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Portanto, não é surpreendente o trabalho de campo e com metodologias Strauss, a natureza pode oferecer suges-
que os novos pesquisadores têm des- qualitativas não estão necessariamen- tão e o meio ambiente alguns limites,
coberto. Da mesma forma como os te aptos a fazerem boas etnografias. mas a lógica simbólica é arbitrária.
antropólogos, eles estão começando a Para que a etnografia produza o tipo Os antropólogos fazem trabalho de
ouvir, observar e relacionar o que as de dado que nos permite entender o campo porque tal metodologia lhes aju-
pessoas dizem que fazem com o que significado do comportamento do da a perceber e mapear diferentes prin-
elas realmente fazem, que significados consumidor, faz-se necessário o co- cípios, lógicas e significados por meio
elas atribuem ao que fazem e ao que nhecimento de alguns pressupostos dos quais as pessoas atribuem sentido
gostariam de fazer. Esse é um tipo de teóricos e metodológicos. É justamen- e organizam a “realidade” em que vi-
informação que nenhum questionário te para eles que voltarei minha aten- vem. Por exemplo, ao observar as prá-
fechado ou pesquisa de mercado tra- ção na próxima seção. ticas de lavagem de roupa de um gru-
dicional pode oferecer. Enquanto es- po de mulheres, os hábitos alimenta-
tes últimos oferecem a taxa de respos- res de outro e, ainda, o processo de so-
ta a determinadas perguntas, a etno- ETNOGRAFIA E cialização infantil de um terceiro, é pos-
grafia busca revelar o significado das COMPORTAMENTO sível encontrar os caminhos que nos
respostas e das práticas sociais. DO CONSUMIDOR levam a esses sistemas classificatórios
A consciência da importância da e a estruturas cognitivas. Nesse senti-
compreensão da lógica e dos valores O que é etnografia? Por que os an- do, podemos afirmar que o real signi-
atribuídos aos produtos e serviços, aos tropólogos fazem uso dessa metodolo- ficado de “ouvir” os consumidores é,
novos usos que lhes são atribuídos, às gia? Que tipo de informação ela pro- ou pelo menos deveria ser, justamente
práticas a que estão submetidos e como duz e qual sua aplicabilidade para o o mapeamento de tais processos
tudo isso pode ser inserido significati- marketing e para o universo dos negó- cognitivos inconscientes, e não apenas
vamente na completude da vida coti- cios em geral? Essas são algumas per- os “desejos” presentes e futuros daque-
diana dos consumidores é o que a et- guntas cujas respostas ajudam a enten- les em relação a determinados produ-
nografia tem a oferecer ao marketing. der melhor a importância da etnogra- tos e serviços.
Embora a etnografia esteja se tor- fia para a pesquisa do consumidor. Quando a observação direta do tra-
nando popular, como indicam as inú- A realidade social tem uma nature- balho de campo é combinada a entre-
meras reportagens de revistas e jor- za dupla. Uma delas é composta pelo vistas em profundidade, como via de
nais ligados ao mundo empresarial e mundo material que nos rodeia e a regra acontece no trabalho etnográfi-
dos negócios, alguns autores – como outra pelos instrumentos simbólicos co, a informação visual é enriquecida
Walsh, Buia, Peixoto e Sherry – aler- por meio dos quais os seres humanos com o “ponto de vista nativo” sobre as
tam para o fato de que ela não tem sido atribuem sentido nesse mundo mate- práticas, as lógicas e os valores obser-
utilizada dentro das especificações rial. Pessoas, objetos, relações e acon- vados e o tom emocional – ethos – que
metodológicas da antropologia, as tecimentos fazem parte da vida cotidia- permeia a situação. É isso que fornece
quais permitiriam o tipo de dado men- na e da “realidade” apenas quando es- ao antropólogo a oportunidade única
cionado anteriormente. tão inseridos em um sistema de valo- de olhar a realidade de um grupo es-
Minha crítica não deve ser interpre- res e significados. Ou seja, quando es- pecífico de pessoas por intermédio das
tada como uma sugestão de reserva de tão inseridos em um determinado uni- próprias categorias que elas utilizam
mercado, na qual apenas antropólogos verso cultural, que lhes reconhece a para percebê-la, vivenciá-la e organizá-
profissionais seriam capazes de fazer existência e lhes atribui um peso e um la, evitando, assim, a armadilha do
uma boa etnografia. Qualquer metodo- valor. Caso contrário, eles podem exis- etnocentrismo.
