz com que ele partilhe os teus sentimen-
indispensável. Não deixes que teus pensamentos fiquem tos de compunção: se queres aprender a humildade, torna
vagando; recolhe-os continuamente e, cada vez que te dei- humilde o teu próprio corpo e inclina-o para a terra. Ajo-
xas levar para longe de tua oração, volta ao ponto em que elha-te, com o rosto em terra, tantas vezes quantas pude-
a deixaste Poderás recitar o saltério da mesma forma. res, quando estás só; mas levanta-te logo, pois toda queda
Aprenderás assim a praticar a perseverança e a vigilância é seguida de nossa elevação no Cristo.
na oração.
Faz muitas vezes o sinal da cruz: é uma oração sem pala-
Quem fica diante de uma janela aberta, ouve os ruídos de vras. Em alguns instantes, sem estar sujeito à lentidão da
fora; não pode ser de outra forma. Mas, ele pode, ou não, palavra, ele exprime a tua vontade de participar da vida do
prestar atenção às palavras que chegam até ele; isso de- Cristo e de crucificar a tua carne; de aceitar, sem murmu-
rar, tudo o que te envia a Santíssima Trindade. Por outro
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22. Do uso das realidades materiais pende da sua vontade. O homem em oração é constante-
mente solicitado por um fluxo de pensamentos forasteiros,
de sentimentos e de impressões. Conter o fastidioso de-
Somos feitos de alma e de corpo; não podemos fazer abs- senrolar desse filme interior, é tão impossível quanto im-
tração dessa dualidade em nosso comportamento. Por pedir o ar de circular num cômodo cuja janela esteja
conseguinte, usa as realidades materiais. O Cristo conhece aberta. Mas depende de cada um prestar atenção nisso, ou
a nossa fraqueza, e empregou, como meios, por nossa deixar de prestar. Dizem os santos ser esse um aprendi-
causa, palavras e gestos, saliva e lama. Por nossa causa, zado que só se faz pela prática.
quis que seu poder vivificante se comunicasse pela orla de
sua veste (cf. Mt 9:20, 14:36), pelos aventais e lenços que Quando oras, teu "eu" deve calar-se. Não ores para que se
haviam tocado o corpo de Paulo (cf. At 19:12), e até pela realizem os teus desejos terrenos; mas dizes: "Que seja
sombra do apóstolo Pedro (cf. At 5:15). feita a tua vontade" Não te sirvas de Deus como de um
mandatário. Fica calado, e deixa a oração falar.
Assim, ao longo de tua dura peregrinação pelo caminho
estreito, apóia-te em todas as coisas terrenas como em um Segundo São Basílio, tua oração deve conter quatro ele-
bastão, utilizando-as para te lembrares de Deus: que a mentos: adoração, ação de graças, confissão dos pecados
brancura da neve e a limpidez do céu, o olho colorido da e pedido de salvação.
mosca e o calor do fogo, e todas as criaturas que teus sen-
tidos percebem, te lembrem o Criador. Mas, recorre prin- Não te preocupes com teus próprios interesses e não po-
cipalmente aos meios que a Igreja te oferece para "entre- nhas a oração a seu serviço; mas, "busca em primeiro lu-
gar teus membros a serviço da justiça para a santificação" gar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas te
(Rm 6:19). Antes de qualquer outra coisa, a Santa Comu- serão acrescentadas" (Mt 6: 33).
nhão do Senhor; mas também os outros mistérios e sacra- Aquele que procura fazer a própria vontade, e cuja oração
mentos, e as Santas Escrituras. A Igreja também te oferece não coincide, pois, com a vontade de Deus, encontrará
os santos ícones da Mãe de Deus, dos Anjos e dos Santos, muitos obstáculos no caminho, e cairá incessantemente
a oração feita diante deles, as velas e as lâmpadas, a água nas emboscadas do Inimigo. Ficará descontente, irascível,
benta, o brilho do ouro, o canto. Recebe tudo isso com
agradecimento, para tua edificação e consolo, benefício e
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infeliz, hesitante, impaciente ou inquieto; e quando o es- mesmo quando és obrigado a permanecer no tumulto de
pírito se encontra nesse estado, ninguém pode permanecer uma companhia numerosa. E quando, às vezes, isso se
em oração. torna demasiadamente difícil de suportar, sai, vai a qual-
quer lugar, contanto que possas ficar só; clama de toda a
A oração daquele que tem alguma queixa contra seu pró- tua alma ao Senhor para que te ajude, e ele te ouvirá.
ximo é impura. Só podemos e devemos dirigir censuras a
uma única pessoa: a nós mesmos. Sem a auto-acusação, a Considera-te como uma roda, dizia o staretz Ambrósio.
oração será tão vã quanto se, dentro de nosso coração, Quanto mais de leve a roda toca a terra, mais ela gira e
censurássemos outra pessoa. avança com facilidade. Não penses nas coisas terrenas,
não fales delas, não te preocupes com elas mais do que o
Não te preocupes por sentires sequidão em ti. A chuva vi- necessário. Mas lembra-te também de que, se uma roda
vificante vem do alto, e não de teu solo ingrato, incapaz fica inteiramente no ar, não pode girar.
de produzir mais do que sarças e espinhos. Aliás, não es-
peres "estados de oração" extraordinários, êxtases, enle-
vos ou outras experiências em que encontrarias tua pró-
pria satisfação. Não se ora para procurar prazer. "Entris-
tecei-vos, cobri-vos de luto e chorai (...) Humilhai-vos di-
ante do Senhor e ele vos exaltará" (Tg 4:9-10). Pensa no
que és e suplica ao Senhor que tenha piedade de ti. O resto
depende dele.

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duvidosos: tensão excessiva, impaciência quanto aos de- 18. A oração - IV
feitos do próximo, justificação própria. Trata-se, pois, de
"... não se desviar, nem para a direita, nem para a es-
querda" (Dt 5:32), e de não ter nem a mais leve confiança A oração não deve cessar quando terminamos as orações
em si mesmo. da manhã. Trata-se agora de manter presente a oração ao
longo do dia, apesar da diversidade e da complexidade de
Se não vemos em nós frutos abundantes de amor, de paz, nossas ocupações cotidianas.
de alegria, de moderação, de humildade, de simplicidade,
de retidão, de fé e de paciência, é vão todo o nosso traba- O bispo Teófano, o Recluso, aconselha aos principiantes
lho, como nos previne São Macário do Egito. Devemos que escolham um versículo curto do saltério, apropriado
trabalhar para a colheita, mas essa colheita é a obra do às suas necessidades; por exemplo, "Senhor, apressa-te
Senhor. em socorrer-me," ou "Criai em mim um coração puro" ou
"Bendito és tu, Senhor," etc. O saltério oferece uma
Fica, pois, atento a ti mesmo e usa de discernimento. Se grande quantidade dessas orações mais ou menos curtas.
notares que te tornas irritadiço e exigente para com os ou- Durante todo o dia, podemos guardar no espírito essa ora-
tros, diminui um pouco o peso do teu fardo. Se procuras ção, e repeti-la com a maior freqüência possível, seja men-
examinar a conduta dos outros, dar-lhes lições, dirigir- talmente, seja em voz baixa ou, melhor ainda, em voz alta,
lhes observações, estás no caminho errado: quem renuncia se estivermos sozinhos e se ninguém nos ouvir. No ônibus
verdadeiramente a si mesmo, não tem nada a censurar nos ou no elevador, no trabalho ou à mesa, tanto quanto pos-
outros. Se achas que as pessoas que te cercam, ou as cir- sível, retoma-se a oração e fixa-se a atenção no conteúdo
cunstâncias exteriores, te incomodam e te constrangem, é das palavras. Assim passa o dia, até a noite, quando se
porque ainda não compreendeste em que consiste o teu arruma um momento de tranqüilidade para ler a oração da
trabalho: tudo o que, à primeira vista, parece constranger- noite no Manual de Orações, antes de deitar.
te, na realidade te é dado como ocasião de aceitar os ou-
tros, de ser paciente e de obedecer. Um homem humilde E essas orações curtas também servem para os que não
não pode ser constrangido pelos outros: pode apenas cons- gozam de isolamento suficiente para recitar as orações or-
tranger. Passa, pois, despercebido, evita tomar a dianteira, dinárias da manhã e da noite. De fato, elas nos podem
esconde-te. Entra no teu quarto e fecha a porta (Mt 6:6),
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acompanhar sempre e por toda parte. Em casos assim, a 21. É preciso evitar o exagero
solidão interior supre a ausência de solidão exterior.

A repetição freqüente é importante. É por repetidas bati- A experiência demonstra que o pianista que toca com ex-
das de asas que o pássaro se eleva acima das nuvens; o cessivo ardor, ou o escritor que escreve depressa demais,
nadador tem de reproduzir inúmeras vezes o mesmo mo- é vítima de cãibras. Desanimado, sem poder fazer nada,
vimento, para chegar ao objetivo desejado. Mas, se o pás- vê-se de repente obrigado a interromper o trabalho, ele
saro pára de voar, deverá contentar-se em permanecer nos que, um minuto antes, estava tão entusiasmado. E a inação
nevoeiros da terra; e o nadador que pára, corre o risco de expõe a muitas influências más.
perecer no abismo ameaçador que o espreita.
Esse exemplo contém uma lição para ti. O jejum, a obedi-
Faz, assim, a tua oração, hora após hora, dia após dia, per- ência, a austeridade de vida, a atenção, a oração, consti-
petuamente. Mas ora com simplicidade, sem ênfase, sem tuem um conjunto de práticas necessárias, mas não pas-
complicações, sem fazeres a ti mesmo todo tipo de per- sam de práticas. E, toda prática deve ser empregada com
guntas: "Não vos preocupeis com o dia de amanhã" (Mt naturalidade, calmamente, levando em conta a medida das
6:34). Quando chegar o momento, a resposta te será dada. próprias forças (cf. Lc 14:28-32), evitando qualquer exa-
gero. "... Levai, pois, uma vida de autodomínio e de sobri-
Abraão partiu sem perguntar: "Como é a terra que me vais edade, dedicada à oração" (1Pd 4:7), recomenda-nos o
mostrar? O que me espera lá?" Simplesmente "... partiu, apóstolo Pedro e, por ele, o Senhor mesmo.
como lhe disse Iahweh" (Gn 12:4). Faz como ele. Abraão
tomou todos os bens que tinha reunido (ibid. 5). Imita-o É possível embriagar-se com outra coisa que não seja o
também nisso; leva contigo, na viagem, todo o teu ser; não álcool. Igualmente perigosa é a auto-exaltação, que pro-
deixes para trás nada que possa reter uma parte da tua afei- voca excessiva confiança em si mesmo, e a atividade
ção, na terra que deixaste. apressada que dela resulta. Animados por um zelo sem re-
servas, que se traduz por exageros e falta de comedimento,
Noé levou cem anos para construir a arca, peça por peça. semeamos assim, no terreno da vida espiritual, o que cre-
Faz a mesma coisa; constrói peça por peça, com toda a mos serem sacrifícios. Mas os frutos que colhemos são
paciência, em silêncio, dia após dia, e não te preocupes
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No entanto, os santos Padres recomendam que se jejue com os que te cercam. Lembra-te: Noé, no seu tempo, es-
com medida: não é preciso impor ao corpo uma fadiga ex- tava sozinho no mundo e "... andava com Deus" (Gn 6:9),
cessiva, pois a própria alma se prejudicaria com isso. isto é, na oração. Pensa também na dificuldade, na escuri-
Tampouco é preciso começar a jejuar muito de repente; dão, no mau cheiro em que ele deve ter vivido no interior
todas as coisas exigem uma adaptação, e cada um deve da arca, antes de poder sair para o ar livre e erguer um
levar em conta a própria compleição e as próprias ocupa- altar ao Senhor. O ar puro e o altar, tu os descobrirás em
ções. Evitar alguns tipos de alimentos seria condenável: ti, diz São João Crisóstomo, mas só, quando concordares
toda alimentação é um dom de Deus. Contudo, é prudente em passar pela mesma porta estreita por que passou Noé.
abster-se dos alimentos que causam moleza ou que só ser-
vem para deleitar o gosto: pratos muito condimentados, Também como Noé, faz "tudo o que Deus te ordenou" (Gn
carnes, álcool, etc... Quanto ao resto, pode-se comer de 6:22), e constrói "com orações e súplicas" (Ef 6:18) o
tudo o que é barato e fácil de encontrar. Para os Padres, barco que possibilitará que passes do teu "eu" carnal e dos
jejuar com medida significa, no entanto, fazer uma única teus interesses, múltiplos e egoístas, para a plenitude do
refeição por dia, refeição essa suficientemente leve, para Espírito. Quando o Único vem ao nosso coração, diz são
evitar a saciedade. Basílio, o Grande, a multiplicidade desaparece. Teus dias
passam, então, numa grande sensação de plenitude, sob a
proteção daquele que tem a plenitude do universo em suas
mãos.

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19. A sobriedade do corpo e do espírito: condição da gostaríamos de nos libertar dessa preocupação. Assim, o
oração jejum se mostra como uma etapa do caminho da liberta-
ção, e um aliado indispensável na luta contra os desejos
egoístas. Ao lado da oração, o jejum é um dos mais preci-
Quando nos entregamos à oração dessa maneira, é impor- osos dons concedidos aos homens, caro a todos os que fi-
tante não dar plena liberdade ao corpo. Santo Isaac, o Sí- zeram a experiência.
rio, diz que uma oração em que o corpo não esteja descon-
fortável e o coração aflito, permanece embrionária, sem Quando jejuamos, sentimos crescer o nosso reconheci-
alma. Ela leva em si o germe da autoconfiança e do orgu- mento para com Deus, que deu ao homem o poder de je-
lho, que conduzem o nosso coração a crer que fazemos juar. O jejum dá acesso a um mundo de cuja existência
parte, não apenas dos "chamados," mas também dos "pou- mal suspeitas. Todos os pormenores da tua vida, tudo o
cos escolhidos" (Mt 22:14). que se passa em ti e ao teu redor, é visto sob uma nova
luz. O tempo que passa será utilizado de um modo novo,
Não confies nesse tipo de oração, pois é a raiz de muitas rico e fecundo. Durante as vigílias, a modorra e a confusão
ilusões. Como teu coração continuou apegado à carne, teu dos pensamentos dão lugar a uma grande lucidez de espí-
tesouro também continua a ser de ordem carnal; e, en- rito; ao invés de nos revoltarmos contra o que nos contra-
quanto acreditas, talvez, que atinges o céu, consegues ape- ria, nós o aceitamos calmamente, na humildade e na ação
nas o que também é carnal. A alegria que sentes carece de de graças; problemas que pareciam graves e complexos,
pureza e se traduz de modo exuberante; tens urgência de resolvem-se por si mesmos, com a mesma simplicidade
falar, sentes vontade de catequizar e converter os outros, do desabrochar da corola de uma flor. A oração, o jejum
sem teres sido chamado pela Igreja a exercer o ofício de e as vigílias são a maneira de bater à porta que desejamos
mestre. Interpretas a Escritura conforme a tua mentalidade ver abrir-se.
carnal, e não consegues suportar que te contradigam; de-
fendes apaixonadamente o teu ponto de vista. Tudo isso Os santos Padres muitas vezes consideraram o jejum uma
porque te esqueceste de disciplinar o corpo e, por isso, de medida de capacidade: se jejuamos muito, é que amamos
humilhar o coração. muito; e se amamos muito, é que muito nos foi perdoado
(cf. Lc 7:47). Aquele que jejua muito, receberá muito.

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20. O jejum A verdadeira alegria é tranqüila e estável; por isso, o após-
tolo nos ordena: "Ficai sempre alegres" (1Ts 5:16). Ela
resulta de um coração que derrama lágrimas sobre o
Um jejum proporcional às tuas forças favorecerá a vigi- mundo e sobre si mesmo, porque todos se desviaram da
lância espiritual. Não se pode meditar as coisas de Deus luz que não se apaga. A verdadeira alegria se consegue
com estômago muito cheio, dizem os mestres espirituais. através das lágrimas. Por esse motivo, está escrito: "Bem-
Para um amigo da boa mesa, os segredos menos misterio- aventurados os aflitos" (Mt 5:5), e: "... Bem-aventurados
sos da Santíssima Trindade, se assim se pode dizer, per- vós, que agora chorais," mortificando o "eu" carnal, "por-
manecem escondidos. O Cristo nos deu o exemplo com que haveis de rir" pelo "eu" espiritual (Lc 6:21). A verda-
seu longo jejum; quando venceu o demônio, saía de um deira alegria é reconfortante, uma alegria que brota, não
jejum de quarenta dias. Gostarias de consegui-lo com me- só do conhecimento de nossa própria fraqueza, mas tam-
nor sacrifício? Depois, só depois, "... os anjos de Deus se bém da misericórdia do Senhor; e ela não precisa de um
aproximaram e puseram-se a servi-lo" (Mt 4:11). Para te riso ruidoso para se expressar.
servir, eles também esperam.
Pensa ainda nisto: quem se apega às coisas da terra, pode
O jejum refreia a tagarelice, diz São João Clímaco (Es- encontrar alegria, mas também agitação, inquietação e
cada, Degrau 14:34). Ele te fará misericordioso e disposto aflição; seu espírito se expõe a contínuas flutuações. A
a obedecer; destrói os pensamentos maus e elimina a in- "alegria do teu Senhor" (Mt 25:21), ao contrário, é estável,
sensibilidade do coração. Quando o estômago está vazio, porque Deus é imutável.
o coração é humilde. Quem jejua ora com espírito sóbrio,
ao passo que o espírito do intemperante é repleto de ima- Portanto, vigia a tua língua e disciplina o teu corpo, atra-
ginações e de pensamentos impuros. vés do jejum e de uma vida austera. A tagarelice é o
grande inimigo da oração. Por isso, deveremos dar contas
O jejum é uma maneira de exprimir o amor e a generosi- de toda palavra inútil (Mt 12:36). Quando queremos man-
dade; através dele, sacrificam-se os prazeres da terra, para ter limpo um apartamento, procuramos impedir que entre
obter as alegrias do céu. Uma parte excessivamente a poeira da rua. Preserva teu coração das tagarelices e dos
grande de nossos pensamentos é açambarcada pela preo- mexericos sobre os acontecimentos do dia.
cupação com a subsistência e com os prazeres da mesa;
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"... Notai como um pequeno fogo incendeia uma floresta o consentimento e para o pecado em ato. Ele semeia a in-
imensa. Ora, também a língua é um fogo" (Tg 3:5-6). Po- certeza e a agitação entre os teus pensamentos; ele te su-
rém, sem ar, a chama se apaga. Deixa também sem ar as gere todo tipo de raciocínios, de provas, de perguntas vãs
tuas paixões, e elas se extinguirão pouco a pouco. Se sen- e de respostas que damos a nós mesmos. Opõe, a isso
tes inflamar-se a tua ira, cala-te, e não deixes que ela trans- tudo, a palavra do salmista: "Afastai-vos de mim, perver-
pareça Fala dela somente a Deus. Assim apagarás a mecha sos, eu vou guardar os mandamentos do meu Deus" (Sl
que acabou de se acender. Quando te perturbas pelos erros 119,115).
dos outros, segue o exemplo de Sem e de Jafé, e cobre-os
com o manto do silêncio (Gn 9:23); assim sufocarás o de-
sejo de julgar, antes que as chamas subam. O silêncio está
pronto para ser preenchido com a oração atenta, como um
vaso vazio para se encher de água.

