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Análise do discurso oficial sobre a humanização

DEBATE DEBATE
da assistência hospitalar

Analysis of the official speech about humanization


of the hospital assistance

Suely F. Deslandes 1

Abstract The term “humanization” has been Resumo O termo “humanização” tem sido em-
employed constantly in the health field. It is the pregado constantemente no âmbito da saúde. É a
base of a wide set of initiatives, even though the base de um amplo conjunto de iniciativas, mas
concept does not have a clear definition. General- não possui uma definição mais clara, geralmente
ly, it refers to a kind of assistance that gives im- designando a forma de assistência que valoriza a
portance to the technical quality of care, associat- qualidade do cuidado do ponto de vista técnico,
ed with recognition of patients’ rights, subjectivi- associada ao reconhecimento dos direitos do pa-
ty and culture. Such concept intends to guide a ciente, de sua subjetividade e cultura, além do re-
new praxis in the care production in health. This conhecimento do profissional. Tal conceito preten-
article, of exploratory mark, aims analyze the de-se norteador de uma nova práxis na produção
speech of the Health Department on the assis- do cuidado em saúde. Este artigo, de cunho explo-
tance humanization. We investigate the meanings ratório, visa analisar o discurso do Ministério da
and expectations associates to the humanization Saúde sobre a humanização da assistência. Inves-
idea from the analysis of the official texts, retak- tigamos os sentidos e expectativas associados à
ing a critical dialog with the authors of the area idéia de humanização a partir da análise dos tex-
of public health and of the social sciences. We ar- tos oficiais, retomando um diálogo crítico com os
gue the central ideas of the humanization as op- autores da área de saúde pública e das ciências
position to the violence; quality assistance offer, sociais. Discutimos as idéias centrais da humani-
articulating the technological advances with wel- zação como oposição à violência; oferta de aten-
coming; professional working terms improvement; dimento de qualidade, articulando os avanços
and communicational process enlargement, cen- tecnológicos com acolhimento, melhoria das con-
tral axis of the texts. dições de trabalho do profissional, e ampliação do
Key words Humanized care, Quality of health processo comunicacional, eixo central dos textos.
care, Hospitalization, Communication Palavras-chave Humanização da assistência,
Qualidade da assistência em saúde, Hospitaliza-
ção, Comunicação

1 Instituto Fernandes
Figueira, Fiocruz.
Av. Rui Barbosa 716,
22250-020, Rio de Janeiro RJ.
desland@iff.fiocruz.br
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Deslandes, S. F.

Introdução de vista técnico, associada ao reconhecimento


dos direitos do paciente, de sua subjetividade e
O termo “humanização” vem sendo utilizado referências culturais. Implica ainda a valoriza-
com freqüência no âmbito da saúde. As inicia- ção do profissional e do diálogo intra e intere-
tivas identificadas com a humanização do par- quipes.
to e com o respeito aos direitos reprodutivos Esse conjunto de iniciativas dá voz a de-
das mulheres vêm, há décadas, participando da mandas antigas na saúde: a) pela democratiza-
pauta dos movimentos feministas em saúde. ção das relações que envolvem o atendimento
Por sua vez, a humanização da assistência a (Carapinheiro, 1993; Svenson, 1996); b) por
crianças faz parte de um escopo mais direcio- maior diálogo e melhoria da comunicação en-
nado ao atendimento de bebês de baixo peso, tre profissional de saúde e paciente (Adam e
internados em UTI. Alguns modelos de assis- Herzlich, 1994; Ong et al., 1995; Caprara e
tência pautados por tal princípio, tais como os Franco, 1999); c) pelo reconhecimento das ex-
projetos Maternidade Segura e o Método Can- pectativas dos próprios profissionais e as dos
guru, são amplamente apoiados pelo Ministé- pacientes, como sujeitos do processo terapêuti-
rio da Saúde e pela Organização Mundial de co (Laplantine, 1991; Helman, 1994; Pitta,
Saúde (OMS, 1996) e considerados referência 1994; Silva, 1994).
