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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

WALTER FRANCISCO FIGUEIREDO LOWANDE

UMA HISTÓRIA TRANSNACIONAL DA MODERNIDADE:


Produção de sujeitos e objetos da modernidade por meio dos conceitos de civilização e
cultura e do patrimônio etnográfico e artístico

CAMPINAS
2018
Walter Francisco Figueiredo Lowande

UMA HISTÓRIA TRANSNACIONAL DA MODERNIDADE:


Produção de sujeitos e objetos da modernidade por meio dos conceitos de civilização e
cultura e do patrimônio etnográfico e artístico

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutor em História,
na Área de Concentração Política, Memória e
Cidade.

Orientadora: PROFA. DRA. SILVANA BARBOSA RUBINO

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA
PELO ALUNO WALTER FRANCISCO
FIGUEIREDO LOWANDE, E ORIENTADA
PELA PROFA. DRA. SILVANA BARBOSA
RUBINO.

_________________________________

CAMPINAS
2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 15 de março de 2018,
considerou o candidato Walter Francisco Figueiredo Lowande aprovado.

Profª Drª Silvana Barbosa Rubino

Profª Drª Cristina Meneguello

Prof. Dr. Christiano Key Tambascia

Profª Drª Cristina Peixoto Mehrtens

Profª Drª Márcia Regina Romeiro Chuva

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de


vida acadêmica do aluno.
À Nayhara, esteio afetivo e intelectual sem o qual esta tese não existiria.
AGRADECIMENTOS

A escrita de uma tese de doutorado produz, muito além de conexões intelectuais,


laços afetivos que nos marcam de maneira indelével. É, no entanto, impossível fazer justiça
aqui a todas e todos que merecem os meus mais sinceros agradecimentos. As lembranças que
seguem são apenas aquelas poucas cujo impacto imprimiu em minha memória uma quase
presença constante, o que não quer dizer que outros encontros, mais fugazes, sejam por isso
menos significativos.
Agradeço, em primeiro lugar, à minha orientadora, a Profa. Dra. Silvana Barbosa
Rubino, pela simpatia, generosidade, confiança, apoio e inspiração. Tudo isso se manifestou
numa liberdade de ação fundamental para o meu amadurecimento como pesquisador.
Devo mencionar também o apoio que recebi das agências financiadoras: o CNPq
garantiu a continuidade dos meus estudos de doutorado por 14 meses, até que eu fosse
empossado como Professor do Magistério Superior na Universidade Federal de Alfenas, MG
(UNIFAL-MG); a CAPES me forneceu uma bolsa de doutorado sanduíche que me permitiu
permanecer nos Estados Unidos por mais de três meses; antes disso, a Comissão Fulbright havia
me concedido uma bolsa, para os mesmos fins, pelo período de 10 meses, e seus agentes foram
muito compreensivos quando tive que desistir dela para ingressar na carreira do magistério; por
fim, os recursos federais destinados ao Programa de Pós-Gradução em História do
IFCH/UNICAMP e ao Instituto de Ciências Humanas e Letras da UNIFAL-MG
(ICHL/UNIFAL-MG) me permitiram participar de importantes eventos nacionais e
internacionais aos quais, sem esse apoio, eu não poderia ter me juntado.
Agradeço ao Prof. Dr. Cristiano Tambascia e à Profa. Cristina Meneguello pela
generosa e valiosa contribuição que forneceram a este trabalho quando da arguição de
qualificação – suas indicações foram, sem dúvida, essenciais para o formato que este trabalho
adquiriu na sua versão de defesa. Agradeço-lhes, mais uma vez, bem como à Profa. Dra.
Cristina Mehrtens e à Profa. Dra. Márcia Regina Romeiro Chuva, que gentilmente aceitaram o
convite para a composição da banca de defesa, na condição de membros titulares, e aos Profs.
Gustavo Rossi e Caion Meneguello Natal, bem como à Profa. Dra. Iara Lis Franco Schiavinatto,
na condição de suplentes. É uma grande honra poder contar com a avaliação de pessoas que
foram importantes referências em minha trajetória intelectual.
É impossível não lembrar aqui da inestimável contribuição das minhas professoras
do PPGHIS no que diz respeito aos caminhos que acabei por trilhar em minha trajetória
acadêmica. Os instigantes debates proporcionados pelas Profas. Dras. Cristina Meneguello,
Aline Carvalho, Silvana Rubino e Iara Lis me inspiraram não apenas em termos de pequisa,
mas, de maneira até mais significativa, como referências docentes. Não poderia deixar de
mencionar aqui também as valiosas amizades e as inspiradoras conversas que pude ter com
as(os) colegas de disciplinas do PPGHIS, que, além do mais, ainda me proporcionaram as
ótimas lembranças que tenho da boemia de Barão Geraldo. Agradeço também ao técnico da
Secretaria do PPGHIS, Daniel Hatamoto, pelas valiosas orientações na fase de conclusão deste
trabalho, e ao Prof. Dr. Marcos Antônio de Moraes, do IEB/USP, por ter me aceitado em sua
disciplina sobre epistolografia como aluno especial, franqueando-me, desse modo, o acesso a
uma instigante discussão interdisciplinar.
Esta pesquisa não poderia se concretizar se não fossem as portas abertas das
instituições arquivísticas que pude visitar. Deixo de fazer aqui referências aos nomes de pessoas
que me ajudaram nessa trajetória pelo fato de serem muitas, e espero que se sintam
representadas, por serem os verdadeiros destinos desses agradecimentos, pelos nomes das
instituições às quais dedicam seus tempos e esforços. Agradeço, portanto, às pessoas da Seção
de Memória e Arquivo do Museu Nacional da UFRJ (SEMEAR/MN/UFRJ), do Arquivo
Central do IPHAN no Rio de Janeiro, no Brasil, e dos National Anthropological Archives da
Smithsonian Institution (NAA/SI), em Washington, DC, da American Philosophical Society
(APS), na Filadélfia, PA, e da Rare Book & Manuscript Library (RBML) da Columbia
University, em Nova York, NY, nos EUA.
É impossível traduzir em palavras a minha gratidão à Profa. Dra. Christina
Mehrtens pela calorosa acolhida na cidade de Dartmouth, MA, fazendo-me sentir em casa num
mundo em grande medida diferente do meu no Brasil. Graças a ela, minha passagem pelos EUA
foi a mais tranquila e confortável possível. Agradeço também à recepção extremamente
atenciosa da University of Massachusetts Dartmouth, que se mostrou um centro de excelência
no acolhimento de estudantes, pesquisadores(as) e docentes internacionais.
A maior parte da minha estadia nos EUA se deu, no entanto, no lar de
desconhecidos. Com eles também pude conhecer um pouco melhor a vida estadunidense e
romper com todos os estereótipos que, inevitavelmente, carregamos do Brasil ao chegar num
outro país. Lá encontrei pessoas solidárias e abertas a uma amizade que guardarei para o resto
de minha vida. Agradeço, em especial, pela confiança e amizade de Greta Fuller, no bairro de
Anacostia, em Washington, e Kukuli Velard e família, em Kensington, na Filadelfia. Agradeço,
ademais, a todas e todos com quem pude aprender um pouco mais acerca dos laços de
solidariedade que emergem entre as pessoas independentemente das fronteiras nacionais.
Esse período no exterior intermediou a minha atuação na UNIFAL-MG. Nessa
instituição construí, e continuo construindo, laços de coleguismo e, sobretudo, de amizade, que
foram fundamentais, dentre outras coisas, para realização deste trabalho. Agradeço às
professoras e professores, técnicas e técnicos e estudantes que, além da compreensão quanto à
minha necessidade de, em alguns momentos, dedicar-me integralmente para a produção desta
tese, têm, igualmente, somado à minha trajetória um incomensurável aprendizado – intelectual,
afetivo e de luta.
Devo um especial agradecimento às amigas e aos amigos que continuam me
apoiando, incentivando e inspirando ao longo desse tempo: a Prof.ª doutoranda Gabriela
Berthou de Almeida e o Prof. Dr. Marco Antônio Pereira, de Pontal do Paraná, PR, a Prof.ª Dr.ª
Manuela Areias, de Cáceres, MT, e o Prof. Dr. Daniel Precioso, de Quirinópolis, GO, o Prof.
Dr. Weder Ferreira, a Prof.ª Dr.ª Márcia Regina Romeiro Chuva, do Rio de Janeiro, RJ, o Prof.
Dr. Valdei Araújo, o Prof. Dr. Sérgio Ricardo da Mata, de Mariana, MG, a antropóloga
doutoranda Luísa Valentini, o Prof. Dr. João Abreu Clark Sodré, o Dr. Jaelson Bitran Trindade
e o Dr. Carlos Gutierrez Cerqueira e o Prof. Dr. Carlos Eduardo Paiva, de São Paulo, SP, a
Prof.ª Dr.ª Cristiane Magalhães, de Machado, MG, a Prof.ª Dr.ª Jussara Marrichi, o Prof. Dr.
Thomaz Alvisi de Oliveira, a psicóloga M.ª Josirene de Carvalho Barbosa e o Prof. M.e Eduardo
Yoshimoto, o Prof. Dr. Flávio Calheiros Casimiro e a Prof.ª M.ª Emanuelle Morais de Oliveira
Casimiro de Poços de Caldas, a Profa. Dr.ª Carmem Lúcia Rodrigues, o Prof. Dr. Vicente
Creton Pereira, o Prof. Dr. Natalino Neves da Silva, a Prof.ª M.ª Marcela de Andrade Rufato, a
museóloga Dr.ª Luciana Menezes de Carvalho, a Prof.ª Dr.ª Juliana Filgueiras, o Prof. Dr. Luiz
Antonio Sabeh, a Prof.ª Dr.ª Marta Rovai, o Prof. Dr. Mário Danieli Neto, o Prof. Dr. Marcelo
Hornos Steffens, a Prof.ª Dr.ª Elaine Ribeiro da Silva dos Santos, o Prof. Dr. Olavo Pereira
Soares, o Prof. Dr. Raphael Sebrian, o Prof. Dr. Romeu Adriano Silva, o Prof. Dr. Sandro
Amadeu Cerveira, o Prof. Rolién José Cirilo e a Profa. Tanis Pereira Thiers Vieira, de Alfenas,
MG. Se faço menção a esses nomes isso se deve mais à colaboração direta que ofereceram ao
longo desta tese, pois seria impossível indicar aqui todos aqueles cuja amizade tem me mantido
de pé e me constituído enquanto pessoa.
Agradeço ainda, de maneira particularmente carinhosa, à minha mãe, que, depois
de todos os anos de sacrifício e apoio incondicional às minhas escolhas, continua acreditando
naquilo que faço e relevando momentos de distância e ausência minhas. Realizações como esta
tese sempre serão devidas à senhora.
Por fim, o último e especial agradecimento à minha companheira de todas as horas;
àquela que tem me amparado emocionalmente e intelectualmente; àquela que, não obstante os
percalços da vida acadêmica, tem se mantido firme comigo em prol de um projeto de vida
construído a dois: como não poderia deixar de ser, dedico esta tese à minha esposa Nayhara
Vieira.
RESUMO

Pretendo apresentar nesta tese uma “história transnacional da modernidade” que dê


conta da produção de modernidades específicas por meio de determinados processos de
subjetivação e objetificação possibilitados por “híbridos” conceituais e patrimoniais. A
modernidade é entendida aqui como uma ideologia que se reproduz pela produção de seus
sujeitos e seus objetos, englobando outras ideologias ou complexos simbólicos em sua
configuração universalista. Sua expansão se dá por meio da circulação transnacional de
“coisas”, que podem ser pessoas, ideias ou recursos e que podem ser produzidas tanto como
sujeitos quanto como objetos da modernidade, dependendo da forma como se relacionam com
determinados tipos de “híbridos”. Esses “híbridos”, por sua vez, são um outro tipo de “coisas”,
produzidos por e produtores dos sujeitos e objetos da modernidade e situados entre eles. Assim,
os conceitos de civilização e cultura e os patrimônios culturais, entendidos como “híbridos”,
não são encarados aqui como meros produtos de determinados sujeitos, mas, igualmente, como
os próprios produtores desses sujeitos e de seus objetos. Os “sujeitos” produzidos por essas
relações são antropólogas e antropólogos, bem como agentes da burocracia estatal voltada para
a produção de uma ideologia nacionalista moderna. O “objeto” é a própria modernidade, ora
moldada pelo conceito de “civilização” ora pelo conceito plural de “cultura”.
Para tanto fez-se necessário propor uma reconsideração da história dos conceitos e
da história do patrimônio cultural à luz da ideia de “híbrido” proposta por Bruno Latour. Além
disso, busquei apontar a gênese e os limites semânticos propostos nesta tese para os conceitos
de modernidade, civilização, cultura e barbárie. O método utilizado articula a história
transnacional, uma interpretação crítica de documentos, sobretudo correspondências,
colecionados em instituições arquivísticas modernas, e uma perspectiva narrativa que
possibilite evocar não só sujeitos históricos, mas os seus objetos e os híbridos, conceituais e
patrimoniais, que produziram a ambos. As redes de circulação transnacional abordadas
correspondem àquilo que chamo, na primeira parte da tese, de “americanismo” e, na segunda
parte, “interamericanismo”, cada uma delas correspondente a diferentes configurações
relacionais e ideológicas diretamente conectadas à produção da própria modernidade nacional
brasileira. Na terceira parte, restrinjo o foco a fim de tratar de duas redes relacionais
transregionais, a primeira tecida a partir do Rio de Janeiro e a segunda de São Paulo. Em ambas,
demonstro como a coleta, organização e interpretação de determinadas formas de patrimônio
etnográfico e artístico possibilitaram a produção tanto de sujeitos como objetos de
modernidades alternativas nacionais.

Palavras-chave: Modernidade; História transnacional; Civilização; Cultura;


Patrimônio etnográfico e artístico.
ABSTRACT

I intend to present in this dissertation a “transnational history of the modernity”


capable to explain the production of specific modernities by means of certain subjectivation
and objectification processes made possible by conceptual and heritage “hybrids”. The
modernity is understood here as an ideology which reproduce itself by the production of its
subjects and objects, encompassing other ideologies or symbolic complexes within its
universalistic configuration. Its expansion occurs thanks the transnational circulation of
“things”, which may be people, ideas, and resources, and which can be produced both as
subjects and objects of the modernity, depending on the way of how they are related to certain
kinds of “hybrids”. These “hybrids”, in turn, are another kind of “things”, produced by and
producer of the subjects and objects of modernity and located between then. Therefore, the
concepts of civilization and culture and the cultural heritages, token as “hybrids”, are not faced
here as mere products of certain subjects, but, likewise, as the very producers of these subjects
and his objects. The subjects produced by these relations are anthropologists, as well agents of
the state bureaucracy focused on the construction of a modern nationalist ideology. The object
is the very modernity, now wrought by the concept of civilization, or by the plural concept of
culture.
Therefore, it was necessary to offer a reconsideration of the conceptual history and
the cultural heritage history in light of the idea of “hybrid” proposed by Bruno Latour. Also, I
tried to point out the semantical genesis and the limits of the concepts of modernity, civilization,
culture and barbarism. The method used articulates the transnational history, a critical
interpretation of documents, especially correspondences, collected in modern arquival
institutions, and a narrative perspective that allow to evoke not only historical subjects, but his
objects and the conceptual and heritage hybrids which produced the both. The transnational
networks of circulation approached correspond to what I call, in the first part of this dissertation,
“Americanism” and “Inter-Americanism”, each one related to different relational and
ideological configurations directly connected to the production of the very Brazilian national
modernity. In the third part, I restrict the focus in order to approach two transregional relational
networks, the first one woven from Rio de Janeiro, and the second one from São Paulo. In both
of them, I show how the collect, organization and interpretation of certain kinds of ethnographic
and artistic heritage allowed the production of both the subjects and objects of alternative
national modernities.

Keywords: Modernity; Transnational history; Civilization; Culture; Ethnographic


and artistic heritage.
LISTA DE SIGLAS

AAA – American Anthropological Association


ACLS – American Council of Learned Societies
AHA – American Historical Association
AIB – Ação Integralista Brasileira
APS – American Philosophical Society
BAE – Bureau of American Ethnography
CFE – Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil
CIAAIR – Committee for Inter-American Artistic and Intellectual Relations
CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e
Turístico do Estado de São Paulo
CNRC – Centro Nacional de Referência Cultural
CRSS – Council for Research in the Social Sciences
DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público
DC – Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo
DPHAN – Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ELSP – Escola Livre de Sociologia e Política
FBP – Franz Boas Papers
HAMP – Henry Allen Moe Papers
HSAI – Handbook of South American Indians
HSAIR – Handbook of South American Indians Records
IBECC – Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura
IEE – Institute of International Education
IIAA – Institute of Inter-American Affairs
INL – Instituto Nacional do Livro
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
ISA – Institute of Social Anthropology
ISS – Institute of Social Science
NAA-SI – National Anthropological Archives, Smithsonian Institution
NMNH – National Museum of Natural History
NRC – National Research Council
OCIAA – Office of the Coordinator of Inter-American Affairs
PD – Partido Democrático
PRP – Partido Republicano Paulista
RAM – Revista do Arquivo Municipal
RISA – Records of the Institute of Social Anthropology, 1942-1952
SESP – Serviço Especial de Saúde Pública
SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
LISTA DE IMAGENS E TABELAS

Figura 1: Cândido Portinari, Teaching of Indians, 1941, pintura mural a têmpera, Hispanic
Foundation, Library of Congress, Washington, D.C.
(https://www.loc.gov/rr/hispanic/portinari.html) ................................................................... 331
Figura 2: Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro, RJ
(http://www.museunacional.ufrj.br/casadoimperador/img/Museu.jpg) ................................. 369
Figura 3: Fotografia (27658) – Seção de Assistência ao Ensino de História Natural,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Série "Inventário", Arquivo Central do IPHAN, RJ...... 379

Tabela 1: Esquema de periodização utilizado por Luís Saia em Morada Paulista 483
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................ 17

CAPÍTULO 1: CAPÍTULO EPIGRÁFICO .................................................................................................................. 28

CAPÍTULO 2: POR UMA HISTÓRIA TRANSNACIONAL DA MODERNIDADE............................................................. 33


2.1. O CONCEITO COMO UM HÍBRIDO ................................................................................................................... 34
2.1.1. A história dos conceitos ..................................................................................................................... 34
2.1.2. A história dos híbridos ...................................................................................................................... 39
2.2. O PATRIMÔNIO CULTURAL COMO HÍBRIDO ..................................................................................................... 46
2.3. CIVILIZAÇÃO E CULTURA ............................................................................................................................... 53
2.3.1. Civilisation e Kultur............................................................................................................................ 53
2.3.2. O conceito antropológico de cultura ................................................................................................ 63
2.3.3. Uma proposta de recorte para a análise das relações entre os conceitos de civilização e cultura e
dos patrimônios etnográficos e artísticos ................................................................................................... 70
2.4. PROCEDIMENTOS .......................................................................................................................................... 75
2.4.1. História transnacional ....................................................................................................................... 75
2.4.2. Os arquivos ........................................................................................................................................ 82
2.4.2.1. Arquivos burocráticos ................................................................................................................... 82
2.4.2.2. Arquivos pessoais ......................................................................................................................... 90
2.3.3. A narrativa ......................................................................................................................................... 95

PARTE I: ANTROPOLOGIA AMERICANISTA ........................................................................................................ 102

CAPÍTULO 3: O AMERICANISMO, FRANZ BOAS E OS CONGRESSOS INTERNACIONAIS DE AMERICANISTAS ... 103


3.1. O AMERICANISMO....................................................................................................................................... 103
3.2. FRANZ BOAS,VÖLKERKUNDE E POLÍTICA ..................................................................................................... 108
3.3. OS CONGRESSOS INTERNACIONAIS DE AMERICANISTAS ................................................................................ 117
3.3.1. Os primórdios dos Congressos Internacionais de Americanistas ................................................ 117
3.3.2. O Congresso de Americanistas do Rio de Janeiro (1922)............................................................. 121

CAPÍTULO 4: A CONSTITUIÇÃO TRANSNACIONAL DE UMA REDE DE AMERICANISTAS ENTRE OS EUA, A


ALEMANHA, A SUÉCIA E A FRANÇA ................................................................................................................... 131
4.1. ENTRE OS EUA E A ALEMANHA ................................................................................................................... 132
4.1.1. A produção de facções americanistas entre Franz Boas e Karl von den Steinen ....................... 132
4.1.2. O trânsito de recursos americanistas entre os Estados Unidos e a Alemanha ........................... 137
4.2. ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E A ESCANDINÁVIA ........................................................................................... 148
4.3. ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E A FRANÇA ..................................................................................................... 153
4.3.1. A “tradição etnológica francesa” ................................................................................................... 153
4.3.2. Internacionalismo científico e linguística americanista ................................................................ 155
4.3.3. A ascensão nazista e o antirracismo ............................................................................................... 166
4.3.4. Desentendimentos teóricos .............................................................................................................. 168
4.3.5. Uma pequena nova geração de americanistas franceses .............................................................. 169

CAPÍTULO 5: O AMERICANISMO NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL: NOVOS LAÇOS E PRODUTIVIDADES .... 179
5.1. A EXPANSÃO DA REDE AMERICANISTA TRANSNACIONAL NOS PRÓPRIOS ESTADOS UNIDOS............................... 179
5.1.1 A primeira onda de boasianos(as) ................................................................................................... 181
5.1.2. A segunda onda de boasianos(as) ................................................................................................... 185
5.1.3. Cuidando de uma terceira geração de boasianos(as) .................................................................... 193
5.1.4. A transposição do método culturalista e historicista para o estudo das culturas de origem
africana ....................................................................................................................................................... 199
5.2. ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E O BRASIL ...................................................................................................... 202

PARTE II: ANTROPOLOGIA INTERAMERICANISTA ............................................................................................ 221

CAPÍTULO 6: A CONSTITUIÇÃO DE UMA ANTROPOLOGIA INTERAMERICANISTA POR MEIO DO HANDBOOK OF


SOUTH AMERICAN INDIANS ................................................................................................................................. 222
6.1. AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS E O INTERAMERICANISMO ......................... 222
6.2. JULIAN STEWARD: O SUJEITO EXEMPLAR DA ANTROPOLOGIA INTERAMERICANISTA ........................................ 230
6.3. A CONSTITUIÇÃO DE UMA ANTROPOLOGIA INTERAMERICANISTA POR MEIO DA PRODUÇÃO DO HANDBOOK OF
SOUTH AMERICAN INDIANS ................................................................................................................................ 233
6.3.1. A apresentação do Handbook of South American Indians .......................................................... 233
6.3.2. A exclusão de pesquisadores europeus........................................................................................... 237
6.3.3. A exclusão dos boasianos ................................................................................................................ 242
6.3.4. Objetificação do outro: as “tribos” que importavam para o interamericanismo ...................... 245

CAPÍTULO 7: A CONSTRUÇÃO DO INSTITUTE OF SOCIAL ANTHROPOLOGY E A REESTRUTURAÇÃO DAS REDES


AMERICANISTAS .................................................................................................................................................. 249

7.1. CURT NIMUENDAJÚ: UMA FONTE VALIOSA DE RECURSOS ETNOGRÁFICOS EM DISPUTA .................................. 251
7.2. O MUSEU NACIONAL DA QUINTA DA BOA VISTA: UMA INSTITUIÇÃO EM DISPUTA PELOS RECURSOS
ETNOGRÁFICOS.................................................................................................................................................. 262

7.3. A ESCOLA LIVRE DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA: UMA INSTITUIÇÃO INTERAMERICANISTA NO BRASIL ................. 272

CAPÍTULO 8: O COMMITTEE OF INTER-AMERICAN ARTISTIC AND INTELLECTUAL RELATIONS E O


SURGIMENTO DO INTERAMERICANISTA PROFISSIONAL .................................................................................... 281

8.1. O CIAAIR: AGÊNCIA E AGENTES ................................................................................................................. 281


8.2. BARREIRAS VALORATIVAS AOS TRÂNSITOS INTERAMERICANOS: POLÍTICA, COMPORTAMENTO, IDADE, GÊNERO E
COR .................................................................................................................................................................. 286

8.3. NOVAS OPORTUNIDADES PARA O GRUPO DO MUSEU NACIONAL.................................................................... 300


8.3.1. Em busca da continuidade da colaboração transnacional no treino de jovens antropólogos
brasileiros ................................................................................................................................................... 300
8.3.2. Entre o americanismo e o interamericanismo ............................................................................... 305
8.3.3. Trilhando as próprias sendas interamericanistas: Charles Wagley e a SESP ........................... 312
8.4. O CIAAIR E SÃO PAULO............................................................................................................................. 317
8.5. COOPERAÇÃO ARTÍSTICA INTERAMERICANA.................................................................................................. 326
8.5.1. A mensagem interamericanista dos murais da Library of Congress............................................ 326
8.5.2. O projeto musicológico interamericanista ..................................................................................... 333

PARTE III: CULTURA NACIONAL, PATRIMÔNIO ETNOGRÁFICO E ARTÍSTICO E AS DISPUTAS PELA


MODERNIDADE BRASILEIRA................................................................................................................................ 348

CAPÍTULO 9: MUSEU NACIONAL, CULTURAS INDÍGENAS E A MODERNIZAÇÃO NACIONAL POR MEIO DA


CIÊNCIA CIVILIZADA ........................................................................................................................................... 349

9.1. OS RASTROS DE UM COMETA........................................................................................................................ 350


9.2. UMA REARTICULAÇÃO PARA OS CONCEITOS DE CIVILIZAÇÃO E CULTURA ....................................................... 360
9.3. AS NARRATIVAS MUSEOGRÁFICAS DO MUSEU NACIONAL .............................................................................. 368
9.3.1. Do Museu Real ao Museu Nacional: “nação e civilização nos trópicos” .................................... 370
9.3.2. Roquette-Pinto e a função educativa do Museu ............................................................................ 376
9.3.3. As reformulações narrativas no Museu Nacional ......................................................................... 381

CAPÍTULO 10: O MUSEU NACIONAL E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO E ETNOGRÁFICO


(1937-1955) ......................................................................................................................................................... 401
10.1. O CAMPO INDIGENISTA E O MUSEU NACIONAL ............................................................................................ 402
10.2. AS COLEÇÕES DO MUSEU NACIONAL ......................................................................................................... 406
10.3. EMBATES PATRIMONIAIS ............................................................................................................................ 411
10.3.1. A ocupação do SPHAN pelo Museu Nacional ............................................................................. 412
10.3.2. Coleções etnográficas e arqueológicas e o tombamento do Museu Nacional ............................ 417
10.3.3. O papel de conselheiros(as) e técnicos(as) ad hoc do SPHAN .................................................... 425
10.3.4. As publicações antropológicas e arqueológicas no SPHAN ....................................................... 430

CAPÍTULO 11: DESCOBRIR A CULTURA E CIVILIZAR A NAÇÃO: SUJEITOS E OBJETOS DA MODERNIDADE


NACIONAL PAULISTA........................................................................................................................................... 440

11.1. UMA “RAÇA DE GIGANTES” ....................................................................................................................... 440


11.2. A CONFORMAÇÃO DE UMA NOVA ELITE ...................................................................................................... 444
11.3. DAS VIAGENS DE DESCOBERTA DO BRASIL À BUROCRACIA: A SUBJETIVAÇÃO DE MÁRIO DE ANDRADE E A
OBJETIFICAÇÃO DA CULTURA NACIONAL POR MEIO DO PATRIMÔNIO CULTURAL ................................................... 451
11.3.1. As viagens e as coisas ..................................................................................................................... 452
11.3.2. O Departamento de Cultura ......................................................................................................... 458
11.3.3. O SPHAN ....................................................................................................................................... 462

CAPÍTULO 12: O SPHAN EM SÃO PAULO E OS ASPECTOS REGIONAIS DA CULTURA NACIONAL ..................... 470
12.1. DESDOBRAMENTOS SUBJETIVOS ................................................................................................................ 471
12.1.1. Saia e a historiografia brasileira .................................................................................................. 474
12.1.2. O DC e o SPHAN ........................................................................................................................... 478
12.2. MORADA PAULISTA ................................................................................................................................... 481
12.2.1. A relação com os vestígios ............................................................................................................. 484
12.2.2. A relação com os valores ............................................................................................................... 488
12.2.3. O sentido ......................................................................................................................................... 489
12.3. AS AÇÕES PRESERVACIONISTAS .................................................................................................................. 496

CONCLUSÃO ........................................................................................................................................................ 500

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................................... 509


1. COLEÇÕES ARQUIVÍSTICAS ............................................................................................................................. 509
2. SITES CONSULTADOS ...................................................................................................................................... 510
3. BIBLIOGRAFIA CITADA ................................................................................................................................... 513

APÊNDICE: A CRÔNICA DA CHEGADA NOS ARQUIVOS........................................................................................ 531


17

INTRODUÇÃO

Uma característica fundamental da historiografia moderna tem sido a apresentação


clara e distinta dos sujeitos e dos objetos da história. Esse preceito continua posto, obviamente,
mesmo quando se trata de dar visibilidade à agência de novos sujeitos, antes apresentados como
objetos por uma historiografia elitista, branca, burguesa, machista etc. Isso significa, no entanto,
que uma questão elementar continua, assim, intocada. O próprio tema da subjetividade e da
objetividade, ou da subjetivação e da objetivação, não é problematizado por essa historiografia.
Eu apresento nesta tese uma narrativa embasada na ideia de que a própria
modernidade – entendida como uma estruturação globalizante de relações de subordinação por
meio da produção e circulação de coisas a que chamarei de “híbridos” – está fundamentada
numa operação elementar de divisão entre o mundo dos sujeitos e o mundo dos objetos. Esta é
uma perspectiva que, a meu ver, permite abarcar aspectos das formas modernas de relação de
poder que vão desde a sua fundamentação ideológica até as suas formas mais específicas e
localizadas de reprodução. Foi necessário, no entanto, manter em um segundo plano as
implicações reflexivas dessa abordagem para a própria produção historiográfica e mesmo das
ciências humanas, de forma mais abrangente,1 em função da amplitude que aquele objetivo
mais central acabou tomando.
Nesta tese eu me proponho, portanto, a acompanhar um conjunto de relações,
produtoras de “sujeitos” e “objetos” modernos e produzidas pela circulação dos conceitos de
civilização e cultura e pelo patrimônio etnográfico e artístico num contexto relacional
específico. Esse movimento adquire uma abrangência transnacional e inclui o trânsito de
pessoas, recursos e ideias em espaços que, desse modo, se modernizam de formas específicas
e, por vezes, conflituosas.
Eu inicio este trabalho com um “capítulo epigráfico”, na verdade a transcrição de
um triângulo epistolar estabelecido entre Heloisa Alberto Torres, Mário de Andrade e Rodrigo
Melo Franco de Andrade. Essa troca de correspondências suscita um conjunto de questões que

1
Um rompimento ontológico com a epistemologia moderna já não é nenhuma novidade nas ciências humanas.
Bruno Latour, Alfred Gell, Marilyn Strathern, Eduardo Viveiro de Castro e Roy Wagner, por exemplo, cada um a
seu modo e sem um claro programa partilhado, já têm apontado para essa nova “tendência” ou mesmo “revolução
silenciosa” na antropologia (HENARE, HOLBRAAD e WASTELL, 2007). Dentre essas propostas, como se verá,
eu me encontrei com e me inspirei especificamente nas de Latour (1994), pois, não obstante a crítica que Amiria
Henare, Martin Holbraad e Sari Wastell (2007) lhe dirigem – mais do que propor uma teoria para as “coisas” seria
necessário deixar que elas falem, heuristicamente, por si próprias – foi para mim impossível não considerar
pertinente a sua forma de abordar as relações modernas para além de sua própria epistemologia.
18

nos permitirá conhecer mais a fundo os complexos relacionais que permearam a produção de
projetos de modernização alternativos no Brasil.
Antes de me aproximar melhor desses complexos relacionais eu me proponho a
tentar responder a algumas questões de caráter teórico-metodológico no “Capítulo 2”. O
primeiro desafio é explicar o que significa chamar os conceitos de civilização e cultura e o
patrimônio etnográfico e artístico de “híbridos”, o que me leva a reapreciar os propósitos da
história dos conceitos e da história do patrimônio cultural. Isso é algo que faço à luz de algumas
ideias apresentadas por Bruno Latour em seu livro Jamais fomos modernos (1994), trabalho do
qual tomo emprestado a categoria “híbrido”. Outra necessidade que se apresenta é demarcar
minimamente o escopo semântico dos conceitos de civilização e cultura, de modo a deixar claro
a que tipo de relações ou “configurações ideológicas” esta tese se refere. Além disso, apresento
uma discussão sobre a perspectiva transnacional a partir da qual este trabalho é produzido, além
de algumas considerações sobre os arquivos e sobre narrativas historiográficas. Deixo como
apêndice desta tese o relato de minha chegada aos arquivos, inspirado numa reflexão que
Nicholas Dirks realizou a esse respeito (DIRKS, 2015).
A seguir a tese é dividida em três partes. Cada uma delas poderia ser lida como um
único capítulo se não fosse o tamanho exagerado que tomariam. Desse modo, por uma questão
de economia textual, elas estão divididas em alguns capítulos que, além do mais, permitem
definir argumentos mais específicos a fim de facilitar, assim, a visualização final dos problemas
mais gerais a serem abordados.
A primeira parte trata da constituição de uma teia relacional específica no interior
de uma rede transnacional mais abrangente de antropólogos(as) “americanistas. Desejo mostrar
como essa rede se estrutura a partir de uma perspectiva epistemológica e valorativa específica,
conquista uma abrangência transnacional, se institucionaliza e, por fim, alcança o território
brasileiro. Em síntese, trata-se de mostrar como os conceitos de civilização e cultura se
rearticulam numa antropologia americanista pautada pelo relativismo cultural e pelo
historicismo, pelo internacionalismo científico, pelo anti-imperialismo, pelo antirracismo e por
uma postura empirista que, somados, configuram um projeto modernizador alternativo àquele
que havia conduzido as nações europeias à Primeira Guerra Mundial. Seus sujeitos são,
portanto, os(as) cientistas, em especial os(as) antropólogos(as), imbuídos(as)2 de uma missão
civilizatória que agora é capaz de abranger todos os povos do planeta, a partir de então

2
A flexão de gênero, neste caso, se deve ao fato de que, embora essa rede transnacional fosse eminentemente
masculina, ela se abriu aos poucos e de forma limitada, como veremos, a algumas mulheres que lograram subverter
os papéis de esposas que lhes eram prescritos.
19

considerados “culturas” igualmente aptas à civilização, e não mais “bárbaros” cujas “raças
inferiores” não lhes abriria uma tal possibilidade. Os objetos perseguidos por esses sujeitos são
essas culturas a serem inferidas de vidas coletivas de pessoas que acabaram por ser silenciadas
nesse processo. Os híbridos que viabilizaram essa produtividade de sujeitos e objetos foram os
próprios conceitos de “civilização” e “cultura”, rearticulados em função desse novo projeto
modernizador. Mostrarei também que essa nova configuração da modernidade aporta bem cedo
aqui no Brasil, alcançando, já a partir da primeira década do século XX, alguns(mas)
intelectuais brasileiros(as) e conformando assim, aos poucos, um novo projeto nacionalista que,
a partir da década de 1920, seria definido pela ideia da existência de uma “cultura nacional”
como componente específico da “civilização” universal.
Essa primeira parte divide-se em três capítulos. No “Capítulo 3” eu defino os
fundamentos daquilo que se pode chamar de “antropologia americanista”, de modo a
compreender como se produz, em seu interior, uma corrente específica que acabou por se
conectar com intelectuais e instituições no Brasil. Para compreender essas especificidades eu
precisei conhecer mais a fundo a trajetória de Franz Boas, que se produz e é reproduzido como
a subjetividade central de um processo de “revolução paradigmática” no campo da
antropologia. Outro aspecto que eu apresento nesse capítulo é a institucionalização do
americanismo a partir dos Congressos Internacionais de Americanistas, organização essencial
para a articulação transnacional de uma rede de antropólogos(as) que se subjetivam em torno
de um ideal modernizador comum, porém não isento de conflitos.
O “Capítulo 4” se detém no processo de constituição da centralidade americanista
de Franz Boas. Essa situação só pôde ser construída a partir do entrecruzamento de outros
projetos americanistas, situados fora dos Estados Unidos, que alçaram a figura de Boas a uma
posição fortalecida no interior da antropologia americanista transnacional. Destaco nesse
capítulo as relações entretecidas entre os projetos boasianos e aqueles que se constituíram de
forma a princípio independente na Alemanha de Karl von den Steinen, na Suécia de Erland
Nordenskiöld e na França de Paul Rivet. Com isso mostrarei que o americanismo boasiano foi
algo construído a partir da conciliação de interesses transnacionais sedimentados em torno de
alguns valores consensuais. Tais valores eram capazes de abrigar diferenças que não chegaram
a colocar em questão um projeto modernizador comum, o qual se opunha ao racismo e ao
imperialismo das potências nacionais beligerantes entre 1914 e 1918.
O “Capítulo 5” é dedicado a mostrar dois movimentos específicos porém
interligados. O primeiro deles diz respeito à consolidação do projeto boasiano nos Estados
Unidos a partir da posição privilegiada que ele pôde conquistar transnacionalmente. O segundo
20

mostra como a antropologia culturalista e historicista estadunidense acabou por se conectar com
interesses intelectuais brasileiros, abrindo espaço para os projetos modernizadores nacionalistas
que, a partir de então, começaram a se proliferar no Brasil.
A “Parte II” trata da reconfiguração do projeto americanista em função das tensões
que desencadearam a Segunda Guerra Mundial. Eu proponho chamar essa nova antropologia
de “interamericanista” em função das finalidades específicas às quais ela responde.
“Interamericanismo” se refere, como mostrarei no “Capítulo 6”, a um conjunto de relações
bilaterais, estabelecidas a partir dos EUA e dirigidas às repúblicas latino-americanas. Trata-se,
além disso, de uma nova ideologia modernizadora que se constrói contra o inimigo comum
representado pelo barbarismo do nazi-fascismo. Para isso, fez-se necessária uma rearticulação
dos conceitos de civilização e cultura, por meio da qual as repúblicas americanas passam a ser
vistas como o necessário novo polo de irradiação da modernidade. Isso era algo que só poderia
ser feito a partir de uma modernização conduzida pela “civilização” estadunidense, que iria
guiar a modernização das “culturas latino-americanas”, vistas como inferiores em termos de
desenvolvimento civilizacional, porém ricas em função de suas especificidades culturais
multiétnicas. As Américas seriam, portanto, o espaço de uma nova modernidade capitalista,
democrática e multicultural. Para tanto, seria preciso conhecer melhor essas diversas culturas
para melhor integrá-las à civilização por meio de um processo modernizador unidirecional.
Os(as) antropólogos(as) interamericanistas são os novos sujeitos dessa modernização, todavia,
para além deles(as) surgem novos profissionais cuja função é dinamizar esses fluxos
transnacionais interamericanos sem, contudo, permitir que a posição de liderança nessas
relações bilaterais seja ocupada por outra nação que não os EUA. Os objetos são, mais uma
vez, as “culturas”, mas agora o interesse restringe-se, nesse caso, às diversas culturas existentes
na América Latina, que precisavam ser domesticadas no interior do projeto modernizador
interamericanista. Os híbridos privilegiados também continuam sendo, aqui, os conceitos de
civilização e cultura, agora articulados nessa nova relação que identifica a “civilização” como
representando o conjunto de valores da nação estadunidense e as “culturas” como sendo os
diversos povos “ainda-não-civilizados” da América Latina. Veremos que esse processo,
atrelado a um projeto mais amplo de liderança geopolítica estadunidense no pós-guerra,
também gerou conflitos e projetos nacionais alternativos no mundo latino-americano, o que
será demonstrado, mais uma vez, por intermédio do caso brasileiro.
Essa parte também está dividida em três capítulos. Os capítulos “6” e “7” mostrarão
como esse objetivo modernizador interamericanista foi perseguido por meio da produção do
Handbook of South American Indians e da institucionalização do Institute of Social
21

Anthropology. As relações estabelecidas a partir desses dois projetos transnacionais


possibilitaram a consolidação daquilo que estou chamando de antropologia interamericanista.
Esse projeto ideológico também produziu uma subjetividade central, encarnada na figura do
antropólogo estadunidense Julian Steward. Steward conduziu um processo de redefinição do
papel do(a) antropólogo(a), que passou então a se diferenciar das subjetividades produzidas
pela antropologia americanista. Aos poucos, no entanto, novas subjetividades não previstas
nesse projeto inicial começam a se consolidar em meio a instituições e práticas antropológicas
formuladas fora do território estadunidense e voltadas para projetos modernizadores
específicos. Veremos, então, como os anseios modernizadores nacionalistas mais específicos
de antropólogos(as) inseridos nessa rede transnacional são produzidos, ora em parceria e ora
em conflito, a partir dos canais e recursos disponibilizados nessa nova configuração relacional
transnacional. Isso ficará mais claro no “Capítulo 7”, onde trato especificamente dos conflitos
travados entre o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista e a Escola Livre de Sociologia Paulista
em torno da estruturação de Institute of Social Anthropology.
No “Capítulo 8” eu trato mais especificamente da profissionalização dos
“interamericanistas”, analisando as ações de colaboração intelectual bilateral possibilitadas
pelo Committee of Inter-American Artistic and Intellectual Relations, agência criada no período
da Segunda Guerra Mundial em estreita conexão com o Office of the Coordinator of Inter-
American Affairs de Nelson Rockefeller. Veremos, então, o surgimento de uma nova
subjetividade transnacional e moderna: o interamericanista profissional, encarnado,
principalmente, nas figuras de Henry Allen Moe e William Berrien. Os novos circuitos
relacionais possibilitados por essa agência governamental mostram as barreiras valorativas para
a circulação transnacional existentes neste contexto específico, o que praticamente
impossibilitava o trânsito interamericano de determinadas pessoas em função do gênero, cor de
pele, idade, comportamento e ideologia. Verificaremos também as novas estratégias adotadas
no Museu Nacional no intuito de canalizar os novos recursos então disponibilizados em prol de
seu projeto específico de modernização nacional. Além disso, poderemos conhecer melhor as
relações transnacionais estabelecidas, nesse contexto, entre as agências estadunidenses e os
intelectuais e artistas brasileiros, de modo a perceber um pouco melhor como os fluxos
transnacionais serviram sobretudo àqueles(as) cuja posição no país havia sido prejudicada pela
instauração da ditadura estadonovista, a exemplo do grupo de artistas e intelectuais paulistas
vinculados a Mário de Andrade.
A terceira e última parte desta tese se volta para um nível mais restrito de análise,
enfocando as disputas trans-regionais pela modernidade nacional brasileira, sem deixar de
22

considerar, obviamente, a perspectiva transnacional apresentada ao longo desta investigação. A


atenção se volta agora, no entanto, para um outro tipo de híbrido, também ele um
desdobramento dos conceitos de civilização e cultura. Trata-se de perceber, portanto, como os
patrimônios etnográficos e artísticos compõem uma parte da expansão mais abrangente da
modernidade ocidental por sobre um território no qual suas elites intelectuais também estavam
em busca de uma modernidade especificamente nacional.
Os capítulos “9” e “11” representam um esforço de delimitação das duas
subjetividades centrais para dois projetos específicos de modernização nacional: Heloisa
Alberto Torres e Mário de Andrade, respectivamente. Nos dois casos eu reconstituo os
contextos relacionais e institucionais atrelados à produção dessas duas subjetividades a partir
das diversas narrativas já inscritas nos seus respectivos arquivos.
Nos capítulos “10” e “12” eu busco, por outro lado, evidenciar algo não tão claro
naqueles mesmos arquivos. Se eles nos apresentam a trajetória de subjetividades exemplares
junto às objetividades por elas produzidas, esses lugares de memória nada nos dizem a respeito
dos “híbridos” que permitiram a produção tanto de umas quanto de outras. Esses dois capítulos
representam uma tentativa de recontar parte da história do patrimônio cultural nacional
tratando-o não como o resultado de práticas de sujeitos individuais e coletivos, mas como um
tipo de “híbrido” sem o qual nem os sujeitos nem os objetos desse campo específico da
modernização nacional teriam existido. Embora eu tenha apresentado aqui esses quatro últimos
capítulos de maneira interpolada, eu preferi os dispor na tese de modo a tratar, nos dois
primeiros, do caso específico do Museu Nacional e, nos dois últimos, do caso do Departamento
de Cultura da Cidade de São Paulo, de modo a tornar a narrativa mais fluida na medida do
possível.

Esboçada a estrutura desta tese, eu gostaria de tratar rapidamente das motivações


que me conduziram a adotar a perspectiva historiográfica acima apresentada. Por mais que no
mundo “civilizado” se proponham diagnósticos de crise da sua própria modernidade, algo que
tem me chamado a atenção ultimamente é a sobrevivência e o poder de lugares-comuns (topoi)
nascidos dela e com ela. Vivíamos, até pouco tempo, a esperança de uma modernização
alternativa: o mundo todo saudava o bem-sucedido modelo neodesenvolvimentista, nascido da
periferia do capitalismo e aparentemente capaz de superar as históricas desigualdades sociais,
esse persistente signo do “atraso” dos “países em desenvolvimento” que ainda nos prendia ao
polo da barbárie.
23

Mas logo se revelou que sob o manto da democracia havia a gestão racional e
impessoal do mercado, e se tudo ia aparentemente bem era porque o incremento do consumo
às custas de recursos destinados a políticas de distribuição de renda tinha a vantagem de calar
a insurreição e de civilizar pela inserção no mercado. Enquanto isso os conflitos não superados
iam sendo empurrados para as margens, para longe dos centros e das vistas do(a) cidadão(ã)
brasileiro(a) civilizado(a): os conflitos fundiários e a guerra contra o tráfico, por exemplo,
quando muito, eram vistos como um preço a ser pago pela civilização, ou melhor, pelo
desenvolvimento do país. Foi só a população passar a exigir uma gestão democrática do fundo
público num momento em que este já não se mostrava mais tão pujante; foi só se escassearem
os recursos para a manutenção de uma criminosa dívida pública; foi só a legislação trabalhista
brasileira ser vista como um empecilho para a expansão das relações modernas e capitalistas de
dominação; foi só os movimentos sociais e de resistência em geral começarem a se organizar;
e não tardou para que caísse então o véu que sempre sustentou o moderno Estado-nação
brasileiro. O neodesenvolvimentismo foi então imediatamente substituído pela velha concepção
oligárquica de modernidade: “ordem e progresso” passou a ser o novo slogan dos novos sujeitos
do Governo Federal – o progresso ditado pela razão impessoal e a ordem conquistada pelo
esvaziamento da democracia. A diferença maior talvez resida no fato de que o polo da razão é
agora ocupado não mais por engenheiros ou médicos, como na Primeira República, mas por
economistas formados pela doutrina neo- (ou ultra-) liberal e por administradores formados
pela doutrina da gestão flexível. Saímos da “Nova República” e ingressamos na “Nova
República Velha”. Como falar em “presentismo”, quando parecemos presos em topoi ainda
claramente modernos a orientar o “nosso” Estado-nação, este último forjado exatamente a partir
de uma concepção peculiar de “cultura nacional”? Parece-me que vivemos muito mais num
regime de historicidade ao qual talvez poderíamos chamar de “futuro do preteritismo”.
Isso tudo apenas indica, a meu ver, a pertinência de localizar as redes e narrar os
processos envolvidos nas disputas por nossa modernidade. Mas uma tese historiográfica não
pode pretender moldar o futuro a partir do conhecimento do passado sob pena de ela própria
ser acusada de vanguardismo modernista. Eu tomo aqui como premissa, amparada em outros
escritos, que o problema mais elementar da modernidade foi a separação que ela produziu entre
o polo do objeto e o do sujeito. Os que se aventuram a tentar superar esse problema têm
apontado justamente para a necessidade de subverter essa separação. 3 O que pretendo fazer

3
Bruno Latour (1994) propõe a extensão da democracia aos híbridos como solução. Zygmunt Bauman (1998)
propõe que a desumanização dos laços humanos produzida pela modernidade pode ser rompida por meio de um
“comportamento moral pré-social” pautado pela ideia de “responsabilidade pelo Outro”, religando assim o que a
24

nesta tese é algo que considero um pouco menos pretensioso, porém não menos necessário, ou
seja, localizar algumas redes por meio das quais foi realizada concretamente uma separação,
dentre outras, que visava justamente sustentar a existência de um Estado-nacional brasileiro
num contexto mutante em que essa “nossa cultura” precisou se afirmar diante da civilização
ocidental.

Antes de apresentar essas relações transnacionais pretéritas eu gostaria de listar


algumas convenções que adotei esperando facilitar assim o trabalho de leitura. Para a
transcrição dos textos originais em inglês e francês primeiramente eu apresento uma tradução
livre de minha autoria seguida do texto original em nota ou, em casos mais curtos, entre
parênteses – considerei, no entanto, desnecessário fazer o mesmo em relação ao espanhol, dada
a maior familiaridade desse idioma para o público leitor brasileiro. Os textos em língua
estrangeira são grafados em itálico (inclusive os nomes de instituições), o que não apliquei, no
entanto, às referências bibliográficas no corpo do texto, a fim de seguir, nesse caso, o padrão
costumeiro (título de livro em itálico e título de artigo ou capítulo entre aspas, sem itálico).
No caso das citações diretas, eu optei por utilizar negrito para os destaques de minha
autoria, adotando o itálico para os destaques originais, independentemente do sistema utilizado
no próprio documento. Também omito as referências originais a terceiros nessas citações, pois
acredito que assim a leitura se torna menos truncada. Além disso, como lido com textos em
português escritos em diferentes períodos históricos, optei por não atualizar a grafia dos
documentos transcritos, a fim de não limar os traços de historicidade perceptíveis na forma dos
usos linguísticos pretéritos. Faço exceção, no entanto, às regras imediatamente anteriores ao
atual acordo ortográfico.
Procurei sempre indicar, entre parênteses, a data de nascimento e falecimento das
pessoas que, de uma forma ou outra, pude encontrar conectadas às redes abordadas nesta tese.
Além da vantagem disso para uma localização geracional imediata da pessoa em questão, essa
indicação evita possíveis confusões acarretadas pela homonímia. No entanto, não foi possível
encontrar essas informações para todos os nomes a partir do material que tive em minhas mãos,
e figuras importantes para esta narrativa, como William Berrien, por exemplo, não serão,
lamentavelmente, acompanhadas desse pormenor.

modernidade desligou. Roy Wagner (2010) aposta nas “simbolizações diferenciantes”, em oposição às
“convencionalizantes”, como mais capazes de garantir uma maior estabilidade em meio a conflitos dialéticos
incontornáveis numa sociedade de classes. Mencionaria ainda a esquizoanálise elaborada por Gilles Deleuze e
Félix Guattari (2004) e o horizonte comunalista vislumbrado a partir das práticas insurrecionais prescritas pelo
Comitê Invisível (2014) como proposições voltadas para os mesmos fins.
25

Por fim, eu procurei utilizar o feminino e o masculino para tratar de grupos mistos
a fim evitar a reprodução de uma linguagem sexista, além de eliminar estereotipias, saltos
semânticos e fórmulas de tratamento que impliquem em inferiorização, menosprezo ou
desvalorização de gênero. Apenas por uma questão de facilidade de escrita opto por indicar o
nome alternativo feminino ou masculino entre parênteses na maioria dos casos, quando se trata
somente de substituição da terminação.4 Em relação aos nomes dos povos indígenas, optei por
grafá-los com inicial minúscula e no plural, por motivos que explicarei melhor quando for tratar
especificamente da produção do Handbook of South American Indians.

Gostaria ainda de apresentar, finalmente, algumas advertências importantes.5 Em


primeirlo lugar, é impossível dissociar o estudo sobre a produção da modernidade dos embates
travados em torno do conceito de raça e das ideologias racistas. Todavia, esse assunto
comparece nesta tese apenas em momentos bastante específicos. Embora existam, nessas redes,
desdobramentos nos quais a questão racial tomou um relevo primordial, eu decidi não os
explorar à fundo justamente em função de suas particularidades. Isso não significa, no entanto,
que eles sejam menos relevantes ou que não estejam presentes nos problemas mais diretamente
ligados às redes que eu abordo. O que ocorre é que, nos casos que eu estudo, a “etnografia
ameríndia” e a “etnografia popular”, como escreverá Mário de Andrade nas correspondências
transcritas a seguir, são um alvo mais imediato de disputa, ao passo que a raça e a cultura negra
propriamente ditas mobilizam redes que mereceriam um estudo específico, ainda que
articuladas àquelas que abordo nesta tese.
Em segundo lugar, é importante ter em mente que eu emprego uma acepção mais
restrita para o termo “patrimônio artístico”. Quando uso essa expressão eu me referiro, como
ficará mais claro a partir da leitura do texto, a uma concepção de arte que é um desdobramento
das discussões produzidas no interior dos campos da antropologia e do folclore, em especial no
que diz respeito às práticas protetivas institucionalizadas a partir do Museu Nacional e do
Departamento de Cultura. Trata-se, portanto, muito mais de um desdobramento do “patrimônio
etnográfico” propriamente dito do que de um “patrimônio artístico” fruto das discussões
estabelecidas no campo da estética ou da arte erudita. Este último tipo de patrimônio cultural
nacional marcou de forma importante, também, os processos de subjetivação e objetivação
produzidos nas redes que se entrecruzaram no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

4
Um bom guia para o uso de uma linguagem livre do sexismo pode ser encontrado em SECRETARIA DE
POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2014.
5
Agradeço especialmente aos membros da Comissão Examinadora desta tese por terem chamado a minha atenção,
em suas respectivas arquições, para a necessidade de esclarecimento de alguns destes problemas.
26

Nacional; todavia, por uma questão de foco e escopo, preferi não ampliar a abordagem desta
tese para essa outra dimensão, que mereceria, certamente, tal como o conceito de “raça”, uma
análise específica e mais pormenorizada. Da mesma forma, quando me refiro ao “patrimônio
arqueológico”, entendo que, no contexto empregado, o termo comunga com o “patrimônio
etnográfico” o pertencimento ao campo mais abrangente da antropologia.
Em terceiro lugar, em meio a tantas vozes que comparecem neste trabalho, é difícil
delimitar quais delas compõem diretamente as redes de subjetividades aqui evocadas e quais
delas me ajudam como interlocutoras em meu esforço de tradução daquelas experiências
relacionais para o público leitor contemporâneo. Isso se dá quando noto que Luiz de Castro
Faria, por exemplo, toma parte de maneira significativa nas redes aqui abordadas, ao mesmo
tempo que, em outros momentos, ele fornece observações críticas importantes sobre as práticas
museográficas do Museu Nacional, se portando, assim, como um “observador de segunda
ordem”. Muitos outros exemplos semelhantes poderão ser notados ao longo da leitura desta
tese. Isso acontece pelo fato de que uma parte significativa dessas subjetividades se lançou,
muitas vezes, a um genuíno trabalho de interpretação das relações que também puderam
conhecer em primeira mão. Uma tal delimitação torna-se ainda mais complexa pelo fato de que
eu mesmo não pretendo me colocar aqui na posição de um simples “observador” dessas
relações, mas na de um interlocutor ou tradutor de vozes ora silenciadas, ora atravessadas por
diversas ações de produção de sentido ou mesmo soterradas por múltiplas camadas de
intencionalidades arquivísticas, para ficar em apenas alguns exemplos dessas diversas
complexidades dialógicas. A ação dialógica é também uma forma de mútua transformação
subjetiva em função dos híbridos linguísticos que põe em circulação e troca. No entanto, como
forma também de facilitar a atividade crítica em relação ao meu trabalho, eu indico, ainda que
de forma artificial, um “nós” e um “eles” do discurso quando apresento, no texto, entre
parênteses, os anos de nascimento e falecimento das subjetividades enfocadas. Nos casos em
que essas mesmas subjetividades vêm ao socorro da minha própria atividade interpretativa,
tento evidenciar criticamente a plausibilidade das apropriações que faço de suas vozes,
repercutindo-as assim no interior dos sentidos dos enunciados que produzo.
Por fim, esta tese é fruto de uma opção metodológica no que diz respeito à escolha
de seus pressupostos teóricos. Ao invés de me ancorar, à moda popperiana, a uma única teoria
a nortear dedutivamente minhas possibilidades de pesquisa e escrita, preferi me lançar a algo
mais próximo de uma aventura anárquica feyerabendiana.6 Esta pesquisa começou pela

6
Vide POPPER, 2004, e FEYERABEND, 1989.
27

tentativa de reatar laços entre pessoas estruturados pelo conceito de cultura, tendo como
pressuposto inicial apenas a convicção de que as práticas de produção e proteção ao patrimônio
cultural nacional comportavam compreensões diversas a respeito do conceito de cultura
nacional.7 À medida que essas relações foram se desenrolando diante de minha percepção,
novos problemas apareciam demandando alguma contextualização e delimitação, e a partir daí
se produziu a relação dialética entre empiria e teoria apresentada nesta tese. As considerações
mais gerais a respeito da modernidade, da longa trajetória de articulação entre os conceitos de
civilização, cultura e barbárie, da dimensão transnacional e da própria suspeição relativa à
epistemologia que tem guiado a produção historiográfica moderna, tudo isso só foi possível
após um longo trabalho de reconstituição de relações e de conceitos expressamente presentes
nas milhares de páginas de documentos lidas nestes últimos anos de pesquisa. Essa postura
anárquica foi, ainda, moldada pelo caráter hipertextual das ferramentas digitais contemporâneas
de pesquisa e pelos meus próprios posicionamentos políticos relativos às assimetrias produzidas
pelas relações modernas de dominação.
A postura acima esboçada, é preciso salientar, apresenta vantagens e desvantagens
que precisam ser lembradas. Por um lado, o não comprometimento a priori com qualquer
tradição teórica me permitiu uma liberdade de movimento sem a qual não teria sido possível
apresentar os argumentos que podem ser lidos neste trabalho. Por outro lado, a pluralidade de
pontos de vista aqui expressa tornou impossível a tarefa de um aprofundamento substantivo de
cada um dos problemas surgidos ao longo da pesquisa. Por isso, em alguns momentos – como,
por exemplo, no que diz respeito as diferenças entre os conceitos de “pan-americanismo” e
“interamericanismo” – eu preferi me ater apenas às características dos usos conceituais
presentes nos próprios documentos consultados, optando, portanto, por não me dar ao luxo de
divagações historiográficas ou conceituais que, caso aplicadas a todos os problemas surgidos
nesta tese, tornariam inviável a sua finalização dentro do prazo que nos é dado. Além disso, eu
me satisfiz, por ora, com a clara vantagem que essa aventura em certa medida anárquica
possibilita em termos de abertura de portas investigativas, considerando, portanto, que foi mais
importante chamar a atenção para aspectos passíveis de aprofundamento futuro do que a
concentração de esforços à exaustação (algo na verdade impossível de ser alcançado) num único
ponto de investigação.

7
Convicção esta advinda dos resultados de minha dissertação de mestrado (LOWANDE, 2010) e de pesquisa que
realizei posteriormente sobre o patrimônio etnográfico e arqueológico (LOWANDE, 2013c).
28

CAPÍTULO 1: CAPÍTULO EPIGRÁFICO

Rio de Janeiro, 9 de maio de 1936.

Ilmo. Sr. Dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade

Rio de Janeiro.

Meu ilustre amigo Dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade,


Junto devolvo-lhe o projecto do ‘Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional’, elaborado pelo nosso amigo Mário de Andrade. Cabe-me agradecer-lhe a
honra da consulta e dizer-lhe com toda a franqueza o meu modo de ver sôbre o caso.
Posso assegurar que, ao estudar o projecto, só tive em mente o desenvolvimento dos
estudos etnográficos e o maior benefício que, das nossas organizações culturais, possa
advir para o público.

Nada aconselha, na situação atual dos estudos etnográficos entre nós, - situação que
provàvelmente se prolongará por muitos anos ainda – o afastamento dos laboratórios
de etnografia dos de qualquer ramo de estudo da história natural.

A cada passo a Secção de Etnografia no Museu Nacional recorre ás instalações de


química da Divisão de Mineralogia, para análises; requisita dessa mesma Divisão o
preparo de lâminas para observação microscópica (cerâmica, rochas,); consulta as
Secções de Botânica e de Zoologia para determinação dos elementos componentes de
uma peça etnográfica; socorre-se ainda, com respeito á fito- e á zoo-geografia, de
informações dessas Secções no interesse imediato dos seus trabalhos.

Por tal forma está a pesquisa etnográfica ligada ás sciências naturais que a sua
instalação em laboratórios distantes só lhe poderia ser prejudicial. Fosse o novo museu
etnográfico dotado de um etno-botânico e de um etno-zoólogo, ainda assim não estaria
suprida a falta porque, em face de tantas especializações na botânica e na zoologia,
um só naturalista em cada ramo não poderia dar conta do recado, e, por outro lado,
implicaria isso na creação de cargos com atividades apenas ocasional. Seria uma
dessas demasias ineficientes tão próprias dos projectos de crianças grandes que ainda
somos no Brasil e que, me parece, já estamos em idade de ir procurando corrigir.

Bem sei que os estudos etnográficos precisam ser intensificados com urgência afim
de que se recolha a documentação que os restos das nossas populações indígenas, em
via rápida de desaparecimento, ainda nos podem proporcionar.

O museu moderno de pesquisa biológica tem que ser eminentemente ativo; o nosso,
a-pesar-de idoso, não estagnou nos velhos moldes. O seu atual regulamento é de
natureza a permitir o mais amplo progresso dos trabalhos scientíficos. Cumpre que se
desenvolvam no laboratório e no campo as suas atividades; não se pode atribuir ao
nosso museu etnográfico a função de museu-arquivo que o projecto parece
recomendar. Em todo ele, apenas uma palavra faz crer que a pesquisa também é
admitida; é quando emprega, na enumeração das funções do serviço, o termo
enriquecer o patrimônio. É prometer muito pouco a quem precisa, antes de tudo,
coleccionar. O que os estudos da etnografia e a pesquisa scientífica em geral clamam
que lhes seja concedido é uma organização administrativa que não constitua pêia á
sua marcha.
29

Do ponto de vista traçado de programa de trabalhos, o projecto não abre novas


possibilidades aos estudos antropológicos; na administração, interpõe uma nova
directoria entre eles e o Ministro a quem estão hoje directamente subordinadas as
normas que o regulamentam. Mais embaraços.

Si, por um lado, a separação da Secção de Etnografia das outras Secções do Museu
não é aconselhável e acarretaria desvantagens, por outro o seu divórcio dos estudos
antropológicos pròpriamente ditos (antropologia física, psicologia racial, etc.) não
encontraria justificativa de modo algum. Á Secção de Antropologia, como a todo o
Museu Nacional, só lhe faltam verbas (pessoal e material) e maior elasticidade
administrativa para desenvolver suas atividades dentro dos métodos correntes na
sciência mundial. Todo esse melhoramento poderia e deveria ser concedido aos
estudos etnográficos dentro do Museu Nacional.

Que vantagem adviria para o público com a creação do novo Museu Etnográfico?...
?... Um prejuizo certo ocorreria: o deslocamento da figura do homem, do seu ambiente
natural, geológico, botânico, zoológico, perturbando a visão do conjunto do quadro
em que se vem processando a sua evolução.

Admitamos que se pudesse remediar a todos esses inconvenientes creando o ‘Serviço


do Patrimônio Artístico, Histórico e Antropológico Nacional’, e instalado em edifício
anexo ao ou próximo do Museu de História Natural, ainda surgem considerações
muito ponderàveis. Uma, de natureza tradicionalística, não pode deixar de ser tomada
em conta no momento em que se pretende organizar a defesa do patrimônio histórico
do Brasil: é o golpe desferido a uma instituição de 118 anos de existência e que, máu
grado a incomprensão de suas finalidades, pela maioria dos Governos, tem conseguido
levar e manter em alto nível o nome do Brasil por todo mundo, na divulgação do que
a nossa terra tem de mais belo: a sua natureza e a sua gente. A organização desses
trabalhos de defesa não pode ser iniciada pela mutilação de um instituto centenário e
glorioso, quando um dos primeiros monumentos nacionais a serem tombados pelo
Serviço projectado devería ser certamente o Museu Nacional.

Vamos que se considerasse esse argumento como de caracter puramente sentimental


(todo o serviço de defesa do patrimônio não o é menos) e como tal desprezível em
face de grandes benefícios com que seria galardoado o novo museu de etnografia;
vamos admitir que todos os inconvenientes acima apontados fossem sanados pelas
medidas indicadas; que fosse a nova instituição dotada de verbas largas e de processos
administrativos consoantes aos seus propósitos, ha ainda um aspecto que não pode
deixar de ser lembrado: abandonado o nosso nome tradicional, num país, como o
nosso, em que nem sempre se compreende a significação de instituições que não
apresentam uma finalidade prática imediata, seriam sacrificadas as nossas verbas
numa primeira oportunidade de corte orçamentário e, mais miseráveis que o paralítico
da fábula de Florian, não teríamos mais o cégo em que nos arrimar, enquanto não
ressurgissem dias melhores. (Isto é o que se chama, em bom português, literatice e da
mais barata).

O projecto, que indica tantas medidas de valor no tocante á história e á arte, parece
quasi que só ter tomado em consideração este aspecto da vida dos nossos selvícolas;
não consultou absolutamente o interesse das sciências antropológicas, e é a favor delas
que eu pugno.

Penso que se poderia estabelecer uma colaboração estreita entre a Secção de


Etnografia do Museu Nacional e o ‘Serviço’, uma verdadeira articulação entre as duas
entidades e da qual poderia resultar benefício consideràvel para êste sem prejuizo dos
trabalhos que aquela levasse a efeito. Todo o material de etnografia constaria do
tombamento, os técnicos do Museu Nacional colaborariam no Conselho Consultivo
30

da S.P.A.N., organizariam relações de jazidas etnográficas a serem tombadas,


levantariam mapas com a distribuição geográfica dos monumentos a serem
protegidos, elaborariam monografias a serem publicadas pela S.P.A.N.

Por seu lado a S.P.A.N. providenciaria melhores condições para o desenvolvimento


dos trabalhos da Secção de Etnografia do Museu Nacional.

Na segunda-feira, lhe remeterei o regulamento do Conselho de Fiscalização de


Expedições Artísticas e Scientíficas no Brasil e indicação precisa sôbre dois trabalhos,
um de Alberto Childe e outro de Raimundo Lopes (ambos do Museu Nacional),
visando a proteção a jazidas e monumentos culturais.

Aí vão consignadas as considerações, não de ‘uma mentalidade sem energias’ a que


se refere o nosso amigo Mario, mas de uma servidora do Museu, que dedica ao
desenvolvimento dos estudos etnográficos em nossa terra, todo o seu cuidado.

Ponho-me á sua disposição para quaisquer outros esclarecimentos que se tornem


necessários e para começar a trabalhar logo que quisér. Desejaria tanto que a
contribuição do Museu Nacional pudesse ser das primeiras em todos os sentidos.

Muito cordialmente,

Heloisa Alberto Torres8

***

S. Paulo 29-7-36

Meu Caro Rodrigo

Li seu projeto de lei que achei, pelos meus conhecimentos apenas, ótimo. Aliás,
preliminarmente é preciso que eu lhe diga com toda a lealdade que dado o anteprojeto
ao Capanema, eu bem sabia que tudo não passava de anteprojeto. Vocês ajudem com
todas as luzes possíveis a organização definitiva, façam e desfaçam à vontade,
modifiquem e principalmente acomodem às circunstâncias, o que fiz e não tomou em
conta muitas circunstâncias porque não as conhecia. Não sou nem turrão nem vaidoso
de me ver criador de coisas perfeitas. Assim não tema jamais me magoar por
mudanças ou acomodações feitas no meu anteprojeto.

O caso por exemplo do museu etnográfico é típico. Dou toda a razão a d. Heloísa...
em última instância. O que fiz foi teoria e acho bom como teoria. Sustentarei minha
tese em qualquer tempo. Um Museu Etnográfico deve estar separado dum museu de
história natural. Se um organismo e se os burocratas desse organismo forem, não digo
perfeitos, mas apenas bem intencionados e eficientes, um museu de história natural
não recusará nunca sua colaboração eficaz a outro de etnografia que a pedir. Mas
sucede hélas que a qualquer pedido de colaboração, os nossos organismos ficam
enciumados, ou não colaboram ou colaboram de má vontade. Hoje sei disso com
terrível malinconia. Entre nós: no início do meu Departamento me veio a idéia de
ajuntar no Brasil cópias de todas as músicas de índios brasileiros existentes em museus
e arquivos estrangeiros. Há certamente deles na Alemanha e parece que nos Estados
Unidos também. Com virgindade e abundância de coração, ofereci colaboração ao
Museu Nacional, propondo-lhe ficar com as glórias da iniciativa, tanto mais que tinha
mais completas e federais credenciais pra conseguir o desejado. Até hoje nada se fez,

8
Arquivo Central do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro. Personalidades. TORRES, Heloisa
Aberto. AA02/M003/P01/Cx. 0125/ P. 0404/.
31

mais de um ano já passou e a própria d. Heloísa, que respeito e admiro enormemente,


não achou tempo pra escrever um ofício a Berlim, iniciando as negociações. Ela tem
perfeitas razões em saber que a colaboração entre organismos diversos é ineficaz...

Concordo pois inteiramente com as razões técnicas que ela dá como início da carta.
Com o resto da carta não posso de forma alguma concordar. Imaginar mesmo em
ponto de dúvida que eu penso que um museu é apenas colecionar objetos, só não é
ofensa porque não tenho vontade de ficar ofendido. Achar que o SPAN é sentimental,
pra se defender de não querer reorganizar o Museu Nacional, não pode provir da
verdadeira Heloisa Alberto Torres. O SPAN é um organismo de todo em todo cultural
com forte base econômica. Achar isso sentimental é desvirtuar a própria
essencialidade da coisa. Mais outro argumento curioso: D. Heloísa ao entender
Etnografia, pelas suas próprias especializações, só pensa em “etnografia ameríndia”,
ao passo que eu, pelas minhas especializações, entendo principalmente “etnografia
popular”. Se não me engano, no meu trabalho mostrei que a etnografia ameríndia,
podia estar ajuntada à arqueologia. E tudo isso não fará um desgraçado mal que fique
no Museu de História Natural que é o M. Nacional. Mas a Etnografia do nosso povo
brasileiro, tem creio que só uma sala no M. Nacional, e essa é a parte pra mim mais
importante, os Ameríndios pertencendo principalmente à ciência pura, e o povo
brasileiro em seus costumes e usanças e tradições folclóricas, pertencendo à própria
vida imediata, ativa e intrínseca do Brasil. Não dei, nem me cabia dar, a organização
interna e detalhada de cada museu, mas imagine um museu etnográfico fornecendo
modelos de decoração, processos de fazer rendas, chapéus de palha etc. músicas e
danças etc., generalizando, entradicionalizando, protegendo contra o progresso
mortífero etc. Não é só expor (a coisa me está doendo...) mas agir. Minha biblioteca
infantil tem um coral que está cantando a Nau Catarineta com músicas nordestinas;
minha Discoteca está gravando Carlos Gomes, e filmou danças populares de Mogi das
Cruzes. Minha Documentação Social está com filmes tirados especialmente entre
índios de Mato Grosso, pra nós. Minha divisão de Expansão Cultural está com um
curso prático de etnografia, ensinando como se colhe documentos. E assim é. E cansei.

Um abraço do

Mário (ANDRADE, 1981, p. 60-61).

***

Rio, 1º de agosto de 1936.

Mario.

[...]

Achei procedente tudo quanto Você me escreveu a respeito da carta de dona Heloísa.
Sucedeu até que alguns dos seus argumentos já tinham sido invocados por mim,
quando discuti com ela a questão. Mas eu estava muito incapaz naquele dia e oprimido
por uma dificuldade de expressão maior ainda que a do costume. Fui seduzido com
facilidade, embora [tivesse] saído ainda convencido das vantagens que resultariam da
adoção do ponto de vista que Você sustentara. Como, porém, me pareceu impraticável
organizar um museu de arqueologia, etnografia e arte popular com a oposição
intransigente de todo o pessoal do Museu Nacional, tive de me conformar com a
inclusão apenas de um dispositivo no projeto prevendo para o futuro a realização do
empreendimento, a fim de contar assim com a cooperação de dona Heloísa, quer para
o tombamento do material reunido na Quinta da Boa Vista, quer para o tombamento
geral.
32

De resto, confesso a Você que fiquei intimidado diante da responsabilidade de


desmembrar do museu existente as coleções que nos interessavam. Aquilo, tal como
está organizado, tem sempre produzido alguma coisa de apreciável. É uma instituição
centenária que merece ser tratada com uma consideração especial. Se a gente insistisse
em reforma-la agora de acordo com seu projeto, seria tido, por dona Heloísa e pelos
especialistas mais capazes de lá, como inimigo. Com que elementos poderíamos
contar para suprir a falta de cooperação do pessoal melhor do Museu Nacional? Pelo
menos, graças ao adiamento da reforma, captamos as boas disposições da própria dona
Heloísa, cuja colaboração é preciosa. Mais para adiante, veremos o que será possível
conseguir naquele sentido.

[...]

Um abraço do

Rodrigo (ANDRADE, 1987, p. 120-121).


33

CAPÍTULO 2: POR UMA HISTÓRIA TRANSNACIONAL DA MODERNIDADE

“A distância do sujeito com relação ao objeto, que é o pressuposto da abstração, está


fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do
dominado” (ADORNO e HORKHEIMER, [1947], p. 9).

O termo “cultura” e seus derivados aparecem poucas vezes nas cartas transcritas no
capítulo anterior: “organizações culturais” e “monumentos culturais” na carta de Heloisa
Alberto Torres; “cultural”, duas vezes, na carta de Mário de Andrade (“O SPAN é um
organismo de todo em todo cultural com forte base econômica” e “divisão de Expansão
Cultural”); e nenhuma vez no trecho selecionado da carta de Rodrigo Melo Franco de Andrade.
No entanto, com um pouco mais de atenção é possível extrair dessas mesmas cartas o motivo
pelo qual o conceito de cultura se torna significativo. Com efeito, veremos que ele pode nos
ajudar a compreender importantes rearticulações relacionais transnacionais que se processaram
neste momento coincidente com a elaboração dos contornos do SPHAN (nessas cartas ainda
sem o “H” de histórico).
Mário de Andrade expõe, na ressentida carta enviada ao futuro diretor do SPHAN,
o que parece ser um mal-entendido: “mais outro argumento curioso: D. Heloísa ao entender
Etnografia, pelas suas próprias especializações, só pensa em ‘etnografia ameríndia’, ao passo
que eu, pelas minhas especializações, entendo principalmente ‘etnografia popular”. O conceito
de “etnografia” define de modo abrangente as regras do embate travado entre Mário de Andrade
e Heloisa Alberto Torres: embora haja um evidente desacordo sobre o que deve ser etnografado,
é plausível imaginar, dado o contexto da disputa, que estava claro para ambos que “etnografar”
significava, de maneira geral, definir os elementos que caracterizam as especificidades de povos
não exatamente idênticos àquilo que se entendia ser a civilização ocidental. Em outras palavras,
tratava-se já de descrever, colecionar e compreender culturas numa complexa relação com o
ponto de vista da civilização.
É muito interessante também que, no momento em que os agentes do Estado
brasileiro decidem que não é mais possível adiar a criação de um órgão governamental
incumbido da defesa do patrimônio histórico e artístico nacional, sua discussão acabasse sendo
feita em termos etnográficos. A urgência da criação de um Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional9 e os atores envolvidos nessa discussão já indicam a significância, no

9
O golpe que conduziu ao Estado Novo ocorreu no dia 10 de novembro de 1937, e o Decreto-Lei nº 25 foi
promulgado no dia 30 do mesmo mês.
34

período, da descrição, do colecionamento e da compreensão da cultura nacional brasileira,


como forma de tornar a história nacional digna de compor a história universal. Não será difícil
perceber que se trava aí uma disputa pelo significado da própria modernidade nacional por
meio da invenção de sua cultura.
Mas essas cartas suscitam uma série de questões que não podem ser facilmente
respondidas. Por que Mário de Andrade e Heloisa Alberto Torres e não outros intelectuais
foram envolvidos na criação do SPHAN? Qual é exatamente a diferença de concepções
etnográficas (e, portanto, de culturas cujo conhecimento se torna significativo em suas relações
com a civilização) entre os dois? Por que Rodrigo Melo Franco de Andrade, não obstante tenha
dado razão a Mário de Andrade, preferiu satisfazer a vontade expressa por Heloisa Alberto
Torres? (Estaria o futuro diretor do SPHAN apenas arrumando uma desculpa qualquer para
continuar em bons termos com Mário de Andrade?) Estes são apenas alguns dos problemas que
essa troca epistolar, a princípio aparentemente corriqueira, pode trazer à tona.
Se é a modernidade nacional por meio da definição do que é a sua cultura que está
em jogo nessa disputa, fica claro, por outro lado, que ela envolve um complexo contexto
vinculado a redes de relacionamento interpessoal e institucional, a tradições etnográficas e a
projetos de futuro para a nação. Mas esse mesmo conceito de cultura poderia nos ajudar a
perceber um projeto de modernização nacional mais amplo no meio desse confuso
entrecruzamento de trajetórias? Ele nos permitiria compreender melhor as transformações
políticas e sociais que estavam acontecendo neste período no Brasil? Essas transformações
estavam realmente restritas ao recorte em grande medida arbitrário da “nação”?
Logo ficou claro que todas essas perguntas não poderiam ser respondidas sem que
eu primeiro considerasse o que tem sido discutido no âmbito da “história dos conceitos” ou
“história conceitual”, pois o que significa, para os fins deste estudo, afirmar que “cultura
nacional” é um “conceito”?

2.1. O CONCEITO COMO UM HÍBRIDO

2.1.1. A história dos conceitos

É possível abordar o conceito como um artefato linguístico capaz de produzir


subjetividades e objetividades. Essa potencialidade pode ser a apontada a partir de alguns
35

estudos que se debruçam sobre a “história conceitual” ou “história dos conceitos”, ou ainda, no
original, em alemão, “Begriffsgeschichte”, que já é bastante conhecida entre nós.10
De maneira bastante sintética, é possível afirmar que a história dos conceitos
inaugurada por Reinhart Koselleck busca “apreender os sentidos das experiências relevantes
registradas linguisticamente” a partir de um “horizonte textual” (KIRSCHNER, 2007, p. 58).
A exigência de compreender os usos de um conceito nos contextos específicos em que ele foi
empregado promoveu, já na década de 1950, uma crítica à “história do espírito” hegeliana e à
história das ideias de Dilthey, por meio da qual o grupo liderado por Koselleck buscou atacar o
anacronismo da compreensão descontextualizada de conceitos e a “insistência metafísica da
essencialidade das ideias” (JASMIN, 2005, p. 31).
Até neste ponto a história conceitual não parece se diferenciar da história intelectual
contextualista da “escola de Cambridge”.11 No entanto Koselleck consegue ir um tanto além do
contextualismo anglo-saxão.12 Em primeiro lugar, é preciso chamar a atenção para o fato de
que a história conceitual não se refere exclusivamente a discursos ou linguagens, mas enfatiza
os conceitos em sua historicidade. Segundo Koselleck,

a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método especializado da crítica de


fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vista social e
político e que analisa com particular empenho expressões fundamentais de conteúdo
social ou político. É evidente que uma análise histórica dos respectivos conceitos deve
remeter não só à história da língua, mas também a dados da história social, pois toda
semântica se relaciona a conteúdos que ultrapassam a dimensão linguística.
(KOSELLECK, 2006, p. 103)

Quando Koselleck afirma que a história conceitual deve remeter à história da língua
e à história social, ele está se referindo a uma relação bastante complexa entre língua e realidade
social, entre dogmata e pragmata, com implicações para uma percepção ampliada da
historicidade dos conceitos. Em primeiro lugar, enquanto os contextualistas de Cambridge

10
Na mesma época em que Melvin Richter começava a divulgar a Begriffsgeschichte nos EUA (RICHTER, 1986,
1987 e 1995, por exemplo), saía no Brasil um artigo que se tornaria leitura obrigatória entre nós a respeito da
história da historiografia brasileira (GUIMARÃES, 1988), e que já lançava mão das discussões teórico-
metodológicas da história conceitual ao investigar as relações entre o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) e os projetos de construção da nação no Império. Para uma discussão mais pormenorizada a respeito das
contribuições da história conceitual, cf. JASMIN, 2005, KIRSCHNER, 2007, BENTIVOGLIO, 2010, e ASSIS e
MATA, 2013. Esses dois últimos historiadores afirmam que “meio século depois de iniciados os primeiros grandes
empreendimentos na Alemanha, não há quem ignore a grandiosidade dos resultados obtidos e a virtual
globalização desse gênero de pesquisa histórica e de historiografia” (p. 9).
11
Para uma inevitável comparação entre esses recortes disciplinares, cf. JASMIN, 2005, KIRSCHNER, 2007 e
BENTIVOGLIO, 2010.
12
Um outro interessante debate travado no interior do próprio mundo anglo-saxão, que também põe em questão
os métodos do contextualismo de Cambridge, pode ser encontrado em APPLEBY, HUNT e JACOB, 1994,
HARLAN, 2000, e LACAPRA, 1998.
36

apostam na perspectiva sincrônica de análise, para Kosellecek “é apenas por meio da


perspectiva diacrônica que se pode avaliar a duração e o impacto de um conceito social ou
político, assim como das suas respectivas estruturas” (KOSELLECK, 2006, p. 105). Os
conceitos relevantes para a história conceitual possuem uma “relativa estabilidade da
linguagem” (KIRSCHNER, 2007, p. 50), o que leva a uma não necessária coincidência entre
as estruturas sociais e suas transformações e os conceitos empregados para designá-las ou
propor-lhes transformações. Por isso,

[...] a história dos conceitos deve alternar entre a abordagem semasiológica e


onomasiológica. Isso significa que ela deve registrar as diferentes designações para
os fatos (idênticos?), de forma que lhe seja possível explicar o processo de cunhagem
dessas designações em conceito. [...] estabelece-se uma tensão entre conceito e fatos,
tensão que ora neutraliza, ora parece novamente irromper à superfície, ora parece ser
irremediavelmente insolúvel. É possível registrar continuamente a existência de um
hiato entre fatos sociais e o uso linguístico a ele associado. As alterações de sentido
linguístico e as alterações dos fatos, as alterações das situações políticas e históricas
e o impulso para a criação de neologismos que a elas correspondam relacionam-se
entre si das mais diversas maneiras. (KOSELLECK, 2006, p. 111)

Do ponto de vista da história conceitual, o conceito surge como instrumento


complementar e necessário para a interpretação histórica (BENTIVOGLIO, 2010, p. 117). Ele
passa a ser entendido como uma ferramenta fundamental por meio da qual os seres humanos se
orientam num tempo objetificado e constroem suas identidades subjetivas, de modo que daí é
que advém a sua complexa temporalidade: “os momentos de duração, alteração e futuridade
contidos em uma situação política concreta são apreendidos por sua realização no nível
linguístico” (KOSELLECK, 2006, p. 101).
Além disso, os significados de um conceito num dado recorte sincrônico
dificilmente são unívocos, ainda que no interior de um mesmo grupo social (BENTIVOGLIO,
2010, p. 115). Segundo Julio Bentivoglio, “na medida em que concentra experiências históricas
e articula redes de sentido, o conceito assume um caráter essencialmente plural”
(BENTIVOGLIO, 2010, p. 122). Koselleck trata desse aspecto em termos de um verdadeiro
embate: “A batalha semântica para definir, manter ou impor posições políticas e sociais em
virtude das definições está presente, sem dúvida, em todas as épocas de crise registradas em
fontes escritas” (KOSELLECK, 2006, p. 102). A história dos conceitos, portanto, “ultrapassa a
alternativa estreita entre a diacronia ou sincronia, passando a remeter à possibilidade de
simultaneidade da não-simultaneidade que pode estar contida num conceito” (KOSELLECK,
2006, p. 115).
37

Desse modo, a história dos conceitos alcançaria os problemas fundamentais da


relação entre subjetivação histórica e linguagem objetivada e da constituição da historicidade
por meio da “interconexão de vivências isoladas e cujo desenho não segue nenhum desejo ou
projeto definível a priori” (BENTIVOGLIO, 2010, p. 121). A história conceitual daria conta,
portanto, da mudança social por meio dos conflitos concretos que consegue captar na
linguagem. Procedendo dessa forma, abandona qualquer concepção de “sentido histórico a
priori”, na medida em que essa historicidade partilhada seria fruto da própria atividade
significativa e criativa das pessoas em sua vida social, numa relação dialética com as estruturas
históricas herdadas (“campo de experiências”) e as perspectivas de sua transformação
(“horizontes de expectativas”).
Esse tipo de abordagem permitiu, com efeito, avanços consideráveis no que diz
respeito à compreensão das transformações pelas quais passou a sociedade ocidental com a
emergência da “experiência moderna do tempo”.13 No entanto, as reflexões de Bruno Latour
(1994) a respeito daquilo que ele chama de “Constituição moderna” nos impulsiona a lançar
dúvidas a respeito do status ontológico dos próprios conceitos, em especial no que diz respeito
ao seu papel de produtor de sujeitos e objetos da modernidade.
Quando Koselleck (2006) pensa nos conceitos modernos, sua reflexão parte, como
ele mesmo atesta, de uma tradição filosófica que remonta ao estoico Epiteto, e que se questiona
sobre a relação entre as palavras e as coisas. O pressuposto aqui é, portanto, que as palavras
não são coisas. Koselleck explora esse problema a partir das complexas relações que ele
observa entre a história dos conceitos e a história social. Um conceito pode servir como a
“realização no nível linguístico” que permite apreender “os momentos de duração, alteração e
futuridade contidos numa situação política concreta” (KOSELLECK, 2006, p. 101). Há,
portanto, um “nível linguístico” e um “nível concreto”, mesmo considerando que “toda
semântica se relaciona a conteúdos que ultrapassam a dimensão linguística (KOSELLECK,
2006, p. 103).
O próprio fato de Koselleck afirmar com segurança que a “história dos conceitos”
se constitui como disciplina autônoma seja em relação à semântica seja em relação à história
social demonstra a possibilidade de se tomar o conceito como um instrumento dotado de

13
Koselleck forjou instrumentos bastante eficazes para compreender as transformações profundas ocorridas no
mundo ocidental entre os séculos XVIII e XIX, e a estratégia que desenvolveu com os seus colaboradores foi
analisar as alterações semasiológicas e onomasiológicas de conceitos políticos fundamentais entre as décadas de
1750 e 1850, recorte que passa a ser percebido como um “tempo de aceleração”. Segundo Bentivoglio, “trata-se
de um momento de alteração radical da consciência histórica, expressado, por exemplo, na querela entre antigos e
modernos, que reavaliou a tradição do pensamento social e político e urdiu novos projetos e expectativas em
relação ao futuro” (BENTIVOGLIO, 2010, p. 124).
38

características próprias, relacionadas à sua diferença em relação a simples palavras,


diferenciando-o, assim, de outras ordens de coisas. O conceito, em si, não é tomado por
Koselleck como uma coisa, mas como algo que permite ao sujeito do conhecimento acessar a
realidade concreta das estruturas sociais em seus momentos de transformação. No entanto, o
conceito é, ele próprio, a ferramenta política que possibilita aos sujeitos históricos disputar
futuros ainda não experimentados, mas passíveis, por meio dos próprios conceitos, de
articulação com alguma experiência mais concreta do passado. A prática da conceitualização é,
portanto, a própria condição de rearticulação das estruturas sociais ou, melhor dizendo, das
relações de poder. Daí o significado da disputa por essa coisa, por esse recurso capaz de
construir novos arranjos sociais.
Não parece, portanto, que os conceitos estão realmente num outro “nível”. Na
verdade, eles estão entre nós, participando de nossas vidas de formas que não parecem claras o
suficiente. Não há, propriamente, uma separação clara entre “nós”, os sujeitos, e “eles”, os
conceitos. Os conceitos são coisas que nos mantém conectados àquilo que passamos a perceber
como “objetos”, ou seja, “naturezas” entendidas como algo diferente de uma subjetividade.
Adorno e Horkheimer já haviam notado a este respeito que

Semelhante à coisa, à ferramenta material – que pegamos e conservamos em


diferentes situações como a mesma, destacando assim o mundo como o caótico,
multifário, disparatado do conhecido, uno, idêntico – o conceito é a ferramenta ideal
que se encaixa nas coisas pelo lado por onde se pode pegá-las. Pois o pensamento se
torna ilusório sempre que tenta renegar sua função separadora, de distanciamento e
objectivação. (ADORNO e HORKHEIMER, [1947], p. 21)

O conceito de “nação”, por exemplo, nos produz como indivíduos pertencentes a


uma dada coletividade e, ao mesmo tempo, produz a própria essência da nacionalidade,
percebida como algo concreto, objetivo ou natural. O conceito de nação define uma futuridade
objetiva possível a partir de uma experiência do passado, também objetificada e entendida como
“nacional”, e ambos os tempos se conectam por meio de outros conceitos, como os de “processo
civilizacional”, “progresso”, “modernização” ou “desenvolvimento”; mas ao mesmo tempo em
que se define a objetividade nacional, definem-se também as subjetividades que compõem essa
mesma nação, ou seja, os sujeitos que vão levar adiante a tarefa de trazer o futuro-nacional para
o presente-ainda-não-plenamente-nacional. Um outro exemplo: nem o próprio Koselleck pode
escapar desse tipo de produtividade, pois ao se pôr em contato com o conceito de “história dos
conceitos” ele próprio se transforma, aos poucos, no sujeito do conhecimento que irá
impulsionar uma nova prática científica, ou seja, uma historiografia renovada, percebida como
39

realidade futura objetiva, ou melhor, como a época de ouro que aguarda ansiosamente os
diligentes sujeitos da comunidade dos historiadores dos conceitos. Percebe-se assim que talvez
o próprio Koselleck não tenha conseguido controlar essa criatura que ele pretendeu domesticar
em seu laboratório historiográfico.

2.1.2. A história dos híbridos

Essa reaproximação em relação aos conceitos, até então alçados a um nível que nos
parecia distante de nós mesmos, torna-se perceptível a partir da abertura ontológica proposta
por Bruno Latour em Jamais fomos modernos (1994). Isso significa nos lembrarmos de que a
epistemologia moderna, isto é, nossa ontologia específica que pretendemos tornar universal,
nos ensinou a separar muito claramente os sujeitos dos objetos. Existem as coisas que pensam,
e que, logo, existem como sujeitos, e as coisas que não pensam, e que, portanto, não existem
como nós, sujeitos, mas como objetos. Todavia, nem sempre as coisas foram assim. Para muitos
grupos humanos, no tempo e no espaço, essa divisão entre seres pensantes e seres não pensantes,
entre sujeitos e objetos, não segue os mesmos critérios. Pode-se dizer que essa nossa forma
ocidental de separar as coisas entre sujeitos e objetos foi uma invenção consolidada com aquilo
que chamamos de epistemologia moderna, e que está diretamente atrelada às relações de poder
as quais, coincidindo com a expansão comercial do mundo europeu, passaram, a partir de então,
a se impor por sobre parcelas cada vez mais vastas do globo. Definir o que é sujeito e o que é
objeto significa também definir o que domina e o que é dominado. Não por acaso o Iluminismo
se define por um ideal de domínio, o domínio do sujeito do conhecimento por sobre o seu
objeto, a “natureza”. Desde então os sujeitos do conhecimento têm se proliferado na mesma
medida em que as naturezas: novos animais, plantas e minerais, mas também novas culturas e
estruturas sociais.
O que Latour nos ajuda a perceber é que entre um sujeito e um objeto existe sempre
aquilo que ele chama de híbrido, misto ou quase-objeto, conectando os polos subjetivo e
objetivo em uma “rede sociotécnica”, ainda que, para nós, “modernos”, a sua existência tenha
se tornado invisível. O que desejo defender aqui é que os conceitos também são um desses
híbridos. Na verdade, os conceitos, em especial os de cultura e civilização, tiveram um papel
central na história transnacional da modernidade, ou seja, na disseminação tendencialmente
global de relações de dominação baseadas na produção de determinados tipos de sujeitos e de
objetos. Conceitos como o de civilização e cultura produziram configurações ideológicas
específicas em que determinadas pessoas puderam emergir como sujeitos e outras como
40

objetos, umas como produtoras ativas e outras como trabalhadoras passivas, umas como agentes
da modernização e outras como meras recebedoras de suas instruções.
É importante, portanto, tentar indicar aqui com clareza o que pretendo definir como
híbrido. Nesta tese eu parto do princípio de que a transformação mais substancial trazida pela
modernidade foi a ideia de cisão entre “sujeito” e “objeto” do conhecimento. Hans Ulrich
Gumbrecht descreve essa mudança nos seguintes termos:

O deslocamento central rumo à modernidade, por conseguinte, está no fato de o


homem ver a si mesmo ocupando o papel do sujeito da produção de saber (o qual, no
contexto da teologia protestante, muda o status dos sacramentos para o de meros atos
de comemoração). Em vez de ser uma parte do mundo, o sujeito moderno vê a si
mesmo como excêntrico a ele, e, em vez de se definir como unidade de espírito e
corpo, o sujeito – ao menos o sujeito como observador excêntrico e produtor de saber
– pretende ser puramente espiritual e do gênero neutro. Esse eixo sujeito/objeto
(horizontal), o confronto entre o sujeito espiritual e um mundo de objetos (que inclui
o corpo do sujeito), é a primeira precondição estrutural do Início da Modernidade. Sua
segunda precondição está na ideia de um movimento – vertical – mediante o qual o
sujeito lê ou interpreta o mundo dos objetos. Penetrando o mundo dos objetos como
uma superfície, decifrando seus elementos como significantes e dispensando-os como
pura materialidade assim que lhes é atribuído um sentido, o sujeito crê atingir a
profundidade espiritual do significado, i.e., a verdade última do mundo.
(GUMBRECHT, 1998, p. 12)

Como o “sujeito” moderno logo passou a observar a si próprio como um


“observador de segunda ordem”, isso teria gerado já no início do século XIX uma crise de
representatibilidade, pois essa autorreflexão tem a capacidade de mostrar que “o conteúdo de
toda observação depende de sua posição particular” (GUMBRECHT, 1998, p. 14). A filosofia
da história surge então como forma de ligar esse sujeito ao “tempo histórico”, que então passa
a ser o “agente absoluto da mudança”. É o reconhecimento, pelo sujeito, das leis inexoráveis
do progresso, que possibilita uma inter-relação entre tempo e ação e “cria a impressão de que a
humanidade é capaz de ‘fazer’ a sua própria história” (GUMBRECHT, 1998, p. 16). É assim
que a ação do sujeito do conhecimento sobre os objetos naturais que ele se vê destinado a
dominar se estabelece como condição de progresso da “civilização” ou de uma “cultura”.
A ideia de uma separação metafísica entre sujeito e objeto já havia sido
problematizada por Norbert Elias (1994). O sociólogo historiciza “a imagem do indivíduo como
ser inteiramente livre, independente, uma ‘personalidade fechada’ que é ‘por dentro’
inteiramente autossuficiente e separada de todos os demais”, algo que seria fruto de uma “longa
tradição no desenvolvimento das sociedades europeias” e que teria entrado em cena na filosofia
clássica como “sujeito epistemológico” (ELIAS, 1994, p. 237). Elias então questiona-se a
respeito desse homo philosophicus:
41

A natureza dessa parede em si, porém, quase nunca é examinada e nunca é


devidamente explicada. Será o corpo o vaso que contém fechado em si o ser
verdadeiro? Será a pele a fronteira entre o “interno” e o “externo”? O que, no homem,
é a cápsula e o que é o conteúdo? A experiência do “interno” e do “externo” parecem
tão autoevidentes que essas questões raramente são colocadas; aparentemente não
requerem exame ulterior. O indivíduo se satisfaz com a metáfora espacial de “interno”
e “externo”, mas não faz nenhuma tentativa séria de localizar o “interior” no espaço.
(ELIAS, 1994, p. 238)

A crítica ao esclarecimento proposta por Adorno e Horkheimer segue o mesmo


caminho, tencionando, no entanto, libertar o conhecimento do “emaranhado que o prende à
dominação cega” (ADORNO e HORKHEIMER, [1947], p. 4).14 A racionalidade que se funda
naquele “sujeito epistemológico” tende, para eles, à autodestruição pelo fato de esconder a sua
verdade fundamental, ou seja, a sua existência intrínseca à dominação capitalista:

O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas que ele tem
em mente é patriarcal: o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a
natureza desencantada. O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na
escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo. Do
mesmo modo que está a serviço de todos os fins da economia burguesa na fábrica e
no campo de batalha, assim também está à disposição dos empresários, não importa
sua origem. Os reis não controlam a técnica mais directamente do que os
comerciantes: ela é tão democrática quanto o sistema económico com o qual se
desenvolve. A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem
o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital.
(ADORNO e HORKHEIMER, [1947], p. 5)

O caráter mitológico do esclarecimento reside no fato de que ele faz crer que o saber
técnico é a única forma de conhecimento legítima. O desconhecido é esconjurado por um saber
cegamente orientado para a produção. Uma vez que o saber técnico é aquele que produz,
sempre, domínio (da natureza, em geral, e dos seres humanos, em particular), o seu
desenvolvimento significa, então, desenvolvimento das relações assimétricas de poder,
representando o polo dominante aqueles que detêm o saber técnico. As instituições científicas
e acadêmicas modernas, apoiadas no Estado e no capital, procuram reduzir todos os objetos que
conseguem alcançar à calculabilidade, à previsibilidade, à tipificação e à generalização,
ampliando, cada vez mais, o circuito da produção, da eficiência e da lucratividade. Nada deve
escapar à racionalidade moderna: “o esclarecimento é totalitário” (ADORNO e
HORKHEIMER, [1947], p. 6), e nisso não se diferenciam as perspectivas indutivas ou
dedutivas, empiristas ou racionalistas. Poderíamos ir ainda mais longe a partir de uma

14
A numeração das páginas segue a versão disponível em
https://nupese.fe.ufg.br/up/208/o/fil_dialetica_esclarec.pdf.
42

perspectiva mais foucaultiana: para além de “tornar o heterogêneo comparável, reduzindo-o a


grandezas abstratas” (ADORNO e HORKHEIMER, [1947], p. 7), o saber moderno teria ainda
o poder de criar subjetividades, de produzir indivíduos autodisciplinados mais eficientes e
controlar desvios individualmente imputáveis.
Esses são, no entanto, diagnósticos pensados a partir do impacto imediato da
Segunda Guerra Mundial. A barbárie conduzida pelas ideologias modernas pareceu, depois
disso, um desvio de curso, uma aberração passível de conserto. As conquistas tecnológicas que
se sucederam a partir da década de 1950, impulsionadas pela relação agonística entre o mundo
da democracia liberal e o do socialismo, lançou novamente os povos do globo, agora numa
escala não conhecida antes da guerra, nas sendas da ideia de progresso. É certo que um conceito
análogo teria que o substituir na promessa de liberar o seu predecessor de todo o sangue e
destruição que ele carregava consigo: o termo desenvolvimento dava uma impressão de maior
frescor, e o futuro que prometia parecia livre do barbarismo inevitavelmente atrelado à ideia de
progresso. Aos países “subdesenvolvidos” bastava apenas apostar numa receita dentre as
opções liberal ou socialista, ainda que essa escolha (e seus meios termos possíveis) estivesse
mais condicionada pela menor ameaça geopolítica de uma ou de outra potência global. A noção
de “híbrido” que desejo apresentar nesta seção emerge da percepção desses mesmos problemas,
não superados depois da queda do Muro de Berlim em 1989.
Para Bruno Latour (1994), aconteceu algo depois de 1989 que teria permitido,
enfim, a antropologização do mundo moderno, pois, até então, algo separava nitidamente a
“civilização” moderna e as “culturas” não-modernas, permitindo assim a produção de
etnografias das últimas pelas primeiras. Junto à queda do “muro da vergonha” teríamos tomado
consciência do “desaparecimento da natureza ilimitada”: “de fato, os socialismos destruíram ao
mesmo tempo seus povos e seus ecossistemas, enquanto que os do Ocidente setentrional
puderam salvar seus povos e algumas de suas paisagens destruindo o resto do mundo e jogando
os outros povos na miséria” (LATOUR, 1994, p. 14). Disso adviria uma “crise da
modernidade”:

[…] nós, modernos, aparentemente perdemos um pouco de confiança em nós mesmos.