Porém, quem quiser praticar a arte da vigilância espiritual,


não é só da língua que deve cuidar. Deve cuidar de si
mesmo (Gl 6:1), minuciosamente, e estender a solicitude
às profundezas do seu ser. Nessas profundezas, descobrirá
imensos espaços interiores, onde se agita um grande nú-
mero de lembranças, imaginações, pensamentos, que de-
vem ser reprimidos. Não despertes uma lembrança que
poderá cobrir de lama a tua oração; não revolvas as im-
pressões que antigos pecados deixaram em ti. Não sejas
"como o cão que torna ao seu vômito" (Pr 26:11). Não
deixes que a tua memória se demore em fatos que pode-
riam reanimar teus maus desejos; não permitas que tua
imaginação divague. O baluarte preferido do demônio é
exatamente a nossa imaginação. Por meio dela, ele nos
atrai para a "relação," isto é, a discussão com ele; daí, para
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que comece bem, em nome do Pai, e do Filho, e do Espí- 23. Os momentos de escuridão
rito Santo, Amém."

Ora o céu está nublado, ora claro; depois se torna nova-


mente chuvoso. Assim é também a natureza humana. É
sempre de se esperar que, de quando em quando, as nu-
vens cubram o sol. Os próprios santos conheceram mo-
mentos, dias e semanas de escuridão. Diziam então que
"Deus os havia abandonado," para fazê-los tomar verda-
deiramente consciência da radical pobreza que vivem
quando são entregues assim, a si mesmos, e privados de
apoio. São inevitáveis esses momentos de escuridão, em
que tudo parece sem sentido, absurdo e vão, em que a
gente é importunada pela dúvida e tentações. Mas, até eles
podem ser proveitosamente utilizados.

O melhor meio de não se deixar abater durante esses dias


sombrios, é seguir o exemplo de Santa Maria do Egito.
Durante quarenta e oito anos, ela morou no deserto, para
além do Jordão; quando as tentações se abatiam sobre ela,
e a lembrança da sua vida de pecado em Alexandria, soli-
citava que ela renunciasse à permanência voluntária no
deserto, lançava-se ao solo, clamava a Deus, pedindo
ajuda, e só se levantava quando seu coração voltava a ser
humilde. Os primeiros anos foram penosos. Muitas vezes
ela teve de ficar nesse estado por longos dias. Mas, após
dezessete anos, chegou o tempo do descanso.

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Em períodos assim, permanece calmo. Não te deixes per- Os santos falam do que chamam de luz sem ocaso. É uma
suadir a freqüentar mais a vida social, nem a procurar uma luz que brilha, não para os olhos exteriores, mas no cora-
diversão. Não tenhas piedade de ti mesmo; procura apenas ção de quem não cessa de caminhar na pureza e na ino-
o conforto de clamar ao Senhor: "Vem livrar-me, ó Deus! cência. Ela faz as trevas recuarem de pronto, e nos enca-
Iahweh, vem de pressa em meu socorro!" (Sl 70:2); "... minha invencivelmente rumo ao dia pleno. Sua caracterís-
estou fechado e não posso sair" (Sl 88:9), e outros apelos tica é ser sempre mais pura. É a Luz da Eternidade, que
semelhantes. Aliás, só dele poderás esperar ajuda verda- não conhece crepúsculo e que já brilha através do véu do
deira. Procurando um conforto aleatório, não vás perder tempo e da matéria. Aliás, os santos nunca dizem que essa
toda a tua colheita. Isola-te do que está ao teu redor. Ergue luz lhes foi dada; afirmam apenas que ela só é concedida
a cabeça: agora tua paciência e constância são postas à aos que purificaram o coração através do amor pelo Se-
prova. Se suportares essa prova, agradece a Deus, que te nhor, no caminho estreito que escolheram livremente.
deu força. Se sucumbires, levanta-te prontamente, pede
perdão, e diz a ti mesmo: "O que tenho, é o que mereço!" O caminho estreito não tem fim: é um caminho eterno (Sl
Pois a própria queda foi a tua punição. Contaste demais 139:24). Cada passo que se dá é um começo. Aí, o pre-
contigo mesmo, e agora vês aonde isso te levou. Fizeste sente inclui o futuro, o dia do julgamento; o presente in-
uma experiência: não te esqueças de dar graças. clui o passado: a criação. Pois o Cristo está presente em
toda parte, sem estar ligado, pelo tempo, ao céu e ao in-
ferno simultaneamente. Quando chega aquele que é o Um,
desaparece toda multiplicidade, mesmo no tempo e no es-
paço. Tudo se reúne e se torna simultâneo, nas profunde-
zas do teu coração. Encontraste, então, o que procuravas:
a profundidade, a altura e a largura da cruz; o Salvador e
a salvação.

Assim, pois, se queres salvar a tua alma e ganhar a vida


eterna, recomeça a sacudir incessantemente o teu torpor,
a fazer o sinal da cruz e a dizer: "Concede-me, Senhor,

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idênticas: lavas a louça, cuidas dos filhos, vais trabalhar, 24. A respeito de Zaqueu
recebes o salário e pagas os impostos. Cumpres, como
todo mundo, o que faz parte da tua vida exterior, pois não
é possível abandoná-lo. Mas, renunciaste a ti mesmo. Como Zaqueu, subiste numa árvore para ver o Senhor (cf.
Abandonaste uma coisa, para obteres outra. Lc 19). Não o fizeste nem apenas em espírito, nem usando
unicamente as faculdades intelectuais. És um ser humano,
"Se possuo a ti, que poderei ainda desejar sobre a terra?" provido de corpo: por isso, como Zaqueu, empregaste o
(cf. Sl 73:25). Nada, responde São João Clímaco, senão vigor dos teus membros e as realidades terrenas para te
orar sem cessar e unir-me a ti, no silêncio. Os outros são elevares do solo. E, se agiste assim, com inteligência e
escravos das riquezas, das honrarias, ou do desejo de ad- discernimento, levando em conta o peso do teu corpo e a
quirir bens materiais; meu único desejo é unir-me a Deus. medida das tuas forças, mas sem medo de parecer ridículo,
tiveste a felicidade de subir suficientemente acima da agi-
A oração, com tudo o que ela implica de renúncia a si tação da multidão — isto é, dos teus impulsos terrenos —
mesmo, tornou-se tua única razão de viver; a parte mais para captar, por um momento, o olhar do Senhor, que te
real de tua existência. Andar com Deus (cf. Gn 6:9) é do- procurava.
ravante a única coisa que, para ti, possa ter valor diante de
todos os acontecimentos do céu e da terra. Para quem leva Tu mesmo o verificas: desde que tomaste mais consciên-
o Cristo em si, deixou de haver morte, doença e aflição cia da tua própria escuridão, já não és tão atraído quanto
neste mundo. Esse já entrou na vida eterna, e vê tudo sob antes pelas distrações e pela vida social; percebeste, como
essa luz. num relâmpago, o teu homem interior, tal como é na rea-
lidade. Talvez tenhas a impressão de que teu coração se
Dia e noite, a semente celestial brota e cresce em teu co- assemelhasse, até agora, a uma casca de noz sacudida pe-
ração, sem saberes como. A terra do teu coração produz las ondas, sem alvo, nem piloto. Agora, a viagem tem um
primeiro o caule, depois a espiga, depois o grão que enche objetivo, e isso é importante. Todavia, continuas a ser a
a espiga (Mc 4:27-28). mesma casquinha de noz, perdida no oceano deserto; se
navegaste convenientemente, agora percebes, pela pri-
meira vez, a que ponto o teu barco é frágil e minúsculo.

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Basta que manifestemos nossa boa intenção — diz o arce- 26. A pérola de alto preço
bispo Teofilacto da Bulgária — para que o próprio Senhor
seja constantemente o nosso guia. Jesus disse a Zaqueu:
"... desce depressa — isto é, humilha-te — pois hoje devo Desprovido de todo conhecimento, incapaz de qualquer
ficar em tua casa" (Lc 19:5). "tua casa," aqui, pode-se in- bom pensamento e de qualquer boa ação, sem memória do
terpretar como "teu coração." Está bem, diz o Senhor, su- passado e sem vontade para o futuro; tão inútil quanto um
biste numa árvore e realizaste uma parte de teus desejos trapo velho, tão insensível quanto as pedras do caminho;
terrenos, porque desejavas ver-me. Querias estar em con- desagregando-te como um cogumelo carunchado nos bos-
dições de me perceber quando passasse em teu coração. ques, destinado à morte como um peixe arremessado à
Mas agora, apressa-te em te humilhar, ao invés de ficares margem; derramando lágrimas por tua miserável condi-
aí, pensando que estás melhor colocado que os outros; ção, começarás a orar diante do Todo-poderoso, teu Juiz
pois é no coração do humilde que devo habitar. "Ele des- e teu Criador, teu Salvador e teu Mestre, o Espírito de ver-
ceu imediatamente e recebeu-o com alegria" (Lc 19:6). dade e o Dispensador de vida. Como o filho pródigo, bal-
buciarás das profundezas de tua fraqueza: "... Pai, pequei
Zaqueu, chefe dos publicanos, recebe, portanto, o Cristo contra o céu e contra Ti; já não sou digno de ser chamado
E a primeira coisa que faz é renunciar a todos os seus bens. teu filho (Lc 15:21); Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
Pois, sem demora, dá a metade deles aos pobres; e o resto tem piedade de mim, pecador."
é logo distribuído, certamente, para restituir o quádruplo
do que havia extorquido. "... Ele também é um filho de Conheces tua fraqueza, e estás diante do Todo-poderoso,
Abraão" (Lc 19:9): ele ouviu a voz do Senhor e imediata- como um grão de pó. Mas, do fundo da tua miséria, sentes
mente deixou o seu país e a casa do seu pai (cf. Gn 12:1), crescer em ti o amor pelos outros homens, porque eles fo-
onde o egoísmo e as paixões reinavam como senhores. ram criados pelo Senhor e recebem sua luz. Ele, cuja es-
sência é insondável, cuida deles; e isso basta para que es-
Zaqueu descobriu que um coração que recebe o Cristo tejas pronto a sacrificar tudo por eles.
deve esvaziar-se de todo o resto; deve dar tudo o que pos-
sui de riquezas injustamente adquiridas: "... a concupis- E acontece então uma coisa estranha: quanto mais desces
cência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho às profundezas do teu coração, mais te elevas acima de ti
das riquezas" (1Jo 2:16). Ele compreendeu que quem é mesmo. As condições exteriores de tua vida permanecem
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contrário, estiveres tenso e agitado, em estado de exalta- rico neste mundo, é pobre no mundo que virá; pois, ser
ção ou de desânimo; se sentes abatimento, amargura, ou rico materialmente é ser espiritualmente pobre, segundo
desejo excessivo de ação; se estás mergulhado num senti- São João Crisóstomo. Com efeito, se o rico não fosse tão
mento de êxtase ou na embriaguez dos sentidos, como a pobre, não procuraria ser tão rico.
que se sente escutando música; se tens a impressão de
contentamento e de euforia que te torna "contente contigo Assim como é impossível unir a saúde à doença, é também
mesmo e com o mundo todo," estás no caminho errado. impossível conciliar o amor e a posse, declara Santo Isaac,
Fizeste repousar demasiadamente o teu edifício sobre ti o Sírio. Pois, quem ama o próximo, abandona incondicio-
mesmo. Toca em retirada e volta a reprovar-te; esse deve nalmente tudo o que possui: essa é a natureza do amor.
ser sempre o ponto de partida de toda verdadeira oração. Mas, sem amor, é de todo impossível entrar no Reino de
Deus. Zaqueu também verificou isso.
O anjo de luz sempre traz a paz; essa paz que os demônios
das trevas querem perturbar a todo custo. É nisso, dizem Quanto menos se possui, mais a vida se simplifica. Todo
os santos Padres, que é possível reconhecer os poderes supérfluo é rejeitado, e o coração se recolhe em seu cen-
maus, e distingui-los dos bons. tro. Pouco a pouco, o homem interior se esforça por pene-
trar no seu quarto mais interno, em que se encontram os
degraus que sobem até o céu.

Também a oração se torna, assim, mais simples. As ora-


ções se reúnem ao redor do centro do coração e ali pene-
tram. E nessas profundezas, descobre-se a única oração
verdadeiramente necessária: o pedido de misericórdia.

O que pode desejar um pecador, e o primeiro deles (cf.


lTm 1:15), senão que o Senhor tenha piedade dele? Terá
alguma coisa para lhe oferecer? Será que tem forças, von-
tade, segurança, que lhe sejam próprias? Poderá empreen-
der alguma coisa por si mesmo? Poderá saber alguma
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coisa? Será que pode compreender, apreender alguma ção um único "Senhor, tem piedade." Tua oração será ne-
coisa, ele, que nada tem de próprio, nada que possa cha- cessariamente intermitente. Continuas a ser homem; ape-
mar de seu? nas "... os anjos nos céus vêem continuamente a face de
meu Pai que está nos céus" (Mt 18:10). Tu, ao contrário,
Ele nada tem, pois o pecado não tem existência positiva; tens um corpo terreno, que reclama o que necessita. Não
o pecado não é mais que privação, opacidade, recusa. É aí julgues ter perdido tudo se, no início, esqueceres de orar
que se encontra o pecador: nesse nada. por algumas horas, ou até durante um dia ou mais. Faz
tudo com naturalidade e simplicidade: és um marinheiro
Ele se vê assim; e, quanto menos possui, mais rico é Por-
sem experiência, que se ocupou de outra coisa com tanta
que o quarto vazio, que está no seu coração, transborda,
ansiedade, que se esqueceu de prestar atenção ao vento.
não de bens transitórios, mas da plenitude da vida eterna,
Assim, nada esperes de ti mesmo. Mas não contes, tam-
da sua luz e de suas certezas: o amor e a misericórdia. E
pouco, muito com os outros.
isso, porque o Senhor é o hóspede da sua casa.
A concentração é uma coisa; a distração, outra A oração
Mas, como .pode o pecador merecer a vinda do Senhor?
tornará o teu pensamento vivo e claro. Então, as coisas
Como pode apenas imaginar que o Senhor queira olhar
ficarão em ordem. As pessoas que oram vêem tudo o que
para ele, mergulhado nas suas trevas? É inútil esforçar-se
as cerca, notando e observando cada coisa; mas a perspi-
para se purificar, combater e trabalhar, seguir os manda-
cácia desse olhar vem da oração, que derrama sobre tudo
mentos do Evangelho, velar, jejuar, procurar de todas as
a sua luz penetrante.
maneiras sacrificar-se pelo Senhor; apesar de tudo isso,
ele sucumbe ao mau humor e à ira, à falta de amor e à Nosso espírito é ativo quando a pureza reina dentro de
preguiça, à impaciência e à ingratidão, e a todos os vícios nós. Enquanto procurarmos estender no coração, esse
imagináveis. Como pode esperar que o Senhor venha a reino do desapego, nosso ser espiritual continuará a cres-
semelhante morada? cer.
Por isso, ele ora nestes termos: "Senhor, tem piedade, tem A oração produz a paz interior, uma tranqüila calma na
piedade de mim, pecador; pois, na verdade, tentei fazer o tristeza, o amor, o reconhecimento, a humildade. Se, ao
que estava prescrito, para te servir. Trabalhei o campo do
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vem ser, também elas, vigiadas com rigor. Prega-as forte- meu coração, cujo cuidado me tinhas confiado, e aí guar-
mente com as palavras da oração, a Santa Escritura, a lei- dei os animais (cf. Lc 17:7-10). Mas, sou apenas o teu hu-
tura dos Salmos e das obras dos santos Padres, onde todas milde servo, e sem ti nada posso fazer. Assim, tem pie-
essas coisas estão prescritas. Não permitas que tua imagi- dade de mim e enche-me da tua graça."
nação voe para um lado e para outro, à vontade. As idéias
que entusiasmam não passam, em geral, de fugas estéreis Pela ação da sua liberdade, ele aumenta a fé (cf. Lc 17:5);
para o mundo das ilusões. Quando teu pensamento já não e, pela oração, obtém as energias necessárias para agir.
está, de modo útil, ocupado pelo trabalho, chama-o de Então, ação pessoal e oração unem-se com laços estreitos,
volta à oração. até que suas águas se misturem completamente, e que a
ação pessoal se torne oração, e a oração se torne o nosso
Toma cuidado para que tua imaginação e teu pensamento agir. É o que os santos chamam de atividade espiritual,
te obedeçam com tanta docilidade quanto um cão bem Oração do Coração, ou Oração de Jesus.
adestrado. Não permitas que ele fique saltando ao teu re-
dor, latindo; que fuce nas latas de lixo, nem que role no
regato. Assim, também deves ter sempre a possibilidade
de trazer de volta os pensamentos e a imaginação; e deves
fazê-lo inúmeras vezes, a cada instante. Se não o fizeres,
diz Santo Antão, serás semelhante a um cavalo montado
sucessivamente por vários cavaleiros, sem descanso, e
que acaba caindo, exausto e coberto de espuma.