logia pode ser usada por qualquer pes- tir objetivamente, fazerem parte da rea- Conseqüentemente, um dos proce-
quisador, desde que ele, ou ela, esteja lidade empírica, mas não da social. dimentos básicos do trabalho de cam-
ciente das implicações metodológicas Os valores e significados não são de- po é tentar determinar as principais
e teóricas envolvidas. Embora a pes- terminados pelas propriedades físicas e categorias que são usadas por um gru-
quisa de campo de cunho etnográfico biológicas de pessoas, objetos, produ- po de pessoas para classificar o mun-
seja uma metodologia qualitativa, ela tos e /ou fatos, mas lhes são atribuídos do a seu redor, os diferentes tipos de
não é igual a outras metodologias qua- pelo sistema classificatório e pelas es- pessoas e relações que se estabelecem
litativas. Isso significa, também, que os truturas simbólicas da mente humana. entre elas, o mundo material em que
pesquisadores que têm experiência em Como muito bem expressou Levi- estão inseridas e suas relações com o
mundo empírico, entre outras. Assim, Outras exigências metodológicas são priori sobre o grupo que pretende es-
qualquer trabalho de campo e obser- também necessárias, principalmente tudar, a partir de suas experiências so-
vação direta deve começar com os pes- quando estamos trabalhando em nos- ciais. A atribuição da categoria “pobre”
quisadores evitando classificações a sa própria sociedade, na qual tudo nos a determinados grupos, que eufemis-
priori sobre o grupo ou o objeto de es- parece familiar. Contudo, estar familia- ticamente nas pesquisas de mercado
tudo. Caso contrário, o pesquisador rizado com algo não significa conhecê- são referidos como consumidores C e
estará investigando, muito provavel- lo. Portanto, uma atitude de distância, D, é um exemplo clássico do que aca-
mente, seu próprio sistema de classifi- de estranhamento, deve ser adotada a bo de dizer. Pobreza é um conceito
cação sobre determinada realidade, e fim de que, como propõem Roberto relativo. Ele depende do contexto e
não como os “nativos” pensam acerca DaMatta e Gilberto Velho, possamos pode ser definido de diversas manei-
do mundo e da existência em que se transformar o familiar em exótico. Es- ras – carência material, espiritual, mo-
encontram inseridos. Assim, consumer tranhar algo, um fato ou situação sig- ral, entre outros – e ter significados dis-
insight, conceito usado por vários pro- nifica olhar com novos olhos aquilo tintos – pode ser entendido como fru-
fissionais de marketing, pode ser con- que nos passava inteiramente desper- to da responsabilidade coletiva ou in-
siderado o equivalente estrutural das cebido, fazer perguntas acerca de coi- dividual, da expiação de pecados de vi-
categorias nativas dos antropólogos, sas tomadas como dadas, procurar a das passadas etc. – que geram implica-
ou seja, as categorias lógicas e classi- lógica e o significado por trás da práti- ções diferenciadas na vida social. Via
ficatórias utilizadas pelos consumido- ca automática e inconsciente, olhar o de regra, como os pesquisadores de
res para organizar seu mundo e sua mundo da cultura material que nos é mercado e os profissionais de marke-
experiência cotidiana. tão “familiar” como se ele pertencesse ting são oriundos das classes médias e
O trabalho de mapeamento de cate- a uma civilização desconhecida. altas da sociedade brasileira e habitam
gorias é uma das partes do que deno- A fim de evitar as armadilhas do o eixo sul do Brasil, a carência material
minamos etnografia. Entretanto, as coi- etnocentrismo e de confundir o familiar dos segmentos C e D passa ser o ele-
sas não param aí. Se a função da etno- com o conhecido, o pesquisador deve mento definidor da identidade dos mes-
grafia fosse apenas desvendar o sistema estar consciente do porquê a etnografia mos. Como conseqüência, quando se
classificatório, o resultado final de seu estar sendo usada, do tipo de dado que ouvem as gravações das entrevistas ou
trabalho seria semelhante a um catálo- ela produz e de quais parâmetros meto- observa-se a coleta de dados, percebe-
go telefônico. Se quisermos fazer o que dológicos devem ser utilizados para sua se claramente o choque de percepções
Geertz denomina de etnografia densa – interpretação. E, no caso específico do entre pesquisadores e “nativos”.
