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PENSATA • MARKETING ETNOGRÁFICO: COLOCANDO A ETNOGRAFIA EM SEU DEVIDO LUGAR

MARKETING ETNOGRÁFICO: COLOCANDO A


ETNOGRAFIA EM SEU DEVIDO LUGAR1
Lívia Barbosa
UFF/ESPM

INTRODUÇÃO consumo e do comportamento do con- e idade. Nesse contexto, o método an-


sumidor em um mundo cada dia mais tropológico tradicional de trabalho de
Meu objetivo neste trabalho é discu- complexo e inter-relacionado. campo e observação direta – a etno-
tir, criticamente, o uso da etnografia no Nessa nova perspectiva, as duas vi- grafia – tornou-se um instrumento de
estudo do “comportamento do consu- sões tradicionais, alimentadas por eco- importância fundamental. O uso de da-
midor”. Pretendo levar a cabo essa dis- nomistas e profissionais de marketing, dos qualitativos não é uma novidade,
cussão a partir do ponto de vista de do consumidor – como um sujeito ra- como qualquer história da pesquisa do
minha experiência como antropóloga cional, independente, auto-motivado e comportamento do consumidor pode
acadêmica e consultora de empresas livre para escolher, e /ou um sujeito indicar. A novidade reside no recurso à
para a área de consumo e organizações. passivo e manipulável – e do consumo etnografia, que consiste, do ponto de
Os dois tipos de experiências permitem- – como um ato de compra – sofreram vista metodológico, no processo de ob-
me uma visão crítica da forma como a uma considerável alteração. O consu- servar, participar e entrevistar o “nati-
etnografia tem sido usada pelas empre- midor surge como um sujeito imerso vo” em suas condições reais de existên-
sas e sinalizam as possibilidades aber- em diferentes redes culturais e sociais, cia, tentando entender e mapear a com-
tas ao marketing com o uso do método e o consumo como um processo que pletude de sua vida.
etnográfico para o entendimento do começa antes da compra e termina ape- A etnografia abre espaço para a ex-
“comportamento do consumidor”. nas com o descarte final da mercado- plicação de diferentes e mutáveis pa-
ria ou do serviço. Entender como o péis, funções e significados a que são
consumo se conecta a outras partes e submetidos os produtos e serviços no
A PESQUISA DO dimensões da vida humana e como momento em que eles saem das lojas
COMPORTAMENTO uma gramática cultural pré-existente na mão do consumidor e penetram em
DO CONSUMIDOR interage e é permanentemente negocia- seu mundo cotidiano. É em função
da a partir de nossa perspectiva indivi- dessa nova percepção do poder dos
Desde 1980 a pesquisa em marke- dual é um dos principais objetivos des- consumidores, de re-significarem tudo,
ting, mais especificamente a relaciona- sa perspectiva emergente, conforme que podemos encontrar pesquisadores
da com comportamento do consumi- afirmam autores como Marshall observando um típico café da manhã
dor, tem sofrido uma considerável Shalins, Colin Campbell, Russell Belk de domingo na casa de uma família de
mudança do ponto de vista metodoló- e Grant Mac Cracken. classe média e tentando entender o
gico, podendo ser caracterizada – de É desnecessário dizer que essa nova papel e o peso relativo que a margari-
acordo com Russell Belk, no livro tendência de perceber o consumo e os na desempenha naquela refeição e na-
Acknowledging consumption –, como consumidores reflete mudanças que quele sistema alimentar. Ou, ainda,
uma diminuição da ênfase em dados ocorreram na sociedade contemporâ- encontrá-los observando o estaciona-
quantitativos e agregados, bem como nea. Elas sinalizam em direção ao con- mento de um supermercado e vendo
um interesse crescente por informação sumo como um processo cada dia mais como mulheres, carregando sacolas e
de cunho mais qualitativo e mais par- influenciado por categorias culturais – segurando crianças pelas mãos, pode-
ticularizado. Essa mudança está basea- estilo de vida, identidade e visões de riam ter a vida facilitada com design de
da na evidência dos limites da aborda- mundo – do que pelas tradicionais re- malas e portas de carros menos pesa-
gem economicista na explicação do ferências sociológicas – classe, gênero das e diferentes das atuais.