Se bates com muita força sobre a casca de uma noz, pode-


rás quebrar também a noz. É necessário agir com precau-
ção. Não comeces com pressa a Oração de Jesus. Não te
apresses em te servir dela; e, mesmo depois, continua a
dizer as tuas outras orações. Não fiques por demais ansi-
oso. Não creias que, por ti mesmo, possas dizer com aten-

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25. A Oração de Jesus com ela. Não apenas as inquietações terrenas não se con-
ciliam com essa invocação, mas também toda preocupa-
ção ou qualquer esperança de ouvir uma resposta; toda vi-
O abade Isaías disse que a Oração de Jesus é um espelho são interior, a impressão de sentir alguma coisa, os deva-
para o espírito e uma lâmpada para a consciência. Tam- neios românticos, as perguntas curiosas e o jogo da ima-
bém a compararam a uma voz tranqüila, ressoando numa ginação. A simplicidade é uma condição indispensável,
casa perpetuamente: todos os ladrões que tentam entrar, bem como a humildade, a sobriedade do corpo e do espí-
fogem ao perceber que alguém está acordado. A casa, é o rito e, de modo geral, tudo o que implica o combate invi-
coração; os ladrões, as sugestões más. A oração, é a voz sível.
de quem está montando guarda. Porém, aquele que vela,
já não sou eu; é o Cristo. Os principiantes, em particular, devem estar vigilantes
contra tudo o que se assemelhe à mais ligeira tendência ao
A atividade espiritual encarna o Cristo na nossa alma. Ela misticismo. A Oração de Jesus é uma atividade, um es-
implica uma contínua lembrança de Deus: ele permanece forço prático, e um meio que possibilita o acolhimento e
escondido em ti, na tua alma, no teu coração, na tua cons- o emprego dessa força que se chama Graça de Deus —
ciência: "Eu dormia, mas meu coração velava" (Ct 5:2). sempre presente nos batizados, embora escondida — para
Ainda que eu esteja dormindo, ou deva ocupar-me de ou- que ela produza fruto. A oração faz frutificar essa força
tra coisa, meu coração continua fixo na oração, isto é, na em nossa alma; ela não tem outro objetivo. É um martelo
Vida Eterna, no Reino dos céus, no Cristo. As raízes do que quebra uma carapaça. O martelo é duro, e seus golpes
meu ser estão firmemente plantadas no solo que as ali- machucam. Abandona qualquer idéia de suavidade, de en-
menta. levo, de vozes celestiais; só um caminho leva ao Reino de
Deus: é o da Cruz. Ficar suspenso, crucificado a uma ár-
O meio de chegar a essa oração é a invocação: "Senhor vore, é um horrível suplício. Não esperes nada mais.
Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, peca-
dor." Repete-a em voz alta, ou apenas mentalmente, com Crucificaste o teu corpo, pregando-o firmemente a um gê-
tranqüilidade, devagar; mas com atenção, com o coração nero de vida simples e uniforme, impondo a ti mesmo uma
tão livre quanto possível de tudo o que não se harmonize estrita disciplina. A atividade mental e a imaginação de-

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a vista. Só tens compaixão por ti; conseqüência: teu hori-  
zonte é muito estreito. Teu amor é prisioneiro de ti
 
mesmo. Liberta-o, e já não serás infeliz.
 
Renuncia às tuas nocivas fraquezas e à tua insaciável sede
de bem-estar; ataca-as por todos os lados! Condena à  
morte o teu apetite de prazer. Não lhe deixes ar para res-  
pirar. Sê rigoroso para contigo; recusa a teu "eu" carnal as
migalhas de prazer que ele reclama obstinadamente. Pois  
o hábito se fortifica pela repetição dos atos; morre, porém,
se não for alimentado.  

Mas, toma muito cuidado para não fechar ao mal a porta Caminho dos Ascetas 
principal, deixando entreaberta a porta dos fundos, por
onde ele poderá esgueirar-se, com habilidade, sob outra Tito Colliander 
forma.

De que serviria, por exemplo, dormir no chão, se, ao


mesmo tempo, procurasses a satisfação em banhos quen-
tes? Para que deixar de fumar, se dás livre curso ao desejo
de tagarelar? Qual o benefício de não tagarelar, se lês ro-
mances cativantes? E de que servirá abster-te de ler, se
deixas em liberdade a imaginação, e te deixas embalar por
doces devaneios?

Tudo isso não passa de diferentes formas de uma só e


única realidade: a insaciável sede de satisfazer tua neces-
sidade de gozo.
20  1 
    6. É preciso extirpar o desejo do gozo

A Escritura diz que apenas um pequeno número encontra


o caminho estreito que conduz à vida; e que nos devemos
esforçar para entrar no caminho estreito, "... pois eu vos
digo que muitos procurarão entrar e não conseguirão" (Lc
13:24).

Devemos procurar a causa exatamente na repugnância


que temos em nos perseguir. Dominamos, talvez, os ví-
cios mais graves e mais perigosos, mas paramos por aí.
Deixamos as nossas pequenas fantasias se desenvolverem
livremente, como bem entenderem. Não cometemos rou-
bos nem trapaças; porém, os mexericos são a nossa delí-
cia. Não nos embriagamos, mas abusamos do chá ou do
café. Nosso coração continua repleto de desejos. As raízes
não foram extirpadas, e nós vagamos ao acaso na floresta
virgem que cresceu no solo fértil da ternura que sentimos
por nós mesmos.

Ataca de frente essa ternura para contigo, pois é ela a raiz


de todos os males de que sofres. Se não tivesses tanta pi-
edade por ti mesmo, perceberias imediatamente que és tu
que fazes a tua própria infelicidade, porque te recusas a
compreender que os males que te acontecem são, na rea-
lidade, uma coisa boa. A ternura por ti mesmo te escurece

2  19 
O homem espiritual pensa espiritualmente; sua esperança Sumário
é ouvir um dia os anjos se alegrarem "... por um só peca-
dor que se converte" (Lc 15:10), um pecador que não é
outro senão ele mesmo. Que sejam esses os teus sentimen- 1. Decisão inicial e perseverança ................ 5 
tos; trabalha animado por essa esperança, pois o Senhor 2. A insuficiência das forças humanas ........ 7 
nos deu este preceito: "... deveis ser perfeitos como o
vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5:48), e "Buscai, em pri- 3. A horta do coração ............................... 10 
meiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça" (Mt 6:33). 4. Um combate silencioso e invisível ........ 12 

Não te concedas repouso algum, nenhuma trégua, até que 5. A renúncia de si mesmo e a purificação do coração


tenhas condenado à morte essa parte de ti mesmo que pro-  .................................................................. 14 
vém da natureza carnal. Toma a resolução de descobrir em 6. É preciso extirpar o desejo do gozo ...... 19 
ti toda manifestação do homem animal, e de persegui-lo
7. É necessário transferir ao Cristo o amor por nós 
implacavelmente. "Pois a carne tem aspirações contrárias
ao espírito e o espírito contrárias à carne" (Gl 5:17). mesmos .................................................... 22 
8. É necessário estar sempre vigilante contra as 
Mas se temes tornar-te justo a teus próprios olhos, traba- repetidas ofensivas do inimigo ................. 26 
lhando para a tua salvação; se temes ser vencido pelo or-
gulho espiritual, examina-te a ti mesmo, e diz que aquele 9. A vitória sobre o mundo ....................... 30 
que teme tornar-se justo a seus próprios olhos, é cego. 10. Os pecados dos outros e os nossos .... 34 
Porque não vê que ele é justo a seus próprios olhos.
11. O combate interior é apenas um meio a serviço de 
um fim ...................................................... 37 
12. A obediência ....................................... 42 
13. Progresso e profundidade .................. 45 
14. Humildade e vigilância ....................... 47 
15. A oração ‐ I ......................................... 54 
18  3 
16. A oração ‐ II ........................................ 57  saem de dentro do homem, e são elas que o tornam im-
17. A oração ‐ III ....................................... 61  puro" (Mc 7:21-23). Por isso, ele exorta assim os fariseus:
"... limpa primeiro o interior do copo para que também o
18. A oração ‐ IV ....................................... 65  exterior fique limpo!" (Mt 23:26).
19. A sobriedade do corpo e do espírito: condição da 
Pondo em prática esse preceito de começar pelo interior,
oração ...................................................... 68 
devemos ter presente em nosso espírito que não é, de
20. O jejum ............................................... 72  modo algum, por nós mesmos, que purificamos o nosso
21. É preciso evitar o exagero .................. 75  coração. Não é para a satisfação pessoal que limpamos e
polimos o quarto de hóspedes, mas sim para que o nosso
22. Do uso das realidades materiais ........ 78 
hóspede se sinta bem. Nós nos perguntamos: "Será que
23. Os momentos de escuridão ............... 81  vai achá-lo a seu gosto? Irá ficar?" Todo o nosso pensa-
24. A respeito de Zaqueu ......................... 83  mento é para ele.

25. A Oração de Jesus .............................. 88  Depois nos retiramos, ficamos em segundo plano, sem es-


26. A pérola de alto preço ........................ 93  perar resposta.
  Como explica Nicétas Stéthatos, existem para o homem
três estados: o homem carnal, que quer viver para o pró-
prio prazer, mesmo em detrimento dos outros; o homem
  natural, que deseja agradar ao mesmo tempo a si mesmo
e aos outros; o homem espiritual, que quer agradar só a
Deus ainda que seja em detrimento de si próprio.

O primeiro está abaixo da natureza; o segundo está con-


forme à natureza; o terceiro está acima da natureza: é a
vida no Cristo.

4  17 
Talvez te perguntes se isso é realmente necessário. Os 1. Decisão inicial e perseverança
santos Padres respondem com outra pergunta: Crês
mesmo que seja possível encher um vaso com água pura,
sem despejar primeiro a água suja que nele se encontra? Se queres salvar tua alma e conseguir a vida eterna, sacode
Ou gostarias de receber um hóspede amado, num quarto o teu torpor, faz o sinal da cruz e diz: «Em nome do Pai,
abarrotado com toda espécie de velharias e de objetos pos- e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.»
tos de lado? Não. "Todo o que tem esperança de ver o Se-
nhor tal como ele é, purifica-se a si mesmo," diz o após- Não se obtém a fé pela reflexão, mas pela ação. Não são
tolo São João (1Jo 3:3). as palavras e a especulação que nos ensinam quem é Deus,
mas a experiência. Para deixar entrar o ar fresco, é preciso
Purifiquemos, pois, o nosso coração! Joguemos fora todas abrir a janela; para bronzear a pele, é preciso expor-se ao
as velharias empoeiradas que aí se acumulam; lavemos o sol. Para adquirir a fé, é a mesma coisa; como dizem os
chão com escova, limpemos os vidros e abramos as jane- santos Padres, não se chega ao objetivo, permanecendo
las, para que o ar e a luz entrem no quarto, onde queremos confortavelmente sentado, esperando. Imitemos o filho
fazer um santuário para o Senhor. Troquemos enfim de pródigo: "Partiu, então, e foi ter com o pai" (Lc 15:20).
roupa, para que o nosso velho cheiro de bolor já não fique
em nós, e para que não sejamos lançados fora (cf. Lc Qualquer que seja o peso e o número de cadeias que te
13:28). Eis o nosso labor de cada dia e de cada instante. acorrentam à terra, nunca é tarde demais. Não é sem mo-
tivo que está escrito que Abraão tinha setenta e cinco anos
Fazendo isso, estaremos apenas cumprindo o que o Se- quando partiu; e os operários da undécima hora receberam
nhor nos ordenou por seu santo apóstolo Tiago: "... santi- o mesmo salário que os que trabalharam desde a manhã.
ficai os vossos corações" (Tg 4:8). Pede-nos o apóstolo
Paulo: "... purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do E também, nunca é excessivamente cedo. Nunca é cedo
espírito" (2Cor 7:1). Diz o Cristo: "Com efeito, é de den- demais para apagar um incêndio na floresta. Gostarias de
tro do coração dos homens que saem as intenções malig- ver tua alma devastada e queimada?
nas: prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambi-
No batismo, recebeste a ordem de te lançares num com-
ções desmedidas, maldades, malícia, devassidão, inveja,
bate invisível contra os inimigos da tua alma. Põe mãos à
difamação, arrogância, insensatez. Todas estas coisas más
16  5 
obra. Há bastante tempo, usas de subterfúgios. Mergu- desejos. Não creias que se possa separá-los uns dos ou-
lhado na negligência e na preguiça, desperdiçastes um tros: eles se prendem como os elos de uma corrente, como
tempo precioso. Só te resta recomeçar do princípio, por- as malhas de uma rede.
que lamentavelmente deixastes que se empanasse a pu-
reza que recebestes no batismo. Por isso, de nada serve atacar os vícios principais e os
maus hábitos que te opõem forte resistência, se ao mesmo
Começa, pois, a trabalhar desde já, sem demora. Não adies tempo não te esforças por vencer as pequenas fraquezas
a tua decisão para hoje à noite, para amanhã, para mais "inocentes": pequenas gulas, tentação de falar, curiosi-
tarde, "quando eu tiver terminado o que preciso fazer dade, hábito de se meter nos assuntos dos outros. Todos
agora." Um atraso pode ser fatal. os nossos desejos, de fato, grandes ou pequenos, têm o
mesmo fundamento: o nosso hábito constante de satisfa-
Não; é agora, no mesmo instante de tomar a decisão, que zer apenas a nossa própria vontade.
deves mostrar pelos teus atos, que te despedistes do teu
velho "eu" e que acabas de começar uma vida nova, à pro- É, portanto, a vontade própria que deve ser condenada à
cura de um novo objetivo, seguindo novos caminhos. Le- morte. Desde o pecado original, nossa vontade está exclu-
vanta-te, pois, corajosamente, e diz: "Senhor, concedei- sivamente a serviço do nosso próprio "eu." Assim, o ob-
me que comece agora. Ajudai-me!" Porque, acima de jetivo do combate é a morte da vontade própria. É preciso
tudo, tens necessidade da ajuda de Deus. começar sem demora, e prosseguir na luta sem descanso.
Tens vontade de fazer uma pergunta? Não a faça! Tens
Persevera em tua decisão, e não olhes para trás. Que o muita vontade de tomar duas xícaras de café? Toma ape-
exemplo da mulher de Ló te sirva de lição: ela se transfor- nas uma! Tens a tentação de olhar pela janela? Não olhes!
mou em coluna de sal, por ter olhado para trás (cf. Gn Tens desejo de visitar alguém? Fica em casa.
19:26). Abandonastes o homem velho: não retomes o que
é desprezível. Como Abraão, ouviste a voz do Senhor que Isso é perseguir a si mesmo. Através desse meio, com a
te disse: "Deixa teu país, tua parentela e a casa de teu pai, ajuda de Deus, faz-se calar a voz ruidosa da própria von-
para o país que te mostrarei" (Gn 12:1). De agora em di- tade.
ante, é nesse país que se deve concentrar toda a tua aten-
ção.
6  15 
5. A renúncia de si mesmo e a purificação do coração 2. A insuficiência das forças humanas

Desarmado, fraco e desprovido de poderes, empreende a Dizem os santos Padres, todos a uma só voz: "A primeira
mais difícil das tarefas: vencer teus próprios desejos ego- coisa que deves inculcar no espírito é que nunca, de modo
ístas. É exatamente isso a "perseguição de si mesmo" de algum, te deves apoiar em ti mesmo. O combate que vais
que depende, finalmente, o resultado do teu combate; enfrentar é extraordinariamente árduo, e as forças huma-
pois, enquanto a tua vontade egoísta dominar, não poderás nas, sozinhas, são de todo insuficientes para conduzi-lo.
dizer ao Senhor com coração puro: "Que seja feita a tua Se confias em ti mesmo, serás derrubado de imediato, e
vontade." Se não te podes desfazer da tua própria gran- perderás toda a vontade de continuar a luta. Só Deus te
deza, não poderás abrir-te à verdadeira grandeza. Se te pode dar a vitória, segundo o teu desejo."
agarras à própria liberdade, não poderás tomar parte na
verdadeira liberdade, que é o reino de uma única vontade. Para muita gente, a decisão de não colocar em si mesmo
a confiança é um sério obstáculo, que os impede de come-
O mais profundo segredo dos santos é este: não procures çar uma vez por todas. É necessário perseverar, sob pena
a liberdade, e a liberdade te será dada. de abandonar qualquer esperança de ir mais longe. Com
efeito, como poderá um homem receber conselhos, forma-
A terra não produzirá senão cardos e espinhos, diz a Es- ção e ajuda, se pensa que conhece tudo, pode tudo, e não
critura. É com o suor do seu rosto, com muito sofrimento, tem necessidade alguma de conselhos? Através de seme-
que o homem deve cultivá-la. Esta terra é o homem lhante muro de suficiência, nenhum raio de luz consegue
mesmo, sua própria natureza. Os santos Padres aconse- passar. "Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e in-
lham a começar pelas coisas pequenas; pois, como diz teligentes na sua própria opinião!" (Is 5:21); e São Paulo
Santo Efrém, o Sírio, como poderias apagar um grande nos dá este conselho: "... não vos deis ares de sábios" (Rm
incêndio antes de aprender a abafar um fogo de pequenas 12:16). O reino dos céus foi revelado aos pequeninos, mas
proporções? Se queres ser capaz de resistir a uma paixão continua oculto aos sábios e aos doutores (cf. Mt 11:25).
violenta — dizem os santos Padres — abate os pequenos
Devemos, portanto, nos despojar dessa confiança imode-
rada que temos em nós mesmos. Muitas vezes, ela está
14  7 
arraigada em nós tão profundamente, que já nem percebe- De agora em diante, deverás pensar que tudo o que te
mos o domínio que exerce sobre nosso coração. O nosso acontece, importante ou não, te é enviado por Deus, para
egoísmo, a preocupação com a nossa pessoa, o amor pró- ajudar-te no teu combate Só ele sabe o que te é necessário,
prio, são precisamente as causas de todas nossas dificul- e o que te falta no momento presente: adversidade ou
dades, de nossa falta de liberdade interior na provação, de prosperidade, tentação ou queda. Nada acontece por
nossas contrariedades, de nossos tormentos da alma e do acaso; não há nenhum acontecimento do qual nada tenhas
corpo. que aprender. Deves compreender bem isso, desde já, pois
é assim que aumentarás a tua confiança no Senhor, que
Olha um pouco para ti mesmo, e verás a que ponto estás escolhestes seguir.
aprisionado pelo desejo de dar prazer ao teu "eu," e so-
mente a ele. Tua liberdade está presa pelos laços estreitos Os santos nos dão ainda um outro conselho para a cami-
do amor por ti mesmo; assim, és balançado ao acaso, nhada: considera-te uma criança que apenas começa a fa-
como um cadáver inconsciente, da manhã à noite. "Agora, lar, e que esteja dando os primeiros passos. Toda a tua sa-
estou com vontade de beber," "agora, estou com vontade bedoria segundo este mundo, e todo o teu conhecimento,
de sair," "agora estou com vontade de ler o jornal." A cada não têm utilidade para o combate que te espera; tampouco
instante, teus próprios desejos te conduzem como por te servem a situação social e os bens. Tudo o que se pos-
meio de uma rédea; e, se algum obstáculo se coloca no sui, e que não é empregado no serviço do Senhor, é um
caminho, imediatamente perdes a calma, sob o efeito da fardo; um conhecimento do qual o coração não partilhe é
contrariedade, da impaciência ou da cólera. astéril e, logo, nocivo, uma vez que é pretensioso. Cha-
mam-no "ciência simples," porque é desprovido de calor
Se sondares as profundezas de tua consciência, descobri- e não alimenta o amor. Deves, pois, abandonar toda a tua
rás as mesmas coisas. O sentimento de desagrado que ex- ciência, e tornar-te ignorante, para seres sábio. Deves tor-
perimentas, quando alguém te contradiz, possibilita facil- nar-te pobre para seres rico, e fraco para seres forte.
mente essa verificação. Vivemos, assim, como escravos.
Mas "... onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liber-
dade" (2Cor 3:17).