para a rede pública. Como ainda não são consensuais os con-
A legitimidade da temática ganha novo tornos teóricos e mesmo operacionais do que
status quando, em maio de 2000, o Ministério se convencionou designar como humanização,
de Saúde regulamenta o Programa Nacional sua abrangência e aplicabilidade não estão in-
de Humanização da Assistência Hospitalar teiramente demarcadas. Considerando a orga-
(PNHAH) e a humanização é também incluída nização e estrutura física das instituições de
na pauta da 11a Conferência Nacional de Saú- saúde da rede pública, a formação biomédica,
de, realizada em dezembro do mesmo ano. O as relações de trabalho e sua lógica de produ-
PNHAH constitui uma política ministerial ção, haveria espaço para mudanças estruturais
bastante singular se comparada a outras do se- e para a implementação de novos conceitos e
tor, pois se destina promover uma nova cultura práticas, voltados para a humanização da assis-
de atendimento à saúde (MS, 2000) no Brasil. O tência?
objetivo fundamental do PNHAH seria o de Se considerarmos positivamente, esse mo-
aprimorar as relações entre profissionais, entre vimento pode ganhar contornos de uma nova
usuários/profissionais (campo das interações “práxis” para a assistência. Então podemos di-
face-a-face) e entre hospital e comunidade zer que aí se constitui um novo campo de pos-
(campo das interações sociocomunitárias), vi- sibilidades: tanto para o aumento da qualidade
sando à melhoria da qualidade e à eficácia dos da assistência quanto para uma nova ordem re-
serviços prestados por estas instituições (MS, lacional, pautada no reconhecimento da alteri-
2000). Atualmente o Programa foi substituído dade e no diálogo. Ponderamos, portanto, que
por uma perspectiva transversal, constituindo a fundamentação teórico-prática neste campo
uma política de assistência e não mais um pro- necessita, ainda, de exploração e investimento.
grama específico (provisoriamente intitulada A partir de tais considerações propomos es-
“Humaniza Sus”). te artigo, de cunho exploratório, visando anali-
Embora constitua o alicerce de um amplo sar o discurso oficial produzido pelo Ministé-
conjunto de iniciativas, o conceito de “huma- rio da Saúde sobre o conceito de humanização
nização da assistência” ainda carece de uma de- da assistência. Buscaremos tratar os sentidos e
finição mais clara, conformando-se mais como expectativas associados à idéia de humanização
uma diretriz de trabalho, um movimento de a partir da análise dos textos oficiais, retoman-
parcela dos profissionais e gestores, do que um do um diálogo crítico com os autores da área
aporte teórico-prático. O que designa humani- de saúde pública e das ciências sociais.
zar? Subentende-se que a prática em saúde era
(des)humanizada ou não era feita por e para
humanos? Tais provocações não raro ainda são Metodologia
feitas, revelando o estranhamento que o con-
ceito propicia. Geralmente emprega-se a noção Empreendemos uma análise documental, a
de “humanização” para a forma de assistência partir da proposta de análise de textos (Severi-
que valorize a qualidade do cuidado do ponto no, 1993), orientada pela perspectiva de análise
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de conteúdo, tendo como guia os referenciais mos destacar a humanização como oposição à
da análise temática (Bardin, 1979). Trabalha- violência, seja física e psicológica que se ex-
mos com fontes primárias, incluindo dois dos pressa nos “maus-tratos”, seja simbólica, que se
principais textos oficiais produzidos pelo Mi- apresenta pela dor de não ter a “compreensão
nistério da Saúde: o Programa Nacional de Hu- de suas demandas e suas expectativas”.
manização da Assistência Hospitalar (MS, 2000) No que diz respeito aos maus-tratos físicos
e o Manual PNHAH (MS, 2000a). e psicológicos, que representam a completa e
Procedemos primeiramente à fase de explo- radical negação dos direitos dos usuários, sua
ração textual, identificando os elementos de es- prática é timidamente confirmada pela litera-
clarecimento do texto (autoria, fatos, ideolo- tura (Nogueira, 1994; Jewkes et al., 1998). Não
gias e estilo) e a estrutura redacional (capítu- é possível, entretanto, afirmar o quanto essas
los, seções, etc). A leitura flutuante foi realiza- ações são usuais ou corriqueiras. A perpetração
da, buscando-se delinear os temas presentes no explícita da violência parece apontar situações-
texto. A seguir passamos para a segunda fase, a limite, em que são rompidos contratos básicos
da análise temática do conteúdo, focalizando de sociabilidade. E, diga-se de passagem, mani-
as representações, expectativas e argumentos festações de violência também podem ter o
elucidados. Nesta fase buscamos demarcar os usuário como agressor, muitas das vezes ex-
núcleos de sentido e suas principais categorias. pressando o desespero de não obter o atendi-
A última etapa da análise, a fase interpretativa, mento após ter peregrinado por várias institui-
buscou tecer relações críticas entre as idéias ções, entre tantos outros motivos (Petterson et
nos documentos, explícitas e implícitas, e o al., 1999; Forrester, 2002; Deslandes, 2002).
