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DEBATE DEBATE
da assistência hospitalar
Suely F. Deslandes 1
Abstract The term “humanization” has been Resumo O termo “humanização” tem sido em-
employed constantly in the health field. It is the pregado constantemente no âmbito da saúde. É a
base of a wide set of initiatives, even though the base de um amplo conjunto de iniciativas, mas
concept does not have a clear definition. General- não possui uma definição mais clara, geralmente
ly, it refers to a kind of assistance that gives im- designando a forma de assistência que valoriza a
portance to the technical quality of care, associat- qualidade do cuidado do ponto de vista técnico,
ed with recognition of patients’ rights, subjectivi- associada ao reconhecimento dos direitos do pa-
ty and culture. Such concept intends to guide a ciente, de sua subjetividade e cultura, além do re-
new praxis in the care production in health. This conhecimento do profissional. Tal conceito preten-
article, of exploratory mark, aims analyze the de-se norteador de uma nova práxis na produção
speech of the Health Department on the assis- do cuidado em saúde. Este artigo, de cunho explo-
tance humanization. We investigate the meanings ratório, visa analisar o discurso do Ministério da
and expectations associates to the humanization Saúde sobre a humanização da assistência. Inves-
idea from the analysis of the official texts, retak- tigamos os sentidos e expectativas associados à
ing a critical dialog with the authors of the area idéia de humanização a partir da análise dos tex-
of public health and of the social sciences. We ar- tos oficiais, retomando um diálogo crítico com os
gue the central ideas of the humanization as op- autores da área de saúde pública e das ciências
position to the violence; quality assistance offer, sociais. Discutimos as idéias centrais da humani-
articulating the technological advances with wel- zação como oposição à violência; oferta de aten-
coming; professional working terms improvement; dimento de qualidade, articulando os avanços
and communicational process enlargement, cen- tecnológicos com acolhimento, melhoria das con-
tral axis of the texts. dições de trabalho do profissional, e ampliação do
Key words Humanized care, Quality of health processo comunicacional, eixo central dos textos.
care, Hospitalization, Communication Palavras-chave Humanização da assistência,
Qualidade da assistência em saúde, Hospitaliza-
ção, Comunicação
1 Instituto Fernandes
Figueira, Fiocruz.
Av. Rui Barbosa 716,
22250-020, Rio de Janeiro RJ.
desland@iff.fiocruz.br
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Deslandes, S. F.
Nesta empreitada, o Programa destaca a que outras ações paralelas e integradas esta-
importância da conjugação do binômio “tec- riam sendo desenvolvidas para melhoria das
nologia” e “fator humano e de relacionamen- condições de infra-estrutura, seja das instala-
to”. Há um diagnóstico sobre o divórcio entre ções físicas, renovação de equipamentos, etc.
possuir boas condições de alta tecnologia e Percebe-se constante preocupação do discurso
nem sempre dispor da delicadeza do cuidado, em não parecer que há uma proposta de subs-
o que desumaniza a assistência. Por outro lado, tituição das condições estruturais da qualidade
se reconhece que não ter recursos tecnológicos, do atendimento, reconhecidos como funda-
quando estes são necessários, pode ser um fa- mentais, por um modelo baseado somente “na
tor de estresse e conflito entre profissionais e boa relação”. Traz, inclusive, como expectativa
usuários, igualmente desumanizando o cuida- que esse processo de humanização se traduza
do. Assim, embora se afirme que ambos os como uma melhor qualidade de atendimento à
itens constituem a qualidade do sistema, o “fa- saúde do usuário e de melhores condições de tra-
tor humano” é considerado o mais estratégico balho para profissionais (MS, 2000). No caput
pelo documento do PNHAH. do PNHAH considera-se que para tal tarefa é
(...) as tecnologias e os dispositivos organiza- necessário cuidar dos próprios profissionais da
cionais, sobretudo numa área como a da saúde, área de saúde, constituindo equipes de trabalho
não funcionam sozinhos – sua eficácia é forte- saudáveis (MS, 2000).