8  13 
4. Um combate silencioso e invisível Que proveito poderás encontrar em gravitar assim, cons-
tantemente, em torno do teu "eu"? Não nos ordenou o Se-
nhor que amássemos ao próximo como a nós mesmos, e
Agora, que sabemos onde se deve travar o combate que que amássemos a Deus acima de todas as coisas? Mas, nós
acabamos de começar, e o que está em jogo, resta-nos o fazemos? Não estamos, ao contrário, sempre ocupados
compreender por que o chamam "combate invisível." É em pensar no nosso bem-estar?
que ele se desenvolve inteiro em nosso coração, em silên-
cio, bem no fundo de nós mesmos. Esse particular também Convence-te, pois, de que nada de bom pode vir de ti pró-
é importante, e os santos Padres insistem sobre ele com prio. E se algum pensamento desinteressado despertar em
veemência: "Conserva os lábios bem fechados sobre o teu ti, podes estar certo de que não vem de ti, mas que deriva
segredo!" Se abrirmos a porta durante um banho de vapor, da Fonte da Bondade, e que foi depositado em ti; é um
o calor vai-se embora, e o tratamento perde a eficácia. dom daquele que dá a vida. Do mesmo modo, o poder de
fazer passar ao ato esse bom pensamento, não vem de ti,
Assim pois, não fales a ninguém da tua recente decisão. mas te é concedido pela Santíssima Trindade.
Não digas nada da tua nova vida, nem das experiências
que fazes, ou daquilo com que, um dia, esperas ser favo-
recido. Deves tratar disso só entre Deus e ti, exclusiva-
mente. A única exceção deve ser teu pai espiritual.

O silêncio é necessário, porque falar com facilidade de


seus próprios assuntos só pode incitar à preocupação con-
sigo mesmo, além de alimentar a confiança em si. Ora, são
tendências que devem ser reprimidas, antes de tudo. Gra-
ças ao silêncio, cresce a nossa confiança naquele que vê o
que está escondido; graças ao silêncio, falamos àquele que
ouve sem necessidade de palavras. Procura apenas dirigir-
te a ele; é nele que deve estar a tua confiança. Estás anco-
rado na eternidade, e na eternidade, toda palavra emudece.
12  9 
3. A horta do coração mundo e não tem fim. Nenhuma autoridade terrestre tem
poder sobre ela, e a descobrimos no fundo do coração.

A vida nova, que acaba de começar, tem sido muitas vezes "Persegue-te a ti mesmo, diz santo Isaac, o Sírio, e teu ini-
comparada à de um agricultor. O solo que ele cultiva é um migo será derrotado só pela tua aproximação. Faze a paz
dom de Deus, como as sementes, o calor do sol, a chuva e contigo, e contigo farão a paz o céu e a terra. Esforça-te
a força que faz crescer os legumes. Mas o trabalho lhe foi para entrar na tua cela interior, e verás a morada celeste,
confiado. pois elas são a mesma e única coisa: penetrando em uma,
contemplarás também a outra. A escada do Reino está em
Se o agricultor quiser obter uma colheita abundante, deve ti, escondida no teu coração. Se te desfizeres do fardo de
trabalhar de sol a sol, escavar, afofar a terra, regar, podar, teus pecados, descobrirás em ti o atalho que tornará pos-
pois suas culturas são ameaçadas por muitos perigos que sível a tua ascensão."
comprometem a colheita. Deve trabalhar sem descanso,
estar sempre alerta, sempre preparado para o que der e A morada celeste, de que fala o santo, é um outro nome
vier, sempre pronto a intervir. E apesar de tudo isso, afinal da vida eterna. Também é chamada Reino dos céus, Reino
de contas, a colheita depende inteiramente do tempo e dos de Deus, ou simplesmente Cristo. Viver no Cristo, é viver
elementos, isto é, de Deus. na vida eterna.

A horta que nos dispusemos a cultivar, e pela qual deve-


mos velar, é o nosso próprio coração; a colheita é a vida
eterna.

Ela é eterna porque não é medida pelo tempo e pelo es-


paço; não está ligada às circunstâncias exteriores. É a vida
verdadeira, uma vida de liberdade, de amor, de misericór-
dia e de luz. Não tem nenhum limite, e por isso é eterna.
É uma vida espiritual, que transcorre numa esfera espiri-
tual. É uma nova dimensão da existência. Começa neste
10  11 
A liberdade é o objetivo do homem; porém, ele não a pode Precisas decidir-te a extirpar o simples desejo de possuir
dar a si mesmo, nem recebê-la do seu próximo; ele só a objetos agradáveis, de experimentar um sentimento de
obterá em Deus, diz o bispo São Teófano. bem-estar, de ter conforto. Deves aprender a amar as con-
trariedades, a pobreza, o sofrimento, as privações. Deves
Na verdade, o convite à liberdade toma esta forma: "Ar- aprender a seguir os preceitos do Senhor: não dizer coisas
rependei-vos!" E o Senhor nos dirige este chamado: inúteis, não se vestir com excessivo aprimoramento, obe-
"Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do decer sempre à autoridade, não olhar uma mulher com
vosso fardo e eu vos darei descanso" (Mt 11:28). De que concupiscência, não ter acessos de cólera, etc... Todos es-
cansaço se trata? Daquele que se sofre para assegurar a ses preceitos nos foram dados para que os pratiquemos;
própria felicidade temporal? E qual é esse fardo? O dos não para que nos comportemos como se eles não existis-
cuidados e preocupações terrenas? De modo nenhum, res- sem. Senão, eles não nos teriam sido impostos pelo Deus
pondem os santos. Por isso o Senhor diz ainda: "Tomai de misericórdia.
sobre vós o meu jugo e aprendei de mim — de mim, que
jamais pensei em meu bem-estar temporal, nem levei o "... Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo"
peso dos cuidados deste mundo, durante a minha vida na (Mt 16:24): o Senhor confia, assim, na vontade de cada
terra." um ("se alguém quer") e ao esforço pessoal ("negue-se a
si mesmo").
Mas, o que obterão os que sofrem por sua salvação e que
se cansam sob o peso da oposição do mundo, interior e
exteriormente ao mesmo tempo? Qual será a parte atribu-
ída aos que tomam sobre si mesmos o jugo do Cristo, que
vivem como ele viveu, e que aprendem, não dos homens,
nem dos anjos, nem dos livros, mas do Senhor mesmo?
Que são instruídos por sua própria vida, pela luz e pela
ação, no fundo de si? Que podem dizer, também eles: sou
doce e humilde de coração, não me tenho em alta conta,
nem ao que posso dizer ou fazer? Todos estes encontrarão
o repouso para sua alma. Irão recebê-lo do próprio Senhor.
40  21 
7. É necessário transferir ao Cristo o amor por nós dera um prisioneiro entre outros prisioneiros; a seus pró-
mesmos prios olhos, ele não se separa de seus companheiros: é um
pecador entre os pecadores, nas entranhas da terra. Porém,
enquanto os outros, resignados e sem esperança, dormem
"Se sairmos de nós mesmos, o que encontraremos?" per- ou jogam baralho para passar o tempo, ele avança e traba-
gunta o bispo Teófano, o Recluso. E ele próprio dá, ime- lha. Encontrou um tesouro, mas escondeu-o de novo (cf.
diatamente, a resposta: "Encontramos Deus e o próximo." Mt 13:44); ele leva, escondido dentro de si, o Reino de
Essa é a verdadeira razão pela qual a negação de si mesmo Deus, isto é, o amor, a fé, a esperança de chegar um dia
é uma condição — e a principal — que deve ser cumprida ao ar livre, fora. No momento, sem dúvida, ele só entrevê
por quem procura a salvação no Cristo: é assim que o cen- a liberdade como num espelho (cf. lCor 13:12), mas em
tro de gravidade de nosso ser se pode deslocar de nós para esperança já está livre: "Pois fomos salvos em esperança"
o Cristo, que é, a um só tempo, Deus e nosso próximo. (Rm 8:24). No entanto, o Apóstolo acrescenta: "e ver o
que se espera, não é esperar," para compreendermos me-
Isso significa que toda a solicitude, todo o cuidado, todo lhor o alcance do que precede. Com efeito, quando o pri-
o amor que prodigalizamos a nós mesmos é, pois, sem que sioneiro obtém a liberdade e a vê face a face, não é mais
percebamos, completa e naturalmente transferido para um prisioneiro entre os outros, sobre a terra. Ele se encon-
Deus e, por ele, para o nosso próximo. Só então é que po- tra, então, no mundo da liberdade, daquela liberdade na
derás fazer o bem de modo que "... não saiba a tua mão qual Adão fora criado, e que nos foi restituída no Cristo.
esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fi-
que em segredo" (Mt 6:3-4). Como o prisioneiro, já somos livres em esperança; mas a
realização de nossa salvação situa-se para além de nossa
Até que isso se realize, não será possível estar "... repletos vida terrena. Só então poderemos dizer definitivamente:
de todo conhecimento e em grau de vos poder admoestar "Estou salvo!" De fato, o mandamento de ser perfeito
mutuamente" (Rm 15:14), de modo real, não apenas ma- como nosso Pai celeste é perfeito (cf. Mt 5:48), não pode
terial. Todas as nossas tentativas nesse sentido são defor- ser plenamente cumprido no homem enquanto permanece
madas na base, porque são "nossas" e procedentes do neste mundo. Logo, por que nos foi dado? Os santos res-
nosso desejo, de nos agradar. É particularmente necessá- pondem: Para que possamos começar desde já o nosso tra-
rio compreender bem isto; senão, corremos o risco de nos balho, mas tendo diante dos olhos a eternidade.
22  39 
batismo. Sem uso, não terão nenhum proveito. Porém, uti- desviar com facilidade, entrando pelo caminho de um pre-
lizados com discernimento, permitirão que abras o cami- tenso devotamento aos outros e em obras bem intenciona-
nho para a liberdade e para a luz. das, mas que nos conduzem inevitavelmente ao lodaçal de
nossa própria satisfação.
"... é preciso passar por muitas tribulações para entrar no
Reino de Deus" (At 14:22). Devemos, como o homem Por conseguinte, não te ocupes demais com vendas de ca-
preso no subterrâneo, renunciar a descansar, a dormir, a ridade, reuniões de obras assistenciais e de outras ativida-
aproveitar os prazeres da vida; como ele, devemos perma- des semelhantes. A agitação, sob todas as suas formas, é
necer alertas e utilizar, da melhor forma, todos os instan- um temível veneno. Sonda o teu coração, examina-te com
tes que os outros homens passam dormindo, ou ocupados cuidado, e reconhecerás que muitas dessas atividades em
com ninharias. Não devemos largar a pá e a picareta, que que parece que nos doamos aos outros, procedem, na rea-
representam a oração, o jejum, as vigílias, e todas as ou- lidade, da necessidade de atordoar nossa consciência; sua
tras atividades pelas quais pomos em prática tudo quanto verdadeira origem é a nossa invencível tendência de pro-
o Senhor nos ordenou (cf. Mt 28:20). E, se nosso coração curar o que nos agrada e nos satisfaz (cf. Rm 15:1).
encontra dificuldade em aceitar tal disciplina, devemos
empregar toda a força de vontade para obrigá-lo a se su- Não; o Deus de amor, de paz e de total sacrifício não pode
jeitar, se quisermos realizar nosso propósito. estar onde se procura a própria satisfação, no barulho e na
agitação, mesmo sob nobres pretextos. Este é um princí-
Que recompensa terá nosso prisioneiro? Pode-se dizer que pio de discernimento: se a paz do teu espírito se perturba;
terá alguma recompensa? se estás desanimado ou um pouco irritado, porque uma
razão qualquer te obrigou a renunciar a uma boa obra, para
A recompensa será o seu próprio labor; ela consiste no a qual tinhas projetos, isso mostra que a sua origem era
amor que ele sente em si mesmo pela liberdade, na espe- equívoca.
rança e na fé que o fizeram tomar nas mãos as ferramen-
tas. À medida que ele trabalha, aumentam a esperança, o Talvez te perguntes: por quê? Os homens que têm experi-
amor e a fé: quanto mais ativo for e menos esforço des- ência da vida espiritual responderão que os obstáculos e
perdiçar, mais aumenta a sua recompensa. Ele se consi- as oposições exteriores só podem atingir os que não entre-
garam a Deus a própria vontade. É impensável que Deus
38  23 
tenha pela frente um obstáculo. Ora, um ato realmente de- 11. O combate interior é apenas um meio a serviço de
sinteressado não é "meu," mas sim de Deus; nada pode um fim
impedir a sua realização. São apenas os meus próprios
projetos, meus próprios desejos — estudar, trabalhar, des-
cansar, comer, prestar serviço ao meu próximo — que po- Ao te desfazeres das cadeias exteriores, tu te livras igual-
dem ser contrariados por circunstâncias exteriores. Então, mente dos laços interiores. Quando te libertas das preocu-
eu me entristeço. Mas, para quem descobriu o caminho pações de fora, teu coração também fica livre dos sofri-
estreito que conduz à vida, isto é, a Deus, só resta um obs- mentos de dentro. Por conseguinte, o rude combate, que
táculo possível: sua própria vontade pecadora. Se quer fa- és obrigado a travar, não passa de um meio: como tal, não
zer alguma coisa, mas não pode levá-la a bom termo, por é nem bom, nem mau; os santos o têm muitas vezes com-
que se entristecerá? Aliás, ele já não faz projetos (cf. Tg parado a um tratamento médico. Embora seja muito pe-
4:13-16). noso sujeitar-se a ele, não deixa de ser um simples meio
de recobrar a saúde.
Mas este é um outro segredo dos santos.
Lembra-te sempre de que não realizas nada de virtuoso,
Não te iludas. Um cristão deve "... andar como ele (Cristo) esforçando-te para te dominares. De fato, que virtude há
andou" (1Jo 2:6), ele, que jamais procurou a sua vontade em tomar pá e picareta para tentar sair de uma galeria sub-
(cf. Jo 5:30), mas nasceu sobre a palha, jejuou quarenta terrânea, onde se tenha caído por falta de atenção? Não é
dias, passou longas noites em oração, curou doentes, ex- natural, pois, utilizar as ferramentas entregues por alguém
pulsou demônios, não tinha onde pousar a cabeça, e final- de fora, para escapar dessa atmosfera sufocante e tene-
mente foi cuspido, flagelado e crucificado. brosa? O contrário não seria pura estupidez?
Pensa, o quanto estás longe dele! Pergunta continuamente Essa parábola te pode ensinar a sabedoria. As ferramentas
a ti mesmo: Passei uma única noite velando e orando? Je- são os instrumentos da salvação, os mandamentos do
juei um só dia? Expulsei um único demônio? Deixei-me Evangelho, os santos sacramentos da Igreja, que foram
insultar e bater sem resistir? Realmente crucifiquei a mi- postos à disposição de cada cristão por ocasião do santo
nha carne (cf. Gl 5:24)? Renunciei a buscar a minha von-
tade?
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O abatimento desaparece; pois, como poderá ser derru- Tenhas sempre presente, tudo isso, em teu espírito.
bado, quem se mantém constantemente prostrado em es-
pírito? Doravante, seu ódio se voltará, inteiro, para o mal Por que é necessário negar-se a si mesmo? Porque aquele
que está nele, e que o impede de ver claramente o Senhor; que verdadeiramente se negou a si mesmo já não se per-
ele odeia a sua própria vida (cf. Lc 14:26). Esse homem guntará: Sou feliz? Estou contente? Tais perguntas não se
não é mais atingido pela dúvida, pois experimentou e viu colocarão mais diante de ti, se de fato tiveres negado a ti
quanto o Senhor é bom (cf. Sl 34:8); só o Senhor o sus- mesmo. Com efeito, fazendo isso, terás ao mesmo tempo
tenta. Seu amor se dilata sem cessar e, com ele, a fé. Ele abandonado todo desejo de procurar a tua satisfação pró-
colhe o fruto da humildade. Mas tudo isso só se encontra pria, na terra ou no céu.
no caminho estreito, e são poucos os que o encontram (cf.
Essa vontade obstinada de encontrar a própria satisfação,
Mt 7:14).
é a causa da inquietação e da divisão da tua alma. Aban-
dona-a e luta contra ela: o resto te será dado sem esforço.

36  25 
8. É necessário estar sempre vigilante contra as repe- De que inimigo o santo fala aqui? Evidentemente, daquele
tidas ofensivas do inimigo que tomou, um dia, a forma de serpente e que, desde en-
tão, excita em nós o descontentamento, a insatisfação, a
impaciência, a precipitação, a ira, a inveja, o medo, a an-
As primeiras vitórias sobre ti mesmo devem ter, para ti, siedade, o ódio, o abatimento, a indolência, a tristeza, a
valor de sinal: agora estás no bom caminho. Mas não te dúvida, e tudo o que envenena a nossa existência e se en-
consideres virtuoso; apenas agradece a Deus, pois foi ele raíza em nosso amor próprio e em nossa auto piedade.
que te deu força; não te alegres em demasia, mas apressa-
te em prosseguir na tua estrada. Senão, o demônio vencido Como poderá, pois, querer que os outros lhe obedeçam,
reerguerá a cabeça e te pegará pelas costas. Lembra-te do aquele que verifica, com o sofrimento profundo inspirado
mandamento que os israelitas tinham recebido de Deus, pelo amor, que ele jamais obedece a seu Mestre? Como,
para te servir de lição: "... Quando tiverdes atravessado o então, poderá ele perturbar-se, impacientar-se, irar-se, se
Jordão, em direção à terra de Canaã, expulsareis de diante as coisas não se passam de acordo com seus desejos? Esse
de vós todos os habitantes da terra. (...) aqueles que dei- homem acostumou-se, por uma longa prática, a não dese-
xardes dentre eles se tornarão espinhos nos vossos olhos jar mais nada, e — como explica o abade Doroteu — a
e aguilhões nas vossas ilhargas" (Nm 33:51-52,55). quem já não tem desejos tudo acontece segundo os pró-
prios desejos. Sua vontade ajustou-se, exatamente, à de
A aparente importância dessa vitória sobre ti mesmo conta Deus, e ele obtém tudo o que pede (cf. Mc 11:24).
pouco. Pode-se tratar de suprimir o cigarro da manhã, ou
até de uma coisa — à primeira vista tão insignificante — Poderá sentir inveja aquele que, bem longe de querer ele-
como não voltar a cabeça ou evitar uma troca de olhares. var-se, está consciente de suas próprias deficiências, e
O que importa não é o que se vê de fora. As pequenas pensa que os outros, mais do que ele, merecem estima e
coisas podem ser grandes, e as grandes, pequenas. consideração? Poderá sentir medo, angústia ou ansiedade,
quem, como o ladrão crucificado, vê em tudo o que lhe
Mas, é preciso estar sempre à espera de uma nova fase do acontece apenas o justo salário de seus atos (cf. Lc 23:41)?
combate. Deves estar sempre pronto. Não há tempo para A negligência o abandona, porque ele descobre em si
descansar. mesmo os seus menores traços e persegue-a sem cessar.