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Portanto, não é surpreendente o trabalho de campo e com metodologias Strauss, a natureza pode oferecer suges-
que os novos pesquisadores têm des- qualitativas não estão necessariamen- tão e o meio ambiente alguns limites,
coberto. Da mesma forma como os te aptos a fazerem boas etnografias. mas a lógica simbólica é arbitrária.
antropólogos, eles estão começando a Para que a etnografia produza o tipo Os antropólogos fazem trabalho de
ouvir, observar e relacionar o que as de dado que nos permite entender o campo porque tal metodologia lhes aju-
pessoas dizem que fazem com o que significado do comportamento do da a perceber e mapear diferentes prin-
elas realmente fazem, que significados consumidor, faz-se necessário o co- cípios, lógicas e significados por meio
elas atribuem ao que fazem e ao que nhecimento de alguns pressupostos dos quais as pessoas atribuem sentido
gostariam de fazer. Esse é um tipo de teóricos e metodológicos. É justamen- e organizam a “realidade” em que vi-
informação que nenhum questionário te para eles que voltarei minha aten- vem. Por exemplo, ao observar as prá-
fechado ou pesquisa de mercado tra- ção na próxima seção. ticas de lavagem de roupa de um gru-
dicional pode oferecer. Enquanto es- po de mulheres, os hábitos alimenta-
tes últimos oferecem a taxa de respos- res de outro e, ainda, o processo de so-
ta a determinadas perguntas, a etno- ETNOGRAFIA E cialização infantil de um terceiro, é pos-
grafia busca revelar o significado das COMPORTAMENTO sível encontrar os caminhos que nos
respostas e das práticas sociais. DO CONSUMIDOR levam a esses sistemas classificatórios
A consciência da importância da e a estruturas cognitivas. Nesse senti-
compreensão da lógica e dos valores O que é etnografia? Por que os an- do, podemos afirmar que o real signi-
atribuídos aos produtos e serviços, aos tropólogos fazem uso dessa metodolo- ficado de “ouvir” os consumidores é,
novos usos que lhes são atribuídos, às gia? Que tipo de informação ela pro- ou pelo menos deveria ser, justamente
práticas a que estão submetidos e como duz e qual sua aplicabilidade para o o mapeamento de tais processos
tudo isso pode ser inserido significati- marketing e para o universo dos negó- cognitivos inconscientes, e não apenas
vamente na completude da vida coti- cios em geral? Essas são algumas per- os “desejos” presentes e futuros daque-
diana dos consumidores é o que a et- guntas cujas respostas ajudam a enten- les em relação a determinados produ-
nografia tem a oferecer ao marketing. der melhor a importância da etnogra- tos e serviços.
Embora a etnografia esteja se tor- fia para a pesquisa do consumidor. Quando a observação direta do tra-
nando popular, como indicam as inú- A realidade social tem uma nature- balho de campo é combinada a entre-
meras reportagens de revistas e jor- za dupla. Uma delas é composta pelo vistas em profundidade, como via de
nais ligados ao mundo empresarial e mundo material que nos rodeia e a regra acontece no trabalho etnográfi-
dos negócios, alguns autores – como outra pelos instrumentos simbólicos co, a informação visual é enriquecida
Walsh, Buia, Peixoto e Sherry – aler- por meio dos quais os seres humanos com o “ponto de vista nativo” sobre as
tam para o fato de que ela não tem sido atribuem sentido nesse mundo mate- práticas, as lógicas e os valores obser-
utilizada dentro das especificações rial. Pessoas, objetos, relações e acon- vados e o tom emocional – ethos – que
metodológicas da antropologia, as tecimentos fazem parte da vida cotidia- permeia a situação. É isso que fornece
quais permitiriam o tipo de dado men- na e da “realidade” apenas quando es- ao antropólogo a oportunidade única
cionado anteriormente. tão inseridos em um sistema de valo- de olhar a realidade de um grupo es-
Minha crítica não deve ser interpre- res e significados. Ou seja, quando es- pecífico de pessoas por intermédio das
tada como uma sugestão de reserva de tão inseridos em um determinado uni- próprias categorias que elas utilizam
mercado, na qual apenas antropólogos verso cultural, que lhes reconhece a para percebê-la, vivenciá-la e organizá-
profissionais seriam capazes de fazer existência e lhes atribui um peso e um la, evitando, assim, a armadilha do
uma boa etnografia. Qualquer metodo- valor. Caso contrário, eles podem exis- etnocentrismo.