contexto científico, representado por vários Em contrapartida, quanto à violência sim-
textos e autores. bólica do “não reconhecimento” das necessida-
des emocionais e culturais dos usuários (e da
imposição de certos valores morais e compor-
Resultados e discussão tamentos), seu exercício perpassa a própria his-
toricidade dessa organização. Como vários au-
Significados associados à humanização tores têm demonstrado (Foucault, 1977, 1979;
Rosen, 1979), o hospital moderno teve como
O documento oficial do Programa (MS, marca histórica de sua constituição organiza-
2000) inicia sua argumentação a partir de um cional impor aos “pacientes” o isolamento, a
diagnóstico de insatisfação dos usuários que despersonalização e a submissão disciplinar de
diz respeito, sobretudo, aos aspectos de relacio- seus corpos (e subjetividades) a procedimentos
namento com os profissionais de saúde. Essa e decisões que sequer compreendem. Em outras
avaliação ratifica o imaginário social e a opi- palavras, essa forma de tratar o “doente”, que
nião pública ao confirmar que, em “número em nome da “rigorosa prática científica” apar-
significativo”, não seriam só precários mas des- ta-o de seu convívio familiar e social e não lhe
respeitosos e mesmo violentos os cuidados dis- reconhece discernimento ou competência para
pensados nos serviços públicos de saúde. tomada de decisões, constituiu, por muito tem-
(...) Na avaliação do público, a forma do po, a tônica da cultura organizacional hospitalar.
atendimento, a capacidade demonstrada pelos A proposta de humanização, ao sugerir a
profissionais de saúde para compreender suas de- substituição das formas de violência simbólica,
mandas e suas expectativas são fatores que che- constituintes do modelo de assistência hospita-
gam a ser mais valorizados que a falta de médi- lar, por um modelo centrado na possibilidade
cos, a falta de espaço nos hospitais, a falta de me- de comunicação e diálogo entre usuários, pro-
dicamentos (MS, 2000) fissionais e gestores, busca instituir uma “nova
(...) Ministro da Saúde J S, ao identificar o cultura de atendimento”. Por sua riqueza, tra-
número significativo de queixas dos usuários re- taremos do tema adiante.
ferentes aos maus tratos nos hospitais (....) (MS, O segundo eixo discursivo identificado nos
2000) documentos foi o da necessidade de melhorar
Assim, resgatar a humanidade do atendi- a qualidade dos serviços prestados. Neste senti-
mento, numa primeira aproximação, é ir con- do, a humanização é vista como a capacidade
tra a violência, já que esta representa a antítese de oferecer atendimento de qualidade, articu-
do diálogo, a negação do “outro” em sua huma- lando os avanços tecnológicos com o bom re-
nidade. Neste primeiro eixo discursivo pode- lacionamento.
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Deslandes, S. F.

Nesta empreitada, o Programa destaca a que outras ações paralelas e integradas esta-
importância da conjugação do binômio “tec- riam sendo desenvolvidas para melhoria das
nologia” e “fator humano e de relacionamen- condições de infra-estrutura, seja das instala-
to”. Há um diagnóstico sobre o divórcio entre ções físicas, renovação de equipamentos, etc.