26  35 
10. Os pecados dos outros e os nossos Além disso, ainda uma vez, permanece em silêncio. Que
ninguém saiba o que se passa em ti. Trabalhas para o Ser
invisível. Que teu trabalho seja invisível. Os santos nos
Agora tomaste consciência da tua miséria, da tua pobreza, dizem que, se jogarmos migalhas em torno de nós, elas
da tua propensão para o mal; por isso clamas ao Senhor, serão avidamente recolhidas pelos pássaros enviados pelo
como o publicano: "... Meu Deus, tem piedade de mim, diabo. Fica sempre alerta contra a vanglória: de um bo-
pecador!" (Lc 18:13). E acrescentas: "Sou mesmo bem cado, ela pode devorar o fruto de muitos trabalhos.
pior que o publicano, pois não consigo deixar de olhar o
fariseu com desprezo; meu coração se enche de orgulho e Por isso, os Padres aconselham discernimento no agir. De
diz: ‘Eu vos dou graças, porque não sou como ele!' " dois males, escolhe o menor. Se estás sozinho, escolhe o
que há de mais humilde; mas se alguém te observa, toma
Mas — dizem os santos — quando verificares as trevas um caminho intermediário, para atrair a atenção o menos
do teu coração e a fraqueza da tua carne, perderás toda a possível. Fica o mais escondido e despercebido que pude-
vontade de julgar o teu irmão. Para além da tua própria res; que seja esta a tua regra em qualquer circunstância.
escuridão, verás então brilhar a luz celeste em todas as Não fales de ti mesmo; não contes como dormiste, o que
criaturas, que resplandecem com o seu reflexo; pois, não sonhaste, o que te aconteceu; não dês tua opinião sem que
poderás mais notar os pecados dos outros, uma vez que os a peçam; não faças confidências sobre tuas preocupações
teus são tão grandes. Com efeito, quando procurares com e cuidados. Tais assuntos de conversa só te podem incitar
ardor a perfeição, é que vais começar a descobrir a tua a te ocupares excessivamente de ti mesmo.
imperfeição. Somente quando tiveres visto o quanto és
imperfeito, é que a perfeição te será acessível. Portanto, a Não mudes nada na tua casa, no teu trabalho, nem nas ou-
perfeição sai da fraqueza. tras coisas. Lembra-te de que não há lugar, nem ambiente,
nem qualquer circunstância exterior, que não seja própria
Só então conseguirás o que santo Isaac, o Sírio, prometeu ao combate que empreendeste. A única exceção seria uma
aos que se perseguem a si mesmos: "E teu inimigo fugirá, ocupação que favorecesse diretamente os teus vícios.
só porque te aproximas."
Não procures situações nem títulos importantes; quanto
mais humilde for o teu estado e mais te puseres a serviço
34  27 
dos outros, mais livre serás. Fica satisfeito com a tua con- é iníquo também no muito" (Lc 16:10). Não temas o so-
dição atual. Não tenhas pressa de fazer valer os teus co- frimento: ele é que te ajudará a sair desse vale estreito em
nhecimentos e o teu saber-fazer. Evita observações; não que vives nos desejos da carne, satisfazendo as vontades
digas: "Assim não, nem assim... Faz assim, e deste outro da carne e dos pensamentos condenáveis (cf. Ef 2:3).
modo." Não contradigas ninguém, não discutas com nin-
guém, deixa que os outros sempre tenham razão. Não pre- Faze a ti mesmo essas perguntas, sem descanso. Mas,
firas nunca a tua vontade à dos outros. Isso te ensinará a faze-as apenas a ti. Jamais, em caso algum, nem mesmo
difícil arte da submissão e, ao mesmo tempo, da humil- em pensamento deves fazê-las em relação aos outros. No
dade. Ela é indispensável. mesmo instante em que fizeres uma pergunta desse gênero
a respeito de alguém, te erigirás em juiz, e por isso tu
Recebe as advertências sem recriminações. Dá graças mesmo serás julgado. Serás despojado do que tinhas ga-
quando és desprezado, esquecido, ignorado. Porém, não nho com teus esforços. Tinhas dado um passo à frente,
cries ocasiões de humilhação: elas te serão fornecidas ao mas acabas de dar dez para trás. Então, tens mesmo razão
longo do dia, à medida que delas necessitares. Às vezes se de chorar por tua obstinação, pela queda dos teus progres-
notam pessoas que conservam sempre a cabeça baixa e sos e por teu orgulho.
forçam situações para se colocarem em último lugar. En-
tão, talvez digas: "Como ele é humilde!" Mas o verdadeiro
humilde tem a arte de não se deixar notar. O mundo não o
conhece (1Jo 3:1). Para o mundo ele é, o mais das vezes,
"um zero."

Quando Pedro e André, Tiago e João largaram as redes e


seguiram Jesus, o que pensaram os companheiros que eles
abandonavam à beira do lago? Para estes, os outros discí-
pulos não existiam mais; tinham ido embora. Não hesites,
não temas desaparecer, tu também, longe "desta geração
adúltera e pecadora." Que desejas ganhar: o mundo, ou tua

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essas coisas provêm do mundo; elas se associam contra alma? (cf. Mc 8:34-38). Ai de vós, quando todos vos ben-
nós para nos enganar e nos conter em pesadas correntes. disserem! (cf. Lc 6:26).

Se queres libertar-te, examina-te com a ajuda dessa lista e


vê claramente contra o que tens de lutar para te aproxima-
res de Deus. Pois ".. a amizade com o mundo é inimizade
com Deus. Assim, todo aquele que quer ser amigo do
mundo torna-se inimigo de Deus" (Tg 4:4). Os largos ho-
rizontes só se descobrem aos olhos se abandonarmos os
vales estreitos, com as ocupações e os prazeres que lhe são
próprios. "Ninguém pode servir a dois senhores" (Mt
6:24); é impossível permanecer, ao mesmo tempo, no vale
e nas alturas.

Para poderes subir com maior facilidade, e para te alivia-


res o mais rapidamente possível do teu pesado fardo, faz
a ti mesmo, com freqüência, perguntas como esta: "Não é
para o meu próprio prazer, mais do que para o dos outros,
que vou a esse concerto, ou ao cinema? É crucificar a mi-
nha carne, ir a essa festa? É vender tudo o que tenho, fazer
essa viagem de recreio ou comprar esse livro? É tratar du-
ramente o meu corpo e reduzi-lo à servidão (1Cor 9:27),
deitar-me para ler? Essa lista de perguntas pode ser modi-
ficada ou aumentada, em função dos teus hábitos e da re-
lação deles com o modo de viver que o Evangelho pres-
creve. E lembra-te de que "quem é fiel nas coisas míni-
mas, é fiel também no muito, e quem é iníquo no mínimo,

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9. A vitória sobre o mundo 12:30). Despoja-te, dia após dia, de tuas necessidades e de
teus hábitos, no campo das relações sociais; faze-o calma
e refletidamente, sem rupturas por demais bruscas, mas,
São Basílio, o Grande, disse: "Não nos podemos aproxi- no entanto, de maneira radical. Elimina pouco a pouco
mar do conhecimento da verdade, com o coração inqui- tudo o que puderes dos laços que te prendem ao mundo
eto." Por isso nos devemos esforçar para evitar tudo o que exterior: convites, concertos, recepções e, de modo geral,
agita o nosso coração, tudo que é causa de falta de aten- "tudo o que há no mundo — a concupiscência da carne, a
ção, de super excitação, tudo o que desperta as paixões ou concupiscência dos olhos e o orgulho das riquezas — ",
nos torna ansiosos. Na medida do possível, devemos nos pois tudo isso "não vem do Pai, mas do mundo" (1Jo
libertar do barulho, da agitação e da inquietação que se 2:16), e combate contra nossa alma.
produzem por objetos sem importância. Pois, quando ser-
vimos ao Senhor, não nos devemos "inquietar e agitar por O que é, pois, o mundo? Não o imaginemos uma realidade
muitas coisas," mas lembrar sempre que "uma só é neces- exterior e tangível, que carrega a marca do pecado. O
sária" (Lc 10:41-42). mundo, diz São Macário do Egito, é a cortina de chamas
que circunda o coração e fecha o acesso à árvore da vida.
Para tomar banho, é preciso despir-se. O mesmo acontece O mundo é tudo aquilo a que estamos apegados e que nos
com o nosso coração: ele deve ser libertado de todos os traz satisfações terrenas; é o que, em nós, "não conheceu
revestimentos exteriores deste mundo, para que possa ser a Deus" (cf. Jo 17:25).
atingido por Aquele que deve purificá-lo. Os raios benfa-
zejos do sol só poderão agir sobre a pele, se esta a eles se Nossos desejos e impulsos fazem parte do mundo. Santo
expuser a descoberto. Assim é também com a virtude sa- Isaac, o Sírio, enumera-os: atração pelas riquezas; propen-
lutar e vivificante do Espírito Santo. são a acumular e a apropriar-se de todos os tipos de obje-
tos; inclinação para os gozos sensíveis; desejo de ser ob-
Portanto, deves despir-te. Recusa a ti mesmo — mas sem jeto de honras, de onde procede a inveja; desejo de domi-
que seja excessivamente visível — tudo o que causa gozo nar os outros e de se fazer escutar; orgulho da glória e do
e prazer, bem-estar e distração; tudo o que diverte ou sa- poder; preocupação por ser admirado e amado; sede de
tisfaz aos olhos, aos ouvidos, ao paladar e aos outros sen- louvores; preocupação com o bem-estar do corpo. Todas
tidos. "Quem não está a meu favor, está contra mim" (Mt
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Muitas vezes, um criminoso endurecido não tem consci- Ficarão livres das tentações, dos sofrimentos, das humi-
ência de sua culpa; é próprio do endurecimento. É esse o lhações, do desânimo, da ansiedade, e de tudo o que per-
teu caso. Mas, que não te assuste o endurecimento do teu turba o coração do homem.
coração: a oração o abrandará, pouco a pouco.
Essa é a interpretação de São João Clímaco (Escada, De-
grau 25,4). Ao apresentá-la, ele fala de cristão para cris-
tão. Pois a um coração recriado pela graça, a experiência
revela, cada dia mais, que o jugo do Cristo é leve para os
que o amam.

Mas "... aquele que perseverar até o fim, esse será salvo"
(Mt 10:22), e não os desanimados e negligentes. A pro-
messa do Senhor não é para eles.

Portanto, não devemos jamais nos cansar. Sejamos firmes,


inabaláveis, fazendo incessantes progressos na obra do
Senhor, cientes de que a nossa fadiga não é vã no Senhor
(lCor 15:58). Uma vez que começamos, não deixemos
nunca de realizar as obras de uma sincera conversão. Parar
seria recuar.

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12. A obediência Na criança, o desejo de ler aumenta à medida que ela pro-
gride no aprendizado da leitura; quando aprendemos uma
língua estrangeira, é tanto maior o prazer que sentimos fa-
A obediência é outro instrumento indispensável, na luta lando-a, quanto melhor a dominamos. O prazer aumenta
contra a própria vontade. Segundo são João Clímaco, a com o progresso. O progresso vem pela prática. A prática
obediência é a condenação à morte dos membros do nosso se torna mais fácil com o progresso. O mesmo se pode
corpo, em benefício da vida do espírito. Ela é ainda a se- dizer da oração. Não esperes, pois, nenhuma inspiração
pultura da vontade própria, e a ressurreição da humildade extraordinária, para pôr mãos à obra.
(Escada, Degrau 3:3).
O homem foi criado para orar, como o foi para falar e para
Lembra-te de que, livremente, te deste ao Senhor como pensar. Mas ele foi mais especialmente criado para orar,
escravo; a cruz que levas no pescoço te deve recordar isso. pois "Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim
É através dessa escravidão, que chegarás à verdadeira li- de Éden para o cultivar e o guardar" (Gn 2:15). E onde
berdade. Mas, pode um escravo ter vontade própria? Ele encontrarás o jardim de Éden, a não ser em teu coração?
deve aprender a obedecer.
Como Adão, deves chorar sobre o Éden perdido pela tua
Talvez perguntes: A quem devo obedecer? Os santos res- intemperança. Estás vestido de folhas de figueira e com
pondem: obedece aos teus dirigentes (cf. Hb 13:17). Mas uma túnica de pele (cf. Gn 3:21), que são a tua condição
continuas: Quem são os meus dirigentes? Onde encontra- mortal, com suas paixões. Entre ti e a estreita entrada do
rei um, quando é hoje tão difícil descobrir um dirigente atalho que leva à árvore da vida, interpõem-se as tenebro-
autêntico? A isso, respondem os santos Padres: a Igreja o sas chamas dos desejos terrenos; e somente aos que ven-
providenciou. Desde o tempo dos apóstolos, ela nos deu ceram esses desejos é concedido "comer do fruto da ár-
um mestre que supera a todos os outros, e que nos pode vore que está no paraíso de Deus" (Ap 2:7). Adão infrin-
alcançar em toda parte, onde quer que estejamos, e em giu só um mandamento de Deus, e tu, como diz Santo An-
qualquer circunstância. Quer moremos na cidade ou no dré de Creta, tu os transgrides todos, cada dia e a cada
campo, quer sejamos casados ou solteiros, pobres ou ri- momento. Das profundezas de teu estado de pecado, e de
cos, esse mestre está sempre conosco, e sempre temos teu endurecimento, tua oração deve elevar-se para ganhar
as alturas.
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O artista e o cientista devem fazer muitos sacrifícios e ocasião de obedecer-lhe. Queres conhecer o seu nome? É
muitos esforços para chegar à maturidade da sua arte ou o santo jejum.
de seu saber, e jamais atingem toda a perfeição que ambi-
cionam. Se esperassem sempre a inspiração para se porem Deus não precisa do nosso jejum. Nem tem necessidade
a trabalhar, nunca poderiam aprender nem mesmo os ru- da nossa oração. Ele é perfeito, nada lhe falta, e não pode
dimentos de sua profissão. É necessária ao violinista uma precisar de coisa alguma que nós, suas criaturas, possa-
prática perseverante, para se iniciar nos segredos de seu mos oferecer-lhe. Nada temos para lhe dar; mas, diz São
instrumento tão delicado. Façamos a mesma coisa; quanto João Crisóstomo, ele aceita que lhe apresentemos as nos-
mais delicado ainda é o coração humano! sas ofertas, para nossa própria salvação.

"Chegai-vos para Deus e ele se chegará para vós" (Tg A maior oferenda que poderemos apresentar ao Senhor,
4:8). Cabe a nós, pôr mãos à obra. Se dermos um passo somos nós mesmos; e, só o poderemos fazer, abando-
para ele, dará dez para nós — ele que, avistando o filho nando a ele nossa vontade. Aprendemos isso pela obedi-
pródigo, que vinha ainda longe, encheu-se de compaixão, ência; e aprendemos a obedecer pela prática. A melhor
correu e lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos maneira de praticar a obediência é a que a Igreja nos for-
(cf. Lc 15:20). nece ao prescrever dias e períodos de jejum. Ela nos diz,
então, de certo modo, como Deus a Adão: "... Podes co-
É preciso, pois, que te decidas, uma vez por todas, a dar mer de todas as árvores do jardim; mas do fruto da árvore
os primeiros passos, ainda inseguros, para Deus, se real- que está no meio do jardim, não comerás" (Ge 2:16, 3:3).
mente queres aproximar-te dele. Que não te perturbe a
falta de jeito, no início do caminho da oração. Não cedas Além do jejum, temos outros mestres a quem devemos
ao respeito humano, à indecisão, aos risos zombeteiros obedecer. Nós os encontramos a cada passo, nas pequenas
dos demônios que tentam convencer-te de que teu com- coisas de nossa vida cotidiana: basta sabermos reconhecer
portamento é ridículo, de que teu disígnio é uma bobagem a sua voz. Tua mulher diz que deves levar a capa imper-
que não passa de fruto da tua imaginação. Não há nada meável; faz o que ela deseja, e estarás praticando a obedi-
que o Inimigo tema tanto quanto a oração. ência. Um dos teus colegas de trabalho te pede que vás
com ele até um ponto do caminho; acompanha-o, e estarás
praticando a obediência. Sentes que uma criança precisa
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que se ocupem dela e que lhe façam companhia: faze o 16. A oração - II
que podes, e estarás praticando a obediência. Um noviço,
no mosteiro, não terá mais ocasiões que tu, na tua casa, de
praticar a obediência. E outro tanto encontrarás no traba- O que precede esclarece que, quando os Padres falam de
lho e nas relações com teus vizinhos. oração, não estão se referindo a orações ocasionais, nem
às orações da manhã e da noite, nem das que se fazem
A obediência derruba muitas barreiras. Conseguirás a li- antes das refeições; para eles, oração é sinônimo de oração
berdade e a paz, à medida que teu coração praticar a não- perpétua; de vida de oração. Tomaram ao pé da letra a or-
resistência. Mostra-te obediente, e cercas de espinhos dem "... orai sem cessar" (1Ts 5:17).
abrir-se-ão diante de ti. Então, o amor terá lugar para se
dilatar. Por meio da obediência, aniquilarás o orgulho, o Compreendida desse modo, a oração é a ciência das ciên-
espírito de contradição, a pretensa sabedoria e a teimosia, cias e a arte das artes. O artista trabalha com argila, tintas,
que te aprisionam numa grossa carapaça. Enquanto esti- palavras ou sons; na proporção de seu talento, ele lhes
veres aninhado nela, não poderás encontrar o Deus de confere harmonia e beleza. A matéria com a qual o ho-
amor e de liberdade. mem de oração trabalha, é viva, é a própria natureza hu-
mana. Por meio da oração, ele a modela, dando-lhe har-
Habitua-te, pois, a alegrar-te, quando se te apresenta uma monia e beleza. É ele o seu primeiro beneficiário, mas, por
ocasião de obedecer. É absolutamente inútil procurar criá- seu intermédio, essa transfiguração se estende a muitos
la; poderias cair, então, num servilismo artificial, e des- outros.
viar-te, deleitando-te na tua própria virtude. Não tenhas
dúvida de que encontrarás tantas ocasiões de obedecer O cientista estuda as coisas criadas e as aparências; o ho-
quantas forem necessárias; e serão exatamente aquelas de mem de oração se eleva até o Criador de todas as coisas.
que precisas. Se notares que deixaste escapar uma oca- Ele se interessa, não pelo calor, mas pelo Princípio do ca-
sião, censura-te por essa negligência. Agiste como um lor; não pelas funções vitais, mas pela Origem da vida;
marinheiro que não aproveitaste um vento favorável. não pelo seu próprio "eu," mas por Aquele que lhe dá a
consciência do seu "eu," pelo seu Criador.