aquela que nos permite entender o sig- marketing etnográfico, como todo esse Em um caso específico, de uma pes-
nificado do fluxo da ação social, “aqui- tipo de informação sociocultural pode quisa levada a cabo por uma empresa
lo que está sendo dito” pelos atos, pelo ser relacionado com o consumo e trans- multinacional no Nordeste com mulhe-
comportamento ou pelo discurso –, formado de maneira a gerar novas opor- res das classes C e D, na qual trabalhei
muito mais tem de ser realizado. Ou tunidades de mercado, novos produtos como consultora externa, os pesquisa-
seja, temos de saber como esse sistema e novas formas de entrar em contato dores, todos de São Paulo, tentavam
classificatório é apropriado no fluxo da com o consumidor. impor a categoria “pobre” sobre tais
vida social por diferentes atores, em di- Inúmeras vezes, ao longo de minha mulheres, que a todo tempo recusavam
versos contextos, a que fins eles são experiência profissional, deparei-me esse rótulo. Em todas as circunstâncias
postos e quais as disputas simbólicas com situações em que o trabalho de em que um ou outro pesquisador se
que se estabelecem ao redor deles. Isso campo era exercido por pesquisadores referia a essas mulheres como “pobres”
significa que o universo daquilo que que sabiam pouco ou quase nada so- ou tornava explícita a carência material
denominamos de cultura não é nem bre por que estavam ali, e menos ain- que, segundo eles, caracterizava a vida
monolítico nem homogêneo. Longe dis- da sobre o que julgavam que iriam ob- delas, elas apontavam alguém mais po-
so. É um universo polissêmico e polifô- ter com os dados coletados. Mas o pior bre. Uma mulher, moradora de Brasília
nico, para usar dois termos tão ao gosto é que, como faziam pesquisas qualita- Teimosa, uma favela de Recife, decla-
da antropologia pós-moderna. Portan- tivas há muito tempo, julgavam-se ha- rou que pobre é alguém que não tem
to, o trabalho etnográfico é de contex- bilitados, também, a fazer etnografia. um teto sobre a própria cabeça, ou
tualização do significado, de construção Um das armadilhas mais comuns da aquele que dorme ao relento, nas esta-
de hierarquias de sentidos para diferen- visão etnocêntrica dos pesquisadores é ções de trem ou ônibus. Ela não era
tes grupos em diferentes momentos. a imposição de uma classificação a pobre, tinha seu barraco, humilde, é
verdade, mas para o qual todo dia ela inteiramente neutralizadas pelo despre- mente utilizados na compreensão do
podia voltar. Claramente, a mulher es- paro dos pesquisadores. Embora tais de- comportamento do consumidor, o
pecificava que, para ela, a condição de ficiências possam ser neutralizadas com marketing etnográfico faz uso de prin-
pobreza definia-se pela ausência de um um melhor treinamento metodológico cípios teóricos diferenciados, oriundos,
lugar de moradia. Decorre daí o empe- das equipes de pesquisadores, elas per- também, da antropologia. Esses prin-
nho na construção de um “barraqui- manecerão presentes na pesquisa de cípios contrastam com os do marke-
nho”, de um “cantinho” que ela possa campo enquanto os pesquisadores ig- ting tradicional em várias dimensões.