possuir boas condições de alta tecnologia e Percebe-se constante preocupação do discurso
nem sempre dispor da delicadeza do cuidado, em não parecer que há uma proposta de subs-
o que desumaniza a assistência. Por outro lado, tituição das condições estruturais da qualidade
se reconhece que não ter recursos tecnológicos, do atendimento, reconhecidos como funda-
quando estes são necessários, pode ser um fa- mentais, por um modelo baseado somente “na
tor de estresse e conflito entre profissionais e boa relação”. Traz, inclusive, como expectativa
usuários, igualmente desumanizando o cuida- que esse processo de humanização se traduza
do. Assim, embora se afirme que ambos os como uma melhor qualidade de atendimento à
itens constituem a qualidade do sistema, o “fa- saúde do usuário e de melhores condições de tra-
tor humano” é considerado o mais estratégico balho para profissionais (MS, 2000). No caput
pelo documento do PNHAH. do PNHAH considera-se que para tal tarefa é
(...) as tecnologias e os dispositivos organiza- necessário cuidar dos próprios profissionais da
cionais, sobretudo numa área como a da saúde, área de saúde, constituindo equipes de trabalho
não funcionam sozinhos – sua eficácia é forte- saudáveis (MS, 2000).
mente influenciada pela qualidade do fator hu- Finalmente, como costura de todas as de-
mano e do relacionamento que se estabelece en- mandas e problemas diagnosticados, os docu-
tre profissionais e usuários no processo de atendi- mentos apontam a deficiência do diálogo, a de-
mento (MS, 2000). bilidade do processo comunicacional entre
O texto considera, portanto, dois aspectos profissionais e usuários e entre profissionais e
diferenciados que precisam ser reunidos: tec- gestores, repercutindo de forma negativa no
nologia e a boa administração de relaciona- cuidado prestado. O desrespeito à palavra e a
mentos. Este é um ponto interessante ao deba- falta de troca de informações, a debilidade da
te. Segundo Merhy et al.(1997), o emprego de escuta e do diálogo promoveriam a violência,
tais interações, voltadas para a produção do comprometeriam a qualidade do atendimento
cuidado, também representa uma forma de e manteriam o profissional de saúde refém das
tecnologia, a “tecnologia leve” e constitui um condições inadequadas que não raro lhe impu-
elemento crucial de gestão. Justamente nos ter- tam desgaste e mesmo sofrimento psíquico. As-
ritórios dessas “tecnologias leves”, isto é, que sim, a humanização também é vista como am-
dizem respeito à produção de vínculos, acolhi- pliação do processo comunicacional, sendo es-
mento, autonomização e de gestão do processo ta sua diretriz mais central da proposta de hu-
de trabalho, ocorrem atualmente as principais manização, que será discutida a seguir.
reestruturações produtivas do setor saúde
(Merhy, 2002). Para o autor, as transições tec- O conceito-chave de humanização
nológicas na saúde estão inscritas no modo de
atuação do trabalho vivo em ato e nos processos Não há definições mais precisas sobre o
de gestão do cuidado (Merhy, 2002). Aí se cons- conceito no corpo do documento do PNHAH,
titui a arena de embate entre modelos médicos apenas referências à necessidade de respeitar o
neoliberais e aqueles oriundos do movimento “outro” “como um ser singular e digno” (MS,
sanitário, que defendem um modelo de aten- 2000). No Manual do PNHAH o tema é desen-
ção orientado pela “radical defesa da vida”. volvido, apontando o ser humano como um ser
Desconsiderar tal debate pode gerar uma de linguagem e, portanto, capaz de construir
atribuição de incompatibilidades, de maior re- redes de significados que, ao serem comparti-
sistência entre os que trabalham com o que há lhadas, conformam uma identidade cultural.
“de objetivo” (tecnologias) e com os que traba- Assim, o desrespeito ao estatuto ético da pala-
lham com o “subjetivo” (relacionamentos), vra cria as condições de arbítrio e violência
além de ignorar o quão potente são, por exem- (quando a palavra fracassa somos também capa-
plo, as tecnologias de escuta e de negociação zes das maiores arbitrariedades) (MS, 2000a).