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Abandonar a oração, é desertar do posto quando se está de 13. Progresso e profundidade
guarda. A porta fica, então, aberta às hordas devastadoras,
e os tesouros que se acumularam são entregues à pilha-
gem. Os ladrões não precisam de muito tempo para fazer Depois das noções elementares e ainda exteriores que pre-
o seu trabalho: a ira, por exemplo, pode destruir tudo num cedem, chegamos agora ao combate que se trava nas pro-
instante. fundezas de nosso ser. Quando se descasca uma cebola,
retiram-se, uma após outra, as peles que a recobrem; fi-
nalmente se chega ao coração do bulbo, de onde sai o talo
para a luz. Quando chegares ao teu quarto interior, é que
perceberás a morada celeste, pois elas são uma única
coisa, segundo Santo Isaac, o Sírio.

Quando te esforçares por penetrar no teu quarto interior,


ali perceberás, além do teu rosto verdadeiro, aquilo que
Santo Hesíquio chama de face escura dos etíopes, isto é,
os pensamentos maus. São Macário do Egito compara-os
a uma serpente escondida em teu coração, e que feriu os
órgãos mais vitais da tua alma. Se mataste essa serpente,
diz ele, podes orgulhar-te de tua generosidade diante de
Deus. Porém, se não a mataste, prostra-te com humildade,
como um pobre pecador, e ora a Deus, pois o inimigo está
sempre oculto, à espreita.

Mas, como poderíamos começar a luta, uma vez que nem


mesmo penetramos em nosso coração? Ficamos à porta;
mas é preciso bater, com o jejum e a oração, como nos
recomendou o Senhor: "... batei e vos será aberto" (Mt
7:7). Bater é agir. Se permanecermos firmes na palavra do
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Senhor, na pobreza, na humildade, e em tudo o que nos A oração é, segundo São João Clímaco, o fundamento do
prescreve o Evangelho; se dia e noite batermos à porta de mundo. Um outro santo comparou o universo a um globo,
Deus, então, poderemos obter o que procuramos. Quem que deve a sua estabilidade à Igreja que ali está implan-
quer sair do cativeiro e das trevas, deve entrar na liberdade tada; mas a própria Igreja é sustentada pela oração.
por essa porta. Ali, diz São Macário, receberá a liberdade
espiritual, e poderá alcançar o Cristo, Rei celestial. A oração é uma troca e um encontro entre a humanidade
e Deus. É a ponte pela qual o homem passa para além do
seu "eu" carnal e de suas tentações; e acede ao verdadeiro
"eu" espiritual e à liberdade. Ela é a muralha contra todas
as desordens, a arma contra a dúvida; acaba com a tristeza
e contém a ira. A oração é um alimento para a alma e uma
luz para o espírito; consegue para nos, já neste mundo,
uma parte da alegria que virá. Para aquele que ora verda-
deiramente, a oração é a sentença, o tribunal, o trono de
Juiz; antecipa o julgamento final para agora, para o mo-
mento presente, no fundo do coração.

A oração e a vigilância são a mesma e única coisa, pois é


em companhia da oração que deves ficar à porta do teu
coração. Olhos bem abertos percebem imediatamente a
menor modificação que se produza em seu campo de vi-
são; assim acontece com o coração que ora sem cessar.

Na aranha se encontra outro exemplo: ela fica no meio da


teia, ouve a menor mosca que venha prender-se nela, e
mata-a. Assim também, a oração deve ficar, como senti-
nela, no meio do teu coração: ao menor estremecimento
que revele a presença de um inimigo, ela o mata.
46  55 
15. A oração - I 14. Humildade e vigilância

Do que precede, conclui-se que a oração é o primeiro e, Aquele que empreende o combate interior necessita, a
sem comparação, o meio mais importante que devemos todo momento, de quatro coisas: humildade, grande vigi-
empregar no combate. Aprende a orar, e vencerás todas as lância, vontade de resistir e oração. Trata-se de vencer,
Potências do mal que possam, algum dia, te assaltar. com a ajuda de Deus, os "etíopes dos pensamentos," ex-
pulsando-os pela porta do coração e esmagando seus ne-
A oração é uma das asas que nos erguem para o céu; a nês contra a rocha (cf. Sl 137:9).
outra é a fé. Com uma asa só, não se pode voar: a fé sem
a oração é tão vã quanto a oração sem a fé. Mas, se tua fé A humildade é uma condição prévia, pois o homem orgu-
é frágil demais, é bom clamar: "Senhor, dai-me a fé!" É lhoso é eliminado do combate, uma vez por todas. A vigi-
muito raro essa oração não ser atendida. O grão de mos- lância é necessária para reconhecer imediatamente os ini-
tarda, como disse o Senhor, torna-se uma grande árvore. migos, e para conservar o coração livre dos vícios. A von-
tade de resistir deve estar presente assim que o inimigo
Quem quer receber sol e ar, abre as janelas. Seria ridículo seja reconhecido. Porém, visto que "... sem mim, nada po-
ficar por trás das cortinas fechadas e queixar-se: "Não há deis fazer" (Jo 15:5), a oração é o trunfo mais importante,
luz; não há nem um pouco de ar!" Essa imagem mostra o do qual depende todo o combate.
papel da oração: o poder de Deus e a sua graça estão sem-
pre e em toda parte ao alcance de cada um de nós; porém, Um rápido exemplo te ajudará a compreender: através da
só podemos receber a nossa parte se a desejamos e se agi- vigilância, percebes um inimigo que se aproxima da porta
mos conforme esse desejo. do teu coração: és tentado a pensar mal de um de teus ir-
mãos. Sem demora, fica alerta a tua vontade de resistir, e
Sem a oração, não esperes encontrar o que procuras A ora- afastas a tentação. Mas, no último instante, és assaltado
ção é o início e o fundamento de todo esforço para Deus. por um pensamento de amor-próprio: "Escapei, graças à
É ela que faz brilhar o primeiro raio de luz, que te faz sen- minha vigilância!" E tua vitória aparente se torna uma ter-
tir antecipadamente o gosto do que procuras, e que des- rível derrota. A humildade soçobrou.
perta o desejo de progredir.
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Se, ao contrário, abandonares a teu Senhor todo o com- Mestre estava fora de casa, deixaste os ladrões e os mal-
bate, já não terás razão de estar contente contigo mesmo, feitores entrarem e pilharem tudo à vontade. Roga a Deus
e continuarás livre. Notarás bem depressa que não há arma que isso não se repita.
com mais poder do que o Nome do Senhor.
Perguntaram a um monge: "Que fazeis aqui, no mos-
Esse exemplo mostra que o combate deve ser travado sem teiro?" Ele respondeu: "Caímos e nos levantamos, caímos
descanso. As sugestões más penetram em nós como uma e nos levantamos, caímos e nos levantamos outra vez."
rápida torrente, e é preciso barrar a estrada com grande
rapidez. São os "... dardos inflamados do Maligno" (Ef. De fato, em tua vida, poucos minutos se passam sem que
6:16), de que fala o apóstolo; e eles chovem, sem cessar, caias pelo menos uma vez. Então, ora para que Deus tenha
sobre nós. Sem cessar, também, por conseguinte, deve- piedade de ti.
mos clamar ao Senhor. "Pois o nosso combate não é con-
Ora para obter perdão e graça; suplica, como o pode fazer
tra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principa-
um criminoso condenado à morte, e lembra-te de que é
dos, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste
somente pela graça que fomos salvos (cf. Ef 2:5). Não po-
mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam
des, de modo algum, reivindicar a libertação e a graça
as regiões celestes" (Ef 6:12).
como algo que te é devido. Considera-te um escravo fu-
O combate se inicia pela sugestão, conforme explicam os gido que, prostrado diante de seu senhor, suplica que o
santos. Vem depois a relação, quando penetramos mais no poupe. Essa deve ser a tua oração, se queres seguir a dou-
que a sugestão nos deu. A terceira fase é o consentimento, trina de Santo Isaac, o Sírio, e "abandonar o fardo interior
e a quarta é o pecado cometido exteriormente. A passa- de teus pecados, para descobrir, dentro de ti mesmo, o ata-
gem de uma para a outra, dessas quatro fases, pode ser lho que sobe, tornando possível a ascensão."
instantânea; mas também é possível que elas se sucedam
como tantos outros degraus, o que permite distingui-las.
A sugestão bate à porta, como um vendedor ambulante
que oferece a sua mercadoria. Se o deixarmos entrar, ele
começa com a sua lábia, e é difícil livrar-se dele, mesmo
percebendo que sua mercadoria não vale nada. Vem o
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A única desgraça que pode acontecer a um cristão é o pe- consentimento, e finalmente a compra, muitas vezes a
cado. contragosto. Deixamo-nos vencer por um enviado do Ma-
ligno.
Se te sentes amargurado por teres caído, de um modo ou
de outro; se te censuras duramente e se multiplicas as re- A respeito da sugestão, disse Davi: "A cada manhã eu fa-
soluções de "nunca mais recomeçar," é sinal certo de que rei calar todos os ímpios da terra" (Sl 101:8), pois "em
estás no caminho errado: isso provém do fato de que tua minha casa não habitará quem pratica fraudes" (ibid. 7).
autoconfiança se sente ferida. Sobre o consentimento, disse Moisés: "Não farás aliança
nenhuma com eles" (Ex 23:32). O primeiro versículo do
Quem não confia em si mesmo, fica profundamente sur- Salmo l fala da relação, segundo a interpretação dos Pa-
preso de não ter caído mais baixo, e se sente cheio de re- dres: "Feliz o homem que não vai ao conselho dos ím-
conhecimento. Agradece a Deus por lhe ter enviado, a pios." De fato, é muito importante resistir aos inimigos "às
tempo, o socorro sem o qual ele teria sido completamente portas" (Sl 127:5), sem deixá-los entrar.
esmagado. Levanta-se rapidamente, e começa a oração
por um triplo "Deus seja louvado!" Mas pode acontecer que seja numerosa a multidão que se
comprime diante da porta; sabemos também que "... o pró-
Uma criança mimada fica muito tempo chorando, quando prio Satanás se transfigura em anjo de luz" (2Cor 11:14).
cai. Procura atrair uma manifestação de simpatia, uma ca- Por isso nos advertem os santos Padres: que conservemos
rícia que a console. Mas tu, não sejas pretensioso; pouco o coração puro de qualquer sugestão, sensação ou imagi-
importa se sofres. Ergue-te e recomeça o combate. É nor- nação, sejam de que natureza forem. Com efeito, não está
mal que se fira aquele que luta. Só os anjos não caem em nossas mãos separar as sugestões más das boas: só o
nunca. Mas roga a Deus que te perdoe e não permita que Senhor o pode. Devemos, pois, abandonar tudo nele com
sejas novamente surpreendido. confiança,sabendo que "... se Iahweh não guarda a cidade,
em vão vigiam os guardas" (Sl 127:1).
Não sigas o exemplo de Adão, jogando a culpa em tua
mulher, ou no demônio, ou em qualquer outra causa exte- Em contrapartida, depende de nós ficarmos vigilantes
rior. A causa da tua queda está em ti mesmo: enquanto o para que não surja nenhum pensamento vil em nosso co-
ração (cf. Dt 15:9); para que ele 'não se transforme num
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mercado onde uma multidão heterogênea se agita num olhar. Assim, o teu coração será protegido de todos os la-
contínuo tumulto, de maneira que se torna impossível re- dos ao mesmo tempo. O Senhor mesmo enviará os seus
conhecer o que se passa. Ladrões e malfeitores podem, anjos para guardar-te, à direita e à esquerda, impedindo
então, encontrar-se ali; mas os anjos da paz, em vão os que sejas atacado pelas costas.
buscarias. A paz e o Senhor da paz fogem de um lugar
assim. Em outras palavras, quando fores perseguido pela tenta-
ção, não te deves deter para examiná-la, refletir, pesar
Por isso, ele nos disse por seu apóstolo: "... santificai os prós e contras. Agindo assim, já maculas teu coração, per-
vossos corações" (Tg 4:8); e ele próprio nos adverte: des tempo; já é uma vitória para o inimigo. Ao contrário,
"Atenção, e vigiai" (Mc 13:33). Pois, se ele vier e encon- volta-te sem demora para o Senhor e diz: "Senhor, tende
trar impuros os nossos corações, e nós mesmos adormeci- piedade de mim, pecador!" Quando tiveres retirado os
dos, dirá: "... não vos conheço!" (Mt 25:12). A hora dessa teus pensamentos da tentação, o Senhor virá.
vinda é sempre iminente: se não for no momento presente,
será no seguinte; e se não for no seguinte, será agora. Por- Nunca fiques seguro de ti mesmo. Não formes jamais no
que, como o Reino dos céus, a hora do julgamento está teu espírito uma boa resolução deste gênero: "Oh, sim!
sempre presente em nosso coração. Vou fazer tudo muito bem!" Nunca tenhas confiança em
tuas próprias forças, para resistir a uma tentação, seja ela
Assim, pois, se o guarda não vigiar, o Senhor também não qual for, grande ou pequena. Pensa, ao contrário: "Tenho
vigiará; mas se o Senhor não vigia, o guarda vigia em vão. certeza de que cairei, quando ela vier." A confiança em si
Por conseguinte, vigiemos à porta do nosso coração, mas é um aliado perigoso. Quanto menos te apoiares nela, mais
sempre chamando o Senhor, incessantemente, para que seguro estarás. Reconhece que és fraco, totalmente inca-
nos ajude. paz de resistir à menor insinuação do demônio. E então
espantado, descobrirás que não podes absolutamente
Não olhes para o lado do inimigo. Não te ponhas jamais a nada. Visto que farás do Senhor o teu refúgio, poderás
discutir com ele, porque não conseguirás resistir. Devido imediatamente proclamar que "a desgraça jamais te atin-
à sua experiência milenar, ele sabe exatamente como pro- girá" (Sl 91:10).
ceder para te abater de imediato. Porém, fica no meio do
campo de batalha do teu coração, e dirige para o alto o teu
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lado, o sinal da cruz é uma arma contra os espíritos maus: 17. A oração - III
utiliza freqüentemente essa arma, atento ao que fazes.

Para construir uma casa, é necessário montar uma estru- Quando decidimos começar regularmente a oração da ma-
tura. Só um homem forte não precisa de apoio externo. nhã, nós o fazemos, em geral, não porque já tenhamos
Mas, serás um homem forte? Não serás, antes, um fraco uma certa facilidade natural para orar, mas sim com a fi-
entre os fracos? Será que és mais que uma criança? nalidade de conseguir alguma coisa que ainda não possu-
ímos. Ora, quem possui uma coisa, corre o risco de se pre-
ocupar, com medo de perdê-la; e quem não a possui ainda,
fica ansioso por consegui-la. Por isso, deves começar a
praticar a oração, sem nada esperar de ti mesmo, sem pro-
curar "chegar a alguma coisa."
Se tens a possibilidade de um quarto só teu, podes seguir
ao pé da letra, e tranqüilamente, as indicações do Manual
de Orações:

"Quando acordas, antes de começar o dia, coloca-te res-


peitosamente diante de Deus, que tudo vê. Faz o sinal da
cruz e diz: Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo. Amém."

"Depois de ter invocado assim a Santíssima Trindade, fica


em silêncio por alguns instantes, para que teus pensamen-
tos e teus sentimentos se libertem das preocupações deste
mundo. Em seguida, recita, sem pressa e de todo coração:
Ó Deus, tende piedade de mim, pecador."