logia pode ser usada por qualquer pes- tir objetivamente, fazerem parte da rea- Conseqüentemente, um dos proce-
quisador, desde que ele, ou ela, esteja lidade empírica, mas não da social. dimentos básicos do trabalho de cam-
ciente das implicações metodológicas Os valores e significados não são de- po é tentar determinar as principais
e teóricas envolvidas. Embora a pes- terminados pelas propriedades físicas e categorias que são usadas por um gru-
quisa de campo de cunho etnográfico biológicas de pessoas, objetos, produ- po de pessoas para classificar o mun-
seja uma metodologia qualitativa, ela tos e /ou fatos, mas lhes são atribuídos do a seu redor, os diferentes tipos de
não é igual a outras metodologias qua- pelo sistema classificatório e pelas es- pessoas e relações que se estabelecem
litativas. Isso significa, também, que os truturas simbólicas da mente humana. entre elas, o mundo material em que
pesquisadores que têm experiência em Como muito bem expressou Levi- estão inseridas e suas relações com o

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mundo empírico, entre outras. Assim, Outras exigências metodológicas são priori sobre o grupo que pretende es-
qualquer trabalho de campo e obser- também necessárias, principalmente tudar, a partir de suas experiências so-
vação direta deve começar com os pes- quando estamos trabalhando em nos- ciais. A atribuição da categoria “pobre”
quisadores evitando classificações a sa própria sociedade, na qual tudo nos a determinados grupos, que eufemis-
priori sobre o grupo ou o objeto de es- parece familiar. Contudo, estar familia- ticamente nas pesquisas de mercado
tudo. Caso contrário, o pesquisador rizado com algo não significa conhecê- são referidos como consumidores C e
estará investigando, muito provavel- lo. Portanto, uma atitude de distância, D, é um exemplo clássico do que aca-
mente, seu próprio sistema de classifi- de estranhamento, deve ser adotada a bo de dizer. Pobreza é um conceito
cação sobre determinada realidade, e fim de que, como propõem Roberto relativo. Ele depende do contexto e
não como os “nativos” pensam acerca DaMatta e Gilberto Velho, possamos pode ser definido de diversas manei-
do mundo e da existência em que se transformar o familiar em exótico. Es- ras – carência material, espiritual, mo-
encontram inseridos. Assim, consumer tranhar algo, um fato ou situação sig- ral, entre outros – e ter significados dis-
insight, conceito usado por vários pro- nifica olhar com novos olhos aquilo tintos – pode ser entendido como fru-
fissionais de marketing, pode ser con- que nos passava inteiramente desper- to da responsabilidade coletiva ou in-
siderado o equivalente estrutural das cebido, fazer perguntas acerca de coi- dividual, da expiação de pecados de vi-
categorias nativas dos antropólogos, sas tomadas como dadas, procurar a das passadas etc. – que geram implica-
ou seja, as categorias lógicas e classi- lógica e o significado por trás da práti- ções diferenciadas na vida social. Via
ficatórias utilizadas pelos consumido- ca automática e inconsciente, olhar o de regra, como os pesquisadores de
res para organizar seu mundo e sua mundo da cultura material que nos é mercado e os profissionais de marke-
experiência cotidiana. tão “familiar” como se ele pertencesse ting são oriundos das classes médias e
O trabalho de mapeamento de cate- a uma civilização desconhecida. altas da sociedade brasileira e habitam
gorias é uma das partes do que deno- A fim de evitar as armadilhas do o eixo sul do Brasil, a carência material
minamos etnografia. Entretanto, as coi- etnocentrismo e de confundir o familiar dos segmentos C e D passa ser o ele-
sas não param aí. Se a função da etno- com o conhecido, o pesquisador deve mento definidor da identidade dos mes-
grafia fosse apenas desvendar o sistema estar consciente do porquê a etnografia mos. Como conseqüência, quando se
classificatório, o resultado final de seu estar sendo usada, do tipo de dado que ouvem as gravações das entrevistas ou
trabalho seria semelhante a um catálo- ela produz e de quais parâmetros meto- observa-se a coleta de dados, percebe-
go telefônico. Se quisermos fazer o que dológicos devem ser utilizados para sua se claramente o choque de percepções
Geertz denomina de etnografia densa – interpretação. E, no caso específico do entre pesquisadores e “nativos”.