Teria sido melhor não tentar acabar com a exploração do homem pelo homem? Teria
sido melhor não tentar tornar-se mestre e dono da natureza? Nossas mais altas virtudes
foram colocadas a serviço desta tarefa dupla, uma do lado da política, outra do lado
das ciências e tecnologias. E no entanto nós voltaríamos tranquilamente para nossa
juventude entusiasta e comportada, da mesma forma como os jovens alemães se
voltam para seus pais grisalhos: “A que ordens criminosas estávamos obedecendo?”
“Poderemos dizer que não sabíamos?”. (LATOUR, 1994, p. 14)
43

Diante dessa constatação restariam a revolta infrutífera dos anti-modernos; o


“ceticismo mal resolvido” dos pós-modernos, que então “ficam suspensos entre a dúvida e a
crença, enquanto esperam o fim do milênio” (LATOUR, 1994, p. 14-15); e os que continuam
decididamente modernos, isto é, os “que rejeitam o obscurantismo ecológico ou o
obscurantismo antissocialista, e que não ficam satisfeitos com o ceticismo dos pós-modernos”
(LATOUR, 1994, p. 15). Latour então toma coragem e se pergunta: “E se jamais tivermos sido
modernos?”.
Para o filósofo francês,

[…] a palavra “moderno” designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes


que, para permanecerem eficazes, devem permanecer distintas, mas que recentemente
deixaram de sê-lo. O primeiro conjunto de práticas cria, por “tradução”, misturas entre
gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria,
por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de
um lado, e a dos não-humanos, de outro. Sem o primeiro conjunto, as práticas de
purificação seriam vazias ou supérfluas. Sem o segundo, o trabalho da tradução seria
freado, limitado ou mesmo interditado. O primeiro conjunto corresponde àquilo que
chamei de redes, o segundo ao que chamei de crítica. O primeiro, por exemplo,
conectaria em uma cadeia contínua a química da alta atmosfera, as estratégias
científicas e industriais, as preocupações dos chefes de Estado, as angústias dos
ecologistas; o segundo estabeleceria uma partição entre um mundo natural que sempre
esteve aqui, uma sociedade com interesses e questões previsíveis e estáveis, e um
discurso independente tanto da referência quanto da sociedade. (LATOUR, 1994, p.
16)

A liberação das forças produtivas da época moderna teria sido possibilitada,


portanto, por essa separação entre “poderes naturais” e “poderes políticos”, ou, como eu tenho
insistido, entre objetos e sujeitos. Ao longo de toda a modernidade essa “constituição” que
separa, de um lado, a “ciência”, e, de outro, a “política”, teria sido aperfeiçoada a fim de que os
“híbridos” daí produzidos não ameaçassem a separação artificial que lhes deram vida. Mas
como assim, híbridos? É que o campo da ciência e o campo da política na verdade nunca
estiveram separados: um armamento mais eficaz, produzido a partir de experimentos
laboratoriais e saberes técnicos, também sustenta o poderio de um governo sobre outro; esse
governo, por sua vez, garante as condições institucionais para que os cientistas possam
continuar realizando seus experimentos e produzindo seus saberes técnicos. Mas tudo é
apresentado como se coubesse à ciência a “representação dos não humanos”, sendo-lhe proibida
“qualquer possibilidade de apelo à política”, e como se, ao mesmo tempo, coubesse à política,
a partir do contrato social que dá vida ao “Leviatã”, “a representação dos cidadãos”, sendo-lhe
proibida “qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e pela
tecnologia” (LATOUR, 1994, p. 33-34). O poder político de um fuzil, a finalidade da técnica
44

nele embutida, portanto, trairia, assim, tanto a pretensão de objetividade científica quanto a
pretensão de livre contrato entre os cidadãos. Para continuar produzindo esses híbridos,
condição para a dominação tanto de coisas quanto de humanos, as redes que fazem a ligação
entre um polo (o científico) e outro (o político) precisaram permanecer ocultas. Tem-se, com
isso, a ilusão de liberdade produzida pelos modernos:

O poder natural que os descendentes de Boyle definiram em oposição aos


descendentes de Hobbes, e que permite que os objetos mudos falem com o auxílio de
porta-vozes científicos fiéis e disciplinados, oferece uma garantia capital: não são os
homens que fazem a natureza, ela existe desde sempre e sempre esteve presente, tudo
que fazemos é descobrir seus segredos. O poder político que os descendentes de
Hobbes definiram em oposição aos descendentes de Boyle faz com que diversos
cidadãos falem a uma só voz através da tradução/traição de um soberano, o qual diz
apenas aquilo que eles dizem. Este poder oferece uma garantia igualmente capital: são
os homens e apenas os homens que constroem a sociedade e que decidem livremente
acerca de seu destino. (LATOUR, 1994, p. 36)

Latour ainda mostra como a modernidade resolveu a questão de Deus, colocando-


o entre parênteses. Ao contrário dos povos pré-modernos, a modificação da ordem natural e da
ordem social não implica em problemas na ordem do divino. A modernidade reconheceu a
transcendência infinita de Deus mas o afastou para longe da ciência e da sociedade, fechando,
assim, um jogo de “checks and balances” por meio do qual nada mais poderia escapar do
domínio da modernidade: “Nós não criamos a natureza; nós criamos a sociedade; nós criamos
a natureza; nós não criamos a sociedade; nós não criamos nem uma nem outra, Deus criou tudo;
Deus não criou nada, nós criamos tudo” (LATOUR, 1994, p. 39). Os povos pré-modernos, no
entanto, ao reconhecerem e identificarem seus “mistos”, não conseguem modificar a ordem
natural ou social sem modificar a ordem divina, e, por isso, seu poder de produção de híbridos
fica limitado em face dos povos modernos. Diante disso, Latour se pergunta:

como as outras culturas-naturezas poderiam ter resistido? Tornaram-se, por contraste,


pré-modernas. Elas poderiam ter se oposto à natureza transcendente, ou à natureza
imanente, ou à sociedade criada pelas mãos dos homens, ou à sociedade
transcendente, ou ao Deus distante, ou ao Deus íntimo, mas como resistir à
combinação dos seis? (LATOUR, 1994, p. 43-44)

Resistiriam se pudessem ver isso em conjunto, mas a modernidade separou, em sua


constituição, uma coisa da outra. Isso explica, portanto, o poder irrefreável da modernidade e
sua rápida expansão espacial. Em síntese:

Os modernos, ao tornarem os mistos impensáveis, ao esvaziarem, varrerem,


limparem, purificarem a arena traçada no meio de suas três instâncias [i.e., humanos,
45

não-humanos e Deus], permitiram que a prática de mediação recombinasse todos os


monstros possíveis sem que eles tivessem um efeito qualquer sobre a construção da
sociedade, e nem mesmo contato com ela. Por mais estranhos que fossem, estes
monstros não criavam nenhum problema, uma vez que não existiam socialmente e
que suas consequências monstruosas permaneciam inimputáveis. Aquilo que os pré-
modernos sempre proibiram a si mesmos, nós podemos nos permitir, já que nunca há
uma correspondência direta entre a ordem social e a ordem natural. (LATOUR,
1994, p. 47)

A própria temporalidade moderna, sua ênfase na ideia de revolução, pode assim ser
repensada. Revolução é aquele momento no qual, por meio da ciência ou da política, nasceria
a verdadeira “civilização” (ou quando a “cultura nacional” enfim civilizar-se-ia). Trata-se do
marco cronológico que permitiria deixar irremediavelmente para trás um período “pré-
Constitucional”, ou seja, a barbárie de um mundo habitado por monstros que não são nem
sujeitos nem objetos. O progresso passa a ser percebido como irreversível por causa da
impressão criada pelo fluxo de coisas que substituem outras coisas e, principalmente, pelo
caráter transcendente das ciências e das técnicas, que não podem, portanto, ser controladas pela
vontade humana. A modernidade nega assim a liberdade de movimento possibilitada pela
seleção de elementos pertencentes a tempos diferentes: o que se tem é “uma seleção feita por
alguns poucos em nome de muitos” (LATOUR, 1994, p. 75). A “assimetria entre natureza e
cultura torna-se então uma assimetria entre passado e futuro”, e é por sobre essa temporalidade
que os modernos irão projetar a multiplicação dos quase-objetos e traçar, graças a eles, duas
séries de progressão: uma para cima, o progresso; outra para baixo, a decadência. (LATOUR,
p. 70-71).
A modernidade seria, portanto, apenas mais uma forma encontrada por uma “tribo”
específica no sentido de ordenar simbolicamente o mundo, separando os seres inanimados dos
animados – com a diferença de que essa “tribo” acabou, assim, encontrando a forma mais eficaz
de se expandir pelo mundo, constituindo uma infinidade de redes que estão exaurindo tanto os
recursos necessários para a sobrevivência da humanidade quanto os afetos necessários para a
produção de laços de cuidado mútuo. Seria necessário reconhecer as redes que ligam o que a
modernidade separou, o polo dos objetos e o polo dos sujeitos, a fim de, somente assim,
conviver em paz com os híbridos que agora fogem ao controle – se multiplicaram a tal ponto
que não podem mais ser colocados em “seus devidos lugares” pela Constituição moderna,
configurando, nos dizeres de Latour, um “Terceiro Estado” ou um “Império do Centro” – e
ameaçam a própria humanidade: “uma outra solução surge a partir do momento em que
seguimos ao mesmo tempo a Constituição e aquilo que ela proíbe ou permite, a partir do
momento em que estudamos de perto o trabalho de produção de híbridos e o trabalho de
46

eliminação destes mesmos híbridos. Percebemos então que jamais fomos modernos no sentido
da Constituição”. (LATOUR, 1994, p. 51)
Quando esta tese se propõe a ser nem uma história intelectual (uma história de
sujeitos) e nem uma história das ideias (uma história de objetos), o que pretendo é que ela
aponte para a necessidade de entender, portanto, os híbridos ou redes situados entre esses dois
polos. Os próprios conceitos de civilização e cultura podem ser considerados híbridos, situados
entre o polo do sujeito (antropólogos e agentes do patrimônio cultural) e do objeto (a nação).
Eles também são um desses híbridos que agora escapam ao controle dos modernos. Em vez de
definir quais objetos são verdadeiramente nacionais ou quais sujeitos teriam condições de
apreendê-los, é preciso voltar o olhar para essa relação entre uns e outros que constitui essa
temporalidade, a da nação moderna, já não mais controlável como se pretendia antes. Afinal, a
ideia de “Brasil, o país do futuro” não só não mais convence a todos como parece nos engolfar
num mar de lama em relação ao qual nos sentimos impotentes.
A ideia de uma “nação civilizada” ou de uma “cultura nacional” passa a ser vista,
então, como mais um produto da Constituição moderna – afinal, a ideia de “cultura” ocupa, na
antropologia ortodoxa,15 o mesmo lugar da natureza, isto é, um “outro” diferente de “nós” e
passível de observação –, como mais uma forma de ampliar as possibilidades de dominação
criadas pela separação entre objeto e sujeito. O “mistério” envolto na “construção da nação” e
do “Estado” se dissipa tão logo nos voltamos para as “redes de poder” ou “linhas de força”
concretas, que se situam entre os objetos e os sujeitos dessa construção e que se estendem do
local para o global (LATOUR, 1994, p. 120).

2.2. O PATRIMÔNIO CULTURAL COMO HÍBRIDO

O que hoje podemos classificar como o conjunto de práticas de tutela do patrimônio


cultural nacional também possui sua trajetória atrelada à própria emergência de uma abrangente
experiência moderna do tempo. É isso que indica, por exemplo, o deslocamento semântico que
Françoise Choay identificou, desde o século XVII, para o termo “monumento”. A princípio,
sua materialidade funcionaria como “um dispositivo fundamental no processo de
institucionalização das sociedades humanas” e teria por vocação ancorá-las “em um espaço
natural e cultural, e na dupla temporalidade dos humanos e da natureza” (CHOAY, 2011, p.

15
Por “antropologia ortodoxa” me refiro à antropologia produzida anteriormente às suas reflexões “pós-modernas”
ou “pós-sociais”.
47

12). Tratar-se-ia, portanto, de um “dispositivo memorial intencional” ligado a uma consciência


específica do tempo que sofreria uma transformação profunda com o advento da modernidade.
Em lugar do “monumento”, passaria então a ser valorizado o “monumento histórico”, que “não
se volta para a memória viva. Foi escolhido de um corpus de edifícios preexistentes, em razão
do seu valor para a história (seja de história factual, social, econômica ou política, de história
das técnicas ou de história da arte...) e/ou de seu valor estético” (CHOAY, 2011, p. 13-14). Fica
claro, portanto, que o novo “monumento histórico” participaria de uma metanarrativa da
modernização (mesmo que em suas versões particulares de “monumentos históricos nacionais”)
validando uma ideia de progresso civilizacional ou cultural por meio da referência à experiência
empírica do passado evidenciada na materialidade de edifícios e outras “antiguidades”.
Para Dominique Poulout o patrimônio também é um tipo de “suporte para uma
representação da civilização” (POULOT, 2009, p. 13). Mas ele não cumpriria o papel de mera
validação empírica de narrativas historiográficas. A sua materialidade se imporia pela
especificidade das formas de recepção das ficções narrativas por ele possibilitadas: “o
patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em certificar a identidade e em
afirmar valores, além da celebração de sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica”
(POULOT, 2009, p. 12). Poulot utiliza a categoria “patrimonialidade” a fim de dar conta dessa
“modalidade sensível de uma experiência do passado, articulada com uma organização do saber
– identificação, atribuição – capaz de autentificá-lo” (POULOT, 2009, p. 27-28). Isso significa
que o patrimônio, em sua contribuição para a legitimação do poder, participaria de uma
complexa rede de relações:

O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de seus objetos, pelo
valor estético – e, na maioria das vezes, documental, além de ilustrativo, inclusive de
reconhecimento sentimental – que lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto
específico, legal ou administrativo. Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade
política, ambos os aspectos sancionados pela opinião pública; essa dupla relação é que
lhe serve de suporte para uma representação da civilização, no cerne da interação
complexa das sensibilidades relativamente ao passado, de suas diversas apropriações
e da construção das identidades. (POULOT, 2009, p. 13)

De todo modo, Poulot também reconhece que o patrimônio “participa de uma


metáfora central de nossa modernidade, a dos ‘modelos de profundidade’ – de acordo com a
palavra forjada por Frederic Jameson – ou ainda a do paradigma indiciário, em conformidade
com o qualificativo adotado por Carlo Ginzburg” (POULOT, 2009, p. 17-18). Para não ser
obrigado a me desdobrar nas interpretações oferecidas por esses dois outros autores, bastaria
evocar um terceiro, e afirmar que, para Poulot, o patrimônio passaria a abrigar, a partir da
48

modernidade, uma experiência do tempo análoga àquela dos conceitos históricos, conforme
proposto por Reinhart Koselleck (2006). O próprio Poulot afirma que “os mecanismos de
aquisição, conservação e transmissão das obras, tratando-se da formação e da evolução do
corpus de monumentos protegidos ou das coleções de museus, envolvem um horizonte de
expectativa associado às representações de um grupo social, à sua sensibilidade a suas
experiências, próximas ou longínquas” (POULOT, 2009, p. 20, negrito meu). É importante,
contudo, destacar que Poulot nota, no caso da profundidade específica do patrimônio, um
deslocamento no sentido de “invocar a Posteridade em vez do Tempo” (POULOT, 2009, p. 18).
De fato, parece uma constante do patrimônio moderno o efeito de produção identitária por meio
do apelo ao cuidado com uma herança passada de geração para geração.
Tanto Choay quanto Poulout parecem partilhar a ideia de que, de qualquer forma,
o patrimônio permite “objetificar” culturas ou a própria civilização. José Reginaldo Santos
Gonçalves desenvolve esse aspecto com maestria. Segundo esse antropólogo, diversas
“modalidades de construção discursiva da ‘nação’ podem ser interpretadas como condições
para serem, ao mesmo tempo em que produtos ou efeitos de estratégias de ‘objetificação
cultural’, atualizadas por determinadas categorias e grupos de intelectuais em contextos
socioculturais específicos” (GONÇALVES, 2002, p. 14). Esse tipo de estratégia consiste numa
característica da cultura ocidental moderna segundo a qual se “inventa” uma natureza para uma
cultura (também inventada), como talvez diria Roy Wagner (2010). Em outras palavras,
pensando no caso da “nacionalidade”, seria como se essa ideia se referisse a algo concreto,
“objetivo”, como se ela própria fosse algo cuja “objetividade” fosse passível de ser captada por
um “sujeito do conhecimento”. A objetificação seria, na verdade, a produção discursiva dessa
ilusão. No que se refere especificamente à ideia de nação,

a coerência narrativa é concebida, ilusoriamente, como coerência factual. A nação é


transformada num distante objeto de desejo – o distante passado nacional, a identidade
nacional autêntica – contaminado pela coerência com que é narrado e,
simultaneamente, buscado. Incoerências e diferenças, indeterminação e contingência
são expulsas dos limites desse discurso nacional e concebidas como parte de nossa
vida cotidiana. A coerência e a integridade de que carecemos são projetadas numa
dimensão ausente, que é tornada presente pelas narrativas sobre a identidade e o
passado nacional. (GONÇALVES, 2002, p. 21)

Objetos de coleções museográficas, obras de arte e o patrimônio edificado são


imediatamente protegidos com o surgimento de uma “concepção moderna de história”, que
percebe o tempo como “um processo inexorável de destruição, em que valores, instituições e
objetos associados a uma ‘cultura’, ‘tradição’, ‘identidade’ ou ‘memória’ nacional tendem a se
49

perder” (GONÇALVES, 2002, p. 23). Esses artefatos referir-se-iam, portanto, a uma “unidade
imaginária”. No entanto, é apenas essa noção de “ruína”, de “fragmentação”, de “perda” que
permite a construção alegórica desse objeto ilusório do desejo, ou seja, a nação como totalidade.
A “perda” não é, assim, uma força externa, inexorável e fragmentadora de algo que possuiria
uma existência natural, objetiva, mas um componente interno do próprio discurso que produz
essa ilusão objetificadora. Segundo Gonçalves, essas alegorias produzidas pelo discurso
patrimonial “não somente expressam um desejo por um passado glorioso e autêntico; elas,
simultaneamente, expõem o seu desaparecimento. Estruturalmente, trata-se de uma forma de
representação que está baseada na própria desconstrução do seu referente” (GONÇALVES,
2002, p. 27).
Gonçalves, Poulot e Choay concebem, portanto, cada um a seu modo, o
“patrimônio” como um objeto produzido discursivamente por determinados sujeitos em função
de relações de poder produzidas pela ideologia moderna. Eu desejo sugerir, todavia, a
possibilidade de inserir um terceiro elemento no meio dessa relação, o que significaria pensar
em híbridos que participam da produção tanto do polo subjetivo quanto do objetivo dessa
equação. Seria possível, portanto, pensar esse patrimônio, tanto o artístico, o museal e o
edificado, por exemplo, também como híbridos?
Entre os sujeitos cujas identidades se construíram narrativamente nessas histórias e
o seu objeto (a própria nacionalidade) surgiram diversos híbridos, que são ao mesmo tempo um
tanto dos sujeitos que os criaram e outro tanto do objeto que eles ajudaram a produzir. Esses
híbridos, ou seja, desde o patrimônio etnográfico, artístico e arquitetônico até os conceitos que
designam uma suposta autenticidade cultural nacional, todos eles não são nem exatamente os
sujeitos e nem os objetos que eles ajudaram a constituir: eles estão, na verdade, situados no
meio do caminho entre ambos. Assim, por exemplo, as edificações barrocas tombadas pelo
SPHAN constituíram tanto uma concepção específica de nacionalidade – a de uma cultura
brasileira predominantemente branca, portuguesa e católica (RUBINO, 1996) – quanto os
sujeitos de sua construção, como deixa claro José Pessôa na apresentação que faz do grande
sujeito do patrimônio arquitetônico nacional que se tornou Lúcio Costa: “No caso de Lúcio,
aliás, é a saudável arquitetura do nosso passado barroco que converte o profissional acadêmico
de sucesso num militante da ‘nova arquitetura” (PESSÔA, 1999, p. 14).
As narrativas historiográficas sobre a trajetória das políticas públicas de tutela do
patrimônio cultural nacional continuam sendo excelentes documentos para flagrarmos esse
campo específico de separação entre os sujeitos e os objetos da modernidade nacional em
funcionamento. Como escrevi logo no início de um outro artigo, “a maior parte do que tem sido
50

narrado, até agora, sobre as políticas públicas de proteção do patrimônio cultural brasileiro
corresponde, direta ou indiretamente, a uma necessidade do próprio IPHAN, ao longo de sua
trajetória, de conferir sentido às suas práticas, criando e recriando identidades que delimitassem
formas seguras de ação” (LOWANDE, 2013a, p. 51).
Todavia, esse elo que vai do sujeito ao objeto, do(a) intelectual/funcionário(a) à
nação, desaparece dos arquivos e das narrativas historiográficas como tal. Na historiografia
produzida pelo órgão patrimonial só há lugar para a constituição de sujeitos exemplares (ou
contra-exemplares) e dos objetos que devem sofrer sua ação. No caso do exemplo de Lucio
Costa, o arquiteto é o sujeito, ao passo que a alma, ethos ou identidade da nação é o objeto. Os
híbridos em si mesmos não são audíveis: ou falam dos sujeitos que os criaram ou dos objetos
que permitem alcançar, mas nunca de suas próprias funções de produção de relações modernas
de subordinação.
Mas como acontece esse silenciamento? No caso do sujeito, os arquivos e as
narrativas historiográficas deles decorrentes fazem desaparecer as relações que precisam ser
estabelecidas com o polo do objeto por meio do híbrido para que o próprio sujeito possa
emergir. O sujeito é apresentado como a pessoa dotada de uma perspicácia inata para notar,
observar, separar e dar a ver o seu objeto (no nosso caso, a identidade nacional). A verdadeira
cultura nacional é algo que estava lá desde sempre, apenas esperando um sujeito iluminado que
tivesse a capacidade e o mérito de a descobrir. O mundo moderno aguarda essa pessoa, que se
torna assim um sujeito, com todos os louros e recompensas por ter tido o mérito de manter a
modernidade funcionando e evoluindo, por ter mais uma vez objetificado (isto é, naturalizado,
reificado) as relações que lhe permitem produzir mais e mais. Essa pessoa, subjetivada por
meio dos híbridos com os quais foi impelida a ter contato, é assim desconectada do meio, isto
é, dos híbridos que criaram essa subjetividade, da mesma forma que toda uma nova gama de
objetos nacionais. Só existe, para esses arquivos e essas narrativas, o sujeito criador, e não o
sujeito criado. O sujeito pensa libertar pela verdade que ilumina, de modo que não mais lhe
interessa, saudado pela modernidade como o é, dar-se conta das relações de produção
assimétricas que obscurece dessa forma.
Em relação ao objeto aqui problematizado, ou seja, a “nação”, muito já foi dito a
respeito do seu caráter inventado, imaginado, construído ou mesmo objetificado. Mas, ainda
nesses casos, o que se tem é um sujeito contraexemplar, um antissujeito, o sujeito burguês que
produz um objeto falso. Seria necessário que um novo sujeito se conscientizasse do seu papel
revolucionário e criasse, assim, um novo objeto, um objeto verdadeiro, transformando, assim,
a modernidade burguesa numa modernidade socialista, por exemplo. Percebe-se que a própria
51

modernidade enquanto ideologia e estrutura fluida de relações assimétricas, que se reproduz


pela desconexão narrativa entre sujeitos e objetos, não é colocada em questão.
A historiografia do patrimônio narra, por meio dos próprios arquivos das práticas
patrimoniais, uma sucessão de objetos cada vez mais verdadeiros em função das “descobertas”
realizadas por sujeitos comprometidos com uma sociedade cada vez mais democrática. Ou,
mesmo numa outra perspectiva, que se pretende um pouco mais crítica, ela indica a necessidade
de que esses sujeitos democráticos, ainda inexistentes, tomem consciência da necessidade de
procurar o verdadeiro objeto, isto é, uma concepção de nação objetiva, não ofuscada por
nenhum tipo de falsa consciência, que nos indique a possibilidade de uma modernidade
verdadeiramente democrática. Mas dessa democracia não participam os híbridos, esses seres
obscuros que transformam tanto os sujeitos quanto os objetos e, no decorrer deste trabalho,
continuam produzindo formas modernas de relações assimétricas e de temporalidades que as
orientam.
Quando escrevi o artigo “Orientando-se em meio a lapsos…” (LOWANDE,
2013a), estava observando apenas a dinâmica da produção narrativa de sujeitos do patrimônio.
Percebi então que esses sujeitos ganhavam uma identidade mais definida em momentos de crise
da produção daquilo que hoje eu entendo serem esses híbridos em forma de patrimônio cultural.
Quando o SPHAN, essa instituição cuja finalidade é produzir o valioso objeto da modernidade
– a nação –, se via na iminência de uma implosão, surgiam narrativas destinadas a manter viva
a ação patrimonial, ou seja, a indicar a sua importância para o futuro da coletividade nacional
a partir de alguns aspectos criteriosamente selecionados no passado.
As narrativas e as ideias de sentido que lhes dão forma podem ser, portanto,
entendidas também como um desses “híbridos” – e todos que produzimos algum tipo de
narrativa podemos notar o quanto ela própria vai constituindo os seus objetos ao mesmo tempo
que constitui a nós mesmos como sujeitos. Esse foi o “orientar-se em meio a lapsos” do
patrimônio: a produção de narrativas que, trazendo à tona alguns elementos e ocultando outros,
garantisse a necessidade de que os sujeitos do patrimônio continuassem executando a sua
infindável tarefa de desvelamento da nacionalidade brasileira, o objeto essencial de sua
atividade.
Esse foi o “contar e o recontar” do “mito de origem do PHAN” (RUBINO, 1991,
p. 21), cuja narrativa passou a ser inscrita em seus próprios arquivos. Nos momentos em que a
identidade dos sujeitos do patrimônio e da modernidade nacional estiveram ameaçados por
crises de sentido – como as que ocorreram por ocasião da morte de Rodrigo Melo Franco de
Andrade (1898-1969), da morte de Aloísio Magalhães (1927-1982) ou do sucateamento e
52

fechamento do órgão federal de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional durante o


governo de Fernando Collor de Melo, em 1992 –, narrativas historiográficas foram produzidas
com o intuito de assegurar no tempo uma identidade profissional cuja validade (RÜSEN, 2001)
podia ser percebida em relação às fontes – retiradas dos próprios arquivos do IPHAN –, aos
valores – uma espécie de missão civilizatória – e ao sentido – o progressismo nacional ora
atrelado à ideia de “modernidade”, ora ligado ao “desenvolvimentismo”. O contato com as
fontes, organizadas pelo próprio IPHAN, e com o próprio patrimônio cultural protegido, que
inscreviam e reinscreviam em seus arquivos uma trajetória dividida em uma “fase heroica” e
em uma “fase antropológica”, continuou, assim, produzindo os sujeitos e os objetos da
modernidade nacional. Os sujeitos da “fase heroica” de Rodrigo Melo Franco de Andrade são
pessoas dotadas de objetividade e rigor no trato com o passado, ao mesmo tempo que imbuídas
de uma “missão intelectual” da qual parecia depender a própria modernidade nacional; seu
objeto era a autêntica cultura nacional, moldada pelo meio e por contatos étnicos únicos e
dotada de uma temporalidade evolutiva. Em relação à “fase antropológica”, seus sujeitos não
negavam a herança dos “pais fundadores” do patrimônio nacional, porém cobravam das novas
gerações uma postura menos elitista; seu objeto ainda era a cultura nacional, mas agora
percebida em seu caráter heterogêneo e produtor de “desenvolvimento nacional”.
Os híbridos, em ambos os casos, nunca são lembrados como tais, pois, do contrário,
o caráter positivo da modernidade/desenvolvimentismo presente nessas narrativas poderia
perder o seu encanto. No caso da “fase heroica” (ca. 1937-1969), esses híbridos são tanto o
conceito de cultura nacional quanto os artefatos patrimonializados do período, isto é, o
famigerado “patrimônio pedra e cal”. No caso da “fase antropológica” (ca. 1969- ), os híbridos
são os “bens culturais” agora percebidos como um “patrimônio vivo”, e isso permite expandir
a produtividade de sujeitos e objetos do desenvolvimento nacional para além de edifícios
históricos. Depois disso, quase tudo pode ser patrimonializado, até mesmo a “trajetória” própria
do “desenvolvimento” específico de práticas que se tornam, assim, “patrimônio imaterial”.
Em todos esses casos o reconhecimento de um bem cultural instaura novas relações
entre sujeitos e objetos atrelados à ideologia moderna que regula a nossa vida coletiva. Esse
tipo de ação, legitimado por suas narrativas oficiais, produzem relações assimétricas entre os
agentes nomeadores do patrimônio e o objeto ou a prática objetificada. Trazer à tona a
existência desses híbridos talvez seja um passo necessário para contornarmos as assimetrias
inevitavelmente produzidas pelas políticas culturais.
Esta tese tratará, no entanto, de circuitos específicos de produtividade, paralelos ao
que tem sido enfocado privilegiadamente pela historiografia do patrimônio. A troca epistolar
53

apresentada no capítulo anterior aponta para a necessidade de deslocarmos o foco para redes de
relações que talvez sejam mais importantes se quisermos conectar as produtividades acima
descritas a um movimento mais amplo, isto é, transnacional, de produção e reprodução de
modernidades alternativas.

2.3. CIVILIZAÇÃO E CULTURA

2.3.1. Civilisation e Kultur

As diferenças entre os conceitos de “civilização” e “cultura” têm sido alvo de


inúmeras análises. Diante da impossibilidade de esgotar essa literatura, optei por pinçar de
maneira instrumental e mesmo arbitrária alguns insights capazes de sustentar os argumentos
desta tese. Minha preocupação central é pensar os conceitos de “civilização” e “cultura” em
seus usos ideológicos, e não problematizar uma realidade que eles supostamente representariam
– por exemplo, indicando processos civilizatórios ou delimitando estruturas simbólicas. Além
disso, interessam aqui usos atrelados a um significado mais preciso para o termo “cultura”, ou
seja, aquele relacionado à pluralidade de “modos de vida” e que também pode ser chamado de
conceito “diferencial”, “plural” ou “antropológico” de cultura.16
De modo geral é possível afirmar que os conceitos de “civilização” e de “cultura”
são tomados como configurações distintas da própria modernidade enquanto projeto de futuro
ou ideologia.17 A partir do momento em que a experiência do tempo na segunda metade do
século XVIII se abre para um horizonte de expectativas ainda incerto, os conceitos de
“civilização” e “cultura” podem ser pensados como os arreios que pretendem domar o progresso

16
Para uma análise de outros significados para a mesma palavra remeto o(a) leitor(a) às obras de Alfred L. Kroeber
e Clyde Kluckhohn (1952), Raymond Williams (1994), Bernard Valade (1995), Stuart Hall (2006), Zygmunt
Bauman (2012) e Terry Eagleton (2011). Todavia, alguns desses trabalhos serão comentados nesta seção em
função do meu interesse específico pelo significado plural do termo.
17
O conceito de ideologia é empregado aqui de acordo com a concepção koselleckiana. Refere-se a conceitos que
só podem existir no interior de uma experiência moderna do tempo. “Conceitos ideológicos” dizem respeito então
a uma “antecipação”: “Baseiam-se na experiência da perda da experiência, e por isso não podem deixar de
despertar novas expectativas. E mais: por razões morais, econômicas, técnicas ou políticas, esses conceitos exigem
fins que abrigam desejos maiores do que até então a história pudera satisfazer. Esta situação semântica, que pode
ser mostrada constantemente, corresponde aos efeitos da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Para
reorganizar a sociedade que deixara para trás a hierarquia das ordens, para organizá-la de novo em comunidades e
empresas, em associações, grupos, partidos e organizações, era preciso recorrer à antecipação do futuro. O alcance
político e social de tais antecipações se manifesta em que elas têm de apontar para mais além do que era
empiricamente realizável, e além do que se podia prever. Precisamente, o imperativo de buscar organizações novas
– esta expressão é um conceito surgido, ele próprio, da nova situação – estimulava uma formação de conceitos
voltados para direcionar, e cujos fins exigiam uma perspectiva temporal de futuro. A temporalização, que de início
se inscrevia na teoria histórica, a partir de então penetrou fundo na vida quotidiana” (KOSELLECK, 2006, pp.
300-1).
54

prometido pela modernidade. “Civilização” e “cultura” são, portanto, diferentes respostas para
a seguinte questão: como, no futuro, poderemos nos distanciar, definitivamente, de qualquer
forma de barbárie?
Pode-se objetar que “por meio da civilização” e “por meio da cultura” não foram as
únicas respostas oferecidas a essa questão (no século XIX, “por meio do socialismo” tornou-
se, por exemplo, uma importante resposta alternativa). Certamente deve ser questionado ainda
o fato de que esses dois conceitos dificilmente aparecem em sua forma pura. No entanto, há um
seguro grau de consenso de que os conceitos de civilização e cultura expressam coisas bastante
diferentes, ainda que eles possam estar interligados entre si. Além disso, ainda que os métodos
utilizados para suas respectivas delimitações sejam distintos, as conclusões sobre seus
conflitos/inter-relacionamentos tendem a coincidir, como já notou, por exemplo, Mariza
Peirano (PEIRANO, 1981) a respeito dos resultados obtidos por Norbert Elias (ELIAS, 1994)
e Louis Dumont (DUMONT, 1994).
Em linhas gerais, “civilização” diz respeito a um modelo de perfectibilidade social
moldado pela razão e que, portanto, possui um caráter universalista. Esse conceito se refere às
realizações humanas em geral, seu berço é francês (embora também possa se identificar com o
mundo inglês) e sua formulação clássica se deu principalmente no período iluminista.
“Cultura”, por sua vez, corresponde a uma feição holista da perfectibilidade
humana, ressaltando as conquistas de cada povo ou nação de maneira mais específica. Surge
como reação ao modelo universal imposto a partir da França, diz respeito particularmente a
realizações do “espírito”, seu berço é alemão e sua formulação clássica se deu num clima
“contrailuminista” ou “romântico”.
Norbert Elias, em que pese o otimismo que deposita na ideia de processo
civilizador,18 conseguiu produzir uma influente análise a respeito da bifurcação desses dois
conceitos modernos por meio de uma análise do “processo social de sua gênese” (ELIAS, 1994,
p. 26-27). De acordo com ele, um primeiro aspecto que explicaria as diferenças semânticas
entre civilisation/civilization e Kultur é a situação da unificação política e da consolidação das
fronteiras na Europa do século XVIII.

18
Além das ponderações feitas por Renato Janine Ribeiro a este respeito no prefácio do livro de Elias, é interessante
observar o que Zygmunt Bauman afirmou sobre a ideia de “processo civilizador” em seu Modernidade e
holocausto: “Precisamos avaliar a evidência de que o processo civilizador é, entre outras coisas, um processo de
despojar a avaliação moral do uso e exibição da violência e emancipar os anseios de racionalidade da
interferência de normas éticas e inibições morais. Como a promoção da racionalidade à exclusão de critérios
alternativos de ação, e em particular a tendência a subordinar o uso da violência a cálculos racionais, foi de há
muito reconhecida como uma característica da civilização moderna, fenômenos como o Holocausto devem ser
reconhecidos como resultados legítimos da tendência civilizadora e seu potencial constante” (BAUMAN, 1998,
p. 48).
55

Segundo Elias, para as elites francesas e inglesas a questão sobre o que significava
ser francês ou inglês era autoevidente e já estava solucionada. Suas respectivas identidades
eram percebidas como a de povos bem-sucedidos cujas realizações políticas e econômicas os
colocavam à frente de todos os outros povos conhecidos. O motivo desse sucesso residiria no
fato de que essas nações teriam atingido, antes das demais, o ápice das conquistas possibilitadas
pelo domínio da natureza pela razão, a ponto de agora se considerarem no dever de transmiti-
las para as nações mais “atrasadas” (algo que se tornaria uma das principais justificativas para
a ação colonizadora). Esse conjunto de realizações se expressavam não só no poder político e
econômico de seus respectivos Estados: diziam respeito igualmente ao “nível de sua tecnologia,
a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e
muito mais” (ELIAS, 1994, p. 23). Esse era o sentido do conceito de “civilização” que se
forjava, ou seja, tratava-se de um termo por meio do qual “a sociedade ocidental procura
descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha” (ELIAS, 1994, p.
23). O conceito significava, além disso, a régua etnocêntrica por meio da qual os ocidentais
passariam a descrever os outros povos do planeta, sempre mais próximos da barbárie e
“incivilizados” do que os europeus, em especial os franceses e ingleses
A situação dos alemães nesse mesmo período era diferente. O fato de as fronteiras
daquilo que só tardiamente (1871) se conformaria como o Império Alemão serem ainda muito
incertas teria provocado incessantemente a questão “O que significa realmente ser alemão?” O
conceito de Kultur é que tentaria expressar as peculiaridades e o valor de um povo para além
dos padrões fixados pelo conceito de civilização.
Feitas essas considerações de caráter mais genérico, Elias se dirige à análise da
gênese de cada um desses conceitos. No entanto, em vez de se fiar numa simples “história das
ideias” – como fariam, mais de uma década depois, Alfred Kroeber e Clyde Kluckhohn
(KROEBER e KLUCKHOHN, 1952), por exemplo –, o sociólogo alemão se ocupa da gênese
social desses conceitos, ou, como prefere, da “sociogênese” dos conceitos de “civilização” e
“cultura”, de modo tal que, a meu ver, seu procedimento se aproxima muito das prescrições que
depois Koselleck estabeleceria para a “história dos conceitos” em suas relações com a “história
social” (KOSELLECK, 2006). Tentarei apresentar de maneira bastante sucinta o percurso
percorrido por Elias nesse seu empreendimento.
Para Elias, o significado de conceitos como os de civilização e de Kultur resulta de
necessidades coletivas de expressão que vão se cristalizando até que pareçam naturais aos seus
usuários e que perduram enquanto possuírem uma “função concreta na existência da sociedade
– isto é, enquanto gerações sucessivas puderem identificar suas próprias experiências no
56

significado das palavras” (ELIAS, 1994, p. 26-27). O que o sociólogo alemão chama de
“processo social” da “gênese de um conceito” é, portanto, algo muito semelhante à tensão
notada por Koselleck entre os conceitos e as estruturas sociais, inclusive no que diz respeito à
complexidade diacrônica dessa relação.
As divergências semânticas entre os conceitos de civilização e Kultur surgiram,
segundo Elias, em torno da década de 1770 no mundo teutônico. Isso teria acontecido em
função de uma clivagem entre a nobreza cortesã “civilizada” nos moldes franceses e a
intelligentsia de classe média cuja identidade se constituiu na experiência partilhada do serviço
burocrático prestado ao Estado prussiano. Na França, os intelectuais de classe média, como
Voltaire e Diderot, foram assimilados pela sociedade de corte de Paris, com a qual passaram a
se identificar, o que significa que suas ideias tiveram inclusive vasão na vida política francesa.
Essa mesma abertura não podia ser encontrada na “afrancesada” corte prussiana. Não obstante
a aceitação dos valores civilizacionais de seus vizinhos, a nobreza alemã, em função de seu
esfacelamento territorial, teria se tornado muito mais fechada à ascensão de uma classe média
cada vez mais rica e ansiosa por participação direta na definição dos rumos do Estado. Diante
desse bloqueio à vida política, verificou-se então algo semelhante a uma sublimação do desejo
de poder da enriquecida classe média alemã no campo das atividades do “espírito”. Esse período
correspondeu a uma grande efervescência literária e filosófica no mundo teutônico, com a
retomada da produção em língua alemã e o surgimento das obras de Herder, dos poetas do
Sturm und Drang, o círculo de Götinger Hain, com “o jovem Goethe, o jovem Schiller”,
movimento este que, segundo Elias, “certamente não é um movimento político” (ELIAS, 1994,
p. 35-36), ainda que se verifique uma clara contraposição aos valores cortesãos alemães.
Desenvolveu-se, assim, uma intelectualidade que se identificava em torno de
determinados valores contrários aos padrões civilizacionais franceses e que projetou os seus
valores alternativos como representativos da nacionalidade alemã. A fragmentação do serviço
público nas cortes alemãs, que não estavam unificadas, como na França, na corte de Paris, fez
com que toda a arte da conversação desenvolvida pelo contato direto dos cortesãos franceses –
e por meio da qual as suas ideias eram comunicadas e cristalizadas – fosse substituída, na
Alemanha, pelo esforço de “autocultivo” (Bildung) percebido como forma de elevação da
Kultur especificamente teutônica e, por conseguinte, da própria humanidade. Foi essa classe
“autocultivada” que se tornou a “depositária da consciência nacional” até que, finalmente,
pudesse depois assumir um papel destacado na condução do Império Alemão.
Já é possível sintetizar as conclusões mais interessantes da análise sociogenética do
conceito de cultura conforme proposto por Elias: 1) o conceito de cultura (assim como o de
57

civilização19) se vincula a ações intelectuais de um grupo concreto e específico de pessoas num


momento de disputa por posições de poder no interior de um aparato estatal em processo de
fortalecimento; e 2) o seu conjunto de características logo é projetado como “nacional” e se
consolida como defesa em relação à ameaça representada por valores universalizantes
percebidos como contrários ao modo de vida específico do conjunto de indivíduos protegidos
por um mesmo Estado-nação. Essa “invenção” do século XVIII, ou seja, o conceito de “cultura
nacional” como acesso a uma suposta realidade étnica que delimitaria projetos de futuro em
disputa, tornou-se o traço distintivo da modernidade e revelou, ao final, tanto o seu poder
criativo quanto destrutivo. O poder desse conceito, que atormentou Elias no período de auge do
nazismo alemão, continua nos assombrando num mundo diferente porém não menos
complexo.20
Elias, no entanto, estava preocupado com a descoberta das leis do processo
civilizatório, ou seja, em saber como estruturas de personalidade são afetadas por
transformações de estruturas sociais, e vice-versa. Ele procurou fazer isso por meio do uso da
noção de “configurações sociais”, que pretende superar a perspectiva caracteristicamente
moderna de conceber o indivíduo como uma realidade isolada do seu mundo exterior. Ao tomar
o processo civilizatório como fato, seu intuito declarado é produzir instrumentos, por
intermédio do conhecimento sociológico, para que as sociedades humanas não se estruturem a
partir de valores destrutivos como os do nazismo, do fascismo ou outras formas de
autoritarismo. O intuito de Elias é analisar o processo civilizatório para além da “curiosa
aberração do pensamento”, ou seja “a ideia da natureza e valor excepcionais da própria nação”
(ELIAS, 1994, p. 230), que, na prática, corresponde a dois tipos principais de ideologia: “uma
corrente que considera a sociedade como um todo, a nação, como o mais alto dos valores; e por
outro, uma vertente que postula o indivíduo inteiramente autossuficiente, o indivíduo livre, a
‘personalidade fechada’, como o mais alto valor” (ELIAS, 1994, p. 235).

19
“O conceito de civilisation é inicialmente, como acontece com o de Kultur, um instrumento dos círculos de
classe média – acima de tudo, da intelligentsia de classe média – no conflito social interno. Com a ascensão da
burguesia, ele veio, também, a sintetizar a nação, a expressar a auto-imagem nacional” (ELIAS, 1994, p. 64).
20
Elias já nos lembrava que “as oportunidades reais de progresso, de um futuro melhor, são ainda – ignorando-se
a possibilidade regressiva de uma guerra – muito grandes para as primeiras nações que se industrializaram. Mas
em comparação com suas autoimagens tradicionais, nas quais a ideia de sua própria civilização ou cultura nacional
é em geral entronizada como o mais alto valor da humanidade, o futuro é decepcionante. A ideia da natureza e
valor excepcionais da própria nação serve frequentemente como legitimação de sua reivindicação a liderar todas
as demais. E foi essa autoimagem, essa pretensão à liderança pelas nações industrializadas mais antigas, que sofreu
um abalo na segunda metade deste século, provocado por um aumento ainda muito limitado de poder das
sociedades mais pobres, sociedades pré-industriais previamente dependentes e parcialmente subjugadas de outras
partes do mundo” (ELIAS, 1994, p. 230).
58

Todavia, não são as próprias ideologias modernas os “objetos de estudo” abordados


pelo sociólogo alemão. Quem toma para si essa tarefa é o antropólogo Louis Dumont. Para ele,
a modernidade corresponde à emergência de uma “configuração” inédita de ideias e valores, ou
seja, aquilo que ele também chama de ideologia, cujas principais características seriam:

individualismo (como o oposto de holismo), primazia das relações entre seres


humanos e coisas (em detrimento das relações entre seres humanos), distinção
absoluta entre sujeito e objeto (oposto a uma distinção meramente relativa, flutuante),
segregação de valores a partir de fatos e ideias (oposto a sua indistinção ou estreita
associação), distribuição do conhecimento em planos ou disciplinas independentes,
homólogas e homogêneas. (DUMONT, 1994, p. 7)21

Seriam essas ideias e esses valores que embasariam os ideais de liberdade,


igualdade e fraternidade, elaborados na França iluminista. A partir de lá essa ideologia seria
apresentada fora de suas fronteiras como algo que transcende qualquer característica cultural
local: a “cultura francesa” seria pensada como uma cultura na verdade universal, isto é, a própria
civilização. Como já foi visto no meu comentário sobre o trabalho de Norbert Elias, os franceses
acreditavam ter atingido o último estágio do desenvolvimento humano, graças às luzes da razão,
e a partir daí se viam diante da missão de difundir essa ideologia individualista e universalista
pelo mundo afora.
O que Dumont percebe, no entanto, é que essa ideologia individualista se chocou
com outras ideologias cujas configurações comportavam outras ideias e valores, em especial
tradições de caráter holístico. O antropólogo francês encara esses contatos como interações
entre diferentes culturas, de modo que seu método é análogo ao dos estudos de “aculturação”,
com a diferença de que, nesse caso, não se trata de analisar o contato entre uma cultura
“civilizada” e outra “primitiva”, mas de ideologias/culturas europeias entre si. Tem-se,
portanto, um procedimento que procura analisar de forma simétrica os nossos próprios sistemas
de pensamento ocidentais como visões de mundo estruturadas, ou seja, como uma cultura dentre
outras, ou ainda como ideologias. Para entender essas relações entre diferentes ideologias,
Dumont analisa de forma mais detida a ideologia alemã, e as conclusões a que ele chega são
bastante interessantes.
Dumont considera a ideologia moderna em sua configuração
individualista/universalista excepcional, pois a norma até então eram identidades pessoais

21
“Individualism (as opposed to holism), primacy of the relations of men to things (as against the relations between
men), absolute distinction between subject and object (opposed to a merely relative, fluctuating distinction),
segregation of values from facts and ideas (opposed to their indistinction or close association), distribution of
knowledge into independent, homologous, and homogeneous planes or disciplines”.
59

inseparáveis de identidades coletivas, isto é, configurações ideológicas holistas – para um


francês era natural que ele se imaginasse francês apenas por acidente, colocando a sua condição
de indivíduo humano em primeiro lugar, algo impensável, por exemplo, para japoneses ou
iranianos, de acordo com os exemplos propostos pelo antropólogo. O principal interesse da
reflexão de Dumont é o encontro entre esses dois tipos de ideologia com a expansão pelo globo
do modelo individualista: desses contatos surgiriam diversos blends entre individualismo e
holismo, algo que seria a condição necessária para a expansão e acomodação da ideologia
moderna por sobre culturas a princípio “periféricas”. Dumont procede analisando
comparativamente diferentes configurações ideológicas nacionais de modo a compreender os
processos de “aculturação” que conduziram à formação de misturas específicas, a exemplo do
caso alemão, indiano e russo. Tratar-se-iam, portanto, de processos que ocorrem inteiramente
no nível ideológico, de modo que Dumont abre mão de uma metodologia sociogenética, como
a que foi empregada por Norbert Elias, em favor de um procedimento que poderíamos chamar
de “morfologia comparada” das configurações ideológicas nacionais e das respectivas
resultantes de suas interações.
O caso alemão merece um destaque especial por parte de Dumont. A defesa alemã
contra a influência cultural francesa – a situação de fronteira fez com que a Alemanha fosse a
primeira a ser ameaçada pela expansão da configuração individualista/universalista – teria
gerado um modelo de autoafirmação nacionalista pioneiro e altamente influente por meio dos
conceitos de Kultur e Bildung. Dumont apresenta a “ideologia alemã” então como “uma
variante nacional, entre outras, da ideologia moderna” (DUMONT, 1994, p. 17).22 A reação
alemã aos acontecimentos no mundo ocidental do século XVIII teria produzido uma “fórmula
idiossincrática” de ideologia, que poderia ser resumida num misto de “holismo comunitário”
com um “individualismo autocultivado”. Dumont sintetiza esse quadro da seguinte forma:

Por um lado, há uma discreta sobrevivência, nos tempos modernos, da comunidade,


ou seja, de um sentimento e de uma orientação holística, e, na vida social em geral, a
quase proverbial tendência a obedecer, a subordinação espontânea às autoridades
políticas e sociais. Por outro lado, há um pronunciado desenvolvimento profundo da
individualidade, uma interioridade invejosa devotadamente atendida. (DUMONT,
1994, p. 19-20).23

22
“A national variant, among others, of modern ideology”.
23
“On the one hand, there is a quiet survival, in modern times, of the community, that is to say, of a holistic feeling
and orientation, and, in social life in general, the quasi-proverbial proclivity to obey, the spontaneous
subordination to political and social authorities. On the other hand, there is a pronounced inner development of
individuality, a jealous interiority devotedly attended to”.
60

A Reforma Luterana, que Dumont considera uma forma religiosa de


individualismo, teria “imunizado” os alemães à Revolução. Esta última, uma forma por sua vez
sociopolítica de individualismo, teria sido então recebida na Alemanha de acordo com os
padrões mentais estabelecidos pela Reforma. A notável produção intelectual do período que vai
de 1770 a 1830 – também lembrada por Elias – em grande medida se voltou para a elaboração
dessa síntese entre individualismo – expresso na ideia de autocultivo (Bildung) – e holismo –
relacionado à ideia de Kultur. Por fim, a essas duas características seria possível somar uma
terceira, relacionada à ideologia política pangermânica: a tradição advinda do Sacro Império
Romano-Germânico de uma soberania de caráter universal (contrária à concepção de soberania
territorial predominante na França e na Inglaterra) reforçaria a convicção de que a cultura
alemã, ou seja, sua Kultur, graças à notória liderança conquistada por sua intelectualidade no
campo das letras e da filosofia, seria a cultura par excellence, destinada a dominar todas as
demais. O conjunto dessas ideias daria consistência à identidade teutônica expressa na ideia de
um Reich, com as conhecidas consequências para expansão imperialista pós-1871 e para as
duas Guerras Mundiais.
Mas o mais importante das reflexões de Dumont para esta tese é notar que “os
alemães prepararam versões mais digeríveis da inovação moderna [isto é, sua ideologia] para o
uso dos recém-chegados” (DUMONT, 1994, p. 26).24 O antropólogo menciona casos
específicos como o indiano e o russo, mas, por fim, lembra que os “valores conflitantes do
holismo e individualismo se combinam de formas problemáticas no mundo presente como o
fizeram na história alemã” (DUMONT, 1994, p. 36).25 Estendendo os argumentos de Dumont,
esses mistos de individualismo/universalismo e holismo podem ser encontrados também no
Brasil no momento em que seus intelectuais saíram em busca de nossa própria modernidade,
algo que demonstrarei ao longo desta tese.
Neste ponto é fundamental lembrar que a antropologia foi o instrumento moderno
por excelência de definição das relações entre civilização e cultura, e os agentes que se lançaram
a projetar seus respectivos Estados-nações nesses termos se viram às voltas com o pensamento
antropológico. Não é possível desatrelar das ideologias nacionais ocidentais e seus respectivos
projetos de futuro, portanto, nem a antropologia física que vicejou na Inglaterra, França,
Alemanha e em praticamente todos os Estados-nação do século XIX, em maior ou menor grau;
nem a Völkerkunde, isto é, a faceta etnológica do historismo alemão; e nem os

24
“[…] the Germans have prepared more digestible versions of the modern innovation for the use of newcomers”.
25
“[…] the conflicting values of holism and individualism combine in problematic ways in the present as they did
in German history”.
61

desenvolvimentos posteriores da etnologia alemã na antropologia cultural estadunidense, na


antropologia social britânica e mesmo, em certa medida, na etnologia francesa. Esse assunto
será melhor desenvolvido ao longo da tese, mas é importante apresentar aqui alguns de seus
aspectos mais gerais.
A antropóloga Mariza Peirano adota, como eu mesmo nesta tese, uma postura “não-
internalista” da reflexão sobre o pensamento antropológico. Para ela, a antropologia é um
sistema de conhecimento entre outros, e pode ser perfeitamente colocado, nesse sentido, ao lado
da religião, da filosofia e da arte (PEIRANO, 1981, p. 3). É isso que a faz pensar na antropologia
como um conjunto particular de representações no interior de um sistema de pensamento mais
amplo e atrelado ao campo político dos Estados-nações responsáveis pelo seu desenvolvimento.
Em outras palavras, para Peirano não é possível desvincular a antropologia das ideologias
nacionais, e é com base nesse pressuposto que ela produz uma interessante “antropologia da
antropologia” no Brasil.
No entanto, é preciso ainda mostrar uma incompatibilidade até então não evidente
entre as elucubrações de Peirano e as de Louis Dumont, pois o não esclarecimento desse ponto
poderia intoxicar a própria narrativa apresentada nesta tese. Peirano mostra que Dumont não
acredita naquilo que ela chama de “reversibilidade” do conhecimento antropológico. Isso
significa que, partindo dos mesmos pressupostos já apresentados nesta tese, Dumont, no
entanto, partilha da premissa de Marcel Mauss segundo a qual só seria possível falar em
antropologia a partir do polo universalista da ideologia moderna. A antropologia seria fruto da
ideologia moderna uma vez que procederia por meio da comparação de sistemas de pensamento
a partir de um ponto de vista universalista (PEIRANO, 1981, p. 5).
Lendo o livro German ideology, que foi publicado originalmente por Dumont em
1991, ou seja, depois de Peirano ter defendido essa sua tese de doutorado (1981), a impressão
que tenho é que, conforme apresentei acima, a relação entre os princípios universalista e holista
é, para Dumont, mais complexa que do que essa configuração dicotômica e irredutível lembrada
por Peirano. Vimos que Dumont considera a ideologia alemã como um verdadeiro blend entre
individualismo e holismo, e foi justamente essa ideologia, sobretudo em seus desenvolvimentos
historicistas, como veremos, que criou os alicerces para a antropologia cultural estadunidense
praticada na primeira metade do século XX.26

26
Destaco agora essa vertente do pensamento antropológico por ser a que mais me interessa diretamente, mas é
importante lembrar que a formação de Bronislaw Malinowski também se deu no interior da tradição compreensiva
germânica, em especial no que diz respeito à escola filosófica de Baden, cujo representante talvez mais conhecido
entre nós, historiadores e cientistas sociais, seja Wilhelm Dilthey (cf. BAUMAN, 2012, p. 115). Valade, por outro
62

De todo modo, sejam justas ou não essas considerações específicas de Peirano,


interessa destacar que reputo plausíveis as suas conclusões teórico-metodológicas. Acredito
que, de fato, as complexas inter-relações entre valores universalistas e holísticos estão também
presentes nas formas como diferentes grupos intelectuais produziram e disputaram projetos de
modernização nacional. Uma diferença entre nossos estudos reside no fato de que em minha
tese eu tomo o nível relacional, e não o das configurações morfológicas da ideologia, como
locus privilegiado de estudo.
Por fim, a relação entre “civilização” e “cultura” ainda foi apreendida de forma
bastante sofisticada por Roy Wagner em seu A invenção da cultura (2010). Tentando sumarizar
alguns elementos de sua argumentação sem ter que reconstruir aqui toda sua elaborada teoria
sobre os nossos diferentes modos de simbolização, é possível afirmar em primeiro lugar que,
para ele, a “moderna sociedade ocidental”, isto é, a “civilização” (que ele chama também chama
de “Cultura”, com inicial maiúscula, ou ainda “Cultura sala de concerto”)

equivale a uma extensão abstrata da noção de domesticação e refinamento humanos


do indivíduo para o coletivo, de modo que podemos falar de cultura como controle,
refinamento e aperfeiçoamento gerais do homem por ele mesmo, em lugar da
conspicuidade de um só homem nesse aspecto. Empregada nesse sentido, a palavra
também carrega fortes conotações da concepção de Locke e Rousseau do “contrato
social”, da moderação dos instintos e desejos “naturais” do homem por uma imposição
arbitrária da vontade. O conceito oitocentista de “evolução” adicionou uma dimensão
histórica a essa noção de criação e moderação do homem por ele mesmo, resultando
no conceito otimista de “progresso”. (WAGNER, 2010, p. 54)

Esse controle civilizatório se daria, segundo Wagner, por meio de uma


“simbolização convencional”. A modernidade se caracterizaria por uma tendência a incorporar
o que é diferente e a princípio incompreensível numa ordem inventada como regular e natural.
O conceito antropológico de “cultura” seria, assim, uma invenção de antropólogos modernos
na tentativa de lidar com o choque (que eles próprios chamam de “cultural”) causado pela
situação de total inadequação, no trabalho de campo, ao comportamento de grupos humanos a
princípio incompreensíveis. Esses humanos percebidos como “outros” são incompreensíveis
justamente pelo fato de não partilharem conosco esse mecanismo de “simbolização
convencional”: suas formas de simbolização são “diferenciantes”, e, ao contrário de nós, essas
pessoas não vêm sentido algum no nosso impulso de reduzir as anomalias a um conjunto de leis

lado, dá maior destaque aos antagonismos entre a antropologia cultural estadunidense e a antropologia social
britânica, destacando mais a influência de Émile Durkheim que a de Dilthey sobre a última vertente (cf. VALADE,
1995, p. 499 e ss).
63

naturais.27 “Cultura” e “estrutura social” são, portanto, exemplos de invenções dos modernos
para tentar lidar com essa diferença radical dos povos não modernos. Eu tratarei em pormenores
do “conceito antropológico de cultura” na próxima seção, mas é importante salientar desde já a
perspectiva de Wagner pois ela também nos ajuda a entender melhor o impulso da “civilização”
em incorporar à sua regularidade racionalista, sob a forma de “culturas nacionais”, tudo aquilo
que a princípio choca por sua diferença profunda. Nesse ponto em específico parece haver uma
proximidade com o significado mais geral das proposições de Dumont quando este trata do
processo que conduziu à incorporação de ideologias “holistas” à ideologia “universalista da
modernidade”. Isso parece ser perfeitamente contemplado pela proposição de Wagner, segundo
a qual

Uma vez que a convenção só pode ser estendida por meio de um processo de mudança,
é inevitável que suas distinções convencionais sofram mudanças no curso desse
processo. Além disso, como a invenção é sempre uma questão de combinar contextos
convencionais com o particular e não convencionalizado, coletivizando
deliberadamente o particular e o individual ou diferenciando o coletivo, fica claro que
qualquer dos tipos de ação irá resultar numa progressiva “relativização” de ambos,
particularizando o coletivo e ao mesmo tempo ordenando e coletivizando o particular.
(WAGNER, 2010, p. 98)

2.3.2. O conceito antropológico de cultura

Eu gostaria agora de me aprofundar um pouco mais, portanto, nas características


genéricas daquilo que podemos chamar de “conceito antropológico de cultura”, pois é a sua
circulação transnacional a partir do americanismo boasiano e o impacto que causou e sofreu no
interior das disputas pela modernidade brasileira que me interessam mais diretamente nesta
tese.
Em 1952, Alfred Louis Kroeber e Clyde Kluckhohn empreenderam um trabalho de
delimitação sistemática do que eles chamam de “moderno significado técnico ou antropológico
da palavra cultura” (KROEBER e KLUCKHOHN, 1952, p. 4). Essa acepção teria sido
estabelecida no campo da antropologia anglo-saxônica pelo inglês Edward Burnett Tylor (1832-
1917) em seu Primitive culture (1871), e os antropólogos buscavam “documentar sua gradual

27
“Enquanto os americanos e outros ocidentais criam o mundo incidental ao tentar constantemente prevê-lo,
racionalizá-lo e ordená-lo, os povos tribais, religiosos e camponeses criam seu universo de convenção inata
tentando mudá-lo, reajustá-lo e impor-se a ele. Nossa preocupação é inserir as coisas em uma relação ordenada e
consistente - seja esta uma relação de ‘conhecimento’ organizado de modo lógico ou de ‘aplicação’ organizada de
modo prático -, e chamamos a soma de nossos esforços de Cultura. A preocupação deles pode ser pensada como
um esforço para ‘desestabilizar o convencional’ e assim tornar-se poderosos e únicos em relação a este”
(WAGNER, 2010, p. 144)
64

emergência e refinamento” desde então a fim de possibilitar a construção de um significado


mais consensual e preciso. O resultado desse esforço é um rico documento etimológico e
taxionômico voltado para a pesquisa no campo da antropologia cultural, incluindo também uma
detalhada análise sobre as diferenças semânticas entre os termos “cultura” e “civilização”. O
esforço em compendiar um grande número de definições também pode ser interpretado como
uma disputa pelos instrumentos heurísticos legítimos do campo antropológico, sobretudo se
notarmos que os autores se contrapõem discretamente a Radcliffe-Brown e “certos
antropólogos britânicos influenciados por ele” que tendiam a “evitar a palavra” (KROEBER e
KLUCKHOHN, 1952, p. 5).
Embora o objetivo de Kroeber e Kluckhohn tenha sido muito mais teórico que
historiográfico, eles acabam por produzir uma narrativa a respeito do desenvolvimento da
disciplina. Essa narrativa é pautada na ideia de um progressivo aprimoramento epistemológico
da antropologia, possuindo, portanto, um caráter internalista. Em função disso os autores
supervalorizam um significado mais geral e universal de cultura, que representaria um nível
“superorgânico” da vida humana – algo que a distinguiria, universalmente, das demais formas
de vida. Esse significado representaria, no momento da escrita dessa “revisão crítica”, o auge
do desenvolvimento da antropologia enquanto ciência, e os demais esforços são apresentados
apenas como mais ou menos próximos do objeto definidor dos limites disciplinares da
antropologia cultural. Mas não se trata de uma linearidade absoluta: os autores apresentam um
quadro com centenas de definições sistematizadas em sete grupos e seus respectivos subgrupos
em seus processos específicos e mais ou menos sincrônicos de desenvolvimento. O conceito de
cultura é dividido, então, de acordo com as suas definições “descritivas”, “históricas”,
“normativas”, “psicológicas”, “estruturais”, “genéticas” e “incompletas”.
Esse trabalho é importante para os argumentos que estou desenvolvendo aqui pelo
fato de que foi a perspectiva narrativa por ele estabelecida que provocou um primeiro esforço
sistemático de compreensão histórico-social dos usos do conceito de cultura na antropologia.
Em 1968, George W. Stocking Jr. publicou o livro intitulado Race, culture, and evolution, no
qual reuniu artigos que se tornaram muito influentes para a historiografia da antropologia. Uma
das motivações expressas de Stocking Jr. foi a de revisar a historiografia da antropologia
estadunidense, dirigindo-se especialmente contra o trabalho de Kroeber e Kluckhohn. Segundo
ele, a história da antropologia estaria viciada por uma perspectiva “presentista”, isto é, uma
tendência historiográfica de abstração de contextos científicos passados, que são permeados por
disputas acadêmicas e institucionais, privilegiando assim uma narrativa cumulativa do saber
65

antropológico cujo ápice coincidiria com a posição ocupada pelos próprios


narradores/antropólogos.
Em vez disso, Stocking Jr. se apropria de uma linguagem introduzida por Thomas
Kuhn em seu A estrutura das revoluções científicas (KUHN, 1998) a fim de demonstrar que a
verdadeira revolução paradigmática que conduziu à antropologia cultural aconteceu não com
Tylor, mas com o trabalho do antropólogo teuto-estadunidense Franz Uri Boas (1858-1942).
Embora Boas não tenha se dedicado ele próprio a reflexões teóricas mais consistentes (seu
indutivismo o fazia desconfiar de qualquer monismo ou apriorismo teórico), seu papel teria sido
fundamental enquanto uma espécie de elo entre a tradição germânica, em especial herderiana,
e o conceito plural de “cultura” que seria desenvolvido principalmente por seus discípulos. Ou,
nas palavras do próprio Stocking Jr.:

Focando apenas naqueles aspectos da mudança que têm a ver especificamente com a
ideia de cultura, pode-se dizer que estão envolvidas a rejeição de modelos simplistas
de determinismo racial ou biológico, a rejeição de padrões etnocêntricos de avaliação
cultural e uma nova apreciação do papel dos processos sociais inconscientes na
determinação do comportamento humano. Isso implica numa concepção do ser
humano não tanto como um ser racional, mas como um ser que racionaliza.
Apropriando-se de maneira um tanto quanto grosseira da linguagem de Thomas Kuhn,
pode-se dizer que essa mudança, tomada como um todo, foi uma parte crucial da
emergência do moderno paradigma das ciências sociais para o estudo da humanidade.
(STOCKING JR., 1968, p. 232)28

Esse conceito relativista de cultura é importante para esta tese pois, ao colocar todas
as culturas em pé de igualdade, ele permitiu que os próprios países periféricos pudessem
repensar a sua relação com o mundo civilizado. Afinal, suas especificidades culturais também
não poderiam ser formas peculiares de civilização? Depois do trabalho de Stocking Jr., muitas
outras investigações aprofundaram suas ideias a respeito das transformações sofridas pela
antropologia em seu processo de institucionalização entre os séculos XIX e XX. No entanto,
considero indispensável ainda pensar mais a fundo sobre as relações entre o conceito
antropológico de cultura e o grande projeto ideológico da modernidade e, para isso, creio ser
pertinente continuar essa discussão com as ideias apresentadas por Zygmunt Bauman em seu
Ensaios sobre o conceito de cultura (BAUMAN, 2012).

28
“Focusing only on those aspects of the change having specifically to do with the culture idea, one might say that
is involved the rejection of simplistic models of biological or racial determinism, the rejection of ethnocentric
standards of cultural evaluation, and a new appreciation of the role of unconscious social processes in the
determination of human behavior. It implied a conception of man not as a rational so much as rationalizing being.
Appropriating somewhat loosely the language of Thomas Kuhn, it might be said that this change, taken as a whole,
was a crucial part of the emergence of the modern social scientific ‘paradigm’ for the study of mankind”.
66

Bauman identifica uma função mais específica do conceito de cultura para o que
poderíamos denominar como o horizonte de expectativas aberto pela ideologia moderna. A
ideia de cultura do século XVIII seria, na verdade, um reflexo da concepção moderna de
liberdade: “A liberdade é uma relação social: para que alguns sejam livres a fim de atingir os
seus objetivos, outros devem ser não livres no que se refere a opor resistência aos princípios”
(BAUMAN, 2012, p. 15). O conceito de cultura teria o papel de dar conta, portanto, da
ambiguidade moderna existente entre “criatividade” e “regulação normativa”. Desse modo, o
termo “cultura” comportaria um aparente “paradoxo”, ou seja, diria respeito, por um lado, a
uma concepção ligada à ideia de “cultivo espiritual” e que remete à liberdade criativa aberta
pelo pensamento racional e livre dos dogmas religiosos (o qual mais adiante Bauman chamará
de “conceito hierárquico” de cultura); e, por outro lado, o mesmo termo remeteria a uma outra
ideia, relacionada mais diretamente a um conjunto de padrões de comportamento cujo papel é
ordenar, condicionar e mesmo limitar a ação humana (ao qual Bauman denominará “conceito
diferencial” de cultura). No entanto, mais que um paradoxo, “cultura” seria um produto do seu
tempo e refletiria a ambivalência real da própria experiência moderna:

Essencialmente moderna é a condição em que o lugar entre os dois polos que


assinalam o continuum ao longo do qual todos os indivíduos humanos são
posicionados nunca é plenamente “estabelecido”, estando sempre sujeito a negociação
e luta. É destino dos indivíduos modernos – livres e, portanto, subdeterminados –,
subconstituídos e assim destinados à autoconstituição, oscilar entre os extremos da
força e da falta de poder, e assim perceber sua liberdade como uma “bênção dúbia”,
uma modalidade saturada de ambivalência. (BAUMAN, 2012, p. 21)

Bauman ainda sintetiza sua ideia nos seguintes termos: “em suma: um discurso
gerou a ideia de cultura como atividade do espírito que vaga livremente, o lócus da criatividade,
da invenção, da autocrítica e da autotranscendência; o outro apresentou a cultura como
instrumento da rotinização e da continuidade – uma serva da ordem social” (BAUMAN, 2012,
p. 22). Foi, segundo ele, “a segunda história que prevaleceu nas ciências sociais por mais ou
menos um século” (BAUMAN, 2012, p. 24).
A partir disso fica fácil deduzir a relação que se estabelece entre o Estado-nação
moderno e a antropologia ortodoxa (ou, em termos mais genéricos e abrangentes, o “conceito
diferencial” de cultura). É o Estado-nação que será incumbido da tarefa de assegurar o
progresso prometido pela ideologia moderna por meio da garantia da ordenação dos interesses
individuais conflitantes. Mas nada substitui a prosa baumaniana no esquadrinhamento desse
papel:
67

Falando francamente, esse espaço – o espaço moderno – era o objeto da


administração, do gerenciamento. Era o playground da autoridade encarregada da
tarefa de ‘coordenação principal’; de criar as regras que tornaram o ‘dentro’ uniforme,
ao mesmo tempo que o separavam do ‘fora’; de aparar as extremidades e os atritos
ásperos entre as normas e os padrões de comportamento existentes; de homogeneizar
os heterogêneos e unificar os diferenciados – em suma, de remodelar um agregado
incoerente, transformando-o num sistema coerente. O espaço global foi fatiado em
domínios soberanos – territórios distintos com agências distintas e soberanas – para
realizar as tarefas da autoridade moderna. As coisas que não tinham lugar nesse
arranjo eram ‘terra de ninguém’, ‘pessoas sem controle’, condutas fora do padrão e
mensagens ambivalentes. A imagem da cultura como um ‘sistema’ segundo o
padrão de um quadro gerencial era a projeção dessa tarefa/ambição de
gerenciamento do espaço. (BAUMAN, 2012, p. 38)

Portanto, um dos principais papéis desempenhados pela antropologia na


modernidade se relaciona à identificação das coletividades/objetos da ação interna e externa do
Estado-nacional. Ela define quais indivíduos estão subsumidos a uma identidade comum em
função de uma herança, a princípio biológica e, posteriormente, cultural. A partir desses saberes
o Estado-nacional tem condições de definir sobre quais corpos poderá exercer seu poder
“tutelar”, seja ele de caráter colonial, no que se refere aos “de fora”, ou disciplinar, no que se
refere às “massas” internas. Esta tese também mostrará, no entanto, que foram disputas internas
específicas no campo antropológico que possibilitaram a superação de algo que podemos, a
título precário, chamar de “paradigma biológico”, por um outro, de caráter mais humanista e
igualitário, correspondente a um “paradigma cultural”. Mas isso só fez com que o Estado-
nacional, que antes discriminava sua ação com base em critérios de hierarquização racial,
depois pautasse sua ação de forma reintegradora, ao mesmo tempo que coercitiva, por meio da
educação das massas que deveriam compor a comunidade nacional. Em ambos os casos o que
ainda se tem, no entanto, é a ação de um “sujeito do conhecimento” “civilizado” sobre o “objeto
do conhecimento”, “raças” ou “culturas”, correspondentes a massas “jamais civilizáveis” ou
“ainda não civilizadas” (BAUMAN, 2012, p. 50).
Outro trabalho que pode ajudar a lançar luz nas especificidades ideológicas do
conceito de cultura é o livro A ideia de cultura, de Terry Eagleton (2011). Eagleton também
reconhece o caráter ambivalente do conceito: “Cultura é uma dessas raras ideias que têm sido
tão essenciais para a esquerda política quanto são vitais para a direita, o que torna sua história
social excepcionalmente confusa e ambivalente” (EAGLETON, 2011, p. 11). O conceito de
cultura guardaria resquícios de uma transição histórica importante e codificaria, além disso,
questões filosóficas fundamentais. Aqui, como já pretendi deixar claro, interesso-me
exclusivamente pelos “resquícios de uma transição histórica importante”, deixando em
suspenso as “questões filosóficas fundamentais”. Neste último ponto talvez seja possível
68

distinguir em alguma medida as conclusões de Eagleton e Bauman, mas, no que se refere aos
usos ideológicos modernos do conceito, a proximidade entre os dois é evidente, sobretudo
quando o crítico literário inglês afirma que “a ideia de cultura, então, significa uma dupla
recusa: do determinismo orgânico, por um lado, e da autonomia do espírito, por outro”
(EAGLETON, 2011, p. 14).
Assim como Louis Dumont, Eagleton enfatiza a tradição germânica por meio da
qual os conceitos de civilização e cultura se encontram na ideologia da Bildung, ou seja, no
ideal de autocultivo individual orientado para a realização humana no Estado-nação. O que me
aproxima mais de Eagleton, no entanto, é a ênfase histórico-política derivada dessa relação
conceitual inicial. Embora o trabalho de Bauman, como vimos, não deixe de lado esses
aspectos, seu maior investimento se dirige à defesa de uma concepção estruturalista de cultura,
o que, reafirmo, está para além do interesse desta tese, ao passo que, para Eagleton, os
problemas político-ideológicos em torno do conceito são o seu alvo principal. Isso fica mais
claro quando Eagleton descreve as implicações da ideia moderna de cultura para o campo da
política:

A cultura, ou o Estado, são uma espécie de utopia prematura, abolindo a luta em um


nível imaginário a fim de não precisar resolvê-la em um nível político. Nada poderia
ser menos politicamente inocente do que um denegrecimento da política em nome do
humano. Aqueles que proclamam a necessidade de um período de incubação ética
para preparar homens e mulheres para a cidadania política são também aqueles que
negam a povos colonizados o direito de autogovernar-se até que estejam ‘civilizados’
o suficiente para exercê-lo responsavelmente. Eles desprezam o fato de que, de longe,
a melhor preparação para a independência política é a independência política.
Ironicamente, então, um argumento que procede da humanidade para a cultura e daí
para a política trai, pelo seu próprio viés político, o fato de que o real movimento é no
sentido contrário – são os interesses políticos que, geralmente, governam os culturais,
e ao fazer isso definem uma versão particular de humanidade. (EAGLETON, 2011,
p. 17-18)

O interessante do viés adotado por Eagleton é que ele permite, a meu ver, deslocar
com maior precisão a produção intelectual do conceito de cultura para o seu uso político. Isso
possibilita entender como um conceito que foi forjado, em sua concepção plural, já no século
XVIII, na verdade ganha relevância política preponderante somente em fins do XIX. É como
se a crise da expansão capitalista em seu modelo liberal clássico, por volta da década de 1870,
passasse a ser, cada vez mais, associada ao ideal de “civilização” que, como vimos, também se
relaciona diretamente ao ethos autoprojetado do mundo britânico.
Quando Eagleton também afirma que “quanto mais predatória e envilecida parece
ser a civilização real, mais a ideia de cultura é forçada a uma atitude crítica” (EAGLETON,
69

2011, p. 22), é impossível não vir à mente o que ocorreu mais adiante no Brasil quando da
constituição, por aqui, de uma ideologia nacionalista crítica ao modelo liberal oligárquico que,
em total medida, amparava-se nos ideais civilizacionais europeus (obviamente franceses e
ingleses). O lugar-comum da artificialidade dos nossos costumes passou a demandar, como no
caso europeu, a produção de saberes sobre culturas nacionais quando o modelo político e
econômico pautado nos ideais civilizacionais/individualistas parecia estar em crise. A análise
do caso brasileiro será aprofundada em outros capítulos desta tese, mas foi necessário apontar
desde já essa semelhança no sentido de indicar o motivo do interesse pela argumentação de
Eagleton. A virada histórica fundamental no uso político do conceito de cultura se situa
justamente nesse período de transformações globais profundas que Hobsbawm, por exemplo
identifica com o início da “Era dos Impérios” (HOBSBAWM, 2011). É esse o momento que
marca também, não por acaso, o início do processo de institucionalização da antropologia com
o apoio cada vez mais direto dos Estados-nacionais em função, justamente, de suas ambições
imperialistas. Se a antropologia cultural nasce, em grande medida, como veremos, como reação
aos usos imperialistas dos saberes sobre as particularidades dos diferentes povos do planeta,
por outro lado ela acabou fornecendo o instrumento ideológico fundamental, ou seja, o conceito
plural de cultura, para a sobrevivência dos Estados-nacionais mesmo depois da hecatombe da
Primeira Guerra Mundial, algo que parecia apontar desde já a falência das utopias modernas
mas que não foi suficiente para refrear a competição entre culturas nacionais.29
Desse modo, embora o nosso conceito particularizante de cultura tenha nascido em
grande medida como reação ao conceito universalizante de civilização, os dois estão
irremediavelmente a serviço dos grupos dominantes:

Nascido no coração do iluminismo, o conceito de cultura lutava agora com ferocidade


edipiana contra os seus progenitores. A civilização era abstrata, alienada,
fragmentada, mecanicista, utilitária, escrava de uma crença obtusa no progresso
material; a cultura era holística, orgânica, sensível, autotélica, recordável. O conflito
entre cultura e civilização, assim, fazia parte de uma intensa querela entre tradição e
modernidade. Mas também era, até certo ponto, uma guerra fingida. O oposto de
cultura, para Matthew Arnold e seus discípulos, era uma anarquia engendrada pela

29
A propósito, Nicholas Dirks afirma o seguinte sobre o poder de sobrevivência do conceito antropológico de
cultura: “O conceito antropológico de cultura sobreviveu tanto à fissão do átomo quanto à descolonização do
império; na verdade, agora os imaginários antropológicos estão servindo a outros propósitos, inserindo a diferença
no cânone das ciências sociais, justificando uma larga variedade de políticas identitárias e clamores políticos,
estimulando a crítica a partir de múltiplas perspectivas. Crescentemente, [o conceito de] cultura pode ser usado
para criticar o Ocidente ao mesmo tempo em que pode ser empregado para desviar qualquer interrogação das
políticas culturais locais” (DIRKS, 2015, p. 247) – “[…] the anthropological concept of culture has survived both
the implosion of the atom and the decolonization of empire; indeed, now anthropological imaginaries are serving
other purposes, inserting difference into the social scientific canon, justifying a wide variety of identity politics
and political claims, animating critique from multiple perspectives. Increasingly, culture can be used to critique
the West at the same time that it can be deployed to deflect any interrogation of local cultural politics”.
70

própria civilização. Uma sociedade patentemente materialista acabaria produzindo


seus rudes e ressentidos destruidores. No entanto, ao refinar esses rebeldes, a cultura
encontrar-se-ia indo em socorro da própria civilização pela qual sentia tal desprezo.
Embora os fios políticos entre os dois conceitos estivessem assim notoriamente
emaranhados, a civilização era no seu todo burguesa, enquanto a cultura era ao mesmo
tempo aristocrática e populista. (EAGLETON, 2011, p. 23)

É também no trabalho de Eagleton que podemos perceber com bastante clareza o


fio histórico que liga a tradição herderiana30 à antropologia cultural31 e mesmo ao que Bauman
chamará de ideal “comunitarista” da pós-modernidade32:

A origem da ideia de cultura como um modo de vida característico, então, está


estreitamente ligada a um pendor romântico anticolonialista por sociedades “exóticas”
subjugadas. O exotismo ressurgirá no século XX nos aspectos primitivistas do
modernismo, um primitivismo que segue de mãos dadas com o crescimento da
moderna antropologia cultural. Ele aflorará bem mais tarde, dessa vez numa roupagem
pós-moderna, numa romantização da cultura popular, que agora assume o papel
expressivo, espontâneo e quase utópico que tinham desempenhado anteriormente as
culturas “primitivas”. (EAGLETON, 2011, p. 25)

2.3.3. Uma proposta de recorte para a análise das relações entre os conceitos
de civilização e cultura e dos patrimônios etnográficos e artísticos

Nesta tese não irei me ocupar dos caminhos que conduziram aos usos ideológicos,
no Brasil, do conceito de civilização nos moldes franceses e ingleses, algo que ocorreu,
sobretudo, ao longo do século XIX.33 Interessa-me aqui, particularmente, analisar trajetórias
relacionais específicas que tornaram disponível, neste país, a partir da década de 1920, e por
meio de uma complexa tessitura transnacional que remonta ao final do século XIX, o uso do
conceito antropológico de cultura como forma de viabilizar, por aqui, a produção de
modernidades nacionais alternativas em suas diferentes articulações com o conceito de
civilização em seu caráter universalista.

30
“A partir do idealismo alemão, a cultura assume algo do seu significado moderno de um modo de vida
característico. Para Herder, isso é um ataque consciente contra o universalismo e o iluminismo. A cultura, insiste
ele, não significa uma narrativa grandiosa e unilinear da humanidade em seu todo, mas uma diversidade de formas
de vida específicas, cada uma com suas leis evolutivas próprias e peculiares” (EAGLETON, 2011, p. 24).
31
Valade também está de acordo com essa continuidade: “Se ignorarmos as leituras tendenciosas e as explorações
nacionalistas da obra herderiana, subsiste uma concepção de cultura que, em virtude de seu aspecto globalizante,
não deixa de apresentar afinidades com a dos mais modernos antropólogos, para quem a cultura abarca o conjunto
dos elementos de uma vida social organizada” (VALADE, 1995, p. 496).
32
“O postulado comunitarista do multiculturalismo presume, tal como o fizera o projeto da cultura nacional, o
caráter ‘totalista’, sistêmico, da cultura. Apenas inverte a avaliação da copresença de tantas dessas ‘totalidades’
num único domínio político e postula sua forçosa continuação lá onde o projeto de cultura nacional propugnava
sua dissolução orientada num único sistema de cultura nacional” (BAUMAN, 2012, p. 60).
33
A este respeito existem importantes apontamentos em ORTIZ, 1992.
71

O longo período que este trabalho abarca, ou seja, de fins do século XIX até o fim
da Segunda Guerra Mundial, corresponde, num primeiro momento, a um processo
transnacional por meio do qual a “versão romântica” do conceito de cultura “evoluiu com o
passar do tempo para uma versão ‘científica” (EAGLETON, 2011, p. 44). Eu escolhi buscar
especificamente no campo do americanismo (isto é, a antropologia voltada especificamente
para o estudo dos povos nativos americanos) as conexões intelectuais transnacionais que
mostram como a consolidação do conceito antropológico de cultura esteve crescentemente na
dependência de negociações com os povos que, a princípio, seriam apenas “objeto de estudo”
da moderna ciência ocidental. O progressivo interesse de americanistas estadunidenses e
europeus pela América do Sul colocou esses antropólogos em contato com intelectuais de
territórios periféricos que logo também se tornaram sujeitos da modernidade por meio do
contato com o conceito de cultura: a partir da década de 1920 já é possível notar um movimento
generalizado na América Latina de reformulação de seus respectivos Estados-nações a partir de
projetos estruturados na ideia de cultura nacional, e esta tese se ocupará especificamente desses
desdobramentos no Brasil. Sobre o potencial político da ideia de cultura, Eagleton ainda afirma
o seguinte:

À medida que a nação pré-moderna dá lugar ao Estado-nação moderno, a estrutura de


papéis tradicionais já não pode manter a sociedade unida, e é a cultura, no sentido de
ter em comum uma linguagem, herança, sistema educacional, valores compartilhados
etc., que intervém como o princípio de unidade social. A cultura, em outras palavras,
chega intelectualmente a uma posição de destaque quando passa a ser uma força
politicamente relevante. (EAGLETON, 2011, p. 42)

Em síntese, o que temos nesse primeiro momento é: 1) o “sujeito do conhecimento”


do mundo civilizado ocidental (composto agora pelas culturas europeias e estadunidense)
analisando os “objetos” que eles consideram culturas “não-civilizadas” ou “não-modernas”, por
um lado; e 2) Estados-nações periféricos (ex-colônias) se construindo como nações modernas
pela compreensão de suas próprias “culturas” (tomando a si próprias como objeto do
conhecimento, portanto) como forma de fazer frente ao avanço subordinador das nações que se
pretendiam “já civilizadas”. Todos esses aspectos serão abordados em maiores detalhes no
“Parte I” desta tese.
É preciso notar, no entanto, que as duas guerras mundiais lançam alguns
complicadores nesse quadro. Entre as décadas de 1890 e 1920 a posição de sujeito do
conhecimento dos antropólogos estadunidenses e europeus se consolida num momento em que
o campo antropológico conquista um relativo grau de autonomia em relação aos interesses
72

políticos hegemônicos de seus respectivos Estados-nacionais. O campo americanista


transnacional, cada vez mais guiado pela liderança de Franz Boas, compunha-se então, como
veremos, de antropólogos que se identificavam mais por valores como o anti-imperialismo, o
internacionalismo, o pacifismo e mesmo o socialismo do que por uma postura teórica rígida. É
certo que Boas continuava defendendo as realizações da cultura germânica diante dos ataques
nativistas de estadunidenses aos imigrantes alemães que viviam nos EUA, e que o grupo de
etnólogos franceses que também fazia parte dessa rede e estava reunido em torno de Paul Rivet
(1876-1958) não abriu mão da situação colonialista para empreender seus estudos. Mas o
estabelecimento de uma pesquisa antropológica liberta dos usos imperialistas e racistas era, sem
dúvida, prioritário. Essa situação se transformaria, no entanto, depois da Primeira Guerra
Mundial e, principalmente, ao longo e depois da Segunda Guerra Mundial.
A partir de então, a interferência do governo estadunidense foi cada vez mais
perceptível na condução das pesquisas antropológicas, e isso configura um segundo momento
da narrativa a ser apresentada nesta tese. A antropologia aplicada ao esforço de guerra ou ligada
ao projeto de hegemonia estadunidense nas Américas, que chamarei de antropologia
interamericanista, ganhou cada vez mais espaço, e a relação entre “civilização” e “cultura” foi
reformulada como o avanço da “civilização” estadunidense (agora o suposto berço e guardião
da liberdade e da democracia ocidentais) por sobre as demais “culturas” americanas, que
deveriam seguir a liderança conquistada pela nação irmã do Norte. Esses aspectos serão
esmiuçados na “Parte II”, mas é interessante adiantar que essa nova postura da antropologia
estadunidense em relação ao mundo brasileiro gerará tanto oportunidades quando reações, com
implicações para o conceito de “cultura nacional” que aqui vinha sendo construído.
Isso tudo demonstra, portanto, uma imbricação íntima entre um campo
antropológico transnacional e a ampliação do alcance espacial da ideologia moderna por meio
da dinâmica das disputas estabelecidas entre diferentes Estados nacionais. O que atravessa esse
inter-relacionamento é o conceito plural de cultura, e essas disputas contaminarão também
Estados latino-americanos, a exemplo do brasileiro.
Na última parte desta tese apresentarei então um conflito específico em torno de
projetos de restruturação modernizadora do Estado-nação brasileiro a partir de apropriações
estratégicas do conceito de cultura nacional, de modo a investigar de maneira concreta esses
inter-relacionamentos transnacionais. Todos esses movimentos transnacionais puseram à
disposição dos intelectuais brasileiros tradições, relações e oportunidades que se configurariam
em diferentes projetos para a nação. As particularidades desses projetos podem ser analisadas
em termos de diferentes blends entre as ideias de civilização e cultura, conformando, assim,
73

significados diversos para o conceito de cultura nacional a partir de sua identidade peculiar,
identidade esta materializada em seu patrimônio cultural e orientada por uma concepção
específica de futuro partilhado.
Uma primeira configuração se relaciona mais diretamente com o grupo do Museu
Nacional, sob a liderança de Heloisa Alberto Torres (1895-1977). Essa configuração ressaltava
que a nação só seria reconhecida como “civilizada” a partir da sua capacidade de conhecer a
diversidade cultural que lhe pertenceria, ou seja, o Estado-nação representava o polo da
“civilização” ocidental, enquanto os povos indígenas e mesmo os sertanejos representavam as
“culturas” a serem conhecidas. Eles deveriam ser preservados pelo Estado porque em sua
“primitividade” residiria uma grande riqueza científica (tanto maior pelo fato de nossos
“botocudos” representarem, para esses intelectuais, um dos mais remotos graus de
primitividade conhecidos): a possibilidade de descobrir o que, a partir do passado, condicionou
todo o progresso da civilização humana. Essa seria a chave, inclusive, para conhecer o seu
futuro. Caberia ao Estado, portanto, dentro de uma perspectiva diretamente influenciada pelo
pensamento positivista, garantir tanto o “desenvolvimento” soberano desses povos quanto, ao
mesmo tempo, integrá-los de maneira eficaz ao organismo nacional. Isso será abordado
especificamente nos capítulos “9” e “10”.
Uma outra configuração pode ser observada no projeto encabeçado por Mário de
Andrade em São Paulo. Agora se tratava de conhecer a própria “cultura” brasileira como forma
de defesa contra o avanço de um projeto civilizacional já esgotado. O “outro” a ser conhecido
guardaria, neste caso, uma identidade profunda com o próprio “sujeito do conhecimento”. O
nosso “sertanejo”, um remanescente das condições raciais e mesológicas formadoras da
nacionalidade, estaria afastado no tempo, ainda que contemporâneo; mas é em sua
“primitividade” que residiria a essência da nacionalidade a orientar um projeto original de
modernidade. A concepção estetizada de sociedade advinda do modernismo de Mário de
Andrade e suas ações objetivando implementar esse projeto nacional correspondem
perfeitamente ao uso que as vanguardas, de modo geral, fizeram do conceito de cultura. 34 Por
outro lado, há ainda uma concepção de “civilização”, agora identificada aos valores liberais
estadunidenses, que seria apropriada pela classe média paulista (e por sua intelligentsia) em

34
“Tradição e modernidade, por conseguinte, podiam ser agradavelmente harmonizadas, projeto que o
estruturalismo havia herdado, inacabado, do auge do modernismo. A mentalidade mais avant-garde, assim, fazia
uma meia-volta completa para se encontrar com a mais arcaica; com efeito, para alguns pensadores românticos era
só dessa forma que uma cultura ocidental dissoluta podia ser regenerada. Tendo chegado a um ponto de decadência
complexa, a civilização podia refrescar-se somente na fonte da cultura, olhando para trás a fim de caminhar para
frente. O modernismo, dessa maneira, engatou a marcha a ré no tempo, descobrindo no passado uma imagem do
futuro” (EAGLETON, 2011, p. 46-47).
74

seus projetos de liderança da modernização do país, produzindo uma especificidade cultural


paulista voltada para esse fim. Tratarei dessas especificidades nos capítulos “11” e “12”.
É justamente essa a tensão presente no triângulo epistolar transcrito no “Capítulo
epigráfico” desta tese. A situação é tanto mais complexa pelo fato de que essas duas formas
bastante distintas de relacionamento do conceito de civilização com o de cultura ainda se viam
enfrentando uma terceira: aquela que identificava a cultura como Bildung a ser realizada no
Estado, representada pelos modernistas mineiros e arquitetos cariocas à frente do SPHAN, para
os quais a civilização brasileira era parte e continuação da civilização ocidental – conhecê-la e
cultivá-la, por meio de seus monumentos do passado, ou seja, o legado branco, português e
católico do período colonial, cujo ápice seria representado pela sociedade mineira (RUBINO,
1996), era o modo por meio do qual o Estado moderno brasileiro (o Estado Novo) contribuiria
para o cultivo da civilização universal (CHUVA, 2009). Esse conflito de perspectivas, que ainda
não esgota o assunto (há ainda outras configurações regionais que não serão analisadas nesta
tese, em especial a pernambucana e a baiana, e, além disso, existiam também perspectivas
conflitantes entre si tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo), não pode ser resumido, no
interior do campo patrimonial brasileiro, a uma única “fase heroica” das políticas culturais
brasileiras.
O conceito de cultura que permeia toda a narrativa desta tese conecta-se
diretamente, portanto, com o conceito de Kultur surgido no século XVIII, no interior de
conflitos entre grupos sociais europeus específicos, conforme demonstrou Norbert Elias. Trata-
se, como vimos nas proposições de Zygmunt Bauman, de um instrumento que se voltou para
ordenar os impulsos orientados para um futuro ainda incerto aberto pela experiência moderna
do tempo, sobretudo como defesa nacionalista diante do avanço universalizante de uma
ideologia moderna marcadamente individualista, de acordo com Louis Dumont. O conceito de
cultura foi apropriado, posteriormente, nas disputas intelectuais brasileiras, assim como o
conceito de civilização, num formato já moldado para a projeção de identidades nacionais, de
modo que o conceito de “cultura nacional” brasileira também comportou diferentes doses de
individualismo, holismo e universalismo em sua composição. Diferentemente do que teria
sugerido Dumont e de acordo com Mariza Peirano, no entanto, essas distintas concepções de
“culturas nacionais” também produziram antropologias, partindo tanto de uma perspectiva mais
universalista quanto de outra mais holista. Neste ponto é que se torna possível perceber a íntima
relação entre projetos modernos de nação e a institucionalização das ciências sociais, conforme
salientam Bauman e, especialmente, Terry Eagleton. Mas enquanto Peirano associa essa relação
como sendo permeada sobretudo por um ideal educacional (PEIRANO, 1981, especialmente
75

capítulo 2: “Historical setting: social sciences in the 1930’s”), eu decidi explorar os vínculos
das ciências sociais brasileiras com o campo do patrimônio histórico e artístico oficial por meio
de um processo relacional histórico e transnacional. Com isso será possível lançar luz a outros
espaços de disputa significativos permeados pela definição de uma modernidade nacional por
meio do desvendamento de sua cultura “objetiva”.
Ainda resta, no entanto, uma distinção fundamental a ser explicitada. É possível
afirmar que tanto Bauman quanto Eagleton concebem os conceitos de “civilização” e “cultura”
como algo semelhante a “discursos” produzidos por determinados sujeitos como forma de
legitimar certas relações de dominação. Nesta tese, como já salientei, os “conceitos”, assim
como “os patrimônios etnográficos e artísticos”, são tomados como os “elementos do meio”
que permitem realizar a produção tanto dos sujeitos quanto dos objetos da modernidade. Eles
podem ser chamados, portanto, como pude mostrar acima, de híbridos, cuja mediação é
fundamental para a expansão da ideologia moderna por meio da produção de seus sujeitos e
objetos.