das regras comportamentais e organizacionais. Poderíamos dizer que o documento possui
O terceiro eixo discursivo traz a idéia de algumas afinidades com a perspectiva herme-
humanização como melhoria das condições de nêutica gadameriana. Para o filósofo Gadamer
trabalho do cuidador. O documento menciona (1997), toda compreensão é um exercício her-
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menêutico e o estudo da linguagem é o cami- precisa ser reconhecida na palavra do outro (MS,
nho para a análise dos significados. O autor de- 2000a). Segundo o texto, a “ciência” (leia-se a
fine que a linguagem é o que constitui o ser co- biomedicina) teria reduzido o estatuto da pala-
mo ser de relações: a linguagem é a “casa-do- vra à mera busca de informação para a compo-
ser”. Desta forma, linguagem e realidade estão sição da anamnese. Betts (2003), um dos auto-
profundamente articuladas. O mundo só é res do Manual do PNHAH, amplia o debate so-
“mundo” na medida em que vem à linguagem bre as impossibilidades da comunicação, pre-
e a linguagem é real na medida em que o mun- sentes nos modelos de assistência e nas moti-
do é nela representado, constituindo implicita- vações que mobilizam o cuidado com quem
mente o pressuposto que a linguagem constitui sofre. Com base em Caponi, Betts aponta os
caráter universal do humano (Heckman, 1986). modelos sustentados na compaixão, na lógica
Nesta perspectiva, humanizar é garantir à utilitarista da promoção da maior felicidade
palavra a sua dignidade ética, em outros ter- para o maior número de pessoas e na tecno-
mos, o sofrimento, a dor e prazer expressos pe- ciência. Todos seriam desumanizadores. O pri-
los sujeitos em palavras necessitam ser reconhe- meiro por se sustentar numa relação assimétri-
cidas pelo outro (MS, 2000a), dado que as coi- ca entre benfeitor e assistido; o segundo por di-
sas do mundo só se tornam humanas quando luir as diferenças; e o último por reduzir o diá-
passam pelo diálogo com os semelhantes (Betts, logo à busca objetiva de informação. O autor
2003). Cembranelli (2003) argumenta, neste irá defender que somente o modelo motivado
modelo de entendimento intersubjetivo, que pela solidariedade, realizado pelo encontro in-
no projeto de humanização se vislumbra uma tersubjetivo e mediado pela palavra é capaz de
nova ética, ancorada no princípio da lingua- promover a humanização.
gem e na ação comunicativa. Cabe ainda lem- Se enfocarmos a relação do profissional de
brar que a comunicação não verbal também fi- saúde-paciente, delimitada no contexto do
gura como expressão do humano e de sua bus- exercício da racionalidade médico-científica,
ca por ser compreendido (Silva, 2002). perceberemos que as bases desta comunicação
A possibilidade comunicacional passa, en- de fato se estreitam. A objetividade positivista,
tão, a constituir a referência conceitual mais modelo por excelência da medicina científica,
importante, pois como resume o texto “sem co- vai defender a idéia da neutralidade e exteriori-
municação não há humanização” (MS, 2000a). dade em face do objeto de estudo (que não
A “palavra”, tanto de usuários quanto de pro- mais será o doente, mas a doença). O doente
fissionais, precisaria ter, portanto, lugar mais passará então a ser visto como o corpo doente,
relevante no cotidiano institucional. será o porta-voz da doença e sua narrativa será
O que o texto oficial não problematiza, en- filtrada, conduzida de forma ortopédica à cla-
tretanto, é a natureza sociológica dessa (im)pos- reza e objetividade das informações desejadas
sibilidade comunicacional. Se o ser humano é pelo médico (Hydén, 1997; Camargo Jr., 1998).
potencialmente capaz de compreender outro Desde o século 19, mais precisamente em 1894,
ser humano, porque ambos são dotados de lin- o médico McIntire (Nunes, 1999) já apontava
guagem, o jogo das interações sociais, as rela- as barreiras comunicacionais dessa interação
ções de saber-poder, de trabalho, de gênero e tão especial, sendo o uso do jargão médico per-
de status podem constituir fortes impeditivos cebido, desde então, como uma linguagem di-
para o diálogo. Como aponta Habermas (1987) ferente e interdita aos leigos, constituindo um
no debate com Gadamer, há impossibilidades obstáculo a mais.