aquela que nos permite entender o sig- marketing etnográfico, como todo esse Em um caso específico, de uma pes-
nificado do fluxo da ação social, “aqui- tipo de informação sociocultural pode quisa levada a cabo por uma empresa
lo que está sendo dito” pelos atos, pelo ser relacionado com o consumo e trans- multinacional no Nordeste com mulhe-
comportamento ou pelo discurso –, formado de maneira a gerar novas opor- res das classes C e D, na qual trabalhei
muito mais tem de ser realizado. Ou tunidades de mercado, novos produtos como consultora externa, os pesquisa-
seja, temos de saber como esse sistema e novas formas de entrar em contato dores, todos de São Paulo, tentavam
classificatório é apropriado no fluxo da com o consumidor. impor a categoria “pobre” sobre tais
vida social por diferentes atores, em di- Inúmeras vezes, ao longo de minha mulheres, que a todo tempo recusavam
versos contextos, a que fins eles são experiência profissional, deparei-me esse rótulo. Em todas as circunstâncias
postos e quais as disputas simbólicas com situações em que o trabalho de em que um ou outro pesquisador se
que se estabelecem ao redor deles. Isso campo era exercido por pesquisadores referia a essas mulheres como “pobres”
significa que o universo daquilo que que sabiam pouco ou quase nada so- ou tornava explícita a carência material
denominamos de cultura não é nem bre por que estavam ali, e menos ain- que, segundo eles, caracterizava a vida
monolítico nem homogêneo. Longe dis- da sobre o que julgavam que iriam ob- delas, elas apontavam alguém mais po-
so. É um universo polissêmico e polifô- ter com os dados coletados. Mas o pior bre. Uma mulher, moradora de Brasília
nico, para usar dois termos tão ao gosto é que, como faziam pesquisas qualita- Teimosa, uma favela de Recife, decla-
da antropologia pós-moderna. Portan- tivas há muito tempo, julgavam-se ha- rou que pobre é alguém que não tem
to, o trabalho etnográfico é de contex- bilitados, também, a fazer etnografia. um teto sobre a própria cabeça, ou
tualização do significado, de construção Um das armadilhas mais comuns da aquele que dorme ao relento, nas esta-
de hierarquias de sentidos para diferen- visão etnocêntrica dos pesquisadores é ções de trem ou ônibus. Ela não era
tes grupos em diferentes momentos. a imposição de uma classificação a pobre, tinha seu barraco, humilde, é

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verdade, mas para o qual todo dia ela inteiramente neutralizadas pelo despre- mente utilizados na compreensão do
podia voltar. Claramente, a mulher es- paro dos pesquisadores. Embora tais de- comportamento do consumidor, o
pecificava que, para ela, a condição de ficiências possam ser neutralizadas com marketing etnográfico faz uso de prin-
pobreza definia-se pela ausência de um um melhor treinamento metodológico cípios teóricos diferenciados, oriundos,
lugar de moradia. Decorre daí o empe- das equipes de pesquisadores, elas per- também, da antropologia. Esses prin-
nho na construção de um “barraqui- manecerão presentes na pesquisa de cípios contrastam com os do marke-
nho”, de um “cantinho” que ela possa campo enquanto os pesquisadores ig- ting tradicional em várias dimensões.