2.4. PROCEDIMENTOS

2.4.1. História transnacional

Nos EUA já se reconhece o boom relativo ao interesse pela história transnacional,


e se fala até mesmo em uma transnational turn desde pelo menos o início deste milênio.35 O
termo transnational foi o mais usado (buzzword) no mundo acadêmico estadunidense entre o
final da década de 1980 e o início da década de 1990, até que transnationalism explodiu a partir
de 1994.36
Na França essa tendência historiográfica recebeu, com algumas especificidades, o
nome de história cruzada (histoire croisée) (WERNER e ZIMMERMANN, 2003). Na
Alemanha manteve-se a nomenclatura mais corriqueira: Transnationale Geschichte (CLAVIN,
2005) – ainda que o seu principal representante, Jürgen Osterhammel (SILVA, 2011), aconselhe
uma adoção cautelosa da perspectiva transnacional, que não deve simplesmente sepultar a
“história comparada” (OSTERHAMMEL, 2009), como defende, por exemplo, a historiadora

35
Cf. NGAI, 2012; CURTHOYS e LAKE, 2005; WEISTEIN, 2008 e 2013; CLAVIN, 2005; SEIGEL, 2005;
IRIYE, 2007; SAUNIER, 2009; KNUDSEN e GRAM-SKJOLDAGER, 2014; STRUCK, FERRIS e REVEL,
2011; TURCHETTI, HERRAN e BOUDIA, 2012; PURDY, 2012.
36
Essas informações baseiam-se em estudo realizado por Gustavo Cano em 2005, mencionado por Saunier (2009)
e Turchetti et. al. (2012).
76

Micol Seigel (2005) e os defensores da história cruzada. Ainda que a perspectiva transnacional
já tenha rendido importantes estudos até mesmo na Austrália (CURTHOYS e LAKE, 2005),
por causa sobretudo dos estudos de gênero e de relações raciais, a sua entrada no campo latino-
americanista é bastante recente, mesmo que seja saudada por nomes como Bárbara Weinstein
(2008 e 2013), Sean Purdy (2012) e Maria Ligia Coelho Prado (2012).
No campo da história da ciência a abordagem também tem demorado a render
reflexões teóricas sobre a perspectiva transnacional, embora tenha há muito tempo trabalhado
com ela de maneira implícita (TURCHETTI et. al., 2012). O mesmo poderia ser dito a respeito
de um grande número de estudos mais recentes a respeito da história das ciências sociais
realizados a partir do Brasil: embora ainda não tenham rendido reflexões teóricas mais
sistemáticas a respeito dos fluxos e relações transnacionais, eles têm certamente apontado para
a insuficiência dos recortes nacionais para as narrativas sobre as quais se debruçam.37
Um dos aspectos que mais me chamou a atenção nesta pesquisa foram os diversos
tipos de conexões e fluxos estabelecidos entre intelectuais e instituições vinculados aos
problemas conceituais e ideológicos que me interessam mais diretamente. A abordagem
transnacional objetiva, dentre outras coisas, oferecer uma opção narrativa que dê conta de
movimentos e espaços não percebidos pelos instrumentos heurísticos da tradicional história
nacional.
Se considerarmos que a modernidade se espalhou mundialmente por meio da
construção de Estados nacionais em diversos contextos culturais particulares, os fluxos
transnacionais seriam frutos principalmente dos movimentos de resistência que estariam
situados, portanto, contra ou para além dos limites definidos por esses mesmos Estados. A
história transnacional seria, portanto, um importante instrumento de resistência aos projetos
modernizadores de elites nacionalistas por meio da produção de contranarrativas que dessem
visibilidade a formas de sociabilidade alternativas, forjadas justamente pela experiência da
resistência anticolonial, anti-imperialista ou mesmo antiglobalização. Essa postura é encontrada
sobretudo em historiadores(as) mais diretamente comprometidos com uma perspectiva pós-
colonial, como Micol Seigel (2005) e Sean Purdy (2012). No entanto, pretendo demonstrar

37
Só muito recentemente a revista Temporalidades (2016), da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, conseguiu reunir alguns estudos esparsos dentro de uma perspectiva que
pretende transcender as narrativas nacionais. Mas, ainda assim, isso não significou uma discussão mais específica
e aprofundada sobre a “história transnacional”. A história “transnacional” aparece apenas como mais uma
tendência ao lado da Global History, da World History, da Connected History, da Shared History, das Histórias
Comparadas, da Big History, da Histoire Croisée, da Atlantic History, dos Estudos Subalternos e Pós-Coloniais
“dentre outros” (Informações disponíveis em
https://seer.ufmg.br/index.php/temporalidades/issue/view/1984615021/showToc).
77

nesta tese que a produção de ideologias e relações calcadas no nacionalismo também


dependeram de fluxos transnacionais.
Os fluxos que eu identifiquei em minha pesquisa não cabem no recorte da “história
do Brasil”, ainda que digam respeito diretamente ao problema da produção da identidade
nacional brasileira. Foram os conceitos de civilização e cultura que puseram em movimento
uma extensa rede transnacional na qual passaram a se conectar pessoas, a circular textos e
artefatos e a se produzirem novos “híbridos”, como aqueles que foram descobertos por Bruno
Latour no processo de expansão global da modernidade. É por isso que, em vez de me lançar a
uma “história dos conceitos de civilização e cultura no Brasil” ou a uma possível “história
comparada” desses mesmos conceitos, o que precisei fazer aqui foi imaginar uma forma de se
produzir uma “história transnacional da modernidade” que levasse em conta, especialmente,
híbridos como os conceitos de civilização e cultura38 e o próprio patrimônio cultural. Esta
narrativa se inicia nos idos da década de 1890 no hemisfério Norte, entre antropólogos
interessados tanto na definição dos aspectos mais elementares da humanidade quanto das
características específicas do “homem americano”, e ganha novo vigor no interior dos conflitos
nacionalistas suscitados pelas duas grandes guerras, com implicações para a reprodução do
mundo moderno, em novos moldes, nos próprios países periféricos como o Brasil.
A história transnacional, embora disponibilize uma nova perspectiva de análise, não
é capaz de criar, a priori, nenhum método abrangente que dê conta dos diversos tipos de espaços
e movimentos inaugurados no mundo moderno. Todavia, ela proporciona uma grande abertura
para experimentações que possam dar conta de uma história transnacional útil para relatar o que
li em milhares de páginas de cartas e documentos, e que permitam trazer à tona vozes e
conexões em seus sentidos pretéritos e de forma a mais significativa possível para o
enfrentamento da modernidade contemporânea, com todas as suas crises, persistências e
especificidades.
A perspectiva transnacional também é capaz de embaralhar a direção dos fluxos
tradicionalmente apresentados pela metanarrativa da modernização. A modernidade não é
apenas imitada unilateralmente, movimentando-se da Europa em direção ao resto do mundo.
Com efeito, a sua produção depende de negociações que vão além de invenções e decisões
emanadas do “berço da civilização ocidental”. As ex-colônias produzem suas próprias
modernidades em função de redes de poder que, se por um lado passam por determinados

38
João Paulo Pimenta chama a atenção para a insuficiência de uma “história comparada” dos conceitos para o
mundo ibero-americano entre os anos 1750 e 1850 (PIMENTA, 2008). A história dos conceitos no Brasil, no
entanto, ainda é predominante voltada para os séculos XVIII e XIX e para o recorte nacional.
78

espaços nacionais, por outro se distribuem por lugares que ultrapassam o território da nação.
Quando um Estado moderno europeu ampara o seu discurso de superioridade civilizacional em
artefatos conseguidos em lugares outros, sua modernidade é construída por entre diversos
espaços nacionais. Quando um(a) ou um intelectual brasileiro(a) goza de credibilidade em
instituições voltadas para a consolidação de projetos nacionais em função de seu trânsito
internacional o que se tem é o mesmo. Por isso é que não são os Estados-nações os agentes da
modernização do planeta, como querem as histórias nacionais, mas sim os híbridos que criam,
em sua circulação, subjetividades e objetividades modernas. O que essas pessoas subjetivadas
fazem é canalizar os fluxos desses recursos para a criação das verdadeiras represas de poder
que são os Estados-nação e suas diversas instituições. O que possibilita a transformação dessas
pessoas e dessas instituições são, portanto, as redes nas quais elas se situam, e não as nações
às quais elas pertencem. A própria noção de nacionalidade (ou melhor, de “culturas nacionais”)
flui por meio de redes, e por isso o modo pelo qual nos consideramos brasileiros depende muito
mais das pessoas e das coisas – ou melhor, dos híbridos – com os quais nos relacionamos do
que do território no qual estamos situados. Isto está de acordo com a constatação da teoria pós-
colonial de que as identidades são descentradas (HALL, 2006), reforçando apenas que elas
fluem em função de configurações relacionais específicas e não necessariamente se restringem
a espaços nacionais.
Ao mesmo tempo, esta abordagem permite lançar luz sobre ações que permitiram
naturalizar a ideia de nacionalidade a tal ponto que ainda é possível encontrar cientistas sociais
e historiadores(as) pensando holisticamente em caminhos para o desenvolvimento nacional.
Mae Ngai, por exemplo, compartilha desse diagnóstico chamando a atenção para uma difusão
ainda maior do nacionalismo para o caso da produção estadunidense:

No seu melhor, a história transnacional repensa não apenas a história nacional, mas
também desafia a história nacionalista. Se a convenção disciplinar toma a nação como
o suposto objeto da história, um legado mais pernicioso espreita abaixo, a nação como
sujeito ou, como seria em Hegel, a Nação como História. As maiores apostas estavam
aqui, a meu ver. Por mais que todos nós tenhamos renunciado à história teleológica,
o nacionalismo continua uma influência poderosa sobre a escrita da história. A ideia
de alguma “grandeza” única, realizada por uma história linear, permanece no âmago
de toda estória nacional de si mesma. Essa história é reiterada na mídia popular, nos
livros didáticos, nas exibições de museus e nas falas de políticos eleitos, e ainda está
presente na história acadêmica, mesmo que expressa de maneira mais sutil. (NGAI,
2012)39

39
“At its best, transnational history rethinks not just national history but also challenges nationalist history. If the
disciplinary convention takes the nation as the assumed object of history, a more pernicious legacy lurks beneath,
the nation as subject or, as Hegel would have it, the Nation as History. The greatest stakes lay here, in my view.
79

Se o que foi acima descrito ocorre isso se dá porque as redes que permitiram a
construção de uma nação moderna transcendental foram apagadas da nossa memória. A
separação entre os sujeitos e os objetos dos projetos nacionais e os híbridos que ela produziu
por meio de conexões bastante concretas foi perdida de vista, talvez por causa de uma prática
historiográfica carente de instrumentos que lhe permitisse enxergar para além dos limites da
nação.
Dentre os instrumentos que permitem resgatar essas conexões está a possibilidade
trazida pela história transnacional de operar com jogos de escala temporal e espacial. A análise
transnacional não é, a priori, nem micro- e nem macroscópica, mas, mais corretamente,
multiscópica. As próprias escalas se cruzam, portanto, no interior da perspectiva transnacional:

Abordar as questões de escala ao mesmo tempo como dimensão intrínseca ao objeto


e como opção cognitiva ou metodológica escolhida pelo pesquisador, implica uma
ruptura com uma lógica de escalas pré-constituídas, mobilizadas automaticamente,
como é comum para o nacional ou para as grandes datas da cronologia política que se
impõem como quadros naturais de análise, definidos independentemente do objeto.
(WERNER e ZIMMERMANN, 2003, p. 101)

Deste modo, o que eu posso pretender com este relato é apenas apresentar uma
forma específica de articulação de um nível relacional mais restrito, micro, com conjuntos mais
amplos de relações que podem se encontrar em espaços diversos, produzindo transformações
que precisam ser apresentadas em seus efeitos concretos e em seus diversos níveis de impacto.
Em vez de buscar por pais fundadores ou heróis nacionais, a perspectiva multiscópica
transnacional permite encontrar pessoas ocupando posições específicas em redes relacionais,
com um maior ou menor grau de centralidade, ora visíveis, ora silenciadas, em conflito ou em
consenso com outras pessoas não necessariamente anuladas por sua presença brilhante em
alguns momentos, ofuscada em outros. É essa perspectiva que, a meu ver, permite conectar a
vivência de pessoas comuns à produção da modernidade, a perceber a interdependência entre
elas, os seus movimentos, as suas trocas, os fluxos e refluxos e as diferentes temporalidades da
rede cada vez mais interconectada do mundo moderno. Assim

A abordagem em termos de cruzamento favorece a ultrapassagem dos arrazoados que


opõem micro e macro, insistindo pelo contrário em sua inextricável imbricação. A

For as much as we have all forsworn teleological history, nationalism remains a powerful influence upon the
writing of history. The idea of some unique "greatness," fulfilled by linear history, remains at the core of every
nation's story of itself. That story is reiterated in the popular media, in schoolbooks, in museum exhibits, and in
the speeches of elected officials, and it is still present in academic history, even if in more subtle expression”.
80

noção de escala, neste caso, não remete ao micro ou ao macro, mas aos diferentes
espaços em que se inscrevem as interações constitutivas do processo analisado. Em
outros termos, as escalas que nos interessam são aquelas construídas ou mobilizadas
nas situações estudadas, e são tanto espaciais quanto temporais, e suas variações não
são o apanágio exclusivo do pesquisador mas também o produto dos protagonistas das
situações estudadas. (WERNER e ZIMMERMANN, 2003, p. 103)

No que diz respeito ao jogo de escalas especificamente temporais, é preciso lembrar


que não se trata também apenas de se definir a “duração correta” da narrativa a ser apresentada.
Tampouco se trata de desvendar uma sequência cronológica indicadora de algum tipo de
desenvolvimento ou uma estrutura subjacente que explicaria os comportamentos humanos num
dado contexto. Werner e Zimmermann (2003) nos lembram assim de que o ponto de vista da
história cruzada se aproximaria aqui do que Reinhart Koselleck chama de “não-
contemporaneidade do simultâneo” ou de “simultaneidade do não-contemporâneo”, o que
significa dizer que a história de cruzamentos, de inter-relacionamentos, é também uma história
do encontro de temporalidades distintas, de sentidos que se entrecruzam e se transformam. É
também uma história que se produz no encontro/confronto entre os diversos topos mobilizados
por aqueles que se debruçam sobre os mesmos problemas. É, por fim, um cruzamento entre a
temporalidade do(a) pesquisador(a) e daquilo que (ou de quem) é interrogado. A abertura a
todos esses entrecruzamentos, presentes em todas as formas de relacionamento humano e, mais
especificamente, de produção de conhecimento na área das ciências humanas, é capaz de
enriquecer a nossa própria experiência do tempo no presente, libertando-nos da temporalidade
imposta pelos marcos da história nacional e, de maneira mais ampla, da narrativa globalizante
da modernização. Produz-se assim uma relativização de perspectivas que, ao contrário de
afastar as pessoas entre si por causa de um relativismo vazio, na verdade abre novas
possibilidades de diálogo e de mútua compreensão/tradução. Nesse sentido, a história cruzada,
assim como a Connected ou Shared history, teria, segundo Werner e Zimmermann,

a ideia de “reconectar” histórias separadas, especialmente a partir do estancamento


produzido pela expansão das historiografias nacionais. Mas, enquanto estas propostas
se colocam prioritariamente numa perspectiva de “restabelecimento/reabilitação” de
uma realidade perdida, a história cruzada convida o pesquisador a levar em conta sua
própria implicação no processo estudado. A atenção dada à pluralidade dos pontos de
vista possíveis, aos distanciamentos produzidos pelos idiomas, terminologias,
categorizações e conceptualizações, tradições e usos disciplinares, acrescenta uma
dimensão suplementar à pesquisa. Diferentemente de uma simples restituição de um
“já lá”, a história cruzada insiste naquilo que, num empreendimento autorreflexivo,
pode ser gerador de sentido. (WERNER e ZIMMERMANN, 2003, p. 115)
81

O termo “jogo de escala” (jeux d’échelle) foi talvez trazido pela primeira vez para
o campo da história transnacional por Bernhard Struck, Kate Ferris e Jacques Revel num artigo
relativamente recente (2011). A afirmação de que a história transnacional é uma perspectiva de
estudo, não um método específico, foi apresentada justamente nesse artigo, marcando uma clara
posição, portanto, entre os(as) historiadores(as) que pretendem regular metodicamente os
procedimentos da história transnacional (desvinculando-a, por exemplo, da história
comparada), e os(as) que permanecem mais cautelosos com relação a esse tipo de prescrição.
Há um distanciamento inclusive das discussões sobre se se deveria adotar a perspectiva indutiva
ou dedutiva na história transnacional, como o fazem Werner e Zimmermann com a sua proposta
de uma “indução pragmática”. O que Struck et alii tentam mostrar é que, se por um lado a
própria reflexão intelectual trazida pelos processos de descolonização e de globalização
evidenciaram que as metanarrativas da modernização, centradas na escala dos Estados
nacionais, perderam sua credibilidade, por outro lado não se faz necessário o abandono in totum
da escala nacional, que passa a ser vista como uma escala possível dentre outras (STRUCK et
al., 2011, p. 576).
Isso significa que a única forma de evidenciar o real significado das construções
nacionais no modo pelo qual as relações de poder perpassam as redes que conectam pessoas e
coisas das mais variadas formas é ampliando e diminuindo o foco do relato historiográfico. Não
se trata, portanto, no caso desta tese, de delimitar os conceitos de civilização e cultura e deduzir
que, a partir deles, organizou-se toda uma coletividade na escala de um Estado-nação. É preciso
entender como esses híbridos participam de produções concretas no interior de redes relacionais
fluidas, assimétricas e cuja abrangência é, ao mesmo tempo, mais restrita que e não comportada
pelos limites da ideia de nação. Em outras palavras, o jogo de escalas da história transnacional
permite perceber de modo mais palpável como a modernidade, em suas formas universalistas e
holistas, é produzida por e produz os seus sujeitos e objetos ora em escala local, ora regional,
ora transregional, ora nacional e ora transnacional.
A história transnacional almeja, portanto, superar os estudos “monoscópicos” de
modo a complexificar a historiografia voltada para a questão nacional. Torna-se, desse modo,
possível ir além da história macroestrutural que predominou nas décadas de 1960-70,
enriquecer a micro-história das décadas de 1980-90 e repensar a novamente macro-história dos
processos de globalização mais recente. Quando eu me volto, portanto, para redes intelectuais
identificáveis por meio do trânsito de correspondências, isso não significa necessariamente
restringir o significado de minha pesquisa; pelo contrário: a perspectiva transnacional
possibilita justamente que os consensos e conflitos produzidos num conjunto finito de relações
82

possam ser conectados concretamente ao problema mais amplo da construção de modernidades


e da institucionalização desse ideal social no Estado. Como nos lembra Mae Ngai (2012), este
é um problema que está longe de ter esgotado o seu significado.
Se com esta pesquisa eu não tenho a pretensão de resolver definitivamente o
problema da modernidade, por outro lado a perspectiva da história transnacional parece ser a
mais adequada a fim de conectar esse amplo processo a redes relacionais bem mais específicas.
Ao mesmo tempo, essa perspectiva permite tratar de relações de poder que fluem para além das
fronteiras da nação e que ocorrem na escala das relações institucionais e interpessoais voltadas
para a produção de modernidades como as que se desdobraram em algumas regiões brasileiras.
Este tipo de narrativa poderá, a partir daí, (1) lançar luz em formas específicas de produção e
reprodução do mundo moderno que não são uma simples consequência da “civilização
Ocidental” nascida em países como França e Inglaterra; (2) entender melhor o processo de
produção de híbridos, sujeitos e objetos a partir de redes transnacionais, e cuja circulação e
produção não podem ser considerados simplesmente unidirecionais; (3) refletir acerca dessas
metanarrativas unilaterais, etnocêntricas e centradas nos Estados nacionais que, ainda hoje,
circulam entre nós.

2.4.2. Os arquivos

2.4.2.1. Arquivos burocráticos

Boa parte dos arquivos consultados nesta pesquisa correspondem a espaços geridos
pelo Estado. Ainda que tenham finalidades diferentes e mantenham relações específicas entre
coleções documentais, interesses de seus(suas) criadores(as) e doadores(as), público
pesquisador e gestores(as)/funcionários(as), todas essas instituições arquivísticas40
representam, de um modo ou de outro, aquela arkhê à qual alude Derrida (2001). Todas elas
criam e protegem a materialidade que inscreve o sentido de nações modernas. Todas elas têm
a função nomológica e topológica de materializar a existência de histórias inscritas na

40
A Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional e o Arquivo Central do IPHAN (ambos no Rio de Janeiro),
o arquivo da 9ª Superintendência Regional do IPHAN, em São Paulo, os National Anthropological Archives, da
Smithsonian Institution, em Washington D.C., os arquivos da American Philosophical Society, na Filadélfia, e da
Rare Book & Manuscripts Library, da Columbia University, em Nova York. Ao final desta tese eu apresento um
“Apêndice” no qual eu trato, de modo mais detalhado, daquilo que chamo de minha “crônica da chegada nos
arquivos”.
83

metanarrativa da história da nação e da modernidade. A este respeito, Nicholas Dirks afirma o


seguinte:

O arquivo é a instanciação do interesse do Estado na história. Ele sobrevive como os


resquícios das salas de registro dos negócios governamentais cotidianos, e ele é
monumentalizado pelo Estado a fim de preservar a sua própria história no pretenso
nome da nação (ou colônia) ao invés do Estado (ou metrópole). O monumento
preserva muito do seu legado sagrado – com suas estruturas hierárquicas, seus
procedimentos labirínticos, seus protocolos profissionais – consagrando o Estado
secularizado com a total solenidade do passado. (DIRKS, 2015, p. 49)41

Dirks também nos lembra, apoiado em Koselleck e em Foucault, que a


temporalidade é uma importante forma de governo, ou melhor, de “governamentalidade”, do
Estado: “a história serviu como a principal forma de governamentalidade ao mesmo tempo em
que a governamentalidade se expressou por meio de categorias do pensamento e da escrita
históricos” (DIRKS, 2015, p. 47).42 Nos arquivos do Estado os documentos ganham sentido no
interior da narrativa nacional. O mesmo ocorre com as hierarquizações, com os procedimentos
e com os inimigos que suas “evidências” apresentam. Embora a organização do arquivo seja
realizada pelos agentes do poder do Estado, o conhecimento que ele disponibiliza às gerações
futuras é apresentado “na forma cultural de um repositório neutro do passado” (DIRKS, 2015,
p. 47).43
É preciso, portanto, ir além dos próprios documentos e compreender as instituições
que os tornaram disponíveis. Para isso é inevitável conhecer da melhor forma possível não
apenas o que estas instituições tornam visíveis, mas, como atesta Ann Laura Stoler, conhecer
os seus “segredos”. Os “segredos de Estado” são, segundo Stoler,

uma daquelas convenções-chave de ocultamento que produzem os “espaços obscuros”


aos quais [Mary] Douglas se refere: tais sombras são projetadas por pessoas com
títulos ocultos; escritórios com nomes indecifráveis; peças de papel que se tornam
“desaparecidas”, inacessíveis, “mal catalogadas”, e assim se tornam inúteis e
irrelevantes. Espaços obscuros são o que o Estado cria, convenções emblemáticas da
forma arquivística. Estados fazem mais do que traficarem a produção de segredos por

41
“The archive is the instantiation of the state’s interest in history. It survives as the remains of the record rooms
of everyday governmental business, and it is monumentalized by the state to preserve its own history in the assumed
name of the nation (or colony) rather than the state (or metropole). The monument preserves much of its sacred
legacy – with its hierarchical structures, its labyrinthine procedures, its professional protocols – enshrining the
secularized state with the full solemnity of the past”.
42
“History served as a principal form of governmentality at the same time that governmentality expressed itself
through the categories of historical thought and writing”.
43
“The archive, that primary site of state monumentality, was the institution that classified and canonized the
knowledge required by the state even as it made this knowledge available for subsequent generations in the cultural
form of a neutral repository of the past”.
84

meio de sua disseminação seletiva. A soberania estatal reside no poder de designar


fatos sociais arbitrários do mundo como assuntos de segurança e adstritos ao Estado.
Uma vez assim designados, estes fatos sociais […] são deslocados dos seus contextos,
arremessados na órbita de um mundo político que frequentemente é outro que não o
seu próprio. (STOLER, 2009, p. 25-26)44

As pesquisas de Dirks e Stoler estão diretamente relacionadas a arquivos coloniais,


como já foi mencionado acima.45 Todavia, as especificidades desses arquivos chamaram a
atenção para as complexas relações travadas nos seus espaços: Dirks percebeu que os arquivos
coloniais “codificam uma grande quantidade de níveis, gêneros e expressões do que Foucault
chama de ‘governamentalidade” (DIRKS, 2015, p. 42),46 como já foi mencionado acima. Stoler,
por sua vez, chama a atenção para “ansiedades epistemológicas” presentes na conformação
desses arquivos e que só podem ser captadas processualmente, pois trata-se de uma conflitiva
produção de um senso comum a respeito das tecnologias arquivísticas geridas pelo Estado
imperial no interior de um “campo de forças” em constante transformação.47 Considero por isso
ser pertinente pensar nos demais arquivos burocráticos, em especial aqueles ligados aos projetos
modernos de sociedade desenvolvidos por meio das tecnologias estatais, de maneira análoga à

44
“Archivists are the first to note that to understand an archive, one needs to understand the institutions that it
served. ‘State secrets’ are one of those key conventions of concealment that produce the ‘shadowed places’ to
which Douglas refers: such shadows are cast by persons with cryptic titles; bureaus with nondescript names;
pieces of paper that become ‘lost’, inaccessible, ‘miscatalogued’, and thus are rendered unusable and irrelevant.
Shadowed places are what states create, emblematic conventions of the archival form. States do more than traffic
in the production of secrets and their selective dissemination. State sovereignty resides in the power to designate
arbitrary social facts of the world as matters of security and concerns of state. Once so assigned, these social facts
[…] are dislodged from their contexts, flung into the orbit of a political world that is often not their own”.
45
Cf. também, a respeito dessa perspectiva específica, Olívia Maria Gomes da Cunha (2004) e Antoinette Burton
(2005).
46
“The archive encodes a great many levels, genres, and expressions of what Foucault has called
‘governmentality”.
47
“[…] estes arquivos não são simplesmente relatos de ações ou registros do que as pessoas pensaram ter
acontecido. Eles são registros das incertezas e dúvidas sobre o que as pessoas imaginavam que poderiam fazer
para que os títulos das normas correspondessem a um mundo imperial em transformação. Não menos importante,
eles gravam os ansiosos esforços para ‘capturar’ o que estava emergindo e ‘se tornando’ em novas situações
coloniais. Ontologias são tanto produtivas quanto responsivas, tanto expectantes quanto defasadas” (STOLER,
2009, p. 4) – “[...] these archives are not simply accounts of actions or records of what people thought happened.
They are records of uncertainty and doubt what people imagined they could and might make the rubrics of rule
correspond to a changing imperial world. Not least they record anxious efforts to ‘catch up’ with what was
emergent and ‘becoming’ in new colonial situations. Ontologies are both productive and responsive, expectant
and late”.
85

desenvolvida por Dirks por meio de uma “biografia” dos arquivos48 ou, como faz Stoler, por
meio de uma “etnografia” dos mesmos.49
Ainda que os arquivos não sejam propriamente os “objetos” desta tese, a
perspectiva proposta por Dirks e Stoler pode me ajudar a pensar de maneira mais cautelosa as
formas de subjetivação e objetivação produzidas pelos conceitos de civilização e cultura bem
como pelos patrimônios etnográfico e artístico – além das diversas formas de silenciamento e
esquecimento envolvidas – em redes específicas que tiveram lugar no passado. Vejamos como
tudo isso, ou seja, uma visão ao mesmo tempo “biografizante” e “antropologizante” dos
arquivos, pode me ajudar a pensar cada um dos “arquivos burocráticos” com os quais tive
contato nesta pesquisa.
Começo pelo arquivo histórico do Museu Nacional da UFRJ (MN-UFRJ), sediado
na Seção de Memória e Arquivo (SEMEAR), que fica no mesmo palácio no qual são abrigadas
as exposições do Museu, situado na Quinta da Boa Vista, no bairro carioca de São Cristóvão.
O Museu Nacional pode ser considerado a primeira instituição científica do Brasil, criada em
1818 como “Museu Real” por D. João VI. Não obstante a óbvia importância para uma história
nacional das ciências, seu arquivo histórico começou a ser institucionalizado apenas a partir da
década de 1990.50 É interessante notar que essa preocupação arquivística mais ou menos
coincide com a “virada histórica” que atingiu tanto as ciências sociais quanto as ciências da

48
Segundo Luciana Heymann, “A sugestão de traçar a biografia dos arquivos pode ser interessante na medida em
que ela contribua para desnaturalizá-los, de maneira a demonstrar que, assim como os indivíduos, os arquivos são
muitas vezes objetos de ‘ilusões’ que fazem desaparecer descontinuidades e deslocamentos, perdas e acréscimos,
tanto materiais quanto simbólicas. Não se trata de tomar o arquivo como uma entidade, mas de entender como o
arquivo se torna uma entidade com contornos, localização e atributos” (HEYMANN, 2013, p. 72).
49
“A etnografia nos e dos arquivos coloniais cuida dos processos de produção, relações de poder nas quais os
arquivos são criados, isolados e rearranjados. Se etnografias podem ser tratadas como textos, estudantes do colonial
têm virado o jogo para refletir sobre os documentos coloniais como ‘rituais de possessão’, como relíquias e ruínas,
como sítios de conhecimentos culturais contestados. Aqui eu trato os arquivos não como repositórios do poder do
Estado, mas como movimentos inquietos num campo de força, como incansáveis realinhamentos e reajustamentos
de pessoas e de crenças aos quais eles estão atados, como espaços nos quais o sensório e o afetivo atravessam as
aparentes abstrações das racionalidades políticas. Eu tomo os sentimentos expressos e prescritos como
interpretações sociais, como índices de relações de poder e seus traços” (STOLER, 2009, pp. 32-33) –
“Ethnography in and of the colonial archives attends to processes of production, relations of power in which
archives are created, sequestered, and rearranged. If ethnographies could be treated as texts, students of the
colonial have turned the tables to reflect on colonial documents as ‘rituals of possession’, as relics and ruins, as
sites of contested cultural knowledge. Here I treat archives not as repositories of state power but as unquiet
movements in a field of force, as restless realignments and readjustments of people and the beliefs to which they
were tethered, as spaces in which the senses and the affective course through the seeming abstractions of political
rationalities. I take sentiments expressed and ascribed as social interpretations, as indices of relations of power
and traces of them”. Cf. também Luciana Heymann (2013), Olívia Maria Gomes da Cunha (2004) e Antoinette
Burton (2005).
50
Essas informações básicas podem ser acessadas no site do Museu Nacional:
http://www.museunacional.ufrj.br/dir/omuseu/arquivo.html.
86

natureza no Brasil,51 refletindo talvez a afirmação de uma identidade institucional histórica num
campo em crescente disputa por visibilidade e recursos.
Embora a ação arquivística iniciada na década de 1990 esteja em grande medida
apartada no tempo das motivações ligadas à produção dos documentos agora disponibilizados,
é possível perceber a preocupação historicista dos arquivistas em manter a organização original
daquela documentação. Os documentos que eu compulsei estão organizados na “Coleção
Heloisa Alberto Torres”, que, quando de sua apresentação por Maria Barroso Hoffmann, estava
ainda sob a guarda do Departamento de Antropologia do Museu Nacional. Essa coleção foi
sendo consolidada aos poucos, desde 1986, até que finalmente fosse remetida à SEMEAR, em
2005, pelo Setor de Etnologia do Departamento de Antropologia.52
A própria forma como a documentação tem sido recebida pela SEMEAR atesta um
traço importante do Museu Nacional como um todo: a relativa autonomia das diversas seções
da instituição, ligadas entre si por laços fluidos de camaradagem e de oposição, em vez de um
poder central do qual emanam todas as diretrizes organizatórias. Mas o mais importante é
perceber que os projetos, palestras, cartas e anotações reunidos na Coleção Heloisa Alberto
Torres guardam sinais tanto das possibilidades de atuação institucional num período de
fortalecimento do Estado nacional quanto das estratégias pessoais de conquista de posições num
campo cada vez mais extenso e disputado. Mais que isso: a organização destes documentos é
perpassada, ela própria, pela subjetividade de Torres, isto é, pelo arquivamento, pelo próprio
sujeito, daquilo que deveria ser narrado, a posteriori, como o retrato ideal de sua subjetividade
exemplar, algo que não deixa de contaminar as narrativas biográficas e institucionais que hoje
conhecemos a seu respeito. A documentação institucional se confunde com a busca incessante
de Torres por prestígio dentro e fora do país, com o auxílio por vezes familista a estudantes e

51
Especialmente em relação às ciências sociais essa discussão parece ser bem recente: “A problematização a
respeito da produção de histórias da disciplina e sua conexão com discussões sobre o uso de arquivos pessoais
ainda é bastante tímida. Tal fato se deve em parte às vicissitudes da história da antropologia como uma área de
interesse. Em um dos textos no qual um programa em torno de um olhar retrospectivo é esboçado, George W.
Stocking Jr. [1983] observa que antes de se tornar uma área de especialização, a história da disciplina limitava-se
à atenção exclusiva de ‘antropólogos idosos’ e ‘historiadores errantes’. Nos anos 80, uma série de injunções leva
os antropólogos a se debruçarem criticamente sobre os conhecimentos produzidos por seus pares. Grande parte
dos estudos desse período é realizada em um contexto amplo de debates sobre uma sentida ‘crise’ da antropologia
envolvendo questões políticas e éticas relacionadas à pesquisa de campo. Um olhar retrospectivo da disciplina
esteve, deste modo, marcado por questionamentos políticos e debates éticos do presente de seus produtores. O
contexto de crítica interna resultou em um processo de autofagia e ‘canibalização’ [Handler, 2000], no qual a
história da disciplina passa a ser um dos seus mais importantes objetos. Essa questão imprimiu um viés singular
aos projetos que visavam rastrear trajetórias profissionais, fluxos de ideias, políticas de financiamento e histórias
envolvendo a tensa relação entre a disciplina e a constituição de saberes coloniais e imperiais [...]” (CUNHA,
2004, p. 294).
52
Essas informações foram retiradas da apresentação da Coleção Heloisa Alberto Torres, disponível em
http://laced.etc.br/site/arquivos/Cole%C3%A7%C3%A3o%20Helo%C3%ADsa%20Alberto%20Torres.pdf, e do
próprio catálogo da instituição que me foi confiado nas pesquisas que lá realizei entre 2011 e 2012.
87

acadêmicos, com o tom ora carinhoso, ora ríspido, de suas correspondências, e com os conflitos
pessoais tanto inter- quanto intra-institucionais. É possível perceber nesses documentos tanto o
pulso forte de uma personalidade que se confunde com a instituição quanto os limites impostos
a este tipo de atuação em diferentes momentos. Mas é igualmente possível notar um esforço de
construção de uma pré-narrativa inscrita em documentos capazes de produzir a biografia dos
heróis institucionais, que teriam superado desafios de forma corajosa em prol da defesa daquele
tradicional “templo cívico” da nação. Mas seria possível, em meio a esses documentos que
evidenciam uma história que se pretende exemplar, encontrar outras linhas de força, outras
conexões, evidências e silenciamentos que atestem nucleações específicas por meio das quais
a modernidade se reproduz?
Os arquivos do IPHAN, embora também sejam arquivos da administração pública
federal, possuem traços bastante distintos. O tombamento dos bens culturais da nação pressupõe
a sua tutela perpétua pelo Estado (até que porventura sejam “destombados”), de modo que, com
a possível exceção da documentação pessoal de seus funcionários ilustres, é muito difícil
distinguir o que é, ali, arquivo histórico e arquivo corrente. Isso significa que os inventários,
atas, registros de obras e processos de tombamento produzidos desde a criação do órgão em
1937 continuam orientando as ações do corpo diretivo e técnico da instituição até os dias de
hoje. Por isso, ao contrário do que aconteceu no Museu Nacional, no IPHAN o seu arquivo foi
curiosamente previsto na Lei nº 378 de 13/01/1937, antes mesmo do Decreto-Lei nº 25 de
30/11/1937 que o regulamentou e que organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico
brasileiro, ainda que só tenha sido implantado efetivamente em 1940 pelo Arquivista-Mór da
Ordem Beneditina Brasileira, D. Clemente da Silva Nigra.53
Desse modo, o arquivo, sobretudo após a atuação de Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987) entre 1946 e 1962, pretende espelhar a objetividade que Rodrigo Melo Franco de
Andrade pretendeu conferir às ações de conhecimento e proteção do patrimônio cultural
brasileiro. Ao mesmo tempo, no entanto, essa imagem neutra, de rigor no trato com um passado
público, acabou produzindo o sentido ao qual a atuação dos funcionários do IPHAN se manteria
vinculada, regime após regime, como que espreitados pela presença fantasmática de seu pai
fundador, seu herói e “arconte-mór”. É interessante notar como é muito difícil encontrar, hoje,
uma narrativa que não naturalize a ideia de que a trajetória do IPHAN se compõe de uma fase
inicial, a “fase heroica”, espelho do rigor e seriedade dos grandes homens que teriam feito do
serviço público o sentido da própria existência individual. Não teria sido, portanto, essa prática

53
Essas informações estão disponíveis em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/401.
88

arquivística, concebida desde o princípio como instrumento da tutela do patrimônio cultural


brasileiro, um fator importante para a construção das próprias narrativas que, principalmente
após a morte de Rodrigo Melo Franco de Andrade em 1969, apresentam uma trajetória de ordem
e consenso emanados da sua direção, e de uma unidade interna difícil de ser encontrada em
qualquer outra instituição moderna? Seria possível que um projeto de nação moderna, amparado
na materialidade selecionada pela própria instituição, cuja abrangência se pretendia nacional,
fosse isento de conflitos e perspectivas alternativas? Talvez seja impossível responder a isso
sem olhar para os silenciamentos, para os documentos a princípio destituídos de sentido ou para
fora do próprio arquivo do IPHAN.
Um primeiro passo em busca desses dissensos pode ser dirigido aos arquivos
regionais do próprio IPHAN e aos documentos que dão conta da ação do Departamento de
Cultura da prefeitura de São Paulo durante a gestão de Mário de Andrade. Embora eu não tenha
revisitado essa documentação para o presente trabalho, ela informa o grosso dos trabalhos que
exploram as redes desse grupo intelectual específico.
Eu tive contato com os arquivos da 9ª Superintendência Regional do IPHAN (9ª
SR-IPHAN) em minha dissertação de mestrado, e logo foi possível encontrar, como já o haviam
feito, de diferentes formas, outros pesquisadores e pesquisadoras, alguns “narizes torcidos”,
desentendimentos técnicos e, o que para mim era mais importante, ideias de sentido bastante
destoantes em relação àquelas emprestadas aos bens protegidos pela direção central do IPHAN
(LOWANDE, 2010). O arquivo da 9ª SR-IPHAN aponta para a história de “rebeldia” de Luís
Saia, diretor do órgão de 1945 (ano do falecimento de Mário de Andrade), até 1975, e de seus
assistentes em São Paulo. Os documentos ali protegidos atestam os procedimentos inovadores
(e também heroicos, dada a constante escassez de recursos) que permitiram a produção de uma
narrativa regional, de relevância nacional, para os bens paulistas. Mas haveria algo em jogo ali
para além de perspectivas técnicas e teóricas? Seria possível encontrar nas tensões não
documentadas, ou documentadas “sem querer”, aspectos de uma reprodução conflitiva da
modernidade em espaços “sub-nacionais”?
Os projetos específicos da intelectualidade paulista para a nação se expressam, no
entanto, como em nenhum outro lugar, nos documentos produzidos por Mário de Andrade, dos
quais os arquivos do IPHAN em São Paulo e em outras instituições arquivísticas são
desdobramentos. O mais interessante do acervo que o intelectual paulista produziu, e que hoje
se encontra protegido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – talvez o mais amplo,
complexo e bem guardado dentre os que eu visitei no Brasil – desde 1968, é a significativa
cisão que lhe foi imposta a posteriori. Embora seja impossível separar a vida artística da vida
89

“de repartição” de Mário de Andrade, uma vez que, como fica cada vez mais claro, ambas estão
subsumidas num único projeto estético-político, há uma divisão técnica entre a coleção de artes
visuais e a coleção de cartas e documentos burocráticos produzidos por ele. Todavia, para além
das necessidades materiais específicas que distinguem obras de arte de documentos em papel,
há uma clara hierarquização, na sua coleção atual, entre “arquivo estético” e “arquivo político”.
Mesmo o interesse em suas cartas pode ser vinculado muito mais a uma genética literária que
à constituição de redes relacionais mais explicitamente ligadas a um projeto político, e mesmo
burocrático, de nação. É por isso que a atuação de Mário enquanto funcionário fica bem menos
visível neste acervo do que a sua contribuição artística. A compreensão dessas relações, e das
redes produzidas a partir disso, deve ser realizada, portanto, a contrapelo de sua apresentação
arquivística.
Quando partimos para arquivos nacionais distantes no espaço, como os arquivos
estadunidenses que pude conhecer, fica claro que eles possuem de fato algo que os liga aos que
foram acima mencionados. O que se vê lá são acervos organizados em função de técnicas de
governamentalidade emanadas de um projeto de nação, trajetórias pessoais conectadas a outras
trajetórias pessoais, lacunas… São especificidades que demandam sim um conhecimento
contextual prévio, mas que podem ser percebidas no interior de um mesmo projeto civilizador.
Esses arquivos nos soam então um tanto familiares, ainda que produzidos no interior de outros
contextos nacionais.
Assim, por exemplo, os National Anthropological Archives da Smithsonian
Institution (NAA, SI), em Washington, DC, mostram o quanto a importante antropologia
cultural estadunidense seria fruto do excepcionalismo de seu Estado-nação – se considerados o
caráter filantrópico do surgimento da Smithsonian Institution e o papel mantenedor do governo
estadunidense, a própria antropologia aparece como resultado natural do american way de
administração da vida pública. Seria possível encontrar, contra essa narrativa oficial, trajetórias
conflitantes, oposições ao projeto de nação materializado na administração pública
estadunidense, conexões que transcendem a sua narrativa nacional e evidenciam
entrecruzamentos mais complexos, não restritos ao protagonismo do Uncle Sam na produção
internacional de saberes civilizados e civilizatórios?
A princípio os documentos da Rare Book & Manuscripts Library da Columbia
University (RBML) talvez devessem apresentar uma narrativa diferente, pois trata-se de uma
instituição privada. Mas logo essa impressão se desfaz em meio a documentos com os quais
fortuitamente nos deparamos, como os que registram a participação da universidade no Projeto
90

Manhattan54, a cessão do espaço da universidade para as tropas que iriam atravessar o atlântico
para participarem da guerra55 ou mesmo a concessão de títulos de doutorado honoris causa a
autoridades diplomáticas.56 O que esses arquivos parecem apresentar é a outra face da narrativa
da excepcionalidade estadunidense: aquela que diz respeito a homens (e muito poucas
mulheres) que devotaram suas riquezas privadas, arduamente (e supostamente) conquistadas
por meio da American ingenuity (algo que se poderia traduzir como “engenhosidade
estadunidense”), em prol de um bem maior, ou seja, do engrandecimento da nação. Mas também
aí existem trajetórias cruzadas que chamam a atenção para fraturas discursivas ou ansiedades
epistemológicas, cujos sentidos só podem ser bem compreendidos nos silenciamentos e nas
interconexões que se estendem para fora da nação e que compõem as complexas coalizações
produzidas pelos desdobramentos do mundo moderno em seu desejo de domínio irrestrito.
Enquanto os trabalhos de Dirks e Stoler se prendem a complexos arquivísticos
específicos, aqui se trata, como em trabalhos cada vez mais numerosos, de pensar as relações
entre coleções documentais diferentes entre si, ainda que unidas pelo poder arcôntico original
emanado da ideologia moderna. O desafio que me coloco aqui não é, contudo, o de comparar
essas coleções nacionais, mas de tentar localizar, por entre elas, conexões que atestem uma
experiência transnacional comum.

2.4.2.2. Arquivos pessoais

Uma característica particular dos arquivos relacionados às atividades


antropológicas é que eles tomam, em geral, a forma de arquivos pessoais. Isso revela um modo
caracteristicamente moderno de se encarar a produção do conhecimento: seria nos traços
deixados pelos sujeitos do conhecimento que residiriam os segredos das grandes descobertas
científicas. A genialidade dos grandes pensadores derivaria de um talento inato ou de um
acontecimento externo que lhes despertou para o verdadeiro? Os arquivos privados desses
gênios seriam capazes de revelar esses segredos. Na medida em que a burocracia é também um
constante aprimoramento técnico da dominação racional, de maneira muito semelhante os
aparatos institucionais celebram seus heróis geniais na figura de seus “pais fundadores”,

54
Trata-se do projeto de construção das bombas atômicas que posteriormente foram usadas contra o Estado e a
população japonesa na Segunda Guerra Mundial. Pasta “Wan 1945-1946”, Box 301, Subseries I.1: General
Alphabetical, 1890-1971, Central Files, RBML.
55
Pasta “Wa 1942-1943”, Box 301, Subseries I.1: General Alphabetical, 1890-1971, Central Files, RBML.
56
Como, por exemplo, o que foi concedido a Oswaldo Aranha (Pasta “Ar 1940-1941”, Box 2, Subseries I.1:
General Alphabetical, 1890-1971, Central Files, RBML).
91

diretores, grandes intelectos etc. Tanto o campo científico quanto o burocrático produzem seus
indivíduos exemplares por meio de “ilusões biográficas”.57 Os arquivos das ciências e das
burocracias dispõem as evidências em arquivos pessoais, portanto, buscando evidenciar os
caminhos individuais exemplares a serem seguidos não só para a reprodução das normas
institucionais, mas para o contínuo aprimoramento de sua eficácia teórica e técnica. 58 Eles
fornecem, desse modo, as referências para os desdobramentos subjetivos voltados para a
produção e reprodução da modernidade.
Por outro lado, eu mesmo argumentei acima que as práticas arquivísticas não podem
ser vistas de maneira tão unidirecional. A ideia derrideana de um arquivo como “casa de
penhor”, cujos investimentos no presente determinariam ganhos simbólicos futuros, deve, pelo
menos, segundo Ann Laura Stoler, ser associada à imagem de uma “casa arrombada” (house-
breaking), ou seja, um espaço que sofre intrusões, desvios e furtos de sentido que muitas vezes
contam com a própria cumplicidade dos gestores e produtores de documentos (STOLER, 2009,
p. 24). A produção de arquivos pessoais é atravessada sim pelas inscrições narrativas
burocráticas de caráter heroicizante, mas comporta igualmente estéticas de si, interferências de
pessoas e instituições terceiras, extravios, silenciamentos e interpretações convergentes e
divergentes em diferentes dosagens e particularidades históricas, culturais, sociais, e mesmo
alterações produzidas pelas preocupações de racionalidade de uma “economia arquivística”
(que pode ser associada ao que Derrida chama de princípio de consignação do arquivo). De
acordo com Luciana Heymann,

A tendência a associar os arquivos pessoais à “memória individual”, a interpretá-los,


unicamente, como acúmulos que documentam as atividades do titular ou revelam
dimensões da sua personalidade, parece prevalecer. Essa representação, no entanto,
atua obscurecendo o caráter construído desses arquivos, tanto no sentido da
intencionalidade que preside a acumulação documental quanto no da multiplicidade
de interferências a que podem estar submetidos, no âmbito privado e no institucional.
(HEYMANN, 2013, p. 69)

57
A alusão à ideia de inspiração bourdieana de que os arquivos “são muitas vezes objetos de ‘ilusões’ que fazem
desaparecer descontinuidades e deslocamentos, perdas e acréscimos, tanto materiais quanto simbólicas” foi
apresentada por Luciana Heymann (HEYMANN, 2013, p. 72).
58
Ann Laura Stoler chama a atenção para essa proximidade no que diz respeito à produção de epistemologias:
“Tanto quanto a teoria da probabilidade clássica veio medir as incertezas de um mundo em modernização, os
servidores públicos coloniais foram encarregados de fazer o mesmo. Ambas as especulações abordam as
convenções e categorias de análise como sendo nem inócuas nem benignas. Como comunidades interpretativas,
ambas dependem de regras de confiabilidade, de um presumido senso comum sobre o que foi mais provável, que
permite prever e direcionar os projetos políticos aos quais aquelas plausibilidades servem” (STOLER, 2009, p. 42)
– “Much as classical probability theory was to measure the incertitudes of a modernizing world, colonial civil
servants were charged to do the same. Both ventures approach the conventions and categories of analysis as
neither innocuous nor benign. As interpretative communities, both depend on rules of reliability and trust, on an
assumed common sense about what was likely, that allow prediction and direct the political projects that those
plausibilities serve”.
92

Olívia Maria Gomes da Cunha observa que os arquivos etnográficos são também,
em grande medida, arquivos pessoais. Segundo ela,

papéis transformados em documentos mantidos em arquivos institucionais revelavam


muito mais do que vicissitudes biográficas; revelavam vínculos profissionais,
intelectuais e relações de poder de natureza diversa. Para diferentes autores, sua
especificidade estaria justamente naquilo que torna a antropologia emblemática no
seu constante desejo de subjetivação: os arquivos etnográficos supostamente
conservam desejos, projetos por vezes malsucedidos, de identificar, classificar,
descrever o “outro”. (CUNHA, 2004, p. 296)

O foco dos arquivos etnográficos nas trajetórias pessoais estaria ligado assim à necessidade de
consagrar a legitimidade da disciplina, pois traria à tona a “tensão epistemológica” existente
entre os processos de objetivação e subjetivação, e assim os documentos produzidos no campo
dariam conta da relação que se estabelece entre o etnógrafo e o outro (CUNHA, 2004, p. 296).
Em grande medida, portanto, essa necessidade está atrelada à produção de pais fundadores,
heróis ou, pelo menos, trajetórias exemplares cujo papel é produzir narrativas paradigmáticas,
isto é, consolidar e expandir o senso comum predominante no interior de um dado recorte
disciplinar. No entanto, Olívia da Cunha adverte que “não há uma clara distinção entre o que
os arquivistas definem como sendo ‘pessoal’ e ‘profissional’. Domínios pessoais por vezes
informam aqueles tratados como profissionais e vice-versa. Ao mesmo tempo, tais domínios
tratam de relações sociais” (CUNHA, 2004, p. 297).
Boa parte desta pesquisa foi produzida a partir de arquivos pessoais. A busca por
relações concretas por meio das quais o conceito de cultura foi produzido e utilizado acabou
me levando também em direção aos arquivos de antropólogos(as) que são, em grande medida,
portanto, arquivos pessoais. É preciso, então, levar em conta as precauções apontadas acima
para não perder de vista, em meio aos sentidos inscritos e prescritos nos arquivos pessoais, as
conexões que atravessam e transformam essas trajetórias pessoais. Contudo, mais que arquivos
individuais, esses documentos atestam também movimentos, relações e vivências transpessoais
em níveis que vão do local ao transnacional. Ao apontar para sentidos que também poderiam
ser chamados de “trans-subjetivos”, eles também colaboram para o apagamento da
produtividade de objetos por meio de híbridos.
Os Franz Boas Papers, guardados na American Philosophical Society (FBP, APS),
antiga instituição científica filantrópica da Filadélfia, estado da Pensilvânia, compõem uma das
mais importantes coleções documentais existentes para a história das ciências sociais. Na
93

descrição apresentada pela instituição a respeito destes documentos, em sua maior parte
correspondências, o destaque é dado à importância representada por Boas na “definição da
antropologia americana” e ao seu papel enquanto “socialista” e “porta-voz de causas sociais
progressistas”.59 Chama a atenção, além disso, a sua organização e o tamanho dessa coleção.
Contendo 59 pés lineares (aproximadamente 18 metros lineares) de correspondências divididas
em quatorze inventários alfabéticos (cada um deles com algumas centenas de páginas), essa
coleção dá conta tanto de um expressivo esforço relacional pela via missiva quanto de um
anseio de preservação de uma vasta e complexa memória multissubjetiva que é, assim, montada
em torno da figura do próprio Boas. É difícil afirmar em que medida foram Boas, sua família
ou a própria APS os principais responsáveis pela ordenação de seu acervo epistolográfico. No
entanto, uma das grandes forças da produção de subjetividades modernas é justamente o seu
caráter supostamente perene, voltado para a posteridade, de modo que o arquivamento de si é
um poderoso meio de se assegurar essas identidades que, desta forma, se ancoram no fluxo
temporal da própria modernidade.
A APS é uma instituição emblemática na construção daquela identidade nacional
estadunidense composta por homens de negócio livres, esclarecidos e que, tão logo
enriquecidos, tornam-se os filantropos responsáveis pelo engrandecimento da nação. Ela se liga
diretamente aos founding fathers da nação estadunidense como Benjamin Franklin, George
Washington, John Adams, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, Thomas Paine, Benjamin
Rush, James Madison e John Marshall, além de estar situada simbolicamente junto ao
Independence Hall, sítio diretamente vinculado à memória da independência dos EUA. A APS
se liga, portanto, a um ideal de independência política e intelectual marcadamente iluminista,
pois, nas palavras do próprio Franklin, a sua função era conduzir os colonos (predestinados à
liberdade, portanto, no enredo desta narrativa nacionalista) a perseguirem “todos os
Experimentos filosóficos que lançam luz na Natureza das Coisas tendem a incrementar o Poder
do Homem sobre a Matéria, e multiplicam o Conforto ou os Prazeres da Vida”.60 Ao abrigar os
papéis de Franz Boas e assegurar assim o seu papel enquanto indivíduo exemplar, a APS
autoriza a sua pessoa na condição de um founding father mais recente, assegurando, portanto,
a permanência do ideal de uma nação moderna, assentada na ideia de uma sociedade erigida
sobre os pilares da igualdade e razão.

59
Informações disponíveis em http://www.amphilsoc.org/collections/view?docId=ead/Mss.B.B61-ead.xml.
60
“[…] all philosophical Experiments that let Light into the Nature of Things, tend to increase the Power of Man
over Matter, and multiply the Conveniencies or Pleasures of Life” Disponível em https://amphilsoc.org/about.
94

A narrativa sobre a antropologia cultural estadunidense se desenrola hoje, sobretudo


depois dos trabalhos de George Stocking Jr., a partir da subjetividade de Franz Boas. Sua figura
subjetiva, em todas suas idiossincrasias biográficas, é considerada peça chave para a
compreensão não apenas de uma revolução paradigmática, mas, de maneira mais ampla, para
a difusão da ideia de relativismo cultural tão cara à sociedade contemporânea. O próprio
Stocking Jr. baseou boa parte de sua pesquisa na coleção abrigada pela APS. Em que medida,
portanto, estaria essa narrativa disciplinar ligada à metanarrativa da nação estadunidense? Seria
possível transcender essa narrativa e, a partir desse arquivo de correspondências, tão claramente
contaminado por uma metanarrativa nacionalista e, ao mesmo tempo, de um processo
modernizador e civilizador, buscar outros tipos de conexões, isto é, ler essas impressões
arquivísticas a contrapelo da autoimagem narrativa da modernidade?
Eu já mencionei aqui o caráter ao mesmo tempo pessoal e institucional dos arquivos
de Heloisa Alberto Torres. Os documentos relacionados à produção do Handbook of South
American Indians e do Institute of Social Anthropology também podem ser considerados papéis
pessoais, uma vez que refletem claramente o papel da subjetividade de Julian Steward (1902-
1972) na reformulação do campo antropológico estadunidense – aproveitando-se, para isso, das
oportunidades trazidas por agentes do governo federal, cada vez mais cientes da eficácia técnica
dos saberes antropológicos para seu projeto de hegemonia política e cultural. Por outro lado, os
documentos de Henry Allen Moe (1894-1975), produzidos mais ou menos no mesmo período
e arquivados também na APS, embora sejam documentos tratados como pessoais, dão conta
também de uma rede transnacional constituída pela conjunção entre agências governamentais
criadas para o esforço de guerra, durante a Segunda Guerra Mundial, e instituições privadas
como a Carnegie Corporation, a Rockefeller Foundation e a Guggenheim Foundation. A
mesma centralidade, indistintamente pessoal e institucional, pode ser atribuída também a Mário
de Andrade.
Portanto, essas narrativas pessoais dão conta inegavelmente de histórias relacionais.
A centralidade dessas figuras subjetivas só é possível pelo fato de elas estarem em relação por
meio da qual trafegam artefatos, sentidos, projetos, experiências e expectativas. O que esses
documentos, em especial essas correspondências, permitem perceber são, portanto, fluxos, mas
esses fluxos seriam em alguma medida condicionados pelos canais em que acontecem?
Os “arquivos de correspondência” possuem algumas características peculiares que
precisam ser levadas em conta. Seria impossível esgotar aqui os aspectos para os quais devemos
ficar atentos diante desse tipo de documento, mas me arriscarei a apontar rapidamente alguns
com base na minha própria experiência. Em primeiro lugar, não basta conhecer a língua em que
95

as cartas estão escritas – no meu caso tive que deixar para o futuro a interpretação das
informações contidas em diversas cartas escritas em alemão –: a linguagem impressa numa
carta é transformada, aos poucos, por meio das trocas estabelecidas entre remetente e
destinatário, e é preciso decifrar, caso a caso, o que essa linguagem expressa ou esconde em sua
especificidade – os estudiosos das epistolografia marioandradiana que o digam!61
Um outro aspecto diz respeito ao modo pelo qual o(a) dono(a) das correspondências
as organiza para a posteridade (quando o faz conscientemente), pois não são todos(as) os(as)
correspondentes que explicitam, como o fez Ruth Schlossberg Landes (1908-1991), o motivo
por terem simplesmente destruído toda uma série documental.62 Além disso, uns(umas) optam
por organizar a correspondência por ordem cronológica, outros(as) por ordem alfabética e
outros(as) ainda por tema, e entender o significado de cada escolha organizatória é algo decisivo
para a interpretação desses documentos. Por fim, é necessário ainda tentar perceber o grau de
abertura ou “sinceridade” em função do(a) destinatário(a), sempre incorrendo no perigo de se
deixar levar ingenuamente pelo sentido literal do escrito – uma correspondência burocrática
endereçada a um(a) superior(a) é sempre diferente de uma correspondência trocada entre
velhos(as) amigos(as), só para ficarmos nas distinções mais óbvias. Não há alternativa
metodológica para esses problemas que não explicitar, em cada caso, a leitura que se mostra
mais plausível.

2.3.3. A narrativa

Como já mencionei acima, as relações de dominação e exploração que caracterizam


a modernidade também se expressam na linguagem científica. Adorno e Horkheimer já
chamavam a atenção, em 1947, para o papel central do “esclarecimento” no interior do projeto
moderno: “a distância do sujeito com relação ao objeto, que é o pressuposto da abstração, está

61
A esse respeito vide MORAES, 2007.
62
Nesta tese eu lanço mão dessa documentação apenas muito pontualmente. Landes utilizou as escassas margens
de uma carta do dia 10 de outubro de 1940, enviada por “Tony” em que diz o seguinte: “I tore up the letters that
followed this, as I did all those in Brazil. Why? Because I [found] no place for them. They were loving, passionate,
full of promise for the future, full of details – and I knew there would ‘always’ be another”, seguindo-se, depois
disso, um longo desabafo a respeito do “único amor de sua vida”, um médico que conheceu em Nashville, entre
1937 e 1938, que acabou se casando com outra mulher e que foi morto pelo câncer em 11 de setembro de 1941.
Landes aparentemente se dá conta de que aquela carta era o último vestígio da sua mais significativa relação
interpessoal e, por isso, narra os motivos que conduziram ao desaparecimento de todas as outras cartas (como, por
exemplo, quando seu amante provavelmente destrói as cartas que trocaram para não ferir sua nova esposa). Trata-
se, portanto, conforme já mencionei acima, de uma espécie de memória epistolográfica de segunda ordem, isto é,
de um raro testemunho das vicissitudes desse suporte de memória. Ruth Landes Papers, Series 1, Correspondence,
1931-1991, Box 3, Letters Received “I”, NAA, Smithsonian Institution. Para uma análise mais aprofundada dessa
coleção de documentos, vide CUNHA, 2004.
96

fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado”


(ADORNO e HORKHEIMER, 1947, p. 9). Os objetivos e os conceitos centrais da ciência
moderna não deixam dúvida quanto a este caráter: “dominar o objeto”; “extrair das fontes”;
“exaurir o assunto”. Toda a “natureza” deve ser assim produzida e decomposta para integrar
sistemas definidos de antemão, sistemas compromissados com o controle, a previsibilidade e a
eficácia técnica, ou seja, com a “unidade de coletividade de dominação” e não com “a
universidade social e imediata, a solidariedade”. O progresso técnico e científico é a mitologia
que escaramuça as formas modernas de dominação.
A própria hermenêutica não está isenta desse tipo de relação. Hermes é o deus grego
da divinação, mas também da fertilidade. Não por acaso o ato interpretativo é associado a essa
divindade: ele remete à penetração fálica e violenta de um objeto passivo por um sujeito que,
só ele, detém o gérmen (a linguagem) capaz de emprenhar algo de sentido (CRAPANZANO,
1986, p. 52). Seria um exagero relacionar essa metáfora falocêntrica ao modelo patriarcal do
progresso civilizacional ocidental?63 A historiografia moderna nasce, no século XIX,
justamente sob o signo de Hermes, como técnica de decifração do sentido da civilização
ocidental e de suas nações, e se desdobra na compreensão de estruturas, de processos e de
identidades.
Enquanto o poder dos impérios afetava a escrita da etnografia por meio da oposição
entre civilizados e primitivos (CLIFFORD, 1986b), a história simplesmente tratava dos
primeiros e suprimia os segundos em seus textos, fiel à sua metanarrativa da modernização e
do Ocidente como sujeito civilizador do não-ocidental e do não-moderno, os objetos da ação
civilizatória. Diante da insistência contemporânea num modelo de escrita que,
fundamentalmente, não deseja se afastar dos lugares comuns de produção de sentido
inaugurados pelos métodos historiográficos do século XIX, confiando ainda no seu potencial
humanista (cf. RÜSEN, 2001), é possível produzir um texto historiográfico não comprometido
com o projeto moderno? Seria possível se produzir uma espécie de historiografia como
antropologia do passado ocidental,64 capaz de historicizar os seus próprios conceitos
fundamentais sem reproduzir os lugares de fala privilegiados inscritos na própria linguagem
moderna da história científica?

63
É interessante notar que Derrida também caracteriza o princípio arcôntico do arquivo como patriarcal, além de
mostrar que Freud, mesmo tendo percebido que o processo civilizacional é marcado pelo direito patriarcal, acabou
repetindo sua lógica (uma espécie de parricídio recalcado) em função de sua fé na ciência positiva (DERRIDA,
2001, p. 123).
64
Desconheço se já foi proposta em algum lugar uma “historiografia simétrica” análoga ao que se tem chamado
de “antropologia simétrica”. A respeito desta última, conferir LATOUR, 1994, STRATHERN, 2013 e CASTRO,
2015.
97

Primeiramente, talvez não seja possível imaginar uma produção historiográfica que
possa se afastar do ato de interpretar. Todavia, as discussões a respeito da escrita etnográfica
nos indicam que, de maneira análoga, a fiabilidade do relato historiográfico se encontra não
mais na autoridade discursiva de um sujeito do conhecimento munido de uma linguagem capaz
de definir claramente os seus objetos. A própria ciência deve reconhecer o seu fracasso em
controlar o seu discurso em função de suas necessidades também linguísticas, ou literárias, de
comunicação (TYLER, 1986). Desse modo, a sustentação do texto historiográfico passa a
residir na sua capacidade de reconhecer, da forma mais rigorosa o possível, a parcialidade de
seu próprio ponto de vista bem como a multivocalidade que atravessa a sua escrita. Da mesma
forma, essas discussões permitem perceber que a historiografia também pode ser considerada
uma forma de tradução de significados cuja apresentação envolve aspectos políticos e retóricos.
É certo que, ao tentar traduzir, na verdade inventamos por meio de metáforas que tornem
contextos estranhos mais familiares aos nossos (WAGNER, 2010). A questão talvez seja, então,
como inventar sem reproduzir as relações de dominação moderna que se processam por meio
da escrita científica?
É plausível afirmar que a historiografia moderna, assim como a etnografia,
apresenta seus “objetos” como coisas destituídas de voz própria, “incapazes de falarem por si
próprias” (CLIFFORD, 1986a, p. 9).65 Isso pode ser feito de diversas maneiras: pelo relato
produzido por meio de um “narrador observador” distanciado dos sujeitos e objetos históricos;66
pela dissolução de uma pessoa ou de um conjunto de pessoas em conceitos genéricos como
“classe”, “cultura”, “nação”, objetificando-os dessa forma em categorias abstratas e impessoais;
pelo foco em determinantes estruturais do comportamento humano, como a economia, a cultura,
as estruturas sociais, inventando assim naturezas regulares às quais estariam submetidos os
conflitos humanos etc. Em todos esses casos transformam-se relações concretas entre pessoas
em objetos que, nesta condição, não falam, mas podem ser mensurados, classificados e
realocados em sistemas conhecidos de antemão.
Como argumentei neste capítulo, a história transnacional aborda as relações
concretas estabelecidas entre pessoas, nos seus movimentos e nas trocas que estabelecem entre
si. São pessoas que deixaram os registros desses conflitos e diálogos os quais hoje nós,
historiadoras e historiadores, tentamos interpretar e traduzir para um público leitor mais ou

65
“[…] unable to speak for themselves”.
66
A este respeito, Elizabeth Tonkin afirma o seguinte: “Essa ainda é a norma na ‘ciência’ (academia?), substituir
o ‘eu’ supostamente subjetivo pelas construções impessoais. Com certeza elas enganam, pois eximem o escritor
da responsabilidade por aquilo que diz, deixando implícito que há uma autoridade por trás” (STRATHERN, 2013,
p. 111).
98

menos conhecido. Mas minha relação com essas redes de pessoas se dá a partir de uma
perspectiva particular. Minha busca é por aquilo que a produção de sujeitos e objetos torna
invisível, por aquilo que os arquivos suprimem, ou seja, pelos híbridos que só podem ser
pensados nos momentos em que eles foram apagados para a história moderna. Uma história dos
híbridos é, portanto, uma história não moderna.
Além disso, as leituras dessas minhas interpretações podem ser tão variadas quanto
os seus leitores, de modo que não é plausível sustentar a produção de um sentido único também
para as narrativas historiográficas. Essa pluralidade de vozes (e, também, de silenciamentos)
interfere diretamente nos significados passíveis de apreensão, ainda que dentro dos limites
culturais dessas diversas interlocuções. Desse modo, em vez de procurar um centro narrativo
capaz de estabilizar a interpretação do texto historiográfico por meio de figuras de linguagem
que provoquem o efeito de distanciamento em relação àquilo que é narrado, considero bem-
vinda a sugestão de James Clifford, para o campo da escrita etnográfica, para que reconheçamos
a “inter-relação de vozes” (interplay of voices) ou os “enunciados posicionados” (positioned
utterances) como metáforas mais apropriadas para uma narrativa dotada de um senso rigoroso
de parcialidade. Segundo Clifford,

A polivocalidade foi contida e orquestrada nas etnografias tradicionais dando-se a


uma voz uma função autoral pervasiva e a outras o papel de fontes, “informantes”, a
serem citadas ou parafraseadas. Uma vez reconhecidos o dialogismo e a polifonia
como modos de produção textual, a autoridade monofônica é questionada, revelada
como característica de uma ciência que tem clamado por representar culturas. A
tendência para especificar discursos – historicamente e intersubjetivamente –
reformula essa autoridade, e no mesmo processo altera as questões que nós colocamos
às descrições culturais. (CLIFFORD, 1986, p. 15)67

No caso específico desta tese, não se trata exatamente de ouvir e amplificar essas vozes, mas
captar justamente aquilo que elas silenciam, aquilo que elas não poderiam enunciar no interior
do projeto moderno, ou seja, a sua própria gênese, as relações de poder produtoras de sujeitos
e objetos que só podem ser percebidas nos híbridos que a historiografia moderna pretendeu
silenciar.

67
“Polyvocality was restrained and orchestrated in traditional ethnographies by giving to one voice a pervasive
authorial function and to others the role of sources, "informants," to be quoted or paraphrased. Once dialogism
and polyphony are recognized as modes of textual production, monophonie authority is questioned, revealed to be
characteristic of a science that has claimed to represent cultures. The tendency to specify discourses—historically
and intersubjectively—recasts this authority, and in the process alters the questions we put to cultural
descriptions”.
99

Além disso, ao invés de tentar encerrar as possibilidades interpretativas deste estudo


num compartimento produzido por uma linguagem objetivista, supostamente isenta de
atravessamentos políticos e afetivos, o texto aqui apresentado pode se abrir para outras
possibilidades interpretativas, para significados não “audíveis” a partir de minha posição.68 Por
outro lado, a existência de relações conflituosas, de sentidos não partilhados, de mudanças de
opiniões, própria das redes interpessoais, podem ser apresentadas aqui em sua concretude e
significância sem que um fio narrativo centrado numa hipótese exterior e “objetiva” me
obrigasse a silenciamentos e apagamentos em prol de uma coerência artificial, afinal “o viver
não se organiza facilmente em uma narrativa contínua” (CLIFFORD, 1986b, p. 106). Contra
esse tipo de perspectiva panóptica (ROSALDO, 1986, p. 92), que acredita poder observar tudo
a partir de uma posição fixa e superior, eu creio ser mais eficaz e convincente entregar um relato
que indica de forma mais honesta em que momento eu precisei me aproximar ou me distanciar
de meus interlocutores e, a partir daí, traduzir narrativamente da melhor maneira possível o que
deles pude “ouvir” e compreender.
Isso me leva às implicações literárias de uma escrita historiográfica que, em sua
forma moderna, procurou se distanciar da ficcionalidade. Quando, em alguns momentos, eu
mencionei a palavra “tradução”, eu me referi à necessidade com a qual a historiadora ou o
historiador se depara de tornar significativas para o público leitor as diversas experiências
interpretativas, dialógicas ou relacionais que vive ao longo de sua pesquisa. É nesse momento
que se faz necessária a produção de “ficções persuasivas” das quais nem mesmo os mais
metódicos dos cientistas sociais modernos puderam escapar (STRATHERN, 2013). A tradução
de contextos ou relações estranhas ao público leitor depende de aproximações por meio de
figuras de linguagem, como alegorias que, segundo James Clifford, são condicionadas por
“estruturas de significados” historicamente limitadas (CLIFFORD, 1986b, p. 110). Desse
modo, há um conjunto de “lugares comuns”, ideias de sentido ou topos (RÜSEN, 2010), tropos
(WHITE, 1994) e alegorias (CLIFFORD, 1986b) cujo emprego catalisa a eficácia da
comunicação narrativa.
Embora eu esteja aqui às voltas com um processo mais amplo de produção e
reprodução das relações modernas de subordinação em contextos específicos, é possível propor
uma imagem que possibilite aproximar o público leitor dos conflitos, relações, fluxos e
movimentos que encontrei em minha pesquisa sem reduzi-los a uma lógica definida de antemão.

68
Como me lembrou minha esposa, corroborando este argumento a partir do ponto de vista da Análise dos
Discursos, “um texto é matéria de leitura para sujeitos de formações discursivas diversas e que se constituem por
diferentes memórias discursivas. Assim ele sempre será ressignificado, tornando novamente a constituir
interdiscurso”.
100

A experiência que eu estou tentando traduzir é a de uma transnacionalidade ligada por


determinados híbridos no interior de um processo construtivo da modernidade, destituído de
qualquer sentido a priori que não sejam os ideológicos. Mas dizer que esses tipos de relações
escapam aos modelos interpretativos clássicos da historiografia moderna não significa dizer
que eles não possam ser comunicados e sejam, por isso, destituídos de significados. O que eu
me proponho apresentar é um modelo narrativo cujo significado possa ser encontrado fora das
narrativas modernas, para além dos mitos nacionalistas e das hierarquizações discursivas que
essas narrativas produzem.
A noção de “rede” me parece a mais adequada a fim de apresentar o tipo de relações,
conflitos, movimentos e processos que pretendo apresentar nesta tese. Essa noção não é apenas
“mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a
de complexidade, [...] o fio de Ariadne destas histórias confusas” (LATOUR, 1994, p. 9). Ela é
a noção que, a meu ver, permite perceber as conexões interpessoais e interinstitucionais, mas
também as estabelecidas entre autoproclamados sujeitos e supostos objetos e mediadas pelos
híbridos conceituais de civilização e cultura e patrimoniais etnográficos e artísticos. Não se
trata, portanto, de entender, por exemplo, como o conceito de cultura produz uma nação
moderna, mas como ele pode ser percebido como algo que conecta pessoas criando grupos de
amizade, profissionais e institucionais; como algo que articula e rearticula pessoas para além
de recortes nacionais; como algo que produz conflitos entre os grupos assim articulados; como
algo cujo significado é disputado pelo seu potencial de orientar ações, sustentar instituições e
legitimar a existência de um Estado nacional.
O conceito de cultura, mas também o de civilização, e os patrimônios etnográficos
e artísticos em questão, não são, portanto, “objetos de pesquisa”. Eles são, mais corretamente,
algo situado entre as pessoas que se entendem como sujeitos do conhecimento (intelectuais) e
os seus objetos (as culturas, a civilização, a nação, bem como os grupos objetificados de
pessoas, a exemplo dos povos originários, sertanejos, negros etc.). Eles são, como diria Latour,
híbridos, posicionados no meio do caminho entre os polos subjetivo e objetivo.
Mesmo a “rede” aqui abordada não pode ser considerada o meu “objeto” de
pesquisa. O que procuro estabelecer com as pessoas e objetos em suas inter-relações é menos
uma observação do que um diálogo. Com isso quero afirmar que mais do que descrever essas
conexões, fluxos e conflitos de maneira “objetiva”, ao mesmo tempo esses elementos também
informam o meu interesse sobre como é possível produzir uma narrativa crítica às ideias de
sentido da modernidade e da nação. Eu não posso negar, portanto, o papel que esses
entrecruzamentos, que esses pontos de encontro e de trânsito, têm na produção da própria
101

narrativa desta tese. São eles que informam, portanto, com suas vozes por mim interpretadas,
uma narrativa transnacional possível. Assim, os híbridos talvez falem mais aqui a respeito
dessas redes do que os próprios sujeitos e objetos.
Tampouco é possível afirmar que há alguma ideia de sentido permeando as
transformações dos híbridos que estudo. Eles não foram “se aprimorando progressivamente”,
ou mesmo “por saltos”, no período aqui abordado. É justamente essa concepção moderna de
sentido histórico que os fluxos da nossa rede transnacional põem em xeque. O que mostrarei
nesta tese é que os conceitos de civilização e cultura e os patrimônios etnográficos e artísticos
se modificam muito mais em função de seleções estratégicas, de trânsitos privilegiados, de
facilidades de acesso e de contatos fortuitos. Assim não é nem um pouco contraditório atestar,
por exemplo, a existência, num mesmo tempo e espaço, de uma concepção racial ou
hierarquizante de cultura ao lado de outra histórica e pluralista. Não argumentarei que essa
coexistência se deva a um grupo ou país ser mais “atrasado” que outro: essas escolhas se devem
muito mais a seleções estratégicas, ao aproveitamento de correlações de força específicas, à
visualização das melhores oportunidades para as produções regionais de modernidade – algo
que poderá ser percebido em cada um dos próximos capítulos. Isso porque se a modernidade
representa a criação de uma nova temporalidade, o tempo em si nunca foi propriamente
moderno:

Nós nunca avançamos nem recuamos. Sempre selecionamos ativamente elementos


pertencentes a tempos diferentes. Ainda podemos selecionar. É a seleção que faz o
tempo, e não o tempo que faz a seleção. O modernismo – e seus corolários anti- e pós-
modernos – era apenas uma seleção feita por alguns poucos em nome de muitos. Se
mais e mais pessoas recuperarem a capacidade de selecionar, por conta própria, os
elementos que fazem parte de nosso tempo, iremos reencontrar a liberdade de
movimento que o modernismo nos negava, liberdade que na verdade jamais havíamos
perdido. (LATOUR, 1994, p. 75)
102

PARTE I: ANTROPOLOGIA AMERICANISTA

Na verdade você irá entender que tudo e qualquer coisa que possa ser feito para
exprimir o pensamento de que a ciência não tem nada a ver com rivalidades
nacionais é altamente bem-vindo para mim. Eu acredito que o ponto de vista da
ciência que é baseado na cooperação da humanidade mostrará o erro daqueles cujas
ações são baseadas no ódio e na vingança. 69

69
Carta de Franz Boas para Paul Rivet, 16 de janeiro de 1920, Franz Boas Papers (Mss.B.B61.inventory02),
American Philosophical Society (doravante simplesmente FBP, APS). “As a matter of fact you will understand
that everything and anything that may be done to give expression to the thought that science has nothing to do
with national rivalries is highly welcome to me. I trust that the point of view of science which is based on the
cooperation of mankind, will show the error of those whose actions are based on hatred and revenge”.
103

CAPÍTULO 3: O AMERICANISMO, FRANZ BOAS E OS CONGRESSOS


INTERNACIONAIS DE AMERICANISTAS

Neste capítulo farei algumas observações mais gerais a respeito da antropologia


americanista, mostrarei como o conceito de cultura presente na obra de Franz Boas se liga à
etnologia alemã e tratarei dos Congressos Internacionais de Americanistas, os quais se tornaram
um espaço relacional importante para a constituição de conexões transnacionais que interessam
a este trabalho. Trata-se, portanto, de apresentar a gênese dos circuitos relacionais e do conceito
de cultura que conectaram, no final do século XIX e no início do XX, um conjunto de sujeitos
da modernidade europeia e estadunidense, de um lado, a um conjunto de sujeitos da
modernização brasileira, de outro.

3.1. O AMERICANISMO

Documentos como a “Carta de Pero Vaz de Caminha” atestam que a produção de


informações e saberes sobre os povos do Novo Mundo foi praticamente imediata ao
descobrimento das terras de além-mar pelos europeus.70 Logo “gabinetes de curiosidades” e
“museus de história natural” começariam a se proliferar na Europa a fim de abrigar artefatos
representativos da “natureza” desses lugares – incluam-se aí os seus habitantes e os artefatos
por eles produzidos. No entanto, a institucionalização de um “americanismo”, compreendido
como uma rede científica transnacional, caracteristicamente antropológica, voltada para o
estudo dos povos primitivos das Américas, ocorre na Europa e nos próprios países americanos,
por motivos diversos, apenas em meados do século XIX.
Esse interesse pelos “povos primitivos” americanos situa-se num movimento mais
abrangente desencadeado pela expansão dos impérios do Hemisfério Norte, conforme pontua
Claude Auroi:

Precedidos en los siglos dieciocho y diecinueve por los viajeros y descubridores como
La Pérouse, Bougainville y el Capitán Cook, pero también por los geografos,
botánicos y zoologos como Alexander von Humboldt, Forster y Darwin, aparecieron
más tardíamente en tanto que especialistas ya no de la naturaleza, sino de las
culturas. En esta oleada del mundo blanco hacia los mares australes y las selvas

70
Uma interessante reflexão a respeito das informações de caráter etnográfico desse documento pode ser
encontrada nos primeiros parágrafos da “Introdução” escrita por Herbert Baldus em BALDUS, 1954.
104

tropicales – e incluso, las comarcas frias y desoladas –, la curiosidad científica por


el hombre del hemisferio sur llegó después de un interés más manifiesto por la fauna
y la flora. Esta curiosa inversión de las prioridades se situaba en un contexto de
creciente materialismo, que se concretaba por la búsqueda y el descubrimiento de
productos que permitían a la plantación colonial satisfacer los gustos hedonistas de
las cortes y de los salones burgueses. (AUROI, 1998, p. 71)

Infelizmente a ideia de “americanismo”, conforme será pensada neste capítulo – e


que não deve ser confundida com a concepção chauvinista de identidade estadunidense que
tomou força a partir da primeira metade do século XX –, ainda não despertou o interesse de
historiadores, cientistas sociais, filósofos ou linguistas, da mesma forma como o fez em relação
a Edward Said a respeito do “orientalismo” (SAID, 2007). Também não é difícil imaginar que
seria insuficiente uma simples transposição das conclusões de Said para essa outra rede
discursiva que emerge em torno do interesse pelos povos “ameríndios”. Além do mais, ainda
segundo Auroi, há uma transformação verificável nesse interesse pelo “outro” nas ciências
sociais produzida no início do século XX:

El interés por los pueblos diferentes tomó, para algunos investigadores, una forma
ya no utilitaria, sino de simple curiosidad científica, en tanto que objeto social de
estudio como otros. Por otra parte, los descubrimientos arqueológicos de
monumentos grandiosos en las Américas y en Asia hicieron emerger lentamente una
conciencia de admiración más allá de un interés simplemente académico. Los
enigmas de las grandes civilizaciones desaparecidas, tales como las de isla de
Pascua, o los templos Mayas, llevaron a los investigadores etnólogos a interesarse
en los descendientes de esas sociedades estructuradas, muy a menudo sin vínculos
culturales evidentes con sus gloriosos pasados. Por extensión, a principios del siglo
veinte y en el periodo de entre guerras hubo una proliferación de estudios sobre todo
grupo humano llamado en ese entonces “primitivo”. (AUROI, 1998, p. 72)

O americanismo prolifera-se, assim, num terreno perpassado por interesses que vão desde o frio
cálculo da empresa imperialista até o impulso afetivo que emerge da centelha da curiosidade
científica.
O mesmo americanismo ainda gerou outros efeitos, só muito recentemente
percebidos. Estudos a respeito da passagem de Claude Lévi-Strauss pelo Brasil reacenderam a
chama de um assunto cuja capacidade ígnea foi por um bom tempo desacreditada. Fernanda
Peixoto, por exemplo, recolheu interessantes definições a respeito do tema e, embora esteja
lidando com uma tradição especificamente francesa de ciências sociais, ofereceu-nos exemplos
que podem ser perfeitamente pensados de modo análogo para a rede de pesquisadores(as) cuja
constituição será estudada aqui a partir dos EUA. Analisando a primeira geração de
americanistas da Société des Américanistes de Paris, por meio de suas publicações e estatuto, a
105

autora capta o caráter transnacional dessa rede, para a qual “o americanismo é definido pelos
seus praticantes como uma ciência [...] voltada para o conhecimento das Américas, e cuja
questão central, norteadora das investigações, diz respeito às origens americanas” (PEIXOTO,
1998, p. 85). A respeito deste caráter transnacional, Peixoto afirma que

esse circuito específico reúne arqueólogos, folcloristas, geógrafos, viajantes e,


sobretudo, etnólogos sob uma mesma legenda. O que os unifica, fundamentalmente,
é o estudo da(s) América(s), de sua paisagem, história, tipos humanos, organizações
sociais. Com esse objetivo, tais pesquisadores circulam por diferentes países,
cruzando fronteiras, desenhando recortes: o mapa que têm diante de si é o da América.
Os contornos nacionais, nesse caso, não estão em destaque. Por isso, antes de qualquer
outra alcunha que possam ter recebido no futuro — mexicanistas, brasilianistas etc.
— são, acima de tudo, americanistas. (PEIXOTO, 1998, p. 87)

É interessante ainda um depoimento que a autora recolhe de Eduardo Viveiros de Castro sobre
o lugar do americanismo em face de outros “ismos”: “A América do Sul esteve à margem deste
movimento sistemático de investigação sobre as formas não-européias de vida social,
característico da modernidade tardia. O índio sul-americano foi o Selvagem da filosofia dos
séculos XVI a XVIII, não o Primitivo da antropologia vitoriana [...]. Assim, o americanismo
deixou poucas marcas no acervo da disciplina” (apud PEIXOTO, 1998, p. 102).
Há, por fim, a este respeito, uma implicação de profunda significância para o
pensamento antropológico contemporâneo encontrada por Anne-Christine Taylor, também a
propósito do interesse pela obra americanista de Lévi-Strauss, mas neste caso tratando
especificamente do “tornar-se americanista”:

dedicar-se ao estudo de sociedades ameríndias e não às sociedades africanas ou


europeias é, primeiro, aderir a uma comunidade científica marcada por uma herança
intelectual, um estilo de compromisso com seu objeto de estudo, preocupações
teóricas e formas de interação profissionais que lhe são próprias; é, em seguida,
familiarizar-se com particularidades culturais que vão alterar, muitas vezes até contra
a vontade dos pesquisadores, as proposições teóricas mais abstratas. (TAYLOR, 2001,
p. 77)

Isso já indica como a inserção nesta rede transnacional americanista implica em formas
particulares de subjetivação. Esse processo se dá por meio do conceito de cultura, híbrido que
permitirá transformar conjuntos de pessoas em um objeto de pesquisa numa relação plenamente
comprometida com uma configuração específica da ideologia moderna, conforme pretendo
demonstrar com este capítulo.
O tema do americanismo, no entanto, abrange relações que se desdobraram de
forma bastante ampla tanto no tempo quanto no espaço. O que eu abordarei aqui é um ramo
106

específico dessa rede, composto por um conjunto de cientistas sociais que partilhavam entre si
os valores do internacionalismo científico, do antirracismo, bem como o interesse pelo estudo
de outras culturas, no plural, em especial aquelas consideradas as mais “primitivas” e que
estivessem em vias de serem extintas. Além disso, interessa-me particularmente o ramo
reticular específico que se articulou ao programa antropológico boasiano e se direcionou, de
uma forma ou de outra, para um recorte etnológico, institucional e relacional brasileiro
preocupado em pensar a modernidade do seu país por meio da compreensão histórica de sua
própria cultura.
Ainda que variassem as interpretações a respeito da diferenciação e constituição
histórica dessas culturas ameríndias, de modo geral é possível perceber que essa linhagem
americanista em grande medida é um desenvolvimento de determinados valores estabelecidos
a partir do que Matti Bunzl chama de “Contra-Iluminismo alemão” (BUNZL, 1996). Essa forma
particular de articulação entre os conceitos de “civilização” e “cultura” acabou se mostrando
fundamental para a produção da modernidade especificamente brasileira, e eu acredito que as
diversas conexões produzidas por essa rede transnacional americanista tenham desempenhado
um papel significativo para isso.
A extensa documentação (em sua grande maioria epistolográfica) reunida na
coleção Franz Boas Papers, ora abrigada nos arquivos da American Philosophical Society, na
cidade da Filadélfia, estado da Pensilvânia, EUA, permitirá compreender melhor a constituição
histórica dessa rede transnacional.71 Essa documentação foi doada por familiares de Boas e
claramente se constitui como memória das ciências sociais e dos movimentos radicais nos EUA,
e esse sentido prévio tende a direcionar os seus usos possíveis, conforme já tive a oportunidade
de esclarecer no capítulo anterior. A centralidade de Franz Boas nessa imensa rede relacional é
tanto real quanto construída, e a sua desindividualização é um trabalho intelectual que requer
bastante paciência.
No entanto, é possível ir além dessas interpretações previamente apresentadas e
perceber que Franz Boas, ele próprio um “americanista”, foi impelido à rearticulação de uma
vasta rede de antropólogos, a partir dos Estados Unidos da América, em torno de valores
científicos e políticos peculiares, em grande medida trazidos da Alemanha, num contexto a

71
Franz Boas Papers, Mss.B.B61.inventory02. As correspondências arquivadas nesta coleção estão organizadas
em ordem alfabética e hoje estão todas digitalizadas e disponibilizadas no site da American Philosophical Society,
de modo que apenas a informação do correspondente e sua data tornam possíveis a sua localização nos catálogos
da instituição. Por isso, a partir de agora, não farei mais menção aos códigos de localização das cartas citadas para
além dessas informações onomásticas e cronológicas, seguidos da indicação FBP, APS (“Franz Boas Papers,
American Philosophical Society).
107

princípio avesso aos projetos e modos de sociabilidade por ele pretendidos. Sua postura
historicista, internacionalista, antirracista e empirista acabou por vicejar nesse meio e por
desencadear efeitos posteriores em redes intelectuais constituídas em contextos histórico-
geográficos diversos, a exemplo do brasileiro. Assim, embora nunca tenha sido propriamente
um “sul-americanista”, Boas servirá aqui como referência para uma análise a mais ampla
possível de uma tradição intelectual chave para a compreensão dos projetos modernos de Brasil
que proliferaram a partir da década de 1930. É, portanto, entre o polo dos sujeitos-americanistas
e dos objetos-culturas-ameríndias que podemos localizar os primórdios da produção desse
híbrido que é o conceito de cultura nacional, esse meio-sujeito-meio-objeto tanto disputado
quanto conformador de disputas travadas em torno da modernização do país e que desdobraria
ainda num outro tipo de híbrido, isto é, os patrimônios etnográficos e artísticos. Estes últimos,
no entanto, ainda não serão abordados nestes dois primeiros capítulos. Veremos como Franz
Boas e seus pares foram, aos poucos, se constituindo como essas subjetividades americanistas
em contato com as culturas americanas, produzindo assim, ao mesmo tempo, um projeto
moderno alternativo ao da velha civilização europeia.
Uma outra advertência deve preceder, no entanto, a análise desse material missivo.
Muitos certamente sentirão falta da utilização de correspondências relacionadas a outros
reconhecidos americanistas, como, por exemplo, os alemães Eduard Seller (1849-1922), Walter
Lehmann (1878-1939), Konrad T. Preuss (1869-1938) e Paul Ehrenreich (1855-1914), ou os
mexicanos da Escuela Internacional de Arqueología y Etnología Americanas. Para o caso
desses últimos, o olvidamento se deu sobretudo por uma questão de foco e pelo fato de que
essas relações já estão muito bem documentadas na tese de doutorado de Mechthild Rutsch
(RUTSCH, 2007). No que diz respeito aos demais, sobretudo àquela constelação de eminentes
etnólogos alemães, a ausência se deve ao fato de que, no momento da pesquisa documental nos
EUA, a importância de seus nomes no interior de uma rede de americanistas constituída já no
século XIX não estava clara o suficiente numa pesquisa voltada primordialmente para as
décadas de 1930 e 1940. Os etnólogos que optaram por realizar pesquisas de campo – em
detrimento dos “etnólogos de gabinete”, cujo trabalho também gozava de reconhecimento à
época72 –, acabaram por conquistar mais visibilidade na memória da disciplina no Brasil. Foi
ao longo da leitura das cartas e demais fontes que me dei conta de outros nomes aparentemente

72
Segundo Beatriz Christino, “ainda que as expedições com objetivos científicos a lugares desconhecidos
trouxessem inegável prestígio aos autênticos pesquisadores-viajantes, as viagens não chegavam sequer a constituir
uma condição necessária para que um intelectual figurasse entre os sul-americanistas do primeiro time nos anos
1890-1929. Isso porque, a forma de tratamento dos dados assumia então, no julgamento da relevância científica
de um trabalho, maior peso do que a recolha in loco dos mesmos” (CHRISTINO, 2007, p. 51).
108

bastante centrais, e o tratamento que lhes será aqui conferido acabará se mostrando pouco
simétrico em relação a outros nomes mais lembrados aqui no Brasil, a exemplo de Karl von den
Steinen, Erland Nordenskiöld, Paul Rivet, Theodor Koch-Grünberg e Max Schmidt, dentre
outros – todos eles reconhecidos pelo importante trabalho de recolhimento de dados
etnográficos in locu. Todavia, embora não seja possível esgotar aqui o alcance da rede
relacional em que Franz Boas estava imerso em função de seus interesses americanistas –
trabalho que, em função do vultoso volume de suas correspondências, demandaria no mínimo
algum programa de pesquisa envolvendo vários pesquisadores –, o quadro que será apresentado
a seguir será suficiente para dar conta das feições mais marcantes dessa rede transnacional
ligada pelos valores de um americanismo culturalista. Comecemos pelos fundamentos
relacionais e teóricos específicos da linhagem na qual se encontra Boas por meio da exposição
de alguns aspectos relativos à etnologia alemã constituída em meados do século XIX.