chamar de “seu”. norarem os pressupostos metodológicos O primeiro deles é aquele que re-
Essas mulheres designavam-se como do trabalho de campo antropológico. jeita tratar e abordar produtos e servi-
pobres ou admitiam sua precariedade Não é suficiente “estar lá” e “observar” ços de forma individualizada, sem
material apenas quando tal situação formas “exóticas” de vida, diferentes da- relacioná-los ao contexto no qual se
podia ser compensada com uma posi- quelas a que estão acostumados. É fun- acham inseridos. Produtos e serviços
ção mais alta no interior de um siste- damental saber por que é importante não se encontram boiando em um
ma de classificação social e moral. “Sou estar lá, que tipo de dado a observação vaccum cultural. Ao contrário, encon-
pobre, mas honesta”, “sou pobre, mas direta oferece, qual é a natureza da rea- tram-se inseridos em sistemas de obje-
limpa”, “Deus nunca me falhou”, “sou lidade social e, conseqüentemente, por tos e relações, no interior dos quais eles
rica da benção divina” foram e são al- que observá-la diretamente pode pro- adquirem seus respectivos significados
gumas das lógicas compensatórias uti- duzir conhecimento diferenciado em e funções. Ou seja, o marketing etno-
lizadas por esses segmentos para lida- relação às metodologias tradicionais. gráfico mapeia a gramática cultural
rem com a própria restrição material Não podemos esquecer que as ações de subjacente aos diferentes significados,
de suas existências. marketing têm implicações sociais e éti- às práticas de consumo, de compra e
O quanto esses equívocos metodo- cas. Entender o mundo por meio das de estilo de vida dos produtos e servi-
lógicos afetam a coleta e o tipo de da- categorias do outro é um exercício de ços. Nesse contexto, o consumo não é
dos é difícil de avaliar. Mas, certamen- alteridade que não pode ser despreza- concebido como compra, mas como
te, os pesquisadores perdem excelentes do. Com ele podemos enxergar melhor um processo social que começa antes
oportunidades de entender o consumi- as necessidades das populações caren- da compra e se estende até o descarte
dor na completude de sua existência. tes, perceber nichos para novos produ- final da mercadoria. Portanto, como
Algumas dessas perdas são óbvias, como tos que poderão diminuir o tempo gas- afirmam Miller e Slater em seu livro The
no caso das mulheres nordestinas, to em atividades, tempo que, por sua Internet. An ethnographic approach, o
exemplificado anteriormente. Podemos vez, poderia ser alocado para o lazer ou que registramos etnograficamente
começar por indicar as diferenças de suprir carências que suscitam angústia como o significado de qualquer pro-
concepção entre os pesquisadores e as e sofrimento, e, ainda, ajudar na imple- duto e serviço no interior de um siste-
mulheres investigadas sobre o significa- mentação de políticas públicas. ma de relações é sua posição no interi-
do da carência material e o impacto da A ignorância dos pressupostos in- or de uma ordem social, historicamente
mesma na definição da identidade para dicados acima torna a experiência de construída e mutável, e com a qual te-
cada um dos grupos. Para os pesquisa- campo uma aventura exótica, do tipo mos de trabalhar permanentemente.