chamar de “seu”. norarem os pressupostos metodológicos O primeiro deles é aquele que re-
Essas mulheres designavam-se como do trabalho de campo antropológico. jeita tratar e abordar produtos e servi-
pobres ou admitiam sua precariedade Não é suficiente “estar lá” e “observar” ços de forma individualizada, sem
material apenas quando tal situação formas “exóticas” de vida, diferentes da- relacioná-los ao contexto no qual se
podia ser compensada com uma posi- quelas a que estão acostumados. É fun- acham inseridos. Produtos e serviços
ção mais alta no interior de um siste- damental saber por que é importante não se encontram boiando em um
ma de classificação social e moral. “Sou estar lá, que tipo de dado a observação vaccum cultural. Ao contrário, encon-
pobre, mas honesta”, “sou pobre, mas direta oferece, qual é a natureza da rea- tram-se inseridos em sistemas de obje-
limpa”, “Deus nunca me falhou”, “sou lidade social e, conseqüentemente, por tos e relações, no interior dos quais eles
rica da benção divina” foram e são al- que observá-la diretamente pode pro- adquirem seus respectivos significados
gumas das lógicas compensatórias uti- duzir conhecimento diferenciado em e funções. Ou seja, o marketing etno-
lizadas por esses segmentos para lida- relação às metodologias tradicionais. gráfico mapeia a gramática cultural
rem com a própria restrição material Não podemos esquecer que as ações de subjacente aos diferentes significados,
de suas existências. marketing têm implicações sociais e éti- às práticas de consumo, de compra e
O quanto esses equívocos metodo- cas. Entender o mundo por meio das de estilo de vida dos produtos e servi-
lógicos afetam a coleta e o tipo de da- categorias do outro é um exercício de ços. Nesse contexto, o consumo não é
dos é difícil de avaliar. Mas, certamen- alteridade que não pode ser despreza- concebido como compra, mas como
te, os pesquisadores perdem excelentes do. Com ele podemos enxergar melhor um processo social que começa antes
oportunidades de entender o consumi- as necessidades das populações caren- da compra e se estende até o descarte
dor na completude de sua existência. tes, perceber nichos para novos produ- final da mercadoria. Portanto, como
Algumas dessas perdas são óbvias, como tos que poderão diminuir o tempo gas- afirmam Miller e Slater em seu livro The
no caso das mulheres nordestinas, to em atividades, tempo que, por sua Internet. An ethnographic approach, o
exemplificado anteriormente. Podemos vez, poderia ser alocado para o lazer ou que registramos etnograficamente
começar por indicar as diferenças de suprir carências que suscitam angústia como o significado de qualquer pro-
concepção entre os pesquisadores e as e sofrimento, e, ainda, ajudar na imple- duto e serviço no interior de um siste-
mulheres investigadas sobre o significa- mentação de políticas públicas. ma de relações é sua posição no interi-
do da carência material e o impacto da A ignorância dos pressupostos in- or de uma ordem social, historicamente
mesma na definição da identidade para dicados acima torna a experiência de construída e mutável, e com a qual te-
cada um dos grupos. Para os pesquisa- campo uma aventura exótica, do tipo mos de trabalhar permanentemente.