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Vêm depois as outras orações, começando pela do Espí- progresso, enquanto prossegues o teu caminho rumo a um
rito Santo, da Santíssima Trindade, e o Pai Nosso, que objetivo mais distante.
precedem o conjunto das orações da manhã. É melhor ler
apenas algumas, tranqüilamente, do que lê-las todas, com Não temas a manifestação exterior do amor que tens pelo
pressa. teu Senhor misericordioso e cheio de amor; beija a cruz e
os ícones; enfeita-os com flores. Se apenas impedíssemos
Essas orações são fruto da experiência que a Igreja acu- que se exprimisse exteriormente o mal que está em nós, a
mulou ao longo dos séculos. Através delas, entras na vasta nossa boa vontade poderia respirar livremente. Se rece-
comunhão do Povo de Deus em oração. Não estás sozi- bêssemos com amor o que nos é dado por amor, a ativi-
nho; és uma célula no Corpo da Igreja, que é o Corpo de dade do nosso amor se tornaria mais ampla e mais pode-
Cristo. Pela recitação dessas fórmulas, aprenderás tam- rosa; e é exatamente esse o objetivo de nossos esforços.
bém a constância e a paciência, necessárias, não apenas Quanto mais copioso é um rio, mais se alarga a sua embo-
para o corpo, mas também para o coração e o espírito, para cadura.
que se fortaleça a tua fé.
Utiliza o teu próprio corpo como um auxiliar no teu com-
A verdadeira oração é aquela em que o espírito e o coração bate. Submete-o e torna-o independente dos caprichos do
se põem em uníssono com as palavras; a atenção é, pois, homem velho. Faz com que ele partilhe os teus sentimen-
indispensável. Não deixes que teus pensamentos fiquem tos de compunção: se queres aprender a humildade, torna
vagando; recolhe-os continuamente e, cada vez que te dei- humilde o teu próprio corpo e inclina-o para a terra. Ajo-
xas levar para longe de tua oração, volta ao ponto em que elha-te, com o rosto em terra, tantas vezes quantas pude-
a deixaste Poderás recitar o saltério da mesma forma. res, quando estás só; mas levanta-te logo, pois toda queda
Aprenderás assim a praticar a perseverança e a vigilância é seguida de nossa elevação no Cristo.
na oração.
Faz muitas vezes o sinal da cruz: é uma oração sem pala-
Quem fica diante de uma janela aberta, ouve os ruídos de vras. Em alguns instantes, sem estar sujeito à lentidão da
fora; não pode ser de outra forma. Mas, ele pode, ou não, palavra, ele exprime a tua vontade de participar da vida do
prestar atenção às palavras que chegam até ele; isso de- Cristo e de crucificar a tua carne; de aceitar, sem murmu-
rar, tudo o que te envia a Santíssima Trindade. Por outro
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22. Do uso das realidades materiais pende da sua vontade. O homem em oração é constante-
mente solicitado por um fluxo de pensamentos forasteiros,
de sentimentos e de impressões. Conter o fastidioso de-
Somos feitos de alma e de corpo; não podemos fazer abs- senrolar desse filme interior, é tão impossível quanto im-
tração dessa dualidade em nosso comportamento. Por pedir o ar de circular num cômodo cuja janela esteja
conseguinte, usa as realidades materiais. O Cristo conhece aberta. Mas depende de cada um prestar atenção nisso, ou
a nossa fraqueza, e empregou, como meios, por nossa deixar de prestar. Dizem os santos ser esse um aprendi-
causa, palavras e gestos, saliva e lama. Por nossa causa, zado que só se faz pela prática.
quis que seu poder vivificante se comunicasse pela orla de
sua veste (cf. Mt 9:20, 14:36), pelos aventais e lenços que Quando oras, teu "eu" deve calar-se. Não ores para que se
haviam tocado o corpo de Paulo (cf. At 19:12), e até pela realizem os teus desejos terrenos; mas dizes: "Que seja
sombra do apóstolo Pedro (cf. At 5:15). feita a tua vontade" Não te sirvas de Deus como de um
mandatário. Fica calado, e deixa a oração falar.
Assim, ao longo de tua dura peregrinação pelo caminho
estreito, apóia-te em todas as coisas terrenas como em um Segundo São Basílio, tua oração deve conter quatro ele-
bastão, utilizando-as para te lembrares de Deus: que a mentos: adoração, ação de graças, confissão dos pecados
brancura da neve e a limpidez do céu, o olho colorido da e pedido de salvação.
mosca e o calor do fogo, e todas as criaturas que teus sen-
tidos percebem, te lembrem o Criador. Mas, recorre prin- Não te preocupes com teus próprios interesses e não po-
cipalmente aos meios que a Igreja te oferece para "entre- nhas a oração a seu serviço; mas, "busca em primeiro lu-
gar teus membros a serviço da justiça para a santificação" gar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas te
(Rm 6:19). Antes de qualquer outra coisa, a Santa Comu- serão acrescentadas" (Mt 6: 33).
nhão do Senhor; mas também os outros mistérios e sacra- Aquele que procura fazer a própria vontade, e cuja oração
mentos, e as Santas Escrituras. A Igreja também te oferece não coincide, pois, com a vontade de Deus, encontrará
os santos ícones da Mãe de Deus, dos Anjos e dos Santos, muitos obstáculos no caminho, e cairá incessantemente
a oração feita diante deles, as velas e as lâmpadas, a água nas emboscadas do Inimigo. Ficará descontente, irascível,
benta, o brilho do ouro, o canto. Recebe tudo isso com
agradecimento, para tua edificação e consolo, benefício e
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infeliz, hesitante, impaciente ou inquieto; e quando o es- mesmo quando és obrigado a permanecer no tumulto de
pírito se encontra nesse estado, ninguém pode permanecer uma companhia numerosa. E quando, às vezes, isso se
em oração. torna demasiadamente difícil de suportar, sai, vai a qual-
quer lugar, contanto que possas ficar só; clama de toda a
A oração daquele que tem alguma queixa contra seu pró- tua alma ao Senhor para que te ajude, e ele te ouvirá.
ximo é impura. Só podemos e devemos dirigir censuras a
uma única pessoa: a nós mesmos. Sem a auto-acusação, a Considera-te como uma roda, dizia o staretz Ambrósio.
oração será tão vã quanto se, dentro de nosso coração, Quanto mais de leve a roda toca a terra, mais ela gira e
censurássemos outra pessoa. avança com facilidade. Não penses nas coisas terrenas,
não fales delas, não te preocupes com elas mais do que o
Não te preocupes por sentires sequidão em ti. A chuva vi- necessário. Mas lembra-te também de que, se uma roda
vificante vem do alto, e não de teu solo ingrato, incapaz fica inteiramente no ar, não pode girar.
de produzir mais do que sarças e espinhos. Aliás, não es-
peres "estados de oração" extraordinários, êxtases, enle-
vos ou outras experiências em que encontrarias tua pró-
pria satisfação. Não se ora para procurar prazer. "Entris-
tecei-vos, cobri-vos de luto e chorai (...) Humilhai-vos di-
ante do Senhor e ele vos exaltará" (Tg 4:9-10). Pensa no
que és e suplica ao Senhor que tenha piedade de ti. O resto
depende dele.

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duvidosos: tensão excessiva, impaciência quanto aos de- 18. A oração - IV
feitos do próximo, justificação própria. Trata-se, pois, de
"... não se desviar, nem para a direita, nem para a es-
querda" (Dt 5:32), e de não ter nem a mais leve confiança A oração não deve cessar quando terminamos as orações
em si mesmo. da manhã. Trata-se agora de manter presente a oração ao
longo do dia, apesar da diversidade e da complexidade de
Se não vemos em nós frutos abundantes de amor, de paz, nossas ocupações cotidianas.
de alegria, de moderação, de humildade, de simplicidade,
de retidão, de fé e de paciência, é vão todo o nosso traba- O bispo Teófano, o Recluso, aconselha aos principiantes
lho, como nos previne São Macário do Egito. Devemos que escolham um versículo curto do saltério, apropriado
trabalhar para a colheita, mas essa colheita é a obra do às suas necessidades; por exemplo, "Senhor, apressa-te
Senhor. em socorrer-me," ou "Criai em mim um coração puro" ou
"Bendito és tu, Senhor," etc. O saltério oferece uma
Fica, pois, atento a ti mesmo e usa de discernimento. Se grande quantidade dessas orações mais ou menos curtas.
notares que te tornas irritadiço e exigente para com os ou- Durante todo o dia, podemos guardar no espírito essa ora-
tros, diminui um pouco o peso do teu fardo. Se procuras ção, e repeti-la com a maior freqüência possível, seja men-
examinar a conduta dos outros, dar-lhes lições, dirigir- talmente, seja em voz baixa ou, melhor ainda, em voz alta,
lhes observações, estás no caminho errado: quem renuncia se estivermos sozinhos e se ninguém nos ouvir. No ônibus
verdadeiramente a si mesmo, não tem nada a censurar nos ou no elevador, no trabalho ou à mesa, tanto quanto pos-
outros. Se achas que as pessoas que te cercam, ou as cir- sível, retoma-se a oração e fixa-se a atenção no conteúdo
cunstâncias exteriores, te incomodam e te constrangem, é das palavras. Assim passa o dia, até a noite, quando se
porque ainda não compreendeste em que consiste o teu arruma um momento de tranqüilidade para ler a oração da
trabalho: tudo o que, à primeira vista, parece constranger- noite no Manual de Orações, antes de deitar.
te, na realidade te é dado como ocasião de aceitar os ou-
tros, de ser paciente e de obedecer. Um homem humilde E essas orações curtas também servem para os que não
não pode ser constrangido pelos outros: pode apenas cons- gozam de isolamento suficiente para recitar as orações or-
tranger. Passa, pois, despercebido, evita tomar a dianteira, dinárias da manhã e da noite. De fato, elas nos podem
esconde-te. Entra no teu quarto e fecha a porta (Mt 6:6),
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acompanhar sempre e por toda parte. Em casos assim, a 21. É preciso evitar o exagero
solidão interior supre a ausência de solidão exterior.

A repetição freqüente é importante. É por repetidas bati- A experiência demonstra que o pianista que toca com ex-
das de asas que o pássaro se eleva acima das nuvens; o cessivo ardor, ou o escritor que escreve depressa demais,
nadador tem de reproduzir inúmeras vezes o mesmo mo- é vítima de cãibras. Desanimado, sem poder fazer nada,
vimento, para chegar ao objetivo desejado. Mas, se o pás- vê-se de repente obrigado a interromper o trabalho, ele
saro pára de voar, deverá contentar-se em permanecer nos que, um minuto antes, estava tão entusiasmado. E a inação
nevoeiros da terra; e o nadador que pára, corre o risco de expõe a muitas influências más.
perecer no abismo ameaçador que o espreita.
Esse exemplo contém uma lição para ti. O jejum, a obedi-
Faz, assim, a tua oração, hora após hora, dia após dia, per- ência, a austeridade de vida, a atenção, a oração, consti-
petuamente. Mas ora com simplicidade, sem ênfase, sem tuem um conjunto de práticas necessárias, mas não pas-
complicações, sem fazeres a ti mesmo todo tipo de per- sam de práticas. E, toda prática deve ser empregada com
guntas: "Não vos preocupeis com o dia de amanhã" (Mt naturalidade, calmamente, levando em conta a medida das
6:34). Quando chegar o momento, a resposta te será dada. próprias forças (cf. Lc 14:28-32), evitando qualquer exa-
gero. "... Levai, pois, uma vida de autodomínio e de sobri-
Abraão partiu sem perguntar: "Como é a terra que me vais edade, dedicada à oração" (1Pd 4:7), recomenda-nos o
mostrar? O que me espera lá?" Simplesmente "... partiu, apóstolo Pedro e, por ele, o Senhor mesmo.
como lhe disse Iahweh" (Gn 12:4). Faz como ele. Abraão
tomou todos os bens que tinha reunido (ibid. 5). Imita-o É possível embriagar-se com outra coisa que não seja o
também nisso; leva contigo, na viagem, todo o teu ser; não álcool. Igualmente perigosa é a auto-exaltação, que pro-
deixes para trás nada que possa reter uma parte da tua afei- voca excessiva confiança em si mesmo, e a atividade
ção, na terra que deixaste. apressada que dela resulta. Animados por um zelo sem re-
servas, que se traduz por exageros e falta de comedimento,
Noé levou cem anos para construir a arca, peça por peça. semeamos assim, no terreno da vida espiritual, o que cre-
Faz a mesma coisa; constrói peça por peça, com toda a mos serem sacrifícios. Mas os frutos que colhemos são
paciência, em silêncio, dia após dia, e não te preocupes
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No entanto, os santos Padres recomendam que se jejue com os que te cercam. Lembra-te: Noé, no seu tempo, es-
com medida: não é preciso impor ao corpo uma fadiga ex- tava sozinho no mundo e "... andava com Deus" (Gn 6:9),
cessiva, pois a própria alma se prejudicaria com isso. isto é, na oração. Pensa também na dificuldade, na escuri-
Tampouco é preciso começar a jejuar muito de repente; dão, no mau cheiro em que ele deve ter vivido no interior
todas as coisas exigem uma adaptação, e cada um deve da arca, antes de poder sair para o ar livre e erguer um
levar em conta a própria compleição e as próprias ocupa- altar ao Senhor. O ar puro e o altar, tu os descobrirás em
ções. Evitar alguns tipos de alimentos seria condenável: ti, diz São João Crisóstomo, mas só, quando concordares
toda alimentação é um dom de Deus. Contudo, é prudente em passar pela mesma porta estreita por que passou Noé.
abster-se dos alimentos que causam moleza ou que só ser-
vem para deleitar o gosto: pratos muito condimentados, Também como Noé, faz "tudo o que Deus te ordenou" (Gn
carnes, álcool, etc... Quanto ao resto, pode-se comer de 6:22), e constrói "com orações e súplicas" (Ef 6:18) o
tudo o que é barato e fácil de encontrar. Para os Padres, barco que possibilitará que passes do teu "eu" carnal e dos
jejuar com medida significa, no entanto, fazer uma única teus interesses, múltiplos e egoístas, para a plenitude do
refeição por dia, refeição essa suficientemente leve, para Espírito. Quando o Único vem ao nosso coração, diz são
evitar a saciedade. Basílio, o Grande, a multiplicidade desaparece. Teus dias
passam, então, numa grande sensação de plenitude, sob a
proteção daquele que tem a plenitude do universo em suas
mãos.

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19. A sobriedade do corpo e do espírito: condição da gostaríamos de nos libertar dessa preocupação. Assim, o
oração jejum se mostra como uma etapa do caminho da liberta-
ção, e um aliado indispensável na luta contra os desejos
egoístas. Ao lado da oração, o jejum é um dos mais preci-
Quando nos entregamos à oração dessa maneira, é impor- osos dons concedidos aos homens, caro a todos os que fi-
tante não dar plena liberdade ao corpo. Santo Isaac, o Sí- zeram a experiência.
rio, diz que uma oração em que o corpo não esteja descon-
fortável e o coração aflito, permanece embrionária, sem Quando jejuamos, sentimos crescer o nosso reconheci-
alma. Ela leva em si o germe da autoconfiança e do orgu- mento para com Deus, que deu ao homem o poder de je-
lho, que conduzem o nosso coração a crer que fazemos juar. O jejum dá acesso a um mundo de cuja existência
parte, não apenas dos "chamados," mas também dos "pou- mal suspeitas. Todos os pormenores da tua vida, tudo o
cos escolhidos" (Mt 22:14). que se passa em ti e ao teu redor, é visto sob uma nova
luz. O tempo que passa será utilizado de um modo novo,
Não confies nesse tipo de oração, pois é a raiz de muitas rico e fecundo. Durante as vigílias, a modorra e a confusão
ilusões. Como teu coração continuou apegado à carne, teu dos pensamentos dão lugar a uma grande lucidez de espí-
tesouro também continua a ser de ordem carnal; e, en- rito; ao invés de nos revoltarmos contra o que nos contra-
quanto acreditas, talvez, que atinges o céu, consegues ape- ria, nós o aceitamos calmamente, na humildade e na ação
nas o que também é carnal. A alegria que sentes carece de de graças; problemas que pareciam graves e complexos,
pureza e se traduz de modo exuberante; tens urgência de resolvem-se por si mesmos, com a mesma simplicidade
falar, sentes vontade de catequizar e converter os outros, do desabrochar da corola de uma flor. A oração, o jejum
sem teres sido chamado pela Igreja a exercer o ofício de e as vigílias são a maneira de bater à porta que desejamos
mestre. Interpretas a Escritura conforme a tua mentalidade ver abrir-se.
carnal, e não consegues suportar que te contradigam; de-
fendes apaixonadamente o teu ponto de vista. Tudo isso Os santos Padres muitas vezes consideraram o jejum uma
porque te esqueceste de disciplinar o corpo e, por isso, de medida de capacidade: se jejuamos muito, é que amamos
humilhar o coração. muito; e se amamos muito, é que muito nos foi perdoado
(cf. Lc 7:47). Aquele que jejua muito, receberá muito.

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20. O jejum A verdadeira alegria é tranqüila e estável; por isso, o após-
tolo nos ordena: "Ficai sempre alegres" (1Ts 5:16). Ela
resulta de um coração que derrama lágrimas sobre o
Um jejum proporcional às tuas forças favorecerá a vigi- mundo e sobre si mesmo, porque todos se desviaram da
lância espiritual. Não se pode meditar as coisas de Deus luz que não se apaga. A verdadeira alegria se consegue
com estômago muito cheio, dizem os mestres espirituais. através das lágrimas. Por esse motivo, está escrito: "Bem-
Para um amigo da boa mesa, os segredos menos misterio- aventurados os aflitos" (Mt 5:5), e: "... Bem-aventurados
sos da Santíssima Trindade, se assim se pode dizer, per- vós, que agora chorais," mortificando o "eu" carnal, "por-
manecem escondidos. O Cristo nos deu o exemplo com que haveis de rir" pelo "eu" espiritual (Lc 6:21). A verda-
seu longo jejum; quando venceu o demônio, saía de um deira alegria é reconfortante, uma alegria que brota, não
jejum de quarenta dias. Gostarias de consegui-lo com me- só do conhecimento de nossa própria fraqueza, mas tam-
nor sacrifício? Depois, só depois, "... os anjos de Deus se bém da misericórdia do Senhor; e ela não precisa de um
aproximaram e puseram-se a servi-lo" (Mt 4:11). Para te riso ruidoso para se expressar.
servir, eles também esperam.
Pensa ainda nisto: quem se apega às coisas da terra, pode
O jejum refreia a tagarelice, diz São João Clímaco (Es- encontrar alegria, mas também agitação, inquietação e
cada, Degrau 14:34). Ele te fará misericordioso e disposto aflição; seu espírito se expõe a contínuas flutuações. A
a obedecer; destrói os pensamentos maus e elimina a in- "alegria do teu Senhor" (Mt 25:21), ao contrário, é estável,
sensibilidade do coração. Quando o estômago está vazio, porque Deus é imutável.
o coração é humilde. Quem jejua ora com espírito sóbrio,
ao passo que o espírito do intemperante é repleto de ima- Portanto, vigia a tua língua e disciplina o teu corpo, atra-
ginações e de pensamentos impuros. vés do jejum e de uma vida austera. A tagarelice é o
grande inimigo da oração. Por isso, deveremos dar contas
O jejum é uma maneira de exprimir o amor e a generosi- de toda palavra inútil (Mt 12:36). Quando queremos man-
dade; através dele, sacrificam-se os prazeres da terra, para ter limpo um apartamento, procuramos impedir que entre
obter as alegrias do céu. Uma parte excessivamente a poeira da rua. Preserva teu coração das tagarelices e dos
grande de nossos pensamentos é açambarcada pela preo- mexericos sobre os acontecimentos do dia.
cupação com a subsistência e com os prazeres da mesa;
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"... Notai como um pequeno fogo incendeia uma floresta o consentimento e para o pecado em ato. Ele semeia a in-
imensa. Ora, também a língua é um fogo" (Tg 3:5-6). Po- certeza e a agitação entre os teus pensamentos; ele te su-
rém, sem ar, a chama se apaga. Deixa também sem ar as gere todo tipo de raciocínios, de provas, de perguntas vãs
tuas paixões, e elas se extinguirão pouco a pouco. Se sen- e de respostas que damos a nós mesmos. Opõe, a isso
tes inflamar-se a tua ira, cala-te, e não deixes que ela trans- tudo, a palavra do salmista: "Afastai-vos de mim, perver-
pareça Fala dela somente a Deus. Assim apagarás a mecha sos, eu vou guardar os mandamentos do meu Deus" (Sl
que acabou de se acender. Quando te perturbas pelos erros 119,115).
dos outros, segue o exemplo de Sem e de Jafé, e cobre-os
com o manto do silêncio (Gn 9:23); assim sufocarás o de-
sejo de julgar, antes que as chamas subam. O silêncio está
pronto para ser preenchido com a oração atenta, como um
vaso vazio para se encher de água.

Porém, quem quiser praticar a arte da vigilância espiritual,


não é só da língua que deve cuidar. Deve cuidar de si
mesmo (Gl 6:1), minuciosamente, e estender a solicitude
às profundezas do seu ser. Nessas profundezas, descobrirá
imensos espaços interiores, onde se agita um grande nú-
mero de lembranças, imaginações, pensamentos, que de-
vem ser reprimidos. Não despertes uma lembrança que
poderá cobrir de lama a tua oração; não revolvas as im-
pressões que antigos pecados deixaram em ti. Não sejas
"como o cão que torna ao seu vômito" (Pr 26:11). Não
deixes que a tua memória se demore em fatos que pode-
riam reanimar teus maus desejos; não permitas que tua
imaginação divague. O baluarte preferido do demônio é
exatamente a nossa imaginação. Por meio dela, ele nos
atrai para a "relação," isto é, a discussão com ele; daí, para
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que comece bem, em nome do Pai, e do Filho, e do Espí- 23. Os momentos de escuridão
rito Santo, Amém."