comunicacionais que devem ser levadas em Em contrapartida, seria possível invocar as
conta para que os espaços de diálogo tenham tradições indiciárias e mesmo hermenêuticas
bases mais viáveis de se efetivarem. da prática médica (Hunter, 1993; Barry et al.,
O texto oficial reconhece como uma dessas 2000; Caprara, 2003). Em outros termos, de-
impossibilidades o uso de uma objetividade fende-se que a medicina se realiza a partir de
científica utilitarista. Para isso, o documento um exercício de interpretação, cuja matéria-
ministerial invoca mais uma vez a oposição prima são as informações, sinais e histórias
ciência-tecnologia versus dignidade ética da contadas pelos pacientes e seus familiares e que
palavra. Chega mesmo a fazer afirmações cate- é preciso fortalecer o viés humanista da medi-
góricas e inconciliáveis como: o ato técnico, por cina. Todavia, tais autores não desconhecem
definição, elimina a dignidade ética da palavra, que essa “hermenêutica” se produz hegemoni-
pois esta é necessariamente pessoal, subjetiva, e camente a partir de uma troca desigual, entre
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Deslandes, S. F.

cliente e médico, gozando este último a prerro- e mudança designaria algum tipo de alteração
gativa hierárquica de conduzir o relato do nos padrões das relações sociais (Idem). Seria,
doente, interferir com outras perguntas ou portanto, impossível pensar tais termos separa-
mesmo interrompê-lo. damente: para compreender as mudanças é
Tais ponderações nos fazem lembrar que as preciso analisar a ordem estabelecida. Assim,
interações entre os atores (profissionais e pa- ainda há que se ter em conta que a cultura or-
cientes) são influenciadas por lógicas culturais ganizacional do hospital é hegemonicamente
que as antecedem. Assim, para pensar as calcada numa ordem médico-profissional e
(im)possibilidades comunicacionais entre os discutir suas bases, limites, abrangência e os ele-
sujeitos na organização hospitalar é preciso mentos favoráveis a novas práticas nos parece
pensar a própria cultura organizacional. Dois etapa primordial a uma proposta de mudança.
aspectos de uma fina dialética aí se esboçam: Nos documentos analisados, os valores de
seja da cultura organizacional, como conjunto solidariedade e alteridade são considerados
de referências compartilhadas, que condiciona norteadores das mudanças culturais da assis-
todo um sistema de regras que vai orientar as tência. O respeito ao outro como um ser autô-
formas de gestão e a lógica de ação dos atores, nomo e digno é visto, portanto, como condição
seja a capacidade de os atores influenciarem a sine qua non a um processo de humanização
mudança das regras, e conseqüentemente a (MS, 2000). Essa assertiva pressupõe logica-
cultura (Rivera, 2003). Em outros termos, se a mente conhecer quem é esse “outro”, suas ex-
cultura organizacional se constitui a partir do pectativas, suas representações e práticas.
agir comunicativo dos seus agentes, em proces- Eis aí uma questão nevrálgica. Quem é esse
sos de aprendizagem e em busca de consenso, “outro”? Profissionais e usuários? No que con-
suas configurações simbólicas podem ser questio- cerne aos usuários, o quanto deles se conhece
nadas em um nível discursivo (Rivera, 2003). para pressupor que os profissionais de saúde
Os documentos ministeriais analisados pa- saberão corresponder a suas expectativas? Po-
recem se afinar a este debate de inspiração ha- deríamos, à luz da experiência empírica, iden-
bermasiana e indicam nas entrelinhas que as tificar algumas leituras paternalistas, quando o
possibilidades comunicacionais só se ampliam profissional julga saber o que é o melhor para
se toda a cultura de atendimento hospitalar ca- o paciente e tenta prover os meios para satisfa-
minhar para um novo modelo, para “uma nova zer tais pretensas expectativas, o que não dá
cultura de atendimento”. Esta só se viabilizaria resposta satisfatória ao problema. Quais são os
se for incentivada uma abertura de diálogo, do mecanismos de “permitir a voz”, a livre expres-
nível de gestão à tessitura mais cotidiana do são desses usuários, de facilitar a verbalização
encontro entre profissionais, profissionais e de suas demandas, além dos espaços mais for-
usuários. mais das ouvidorias?