dores, o principal critério para definir que se pode contar em mesa de bar e Adotar a perspectiva sistêmica
aquele grupo de consumidoras era a suscitar a admiração de amigos e na- indicada anteriormente é ter uma me-
“pobreza”, mas, para elas, qual era o moradas, mas pobre no que concerne lhor ferramenta de compreensão dos
principal critério, ou critérios, para de- aos objetivos do negócio e do conheci- processos de mudança e inovação nos
fini-las? Se elas recusavam o rótulo de mento dos processos de consumo e dos padrões de consumo. Qualquer novo
“pobres” e apenas o admitiam em de- consumidores. Vejamos agora algumas elemento que chega ao mercado será
terminados contextos, qual era, então, das dificuldades teóricas. inserido em um sistema de consumo,
o significado atribuído à pobreza e como de objetos e de relações. Portanto, terá
ele era interpretado em diferentes cir- de dialogar com a gramática sociocul-
cunstâncias? Como a carência material PRESSUPOSTOS TEÓRICOS tural que atribui significado e função
era compreendida e como ela afetava as DO MARKETING ETNOGRÁFICO aos bens e serviços e às práticas sociais
hierarquias de compra e de consumo? a que estes estarão submetidos. Qual-
Essas são algumas das questões impor- Além de se basear em aspectos me- quer novo item alimentar será inseri-
tantes a serem respondidas e que foram todológicos distintos dos tradicional- do, do ponto de vista simbólico, no
interior de um sistema alimentar, que tâncias, a modifica e contradiz. Os ca diz respeito à segmentação de mer-
lhe atribuirá sentido e função a partir consumidores não são apenas sujeitos cado. Uma das grandes ambições do
da lógica que lhe é intrínseca e das re- manipulados por técnicas de marketing, marketing é encontrar novas formas de
lações que serão estabelecidas com como as interpretações mais ingênuas segmentar a população. Todos são
outros itens do sistema. Nos últimos nos levam a crer. Consumidores são ma- conscientes das limitações que uma
anos foram introduzidos no Brasil nipuladores “ativos”. Ao invés de usa- classificação a partir da renda oferece
muitos novos produtos para uso no rem sempre os bens e serviços como para se entender o consumidor. Estilo
café da manhã. Entretanto, apesar de definidos e previstos pelos produtores, de vida, por exemplo, foi um conceito
estarem designados pela indústria ali- os consumidores utilizam-nos de formas oriundo da antropologia que gerou
mentícia como segmentos dessa refei- particulares, ressignificando-os no con- uma grande expectativa acerca das pos-
ção, eles não são usados pelos consu- texto de suas vidas e estabelecendo no- sibilidades de uma nova segmentação,
midores para tal. Figuram em meren- vas cadeias de relações entre objetos, de diferente daquela feita por meio das tra-
das escolares, em “lanchinhos” duran- forma que melhor atendam a seus de- dicionais variáveis sociológicas. Entre-
te o dia, em guloseimas para serem in- sejos e necessidades. Consumidores são tanto, como Mac Cracken demonstrou,
geridos diante da televisão, combinados bricoleurs da vida cotidiana. Quem in- a metodologia e a teoria utilizadas para
com outros produtos que nunca estive- ventou o Bom-Bril jamais o imaginou pesquisar estilo de vida, como, por
ram nas considerações de seus produ- na ponta de uma antena de televisão... exemplo, a AIO – escala de atitudes,
tores. Portanto, conhecer as categorias Um terceiro aspecto diz respeito à opinião e interesses –, permaneceram
de um determinado sistema, os elemen- visão de que o consumo é um fim em como uma grande barreira para a com-
tos que o compõem, a lógica interna que si mesmo. As pessoas adquirem bens e preensão de sua natureza complexa e
o preside e as práticas de consumo a que serviços não para tê-los no sentido ex- inter-relacionada. Uma grande quanti-
está relacionado é meio caminho anda- clusivo da posse, mas para adquirirem, dade de dados referentes à vida cotidia-
do na compreensão do impacto das por intermédio deles, as propriedades na, às preferências, aos interesses e de-
novas tendências e inovações. que lhes são atribuídas: frescor, bele- sejos das pessoas é acessada por tais
Um segundo aspecto teórico, em re- za, praticidade, entre outras. O consu- metodologias. Entretanto, nenhum ins-
lação ao qual o marketing etnográfico mo é sempre um meio, um instrumen- trumental teórico foi desenvolvido de
destoa das abordagens tradicionais, diz to de mediação para um outro fim. Este forma a ser capaz de ligar todas essas
respeito à concepção de quem é o con- pode ser a confirmação de identidades informações em um todo coerente, que
sumidor. Para o marketing, ela varia de auto-atribuídas, a construção de novas explique por que determinados padrões
um sujeito racional, autônomo, que identidades, a diferenciação social, a de consumo ou certas práticas e estilos
toma decisões individualmente, para luta por posição social, o prazer ínti- de vida encontram-se ou não agrupa-
outra que o concebe como alguém pas- mo, a satisfação de necessidades defi- dos em um conjunto de consumidores.