Ora o céu está nublado, ora claro; depois se torna nova-


mente chuvoso. Assim é também a natureza humana. É
sempre de se esperar que, de quando em quando, as nu-
vens cubram o sol. Os próprios santos conheceram mo-
mentos, dias e semanas de escuridão. Diziam então que
"Deus os havia abandonado," para fazê-los tomar verda-
deiramente consciência da radical pobreza que vivem
quando são entregues assim, a si mesmos, e privados de
apoio. São inevitáveis esses momentos de escuridão, em
que tudo parece sem sentido, absurdo e vão, em que a
gente é importunada pela dúvida e tentações. Mas, até eles
podem ser proveitosamente utilizados.

O melhor meio de não se deixar abater durante esses dias


sombrios, é seguir o exemplo de Santa Maria do Egito.
Durante quarenta e oito anos, ela morou no deserto, para
além do Jordão; quando as tentações se abatiam sobre ela,
e a lembrança da sua vida de pecado em Alexandria, soli-
citava que ela renunciasse à permanência voluntária no
deserto, lançava-se ao solo, clamava a Deus, pedindo
ajuda, e só se levantava quando seu coração voltava a ser
humilde. Os primeiros anos foram penosos. Muitas vezes
ela teve de ficar nesse estado por longos dias. Mas, após
dezessete anos, chegou o tempo do descanso.

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Em períodos assim, permanece calmo. Não te deixes per- Os santos falam do que chamam de luz sem ocaso. É uma
suadir a freqüentar mais a vida social, nem a procurar uma luz que brilha, não para os olhos exteriores, mas no cora-
diversão. Não tenhas piedade de ti mesmo; procura apenas ção de quem não cessa de caminhar na pureza e na ino-
o conforto de clamar ao Senhor: "Vem livrar-me, ó Deus! cência. Ela faz as trevas recuarem de pronto, e nos enca-
Iahweh, vem de pressa em meu socorro!" (Sl 70:2); "... minha invencivelmente rumo ao dia pleno. Sua caracterís-
estou fechado e não posso sair" (Sl 88:9), e outros apelos tica é ser sempre mais pura. É a Luz da Eternidade, que
semelhantes. Aliás, só dele poderás esperar ajuda verda- não conhece crepúsculo e que já brilha através do véu do
deira. Procurando um conforto aleatório, não vás perder tempo e da matéria. Aliás, os santos nunca dizem que essa
toda a tua colheita. Isola-te do que está ao teu redor. Ergue luz lhes foi dada; afirmam apenas que ela só é concedida
a cabeça: agora tua paciência e constância são postas à aos que purificaram o coração através do amor pelo Se-
prova. Se suportares essa prova, agradece a Deus, que te nhor, no caminho estreito que escolheram livremente.
deu força. Se sucumbires, levanta-te prontamente, pede
perdão, e diz a ti mesmo: "O que tenho, é o que mereço!" O caminho estreito não tem fim: é um caminho eterno (Sl
Pois a própria queda foi a tua punição. Contaste demais 139:24). Cada passo que se dá é um começo. Aí, o pre-
contigo mesmo, e agora vês aonde isso te levou. Fizeste sente inclui o futuro, o dia do julgamento; o presente in-
uma experiência: não te esqueças de dar graças. clui o passado: a criação. Pois o Cristo está presente em
toda parte, sem estar ligado, pelo tempo, ao céu e ao in-
ferno simultaneamente. Quando chega aquele que é o Um,
desaparece toda multiplicidade, mesmo no tempo e no es-
paço. Tudo se reúne e se torna simultâneo, nas profunde-
zas do teu coração. Encontraste, então, o que procuravas:
a profundidade, a altura e a largura da cruz; o Salvador e
a salvação.

Assim, pois, se queres salvar a tua alma e ganhar a vida


eterna, recomeça a sacudir incessantemente o teu torpor,
a fazer o sinal da cruz e a dizer: "Concede-me, Senhor,

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idênticas: lavas a louça, cuidas dos filhos, vais trabalhar, 24. A respeito de Zaqueu
recebes o salário e pagas os impostos. Cumpres, como
todo mundo, o que faz parte da tua vida exterior, pois não
é possível abandoná-lo. Mas, renunciaste a ti mesmo. Como Zaqueu, subiste numa árvore para ver o Senhor (cf.
Abandonaste uma coisa, para obteres outra. Lc 19). Não o fizeste nem apenas em espírito, nem usando
unicamente as faculdades intelectuais. És um ser humano,
"Se possuo a ti, que poderei ainda desejar sobre a terra?" provido de corpo: por isso, como Zaqueu, empregaste o
(cf. Sl 73:25). Nada, responde São João Clímaco, senão vigor dos teus membros e as realidades terrenas para te
orar sem cessar e unir-me a ti, no silêncio. Os outros são elevares do solo. E, se agiste assim, com inteligência e
escravos das riquezas, das honrarias, ou do desejo de ad- discernimento, levando em conta o peso do teu corpo e a
quirir bens materiais; meu único desejo é unir-me a Deus. medida das tuas forças, mas sem medo de parecer ridículo,
tiveste a felicidade de subir suficientemente acima da agi-
A oração, com tudo o que ela implica de renúncia a si tação da multidão — isto é, dos teus impulsos terrenos —
mesmo, tornou-se tua única razão de viver; a parte mais para captar, por um momento, o olhar do Senhor, que te
real de tua existência. Andar com Deus (cf. Gn 6:9) é do- procurava.
ravante a única coisa que, para ti, possa ter valor diante de
todos os acontecimentos do céu e da terra. Para quem leva Tu mesmo o verificas: desde que tomaste mais consciên-
o Cristo em si, deixou de haver morte, doença e aflição cia da tua própria escuridão, já não és tão atraído quanto
neste mundo. Esse já entrou na vida eterna, e vê tudo sob antes pelas distrações e pela vida social; percebeste, como
essa luz. num relâmpago, o teu homem interior, tal como é na rea-
lidade. Talvez tenhas a impressão de que teu coração se
Dia e noite, a semente celestial brota e cresce em teu co- assemelhasse, até agora, a uma casca de noz sacudida pe-
ração, sem saberes como. A terra do teu coração produz las ondas, sem alvo, nem piloto. Agora, a viagem tem um
primeiro o caule, depois a espiga, depois o grão que enche objetivo, e isso é importante. Todavia, continuas a ser a
a espiga (Mc 4:27-28). mesma casquinha de noz, perdida no oceano deserto; se
navegaste convenientemente, agora percebes, pela pri-
meira vez, a que ponto o teu barco é frágil e minúsculo.

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Basta que manifestemos nossa boa intenção — diz o arce- 26. A pérola de alto preço
bispo Teofilacto da Bulgária — para que o próprio Senhor
seja constantemente o nosso guia. Jesus disse a Zaqueu:
"... desce depressa — isto é, humilha-te — pois hoje devo Desprovido de todo conhecimento, incapaz de qualquer
ficar em tua casa" (Lc 19:5). "tua casa," aqui, pode-se in- bom pensamento e de qualquer boa ação, sem memória do
terpretar como "teu coração." Está bem, diz o Senhor, su- passado e sem vontade para o futuro; tão inútil quanto um
biste numa árvore e realizaste uma parte de teus desejos trapo velho, tão insensível quanto as pedras do caminho;
terrenos, porque desejavas ver-me. Querias estar em con- desagregando-te como um cogumelo carunchado nos bos-
dições de me perceber quando passasse em teu coração. ques, destinado à morte como um peixe arremessado à
Mas agora, apressa-te em te humilhar, ao invés de ficares margem; derramando lágrimas por tua miserável condi-
aí, pensando que estás melhor colocado que os outros; ção, começarás a orar diante do Todo-poderoso, teu Juiz
pois é no coração do humilde que devo habitar. "Ele des- e teu Criador, teu Salvador e teu Mestre, o Espírito de ver-
ceu imediatamente e recebeu-o com alegria" (Lc 19:6). dade e o Dispensador de vida. Como o filho pródigo, bal-
buciarás das profundezas de tua fraqueza: "... Pai, pequei
Zaqueu, chefe dos publicanos, recebe, portanto, o Cristo contra o céu e contra Ti; já não sou digno de ser chamado
E a primeira coisa que faz é renunciar a todos os seus bens. teu filho (Lc 15:21); Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,
Pois, sem demora, dá a metade deles aos pobres; e o resto tem piedade de mim, pecador."
é logo distribuído, certamente, para restituir o quádruplo
do que havia extorquido. "... Ele também é um filho de Conheces tua fraqueza, e estás diante do Todo-poderoso,
Abraão" (Lc 19:9): ele ouviu a voz do Senhor e imediata- como um grão de pó. Mas, do fundo da tua miséria, sentes
mente deixou o seu país e a casa do seu pai (cf. Gn 12:1), crescer em ti o amor pelos outros homens, porque eles fo-
onde o egoísmo e as paixões reinavam como senhores. ram criados pelo Senhor e recebem sua luz. Ele, cuja es-
sência é insondável, cuida deles; e isso basta para que es-
Zaqueu descobriu que um coração que recebe o Cristo tejas pronto a sacrificar tudo por eles.
deve esvaziar-se de todo o resto; deve dar tudo o que pos-
sui de riquezas injustamente adquiridas: "... a concupis- E acontece então uma coisa estranha: quanto mais desces
cência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho às profundezas do teu coração, mais te elevas acima de ti
das riquezas" (1Jo 2:16). Ele compreendeu que quem é mesmo. As condições exteriores de tua vida permanecem
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contrário, estiveres tenso e agitado, em estado de exalta- rico neste mundo, é pobre no mundo que virá; pois, ser
ção ou de desânimo; se sentes abatimento, amargura, ou rico materialmente é ser espiritualmente pobre, segundo
desejo excessivo de ação; se estás mergulhado num senti- São João Crisóstomo. Com efeito, se o rico não fosse tão
mento de êxtase ou na embriaguez dos sentidos, como a pobre, não procuraria ser tão rico.
que se sente escutando música; se tens a impressão de
contentamento e de euforia que te torna "contente contigo Assim como é impossível unir a saúde à doença, é também
mesmo e com o mundo todo," estás no caminho errado. impossível conciliar o amor e a posse, declara Santo Isaac,
Fizeste repousar demasiadamente o teu edifício sobre ti o Sírio. Pois, quem ama o próximo, abandona incondicio-
mesmo. Toca em retirada e volta a reprovar-te; esse deve nalmente tudo o que possui: essa é a natureza do amor.
ser sempre o ponto de partida de toda verdadeira oração. Mas, sem amor, é de todo impossível entrar no Reino de
Deus. Zaqueu também verificou isso.
O anjo de luz sempre traz a paz; essa paz que os demônios
das trevas querem perturbar a todo custo. É nisso, dizem Quanto menos se possui, mais a vida se simplifica. Todo
os santos Padres, que é possível reconhecer os poderes supérfluo é rejeitado, e o coração se recolhe em seu cen-
maus, e distingui-los dos bons. tro. Pouco a pouco, o homem interior se esforça por pene-
trar no seu quarto mais interno, em que se encontram os
degraus que sobem até o céu.

Também a oração se torna, assim, mais simples. As ora-


ções se reúnem ao redor do centro do coração e ali pene-
tram. E nessas profundezas, descobre-se a única oração
verdadeiramente necessária: o pedido de misericórdia.

O que pode desejar um pecador, e o primeiro deles (cf.


lTm 1:15), senão que o Senhor tenha piedade dele? Terá
alguma coisa para lhe oferecer? Será que tem forças, von-
tade, segurança, que lhe sejam próprias? Poderá empreen-
der alguma coisa por si mesmo? Poderá saber alguma
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coisa? Será que pode compreender, apreender alguma ção um único "Senhor, tem piedade." Tua oração será ne-
coisa, ele, que nada tem de próprio, nada que possa cha- cessariamente intermitente. Continuas a ser homem; ape-
mar de seu? nas "... os anjos nos céus vêem continuamente a face de
meu Pai que está nos céus" (Mt 18:10). Tu, ao contrário,
Ele nada tem, pois o pecado não tem existência positiva; tens um corpo terreno, que reclama o que necessita. Não
o pecado não é mais que privação, opacidade, recusa. É aí julgues ter perdido tudo se, no início, esqueceres de orar
que se encontra o pecador: nesse nada. por algumas horas, ou até durante um dia ou mais. Faz
tudo com naturalidade e simplicidade: és um marinheiro
Ele se vê assim; e, quanto menos possui, mais rico é Por-
sem experiência, que se ocupou de outra coisa com tanta
que o quarto vazio, que está no seu coração, transborda,
ansiedade, que se esqueceu de prestar atenção ao vento.
não de bens transitórios, mas da plenitude da vida eterna,
Assim, nada esperes de ti mesmo. Mas não contes, tam-
da sua luz e de suas certezas: o amor e a misericórdia. E
pouco, muito com os outros.
isso, porque o Senhor é o hóspede da sua casa.
A concentração é uma coisa; a distração, outra A oração
Mas, como .pode o pecador merecer a vinda do Senhor?
tornará o teu pensamento vivo e claro. Então, as coisas
Como pode apenas imaginar que o Senhor queira olhar
ficarão em ordem. As pessoas que oram vêem tudo o que
para ele, mergulhado nas suas trevas? É inútil esforçar-se
as cerca, notando e observando cada coisa; mas a perspi-
para se purificar, combater e trabalhar, seguir os manda-
cácia desse olhar vem da oração, que derrama sobre tudo
mentos do Evangelho, velar, jejuar, procurar de todas as
a sua luz penetrante.
maneiras sacrificar-se pelo Senhor; apesar de tudo isso,
ele sucumbe ao mau humor e à ira, à falta de amor e à Nosso espírito é ativo quando a pureza reina dentro de
preguiça, à impaciência e à ingratidão, e a todos os vícios nós. Enquanto procurarmos estender no coração, esse
imagináveis. Como pode esperar que o Senhor venha a reino do desapego, nosso ser espiritual continuará a cres-
semelhante morada? cer.
Por isso, ele ora nestes termos: "Senhor, tem piedade, tem A oração produz a paz interior, uma tranqüila calma na
piedade de mim, pecador; pois, na verdade, tentei fazer o tristeza, o amor, o reconhecimento, a humildade. Se, ao
que estava prescrito, para te servir. Trabalhei o campo do
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vem ser, também elas, vigiadas com rigor. Prega-as forte- meu coração, cujo cuidado me tinhas confiado, e aí guar-
mente com as palavras da oração, a Santa Escritura, a lei- dei os animais (cf. Lc 17:7-10). Mas, sou apenas o teu hu-
tura dos Salmos e das obras dos santos Padres, onde todas milde servo, e sem ti nada posso fazer. Assim, tem pie-
essas coisas estão prescritas. Não permitas que tua imagi- dade de mim e enche-me da tua graça."
nação voe para um lado e para outro, à vontade. As idéias
que entusiasmam não passam, em geral, de fugas estéreis Pela ação da sua liberdade, ele aumenta a fé (cf. Lc 17:5);
para o mundo das ilusões. Quando teu pensamento já não e, pela oração, obtém as energias necessárias para agir.
está, de modo útil, ocupado pelo trabalho, chama-o de Então, ação pessoal e oração unem-se com laços estreitos,
volta à oração. até que suas águas se misturem completamente, e que a
ação pessoal se torne oração, e a oração se torne o nosso
Toma cuidado para que tua imaginação e teu pensamento agir. É o que os santos chamam de atividade espiritual,
te obedeçam com tanta docilidade quanto um cão bem Oração do Coração, ou Oração de Jesus.
adestrado. Não permitas que ele fique saltando ao teu re-
dor, latindo; que fuce nas latas de lixo, nem que role no
regato. Assim, também deves ter sempre a possibilidade
de trazer de volta os pensamentos e a imaginação; e deves
fazê-lo inúmeras vezes, a cada instante. Se não o fizeres,
diz Santo Antão, serás semelhante a um cavalo montado
sucessivamente por vários cavaleiros, sem descanso, e
que acaba caindo, exausto e coberto de espuma.

Se bates com muita força sobre a casca de uma noz, pode-


rás quebrar também a noz. É necessário agir com precau-
ção. Não comeces com pressa a Oração de Jesus. Não te
apresses em te servir dela; e, mesmo depois, continua a
dizer as tuas outras orações. Não fiques por demais ansi-
oso. Não creias que, por ti mesmo, possas dizer com aten-

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25. A Oração de Jesus com ela. Não apenas as inquietações terrenas não se con-
ciliam com essa invocação, mas também toda preocupa-
ção ou qualquer esperança de ouvir uma resposta; toda vi-
O abade Isaías disse que a Oração de Jesus é um espelho são interior, a impressão de sentir alguma coisa, os deva-
para o espírito e uma lâmpada para a consciência. Tam- neios românticos, as perguntas curiosas e o jogo da ima-
bém a compararam a uma voz tranqüila, ressoando numa ginação. A simplicidade é uma condição indispensável,
casa perpetuamente: todos os ladrões que tentam entrar, bem como a humildade, a sobriedade do corpo e do espí-
fogem ao perceber que alguém está acordado. A casa, é o rito e, de modo geral, tudo o que implica o combate invi-
coração; os ladrões, as sugestões más. A oração, é a voz sível.
de quem está montando guarda. Porém, aquele que vela,
já não sou eu; é o Cristo. Os principiantes, em particular, devem estar vigilantes
contra tudo o que se assemelhe à mais ligeira tendência ao
A atividade espiritual encarna o Cristo na nossa alma. Ela misticismo. A Oração de Jesus é uma atividade, um es-
implica uma contínua lembrança de Deus: ele permanece forço prático, e um meio que possibilita o acolhimento e
escondido em ti, na tua alma, no teu coração, na tua cons- o emprego dessa força que se chama Graça de Deus —
ciência: "Eu dormia, mas meu coração velava" (Ct 5:2). sempre presente nos batizados, embora escondida — para
Ainda que eu esteja dormindo, ou deva ocupar-me de ou- que ela produza fruto. A oração faz frutificar essa força
tra coisa, meu coração continua fixo na oração, isto é, na em nossa alma; ela não tem outro objetivo. É um martelo
Vida Eterna, no Reino dos céus, no Cristo. As raízes do que quebra uma carapaça. O martelo é duro, e seus golpes
meu ser estão firmemente plantadas no solo que as ali- machucam. Abandona qualquer idéia de suavidade, de en-
menta. levo, de vozes celestiais; só um caminho leva ao Reino de
Deus: é o da Cruz. Ficar suspenso, crucificado a uma ár-
O meio de chegar a essa oração é a invocação: "Senhor vore, é um horrível suplício. Não esperes nada mais.
Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, peca-
dor." Repete-a em voz alta, ou apenas mentalmente, com Crucificaste o teu corpo, pregando-o firmemente a um gê-
tranqüilidade, devagar; mas com atenção, com o coração nero de vida simples e uniforme, impondo a ti mesmo uma
tão livre quanto possível de tudo o que não se harmonize estrita disciplina. A atividade mental e a imaginação de-

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