dores, o principal critério para definir que se pode contar em mesa de bar e Adotar a perspectiva sistêmica
aquele grupo de consumidoras era a suscitar a admiração de amigos e na- indicada anteriormente é ter uma me-
“pobreza”, mas, para elas, qual era o moradas, mas pobre no que concerne lhor ferramenta de compreensão dos
principal critério, ou critérios, para de- aos objetivos do negócio e do conheci- processos de mudança e inovação nos
fini-las? Se elas recusavam o rótulo de mento dos processos de consumo e dos padrões de consumo. Qualquer novo
“pobres” e apenas o admitiam em de- consumidores. Vejamos agora algumas elemento que chega ao mercado será
terminados contextos, qual era, então, das dificuldades teóricas. inserido em um sistema de consumo,
o significado atribuído à pobreza e como de objetos e de relações. Portanto, terá
ele era interpretado em diferentes cir- de dialogar com a gramática sociocul-
cunstâncias? Como a carência material PRESSUPOSTOS TEÓRICOS tural que atribui significado e função
era compreendida e como ela afetava as DO MARKETING ETNOGRÁFICO aos bens e serviços e às práticas sociais
hierarquias de compra e de consumo? a que estes estarão submetidos. Qual-
Essas são algumas das questões impor- Além de se basear em aspectos me- quer novo item alimentar será inseri-
tantes a serem respondidas e que foram todológicos distintos dos tradicional- do, do ponto de vista simbólico, no

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interior de um sistema alimentar, que tâncias, a modifica e contradiz. Os ca diz respeito à segmentação de mer-
lhe atribuirá sentido e função a partir consumidores não são apenas sujeitos cado. Uma das grandes ambições do
da lógica que lhe é intrínseca e das re- manipulados por técnicas de marketing, marketing é encontrar novas formas de
lações que serão estabelecidas com como as interpretações mais ingênuas segmentar a população. Todos são
outros itens do sistema. Nos últimos nos levam a crer. Consumidores são ma- conscientes das limitações que uma
anos foram introduzidos no Brasil nipuladores “ativos”. Ao invés de usa- classificação a partir da renda oferece
muitos novos produtos para uso no rem sempre os bens e serviços como para se entender o consumidor. Estilo
café da manhã. Entretanto, apesar de definidos e previstos pelos produtores, de vida, por exemplo, foi um conceito
estarem designados pela indústria ali- os consumidores utilizam-nos de formas oriundo da antropologia que gerou
mentícia como segmentos dessa refei- particulares, ressignificando-os no con- uma grande expectativa acerca das pos-
ção, eles não são usados pelos consu- texto de suas vidas e estabelecendo no- sibilidades de uma nova segmentação,
midores para tal. Figuram em meren- vas cadeias de relações entre objetos, de diferente daquela feita por meio das tra-
das escolares, em “lanchinhos” duran- forma que melhor atendam a seus de- dicionais variáveis sociológicas. Entre-
te o dia, em guloseimas para serem in- sejos e necessidades. Consumidores são tanto, como Mac Cracken demonstrou,
geridos diante da televisão, combinados bricoleurs da vida cotidiana. Quem in- a metodologia e a teoria utilizadas para
com outros produtos que nunca estive- ventou o Bom-Bril jamais o imaginou pesquisar estilo de vida, como, por
ram nas considerações de seus produ- na ponta de uma antena de televisão... exemplo, a AIO – escala de atitudes,
tores. Portanto, conhecer as categorias Um terceiro aspecto diz respeito à opinião e interesses –, permaneceram
de um determinado sistema, os elemen- visão de que o consumo é um fim em como uma grande barreira para a com-
tos que o compõem, a lógica interna que si mesmo. As pessoas adquirem bens e preensão de sua natureza complexa e
o preside e as práticas de consumo a que serviços não para tê-los no sentido ex- inter-relacionada. Uma grande quanti-
está relacionado é meio caminho anda- clusivo da posse, mas para adquirirem, dade de dados referentes à vida cotidia-
do na compreensão do impacto das por intermédio deles, as propriedades na, às preferências, aos interesses e de-
novas tendências e inovações. que lhes são atribuídas: frescor, bele- sejos das pessoas é acessada por tais
Um segundo aspecto teórico, em re- za, praticidade, entre outras. O consu- metodologias. Entretanto, nenhum ins-
lação ao qual o marketing etnográfico mo é sempre um meio, um instrumen- trumental teórico foi desenvolvido de
destoa das abordagens tradicionais, diz to de mediação para um outro fim. Este forma a ser capaz de ligar todas essas
respeito à concepção de quem é o con- pode ser a confirmação de identidades informações em um todo coerente, que
sumidor. Para o marketing, ela varia de auto-atribuídas, a construção de novas explique por que determinados padrões
um sujeito racional, autônomo, que identidades, a diferenciação social, a de consumo ou certas práticas e estilos
toma decisões individualmente, para luta por posição social, o prazer ínti- de vida encontram-se ou não agrupa-
outra que o concebe como alguém pas- mo, a satisfação de necessidades defi- dos em um conjunto de consumidores.