3.2. FRANZ BOAS,VÖLKERKUNDE E POLÍTICA

Atualmente é quase um lugar-comum afirmar que grande parte das inovações


trazidas por Franz Boas (1858-1942) para a antropologia estadunidense é fruto de sua formação
alemã. Essa afirmação foi sustentada de maneira bastante consistente num conjunto de textos
reunidos por George W. Stocking num livro ainda não vertido para o português e intitulado
Volksgeist as method and ethics (STOCKING JR., 1996). O(a)s autore(a)s partem de um texto
escrito por Boas em 1887 (“The study of Geography”) e por ele próprio incluído numa coletânea
de artigos produzidos ao longo de sua vida acadêmica e reunidos no livro Race, language and
culture, de 1940, de modo a evidenciar uma filiação epistemológica que remonta aos irmãos
Wilhelm e Alexander von Humboldt.
Boas faria parte de uma rede alemã de etnólogos marcados pela crítica historicista
ao projeto iluminista na esteira de Wilhelm von Humboldt (1767-1835), que, por sua vez, teria
sido profundamente influenciado pela filosofia herderiana durante o período em que fizera parte
do grupo de intelectuais conhecidos como “Círculo de Jena”.73 De acordo com Bunzl, o projeto

73
O “Círculo de Jena” incluía nomes como Johann Gottlieb Fichte e Friedrich Schiller e se materializou no
periódico Die Horen. No entanto, as contribuições de Humboldt nessa publicação fizeram pouco sucesso, sendo
criticadas pelo próprio Imannuel Kant. Humboldt foi convidado para comandar a secretaria da educação do
governo prussiano de Friedrich Wilhelm III, sendo o fundador da Universidade de Berlim. A respeito da
perspectiva herderiana, Bunzl escreve que “rejeitando como um ‘mecanismo arbitrário’ qualquer raison
universelle que impulsionasse um desenvolvimento uniforme da civilização, Herder [em seu Auch Philosofie der
Geschichte zur Bildung der Menschheit, de 1774, que Bunzl considera um ensaio polêmico direcionado
primariamente contra a filosofia da história de Voltaire] argumentou ao contrário em favor da singularidade de
109

humboldtiano foi, em grande medida, o de conferir concretude empírica à filosofia herderiana


por meio de um método sistemático de estudo dos diversos Nationalcharakter. Humboldt se
tornava assim um dos principais sistematizadores da tradicional dicotomia alemã estabelecida
entre as Naturwissenchaften ou Gesetzeswissenchaften (ciências naturais ou físicas) e as
Geisteswissenchaften ou Geschichtswissenchaften (ciências do espírito ou históricas).
Esse enfoque metodológico corresponderia à busca pela compreensão (Verstehen)
do Universo (Kosmos) de maneira indutiva.74 A análise das conexões existentes entre cada um
dos Nationalcharakter conduziria à compreensão da humanidade como um todo, e daí surgiria
um programa científico expresso numa antropologia comparada. Humboldt tentou realizar esse
programa por meio de uma monumental obra linguística, pautada pela análise comparada
sincrônica de estruturas de diferentes línguas, baseando-se não na sua comparação com as
conhecidas gramáticas indo-europeias, mas sim a partir de suas próprias estruturas internas,
numa perspectiva portanto marcadamente historicista. A linguagem, por ser “o elemento
definidor da vida humana”, seria um objeto de estudo privilegiado para este projeto
antropológico em função da relação dialética existente entre o “caráter nacional” e a “língua”
em sua capacidade de expressar a especificidade de um povo.
O próximo passo seria então entender as relações genéticas entre todas as línguas,
algo que conduziria à compreensão sistemática da humanidade em suas diversas características
nacionais. A língua, fenômeno universal, possuiria uma unidade expressa em sua capacidade
de diversificação, sendo o “elemento unificador da humanidade” (BUNZL, 1996, p. 32). Assim,

valores transmitidos ao longo da história […]. A comparação de uma dada nação ou época com o Iluminismo ou
qualquer outro padrão externo era a partir de então inaceitável: cada grupo humano poderia ser entendido apenas
como um produto de sua história particular. Incorporando um gênio único, ou Geist, cada Volk formaria uma
totalidade orgânica, os valores, as crenças, as tradições e a linguagem os quais poderiam ser compreendidos por
dentro apenas pela adoção do ponto de vista de seus membros. A História como um processo observável ocorreu
não num nível universal, mas apenas entre entidades sociais particulares […]” (BUNZL, 1996, p. 18) – “rejecting
as an 'arbitrary mechanism' any raison universelle that propelled a uniform development of civilization, Herder
argued instead for the uniqueness of values transmitted throughout history […]. The comparison of any given
nation or age with the Enlightenment or any other external standard was therefore unacceptable: each human
group could be understood only as a product of its particular history. Embodying a unique genius, or Geist, each
Volk formed an organic whole, the values, beliefs, traditions, and language of which could only be understood
from within by entering into the viewpoint of the members. History as an observable process occurred not on a
universal level, but only among particular social entities [...]”.
74
“Da mesma forma como os produtos do caráter nacional na antropologia comparada, os verdadeiros eventos da
história seriam inerentemente interessantes, e, portanto, um objeto primário de investigação. Entretanto, a simples
acumulação de fatos seria apenas o ponto de partida de uma interpretação hermenêutica. A meta final seria a
Verstehen, ou compreensão, dos fatos históricos ‘como parte de um todo’ por meio de ‘conjecturas intuitivas
daquilo que não é atingível’ por intermédio do colecionamento de fatos históricos” (BUNZL, 1996, p. 23) – “Like
the products of the national character in comparative anthropology, the actual events of history were inherently
interesting, and were thus a primary object of investigation. However, the simple accumulation of facts was only
the starting point of a hermeneutic interpretation. The ultimate goal was the Verstehen, or understanding, of the
historical facts 'as part of a whole' through 'the intuitive conjecture of that which is not attainable' through the
collection of historical facts”.
110

essa concepção, que afirmava a capacidade universal de aquisição da linguagem, embora


conduzisse ao argumento ligado a uma progressiva civilização universal com base em
parâmetros eurocentrados, continha em si também um importante elemento relativista e
pluralista que conduziria toda essa geração a uma postura humanista e antirracista. Buntzl
identificou com clareza esse projeto linguístico no Handbook of American Indian Languages,
coordenado por Boas, e logo mais será possível observar esse mesmo posicionamento na
correspondência trocada entre este último e Paul Rivet.
Foi por intermédio sobretudo de Adolf Bastian (1826-1905) que essa tradição
humboldtiana tomaria forma num projeto etnológico institucionalizado no Königliches Museum
für Völkerkunde (Museu Etnológico Real), em Berlim. Bastian teria seguido mais diretamente,
todavia, o trabalho do irmão dois anos mais jovem de Wilhelm von Humboldt, Alexander von
Humboldt (1769-1859), que, embora fosse mais um “naturalista” que propriamente um
etnólogo, compartilhava as inquietações metodológicas de seu irmão. Alexander von Humboldt
foi o grande sistematizador de um projeto “cosmográfico”, sendo o Kosmos entendido como
uma história do universo captada a partir de um ponto de vista indutivo. Enquanto Humboldt
se tornou internacionalmente reconhecido por suas pesquisas no campo da geografia física, foi
seu discípulo Karl Ritter (1779-1859) que levou adiante o programa de explicar mais
sistematicamente, no âmbito do historicismo indutivista, as relações entre a natureza e os seres
humanos. Mais ou menos quinze anos depois da morte de Ritter, suas ideias foram ainda
desenvolvidas por Friedrich Ratzel (1844-1904), após o mesmo ter abandonado o social-
darwinismo de Ernst Haeckel (1834-1919) (BUNZL, 1996, p. 32). É importante a menção a
esta ramificação geográfica do projeto humboldtiano tendo em vista a defesa da perspectiva
“cosmográfica” que Boas realizou em seu “The study of Geography”, uma vez que esta postura
epistemológica se estenderia à sua atuação antropológica.
Ao lado de Rudolph Virchow (1821-1902), Bastian teria “pavimentado” os
caminhos que seriam seguidos posteriormente por Boas (BUNZL, 1996, p. 44). Aproveitando-
se do inevitável expansionismo imperialista prussiano, esses dois antropólogos dedicaram-se à
coleta sistemática de artefatos e dados antropométricos dos Naturvölker supostamente fadados
ao desaparecimento.75 Virchow, – um antropólogo físico que se oporia às especulações a

75
Segundo Bunzl, “Porque o direito à existência de cada povo [Volk] estava severamente ameaçado pela expansão
colonial, que estava causando o rápido desaparecimento de populações indígenas, Bastian considerou isso como
um chamado urgente para a coleta de tantos produtos étnicos quanto possível, fosse na forma de artefatos, mitos,
crenças religiosas, gramáticas ou descrições de sistemas políticos e econômicos” (BUNZL, 1996, p. 48) – “Because
the right of existence of each Volk was severely threatened by colonial expansion, which was causing the rapid
disappearance of indigenous populations, Bastian regarded it as his urgent calling to collect as many ethnic
111

respeito da existência de “tipos raciais puros”, baseando-se na falta de elementos empíricos que
pudessem comprovar uma série de argumentos racistas ciosos da autoridade concedida pela fala
científica76 – e Bastian liderariam, a partir do museu berlinense, uma antropologia que, para
além de epistemologicamente orientada pela perspectiva indutiva e historista, caracterizar-se-
ia politicamente por ideais humanísticos e pluralistas.
Foi esse o ambiente intelectual e relacional que permeou a formação de Boas antes
que ele se estabelecesse nos EUA.77 Boas nasceu em Minden, em 9 de julho de 1858, no interior
de uma família judaica “impregnada com os ideais da revolução alemã de 1848” (GAILLARD,
2004, p. 60),78 tendo posteriormente cursado matemática em Heidelberg e obtido seu título de
doutor com uma tese em geografia física relacionada ao problema da coloração dos oceanos.
Em Bonn, Boas recebeu instrução em geografia de um ardente geógrafo histórico ritteriano,
Theobald Fischer, e em sua tese já apareceriam os primeiros questionamentos de caráter
epistemológico. Sua primeira expedição ao Ártico, mais especificamente à Ilha de Baffin,
situada no norte do Canadá, em 1883, teria sido baseada, no entanto, em uma antropogeografia
já mais próxima a Ratzel. A impossibilidade de conseguir um trabalho entre 1884 e 1885 em
Nova York após essa pesquisa de campo teria feito com que Boas retornasse à Alemanha, desta
vez para trabalhar sob a supervisão direta de Bastian e Virchow no museu fundado pelo
primeiro.
Desse período em diante a produção intelectual de Boas dá seus primeiros passos
no interior da tradição aqui chamada de humboldtiana ou, a partir de Bastian, simplesmente
Völkerkunde ou “etnologia alemã”. Segundo Gaillard, que, por sua vez, apoia-se em Stocking
Jr., Boas sugeriu a Bastian “a ideia de conduzir um trabalho de campo sobre relações étnicas e
raciais entre os inuítes e os índios americanos; o estudo da migração e das relações raciais por
meio da linguística e da antropologia física era um lugar-comum clássico naquele tempo”
(GAILLARD, 2004, p. 61).79 Por essa época Boas aguardava ser nomeado Privatdozent da
Universidade de Berlim, mas o fato de possuir ascendência judaica teria retardado esse anseio,
até que Boas se decidiu por emigrar para os EUA em 1887, casando-se, adquirindo cidadania

products as possible, whether in the form of artifacts, myths, religious beliefs, grammars, or descriptions of
political and economic systems”.
76
A respeito de Virchow e de sua respectiva influência na produção boasiana, vide MASSIN, 1996.
77
Os dados biográficos que seguem foram extraídos de BUNZL, 1996, GAILLARD, 2004, e também de uma
“Biografical information” redigida pelo próprio Boas e arquivada nos Franz Boas Professional Papers (uma outra
coleção, diferente dos Franz Boas Papers) da American Philosophical Society.
78
“[...] impregnated with the ideals of German revolution of 1848”.
79
“[…] the idea of carrying out fieldwork on the ethnic and racial relations between the Inuit and the American
Indians; the study of migration and racial relations through linguistics and physical anthropology was a classic
topos at that time”.
112

estadunidense e, por fim, conseguindo o cargo de editor de geografia da revista Science,80 onde
passou a publicar artigos que marcariam inicialmente a sua postura política e epistemológica
num ambiente intelectual dominado pelo evolucionismo. Possivelmente desconhecendo este
novo mundo intelectual, Boas publicou no mesmo ano, na Science, um artigo criticando os
métodos de disposição das coleções em museus empregados por Otis Tufton Mason (1838-
1908), cuja perspectiva evolucionista não distinguia as “tribos” às quais pertenciam os objetos
expostos. Isso era algo que feria a perspectiva cosmográfica à qual se filiava Boas, cujo modelo
expositivo ele acreditava ser capaz de representar, da melhor forma possível, a contribuição de
cada Volk em específico para o progresso da humanidade. Em outro artigo publicado no mesmo
ano, Boas também defendeu o caráter cosmográfico da geografia, ainda que considerasse
válidas tanto a perspectiva das “ciências físicas” quanto a da cosmografia humboldtiana, com
direito a menções explícitas aos “admiráveis” trabalhos de Humboldt e à geografia comparativa
de Karl Ritter.81 No entanto, após receber críticas de John Wesley Powell (1834-1902), o grande
nome da antropologia estadunidense de então, e do próprio Mason, Boas recuou e acabou
produzindo trabalhos guiados mais pelo “impulso estético” em direção ao descobrimento de
leis universais ordenadoras do mundo do que pelo impulso subjetivo e afetivo da “cosmografia”
que defendera em seu “The study of Geograpy”.
Foi apenas com a conquista de espaços institucionais estáveis – o cargo de professor
na Columbia University a partir de 1898, de curador do American Museum of Natural History
(AMNH) em 1901 e, no mesmo ano, a nomeação como “filologista honorário” do Bureau of
American Etnography (BAE) do Smithsonian Institution, em Washington – que Boas encontrou
condições favoráveis para retomar o programa antropológico humboldtiano, num momento em
que as teorias evolucionistas e racistas conquistavam um público cada vez maior.82 Dentre os
principais trabalhos que no início do século XX expressam a defesa dessa postura estão o já
mencionado Handbook of American Indian Languages, publicado em 4 volumes entre 1911 e

80
Fundada em 1880 como publicação científica da American Association for the Advancement of Science (AAAS).
81
Neste artigo, o já mencionado “The study of Geography”, Boas recorda que as “ciências físicas” obedeceriam a
um impulso estético relacionado a um desejo de ordenação do mundo, para o qual a verdade seria um mero valor
agregado (aqui baseando-se em Epicuro e na sua ideia de uma “explicação possível”), ao passo que a cosmografia
obedeceria a um “impulso afetivo” (Goethe), isto é, de um impulso em direção ao fenômeno isolado pelo impacto
que ele causaria em nossa subjetividade, independentemente de ser “explicável” por alguma lei, de modo que neste
caso a verdade de um sistema isolado seria mais importante do que seu pertencimento a um sistema inatingível em
sua totalidade. De qualquer maneira, as ciências físicas seriam apenas auxiliares da geografia, por sua vez parte da
cosmografia (BOAS, 1996 [1887]).
82
Segundo George Stocking Jr., “Boas só pôde falar com a autoridade de ser o ‘principal antropólogo’ da América
depois que sua posição institucional estava garantida e seu ponto de vista já não era o de um jovem estrangeiro”
(STOCKING JR., 2004, p. 367).
113

1914 por intermédio do BAE, e o livro The mind of primitive man, também de 1911, no qual
ele reúne importantes estudos produzidos a partir de 1894.83
Um aspecto que tem chamado a atenção na trajetória de Boas é o seu papel como
“intelectual público” (WEILER, 2008) – algo destacado, inclusive, como mostrei no capítulo
anterior, nas narrativas inscritas na sua coleção de documentos pessoais. Conforme demonstra
Bernd Weiler (2008), defender que as culturas são historicamente constituídas e dotadas de
valores específicos, sendo, portando, passíveis de transformações e aprimoramentos, e não
racialmente determinadas, era, além de uma questão intelectual, uma condição de sobrevivência
para Boas enquanto teuto-estadunidense nos EUA – ou seja, um “estadunidense hifenizado”
(hyphenated American).84 Durante a Primeira Guerra Mundial o alinhamento do governo
estadunidense às potências aliadas logo se transformou numa onda de xenofobia generalizada
nos EUA, em especial contra a numerosa comunidade alemã que ali vivia com seus
descendentes.
Boas era um descendente de judeu que, no entanto, colocava em primeiro lugar sua
identidade germânica, pois possuía um enorme orgulho da tradição cultural legada por seus
pensadores e artistas.85 Isso não significava, contudo, algum tipo de patriotismo por sua parte.
Embora desejasse reconhecer as “correntes que nos prendem à tradição” justamente para poder
rompê-las,86 Boas, por outro lado, lia a herança humboldtiana no sentido de que somente o

83
Em conjunto, esses artigos representam um consistente esforço de refutação das teses racistas atestando, por
exemplo, a variabilidade intergeracional das medidas cranianas e, de um ponto de vista mendeliano, demonstrando
a improbabilidade da existência de um “tipo racial puro”. Em síntese, e seguindo as premissas da tradição
etnológica alemã, tratava-se de uma investida empirista contra as especulações dedutivas que buscavam reforçar
mitos raciais e a superioridade europeia em relação aos povos colonizados ou, como preferiam, às “raças
inferiores”. Esse livro ganhou há pouco tempo uma tradução para o português (BOAS, 2010).
84
É interessante lembrar que o provável primeiro uso das palavras “transnacional” e “transnacionalismo” nos EUA
se deveu justamente a essas tensões. Em 1916 Randolphe Bourne tentava mostrar que aquilo que diferenciava os
EUA das outras nações do globo, isto é, aquilo que conferia força ao seu caráter nacional, o verdadeiro
“excepcionalismo americano”, era justamente a sua construção “transnacional”, sua “vocação cosmopolita” que o
tornaria o líder natural do mundo moderno (TYRRELL, 2007; MCGERR, 1991; SAUNIER, 2009).
85
Geyla Frank (1997) se pergunta se a condição judaica não teria sido um fator decisivo na constituição da
antropologia cultural, notando que grande parte dos nomes ligados à rede transnacional de antropólogos(as)
vinculados(as) a Boas também eram judeus ou judaicas. Sua conclusão é bastante interessante: para além das
disputas entre o grupo predominantemente semítico de Boas e os ataques antissemitas que sofreu de nomes como,
p. ex., Leslie White, a autora nota que, todavia, essa disputa se dava num lugar privilegiado, e se Boas, ainda que
de origem judaica, podia travar (e de maneira bem-sucedida) essa luta, era porque o seu lugar social era privilegiado
no mundo estadunidense – o que torna mais complexa as relações raciais e de gênero no mundo acadêmico de lá:
Boas era “suficientemente branco e homem” para estar lá. No entanto, a “judaicidade” predisporia o intelectual a
uma situação de relativização cultural em função de sua constante ambiguidade entre mundos. Além disso, a autora
traz à tona a ideia de “diáspora” como uma importante categoria para se pensar essas situações transnacionais
específicas.
86
Boas afirmou o seguinte em 1938: “De fato, toda a minha perspectiva a respeito da vida social é determinada
pela seguinte questão: como nós podemos reconhecer os grilhões aos quais a tradição nos tem prendido? Pois
quando nós os reconhecermos, estaremos também aptos a quebrá-los” (apud WEILER, 2008, pp. 3-4) – “In fact,
114

respeito à pluralidade de tradições é que poderia permitir o abandono da crença de que a verdade
reside em apenas uma delas – esse o verdadeiro “fardo do passado” a ser superado: “Não tolero
o nacionalismo unilateral, tão frequente hoje em dia” (BOAS, 2004, p. 396). Ou seja, para Boas
havia um nacionalismo bom, que impulsiona o desenvolvimento da humanidade de modo geral,
e um mal, unilateral, que deseja impor a sua perspectiva cultural às outras nações. É preciso
notar, entretanto, que a noção boasiana de “aculturação” não era compatível com a ideia de um
“gênio nacional”. Conforme nos lembra Stocking Jr., “por causa da difusão generalizada de
elementos culturais, nenhuma das antigas civilizações da humanidade poderia ser considerada
enquanto ‘produto do gênio de um só povo” (STOCKING JR., 1968, p. 213).87 Se é possível
falar em “cultura alemã” num quadro interpretativo boasiano, isso diz respeito a um conjunto
de condições históricas específicas, não a algum tipo de entidade metafísica que predisporia um
povo à superioridade cultural. Desse modo, não havia contradição em sua defesa de que as
realizações da cultura germânica eram mais fortes do que qualquer coisa já criada pelo restante
da civilização, motivo pelo qual deveria ser defendida a todo custo como forma de garantir um
nível cultural geral elevado para a humanidade como um todo – ao contrário da própria cultura
judaica, que, segundo o ateísta Boas, tenderia a ser absorvida, com o tempo, por outras culturas
(WEILER, 2008, p. 5-6).
Portanto, diante do ódio nacionalista a qualquer “impureza” não “americana”,
contra qualquer pluralidade cultural percebida crescentemente como “ameaça à segurança
nacional”,88 Boas se viu forçado a tomar partido publicamente, em diversas situações, contra
esse patriotismo fanático, especialmente no que diz respeito à interferência da política nacional
na ciência, e contra o pensamento racista. Por isso Boas posicionou-se firmemente contra a
Primeira Guerra Mundial, percebida como fruto de extremismos nacionalistas (LEWIS, 2001).
Isso acabou prejudicando-o, como veremos em outros lugares, num mundo acadêmico em
grande medida comprometido com o projeto civilizacional estadunidense comumente chamado
de “imperialismo”.89

my whole outlook upon social life is determined by the question: how can we recognize the shackles that tradition
has laid upon us? For when we recognize them, we are also able to break them”.
87
“Because of the widespread diffusion of cultural elements, none of the early civilizations of mankind could be
regarded as ‘the product of the genius of a single people”.
88
Eric J. Hobsbawm afirma o seguinte a esse respeito: “Na verdade, as elites governantes dos EUA, encabeçadas
por Theodore Roosevelt (1858-1919), presidente no período de 1901-1909, acabava de descobrir o caubói-
inseparável-de-seu-revólver como símbolo do verdadeiro americanismo, da liberdade e da tradição branca nativa
contra a horda invasora dos imigrantes das classes baixas e a incontrolável cidade grande. Desde então, esse
símbolo tem sido frequentemente explorado” (HOBSBAWM, 2011, p. 169).
89
O uso do termo “imperialismo” é do próprio Boas: “O rude despertar dessa ilusão [sobre os EUA como uma
potência não imperialista] veio em 1898, quando o imperialismo agressivo do período mostrou que o ideal tinha
sido um sonho” (BOAS, 2004, p. 395).
115

Apenas a título de exemplo, enumerarei aqui algumas das aparições “públicas” de


Boas. A partir de 1905 ele passou a colaborar com os líderes nova-iorquinos do movimento
negro, publicando os artigos “A perspectiva para o negro americano” (1906), “Mudando as
atitudes raciais do americano branco” (1906) e “Problemas raciais na América” (1908). De
1914 a 1917 Boas escreveu vários artigos e se pronunciou verbalmente diversas vezes contra o
envolvimento dos EUA na guerra (LEWIS, 2001, p. 456-457).90 Já em 1918, durante a Primeira
Guerra Mundial, anunciou seu voto no Partido Socialista, tendo sido membro, por um breve
período, de um ramo do Partido Socialista em Grantwood, Nova Jersey, “apesar de sua política
estar mais na linha da tradição progressista” (STOCKING JR., 2004, p. 369).91 Além disso, no
mesmo ano, posicionou-se publicamente contra o conflito e contra as rivalidades nacionalistas
numa carta ao editor do The Nation (“O nacionalismo americano e a Primeira Guerra
Mundial”). Em seguida, em 1919, no mesmo espaço, publicou uma carta aberta, intitulada “Os
cientistas como espiões”, denunciando a realização de ações de espionagem por antropólogos
estadunidenses, o que rendeu o seu afastamento da American Anthropological Association
(AAA).92 No mesmo ano ainda publicou “Liberdade para ensinar”, a favor de maior liberdade
acadêmica também para os estudantes.93 No período do entreguerras Boas ainda fundou e
participou ativamente de uma Germanistic Society, ajudou a estabelecer a Emergency Society
in Aid of European Science and Art e desenvolveu diversas ações para auxiliar a retomada da
produção científica na Europa, sobretudo nos territórios das antigas “Potências Centrais”
(LEWIS, 2001, p. 457). Por fim, além de uma combativa defesa da implausibilidade empírica
das teorias racistas, Boas ainda dirigiu uma carta aberta a von Hindenburg em 1933, contra o

90
Robert Lowie, que detalha a oposição de Boas à postura pró-aliados dos EUA (e da opinião pública
estadunidense) na Primeira Guerra Mundial, especifica melhor quais foram essas atividades: “[Boas] não possuía
o temperamento de quem pudesse conter a fala em tal situação de crise. Ele escreveu cartas para o The New York
Times e para o The Nation; contribuiu com artigos para o The Dial e o Illinois Staatszeitung; pregou um sermão
sobre internacionalismo na Igreja de São Clark; e barrou um movimento para investigar a lealdade do corpo
docente da [Universidade de] Columbia por ler para uma turma suas ideias sobre patriotismo” (LOWIE, 1947, p.
308) – “His was not a temperament that could restrain utterance in such a crisis. He wrote letters to The New
York Times and to The Nation; contributed articles to The Dial and the Illinois Staatszeitung; preached a sermon
on internationalism at St. Clark's Church; and parried a move to investigate the loyalty of the Columbia faculty
by reading to a class his ideas on patriotism”.
91
Em suas próprias palavras: “Eu devo, a partir de agora, votar pelo Partido Socialista, que defende o repúdio
daquelas leis que têm resultado na diminuição da liberdade de expressão e de imprensa, do direito de as pessoas
se reunirem pacificamente e de demandarem do governo a reparação de suas ofensas” (apud WEILER, 2008, p.
14) – “I shall, therefore, vote for the Socialist party, that stands for the repeal of those laws that have resulted in
an abridgment of the freedom of speech and of the press, of the right of the people peaceably to assemble and to
petition the government for the redress of grievances”.
92
Este episódio foi pormenorizadamente descrito por Stocking Jr. no capítulo intitulado “The scientific reaction
against cultural anthropology, 1917-1920” (STOCKING JR., 1968).
93
Todos esses documentos foram reunidos por Stocking Jr. em livro já traduzido para o português (BOAS, 2004).
116

Nacional-Socialismo de Hitler em nome da cultura alemã (WEILER, 2008, p. 5),94 e, depois


disso, continuou combatendo ativamente a ascensão nazista bem como ajudando diversos
exilados perseguidos pelo regime hitlerista a encontrar posições de trabalho nos EUA, ao
mesmo tempo em que foi um dos fundadores do American Committee for Democracy and
Intellectual Fredom, não obstante os diversos problemas de saúde e de família pelos quais
passou nos seus últimos anos de vida (LEWIS, 2001, pp. 458-459). Segundo depoimento de
Rivet, como veremos adiante, Boas literalmente morreu defendendo esses valores.95
Outros trabalhos têm encontrado traços desses valores políticos e científicos
partilhados por Boas em outros importantes etnólogos alemães, a exemplo de Karl von den
Steinen (COELHO, 1993) e Theodor Koch-Grünberg (FRANK, 2005).96 Veremos, no próximo
capítulo, que foi também a partir daquele período de maior estabilidade institucional (isto é, da
virada do século XIX para o XX até a Primeira Guerra Mundial) que Boas passou a se dedicar
de modo sistemático à constituição de uma rede transnacional de americanistas em torno dos
valores aqui apresentados. Embora essa rede já existisse antes que Boas conquistasse a sua
independência acadêmico-institucional, será possível perceber a energia que ele dispendeu a
fim de rearticular uma importante fração de antropólogos no interior desse conjunto de
conexões. Notaremos que essa rearticulação gravita principalmente em torno dos valores
específicos do internacionalismo científico, do antirracismo, de um humanismo anti-

94
A respeito desta carta escrita por Boas, Lowie afirma o seguinte: “A ascensão de Hitler mexeu com as
profundezas de sua alma. Que aquele país cujo patrimônio cultural ele glorificou, o país em nome do qual ele
sofreu abusos e ostracismo durante a Primeira Guerra Mundial, pôde desprezar aqueles princípios tão caros a ele,
isso foi um pensamento insuportável. Ademais, sendo de extração judaica, ele possuía parentes na Alemanha cuja
própria existência estava ameaçada pelo Umbruch [“renascimento da Grande Alemanha”]. Ele reagiu uma vez
mais à altura, redigindo uma carta aberta ao Presidente Hindenburg, denunciando as doutrinas do Nazismo na
imprensa diária ou em revistas populares; arrastando-se, quando já debilitado pela idade avançada e por uma
terrível doença cardíaca, por palanques em comícios a fim de investir contra os excessos hitleristas” (LOWIE,
1947, pp. 309-310) – “The rise of Hitler stirred him to the depths of his soul. That the country whose cultural
heritage he gloried in, the country on whose behalf he had suffered abuse and ostracism in the first World War,
should flout the principles dear to him was an unbearable thought. Besides, being of Jewish extraction, he had
relatives in Germany whose very existence was threatened by the Umbruch. He reacted once more in character,
writing an open letter to President Hindenburg, denouncing the tenets of Nazism in the daily press or in popular
magazines; dragging himself when already enfeebled by old age and an encroaching heart disease to the platform
at public gatherings in order to inveigh against Hitlerian excesses”.
95
Sobre a morte de Boas, cf. Lowie (1947, p. 331). Herbert S. Lewis (2001) se recorda de que diversas autoras e
diversos autores têm apresentado uma imagem menos heroica de Boas, ainda que ele o faça para discordar de todas
elas: para além das gerações de antropólogos subsequentes, que teriam detratado Boas como forma de conquistar
visibilidade acadêmica, Lewis se lembra de trabalhos historiográficos como os de William S. Willis Jr., que acusou
Boas, em 1969, de usar o “antirracismo” apenas como uma arma para a dominação judaica do campo antropológico
em detrimento dos “povos de cor”; de K. Visweswaran (1998), para quem Boas, ao expulsar o racismo da
antropologia, fez com que ele ganhasse novo vigor na biologia, trazendo efeitos mais negativos que positivos para
a luta antirracista; de Charles Briggs e Richard Bauman (1999), que enquadraram o trabalho de Boas sobre os
Kwakiutl como mais uma peça da dominação colonial; além das diversas críticas que Boas recebeu a respeito de
suas relações com Zora Neale Hurston, negra e sua aluna de Ph.D., o mesmo acontecendo em relação a Ella
Deloria, uma mulher Dakota que também foi sua discípula.
96
A respeito da tradição etnológica alemã em geral, vide DRUDE, 2010 e WELPER, 2002.
117

imperialista e do salvacionismo dirigido às “culturas primitivas”. Veremos, por fim, que por
diversos motivos e em diversas ocasiões essa rede transnacional acabou se direcionando em
uma boa medida para o campo de estudos e ambiente intelectual brasileiro, e é em função dessas
conexões específicas que será apresentada a complexa teia relacional que ocupará o próximo
capítulo. Será necessário, no entanto, recuar antes até os primórdios dos Congressos
Internacionais de Americanistas, a fim de que seja possível compreender qual o contexto
específico em que Boas se embrenhou quando se fala em “americanismo”.

3.3. OS CONGRESSOS INTERNACIONAIS DE AMERICANISTAS

3.3.1. Os primórdios dos Congressos Internacionais de Americanistas

Não obstante o interesse alemão pelos povos nativos americanos, o


“americanismo”, entendido como uma rede transnacional de intelectuais, se institucionaliza,
por meio de seus Congressos Internacionais, a partir da ação de etnógrafos franceses e
britânicos. É possível acompanhar esse processo por meio de uma narrativa produzida por Alice
C. Fletcher, publicada em 1913 com o título “Brief history of the International Congress of the
Americanists”, no American Anthropologist, periódico da American Anthropological
Association (FLETCHER, 1913).97 O documento é interessante menos como reconstituição
histórica precisa do que por expressar alguns dos significados da institucionalização, naquele
momento, do americanismo antropológico.
Segundo Fletcher, a organização conhecida como International Congress of
Americanists originou-se na Europa, mais especificamente na França. A Société Américaine de
France foi organizada em Paris, “para encorajar o estudo da vida passada de povos do
continente americano, e foi um desdobramento do interesse neste assunto surgido entre
acadêmicos europeus por causa de Humboldt no período em que residiu em Paris durante a

97
Alice Cunningham Fletcher, nascida em Havana, no dia 15 de março de 1838, e falecida em Washington, DC,
no dia 6 de abril de 1923, representa uma trajetória ímpar na história da antropologia estadunidense. Fletcher
trabalhou com Frederic Ward Putnam no Peabody Museum of Archaeology and Ethnology da Harvard University
e ficou conhecida como a pioneira no estudo da música dos índios da América do Norte. Realizou pesquisas de
campo entre os sioux e ficou responsável por uma série de ações governamentais relacionadas a demarcação de
terras indígenas, exposições oficiais e ações educacionais. Foi presidente da Anthropological Society of
Washington e em 1905 foi a primeira mulher a presidir a American Folklore Society, além de ter sido vice-
presidente da American Association for the Advancement of Science e membro da Literary Society of Washington
(GAILLARD, 2004, p. 57).
118

primeira parte do último século” (FLETCHER, 1913, p. 529).98 Esse interesse teria sido
incrementado em 1863 com a formação de um comitê sobre arqueologia americana na Société
d'Ethnographie de Paris, ao mesmo tempo em que a constatação da existência de outros
estudiosos do assunto fora da França sugeria a necessidade de estabelecer alguma forma de
ajuda mútua. De todo modo, percebe-se que a tradição da Völkerkunde alemã do século XIX se
fazia presente nos primórdios da institucionalização do americanismo internacional em função
da influência humboldtiana.
Os primeiros esboços para uma reunião internacional foram traçados em Londres,
em 1867 (FLETCHER, 1913, p. 529). A Guerra Franco-Prussiana e a Comuna de Paris teriam
postergado a organização do primeiro congresso, até que, depois de uma nova reunião da
Société, em 1873, foi enviado um convite, datado de 1874, para o evento que finalmente foi
realizado na cidade de Nancy, entre os dias 19 e 22 de julho de 1875. Segundo Fletcher, o
convite estava direcionado a “todas as pessoas engajadas no estudo da América, na
interpretação de seus monumentos e em escritos etnográficos sobre as raças da América”
(FLETCHER, 1913, p. 529).99
Este primeiro Congresso Internacional de Americanistas aparentemente
sedimentou, em grande medida, o formato que foi seguido nos demais encontros. Um dos
aspectos mais marcantes da organização era o seu tom diplomático: os países interessados e as
instituições especializadas no estudo dos povos ameríndios eram convidados a enviar suas
respectivas delegações.100 Mas o mais interessante é atentar para a simbologia que permeou
esse primeiro evento:

O primeiro Congresso se reuniu no horário e local indicados. O prefeito de Nancy


tornou a cidade alegre com as bandeiras de todas as nações americanas do Canadá ao
Paraguai. As reuniões foram realizadas no Palácio Ducal, cujo grande salão foi

98
“[…] to encourage the study of the past life of the peoples of the American continent, and was an outgrowth of
the interest in this subject aroused among European scholars by Humboldt while a resident of Paris during the
early part of the last century”.
99
“[…] all persons engaged in the study of America, the interpretation of its monuments, and the ethnographical
writings on the races of America”.
100
De acordo com Fletcher, os seguintes delegados compareceram no congresso de Nancy: Dr. Reinich, Viena;
Dr. Liemans, Leyden; Dr. Lublein, Noruega; Don Vicenti Vasquez Queipo, Madrid; Dr. F. Lancia, Palermo; Dr.
Paplonski, Varsóvia; Dr. R. H. Major, British Museum; Mr. Bollaert com Mr. Trübner, Londres; o Presidente e o
Secretário da Société Américaine de Paris; M. Cahen Hondas, professor de árabe e orã, Argélia; Dr. Stephen
d'Austarchi, Constantinopla; M. Ogura Yomon, Yedo, Japão; Chile y Naranjo, Ilhas Canárias. Ainda segundo a
autora, “cada país da América do Sul enviou seus delegados”, mencionando, dentre eles, Don Vicente Quesada,
diretor da Revista de Buenos Aires, Don José M. Semper de Bogotá; R. P. Faller, reitor do Colégio de São Gabriel,
Quito; M. Felix Dibos, Lima. Outros delegados: M. R. P. Athoine e Reverendo John Campbell, Canadá; Dr.
Pimentel, presidente do Liceo Hidalgo, México, Prof. Joseph Henry, secretário da Smithsonian Institution, e
Robert C. Winthrop, presidente da Massachusetts Historical Society, ambos estadunidenses (FLETCHER, 1913,
p. 530).
119

decorado para a ocasião. Numa ponta ficou uma panóplia com as várias bandeiras
americanas, e na outra foi erguido um grupo de quatro grandes escudos suportando os
nomes de Lief Erikson, Jean Cousin de Dieppe, Cristóvão Colombo e Américo
Vespúcio. Numa sala separada, uma coleção com vários artefatos ilustrativos das artes
e da vida das tribos da América foi exibida. (FLETCHER, 1913, p. 530)101

Toda essa pompa relaciona-se, conforme é fácil perceber, com a ideia de que a
América moderna, representada pelo conjunto de bandeiras nacionais num canto do salão, era
fruto do espírito descobridor de europeus ilustres, lembrados por nobiliárquicos brasões no
outro lado do mesmo espaço. A coleção de artefatos artísticos e cotidianos das tribos nativas
americanas estava ali, por sua vez, para lembrar que a obra “descobridora” ainda não havia
cessado, devendo ser continuada pelos antropólogos que se autodenominavam “americanistas”.
Outros elementos ainda permitem entrever essa mesma carga semântica na
realização do Congresso Internacional de Americanistas de Nancy. O primeiro dos dezesseis
artigos do estatuto para a organização dos Congressos subsequentes ali formulados e adotados
afirmava que o evento “tinha por objetivo contribuir para o progresso do estudo da etnografia,
da linguística e das relações históricas entre as duas Américas, especialmente durante o período
pré-colombiano” (FLETCHER, 1913, p. 530).102 Uma boa parte dos artigos apresentados
“lidavam com as supostas viagens pré-colombianas e com os traços de possíveis contatos entre
os continentes ocidentais e orientais antes de 1492” (FLETCHER, 1913, p. 530-531),103 sendo
que um deles recebe um destaque especial de Fletcher: o artigo de M. Gravier intitulado “The
Dream of Columbus” (“O sonho de Colombo”), que tratou da crença quinhentista e seiscentista
segundo a qual as Índias poderiam ser alcançadas por meio da América. É certo que esse último
artigo chama a atenção da autora de modo especial pelo fato de que a obra para a construção do
Canal do Panamá já estava sendo concluída naquele mesmo ano de 1913, mas é significativo
que a ideia geral era a de que o “sonho de Cristóvão Colombo”, retomado naquele primeiro
congresso, realizava-se enfim no presente.
No entanto, a narrativa de Fletcher permite que sejam entrevistas outras coisas para
além disso. Em primeiro lugar, o fato de a etnógrafa ter se voltado para o passado já é indicativo

101
“[…] the first Congress met at the appointed time and place. The mayor of Nancy made the city gay with the
flags of all the American nations from Canada to Paraguay. The meetings were held in the Ducal Palace, whose
great hall was decorated for the occasion. At one end stood a sheaf of the various American flags, at the other end
hung a group of four large shields bearing the names of Lief Erikson, Jean Cousin de Dieppe, Christopher
Columbus, and Amerigo Vespucci. In a separate room a collection of various artifacts illustrative of the arts and
life of the native tribes of America was exhibited”.
102
“[…] had for its object the contribution to the progress of the study of the ethnography, linguistics, and historic
relations of the two Americas, especially during the pre-Columbian period”.
103
“[…] dealt with alleged pre-Columbian voyages and the traces of possible contacts between the eastern and
western continents prior to 1492”.
120

da percepção de uma alteridade temporal em relação aos primeiros americanistas. No mundo


moderno, são crises de sentido que impelem à problematização do decurso do tempo de modo
a assegurar a estabilidade das identidades diante das transformações do mundo, e Fletcher já
pertenceria então a uma geração em alguma medida “ultrapassada”, que via, por exemplo, as
regras dos Congressos Internacionais de Americanistas passando por significativas mudanças
– o seu estatuto havia sido reformulado definitivamente no encontro sediado em Paris no ano
de 1900. Por isso se fazia necessário produzir uma tradição por meio de uma constituição
narrativa de sentido que garantisse um lugar nesse mundo em transformação aos antropólogos
“veteranos”: a identidade entre “velhos” e “moços” que permaneceria em meio a perturbadoras
transformações seria representada pelo caráter visionário e útil dos saberes produzidos nesses
encontros de intelectuais ilustres – exemplo disso seria o fato de que o tema das comunicações
intercontinentais via América, presente nos Congressos Internacionais de Americanistas, teria
encontrado uma aplicação prática ao impelir o Novo Mundo a enfim levar a cabo um sonho
antigo agora materializado no Canal do Panamá, de modo que isso seria um indício de que logo
a América se modernizava a passos largos. Percebe-se, portanto, que o americanismo
transnacional estava plenamente comprometido com os ideais de modernização.
Mas essa mesma fixação numa América vista como continente “descoberto pela
Europa civilizada” é também indicativa de uma postura epistemológica dominante: o saber
sobre a América só podia ser eurocentrado, o que, para homens e mulheres de então, significava
o mesmo que adotar um ponto de vista universal. É plausível afirmar que os representantes dos
países não-europeus nesses congressos fossem, em grande medida, indivíduos europeizados –
uma espécie de elite educada nos padrões civilizacionais europeus e, assim, digna de conviver
entre as mentes mais ilustres do mundo. Fletcher narra a sucessão de eventos até os seus dias
como sendo um processo em que finalmente os estadunidenses conseguem participar de forma
mais efetiva da organização dos Congressos. Ela aponta, por exemplo, o número crescente de
delegados estadunidenses – 31 delegados já no segundo congresso, sediado em Luxemburgo
em 1877 –, e destaca, inclusive, a questão emergida no nono congresso (Huelva, Espanha, 1892)
sobre se o nome América seria uma homenagem a Américo Vespúcio ou se seria um nome
nativo. O problema do “lugar legítimo” se resolve de modo aparentemente democrático quando,
no vigésimo Congresso Internacional de Americanistas, realizado em 1900, novamente em
Paris, decide-se alternar, a cada dois anos, a realização do evento entre o Velho e o Novo
Mundo. De todo modo, fica claro como os produtores de saberes etnográficos se percebem
como agentes da modernidade, e a fala de Fletcher, em especial, mostra como os representantes
estadunidenses desta rede transnacional estavam em busca da liderança em seu interior. Este
121

período marca, portanto, o anseio representado por um outro tipo de “americanismo”, aquele
atrelado a um sentimento cada vez mais extremado de identidade nacional estadunidense, de
tornar os EUA o produtor e difusor de civilização, e não apenas o receptáculo passivo das
tendências expressas pelo mundo europeu.
Independentemente dessa perceptível competitividade nacional pelo campo do
americanismo antropológico, o que se percebe é que a produção de saberes sobre a América era
já uma produção transnacional. Transnacional pelo fato de que embora o discurso americanista
acabasse por se tornar uma linguagem comum a esse grupo de intelectuais, pautada pelas
referências universalistas da civilização europeia, era a partir de constituições discursivas
específicas, percebidas como nacionais, que aquela linguagem comum se conformaria. O
trânsito entre fronteiras nacionais era condição indispensável para a construção de um saber
antropológico sobre o Outro do Novo Mundo; as instituições de países outros, que não o do
próprio nascimento ou pertencimento, eram garantia de continuidade de estudos e de aquisições
bibliográficas e museológicas em tempos de apertos regionais; o “reconhecimento”
internacional era, por fim, a condição de status científico local. O que se tem, portanto, é a
constituição de uma configuração relacional na qual, ainda que todos se entendessem em função
de um “americanismo compartilhado”, era por meio de suas respectivas línguas maternas que
se pronunciavam, mesmo que se tratassem de pátrias adotivas – a exemplo do próprio Franz
Boas que, não obstante alemão de nascimento, fazia questão de se comunicar em inglês. Além
disso, e de modo mais importante, o conhecimento do Outro, conforme pretendido pela
antropologia, era um conhecimento que, necessariamente, demandava o ultrapassar de
fronteiras nacionais.

3.3.2. O Congresso de Americanistas do Rio de Janeiro (1922)

A realização do XX Congresso Internacional de Americanistas, entre os dias 20 e


30 de agosto de 1922, na sede do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, é um evento
importante para que se perceba como os anseios que conduziram à constituição de uma rede
transnacional de americanistas no mundo europeu e estadunidense se articularam aos interesses
mais específicos de uma parcela da elite intelectual brasileira. Esse evento diz muito sobre a
estruturação mais ampla da rede de americanistas e de um projeto particular de nação brasileira
que dela começa a emergir a partir da década de 1920, sobre o que significavam esses eventos
122

em termos relacionais e sobre uma certa dinâmica de caráter conjuntural nas correlações de
força no interior do campo transnacional do americanismo.104
O primeiro documento transcrito nos anais do congresso é a “Autorização para a
XX Reunião”. Esse documento era produzido na sessão de encerramento do congresso anterior,
quando os seus membros acedem ao convite de um determinado conjunto de americanistas de
um país em específico. Esse convite foi feito, no XIX Congresso, realizado em Washington,
D.C., EUA, na sessão de encerramento do dia 31 de dezembro de 1915.105
Como veremos nas cartas que Boas trocou com von den Steinen, a eleição do lugar
de realização acontecia muito antes das sessões de encerramento dos congressos, pois eram
resolvidas nas trocas epistolares de seus membros mais poderosos. Após o XII Congresso em
Paris (1900), no qual foi votado o seu novo estatuto, ficou decidido em seu artigo 2º que “Este
Congresso tem lugar de dois em dois anos, alternando as suas sessões entre o Velho e o Novo
Mundo, e não podendo reunir-se seguidamente duas vezes no mesmo país”. Além disso,
deliberou-se que o próximo encontro seria realizado em Nova York, certamente uma
demonstração de força dos antropólogos estadunidenses tanto no que diz respeito à mudança
do estatuto que possibilitou a eleição de sua pátria quanto na definição da próxima sede. A
realização do congresso nos EUA em 1902, por sua vez, provavelmente possibilitou a Boas um
contato direto e uma oportunidade de articulação consistente com os seus colegas alemães para
que o próximo encontro (1904) fosse sediado em sua terra natal (na cidade alemã de Stuttgart)
– e a língua foi para Boas certamente uma vantagem para que, no próximo evento, prevalecesse
a tradição germânica de etnologia à qual se filiava mais diretamente. Em seguida, a próxima
reunião (1906) foi realizada em Quebec, conforme preconizado por Boas em sua
correspondência com von den Steinen (vide próximo capítulo), e em 1908 o congresso retornou
para Europa sendo sediado em mais um país predominantemente teutônico, pois foi organizado
em Viena, a mais importante cidade do Império Austro-húngaro.
No congresso de Washington (1915), contudo, essa aparente predominância dos
projetos boasianos foi rompida. Boas, como vimos, militou de maneira contundente contra a
Guerra, especialmente no que diz respeito a uma relação promíscua que o estado de beligerância
vinha estabelecendo com a ciência. Esse posicionamento gerou uma série de desconfortos

104
Para o que segue eu utilizei como fonte os Annaes do XX Congresso Internacional de Americanistas (Annaes
do XX Congresso Internacional de Americanistas, 1924).
105
Seus propositores foram Bruno Lobo (então diretor do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista), Cicero
Peregrino (Biblioteca Nacional), Coronel Frederico Schumann (Arquivo Público Nacional), Conde de Affonso
Celso (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), General Thaumaturgo de Azevedo (Sociedade de Geografia
do Rio de Janeiro) e Augusto Simoens da Silva (Instituto Histórico e Geográfico Fluminense).
123

inclusive institucionais e Boas teve sua posição fragilizada nesse momento. Essa parece ter sido
a oportunidade encontrada por Aleš Hrdlička (1869-1943),106 – que logrou ser o secretário-geral
do encontro – para que pudesse tomar a dianteira da condução do processo no campo
estadunidense. Aquele grupo de brasileiros, que certamente ansiava por assistir a sua jovem
nação sediar um evento de tal envergadura, deve ter sido visto por Hrdlička como uma ótima
oportunidade de conduzir o congresso para um território que lhe era percebido como amistoso,
sobretudo em tempos de um imperialismo estadunidense que apregoava a “América para os
americanos” – afinal, ao contrário do que desejava Boas (vide o próximo capítulo), tratava-se
também de um evento em grande medida diplomático.
Ficou então estabelecido que o congresso de 1918 seria realizado no Rio de Janeiro.
O advento da Primeira Guerra Mundial fez com que, fortuitamente para os brasileiros, o evento
fosse levado para 1922, coincidindo assim – propositalmente ou não – com o ano do Centenário
da Independência. O evento acabou recebendo então o respaldo de toda uma elite política que
se apresentava como agente do progresso nacional. O XX Congresso Internacional de
Americanistas certamente traria tanta ou mais visibilidade do que o Salão Nacional de Belas
Artes de 1922, no Rio de Janeiro, a Exposição Internacional do Centenário da Independência e,
sem dúvida, do que a Semana de Arte Moderna paulista, dada a presença maciça de ilustres
delegações internacionais no país em função do evento antropológico. O XX Congresso contou
com delegados da Alemanha, Argentina, Bolívia, China, Colômbia, Dinamarca, Equador, EUA,
França, Guatemala, Grécia, Espanha, Holanda, Itália, Japão, México, Paraguai, Peru, Polônia,
Portugal, Suécia, Suíça, Checoslováquia e Uruguai (note-se que nenhum desses países lutou ao
lado das potências centrais durante a Primeira Guerra Mundial); contou ainda com delegados
do Distrito Federal e dos estados da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará, Paraíba do Norte,
Pernambuco, São Paulo e Sergipe. Esses nomes representavam as principais instituições
museológicas, universitárias, científicas e culturais desses países e estados brasileiros.
Diante desse verdadeiro desfile de autoridades internacionais, não seria possível
desperdiçar a verdadeira vitrine na qual se transformou o evento. A título de exemplo, estiveram
presentes os seguintes nomes: o “Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil”, “Dr.
Epitacio da Silva Pessôa”, na qualidade de “Patrono” do evento; Senador Lauro Severino

106
Nascido na então Checoslováquia, Aleš Hrdlička, emigrou para os EUA, junto com sua família, em 1881,
tornando-se posteriormente médico e um dos mais destacados antropólogos dos EUA. Foi curador do National
Museum of Natural History da Smithsonian Institution, em Washington, D.C., por 40 anos e foi o fundador do
American Journal of Physical Anthropology no fim da Primeira Guerra Mundial. Dentre suas áreas de interesse
destacam-se o tema da migração humana para as Américas e pela antiguidade da humanidade (AMERICAN
ASSOCIATION FOR THE ADVANCEMENT OF SCIENCE, 1942).
124

Müller, Miguel Calmon du Pin e Almeida, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, como alguns
dos “membros consultivos”; Washington Luiz, como um dos membros do “Comitê Local do
Estado de São Paulo”; Arthur da Silva Bernardes, Affonso Penna Junior, João Luiz Alves,
Augusto de Lima, Diogo de Vasconcellos, José Bonifácio Ribeiro de Andrada, Francisco
Valladares, como membros do “Comitê Local do Estado de Minas Gerais”; Nilo Peçanha e
Oliveira Vianna, como membros do “Comitê Local do Estado do Rio de Janeiro”; Theodoro
Sampaio e Francisco Calmon, como membros do “Comitê Local do Estado da Bahia”; Manoel
Diégues e Octavio Brandão, como membros do “Comitê Local do Estado de Alagoas”; Lauro
Sodré, como membro do “Comitê Local do Estado Pará” dentre tantos outros políticos de
expressão regional e nacional.
Dentre estes vários indivíduos que compõem a Diretoria do Congresso não é
possível encontrar nenhum nome mais diretamente ligado ao círculo de Boas. Nem von den
Steinen ou Eduard Seler, nem Nordenskiöld e nem Rivet estiveram presentes (o último foi, no
entanto, respeitosamente lembrado por Lévy-Bruhl em sua fala na cerimônia de abertura). Mas
o próprio Boas participou do encontro enviando uma “memória” intitulada “Abstract
characteristics of Keresan folktales”. Dentre os brasileiros, Edgard Roquette-Pinto aparece nos
Anais como representante do Museu Nacional do Rio de Janeiro junto com Alberto Childe, e
do Museu Paulista (atual Museu do Ipiranga), junto com Alfredo d'Escragnole Taunay.
A divisão no campo do americanismo permanece, portanto, de tal modo que,
embora tenha sido aprovado o convite formal para a realização do XXI Congresso em
Gotemburgo, conforme planejavam Boas e Nordenskiöld (vide o próximo capítulo), ele teria
que dividir o espaço com os pleiteantes de Haia, sede do governo dos Países Baixos, por meio
da solução inusitada de se realizar o evento em duas partes. A justificativa para tal decisão foi
que “ambos os convites estão em forma devida e ambos os paizes offerecem as necessarias
garantias, os dois contam igualmente com americanistas eminentes e collecções valiosas”.
Convém ainda refletir sobre o significado do evento carioca para a construção de
uma modernidade especificamente brasileira. 1922 representou um ponto de clivagem no
campo dos projetos intelectuais de nação para o Brasil (MOTA, 1992). Os diversos eventos
realizados por ocasião da efeméride do Centenário da Independência trouxeram à consciência
de nossa intelectualidade a percepção de que todo o caminho percorrido desde a emancipação
política não teria produzido nada além de uma cópia imperfeita da civilização europeia. O
encontro dos artistas que apresentaram suas obras expressionistas e neocoloniais da Semana de
Arte Moderna de 1922 conduziu toda uma geração de intelectuais, poucos anos depois, a uma
busca incessante por uma suposta originalidade cultural brasileira, escondida em seus rincões e
125

em vias de extinção por causa dos ideais de progresso. O Salão Nacional de Belas Artes,
ocorrido no mesmo ano, também produziria o mesmo efeito, ainda que um pouco mais tardio e
diversificado, numa série de intelectuais, cujo exemplo mais expressivo talvez seja encontrado
na figura do arquiteto Lucio Costa, que logo lideraria o movimento internacionalmente bem-
sucedido de uma arquitetura de vanguarda brasileira.107
Algo menos explorado, no entanto, foi o papel do Congresso Internacional de
Americanistas sediado no Rio de Janeiro para a percepção da importância dos saberes de caráter
antropológico para a definição de um projeto cultural mais consistente de nação. Pela primeira
vez os olhos de todo o americanismo internacional se voltavam ao mesmo tempo para o Brasil,
e o que eles viram foi algo certamente surpreendente. Desde a década de 1870, a partir da gestão
de Ladislau Netto, o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista – cuja visitação compôs a
programação do evento – vinha construindo uma sólida rede de intelectuais, um conjunto
significativo de publicações acadêmicas e uma significativa coleção museológica, engrossada
notavelmente com as expedições de Rondon à Serra do Norte.108 Por um lado, as instituições
museológicas brasileiras – para além do próprio Museu Nacional é possível ainda mencionar o
Museu Paulista e o Museu Emílio Goeldi – puderam ser percebidas como importantes pontos
de apoio para a obtenção de material e para a realização de pesquisas na América do Sul a fim
de consolidar os paradigmas antropológicos que vinham sendo produzidos no hemisfério Norte.
Por outro lado, as próprias autoridades e os próprios intelectuais do Brasil tiveram condições
de notar o potencial da ciência antropológica como fornecedora de credibilidade para discursos
a respeito da diversidade cultural dos povos. A partir de agora estava estabelecido um canal
consistente por meio do qual a tradição etnológica da Völkerkunde, nutrida pelas técnicas da
antropologia física, embasaria de forma mais consistente uma série de projetos nacionais
pautados na ideia de originalidade cultural do brasileiro – superando, assim, os ideais de
progresso cujo fracasso em civilizar o país em par de igualdade com a Europa já vinha sendo
cada vez mais percebido.109
Durante o Congresso, vários intelectuais de renome internacional realizaram falas
que ficaram registradas nos anais do evento. Hrdlička destacou a importância do Congresso

107
Sobre a temática nacionalista e social nas artes brasileiras, cf. AMARAL, 2003. Sobre o caráter nacionalista da
arquitetura moderna brasileira liderada por Lucio Costa, cf. NOBRE, 2004. Sobre as relações entre vanguardas
arquitetônicas e os Estados nacionais latino-americanos, cf. GORELIK, 2005.
108
A respeito do ativo trânsito transnacional de agentes e agências científicas latino-americanas no século XIX,
vide DUARTE, 2013. Especificamente a respeito do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, cf. KEULLER,
2008, e DUARTE, 2010. A respeito da Comissão Rondon, cf. SÁ, SÁ e LIMA, 2008.
109
Sobre o esgotamento das interpretações liberais para os projetos republicanos de nação na década de 1920 cf.
LAMOUNIER, 1983.
126

para a consolidação de laços entre os americanistas de diversos países, assim como o fez
Marshall Howard Saville (1867-1935), membro sênior do Conselho Permanente do Congresso,
que também apelou para a manutenção das tradições desse evento internacional. Depois da fala
em alemão do austríaco Franz Heger (1853-1931), os discursos de Adela Breton (1849-1923)
e de Martín Noel (1888-1963) ainda deixam entrever o fascínio pelos “segredos das Américas”,
talvez a maior motivação, junto à escalada de posições no campo profissional, a amalgamar
esse conjunto de intelectuais numa rede transnacional. Os dizeres de Noel trazem à tona algo
ainda mais interessante: para além do conhecimento de sociedades alheias, a arqueologia e a
etnografia se prestariam, sobretudo, ao desvendamento de identidades nacionais, “realidades
imutáveis e eternas”, cuja compreensão somente poderia ser alcançada por meio de saberes que
evidenciassem processos histórico-sociológicos objetivos das originais formações culturais
advindas dos contatos sui generis entre povos europeus e ameríndios verificados no nosso
continente. Isso fica claro quando Noel afirma o seguinte:

No lejos de aqui, espaldas de la ciudad riente y bella, como engarzada en el espejismo


multicolor y facinante de su naturaleza, que exulta el animo a los mayores ensueños,
hierguense los airados pretiles y remates, y la liturgica espadaña – serena y mistica
como una plegaria – ante el austero convento de San Antonio, donde la ordem
fransiscana como en todas las villas de la colonia volcó el ingenio fecundo de los
artistas españoles y luzitanos, dando origen, al nacimiento de los primeros
arquectipos “barroco indigenas”, encargados de traer hasta nuestro siglo, la
aportación, de uno de los valores mas sugerentes para la personalidad estetica de
nuestros pueblos. (Annaes do XX Congresso Internacional de Americanistas, 1924,
p. LXXXV)

Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) também discursou no evento, representando a


Société des Américanistes de Paris, instituição ligada aos primórdios dos Congressos
Internacionais de Americanistas e cujo principal representante à época era Paul Rivet – grande
amigo de Boas e diretor do Journal de la Société des Américanistes. Além de fornecer uma
desculpa para a ausência de Rivet – no próximo capítulo ficará claro que isso se deveu muito
mais às afinidades ideológicas com o grupo de Boas –, Lévy-Bruhl ainda ressaltou todos os
aspectos que faziam do Rio de Janeiro o lugar ideal para a realização do Congresso, reafirmando
os valores até aqui destacados e apontando alguns outros. Primeiramente, lembrou da
“maravilhosa cidade do Rio de Janeiro” (marveilleuse Ville de Rio de Janeiro), exaltando “sua
baía e seu meio ambiente de uma beleza tão adorável” (sa baie et ses environs d'une beauté si
ravissante), que era “um encanto para os olhos e para o coração! Não se pode conhecê-la sem
admirá-la e sem amá-la” (un enchentement pour les yeux et pour le coeur! On ne peut pas la
connaître sans l'admirer et sans l'aimer) (Annaes do XX Congresso Internacional de
127

Americanistas, 1924, p. LXXXVII). A tópica das “riquezas naturais tropicais” continuava


sendo um atrativo a mais e mesmo uma evidência da originalidade da nação que aqui se fundara
houvera cem anos – a programação do evento, não sem qualquer motivo, contava com uma
visita ao Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, com uma excursão ao Pão de Açúcar e chá
no Morro da Urca, com visitas aos edifícios do Ministério das Relações Exteriores, do IHGB,
do Arquivo Público Nacional, da Biblioteca Nacional e do Convento de Santo Antônio, e, por
fim, com mais uma excursão, dessa vez à Gávea e ao Jardim Botânico. Outro aspecto importante
era o fato de que o Rio teria se tornado um dos mais importantes centros mundiais de estudos
americanistas, “e isso é verdadeiro para todas as mais diversas partes deste imenso domínio
científico: arqueologia, história das explorações e missões, etnologia, linguística etc.” 110 Por
fim, havia as comemorações do Centenário da Independência, e Lévy-Bruhl fez questão de
lembrar de que nesse curto espaço de cem anos

a cidade do Rio de Janeiro está se tornando uma grande Capital; a população que
depois de muito tempo ultrapassou o milhão, continua a aumentar e rapidamente; o
tráfego é intenso, a atividade floresce por toda a parte, dos grandes trabalhos diários
de embelezamento, sem lhe fazer perder em nada o charme que ela deve ao quadro
incomparável de sua vista e montanhas, que faz dela uma das maravilhas do mundo. 111

Não há dúvida de que esses elogios, vindos de um francês e destacando a modernidade e a


beleza do Rio de Janeiro – valores caros à intelectualidade local – devem ter sido muito bem
recebidos pelos anfitriões do evento.
Por fim, o arqueólogo Mitchell Carroll, representante dos delegados
estadunidenses, também ressaltou as belezas do Rio, destacando, no entanto, o interregno bélico
– a primeira menção mais detida do problema; Carlos Enrique Paz Soldan (1885-1972),
representante peruano, relacionou o passado antropológico americano ao destino dos seus
Estados nacionais, em especial o brasileiro, que comemorava o centenário de sua emancipação;
e Adolfo Morales de los Rios (1868-1928), secretário-geral do congresso, depois de destacar a
importância dos contatos internacionais proporcionados por eventos do tipo para o
desvendamento de importantes problemas que, atrelados ao americanismo, ligavam cientistas

110
“[…] et cela est vrai pour toutes les parties les plus diverses de cet immense domaine scientifique: archeologie,
histoire des explorations et des missions, préhistoire, ethnologie, linguistique, etc.” (Annaes do XX Congresso
Internacional de Americanistas, 1924, p. LXXXVII).
111
“[…] la Ville de Rio de Janeiro est devenue, une grande Capitale; la population qui a depuis longtemps dépassé
le million, continue a s'acroitre et rapidament; le trafic est intense, l'activité y éclate partout, de grands travaux
l'embelissement chaque jour, sans riens lui faire perdre du charme qu'elle doit au cadre incomparable de la vue
et des montagnes, qui fait d'elle une des merveilles du monde” (Annaes do XX Congresso Internacional de
Americanistas, 1924, p. LXXXVII).
128

de todo o mundo, encerra a cerimônia de abertura mencionando também a Guerra, mas com o
intuito de apontar as disputas que vinham atrapalhando a realização do congresso no Brasil:

As tristes circumstancias que o mundo todo atravessou ha poucos dias, dilataram o


momento da apertura desta reunião, quasi invalidando a acção do Comité brasileiro,
organizador do presente Vigesimo Congresso Internacional de Americanistas e não
foi apenas do interior que nos vieram difficuldades para o nosso empenho, foi
tambem, entre nós, devido a apreciações e ciumes que não quizemos jamais despertar,
mas que nos era impossivel desfazer pela nossa unica vontade. (Annaes do XX
Congresso Internacional de Americanistas, 1924, p. XC)

Quais seriam essas “apreciações e ciúmes” aos quais Morales de los Rios se refere?
Fica claro que de los Rios se refere ao projeto conjeturado por Boas e Nordenskiöld nas cartas
aqui indicadas, e aos quais se juntaram Rivet, von den Steinen, Seler, Rivers, Lowie e outros.
Nenhum desses intelectuais gostaria de tomar parte em um evento no qual não fossem bem-
vindos cientistas pelo simples fato de terem nascido em países que combateram na Primeira
Guerra Mundial em favor dos projetos imperialistas das potências centrais. Para esse grupo de
intelectuais a ciência estaria acima das disputas imperialistas pelo poder, de modo que seria
irracional não considerar as contribuições de importantes antropólogos em função de suas
origens nacionais. Nenhum deles participou do evento no Rio, com exceção do próprio Boas,
talvez pela necessidade de articular a viabilidade do convite para que o próximo evento
ocorresse no território neutro da Holanda/Suécia. É com base nesses mesmos valores, convém
adiantar, que veremos Heloisa Alberto Torres defendendo a atuação do alemão Curt
Nimuendaju – etnógrafo que trocou algumas correspondências com Boas e foi bastante próximo
do seu aluno Robert Lowie – no Brasil em plena tensão pré-Segunda Guerra Mundial.
As cartas trocadas entre Boas e Nordenskiöld a respeito do próximo congresso
apenas reafirmam os laços estabelecidos a partir desse posicionamento comum e tecidos
sobretudo a partir do problema da organização do Congresso Internacional de Americanistas.
A partir de fins de 1923 as cartas de Nordenskiöld já recebem o timbre do “XXIe Congrés des
Américanistes de 1924”, e o antropólogo sueco se mostrava bastante animado com a sua
organização. Na carta do dia 29 de dezembro (FBP, APS) Nordenskiöld saúda a iniciativa de
Boas, que conseguiu fundos para que pesquisadores de países pobres pudessem ir à Suécia,
liberando-o desse modo de buscar apoio junto à Fundação Escandinava para os mesmos fins.
Na mesma carta ainda menciona a persistente oposição de Hrdlička à realização do congresso
na Suécia, mostra-se ansioso pelo aceite de John Montgomery Cooper (1881-1949), da Catholic
University of Washington, autoridade a respeito da Terra do Fogo, e de Walter Roth (1861-
129

1933). A oposição de Hrdlička certamente se devia ao fato de que, agora, Nordenskiöld


claramente favorecia o grupo de Boas, a exemplo de quando, no convite que lhe é feito para
que tomasse parte no congresso (carta do dia 26 de maio de 1924), foi-lhe facultado escolher o
nome de um antropólogo que, além do reverendo Cooper, de Washington, e de um certo Eaton,
de Connecticut (certamente não se tratava do botânico Daniel Cady Eaton, pois este faleceu em
1895), iria ser agraciado com uma passagem gratuita para a Suécia.

Este capítulo nos permite perceber, em primeiro lugar, como um interesse científico
específico pelos povos nativos americanos, atrelado, num primeiro momento, à expansão
capitalista e imperialista europeia, vai ganhando contornos específicos à medida que os fluxos
do qual depende se institucionalizam em “sociedades” articuladas pelos Congressos
Internacionais de Americanistas.
Esses contatos põem em conflito, no entanto, diferentes combinações entre os
conceitos de civilização e cultura. De um lado temos um projeto modernizador atrelado à ideia
de um processo impulsionado pela concorrência inter-imperialista, isto é, entre “civilizações”
que disputam, entre si, o direito de guiar a humanidade. A “descoberta” da América pelas
civilizações europeias seria lida como a legitimação de uma missão civilizatória ainda por se
cumprir, e o americanismo seria o saber científico que permitiria a essas nações levar tal
desígnio a cabo. Para os que pensavam dessa forma, “culturas”, no plural, era um conceito que
ainda não fazia sentido. Se um povo era diferente dos demais isso se devia a uma condição ou
de atraso ou de barbárie. Era urgente saber, portanto, se os povos ameríndios eram “atrasados”
ou “bárbaros”, e era esse o interesse que os constituía como objeto científico aos olhos dos
sujeitos americanistas do conhecimento.
Do outro lado, a tradição etnológica alemã produzia, com algum grau de autonomia
em relação às políticas imperialistas, uma concepção historicista e relativista para a explicação
das diferenças entre os povos. Franz Boas defendeu aguerridamente essa perspectiva
amparando-se na liberdade de pensamento das instituições que, no mundo teutônico,
constituíram-se a partir da ideia de Bildung. A força que este grupo começou a conquistar a
partir de sua coesão interna foi, no entanto, ameaçada pela força destruidora da Primeira Guerra
Mundial, que botou a baixo as instituições acadêmicas das Potências Centrais. Se a posição de
Boas se viu enfraquecida, num primeiro momento, em função do clima xenofóbico que
contaminava as próprias instituições científicas, depois, quando aquela ideia de civilização
mostrou a sua face bárbara na Guerra, esse caráter destrutivo acabou fortalecendo ainda mais
130

os clamores internacionalistas, antirracistas e pacifistas dessa facção culturalista e relativista do


americanismo.
No próximo capítulo, acompanharemos mais de perto como foram tecidos alguns
dos laços que alçaram a subjetividade de Boas a uma expressiva centralidade no mundo
americanista. Veremos como o conceito de cultura, a partir do qual se erige o “culturalismo
boasiano”, foi responsável pela criação de uma rede de fluxos capaz de produzir identidades
subjetivas marcadas por valores em comum. Enfocarei, nesse capítulo, a articulação de Boas
com os projetos americanistas alemães, suecos e franceses, destacando o direcionamento dessas
ações para o cenário brasileiro. No capítulo seguinte, mostrarei como as posições assim
consolidadas permitiram o fortalecimento da posição de Boas nos Estados Unidos e, a partir
disso, como se pôde construir uma interlocução mais densa entre as pesquisas realizadas na
Columbia University e aquelas pensadas a partir do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista,
no Rio de Janeiro.
131

CAPÍTULO 4: A CONSTITUIÇÃO TRANSNACIONAL DE UMA REDE DE


AMERICANISTAS ENTRE OS EUA, A ALEMANHA, A SUÉCIA E A FRANÇA

As correspondências e documentos guardados pelo próprio Boas permitem entrever


relações, trocas e movimentos que se atrelavam a valores específicos – a exemplo do
internacionalismo científico, da postura política humanitária, antirracista e, em alguns casos,
francamente socialista, do posicionamento epistemológico empirista e do salvacionismo em
relação às culturas indígenas. Esta rede de fluxos transnacionais também dá conta de conflitos
em torno do controle dos canais por onde circulavam recursos, ideias e pessoas, conformando,
deste modo, um campo de relações de poder no qual a prática antropológica esteve
comprometida com a construção da própria modernidade. Mais do que procurar entender a
configuração interna deste “campo” por si só, trata-se de perceber, portanto, como a sua própria
estruturação é responsável pela expansão e consolidação de formas alternativas de
modernidade. Isso se fez por meio de um processo de produção de sujeitos e objetos a partir de
híbridos como os conceitos de civilização e cultura em suas diferentes possibilidades de
articulação, mas também de línguas gramatizadas e de artefatos etnográficos que, assim
tomados de suas redes de circulação originais e postos em movimento nesta outra rede, agora
transnacional, permitiram a produção de novos sujeitos da modernidade e de seus objetos – as
“culturas primitivas” assim diferenciadas das “culturas civilizadas”.
Os arquivos desse processo produtivo – neste caso, os Franz Boas Papers –, são,
no entanto, arquivos de subjetividades. Eles nos permitem acessar as vozes registradas em meio
a contatos intersubjetivos, naturalizando as objetividades e suprimindo os traços dos híbridos
que permitiram a produção dessas novas formas de relações modernas de subordinação. É assim
que a modernidade é registrada não como uma estrutura de relações de dominação, mas como
um processo natural de aprimoramento da humanidade por meio da ciência. É possível, no
entanto, flagrar os momentos em que determinadas trocas, em que o controle de determinados
fluxos e em que o enquadramento objetificador de coisas em conceitos produz os sujeitos
inscritos nessas pré-narrativas arquivais. A subjetividade de Franz Boas e de todos que tomam
parte com ele nesta rede americanista transnacional se consolidaram, desse modo, à medida que
passaram a produzir e controlar seus objetos por intermédio desses instrumentos que aqui tenho
chamado de híbridos. Controlar os recursos, contatos e pessoas capazes de liberar essas forças
produtivas modernas, isto é, a proliferação de seus sujeitos, objetos e híbridos, significava
132

controlar fluxos transnacionais, e é precisamente isso que as correspondências evocadas neste


capítulo permitem captar.
O que também desejo apresentar aqui são as imbricações desse conjunto de relações
produzidas nesta rede transnacional de americanistas com um outro campo intelectual, cuja
disputa primordial dizia respeito à definição do que seria a “cultura” e, por conseguinte, a
“modernidade” brasileiras. Embora, neste caso, as subjetividades e objetividades necessárias a
esse processo de específico de modernização devessem se adaptar às particularidades históricas
e espaciais de suas regiões específicas, era possível para isso fazer um novo uso daqueles
híbridos que se proliferavam entre os antropólogos americanistas. Para que isso se torne
compreensível é necessário acompanhar, com bastante cuidado, uma longa e espraiada
trajetória relacional na medida em que ela aponta um interesse para os problemas culturais sul-
americanos, especialmente brasileiros.

4.1. ENTRE OS EUA E A ALEMANHA

4.1.1. A produção de facções americanistas entre Franz Boas e Karl von den
Steinen

Franz Boas e Karl von den Steinen (1855-1929) certamente já se conheciam desde
os tempos em que o primeiro ainda vivia na Alemanha. Ambos atuaram no Museu Etnológico
Real de Berlim sob a orientação de Adolf Bastian e Rudolph Virchow.
Von den Steinen, segundo necrológio escrito por Erland Nordenskiöld – outro
importante americanista que logo aparecerá nesta mesma rede epistolográfica – para o Journal
de la Société des Américanistes em 1930 (NORDENSKIÖLD, 1930), era o “decano” dos
exploradores etnógrafos da América do Sul.112 Quando tinha 24 anos de idade decidiu
empreender uma viagem de “volta ao mundo”, que duraria dois anos (1879-1881) a fim de
realizar estudos médicos. Foi nesse tour, quando passava pelo Havaí, que conheceu Adolf
Bastian, e, segundo Nordenskiöld, esse encontro marcaria a vida profissional de von den
Steinen.

112
Von den Steinen nasceu no dia 7 de março de 1855, em Mulheim, cidade alemã situada na região do rio Ruhr,
limítrofe a Essen, e faleceu no dia 4 de novembro de 1929, em Kronberg im Taunus, região metropolitana de
Frankfurt Rhein-Main. Estudou medicina em Zurique, Bonn e Estrasburgo, dedicando-se à psiquiatria depois de
haver estudado essa especialidade em Viena e Berlim.
133

Mas von den Steinen se destacaria como “americanista” apenas depois da segunda
viagem que realizou à região do rio Xingu, no Brasil Central. Dois anos depois de uma missão
meteorológica na Geórgia Antártica,113 em 1882, o etnólogo alemão partiu para uma expedição
geográfica ao longo do rio Xingu, região até então pouco conhecida. Embora essa expedição
não tivesse um caráter propriamente etnográfico, ela foi de grande importância, pois, segundo
Nordenskiöld, “ela suprimiu, como se diz, uma das manchas brancas do mapa-múndi”
(NORDENSKIÖLD, 1930, p. 221).114
Em 1887 von den Steinen retornou finalmente à região do Xingu, agora com o
propósito específico de conhecer melhor os seus povos nativos. Aqueles índios chamaram a
atenção pois, até então, não tinham tido nenhum contato com ou influência direta do “mundo
civilizado”, algo muito valorado no âmbito de um campo etnológico ainda francamente
evolucionista. A este respeito Nordenkiöld faz uma interessante comparação: “um pequeno
número de exploradores, como, por exemplo, Chandless e Rondon, visitaram tribos indígenas
que nunca haviam visto os brancos, mas essas tribos, no entanto, foram indiretamente
influenciadas pela civilização branca” (NORDENSKIÖLD, 1930, p. 221-222).115 Nordenskiöld
certamente se referia, no caso de Rondon, aos nambiquaras, pois, embora esses indígenas nunca
tivessem realmente estabelecido contato direto até então com os “brasileiros”, por outro lado
eles conheciam os parecis, que possuíam já uma longa história de contato com o mundo colonial
português (ROQUETTE-PINTO, 2005). Unter den Naturvölkern Central Brasiliens, obra
produzida a partir do rico material colhido nessa segunda expedição, acabou se tornando, por
um longo tempo, uma espécie de guia obrigatório para qualquer outro antropólogo que decidisse
se aventurar por aquela região. Von den Steinen ofereceu nesse livro uma clara e detalhada
descrição dos povos da região do Xingu, com destaque para as suas conclusões a respeito da
língua dos bacairis, pois ao provar a sua filiação ao tronco caribe (ou caraíba), Steinen teria
fundado as bases para a tipificação das tribos ameríndias brasileiras de acordo com a sua filiação
a um dos quatro grandes grupos linguísticos – caribe, nuaruaque, tupi e jê (THIEME, 1993).
Ainda segundo Nordenskiöld,

Depois de sua segunda viagem ao Xingu, K. von den Steinen foi um dos mais vivazes
americanistas e uma das principais personalidades dos Congressos Internacionais de

113
Hoje mais conhecida como Geórgia do Sul, ilha próxima às Malvinas e também alvo do litígio entre Argentina
e Inglaterra.
114
“[…] il avait, comme on a coutume dire, supprimé une des taches blanches de la carte du monde”.
115
“[...] un petit nombre d'explorateurs, comme, par example, Chandless et Rondon, ont visité des tribus indiennes
qui n'avaient jamais vu de Blancs, mais ces tribus avaient néanmoins été indirectement influencées par la
civilisation de Blancs”.
134

Americanistas. Quando desses congressos e noutras ocasiões, ele contribuiu


consideravelmente para estender nosso conhecimento sobre a civilização indígena da
América do Sul (NORDENSKIÖLD, 1930, p. 222).116

É possível acompanhar mais de perto a conexão estabelecida entre von den Steinen
e Boas a partir de uma troca de correspondências que se inicia em 27 de novembro de 1893,
numa carta escrita pelo primeiro. A primeira resposta de Boas que podemos encontrar em sua
coleção de cartas data, no entanto, de 24 de julho de 1903 (existem mais nove cartas de von den
Steinen no arquivo de Boas antes dessa primeira resposta).117 O assunto era, justamente, o
Congresso Internacional de Americanistas, que seria organizado por von den Steinen em 1904,
na cidade alemã de Stuttgart. A partir daí podemos captar a produção de uma facção de
americanistas que, aos poucos, começa a gravitar em torno do grupo de Boas e a se destacar de
uma tradição antropológica mais marcadamente evolucionista.
Entre julho de 1903 e maio de 1904 Boas envia quinze cartas para o colega alemão,
todas elas relacionadas ao Congresso. Um dos motivos dessas cartas se deve ao fato de que
Boas se colocava como uma espécie de intermediário estadunidense do Congresso que seria
realizado na Alemanha, arregimentando interessados, distribuindo circulares e cobrando
respostas das instituições que poderiam enviar delegados. Mas, para isso, foi preciso que Boas
chamasse a atenção de von den Steinen, pois já no final fevereiro de 1904 o convite oficial para
o governo dos EUA ainda não havia chegado. É perceptível que Boas se portava como o
responsável pela delegação estadunidense, e quanto maior o número de colegas que conseguisse
arrebanhar para o evento, maior, obviamente, seria o seu próprio prestígio diante dos pares.
No entanto, as coisas não iam bem em relação a este objetivo, pois o governo dos
EUA não se mostrava interessado em dispender dinheiro com isso e o atraso no envio dos
convites oficiais também não colaborava. Boas havia, por fim, sugerido que von den Steinen
escrevesse diretamente para um grande número de instituições científicas dos EUA,
fornecendo-nos assim um interessante relato sobre as agências que, naquele momento,
produziam conhecimento na área do americanismo antropológico.118

116
“Après son second voyage au Xingú, K. von den Steinen fut un des Américanistes les plus en vie et une des
premières personnalités des Congrés internationaux d'Américanistes. Lors de ces Congrés et à d'autres occasions,
il a contribué considérablement à étendre nos connaisances sur la civilisation indienne de l'Amérique du Sud”.
117
Só tive condições de considerar aqui as cartas escritas em inglês – praticamente todas as que foram escritas por
Boas e três de Steinen que aparecem traduzidas. As demais foram redigidas em alemão.
118
Boas menciona as seguintes instituições: United States Government, Smithsonian Institution, Carnegie
Institution, American Museum of Natural History, Field Columbian Museum, University of California, University
of Chicago, Columbia University, Harvard University, Clark University of Worcester, Mass., Yale University of
New Haven, Conn., Government of the Dominion of Canada (Ottawa), Provincial Government of Ontario
(Toronto), Canadian Institute (Toronto), Provincial Government of Quebec, Geological Survey of Canada
135

É interessante perceber o grande número de instituições canadenses incluídas na


lista escrita por Boas. Isso se explica pelo fato de que ele se opunha ao plano de que o Congresso
de 1908 fosse realizado na Argentina, que deveria ser a sua sede em 1910, propondo como
alternativa justamente o Canadá, pois a longa distância tornaria menos provável uma presença
massiva de estadunidenses – a não ser pelo etnólogo George Amos Dorsey (1868-1931), do
Field Museum de Chicago, que podia “sempre conseguir dinheiro para viagens de farra”119.
Tratava-se, portanto, de despertar o interesse dos canadenses e articulá-los desde já para que se
dispusessem a organizar o evento que seria realizado apenas dentro de quatro anos, sob a
influência do próprio Boas. Ele, é bom lembrar, desenvolveu importantes pesquisas no norte do
Canadá, tornando-se, provavelmente, conhecido também nesse país. Mas o que mais chama a
atenção são as estratégias de médio prazo que visavam a efeitos muito claros: conquistar o
maior controle possível do encontro internacional que definia os principais direcionamentos –
e, por conseguinte, suas formas de financiamento – dos estudos americanistas.
Não obstante todos os esforços envidados, Boas conseguiu, por fim, contar um
número bem menor de delegados do que o imaginado a princípio. O Departamento de Estado
estadunidense, por meio de Morris Ketchum Jesup (1830-1908), diretor do American Museum
of Natural History e organizador da Jesup North Pacific Expedition, realizada entre 1897 e
1902 e conduzida diretamente por Boas, na condição de presidente honorário do último
Congresso, requisitou que o Smithsonian Institution, do qual era encarregado Samuel Pierpont
Langley (1834-1906) – que já havia se recusado a mandar delegados –, indicasse o
representante oficial dos EUA; o Smithsonian Institution acabou indicando William Henry
Holmes (1846-1933), que Boas achava que iria ao Congresso. Fredric Ward Putnam (1839-
1915), do Peabod Museum (Harvard), indicou o paleontólogo John C. Merrian (1869-1945)
pela Universidade da Califórnia (com isso teriam, pelo menos, quatro estadunidenses no
Congresso). Dorsey, como foi dito, iria de qualquer jeito, pois segundo Boas era um festeiro e
sempre arranjava por conta própria dinheiro para Congressos; Adolph Francis Alphonse
Bandelier (1850-1914) enviaria um texto sobre “Peruvian charms and idols” e William Jones
(1871-1909) um pequeno artigo sobre o papel da mitologia na vida dos sacs e foxes. Alfred
Louis Krober (1876-1960) também havia prometido um artigo. Por fim, Boas continuava tendo

(Ottawa, Ontario), Provincial Government of British Columbia (Victoria, B.C.) – carta enviada por Boas a K. von
den Steinen, 23 de fevereiro de 1904, FBP, APS. Obviamente os governos dos EUA e de estados canadenses não
são propriamente instituições antropológicas, mas aparecem na lista pois deveriam enviar seus delegados oficiais,
o que reitera, por outro lado, o interesse político que os Estados modernos do início do século XX possuíam na
produção de saberes do tipo.
119
“Always get money for junketing-trips” (carta de Boas a von den Steinen, 4 de novembro de 1903, FBP, APS).
136

problemas com os canadenses, mas apontava progressos (carta de Boas para von den Steinen,
11 de maio de 1904). É bem possível que essas dificuldades de articulação estivessem
relacionadas às correlações de força internas ao campo antropológico estadunidense, ainda
controlado pelos representantes da velha tradição evolucionista do país.
De todo modo, vemos que os Congressos de Americanistas funcionavam como um
momento no qual toda uma elite intelectual – dados os postos institucionais privilegiados que
seus membros ocupavam, ou seja, as principais posições governamentais e universitárias da
América – se articulava definindo uma hierarquia de posições no interior de uma rede de
antropólogos que se identificava e se diferenciava em torno do tema do americanismo. Se o
papel de broker120 é mesmo fundamental para o melhor aproveitamento dos fluxos de recursos
(e poder) no interior de uma teia de relações sociais, não restam dúvidas, a partir das evidências
apresentadas nesta troca epistolar, que Boas buscava o controle dessa posição a fim de melhor
manipulá-los.
A consciência deste aspecto por sua parte pode ser atestada pelos comentários
exclusivamente “estratégico-relacionais” a respeito do Congresso de Americanistas de Quebec
(1906) – as articulações foram bem-sucedidas, portanto, para que o evento fosse trazido para a
América do Norte ao invés da Argentina. Boas comunica que foi votado que o próximo
Congresso (1908) ocorreria em Viena, organizado por Felix Tietze (1883-1960), Eugen
Oberhummer (1859-1944) e Franz Heger (1853-1931). Alfred Cort Haddon (1855-1940), da
Harvard University, havia apresentado o convite a Cambridge – que então era, como mostra
Stocking Jr., um polo de opositores aos projetos antropológicos boasianos (STOCKING JR.,
1968) – e Léon Lejeal para Leiden. Boas ainda escreve a respeito do grande número de padres
e missionários nesse evento; que Leopoldo Batres (1852-1926) havia apresentado o convite
para o México em 1910, mas não teria havido manifestações significativas a este respeito;
considera muito pequeno o intervalo de dois anos, desejando que fosse estendido para três; e
relata a pequena participação de estadunidenses (apenas uma dúzia dentre todos os antropólogos
de lá).121

120
Conceito utilizado no campo da análise de redes sociais, sobretudo após a definição proposta por Jeremy
Bosseivain, para o indivíduo que numa rede social se destaca por seu papel de intermediação de outras relações,
em geral obtendo considerável poder em função dessa posição. A respeito desses problemas vide o conjunto de
artigos reunidos em FELDMAN-BIANCO, 2010.
121
Carta de Boas a von den Steinen, 19 de setembro de 1906, FBP, APS.
137

4.1.2. O trânsito de recursos americanistas entre os Estados Unidos e a


Alemanha

Mas além da participação em congressos, o que mais despertava o interesse de


intelectuais de diversas nacionalidades na rede transnacional de americanistas? Quais eram os
“recursos” que circulavam nessa rede? Por “recursos” entendo justamente aqueles conteúdos
transacionais e informacionais, que também podemos identificar como sendo os “híbridos” aos
quais tenho me referido ao longo desta tese, e que colocam determinadas pessoas em posições
privilegiadas no interior de redes relacionais em função justamente de sua potencialidade
produtora de subjetividades e de objetividades modernas.
Contudo, é preciso que, junto à descrição desses híbridos (materiais e simbólicos)
em circulação, tentemos interpretar os seus significados e valores de modo a compreendermos
a sua importância numa dada configuração reticular. É aí que entra o tipo específico de híbridos
que são os conceitos: esses instrumentos simbólicos articulam a prática antropológica à própria
produção da modernidade, pois permitem dotar coisas materiais de uma experiência
especificamente moderna do tempo. Em outras palavras, associar um artefato a uma cultura é,
ao mesmo tempo, no caso das redes abordadas neste capítulo, aproximá-lo ou distanciá-lo da
civilização moderna. Esses conceitos atestam a validade da materialidade dos artefatos em
questão, definem os seus valores científicos específicos (ancianidade, autenticidade, raridade
etc.) e os conectam à temporalidade moderna – que é justamente aquilo que define a mesmidade
ou a outridade do objeto que se procura assim classificar em relação à civilização moderna. A
esses valores mais elementares, associados à ideologia moderna numa configuração que articula
um ideal universalizante de civilização aos valores específicos de determinadas culturas (o que,
via de regra, tem sido relacionado ao próprio “culturalismo boasiano”), agregam-se valores
mais específicos, a exemplo do antirracismo, do internacionalismo, do empirismo (contrário ao
dedutivismo das ideologias racistas) e mesmo de um socialismo moderado.
Em meio à correspondência trocada entre Boas e von den Steinen é possível flagrar
essa troca de recursos em funcionamento. Nela vemos cargos e posições acadêmicas e políticas
sendo definidas em meio a troca de coleções etnográficas, publicações, mas, principalmente,
valores – ou melhor, conceitos que comportam valores. Mas somente será possível delimitar os
valores e significados válidos para um conjunto mais amplo de relações a partir do momento
em que pudermos notar esses mesmos recursos circulando igualmente por outros links, ou seja,
nas outras correspondências que não apenas as trocadas entre Boas e von den Steinen.
138

Se considerarmos que na virada do século XIX para o XX os museus ainda eram as


principais instituições relacionadas à produção de conhecimentos etnológicos, não seria
possível desatrelar o prestígio dos antropólogos das posições que os mesmos ocupavam nesses
espaços. Subverter a ciência comprometida com a política neocolonial era, da mesma forma,
ou romper com os museus ou reformá-los. A figura de Boas à época era associada em grande
medida ao American Museum of Natural History (AMNH) de Nova York. Mas, em carta a von
den Steinen em 25 de maio de 1905, Boas já dá mostras do seu desejo de se dedicar mais à vida
universitária, o que indica a percepção da necessidade de uma mudança de estratégias
institucionais.122 Von den Steinen, por sua vez, estava profundamente vinculado ao Museu
Etnológico Real de Berlim, e em seu caso é interessante notar que o status quo dessa instituição
lhe interessava mais que o mundo acadêmico.
Percebe-se, portanto, que os saberes antropológicos produzidos na virada do século
XIX para o XX ligavam-se diretamente às suas funções narrativas museológicas. Narrativas em
museus são, como podemos perceber, produzidas essencialmente por meio de artefatos:
disposições diversas produzem sentidos diferenciados, e isso fica claro na já mencionada
disputa travada entre o próprio Boas e Otis Mason. Desse modo, a eficácia dos discursos
antropológicos dependia também da competência curatorial dos cientistas. Não bastava,
portanto, produzir artigos científicos consistentes: o antropólogo precisava coletar ele próprio
artefatos pertinentes e expô-los de modo que suas hipóteses pudessem ser visualmente
percebidas e, além disso, financiadas por instituições satisfeitas com os efeitos de
pertencimento/diferenciação produzidos nas exposições museológicas. Entre a “coleta” desses
artefatos no campo e a sua disposição museográfica é que iam se constituindo as subjetividades
dos antropólogos modernos desse período.
Essas características acabaram produzindo um fenômeno relacional bastante
específico do campo antropológico: a troca de coleções. Trata-se de um aspecto fundamental
que aparentemente não foi percebido por Krzysztof Pomian em seu famoso ensaio sobre o tema
(POMIAN, 1997). As coleções não possuem apenas um valor simbólico devido ao seu caráter
de “semióforo”, pois em função dessas necessidades específicas do campo antropológico elas
adquirem, também, um valor bastante venal de verdadeiras mercadorias – dotadas de um

122
Em síntese, Boas expressa numa carta do dia 25 de maio a von den Steinen (FBP, APS) o seu desejo de dedicar
mais tempo ao trabalho em Columbia mas, diante do apelo de Hermon Carey Bumpus (1862-1943) e de Jesup –
pois Livingston Farrand (1867-1939), que o iria substituir, recebeu uma proposta irrecusável fora do Museu –,
acabou ficando, sob a condição de poder controlar todo o trabalho do departamento. No entanto, o próprio Bumpus
começou a interferir no trabalho de Boas e logo o Museu queria vender toda e qualquer coleção não diretamente
compreensível pelo “uneducated people”. Boas resolveu continuar apenas a cargo das publicações relacionadas à
Expedição Jesup.
139

excelente valor econômico, inclusive. As necessidades museológicas de então criaram um


imenso circuito de trocas entre antropólogos, ultrapassando inclusive barreiras ideológicas –
pois pouco importava se um artefato-chave para um determinado museu estivesse em mãos de
um etnólogo subversivo, ultrapassado ou mesmo diletante. Grandes expedições foram, via de
regra, financiadas por instituições museológicas em busca de artefatos para seus acervos.
Assim, por mais que os intelectuais de então pudessem querer se desvincular desse
“paradigma museográfico”, a troca de coleções continuava sendo um artifício importante para
um bom posicionamento nessas redes internacionais de antropólogos. Após realizado o
Congresso de Americanistas de Stuttgart (1904), uma das formas alternativas de aproximação
que Boas encontrou em relação à rede de etnólogos alemães, na qual von den Steinen ocupava
um lugar destacado, foi justamente intermediando a aquisição de coleções a serem recolhidas
por Clark Wissler (1870-1947), que passaria o verão entre os Blackfeet, e James Alexander Teit
(1864-1922), que pesquisava para o American Museum of Natural History no interior sul da
British Columbia e no norte do estado de Washington.123 Ainda eram essas trocas que, ao longo
da primeira metade do século XX, garantiam a validade empírica de descrições culturais
específicas cuja função elementar não deixava de ser a construção, por oposição, do mundo
moderno ou civilizado.
Um outro importante recurso que circulava nessas redes intelectuais eram as
publicações científicas. Se hoje restam poucos periódicos acadêmicos que não possam ser
acessados remotamente via internet, devemos ter em mente que no período aqui abordado as
tiragens dessas publicações eram limitadas, as comunicações mais difíceis e a distribuição mais
cara.124 Controlar o acesso a esse tipo de material era, portanto, uma forma importante de
conquistar centralidade no interior dessas redes intelectuais, e a formação de bibliotecas as mais
completas possível era uma dentre as diversas estratégias das instituições culturais do período.
Depois da Primeira Guerra Mundial a obtenção de material científico por parte dos
intelectuais europeus tornou-se especialmente problemática. A alta inflação fez com que a
importação de periódicos fosse impraticável e, no caso da Alemanha e da Áustria, um boicote
nacionalista tornaria a situação ainda mais trágica, de acordo com as impressões extraídas das
próprias correspondências trocadas entre Boas e intelectuais europeus como von den Steinen e

123
Carta de Boas para von den Steinen, 13 de maio de 1904, FBP, APS.
124
Para além dessa conclusão um tanto óbvia, é possível encontrar um quadro bastante completo da produção de
periódicos científicos para o recorte brasileiro no século XIX em PINHEIRO, 2009. Diante da escassez de
produções historiográficas a este respeito não é de se admirar que a autora veja com bastante otimismo a produção
científica analisada, notando, inclusive, o intenso intercâmbio científico daí advindo. Embora a autora não toque
neste assunto, isso não invalida a hipótese provisória aqui levantada de uma maior interdependência entre os
intelectuais do período para a aquisição e leitura de trabalhos científicos em comparação aos dias atuais.
140

Paul Rivet. Boas foi, conforme já mencionado, um aguerrido pacifista e um crítico ferrenho das
ideologias nacionalistas, sobretudo no que diz respeito à produção científica, e, por isso, se
engajaria na manutenção das trocas internacionalmente neutras de conhecimento científico.
Depois de uma carta datada de 25 de fevereiro de 1911, na qual tratava justamente
de um artigo pego emprestado de von den Steinen e que então se encontrava nas mãos do padre
August Brabant (1845-1912), Boas só retomaria a correspondência com Steinen em 23 de
dezembro de 1919. O assunto dizia respeito às “sociedades científicas alemãs” planejadas por
Boas e cujo intuito seria arrecadar fundos, por meio de filiações, para financiar a compra de
livros para as bibliotecas do país dado o problema da desvalorização do marco.125 As cartas dos
próximos meses tratariam do mesmo assunto, mencionando doações e nomes de novos filiados
que Boas havia conquistado.126 Boas e von den Steinen ainda voltariam a tratar de empréstimos
de livros e de envio de artigos para publicação em suas respectivas revistas em várias outras
cartas seguintes até o ano de 1926.
Boas ainda arquitetou com von den Steinen intercâmbios escolares e posições
acadêmicas. Essas são duas modalidades de ações intelectuais de fundamental importância, haja
vista que estão ligadas ao controle da mobilidade hierárquica no interior do campo acadêmico
e se relacionam a duas ferramentas fundamentais de definição dessas posições: a colocação
institucional atual e o currículo pregresso.127 O caráter de estrategista acadêmico de Boas já foi
notado em algumas ocasiões. Robert Lowie lembra que

estranhamentos advindos de estudantes não regulares eram em parte meramente o


fenômeno familiar da revolta filial, mas em parte elas resultaram do fato de Boas
tomar um ponto de vista racional que batia de frente com as necessidades emocionais
de seus(uas) discípulo(a)s. Ele estava habituado a avaliar o tabuleiro de xadrez dos
empregos antropológicos e a descobrir como a ciência poderia ser melhor servida,
então ele podia tentar mover os(as) antropólogos(as) tal como os peões em uma
partida. O seu julgamento estava normalmente correto, mas alguns homens e mulheres
ressentiram-se da impessoalidade da sua estratégia. (LOWIE, 1947, p. 318)128

125
Carta de Boas a von den Steinen, 23 de dezembro de 1919, FBP, APS.
126
Cartas de Boas a von den Steinen, 10 de novembro de 1919 e 31 de março de 1920, FBP, APS.
127
A respeito dos diversos tipos de “investimento em credibilidade científica”, vide LATOUR e WOOLGAR,
1997.
128
“Estrangements from one-time students were in part merely the familiar phenomenon of filial revolt, but in part
they resulted from Boas's taking a rational point of view that clashed with the disciple's emotional urges. He was
wont to survey the chessboard of anthropological jobs and figure out how science could be best served, then he
would try to move anthropologists about like the pawns in a game. His judgment was usually right, but some men
and women resented the impersonality of his strategy”.
141

A respeito do contexto específico das disputas pelo comando da American Anthropological


Association (AAA), Stocking Jr. ainda afirma que “com vistas a este fim o grupo de Boas
persuadiu, se comprometeu e ocasionalmente intimidou e manipulou” (STOCKING JR., 1968,
p. 287).129
Em carta do dia 25 de abril de 1909 (FBP, APS), Boas indaga von den Steinen a
respeito da possibilidade de uma espécie de “doutorado sanduíche” para Alexander
Goldenweiser (1880-1940), seu aluno, russo de nascimento. Boas afirma que Goldenweiser era
muito inteligente, mas que lhe faltava experiência em etnografia por causa de seu interesse em
problemas mais gerais de sociologia, e por isso propunha que seu discípulo trabalhasse como
voluntário no Museu Real Etnológico de Berlin, parte do tempo sob direção do próprio von den
Steinen, parte sob Eduard Georg Seler (1849-1922) e parte sob Felix von Luschan (1854-
1924).130 Goldenweiser estava pesquisando o desenvolvimento de novas religiões em índios
norte-americanos, mas o interessante é que Boas almejava dirigir seus interesses para a América
do Sul, porque precisava-se muito nos EUA, segundo ele, “de alguém que vá assumir essa
questão, e eu estou inclinado a pensar que Goldenweiser se tornará um belo nome”.131 Isso
comprova muito claramente o papel ativo de Boas na manipulação estratégica dos “sujeitos”,
tornados assim seus próprios “recursos” nesta rede transnacional de antropólogos.
A formação de novos quadros foi, com efeito, uma estratégia muito bem
desenvolvida por Boas ao longo de sua carreira. Desde muito cedo ele percebeu a necessidade
de ampliar sua rede de instituições e pesquisadores para fora dos EUA. Isso incluía tanto o
extremo oriente, por exemplo, com a criação do Comitê sobre as Coleções da Ásia Oriental,
quanto a América do Sul. Em carta de 20 de janeiro de 1906, endereçada a Archer Milton
Huntington (1870-1955), que à época presidia o American Museum of Natural History, Boas
diz o seguinte:

Outra linha de abordagem em que tenho pensado é a mudança de meu campo de


trabalho, da região noroeste para regiões mais ao sul do nosso continente. A esse
respeito, tentei interessar o Instituto de Arqueologia da América e algumas
universidades na fundação de uma escola arqueológica no México, na América
Central ou na América do Sul. O projeto me parece promissor. (BOAS, 2004, p. 362)

129
“Toward this end the Boas group exhorted, they compromised, they occasionally bullied and manipulated”.
130
Von Luschan seria o herdeiro de Rudolph Virchow na liderança da antropologia física alemã depois da sua
morte, de acordo com Benoit Massin (MASSIN, 1996).
131
“[…] we need very much some one who will take up this question, and I am inclined to think that Goldenweiser
will make quite a good man”.
142

Em vez de solicitar apoio de outras instituições já consolidadas em outros países ou


mesmo dentro dos EUA, Boas optava, sabiamente, por treinar novos quadros a fim de expandir
autonomamente suas linhas de pesquisa, ampliando e fortalecendo sua posição como líder de
um grupo mais vasto. Logo veremos que o antropólogo não tardou em fazer o mesmo em
relação às terras brasileiras.
A respeito das disputas profissionais, Boas se envolveu numa contenda que acabou
se mostrando um precioso elemento para uma melhor compreensão das rivalidades
especificamente alemãs e, posteriormente, transnacionais dessa rede de americanistas. Trata-
se, em síntese, de uma intriga, relatada por John Alden Mason (1885-1967), que teria sido
orquestrada por Konrad Theodor Preuss (1869-1938). Esse último tentou recorrer a Mason (que
havia passado por Columbia e que von den Steinen havia conhecido em Gotemburgo – local de
realização do Congresso de Americanistas de 1924), para que ferisse a reputação de Walter
Lehmann a respeito da obtenção da Loubat Professorship of American Archeology (concedida
pela Harvard University). Boas foi bastante franco ao emitir sua opinião a respeito do assunto:
“parece-me que as considerações dele a respeito de Lehmann são, para dizer o mínimo,
indelicadas, particularmente em uma carta para um estranho”.132 A bolsa relacionava-se mais
diretamente com a arqueologia da América do Sul e Central, e para esses fins Boas não achava
que Lehmann ou Preuss tivessem competência suficiente – embora preferisse o primeiro, a
quem já havia feito sua recomendação a pedido de Albrecht Penck (1858-1945) e Eduard Meyer
(1855-1930) –, acreditando que o indicado devesse ser, por fim, Theodor Koch-Grünberg.133
Em outra carta,134 Boas ainda se refere a esta jogada de Preuss como sendo um “truque sujo”
(nasty trick), e informa que foi conversar diretamente com ele. Pessoalmente Boas não nutria a
melhor das impressões em relação a ambos os intelectuais alemães. Preuss era conhecido por
seu posicionamento evolucionista e racista, e a seu respeito Boas afirma o seguinte: “acredito
ser insustentável o posicionamento teórico de Preuss, e seus interesses não se enquadram
naquilo que é requerido para a bolsa Loubat. […] Além disso, ele é um palestrante abominável
e eu não posso imaginar que ele seja bem-sucedido como professor”.135 Sobre Lehmann, por
sua vez, Boas explica a von den Steinen que “desconfiava da sua sinceridade”.136

132
“It seems to me his remarks about Lehmann are, to say the least, tactless, particularly in a letter to an outsider”
– carta de Boas para von den Steinen, 10 de dezembro de 1924, FBP, APS.
133
Carta de Boas a von den Steinen, 10 de dezembro de 1924, FBP, APS.
134
Carta de Boas a von den Steinen, 23 de dezembro de 1924, FBP, APS.
135
“Preuss' theoretical position I think is quite untenable, and his interests are not in the line of what is required
for the Loubat professorship. […] Besides that, he is an abominable speaker and I cannot imagine that he would
be successful as an instructor […]” – carta de Boas a von den Steinen, 10 de dezembro de 1924, FBP, APS.
136
Carta de Boas a von den Steinen, 10 de dezembro de 1924, FBP, APS.
143

Não é possível afirmar que o lado pelo qual Mason optou posteriormente no campo
do americanismo estivesse vinculado a esses acontecimentos.137 Nessa época o fato de Mason
confidenciar um segredo tão delicado a Boas indica muito mais uma proximidade ou, pelo
menos, uma estratégia de aproximação por meio de um recurso não pouco valioso nesse tipo de
estrutura relacional: as fofocas relacionadas a más condutas na ocupação de postos
institucionais privilegiados. Boas agiu instantaneamente no intuito de desfazer uma jogada que,
de acordo com sua perspectiva, não parecia obedecer a critérios éticos elementares, e é bem
provável que tenha conseguido intervir no curso dos acontecimentos. Mas será que, do ponto
de vista de Preuss, essa era uma jogada tão suja assim? Não seria esse um procedimento
corriqueiro de disputa pelos recursos escassos de uma rede constituída em torno do interesse
dos Estados nacionais pelo tema do americanismo?
De todo modo, o que se vai delineando até aqui é a construção de um ethos que na
verdade se pretende exemplar para um sistema de condutas que embasassem uma prática
antropológica à qual estaria subsumido o americanismo em questão. Esse ethos é
sistematicamente apresentado aos diversos interlocutores da epistolografia boasiana, em
especial nesta correspondência com von den Steinen, que se mostra um importante aliado para
as ações, por parte de Boas, de articulação de uma rede transnacional de americanistas. Trata-
se de uma rede de cientistas que deveria ser erigida sobre um conhecimento científico
internacionalista – ou seja, que se pretende desvinculado da política nacionalista, imperialista
e neocolonialista –, empirista – o que, em outras palavras, significava um conhecimento que
não fosse pautado apenas em especulações, a exemplo da forma pela qual eram vistas as teorias
evolucionistas –, e moralmente superior à rede de seus oponentes, algo que vai da construção
cotidiana de sólidos laços afetivos pautados em cavalheirismo e confiança mútua até a defesa
de valores elevados do ponto de vista humanístico, a exemplo da tolerância em relação aos
diferentes modos de vida e do antirracismo. Esses deveriam ser os novos sujeitos do
americanismo, moldados assim pelo contato com o conceito plural de cultura.
Boas se correspondeu também com um grupo de pesquisadores alemães mais
jovens igualmente interessados na etnologia brasileira, especialmente amazônica, a exemplo de
Theodor Koch-Grünberg, Max Schmidt e mesmo Herbert Baldus, que viria a se fixar
definitivamente no Brasil. Curt Nimuendaju representa um caso à parte e que será apresentado
numa subseção específica. Embora as cartas trocadas com esses etnólogos sejam menos
significativas do que a comunicação epistolográfica estabelecida com von den Steinen, a

137
Na próxima parte desta tese veremos que Mason acabou se posicionando contra o grupo de boasianos quando
da edição do Handbook of South American Indians, organizado por Julian Steward.
144

existência desse conjunto de documentos evidencia a forte presença da “Völkerkunde” na


produção antropológica sobre o Brasil.
De acordo com Erwin H. Frank, o jovem filólogo Theodor Koch (1872-1924) – o
nome da cidade alemã de Grünberg seria acrescentada ao seu nome posteriormente – foi
convidado por Hermann Meyer (1871-1932), em 1898, para cuidar da parte linguística de sua
segunda expedição ao Brasil. A publicação dos resultados dessa pesquisa chamou a atenção de
Adolf Bastian, que o convidou para estagiar gratuitamente no Museu Etnográfico de Berlin sob
supervisão de Karl von den Steinen (tio de Meyer) e Eduard Seler. Em 1902 doutorou-se em
filologia na Faculdade de Filosofia da Universidade de Würzburg, retornando ao Brasil no ano
seguinte, o que lhe permitiu recolher o expressivo conjunto de dados reunidos em seu Zwei
Jahre unter den Indianern, Reisen in Nordwest-Brasilien, publicado em dois volumes entre
1909 e 1910. Em 1909 tornou-se Privatdozent (não efetivo) da Universidade de Freiburg e em
1911 retornou à Amazônia. Em 1913 Koch-Grünberg finalmente se tornou professor
extraordinário (algo que lhe garantiu maior estabilidade acadêmica) e, em 1915, foi chamado
para administrar o Museu Linden, em Stuttgart. Koch-Grünberg havia conquistado então a
estabilidade institucional que lhe permitiria uma participação mais central na rede transnacional
de americanistas. No entanto, não devemos nos esquecer de que os anos posteriores à Primeira
Guerra foram especialmente trágicos para a antropologia alemã, e em 1923 o Museu de Linden
fechou suas portas por falta de recursos. Convidado por Hamilton Rice (1875-1956), geógrafo
e explorador nova-iorquino, Koch-Grünberg retornou uma vez mais à Amazônia, onde faleceu,
em 1924, provavelmente em função de uma crise de malária.138
Nos arquivos da American Philosophical Society existem apenas três cartas
trocadas entre Boas e Koch-Grünberg, uma enviada pelo primeiro e duas outras, escritas em
alemão, pelo segundo. Além disso, a carta escrita por Boas em 2 de maio de 1923 apenas
agradece o recebimento do quinto volume de um livro de Koch-Grünberg, por intermédio de
seu cunhado de nome Wasmuth, e diz esperar encontrá-lo logo num evento que ocorreria em
Tübingen. Essas poucas cartas foram trocadas a partir de 1921, quando Koch-Grünberg havia
enfim conseguido uma posição institucional mais sólida, e se ele não tivesse falecido em 1924
possivelmente teríamos acesso a uma troca mais volumosa entre os dois.
No entanto, o nome de Koch-Grünberg aparece em diversas outras
correspondências trocadas entre Boas e seus amigos. É possível perceber, por exemplo, que
Koch-Grünberg servia como referência aos alunos de Boas nas pesquisas que vieram a realizar

138
Todas essas informações biográficas foram retiradas de FRANK, 2005.
145

no território Brasileiro.139 Seu nome também era constantemente lembrado por Paul Rivet,140 a
exemplo da intriga articulada por Preuss aqui já mencionada (é bom lembrar que Boas inclusive
sugere o nome de Koch-Grünberg para a ocupação da cátedra Loubat, da Harvard University)
e do projeto de realização do congresso de americanistas na Suécia. Assim, vê-se que as
conexões de “segundo grau” por vezes podem se mostrar mais significativas do que os contatos
diretos no intuito de se verificar a importância de um dado sujeito numa rede relacional.
A trajetória de Max Schmidt (1874-1950), outro correspondente alemão de Boas, é
muito semelhante, ao menos em seu início, à de Koch-Grünberg. Schmidt havia defendido uma
tese sobre direito romano em 1899, quando se tornou um estagiário voluntário no Museu de
Berlim, também sob orientação de von den Steinen e Seler. Depois de realizar a sua primeira
viagem ao Brasil, em 1900, tornou-se curador assistente no mesmo museu e defendeu sua tese
na Universidade de Leipzig, em 1916, sendo nomeado em 1921 para o cargo de professor da
Universidade de Berlim. Decidido a realizar mais uma viagem de pesquisa no Brasil e noutros
países latino-americanos, Schmidt voltou para cá entre os anos de 1926 e 1928. No entanto, em
vez de voltar para Alemanha, Schmidt ficou morando um tempo em Mato-Grosso e, depois,
fixou-se definitivamente no Paraguai, criando o primeiro Museu Etnográfico do país
(GAILLARD, 2004, p. 222).
Também só existem três correspondências relacionadas a Schmidt nos Franz Boas
Papers. A carta enviada por Boas a Schmidt no dia 21 de março de 1929 (22 anos depois da
outra, uma pequena nota na qual agradecia pelo envio de uma lista de descrições) é, no entanto,
bastante interessante, pois traz mais esclarecimentos a respeito do projeto boasiano direcionado
ao estudo das línguas centro e sul-americanas:

Há uma possibilidade de que nós possamos angariar algum dinheiro para um trabalho
linguístico completo nas Américas Central e do Sul. Eu ficaria muito grato por
quaisquer sugestões que você possa querer me fornecer e que possam ser incorporadas
num trabalho desse tipo. O método que nós gostaríamos de seguir seria coletar, onde
for possível, textos como uma base gramatical e um dicionário e uma discussão
completa sobre estrutura gramatical.141

139
Carta de Jules Henry para Boas, 30 de julho de 1937, FBP, APS.
140
Cartas de Rivet para Boas, 4 de setembro e 22 de dezembro de 1919, 14 de fevereiro, 19 de abril, 7 de junho de
1920, 23 de fevereiro, 7 de setembro e finalmente 17 de novembro de 1924, FBP, APS.
141
“There is a possibility that we may be able to raise some money for thorough linguistic work in Central and
South America. I should be very much indebted for any suggestions that you might wish to make and that should
be embodied in work of this kind. The method we should want to pursue would be to collect, whenever possible,
texts as a basis of grammar and dictionary and thorough discussion of the grammatical structure” – carta de Boas
para Schmidt, 21 de março de 1929, FBP, APS.
146

Confirma-se nessa carta o anseio primordial de construção de uma gramática


comparada das línguas sul-americanas nos moldes gerais da linguística humboldtiana. Além
disso, fica clara a direção boasiana nesse projeto de extensão de seu programa científico para
regiões além da América do Norte. Infelizmente não há resposta arquivada em relação a essa
carta. Certamente isso se deve ao fato de que ela foi enviada para a Alemanha (Friederick
Wilhelms Universität, Berlim, Alemanha), em vez de ser remetida para a América do Sul, onde
Schmidt estava vivendo. Ele também é mencionado em outras cartas: uma delas foi enviada por
Paul Rivet a Boas142 e em outra, desta vez enviada por Boas a Nordenskiöld, também a respeito
da intriga tramada por Preuss, em que o trabalho de Schmidt é contraposto de modo positivo ao
de Walter Lehmann.143
Dos três, Herbert Baldus (1899-1970) é o que possui a trajetória mais diferenciada
e talvez marginal, não obstante seu nome seja reconhecido pelo importante papel que
desempenhou para a consolidação da etnologia brasileira (GAILLARD, 2004, p. 223). Talvez
por essa posição heterodoxa não tenha angariado o mesmo prestígio junto a Boas se comparado
aos seus dois conterrâneos acima mencionados, pois em carta na qual Boas sugere a Heloisa
Alberto Torres colaboradores americanistas estrangeiros para a realização de pesquisas de
campo no Brasil e treinamento de jovens antropólogos brasileiros, ele lhe escreve que “Baldus
você indubitavelmente conhece, e eu estou certo de que você também sabe de suas
limitações”.144
Baldus fugiu para a Argentina após participar do movimento espartaquista na
Alemanha em 1920, mudando-se para o Brasil em 1921 para ensinar alemão. Depois de realizar
uma expedição à região do Chaco a fim de gravar um filme com os índios de lá e, em seguida,
empreender uma pesquisa junto aos índios guaranis, voltou à Alemanha em 1928 para estudar
em Berlim com nomes como R. C. Thurnwald (1869-1954), Walter Lehamnn e K. T. Preuss –
talvez fosse em função dessas conexões que Boas o tivesse em baixa estima. Depois de
doutorar-se em 1932, retornou ao Brasil, participando da fundação da Escola Livre de
Sociologia e Política de São Paulo, e adotando, finalmente, em 1941, a nacionalidade brasileira.
Em 1942, Baldus começou a trabalhar também no Museu Paulista, que passou a dirigir a partir
de 1952, sendo responsável pela criação da Revista do Museu Paulista (GAILLARD, 2004, p.
223; PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, loc. 5753-5759).