mente influenciada pela qualidade do fator hu- Finalmente, como costura de todas as de-
mano e do relacionamento que se estabelece en- mandas e problemas diagnosticados, os docu-
tre profissionais e usuários no processo de atendi- mentos apontam a deficiência do diálogo, a de-
mento (MS, 2000). bilidade do processo comunicacional entre
O texto considera, portanto, dois aspectos profissionais e usuários e entre profissionais e
diferenciados que precisam ser reunidos: tec- gestores, repercutindo de forma negativa no
nologia e a boa administração de relaciona- cuidado prestado. O desrespeito à palavra e a
mentos. Este é um ponto interessante ao deba- falta de troca de informações, a debilidade da
te. Segundo Merhy et al.(1997), o emprego de escuta e do diálogo promoveriam a violência,
tais interações, voltadas para a produção do comprometeriam a qualidade do atendimento
cuidado, também representa uma forma de e manteriam o profissional de saúde refém das
tecnologia, a “tecnologia leve” e constitui um condições inadequadas que não raro lhe impu-
elemento crucial de gestão. Justamente nos ter- tam desgaste e mesmo sofrimento psíquico. As-
ritórios dessas “tecnologias leves”, isto é, que sim, a humanização também é vista como am-
dizem respeito à produção de vínculos, acolhi- pliação do processo comunicacional, sendo es-
mento, autonomização e de gestão do processo ta sua diretriz mais central da proposta de hu-
de trabalho, ocorrem atualmente as principais manização, que será discutida a seguir.
reestruturações produtivas do setor saúde
(Merhy, 2002). Para o autor, as transições tec- O conceito-chave de humanização
nológicas na saúde estão inscritas no modo de
atuação do trabalho vivo em ato e nos processos Não há definições mais precisas sobre o
de gestão do cuidado (Merhy, 2002). Aí se cons- conceito no corpo do documento do PNHAH,
titui a arena de embate entre modelos médicos apenas referências à necessidade de respeitar o
neoliberais e aqueles oriundos do movimento “outro” “como um ser singular e digno” (MS,
sanitário, que defendem um modelo de aten- 2000). No Manual do PNHAH o tema é desen-
ção orientado pela “radical defesa da vida”. volvido, apontando o ser humano como um ser
Desconsiderar tal debate pode gerar uma de linguagem e, portanto, capaz de construir
atribuição de incompatibilidades, de maior re- redes de significados que, ao serem comparti-
sistência entre os que trabalham com o que há lhadas, conformam uma identidade cultural.
“de objetivo” (tecnologias) e com os que traba- Assim, o desrespeito ao estatuto ético da pala-
lham com o “subjetivo” (relacionamentos), vra cria as condições de arbítrio e violência
além de ignorar o quão potente são, por exem- (quando a palavra fracassa somos também capa-
plo, as tecnologias de escuta e de negociação zes das maiores arbitrariedades) (MS, 2000a).
das regras comportamentais e organizacionais. Poderíamos dizer que o documento possui
O terceiro eixo discursivo traz a idéia de algumas afinidades com a perspectiva herme-
humanização como melhoria das condições de nêutica gadameriana. Para o filósofo Gadamer
trabalho do cuidador. O documento menciona (1997), toda compreensão é um exercício her-
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cliente e médico, gozando este último a prerro- e mudança designaria algum tipo de alteração
gativa hierárquica de conduzir o relato do nos padrões das relações sociais (Idem). Seria,
doente, interferir com outras perguntas ou portanto, impossível pensar tais termos separa-
mesmo interrompê-lo. damente: para compreender as mudanças é
Tais ponderações nos fazem lembrar que as preciso analisar a ordem estabelecida. Assim,
interações entre os atores (profissionais e pa- ainda há que se ter em conta que a cultura or-
cientes) são influenciadas por lógicas culturais ganizacional do hospital é hegemonicamente
que as antecedem. Assim, para pensar as calcada numa ordem médico-profissional e
(im)possibilidades comunicacionais entre os discutir suas bases, limites, abrangência e os ele-
sujeitos na organização hospitalar é preciso mentos favoráveis a novas práticas nos parece
pensar a própria cultura organizacional. Dois etapa primordial a uma proposta de mudança.