sível de manipulação, em quem se pode nidas socialmente, a expressão de vi- Parte da razão para essa deficiên-
incutir “necessidades e desejos” e que sões particulares de mundo e muitas cia encontra-se na ausência de uma
reage irracionalmente, de acordo com outras. Portanto, qualquer investigação teoria estrutural do significado, como
os estímulos oferecidos pelo mercado – sobre o consumo de um determinado sugerida por Mac Cracken. Contudo,
entre outros, promoções e preço. bem ou serviço visa a entender como encontra-se, também, na percepção do
No caso do marketing etnográfico, esse processo social se conecta a outras consumo como sendo determinado
o consumidor é autor e ator de sua pró- partes da vida social, bem como seu pela disponibilidade financeira das pes-
pria história. Qualquer consumidor se papel de mediador entre as diferentes soas. O que se ganha e o quanto se ga-
encontra em permanente diálogo com esferas da vida social. nha estabelece o limite daquilo que
a gramática sociocultural subjacente Essa percepção do consumo como posso colocar em minha cesta de bens
a produtos e serviços, tanto para um fim em si mesmo faz com que as e serviços por meio da compra, mas
corroborá-la como para rejeitá-la, in- visões “estratégicas” de marketing es- não aquilo que especificamente colo-
troduzindo mudanças e inovações. Esse tejam centradas no consumo, enquan- co e por que quero fazê-lo. Nesse sen-
diálogo permanente o coloca como to venda de um determinado bem ou tido, o espaço para variação é imenso.
ator, no sentido de que, em várias cir- serviço. Torna os produtores míopes do Mais ainda, a busca da explicação do
cunstâncias, ele reproduz inconscien- significado e da função de seus produ- consumo pelas limitações da renda
temente tal gramática, e como autor, tos em um contexto mais amplo. implicam tentar explicar o consumo de
na medida em que, em outras circuns- A quarta e última observação teóri- dentro, ou seja, a partir daquilo que as

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pessoas consomem. Ora, se sabemos OBSERVAÇÕES FINAIS cessos culturais. Assim, é fundamental
que o consumo é uma atividade media- que os profissionais de marketing este-
dora, sua razão encontra-se em seu ex- Pesquisar consumo e fazer marketing jam cientes não só desses processos, mas
terior, isto é, em concepções sobre o é trabalhar com a cultura material de também da natureza dos mesmos e da
mundo e a realidade que nos circun- uma sociedade sob a forma de merca- concepção da realidade social em que
dam. Portanto, esforços deveriam ser dorias e serviços, e estudar como ela se eles se baseiam. Em nosso estudo do
envidados para mapearmos os conjun- insere no interior de um determinado consumo e do universo de bens e servi-
tos ideológicos e discursivos que estilo de vida e ideologia. Para se fazer ços a que ele se encontra relacionado,
subjazem aos diferentes sistemas de isso de forma adequada, é necessário devemos nos preocupar não apenas em
consumo, e não continuarmos baten- adotar uma forma ordenada de olhar como os sujeitos são constituídos no
do em teclas desgastadas que muito para os mais diferentes tipos de dados e interior de universos materiais, mas
pouco acrescentam ao que já sabemos não os deixar flutuando em um vácuo como eles percebem e utilizam os obje-
e nada àquilo que deveríamos saber. acima do contexto social a que eles per- tos de tais universos.