142
Carta de Rivet para Boas, 22 de dezembro de 1919, FBP, APS.
143
Carta de Boas para Nordenskiöld, 28 de outubro de 1924, FBP, APS.
144
“Baldus you undoubtedly know, and I am sure you also know his limitations” – Carta de Boas para Heloisa
Alberto Torres, 20 de janeiro de 1941, FBP, APS.
147

Também em relação a Baldus existem apenas três cartas na coleção epistolográfica


de Boas. Antes do juízo que o chefe do Departamento de Antropologia da Universidade de
Columbia compartilhou com Heloisa Alberto Torres a respeito de Baldus, ele enviou-lhe uma
correspondência no dia 6 de abril de 1932, após ter recebido uma longa carta sua em alemão.
Do conteúdo desta resposta depreende-se que Baldus soube dos projetos de Boas no que diz
respeito ao desenvolvimento de pesquisas linguísticas na América do Sul e, de posse dessa
informação, havia ficado interessado em ajudá-lo – Baldus tinha acabado de defender sua tese
e agora certamente procurava alguma posição profissional correlata à sua pesquisa. Boas
afirmou ter falado do trabalho de Baldus para Thurnwald e, a respeito das pesquisas na América
do Sul escreveu o seguinte:

Lamentavelmente, a presente crise econômica tem tornado totalmente impossível dar


início ao trabalho na América do Sul, mas eu darei uma olhada para ver se não poderá
ser possível permitir que você continue, de alguma forma, com as suas investigações
sul-americanas. Eu não posso vislumbrar nada no presente, mas eu verei o que pode
ser feito.145

Se os motivos apresentados por Boas não foram mera desculpa para declinar da
colaboração de Baldus, essa carta é valiosa para entendermos qual foi o desfecho das suas
articulações com uma série de intelectuais e com o Council of Learned Societies146 com o intuito
de realizar pesquisas linguísticas entre as tribos sul-americanas. Embora esse motivo seja
bastante plausível, não podemos, contudo, descartar a falta de entusiasmo de Boas com relação
a Baldus, seja em função de uma possível desconfiança científica (mais tarde expressa na carta
à Heloisa Alberto Torres), que poderia ter surgido da leitura do trabalho que lhe foi enviado e
depois encaminhado a Thurnwald (provavelmente a sua tese), ou, o que é também provável,
pelo fato de que Boas já tinha planos para seu ex-aluno Jules Henry Blumensohn, que em carta
do dia 2 de junho do mesmo ano (FBP, APS) já seria apresentado a Edgard Roquette-Pinto, no
Museu Nacional, a fim de realizar pesquisas entre os “botocudos” com verbas da Rockefeller
Foundation. Mas não podemos deixar de destacar também as conexões anteriores de Baldus
com os desafetos alemães de Boas, e possivelmente esse foi o principal motivo da falta de
interesse de Boas em relação à sua colaboração.

145
“Much to my regret the present depression has made it quite impossible to start with the South American work
but I shall look around and see whether it will not be possible in some way to enable you to continue your South
American investigations. I cannot see anything at the present moment, but I will see what can be done” – carta de
Boas para Baldus, 6 de abril de 1932, FBP, APS.
146
De acordo com o site da própria instituição, ela foi criada em 1919 a fim de representar os EUA na Union
Académique Internationale e de fomentar estudos nas áreas das humanidades (http://www.acls.org/about/history/).
148

4.2. ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E A ESCANDINÁVIA

O Barão Nils Erland Herbert Nordenskiöld (1877-1932), quando de suas


correspondências com Boas, tinha o seu nome ligado ao Museu Etnográfico de Gotemburgo –
considerado “o mais moderno do seu tipo no mundo” (GAILLARD, 2004, p. 173).147 Nascido
em Estocolmo, Suécia, Nordenskiöld herdou da família o nome nobre e o gosto pelas
expedições científicas – seu pai, o Barão Adolf Erik Nordenskiöld, por exemplo, foi o primeiro
navegador a alcançar o Oceano Pacífico a partir do Oceano Atlântico por meio da “Passagem
do Nordeste”, situada ao longo da costa siberiana. A partir de 1901 realizou uma série de
expedições na América do Sul, passando pelo Brasil na viagem à Bolívia que realizou entre
1913-1914. Foi nesse mesmo ano que Nordenskiöld foi nomeado “intendent” do Museu
Etnográfico de Gotemburgo, o qual, de acordo com Robert H. Lowie, “sua energia elevou a
uma das instituições modelo do mundo” (LOWIE, 1933, p. 158).148 Ainda segundo Lowie,
embora Nordenskiöld não fosse propriamente um filósofo, “ele não se contentou em
permanecer um crédulo repórter ou um mero cartógrafo virtuoso. Ele avaliou distribuições em
termos de história, percorrendo um curso médio entre um evolucionismo ultrapassado e um
difusionismo extravagante” (LOWIE, 1933, p. 159).149 Por fim, Lowie ainda pontua que seu
“procedimento metodológico, seu escrutínio consciencioso do material documentário, seu
sóbrio exame das evidências, sua abordagem simpática aos nativos, tornaram-se um patrimônio
de uma escola” (LOWIE, 1933, p. 161).150 O testemunho necrológio deste discípulo de Boas
permite entrever uma série de elementos muito bem-vindos ao modelo relacional que seu
professor vinha se esforçando em sedimentar para a rede intelectual aqui abordada.
Nordenskiöld é considerado o fundador da “Escola Escandinava” de americanistas
(VICKERS, 1993). Primeiro professor de antropologia da Universidade de Gotemburgo, teria
influenciado etnógrafos como Curt Nimuendajú, Alfred Métraux e Henry Wassén (1906-1996).
Veremos adiante que os dois primeiros nomes ocuparam importantes posições na rede
transnacional da qual se ocupa esta tese.

147
O antigo Museu Etnográfico de Gotemburgo foi incorporado, desde 1999, ao Museu da Cultura do Mundo
(Värdskultur Muserna).
148
“[…] his energy raised to one of the model institutions of the world”.
149
“[…] he was not content to remain a faithful reporter or a mere virtuoso of cartography. He appraised
distributions in terms of history, steering a middle course between an outdated evolutionism and an extravagant
difusionism”.
150
“[…] his methodical procedure, his conscientious scrutiny of documentary material, his sober examination of
evidence, his sympathetic approach to the natives, have become a heritage of a school”.
149

A correspondência entre Boas e Nordenskiöld se inicia em 1920, também motivada


por uma articulação em torno do local de realização do próximo Congresso de Americanistas.
Esse seria o primeiro congresso organizado depois da Primeira Guerra Mundial, e Boas
esperava, como vimos, que a sua realização na Suécia, um país neutro, pudesse viabilizar a
participação de cientistas alemães e austríacos, que vinham sendo boicotados por causa do
conflito armado global. Do outro lado, liderados por Aleš Hrdlička, um outro grupo almejava
um congresso que se voltasse apenas para cientistas pertencentes aos países aliados. As
pretensões de Boas em torno da candidatura de Nordenskiöld para anfitrião do congresso que
ocorreria em 1921 ou 1922 acabaram por se chocar então com as do brasileiro Antônio Carlos
Simõens da Silva (1871-1948),151 que desejava sediá-lo na capital brasileira e que tinha o apoio
de Hrdlička.
A primeira correspondência, enviada a Boas no dia 2 de agosto de 1920 (FBP,
APS), foi, na verdade, uma espécie de consulta em função de o francês Paul Rivet ter sugerido
que o próximo congresso fosse realizado na Suécia – o antropólogo francês, como veremos,
também era um ferrenho defensor do internacionalismo científico, e a realização de um
congresso de americanistas na Suécia, naquele momento, aparecia como uma batalha decisiva
para a vitória desse posicionamento.152 Nordenskiöld desejava que o evento pudesse reconciliar,

151
Simõens da Silva era bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo e advogado no Rio de Janeiro, e possuía
um museu particular na então capital da República. Adriana Tavares do Amaral Martins Keuller destaca a sua
intensa atividade nos Congressos de Americanistas nas décadas de 1910 e 1920, “chegando mesmo a representar
o Brasil como delegado além de várias instituições científicas, entre elas a Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Congresso sediado em Washington, D.C., em 1915”
(KEULLER, 2008, p. 146, nota 348).
152
Em carta do dia 7 de junho de 1920 (FBP, APS), Rivet escreve a Boas enfatizando, no entanto, os problemas
econômicos do pós-guerra: “Você tem visto como eu que o congresso de Americanistas que deverá se reunir no
Rio tinha que ser cancelado. Previsivelmente, por causa da situação econômica, nenhum acadêmico europeu
poderá pagar o preço de uma tal viagem e eles não podem contar com subsídios dos governos, que ainda estão
mais pobres que os particulares.
Como, por outro lado, é indispensável que os congressos internacionais sejam retomados o mais rápido possível,
eu escrevi, depois de ter consultado MM. Seler, Koch-Grünberg, W. Lehmann, etc…, para E. Nordenskiöld,
pedindo-lhe para providenciar uma próxima reunião na Suécia. Eu acredito que qualquer que seja a dificuldade da
tarefa, seja qual for o tipo qualquer de problema que possa resultar para os organizadores, é dever dos neutros
tentar a aventura. Nordenskiöld possui preciosas amizades nos dois campos antigos, ele sabe que pode contar com
isso, eu creio que, melhor do que ninguém, ele é capaz de realizar este projeto”.
(“Vous avez vu comme moi que le congrès des Américanistes qui devait se réunir à Rio a du être décommandé.
C'était à prévoir, car en raison de la situation économique, aucun savant européen ne pouvait faire les frais d'un
tel voyage et il ne faut pas compter sur les subventions des gouvernements, qui sont encore plus pauvres que les
particuliers.
Comme d'autre part, il est indispensable que les congrès internationaux reprennent le plus vite possible, j'ai écrit,
après avoir pris l'avis de MM. Seler, Koch-Grünberg, W. Lehmann, etc…, à E. Nordenskiöld, pour lui demander
d'entamer des démarches pour une réunion prochaine en Suède. Je crois, que quelque soit la difficulté de la tache,
quels que soient les ennuis de toutes sortes qui pourrent en résulter pour les organisateurs, c'est le devoir des
neutres de tenter l'aventure. Nordenskiöld a de précieuses amitiés dans les deux camps anciens, il sait sur qui il
peut compter, je crois que, mieux que personne, il est capable de réaliser ce projet”).
150

em função do “amor à ciência”, intelectuais das potências aliadas e centrais, mas, para isso,
deveria contar com o apoio de antropólogos de destaque tanto do Velho quanto do Novo
Mundo. Boas, que já pretendia escrever sobre o mesmo assunto ao colega sueco, concordava
com os seus anseios mas estava receoso quanto à possibilidade de participação de seus amigos
estadunidenses, pois sem apoio institucional – é preciso lembrar que uma crise financeira
assolou os EUA logo após a guerra (KARNAL et al., 2007) – ficaria difícil para jovens
antropólogos arcarem, por sua própria conta, com os custos de uma viagem internacional,
enquanto que os mais velhos e influentes, segundo ele, ainda estavam sob o efeito do conflito
e evitariam a todo custo o encontro com alemães e austríacos153 – Boas ainda relata que ele
próprio estava sendo preterido em outros eventos por causa de haver nascido na Alemanha, o
que para ele representava um absurdo. Ao mesmo tempo, Boas articulava uma declaração
pública de seus colegas declinando a participação na organização da Instituição Antropológica
planejada pela École d'Anthropologie, pois que a mesma só aceitaria cientistas pertencentes à
Liga das Nações. Percebe-se, portanto, que ao lado do desejo de controlar a organização dos
Congressos de Americanistas havia a militância em prol de uma antropologia não vinculada a
projetos políticos nacionalistas e imperialistas, representantes da velha tradição antropológica
e da velha civilização europeia.
A próxima carta foi remetida por Boas no dia 22 de novembro do mesmo ano, em
resposta à outra, escrita por Nordenskiöld em 1º de novembro (que, infelizmente, encontra-se
com páginas faltantes na coleção Franz Boas Papers da APS). Boas aguardava o
posicionamento de Eduard Seler e von den Steinen, e achava que William Rivers (1864-1922),
a quem Nordenskiöld deveria contatar, fosse talvez o mais ansioso por restabelecer as relações
de amizades de uma rede de antropólogos que transcendia o americanismo – Boas inclusive
desejava que os Congressos de Americanistas fossem fundidos com o congresso geral de
Antropologia, mas não queria trazer isso à tona num momento tão delicado. Além disso, Boas
aproveita para tratar de seus planos de prover a Alemanha e a Áustria da literatura antropológica
estadunidense – os dois países tinham dificuldades também em receber textos franceses, ao
passo que a Suécia e a Holanda envidavam esforços no sentido de fornecer alguma literatura a
estes países.
A primeira menção ao congresso do Rio de Janeiro surge na carta do dia 21 de
dezembro de 1921, enviada a Nordenskiöld por Boas (FBP, APS), que indaga ao remetente a

153
Em carta do dia 3 de outubro (FBP, APS), Boas conseguiu confirmar para Nordenskiöld que apenas Robert
Lowie e Nels Christian Nelson (1875-1964), ambos à época pertencentes aos quadros do American Museum of
Natural History, desejavam participar do evento caso ele fosse realizado em 1921.
151

este respeito. Em resposta,154 Nordenskiöld informa ter conversado com Hrdlička e que este
último houvera defendido o direito de a capital brasileira sediar o próximo congresso. Neste
ponto, é interessante notar que os etnólogos brasileiros já possuíam uma boa influência e
margem de manobra na rede transnacional de americanistas antes mesmo do apoio conseguido
pelo Museu Nacional junto ao grupo de Boas. Nesse momento Simõens da Silva logrou se
posicionar estrategicamente do lado que se encontrava mais forte nessa rede, ou seja, aquele
dominado por antropólogos diretamente vinculados às ideologias nacionalistas de seus
respectivos países. Após ter decidido recuar na disputa com o Rio de Janeiro155, Nordenskiöld
deixa claro em uma outra carta156 o que estava em jogo nesse conflito:

Eu recebi hoje uma carta de Simoens da Silva com um convite para o Congresso de
Americanistas no Rio de Janeiro. Este tomará consequentemente lugar em agosto de
1922. Nosso convite terá então que ser apresentado no Rio. A dificuldade, portanto,
será induzir os membros do Congresso a se reunirem aqui tão logo como em 1923.
Nosso principal argumento para este fim deve ser que, devido à Grande Guerra, vários
anos se passaram sem que nenhum Congresso tenha ocorrido, e que é difícil para
vários europeus viajarem para tão longe quanto o Rio. Um fator adicional é que o
Brasil tomou parte na Guerra do lado da Entente – e talvez isso não tenha sido tomado
suficientemente em consideração –, então aquele número de representantes das
Potências Centrais, que poderiam vir de bom grado para o país neutro da Suécia,
possivelmente não se importariam em estar presentes no Congresso do Rio. De minha
própria parte eu estou extremamente ansioso para que o congresso seja realizado aqui
em 1923, e é apenas por consideração aos brasileiros que eu não tentei organizá-lo
antes.157

Em resposta,158 Boas diz que não tinha notícias a respeito do congresso brasileiro,
mas que desejava que ele fosse um evento mais científico que diplomático – algo que, como
vimos, não aconteceu. Restou, por fim, à “facção boasiana” propor, no Rio de Janeiro, a
realização do próximo congresso na Suécia.

154
Carta de Nordenskiöld para Boas, 29 de dezembro de 1920, FBP, APS.
155
Carta de Nordenskiöld para Boas, 9 de setembro de 1921, FBP, APS.
156
Carta de Nordenskiöld para Boas, 3 de dezembro de 1921, FBP, APS.
157
“I have to-day received a letter from Simoens da Silva with an invitation for the Americanist Congress in Rio
de Janeiro. This will consequently take place in August, 1922. Our invitation will thus have to be presented in Rio.
The difficulty will then be to induce the members of Congress to meet here as early as 1923. Our chief argument
towards this end must be that, owing to the Great War, several years have elapsed without any Congress having
taken place, and that it is difficult for many Europeans to journey as far as Rio. An additional factor is that Brasil
took part in the War on the side of the Entente, – and perhaps this has not been sufficiently taken into consideration,
– so that a number of representatives from the Central Powers, who would willingly come to the neutral country
of Sweden, would possibly not care to be present at the Rio Congress. For my own part I am extremely anxious
for the Congress to be held here in 1923, and it is only out of consideration for the Brazilians that I did not attempt
to get it fixed earlier”.
158
Carta de Boas para Nordenskiöld, 21 de dezembro de 1921, FBP, APS.
152

Para além do tema dos congressos – Boas ainda articularia para que o XXII
Congresso fosse realizado novamente no Canadá (carta de 4 de junho de 1924) –, ambos
trataram da necessidade de realização de mais pesquisas na América do Sul. Em carta do dia 7
de março de 1929 Boas pergunta a Nordenskiöld, por exemplo, qual língua sul-americana
estava correndo maior risco de extinção, pois “há a possibilidade de levantar uma quantidade
considerável de dinheiro para o estudo das línguas sul-americanas. Se algo surgir a este respeito
eu gostaria de contar com a sua cooperação no planejamento do trabalho”,159 e, embora
Nordenskiöld considerasse que Júlio Tello (1880-1947) e Rivet fossem mais consistentes para
avaliar o assunto, responde prontamente à solicitação de Boas em carta do dia 22 do mesmo
mês. Esse, aliás, era um campo no qual o déficit de estudiosos havia tempos vinha sendo notado
por Boas. Em carta em que sugere nomes para a participação no congresso de Gotemburgo,
Boas se lembra de Mason, em substituição a Edward Sapir (1884-1939), seu ex-aluno, e lamenta
que “havia tão poucas pessoas aqui que trabalham com a América do Sul que é difícil encontrar
uma pessoa adequada”.160
Vê-se, portanto, que a articulação de uma rede internacional de americanistas por
parte de Boas encontra na figura de Nordenskiöld um importante elemento gerador de recursos
relacionais e de autoridade acadêmica – haja vista o seu reconhecimento internacional como
americanista, laureado pela organização de um Congresso Internacional de Americanistas –,
um parceiro na luta pelo internacionalismo científico e, por fim, um aliado nas ações de
salvaguarda de culturas em extinção, sendo cada vez mais claro para eles que eram aquelas
situadas na América do Sul as que mais se encontravam ameaçadas naquele período.

159
“[…] there is a possibility of raising a considerable amount of money for the study of South American
languages. If anything come of this matter I should want your cooperation in the planning of the work” – carta de
Boas para Nordenskiöld, 7 de março de 1929, FBP, APS.
160
“[…] there are so few people here who have worked on South America that it is difficult to find a suitable
person” – carta de Boas para Nordenskiöld, 19 de junho de 1924, FBP, APS.
153

4.3. ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E A FRANÇA

Embora um intelectual tenha uma pátria-mãe, a ciência deve ser internacional


(RIVET, 1923, apud LAURIÈRE, 2010, p. 233).161

4.3.1. A “tradição etnológica francesa”

A ideia de uma “tradição etnológica francesa” parece contradizer a premissa até


aqui desenvolvida de que o americanismo se constituiu enquanto prática intelectual de caráter
transnacional. Se ela não for trabalhada com o devido cuidado realmente pode conduzir à falsa
conclusão de que cada “nação” possui uma antropologia coincidente com o seu respectivo e
pretenso ethos nacional. Com isso, no entanto, não se pretende afirmar que os contextos
nacionais – isto é, as disputas internas pela hegemonia na condução de um determinado Estado-
nação e as disputas externas pelo fortalecimento desse mesmo Estado – não sejam importantes
para a definição dos saberes antropológicos produzidos nas instituições situadas em seus
respectivos territórios. As divisões sociais internas e a forma de se relacionar externamente com
o outro – como dominante, aliado ou dominado – certamente produz aquilo que Roberto
Cardoso de Oliveira chamou de “estilos” de antropologia (OLIVEIRA, 1995, e OLIVEIRA,
2000), e é dessa forma que essa “tradição etnológica francesa” será aqui considerada. Não é
demais lembrar que pensar o americanismo como uma rede transnacional pressupõe aqui
considerar a relação dialética entre contextos nacionais de produção e as relações transnacionais
que essa produção implicava, sobretudo a partir do início do século XX. Julie Cavignac afirma,
por exemplo, que

pelas forças dos eventos históricos, o Americanismo francês se libertará dos seus laços
nacionais mas não do seu espírito. Este deslocamento tanto efetivo quanto simbólico
proporcionará uma certa liberdade de ação e tomadas de posicionamentos aos
integrantes desta rede acadêmica, particularmente em relação aos detentores das
fontes de financiamento. (CAVIGNAC, 2011, p. 130)

Compreender a “exceção francesa”, de acordo com Cavignac, ou mesmo “o estilo francês”,


significaria então levar em conta “o contexto dos embates entre a antropologia física e a Escola
francesa de sociologia, das alianças políticas e das sucessivas guerras mundiais” (CAVIGNAC,

161
“Although a scholar has a fatherland, science must be international”.
154

2011, p. 122) e a ligação de seus líderes a “homens políticos da esquerda com uma recente
entrada no governo” (CAVIGNAC, 2011, p. 122-123).
A consolidação de uma “tradição etnológica francesa” é comumente atribuída à sua
institucionalização em 1925 por meio do Institut d'Ethnologie da Universidade de Paris
(Sorbonne), criado por Marcel Mauss (1872-1950), Paul Rivet (1876-1958) e Lucien Lévy-
Bruhl. Antes disso a produção antropológica francesa estaria fragmentada em diversas
instituições desconectadas, apresentando uma produção que poderia ser dividida em, pelo
menos, cinco correntes, com predominância da antropologia física.162 A “etnologia” desses
novos pesquisadores seria diferente da antropologia interessada em definir biologicamente a
diversidade racial humana e as supostas leis gerais que definiriam a sua evolução da barbárie à
civilização. Segundo Alice Conklin,

Na França, estes novos estudantes do social escolheram conscientemente o nome


“etnologistas” para distingui-los dos “antropólogos” físicos, que eles consideravam
preocupados demais com a classificação racial dos humanos, passados e presentes, e
muito ligados à ideia de estágios de evolução universais e inflexíveis para as raças e
civilizações. Este mesmo grupo de etnólogos também introduziu um novo método
científico que estava ganhando terreno internacionalmente: contato in situ com as
supostas sociedades primitivas, especialmente aquelas à mão nas colônias francesas,
em vez de teorização de gabinete exclusivamente a partir de etnografias e artefatos
colhidos por outros. (CONKLIN, 2013, p. 3)163

As cartas trocadas entre Boas e Rivet mostram que o primeiro foi um importante
aliado na consolidação desta etnologia de caráter mais internacionalista e mais marcadamente

162
Segundo Gérard Gaillard, a primeira corrente (e a predominante) seria a da “antropologia física”, à qual
continuaria atrelado Rivet e que teria sido fundada a partir da transformação da cadeira de anatomia e de história
natural do homem do Musée d'Histoire Naturelle, em 1856, por Quatrefages de Bréau (1810-1892); teria também
como representantes importantes Paul Broca (1824-1880), fundador da École d'Anthropologie de Paris e da
Société d'Anthropologie de Paris, bem como dos seus Bulletins et Mémoires e de seu periódico l'Anthropologie,
Hamy (1842-1908), criador do Musée d'Ethnographie du Trocadéro, e R. Vernau (1852-1937), sucessor de Hamy
que precedeu Rivet nessa última instituição. A segunda corrente estaria ligada ao conhecimento adquirido por
meio do colonialismo a partir de coleções que foram apropriadas por administradores coloniais, militares e clérigos
e, posteriormente, organizadas em sociedades geográficas, como a fundada em Paris em 1821. A terceira estaria
ligada à tradição beletrista, ou seja, aos estudos eruditos produzidos a partir da Expedição Egípcia de Napoleão,
no Institut des Langues Orientales, na École Française d'Extrême-Orient e no Institut Fraçais de Damas. A quarta
corrente relacionar-se-ia a uma tradição mais folclorística e a movimentos de caráter nacionalista, como os esforços
de P. Sébillot (1846-1918), Saint-Yves (1870-1935) e A. van Gennep (1873-1957). Por fim, a quinta corrente, a
da École Française de Sociologie, seria aquela à qual perteceram Mauss e Lévy-Bruhl, de inspiração durkheimiana
(GAILLARD, 2004, p. 85).
163
“In France, these new students of the social consciously chose the name ‘ethnologists’ to distinguish themselves
from physical ‘anthropologists,’ whom they considered too preoccupied with the racial classification of humans,
past and present, and too attached to the idea of universal and inflexible stages of evolution for races and
civilizations. This same group of ethnologists also introduced a new scientific method that was gaining ground
internationally: in situ contact with so-called primitive societies, especially those close at hand in France’s
colonies, rather than armchair theorizing exclusively from ethnographies and artifacts collected by others”.
155

empirista, no desenvolvimento de projetos ligados à linguística americanista e na luta


antifascista e antirracista. Ainda que Boas também tenha se correspondido com Marcel Mauss,
esse contato não será aqui abordado pelo fato de que os interesses desse intelectual francês se
ligavam mais a uma etnologia comparada que ao americanismo em si.164

4.3.2. Internacionalismo científico e linguística americanista

Ao lado de von den Steinen e Nordenskiöld, Paul Rivet parece ser uma das
principais referências da rede de americanistas que inclui Boas. As relações estabelecidas entre
este último e o antropólogo francês já foram estudadas por Christine Laurière, com base
também nas cartas arquivadas na APS (LAURIÈRE, 2010). A autora destaca três razões que
uniram os dois intelectuais em função de uma causa comum: o internacionalismo científico, o
interesse na linguística americanista e a luta contra o racismo. É com razão que Laurière destaca
esses “pontos altos” da amizade entre os dois, e aqui interessa aprofundar como esses anseios
compartilhados puderam abrir caminhos que conectariam essa rede aos intelectuais brasileiros.
Laurière apresenta indicações consistentes de que a postura internacionalista de
Rivet precedeu o contato com Boas. Rivet havia servido na Primeira Guerra Mundial como
médico e, no seu retorno à vida civil, foi um dos principais responsáveis pela institucionalização
da antropologia francesa no cenário nada promissor do pós-guerra – ainda que a memória da
antropologia se lembre mais recorrentemente do nome de Marcel Mauss. Embora ainda
ocupasse o modesto posto de assistente da cadeira de antropologia do Muséum National
d'Histoire Naturelle de Paris, Rivet comprou importantes brigas no interior da Société des
Américanistes, na qual ocupava a posição de secretário-geral, além de ter se responsabilizado
pela condução do Journal dessa mesma instituição.165 O antropólogo francês não desejava

164
Sobrinho de Durkheim, Mauss militou em grupos de esquerda quando jovem ao lado de C. Péguy, P. Janet,
Lévy-Bruhl e J. Jaurés. Até fins do século XIX Mauss trabalhou com história e sociologia das religiões e com
linguística, em especial o estudo do sânscrito. Entre 1897 e 1898 esteve na Inglaterra, onde estabeleceu laços com
o grupo de J. G. Frazer. Em 1898 assumiu a cadeira de Religiões Indianas na École Pratique des Hautes Études,
tendo se tornado, em 1902, diretor de estudos de religiões indígenas na mesma instituição. Também foi docente
do Collège de France, entre 1931 e 1941, até que fosse expulso pelo governo de Vichy. Sendo um dos expoentes
da “École de sociologie française”, seus estudos etnológicos espelham as preocupações durkheimianas com os
elementos simbólicos geradores de coesão coletiva, a exemplo dos rituais religiosos, das formas de classificação,
vida econômica, leis, moralidade etc., por meio de importantes ensaios comparativos baseados nas investigações
etnográficas anteriormente realizadas por nomes como Boas e Malinowski – entre nós talvez seja mais conhecido
o seu famoso Essai sur le don, de 1924. Mauss ainda destacou-se pela resistência ao nazismo quando da ocupação
francesa e, posteriormente, por ter se dedicado à publicação póstuma das obras de seus colegas e discípulos que
morreram durante a Segunda Guerra Mundial (GAILLARD, 2004, p. 90-91).
165
Segundo Julie A. Cavignac, o grupo de pesquisadores reunidos em torno da Société des Americanistes “mantém
contato através de reuniões e publicações regulares, no Journal que inicia sua publicação em 1896. Essa mesma
156

interromper as trocas intelectuais estabelecidas com alemães e austríacos, e Nordenskiöld foi


um importante elo entre Rivet e os americanistas das potências centrais. Contudo, outros
importantes antropólogos franceses, a exemplo de Louis Édouard Lapicque (1866-1952),
Mauss e Marcellin Boule (1861-1942) não o teriam apoiado nessa empreitada.
Foi necessário então que Rivet buscasse apoio externo para sustentar a sua posição
quando, por exemplo, na reunião do dia 1º de abril de 1919 foi proposto que fossem excluídos
da Société des Américanistes aqueles membros que pertencessem às nações inimigas. A tática
adotada foi ameaçar o seu desligamento da Société, algo que causaria algum estrago pela
dependência que a instituição tinha em relação à Rivet para a manutenção de seu Journal.
Embora o assunto tenha sido retirado de votação, Rivet publicou o dissenso no periódico da
Société e logo foi apoiado por nomes como Nordenskiöld, Seler (fundadores da Société) e
Koch-Grünberg. No entanto, Rivet procurou sustentar ainda mais firmemente suas convicções
internacionalistas, motivo pelo qual procurou escrever a Boas, que já vinha se manifestando
contra a guerra, em busca de colaborações para a publicação que dirigia. De acordo com
Laurière, “depois da guerra, Paul Rivet quis reafirmar o papel da Société des Américanistes
como um locus de diálogo entre americanistas estadunidenses e europeus” (LAURIÈRE, 2010,
p. 230).166
Embora Laurière desconsidere uma primeira carta enviada por Rivet a Boas já em
8 de junho de 1909 (FBP, APS) – em relação à qual não há registro de resposta –, ela tem razão
em afirmar que foi a partir da troca de correspondências iniciadas em 1919 que se selaria uma
importante relação de colaboração entre os dois americanistas. A aproximação de Rivet em
relação a Boas se deu sob o pretexto de uma troca de publicações. Aproveitando-se do fato de
que Boas havia acabado de fundar o International journal of linguistics, Rivet propõe nessas
primeiras cartas a permuta de suas respectivas publicações. Rivet também envia um trabalho
sobre as línguas da família cayubaba, ao mesmo tempo em que solicita que Boas, de tempos
em tempos, enviasse artigos que poderiam ser publicados em francês ou inglês.
O interessante é que essa simples menção a respeito da língua de publicação dos
artigos iniciou uma conversa bastante franca sobre os respectivos posicionamentos políticos
acerca do clima de rivalidades nacionalistas, estabelecendo de vez uma relação de amizade que

Société, que funciona na base do voluntariado e conta com as anuidades dos sócios para funcionar, tem sua sede
numa instituição pública: o Museu do Trocadéro que depende do Museu Nacional de História Natural (MNHM),
recebendo subvenções do Ministério das Colônias e abriga as coleções americanistas [...] guardadas em expositores
num corredor escuro do velho Troca” (CAVIGNAC, 2011, p. 130).
166
“[…] after the war, Paul Rivet wanted to assert the role of the Société des Américanistes as a locus of dialogue
between American and European Americanists”.
157

duraria até, literalmente, o último suspiro de Boas. Este último afirma, então, em carta do dia
23 de agosto de 1919, que

É impossível falar desses assuntos sem falar da situação política geral, e daquilo que,
penso eu, deveria ser a nossa aspiração como cientistas. Por mais de trinta e cinco
anos eu tenho abominado o nacionalismo no sentido em que ele tem dominado o
mundo por mais de um século – um nacionalismo que é meramente a transformação
da velha disputa dinástica por poder. Não há uma nação europeia que esteja livre desse
dispositivo. Todas as políticas dos Estados europeus, como – pobre de mim – a dos
[Estados] Unidos, estão centradas nesta única ideia. Ela é uma forma de pensamento
social em que todas as nações têm tomado parte, e todas na mesma extensão, trazendo
o mundo a um estado de falência moral e econômica. Ao menos que todos nós nos
voltemos para novos e ampliados ideais nós não poderemos salvar o mundo de novos
horrores.167

Em seguida, aponta o dever ético do antropólogo diante da ascensão das ideologias


nacionalistas naquele contexto:

Se há alguma ciência que ensina a estreiteza das aspirações nacionais por dominação
é a antropologia. Nós não vemos os sempre alargados círculos de grupos sociais
começando como tribos primitivas e levando a nações modernas? Nós não vemos
como a essência da vida da humanidade é primeiramente baseada na unidade cultural
do grupo tribal e depois naquela de grupos sociais diversificados que não mais
coincidem com limites geográficos e nacionais; e como nossos sentimentos atuais
ainda estão balançados pela confusão dessas duas tendências?
Eu não acuso aqueles que são devotados aos princípios nacionalistas de serem
criminosos – pois como poderia ser possível marcar repentinamente como um crime
o que tem sido louvado como a mais elevada virtude por milhares de anos –, mas eu
realmente acredito que os seus ideais devem ser superados e eu considero isso nosso
dever como cientistas, fazer a nossa parte nesta batalha de ideais.168

Por fim, esclarece a respeito de suas próprias utopias e demonstra seu profundo
descontentamento com os rumos impostos aos europeus pelos seus governantes:

167
“It is impossible to speak of these matters without speaking of the general political situation, and of what, I
think, should be our aspiration as scientists. For more than thirty-five years, I have abhorred nationalism in the
sense in which it has dominated the world for more than a century – a nationalism that is merely a transformation
of the old dynastic struggle for power. There is no European nation that has been free of this device. All the policies
of European States, as – alas – of the United center in this one idea. It is a form of social thought in which all
nations have participated, and all to the same extent, that has brought the world to a state of moral and economic
bankruptcy. Unless we all turn to new and broader ideals we shall not save the world from further horrors” – carta
de Boas para Rivet, 23 de agosto de 1919, FBP, APS.
168
“If there is any science that teaches the narrowness of national aspirations for domination, it is anthropology.
Do we not see the ever widening circles of social groups, beginning with primitive tribes, and leading up to modern
nations? Do we not see, how the essence of the life of mankind is first based on the cultural unity of the tribal
group, later, on that of the diversified social groups that no longer coincide with geographical and national limits;
and how our present feelings are still swayed by the confusion of these two tendencies?
I do not accuse these who are devoted to nationalistic principles, of being criminal offenders – for how would it
be possible to stamp suddenly as a crime what has been praised as the highest virtue for thousands of years –, but
I do believe that their ideals must be overcome and I consider it our duty as scientists, to do our share in this battle
of ideals” – carta de Boas para Rivet, 23 de agosto de 1919, FBP, APS.
158

Deixe-me esclarecer-me. Eu não argumento pela uniformidade universal. Nada, eu


acredito, poderia ser mais prejudicial ao avanço da humanidade do que aquela
estreiteza de visão que busca impor seus próprios ideais a todo o mundo, como nós
estadunidenses fazemos. O homem vai e deve manter características individuais,
nacionais e sociais, pois cada uma delas pode contribuir com sua parte para o bem
comum. Mas diferenças não deveriam significar desconfiança mútua, ódio e vontade
de dominação e supressão.
Eu não quero ferir seus sentimentos, mas deixe-me dizer que apenas uma coisa é mais
deprimente do que a miopia de seus estadistas, que estão pavimentando o caminho
para horrores futuros, e que não podem ver, devido à bajulação barata da França pela
Inglaterra, que ela está sendo reduzida à posição de um satélite que vive por sua graça.
Aquela uma coisa é o miserável papel desempenhado por nossos representantes nestas
negociações de paz. Eu sinto que eu tenho o direito de falar como eu falo. Meus filhos
serviram no Exército Americano, os filhos de parentes queridos no Exército Francês,
e aqueles de outras relações e amizades queridas no Exército Alemão. Eu sei que todos
eles abominam a guerra. Por quanto tempo nós teremos que lutar as guerras de Luís
XV, de Pedro o Grande e [ilegível]? Eu ouso dizer que o tempo de um acordo entre
França e Alemanha só chegará quando for indiferente a quem a Alsácia pertença.169

É interessante transcrever essa última carta quase que em sua íntegra pelo fato de
que seu teor mostra o quanto a prática científica estava (e continua) permeável aos efeitos
externos das disputas políticas de seu tempo. O que se percebe são reações de determinadas
pessoas, por meio dos instrumentos de que dispõem, a relações de poder mais amplas que
perpassam suas vidas e as atingem em suas práticas cotidianas. Enquanto parte dos intelectuais
se aproveitaram do momento para se aliarem aos Estados nacionais que representavam –
adquirindo desse modo recursos externos para as disputas que travavam no interior de seus
respectivos campos científicos –, Boas e Rivet optaram por construir redes de resistência a esse
tipo de pressão externa em prol de outros ideais de sociedade. Seu ideal civilizacional moderno
pressupunha, portanto, a autonomia da produção científica em relação à política dos Estados
nacionais, ao passo que as nações, enquanto conjunto de realizações culturais específicas,
deveriam, todas, serem respeitadas. É interessante notar que a ideia de uma humanidade

169
“Let me make myself clear. I do not argue for universal uniformity. Nothing, I believe, could be more
detrimental to the advance of mankind than that narrowness of view that seeks to impose its own ideals upon the
whole of mankind, as we Americans do. Man will and shall retain individual, national, and social characters, that
each may contribute his share to the common good. But differences should not mean mutual distrust, hate and
wish for domination and suppression.
I do not wish to hurt your feelings, but let me say, that only one thing is more depressing to me than the
shortsightedness of your Statesmen who are doing their level beat to pave the way for future horrors, and who
cannot see, owing to the cheap flattery bestowed upon France by England, that she has been reduced to the rank
of a satellite who [lives by her grace]. That one thing is the miserable role played by our representatives on this
Peace negotiations. I feel I have a right to speak as I do. My sons served in the American Army, the sons of dear
relatives in the French Army, and those other dear relations and friends in the German Army. I know that all of
them abhorred war. How long are we going to fight the wars of Louis XV, of Peter the Great and of [ilegível]
England? I dare say the time for an understanding between France and Germany will only come when it is
indifferent to whom Alsace belongs” – carta de Boas para Rivet, 23 de agosto de 1919, FBP, APS.
159

caracterizada pelo conjunto de diversos Nationalcharakter, comum à tradição


herderiana/humboldtiana, sustenta claramente o posicionamento ético-político de Boas: “O
homem vai e deve manter características individuais, nacionais e sociais, pois cada uma delas
pode contribuir com sua parte para o bem comum”.
Essa resistência poderia significar, por exemplo, redigir um artigo em alemão num
contexto intelectual que almejava boicotar a produção advinda das potências centrais e seus
respectivos aliados. Essa foi uma condição proposta por Boas para que remetesse um artigo ao
Journal conduzido por Rivet. Em resposta, o antropólogo francês escreve, com data do dia 4 de
setembro de 1919, uma longa carta, “com uma igual sinceridade” (avec une égale sincérité), na
qual demonstra partilhar do antinacionalismo boasiano e reforça o que foi dito acima a respeito
das relações dos intelectuais para com o seu próprio campo: “Eu não sou daqueles que se
deixam desencorajar pela enormidade da tarefa; eu trabalharei portanto pacientemente,
tenazmente, para compartilhar minhas ideias com os meus compatriotas”.170
Posicionar-se não significava, no entanto, agir com imprudência, e Rivet lembrou
a Boas que, naquele momento, quando os ânimos ainda estavam muito acirrados, escrever um
artigo em alemão seria tomado como um ato de provocação de modo a inviabilizar o almejado
restabelecimento da livre circulação de conhecimento científico. Ademais, só o fato de
publicarem juntos no mesmo número, além de Boas, os alemães Koch-Grünberg e Seler, já
seria um importante passo naquele sentido. Boas não só acatou a sugestão de Rivet como tomou
a sua resposta como “o primeiro raio de luz na escuridão das condições internacionais atuais”.171
A partir de então, ao longo da década de 1920, Boas passou a colaborar ativamente
com o restabelecimento da circulação do conhecimento antropológico na Europa, seja pela
intermediação de laços intelectuais ou por meio de apoio financeiro angariado nos EUA. Por
ser assunto já abordado por Laurière e a fim de não tornar cansativo o acompanhamento do
desenrolar dessa conexão intelectual específica, essas ações não serão tomadas aqui em seus
pormenores. Basta apontar que, segundo Laurière, elas não foram suficientes para os fins
almejados por Rivet: “não houve nada semelhante à resposta oficial com a qual Paul Rivet
sonhou e a qual poderia ter indicado publicamente alguma bonança e a renovação da
normalidade das relações” (LAURIÈRE, 2010, p. 233).172 Algo desse tipo só foi possível com

170
“Je ne suis pas de ceux qui se laissent décourager par l’énormité de la tâche; je travaillerai donc patiemment,
tenacement, à faire partager mes idées a mes compatriotes. Mais, il faut se rendre compte que cette ouvre ne
saurait se faire par la violence et en un jour” – carta de Rivet para Boas, 4 de setembro de 1919, FBP, APS.
171
“[...] the first ray of light in the darkness of international conditions at the present times” – carta de Boas para
Rivet, 9 de outubro de 1919, FBP, APS.
172
“[…] there was nothing resembling the official echo that Paul Rivet dreamed of and which would have publicly
indicated some calming of the waters and the renew of normal relations”.
160

a realização do XXI Congresso Internacional de Americanistas, sediado, como vimos, em Haia


e em Gotemburgo, em agosto de 1924. E aqui retomamos o ponto no qual foram mais ou menos
deixadas as relações entre Boas e Nordenskiöld, este último também um importante aliado de
Rivet.
Esse congresso acabou endossando o projeto de internacionalismo científico de
Rivet. De acordo com Laurière, o presidente do congresso deu grande ênfase nas boas-vindas
ao antropólogo francês, o “rebite” (rivet, em inglês) que manteve a Société des Américanistes
unida ao longo daqueles anos (LAURIÈRE, 2010, p. 233). Em foto arranjada por Nordenskiöld
e publicada num jornal de Gotemburgo, Rivet ainda aparecia dando um aperto de mão bastante
simbólico em Karl von den Steinen (LAURIÈRE, 2010, p. 234). Essa teria sido também a
primeira vez em que Boas e Rivet se conheceram pessoalmente, depois de cinco anos de
constante contato epistolar. Tendo ouvido falar que Boas nutria simpatias pelo Socialist Party
dos Estados Unidos, logo estreitou ainda mais sua amizade com o colega estadunidense, pois
também havia sido membro do partido socialista francês, tendo inclusive conhecido o político
socialista Jean Léon Jaurès (1859-1914) pessoalmente. É importante apontar aqui que foi
também neste congresso que Boas conheceu pessoalmente Roquette-Pinto, tendo lhe convidado
em seguida para visitar os EUA.173 Alguns anos depois esse seria o canal por meio do qual Boas
enviaria os seus primeiros alunos para realização de pesquisas de campo no Brasil.
O segundo ponto que favoreceu o estreitamento de laços entre os dois intelectuais
foi o interesse pela linguística ameríndia. Segundo Laurière, após uma missão no Equador, em
1906, Rivet começou a explorar um paradigma de cunho difusionista a fim de propor uma
reclassificação das línguas sul-americanas. Esse método de reconstituição histórico-geográfico
acabaria por mostrar que a linguística poderia ser uma ferramenta eficaz para determinar as
origens dos povos americanos, e logo Rivet procuraria tecer análises comparativas entre as
línguas sul-americanas e as dos povos da Oceania. Ainda de acordo com Laurière,

É necessário entender tudo aquilo que está implicado pelo difusionismo, e não fazer
uma caricatura precipitada disso. Ao contrário das inflexibilidades e da abstração
teórica dos modelos evolucionistas, o difusionismo propôs ancorar suas análises na
história e na realidade objetificável por meio do estudo da distribuição e da
propagação de artefatos, traços culturais ou características linguísticas a fim de
reconstruir a história das sociedades sem escrita. Ele associou o ser humano à sua
cultura e não mais apenas com a sua natureza e raça. (LAURIÈRE, 2010, p. 235)174

173
É o próprio Roquette-Pinto que dá conta desse encontro num artigo publicado em 1953, na coluna que mantinha
no Jornal do Brasil (SANTOS, 2012).
174
“It is necessary to understand all that is implied by diffusionism and not to make a hasty caricature of it. On
the contrary of the rigidities and theoretical abstraction of evolutionist models, diffusionism proposed to anchor
161

Ainda que Boas se opusesse às conclusões às quais chegou Rivet, 175 esse tipo de
abordagem metodológica mais os aproximava entre si do que em relação ao grande contingente
de antropólogos ainda presos nos paradigmas evolucionistas e racistas. Isso explica a constante
colaboração mútua em seus respectivos periódicos (LAURIÈRE, 2010, p. 238).
Mais importante para os fins desta pesquisa, no entanto, é o fato de os dois
intelectuais terem se tornado importantes aliados na luta contra o desaparecimento de línguas
em via de extinção na América do Sul. Rivet, além de ter ele próprio realizado uma série de
pesquisas em quase todo o continente, passando inclusive pelo Brasil, incentivou seus
discípulos do Musée d'Homme de Paris, do qual seria fundador e diretor – a exemplo de Dina
Dreyfuss e Claude Lévi-Strauss – a trabalharem por aqui em colaboração, por exemplo, com o
Museu Nacional da Quinta da Boa Vista e com a Sociedade de Etnografia e Folclore.

analyses in history and objectifiable reality via the study of distribution, the propagation artifacts, cultural traits
or linguistic features in order to reconstruct the history of societies without writing. He associated man with his
culture and no longer solely with his nature and race”.
175
A este respeito as cartas trocadas entre os dois acadêmicos a partir de meados de novembro de 1924 apresentam
um rico material que também não será aqui explorado por ser um assunto que se desviaria de modo indevido do
objeto desta tese. Bastaria notar, seguindo Laurière, que, em primeiro lugar, há uma diferença entre “o linguista
estadunidense que estava interessado na estrutura interna das linguagens e preocupado com o desenvolvimento do
corpus de materiais disponíveis, e o americanista francês, cuja abordagem classificatória e genealógica era baseada
parcialmente em uma busca pelas origens ao longo das linhas do modelo filológico, então advogado na França,
que tentou descobrir a língua pura ou o texto original imaculado pela deterioração que cópias ou contatos com
outras línguas teriam causado” (LAURIÈRE, 2010, p. 236-237) – “[...] the American linguist who was interested
in the internal structure of languages and concerned with developing the corpus of material available, and the
French Americanist whose classificatory and genealogical approach was based partially on a search for origins
along the lines of the philological model then advocated in France, which attempted to rediscover the pure
language or original text unsullied by the deterioration that copies or contacts with other languages had caused”.
Além disso, “cada um dos dois intelectuais abordou a Babel americana diferentemente: embora ambos estivessem
ocupados classificando e ordenando, suas conclusões divergiram totalmente. Paul Rivet quis reduzir a diversidade
a poucas unidades fundadoras, à custa da utilização de um ousado comparativismo, ao passo que Franz Boas
reconheceu essa diversidade e a tomou como um ponto de partida fundamental e característico da paisagem
linguística ‘original’ em que, numa gradual interação, as línguas americanas tomaram elementos emprestados,
variaram, flutuaram e foram transformadas – tudo terminando com uma ‘semelhança familiar’, porque elas
estiveram ou se mantiveram em contato por algum tempo” (LAURIÈRE, 2010, p. 237) – “[...] each of the two
scholars approached the Amerindian Babel differently: although both of them were busy classifying and ordering,
their conclusions diverged totally. Paul Rivet wanted to reduce the diversity to a few founding units, at the cost of
utilizing an overbold comparativism, whereas Franz Boas recognized this diversity and took it as a fundamental
starting point and characteristic of the 'original' linguistic landscape in which, gradually interacting, American
languages borrowed elements, varied, fluctuated, and were transformed – all ending up with a 'family
resemblance' because they were or had been in contact at some time”. Escapou a Laurière apenas colocar esse
conflito em termos de uma tradição epistemológica humboldtiana à qual se filiava Boas e que permite compreender
com maior clareza qual era o ponto fundamental da divisão: a perspectiva indutivista de Boas versus a dedutivista
de Rivet.
162

Boas, por sua vez, planejava desenvolver um projeto semelhante ao seu Handbook
of North American Indians Languages – que havia realizado com o apoio do Bureau of
Anthropology and Etnography do Smithsonian Institution –, mas voltado para a América do
Sul, e para isso desejava contar com o suporte de Rivet: “nós devemos saber quais regiões cujo
trabalho, por causa da extinção das línguas, é mais urgentemente necessário. Eu ficaria muito
grato a você se você pudesse gentilmente me fornecer qualquer informação que você possa ter
a respeito deste ponto”.176 Bem antes disso Rivet também já havia demonstrado interesse num
projeto deste tipo:

Eu também pensei em aproveitar o Congresso [de Americanistas de


Haia/Gotemburgo] para pedir aos delegados da Smithsonian que estudem os meios de
fazer para a América Central e para a América do Sul um “Handbook of American
Indians”, análogo ao “Handbook” de Hodge para a América do Norte. Eu estou
convencido de que uma grande quantidade de cientistas europeus (Nordenskiöld,
Koch-Grünberg, Lehmann, Preuss, Krickenberg, Karsten, eu) aceitariam colaborar
com ele. A gente poderia então fazer um apelo aos sul-americanos: Lehmann-Nitsche,
Outes, Tello, a quem você irá encontrar e levará minhas melhores lembranças. O que
você acha?177

Voltando à proposta feita por Boas, Rivet, que nesse período já havia sido
encarregado da reformulação da seção de antropologia do Musée du Trocadéro – e estava
ansioso em mostrar o resultado a Boas –, responde-lhe prontamente,178 (1º de abril) enviando
uma listagem das línguas que deveriam ser investigadas mais urgentemente na Venezuela,
Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil, e a respeito deste último país
menciona em especial os trabalhos de Rondon e Curt Nimuendaju.
Dois anos depois, Boas retoma o assunto, tendo em vista que agora acreditava poder
contar com apoio financeiro e institucional do Council of Leanerd Societies em conjunto com
os governos dos países latino-americanos:

Eu estou tentando obter fundos para um estudo sistemático das línguas na América
Latina. Eu fui tão longe que o Council of Learned Societies levou o assunto a sério e

176
“We ought to know the regions in which work, on account of the extinctions of the languages, is most urgently
needed. I should be very much indebted to you if you could kindly give me whatever information you may have in
regard to this point” – carta de Boas para Rivet, 18 de março de 1929, FBP, APS.
177
“Je pensais aussi profiter du Congrès pour demander aux délégués de la Smithsonian d'étudier les moyens de
faire pour l'Amérique centrale et por l'Amérique du Sud un 'Handbook of American Indians' analogue au
'Handbook' de Hodge pour l'Amérique du Nord. Je suis convaincu qu'une foule de savants européens
(Nordenskiöld, Koch-Grünberg, Lehmann, Preuss, Krickenberg, Karsten, moi) accepteraient d'y collaborer. On
pourrait faire aussi appel à des sud-américains: Lehmann-Nitsche, Outes, Tello, que vous allez voir et qui vous
apportera mon meilleur souvenir. Qu'en pensez-vous?” – carta de Rivet para Boas, 23 de fevereiro de 1924, FBP,
APS.
178
Carta de Rivet para Boas, 1º de abril de 1929, FBP, APS.
163

parece que será possível avançar nisso, desde que possa ser desenvolvido como um
entendimento cooperativo entre o Council of Learned Societies e os governos e
instituições da América do Sul.179

Em resposta,180 Rivet fala sobre a necessidade de se enviar alguém para a região situada entre
a Bolívia e o Peru. Boas reconhece a urgência da indicação feita pelo amigo francês, mas explica
que o suporte financeiro dessas pesquisas devia envolver instituições ligadas a governos
nacionais latino-americanos, e por esse motivo havia pensado que Rivet pudesse intermediar
algo preferencialmente relacionado à Guiana Francesa.
Na verdade, iniciava-se aí uma prática que caracterizaria de modo geral as relações
mais específicas entre EUA e Brasil no campo da antropologia a partir da década de 1930. Isso
claramente se relaciona ao fato de que a partir desse momento o governo estadunidense
incentivaria esse tipo de cooperação cultural como modo de sedimentar a sua hegemonia na
América Latina, algo que veremos em maiores detalhes na segunda parte desta tese. Criavam-
se condições financeiras e institucionais para que o americanismo estadunidense pudesse enfim
deslanchar, mas, por outro lado, havia o problema da falta de pessoal qualificado para levar
essa tarefa a cabo:

Eu estou fazendo a ousada tentativa de convencer fundações de que isso requererá


anualmente cerca de $100,000 durante alguns anos para obter as informações
necessárias sobre as línguas ameríndias tanto na América do Norte quanto do Sul, e
eu enfatizei que se esse trabalho não for feito agora ele nunca mais o será. Há interesse,
mas eles insistem que eles querem a cooperação de países estrangeiros. Talvez você
possa me ajudar a obter a cooperação de sul-americanos. Aqui, a Guggenheim
Foundation desejaria fornecer um estipêndio para estudantes sul-americanos que
possam querer vir para cá para estudar os métodos adequados do estudo linguístico,
mas eu ando desinformado a respeito de jovens realmente promissores. Então, outro
ponto seria que nós descobríssemos um número de pessoas jovens nas Américas do
Sul e Central que pudessem ser usadas para este propósito. Eu espero fazer os arranjos
ao longo deste ano com Gonzales Casanova do México.181

179
“I am trying to obtain funds for a systematic study of languages in Latin America. I got so far that the Council
of Learned Societies has taken up the matter seriously and it looks as though it would be possible to make headway
with this matter, provided it can be developed as a cooperative understanding between the Council of Learned
Societies and Governments and Institutions of South America” – carta de Boas para Rivet, 18 de fevereiro de 1931,
FBP, APS.
180
Carta de Rivet para Boas, 1º de maio de 1931, FBP, APS.
181
“I have made the bold attempt to convince foundations that it will require about $100,000 annually for a number
of years to obtain the necessary information on American Indian Languages both in North and South America and
I emphasize that unless this work is done now it will never be done. The interest is there but they insist that they
want the cooperation of foreign countries. Perhaps you can help me to obtain cooperation of South Americans.
The Guggenheim Foundation here would be willing to give a stipend to South American students who might want
to come here to study the proper methods of linguistic study, but I am lacking the information in regard to really
promising young men. So another point would be we should know of a number of young people in South and
Central America who could be used for this purpose. I am hoping to make arrangements during the present year
with Gonzales Casanova of Mexico” – carta de Boas para Rivet, 13 de março de 1931.
164

Boas acabaria se distanciando desse modelo de financiamento, como veremos na próxima parte,
tão logo percebesse que ele se imbricaria diretamente com a geopolítica estadunidense,
sobretudo a partir dos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Todavia, por enquanto
essas pareciam boas oportunidades de viabilização da missão salvacionista desses antropólogos
americanistas.
Ainda sobre os laços criados em função do interesse pela linguística americanista,
por meio deles foi criada uma conexão direta com um intelectual brasileiro ainda pouco
conhecido pela história das ciências sociais. No XXIII Congresso Internacional de
Americanistas, realizado em 1930 em Nova York e organizado e presidido dessa vez pelo
próprio Boas, havia sido apontado um comitê para tratar deste assunto, presidido por ele mesmo
e ainda composto por “Devenedetti” – muito provavelmente Boas se referia ao filólogo italiano
Santorre Debenedetti (1878-1948) –, o brasileiro José Oiticica (1882-1957) e Casanova –
provavelmente o linguista Pablo Gonzáles Casanova (1889-1936). Como Debenedetti havia
falecido, convidava Rivet, que aparentemente não pôde participar do congresso novaiorquino,
para ocupar o seu lugar.
Neste ponto aparece uma curta correspondência trocada entre Boas e José Oiticica
– a quem Boas se refere ora como “José Oiticico” ora como “Oiticicia”. 182 Na primeira carta
enviada por Boas a Oiticica (27 de setembro de 1930), o antropólogo da Columbia University
demonstra o seu interesse em desenvolver o projeto a respeito do qual logo trataria com Rivet.
A carta será transcrita quase que em sua íntegra em função de seu significado:

Eu tive uma reunião ontem com o secretário do Council of Learned Societies a respeito
da questão da investigação das línguas indígenas na América Latina. No que diz
respeito ao Brasil, nós chegamos à conclusão de que seria melhor fazer uma proposta
formal de que nós enviaríamos um investigador daqui, desde que o governo brasileiro
indique outro investigador e que os dois possam cooperar. Isso, claro, seria altamente
desejável a fim de haver, tanto quanto possível, uniformidade de método de
transcrição fonética.
Eu gostaria, portanto, de sugerir para você que você escreva para o Brasil fazendo esta
sugestão que, todavia, deve ser apenas provisória até que eu possa movimentar o
Council of Learned Societies, que irá se reunir nos últimos dias de janeiro de 1931.

182
O mineiro José Rodrigues Leite e Oiticica (1882-1957) chegou a estudar direito e medicina, não concluindo
nenhum dos cursos a fim de se dedicar ao magistério (foi professor de português no Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro) e à pesquisa filológica. Oiticica ficou conhecido também por ser um destacado militante anarquista, tendo
sido um dos principais articuladores da Insurreição Anarquista de 1918 e publicado os livros Princípios e fins do
programa comunista-anarquista (1919) e A doutrina anarquista ao alcance de todos (1925). À época da conversa
com Boas, José Oiticica havia sido convidado para lecionar Filologia na Universidade de Hamburgo, na Alemanha,
e mais tarde viria a lecionar também na Universidade do Distrito Federal (FIGUEIRA, 2008).
165

Eu acho que se você pudesse conseguir a concordância do governo brasileiro para


uma proposta deste tipo, eu posso conseguir os fundos para enviar um pesquisador.
Eu próprio preferiria começar com as línguas jês.183

Em resposta, Oiticica escreve o seguinte:

Eu mandarei uma cópia da sua carta para o Sr. Roquette-Pinto, diretor do Museu
Nacional do Rio, e eu sugerirei para ele o que eu acho o melhor a ser feito. Nós não
temos um instituto filológico no Brasil e é muito difícil encontrar um homem certo
para colaborar com o especialista que você pretende mandar para lá. Apenas o coronel
Tenorio de Albuquerque, que fala perfeitamente guarani e cultiva várias línguas
indígenas, se encaixa num trabalho tão importante como esse, mas eu suponho que
ele nunca deixaria o Rio, onde ele ensina matemática e química. O que a filologia sul-
americana precisa para o seu aprimoramento é uma escola onde alguns especialistas
(dos Estados Unidos ou de qualquer outro lugar) ensinem vários estudantes brasileiros
como lidar com as línguas indígenas. Nós precisamos de muitos pesquisadores, de
toda uma legião, para um pesado e amplo trabalho que é imediatamente necessário.184

Quando se tratava, na década de 1930, de realização de pesquisas linguísticas/antropológicas


no Brasil, os projetos estadunidenses acabavam por se deparar com o Museu Nacional. Oiticica
certamente não gozava de prestígio junto ao governo brasileiro em função de sua militância
anarquista, e Roquette-Pinto comandava a única instituição brasileira em condições de fornecer,
à época, a colaboração institucional almejada pelo Council of Leanerd Societies. É interessante
notar também que a ideia de trazer pesquisadores estadunidenses para treinar brasileiros em
pesquisas linguísticas antecede as articulações posteriormente feitas por Heloisa Alberto Torres
nesse sentido.

183
“I had a conference yesterday with the secretary of the Council of Learned Societies in regard to the question
of investigations of the Indian languages in Latin-America. So far as Brazil is concerned we reached the conclusion
that it would be best to make the formal proposal that we should send one investigator from here, provided the
Brazilian Government would appoint another investigator and that the two should cooperate. This, of course,
would be highly desirable in order to have, so far as possible, uniformity of method of phonetic transcription.
I should like, therefore, to suggest to you that you write to Brazil making this suggestion which, however, must be
tentative only until I can get action from the Council of Learned Societies which will meet the last few days of
January 1931.
I think if you could get the agreement of the Brazilian Government to a proposal of this kind, I can get the funds
for one investigator to be sent out. My own preference would be to start with the Ges languages” – carta de Boas
a Oiticica, 27 de setembro de 1930, FBP, APS.
184
“I will send a copy of your letter to Mr. Roquette-Pinto, the director of the National Museum of Rio and I will
suggest him what I think best to be done. We have no philological institute in Brazil and it is very difficult to find
a right man to collaborate with the specialist you intend to send to Brazil. Only the colonel Tenorio de
Albuquerque, who speaks perfect Guarany and cultivate many indian languages is fit to so an important work, but
I suppose he would never leave Rio where he teaches mathematics and chemistry. What the Southamerican
philology needs for its improvement is a school where a few specialists (from United States or anywhere) teach a
lot of brasilian [sic] students how to deal with the indian languages. We need many searchers, a whole legion, for
a heavy and large work is instantly required” – carta de Oiticica para Boas, 27 de outubro de 1930, FBP, APS.
166

Boas ainda voltaria a escrever a Oiticica (1º de abril de 1931), desta vez em função
da morte de Debenedetti. O intuito era consultá-lo a respeito de um substituto para o lugar do
filólogo italiano no comitê para o estudo das línguas sul-americanas, e suas sugestões eram
Rivet, Nordenskiöld e Preuss. Boas ainda afirmou que estava “negociando com fundações aqui
[dos EUA] a respeito de financiar um trabalho deste tipo mas, até agora, não há nada definido
para informar”.185 O plano inicial havia falhado, mas no ano seguinte Boas já procuraria Edgard
Roquette-Pinto para que ele orientasse Jules Henry Blumenson, seu aluno de Columbia, na
realização de pesquisas linguísticas no Brasil.

4.3.3. A ascensão nazista e o antirracismo

Voltemos agora a Paul Rivet. A ascensão nazista causaria um profundo impacto nos
rumos das redes e da produção antropológica a partir da década de 1930. As correspondências
entre Boas e Rivet mostram dois momentos desse processo de mudanças. No primeiro deles, o
esforço intelectual foi redirecionado para a defesa ou a denúncia da eugenia negativa, ou seja,
a esterilização ou o extermínio das “raças” não arianas. Seja por meio da produção de cartas
abertas, congressos186 ou publicações, Rivet e Boas se articularam no intuito de fazer frente aos
argumentos dos “cientistas” nazistas.
Outra forma de resistência foi a organização de redes de apoio a intelectuais
exilados, que vieram a fundar ou participar da criação de uma série de instituições científicas e
educacionais nas Américas como forma alternativa de sobrevivência nos anos que antecederam
a Segunda Guerra Mundial até o final desse conflito. O Musée de l'Homme foi especialmente
perseguido por conta do posicionamento político à esquerda de seus membros e em função de
suas origens judaicas (CAVIGNAC, 2011).
Em carta do dia 26 de junho de 1933 (FBP, APS), Boas informa que já iriam ser
acolhidos cerca de quinze cientistas sociais na New School of Social Research – dentre eles
seriam empregados, por exemplo, Claude Lévi-Strauss, que se tornou secretário-geral do
Centre d'Études et d'Informations pour les Relations Avec l'Amérique Centrale et l'Amérique
du Sud da École Libre des Hautes Études, e Alfred Métraux –, quatro na própria Columbia

185
“[…] negotiating with Foundations here in regard to financing work of this kind but so far there is nothing
definite to report” – carta de Boas para Oiticica, 1º de abril de 1931, FBP, APS.
186
Como o que foi organizado por Rivet e pelo Groupement d'Étude et d'Éducation, em que se planejava derrubar
sistematicamente as teses pseudo-científicas nazistas. Christine Laurière (2010) mostra que o resultado desse
evento foi, na verdade, inócuo, uma vez que se transformou mais numa disputa entre crenças ideológicas do que
entre propostas científicas.
167

University e, provavelmente, mais vinte na University of Chicago, além de outras universidades


que “estavam se movendo na mesma direção”.187 No entanto, o mais importante seria oferecer
bolsas a jovens pesquisadores em “posição mais desesperadora do que daqueles mais
velhos”.188
O próprio Rivet ficou exilado em Bogotá, Colômbia, como refugiado em função do
governo de Vichy.189 Além de pedir ajuda ao velho amigo pelo fato de que sua biblioteca havia
sido sequestrada pelos alemães, Rivet escreveu com entusiasmo sobre os projetos que vinha
desenvolvendo na Colômbia: fundou um “Instituto de Etnologia”, havia feito amizade com o
presidente Eduardo Santos e estava com esperança “de realizar uma grande obra” (“de faire une
grand ouvre”), como, por exemplo, dirigir um importante centro de pesquisa do país, ainda que
o seu principal interesse fosse estudar as línguas que à época corriam risco de extinção. Lá Rivet
também conseguiu se ligar a promissores pesquisadores locais, como Manuel José Casas
Manrique (1892-1973), Sérgio Eliás Ortiz (1894-1978) e Padre Marcelino de Castellvé, aos
quais se juntariam Henry Lehmann (1905-1991) e Georgette Soustelle (1909-1999), franceses
para quem aproveita para pedir uma possível bolsa da Rockefeller Foundation por intermédio
de Boas. Em resposta ao pedido de ajuda de Rivet, Boas sugere que ele entrasse em contato
com Henry Allen Moe (que foi uma figura central na rede antropológicas interamericanista da
qual tratarei na próxima parte desta tese), a quem considerava ser “bastante independente da
organização governamental que financia os seus planos”.190
Rivet ainda se encontraria uma vez mais com Boas. Em um dos “thursdays
luncheons” (almoços das quintas-feiras) que Boas fazia questão de manter com seus alunos na
Columbia University, Rivet, de passagem por Nova York em 1942, pôde rever o velho amigo
e conversar sobre seus projetos comuns – um jovem ainda pouco conhecido também presente
nessa reunião informal foi Lévi-Strauss. Infelizmente essa seria a última conversa entre os dois,
pois após defender ardentemente os princípios antirracistas que deveriam nortear a prática dos

187
Carta de Boas para Rivet, 26 de junho de 1933, FBP, APS.
188
Carta de Boas para Rivet, 26 de junho de 1933, FBP, APS.
189
Carta de Rivet para Boas, 14 de agosto de 1941, FBP, APS. Segundo Julie Cavignac, Rivet, “socialista
convencido, é nomeado presidente do Comitê de vigilância dos intelectuais antifascistas, compõe o grupo de
resistência conhecido como réseau du Musée de l'Homme. Próximo do General de Gaulle, foi exilado durante a
Segunda Guerra Mundial na Colômbia e no México onde será designado como adido cultural para toda América
Latina do Comitê Francês de Libertação Nacional (CFLN), notadamente no México e na Colômbia onde ele
impulsionará novas pesquisas, auxiliando na implementação dos institutos e museus de etnologia. No seu retorno
à França em 1944, retoma a carreira política e a luta contra o racismo que ocupa o velho socialista idealista. Este
grande animador da pesquisa acadêmica na França liberta organiza o 47º Congresso dos Americanistas e multiplica
suas intervenções em nível internacional, sendo um ardente defensor do internacionalismo científico e político”
(CAVIGNAC, 2011, p. 133).
190
“[…] he himself is quite independent of the governmental organization which finances his plans” – carta de
Boas para Rivet, 25 de agosto de 1941, FBP, APS.
168

antropólogos, sobretudo em tempos tão tenebrosos, Boas daria o seu último suspiro, atendo-se
até o fim de sua vida aos valores pelos quais tanto lutou (LAURIÈRE, 2010).

4.3.4. Desentendimentos teóricos

Mas não foi só apenas com Rivet que Boas se correspondeu na França. Com relação
a Lévy-Bruhl é interessante mencionar o conteúdo das poucas cartas que trocou com Boas em
função das divergências de caráter teórico que, mais uma vez, expressam os limites entre a
antropologia cultural boasiana e a etnologia francesa.
Lévy-Bruhl estudou filosofia na École Normal Supérieure, onde se tornou amigo
de J. Jaurés e passou a compartilhar de seus ideais socialistas. Após defender sua tese em
filosofia, em 1884, Lévy-Bruhl foi nomeado para a cadeira de história da filosofia moderna na
Sorbonne em 1904. A partir dessa época passou a empreender investigações em filosofia
sociológica de inspiração comtiana e durkheimiana (La morale et la science des moeurs, 1910),
e, posteriormente, graças ao progressivo sucesso da psicologia na academia francesa,
desenvolveu os seus primeiros estudos sobre as características da “mentalidade primitiva”, para
os quais utilizou dados etnográficos recolhidos por outros estudiosos – Les fonctions mentales
dans les sociétés inférieures, 1910, La mentalité primitive, 1922, L'ame primitive, 1927, Le
surnaturel et la nature dans la mentalité primitive, 1931, Mythologie primitive, 1935,
L'expérience mystique et les symboles chez les primitifs, 1938 (GAILLARD, 2004, p. 88-89).
Nas poucas cartas que trocaram, Boas e Lévy-Bruhl expressaram uma mútua
colaboração, não obstante seja também explicitada uma clara discordância teórica entre os dois.
Em carta do dia 6 de maio de 1927 (FBP, APS), por exemplo, Boas agradece por ter recebido
de Lévy-Bruhl o seu livro L'ame primitive, e em retribuição lhe enviava um artigo que ele
próprio havia escrito sobre o conceito de imortalidade entre os povos primitivos, atestando
também entre ambos uma troca de publicações que já verificamos ser corriqueira no interior
dessa rede transnacional de americanistas. Lévy-Bruhl também já havia sido acionado antes,
quando Boas se esforçava em restabelecer o fluxo de publicações antropológicas na Europa
pós-Primeira Guerra.191 Uma outra forma de colaboração eram os títulos honoríficos: em carta
de 29 de janeiro de 1930 (FBP, APS), Boas agradece Lévy-Bruhl por ter sido eleito membro
honorário do Institut Fraçais d'Anthropologie.

191
Carta de Rivet para Boas, 26 de maio de 1925, FBP, APS.
169

O desentendimento teórico-metodológico entre os dois, por sua vez, aparece em


duas cartas. A primeira é a que data de 18 de junho de 1929, em que Lévy-Bruhl trata de um
artigo que havia recebido de Boas a seu respeito: “Eu sei que você tem objeções a respeito do
meu método e hipótese geral, e eu lamento por isso. Mas, embora eu sinta com muita força o
que você está dizendo, eu também sinto que eu não posso me render e, assim como vários
autores, eu não posso deixar de pensar que eu não estou assim tão longe da verdade. Mas, de
todo modo, é uma honra ser criticado por você”.192 De sua parte, Boas teceu alguns comentários
críticos a respeito de La mythologie primitive em carta do dia 28 de março de 1935 (FBP, APS),
embora afirmasse que havia lido o livro com um grande interesse e que concordava com a
divisão entre “era mitológica” e “era moderna”, bem como a respeito das suas colocações sobre
as relações entre mitologia e folclore. O que se percebe, no entanto, é que Boas pretende
reafirmar a precedência do método indutivo sobre o dedutivo. Em primeiro lugar, Boas escreve
que “sua experiência com o material americano” não lhe deixava concordar com a afirmação
de Lévy-Bruhl segundo a qual o mito precederia o ritual. Outro ponto, também pautado nas
evidências particulares colhidas na América do Norte, diz respeito às relações entre mito e
literatura, por um lado, e entre rito e drama, por outro, com a qual também não concordava.
Esse clima de certa oposição também se estendia aos discípulos de Boas. Embora
tenha encontrado satisfação em conhecer o grupo de jovens pesquisadores do Museu do
Trocadéro, Melville Herskovitz conta que havia visto Lévy-Bruhl pessoalmente outro dia, e
este o amolava se queixando de que “é só nos Estados Unidos e Inglaterra que estas teorias não
são aceitas – ‘Isto, suponho’, ele disse, ‘é porque vocês têm dado importância demais para o
trabalho de campo!”.193

4.3.5. Uma pequena nova geração de americanistas franceses

Rivet, Mauss e Lévy-Bruhl foram responsáveis pela formação de jovens intelectuais


que consolidariam a “tradição etnológica francesa”.194 Além de fundarem, como vimos, o

192
“I know that you object to my method and general thesis, and I am sorry for it. But, though I feel too strength
of what you are saying, I feel also I am unable to surrender, and, like so many authors, I cannot help thinking that
I am not so very far for the truth. But, anyhow, it is an honor to be criticized by you” – carta de Lévy-Bruhl para
Boas, 18 de junho de 1929, FBP, APS.
193
“[…] it is only in the United States and England that these theories are not accepted – 'That, I suppose', he
said, 'is because you are given so much to field work'!” -- Carta de Melville J. Herskovits para Boas, 28 de abril
de 1938, FBP, APS.
194
Ainda que a centralização do poder nesse grupo também tenha acarretado efeitos perversos. Gaillard lembra,
por exemplo, que os projetos de van Gennep, voltados para o Institute Ethnographique Internacional de Paris,
para Revue d'Ethnographie et de sociologie e para um sonhado Musée des civilizations, numa perspectiva mais
170

Institut d'Ethnologie em 1925, esses três antropólogos criaram ainda o revolucionário Musée de
l'Homme, que abriu suas portas em 1938. A institucionalização da antropologia francesa na
primeira metade do século XX foi, portanto, de acordo com Cavignac,

executada sob as diretrizes dos professores Marcel Mauss, Paul Rivet e Lucien Lévy-
Bruhl que compartilhavam uma ideologia ligada a um socialismo humanista
preocupado em educar as massas, promover o progresso, incentivar a amizade entre
as nações e eliminar o racismo. Ao mesmo tempo, todos eram convencidos da
importância da pesquisa empírica e uma grande parte desses estudos tinha como
centro de interesse as técnicas e a cultura material, testemunhos da diversidade das
sociedades humanas: o museu moderno que ia ser inaugurado em 1937 foi pensado
como sendo a vitrine da humanidade e não mais um museu colonial. (CAVIGNAC,
2011, p. 121)

Além dessa importante dimensão política, o Musée de l'Homme ainda se


distinguiria pela forma da narrativa museográfica por meio da qual expressaria esses ideais
humanísticos: não se tratava mais de apresentar os diversos povos humanos numa
narrativa/descrição de caráter hierárquico que culminava, sempre, na posição de superioridade
das nações do Ocidente. Ainda aqui é possível perceber a presença proeminente de Boas, pois,
segundo Rivet, “graças a ele eu pude imaginar o que um verdadeiro Museu da Humanidade
deveria ser, isto é, um museu panorâmico onde o visitante poderia encontrar o retrato completo
das raças, civilizações e línguas do mundo. Eu devo a Boas ter podido trazer o Musée de
l'Homme à vida depois de vinte anos de esforços” (apud LAURIÈRE, 2010, p. 225).195
Ainda que aqui seja possível identificar uma série de afinidades ideológicas entre
esse setor mais progressista da antropologia francesa e a frente boasiana, Fernanda Peixoto
identifica, no entanto, um corte geracional entre os fundadores do Institute d'Ethnologie e seus
discípulos imediatos que tornou estes últimos ainda mais próximos da perspectiva
antropológica anglo-saxã. É importante notar essa sutil quebra pois foi ela que teria orientado
o incremento das pesquisas etnológicas no Brasil por franceses depois do próprio Rivet. De
acordo com Peixoto, esse

segundo momento, que tem início em finais dos anos 20 e começo da década de 30,
está marcado pela entrada em cena dos especialistas, formados nas faculdades da
época, que divulgam os resultados de suas primeiras investigações. Os viajantes,
grandes responsáveis até então pelas informações sobre as Américas, cedem lugar aos
“novos americanistas”: Alfred Métraux, que em 1926 estréia na publicação com um

folclorística, entraram todos em colapso em função do predomínio do Institut d'Ethnologie (GAILLARD, 2004, p.
87).
195
“[...] Thanks to him, I was able to imagine what a real Museum of Mankind should be, that is, a panoramic
museum where the visitor would find the full portrait of races, civilizations and languages in the world. I owe it to
Boas to have been able to bring the Musée de l'Homme into existence after twenty years of effort”.
171

artigo sobre as migrações históricas dos Tupi-Guarani; Jean Vellard, que assina em
1934 o primeiro de uma série de artigos sobre os Guayaqui; Jacques Soustelle, que
divulga suas pesquisas com as populações mexicanas a partir de 1935; Lévi-Strauss,
autor de um longo artigo sobre os Bororo, em 1936. (PEIXOTO, 1998, p. 85-86)

Tratava-se de um grupo de etnólogos que, conforme confessara o próprio Lévi-


Strauss, “estava conquistado naquele momento por uma etnologia de inspiração anglo-saxã”
(apud PEIXOTO, 1998, p. 97). Cavignac, por sua vez, escreve o seguinte a respeito deste grupo
de pesquisadores mais jovens: “sensíveis à necessidade de realizar pesquisa de campo, os
administradores do Institut d’Ethnologie foram responsáveis pela formação intelectual e pelo
destino dos primeiros etnógrafos que iniciaram suas expedições nos anos 1930: entre os
discípulos, encontramos poucos americanistas e, entre esses, uma minoria escolherá o Brasil
como campo de investigação” (CAVIGNAC, 2011, p. 126). No entanto, é preciso notar que há
quem veja mais continuidades do que quebras de paradigmas entre essas duas gerações, a
exemplo de Alice Conklin, para quem

Os estudantes de doutorado de Mauss se tornaram a infantaria desbravadora da


etnologia, testando empiricamente no campo certas constantes antropológicas que
Mauss formulara para compreender os diferentes modos de vida dos povos
“primitivos”, e trabalhando colaborativamente como um grupo para sintetizar seus
resultados a fim de fundar uma genuinamente nova escola “maussiana”. Ambos
socialistas ativos, Mauss e Rivet nutriram um forte senso de solidariedade em sua
jovem comunidade, bem como um comprometimento profundo com o antirracismo e
o pluralismo cultural: um humanismo vivo e uma abertura para o mundo, numa época
de intensificação do racismo, do individualismo e crescimento do autoritarismo de
direita e de esquerda. Muitos destes estudantes trabalharam ao longo da década de
1930 no Musée de l’Homme tentando modernizá-lo e trazer essa mensagem de
tolerância para um público mais amplo por meio de suas exibições. (CONKLIN, 2013,
p. 3)196

De todo modo, embora a necessidade de apoio governamental tenha direcionado as


pesquisas dos antropólogos predominantemente para as colônias francesas (CAVIGNAC,
2011), fazendo do “africanismo” o principal objeto da etnologia francesa de então (PEIXOTO,
1998), a modernidade utópica que uniu Boas a Rivet em torno de um ideal científico
internacionalista e antirracista – e que, na França, gozava de especial prestígio num momento

196
“Mauss’s doctoral students became ethnology’s pioneering foot soldiers, testing empirically in the field certain
anthropological constants that Mauss had formulated for understanding the different lifeways of 'primitive'
peoples, and working collaboratively as a group to synthesize their results in order to found a genuinely new
'Maussian' school. Active Socialists both, Mauss and Rivet fostered a strong sense of solidarity in their young
community as well as a deep commitment to antiracism and cultural pluralism: a lived humanism and openness
to the world, in an age of intensifying racism, individualism, and rise of authoritarianism on the Right and the
Left. Many of these students worked throughout the 1930s in the Musée de l’Homme trying to modernize it, and to
bring this message of tolerance to the wider public through their exhibits”.
172

em que os socialistas haviam conquistado importantes postos no governo –, somado aos grandes
esforços que visavam constituir a França enquanto importante núcleo americanista – expresso
em sua prestigiosa Société des Américanistes e em sua igualmente importante publicação, o
“Journal” – acabou, portanto, colocando o Brasil nos rumos das ações internacionais desse
grupo de professores progressistas.
É nesse sentido que devemos compreender a “Missão Francesa” que, em 1934,
contribuiu com fundação da Universidade de São Paulo, as duas expedições de Lévi-Strauss
(1936 e 1938) e, de modo menos planejado, as pesquisas desenvolvidas na Sociedade de
Etnografia e Folclore do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo a partir dos cursos
de Dina Lévi-Strauss.197
Esses poucos americanistas que escolheram o Brasil como campo de investigação
se tornaram, no entanto, nomes centrais na história das ciências sociais, e dentre eles será dado
destaque a Claude Lévi-Strauss e a Alfred Métraux. O período formativo na França, no qual se
embeberam de valores internacionalistas e antirracistas, somados às relações transnacionais às
quais foram lançados, sem dúvida contribuíram enormemente tanto para a renovação
paradigmática proposta por Lévi-Strauss quanto para a atuação de Métraux à frente de
importantes programas da UNESCO voltados para a superação do racismo e do
desenvolvimento latino-americano. É interessante notarmos que ambos, Lévi-Strauss e
Métraux, se corresponderam com Boas, ainda numa posição claramente subalterna.
Nascido em Bruxelas, Claude Lévi-Strauss (1908-2009) havia recebido uma
agrégration em filosofia198 e, junto a outros agrégés, foi indicado por Celestin Bouglé (1870-
1940) para compor o grupo de jovens professores franceses que contribuiriam para a fundação
da Universidade de São Paulo. Antes de partir para cá, Lévi-Strauss frequentou as aulas do
Institut d'Ethnologie e, uma vez aqui, realizou uma série de expedições de caráter etnográfico.
Lévi-Strauss retornou para a França em 1940, para colaborar na resistência contra a investida
armada nazista, até que se viu forçado ao exílio e partiu para os EUA, onde conseguiu um posto
de professor na Free School of Higher Studies da New School for Social Research de Nova
York. De acordo com Cavignac, “além dos resultados alcançados pelo ‘teórico das estruturas’
e apesar dos seus detratores que reclamam da sua breve estada em campo, a presença de C.

197
Após separ-se de Claude Lévi-Strauss, a etnóloga retomou o seu nome de solteira, isto é, Dina Dreyfuss.
Retornarei a estes assuntos na terceira parte desta tese. A este respeito, cf. VALENTINI, 2010.
198
Trata-se de um concurso realizado na França para que graduados possam lecionar no ensino secundário.
173

Lévi-Strauss no Brasil e seu exílio na América do Norte possibilitaram a experimentação de


uma fecunda interlocução transnacional” (CAVIGNAC, 2011, p. 122).199
Até o final da guerra em 1945, no entanto, Lévi-Strauss permanecia, numa visão
otimista, como um elemento de segunda grandeza dessa rede transnacional de americanistas.
As poucas correspondências mantidas com Boas dão uma excelente medida de seu
posicionamento inicial. Essas cartas foram trocadas já nos últimos meses de vida de Boas, e
Lévi-Strauss, já a salvo da perseguição nazista, batalhava agora para garantir a segurança de
outros colegas, assim como Alfred Métraux (MATTHEY, 1998). A primeira carta escrita pelo
antropólogo francês data de 26 de agosto de 1941 (FBP, APS), dois meses depois de ele ter
chegado aos Estados Unidos e de ter sido apresentado ao próprio Boas por Ruth Benedict. O
assunto era um pedido de ajuda para Henry Lehmann,200 que estava indo trabalhar com Rivet
na América do Sul e, embora estivesse com os vistos regulares, foi detido na Ilha Ellis201 pelo
serviço de imigração estadunidense sob suspeita de desejar ficar permanentemente no país.
Lévi-Strauss, que já havia conversado com Rivet a este respeito, pedia, por sugestão do
advogado de Lehmann, que Boas escrevesse uma carta às autoridades competentes
esclarecendo a situação.
A resposta de Boas a Lévi-Strauss não foi arquivada na coleção utilizada nesta tese,
mas o antropólogo francês dá conta de sua existência ao agradecer o professor teuto-
estadunidense por ter escrito o ofício solicitado, que havia sido ademais de grande valia. Essa
mesma correspondência é interessante por evidenciar o papel ainda marginal de Lévi-Strauss
no meio americanista, uma vez que foi necessário esclarecer a Boas que ele não era uma
“dama”.202
No ano seguinte, Lévi-Strauss volta a escrever a Boas, agora preocupado com o
próprio Rivet. Lévi-Strauss tinha fortes razões para acreditar que Rivet estava correndo perigo
na Colômbia e gostaria de conversar pessoalmente com Boas a respeito: “Eu lembro que você

199
Fernanda Peixoto (1998) e Anne-Christine Taylor (2001) também chamam a atenção para a importância da
passagem de Lévi-Strauss pelo Brasil para a sua formação.
200
Ao qual já havia se referido Paul Rivet em carta enviada a Boas da Colômbia e aqui já mencionada (carta de
Rivet para Boas, 14 de agosto de 1941, FBP, APS).
201
Ponto de passagem obrigatório dos imigrantes europeus que chegavam aos EUA por meio de navios a vapor.
202
“Eu apenas gostaria de acrescentar umas poucas palavras a fim de avisá-lo de que eu não sou uma dama; eu
estive com você por um tempo tão curto que eu não me admiro se você não se lembrar de mim: eu sou o antropólogo
antes professor da Universidade de São Paulo, e agora da New School for Social Research, que foi apresentado
para você na Columbia University, dois meses atrás, pela Dra. Ruth Benedict” (“I just want to add a few words in
order to let you know I am not a lady; I have seen you for a so short time that I do not wonder if you do not
remember me: I am the anthropologist formerly professor at the University of São Paulo, and now at the New
School for Social Research, who was introduced to you at Columbia University, two months ago, by Dr. Ruth
Benedict”) – carta de Lévi-Strauss para Franz Boas, 31 de agosto de 1941, FBP, APS.
174

me disse, quando eu cheguei aqui da primeira vez, que a primeira pessoa com cuja posição você
se sentia preocupado depois da queda da França foi o Dr. Paul Rivet. E eu sei que ninguém
mais que você poderia me dar um melhor conselho sobre o que poderia ser tentado para ajudá-
lo”.203 De fato, Rivet foi listado pela Rockefeller Foundation como um dos intelectuais ilustres
europeus que mais corriam risco de vida, ao lado de Henri Bergson, Georges Duhamel, Marcel
Mauss e Jules Romains (LAURIÈRE, 2010, p. 245).
Na última carta enviada por Lévi-Strauss a Boas, o remetente se queixa da
dificuldade em encontrar algo para Rivet, trazendo interessantes indicações sobre o contexto
das relações culturais internacionais estadunidenses durante a Segunda Guerra Mundial. Lévi-
Strauss escreve o seguinte:

Eu almocei ontem com o Dr. Max Ascoli, e nós falamos a respeito do Dr. Paul Rivet.
Eu receio que nós não podemos esperar muito do Office of the Coordinator of Inter-
American Affairs. Dr. Ascoli me contou que eles estão cada vez menos interessados
no lado cultural das relações com a América Latina, uma vez que eles se engajaram
quase exclusivamente no serviço social e outros tipos de assistência prática. Por outro
lado, Dr. Ascoli me deu a entender que ele mesmo é constantemente desencorajado
em suas tentativas de utilizar os refugiados europeus – principalmente os franceses e
espanhóis – pelo Office of the Coordinator. Há, em Washington, um sentimento muito
forte contra estrangeiros e, mesmo para o trabalho conectado à América do Sul – onde
os franceses poderiam se mostrar tão úteis –, eles não tencionam, por enquanto,
empregar pessoas do tipo do Dr. Rivet.204

A sugestão para que Lévi-Strauss procurasse algo em Washington para Rivet deve
ter sido feita pelo próprio Boas na conversa particular solicitada na carta anterior. Mas o que
vemos aqui é já uma indicação de que, durante a Segunda Guerra Mundial, o controle dos rumos
da pesquisa antropológica estadunidense havia abruptamente mudado de mãos e de propósito.
Na única carta em que consta uma resposta de Boas a Lévi-Strauss, escrita em 9 de abril de
1942 (FBP, APS), ele ainda envidava esforços para tentar ajudar o velho amigo francês: dessa
vez havia escrito para Frank Aydelotte, do Institute for Advanced Study de Princeton e também
ligado à Guggenheim Foundation – mas, aparentemente, essa foi mais uma tentativa frustrada,

203
“I remember that you told me, when I first arrived here, that the first person with whose position you felt
concerned after the fall of France was Dr. Paul Rivet. And I know that nobody else than you could give a better
advice of what could be attempted to help him” – carta Lévi-Strauss para Boas, 29 de março de 1942, FBP, APS.
204
“I had lunch yesterday with Dr. Max Ascoli, and we talked about Dr. Paul Rivet. I am afraid that we cannot
hope very much from the Office of the Coordinator of Inter-American Affairs. Dr. Ascoli told me that they are less
and less interested in the cultural side of the relations with Latin America, as they engage themselves almost
exclusively in social service and other kinds of practical assistance. On the other hand, Dr. Ascoli gave me to
understand that he is himself constantly discouraged in his attempts to have the European refugees – mostly the
French and the Spanish – utilized by the Office of the Coordinator. There is, in Washington, a very strong feeling
against foreigners, and even for the work connected with South America – where Frenchmen could prove so useful
– they do not contemplate for the time being to employ people of the type of Dr. Rivet” – carta de Lévi-Strauss
para Franz Boas, 5 de abril de 1942, FBP, APS.
175

e Rivet, ainda que tenha visitado os EUA no mesmo ano (quando presenciou o falecimento de
Boas), continuou na Bolívia até o término do conflito mundial. Como veremos na próxima
parte, a rede interamericanista, que deu lugar ao americanismo transnacional cuja
configuração estamos acompanhando nestes capítulos, possuía critérios bastantes restritivos em
seus circuitos de circulação, e eles, como se vê, não incluíam também estrangeiros,
especialmente os socialistas.
Alfred Métraux (1902-1963), por sua vez, nasceu em Lausanne, Suíça, passou a
infância na Argentina, acompanhando seu pai (que era médico), a adolescência na Suíça e os
anos universitários em Paris. Em 1928 defendeu sua tese sobre La culture matérielle des Tupi-
Guarani no Institut d'Ethnologie, sob orientação de Marcel Mauss, e depois seguiu para a
Suécia a fim de estudar museologia com Erland Nordenskiöld no Museu de Gotemburgo. De
volta à Argentina, Métraux fundou o museu e o instituto de etnologia da Universidade de
Tucumán, que dirigiu até 1934. Nesse mesmo ano ele partiu para a missão franco-belga na Ilha
de Páscoa (Easter Island) e, entre 1936 e 1938, entrou para os quadros do Museu de Honolulu,
dando aulas nas universidades de Berkeley, CA, e Columbia. Em 1939 trabalhou como
professor visitante da Yale University, quando partiu para novas pesquisas de campo na Bolívia
e na Argentina – foi no meio dessa viagem que Métraux passou pelo Museu Nacional da Quinta
da Boa Vista, tendo tomado contato com Heloisa Alberto Torres, Luiz de Castro Faria e os
alunos de Boas e Benedict que estavam realizando pesquisas no Brasil: Buell Quain, William
Lipkind e Charles Wagley (CORRÊA e MELLO, 2008). Antes de iniciar a sua carreira na
UNESCO a partir de 1946, Métraux ainda se tornaria, a partir de 1941, um dos principais
responsáveis, ao lado de Julian Steward, pela produção do Handbook of South American
Indians.205
A correspondência entre Boas e Métraux não é muito mais extensa do que o
conjunto de cartas trocadas com Lévi-Strauss. O diálogo entre os dois começa um pouco mais
cedo, em 1933, certamente pelo fato de que Métraux já ocupava, à época, o posto de diretor de
um museu, algo que, como temos visto, era percebido como um importante recurso relacional
na rede de americanistas. Isso, somado ao fato de Boas e Rivet serem velhos amigos, talvez
tenha feito com que Boas confiasse mais na orientação de Métraux para os trabalhos que Jules
Henry Blumensohn vinha desenvolvendo na América do Sul do que nos brasileiros do Museu
Nacional da Quinta da Boa Vista, com quem pouco se comunicou nesse mesmo período.