sível de manipulação, em quem se pode nidas socialmente, a expressão de vi- Parte da razão para essa deficiên-
incutir “necessidades e desejos” e que sões particulares de mundo e muitas cia encontra-se na ausência de uma
reage irracionalmente, de acordo com outras. Portanto, qualquer investigação teoria estrutural do significado, como
os estímulos oferecidos pelo mercado – sobre o consumo de um determinado sugerida por Mac Cracken. Contudo,
entre outros, promoções e preço. bem ou serviço visa a entender como encontra-se, também, na percepção do
No caso do marketing etnográfico, esse processo social se conecta a outras consumo como sendo determinado
o consumidor é autor e ator de sua pró- partes da vida social, bem como seu pela disponibilidade financeira das pes-
pria história. Qualquer consumidor se papel de mediador entre as diferentes soas. O que se ganha e o quanto se ga-
encontra em permanente diálogo com esferas da vida social. nha estabelece o limite daquilo que
a gramática sociocultural subjacente Essa percepção do consumo como posso colocar em minha cesta de bens
a produtos e serviços, tanto para um fim em si mesmo faz com que as e serviços por meio da compra, mas
corroborá-la como para rejeitá-la, in- visões “estratégicas” de marketing es- não aquilo que especificamente colo-
troduzindo mudanças e inovações. Esse tejam centradas no consumo, enquan- co e por que quero fazê-lo. Nesse sen-
diálogo permanente o coloca como to venda de um determinado bem ou tido, o espaço para variação é imenso.
ator, no sentido de que, em várias cir- serviço. Torna os produtores míopes do Mais ainda, a busca da explicação do
cunstâncias, ele reproduz inconscien- significado e da função de seus produ- consumo pelas limitações da renda
temente tal gramática, e como autor, tos em um contexto mais amplo. implicam tentar explicar o consumo de
na medida em que, em outras circuns- A quarta e última observação teóri- dentro, ou seja, a partir daquilo que as
pessoas consomem. Ora, se sabemos OBSERVAÇÕES FINAIS cessos culturais. Assim, é fundamental
que o consumo é uma atividade media- que os profissionais de marketing este-
dora, sua razão encontra-se em seu ex- Pesquisar consumo e fazer marketing jam cientes não só desses processos, mas
terior, isto é, em concepções sobre o é trabalhar com a cultura material de também da natureza dos mesmos e da
mundo e a realidade que nos circun- uma sociedade sob a forma de merca- concepção da realidade social em que
dam. Portanto, esforços deveriam ser dorias e serviços, e estudar como ela se eles se baseiam. Em nosso estudo do
envidados para mapearmos os conjun- insere no interior de um determinado consumo e do universo de bens e servi-
tos ideológicos e discursivos que estilo de vida e ideologia. Para se fazer ços a que ele se encontra relacionado,
subjazem aos diferentes sistemas de isso de forma adequada, é necessário devemos nos preocupar não apenas em
consumo, e não continuarmos baten- adotar uma forma ordenada de olhar como os sujeitos são constituídos no
do em teclas desgastadas que muito para os mais diferentes tipos de dados e interior de universos materiais, mas
pouco acrescentam ao que já sabemos não os deixar flutuando em um vácuo como eles percebem e utilizam os obje-
e nada àquilo que deveríamos saber. acima do contexto social a que eles per- tos de tais universos.