As tentativas de mapeamento tencem, fora do alcance do sistema de Portanto, as críticas teóricas e me-
discursivo permitiriam enfrentar outras classificação que lhes atribui sentido. É todológicas formuladas ao longo desse
suposições teóricas fundamentais para justamente esse tipo de orientação que trabalho não são uma defesa em favor
o estudo antropológico do consumo e o marketing etnográfico permite. Ele de um monopólio para antropólogos
para o marketing. Elas dizem respeito lança mão dos princípios teóricos e na pesquisa do comportamento do
à racionalidade do consumidor, a par- metodológicos descritos anteriormente consumidor, embora elas sejam certa-
tir de uma outra perspectiva que não a e aplica-os ao estudo do consumo e dos mente uma sinalização para a necessi-
dos economistas, que faria do consu- consumidores. Nesse sentido, ele não é dade de se distinguir entre trabalho de
mo uma atividade internamente coe- um novo tipo de marketing, mas uma campo, observação direta e etnografia
rente. Nesta racionalidade do consu- nova maneira de fazer marketing. Ele e as exigências metodológicas e teóri-
midor, o consumo é uma atividade que parte de princípios teóricos e metodo- cas para que elas se apliquem.
pode ser inferida e prevista porque o lógicos distintos daqueles que inspiram
consumidor é um sujeito racional, que as tradicionais pesquisas sobre o com- Pensata recebida em 19.03.2003. Aprovada
consome de acordo com princípios ideo- portamento do consumidor2. em 08.05.2003.
lógicos que regulam sua existência e Mais ainda, faz-se necessário enten-
condicionam quase todas as dimensões der, também, que uma das principais
Notas
de sua atividade. Se admitirmos que o tarefas do marketing é transformar as
consumo é uma atividade coerente com possibilidades materiais dadas no uni- 1. Uma versão original deste trabalho foi apre-
sentada na Multicultural Marketing Conference
as concepções ideológicas das pessoas, verso impessoal da produção no mun-
de 2002, em Valencia, Espanha.
poderemos prevê-lo desde que encon- do personalizado, particularizado e di-
tremos o foco do qual emana tal coe- nâmico do consumo. O marketing rea- 2. Essa nova forma de fazer marketing não deve
ser confundida com antropologia do consumo.
rência. Assim, os esforços deveriam liza essa tarefa por meio de processos
Marketing etnográfico é a aplicação, no marketing,
estar centrados na busca pelas concep- culturais. O mais importante é a trans- de princípios teóricos e metodológicos oriundos
ções que estruturam a vida das pessoas ferência de significado do mundo cul- da antropologia. Nesse sentido, ele não aspira a
e em como elas afetam o consumo de turalmente constituído para o mundo nenhum nível de teorização, ao contrario da an-
tropologia do consumo. Esta trabalha na elabora-
diferentes produtos e serviços. Esse material de objetos, produtos e servi-
ção de teorias do significado, que podem ou não
procedimento é justamente o inverso ços. Essa transferência de significado é ser exclusivamente aplicadas ao consumo; traba-
daquele feito hoje pelos pesquisadores materializada pela propaganda e lha com a natureza da sociedade que denomina-
do comportamento do consumidor. Ou ratificada ou não, posteriormente, pelo mos de consumo; com as distinções entre cultura
e sociedade de consumo, com teorias sobre o con-
seja, pesquisa-se o que se consome e consumidor como afirmam Mac
sumo, entre outros aspectos, que, embora tenham
não aquilo que nos leva a consumir o Cracken e Rocha. Conseqüentemente, impacto na compreensão do consumo, necessaria-
que consumimos. o marketing lida todo o tempo com pro- mente não são do interesse do marketing.

Lívia Barbosa
Profa. do Departamento de Antropologia da UFF. Consultora da ESPM.
E-mail: livia@visualnet.com.br

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