205
Essas informações biográficas foram extraídas de GAILLARD, 2004, p. 177.
176

A primeira carta foi enviada por Métraux, de Tucuman, em 11 de agosto de 1932


(FBP, APS). Tratava-se do envio de um artigo produzido com base no material obtido entre os
uru-chipayas nas terras altas da Bolívia e que Métraux gostaria de ver publicado em uma revista
científica estadunidense. Boas respondeu a essa carta apenas no dia 3 de outubro de 1932, não
sabendo onde colocar o artigo mas enviando o trabalho a Robert Lowie, então editor do
American Anthropologist. Os laços que viriam a ser estabelecidos entre Métraux, Lowie e
Nimuendaju tiveram reconhecida importância para o desenvolvimento posterior dos estudos
americanistas.
Em seguida, Boas indaga a Métraux a respeito de seu grau de confiança em relação
a “Madame Dijour”, que pretendia realizar pesquisas de campo na América do Sul. Métraux
escreve francamente que não confiava em sua capacidade, mas, de qualquer forma, expressa
algo que já havia ficado claro para os americanistas naquele momento: urgia estudar as línguas
e culturas dos índios sul-americanos antes que se extinguissem:

Seria urgente que você enviasse alguém competente para produzir as coleções e
estudar a sociologia das últimas tribos seminômades do Chaco. A varíola os dizimará
este ano, e os bolivianos, junto com os argentinos e os paraguaios, massacrarão o
resto. É unicamente no Chaco que há a esperança de encontrar entre a mitologia sul-
americana e a mitologia norte-americana as analogias que Ehrenreich apresentou.206

Em carta enviada de Honolulu, Havaí, Métraux aproveita para agradecer a


hospitalidade com que havia sido recebido por Boas, um ano antes, em Nova York. Essa é
também uma carta interessante pois nela Métraux já expressa a sua preferência pela América
do Sul e sua admiração pela tradição metodológica estadunidense, motivo pelo qual convém
transcrever aqui um longo trecho de sua carta:

Eu recebi recentemente uma carta do Dr. [Jules] Henry que parece um tanto satisfeito
com o seu trabalho e pensa que muito precisa ser feito no Chaco. Eu estou feliz que
ele acatou minha sugestão de ir para o Chaco e estou certo de que ele encontrará lá
um campo inesgotável. Eu estou tão convencido disso que eu mesmo decidi fazer o
possível para voltar para a América do Sul. A Polinésia foi para mim uma experiência
interessante, eu aprendi muito aqui do ponto de vista metodológico. O contraste entre
a primeira área, tão pouco estudada, e esta outra que já foi quase completamente
trabalhada está sendo muito sugestivo para mim. Eu tenho me habituado melhor à
abordagem da antropologia estadunidense e esta é uma das razões porque eu desejo

206
“Il serait urgent que vous envoyez quelqu'un de compétent pour faire des collections, et étudier la sociologie
des dernières tribus semi-nomades du Chaco. La petite vérole les décime cette anée, et les Boliviens, de compagnie
avec les Argentins et les Paraguayens, massacreront le reste. C'est uniquement dans le Chaco qu'il y a de l'espoir
de trouver entre la mythologie sudaméricaine et la mythologie nortaméricaine, les analogies qu'Ehrenreich
pressentait” – carta de Métraux para Boas, 8 de agosto de 1933, FBP, APS.
177

tanto voltar para a América do Sul. Eu sei bem que se os métodos precisos de sua
escola forem aplicados sistematicamente lá uma rica colheita de novos fatos seriam
obtidos em pouco tempo. A América do Sul é a última tierra incognita da antropologia
e infelizmente os especialistas interessados naquela parte do mundo são poucos. Aqui
na Polinésia é o contrário, e eu não vejo o sentido de novas colaborações [aqui] quando
o meu livro sobre a Ilha de Páscoa estiver terminado.207

De fato, Métraux se afasta em grande medida da “tradição intelectualista” francesa.


Na verdade, seria injustiça rotular os antropólogos franceses dessa forma. Embora sabidamente
“estudiosos de gabinete”, Rivet, Mauss e Lévy-Bruhl reconheciam a importância do estudo in
situ e estavam a par da produção anglo-saxã (CAVIGNAC, 2011, p. 123-124), sobretudo graças
ao profícuo diálogo estabelecido entre Boas e Rivet. Mas tratava-se de uma postura muito mais
dedutiva, graças à influência durkheimiana, do que do empirismo boasiano.
Métraux, no entanto, já afirmava peremptoriamente, em 1925, que

no hay método en etnografía; fuera de ciertos principios de prudencia y de


imparcialidad, la libertad del investigador debe ser entera. Ninguna directiva
preconcebida, ningún sistema, ni siquiera algún cuestionario deben trabarlo. Todo
su arte se reduce a una perpetua adaptación a los hombres y a las circunstancias.
(Apud MONNIER, 1998, p. 49)

Todavia, embora tenha colocado em prática essa liberdade metodológica e mais tarde, como
expressa na correspondência acima transcrita, tenha como que se “convertido” ao paradigma
estadunidense, não se pode dizer que Métraux tenha conseguido se libertar das questões
colocadas pela teoria sociológica francesa, pois, na esteira de Lévy-Bruhl, não deixaria de
considerar que o “mito” seria a forma privilegiada por meio da qual as formas de pensamento
das sociedades “primitivas” que estudava poderiam ser acessadas (MONNIER, 1998).
Desse modo essas várias evidências deixam entrever em que medida a experiência
transnacional moldou a antropologia americanista em prática na década de 1930, amalgamando
diferentes tradições na tarefa comum de registrar, antes de seu desaparecimento, os vestígios

207
“I have recently received a letter from Dr. Henry who seems rather pleased with his work and thinks that much
is to be done in the Chaco. I am glad that he took my suggestion to go to the Chaco and I am sure that he will find
there an inexhaustible field. I am so convinced of it myself, that I have decided to do my best to go back to South
America. Polynesia has been for me an interesting experience and I have learned very much here from the
methodological standpoint. The contrast between my former area, so little studied, and this one which is almost
completely worked has been very suggestive to me. I have gotten better acquainted with the approach of American
ethnology and that is one of the reasons why I long so much to go back to South America. I know well that if the
precise methods of your school were to be applied systematically there a rich harvest of new facts would be
obtained in a short time. South America is the last tierra incognita of anthropology and unfortunately specialists
interested in that part of the world are few. Here in Polynesia the reverse is the case and I do not see the use of
further collaboration when my book on Easter Island is finished” – carta de Métraux para Boas, 9 de dezembro de
1936, FBP, APS.
178

restantes de culturas primitivas da última “terra incógnita” do mundo, ou seja, as florestas sul-
americanas.

Vimos, neste capítulo, como, no interior de uma rede transnacional mais ampla de
americanistas, constitui-se um grupo mais coeso, cuja identidade foi produzida por meio da
circulação de um conceito específico de cultura. Este “híbrido” carregou consigo um conjunto
de valores, como o internacionalismo científico, o anti-imperialismo, o antirracismo, o
pacifismo e o salvacionismo em relação às culturas ameríndias. Esses valores foram capazes de
assegurar identidades em torno de um projeto americanista comum, conformando assim os
sujeitos de uma modernização alternativa ao modelo civilizatório calcado no paradigma
evolucionista.
Com isso foi possível superar o lugar comum das constituições nacionais das
tradições antropológicas. Embora tenhamos visto que os contextos nacionais são
inevitavelmente responsáveis por imprimir suas próprias marcas nos sujeitos do americanismo
transnacional, vimos também que os compromissos desses sujeitos estão ligados de maneira
muito mais forte a projetos que transcendem fronteiras nacionais, pois o próprio americanismo
passa a ser visto como algo que, para continuar se proliferando, necessita se desgarrar dos
limites das ideologias nacionalistas. As trocas de correspondências e contatos pessoais
estabelecidos entre esses intelectuais claramente reforçou a constituição de suas respectivas
subjetividades, algo que só pode ser compreendido a partir de uma perspectiva transnacional.
Veremos, no próximo capítulo, em primeiro lugar, como essa inserção
transnacional fortaleceu a posição relacional de Franz Boas no cenário estadunidense. Em
seguida, poderemos compreender melhor os laços que, finalmente, foram estabelecidos entre a
Columbia University e o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, além de
outras conexões com as redes intelectuais brasileiras. Ao direcionar os estudos americanistas
para o mundo sul-americano, os(as) antropólogos(as) estadunidenses inevitalvemente
permitiram a criação de novas subjetividades americanistas por meio da circulação do conceito
de cultura. A circulação deste híbrido se mostraria, a partir de então, um importante recurso
para a reformulação dos projetos de modernização nacional na jovem república brasileira.
179

CAPÍTULO 5: O AMERICANISMO NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL:


NOVOS LAÇOS E PRODUTIVIDADES

5.1. A EXPANSÃO DA REDE AMERICANISTA TRANSNACIONAL NOS

PRÓPRIOS ESTADOS UNIDOS

A leitura das correspondências produzidas por Franz Boas permite entrever a


construção de um sujeito cuja imagem se situa entre o professoral e o paternal. Os diversos
agradecimentos relacionados a bons momentos passados juntos, a hospedagens agradáveis, a
cartas de recomendação e diversas outras formas de intercessão, a trocas de publicações, os
vários conselhos etc., mostram alguém que procura se apresentar sempre de forma solícita a
afável. Isso, somado ao reconhecimento acadêmico de seu trabalho, fazia com que Boas
certamente fosse admirado e procurado pelos mais jovens. Diversos(as) “boasianos(as)” são
conhecidos(as) por terem ingressado em algum outro curso da Columbia University ou vindo
de fora dela e depois se convertido à antropologia em função das aulas e palestras ministradas
por Boas.208 Nos seus últimos anos de vida, quando já contava com mais de oitenta anos, uma
segunda geração de boasianos(as), alguns(mas) já alunos(as) dos alunos(as) de Boas – Ruth
Benedict, Margaret Mead, Jules Henry, Charles Wagley, Buell Quain e Ruth Landes – o
chamava de “Papa Franz” em cartas descontraídas que mostram um alto grau de confiança no
mentor. Em carta endereçada a Lowie, por exemplo, Boas mostra que se esforçava para
conquistar a confiança dos(as) discentes, ainda que nem sempre obtivesse sucesso: “há sempre
um número de estudantes que não ousam falar comigo, não importa o que eu tente a fim de
atraí-los”.209 Numa outra carta enviada ao mesmo destinatário, dois dias depois, Boas ainda nos
permite perceber esse esforço que parece ser cotidiano de constituição de uma proximidade
afetiva e lúdica com o seu círculo mais imediato de discípulos(as): “Nós reiniciamos nossos
almoços de quinta-feira, e eu estou bastante feliz por ver as pessoas de vez em quando
socializando”.210

208
Dentre esses (as) boasianos(as), de acordo com as sínteses biográficas contidas em GAILLARD, 2004, é
possível citar Clark Wissler (1870-1947), Alfred Louis Kroeber (1876-1960), Robert Lowie (1883-1957) e Edward
Adamson Hoebel (1906-1993).
209
“There always a number of students who do not dare to talk to me, no matter what I may try in order to draw
them out” – carta de Boas para Lowie, 16 de fevereiro de 1918, FPB, APS.
210
“We have resumed our Thursday lunches, and I am rather glad to see the people every now and then in a social
way” – carta de Boas para Lowie, 18 de fevereiro de 1918, FPB, APS.
180

Desse modo, a “mudança paradigmática” da antropologia estadunidense


corresponde à produção de uma rede de relações e de trocas em que a figura de Boas assume
uma figura respeitável e quase paternal. Se o próprio Boas tinha consciência disso é uma
questão difícil de responder. É mais plausível imaginar que esse ethos foi sendo produzido pelas
próprias relações nas quais Boas se embrenhou, e, aos poucos, o Dr. Boas deu lugar ao
Professor Boas e, por fim, ao Papa Franz. A atratividade afetiva e a respeitabilidade se
mostram, portanto, aspectos importantes de uma subjetividade alçada a uma posição central no
universo das relações tratadas nesta parte da tese. Sem dúvida Boas tratava de assegurar uma
posição local e nacional que lhe permitisse consolidar a rede transnacional de americanistas que
vimos, no capítulo anterior, ser constituída nas primeiras décadas do século XX. Se
considerarmos as correspondências como um importante instrumento de criação e consolidação
desses laços, fica evidente que Boas investia uma quantidade significativa de seu tempo e
esforços nesse tipo de atividade diante da enorme quantidade de correspondências suas que
foram guardadas na American Philosophical Society. É importante, então, que possamos
entender como se constituiu esse grupo de “boasianos(as)” e, a partir daí, entender como parte
sua dirigiu seus interesses para a América do Sul e, em especial, o Brasil.
As duas primeiras décadas do século XX têm sido chamadas de “a era Boas” no
campo da antropologia estadunidense, período que teria sucedido uma “era dos museus”
(GAILLARD, 2004, p. 55). George Stocking Jr., por sua vez, afirma que “não há dúvida de que
ele foi a força individual mais importante na formação da antropologia americana na primeira
metade do século XX” (STOCKING JR., 2004b, p. 15).
O estímulo inicial para o desenvolvimento da antropologia nos EUA foi a presença
de índios em todo território conquistado por esse país. As suas primeiras instituições voltadas
para pesquisas etnológicas estão ligadas a expedições direcionadas ao estudo desses povos
nativos por meio do conhecimento de suas línguas, do colecionamento de sua cultura material
e da definição de seus respectivos “tipos raciais” – a exemplo do American Museum of Natural
History (AMNH) do Smithsonian Institution, criado em 1868, do seu Bureau of American
Ethnology (BAE), de 1879, do Peabody Museum of Archaeology and Ethnology, da
Universidade de Harvard, de 1866, e do Field Museum da Universidade de Chicago, de 1893.
Boas transitou por instituições museológicas até 1905 – como curador assistente do
Völkerkundmuseum, fundado por Adolf Bastian, entre 1885 e 1886, quando foi colega de
Rudolph Virchow; como chefe-assistente do departamento de antropologia da Exposição
181

Universal de Chicago de 1893; por fim como curador assistente, a partir de 1896, e depois
curador, entre 1901 e 1905, do AMNH.211
No entanto, quando fundou o Departamento de Antropologia da Columbia
University em 1902 (o primeiro do país), assumindo a sua chefia,212 Boas se lançou – por vezes
de maneira fria e calculista, como mencionei anteriormente – à constituição daquela rede
relacional que o alçaria a um lugar de destaque no panteão criado pela história da disciplina
antropológica. Os(as) seguidores(as) que ele arrebanhou podem ser classificados(as), conforme
propõe Gérard Gaillard, em duas “ondas” (GAILLARD, 2004, p. 65). Reconstituir esses
agrupamentos intelectuais seria, por si só, o tema de uma investigação individual. Aqui interessa
apenas apresentar os contextos em que diferentes boasianos(as) e boasianos direcionaram seus
interesses para as atividades e teias relacionais concentradas no Brasil.

5.1.1 A primeira onda de boasianos(as)

A primeira dessas “ondas” é composta principalmente pelas pessoas que obtiveram


os primeiros diplomas de doutorado em antropologia nos EUA sob a orientação de Boas e que
vieram a ocupar os primeiros postos e cadeiras universitárias na área num período em que
existiam ainda poucos antropólogos profissionais (GAILLARD, 2004, p. 65). Entre os anos
1900 e 1920 esses diversos pesquisadores se dedicaram à reconstituição histórica das
sociedades indígenas da América do Norte – o que também os tornava “americanistas”. Embora
a maioria deles não tenha se mantido exatamente fiel às ideias apresentadas por Boas,213 é

211
Informações retiradas de um currículo escrito pelo próprio Boas para a World Biographical Encyclopedia
(Franz Boas Professional Papers, American Philosophical Society). É interessante o fato de que Boas não
menciona ter sido nomeado assistente sênior da seção de antropologia do Field Museum de Chicago entre 1892 e
1893, tendo se tornado seu curador em 1895 – de acordo com Gaillard (2004) ele teria se desentendido com o
administrador do museu em 1896 e em seguida deixado o posto.
212
Boas foi nomeado lecturer de antropologia física entre 1896 e 1899, quando foi nomeado Professor of
anthropology, cargo no qual permaneceu até ter se aposentado e se tornado professor emérito da instituição em
1936, além de ter trabalhado concomitantemente como “honorary ethnologist” do Bureau of American Ethnology
da Smithsonian Institution.
213
Segundo Gaillard, “a partir de 1906, [Clark] Wissler começou a se distanciar de seu mestre, [Paul] Radin atacou
abertamente o ‘método historicista pseudo-científico’ e sua negligência quanto à iniciativa individual, [Alfred
Louis] Kroeber realizou a crítica oposta segundo a qual o relativismo de Boas não permitia a constituição de uma
narrativa histórica científica, e [Edward] Sapir rompeu com ele numa polêmica sobre se as línguas ameríndias
tinham ou não uma origem comum […]. Outra defecção foi R. Dixon, que, embasado na distribuição geográfica
de formas cranianas, construiu uma teoria racista da humanidade entrelaçando raça, nacionalidade e inventividade
cultural” (GAILLARD, 2004, p. 66) – “From 1906 Wissler began to distance himself from his master, Radin
openly attacked the ‘pseudo-scientific historicist method’ and its neglect of individual initiative, Kroeber made the
opposite criticism that Boas’s relativism did not permit the constitution of a scientific historical narrative, and
Sapir broke with him in a polemic about whether or not Amerindian languages had a common origin […]. Another
defector was R. Dixon, who, on the basis of the geographical distribution of skull shapes, constructed a racist
history of mankind by interweaving race, nationality and cultural inventiveness”.
182

possível enquadrá-los numa tendência comum ligada a uma perspectiva “difusionista


moderada” e, principalmente, ao crescente privilégio concedido aos fenômenos culturais.214
Dessa primeira leva de pesquisadores nenhum dedicou sua carreira à realização de
pesquisas na América do Sul. Boas tentava interessar Alexander Alexandrovich Goldenweiser
(1880-1940), como foi visto, na realização de pesquisas nessa área geográfica que, desde já,
percebia carente de estudos mais sistemáticos. No entanto, ele achava que Goldenweiser ainda
precisava de mais treino etnológico.215 Goldenweiser, de origem judaica, era um dos principais
nomes da New School for Social Research, que forneceu ocupação a diversos cientistas sociais
refugiados durante a Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, Alfred Métraux, além de
abrigar o Latin American Center da École Libre des Hautes Études, Centre d'Études et
d'Informations pour les Relations Avec l'Amérique Centrale et l'Amérique du Sud, que
funcionava no interior da New School e teve por secretário-geral Claude Lévi-Strauss durante
o seu período de exílio nos EUA, conforme já mencionei aqui. Gaillard afirma, inclusive, que
Goldenweiser teria “se adiantado” em sua tese de doutorado a alguns argumentos
posteriormente desenvolvidos por Lévi-Strauss, sugerindo, assim, uma possível influência
(GAILLARD, 2004, p. 70).
Outro nome interessante para os fins desta tese é o de Robert Harry Lowie (1883-
1957). Nascido em Viena, filho de um comerciante húngaro e mãe alemã, Lowie foi para Nova
York em 1893 e lá se formou no New York City College. Depois disso iniciou seus estudos em
Columbia no curso de psicologia, mas também se transferiu para o curso de antropologia após
assistir a algumas das lectures de Boas. Além disso, acompanhou as aulas de Adolph Bandelier
(1850-1914) sobre América Central e trabalhou como voluntário no AMNH sob supervisão de
Clark Wissler – nessa instituição ainda se tornaria trainee em 1907, curador assistente em 1909
e curador associado em 1912, lá permanecendo até 1921. Ainda que em 1915 tenha confrontado

214
Ainda de acordo com Gaillard, “por todos esses desvios, os(as) estudantes de Boas formaram uma escola de
difusionismo estadunidense, da qual Wissler, Sapir e Kroeber são os três mestres. Intocado pela tendência britânica
e alemã de fazer conexões fantásticas entre sociedades em duas partes distantes do mundo meramente pela força
de poucas características comuns percebidas, eles foram praticantes de um ‘difusionismo moderado (por exemplo,
Kroeber aceitou que o zero foi inventado independentemente pelos maias e pelos hindus)” (GAILLARD, 2004, p.
66) – “For all these deviations, Boas’s students did form a school of American diffusionism, of which Wissler,
Sapir and Kroeber were the three masters. Untouched by the British and German tendency to make fanciful
connections between societies in two distant parts of the world merely on the strength of a few perceived common
features, they were practitioners of a “moderate diffusionism” (for example Kroeber accepted that the zero was
invented independently by the Maya and the Hindus)”.
215
Goldenweiser nasceu em Kiev e estudou filosofia em Harvard entre 1900 e 1901. Depois matriculou-se em
antropologia em Columbia, obtendo seu Ph.D. em 1910 (Totemism: an analytical study). Lecionou em Columbia
entre 1910 e 1919 e, depois, na New School for Social Research, entre 1919 e 1928 – também lecionou na Rand
School of Social Science entre 1915 e 1929 (GAILLARD, 2004, p. 70). Seu nome é mencionado diversas vezes
nas várias correspondências que Boas trocou com Robert Lowie e Ruth Benedict (FBP, APS).
183

Alfred Kroeber em um artigo publicado na American Anthropologist, foi convidado pelo


mesmo, dois anos depois, para integrar o corpo docente da University of California em
Berkeley, atuando como diretor do departamento de antropologia dessa instituição entre os anos
de 1922 e 1946 e se aposentado em 1950. Lowie foi um dos principais representantes da
corrente culturalista, um importante difusor do pensamento boasiano e se colocou criticamente
em relação a vários de seus colegas no que diz respeito aos rumos específicos que tomaram em
suas respectivas carreiras, a exemplo de Leslie White, Alfred Kroeber e Ruth Benedict.216
O interesse específico de Lowie pela etnologia no Brasil se inicia após seus
primeiros contatos com Curt Nimuendajú. Antes disso, todavia, Lowie, Nordenskiöld e Rivet
já vinham planejando a publicação de um Handbook a respeito dos índios da América do Sul
desde o Congresso Internacional de Americanistas de Gotemburgo (1924), projeto que foi
resgatado por Julian Steward somente a partir de 1939 com verbas do Congresso estadunidense
e por meio do Bureau of American Ethnology da Smithsonian Institution (MATTHEY, 1998,
p. 46). Lowie também já vinha estabelecendo contatos com Alfred Métraux desde 1933, quando
este dirigia o Museu de Tucumán, a propósito da tradução de Primitive society (1920) para o
francês por Eva Métraux, sua primeira esposa. Segundo Piero Matthey, a versão francesa da
obra de Lowie teria sido utilizada por Mauss em suas aulas e teria sido o motivo de Lévi-Strauss
optar pela etnologia – um importante motivador, portanto, de sua vinda ao Brasil (MATTHEY,
1998).217 Métraux, que aparentemente confirmaria seu interesse pela obra de Nimuendajú por
meio dos laços estabelecidos com Lowie na segunda metade da década de 1930, por certo já
sabia de seu trabalho em função das coleções recebidas pelo Museu Etnográfico de Gotemburgo
à época em que lá estudava sob a orientação de Erland Nordenskiöld.
De acordo com Luís Donizete Benzi Grupioni, Nimuendajú contatou Lowie pela
primeira vez em 1935 por sugestão de Karl Gustav Izikowitz (1903-1984) – um dos alunos de
Nordenskiöld – a fim de solicitar apoio financeiro para a continuação de seus estudos entre as
comunidades indígenas do Brasil. Segundo Grupioni, “Lowie consegue auxílio para trabalho
de campo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade da Califórnia e começa a partir daí
uma associação que duraria até a morte de Nimuendajú” (GRUPIONI, 1998, p. 185). Essa
colaboração se traduziu na constante busca de apoio financeiro para os trabalhos de
Nimuendajú, na tradução de alguns de seus artigos e na publicação coautoral de diversos outros,
que levaram ao conhecimento do público estadunidense a hercúlea produção etnológica do

216
Essas informações foram retiradas de GAILLARD, 2004, p. 70-71.
217
Fernanda Peixoto (1998) também salienta esse aspecto.
184

colega teuto-apapokuva-guarani – cuja trajetória será tratada de maneira mais pormenorizada


adiante.
Lowie estabeleceu uma vasta troca epistolar com Boas, sobretudo depois de 1917,
quando deixou Nova York para trabalhar na Califórnia. As primeiras cartas intercambiadas
entre eles datam de 1905, mas foi depois da partida de Lowie para Berkeley que elas adquiriram
um tom de maior proximidade. Nesse período Boas já havia desafiado o status quo de sua
disciplina, passando a ser visto com desconfiança por um expressivo grupo de antropólogos
estadunidenses por ter denunciado o uso da ciência para fins políticos-militares durante a
Primeira Guerra Mundial. Lowie representa a significativa parcela de discípulos(as) de Boas
que tomaram o seu partido nessa disputa (GAILLARD, 2004, p. 71)218 e, desde então, a
correspondência entre ambos permite entrever uma parceria na qual o antigo discente assume
o posto de aliado californiano das suas disputas pelo campo do americanismo, seja apoiando
Boas em seus posicionamentos político-científicos, seja contribuindo para a reconstrução da
circulação científica na Europa Central logo após a Primeira Guerra Mundial ou, ainda,
colaborando com a rede de proteção aos refugiados da Alemanha nazista. Boas, por sua vez,
torna-se conselheiro nas batalhas pessoais travadas pelo próprio Lowie e a respeito de suas
publicações.
Explorar a intrincada rede relacional perceptível na troca missiva desses dois
importantes antropólogos certamente conduziria a um desvio de foco. Seria interessante apenas
mostrar que Lowie compartilhou com Boas seu entusiasmo a respeito de Nimuendajú tão logo
o conheceu: “Eu consegui entrar em contato com Nimuendajú, e por meio de um pequeno
auxílio financeiro que eu assegurei, espero conseguir milhares de dólares de trabalho de campo
feito por ele. Eu tive uma ótima impressão dele tanto por suas cartas quanto por suas
publicações”.219
O surpreendente, no entanto, é a resposta de Boas, em carta do dia 15 do mesmo
mês: “Eu estou feliz em ouvir que você manteve o financiamento para Nimuendajú. Eu suponho
que você saiba que eu consegui o mesmo para ele por meio da Carnegie Corporation no último
mês”.220 Grupioni, em seu minucioso trabalho de 1998, faz menção ao apoio financeiro do
Carnegie Institution que permitira a Nimuendajú retornar à Europa em 1934 “para estudar no

218
Gaillard, no entanto, reduz o posicionamento de Boas a um mero pró-germanismo, algo que, conforme pude
demonstrar, deve ser problematizado.
219
“I have succeeded in getting in touch with Nimuendajú, and through a small grant which I have secured, I hope
to get thousands of dollars worth of field work done through him. He makes an excellent impression on me both
from his letters and his publications” – carta de Lowie para Boas, 4 de outubro de 1935, FBP, APS.
220
“I am glad to hear that you got continued grant for Nimuendaju. I suppose you know that I got a grant from the
Carnegie Corporation for him last year” – carta de Boas para Lowie, 6 de outubro de 1935, FBP, APS.
185

Museu de Gotemburgo e terminar o manuscrito sobre os Timbira” (GRUPIONI, 1998, p. 183).


No entanto, ele não chega a mencionar o fato de que o próprio Boas fazia parte do conselho que
deferiu esse auxílio. Essa informação possui especial importância para a presente tese pelo fato
de demonstrar que, antes mesmo de Nimuendajú se associar a Lowie, sua produção etnológica
americanista brasileira já estava circulando no ambiente estadunidense e, uma vez mais, Boas
se colocava no controle de mais esse “recurso”.

5.1.2. A segunda onda de boasianos(as)

A posição da antropóloga Ruth Fulton Benedict (1887-1948) na rede transnacional


de americanistas aqui estudada também possui um importante significado. Ela é hoje
considerada a principal precursora de uma segunda leva de antropólogos ainda filiados à
tradição iniciada por Boas. De acordo com Gaillard, Benedict teria desenvolvido a seu modo
um outro filão metodológico que o próprio Boas teria começado a explorar na década de 1920:

Entre 1920 e 1930 Boas abandonou o historicismo e abraçou uma abordagem


psicológica […], mas essa posição foi ela própria abandonada pelos seus próprios
estudantes, e a segunda onda boasiana, “culturalista”, foi influenciada menos pelo
próprio Boas que por seus(uas) primeiros(as) estudantes, especialmente E. Sapir e R.
Benedict. A abordagem conhecida como culturalismo ou “escola de cultura e
personalidade” estava centrada nas personalidades dos membros de uma dada
sociedade considerada como produto de sua cultura. Todos os seres humanos são,
portanto, produtos de características da cultura à qual eles pertencem, e esta cultura
toma a forma não da soma dos traços culturais mas de uma totalidade orgânica.
(GAILLARD, 2004, p. 102)221

Alguns intérpretes destacam ainda mais a independência teórico-metodológica de


Benedict em relação a Boas. Sidney Mintz, que foi um dos últimos alunos de Benedict, por
exemplo, afirma que “até onde eu posso me lembrar, nas aulas que eu tive com ela, Benedict
não fez absolutamente nenhuma referência à história. Ela foi, de um modo bastante puro, uma
funcionalista em suas explicações” (MINTZ, 2004, p. 120).222 Gene Weltfish, com quem

221
“Between 1920 and 1930 Boas abandoned historicism and embraced a psychological approach […], but this
position was itself then jettisoned by his own students, and the second, ‘culturalist’ Boasian wave was influenced
less by Boas himself than by his first students, especially E. Sapir and R. Benedict. The approach known as
culturalism or the ‘culture and personality school’ was centered on the personalities of the members of a given
society considered as the product of its culture. All human beings are thus products of features of the culture to
which they belong, and this culture takes the form not of a sum of cultural traits but of an organic totality”.
222
“So far as I can recall, in the classes I took with her Benedict made absolutely no reference to history. She was,
in some very pure way, a functionalist in her explanations […]”.
186

Benedict escreveu o panfleto antirracista The races of Mankind, de 1943, lembra, por sua vez,
que

Benedict não tomou aulas com Boas. Ela conduziu seu trabalho na New School com
Goldenweiser. Boas simplesmente transferiu os créditos da New School para
Columbia e então ela escreveu a sua tese. Seu real impulso era em direção à religião,
mitologia e simbolismo, que vieram de Goldenweiser, que estava muito interessado
naquele tempo no totemismo e realmente não estava enfatizando história. Então ela
nunca esteve exposta àquele fortíssimo filão histórico do departamento de Columbia
(MINTZ, 2004, p. 121).223

Segundo Mintz (2004), depois das duas biografias escritas por Margaret Mead
(1901-1978) a respeito de Benedict, uma importante linha de interpretação de sua obra tem
passado pela compreensão de sua conturbada trajetória individual específica e, em especial, de
sua condição feminina no contexto das relações de gênero que perpassavam a produção
antropológica de seu tempo. Benedict teria tido uma infância infeliz em função da perda
prematura do pai e de uma deficiência auditiva proveniente de uma doença infantil e que
aparentemente teria lhe tirado a preferência materna em proveito de sua irmã mais nova. Até
que defendesse tardiamente sua tese de doutorado em 1923 na Columbia University, Benedict
teria experimentado uma série de frustrações pessoais e profissionais ocupando a posição de
esposa de um promissor bioquímico. A única exceção teria sido a poesia, que teria lhe oferecido
alguma satisfação.224 Desiludida com a carreira literária – ela havia se graduado em literatura
inglesa no Vassar College – Benedict tentou uma nova opção profissional na New School for
Social Research a partir de 1919, tendo sido aluna de A. Goldenweiser e de Elsie Clews Parsons
(1875-1941). Benedict transferiu-se em seguida para Columbia a fim de obter seu Ph.D. com
Boas, três semestres depois, em 1923, e, daí em diante, foi certamente a colega e amiga mais

223
“Benedict took no courses with Boas. She took her work at the New School under Goldenweiser. Boas simply
transferred the credits from the New School to Columbia and then she wrote her thesis. Her real thrust was toward
religion, mythology, and symbolism, which came from Goldenweiser, who was so interested at that time in
totemism and was not really emphasizing history. So she was never exposed to that very strong historical streak
in the Columbia department”.
224
Mintz acredita que essa experiência foi determinante para o caráter das proposições teóricas de Benedict. A
respeito de uma preocupação com a coerência que pode ser percebida em sua obra ele afirma o seguinte: “Isso
reverbera no trabalho de Benedict: ela foi, dos seus primeiros artigos em diante, muito sensível àquilo que parecia
coerência ou consistência em um sistema cultural. Seria justo arriscar o palpite de que Benedict apreciava quando
algo se encaixava totalmente, que ela tinha uma satisfação estética pelo fechamento de suas descrições da cultura.
Em segundo lugar, é a preocupação com uma tensão dominante como expressão daquela coerência. Isso se revela
particularmente em Patterns of Culture” (MINTZ, 2004, p. 106) – “This reverberates in Benedict’s work; she was,
from her first papers onward, very sensitive to what looked like coherence or consistency within a cultural system.
It would be fair to hazard a guess that Benedict liked it when it all fell into place, that she got aesthetic satisfaction
out of closure in her descriptions of culture. Second is the concern with a dominant strain as the expression of that
coherence. This reveals itself particularly in Patterns of Culture”.
187

próxima do seu ex-orientador no departamento de antropologia de Columbia, no qual


permaneceu até o ano de seu falecimento.
A posição de Benedict em Columbia teria sido, segundo Mintz, prejudicada
duplamente (MINTZ, 2004). Primeiramente, isso teria se dado em função do lugar cada vez
mais marginalizado que Boas vinha ocupando no campo antropológico estadunidense por causa
de seus posicionamentos políticos durante e após a Primeira Guerra Mundial. Em segundo
lugar, pelo simples fato de Benedict ser mulher: não obstante o impacto causado pela publicação
de Patterns of culture, de 1934, ela somente foi eleita presidente da American Anthropological
Association em 1947, e foi apenas em 1948, dois meses antes de morrer e depois de 26 anos de
serviços prestados, que lhe foi concedido o cargo de full professorship no Departamento de
Antropologia da Columbia University – o primeiro, todavia, concedido a uma mulher nessa
instituição.
Benedict também nunca realizou pesquisas de campo no Brasil ou na América
Latina. No entanto, foi por meio de projetos que coordenava no Council for Researches in the
Social Sciences da Columbia University que ela enviou o grupo de jovens pesquisadores,
treinados por ela e pelo próprio “Papa Franz”, para desenvolver estudos etnológicos por aqui
em parceria com o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Um documento valioso para a
compreensão do funcionamento desse conselho é um relatório produzido por uma comissão
especial,225 a partir dos dados enviados pelos membros dos departamentos de ciências sociais
da Columbia University em função de solicitação do dia 19 de novembro de 1938.226
O Council for Research in the Social Sciences (CRSS) foi criado em 17 de fevereiro
de 1925, por uma resolução do Conselho Universitário, em função de uma promessa da Laura
Spelman Rockefeller Memorial Foudantion de um apoio financeiro anual pelo período de dez
anos – que depois seria renovado – para a realização de pesquisas na área de ciências sociais.
Esse conselho não fornecia apoio para doutorandos e privilegiava, até então, os projetos de
pesquisa individuais ou de grupos, executados ou coordenados por membros dos departamentos
ligados às áreas de ciências sociais.227 Boas, então Professor Emeritus, e Ruth Benedict,

225
Composta por Robert M. MacIver (1882-1970), Lieber Professor of Political Economy, George B. Pegram
(1876-1958), Dean of the Faculties of Political Science, Philosophy and Pure Science, Albert T. Poffenberger
(1885-1977), Professor of Psychology, e James C. Bonbright (1891-1985), Professor of Finance, esse último na
presidência do Conselho.
226
“Assorted Projects, 1937-1939”, Folder 20, Box 1, Subseries I.1: Council for Research in the Social Sciences,
1930-1962, Series I: Research, 1930-1979, Department of Anthropology Records, 1930-1979, Rare Book &
Manuscript Library, Columbia University (doravante apenas RBML, CU).
227
À época eram assim caracterizados os departamentos de Antropologia, Economia, História, Psicologia, Direito
e Administração Pública (Public Law and Government) e Sociologia, as escolas de Administração (Business),
Direito e Medicina e o Teachers College.
188

Associate Professor of Anthropology, participavam ativamente do conselho e, até onde foi


possível verificar, nenhum dos seus vários projetos havia sido reprovado até então. Foi por meio
desse órgão que as outras pesquisas posteriormente realizadas no Brasil por Melville Herskovits
(1895-1963), Charles Wagley (1913-1991) e Marvin Harris (1927-2001) foram financiadas.
Segundo o mesmo relatório, o Departamento de Antropologia tinha recebido financiamento
para 12 projetos (que perfazia 9,4% do total), num montante igual a US$188.209 (15,2% do
total). Se esse departamento era apenas o quinto colocado em número de projetos aprovados,
sua posição era alçada à segunda colocação quando se tratava da quantidade de dinheiro
investido – o que pode ser explicado pela necessidade de suportar as dispendiosas expedições
(em termos de deslocamento e equipamentos) demandadas pela pesquisa antropológica.
Num outro documento, datado de 15 de novembro de 1938 e assinado por James C.
Bonbright, à época presidente do CRSS, é apresentada uma lista completa dos projetos
financiados pelo órgão para fins de avaliação pelos pares.228 A enumeração dos projetos
encabeçados por Boas e Benedict pode possibilitar uma apreciação mais concreta do que vinha
sendo pensado e desenvolvido nesse período. Boas, mesmo já aposentado, era responsável pelos
seguintes projetos:
• Nº 1, Heredity and Environment, que se fundiu com o nº. 26;
• Nº 19, Research in Anthropology;
• Nº 26, Racial and Social Differences in Mental Ability;
• Nº 37, Research in Indian Languages, que se fundiu com o nº 19;
• Nº 38, Statistics of Studies of Growth, que também se fundiu com o nº 26;
• Nº 40, Anthropometric & Ethnological Investigations in North America;
• Nº 45, Survival of African Influences;
• Nº 46, Research Expedition to New Guinea;
• Nº 53, Selective Migration;
• Nº 76, Senility, que também se fundiu com o nº 26;
• Nº 87, Negro Studies in Haiti;
• Nº 91, Personality and Race;
• Nº 103, Caribbean Negro Culture.
Benedict, por sua vez, coordenava os seguintes projetos: nº 35, Acculturation; nº 126, South
American Ethnology; e nº 134, Malaysian Field Trip.

“Assorted Projects, 1937-1939”, Folder 20, Box 1, Subseries I.1: Council for Research in the Social Sciences,
228

1930-1962, Series I: Research, 1930-1979, Department of Anthropology Records, 1930-1979, RBML, CU.
189

É obviamente muito difícil concluir algo substancial a partir somente do título


desses projetos – ainda que se perceba claramente que a antropologia física continuava sendo
um objeto privilegiado de pesquisa para Boas. Todavia, um terceiro documento, escrito por
Benedict no dia 23 de novembro de 1938, encaminhando um Report on Anthropological
Projects a Bonbright,229 permite compreender de maneira bastante clara como esses diversos
projetos se articulavam em torno dos interesses primordiais de pesquisa do Departamento de
Antropologia. As conclusões que podem ser retiradas desse documento conduzem a uma
interpretação um pouco diferente daquelas propostas pelos autores acima mencionados e que
sugerem um distanciamento mais radical dos projetos de pesquisa empreendidos por Boas e
Benedict.
Em primeiro lugar, Benedict esclarece que os projetos que eram financiados pelo
CRSS compunham apenas parte do trabalho mais amplo de pesquisa desenvolvido pelo
Departamento de Antropologia, e, com isso, os projetos especiais conduzidos dentro daquele
órgão eram, inclusive “inevitavelmente enriquecidos” por pesquisas financiadas por outras
fontes. Desse modo, as investigações que recebiam auxílio do CRSS faziam parte de duas linhas
de pesquisa mais amplas: “Problemas de hereditariedade e meio ambiente” (Problems of
heredity and environment), dirigida por Boas, e que abrangia cinco projetos específicos, e
“Investigações de campo de povos primitivos” (Field investigations of primitive peoples),
dirigida por Benedict e que abarcava outros quatro projetos específicos.
A primeira linha analisava a influência da hereditariedade e do meio ambiente em
relação ao conceito de “tipo” e, em segundo lugar, às novas evidências relacionadas à
instabilidade daqueles “tipos” e do comportamento humano sob condições mutáveis. Tratava-
se das pesquisas que Boas vinha desenvolvendo ao longo de sua carreira a fim de combater
posicionamentos racistas ancorados na autoridade do lugar de fala científico. Lê-se, na primeira
página do relatório, que a “falta de clareza em relação ao que constitui um tipo é a causa da
incrível quantidade de trabalhos amadorísticos produzidos por mais de um século, mas
particularmente por entusiastas modernos da raça”.230
Os “Significados e conclusões” que seguem lembram em muito os argumentos
contidos em A mente do ser humano primitivo (BOAS, 2010), e merecem ser transcritos pelo
fato de se tratar de documento provavelmente ainda não conhecido no Brasil:

229
“Assorted projects, 1937-1939”, Box 1, Folder 20, Subseries I.1: Council for Research in the Social Sciences,
1930-1962, Series I: Research, 1930-1979, Department of Anthropology Records, 1930-1979, RBML, CU.
230
“[…] lack of clarity in regard to what constitutes a type is the cause of the incredible amount of amateurish
work produced for more than a century, but particularly by modern race enthusiasts”.
190

Conforme nossa familiaridade com as formas corporais encontradas em várias


localidades, nós somos aptos a estabelecê-las como conceitos definidos de acordo com
os quais nós classificamos a grande variedade de tipos humanos. Nós seguimos o
mesmo processo na classificação de nossas experiências gerais, que sempre dependem
do caráter de nossas impressões prévias e somente numa menor extensão de
características objetivas. A classificação ingênua dos tipos humanos não representa
um agrupamento de acordo com princípios biológicos, mas é baseada em atitudes
subjetivas. No entanto, há uma tendência a fornecer realidade biológica [às impressões
subjetivas] de forma bastante irracional e dependente de experiências individuais
prévias. Então acontece que nós reivindicamos descendência mista para uma
população que contém um número de tipos que foram conceitualizados. Este é o caso,
por exemplo, no Sudeste da Noruega, onde vive um número de morenas inusualmente
alto. Pelo mesmo procedimento tem sido reclamado que a população pueblo consiste
de tipos pueblo, navajo e ute. Nestes casos, uma descendência compósita é possível,
mas isso não pode ser comprovado satisfatoriamente pela identificação de indivíduos
com tipos abstraídos de observações prévias em outras localidades. Nós temos que ter
em mente que grupos que nos impressionam como um conglomerado de diferentes
tipos conceitualizados podem ter na verdade uma descendência comum, e que outros
que nos parecem representativos de um só tipo podem incluir grupos de origens
distintas.231

A segunda linha de pesquisa, dirigida por Benedict e que interessa mais diretamente
a esta tese, havia sido pensada com o intuito de contribuir com dois problemas principais: os
históricos e os de inter-relação entre personalidade e cultura. Todavia, ao invés de representar
um rompimento com a perspectiva boasiana, as pesquisas que foram realizadas no Brasil e em
outros países da América Latina sob os auspícios do CRSS diziam claramente respeito a um
projeto de longo alcance que pretendia montar um grande quebra-cabeça relacionado à história
da ocupação do Novo Mundo e aos diversos processos ambientais, psicológicos e culturais que
conduziram à diversificação desses povos. O projeto americanista de Boas consistiu, desse
modo, num primeiro momento de verificação da aplicabilidade das hipóteses raciais para a
explicação da diversidade cultural dos povos americanos; quando percebeu que poderia, enfim,
sustentar empiricamente a inaptidão explicativa daquelas hipóteses, refutando, igualmente, as
afirmações mais genéricas de caráter racista, pôde então direcionar o seu projeto para pesquisas

231
“According to our familiarity with bodily forms found in various localities, we are apt to establish these as
definite concepts according to which we classify the great variety of human types. We pursue the same process in
the classification of our general experiences, which always depend upon the character of our previous impressions
and only to a lesser extent upon objective characteristics. The naive classification of human types does not
represent a grouping according to biological principles, but it is based on subjective attitudes. Nevertheless, there
is a tendency to give biological reality to classifications arrived at quite irrationally and dependent upon previous
individual experiences. Thus it happens that we claim mixed descent for a population that contains a number of
types which have been conceptualized. This is the case, for instance, in southeastern Norway, where an unusually
large number of brunettes live. By the same procedure it has been claimed that the Pueblo population consists of
Pueblo, Navajo, and Ute types. In these cases a composite descent is possible, but it cannot be proved satisfactorily
by the identification of individuals with types abstracted from previous observations in other localities. We must
bear in mind that groups impressing us as a conglomerate of different conceptualized types may actually be of
common decent, and that others appearing to us as representatives of one type may include groups of distinct
origin” – “Assorted projects, 1937-1939”, Box 1, Folder 20, Subseries I.1: Council for Research in the Social
Sciences, 1930-1962, Series I: Research, 1930-1979, Department of Anthropology Records, 1930-1979, RBML,
CU.
191

relacionadas àquilo que o seu longo trabalho investigativo havia lhe indicado: a diversificação
humana seria explicada por um processo histórico de diferenciação cultural, cujas causas
deveriam ser buscadas, primeiramente, nas relações dos grupos com o meio e, em seguida, nas
relações dos indivíduos com essas culturas historicamente constituídas. Benedict tomou para
si, portanto, a tarefa de desenvolver esse último passo investigativo imaginado por Boas na
década de 1920, quando começou a orientá-la na Columbia University.
A linha “Field studies of primitive peoples” expressa isso de maneira muito clara.
Com relação aos “problemas históricos”, o seu objetivo era “estudar o processo histórico de
povoamento aborígene e disseminação cultural no Novo Mundo, e o crescimento de culturas
desenvolvidas locais nas Américas do Sul e Central, por meio de a) estudos de campo de tribos
vivas representativas de horizontes antigos e b) estudos de campo de culturas desenvolvidas ou
pós-colombianas”.232 Os “problemas de inter-relação entre personalidade e cultura”, por sua
vez, buscavam, “estudando, por um lado, as instituições familiares, econômicas, políticas e
religiosas de uma dada tribo, e, por outro, o alcance do comportamento individual naquela tribo
como apresentado nas histórias de vida e episódios tribais, mostrar o efeito das instituições
culturais no comportamento humano”.233
A antropologia boasiana, a princípio em grande medida antropométrica,
desenvolvia-se, sob os cuidados de Benedict, numa etnologia de amplo alcance preocupada com
os processos mais elementares de constituição das diversas culturas do globo numa dinâmica
situada entre os níveis coletivo e individual. O americanismo constituía-se, desse modo, como
um importante elemento para o programa antropológico boasiano, que, por sua vez, inseria-se
no programa cosmográfico elaborado originalmente pelos irmãos von Humboldt: além de, do
ponto de vista sincrônico (espacial), representar uma das últimas peças ainda desconhecidas de
um quebra-cabeça cultural global, do ponto de vista diacrônico (histórico) o estado “primitivo”
das culturas ameríndias poderia lançar luz nos mistérios ainda não resolvidos do
desenvolvimento cultural da humanidade.
Mais adiante, neste mesmo documento, o papel empírico da América Latina para a
comprovação dessas hipóteses é explicitado de modo muito claro. A transcrição, na íntegra, das

232
“[…] to study historic process in the aboriginal peopling and dissemination of culture in the New World, and
the growth of local high cultures in South and Central America, by a) field studies of living tribes representative
of early horizons and b) field studies in high of post-Columbian cultures”.
233
“[…] by studying on the one hand the institutions of a given tribe, familial, economic, political and religious,
and on the other the range of individual behavior in that tribe as shown in life histories and tribal episodes, to
show the effect of cultural institutions upon human behavior”.
192

“Conclusions and significance” do projeto, é relevante por sua riqueza e por não deixar dúvidas
quanto aos argumentos aqui desenvolvidos:

A contribuição das viagens de campo do Conselho para os problemas históricos do


homem antigo pode ser melhor ilustrada pelo trabalho feito nas Américas do Sul e
Central. Traçando a história do homem na América, o problema básico é determinar
se as culturas na América do Norte e do Sul apontam para uma origem comum e
devem, portanto, ser consideradas como uma unidade étnica. Uma série de costumes
e objetos divididos pelos povos mais simples da América do Norte e as tribos do sul
na América do Sul tem sido descrita na literatura e coloca um impressionante
problema. As viagens de campo sob o Conselho têm sido então planejadas de modo
que investigações estão sendo conduzidas:
a) na região Sul da América do Sul (os pilagas do Chaco) e entre as mais primitivas
tribos do Brasil (os caigangues, trumaís, carajás, caiapós e xavantes) para obter
informações acuradas sobre a vida social e cultura material de tribos pertencentes a
um horizonte cultural arcaico.
b) Naquelas regiões onde culturas desenvolvidas (os quechuas do Peru, os chibchas
da Colômbia, os mixtecos do México Ocidental e os maias das montanhas da
Guatemala) cresceram e superaram as culturas mais simples e antigas; e nessas regiões
onde culturas pós-colombianas importadas têm introduzido impressionantes traços
que têm modificado fundamentalmente tribos aborígenes sobre grandes áreas (negro
do Suriname, [projeto n. 45], Haiti [projeto n. 87], Ilhas Virgens [projeto 103] e
Bahia). Quando as características culturais desses horizontes aborígenes mais recentes
são identificadas em detalhe, as características dos povos mais simples podem
eventualmente ser consideradas em sua relação com a América do Norte. A
investigação tem mostrado que esses povos mais simples do extremo sul da América
do Sul e das “terras áridas” do leste brasileiro apresentam retratos culturais que são
típicos também da América do Norte ocidental. As evidências estão se acumulando a
partir de cada investigação de campo para mostrar que o Novo Mundo, tanto a
América do Norte quanto a do Sul, deve ser considerado uma unidade étnica, e que
onde existem presunções de influência transpacífica, essas tomam lugar em tempos
remotos. Sobre esta base étnica comum tem crescido o número de culturas altamente
diferenciadas que, enquanto deslocam ou modificam essas culturas mais simples, têm
suas raízes profundas neste patrimônio comum do Novo Mundo. O estudo das
direções em que a cultura se desenvolveu no Novo Mundo corrige e lança luz sobre o
nosso conhecimento de desenvolvimentos contrastantes no nosso próprio pano de
fundo cultural no Velho Mundo.234

234
“The contribution of Council field trips to historical problems of early man can best be illustrated by the work
done in South and Central America. In tracing the history of man in America the basic problem is to determine
whether or not cultures in North and in South America point to a common origin and must therefore be considered
as an ethnic unit. A series of customs and objects shared by the simpler people of North America and the tribes of
southern South America have been described in the literature and pose a striking problem. The field trips under
the Council have been so planned that investigations were carried on:
a) In Southern South America (the Pilaga of the Chaco), and among the most primitive tribes of Brazil (the
Kaigang, Trumai, Karaja, Kayapo and Chavante) to obtain accurate information on the social life and material
culture of tribes belonging to an archaic cultural horizon.
b) In those regions where high cultures (the Quechua of Peru, the Chibcha of Colombia, the Mixtec of Western
Mexico and the Highlands Mayas of Guatemala) grew up and superseded the early simpler cultures; and in those
regions where imported post-Colombian cultures have introduced striking traits which have fundamentally
modified aboriginal tribes over great areas (Negro of Suriname, Haiti, Virgin Islands, and Bahia). When the
cultural characteristics of these more recent aboriginal horizons are identified in detail, the characteristics of the
simpler people can eventually be considered in their relation to North America. The investigation have shown that
these simpler people of the extreme south of South America and the 'barren lands' of eastern Brazil present cultural
193

Fica evidente, portanto, que Benedict não abandonou, ao menos nas pesquisas que
orientava, o “paradigma” “difusionista moderado” boasiano. As tribos brasileiras adquiriam, no
interior desse vasto quadro imaginado pelo americanismo estadunidense, um valor fundamental
em função de seu caráter “primitivo”: ainda muito pouco ou mal estudadas, elas forneceriam os
pilares básicos para o estudo do processo histórico de desenvolvimento e diversificação dos
povos americanos. Como veremos adiante, os intelectuais brasileiros não deixaram escapar o
valor desse recurso que, percebido como uma espécie de “riqueza natural brasileira”, a partir
de então passou a ser visto como “patrimônio nacional” a ser tutelado pelo Estado. Assim o
conceito de cultura firmado nessa investigação antropológica logo se desdobraria num
patrimônio cultural, sobretudo num patrimônio etnográfico, que serviria também aos
propósitos modernizadores regionais dos intelectuais brasileiros.
Por ora, no entanto, esse argumento não será levado adiante. Interessa agora
perceber o desenvolvimento cotidiano desses projetos nas cartas trocadas entre Boas e Benedict.
Ainda que tenham convivido diretamente de maneira quase diária, os momentos de afastamento
em função, por exemplo, das viagens que Benedict ou Boas fizeram ao longo desse período
ensejaram a produção de um significativo corpus de correspondências. É em torno de 1928 que
as cartas indicam uma maior proximidade entre ambos, o que é claramente perceptível quando
Benedict substitui o distante “Dear Dr. Boas” pelo afetuoso “Dear Papa Franz” – Benedict
também se referia à esposa de Boas como “Mama Franz”. Além de demonstrar um apoio
incondicional às causas defendidas por Boas e indicar de maneira muito clara qual era o núcleo
primário de antropólogos ligados ao “papa” da antropologia estadunidense (Melville
Herskovitz, Alexander Goldenweiser, Robert Lowie entre outros), essas correspondências
interessam aqui por tratarem de maneira privilegiada das pesquisas de campo realizadas por seu
grupo no Brasil.

5.1.3. Cuidando de uma terceira geração de boasianos(as)

Em primeiro lugar, as correspondências enviadas por Benedict a Boas indicam que


o recrutamento de novos integrantes do núcleo primário de boasianos(as) passava por um

pictures which are typical also of western North America. Evidence is accumulating from every field investigation
to show that the New World, both North and South America, must be considered an ethnic unit, and that where
there are presumptions of trans-Pacific influence these took place in remote times. Upon this common ethnic base
have grown up a number of highly differentiated cultures which while displacing or modifying these simpler
cultures have their roots deep in this common heritage characteristic of the New World. The study of the directions
in which culture developed in the New World corrects and casts light upon our knowledge of contrasting
developments in our own cultural background in the Old World”.
194

processo de observação do potencial de jovens promissores na prática do trabalho de campo.


Entre junho e agosto de 1931 Benedict enviou uma série de cartas a Boas a partir do Novo
México, quando treinava alguns de seus alunos na região de Mescalero em pesquisas
linguísticas relacionadas ao projeto Acculturation – outra linha de pesquisa realizada pelo
Departamento de Antropologia de Columbia, desenvolvida entre os índios da América do Norte
e também por meio dos fundos disponibilizados pelo CRSS.235 Em carta do dia 28 de julho de
1931, Benedict tece as seguintes observações a respeito de Jules Henry Blumensohn: “Jules
Blumensohn tem aguentado bem. Os garotos fazem piada dele muito frequentemente, mas eles
respeitam o seu trabalho, especialmente sua fonética. Ele grava e pronuncia melhor que
qualquer um deles”.236 Na próxima carta, do dia 25 de agosto, Benedict volta a comentar o
desempenho de Blumensohn:

Jules Blumensohn tem se dado muito bem com os índios. Se fosse para estimar os
resultados de alguém individualmente, os dele ultrapassariam os dos outros. A sua
fonética é melhor que a do resto, e ele tem escolhido excelentes informantes e
planejado seu trabalho muito bem. Os outros garotos têm humilhado ele muito; eles
todos são garotos extrovertidos e tendem a deixá-lo ressentido. Mas ele tem levado
isso muito bem.237

Já no ano seguinte Blumensohn conquistaria a confiança de Boas e de Benedict a


ponto de ser enviado sozinho para o Brasil para a realização de pesquisas etnolinguísticas entre
as “tribos primitivas” brasileiras. Isso mostra que no interior do campo antropológico boasiano
a credibilidade científica necessária para a ascensão pessoal passava necessariamente por uma
demonstração de caráter competitivo de suas próprias habilidades enquanto “pesquisador de
campo”. Tal competitividade pode ser atestada pelo constante bullying que Blumensohn,
aparentemente o mais destacado dos alunos de Benedict, sofria de seus colegas no campo. Com
base nessa seleção criteriosa e na constituição de laços afetivos consistentes, Boas e Benedict
construíam aos poucos um grupo coeso de pesquisadores cuja identidade era percebida no
âmbito de uma rede mais ampla de americanistas.

235
Nessas cartas (FBP, APS), Benedict menciona algumas vezes o assassinato de Henrietta Schmerler; no entanto,
é impossível confirmar apenas por meio da leitura dessas correspondências se ela era uma das alunas de Benedict
bem como quais foram as condições do homicídio.
236
“Jules Blumensohn has [stood up] quite well. The boys make a joke of him pretty often, but they respect [his]
work, especially his phonetics. He records and pronounces better than any of them […]” – carta de Benedict para
Boas, 28 de julho de 1931, FBP, APS.
237
“Jules Blumensohn has got along very well with the Indians. If anyone's results were to be estimated singly, his
would outrank the others'. His phonetics are better than the rests', and he has chosen excellent informants and
planned his work very well. The other boys have snubbed him pretty badly; they're all hearty extrovert boys and
they tend to resent him. But he has taken it very well” – carta de Benedict para Boas, 25 de agosto de 1931, FBP,
APS.
195

Uma vez enviado seu epígono a campo, Boas e Benedict passavam a cuidar para
que tudo lhe corresse bem. Primeiramente Boas escreve a Roquette-Pinto em carta do dia 2 de
junho de 1932 indagando sobre as condições para realização de pesquisas de campo no Brasil:

O Sr. Jules Blumensohn desta universidade pretende gastar o próximo ano no Brasil
com o propósito de estudar os botocudos. Ele provavelmente sairá daqui em torno de
meados de setembro. Eu ficaria muito grato se você pudesse ter a grande gentileza de
me mandar alguma informação de natureza prática. Isto é, as condições gerais do país,
a possibilidade de ter, durante as primeiras semanas da investigação, alguns botocudos
que falem português, a praticabilidade de viver na terra dos botocudos, as dificuldades
climáticas que podem ser encontradas durante as temporadas de chuva no Rio Doce,
qualquer sugestão a respeito do equipamento que deve ser adquirido aqui, e qualquer
literatura que tenha aparecido nos jornais ou livros brasileiros desde 1905.238

Conforme será visto adiante, quem responderia essa carta e, a partir de então, tomaria a frente
desses assuntos, seria Heloisa Alberto Torres. Logo depois, em carta do dia 1º de agosto de
1932, Benedict mostrou preocupação a respeito da mesma pesquisa:

Estou enviando em anexo cartas que eu recebi de Jules Blumensohn anteriormente.


Você conhece Petrullo, e sabe o quanto é possível acreditar em seus conselhos? […]
– Os relatórios do governo de poucos anos atrás exemplificam o Rio Doce (lar dos
botocudos) como uma região malárica excepcional do Brasil, e as recomendações do
conselho brasileiro são tão piores quanto inúteis – ele é um homem público e não
admite males no Brasil. Ele está muito preocupado com a revolução, mas o que se
pode dizer? – O Chaco também está sendo disputado, assim o dizem, numa guerra
entre Paraguai e Bolívia. – Blumensohn não partirá por pelo menos um mês, e eu
gostaria que você escrevesse seu conselho. Meu sentimento é que um homem não
pode ir para um país com surto de malária em sua primeira viagem de campo, e eu
estou perturbada, além disso, com o relato de que o Brasil não coopera com etnólogos.
Mas talvez nós devêssemos dar um desconto a Petrullo. Eu não sei.239

238
“Mr. Jules Blumensohn of this University is intending to spend next year in Brazil for the purpose of studying
the Botocudo. He will problably leave here about the middle of September. I should be very much indebted to you
if you would have the great kindness to send me some information of a practical nature. That is to say, the general
condition of the country, the possibility of getting, during the first weeks of the investigation, some Botocudos who
speak Portuguese, the practicability of living in the Botocudo country, climatic difficulties that might be
encountered during the rainy seasons in Doce, any suggestions in regard to outfit that ought to be purchased here,
and any literature that has appeared in Brazilian journals or books since 1905” – carta de Boas para Roquette-
Pinto, 2 de junho de 1932, FBP, APS.
239
“I am enclosing letters I have had from (Jules) Blumensohn lately. Do you know Petrullo, and how much faith
is to be placed in his advices? […] – The government reports of a few years ago instance the Rio Doce (home of
the Botocudo) as the outstanding malarial region of Brazil, and the advices from the Brazilian counsel are worse
than useless – he is a publicity man, and admits no evils in Brazil. He's very worried over the revolution, but who
can tell? – The Chaco is also being disputed, so they say, by warfare between Paraguay and Bolivia. – Blumensohn
is not going for a month, and I wish you would write you advice. My feeling is that a man ought not to go into a
bad malaried country as a first field trip, and I am troubled beside by the report that Brazil does not cooperate
with ethnologists. But perhaps are we should discount Petrullo. I do not know” – carta de Benedict para Boas, 1º
de agosto de 1932, FBP, APS. Não consegui encontrar informações a respeito de Petrullo, mencionado nessa carta.
196

No arquivo pesquisado não há a resposta de Boas a esta carta. Mas em tréplica ao assunto,
Benedict demonstra, mais uma vez, envidar esforços para que Blumensohn não desistisse da
pesquisa de campo no Brasil:

Você verá que ele está contando com o prosseguimento. Ele ficaria terrivelmente
desapontado se tivesse que desistir da América do Sul agora, e, se Minas Gerais é
pacífica, ele provavelmente pode trabalhar sem distúrbios com os botocudos. Eu
escrevi para Hayden, de todo modo, pedindo-lhe para deixar o dinheiro pronto para o
caso de Jules partir dia primeiro de setembro.240

Outro aspecto interessante que pode ser observado nessa troca de cartas é que, por
essa época, Boas e Benedict se esforçavam em incentivar seus discípulos a voltarem seus
interesses para “povos mais primitivos”: “Buell Quain voltou para este país, e diz que já tem
um lugar escolhido em Fiji no qual gastar seus últimos anos fazendo antropologia. Mas
enquanto ele é novo e forte, ele espera ter a chance de fazer uma viagem de campo para um
grupo mais primitivo”.241 Buell Quain (1912-1939) partiria pouco tempo depois, junto a
William Lipkind (1904-1974) e Charles Wagley (1913-1991), para realizar pesquisas
etnológicas no Brasil com o apoio do Museu Nacional. É plausível que houvesse um certo
receio por parte dos pesquisadores mais jovens em realizar logo de cara uma pesquisa de campo
em ambientes tão pouco familiares como essas “tribos mais primitivas” brasileiras, onde, além
do mais, a língua oficial do país era o complexo português e em relação às quais as referências
bibliográficas ainda eram relativamente escassas. Blumensohn, como vimos, primeiro praticou
entre povos já “aculturados” e com o apoio direto de Benedict antes de ser considerado apto a
viajar para o Brasil. Quain, por sua vez, como se vê, primeiro viajou para um país de
colonização britânica onde, pelo menos, a língua de seus “informantes” não lhe seria tão
estranha. Ruth Landes (1908-1991) lembraria, duas décadas e meia depois, dos motivos que
afastavam os jovens antropólogos estadunidenses das pesquisas de campo no Brasil:

Durante aquele período Boas e Benedict também mandaram quatro estudantes


homens para o Brasil para estudar grupos indígenas nas grandes florestas. Jules Henry,
William Lipking, Buell Quain e Charles Wagley. Meu estudo da vida do negro me
levou, contudo, para as costas das capitais do Rio de Janeiro e Bahia. Em nossas

240
“You will see that he is counting on going ahead. He would be terribly disappointed to give up South America
now, and if Minas Geraes is peaceble he can probably work without disturbance with the Botocudo. I have written
to Hayden, at any rate, asking him to have his money in readiness if Jules leaves the first of September” – carta de
Benedict para Boas, 20 de agosto de 1932, FBP, APS.
241
“Buell Quain is back in this country, and says that he has a place all picked out in Fiji in which to spend his
[declining] years doing anthropology. But while he's young and sturdy he hopes he'll have a chance to make a
field trip to a more primitive group” – carta de Benedict para Boas, 28 de julho de 1936, FBP, APS.
197

primeiras jornadas, cada um de nós trabalhou sozinho, exceto o Sr. e a Sra. Lipkind.
Essa solidão repousou principalmente nos fatores que foram o número reduzido de
estudantes, os fundos limitados e os temperamentos inventivos (LANDES, 1970, p.
121).242

Já em 1937 Benedict começa a interceder por um grupo de jovens estudantes


formados em Columbia que iria desenvolver pesquisas de campo no Brasil. Em carta a Boas,
datada de 24 de agosto daquele ano, Benedict escreve a respeito de Ruth Landes:

Eu quero que você possa aproveitar a ocasião de convencer Mel [Herskovits] sobre a
ida de Ruth Landes para realizar o estudo do negro na Bahia. Isso é importante, porque
o Resenwald Fund está considerando dar uma contribuição para as finanças dela,
dando-lhe um pequeno salário enquanto ela estuda este outono sob a orientação de
[Rüdiger] Bilden [1893-1980]. Uma vez que sua família se mudou, ela não poderá
contar com acomodação e alimentação livre de custos. Eu gostaria que o Mel fosse
convencido a falar bem dela. Eu não conheço as suas objeções ao trabalho dela na
Bahia, pois o assunto surgiu depois que eu saí da cidade, mas eu presumo que ele acha
que ninguém deveria ir antes de ele próprio ter ido para a Nigéria. Claro que Ruth
amaria ir para a Nigéria primeiro!243

O trecho acima transcrito é importante por indicar a complexidade das relações intelectuais no
interior desse mesmo campo americanista, que não pode ser reduzido a um modo monolítico
de se pensar antropologicamente as “culturas primitivas” das Américas.
Landes foi aluna de Boas e de Benedict em Columbia nos anos 1930, período ao
qual ela própria se refere como a época do “Novo Negro” (The New Negro) ou “Renascença
Negra” (Negro Renaissance), quando a genialidade de várias pessoas negras vinha sendo
reconhecida nos meios intelectuais estadunidenses – ela própria relata ter conhecido
pessoalmente nomes como o artista Paul Robeson, o filósofo Alain Locke, o historiador W. E.
B. DuBois, o poeta e diplomata James Weldon Johnson, o escritor e político Walter White e a
novelista e antropóloga Zora Neale Hurton. Antes de iniciar seus estudos em Columbia, Landes
desenvolveu uma pesquisa sobre os negros judeus do Harlem, o que a direcionou, segundo ela

242
“During that period Boas and Benedict also sent four men students to Brazil to study Indian groups in the great
forests. Jules Henry, William Lipkind, Buell Quain, and Charles Wagley. My study of Negro life was to carry me,
however, to the coast’s capital cities of Rio de Janeiro and Bahia. On our first journeys, each of us worked alone,
except for Mr. and Mrs. Lipkind. This solitariness rested chiefly on the factors of few students, limited funds, and
resourceful temperaments”.
243
“I wish you could take occasion to modify Mel [Herskovits] about Ruth Landes’ going to make the negro study
in Bahia. It is important because the Resenwald Fund is considering making a contribution to her finances: giving
her a small salary while she reads this fall in New York under [Rüdiger] Bilden’s direction. Since her family have
moved, she no longer can presume on free room and board. I wish Mel could be won over to saying a good word
for her. I don’t know his objections to her work in Bahia, for the matter has come up since I left the city, but I
presume he feels no one should go until he has been in Nigeria. Of course Ruth would love to go to Nigeria first!”
– carta de Benedict para Boas, 24 de agosto de 1937, FBP, APS.
198

própria conta, ao curso de antropologia conduzido por Boas e Benedict – Landes lembra que,
embora tivesse predileção anterior por medicina e artes, decidiu-se pela antropologia, como
tantos outros, em função da personalidade e compromisso intelectual dos dois professores
(LANDES, 1970).244
Todavia, Landes mostra ter sido mais profundamente influenciada pelos
antropólogos da Fisk University, a exemplo de Robert Ezra Park (1864-1944), de seu aluno
Donald Pierson (1900-1995), e de Edward Franklin Frazier (1894-1962) do que pelo grupo de
Columbia. Landes trabalhou sob a supervisão de Park no Tennessee “para ensinar e aprender
daquele campus alguma coisa em primeira mão da ‘etiqueta racial’ estadunidense, na expressão
clássica de Bertrand W. Doyle” (LANDES, 1970, p. 120).245 Foi por meio desses intelectuais
que Landes soube que “aquela grande população negra do Brasil vivia decentemente junto com
o resto da população”, o que lhes despertou o interesse em “examinar os detalhes” (LANDES,
1970, p. 120).246
Embora Mariza Corrêa considere, por um lado, que já em fins de 1938 ainda não
era possível identificar nenhuma animosidade entre Landes, de um lado, e Herskovits e Artur
Ramos, de outro, dado o teor de uma carta que a primeira havia enviado ao último em 27 de
dezembro daquele ano (CORRÊA, 2003, p. 170), por outro lado a própria autora reconhece
tratar-se de uma oposição que, surgida nos EUA, iria ser de certo modo transposta para o
contexto brasileiro:

A oposição de Landes à posição de Herskovits é paradigmática – ao passo que ele luta


para impor sua visão sobre as “sobrevivências africanas nas comunidades de negros
americanos”, Landes mostrava em seu livro [A cidade das mulheres] que as relações
sociais baianas eram uma adaptação local de tais tradições, ponto defendido também
por Donald Pierson. O debate de Herskovits com Frazier, aliás o único pesquisador
norte-americano negro a ter feito parte do grupo que veio ao Brasil na época […] já

244
Segundo ela, “Todas as outras profissões ou atividades eruditas assalariadas restringiam mulheres com uma
severidade que, no nosso círculo, nós considerávamos semelhantes àquelas que prevaleciam sobre os negros. Esses
dois acadêmicos pareciam distinguir não os sexos, mas apenas habilidades. Essa foi a preocupação primordial
deles. Nunca antes eu tinha visto isso numa situação de trabalho, nem me importava em ser uma sabichona com
Ph.D. Mas Ruth Benedict era linda e casada. Depois de um ano ponderando o seu convite para entrar na pós-
graduação em antropologia e refletindo sobre o início do meu casamento precoce, eu decidi que aquela carreira
poderia ser a minha” (LANDES, 1970, p. 120) – “Every other profession or gainful learned activity restricted
women with a severity that, in our circle, we likened to the prevailing restrictions on blacks. These two scholars
appeared to distinguish, not the sexes, but only ability. It was their overriding concern. Never before had I met it
in a working situation, nor had I cared about being a Ph.D. bluestocking. But Ruth Benedict was beautiful and
married. After a year of pondering their invitation to enter graduate anthropology and reflecting on the confines
of my early marriage, I decided that their pursuit would be mine”.
245
“[…] to teach and learn from this Negro campus something at first hand of American ‘racial etiquette’, in
Bertrand W. Doyle's classic phrase”.
246
“[…] that Brazil's large Negro population lived decently among the general population; and we wanted to
examine the details”.
199

sugeria essa separação de perspectivas. Sugeria também que a disputa em andamento


no cenário norte-americano estendia-se ao Brasil. (CORRÊA, 2003, p. 174)

Corrêa aparentemente não teve contato com a correspondência entre Benedict e Boas a respeito
de Landes e Herskovits que foi acima apresentada. No entanto, esse documento ainda assim
corrobora a hipótese dessa antropóloga ao apontar as tensões internas de um campo
antropológico estadunidense cujos componentes buscariam ampliar seu poder enunciativo com
base nos dados empíricos coletados no Brasil.

5.1.4. A transposição do método culturalista e historicista para o estudo das


culturas de origem africana

Resta ainda mencionar a correspondência que Melville Herskovits, um outro


antropólogo representante daquela “segunda leva” de boasianos, estabeleceu com o chefe do
departamento de antropologia da Columbia University, a fim de que seja possível compreender
melhor a situação em que o americanismo culturalista e historicista da “escola boasiana”
aportou no Brasil. Segundo Gaillard, Melville Jean Herskovits (1895-1963) é considerado um
dos pioneiros dos estudos afro-americanos, tendo estudado, primeiramente em Chicago com
Elsie Clews Parsons (1875-1941) e Torstein Veblen (1857-1929), e posteriormente em
Columbia com Goldenweiser e Boas. Após se tornar Ph.D. por essa última universidade, passou
a lecionar na Northwestern Unviversity, na cidade de Evanston, IL (próxima a Chicago), onde
criou um programa de estudos africanos nos EUA, tendo se tornado o primeiro presidente da
Association of African Studies. Herskovits inicialmente dedicou-se a estabelecer as “áreas
culturais” do continente africano, mas a partir da década de 1930 voltou-se para a análise das
sobrevivências culturais africanas no Novo Mundo (GAILLARD, 2004, p. 121-122).
Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, que analisou as correspondências trocadas
entre Herskovits e Arthur Ramos (1903-1949), assim se refere ao interesse de Herskovits pelo
Brasil:

Para Herskovits, o encontro com Ramos abria-lhe as portas do mundo intelectual


brasileiro e do mundo “africano” da Bahia, um dos mais bem “conservados” das
Américas. De fato, para Herskovits, Ramos representou certamente um enorme
avanço no seu projeto de pesquisa intercontinental sobre a cultura dos povos africanos
trazidos para as Américas. Se, em 1930, ao publicar no American Anthropologist a
sua declaração sobre o “negro do novo mundo”, Herskovits […] via-se forçado a
retirar os negros do Brasil de sua escala de “africanismos no comportamento cultural”
“porque [tinha] poucos dados sobre os quais se basear”, em 1955, em sua Cultural
200

Anthropology, já podia colocar o Brasil na terceira posição de sua escala, logo abaixo
do Suriname e do Haiti […]. (GUIMARÃES, 2004, p. 172)

Herskovits foi um dos precursores na transposição do método culturalista e


historicista da escola boasiana para os estudos das culturas de origem africana. Seu interesse, à
semelhança daquele desenvolvido por Boas e Benedict no Departamento de Antropologia de
Columbia, era, em primeiro lugar, compreender a constituição das culturas “primitivas” das
tribos africanas – com a consequente produção de “mapas culturais” – e, posteriormente, as
suas transformações, ou melhor, “aculturações”, no Novo Mundo a partir do contato com as
culturas europeias. O Brasil, por motivos portanto óbvios, era uma peça-chave para a montagem
desse seu quebra-cabeças. Se, por um lado, Arthur Ramos pôde alavancar a sua carreira
internacional em função do valor dos dados antropológicos cujo acesso pôde franquear a
Herskovits, (GUIMARÃES, 2004; CAMPOS, 2004), por outro, isso criou uma cisão no campo
da antropologia, uma vez que, como já foi adiantado, emergia nos EUA uma vertente
interpretativa mais combativamente alinhada à compreensão dos problemas de caráter
sociológico envolvidos nas condições de vida dos negros no mundo atual – menos interessada
que Herskovits, portanto, no tema da “sobrevivência” de elementos culturais prístinos em
processo de desaparecimento. É isso que explica, já em 1937, a oposição de Herskovits às
pesquisas que seriam desenvolvidas no Brasil por uma Ruth Landes já diretamente ligada a
Park, Frazier e Pierson. Explica também, mas obviamente não justifica, a desleal perseguição
sofrida por essa última quando desenvolveu suas pesquisas de campo no Rio de Janeiro e na
Bahia (LANDES, 1970; CORRÊA, 2003).
A volumosa correspondência entre Boas e Herskovits inicia-se em 1923 e segue até
o fim da vida do primeiro. Ela não indica o mesmo tom de proximidade que aquela estabelecida
entre Boas e Benedict – Herskovits nunca tratou o mestre por “Papa Franz” –, embora seu
conteúdo expresse um constante apoio e orientação de Boas às pesquisas de seu antigo aluno –
o que se dava por meio de cartas de recomendação, orientações relacionadas a pesquisas
antropométricas (muitas vezes criticadas por Boas na forma pela qual foram conduzidas ou
interpretadas por Herskovits) e de manobras para obtenção de verbas. Herskovits, mesmo
trabalhando na Northwestern, em Evanston, conseguiu, por exemplo, um apoio financeiro do
CRSS da Columbia University em função do apoio de Boas.247 As correspondências trocadas

247
Segundo informações que Boas prestou ao Dean Howard L. McBain, ofício de 14 de setembro de 1933,
Herskovitz conduziu pesquisa sobre o negro sob os auspícios do CRSS primeiramente em Nova York, depois na
Guiana Holandesa (atual Suriname) e finalmente na África Ocidental (“Folder 5”, Series I: Correspondence, 1922-
1960, Box 1, Council for Research in the Social Sciences Records, 1922-1970, RBML, CU).
201

entre Boas e Herskovits ainda fazem menção a uma série de outros fundos, como os da
Guggenheim e da Rockefeller, dentre outros.
O Brasil surge como tópico de conversação entre Boas e Herskovits já em 4 de
março de 1929. Não se tratava, no entanto, como se pode depreender, de algo além de um
interesse ainda secundário. Herskovits encaminhou junto a esta carta a cópia de uma outra,
escrita por Walter Roth (1861-1933), do Museu de Georgetown, Guiana – museu que
posteriormente receberia o seu nome – solicitando o apoio de jovens pesquisadores para a
realização de trabalho de campo na região fronteiriça com o Brasil. Herskovits, embora
demonstre interesse pela região, não possuía disponibilidade no momento para realizar
trabalhos de campo lá:

Há algum tempo eu recebi uma carta de Roth, na Guiana Inglesa, perguntando se eu


estava interessado numa viagem de campo voltando pela fronteira brasileira. Eu
respondi que meu tempo estava tomado mas que eu achava que isso poderia ser uma
excelente oportunidade para alguns homens para ajudá-los com seus trabalhos de
campo. […] Eu acredito que essa poderia ser uma oportunidade inusual para iniciar
alguém no campo da etnologia da América do Sul, e certamente uma excelente chance
para ele começar a trabalhar nisso sob a direção de um homem que conhece tanto a
respeito quanto Roth.248

Depois disso, somente em carta de 21 março de 1941 é que o Brasil volta a aparecer
nessas correspondências, dessa vez em função da viagem de Arthur Ramos aos EUA.
Herskovits escreve o seguinte: “Você provavelmente ouviu falar que Ramos irá palestrar em
Columbia no próximo mês. Ele e sua esposa estarão em Nova York por vários dias, e você verá
que ele tem uma carta para você”.249 É neste período que Herskovits “agencia” Ramos em sua
estadia nos EUA como estratégia de obter um canal privilegiado para seus próprios estudos no
Brasil (GUIMARÃES, 2004).
O interesse pela difusão geral da cultura africana, em especial na América do Sul e
no Brasil, deve ter surgido a partir da sua viagem ao Suriname. Em carta do dia 5 de outubro

248
“Sometime ago I received a letter from Roth in British Guiana asking if I were interested in a field trip back to
the Brazilian border. I answered that my time was taken but that I thought it would be an excellent opportunity for
some man to help him with this field work. […] I believe it would be an unusual opportunity to work some one into
the field of the ethnology of South America, and certainly an excellent chance for him to get worked into this under
the direction of a man who knows as much about it as Roth” – carta de Herskovits a Boas, 4 de março de 1929,
FBP, APS. Note-se que, como ocorre na maioria das correspondências, é apenas o “homem” (some man) que é
considerado para a pesquisa antropológica, como se não existissem – ou não pudessem existir – mulheres
realizando este tipo de trabalho.
249
“You have probably heard that Ramos is going to talk at Columbia next month. He and his wife will be in New
York several days, and I will see that he has a letter for you” – carta de Herskovits para Boas, 21 de março de
1941, FBP, APS.
202

de 1929, Herskovits tratou de um problema de caráter linguístico no qual desejava ter se


aprofundado mais: “O que você realmente tem lá é um dialeto arcaico com mais africano, muito
mais português e menos inglês”.250 Mas foi apenas em carta do dia 26 de outubro de 1942,
pouco tempo antes da morte de Boas, que Herskovits começou a tratar das pesquisas que ele
próprio vinha realizando no Brasil. Na verdade, Herskovits se referia com bastante entusiasmo
a essa pesquisa, que “precisava ser redigida e publicada” o mais rápido possível. Era como se
Herskovits estivesse ansioso para mostrar ao mestre que os dados que havia recolhido no Brasil
trariam importantes elementos para o fortalecimento da própria perspectiva antropológica
boasiana ao fornecer dados inéditos e valiosos sobre problemas como sobrevivências culturais:

Os materiais para serem estudados lá são incrivelmente ricos, com uma localidade
depois da outra ainda não estudada. Nós trabalhamos na Bahia, e você terá uma ideia
do tipo de coisa que se encontra quando eu te disser que nós gravamos algo em torno
de 500 músicas, cujas palavras são todas em dialetos africanos. Como era de se
esperar, os africanismos mais puros estão na vida religiosa, em que há algumas
instituições que precisam ser investigadas na África ocidental, onde eu estou
convencido que elas existem e que, se encontradas, nos darão algumas ideias
importantes sobre certos aspectos da religião africana até agora não estudados. Há,
entretanto, muitas sobrevivências na vida social e econômica dessas pessoas, e uma
das melhores coisas é o modo pelo qual esses africanismos estão integrados nos
padrões de uma cidade moderna de algo em torno de 350.000 pessoas.251

É possível perceber, portanto, que o material antropológico brasileiro passou a se


valorizar cada vez mais aos olhos dos cientistas sociais estadunidenses, tanto no que diz respeito
às culturas ameríndias quanto às afro-brasileiras, e isso justamente num momento em que, no
Brasil, o interesse pela construção de uma ideia abrangente de identidade nacional gozava de
indubitável prestígio no interior de nosso campo intelectual.

5.2. ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E O BRASIL

250
“What you really have there is an archaic talkee-talkee with more African, much more Portuguese, and less
English” – carta de Herskovits para Boas, 5 de outubro de 1929, FBP, APS.
251
“The materials to be studied there are incredibly rich, with one locality after another entirely unstudied. We
worked in Bahia, and it will give you an idea of the sort of thing one finds when I tell you that we recorded
something like 500 songs, the words to which are all in African dialects. As might be expected, the purest
Africanisms are in the religious life, where there are some institutions that need to be investigated in West Africa
where I am convinced they exist and which, if found, will give us some important insights on certain aspects of
African religion hitherto unstudied. There are, however, many survivals in the social and economic life of these
people, and one of the nicest things is the way in which these Africanisms are integrated into the patterns of a
modern city of some 350.000 people” – carta de Herskovits para Boas, 26 de outubro de 1942, FBP, APS.
203

Até agora o direcionamento dos interesses da rede americanista transnacional em


relação à América do Sul, em especial ao Brasil, só foi apontado indiretamente, por meio das
cartas trocadas com interlocutores cujos objetivos ligavam-se de modo mais imediato à
realização de pesquisas de campo neste país. No entanto, é surpreendente o número de relações
diretas que Boas estabeleceu com brasileiros pela via missiva, ainda que, individualmente, elas
não estejam dotadas da mesma intensidade daquelas cartas trocadas com seus amigos mais
diletos, a exemplo dos nomes que apareceram nesta tese em função de seus respectivos
interesses sul-americanistas. Apresentarei essa correspondência brasileira com base num
critério cronológico apenas para fins de organização textual.
As primeiras correspondências que encontrei vindas do Brasil datam de 1907. O
primeiro documento foi recebido de Emílio Augusto Goeldi (1859-1917), informando o seu
novo endereço a partir de 1º de abril e, num ofício circular impresso em francês e datado de 27
de março, justificando para a rede transnacional de antropólogos e naturalistas os motivos de
sua saída do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, que depois seria rebatizado com
o seu nome.252 Não há resposta arquivada de Boas a esta comunicação.
O segundo documento produzido no mesmo ano é de autoria de Rodolpho von
Ihering (1883-1939), do Museu Paulista, datado de 3 de junho.253 Esta carta é de grande
importância, pois flagra um interesse precoce de Boas pela realização de pesquisas
antropológicas na América do Sul e, pelo que se pode depreender dos agradecimentos de
Ihering, no Brasil:

Nós recebemos o seu relatório que você submeterá à Carnegie Institution e que em
anexo eu devidamente retorno. Aceite os cumprimentos do nosso Instituto com a
garantia do grande interesse com o qual nós tomamos um empreendimento tal como
o seu, pelo qual sem dúvida o estudo da Antropologia e da Etnologia de toda América
do Sul será tremendamente beneficiado e por meio do qual nós certamente
chegaremos a resultados definitivos e positivos seguindo as linhas de investigação

252
Ofício de Goeldi para Boas, 27 de março de 1907, FBP, APS. Nascido Émil August Goeldi, em Berna, Suíça,
o naturalista e zoólogo estudou na Alemanha com Ernst Haeckel antes de vir para o Brasil em 1880. Goeldi se
desligou do Museu Nacional, junto com nomes como Orvile Derby e Hermann von Ihering, em função das
reformas republicanas que incluíam a proibição de acumulação de cargos e a obrigatoriedade de assinatura de
ponto (KEULLER, 2008, p. 72). Logo em seguida, em 1893, no entanto, foi convidado por Lauro Sodré para
assumir a direção do Museu Paraense – que se encontrava praticamente abandonado –, em grande medida em
função do projeto regional, impulsionado pelo êxito econômico advindo da cultura da borracha, de transformar
Belém na “Paris do Sol” (SCHWARCZ, 1993, p. 84). Goeldi foi o responsável pela modernização e
internacionalização dessa instituição que se destacava por sua localização privilegiada para o apoio de expedições
de naturalistas.
253
O zoólogo Rodolpho Theodor Wilhelm Gaspar von Ihering era filho do também zoólogo alemão Hermann
Friedrich Albrecht von Ihering (1850-1930), conhecido entre nós por ter sido o primeiro diretor do Museu Paulista
(atual Museu do Ipiranga, em São Paulo, SP), a partir de 1894, após ter deixado, como Goeldi, o Museu Nacional.
Rodolpho von Ihering era, à época, vice-diretor de custos do Museu Paulista.
204

expostas neste seu relatório. Eu também apresentarei as ideias expostas no seu


relatório para o nosso Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo na próxima
sessão, e estou certo de que ele transmitirá igualmente a você um documento de louvor
pelo grandioso empreendimento que você se dispõe a realizar.254

O próximo correspondente brasileiro de Boas é o filólogo e historiador cearense


João Capistrano de Abreu (1853-1927). Embora seja reconhecido no Brasil principalmente por
sua obra historiográfica,255 foram seus estudos linguísticos a respeito de grupos indígenas sul-
americanos que lhe alçaram ao reconhecimento internacional. Beatriz Christino mostra o
quanto Capistrano de Abreu era respeitado no interior da rede de americanistas constituída no
início do século XX – a mesma sobre a qual esta tese vem se debruçando –, sendo considerado
por nomes como von den Steinen, Paul Ehrenreich, Ferdinand Hestermann (1878-1959), Erland
Nordenskiöld, Paul Rivet, Koch-Grünberg, entre outros, um dos poucos linguistas capazes de
fornecer transcrições e interpretações confiáveis a respeito de línguas indígenas de povos ainda
livres daquilo que consideravam uma influência nefasta da “civilização” ocidental. Capistrano
de Abreu tomou parte, e de maneira ativa, nessa rede transnacional de americanistas, seja em
função da partilha dos valores que gravitavam em torno do internacionalismo científico pré-
Primeira Guerra Mundial, seja por meio de troca de correspondências, de envio de publicações
e da escrita de artigos que foram publicados nos principais veículos de divulgação do
americanismo antropológico, a exemplo do Journal de la Société des Americanistes, dirigido
por Rivet (CHRISTINO, 2007).
Christino não se refere neste artigo a Boas, no entanto é justamente em função dessa
rede de amizades que ele e Capistrano de Abreu estabelecem um rápido contato epistolar. Karl
von den Steinen, que Boas considerava ser um “amigo em comum” dos dois, estava passando
por maus momentos do ponto de vista financeiro depois de terminada a Primeira Guerra
Mundial, e seu amigo teuto-estadunidense tentava ajudá-lo angariando fundos por meio de uma
campanha de subscrições para a aquisição de um livro que reuniria textos de Steinen além de
um “atlas muito bonito”. Boas esperava conseguir cinquenta subscrições, no valor de US$50,00

254
“We received your Report which you will submit to the Carnegie Institution and which herewith I duly return.
May you accept the compliments of our Institute with the assurance of the great interest we take on such an
important undertaking as yours by which doubtless the study of Anthropology and Ethnology of whole South
America will highly be aided and by which we surely will come to definite and positive results following the lines
of investigation exposed in this your Report. I also will present the ideas of your Report to our Instituto Historico
e Geographico de São Paulo in the next sceance [sic] and I am sure that it will equally transmit you a document
of its approval for such a grandeous undertaking you afford to realize” – carta de R. von Ihering para Boas, 3 de
junho de 1907, FBP, APS.
255
Ricardo Benzaquen de Araújo, por exemplo, destaca o seu papel no que diz respeito a uma renovação
metodológica da historiografia brasileira, que graças a Capistrano de Abreu teria se profissionalizado nos moldes
de uma historiografia moderna (ARAÚJO, 1988).
205

cada, mas acreditava que não fosse conseguir mais que doze, motivo pelo qual escrevia ao
amigo brasileiro de von den Steinen, em carta do dia 15 de janeiro de 1923, solicitando a sua
ajuda no sentido de discutir o assunto com os seus outros amigos.
No dia seguinte, Boas escreve mais uma carta a Capistrano de Abreu,256 agora por
ter se lembrado de que o Congresso Mexicano havia concedido uma pensão para a viúva de
Eduard Seler, outro importante americanista alemão, em função do seu valioso trabalho em prol
da arqueologia e etnologia mexicana. Isso lhe fez pensar que Capistrano de Abreu poderia
averiguar se não seria possível conseguir algo semelhante para von den Steinen no Congresso
Brasileiro. Não há registro da resposta de Capistrano de Abreu, mas em carta do dia 10 de março
Boas agradece a generosa doação de US$100,00 por parte do filólogo e historiador brasileiro,
além de mais uma doação conseguida de “Dr. Lisbôa” com mais US$50,00 para o mesmo
propósito, aproveitando o ensejo para cobrar uma resposta a respeito da possibilidade da pensão
por parte do Congresso, uma vez que a situação de von den Steinen tinha se tornado ainda pior.
Por fim, em nova carta,257 Boas acusa o recebimento de mais dois cheques no valor de US$50,00
cada, sem conter, no entanto, indicação de nomes. Mas é possível deduzir que eram fruto dos
esforços de Capistrano de Abreu pelo fato de serem provenientes do Rio de Janeiro.
Essas poucas correspondências são valiosas pois, em primeiro lugar, reafirmam os
esforços de Boas no intuito de reanimar a produção americanista alemã depois da catástrofe da
Primeira Guerra Mundial – ainda que saibamos que ela nunca iria se recuperar, ao menos a
ponto de reconquistar o seu lugar de liderança anterior ao conflito (FRANK, 2005). Por outro
lado, essas cartas atestam a centralidade de Capistrano de Abreu nessa rede transnacional,
ajudando a romper, desde já, com a preconcepção de que a intelectualidade brasileira estivesse
fadada a ocupar um papel periférico nas relações internacionais de produção de conhecimento.
Ainda na década de 1920, Boas se correspondeu com o escritor e diplomata
pernambucano Manuel de Oliveira Lima (1867-1928). Em carta enviada de Washington, onde
Oliveira Lima residia, datada de 8 de dezembro de 1925, o embaixador brasileiro responde a
uma outra carta do dia anterior enviada por Boas, aparentemente solicitando um encontro.
Oliveira Lima o convida para um almoço, mas Boas recusa o convite em carta escrita dois dias
depois por ter várias coisas para fazer na capital estadunidense. A próxima carta de Oliveira
Lima, do dia 13, é de difícil leitura em função de uma ingrata caligrafia, mas é possível
depreender que houve algum mal-entendido que impossibilitou que os dois se encontrassem.
De todo modo a resposta de Boas do dia 14 esclarece várias coisas: por causa de sua carta ter

256
Carta de Boas para Capistrano de Abreu, 16 de janeiro de 1923, FBP, APS.
257
Carta de Boas para Capistrano de Abriu, 23 de março de 1923, FPB, APS.
206

se extraviado não foi possível que os dois pudessem tratar de um tema que vinha interessando
ao antropólogo de Nova York, ou seja, os problemas de genealogia no Brasil a respeito dos
quais Mr. Venden (não consegui encontrar informações mais detalhadas a partir deste nome)
havia tratado com o intelectual brasileiro. Boas estava “muito interessado nesta questão, sobre
relatos do problema da aclimatação nos trópicos mais ao Norte”.258
As pistas são instigantes: Oliveira Lima era reconhecido nos meios intelectuais
estadunidenses como especialista em história brasileira e foi quem pôs o jovem promissor e à
época ainda desconhecido Gilberto Freyre em contato com a sua rede de amigos (SKIDMORE,
2003); Freyre, por sua vez, destacou-se em seu Casa-Grande & Senzala justamente pela tese
de que a formação cultural brasileira era fruto em grande medida de uma bem sucedida
“aclimatação” do português aos trópicos, e em 1922 havia concluído seu mestrado em ciências
políticas e sociais em Columbia, autoproclamando-se posteriormente o grande divulgador da
obra de Boas no Brasil. Teria sido Oliveira Lima o broker a estabelecer um importante contato
entre Freyre e Boas? Outro aluno de Boas, Rüdiger Bilden, também vinha realizando pesquisas
a respeito na mesma época (PALLARES-BURKE, 2013), tendo influenciado o próprio Freyre,
que o cita diversas vezes em Casa-Grande & Senzala. De todo modo, é possível notar aqui,
mais uma vez, um interesse por parte de Boas em verificar suas teorias antropológicas no
“laboratório” brasileiro.
As conexões diretas de Boas com a rede brasileira de intelectuais acentuam-se
sobremaneira na década de 1930. Já foram mencionadas aqui as cartas trocadas com José
Oiticica (1931), Herbert Baldus (1932) e Roquette-Pinto (1932). Assim como em relação a esse
último antropólogo, Boas entrou em contato com Curt Nimuendajú (1883-1945), no mesmo
ano, também em função das pesquisas que Jules Henry Blumensohn viria realizar em território
brasileiro. Embora se trate de uma curta correspondência, seu conteúdo é de extrema valia para
a compreensão dos elementos que ligaram os brasileiros a esta rede transnacional mais ampla
de americanistas.
Já vimos acima que o valor do trabalho de pesquisa de Nimuendajú foi desde cedo
reconhecido pela rede transnacional de americanistas, sobretudo por meio de sua ligação muito
próxima a nomes como Erland Nordenskiöld, Robert Lowie e Alfred Métraux. Hoje há um
expressivo interesse em torno de sua vida e obra, certamente tanto em função de seu valor
científico como do caráter mitológico que sua figura adquiriu para a memória das ciências
sociais brasileiras. Após a sua morte, nomes como Herbert Baldus (1945), Alfred Métraux

258
“[…] much interested in this question, on account of the problem of acclimatization in the upper tropics” –
carta de Boas a Oliveira Lima, 14 de dezembro de 1925, FBP, APS.
207

(1950) e Egon Schaden (1968) escreveram textos que ajudaram a despertar o interesse sobre
sua trajetória pessoal e a fundar as bases de uma memória disciplinar que o alçaria à categoria
de verdadeiro “herói civilizador” das ciências sociais brasileiras. É desse modo que a ele se
refere, por exemplo, Roberto Cardoso de Oliveira, em artigo publicado originalmente no
Anuário Antropológico de 1985, ao procurar compreender as características específicas das
ciências sociais produzidas no Brasil, colocando-o ao lado da outra figura mitológica que tem
sido a de Gilberto Freyre como um dos pais fundadores do “estilo” brasileiro de antropologia
(OLIVEIRA, 2003). Um outro trabalho importante e que ajudou a compreender as ações de
Nimuendajú no interior de um contexto relacional, institucional e discursivo mais amplo foi a
dissertação de mestrado de Luís Donisete Benzi Grupioni, que se utilizou dos arquivos do
Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil para interpretar de
maneira bastante consistente as complexas imbricações presentes no campo indigenista e
antropológico brasileiro (GRUPIONI, 1998). Atualmente outros trabalhos têm surgido com o
intuito de desvelar o amplo significado internacional da ação de Nimuendajú, e seria impensável
esgotar aqui a literatura a respeito desse etnógrafo.259 É possível destacar, no entanto, que de
modo geral o interesse por sua obra e atuação gira em torno de sua ação colecionista numa
primeira fase de sua carreira, de seu reconhecimento internacional como etnógrafo, sobretudo
após a parceria estabelecida com Lowie, e também pela profunda identificação com os povos
indígenas que estudava, o que motivou uma incansável defesa dessas “culturas primitivas”
contra as investidas do mundo “civilizado”. Deixarei para a próxima parte desta tese, no
entanto, o aprofundamento das questões relacionadas à sua atuação colecionista, aos processos
de subjetivação e objetivação daí advindos e à produção de recursos antropológicos que
contribuíram para o enriquecimento do patrimônio etnográfico brasileiro.
As duas cartas enviadas a Boas por Nimuendajú estão em alemão – a do dia 15 de
dezembro de 1932 e a do dia 5 de fevereiro de 1933, esta escrita após a resposta de Boas, de 5
de janeiro de 1933 à sua primeira carta; por fim, há um telegrama do dia 3 de maio do mesmo
ano enviado por Boas a Nimuendajú. A respeito delas Priscila Faulhaber escreve o seguinte:

Nimuendajú também se correspondeu com Boas, expondo ao antropólogo seu


conhecimento fundado no “conhecimento de campo” sobre os grupos indígenas para
justificar sua atividade de coletor de artefatos para museus. Nimuendajú ofereceu a
Boas uma coleção Apinayé por U$900. Boas respondeu que não era possível financiar
seu trabalho, a despeito de reconhecer seu mérito e o valor antropológico da coleção.