aspectos de uma fina dialética aí se esboçam: Nos documentos analisados, os valores de
seja da cultura organizacional, como conjunto solidariedade e alteridade são considerados
de referências compartilhadas, que condiciona norteadores das mudanças culturais da assis-
todo um sistema de regras que vai orientar as tência. O respeito ao outro como um ser autô-
formas de gestão e a lógica de ação dos atores, nomo e digno é visto, portanto, como condição
seja a capacidade de os atores influenciarem a sine qua non a um processo de humanização
mudança das regras, e conseqüentemente a (MS, 2000). Essa assertiva pressupõe logica-
cultura (Rivera, 2003). Em outros termos, se a mente conhecer quem é esse “outro”, suas ex-
cultura organizacional se constitui a partir do pectativas, suas representações e práticas.
agir comunicativo dos seus agentes, em proces- Eis aí uma questão nevrálgica. Quem é esse
sos de aprendizagem e em busca de consenso, “outro”? Profissionais e usuários? No que con-
suas configurações simbólicas podem ser questio- cerne aos usuários, o quanto deles se conhece
nadas em um nível discursivo (Rivera, 2003). para pressupor que os profissionais de saúde
Os documentos ministeriais analisados pa- saberão corresponder a suas expectativas? Po-
recem se afinar a este debate de inspiração ha- deríamos, à luz da experiência empírica, iden-
bermasiana e indicam nas entrelinhas que as tificar algumas leituras paternalistas, quando o
possibilidades comunicacionais só se ampliam profissional julga saber o que é o melhor para
se toda a cultura de atendimento hospitalar ca- o paciente e tenta prover os meios para satisfa-
minhar para um novo modelo, para “uma nova zer tais pretensas expectativas, o que não dá
cultura de atendimento”. Esta só se viabilizaria resposta satisfatória ao problema. Quais são os
se for incentivada uma abertura de diálogo, do mecanismos de “permitir a voz”, a livre expres-
nível de gestão à tessitura mais cotidiana do são desses usuários, de facilitar a verbalização
encontro entre profissionais, profissionais e de suas demandas, além dos espaços mais for-
usuários. mais das ouvidorias?
Finalmente, embora não seja o foco do ar-
“Uma nova cultura de atendimento” tigo, torna-se inevitável refletir sobre os meios
apontados no texto como eficazes para trans-
Como já visto, a meta final do PNHAH é formar uma cultura. A via da “formação” pare-
promover uma mudança na cultura de atendi- ce ser privilegiada nos documentos. Obvia-
mento em saúde no Brasil (MS, 2000). Por sua mente não se muda uma cultura de assistência
centralidade, caberia explorar o conceito de unicamente com capacitações dirigidas aos
“mudança cultural” – tão pouco explicitado profissionais. Mas, certamente, um investimen-
nos dois documentos oficiais. Tal conceito po- to sério na formação (inclusive desde a gradua-
de ser entendido inicialmente como qualquer ção) pode, de fato, fortalecer idéias outrora
alteração na cultura, sejam traços, complexos, consideradas utópicas ou fora do âmbito e do
padrões ou toda uma cultura, o que é mais raro “papel” da assistência. Isso pode dar subsídios
(Lakatos, 1995), ocorrendo de forma lenta ou para que no curso da história (seja de curta,
acelerada, envolvendo diferentes graus de resis- média ou longa duração) e no campo da nego-
tência e adesão. ciação da ordem política de gestão, os agentes
A díade “ordem e mudança” sempre consti- de uma determinada organização constituam
tui um dos problemas-chave do escopo teórico novos parâmetros para ação, introduzindo mu-
da sociologia. Ordem se refere a qualquer ação danças na cultura da assistência. Rivera (2003)
padronizada ou qualquer regularidade exibida pondera que para mudar as regras do jogo or-
no comportamento das pessoas (Skidmore, 1976) ganizacional e as bases da cultura é preciso ir
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