Finalmente, embora não seja o foco do ar-
“Uma nova cultura de atendimento” tigo, torna-se inevitável refletir sobre os meios
apontados no texto como eficazes para trans-
Como já visto, a meta final do PNHAH é formar uma cultura. A via da “formação” pare-
promover uma mudança na cultura de atendi- ce ser privilegiada nos documentos. Obvia-
mento em saúde no Brasil (MS, 2000). Por sua mente não se muda uma cultura de assistência
centralidade, caberia explorar o conceito de unicamente com capacitações dirigidas aos
“mudança cultural” – tão pouco explicitado profissionais. Mas, certamente, um investimen-
nos dois documentos oficiais. Tal conceito po- to sério na formação (inclusive desde a gradua-
de ser entendido inicialmente como qualquer ção) pode, de fato, fortalecer idéias outrora
alteração na cultura, sejam traços, complexos, consideradas utópicas ou fora do âmbito e do
padrões ou toda uma cultura, o que é mais raro “papel” da assistência. Isso pode dar subsídios
(Lakatos, 1995), ocorrendo de forma lenta ou para que no curso da história (seja de curta,
acelerada, envolvendo diferentes graus de resis- média ou longa duração) e no campo da nego-
tência e adesão. ciação da ordem política de gestão, os agentes
A díade “ordem e mudança” sempre consti- de uma determinada organização constituam
tui um dos problemas-chave do escopo teórico novos parâmetros para ação, introduzindo mu-
da sociologia. Ordem se refere a qualquer ação danças na cultura da assistência. Rivera (2003)
padronizada ou qualquer regularidade exibida pondera que para mudar as regras do jogo or-
no comportamento das pessoas (Skidmore, 1976) ganizacional e as bases da cultura é preciso ir
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além da mudança das “estruturas mentais”. com a construção de projetos humanos, ou
Torna-se fundamental um projeto de gestão melhor dizendo projetos de felicidade.
que democratize as estruturas de poder, que Destacamos, dentre muitos possíveis, dois
fortaleça a comunicação, desenvolva formas de pontos dessa proposta que acreditamos mere-
avaliação e se comprometa com a prestação de cer ainda maior reflexão. O primeiro diz res-
contas. O autor chega a enunciar que mais co- peito à concepção da suposta díade “tecnologia
municação é a estratégia genérica para a mu- e fator humano”. Superar tal leitura é etapa ru-
dança cultural (Rivera, 2003). Tais orientações mo à construção de um olhar ampliado sobre a
também estão nos documentos do PNHAH; produção do cuidado em saúde, incluindo as
contudo, permanece aberta a lacuna sobre as tecnologias leves no arsenal dos saberes e com-
formas de garantir ao usuário maior eqüidade petências de saúde. O segundo concerne à ques-
no processo comunicacional. tão da mudança cultural e os meios sugeridos
para tal, especialmente a proposta de maior ca-
pacidade comunicativa como fundante de uma
Conclusões assistência humanizada. Tais idéias serão inó-
cuas se não forem valorizadas as expressões das
Estamos convencidos de que o rico debate so- expectativas e demandas dos próprios usuá-
bre a cultura assistencial e sobre a importante rios-pacientes, reconhecendo sua autonomia e
proposta de práxis trazida pela proposta de hu- legitimidade simbólicas, cujas manifestações, a
manização pode contribuir para a reflexão princípio, não são delegáveis a tradutores-in-
mais crítica dos modelos e ações em saúde. térpretes.
Longe de qualquer pretensa neutralidade Outro aspecto fundamental e pouco explo-
axiológica, demarcamos um lugar nesse debate rado nos documentos diz respeito às condições
e afirmamos uma posição ideológico-científi- estruturais de trabalho desse profissional de
ca. Acreditamos que apesar da polissemia do saúde, quase sempre mal remunerado, muitas
conceito de humanização da assistência e da das vezes pouco incentivado e sujeito a uma
amplitude possível das práticas que se auto-in- carga considerável de trabalho. Humanizar a
titulam como “humanizadoras”, esse proje- assistência é humanizar a produção dessa assis-
to/processo pode propiciar uma contribuição tência.
para a melhoria da qualidade da atenção pres- Positivamente, as idéias de humanização
tada. Pode significar um novo modelo de co- como antítese da violência e da incomunicabi-
municação entre profissionais e pacientes e lidade reforçam a posição estratégica das ações
quiçá novas práticas cuidadoras. Quem sabe centradas na ética, no diálogo e na negociação
construindo um cuidado, como defende Ayres dos sentidos e rumos da produção de cuidados
(2003), responsável porque comprometido em saúde.

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