259
Dentre eles, vide AMOROSO, 2001, WELPER, 2002, FAULHABER, 2013, TAMBASCIA, 2013 e
FAULHABER, 2016. Há também um valioso material reunido e disponibilizado gratuitamente pela “Biblioteca
Digital Curt Nimuendajú” <http://www.etnolinguistica.org/autor:curt-nimuendaju>, sítio do qual foram retiradas
a maioria das indicações aqui fornecidas.
208

Boas também enviou um telegrama para Nimuendajú, em 3 de maio de 1933, e com


uma frase lacônica expressou sua discordância em relação ao modo como Nimuendajú
garantia sua subsistência durante as pesquisas de campo: coletando e vendendo
artefatos nativos para museus etnográficos envolvidos no mercado internacional de
bens simbólicos, no qual circulava a cultura material indígena. Tal mercado era
baseado em redes internacionais que envolviam intrincadas relações de troca
simbólica e financeira. (FAULHABER, 2013, p. 226-227)

Outro conteúdo interessante para os fins deste trabalho é o que se encontra numa
troca de cartas entre Nimuendajú e Boas também a propósito da passagem de Jules Henry
Blumensohn pelo Brasil. Em carta do dia 5 de janeiro de 1933, Boas faz o seguinte pedido a
Nimuendajú: “Eu ficaria muito grato se você pudesse fazer a gentileza de ajudá-lo [Jules
Blumensohn] com os seus conselhos. A partir de um relatório que eu recebi hoje, ele pareceu
estar bastante inseguro de seu sucesso na região onde ele está”.260 Em contrapartida, Boas
ofereceria, conforme informa na mesma carta, espaço para que ele publicasse no jornal sobre
linguística que estava a seu cargo nos EUA: “Se em qualquer momento você tiver alguma
contribuição sobre uma das línguas que você estuda e que queira publicar em alemão, eu ficarei
muito grato em recebê-lo para o International Journal of American Linguistics”.261 Eu
destaquei o complemento “em alemão” pelo fato de que isso mostra o quanto as estratégias
relacionais de Boas estavam atreladas à sua simpatia por aqueles que, por fora das rivalidades
nacionalistas produzidas pelas guerras europeias, pudessem contribuir para a manutenção e
fortalecimento da produção etnológica alemã.
Em sua resposta, escrita em português, Nimuendajú evidencia um interesse comum
aos antropólogos histórico-culturalistas filiados à tradição da Völkerkunde alemã: a busca por
tribos cujos modos de vida ainda não houvessem sido “deculturados” – termo usado por
Nimuendajú e aparentemente equivalente ao termo acculturated, preferido nos EUA – antes
que se extinguissem completamente:

Lamento muito que o estado de deculturação dos botocudos de Santa Catarina não lhe
permita mais um estudo completo como o Snr. desejava. Acho, porem, dificil
encontrar uma tribu nas condições exigidas pelo Snr., que conserve viva a sua cultura
em toda a linha. Hoje, no Brasil, os indios ainda assim conservados, ou se encontram
em alguns poucos pontos de difficilimo acesso, – a região fronteira com a Venezuela
e as Guyanas estrangeiras – e, alguns centros no Norte de Mato Grosso, por ex. – ou,
élas mantêm-se numa atitude francamente hostil a todo e qualquer estranho. Todas as

260
“I shall be very grateful to you if you be good enough to help him with you advices. From a report received
today he seemed to be rather doubtful of his success in the region were he is” – carta de Boas para Nimuendajú, 5
de janeiro de 1933, FBP, APS.
261
“If at any time you have any contribution on one of the languages that you have studied and that you wish to
publish in German, I shall be very glad to have it for the International Journal of American Linguistics”.
209

tribus pacificas e de facil acesso que eu conheço, estão, mais ou menos, deculturadas.
Aqui, entre os Canélas, tenho de sustentar uma luta feroz contra o alcoolismo, que, a
cada momento ameaça entre esses indios, a execução das ceremonias antigas. 262

Em seguida, Nimuendajú apresenta uma série de exemplos de tribos jês que não estariam em
condições de servirem a um “estudo etnológico intensivo” em função do seu grau de
“deculturação”, em especial os apinajés, cuja “tribo” “estragou-se pelo alcoolismo e a
prostituição”. Mas ele se lembra dos urubús do Rio Gurupy, na fronteira entre o Maranhão e o
Pará, que faziam contatos esparsos com os servidores do SPI na região, motivo pelo qual o
remetente fornece uma série de indicações a respeito de como alcançar esse grupo. Nimuendajú
ainda se recorda de outros grupos na região, fornecendo uma série de elementos que indicavam
a relevância de seu estudo, mas acaba retornando ao primeiro, pois “qualquer trabalho de valor,
sobre os Urubús, em todo o caso, não existe; e, um intensivo estudo da tribu, antes que a
civilisação a invada, seria muito interessante”. No entanto, as conclusões de Nimuendajú são
bastante pessimistas:

Acho, porém, que, si o Snr., depois quizer continuar os seus estudos em territorio
brasileiro, terá de abandonar a norma, de querer ocupar-se, exclusivamente, de tribus
de cultura ainda intácta. Eu, particularmente, me convenci, de que são, justamente as
tribus em vias de desaparecer, que carecem de estudo em primeiro lugar, e, que os
trabalhos, com tais restos, mesmo já grandemente deculturados, são – as mais das
vezes – de relevante importância para a etnologia: Haja visto os trabalhos de
Gusinde,263 entre os ultimos Yagan e Ona! Eu mesmo, tirei muito mais resultado dos
meus estudos entre os Apapokúva-Guaraní, deculturados, e, como se acreditava,
sobejamente conhecidos, do que do contáto que, como primeiro civilisado, estabeleci,
com os Kawahiwa-Parintintin, na pacificação, de 1922.

Na verdade, o que podemos presenciar nessa carta é a fala de um etnógrafo sem


instrução acadêmica formal que, aos poucos, começava a impor a sua experiência etnológica a
um crescente contingente de pesquisadores estadunidenses cuja formação teórica indicava uma
imagem homogeneizante da rica e complexa realidade cultural das tribos indígenas sul-
americanas. A incrível erudição obtida por Nimuendajú por meio de uma rara relação de
empatia estabelecida com os indígenas com os quais convivia passou a ser vista como o
principal guia para os projetos antropológicos comparativistas estadunidenses direcionados à
América do Sul. De todo modo, é importante assinalar que um pouco antes do contato mais
assíduo estabelecido entre Nimuendajú e Lowie era Boas quem já se dispunha a oferecer os

262
Carta de Nimuendajú para Boas, 12 de junho de 1933, FBP, APS.
263
Martin Gusinde (1886-1969), missionário e etnólogo austríaco, conhecido pelos estudos antropológicos
realizados na Terra do Fogo.
210

seus recursos editoriais para o etnógrafo sul-americano e era um discípulo direto seu quem
recebia as primeiras orientações para que pudesse adentrar com mais segurança nos inóspitos
sertões brasileiros. Ainda voltarei à trajetória pessoal de Nimuendajú (e a outras que se atrelam
à sua) quando for tratar dessa rede transnacional interamericanista no período da Segunda
Guerra Mundial.
Ainda na década de 1930 há uma carta em que Boas recusa o convite de José
Valadares para a participação em um congresso. Embora a sua resposta seja bastante lacônica,
é fora de dúvida que se trata do 1º Congresso Afro-Brasileiro de 1934, realizado no Teatro
Santa Isabel, Recife, idealizado e organizado por Gilberto Freyre e secretariado pelo
destinatário da carta em questão.264 Uma vez que Freyre se proclamava o representante do
culturalismo boasiano no Brasil (CAMPOS, 2004), era de se esperar uma maior consideração,
por parte do próprio Boas, em relação ao evento organizado por seu pupilo. Logo adiante esse
silêncio específico será retomado.
Há também uma rápida troca de cartas com o folclorista Luís da Câmara Cascudo
(1898-1986) entre fevereiro e julho de 1935, a respeito de publicações solicitadas pelo
pesquisador potiguar em função de seu difícil acesso no Brasil. É possível também que esse
contato fosse uma tentativa de aproximação a elementos-chave da rede transnacional de
americanistas, se considerarmos que Câmara Cascudo poderia ter endereçado seu pedido a
qualquer outro antropólogo estadunidense. Cascudo organizava, à época, um livro sobre a
“Contribuição allemã à Ethnographia Brasileira”, oferecendo a Boas o seu estudo sobre o
“Principe Maximiliano de Wied no Brasil”.265 O pretexto do contato inicial era a organização
de uma “Seção de Ethnographia Americana” da “livraria” da Escola Normal do Rio Grande do
Norte, e Câmara Cascudo contava com “que o grande Franz Boas não se recusará em auxiliar
um grupo de estudiosos da ethnographia americana onde tantos e tão illustres trabalhos figuram

264
Carta de Boas para Valadares, 30 de outubro de 1934, FBP, APS. A respeito deste evento, Mateus Silva
Skolaude afirma que “na organização do evento, Gilberto Freyre contou com a participação indispensável de seu
primo Ulysses Pernambuco, professor e psiquiatra de grande influência em Recife. Além disso, o 1º CAB teve a
participação de artistas e intelectuais renomados no país, como é o caso dos pintores Cícero Dias, Noemia e Di
Cavalcante, do maestro Ernani Braga, dos escritores José Lins do Rego, Mario de Andrade e Jorge Amado, do
folclorista Câmara Cascudo, do antropólogo Roquette-Pinto, do psiquiatra Arthur Ramos e do etnólogo Edson
Carneiro. A participação internacional ficou por conta do antropólogo americano Melville J. Herskovits que enviou
dois textos ao congresso. Ao lado desses homens de letras, o encontro teve a colaboração de estudantes, de
analfabetos, de cozinheiras, de Albertina Fleury, rainha de maracatú, de babalorixás e ialorixás do Recife, de
Miguel Barros, representante da Frente Negra Pelotense” (SKOLAUDE, 2014). O evento teria ainda um marcado
posicionamento anti-arianista, advogando a importância do elemento negro para a construção da nacionalidade.
Maria José Campos (2004), também trata deste Congresso, numa perspectiva mais voltada para os embates
travados entre Freyre e Arthur Ramos.
265
Carta de Cascudo para Boas, 7 de junho de 1935, FBP, APS.
211

sob seu nome”.266 De fato Boas não se opôs à colaboração, embora não tenha encontrado os
seus próprios trabalhos para que fossem enviados ao Rio Grande do Norte. Mas talvez o mais
interessante da carta de Cascudo seja a forma como se apresenta a Boas, desejando talvez se
colocar numa situação de par acadêmico ao inserir, abaixo de sua assinatura, um quase
curriculum vitae:

Cathedratico de Historia. Director da Escola Normal. Do Instituto Historico


Brasileiro. Da Société des Américanistes, Paris, da Gaea, Sociedad argentina de
estudios geographicos, da Sociedade Capistrano de Abreu, dos Institutos Historicos
do Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Parahyba, Archeologico Pernambucano e
Alagoas etc.

Além de Câmara Cascudo, outro pesquisador brasileiro que estabelece contato com
Boas é Arthur Ramos. O assunto dessas únicas duas cartas, datadas de 27 de maio e de 21 de
junho de 1937, é também o envio de publicações. No entanto, agora se tratava da remessa de
um trabalho produzido pelo próprio remetente, que Ramos pretendia divulgar entre os
estudiosos estadunidenses inspiradores do seu próprio trabalho.267 Essa era, aparentemente,
uma prática comum de Ramos, pois, segundo Maria José Campos, “no período de maior
entusiasmo pelas teorias psicanalíticas, tentava estender seus contatos ao exterior enviando suas
publicações para as personalidades ligadas a temas de seu interesse. Data dessa época a remessa
de seus ensaios e teses a Freud, Lévy-Bruhl e vários norte-americanos interessados em
psicanálise, como Smith Ely Jelliffe” (CAMPOS, 2004, p. 37).
Franz Boas também estabeleceu contatos com alguns(mas) do(a)s naturalistas do
Museu Nacional. Depois de Roquette-Pinto, ele produziu uma significativa correspondência
com Maria Júlia Pourchet (1906-1993) a partir de 1936.268 Pourchet enviou duas cartas para o
Departamento de Antropologia de Columbia (12 de março e 1º de abril de 1936), 269 a fim de
obter informações a respeito dos métodos e instrumentos utilizados por Herskovits no
Anthropology of the American Negro, volume XI, pois realizaria pesquisas com os estudantes
negros nas escolas públicas do Distrito Federal. No dia 14 de abril Boas respondeu de maneira
bastante interessada à carta de Pourchet, talvez vislumbrando nessa iniciativa a possibilidade

266
Carta de Cascudo para Boas, 14 de fevereiro de 1935, FBP, APS.
267
Carta de Ramos para Boas, 27 de maio de 1937, FBP, APS. Os livros que Ramos enviou são The folklore of the
Brazilian Negro e o Brazilian Negro.
268
Pourchet ingressou no Museu Nacional em 1932, como praticante gratuita, tendo se tornado posteriormente
assistente de Heloisa Alberto Torres. Em 1936 aceitou o convite de José Bastos de Ávila, também naturalista do
Museu Nacional, para trabalhar na Divisão de Antropologia do Instituto de Pesquisas Educacionais do
Departamento de Educação do Distrito Federal, onde desenvolveu pesquisas antropológicas sobre crianças em
idade escolar (KEULLER, 2008).
269
Cartas de Pourchet para Boas, 12 de março e 1º de abril de 1936, FBP, APS.
212

de obter dados comparativos para as pesquisas que ele próprio vinha realizando no
Departamento de Antropologia de Columbia. Boas enviou como presente vinte “Milton Bradley
color tops”, que foram utilizados nas pesquisas de Herskovits e que Pourchet queria saber onde
poderiam ser encontradas. Além disso, Boas aproveitou a oportunidade para tentar orientar
metodologicamente o trabalho de Pourchet, o que torna ainda mais plausível a hipótese de que
ele almejava poder aproveitar posteriormente esses dados:

Se eu posso fazer uma sugestão, eu gostaria de aconselhar que você se organize para
observações contínuas a serem realizadas, se possível, em intervalos de três meses ou,
se isso não for possível, em intervalos de seis meses ou no máximo anualmente, de
modo que possa ser possível seguir os mesmos estudantes da infância até a vida adulta.
Nós sempre temos dificuldades com o problema de verificar a idade verdadeira, em
parte porque não existem registros, em parte porque os pais gostam de exagerar a
idade dos filhos, primeiro para colocá-los na escola e depois para tirá-los de lá. Muito
provavelmente você encontrará as mesmas dificuldades no Rio.
[…]
Eu acho que será mais importante saber se um clima tropical tem influência na
velocidade do desenvolvimento.270

Nesta última frase fica bastante claro o interesse de estender o seu próprio programa de pesquisa
– no que diz respeito à observação da influência do meio na constituição de “tipos
antropológicos” – ao trabalho que seria desenvolvido por Pourchet.
Conforme se pode observar na carta do dia 1º de junho do mesmo ano, na qual
Pourchet agradece as publicações e as tabelas para aferição pigmentar, 271 foi a própria irmã de
Boas, Anna Urbach, que residia no Rio de Janeiro, quem lhe entregou pessoalmente o material
enviado dos EUA. A Sra. Urbarch acabaria se tornando um importante ponto de apoio para os
pesquisadores estadunidenses ligados a Boas que passavam pelo Brasil. São várias as
correspondências em que seu nome aparece, como entre Boas e Buell Quain,272 Heloisa Alberto

270
“If I may make a suggestion, I should like to advise that you arrange for continuous observations to be taken,
if possible, in three month intervals or if that is not possible, in six month intervals or at least annually, so that it
may be possible to follow the same pupils from an early age until adult life. We have always difficulty with the
problem of ascertaining the true age, partly because there are no records, partly because the parents like to
overstate the actual age of the children, first in order to get them into school and later in order to get them out
school. Very likely you will find the same difficulties in Rio.
[…]
I think it will be most important to know whether a tropical climate has an influence on the speed of development”
– carta de Boas para Pourchet, 14 de abril de 1936, FBP, APS.
271
Em carta do dia 9 de junho de 1936 (FBP, APS), no entanto, Pourchet informa a Boas que os vinte “Wilton
Bradley colour tops” haviam se extraviado.
272
“Ontem sua bondosa irmã chamou-me para jantar com ela em sua casa. Era domingo. A casa dela é lindamente
localizada em um declive às margens da cidade. Em seu pequeno jardim crescem meia dúzia de tipos de fruta.
Nele há uma brisa fresca e se pode divisar dali a parte mais baixa da cidade” (“Yesterday your kind sister asked
me to dine with her at her home. It was Sunday. Her house is beautifully located on a slope at the margin of the
213

Torres,273 e uma carta de William Lipkind, enviada diretamente à irmã do seu professor, na qual
roga por sua interseção junto à ele:

A Sra. Di Pierri me escreveu que Dona Heloisa mudou de ideia sobre mim a respeito
do trabalho. Ela quer Quain em vez de mim. Isso é uma pena, porque o que é
necessário aqui é um linguista e, enquanto Quain é muito competente e inclusive um
trabalhador brilhante, ele não tem nenhum interesse especial em linguística. Quain me
escreveu que ela me escolheu. Eu imagino que com a cabeça dela feita contra mim
minhas chances são pequenas. Eu estou um pouco chateado. Eu tenho polido meu
português me preparando e agora todo aquele trabalho foi desperdiçado. E eu esperava
ficar por um ano no Rio, livre de pressão econômica e com a chance de fazer um
trabalho útil para a antropologia. Dona Heloisa está partindo para Nova York agora,
então talvez o seu irmão possa fazer alguma coisa conversando com ela. Mas talvez
ele tenha se esquecido de mim aqui no Brasil. Ele ainda não me escreveu.274

Essa última carta atesta a centralidade da relação Boas/Heloisa Alberto Torres para a
distribuição dos postos de pesquisa antropológica no Brasil, e como uma conexão carregada de
significado afetivo (o caso da irmã de Boas) pode ser percebida estrategicamente como forma
de desviar ou atalhar o fluxo de recursos dessa rede transnacional.
Voltando às correspondências relacionadas à Pourchet, Boas aproveitou para
solicitar, por meio da irmã, que a antropóloga brasileira lhe conseguisse alguns livros
brasileiros, e ela informa na carta que no momento não podia conseguir todos eles. Será
interessante apreciarmos a wish list de Boas: a primeira obra mencionada são os Archivos do
Museu Nacional, v. VI, que já eram, segundo Pourchet, uma raridade, e, por isso, “vendidos a
um preço exorbitante e em segunda mão”, além de que o próprio Museu Nacional só possuía
um exemplar de resto em sua biblioteca; a segunda refere-se às “Memórias do Congresso de
Americanistas” (o XX, que foi realizado no Rio de Janeiro em 1922, e, como vimos, que contou
com um texto enviado pelo próprio Boas), das quais, embora também raras, Pourchet felizmente
tinha em sua coleção particular uma duplicata da 2ª parte do II volume e lhe enviava “com

city. Her small garden grows a half dozen kinds of fruit. In it there is a cool wind and one may sit and overlook
the lower part of the town” – carta de Quain para Boas, 28 de fevereiro de 1938).
273
“Eu não vejo a Sra. Urbach faz muito tempo e eu gosto tanto dela; eu estou sempre ocupada demais” (“I have
not seem Mrs. Urbach for a long time and I like her so much; I am always too busy” – carta de Torres para Boas,
6 de maio de 1941).
274
“Mrs. Di Pierri wrote me that Dona Heloisa has changed her mind about me for the job. She wants Quain
instead. It's a pity because what is needed here is a linguist and, while Quain is quite competent and indeed a
brilliant worker, he hasn't any special interest in liguistics. Quain wrote me that she take me. I imagine that with
her mind made up against me my chances are small. I'm a bit sorry. I had been polishing up my Portuguese in
preparation and now all that work is wasted. And I'd looked forward to the year in Rio, free from economic
pressure and with a chance to do a useful job for anthropology. Dona Heloisa is leaving for New York now so
perhaps your brother can do something in talking her over. But perhaps he's forgotten all about me here in Brazil.
He still hasn't written me” – carta de Lipkind para Mrs. Urbarch, 30 de maio de 1939, FBP, APS.)
214

grande prazer” (ou seja, sem expensas); a terceira obra, que também já não se encontrava à
venda, era o livro Poranduba amazonense, certamente aquele que foi escrito por João Barbosa
Rodrigues (1842-1909) em 1890275 – mas Pourchet estava envidando esforços junto à família
do autor para tentar consegui-lo. Já em carta do dia 22 de julho, em que agradece a nova remessa
dos “20 Wilton Bradley colour tops”, que haviam se extraviado na primeira tentativa, Pourchet
anuncia ter conseguido o Poranduba amazonense e a segunda parte do segundo volume do XX
Congresso de Americanistas.
Depois Pourchet e Boas ainda trocaram mais algumas cartas. Pourchet escreveu
para Boas no dia 9 de setembro, agradecendo mais uma vez o recebimento das fichas de
medição de cor e comunicando o envio dos livros; em seguida, Boas respondeu, no dia 25 de
setembro, agradecendo o envio dos livros e esperando que sua irmã pagasse por eles. Numa
terceira carta, enviada por Pourchet a Mrs. Urbach, a antropóloga brasileira esclarece que Boas
não lhe devia nada e que os livros eram uma retribuição pelos seus préstimos, gentileza que
parece ter o deixado um pouco embaraçado, conforme se depreende de sua resposta do dia 7 de
dezembro de 1936 – pois ao que parece os livros saíram realmente caros. Mas Boas continua
ajudando com relação a outras publicações e materiais que poderiam ser úteis à pesquisadora
brasileira. Essa correspondência encerra-se com uma carta do dia 15 de janeiro de 1937, em
que Pourchet agradece o envio de uma publicação sobre certo “Índice ACH”, que desta vez
havia chegado ao seu destino.
O mais interessante desta troca de cartas entre Boas e Pourchet talvez seja notar que
em 1936 a prefeitura do Distrito Federal vinha envidando esforços quase que concomitantes
àqueles empreendidos por Mário de Andrade, no Departamento de Cultura da Cidade de São
Paulo, no sentido de realizar pesquisas antropológicas junto à população operária paulistana e,
especialmente, entre os jovens em idade escolar por meio dos Parques Infantis (RUBINO,
VALENTINI e GOBBI, 2013). No caso carioca, essas pesquisas acabaram contando com o
apoio direto do próprio Boas, inserindo-se assim num projeto intelectual internacional de
pesquisa sobre os processos histórico-culturais de diferenciação dos tipos humanos no mundo
e, em especial, nas Américas.
Boas ainda se correspondeu diversas vezes com Heloisa Alberto Torres, mas isso
será abordado em outros momentos dessa tese em função de outros atravessamentos relacionais
significativos que essa comunicação comporta. Ainda resta, no entanto, tratar de uma notável

275
Barbosa Rodrigues foi um engenheiro, naturalista e botânico nascido em Santa Rita do Sapucaí, MG, tendo
organizado e dirigido o Jardim Botânico de Manaus, inaugurado em 1883 e extinto após a Proclamação da
República, e diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro de 1890 até seu falecimento em 1909. Também foi o
engenheiro da igreja matriz de Alfenas, MG, cidade natal do autor desta tese.
215

ausência nesta correspondência. Não há nos documentos arquivados nos Franz Boas Papers do
American Philosophical Society nenhum registro de que Boas tenha se correspondido com
Gilberto Freyre. Também não foi possível encontrar nada a respeito nos arquivos do
Departamento de Antropologia da Columbia University. Mesmo nos Central Files eu só pude
encontrar de mais significativo em relação a Freyre um conjunto de correspondências trocadas
com Frank Tannenbaum (1893-1969), atreladas ao período em que o mesmo estava empenhado
na tradução de Casa-Grande & Senzala. Trabalhos como o de Maria José Campos (2004) nos
permitem perceber que seu opositor da “escola Nina Rodrigues”, Arthur Ramos, se aproxima
muito mais diretamente da tradição boasiana do que o próprio Freyre. Além disso, Ricardo
Benzaquen Araújo já teve a oportunidade de demonstrar que a perspectiva neolamarckiana de
Freyre se distancia da abordagem mendeliana de Boas (ARAÚJO, 1994). Com isso, desejo
sugerir, apoiado na já conhecida vontade de autopromoção freyreana, que a posição do escritor
de Apipucos, ao menos neste momento, talvez não fosse tão central no interior da rede
americanista cujos contornos estão sendo apresentados neste capítulo. No entanto, é
interessante notar que Freyre estava bem ciente da existência dessa rede, embora o seu “mapa”
só tenha sido acrescentado em nota de rodapé de meados da década 1940 numa reedição de
Casa-Grande & Senzala.276

Nos três capítulos desta primeira parte mostrei um conjunto bastante extenso de
relações cuja característica mais notável é a sua transnacionalidade. Se tomadas a partir de uma
perspectiva mais restrita, nacional, certamente essas relações perderiam os significados aqui
encontrados em favor de outros. Mas quais seriam esses significados específicos trazidos por
uma abordagem transnacional de uma rede internacional de americanistas?

276
Suas indicações em grande medida coincidem com a rede intelectual aqui esboçada: “sobre os indígenas do
Brasil e da América, em geral, considerados sob critério etnológico e ao mesmo tempo sociológico, vejam-se as
notas bibliográficas em America indígena, por Louis Pericoty Garcia, ("El hombre americano - Los pueblos de
América" Barcelona, 1936) tomo I, p. 692-727 e em Handbook oflatin american studies, Cambridge, Estados
Unidos, 1936; e as seguintes obras básicas: Handbook of american indian language, por F. Boas, 40th Bulletin of
American Indian Ethnology, Washington, 1911; The American Indian, por Clark Wissler, Nova Iorque, 1922; The
civilísatíon of the South American Indian, with special reference to magic and religion, por R. Karsten, Nova
Iorque, 1926; La civilisation matérielle des tribus tupi-guarani, Gotemburgo, 1928 e La religion des tupinambá,
por A. Métraux, Leroux, 1928; Indianerleben: el gran chaco, por E. Nordenskiôld, Leipzig, 1912; "Kulturkreise
und Kulturchichten in Sudamerika", por W. Schmidt (Zeitschriftfur Ethnobgie), Berlim, 1913; In den Wildnissen
Brasiliens, por F. Krause, Leipzig, 1911; Unter den Naturvólkem Zentral-Brasiliens, por Karl von den Steinen,
Berlim, 1894; Zweijahre unter den Indianem Nordwest Brasiliens, por T. Koch-Grünberg, Stuttgart, 1921;
Rondônia, por E. Roquette-Pinto, Rio de Janeiro, 1917; Indians of South America, por Paul Radin, Nova Iorque,
1942; "The dual organization of the Canella of Northern Brazil", por Curt Nimuendajú e Robert H. Lowie,
American Anthropologist, vol. 39; El nuevo indio, por J. Uriel Garcia, Cuzco, 1937; Hiléia amazônica, por Gastão
Cruls, Rio de Janeiro, 1944 (FREYRE, 2003, p. 234, nota 12).
216

Eric Wolf chamou a atenção para a necessidade de considerar os contextos políticos


nos quais as ideias antropológicas são geradas, sem, no entanto, cair em interpretações
mecanicistas que deixem de lado as inter-relações entre os intelectuais, as instituições em que
atuam e os valores dominantes da época em que vivem (WOLF, 2001, p. 63 e ss.). Assim, para
a compreensão das diversas antropologias nacionais surgidas no início do século XX e que
perduraram até o fim da Segunda Guerra Mundial, seria necessário entender, por um lado, as
divisões sociais produzidas por contextos coloniais específicos de dominação, e, por outro, o
enquadramento e posicionamento das instituições produtoras de saberes antropológicos no
interior dessas disputas. O difusionismo moderado boasiano teria, assim, se

desenvolvido depois que as guerras contra os índios foram vencidas e quando


preocupações societárias se voltaram para a entrada do ‘novo’ ou de grupos até então
não representados na arena política e social. Essa democratização da mobilidade foi
combinada por teorias enfatizando a plasticidade e a acomodação em relações
humanas. (WOLF, 2001, p. 69)277

No entanto, a perspectiva transnacional permitiu mostrar que esse tipo de teoria


antropológica precisou se amparar em entrecruzamentos que transcendem relações de poder
nacionais.278 Boas precisou encontrar apoio para suas posições locais em trocas de favores,
influências, coleções e publicações que se estenderam pela Europa e pela América Latina. Estes
capítulos mostraram, portanto, que é necessário considerar a constituição de uma rede
transnacional de americanistas, com seu tráfego específico de recursos, como um aspecto
importante para a compreensão das condições históricas que possibilitaram a emergência da
própria antropologia cultural.
Ainda que o americanismo antropológico não represente toda a antropologia
cultural e que a antropologia cultural também não abarque todo o americanismo, foi possível
problematizar aqui, portanto, a ideia de que qualquer uma dessas práticas intelectuais
específicas tenha tido berço em uma só nação. Ainda que o pertencimento nacional e mesmo
projetos nacionalistas orientem em grande medida os objetivos perseguidos por diversas dessas
pessoas, o mundo que elas habitam e os significados que elas colhem em seus inter-

277
“[…] American diffusionism developed after the wars against the Indians had been won and when societal
concerns shifted to the entry of ‘new’ or hitherto unrepresented groups into the social and political arena. This
democratization of mobility was matched by theories emphasizing plasticity and accommodation in human
relations”.
278
Embora não chegue a explorar as implicações disso para o caso em tela, Eric Wolf também está ciente da
necessidade de submeter a ideia de “tradições nacionais” de antropologia a um exame mais atento, considerando
o “fluxo de ideias por entre fronteiras nacionais” – “[...] the flow of ideas across national boundaries” (WOLF,
2001, p. 78).
217

relacionamentos ultrapassa as fronteiras das nações. As “nacionalidades hifenizadas”, as


relações entre sujeitos e objetos do conhecimento por meio de uma proliferação de híbridos
específicos, as relações de poder que perpassavam essas relações, os fluxos e os movimentos
canalizados por esses laços, tudo isso vai muito além de uma existência restritamente nacional.
Os valores atrelados a essas expressivas vertentes do americanismo e da antropologia cultural
só podem ser compreendidos com mais clareza a partir de uma abordagem transnacional: trata-
se de uma prática de produção de saberes claramente relacionada, como vimos, a um ideal de
ciência internacionalista, antirracista e anti-imperialista. São estes os significados passíveis de
serem captados no conjunto de relações que deu força e ampliou o alcance de conexões
fundamentais para a garantia da institucionalização internacional da antropologia cultural, ou,
igualmente, para a ampla operacionalização do conceito de cultura em novos projetos coletivos
de sociedade.
Dessa extensa rede transnacional é também possível observar a produção de um
híbrido que, cada vez mais, vai tomando uma forma definida. Entre estes sujeitos e objetos do
conhecimento antropológico ganha contornos claros um novo conceito de cultura, e é por meio
dele que a modernidade ganhou um novo impulso em sua autorreprodução global. As energias
em circulação nesta rede transnacional vão dando vida a um conjunto de oposições que se
diferenciam daquelas surgidas na Europa na segunda metade do século XVIII. A civilização
passa a ser vista de forma negativa, como algo cujo impulso destrói uma série de riquezas (as
línguas ameríndias, por exemplo) não imaginadas antes do advento dessas ciências que o
próprio mundo civilizado criou: a etnografia, a arqueologia, a linguística e a própria
antropologia física. O significado da ideia de cultura, por sua vez, sofre uma grande ampliação,
e não se restringe mais às formas nacionais específicas do mundo civilizado; agora passam a
ser valoradas também as “culturas primitivas”, num processo que conduz a uma relativização
valorativa cada vez mais próxima do relativismo generalizado. Ex-colônias, como no caso do
Estado nacional brasileiro, portanto, podem a partir de agora construir novos projetos de
expansão de suas redes de dominação: se antes o poder nacional seria limitado pela
inferioridade racial de um povo miscigenado, agora o que contava era a cultura, os processos
de aculturação e a originalidade produzida por esses contatos culturais, e o que foi motivo de
vergonha na perspectiva civilizacional eurocentrada agora passava a ser visto como valor a ser
cultivado, como promessa de uma nova sociedade capaz de superar as expectativas não
cumpridas pelos ideais civilizacionais iluministas. Logo esse híbrido, o conceito de cultura, se
desdobraria em novos tipos de híbridos, como o patrimônio etnográfico e artístico. Suas funções
seriam potencializar a construção das “culturas nacionais” como desdobramentos
218

configuracionais regionais e eficazes da modernidade, algo que se processaria por meio de um


tipo de validação da ideologia moderna que recorre à experiência palpável do passado em sua
materialidade presente. Esses novos híbridos receberão uma atenção especial na terceira parte
desta tese.
Deste modo, não é possível desvincular a produção de saberes americanistas desse
novo contexto internacional. Esta nova antropologia só faz sentido em um mundo em que os
sujeitos dos novos Estados-nações estão ansiosos por produzir uma modernidade que os
legitimem enquanto tal. A antropologia inventada no mundo civilizado passou então a ser
exportada e, ao longo deste caminho, transformada e reimportada. Antropólogos estadunidenses
e europeus cada vez mais se imiscuíram a latino-americanos, asiáticos e africanos. Não fosse o
impulso modernizador que a ideia de cultura tomou nessas ex-colônias recém-autodescobertas
como nações, o fluxo de uma antropologia que, para estudar o outro precisou se fazer
transnacional – mesmo no caso dos Estados Unidos, depois de uma primeira fase de
antropologia/colonialismo internos – provavelmente seria barrado, perderia sentido e a prática
antropológica certamente seria interrompida (a não ser talvez que os antropólogos das nações
“já modernas” se adiantassem no tempo e passassem a etnografar a si mesmos). Por isso que,
quando vamos investigar as práticas concretas do fazer antropológico no período aqui enfocado,
o que acabamos encontrando são laços, trocas, movimentos inescapavelmente transnacionais.
Nestes três capítulos apresentei, portanto, parte de um relato composto por muitos
fragmentos. São trechos de vozes múltiplas que fazem sentido apenas em suas interconexões,
em seus fluxos, em suas trocas e em seus movimentos. São as vozes dos sujeitos que produziram
um novo conceito de cultura e, com ele, uma nova modernidade possível. Mas e os objetos,
onde estão, onde ecoam suas vozes? Ora, é inútil desejar ouvir a voz de um objeto, ainda que
ele seja um conjunto de pessoas, pois apenas os sujeitos “falam”. Para que algo como o conceito
de cultura seja produzido é preciso que o “sujeito do conhecimento” cale, ou melhor, fale por
aquilo que agora é apenas um objeto. O que se tem, portanto, é parte do processo de
modernização, e a modernidade, para que possa existir, precisa produzir silenciamentos,
supressões, apagamentos e esquecimentos. Ela precisa produzir sujeitos e objetos. Do “índio”
que fala só restam os signos decompostos e recompostos numa “língua”, numa “gramática” e,
por extensão, numa “cultura”. Os antropólogos civilizados de nossa rede transnacional
americanista salvaram muitas línguas, congelando-as em suas celebradas monografias, mas não
encontramos nos documentos que nos deixaram quase nenhuma “voz” daqueles que as
produziram, para além das palavras que lhes foram tomadas. Hoje conhecemos culturas
indígenas extintas porque seus artefatos foram transportados para os grandes museus do mundo,
219

mas pouco sabemos sobre aqueles que os utilizaram para além de abstrações, para além de
relações objetificadas em conceitos como os de “economia”, “estrutura social” e, obviamente,
de “cultura”. São, portanto, “semióforos” representam o “invisível”, mas como máscara
mortuária de um ser que já se decompôs. Existem algumas exceções, é claro, como quando
Nimuendajú relata a Boas que pessoas estavam morrendo por causa da varíola e da aguardente.
Mas Nimuendajú é mesmo um caso à parte, uma pessoa difícil de ser enquadrada em moldes
“civilizados”, na história da “ciência moderna”, ele próprio meio índio meio europeu, meio
sujeito meio objeto num mundo moderno.
Para que o conceito moderno, ou moderno tardio, de cultura pudesse existir,
portanto, foi preciso objetificar pessoas, omitir suas vozes pessoais, dar destaque aos sujeitos
do conhecimento, aos pais fundadores ou heróis civilizacionais da narrativa da antropologia
moderna. Para que a modernidade exista, portanto, é igualmente necessário produzir
supressões, esquecimentos, mortes. As linhas que ligavam horizontalmente os pontos da nossa
rede foi transformada, nos arquivos de sua constituição, em uma teia em que só se vê uma
superfície de sujeitos e objetos. Aquilo que existiu antes de sua objetivação só subsiste como
fantasmagoria, como recalque, como o reprimido, ainda que tenha conformado os próprios
sujeitos hoje visíveis e esse poderoso híbrido aqui estudado. É isto que resta para narrar da
produção da modernidade, da antropologia moderna, do conceito de cultura e da ideia de nação.
Ao menos foi possível flagrar aqui essa dupla produção, de sujeitos e objetos, a partir do
momento em que os próprios híbridos responsáveis por isso foram enfocados enquanto tal, isto
é, no momento em que o conceito de cultura e os artefatos e recursos etnográficos a ele atrelados
foram apresentados em seus poderes de produção de sujeitos e objetos de novas modernidades.
Mas esta primeira parte se encerra apenas no meio do caminho, isto é, onde o
conceito de cultura se tornou disponível para a construção de novas redes de produção de
sujeitos e objetos. Neste ponto se tornou possível revigorar as redes modernas de dominação de
objetos por sujeitos materializadas na burocracia dos Estados nacionais. Se a ideia de
civilização já não dava conta da resistência à dominação moderna, o conceito antropológico de
cultura estava agora disponível para tentar uma reintegração: no Brasil os negros, índios e
mestiços não precisavam mais lutar contra o Estado oligárquico da Primeira República, pois o
conceito de cultura seria incorporado numa narrativa da nação que garantiria um lugar para
todos no seio do novo Estado, o Estado Novo que, em muitos aspectos, perdurou para além de
1945.
220

Mas antes é preciso acrescentar um pouco mais de complexidade neste relato.


Vejamos como o advento da Segunda Guerra Mundial acabou por reestruturar a proliferação
das redes de produção da modernidade nas Américas.
221

PARTE II: ANTROPOLOGIA INTERAMERICANISTA

Para os americanos, [...] os elementos que figuram tão proeminentemente em sua


Cultura coletiva – as relações de parentesco, a lei, o Estado, a tecnologia e assim por
diante – devem ser continuamente carregados de associações extraídas de áreas
exteriores ao nosso controle ordinário da natureza. A dialética entre Cultura e
natureza precisa ser “ampliada” para incluir outros domínios de experiência de modo
que possa manter sua objetividade significativa e evitar tornar-se tautológica e
moribunda. (WAGNER, 2010, p. 105)
222

CAPÍTULO 6: A CONSTITUIÇÃO DE UMA ANTROPOLOGIA

INTERAMERICANISTA POR MEIO DO HANDBOOK OF SOUTH AMERICAN INDIANS

Se de fato pudermos substituir na epígrafe que abre esta “Parte II” a expressão
“Cultura coletiva” por civilização e a palavra “natureza” por culturas latino-americanas,
teremos algo muito próximo de um princípio que se manifesta, de forma mais específica, na
rede transnacional interamericanista que apresentarei nos capítulos desta segunda parte da
tese. Pretendo deixar isso mais claro mostrando, nos próximos três capítulos, como essas
relações se expressaram no campo da antropologia, em especial no que diz respeito à produção
do Handbook of South American Indians, à construção do Institute of Social Anthropology,
ambos sob a liderança de Julian Steward, e, por fim, apresentando uma agência
interamericanista específica, o Committee of Inter-American Artistic and Intellectual Relations,
comandada por Henry Allen Moe, que articulou diversos projetos modernizadores brasileiros
num momento marcado por disputas intelectuais regionais no país. Antes disso, contudo, é
importante tratar do caráter mais geral das relações bilateriais entre Estados Unidos e Brasil no
período imediatamente anterior à e durante a Segunda Guerra Mundial.

6.1. AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS E


O INTERAMERICANISMO

Do início do século XX até a advento da Primeira Guerra Mundial, pessoas como


Franz Boas, Paul Rivet, Karl von den Steinen e Erland Nordenskiöld conseguiram produzir,
como vimos, sólidos espaços institucionais para a proteção dos conceitos, ideias e valores que
passaram a ser produzidos na rede transnacional de americanistas da qual participavam. No
entanto, essas conquistas seriam contestadas. George Stocking Jr., num capítulo intitulado “The
scientific reaction against cultural anthropology” (STOCKING JR., 1968), em que pese sua
ênfase no recorte nacional na “revolução paradigmática” representada pela institucionalização
antropologia cultural, mostra muito bem como a partir daquela guerra essa posição discursiva,
que parecia consolidada, começou a ser contestada no campo científico por um pensamento
racista e mais afinado aos projetos dos grandes impérios nacionais. De todo o modo, os esforços
intelectuais desses cientistas sociais não foram capazes de conter a ascensão do fascismo. A
223

própria ciência, com o amparo dos governos imperiais, tornava-se cada vez mais ela própria um
instrumento sustentação das supostas superioridades nacionais/raciais. As agressões
nazifascistas, a consolidação do Eixo e a deflagração da Segunda Guerra Mundial em 1939
deram então um outro sentido tanto à prática antropológica, em específico, quanto à atividade
artística e intelectual de maneira mais geral.
O medo do avanço nazifascista possibilitou a emergência de uma nova dicotomia.
O fascismo e o nazismo passavam a ser vistos por uma parcela significativa do mundo ocidental
como a materialização da barbárie. A velha civilização europeia estava em perigo e, ao mesmo
tempo, era claramente incapaz de fazer frente ao avanço do barbarismo. Era preciso fortalecer
uma nova civilização, aquela que vicejava nas jovens e promissoras repúblicas liberais do Novo
Mundo sob uma liderança considerada incontestável por parte dos Estados Unidos. Tornava-se
uma tarefa urgente cultivar a potência dessa jovem civilização por meio da colaboração
interamericana. A nação considerada a mais civilizada (ou seja, os EUA) deveria fomentar a
modernização de outras nações que, embora atrasadas em relação à irmã do Norte, possuíam
peculiaridades culturais riquíssimas e que não poderiam ser solapadas pela investida
internacional do nazifascismo. Não só isso: as nações latino-americanas guardavam recursos
naturais valiosíssimos, ainda inexplorados ou nem mesmo conhecidos, que não deveriam cair
nas mãos erradas. As lideranças estadunidenses então se investiram da imagem da “boa
vontade” (good will) em relação aos seus irmãos mais pobres do Sul, e, para cultivar a “boa
vizinhança” (good neighborhood) em relação a eles, destinaram-lhes parte expressiva de sua
fortuna em ações de cooperação bilateral, seja por meio do Estado, de associações civis ou das
fundações filantrópicas ligadas aos grandes conglomerados do país. Um dos principais esforços
de guerra dos EUA ganhou vida, desse modo, numa vasta obra de produção de saberes sobre
dois objetos: as culturas e as riquezas naturais latino-americanas. Só assim o mundo livre
poderia fazer frente ao avanço do totalitarismo.
É comum que alguns(mas) autores(as) utilizem, ao invés do termo “interamericano”
(que inclusive aparece na documentação que pesquisei com uma frequência mais evidente) o
termo “pan-americano” para se referir ao mesmo tipo de redes transnacionais que as estudadas
neste capítulo. Fabiana Servidio (2011), por exemplo, define pan-americanismo, apoiada em
Gordon Cornell-Smith, como o reconhecimento de laços identitários partilhados pelas
repúblicas americanas que estariam fundados na experiência comum da origem colonial. No
entanto, embora essa ideia seja de fato acionada como forma de legitimar as relações
transnacionais que são estabelecidas especialmente no período da Segunda Guerra Mundial, o
que mostrarei nesta parte da tese é que essas redes se estruturam em um outro tipo de relação,
224

diferente da horizontalidade pressuposta na ideia de “pan-americanismo”. Considero mais


pertinente chamar de “interamericanismo” o tipo de relação transnacional concebida como um
encontro bilateral entre a civilização estadunidense e uma das culturas latino-americanas. A
característica marcadamente bilateral dessas relações implica na negação, por parte do polo
estadunidense, de qualquer tipo de identidade americana que não incluísse os Estados Unidos
como ponto de referência civilizacional e modernizador e, por isso, pode-se mesmo afirmar que
a ideia de pan-americanismo (assim como a de latino-americanismo) se opõe em grande
medida à de interamericanismo.
As bases da cooperação intelectual, cultural, artística e intelectual interamericana
foram lançadas em 1936, na Conferência Interamericana de Manutenção da Paz, em Buenos
Aires (SANTOMAURO, 2015, p. 33).279 A partir de 1938 se proliferam nos EUA diversas
agências voltadas para a cooperação intelectual, científica, educacional e artística
interamericana. Em 1938 o Presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) criou o
Interdepartmental Committee on Scientific and Cultural Cooperation with the American
Republics, agência governamental voltada para programas de assistência técnica direcionados
à América Latina e que funcionou até 1945. Essa agência objetivava, inicialmente, fomentar
trocas intelectuais que ajudassem a fortalecer os laços entre as repúblicas latino-americanas,
mas ao longo da guerra ela passou a apresentar um caráter cada vez mais direcionado à
resolução de problemas políticos práticos, a exemplo da exploração de recursos naturais
estratégicos (MILLER, 2006, p. 136). Outro aspecto importante deste Comitê
Interdepartamental, e que pode ser observado nas ações de outras agências, é que se evitava
tanto as críticas que apontavam o caráter propagandístico de suas ações quando as que
afirmavam que o governo estadunidense estaria entregando seus recursos “de mão beijada” para
os países latino-americanos. Em função disso todos os programas deviam ter um caráter
colaborativo, com verbas, infraestrutura e pessoal das duas nações envolvidas (MILLER, 2006,
p. 140).
O State Department do governo estadunidense também possuía, desde 1938, a sua
própria divisão dedicada à cooperação cultural, a Division of Cultural Relations (DCR), mas
que operava numa escala muito mais reduzida. Com o bombardeio de Pearl Harbor em 1941,
no entanto, o Interdepartmental Committee passou a funcionar no interior da DCR (MILLER,
2006, pp. 140-141), de modo que, até o fim da Segunda Guerra Mundial, parte significativa das
ações de cooperação intelectual interamericanas passavam pela burocracia do State

279
A respeito das outras iniciativas que precederam essa conferência, há uma boa síntese em SERVIDIO, 2011.
225

Department, agora com verbas muito mais significativas circulando em sua DCR. Benjamin
Sumner Welles (1892-1961), figura central no State Department durante a Segunda Guerra
Mundial, dotou comitê de um caráter especial no interior do esforço de guerra, e uma de suas
falas já nos permite depreender o importante papel que os saberes antropológicos viriam a
desempenhar nesse momento:

Uma cooperação internacional efetiva não existe a menos que haja uma apreciação e
entendimento em cada país daqueles problemas dos outros países que emergem de
costumes, tradições, conquistas e filosofias de vida nacionais… Nós temos a tarefa de
aprender a apreciar e entender os pontos de vista, as tradições e os costumes de nossos
vizinhos nas outras Repúblicas Americanas, e de tornar possível para elas verem
nossos problemas e modos de vida – não por meio de propaganda ou proselitismo,
mas, pelo contrário, pela execução conjunta de empreendimentos úteis e através de
associações pessoais ligadas a eles.280

No entanto, a ênfase nas relações culturais causou o descontentamento dos


membros do comitê mais ligados à ciência e uma nova reformulação institucional ocorreu em
janeiro de 1944. O comitê então voltou a possuir um status independente do State Department,
recebendo o nome de Office of American Republic Affairs, agora sob a direção de Laurence
Hayden Duggan (1905-1948), e, em dezembro de 1944, um novo comitê, com mais ênfase no
desenvolvimento de programas científicos, o Committee for Cultural and Scientific
Cooperation, passou a funcionar mais uma vez sob a direção do State Department, mas agora
ocupando uma posição mais elevada (MILLER, 2006, p. 142).
Há um grupo, no entanto, que ganhou um espaço ainda mais destacado no interior
do governo Roosevelt no período que vai dos primeiros atos agressivos de Hitler na Europa,
em 1936, até o fim da Segunda Guerra Mundial. A aproximação entre Nelson Aldrich
Rockefeller (1908-1979) e Roosevelt é muito importante para compreendermos a rede
transnacional de agências, agentes, recursos e saberes que se constituiu nas Américas durante
este período.
Segundo Antônio Pedro Tota (2014), a partir de 1937, Nelson Rockefeller se volta
para os negócios da Standard Oil na América Latina, em especial na Venezuela, e percebe a
necessidade de redução dos conflitos entre capital e trabalho para a manutenção e incremento

280
Fala de Benjamin Sumner Welles do State Department, na reunião de agosto de 1942 (apud MILLER, 2006, p.
141) – “Effective international cooperation cannot exist unless there is an appreciation and understanding in each
country of those problems of other countries which arise from national customs, traditions, achievements, and
philosophies of life… We have the task of learning to appreciate and understand the viewpoints, traditions, and
customs of our neighbors in the other American Republics and of making it possible for them to see our problems
and ways of life—not by propaganda or proselyting, but rather by the joint execution of useful undertakings and
through the personal associations incident thereto”.
226

da produtividade. Reduzir esses conflitos significava, para o caso dos negócios estabelecidos
fora dos EUA, aproximar-se das culturas não-estadunidenses. Em meio a esse trabalho de
aproximação Rockefeller percebe que o avanço nazista podia colocar em risco tanto os negócios
com os países latino-americanos quanto a segurança nacional do seu país, e, por isso, passou a
reunir em torno de si, numa espécie de think tank, diversos intelectuais que se dedicaram a
pensar em soluções para esse problema. O próprio Roosevelt e o State Department estavam
cientes da iminência de uma guerra na Europa e da dificuldade de manterem o seu país numa
posição isolacionista. A Alemanha havia se voltado economicamente para a América do Sul e
logo as suas trocas comerciais com o Brasil, por exemplo, alcançaram as estabelecidas com os
EUA. Além disso, havia o perigo concreto de que, após avançar pela África, o Exército Alemão
pudesse alcançar a Flórida a partir do estado do Rio Grande do Norte (cf. CAMPOS, 1998, p.
524). Foi neste momento que Rockefeller se aproximou de Roosevelt a fim de apresentar as
ideias de seu grupo no sentido de assegurar as posições estadunidenses no mundo latino-
americano e, em especial, no Brasil. Segundo Tota, um documento entregue por Rockefeller a
Harry Lloyd Hopkins (1890-1946), braço direito de Roosevelt, indicava, além da necessidade
de uma cooperação econômica e diplomática mais efetiva, a urgência de preparar o quadro de
funcionários(as) do Departamento de Estado para as especificidades culturais dos países latino-
americanos, a fim de se evitar qualquer tipo de “gafe ou mal-entendido” (TOTA, 2014, p. 96).
Isso já aponta para a importância que uma antropologia aplicada adquiriria no
interior do esforço mais amplo de guerra. Diante da experiência de Rockefeller em relação ao
mundo latino-americano, e dos contatos e recursos que ele poderia facilmente mobilizar para
levar a cabo essa política internacional que deveria ir além da “política de boa vizinhança”
anunciada já em 1933 por Roosevelt, este último nomeia o magnata estadunidense, em 17 de
julho de 1940, como “Coordenador das Relações Comerciais e Culturais entre as Repúblicas
Americanas” (o nome da agência, em inglês, era Office for Coordination of Commercial and
Cultural Relations between the American Republics). Este órgão, cujo nome logo foi abreviado
para Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), era o canal por meio do
qual os departamentos de Estado, da Agricultura, do Tesouro e do Comércio passaram a se
relacionar diretamente com a América Latina de modo a construir uma unidade interamericana
orientada pelos EUA. O “Office” “era uma das maiores agências do governo Roosevelt, pelo
menos em número de auxiliares diretos e indiretos” (TOTA, 2014, p. 119) e Nelson Rockefeller
“era agora o funcionário mais graduado de uma nova agência, criada especialmente para tratar
das relações com a América Latina” (TOTA, 2014, p. 103). A presença de Rockefeller no
227

governo estadunidense reforça o caráter liberal, esclarecido e filantrópico impresso, naquele


momento, na política dos EUA em relação à América Latina.
O Office realizou diversos tipos de atividades na América Latina, em especial no
Brasil. Uma de suas funções era veicular o American way of life para as demais repúblicas do
continente, o que foi feito por meio do cinema e do rádio – a Motion Picture Section, por
exemplo, tinha à sua frente Jock Whitney (1904-1982), que havia produzido o filme ...E o vento
levou, além de contratar Walt Disney (1901-1966) para a realização de filmes voltados para o
estreitamento dos laços de boa-vizinhança; Rockefeller conseguiu, por outro lado, vencer o
coronel William J. Donovan (1883-1959), que coordenava o Office of Strategic Service (OSS),
precursor da CIA, na definição dos programas radiofônicos a serem transmitidos para a América
Latina, privilegiando assim uma programação cultural, científica e de notícias diferente daquela
produzida para a Europa. A área financeira e econômica recebia uma especial atenção:
estudavam-se os recursos minerais disponíveis e as formas mais eficientes de explorá-los. Por
meio de intercâmbio técnico e científico, o Office procurou incrementar a produtividade da
indústria e, em especial, da agropecuária.
A floresta amazônica era um lugar da América Latina que interessava
especialmente o governo estadunidense nesse período. Se os Estados Unidos gozavam de
autossuficiência em petróleo, o mesmo não acontecia com a borracha, outro recurso
indispensável para a logística da guerra e cujos produtores orientais já estavam em grande parte
nas mãos dos japoneses. Era urgente, portanto, garantir a posse dos saberes a respeito das
regiões produtoras de borracha que ainda não haviam caído na zona de domínio do Eixo. Além
disso, a Amazônia representava ainda a conquista de fronteiras ainda não desbravadas, do
“wilderness” não mais disponível no território estadunidense (TOTA, 2014, p. 127), elemento
chave para a construção da mitideologia nacional dos Estados Unidos. Uma vez que a produção
de novas áreas de cultivo era inviável diante da necessidade imediata de borracha (sobretudo
após o bombardeio japonês à Pearl Harbor), era preciso investir na extração do material onde
já existissem árvores maduras. Para isso era necessário, no entanto, superar as dificuldades de
transporte, saneamento e de cultura que permitissem o deslocamento eficiente de trabalhadores
para a região dos seringais (CAMPOS, 1998, p. 525).
Quando o Estado brasileiro entrou em guerra ao lado dos aliados em agosto de 1942,
uma série de acordos foi assinada com o governo estadunidense. Se por um lado a máquina de
guerra precisava de recursos naturais estratégicos existentes no Brasil, por outro Vargas estava
interessado na alavancagem que isso significaria ao desenvolvimento econômico nacional, em
228

especial no que diz respeito à industrialização.281 No dia 14 de março de 1942, Sumner Welles
e Arthur de Souza Costa (1893-1957), então ministro da Fazenda brasileiro, assinaram um
acordo de saúde e saneamento. Este plano foi estendido a toda a América Latina e deixado a
cargo do Office de Rockefeller, que criou o Institute of Inter-American Affairs (IIAA) como
agência subsidiária voltada especificamente para este fim. Cada país criou suas próprias
agências por meio de acordos bilaterais específicos para desenvolver ações em cooperação com
o IIAA. No Brasil foi criado o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), num acordo firmado
entre Jefferson Caffery (1886-1974), embaixador estadunidense no Brasil, George M.
Saunders, resentante do IIAA, Gustavo Capanema (1900-1985), ministro da Educação e Saúde
Pública, e Oswaldo Aranha (1894-1960), ministro das Relações Exteriores (CAMPOS, 1998,
pp. 525-527). Saunders foi nomeado o diretor do SESP e, junto com George C. Dunham,
desembarcaram no Brasil dia 11 de abril de 1942.282 Dentre os diversos técnicos que
colaboraram com a SESP está o antropólogo Charles Wagley, que ocupou um papel estratégico
em função da abordagem sociológica de seus estudos de comunidades do interior do país, de
seu conhecimento da língua portuguesa e sobre a burocracia brasileira (assunto do qual tratarei
em detalhes noutro momento).
Segundo Antônio Tota, Nelson Rockefeller, que já havia aprendido muito bem a
usar as armas culturais em seu esforço de guerra, logo sentiu a necessidade de produzir estudos
mais detalhados a respeito da cultura latino-americana a fim de tornar as ações de sua agência
mais eficientes. A antropologia aplicada ao planejamento geopolítico estadunidense já não era
novidade, e o exemplo mais conhecido disso talvez seja a pesquisa realizada por Ruth Benedict,
que resultou no livro The Chrysanthemum and the Sword, publicado em 1946. Inspirado nesta
experiência, o Office de Rockefeller contratou os trabalhos de Wendell C. Bennett (1905-1953),
arqueólogo da Yale University, John Lewis Gillin (1871-1958), sociólogo da University of
Wisconsin, e o já mencionado antropólogo Alfred Métraux. Os objetivos desses cientistas
sociais iam desde a realização de estudos no campo da antropologia física até investigações

281
Letícia Pinheiro fornece uma interpretação mais ampla a respeito dos interesses brasileiros em seu alinhamento
aos Aliados: “[...] além de viabilizar a promessa feita por Washington de modernizar as forças armadas brasileiras
– e do que isto representou na política de compromissos do presidente Vargas ao obter dos militares um expressivo
apoio a seu governo –, devemos entender seu significado de médio prazo para os formuladores da política externa.
Participar da guerra era garantir a presença brasileira nos arranjos de paz. E tomar parte nessas negociações
significava se fazer ouvir no processo de construção de uma nova ordem mundial. Além disso, participar desse
reordenamento representava um diferencial nada desprezível frente aos demais países da América do Sul,
particularmente frente à Argentina. Mais uma vez o Brasil se pautava pela busca de presença mais significativa no
sistema internacional” (PINHEIRO, 2004, p. 26).
282
Carta de Berent Friele, Special Representative do Coordinator of Inter-American Affairs of the United States
of America, Formerly Coordinator of Commercial and Cultural Relations Between the American Republics, para
Henry Alden Moe, Rio de Janeiro, 28 de abril de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7). B:M722,
Henry Allen Moe Papers, American Philosophical Society (nas próximas referências apenas “HAMP, APS”).
229

sobre as relações inter-raciais como forma de “promover o progresso e a modernização”


(TOTA, 2004, p. 138).
Vê-se, portanto, que a antropologia passou a ser considerada um saber estratégico
no esforço de guerra estadunidense. Fernanda Massi chama a atenção para esta mudança
marcante na antropologia produzida nos EUA no período da Segunda Guerra Mundial: “Após
1941, […] começa-se a falar em ‘antropologia aplicada’, e estimativas de [19]43 mostram que
mais da metade dos profissionais em antropologia estavam envolvidos full-time com os esforços
de guerra, sendo que 25% dedicavam-se parcialmente a ela” (MASSI, 1989, p. 440). A autora
ainda ilustra esses dados com alguns exemplos: os trabalhos de Ruth Benedict e Margaret Mead
sobre hábitos alimentares pelo National Research Council; a participação de Clyde Kluckhohn
(1905-1960), Alexander Leighton (1908-2007) e Benedict no Foreign Morale Analysis
Division of the Office of War Information; o Far Eastern Civil Affairs Training School for the
Army da University of Chicago, dirigido por Frederick Russell Eggan (1906-1991); e o Institute
of Social Anthropology, organizado por Julian Steward na Smithsonian Institution.283 Segundo
Regina Figueiredo, a Segunda Guerra Mundial provocou tanto “uma mudança no escopo das
atividades realizadas pelos antropólogos” quanto uma “ampliação das possibilidades no campo
profissional” (FIGUEIREDO, 2010, p. 254). Percebe-se, portanto, que a Segunda Guerra
Mundial abriu uma quantidade nunca vista de postos de trabalho para antropólogos de todos os
níveis no EUA. Os latino-americanos também perceberam, como veremos, as oportunidades
abertas por essa transformação.

283
Em carta de 8 de maio de 1942 para Julian Steward, Alfred Métraux escreve que “cada vez mais antropólogos
se amontoam em Washington. Eles estão todos terrivelmente ocupados e correm para cima e para baixo como
ratos envenenados” (“More and more anthropologists flock into Washington. They are all terribly busy and run
up and down like poisoned rats”) – “STEWARD, Julian H. (1942-45)” Series 4, Correspondence, Box 11, Records
of the Institute of Social Anthropology 1942-1952, (RISA), NAA, SI. Steward também tece um comentário a este
respeito em carta escrita para Robert Lowie: “Washington continua a se encher de antropólogos e eu suponho que
agora nós temos perto de 80 trabalhando em diferentes agências em conexão com o esforço de guerra. Embora
eles não estejam aqui precisamente como antropólogos, isto significa que a antropologia se tornou ao menos algo
mais pertinente aos assuntos práticos e que um grande futuro nos aguarda” (“Washington continues to fill up with
anthropologists and I suppose we now have nearly 80 working in different agencies in conection with war effort.
Although they are not here precisely as anthropologists, it means that anthropology has become at least somewhat
more pertinent to practical affairs and that a large future is in store”) – “LOWIE, Robert H. (1942-49)”, Series 4,
Correspondence, Box 11, RISA, NAA, SI. Em outra correspondência, de 5 de outubro de 1942, agora de Charles
Wagley para Steward, o primeiro manda lembranças do Brasil para “os milhares de antropólogos(as) trabalhando
em Washington agora”, e aproveita para também se colocar à disposição: “se eu puder ser de alguma ajuda aí, por
favor me avise” (“Give my best to all the thousands of Anthropologists working in Washington now. If I can be of
any help down here, please let me know”) – “Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject File, Box 12,
RISA, NAA, SI.
A respeito das referências relacionadas aos documentos dos NAA, adotarei o seguinte critério de notação, tentando
seguir da melhor maneira possível as orientações da própria agência para este fim: em primeiro lugar, indicarei,
quando isso não tiver sido feito no próprio texto, o remetente e o destinatário da missiva, seguido da data e, em
casos específicos, do local; em seguida, indicarei, entre aspas, o nome da pasta, depois da “série”, o número da
caixa (“box”), e, por fim, a sigla da coleção e a indicação de que estão arquivados nos NAA, SI.
230

Neste capítulo eu tratarei especificamente da produção do Handbook of South


American Indians (HSAI) a partir dos documentos localizados nos National Anthropological
Archives, da Smithsonian Institution (NAA-SI), em Washington D. C., EUA. Como adiantei no
segundo capítulo, a organização desses documentos produz uma narrativa que, em grande
medida, se confunde com a trajetória pessoal de Julian Steward. A instituição arquivística
inscreve na história das ciências sociais estadunidenses, desse modo, um funcionário-sujeito
que, imbuído dos valores civilizatórios nacionais, teria sido um dos principais responsáveis por
uma espécie de mudança paradigmática na ciência antropológica internacional. Mais que isso,
esse sujeito seria responsável pelo estreitamento de laços entre as nações latino-americanas em
função de uma atuação exemplar, norteada pelo fortalecimento do espírito de uma linhagem
intelectual que remete aos grandes empresários-pensadores-pais-fundadores do país. Steward
aparece aqui como um elemento de ligação entre o mundo acadêmico e o destino manifesto da
nação por meio da ação do Estado, reiterando, portanto, o mito da excepcionalidade
estadunidense. O que pretendo é propor uma releitura dessa documentação a partir de uma
perspectiva transnacional que aponte para os conflitos presentes na produção dessa
modernidade que se pretende construir, de maneira definitiva, no interior de uma guerra contra
a barbárie nazifascista.

6.2. JULIAN STEWARD: O SUJEITO EXEMPLAR DA ANTROPOLOGIA

INTERAMERICANISTA

Do ponto de vista da história das ideias antropológicas, Julian Haynes Steward


(1902-1972) é conhecido como um dos principais representantes de uma vertente de cientistas
sociais estadunidenses que, após a Primeira Guerra Mundial, se voltaram para abordagens mais
totalizantes da história humana, recusando as explicações calcadas em modelos relativistas e
psicologizantes como os da “escola cultura e personalidade”, por exemplo. Numa tentativa de
reaproximar a antropologia dos paradigmas científicos nomológicos das ciências naturais, essa
nova tendência antropológica foi dedicada à sustentação de leis e modelos generalizantes que
pudessem explicar o desenvolvimento da humanidade de seus primórdios até o mundo
moderno. Ao lado de nomes como Karl August Wittfogel (1896-1988) e Leslie A. White (1900-
1975), Steward é considerado um “neoevolucionista”, sem que isso caracterize uma corrente
fechada e sistemática de pensamento (GAILLARD, 2004, p. 117). Steward teria sido o fundador
de uma “ecologia cultural”, “afirmando que a combinação de recursos ambientais e tecnologias
231

disponíveis determina a forma de produção, que, por conseguinte, influencia o sistema social”
(GAILLARD, 2004, p. 119).284
Segundo Robert F. Murphy, que foi seu aluno na Columbia University, Steward, em
função de sua abordagem materialista, teria influenciado toda uma geração de antropólogos
que, no período da Guerra Fria, aproximou-se do marxismo (MURPHY, 2004).285 Embora
Steward guardasse simpatia por esse grupo de estudantes marxistas (WOLF, 2001, p. 5), sua
postura era muito distante de qualquer tipo de radicalismo político, algo que também o afastava
do ativismo de esquerda boasiano. Marc Pinkoski, no entanto, sustenta que, ao contrário de ser
um cientista “apolítico”, Steward teria desempenhado um papel fundamental no projeto
colonial estadunidense, trabalhando ao lado das autoridades governamentais a fim de fornecer
elementos teóricos com o fim de minar os direitos territoriais da população indígena da América
do Norte, sobretudo no período pós-guerra (PINKOSKI, 2008).286
Contudo, embora seja significativa a forma como Steward articula seus
pressupostos teóricos a uma antropologia aplicada e ligada à política de cooperação intelectual
interamericana, eu continuarei a enfatizar aqui as estratégias relacionais e as trocas
estabelecidas em redes que se constituem transnacionalmente. É possível encontrar elementos
importantes relacionados aos sentidos da modernidade, produzidos por meio de diferentes
articulações do conceito de cultura ao de civilização, também nos documentos atrelados à
produção do HSAI e à construção do ISA no período em que Steward esteve vinculado ao
Bureau of American Ethnology (BAE) da Smithsonian Institution. É a partir dessa perspectiva
relacional que desejo mostrar em que medida o “americanismo interamericanista” de Steward
se diferencia do americanismo boasiano.
Julian Steward trabalhou no Bureau of American Etnology (BAE) entre os anos de
1935 e 1946.287 Em 1939 ele percebeu a oportunidade de tomar a frente da produção de um

284
“[…] stating that the combination of environmental resources and available technologies determines forms of
production, which in turn influence the social system”.
285
Além do depoimento de Murphy, vide, a respeito do grupo jocosamente autointitulado “Mundial Upheaval
Society” (Sociedade da Sublevação Mundial), a “autobiografia intelectual” de Eric Wolf (2001) e o resumo de
Gérard Gaillard (2004) a respeito da terceira e quarta geração de antropólogos estadunidenses.
286
Segundo Pinkoski, “por ele [Steward] presumir que os povos indígenas eram pequenos, simples e homogêneos,
ele acreditava que eles seriam naturalmente assimilados por formas mais complexas; e, como resultado, a nova
forma emergente não seria mais aborígene” (PINKOSKI, 2008, p. 190), não lhes garantindo, assim, direito aos
seus territórios ancestrais. Steward atuou como uma espécie de consultor do Indians Claim Comission do U.S.
Department of Justice entre 1949 e 1952.
287
Antes disso, Steward, que nasceu em Washington, numa família de cientistas cristãos, foi aluno de Alfred
Kroeber e Robert Lowie na University of California em Berkeley, onde obteve o seu Ph.D. em 1929, depois de
uma passagem pela Cornell University, com a tese The Ceremonial Buffoon of the American Indian. Em 1928 se
tornou professor do primeiro curso de antropologia na University of Michigan, onde ficou até 1930, quando foi
232

Handbook (guia ou manual) sobre os índios da América do Sul. Antes de averiguar como isso
foi possível, é importante mostrar alguns precedentes desta ideia.
Antes de ser empreendido por Steward, o projeto de um Handbook já circulava na
rede transnacional de americanistas em que Franz Boas figurava de maneira central. Em 1911,
quando também trabalhava no BAE, o próprio Boas foi o autor do primeiro volume do
Handbook of American Indians Languages. Antes disso, Edward Sheriff Curtis (1868-1952)
produziu o The North American Indian, uma monumental obra em 20 volumes, fruto das
pesquisas fotográficas financiadas pelo banqueiro J. P. Morgan (1837-1913) a partir de 1905 e
editada por Frederick Webb Hodge (1864-1956). Foi a este trabalho que Paul Rivet se referiu
em carta já mencionada nesta tese, enviada de Paris a Franz Boas, em 23 de fevereiro de 1924.288
Seguindo a interpretação que tenho proposto até aqui, é plausível afirmar que o
interesse por um Handbook a respeito dos índios sul-americanos estava ligado, naquele
primeiro momento, à preocupação com o crescente desaparecimento de culturas e línguas ainda
encontradas em seu “estágio primitivo”. Em 1932, Robert Lowie, presidente da Division of
Anthropology do National Research Council (NRC) propôs o projeto de um Handbook sobre
os índios sul-americanos, indicando um comitê composto pelo próprio Lowie, Father John
Montgomery Cooper (1881-1949) e Leslie Spier (1893-1961) (FAULHABER, 2012, p. 89).289
Nesse período os EUA sofriam os efeitos da crise de 1929, Roosevelt ainda não havia sido eleito
presidente do país e Hitler ainda não havia sido feito chanceler por von Hindenburg. Lowie,
que fazia parte daquela rede de americanistas apresentada na “Parte I” desta tese, certamente
estava mais interessado na salvaguarda de culturas em risco de extinção por meio da compilação
de dados e interpretações antropológicas do que na produção de saberes úteis ao processo de
modernização das Américas conduzido pelos EUA. Mas o projeto não foi adiante por falta de
fundos (FAULHABER, 2012, p. 89).
Em 1939, como mostrei no início deste capítulo, a situação era outra. O New Deal
havia solucionado o impasse financeiro nos EUA, Roosevelt havia anunciado, logo no início
de seu mandato, a “política de boa vizinhança” e o conhecimento das culturas latino-americanas
vinha se mostrando cada vez mais importante para o fortalecimento dos negócios e da influência
estadunidenses ao Sul do Rio Grande. Steward era o homem posicionado no lugar e no tempo

substituído por Leslie White. Ainda trabalhou na University of Utah, entre 1930 e 1933, e em Berkeley, entre 1933
e 1934 (Gaillard, 2004, p. 119).
288
Cf. nota 173, p. 160, na subseção “4.3.2. Internacionalismo científico e linguística americanista” desta tese.
289
O próprio Steward salienta, na introdução que escreveu para o HSAI, que este projeto foi antes estimulado pelo
Barão Erland Nordenskiöld (STEWARD, 1946, p. 1), que, como mostrei na “Parte I”, tinha uma posição destacada
na rede internacional de americanistas fomentada por Boas. Por essa época Nordenskiöld estava ligado
especialmente a Lowie, a ponto de ter ministrado aulas em Berkeley em 1927.
233

certos e soube aproveitar a oportunidade: os recursos financeiros começaram a fluir em direção


à antropologia aplicada e voltada para a América Latina, e agora era possível retomar o projeto
do Handbook.
Mas por que a direção de um Handbook era assim tão valiosa? Diante das
experiências anteriores de produção de obras do tipo, é possível que Steward tenha percebido
o potencial de produção de centralidade relacional que um tal empreendimento podia
proporcionar. O americanismo era uma ampla e tradicional área de estudos da antropologia
internacional, mas a América do Sul possuía grupos indígenas ainda desconhecidos, algo já raro
em outros continentes. Steward teve a oportunidade não só de tomar a frente de um projeto que
articularia essa rede transnacional de antropólogos, mas poderia, igualmente, redirecionar os
seus objetivos para uma antropologia aplicada que, por conta deste propósito, poderia ser
alavancada a uma posição de destaque em relação às outras ciências em função de sua utilidade
para as práticas de governo. De acordo com Priscila Faulhaber, o alvo de Steward foi

elevar o status da Antropologia Aplicada durante os anos que conduziram até à


Segunda Guerra Mundial. Pela articulação tanto de projetos acadêmicos e agências
em tempo de guerra sob a aparência de políticas de Boa Vizinhança contra a ameaça
nazista, e obtendo financiamento público para seus projetos, Steward transformou o
modo boasiano de organização da pesquisa antropológica. (FAULHABER, 2012, pp.
84-85)290

Vejamos então como esse projeto de reestruturação paradigmática da antropologia


estadunidense se materializou na produção do HSAI.

6.3. A CONSTITUIÇÃO DE UMA ANTROPOLOGIA INTERAMERICANISTA POR


MEIO DA PRODUÇÃO DO HANDBOOK OF SOUTH AMERICAN INDIANS

6.3.1. A apresentação do Handbook of South American Indians

Na introdução escrita por Steward para o HSAI (STEWARD, 1946) todos os


objetivos mencionados na seção anterior estão expostos de maneira clara. Em primeiro lugar,
Steward afirma que uma antropologia das Américas deve ser “pan-americana”, ou seja, a

290
“To raise the status of Applied Anthropology during the years leading up to World War II. By articulating both
scholarly projects and war time agencies under the guise of Good Neighbor policies against the Nazi threat, and
obtaining public financing for his projects, Steward changed the Boasian way organizing anthropological
research”.
234

produção do HSAI possibilitaria algo há muito reclamado pelos cientistas das diversas
“Repúblicas Americanas”291: encontrar os “meios mais efetivos de agrupar e trocar suas
informações, enquanto que professores e estudantes suplicam para que os materiais sejam
publicados de uma forma conveniente” (STEWARD, 1946, p. 1).292 Além disso, diante da
diversidade de interesses representada pelos mais de 100 cientistas que colaboraram com o
HSAI, Steward alega ter precisado formular ele próprio um plano que conferisse alguma
coerência ao projeto, e com isso pôde direcioná-lo para uma aplicabilidade em relação os
“problemas modernos”:

Totalmente consciente da impossibilidade de satisfazer a todos, o editor formulou um


plano detalhado atrelado, tanto quanto as circunstâncias permitiram, à proposta
original de que o Handbook pudesse sumarizar os fatos da etnologia aborígene. Ao
mesmo tempo, ele insistiu que os problemas modernos não poderiam ser perdidos de
vista, e que a literatura deveria ser apreciada de modo a apresentar aos pesquisadores
o seu valor e interesses variados. (STEWARD, 1946, p. 3)293

Os problemas de “aculturação”, ou seja, das transformações sofridas pelas “culturas primitivas”


a partir de seus contados com o “mundo moderno” ou “civilizado”, portanto, não poderiam ser
negligenciadas:

Como os relatos sobre tribos indígenas no momento da Conquista são inexistentes ou


são rudimentares ao extremo, a reconstrução da etnologia aborígene deve apoiar-se
em documentos que abrangem 400 anos do período histórico durante o qual profundas
influências espanholas, portuguesas e mesmo negras atingiram as mais isoladas tribos
da floresta. Para evitar comprimir esses quatro séculos de dados pós-contato em
quadros etnográficos bidimensionais, como se eles representassem fielmente as
culturas pré-colombianas, os autores foram instados a apresentar seus dados
cronologicamente. Os artigos consequentemente revelam muito das mudanças pós-
contato, e mostram que novos padrões econômicos, sociais e religiosos seguiram a
introdução da colheita europeia, as ferramentas de aço, as novas relações comerciais,
o Cristianismo e muitos outros fatores contingentes com a chegada do homem branco.
A absorção final das tribos das Florestas Tropicais e áreas marginais na civilização
europeia nunca foi estudada, pois, até recentemente, o interesse antropológico cessava
quando os costumes tribais eram perdidos. (STEWARD, 1946, p. 3)294

291
A expressão “Repúblicas Americanas” passa a ser utilizada preferencialmente nos documentos oficiais
interamericanos a partir de então, como que no intuito de reforçar uma aparência de maior horizontalidade entre
os países das Américas.
292
“Scientists of the American Republics have consequently long urged that more effective means be found of
pooling and exchanging their information, while teachers and students have pleaded that the materials be
published in convenient form”.
293
“Fully aware of the impossibility of satisfying everyone, the editor formulated a detailed plan that adhered as
far as circumstances permitted to the original proposition that the Handbook should summarize the facts of
aboriginal ethnology. At the same time, he urged that modern problems be kept in mind, and that the literature be
appraised in a manner to acquaint research workers with its value to diversified interests”.
294
“As accounts of Indian tribes at the moment of the Conquest are nonexistent or are sketchy in the extreme,
reconstructions of aboriginal ethnology must rely on documents ranging over the 400 years of the historic period,
during which profound Spanish, Portuguese, and even Negro influence reached the most isolated jungle tribes. To
235

Em seguida, Steward ainda usa expressamente o termo “aculturação”: “Mas na área Andina,
uma forte civilização nativa se reintegrou com elementos espanhóis e padrões que sobrevivem
entre milhões de índios e concedem à aculturação importância tanto científica quanto
prática” (STEWARD, 1946, p. 3).295
O primeiro volume, The marginal tribes, foi impresso em 1946. A ele seguiram-se
os seguintes volumes: The Andean Civilization (vol. 2, 1946); The Tropical Forest Tribes (vol.
3, 1948); The Circum-Caribbean Tribes (vol. 4, 1948); The Comparative Ethnology of South
American Tribes (vol. 5, 1949); Physical Anthropology, Linguistics and Cultural Geography of
South American Indians (vol. 6, 1950); e, por fim, um último volume, na verdade um Index,
que foi publicado apenas em 1959.296
É interessante notar que os problemas abordados e sua forma de apresentação são
norteados claramente pelo modo segundo o qual o próprio Steward concebia a pesquisa
antropológica. Tratava-se de uma análise que considerava primeiro as condições ecológicas, em
seguida as tecnologias disponíveis – levando em conta, já neste ponto, a história dos contatos
civilizacionais –, para, somente depois, tratar da organização econômica e social, da cultura
material, das crenças, costumes, da religião e de outras dimensões simbólicas da cultura bem
como suas formas de transmissão.297 As partes dos volumes eram introduzidas por um texto de

avoid compressing these four centuries of post-Contact data into two-dimensional ethnographic pictures, as if they
faithfully portrayed pre-Columbian cultures, authors were urged to present their data chronologically. The
articles consequently reveal much post-Contact change, and show that new economic, social, and religious
patterns followed the introduction of European crops, steel tools, new trade relations, Christianity, and many
other factors contingent on the arrival of the White man. The final absorption of the tribes of the Tropical Forests
and marginal areas into European civilization has never been studied, for until recently anthropological interest
has ceased when tribal custom has been lost”.
295
“But in the Andean area, a strong native civilization reintegrated with Spanish elements and patterns survives
among millions of Indians, and gives acculturation practical as well as scientific importance”. Priscila Faulhaber
considera que Steward, pelo contrário, “minimiza” o conceito de aculturação, embasando essa percepção numa
carta enviada a Robert Redfield em 1939 (FAULHABER, 2012, p. 95), mas sem mencionar as passagens indicadas
acima. É preciso lembrar que Faulhaber trata especificamente do terceiro volume do HSAI, e ela própria reconhece
que Steward considerava a relevância prática do conceito de aculturação para os grupos andinos. Por isso considero
que, embora em trabalhos posteriores Steward possa ter dado uma maior importância a outros conceitos, como o
de “mudança cultural”, continua me parecendo arriscado afirmar que essa crítica já tivesse moldado de forma
significativa o HSAI, pelo menos quando tomado o projeto em sua totalidade.
296
Todos eles estão disponibilizados em formato digital no site www.archive.org.
297
No original, em inglês: “The articles start with an Introduction, which often includes a geographical sketch.
Tribal Divisions and History then follow. The history traces the major post-Contact events which have affected
the tribe. When local archeology can definitely be linked with the historic tribe, it is included as a background to
the history. Otherwise it is treated in a separate article. The next section evaluates the principal anthropological
sources. The cultural summaries commence with Subsistence Activities (Farming, Collecting Wild Foods, Hunting,
Fishing, and Food Preparation and Storage). Then come Villages and Houses, Dress and Ornaments, and
Transportation. Manufactures, which follows, is essentially technological; the functional aspects of material
culture are described under other headings appropriate to the use of the objects. This section includes Basketry,
Weaving, Ceramics, Bark Cloth, Metallurgy, Weapons, and other types of manufactures. The following section is
236

síntese, escrito por americanistas experientes, a respeito de áreas culturais mais amplas, de
acordo com a divisão proposta por John M. Cooper.298
Todavia, tomar apenas a introdução do HSAI como evidência das motivações de
um projeto é algo no mínimo arriscado. É importante conhecer os diversos conflitos que
permearam desde a sua discussão e implementação até a sua execução e publicação a fim de se
poder afirmar algo mais consistente. A produção do HSAI já recebeu a cuidadosa e competente
interpretação de Priscila Faulhaber (2012). Depois desse trabalho sinto que me resta apenas
comentar alguns aspectos específicos desse empreendimento, colocando-o na perspectiva da
história transnacional aqui apresentada.
Steward começou a sondar a disposição de seus colegas para a realização do HSAI
em 1939, tendo iniciado a sua produção realmente em 1940. Conforme se lê na folha de rosto
do primeiro volume do HSAI, ele foi preparado em cooperação com o United States
Department of State como um projeto do Interdepartmental Committee on Cultural and
Scientific Cooperation (ao qual já me referi na primeira seção deste capítulo), por meio de
verbas autorizadas pelo Congresso estadunidense para este fim. Neste ponto já é possível notar
um esforço de hierarquização dos sujeitos envolvidos na produção do guia. Um dos principais
pontos defendidos por Faulhaber é que houve, de fato, uma “divisão do trabalho intelectual”
entre os diversos intelectuais envolvidos, “reproduzindo a diferenciação social que caracterizou
historicamente a produção de conhecimento como uma hierarquia entre acadêmicos, etnógrafos
de campo e observações de viajantes” (FAULHABER, 2012, p. 84).299 Segundo sua
interpretação, baseada na consideração da tradição de estudos sobre os povos ameríndios da
região amazônica, os pesquisadores brasileiros seriam considerados por Steward “primos
pobres”, de “sétimo ou oitavo grau” (FAULHABER, 2012, p. 87). Haveria, desse modo, uma
dinâmica paternalística de apropriação cultural, na qual um grupo de especialistas criaria e

usually Trade or Economic Organization. Social and Political Organization, which follows, describes the general
patterns and structure of the groups. If necessary, special accounts of Warfare and Cannibalism come next. Life
Cycle then sketches Birth, Childhood, Puberty rites and initiations. Marriage, and Death observances. Esthetic
and Recreational Activities includes Games, Music, Musical instruments, Dancing, Narcotics, and Intoxicants.
Religion describes beliefs about supernatural powers and beings, and magical and religious rites, functionaries,
and structures. It also includes concepts and practices concerning the medicine man or shaman, unless shamanism
is sufficiently developed to warrant a separate section. Mythology and Folklore follow. Finally comes Lore and
Learning, which includes cosmogony, measurements of weight, time, and space, and other special beliefs or
concepts of an essentially nonreligious nature” (STEWARD, 1946, pp. 5-6).
298
No original, em inglês: “(1) Marginal hunting and gathering tribes of Eastern Brazil, the Gran Chaco, the
Pampa, Patagonia, and Tierra del Fuego; (2) the Andean civilizations; (3) the tribes of the Tropical Forests and
Savannas; and (4) the Circum-Caribbean cultures, including that portion of Central America which was strongly
influenced by South America” (STEWARD, 1946, p. 4).
299
“[…] reproducing the social differentiation that historically characterized the production of knowledge as a
hierarchy between scholars, ethnographers studying in situ, and travelers’ observations”.
237

estruturaria “domínios estratégicos de conhecimento” (neste caso, aquele relacionado aos ainda
pouco conhecidos grupos indígenas das florestas tropicais brasileiras), que passariam a ser
administrados num espaço assimétrico de relações de poder. Washington seria o “quartel
general” para as “interações entre cientistas e políticos na busca pelo fortalecimento dos laços
entre povos norte e sul-americanos em face da ameaça nazista” (FAULHABER, 2012, p. 88).300
A documentação arquivada no Handbook of South American Indians Records,
NAA, SI (doravante apenas HSAIR), dá conta de um imenso trabalho relacional. As
correspondências, relatórios, propostas e manuscritos ali depositados evidenciam a produção
de sujeitos e objetos em torno de um novo americanismo – que tenho chamado de
“interamericanista”. Trata-se de um grandioso conjunto de trocas de informações, fofocas, indas
e vindas de manuscritos, cobrança de prazos, convites, negativas, enfim, de uma complexa rede
transnacional de antropólogos impossível de ser aqui esgotada. O que farei, portanto, é
apresentar apenas alguns aspectos dessas relações que são mais diretamente relevantes para o
conjunto dos argumentos apresentados nesta tese, tomando cuidado para não repetir
simplesmente aquilo que já foi demonstrado por Faulhaber (2012). Meu foco será dirigido às
correspondências produzidas entre Steward e seus interlocutores, em especial aquelas que
dizem respeito mais diretamente aos interesses voltados para o Brasil.

6.3.2. A exclusão de pesquisadores europeus

Desse modo, o primeiro aspecto a respeito do qual eu gostaria de tratar não foi
destacado por Faulhaber. Trata-se da não participação (salvo algumas poucas e importantes
exceções) de americanistas europeus. Steward apresenta este problema na introdução que
escreveu para o primeiro volume do HSAI. Acima eu já mencionei a afirmação de Steward
segundo a qual o HSAI seria uma obra “verdadeiramente pan-americana”. Embora o autor
lamente o fato de que a Guerra teria tornado impossível usufruir do conhecimento de muitos
colegas europeus, a próxima afirmação não deixa de sugerir uma exclusão que parecia até muito
bem-vinda:

Ao mesmo tempo, a própria necessidade de encontrar um pessoal nas Américas para


escrever todos os artigos tornou o trabalho verdadeiramente pan-americano, tanto
na execução quanto no escopo. O interesse despertado em problemas mútuos, bem
como os contatos criados entre cientistas, prenunciam uma nova era de pesquisas,

“[…] interactions between scientists and politicians looking to strengthen ties between North and South
300

American peoples in the face of the Nazi threat”.


238

a maior parte delas necessariamente cooperativa, direcionada para os problemas


fundamentais das Américas. A adequação da colaboração interamericana nestes
problemas dificilmente pode ser questionada. (STEWARD, 1946, p. 5)301

É como se o infortúnio da Guerra tivesse aberto os olhos para o fato de que o saber
sobre as Américas deveria ser produzido por “americanos”. Steward se coloca, então, como
precursor dessa “nova era” do americanismo, que deveria se fundar, necessariamente, numa
colaboração interamericana, ou seja, com a participação das culturas latinas mas a partir da
direção da civilização estadunidense, que agora despontava como a mais importante de todo
mundo haja vista que toda Europa estava afundada na barbárie da guerra – e se os EUA se
meteram no conflito teria sido apenas para pôr fim nessa situação, ainda que isso representasse
ceifar outros milhões de vidas, militares e civis.
O HSAI, na verdade, contou com a importante participação de europeus, a exemplo
de Alfred Métraux, que se tornou uma espécie de co-editor do projeto ao lado de Steward, e
Claude Lévi-Strauss. Estes, no entanto, estavam exilados no Novo Mundo e já muito bem
integrados nas instituições científicas estadunidenses – Métraux já havia passado, como já
mostrei no capítulo anterior, pelo Museum of Honolulu, havia dado aulas em Berkeley e
Columbia e, a partir de 1939, tinha se tornado professor visitante na Yale University; Lévi-
Strauss, por sua vez, conseguira emprego na New School of Social Sciences, em Nova York,
desde 1940. Outros europeus, como Herbert Baldus e Curt Nimuendaju, também participaram
do HSAI, mas sua longa vida na América do Sul os fazia serem considerados “latino-
americanos” a despeito de suas terras natais (cabe lembrar que Baldus se naturalizou brasileiro
em 1941, ao passo que Nimuendaju havia feito o mesmo já em 1921). Ainda que europeus,
pode-se dizer, portanto, que suas vivências e projetos estavam, naquele momento, mais
próximos do mundo americano do que do europeu. Mas há um caso específico que aponta para
um caráter mais deliberado da exclusão de europeus do projeto do HSAI. Refiro-me às
negociações relacionadas à colaboração de Paul Rivet com o Handbook.
Como mencionei no capítulo anterior, após a ocupação da França pelas forças
nazistas, Rivet se refugiou na Colômbia, onde fundou o Instituto Etnológico e abrigou outros
etnólogos franceses anteriormente ligados ao Musée de l’Homme, em Paris. Rivet foi procurado
pelos organizadores do Handbook quando algumas dificuldades relacionadas à linguística dos

301
“At the same time, the very necessity of finding personnel from the Americas to write all the articles has made
the work as truly pan-American in execution as in scope. The awakened interest in mutual problems as well as the
contacts created between scientists foreshadows a new era of research, most of it necessarily cooperative, directed
toward fundamental human problems of the Americas. The appropriateness of inter-American collaboration on
these problems can hardly be questioned”.
239

povos indígenas sul-americanos pareciam insuperáveis. Essa seção ficou a cargo do linguista e
arqueólogo John Alden Mason, curador do University Museum da University of Pennsylvania
de 1926 a 1958 – o mesmo que se envolveu na discussão entre Boas e K. T. Preuss, narrada no
“Capítulo 4” desta tese. Mason era especialista em culturas mesoamericanas, e ainda
praticamente inexistiam linguistas estadunidenses especializados nas línguas sul-americanas, a
despeito dos esforços empreendidos por Boas, no início da década de 1930, para reverter essa
situação. Os estudos linguísticos produzidos por Rivet em 1924 (RIVET, 1924), por sua vez,
ainda eram referências na área, e a sua proximidade com Alfred Métraux certamente influenciou
o convite para a sua colaboração.
Em carta enviada de Bogotá, Colômbia, para Alfred Métraux em 25 de outubro de
1941,302 Rivet diz, no entanto, que era muito difícil aceitar a oferta feita por Mason, pois toda
a sua documentação havia sido confiscada durante a ocupação nazista. A princípio Steward
pretendia solicitar a participação apenas de estudiosos residentes nos EUA. Mas com a
disponibilidade de verbas e a percepção de que o trabalho só poderia ser levado a cabo se fosse
possível usar os estudos produzidos na América do Sul, visto que até então pouquíssimos
cientistas estadunidenses haviam realizado pesquisas na área, pareceu então inevitável solicitar
que alguns(mas) intelectuais pudessem também produzir pequenos artigos em vez de apenas
fornecerem dados a serem sintetizados nos EUA. Steward então deixou a critério de Mason
propor o tipo de colaboração que ele acreditasse ser a mais pertinente para conduzir a sua
sistematização da linguística sul-americana para o Handbook.303
Rivet parecia interessado no trabalho e trocou diversas cartas com Métraux ao longo
do mês de fevereiro de 1942, após a resposta deste último àquela primeira de 25 de outubro do
ano anterior.304 No dia 17 de julho de 1942, Steward enviou uma nova carta para Rivet,
informando os problemas que estavam enfrentando com a parte de linguística e deixando a seu
critério a escolha da forma pela qual ele acreditava poder participar.305 Junto com essa carta,
Rivet havia recebido uma outra, de Mason, na qual, segundo o etnólogo francês, era informado
de que “havia uma pequena preferência em ter todos os artigos neste Handbook escritos por
estadunidenses”.306 Essa proposta de Mason, que havia optado por escrever um artigo a partir
das informações cedidas por Rivet, ao invés de convidá-lo a escrever ele próprio um texto a ser

302
“RIVET, Paul”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
303
Carta de Steward para Mason, 13 de janeiro de 1942, “MASON, J. Alden, 1”, Correspondence, Box 7, HSAIR,
NAA, SI.
304
“RIVET, Paul”, Correspondence, box 8., HSAIR, NAA, SI.
305
“RIVET, Paul”, Correspondence, box 8., HSAIR, NAA, SI.
306
“There is a little preference for having all the articles in this Handbook written by North Americans” – Carta
de Rivet para Steward, 3 de agosto de 1942, “RIVET, Paul”, Correspondence, box 8, HSAIR, NAA, SI.
240

publicado no Handbook, deixou o etnólogo francês bastante ofendido. Rivet escreveu a


Steward, nessa mesma carta do dia 3 de agosto de 1942, afirmando que não havia chegado aos
66 anos de idade para aceitar o papel de “informante anônimo” (informateur anonyme), e que
“se estava arruinado e pobre” (et [si] je suis ruiné, et pauvre) tinha ao menos “dignidade para
não aceitar este papel de mercenário” (j'ai avez de dignité pour ne pas accepter ce rôle de
mercenaire rétribué). Rivet ainda salientou que não havia nos Estados Unidos ninguém capaz
de escrever algo a respeito da linguística sul-americana; que na Europa houve um tempo em
que se pudera contar com Nordenskiöld, Koch-Grünberg, (Walter) Krickenberg (1885-1962) e
(Čestmír) Loukotka (1895-1966); que agora, no entanto, só sobrava ele, Rivet, e embora
estivesse exilado na Colômbia estava disposto a contribuir com todo seu conhecimento; que,
finalmente, os cientistas que estavam sendo convidados por motivos políticos careciam de
competência científica. Por fim, depois de demonstrar insatisfação com alguns colaboradores
escolhidos e com o próprio formato do Handbook (que, segundo ele, deveria ser escrito em
forma de dicionário, não de tratado), Rivet ainda afirmou que colaboraria de boa vontade com
os amigos estadunidenses, mas que não aceitaria jamais colaborar como um “primo pobre” (“Je
collaborerai bien volontiers avec mes grands amis nord-américains et avec vous, mais je
n'accepterai jamais de collaborer en 'parent pauvre”).
Steward se esforça, a partir de então, para desfazer o mal-entendido, escrevendo
uma longa carta no dia 20 de agosto de 1942, reencaminhando-a no dia 24 de outubro e tentando
um novo contato em 25 de fevereiro de 1943.307 Ele também discutiu longamente o assunto
com Mason, que a despeito de algumas considerações de Steward continuava achando que Rivet
era mesmo o principal pesquisador disponível no que dizia respeito à linguística sul-
americana.308 Alfred Métraux acreditava que a carta agressiva de Rivet se devia ao seu estado
emocional em função da Segunda Guerra Mundial.309 Steward ainda tratou do assunto com
Wendell Bennett,310 mas Rivet não voltou a responder aos posteriores pedidos de colaboração

307
“RIVET, Paul”, Correspondence, box 8., HSAIR, NAA, SI.
308
Carta de Mason para Steward, 23 de agosto de 1942, “MASON, J. Alden, 1”, Correspondence, Box 7, HSAIR,
NAA, SI; cartas de Steward para Mason, 5 de outubro de 1942, de Mason para Steward, 20 de outubro de 1942,
de Steward para Mason, 10 de novembro de 1942, e de Mason a Steward, 20 de novembro de 1942, “MASON, J.
Alden, 2”, Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA, SI.
309
“Eu estou algo acostumado com as explosões de Rivet e tenho recebido cartas ainda mais ferozes dele nos
últimos dias. Agora eu começo a entender seu humor, pois ele está terrivelmente sozinho e inconsolável por causa
dos trágicos eventos deste ano. É difícil estar em um exílio nesta idade, sessenta e seis anos, e se sentir um tanto
fora de cena” – “I am somewhat used to Rivet's outbursts and have received fiercer letters from him in days past.
Now I begin to understand his mood because he is terribly lonely and heartbroken by the tragic events of this year.
It is hard to be an exile at his age, sixty-six, and to feel somewhat out of the picture” (carta de Alfred Métraux para
John Alden Mason, 3 de setembro de 1942, “MASON, J. Alden, 1”, Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA, SI).
310
Carta de Bennett para Steward, 21 de dezembro de 1942, “BENNET, Wendell C.”, Correspondence, Box 5,
HSAIR, NAA, SI.
241

para o Handbook.
O motivo apresentado por Métraux para a explosão de Rivet não é o único que deve
ser levado em conta. É preciso lembrar que já na década de 1920 Rivet vinha articulando o
projeto de um Handbook para a América do Sul com Nordenskiöld e outros americanistas. Em
1932 esse projeto quase se tornou realidade, mas então não existiam fundos ou pessoas
suficientes para empreendê-lo. O tipo de americanismo que orientava a produção de
antropólogos como Rivet, Nordenskiöld e Lowie, como vimos na “Parte I”, estava ligado a
valores internacionalistas e anti-imperialistas. O que Rivet percebeu imediatamente no pedido
de colaboração feito por Mason foi algo muito diferente. Não se tratava da colaboração
científica internacionalista que Rivet, Boas, Nordenskiöld, Lowie e tantos outros se esforçaram
por produzir num passado recente, mas de um projeto com claras orientações políticas e dirigido
paternalisticamente dos EUA para os “primos pobres” sul-americanos. Mais que isso, há algo
implícito, possivelmente sentido por Rivet e não menos relevante: os sujeitos estadunidenses
estavam aproveitando a guerra na Europa para assumir o papel de vanguarda civilizacional da
qual os franceses por tanto tempo se orgulharam. Rivet poderia ainda ter percebido que seu
ideal civilizatório, especificamente socialista, vinha sendo suplantado por antropólogos a
serviço da democracia liberal estadunidense.
Tudo indica que Rivet, afinal, não estava equivocado. Não obstante o tom
diplomático adotado por Steward nas cartas mencionadas acima, sua correspondência com
Theodore D. McCown (1908-1969), paleontólogo da University of California em Berkeley, a
este respeito, não deixa dúvidas quanto aos seus objetivos em relação aos latinos. Tratava-se de
ocupar os espaços que antes eram dos europeus:

Embora eu pense que Rivet mereceria receber umas bofetadas, há uma série de
passagens [dos textos escritos pelos latino-americanos] em que os latinos devem ser
atacados um pouco menos frontalmente. Eu acredito que nós estamos à beira de afastar
a maioria deles da influência europeia em seu pensamento, se nós os pegarmos pela
mão ao invés de chutar-lhes o traseiro.311

McCown não parecia tão paciente. Ele escreve o seguinte, depois de afirmar que Rivet estava
velho: “os ‘sábios’ sul-americanos pensam em termos da pré-Reforma e usam métodos que
foram excelentes no século XVIII. Eu receio não partilhar o seu otimismo sobre a iminência da

311
“[…] although I think Rivet needs to be kicked squarely in the teeth, there are a couple of passages in which
Latinos might be attacked a little less frontally. I believe we are on the verge on weaning most of them from
European influence in their thinking if we lead them along by the hand instead of kicking them in the rear” – Carta
de Steward para McCown, 3 de setembro de 1943, “MCCOWN, Theodore D.”, Correspondence, Box 7, HSAIR,
NAA, SI.
242

conversão intelectual deles”.312 Para Steward os bárbaros latino-americanos ainda poderiam


ser civilizados se afastados das velharias europeias; para McCown isso era impossível.