As tentativas de mapeamento tencem, fora do alcance do sistema de Portanto, as críticas teóricas e me-
discursivo permitiriam enfrentar outras classificação que lhes atribui sentido. É todológicas formuladas ao longo desse
suposições teóricas fundamentais para justamente esse tipo de orientação que trabalho não são uma defesa em favor
o estudo antropológico do consumo e o marketing etnográfico permite. Ele de um monopólio para antropólogos
para o marketing. Elas dizem respeito lança mão dos princípios teóricos e na pesquisa do comportamento do
à racionalidade do consumidor, a par- metodológicos descritos anteriormente consumidor, embora elas sejam certa-
tir de uma outra perspectiva que não a e aplica-os ao estudo do consumo e dos mente uma sinalização para a necessi-
dos economistas, que faria do consu- consumidores. Nesse sentido, ele não é dade de se distinguir entre trabalho de
mo uma atividade internamente coe- um novo tipo de marketing, mas uma campo, observação direta e etnografia
rente. Nesta racionalidade do consu- nova maneira de fazer marketing. Ele e as exigências metodológicas e teóri-
midor, o consumo é uma atividade que parte de princípios teóricos e metodo- cas para que elas se apliquem.
pode ser inferida e prevista porque o lógicos distintos daqueles que inspiram
consumidor é um sujeito racional, que as tradicionais pesquisas sobre o com- Pensata recebida em 19.03.2003. Aprovada
consome de acordo com princípios ideo- portamento do consumidor2. em 08.05.2003.
lógicos que regulam sua existência e Mais ainda, faz-se necessário enten-
condicionam quase todas as dimensões der, também, que uma das principais
Notas
de sua atividade. Se admitirmos que o tarefas do marketing é transformar as
consumo é uma atividade coerente com possibilidades materiais dadas no uni- 1. Uma versão original deste trabalho foi apre-
sentada na Multicultural Marketing Conference
as concepções ideológicas das pessoas, verso impessoal da produção no mun-
de 2002, em Valencia, Espanha.
poderemos prevê-lo desde que encon- do personalizado, particularizado e di-
tremos o foco do qual emana tal coe- nâmico do consumo. O marketing rea- 2. Essa nova forma de fazer marketing não deve
ser confundida com antropologia do consumo.
rência. Assim, os esforços deveriam liza essa tarefa por meio de processos
Marketing etnográfico é a aplicação, no marketing,
estar centrados na busca pelas concep- culturais. O mais importante é a trans- de princípios teóricos e metodológicos oriundos
ções que estruturam a vida das pessoas ferência de significado do mundo cul- da antropologia. Nesse sentido, ele não aspira a
e em como elas afetam o consumo de turalmente constituído para o mundo nenhum nível de teorização, ao contrario da an-
tropologia do consumo. Esta trabalha na elabora-
diferentes produtos e serviços. Esse material de objetos, produtos e servi-
ção de teorias do significado, que podem ou não
procedimento é justamente o inverso ços. Essa transferência de significado é ser exclusivamente aplicadas ao consumo; traba-
daquele feito hoje pelos pesquisadores materializada pela propaganda e lha com a natureza da sociedade que denomina-
do comportamento do consumidor. Ou ratificada ou não, posteriormente, pelo mos de consumo; com as distinções entre cultura
e sociedade de consumo, com teorias sobre o con-
seja, pesquisa-se o que se consome e consumidor como afirmam Mac
sumo, entre outros aspectos, que, embora tenham
não aquilo que nos leva a consumir o Cracken e Rocha. Conseqüentemente, impacto na compreensão do consumo, necessaria-
que consumimos. o marketing lida todo o tempo com pro- mente não são do interesse do marketing.
Lívia Barbosa
Profa. do Departamento de Antropologia da UFF. Consultora da ESPM.
E-mail: livia@visualnet.com.br