6.3.3. A exclusão dos boasianos

No entanto, Steward não estava brigando apenas com os antropólogos europeus.


Também é possível localizar disputas “intra-estadunidenses” significativas em suas
correspondências, a exemplo de uma sensível animosidade direcionada à facção de Ruth
Benedict na Columbia University, algo que pode ser flagrado em apenas algumas confidências
dirigidas por Steward ao seu antigo professor em Berkeley, Robert Lowie.
Em 1939, mesmo sem garantia de verbas, Steward resolveu retomar os planos do
comitê formado em 1932 pelo National Research Council (NRC) para a produção do
Handbook. Em carta enviada para Benedict em 6 de outubro de 1939, Steward a convidou
formalmente para tomar parte do seu projeto interamericano.313 À época, a concessão de
recursos pelo Congresso estadunidense, os quais seriam administrados pelo Bureau of American
Ethnology da Smithsonian Institution, era ainda apenas uma esperança, mas, mesmo assim,
Steward conseguiu contar com o entusiasmo de diversos colegas. Ele recuperou o esquema que
fora trabalhado pelo comitê formado anteriormente no NRC e, junto com um novo comitê,
formado por John Cooper, Lowie, Alfred Kroeber, Leslie Spier e Matthew W. Stirling (1896-
1975), elaborou um esboço mais completo para aquilo que imaginavam que seria o Handbook.
Com esse esboço pronto, Steward passou a contatar diversos nomes reconhecidos da
antropologia estadunidense e que tivessem algum interesse nos estudos etnológicos sobre a
América do Sul. Benedict foi um desses nomes.
Em carta de 20 de novembro de 1939, Steward escreveu a Lowie tratando, dentre
outras coisas, das respostas a este seu trabalho de sondagem inicial:

A aceitação pelas pessoas que foram as primeiras opções ainda corre a 100%. Além
do mais, eu mandei o esboço para várias outras pessoas pedindo comentários e tenho
recebido cartas muito boas de praticamente todo mundo. Benedict é quase que a única
que não respondeu – eu me pergunto por quê!314

312
“The South American ‘sabios’ think in pre-Reformation terms and use methods which were excellent in the
XVIIIth century. I'm afraid I can't share your optimism on the imminence of their intellectual conversion” – carta
de McCown para Steward, 12 de setembro de 1943, “MCCOWN, Theodore D.”, Correspondence, Box 7, HSAIR,
NAA, SI.
313
“B”, Correspondence, Box 5, HSAIR, NAA, SI.
314
“Acceptance by people who were first choices still runs 100%. In addition, I have sent the outline around to
various other persons asking for comments and have received very nice letters from practically everyone. Benedict
is about the only one who has not replied – I wonder why!” – “LOWIE, Robert”, Correspondence, Box 7, HSAIR,
NAA, SI.
243

Esse comentário de Steward também me deixa tentado a perguntar “por quê?” Por que a menção
a Benedict, se ela era “quase a única” (e não “a única”) a não ter respondido? Por que essa
negativa de Benedict é tratada num tom aparentemente irônico com Lowie, com uma liberdade
tal que lembra a de amigos íntimos que partilham um segredo ou fofoca? Na verdade, eu poderia
me perguntar também o que exatamente significa a exclamação na expressão “I wonder why!”:
trata-se do estranhamento relacionado a uma conduta não prevista, ou, por outro lado, o que se
tem é mesmo uma ironia, como se Lowie já soubesse muito bem o motivo do silêncio de
Benedict?
Possivelmente Steward e Lowie levaram para seus respectivos túmulos esse
pequeno segredo de amigos. Mas na “Memória biográfica” que Lowie apresentou em 1947 na
Reunião Anual da National Academy of Sciences (LOWIE, 1947), é possível captar uma espécie
de ressentimento em relação a Franz Boas, não obstante a longa e respeitosa correspondência
que mantiveram por vários anos, conforme mostrei no capítulo anterior. Boas, tão afável com
Benedict, Margaret Mead e toda a geração de estudantes dos seus últimos anos em Columbia,
para quem ele era o “Papa Franz”, não se abriu da mesma forma aos seus primeiros discípulos,
a exemplo de Albert B. Lewis (1867-1940), Alexander Goldenweiser, Paul Radin (1883-1959)
e o próprio Lowie. O antropólogo de Berkeley atribui este comportamento a uma fase atribulada
da vida de Boas – aquela que corresponde às contendas que travou com o diretor do American
Museum of Natural History (AMNH), em Nova York (LOWIE, 1947, p. 314). Mas Lowie teria
mesmo o desculpado? Ao fazer sua carreira acadêmica na University of California, em
Berkeley, ao lado de Alfred Kroeber, Lowie não teria cultivado um certo antagonismo em
relação ao grupo de Columbia em meio às constantes disputas acadêmicas por recursos e
posições? Tudo isso ainda é, no entanto, mera especulação.
O mais plausível é afirmar que o distanciamento que se processava entre o grupo
de Steward e o de Boas e Benedict está ligado a uma disputa mais ampla a respeito do que
representaria a forma legítima do ofício antropológico. Steward desejou que Boas e Benedict
endossassem o seu empreendimento, pois convidou a ambos para a primeira fase de definição
do projeto do Handbook. Boas, então nos últimos anos de sua vida, já havia se aposentado e
passava por diversos problemas familiares e de saúde, mas muito provavelmente não
compactuaria com uma antropologia submetida aos interesses governamentais. De Benedict
não é possível dizer o mesmo, pois, como já mencionei, ela também colaborou com o esforço
de guerra por meio de programas antropológicos, mas é evidente que ela tinha os seus próprios
projetos e é natural imaginar que ela não fosse submeter o seu tradicional departamento ao
244

projeto de um nome ainda secundário da antropologia estadunidense e que, ainda por cima, não
ocupava nenhum cargo numa universidade de prestígio. Mas é interessante flagrar em algumas
outras poucas correspondências de Steward, sempre com Lowie, que era ele quem continuava
manifestando um certo desdém por Benedict e seus alunos.
A respeito de William Lipkind (a quem chama de “Lipkin”), por exemplo, que foi
aluno de Benedict e realizou pesquisas de campo no Brasil com o apoio do Museu Nacional,
Lowie não acreditava que ele fosse capaz ficar a cargo sozinho da região do Tocantins-Xingu,
e achava que ele deveria escrever a sua parte junto com Curt Nimuendajú. Lowie ainda comenta
que tinha um considerável manuscrito de Nimuendajú sobre os xerentes “e ele conhece a
literatura antiga sobre o Xingu, a qual não se espera que nenhum colega treinado-pela-Benedict
considere senão com desprezo”.315 Em resposta, Steward concorda com a impressão de Lowie:
“Lipkind me parece um bom homem, mas eu descobri que a sua avaliação a respeito dele à luz
do seu treinamento em Columbia (Benedict) é correto”.316 Com isso Steward deixa claro que
não se referia ao treinamento oferecido por todo o Departamento de Antropologia da Columbia
University, pois ele tomava, por exemplo, William Duncan Strong (1899-1962) como amigo –
e por causa deste contato Steward foi, depois de terminado o Handbook, assumir a chefia do
próprio Departamento de Antropologia daquela universidade. Mas a confissão mais
significativa desse distanciamento pode ser encontrada numa outra carta de Steward para
Lowie, datada de 2 de agosto de 1943:

Eu recentemente recebi o anúncio da Quarta Conferência sobre Ciência, Filosofia e


Religião. Como isso aparentaria ser uma importante oportunidade para que os
antropólogos contribuíssem com algo para a paz, a mim e a outros aqui pareceu
lamentável que a antropologia seria de novo e exclusivamente representada por meio
das um tanto peculiares visões de Bateson, Mead, Gorer, Benedict e outros. Este
valioso grupo pode ter visões estimulantes sobre o desenvolvimento da ciência, mas
eu penso que é algo duvidoso que a sua vertente de antropologia seja a única pertinente
aos assuntos modernos e ao mundo pós-guerra. A moral tirada da proeminência deles
me parece que é simplesmente o fato de que eles são um tanto mais vociferantes do
que o resto de nós. Como você é um membro da Conferência, não haveria algum meio
pelo qual você pudesse sugerir que outros antropólogos, que sustentam o que muitos
de nós consideram visões não mais substanciais, pudessem também ser incluídos no
programa?317

315
“I have a sizable MS by N. on the Serente and he knows the earlier Xingu literature, which no Benedict-trained
colleague can be expected to regard with anything but scorn” – carta de Lowie para Steward, 9 de maio de 1940,
“LOWIE, Robert”, Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA, SI.
316
“Lipkind seems to be a good man but I gather that your estimate of him in the light of his Columbia (Benedict)
training is correct” – carta de Steward para Lowie, 21 de maio de 1940, “LOWIE, Robert”, Correspondence, Box
7, HSAIR, NAA, SI.
317
“I recently received the announcement of the Fourth Conference on Science, Philosophy and Religion. As this
would seem to be an important opportunity for anthropologists to contribute something to the peace, it has seemed
to me and to others here unfortunate that anthropology should again be exclusively represented through the
245

Neste trecho Steward claramente define um eles e um nós. O eles representa o grupo
de antropólogos(as) “vociferantes”, portadores de “visões peculiares” e formados na tradição
boasiana. O nós representa, por outro lado, o conjunto de pessoas que partilhava do projeto
antropológico interamericano e de sua missão civilizadora e modernizadora. Na verdade, essas
divisões já são bem conhecidas no campo da história da antropologia estadunidense. Segundo
Faulhaber, Gregory Bateson (1904-1980) e Cora Alice Du Bois (1903-1991) eram contrários às
políticas de Estado dos EUA; em relação à vertente teórica de Benedict, “a Escola de Cultura e
Personalidade não tardou a ser considerada ultrapassada pela antropologia social proposta por
Steward, que procurava cunhar instrumentos de análise histórico-comparativos em lugar de
tomar a cultura por si mesma” (FAULHABER, 2011, p. 18).

6.3.4. Objetificação do outro: as “tribos” que importavam para o


interamericanismo

Existem ainda outros conflitos significativos para os objetivos perseguidos nesta


tese e que podem ser captados por meio dos documentos relacionados à produção do Handbook.
No entanto, eles poderão ser melhor visualizados no processo de construção do Institute of
Social Anthropology (ISA), que está diretamente atrelado ao projeto do próprio Handbook.
Antes disso, todavia, eu gostaria de retornar à introdução escrita por Steward para essa obra a
fim de notar mais um aspecto importante.
A produção do Handbook marca não apenas uma alteração dos padrões subjetivos
do americanismo antropológico. Ela sistematiza também uma nova relação com os seus objetos.
A respeito da designação dos “nomes tribais”, Steward afirma o seguinte: “Como listar todos
esses nomes excederia as fronteiras físicas do Handbook, bem como os limites da utilidade,
nós tentamos agrupá-los naquilo que, num sentido cultural e linguístico, podem ser
consideradas tribos” (STEWARD, 1946, p. 6).318 A questão que Steward se coloca (e discute

somewhat peculiar views of Bateson, Mead, Gorer, Benedict, and others. This worthy group may have stimulating
views in the development of science, but I think it is somewhat doubtful whether their brand of anthropology is the
only one pertinent to modern affairs and the postwar world. The moral to be drawn from their prominence seems
to me simply that they are a good deal more vocal than the rest of us. As you are a member of the Conference, is
there not some way in which you could suggest that other anthropologists, who hold what many of us regard no
more substantial views, should also be included in the program” – carta de Steward para Lowie, 2 de agosto de
1943, “LOWIE, Robert H. (1942-49)”, Series 4, Correspondence, Box 8, Records of the Institute of Social
Anthropology 1942-1952 (embora este documento esteja na coleção relativa ao ISA, ele ainda se refere ao HSAI).
318
“As it would exceed the physical limits of the Handbook, as well as the bounds of usefulness, to list all these
names, we have attempted to group them into what may, in a cultural and linguistic sense, be considered tribes”.
246

exaustivamente com seus colegas) é: qual é a melhor forma de transformar um conjunto de


pessoas em um novo objeto da antropologia americanista? Ou: como reduzir a subjetividade
dessas pessoas (se é que acreditam nela) a uma coisa, a um artefato mensurável pela ciência
antropológica? Esse é, no Handbook, o objetivo da definição do conceito de tribo e o
significado de sua “utilidade”: delimitar a importância de agrupamentos humanos de acordo
com a sua relevância objetiva para uma ciência que é parte da política interamericanista
estadunidense.
É possível mesmo afirmar que o relativismo desenvolvido pela antropologia
culturalista e historicista da escola boasiana tende a retroceder no Handbook. Nele existiriam
“tribos mais importantes” (more important tribes), merecedoras de uma localização no mapa e
de artigos específicos, e “tribos menores e desimportantes” (minor and unimportant tribes). Se
algumas “tribos” – antes massacradas pelo interesse econômico ou esquecidas pelo poder
público por sua “não-brasilidade” ou por não se encaixarem nos padrões de produtividade
prescritos para o “povo brasileiro” – ao menos passam, com o americanismo, a receber a
atenção da ciência, a serem valorizadas em função de suas “diferenças culturais”, outras, cujos
limites linguísticos e culturais não podem ser captados por essa mesma ciência, eram assim
relegadas ao total esquecimento. Seja para o poder de mando, para o capitalismo, para o Estado
ou para a ciência, os(as) índios(as) continuavam contando não como pessoas, mas como objetos.
E quais tribos mereceriam serem lembradas pela ciência (inter)americanista?
Steward continua sua delimitação: “as tribos mais importantes serão mostradas no mapa geral,
as localizações sendo aquelas do momento do primeiro contato com os europeus” (STEWARD,
1946, p. 7).319 Para além de toda a triagem da significância ecológica, social e cultural imposta
a cada uma dessas “tribos” para assegurar a sua “importância”, sua existência está atrelada a
uma condição de inteligibilidade ainda mais básica: ela só faz sentido a partir de seu contato
com o mundo civilizado. A vida indígena, ou melhor, suas formas objetificadas, só interessam
uma vez inseridas na metanarrativa da modernização. Mais do que uma descrição do Outro, o
que se tem é a produção da história do Nós mesmos, do Ocidente americano, da Civilização do
Novo Mundo, por meio da construção discursiva de seu alter ego.
Mas a marca dessa impressão linguística, deste arquivamento científico, deste
poder arcôntico, essa tem um caráter claramente estadunidense. A intenção é interamericanista:
“a grafia segue uma ortografia simples, que almeja ser inteligível para em inglês, espanhol ou
português” (STEWARD, 1946, p. 7). No entanto, a forma como designamos essas pessoas

319
“The more important tribes will be shown on the general map, the locations being those at the time of the first
contact with Europeans”.
247

segue, ainda hoje, como podemos ler em vários artigos escritos inclusive em português, o traço
da objetificação linguística firmado pelo Handbook, esse manual de americanismo que,
enquanto tal, tem um caráter eminentemente normativo: “seguindo o uso estadunidense, a forma
singular do nome tribal serve como um nome coletivo, e as famílias linguísticas levam o sufixo
-an” (STEWARD, 1946, p. 7).320 Assim, por exemplo, uma pessoa se dissolve em um Puelche
ou um “caçador patagônico” genéricos. Isso não significa, no entanto, que isso se resolva pela
não adoção desses anglicanismos – como aquilo que eu faço quando, por exemplo, em vez de
escrever “um estudo sobre os Puelche” eu escrevo “um estudo sobre os puelches”, adotando
assim a forma gentílica mais característica da língua portuguesa. Trata-se, antes, de conhecer
os processos relacionais e semânticos de produção de sujeitos e objetos e suas resultantes
formas de dominação modernas.

O que foi apresentado é suficiente para mostrar como o HSAI pode ser considerado
uma monumental obra da antropologia interamericanista. Isso porque havia algo mais nesse
projeto do que o simples interesse em mapear as “tribos” sul-americanas. O Handbook, ele
próprio um “híbrido”, foi o desdobramento da produtividade de outros dois híbridos, ou seja,
os conceitos de cultura e civilização em essa sua nova configuração semântica. Sua construção
atuou no campo da antropologia produzindo sujeitos da civilização estadunidense e os objetos
de sua ação, isso é, as culturas de “tribos” que, mais cedo ou mais tarde, sucumbiriam à
inevitável modernização que tomaria todas as Américas.
Esse projeto modernizador, em desenvolvimento, portanto, no interior do campo
antropológico, demandava um novo tipo de subjetividade. Não bastava mais o tipo de
profissional que, ao longo das primeiras décadas do século XX, dirigiu seus esforços para a
institucionalização da antropologia como campo dotado de um significativo grau de autonomia
em relação aos anseios dos Estados nacionais, como o pretendeu Franz Boas e seus parceiros
europeus. O(a) novo(a) antropólogo(a), para levar a cabo a sua missão civilizadora, devia agora
estar apto(a) a dialogar com anseios governamentais em outros termos. Desse modo, os fluxos
que perpassavam a produção antropológica se estenderam por outros campos, interconectaram-
se com outros canais e lhe trouxeram novos recursos, ao mesmo tempo em que transformaram
as suas finalidades.

320
“Spelling follows a simple orthography, which aims to be intelligible in English, Spanish, and Portuguese”;
“Following North American usage, the singular form of the tribal name serves as the collective noun, and
linguistic families bear the ending an”.
248

O significado dessa produção vai além, portanto, do campo restrito da antropologia.


Como vimos, a produção do Handbook se viabiliza em uma das diversas frentes de difusão do
interamericanismo. Conhecer outros povos como “culturas” era condição indispensável para
que a “civilização estadunidense” pudesse tomar as rédeas de um processo modernizador que
redimiria o mundo, a partir das Américas, da barbárie do nazi-fascismo. Essas “culturas” são
percebidas como fonte de recursos que, sob o controle do saber civilizado, garantiria um
constante influxo de novidade e originalidade para a civilização americana. Ao mesmo tempo,
seus saberes eram uma promessa de renovação do acesso a recursos estratégicos para a defesa
da democracia do mundo americano contra o avanço da barbárie totalitária. Tratava-se de uma
competição em que vencer a barbárie dependia de uma modernização cada vez mais acelerada,
e a estratégia vislumbrada pelos agentes da modernização estadunidense foi ampliar o escopo
de sua atuação para além das fronteiras de seu país: os Estados Unidos seriam o foco irradiador
da modernização que se nutriria da diversidade e da criatividade das culturas ainda-não-
modernas do mundo americano.
No próximo capítulo veremos como essa produtividade se institucionalizou, na
América do Sul, por meio da construção do Institute of Social Anthropology, também liderado
por Steward. A partir disso poderemos perceber que a produção de modernidades alternativas
não estava restrita aos anseios estadunidenses, e os projetos modernizadores especificamente
brasileiros conectados aos projetos vindos do norte provocaram uma série de conexões
estratégicas e curtos-circuitos que precisam ser melhor compreendidos.
249

CAPÍTULO 7: A CONSTRUÇÃO DO INSTITUTE OF SOCIAL


ANTHROPOLOGY E A REESTRUTURAÇÃO DAS REDES AMERICANISTAS

As relações intelectuais estabelecidas por meio do Institute of Social Anthropology


(ISA) são ainda mais conhecidas entre nós, tanto em função de seu papel na institucionalização
das ciências sociais no Brasil em sua parceria com a Escola Livre de Sociologia e Política
(ELSP), em São Paulo (MASSI, 1989; LIMONGI, 1989; SILVA, 2012), quanto pelo interesse
despertado pelas relações de poder assimétricas por ele sedimentadas entre intelectuais
estadunidenses e brasileiros (FAULHABER, 2011).321 Mais uma vez Priscila Faulhaber (2011)
apresenta um estudo bastante amplo e recheado de excelentes insights a este respeito, e me
restará apenas desenvolver um pouco mais alguns pontos específicos voltados para abordagem
aqui proposta.
O projeto para o ISA foi aprovado em 8 de setembro de 1943, no âmbito do
Interdepartmental Committee on Scientific and Cultural Cooperation in Latin American
(mencionado no início do capítulo anterior), com verbas do U.S. Department of State
transferidas para a Smithsonian Institution. Steward foi apontado o seu diretor e sua atuação
nessa agência foi documentada e arquivada, também, nos NAA, SI, na coleção intitulada
Records of the Institute of Social Anthropology, Smithsonian Institution, 1942-1952 (doravante
citada apenas como “RISA, NAA, SI”). Aqui, como no caso do Handbook, o processo de
produção de sujeitos e objetos é minuciosamente registrado, gerando funcionários exemplares,
saberes, técnicas e procedimentos reprodutíveis cada vez mais eficientes em seu processo de
burocratização.
No projeto do Handbook os povos indígenas foram explorados como objetos do
conhecimento num contexto da “política de boa vizinhança”, da “cooperação interamericana”
e do “pan-americanismo”, como forma de aproximar as diferentes repúblicas das Américas e
construir uma unidade contra a ameaça do nazismo. Os fundamentos do ISA eram muito
semelhantes a isso. No entanto, segundo Faulhaber, no ISA “Steward podia colocar em prática
suas concepções teóricas no sentido de deslocar a atenção antropológica das culturas indígenas
tradicionais para o processo de transformação dos povos desenraizados de suas comunidades
para serem transformados em ‘proletariado’ nacional” (FAULHABER, 2011, p. 19). Tratava-

321
Para uma visão mais abrangente a respeito dos objetivos do ISA, em especial no período pós-Segunda Guerra
Mundial, cf. FIGUEIREDO, 2010.
250

se, portanto, de maneira mais específica, de produzir saberes sobre como integrar as culturas
latino-americanas à civilização moderna por meio da liderança da potência americana que
emergia no Norte. Em vez de preservar modos de vida primitivos autênticos de sua degeneração
por causa do contato com o mundo ocidental, agora o contato entre culturas atrasadas e
civilização moderna era considerado inevitável. Restaria reconhecer os diferentes níveis e tipos
de aculturação, de modo a dirigir, da melhor forma possível, o processo de modernização de
comunidades defasadas do ponto de vista técnico e intelectual em relação à nova régua
civilizadora produzida pelas ciências sociais interamericanistas.
Dentre as diversas possibilidades de investigação oferecidas pelos documentos do
ISA, eu apresentarei apenas alguns aspectos de sua construção a partir da viagem realizada por
Steward ao Brasil, em 1942, limitando-me a determinadas relações e conflitos compreendidos
no período que vai até o final da Segunda Guerra Mundial, de modo a não extrapolar os
contextos com os quais estou trabalhando nesta tese.
A viagem de Steward ao Brasil tinha como objetivo tratar tanto do Handbook
quanto das negociações para a implantação do ISA em diferentes países sul-americanos. O
governo estadunidense enviaria dois ou três cientistas sociais, responsabilizando-se pelo seu
pagamento, a fim de que eles ministrassem aulas e treinassem pesquisadores de campo aptos a
trabalharem com os temas estratégicos que interessavam ao ISA. As instituições hospedeiras
deveriam ceder as instalações para os cursos e arcar com as despesas das viagens de campo.
Era necessário, portanto, analisar in locu quais países tinham condições de sediar esse projeto.
O itinerário de Steward previa sua saída de Washington no dia 19 de fevereiro de
1942, com chegada marcada a Belém, PA, no dia 21, onde se encontraria com Curt Nimuendaju
e Charles Wagley. Depois disso, no dia 25, partiria diretamente para Buenos Aires (Argentina),
passando por Assunção (Paraguai), Jujuy, Tucumán e Mendoza (Argentina), Santiago do Chile,
e novamente Buenos Aires, chegando, finalmente, no Rio de Janeiro no dia 22 de abril, onde
planejava se encontrar com Heloisa Alberto Torres, Arthur Ramos e Edgard Roquette-Pinto.322
A partir desse itinerário é possível destacar três momentos de entrecruzamentos que se tornam
bastante significativos do ponto de vista da minha abordagem e que, portanto, desenvolverei a
seguir.

“Itinerary and schedule of Julian H. Steward do South America”. Series 1, “Administrative and Reference”,
322

HSAIR, NAA, SI.


251

7.1. CURT NIMUENDAJÚ: UMA FONTE VALIOSA DE RECURSOS

ETNOGRÁFICOS EM DISPUTA

O primeiro desses entrecruzamentos se dá em torno da figura de Curt Nimuendajú,


que gostaria de retomar neste ponto. A emergência da Segunda Guerra Mundial afetou
diretamente a prática antropológica de Nimuendajú, inclusive no que diz respeito à sua própria
integridade física. A vida do etnógrafo teuto-brasileiro foi em grande medida moldada por um
discurso antropológico que, nas primeiras décadas do século XX, ainda se amparava na
materialidade das coleções etnográficas. Nimuendajú se destacou então por sua inserção única
numa rede transnacional de tráfico de artefatos etnográficos, e sua experiência foi atravessada
tanto pelos anseios de agências e agentes museológicos e acadêmicos internacionais quanto
pelas pessoas que habitavam as comunidades indígenas em meio às quais viveu durante as
últimas décadas de sua vida.323 Esse tipo de prática passou a enfrentar, no entanto, a
desconfiança do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil
(CFE), criado em 1933, sobretudo com a deflagração da Segunda Guerra Mundial (GRUPIONI,
1998).
Nimuendajú não foi enredado na trama do ISA. No entanto, a sua centralidade no
interior das redes de produção de conhecimentos antropológicos no Brasil fazia com que sua
amizade fosse um trunfo a mais na aproximação de Steward em relação às instituições
científicas brasileiras. As tensões em torno dos objetos que Nimuendajú produziu também são
importantes por evidenciarem as disputas intelectuais e institucionais no contexto específico da
Segunda Guerra Mundial e do projeto interamericanista estadunidense.
No período em que Nimuendajú foi visitado por Steward, em Belém, ele realizava
pesquisas sobre os ticunas em parceria com Robert Lowie e com fundos do Institute of Social
Science (ISS) da University of California, Berkeley (FAULHABER, 2016). Nimuendajú estava
produzindo ao mesmo tempo os seus artigos para o Handbook. Ele foi envolvido nesse projeto
logo em seu início, certamente por influência de Lowie. Em carta enviada por Steward a John
Mason em 29 de setembro de 1939, a fim de convidá-lo para que tomasse a frente da parte
relativa à linguística no Handbook, o remetente enumera algumas pessoas que já estavam
trabalhando no manual.324 Nimuendajú figura ali como uma das “principais autoridades” no
campo da etnografia sul-americana, ao lado de nomes como Wendell Bennett, da University of

323
Sobre a complexa relação de afetação mútua ocorrida em campo em função da coleta de artefatos e da produção
de conhecimentos para instituições nacionais e estrangeiras, cf. TAMBASCIA, 2013.
324
“MASON, J. Alden, 1”, Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA, SI.
252

Wisconsin, Robert Lowie, da University of California, Berkeley, Samuel Kirkland Lothrop


(1892-1965), do Peabody Museum of Archaeology and Ethnology da Harvard University,
William Duncan Strong, da Columbia University e Alfred Métraux. Isso evidencia que
Nimuendajú, desde o princípio, foi tomado como um dos “key authors” ou “key men” do
projeto, de acordo com a terminologia hierarquizante usada pelo próprio Steward em sua
correspondência e retomada nas interpretações de Faulhaber (2012).
O respeito a Nimuendajú parece ter se firmado definitivamente em função de um
mapa etnográfico inigualável que ele produziu para a América do Sul. Steward foi informado
deste mapa por Robert Lowie em carta do dia 16 de outubro de 1940, na qual também indagava
sobre a possibilidade de algum adiantamento para que Nimuendajú pudesse continuar suas
viagens de pesquisa.325 Segundo Lowie, o mapa, que possuía 6 pés e 7 polegadas por 5 pés e 7
polegadas (aproximadamente 2m x 1,5m), incorporava tanto dados etnográficos quanto
históricos, a tal ponto que era possível mostrar, por exemplo, as migrações dos caiapós com
base em, pelo menos, seis autores diferentes. Lowie esperava que o BAE pudesse adquirir esse
trabalho por um preço razoável. Em resposta do dia 21 de outubro, Steward se mostrou
interessado, desde que o novo mapa fosse superior ao mapa que o próprio Nimuendajú já havia
produzido em relação ao Brasil oriental.326 Por sugestão de Lowie,327 Steward contatou
Nimuendajú diretamente em 10 de janeiro de 1941,328 iniciando as negociações para a compra
de uma cópia do novo mapa.
A partir desse momento a comunicação com Nimuendajú se tornou bastante difícil.
Três cartas de Lowie, uma de 3 de outubro, outra de 4 de novembro e outra de 10 de dezembro
de 1941329 não foram recebidas, pois certamente ficaram retidas pelo fato de terem sido escritas
em alemão no contexto da Segunda Guerra Mundial. Em carta do dia 10 de maio de 1942,
Nimuendajú escreve o seguinte a Métraux:

Esta carta eu escrevo ao Snr porque não sei si o Dr Robert H. Lowie lê bem o
portuguez.
O fim della é de pedir ao Snr informações sobre a possibilidade de continuar a
correspondencia com as pessôas com que estou relacionado nos EE.UU. O Dr Lowie
praticamente deixou de se communicar comigo. Do Snr nunca soube se recebeu ou
não aquella carta minha com a traducção do texto Caxinauá. O proprio Snr Steward
encontrou tanta difficuldade na remessa do mapa ethnográphico que me convenço de

325
“LOWIE, Robert”. Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA, SI.
326
“LOWIE, Robert”. Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA, SI.
327
Carta de de Lowie para Steward, 20 de novembro de 1940, “LOWIE, Robert”. Correspondence, Box 7, HSAIR,
NAA, SI.
328
“NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
329
“NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
253

que nas actuaes circumstancias qualquer correspondencia, a não [ser] se tratando de


assumptos puramente commerciaes, se torna practicamente impossivel. O Snr porém
talvez veja mais claro nesse assumpto e podia indicar-me a forma como possamos
manter a comunicação.
Si esta carta ficar sem resposta tomarei-o como prova de que devo suspender qualquer
correspondencia.330

Nimuendajú somente ficou sabendo das tentativas de comunicação de Lowie por ter recebido a
visita de Steward em fevereiro de 1942.
Antes disso, no entanto, Lowie e Métraux já haviam tomado várias providências no
intuito em viabilizar a continuidade dos trabalhos de Nimuendajú no Brasil. Henry Allen Moe,
presidente da John Simon Guggenheim Memorial Foundation e também já à frente do
Committee of Inter-American Artistic and Intelectual Relations (CIAAIR, ao qual voltarei no
próximo capítulo) foi procurado por Lowie, Kroeber e Métraux na esperança de alguma bolsa
para Nimuendajú, mas nenhuma das instituições comandadas por Moe estava autorizada a
liberar verbas para brasileiros no Brasil – seria outro caso se fosse um(a) brasileiro(a) nos EUA
ou um(a) estadunidense no Brasil.331 Em outra carta, datada de 29 de novembro de 1941,
Métraux noticia a Nimuendajú que estava intercedendo em seu favor junto a Joseph H. Willits
(1889-1979), diretor da Division of Social Sciences da Rockefeller Foundation.332 Willits
viabilizou então a concessão de 500 dólares a serem pagos a Nimuendajú para a continuidade
de seus trabalhos (TAMBASCIA, 2013, p. 100). A respeito dos 300 dólares que seriam pagos
pela Smithsonian pelo mapa de Nimuendajú, Métraux resolveu adiantar esse montante de seu
próprio bolso e remetê-lo diretamente ao colega teuto-brasileiro, por meio da viagem de
Steward, a fim de que ele não corresse o risco de ficar sem nenhum recurso no Brasil em função
de entraves burocráticos (a famosa “red tape” estadunidense). Por fim, Lowie ainda conseguiu
a aprovação, em 1942, de um projeto de trabalho de campo a ser realizado por Nimuendajú por
meio da American Council of Learned Societies (ACLS).333
Todo esse cuidado e essa preocupação de Lowie e Métraux certamente se prendiam
à empatia por um colega de profissão que passava por dificuldades na selva amazônica. No
entanto, talvez só isso não baste para explicar as diversas cartas, conversas e pedidos em seu
favor. Nimuendajú era também um vínculo valioso para a construção das próprias carreiras
científicas de Lowie e Métraux. O primeiro fez largo uso do conhecimento acumulado por

330
“NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
331
Carta de, Henry A. Moe para Carl Sauer, 6 de novembro de 1941, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence,
Box 8, HSAIR, NAA, SI.
332
“NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
333
Carta de Métraux para Nimuendajú, 29 de maio de 1942, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
254

Nimuendajú para a realização de seus trabalhos de etnografia comparada, permitindo que fosse
o primeiro aluno de Boas a propor algum tipo de sistematização antropológica de caráter
generalizante (FAULHABER, 2016). Métraux, por sua vez, pôde ter acesso a uma série de
informações privilegiadas que alimentaram sua conhecida erudição sobre as tribos sul-
americanas, a exemplo de um texto de Capistrano de Abreu que Nimuendajú traduziu a seu
pedido.334
Luís Grupioni mostra que, se até 1939 a atividade de pesquisa e coleta de materiais
entre os grupos indígenas do território brasileiro era franqueada a Nimuendajú em função de
uma certa instrumentalização do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e
Científicas no Brasil (CFE) por Heloisa Alberto Torres em prol dos objetivos científicos do
Museu Nacional, com a saída dela do órgão o etnógrafo teuto-brasileiro passou a enfrentar a
oposição do conselho dirigido agora por Flexa Ribeiro (GRUPIONI, 1998, pp. 204-205). O
potencial científico representado por Nimuendajú se tornara então um recurso mais escasso. As
preocupações governamentais com a segurança nacional a partir do Estado Novo e, sobretudo,
com a Segunda Guerra Mundial, impuseram um CFE para o qual a defesa do patrimônio
nacional era mais importante que a cooperação científica internacional – para Torres, a defesa
do patrimônio nacional só era possível, pelo contrário, por meio de uma cooperação científica
internacional, como veremos na última parte desta tese. Isso tornou mais complicada a
canalização da rica produção científica de Nimuendajú por meio dos espaços costumeiros. A
disputa banal travada pela guarda do valor encaminhado pela Rockefeller Foundation a
Nimuendajú entre o Museu Nacional de Torres e o Museu Paraense Emílio Goeldi, dirigido por
Carlos Estevão de Oliveira (1880-1946) – que será retomada logo adiante –, é parte deste novo
contexto de disputas pela produção de sujeitos e objetos de uma nação moderna em construção.
Steward escreveu uma carta em 15 de janeiro de 1942 avisando Nimuendajú que
estaria em Belém entre os dias 21 e 24 de fevereiro.335 Essa parada tinha sido planejada com
objetivo de encontrar Nimuendajú, discutir com ele os problemas do Handbook a apresentar-
lhe vários manuscritos para que ele os revisasse – Métraux havia preparado junto com Steward
uma lista de assuntos a serem tratados.336 Ao final da sua carta Steward ainda expressa sua
admiração por Nimuendajú: “seu nome tem sido identificado com a etnologia do Brasil por

334
Carta de Métraux a Nimuendajú, 29 de maio de 1942, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
335
“NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
336
Carta de Métraux para Nimuendajú, 24 de janeiro de 1942, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI. É nesta carta que Métraux solicita a Nimuendajú a tradução, para o alemão ou para o português
corrente, do livro Ra-txa hu-ni-ku-i, escrito por Capistrano de Abreu em 1914.
255

tantos anos que eu julgo um raro privilégio encontrá-lo finalmente”.337 O mapa produzido por
Nimuendajú já estava pronto, mas encontrava problemas para ser despachado para os EUA em
função do elevado valor do frete (pois pesava 4Kg!). Isso vinha causando preocupações em
Lowie, pois Nimuedaju precisava dos 300 dólares que seriam pagos pelo mapa para continuar
seu trabalho.338
Antes de partir para o Brasil, Steward havia decidido que o Handbook contaria com
a contribuição de aproximadamente quarenta intelectuais latino-americanos. Além disso,
planejava também construir uma instituição análoga à American Anthropological Association,
cujo nome seria, sugestivamente, Inter-American Society of Anthropology and Geography. Em
abril de 1943 essa associação já contava com aproximadamente 500 contribuintes, sendo cerca
de 300 deles(as) estadunidenses e de 200 deles(as) latino-americanos(as),339 e contaria um
periódico próprio, a Acta Americana, cujo intuito era publicar as pesquisas relacionadas a
estudos que tenho chamado de “interamericanistas”. Claramente Steward passou a perceber o
potencial representado pelo papel de organizador das trocas intelectuais transnacionais
interamericanas, e por isso passou a investir num contato mais direto com os sujeitos e
instituições sul-americanos, aproveitando a “boa vontade” financeira do governo
estadunidense.
Em carta que data provavelmente do dia 1º de março,340 Nimuendajú informa a
Métraux que Steward o encontrou em Belém, recebeu o mapa e lhe entregou os 300 dólares
adiantados pelo remetente, que lhe teriam sido providenciais:

Não sei como agradecer-lhe, pois a sua intervenção salvou a situação: Os 500 dol. da
Rockefeller, em tempos calculaveis, ainda não estarão á minha disposição, e a
deficiencia da somma que pude tomar emprestado aqui do Museu e de amigos
particulares teria feito a viagem quasi inutil. Muito obrigado, pois, por mais esta prova
de amizade da sua parte.

Steward, que gostou muito do mapa segundo o próprio Nimuendajú, encontrou dificuldades
para remetê-lo para os EUA. Como o cônsul estadunidense no Pará não colaborou com o
assunto, o material teve que ficar depositado no Museu Paraense Emílio Goeldi para que, no
retorno de Steward, ele se desviasse de seus planos iniciais e retornasse a Belém apenas para

337
“Your name has been identified with the ethnology of Brazil for so many years that I deem it a rare privilege to
meet you at last”.
338
Carta de Lowie para Steward, 23 de janeiro de 1942, “LOWIE, Robert”, Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA,
SI.
339
Carta de Steward para Lowie, 13 de abril de 1943, “LOWIE, Robert”, Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA,
SI.
340
Ela está grafada como “1º de fevereiro de 1942”, o que não faz sentido pelo fato de que Nimuendajú narra fatos
ocorridos entre 24 e 27 de fevereiro. “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
256

apanhá-lo. Nesta mesma carta Nimuendajú dá mostras das dificuldades que começava a
enfrentar na realização de suas pesquisas de campo, e, embora Grupioni já tenha transcrito este
mesmo documento a partir de outro arquivo (GRUPIONI, 1998, p. 218), é interessante retomá-
lo aqui pelo seu teor esclarecedor acerca dos conflitos relacionados à produção de conhecimento
etnográfico do período:

Estou agóra occupadissimo com os preparos para a viagem que, creio eu, começarei
no dia 10 de fevereiro. Entretanto continuo a receber as hostilidades do “Conselho de
Fiscalização das Expedições Cientificas e Artisticas”, ao qual nem sequer não estou
mais sujeito, visto como faço a presente viagem formalmente encarregado pelos
Museus Nacional e Paraense, emquanto ao Conselho só cabe a fiscalização das
expedições particulares. Querem porem a todo custo fazer constar que a minha
actuação seja illegal, suspeita e indesejavel, sendo o estribilho sempre este que eu dei
um enorme prejuizo ao Brazil pelos meus trabalhos para o Götemborgs Museum. A
verdadeira causa desta odiosidade está porem (além da xenophobia innata) nos elogios
que o Snr e outros teceram aos meus trabalhos. Receio que, mesmo sem razão e direito
nenhum, por meio de insinuações, consigam criar-me difficuldades por intermedio da
policia do Estado de Amazonas, difficuldades passageiras, por certo, porque os
directores do Museu Nacional e Paraense, já incompatibilizados com o Conselho por
minha causa, me defenderão custa o que custar. O geito é de enfrentar com calma e
firmeza essas amabilidades, mas creio que o Snr tem razão em não querer vir ao
Brazil; eu mesmo estou tão farto daquillo que o Snr na sua ultima carta qualificou
como “diplomatic game that one has to play with all and sundry”.

Métraux explica para Lowie que precisou adiantar o dinheiro para Nimuendajú por
causa da “estupidez do pessoal da Rockefeller” (“stupidity of the Rockefeller people”).341 Mais
do que isso, ele indica que, por causa da ingenuidade das instituições estadunidenses em relação
aos sul-americanos, a Rockefeller Foundation havia sido como que ludibriada por Heloisa
Alberto Torres, que assim logrou reforçar sua posição de intermediária entre os assuntos
intelectuais bilaterais Brasil-EUA. Para fins práticos, nesse momento era importante que o
dinheiro da Rockefeller tivesse sido enviado diretamente para o Museu Paraense, pois
Nimuendajú estava passando, como vimos, por dificuldades financeiras. Essa disputa pueril na
verdade representa um embate mais amplo pelo domínio do fluxo de recursos nesse novo
contexto de uma antropologia interamericanista. O imbróglio foi finalmente resolvido depois
da intervenção de Métraux, e o dinheiro foi transferido para o Museu Paraense. Nimuendajú,
contudo, temia os resultados dessa manobra:

O dinheiro veio de facto para o Museu Paraense. Agóra receio porém que isto me
traga a inimizade de D. Heloisa Torres, o que eu muito sentiria, pois em todo o povo
brazileiro civilizado só tenho, creio eu, 2 amigos: Dr Carlos Estevão de Oliveira e D.

Carta de Métraux para Lowie, 12 de fevereiro de 1942, “LOWIE, Robert”, Correspondence, Box 7, HSAIR,
341

NAA, SI.
257

Heloisa. Aqui sou – e já o fui antes de chegar – alvo das mais infames e absurdas
mentiras e calumnias. Já tentaram tambem a instigar os indios para que me matassem,
mas estes são invariavelmente firmes e sinceros na sua amizade, e tenho toda a tribu
ao meu lado.342

Steward não voltou a Belém como havia planejado. Seus problemas estomacais e o
atraso causado por outras mudanças de itinerário o impediram de fazê-lo (Steward visitou ainda
outras cidades argentinas, titubeou em relação à sua parceria com Max Schmidt, liderança
etnológica do Paraguai da qual já tratei anteriormente, por ter descoberto suas filiações nazistas
e, por fim, decidiu passar também pela capital paulista343). Sobre o período em que esteve em
Belém, Steward afirma ter apreciado a visita a Nimuendajú, mas todo o tempo havia sido
tomado pelo problema do envio do mapa. Ao menos Steward conseguiu aproveitar e solicitar a
produção um artigo para o Handbook a Carlos Estevão, diretor do Museu Paraense Emílio
Goeldi, reforçando assim ainda mais os seus laços diretos com as instituições antropológicas
brasileiras. Em junho de 1942 o mapa ainda não havia chegado aos EUA, e Steward sugeriu a
Parker T. Hart, autoridade consular dos EUA no Pará, que anexasse ao pacote alguma nota
dirigida ao censor, explicando tratar-se do projeto do Handbook: “depois da minha experiência
ao retornar da América do Sul mês passado quando eles tomaram por uma mensagem cifrada a
carta do meu filho de cinco anos, eles poderiam facilmente ver este mapa como algo
extremamente subversivo!”344 Apenas no dia 28 de julho Steward acusou finalmente o
recebimento do mapa.345
Todavia, os problemas para Nimuendajú não haviam acabado. Ele escreve o
seguinte para Steward, em carta do dia 26 de outubro de 1942:

Não consegui chegar com os meus trabalhos entre os Tukuna a um fim sactisfatorio,
mas tenho de da-las por concluidas, visto como a odiosidade da população civilizada,
tomado por pretexto o estado de guerra, me impede a continuar, além de que me faltam
os meios monetarios para isto. Durante toda a minha estada entre os indios fui
hostilizado e calumniado pela maneira mais infame e absurda. Fui denunciado ás
autoridades militares e civis, e finalmente conseguiram a minha prisão. Chegando
porém em Manaus fui solto immediatamente e sem mais formalidades. Comtudo a
minha situação é extremamente triste, pois si nos Estados Unidos eu sou julgado pelos
meus trabalhos, aqui no Brazil a unica coisa que importa é que sou estrangeiro, nada
me valendo a minha naturalização.346

342
Carta de Nimuendajú para Métraux, 15 de julho de 1942, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
343
Steward trocou diversas correspondências a este respeito com sua secretária Ethelwyn Carter enquanto estava
viajando – “STEWARD, Julian H. (1942-45)”, Series 4, Correspondence, Box 11, RISA, NAA, SI.
344
“After my experience upon returning from South America last month when they took my five years old boy's
letter for something in code, they could not easily see this map as extremely subversive!” – carta de Steward para
Parker T. Hart, 30 de junho de 1942, “H”, Correspondence, Box 6, HSAIR, NAA, SI.
345
Carta de Steward para Parker T. Hart, 28 de julho de 1942, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
346
“NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
258

Grupioni também trata do episódio da prisão de Nimuendajú. Se tudo isso continua um tanto
obscuro, sem dúvida o seu encarceramento está relacionado com o clima que se instalou no país
após o torpedeamento de navios mercantes brasileiros e a declaração de guerra aos países do
Eixo em agosto de 1942. Depois disso Nimuendajú teve que deixar os ticunas, dedicando-se à
redação da monografia sobre esse povo a ser entregue a Lowie e aos artigos do Handbook.
Em outra carta para Steward, escrita em 12 de fevereiro de 1943, Nimuendajú volta
a se queixar de sua situação:

O meu trabalho sobre os Tukuna para o Dr Lowie soffreu um grande retardamento.


Para dizer a verdade: O conhecimento do facto que a nação com que vivo e trabalho
ha 40 annos, julgando-me incorporado, me trata a priori como inimigo mortal,
accumulando-me de infamias, calumnias e insinuações, barrando-me todos os meios
de subsistencia, privando-me de toda iniciativa, pondo um fim definitivo á minha
actividade, deixou-me numa situação moral que tornou impossivel a concentração
sobre outro assumpto sem ser a descoberta de um meio para me sahir desta situação
insustentavel e vergonhosa de uma vida perdida. Durante mais de dois mezes depois
da minha volta, por mais que me esforçasse, não consegui escrever um unico capitulo.
Depois, devagar, o trabalho foi progredindo, e hoje está prompto á lapis, faltando
passa-lo á maquina e fornece-lo de photos e desenhos, o que tudo espero poder acabar
até fins de Março. O texto vae dar umas 120-130 paginas dactylographadas.347

A tudo isso somava-se uma precária situação financeira. Lowie o informou, por exemplo, de
que as instituições estadunidenses não estavam mais patrocinando projetos não relacionados ao
esforço de guerra (GRUPIONI, 1998, 227). Mesmo assim Nimuendajú, na mesma carta, tenta
sensibilizar Steward:

Á execução destes trabalhos oppõe-se infelizmente um obstaculo sério, proveniente


da minha situação, como esbocei-a no começo desta carta. Os meus meios de vida que
sempre foram escassos, só aguentarão até fins de Abril, quando estarei reduzido
áquelle estado de miseria que segundo a opinião publica me compete na minha
qualidade de estrangeiro naturalizado. E este espaço não é sufficiente para tudo.

A saída que Steward conseguiu imaginar foi enviar Nimuendajú para uma estadia
no México, até que o clima de perseguição arrefecesse no Brasil. Antes de sondar essa
possibilidade com o próprio Nimuendajú,348 Steward escreveu o seguinte para Métraux:

Cartas de Nimuendajú indicam novos problemas, e eu suponho que ele perdeu o


pequeno trabalho que ele costumava ter. Eu não consegui entender a natureza exata

“NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.


347

Carta de Steward para Nimuendajú, 6 de abril de 1943, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
348

HSAIR, NAA, SI.


259

do problema dele, mas eu falei com Borbolla sobre a possibilidade de o México


convidá-lo para ir para lá. Eu presumo que eles gostariam de saber mais sobre as
condições dele, mas isso é algo que você deve sondar. O homem é muito bom para
ser procurado como uma vítima de perseguição.349

Mas Nimuendajú recusou a proposta: “Seria-me inteiramente impossivel, na minha


actual situação critica, acceitar um convite para uma vizita ao Mexico, e faria um favor si o snr
podesse evitar que elle seja feito”.350 Nimuendajú é bastante vago ao indicar o motivo de sua
recusa, não dizendo nada além de que passava por uma “situação crítica”. Mas além da enorme
carga de trabalho relacionada ao Handbook, não é difícil imaginar que possivelmente
Nimuendajú não tivesse nem mesmo trajes adequados para transitar em meio às autoridades
antropológicas das principais cidades mexicanas. Steward então desistiu da ideia,351
comentando logo depois o assunto com Métraux: “Nimuendajú é um camarada difícil de ser
ajudado. Em resposta à minha solicitação por alguma explicação sobre as suas dificuldades e
contando-lhe da possibilidade de um convite para o México, ele responde meramente que eu
lhe faria um favor evitando o convite! Eu simplesmente não posso decifrar o que está
acontecendo”.352 De todo modo, as coisas pareciam ter se acertado, por ora, de maneira
satisfatória: Nimuendajú estava novamente “sob as asas de D. Heloisa”.353
Não obstante a admiração diversas vezes demonstrada por Steward em relação a
Nimuendajú, os laços entre os dois começam a se deteriorar por causa das diferentes concepções
de cada um a respeito da produção de conhecimento antropológico. Steward estava preocupado

349
“Letters from Nimuendaju indicate further trouble and I infer that he has lost the small job that he used to hold.
I have been unable to learn the exact nature of his trouble but talked to Borbolla about the possibility of Mexico
inviting him to come up. I presume that they would want to know moss about his circumstances, but it is something
you might inquirg around about. The man is too good to be wanted as a victim of persecution” – carta de Steward
para Métraux, 9 de abril de 1943, “MÉTRAUX, Alfred, 2”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI. O nome
“Borbolla” se refere ao antropólogo mexicano Daniel Rubín de la Borbolla (1903-1990).
350
Carta de Nimuendajú para Steward, 17 de abril de 1943, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
351
Carta de Steward para Nimuendajú, 10 de maio de 1943, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
352
Carta de Steward para Métraux, 11 de maio de 1943, “MÉTRAUX, Alfred, 2”, Correspondence, Box 8, HSAIR,
NAA, SI.
353
Em 6 de junho de 1944, John Mason escreveu a Steward preocupado com a situação de Nimuendajú. De acordo
com o que soube por meio da arqueóloga estadunidense Helen C. Palmatary e da bióloga Berta Lutz (1894-1976),
o paradeiro de Nimuendajú era desconhecido e ele vinha sendo acusado de produzir mapas para a Alemanha. Em
resposta, Steward respondeu o seguinte a Mason, em carta datada de 12 de junho de 1944: “Nimuendajú teve
problemas um ano atrás, mas a última palavra que eu tive foi que Doña Heloisa o tomou algo debaixo de suas asas
no Rio. Ele agora está de volta em Belém e a sua grande dificuldade são os seus olhos que lhe falham. Se há algo
mais que isso é difícil de descobrir e ainda mais difícil de fazer alguma coisa a respeito” (“Nimuendajú had trouble
a year ago, but the latest word I have is that Doña Heloisa has taken him somewhat under her wing in Rio. He is
now back in Belem and his greatest difficulty is his failing eyes. If there is more to it than this, it is difficult to
discover and even more difficult to do anything about”) – “MASON, J. Alden, 2”, Correspondence, Box 7, HSAIR,
NAA, SI.
260

pelo fato de Nimuendajú ter mandado quinze artigos tratando separadamente de “tribos” como
se elas não tivessem nada em comum.354 A ideia de Steward era priorizar as generalizações,
enquanto que em Nimuendajú prevalecia uma perspectiva historicista. Além disso havia uma
preocupação pragmática da parte de Steward: não havia dinheiro suficiente para tratar em
profundidade de cada tribo per se. Isso gerou uma manifestação de Nimuendajú que poderia
muito bem ser considerada um manifesto avant la lettre do combate contra o produtivismo
acadêmico:

Estes 28 artigos deviam ser escriptos em 15.000 palavras. Como o Snr, eu tive de
reunir primeiro todo o material existente sem restricções. Agora, depois de ter escripto
os artigos a lapis, vejo que elles contem talvez umas 45.000 palavras! O trabalho
preliminar que eu tive de executar foi portanto tres vezes maior que o trabalho
contractado. – o Snr acha que a taxa pela qual a redacção do Handbook paga os artigos
contractados recompensa semelhante esforço que é necessário, como o Snr mesmo
verificou em favor da QUALIDADE do artigo, quando a redacção apenas paga a
QUANTIDADE! Francamente, eu acho desastroso essa tendencia de reduzir assim
trabalhos scientificos, analyticos á mesma bitola para depois ser convertido em
dinheiro. O prejuizo porém não pára nisto: Com os recursos exgottados, reduzido a
uma situação extremamente precaria, eu teria de recomeçar agora o trabalho, redigir
tudo de novo e reduzir os artigos aos limites prescriptos. Não posso mais: Passarei o
material á máquina e assim o remetterei. 355

Nimuendajú de fato encaminhou as 45 mil palavras.356 Steward, por seu turno,


realizou as edições que considerou necessárias para dotar o seu material do caráter generalizante
almejado para o Handbook.357 Caberia a Lowie lidar com o problema: “Como é uma revisão
algo drástica da apresentação dele e como você é o seu padrinho intelectual, eu acho que o caso
poderia ser suavizado consideravelmente se você soltasse uma carta para ele explicando como
esta [nova] apresentação se conforma melhor ao estilo geral do Handbook”.358 Duas coisas
chamam a atenção nesta fala: o fato de que Steward não só alterou os escritos de Nimuendajú,
como essa mudança foi também drástica, indicando que, não obstante o reconhecido
conhecimento de Nimuendajú sobre os grupos indígenas sul-americanos, a “apresentação” de

354
Carta de Steward a Métraux, 11 de maio de 1943, “MÉTRAUX, Alfred, 2”, Correspondence, Box 8, HSAIR,
NAA, SI.
355
Carta de Nimuendajú para Métraux, 27 de abril de 1943, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
356
Carta de Nimuendajú para Steward, 5 de maio de 1943, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
357
Carta de Steward para Nimuedajú, 31 de julho de 1943, “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8,
HSAIR, NAA, SI.
358
“As it is a somewhat drastic revision of this presentation and as you are his intelectual godfather, I think it
might smooth matters considerably if you would drop him a letter explaining how this presentation conforms better
to the general Handbook style” – carta de Steward a Lowie, 24 de julho de 1943, “LOWIE, Robert”,
Correspondence, Box 7, HSAIR, NAA, SI.
261

seu material não se encaixava nos padrões de cientificidade dos quais o próprio Steward se
considerava agora um guardião; além disso, ao brincar dizendo que Lowie seria o “padrinho
intelectual” de Nimuendajú, Steward não consegue esconder uma infantilização paternalística
em relação aos/às intelectuais sul-americanos. Afinal, do seu ponto de vista, tratava-se de
civilizar a todos(as) eles(as).
Nimuendajú aceitou o novo formato, mas protestou contra as reclassificações e a
deficiência das traduções.359 O seu mapa também foi reproduzido de maneira tal que
desconsiderava a riqueza histórica das representações cartográficas propostas por Nimuendajú.
A sua versão final acabou indicando apenas o momento do contato das “tribos” indígenas com
o “homem civilizado”, num trabalho que contou com a ajuda de John Mason. Postos em
circulação transnacional, os híbridos etnográficos produzidos por Nimuendajú acabaram
servindo aos sujeitos mais bem posicionados na rede interamericana de americanistas. Tratava-
se de escolher as conexões corretas e de interromper ou desviar fluxos de recursos específicos.
Nimuendajú surge como uma fonte riquíssima desses recursos, os híbridos etnográficos – sejam
eles artefatos, inscrições ou textos – em meio a uma disputa por sua movimentação. Poder,
nesta rede, significa, portanto, não necessariamente produção e acúmulo, mas capacidade de
mobilização estratégica. Do contrário, Steward, Torres e Carlos Estevão é que estariam
servindo a Nimuendajú, e não o contrário.
Nimuendajú faleceu depois de ter retornado para junto dos ticunas. Segundo
Inocencio Machado Coelho, diretor do Departamento de Educação e Cultura do Museu
Paraense, que comunicou a morte do etnógrafo a Steward, ele foi vítima de uma doença
hepática. Foi, igualmente, vítima do mal de arquivo que também afetava aos etnógrafos
modernos: era preciso registrar nos arquivos da civilização, a todo custo, as culturas que ela
própria destruía.

359
Em carta do dia 1º de setembro de 1944, Nimuendajú oferece algumas poucas correções, mas solicita que seu
nome como coautor em parceria com Métraux fosse retirado dos artigos The Mashacali linguistic family e The
Camacan subgroup: “isso não só porque foi elle que fez a compilação, mas tambem porque eu não posso
subscrever a classificação feita por esse meu amigo. Com Loukotka, eu estou convencido de que os Patašó são
linguisticamente isolados; que os Malalí não pertencem ao Grupo Camacan e que as outras 4 tribus deste formam
uma familia linguistica independente, e não um subgrupo da família Gê. – Portanto, basta citar o meu nome nos
paragraphos baseados nos meus relatórios”. Em carta do dia 17 de outubro, além de discordar da forma pela qual
o seu mapa foi reproduzido (“Será possivel que eu não colloquei no Mapa nenhuma explicação disto?”), ainda
reclama muito das traduções: “Uma grande parte della distingue-se das anteriores que recebi para revisão pelo
numero consideravel de erros grosseiros. Peior ainda que estes são as ‘liberdades’ que o traductor se permittiu
vertento [sic] os termos portuguezes para o inglez. […] Reconheço que os artigos não podem ser publicados com
essas deficiencias todas. Infelizmente falta-me porém durante os tres mezes restantes do anno o tempo para fazer
uma conferencia tão minuciosa como no caso seria necessario. Estou sobrecarregado de trabalhos para o Museu
Nacional que devem ser entregues até o fim do anno”. Várias outras cartas ainda se sucedem com correções aos
seus artigos e aos mapas” – “NIMUENDAJU, Curt”, Correspondence, Box 8, HSAIR, NAA, SI.
262

7.2. O MUSEU NACIONAL DA QUINTA DA BOA VISTA: UMA INSTITUIÇÃO


EM DISPUTA PELOS RECURSOS ETNOGRÁFICOS

Na mesma data em que enviou uma carta avisando Nimuendajú de sua passagem
por Belém (15 de janeiro de 1942), Steward também escreveu para Charles Wagley e para os(as)
pesquisadores(as) brasileiros(as) que desejava encontrar no Brasil: Heloisa Alberto Torres,
Edgard Roquette-Pinto, Maria Júlia Pourchet, José Bastos de Ávila e Aníbal de Matos (1889-
1969). Não havia escrito ainda para Herbert Baldus e Jules Henry pois achava que não poderia
encontrá-los, mas gostaria de incluí-los também no Handbook. A Wagley, Steward apresentou
seu itinerário e expressou o seu desejo de tê-lo junto de si em Belém e no Rio, como um
intermediador ou intérprete de suas conversações com os brasileiros uma vez que não falava
português e seu espanhol era “em grande parte improvisado e muito pouco inteligível”. O
principal motivo de sua viagem era entrar em contato com as pessoas mencionadas acima e que
estavam sendo convidadas para contribuir com o Handbook: “A ideia é pedir artigos curtos, os
quais, em grande parte, terão que ser retrabalhados em artigos regionais mais amplos”.360 Além
disso, Steward desejava fundar as bases para a futura Inter-American Society for Latin
American Anthropology and Geography:

A ideia é uma sociedade para cobrir o amplo campo das ciências sociais, embora
limitado agora em sua organização às duas disciplinas, porque eu temo que economia,
ciência política etc. iriam torná-la muito reformista. A necessidade, especialmente em
face do trabalho total no campo latino-americano de agora, é um bom, estável e estrito
instrumental científico. Ela terá um periódico. E, acima de tudo, ela será
verdadeiramente interamericana, com gente da América Latina incluída durante a sua
própria fundação.361

Quanto aos demais, Steward apenas fez um convite para a escrita de um pequeno artigo sobre
suas respectivas áreas de especialidade e informava que deveria encontrá-los em sua viagem à
América do Sul.362

360
“The idea is to ask for short articles, which, for the most part, may have to be reworked into broader regional
articles” – “WAGLEY, Charles (1941-52)”, Series 4, Correspondence, Box 11, RISA, NAA, SI.
361
“The idea is a society to cover the broad field of social science, though limited in organization now to the two
disciplines, because I fear that economics, political science, etc., would make it too reformist. The need, especially
in the face of the all-out work in the Latin American field now, is a good, stable, strictly scientific outfit. It would
have a journal. And, above all, it would be truly Interamerican, with people from Latin America brought in during
the very foundation of it”.
362
“BASTOS DE ÁVILA, José”, Box 5; “MATTOS, Anibal”, Box 7; “POURCHET, Maria Julia”, Box 8;
“ROQUETTE-PINTO, Edgard”, Box 8 – todos estes da série Correspondence, HSAIR, NAA, SI; em relação à
Heloisa Alberto Torres: “Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
263

Até onde pude averiguar, Wagley aparece pela primeira vez nas articulações do
Handbook após uma conversa com Steward em Nova York, provavelmente por indicação de
Métraux, quando ele aceita escrever sobre os tapirapés e os canoeiros.363 Nessa ocasião Wagley
comunicou a Steward o interesse brasileiro por colaboração antropológica, sem dúvida se
referindo aos projetos do Museu Nacional. Em carta do 22 de outubro de 1940, Steward escreve
o seguinte a John C. Gillin:

Wagley, recém-chegado do Brasil, disse que pessoas de lá gostariam de contar com


antropólogos estadunidenses que passassem alguns anos lá, treinassem estudantes
locais e conduzissem pesquisas de campo. Isso soa como algo vantajoso – algo que
pode ser desenvolvido sistematicamente por outros países. Alguns podem não
gostar da ideia, especialmente na Argentina, mas mesmo no Peru provavelmente eles
adorariam um trabalho etnográfico. Vou descobrir o que eu posso fazer em um futuro
próximo.364

O trecho transcrito acima evidencia aspectos muito importantes sobre as origens do


projeto do ISA. Wagley acabava de realizar uma pesquisa no Brasil em colaboração com o
Museu Nacional e com os recursos do Council for Research in the Social Sciences da Columbia
University. Ele havia levado em sua expedição mais três estudantes de antropologia do Museu
Nacional: Rubens Meanda, Nelson Teixeira e Eduardo Enéas Gustavo Galvão (1921-1976), que
depois seria o primeiro antropólogo brasileiro a obter o grau de doutor, sob orientação do
próprio Wagley na Columbia University.365 Heloisa Alberto Torres ficou tão satisfeita com os
resultados obtidos por Wagley, tanto do ponto de vista etnográfico quanto formativo, que
desejou obter novos fundos para continuar essas atividades (como mostrarei no próximo
capítulo, ela conseguiu esses recursos em 1941 por meio do Committe of Inter-American
Artistic and Intelectual Relations, comandado por Henry A. Moe). Não há dúvidas, portanto,
de que era esse o projeto dos brasileiros ao qual se referiu Wagley em conversa com Stewart.
Fica claro também, sobretudo a partir da leitura do trecho que destaquei no excerto da carta que
Steward encaminhou a Gillin, que foi essa ideia que deu início – ou, ao menos, conferiu
concretude – ao projeto que seria desenvolvido na Smithsonian Institution por meio do ISA.
Desse modo, embora Steward só tenha submetido o projeto do ISA em 1943, ele já

363
Carta de Steward a Métraux, 18 de outubro de 1940, “MÉTRAUX, Alfred, 1”, Correspondence, Box 8, HSAIR,
NAA, SI. Métraux certamente já conhecia o trabalho de Wagley junto aos tapirapés, pois o acompanhou em sua
primeira viagem ao Brasil em 1939 (GRUPIONI, 1998, p. 92).
364
“Wagley, freshly returned from Brazil, said the people down there would like to have American anthropologists
spend a few years, train local students, and carry on field research. This sounds like a good lead, – something that
might be developed systematically for other countries. Some might not like the idea, especially Argentina, but even
Peru would probably relish ethnographic work. I'll dig up what dope I can in the near future” – “GILLIN, John”,
Correspondence, Box 6, HSAIR, NAA, SI.
365
A respeito destas pesquisas de Wagley no Brasil, cf. GRUPIONI, 1998, e CORREA e MELO, 2008.
264

o tinha em mente em sua viagem para a América do Sul em 1942, e um dos objetivos não
declarados da sua South American trip foi justamente sondar a viabilidade da instalação de
polos do ISA na América do Sul. Não por acaso, portanto, Steward buscou aproximar-se
justamente de Wagley, quem primeiro o alertara para a possibilidade de uma parceria no Brasil
semelhante aos moldes daquilo que se tornaria o ISA.
É possível mesmo afirmar que esse foi certamente, ao lado da ampla disponibilidade
de recursos financeiros a partir de 1941, o principal motivo para a mudança de atitude de
Steward em relação aos intelectuais latino-americanos, em especial no que diz respeito aos
brasileiros. Se antes eles nem ao menos colaborariam, a partir de então eles seriam convidados
ou para escrever pequenos artigos ou, ao menos, a opinar sobre o conteúdo de textos escritos
por pesquisadores estadunidenses. Steward aproveitou então o retorno de Wagley ao Brasil
naquele ano para estreitar os laços com os intelectuais brasileiros:

É meu desejo que cada artigo terminado seja enviado a antropólogos locais do país ao
qual se relaciona com a solicitação de que eles os confiram, façam sugestões etc. Em
alguns casos isso servirá para expor materiais bons e novos. Em outros, isso será
meramente um gesto formal de polidez. Em todo caso, nós devemos afirmar no artigo
publicado no Handbook que ele foi lido e criticado ou apreciado pelo distinto fulano
de tal, que teve a bondade de etc… Assim, nós poderemos incluir sul-americanos
mesmo quando, por várias razões, não seja recomendável pedir que eles
contribuam.366

Steward ainda afirma que faria de Wagley o “representante oficial do Handbook” para esses
fins. O interesse de Steward no Brasil, além de científico, torna-se, portanto, cada vez mais de
cunho diplomático.
Logo que voltou da América do Sul, Steward iniciou a articular a implementação
do ISA. No dia 9 de julho de 1942, escreveu a Lowie bastante empolgado com os resultados
relacionados a um projeto cooperativo para pesquisa etnográfica no continente sul-americano:

Eu recebi diversas solicitações para pesquisas etnográficas cooperativas que se


cristalizaram agora num projeto de $122,000, que foi submetido ao State Department.
Este solicita Institutos Etnológicos no Paraguai, Bolívia, Chile, Peru e Colômbia, com
estadunidenses colaborando com e ensinando a gente local sobre conceitos de ciências

366
“It is my desire that each completed article be sent to the local anthropologists of the country concerned with
the request that they O.K. it, make suggestions, etc. In some cases this will serve to turn up good, new material. In
others it will merely be a formal gesture of politeness. In any event, we shall state in the published article in the
Handbook that it has been read and criticized or OKd by the distinguished so-and-so who has had the kindness,
etc… Thus, we shall be able to include South Americans even when, for various reasons, it is inadvisable to ask
them to contribute” – carta de Steward a Wagley, 21 de julho de 1941, “WAGLEY, Charles”, Correspondence,
Box 9, HSAIR, NAA, SI.
265

sociais e técnicas de campo.367

No dia seguinte, Steward também escreveu para Wagley (a quem agora chama de “Chuck”),
dizendo que, seguindo a discussão geral que tinham tido a respeito de um plano sistemático de
pesquisa em ciências sociais, ele já tinha condições de “movimentar um programa que requer
uma pequena unidade na Smithsonian Institution para coordenar o trabalho e informação e para
institutos etnológicos – nós os estamos chamando de etnogeográficos – cooperativos no
Paraguai, Bolívia, Chile, Peru e Colômbia”.368 Steward não havia tentado nada no Brasil em
parte porque não sabia em qual ou quais instituições se apoiar neste país, de modo que esperava
alguma sugestão de Wagley a este respeito.
Não encontrei nos NAA uma resposta de Wagley a essa carta, que lhe foi enviada
quando ele já estava de volta ao Brasil. No entanto, no dia 26 de setembro de 1942, Steward
remeteu correspondências a respeito do futuro ISA a Joseph Piazza, adido cultural da embaixada
estadunidense no Rio de Janeiro, a Donald Pierson, a Melville Herskovits369 e a Wagley. Na
carta direcionada a Piazza, a quem agradece pela hospitalidade no Rio, Steward apresenta os
planos para o ISA, esclarecendo que o projeto passaria pelo Joint Committee on Latin America
of the Learned Societies and Councils, com a ajuda do Smithsonian's International Exchanges,
e que havia sido submetido ao State Department para que os fundos necessários fossem
solicitados ao Congresso.370 Enquanto as autoridades da Bolívia, do México e do Peru já haviam
requisitado a instalação dos institutos de cooperação antropológica em seus respectivos países,
o assunto ainda estava pendente em relação ao Brasil. Steward então indaga com qual
instituição seria melhor estabelecer esta ação de cooperação: com o Museu Nacional, com a
Universidade do Brasil ou com a ELSP? Havia até mesmo, neste momento, a possibilidade de
colaborar com as três de uma só vez. De acordo com Steward, o Museu Nacional tinha a
vantagem da bem-sucedida experiência de Wagley, ao passo que a Universidade do Brasil, por

367
“I received several requests for cooperative ethnographic research that have now crystalized into a project for
$122,000 that has been submited to the State Department. This calls for Ethnological Institutes in Paraguay,
Bolivia, Chile, Peru, and Colombia, with Americans collaborating with and teaching the local people on social
science concepts and field techniques” – “LOWIE, Robert H. (1942-49)”, Series 4, Correspondence, Box 8, RISA,
NAA, SI.
368
“Following the general discussion we had about the plan for systematic social science research, I have been
able to whip up a program that calls for a small unit in the Smithsonian Institution to coordinate work and
information and for cooperative ethnological – we are cailing them ethnogeographical – institutes in Paraguay,
Bolivia, Chile, Peru, and Colombia” – “WAGLEY, Charles (1941-52)”, Series 4, Correspondence, RISA, NAA,
SI.
369
Também não encontrei nos NAA a carta que Steward dirigiu a Herskovits com este fim, mas é feita referência
a este documento na correspondência enviada a Piazza.
370
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
266

intermédio de Arthur Ramos, seria a conexão óbvia para os “Negro studies”. Não encontrei, no
entanto, registro de resposta a esta carta nos arquivos da NAA.
Na carta enviada a Pierson, Steward começa afirmando que havia ficado
impressionado com o sucesso em relação à reunião de pessoas na ELSP que realmente faziam
etnologia.371 Após apresentar as mesmas explicações contidas na carta a Piazza, Steward
afirmou que o ponto de partida óbvio era o Museu Nacional, mas que não entraria em contato
com Heloisa Alberto Torres antes de ouvi-lo a respeito. Em resposta (1º de dezembro de 1942),
Pierson elogia a iniciativa e informa que ele mesmo estava entrando em contato com William
Berrien, da Rockefeller Foundation (a respeito de quem falarei no próximo capítulo), a fim de
desenvolver um programa semelhante. Em seguida, afirma que no Brasil havia muito pouca
gente preparada em pesquisa social para treinar estudantes assistentes de forma adequada, e cita
um caso que envolvia o próprio Wagley: “Wagley recentemente reclamou para mim, por
exemplo, da falta de estudantes competentes e genuinamente interessados no Museu Nacional
e do treino básico extremamente inadequado daqueles que ele conseguiu”.372 Além de assim
desqualificar o trabalho do Museu Nacional, Pierson ainda afirmava que Wagley desejava que
alguns desses estudantes fossem para a ELSP, “que, como você provavelmente sabe, é a única
instituição educacional no Brasil dedicada especificamente a ensinar e pesquisar nas ciências
sociais”.373 Pierson concordava que o Rio de Janeiro era o lugar óbvio para se conduzir esse
tipo de empreendimento, mas dizia que precisava ser franco ao indicar, de maneira confidencial,
algumas hesitações a respeito da Universidade do Brasil: em primeiro lugar, o milieu não era
“cordial” a influências que não viessem ou da França ou da Itália, com exceção de Carlos
Miguel Delgado de Carvalho (1884-1980) e de Antônio Carneiro Leão (1887-1966); em
segundo lugar, o treino em ciências sociais seria inadequado, a tal ponto que os estudantes
estavam se reunindo para ler textos mimeografados da ELSP; por fim, Arthur Ramos não seria
um homem adequado para este tipo de organização, pois não possuía relações cordiais com
intelectuais como Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, não produzia nada de significativo desde
1935 e tinha um interesse muito restrito no estudo do Brazilian Negro. A respeito do Museu
Nacional, embora possuísse apenas informações de segunda mão – e esperava que Wagley
confirmasse suas impressões –, Pierson não foi menos venenoso: Heloisa Alberto Torres não
teria uma boa reputação em São Paulo e acrescentava, também confidencialmente, que Robert

371
“PIERSON, Donald (1942-45)”, Series 4, Correspondence, RISA, NAA, SI.
372
“Wagley recently complained to me, for instance, of the lack of competent and genuinely interested students at
the Museu Nacional and of the extremely inadequate basic training of those whom he did get”.
373
“[…] which, as you probably know, is the only educational institution in Brazil dedicated specificaly to teaching
and research in the social sciences”.
267

E. Park, quando conheceu Edgard Roquette-Pinto em 1937, havia o considerado um “cavalheiro


polido”, mas não verdadeiramente um pesquisador, impressão partilhada pelo próprio Pierson.
São Paulo, pelo contrário, seria um solo fértil para os projetos de Steward, que poderia contar
com todo o apoio de Cyro Berlinck, diretor da ELSP, e de Jorge Americano (1891-1969), reitor
da USP.
Wagley, todavia, não confirmou a opinião de Pierson a respeito do Museu Nacional
em sua resposta a Steward do dia 5 de outubro.374 Ele também não acreditava que a Faculdade
de Filosofia da Universidade do Brasil tivesse condições de sustentar o programa pretendido
por Steward: ali eram oferecidos poucos cursos na área de antropologia ou geografia humana,
o currículo, de maneira geral, era acanhado (“they have a hidebound curriculum”) e não havia
espaço para o desenvolvimento de atividades de pesquisa. Com relação à ELSP, na qual Wagley
havia ministrado algumas palestras, ele achava que só seria possível trabalhar com dois nomes:
Pierson, que segundo ele já estava cooperando com o governo, e Herbert Baldus, com quem,
naquele momento, uma parceria poderia apresentar algumas desvantagens (certamente Wagley
se referia ao fato de ele ser alemão num momento em que os EUA estavam em guerra contra os
países do Eixo). Para Wagley o lugar óbvio para o ISA era o Museu Nacional:

O Museu tem muitas vantagens sobre os outros dois lugares. Heloisa oferece e
proporciona ao cientista trabalhando com ela total cooperação e bastante liberdade de
ação para trabalhar conforme suas visões se encaixem nos anseios dela de fazer do
Museu o centro de pesquisa e um instituto educacional suplementar. Eu sinto, com
certeza, que se você pedir que ela faça isso, ela enviará para você os requisitos para
um instituto deste tipo imediatamente.
[…] O Museu sob a direção dela definitivamente tem melhores relações que qualquer
outro instituto no Brasil com as agências governamentais. O seu instituto, trabalhando
com o Museu, mais tarde seria capaz de se ligar com o Serviço de Proteção aos Índios,
ao Departamento de Economia Rural, com a Faculdade de Filosofia etc. É possível
que o alistamento militar obrigatório para a guerra roube do Museu seus jovens
etnólogos, mas Heloisa seria capaz de segurá-los se ela tiver um projeto definitivo a
caminho.375

Steward acatou a sugestão de Wagley e no dia 10 de novembro de 1942 enviou uma


carta convidando Torres para a criação de um polo do ISA no Museu Nacional.376 Seu texto

374
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
375
“The Museum has many advantages over the other two. Heloisa does offer and gives the scientist working with
her full cooperation and pretty much of a free hand to work as he sees fit she wants to make the Museum the centre
of research and a supplementary educational institute. I feel certain that if you ask her to do it, she will ship you
the requests for such an institute pronto. […] The Museum under her direction definitely has better relations than
any other institute in Brazil, with other government agencies. Your institute working with the Museum would later
be able to tie in with the Brazilian Indian Service, whit the Department of Rural Economics, with the Faculty of
Philosophy, etc. It is possible that the War and Draft will rob the Museum of their budding ethnologists, but
Heloisa would be able to hold them if she had a definite project under way”.
376
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
268

começa lamentando o fim do projeto de colaboração realizado com Wagley, que o teria deixado
“muito impressionado”, de modo que o seu objetivo era tentar dar continuidade àquela
experiência. Após explicar como a cooperação seria realizada, Steward ainda tocou no
problema específico da possível perda de pessoal em função do alistamento militar obrigatório,
e sua solução seria começar as ações numa escala menor, tentando “reforçar as pesquisas
conectadas com os assuntos mais urgentes que estão relacionados de diversas maneiras com o
esforço de guerra, tais como o problema da borracha e outras atividades no vale amazônico”.377
Steward tinha esperança de que a parceria pudesse começar já em 1943, e apenas esperava uma
resposta informal de Torres para iniciar a viabilização do projeto.
Torres, no entanto, ignorou a missiva de Steward. Este último cobrou-lhe
cuidadosamente, em carta do dia 18 de fevereiro de 1943, tanto uma resposta em relação ao
ISA quanto o envio dos artigos sobre as culturas marajoaras e sobre um resumo da arqueologia
brasileira para o Handbook. A resposta de Torres a essa segunda carta veio no dia 24 de
fevereiro: ela tinha adorado a ideia e estava se esforçando para tentar juntar um número
suficiente de estudantes para o projeto, mas não vinha obtendo sucesso nisso, e a colaboração
só lhe interessaria, escreve ela de forma bastante aberta, caso um curso de instrução regular
pudesse ser estabelecido.378 Torres ainda salientou que estavam analisando a possibilidade de
organizar uma “Fundação muito interessante, que pode se tornar um centro de trabalho muito
eficiente” e pede um prazo de até mais sessenta dias para responder.
Mas, depois disso, Torres mais uma vez permaneceu silente, obrigando Steward a
lhe cobrar novamente uma resposta em 14 de janeiro de 1944.379 Steward ainda contava com o
envio dos artigos que seriam produzidos por Torres, e, a essa altura, o instituto de colaboração
interamericana sediado na Smithsonian já havia sido criado com o nome definitivo de ISA.
Uma carta de David H. Stevens, da Rockefeller Foundation, com cópia para Steward, datada de
16 de fevereiro de 1944, não deixa dúvidas, no entanto, de que Torres estava na verdade
“enrolando” Steward, pois durante todo este tempo ela tentava um novo patrocínio do CIAAIR,
presidido por Henry Moe, para o seu plano de treinamento de jovens antropólogos no Museu
Nacional por profissionais estadunidenses. Havia a possibilidade de que fosse enviado ao
Brasil, por meio de um caminho institucional que não contemplava a participação de Steward,

377
“It might, therefore, be advisable to start on a very small scale and attempt to stress research connected with
more urgent matters that are related in some ways to war activities, such as the rubber problem or other activities
in the Amazon valley”.
378
Ambas as cartas se encontram na pasta “Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA,
NAA, SI.
379
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
269

o antropólogo Carl L. Withers (1900-1970).380 No entanto, o CIAAIR já havia encerrado as


suas atividades, e Stevens, que conversara com William Berrien a este respeito, acabou
aparentemente se atrapalhando e jogando Torres novamente no programa de cooperação da
Smithsonian, a cargo de Steward, que ela parecia tentar evitar. Steward respondeu a Stevens (25
de fevereiro de 1944)381 a fim de esclarecer o mal entendido: o ISA era autônomo em relação
ao Ethnogeographic Board da Smithonian, dirigido por Duncan Strong, e nessa condição já
estava negociando com Torres a possibilidade da instalação de um polo do instituto no Museu
Nacional, algo que vinha sendo dificultado em função da guerra; além disso, Steward havia
procurado Berrien, por telefone, no intuito de tentar resolver este problema, mas nada sabia
dessas negociações paralelas envolvendo o nome de Withers: “eu não encontrei o Sr. Carl
Withers nem ouvi nada da parte dele ainda, embora ele tenha escrito para o Dr. Strong a respeito
do emprego brasileiro, na crença equivocada de que o Ethnogeographic Board tivesse alguma
conexão com isso”.382 Esses desencontros atestam que a rede de instituições forjada nos EUA
durante a Segunda Guerra Mundial com o objetivo de fortalecer o entendimento interamericano
podia as vezes se tornar um intrincado e confuso aparato burocrático, criando inclusive
interesses conflitantes no seu interior.
Logo em seguida (1º de março de 1944), Steward escreveu novamente para Torres,
com cópia para Stevens, tentando mostrar que o tipo de ação proposta pelo ISA contemplaria
os interesses do Museu Nacional para a formação de profissionais qualificados no Brasil: “Isto
dará tempo para ensinar um pessoal a realmente treinar os estudantes no trabalho acadêmico e
na condução de pesquisas de campo de longo alcance, o que promoverá tanto o treino de
estudantes em pesquisa de campo quanto a obtenção de resultados científicos substanciais”.383
Steward também menciona “Chuck” Wagley, com quem contava para convencer Torres.
A resposta definitiva de Torres veio numa longa carta do dia 19 de abril de 1944, na
qual foram explicitados os motivos que tornavam impossível a instalação de um polo do ISA
no Museu Nacional.384 O primeiro motivo era a reorganização pela qual o Museu Nacional
estava passando naquele momento: Torres estaria “lutando contra certas dificuldades que só a
coragem de uma mulher era apta a superar” (“we are struggling against certain difficulties

380
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
381
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
382
“I have not met Mr. Carl Withers nor heard from him yet, although he wrote to Dr. Strong concerning Brazilian
work, in the mistaken belief that the Ethnogeographic Board had some conecction with it”.
383
“This will give time for the teaching personnel really to train the students in the academic work and to carry
out a long-range piece of field work, which will both further student training in field research and get substantial
scientific results” – “Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
384
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
270

which only a woman’s courage is able to conquer”), deixando claro que não queria dizer que a
coragem masculina fosse inferior, mas sim diferente. Além disso, naquele momento, o Museu
Nacional, que passava por reformas, não estava em condições de acomodar cientistas
estrangeiros:

O que eu preciso neste exato momento, como eu expliquei para o Dr. Stevens, é de
um(a) antropólogo(a). A chegada de um quadro inteiro de cientistas à minha aldeia
num tal momento causaria a mesma confusão que a instalação de um grande grupo de
cientistas numa tribo indígena não acostumada a lidar com estranhos. O balanço
funcional do meu grupo sofreria ao ponto de acarretar distúrbios que prejudicariam o
processo de suas atividades gerais. O Museu Nacional não é um museu
exclusivamente antropológico, e se eu falhar em conduzir o plano da organização que
eu trabalhei em todos os setores eu estarei ferindo ao invés de trazer benefícios para
esta instituição de cento e vinte anos, que gozou de um tradicional prestígio em tempos
passados. Eu tenho isso sempre em mente – eu não posso esquecer que a falha de tal
plano seria explorada por aqueles que não acreditam no interesse em desenvolver o
trabalho científico e refletiria na atenção garantida ao trabalho científico, além de
resultar na depreciação do nosso museu e de minha habilidade feminina.385

Além de entraves burocráticos, Torres não gostaria de receber um professor estadunidense


experiente no Museu Nacional, principalmente pelo seguinte motivo:

Há também outro lado deste problema, que minha experiência com professores(as) e
técnicos(as) estrangeiros(as), em geral, me ensinou. É uma questão de maneiras
(natureza, caráter e o que quer que seja) dos(as) professores(as) estrangeiros(as).
Alguns(mas) deles(as) não se adaptam de maneira nenhuma aos modos brasileiros.
Isso, é claro, provoca certas reações desfavoráveis que tendem a prejudicar o proveito
dos(as) estudantes em um certo grau, e, consequentemente, a situação da pessoa
dirigindo este trabalho se torna extremamente dolorosa, uma vez que a falta não recai
em um dos lados e, por isso, não há nada que se possa fazer para corrigir o outro lado.
Eu prometi a mim mesma nunca mais solicitar os serviços de qualquer técnico(a) que
eu não conheça pessoalmente ou por intermédio de informação de uma pessoa
confiável que esteja perfeitamente ciente das condições brasileiras.386

385
“What I need, at this very moment, as I explained to Dr. Stevens, is one anthropologist. The arrival of an entire
staff of scientists to my village at such a time would cause the same confusion as the settlement of a large group
of researchers in an indian [sic] tribe not accostumed to deal with strangers. The functional balance of my group
would suffer to the point of bringing about disturbances which would impair the process of their general activities.
The Museu Nacional is not exclusively an anthropological museum, and if I fail to carry out the plan of
organization which I worked-out in all its sectors I shall be injuring rather than bringing benefit to this hundred-
and-twenty year old institution which enjoyed a traditional prestige in times past. I am constantly bearing this in
mind; - I cannot forget that the failure of such a plan would be explored by those who do not believe in the interest
in developing scientific work and would reflect upon the attention granted to scientific work, besides resulting in
depreciation of our museum and feminine ability”.
386
“There is also another side to this problem which, my experience with foreign professors and technicians, in
general, has taught me. It is a question of ways (nature, character and what else) of foreign professors. Some of
than do not adapt themselves in any way to Brazilian ways. This of course stirs up certain unfavourable reactions
which tends to impair the students' profit to a certain extent, and consequently, the situation of the person directing
this work becomes extremely painful, as the fault does not lie with either party, and therefore there is nothing one
can try to correct on either side. I had promised myself never again to request the services of any technician whom
I do not know personally or through information of a trustworthy person who is perfectly informed on Brazilian
conditions”.
271

Todas essas exigências eram impossíveis de serem previamente acordadas no tipo de contrato
prévio demando por Steward, pois a própria Torres não teria como saber de antemão quais
profissionais estadunidenses seriam enviados ao Museu Nacional.
A diretora do Museu Nacional ainda enviou mais duas cartas na mesma data. Uma
delas tinha como objetivo informar que não tinha tido tempo de redigir os artigos por causa do
programa de reorganização do Museu. A outra solicitou que os artigos originais de Nimuendajú
para o Handbook, que haviam sofrido diversos cortes, pudessem ser fornecidos para a sua
tradução para o português e utilização em atividades de formação. Em resposta datada de 21 de
junho de 1944, Steward lamentava que os artigos de Torres não pudessem ser incluídos no
Handbook, informando-a que o assunto ficaria a cargo da antropóloga Betty Jane Meggers
(1921-2012), bem como de que as regras relacionadas à produção do Handbook impediam que
os artigos fossem fornecidos a terceiros antes de sua publicação nos EUA.387 A resposta de
Torres quanto a esta última negativa foi bastante interessante: ela se lembrou de que os artigos
produzidos por Wagley e Eduardo Galvão também não poderiam ser publicados nos EUA, e
por isso estava enviando uma autorização no intuito de evitar qualquer problema – ela poderia,
portanto, ter se vingado de Steward, mas preferiu não fazê-lo.388
Priscila Faulhaber (2011) já notou, acertadamente, que seria simplista interpretar a
recusa de Torres apenas como uma disputa nativista, uma vez que a diretora do Museu Nacional
foi uma grande defensora da colaboração científica internacional. Outro aspecto que chama a
atenção é a menção à sua condição feminina. É importante destacar que, neste momento, Torres
começava a sofrer uma forte oposição interna no Museu Nacional, e em diversas ocasiões a sua
condição de gênero foi usada de maneira preconceituosa por seus detratores (CORRÊA, 2003,
pp. 149-150). É perfeitamente plausível, portanto, interpretar a negativa de Torres em relação
aos projetos de Steward como um cuidado tomado num momento em que, mais do que nunca,
a sua posição de diretora vinha sendo colocada à prova.
Isto mostra também os limites impostos à antropologia interamericanista, que só
fazia sentido ou poderia existir a partir do momento em que relações intelectuais bilaterais
fossem estabelecidas com sucesso. Depois de fazer uma escolha racional que o levou a optar
pelo Museu Nacional, Steward se deparou com conflitos locais que interferiram no sucesso de
seus planos. As redes e os fluxos de recursos transnacionais podiam ser facilmente bloqueadas

“Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
387

Carta de Torres para Steward, 25 de setembro de 1944, “Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File,
388

Box 12, RISA, NAA, SI.


272

a partir do momento em que essas conexões parecessem desfavoráveis para os projetos de um


dos sujeitos envolvidos. É certo que, no caso de Torres, a grandiosa quantidade de contatos que
ela logrou construir ao longo de sua carreira lhe garantia uma maior variedade de opções,
assegurando assim que a sua instituição continuasse a ser um local privilegiado de
estabelecimento de conexões e de fluxo de recursos. Como a estrutura relacional que Torres
tinha a seu dispor estava assentada em grande medida no poder do Estado, era natural que parte
de suas opções de interação fossem bloqueadas com as crescentes dificuldades que Estado Novo
passou a enfrentar em seus últimos anos de existência. Todavia, a relativa centralidade que
conseguiu construir no interior de uma rede transnacional de americanistas não pode ser
desconsiderada quando pensamos que, não obstante a queda da ditadura varguista, Torres ainda
permaneceu por mais dez anos à frente do Museu Nacional, demonstrando assim certa
autonomia em relação ao contexto político nacional, não obstante conduzisse uma instituição
estatal.

7.3. A ESCOLA LIVRE DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA: UMA INSTITUIÇÃO

INTERAMERICANISTA NO BRASIL

Steward se viu obrigado, portanto, a buscar uma alternativa no Brasil para o


estabelecimento do ISA. Sua segunda opção, a partir das sondagens que acompanhamos acima,
era obviamente a ELSP. Mas como, concretamente, Steward pôde chegar a essa decisão?
Não encontrei nas correspondências relacionadas à viagem de Steward ao Brasil
nenhuma menção aos motivos que o fizeram incluir a cidade de São Paulo em seu itinerário,389
pois no documento de 8 de janeiro de 1942, encaminhando a lista de lugares que visitaria na
América do Sul à autoridade do Department of State, não se fazia nenhuma referência à capital
paulista.390 Depois disso, no entanto, na carta mencionada acima para Wagley (15 de janeiro de
1942) na qual noticiou sua viagem, Steward lembrou que deveria escrever a Herbert Baldus
para saber o que ele ainda não havia publicado e que poderia ser incluído no Handbook. Steward
de fato escreveu a Baldus, no dia 11 de fevereiro de 1942, convidando-o a contribuir com um
artigo para o Handbook e informando que esperava visitar São Paulo no final de abril, quando
poderiam discutir o assunto.391 Em carta do dia 12 de abril de 1942, Wagley, que havia acabado

389
Menções a esta visita são feitas apenas nas cartas dos dias 11 e 14 de abril, encaminhadas por Steward a
Ethewlyn Carter (“STEWARD, Julian H. (1942-45)”, Series 4, Correspondence, Box 11, RISA, NAA, SI).
390
Series 1, Administrative and Reference File, Box 4, HSAIR, NAA, SI.
391
“BALDUS, Herbert”, Correspondence, Box 5, HSAIR, NAA, SI.
273

de voltar de São Paulo e se encontrava novamente no Rio de Janeiro, já sabia que Steward
passaria pelas terras paulistanas e estava bastante empolgado com isso: “Baldus está esperando
por notícias suas. Você precisa conhecer a turma da Escola Livre de Sociologia. Donald Pierson,
de Chicago, é o cabeça da Sociologia por lá, e Radcliffe-Brown, não menos, está dando aulas
lá este ano”.392
A impressão de Steward em relação a esse núcleo paulistano foi muito positiva:
“Em São Paulo, eu fiquei impressionado em encontrar a única unidade de ciência social em
toda a América do Sul – um grupo de pessoas treinadas durante os últimos cinco anos por
Donald Pierson, de Chicago”.393 Mas, como mostrei na seção anterior, Steward acabou sendo
convencido, num primeiro momento, a investir no Museu Nacional.
Depois da resposta de Pierson a respeito de suas indagações sobre qual instituição
brasileira se encaixaria melhor nos planos do ISA (1º de dezembro de 1942), Steward não voltou
mais a tocar no assunto com esse interlocutor, pois estava em processo de negociação com
Torres. Em carta de 30 de agosto de 1944 enviada a Sterwad, no entanto, Pierson resolveu
sondar como andava o projeto do ISA.394 Pierson havia conversado com William Berrien, que
estava a par das negociações com Torres e certamente lhe indicou a possibilidade que se abria
com a sua desistência.
Steward alega que estava envergonhado em responder à carta de Pierson apenas no
dia 1º de novembro de 1944, pois seus compromissos com o ISA o tinham levado a adiar seu
retorno, embora desde o seu recebimento desejasse ter feito isso.395 No entanto, é fácil descobrir
que Steward mentia a este respeito, pois em carta anterior, enviada a William Berrien no dia 6
de outubro de 1944, ele depositava no destinatário a confiança de que este último ainda pudesse
convencer Torres a aceitar o projeto do ISA.396 Mas agora, ao mesmo tempo, e tendo em vista
certamente a carta de Pierson do dia 30 de agosto, Steward tomava providências para saber qual
seria a sua posição ou disponibilidade para encampar, alternativamente, o projeto do ISA na
ELSP. Obviamente Steward não queria passar a impressão de que a ELSP era apenas a sua
segunda opção, e menos ainda que, mesmo depois da negativa definitiva de Torres (e depois da

392
“Baldus is waiting to hear from you. You must meet the gang at the Escola Livre do Sociologia. Donald Pierson,
from Chicago is the head of Sociology there, and Radcliffe-Brown, no less, is lecturing there this year” –
“WAGLEY, Charles (1941-52)”, Series 4, Correspondence, Box 11, RISA, NAA, SI.
393
“In São Paulo, I was impressed to find the only social science unit in all South America – a group of people
trained during the last five years by Donald Pierson, of Chicago” – Carta de Steward a Lowie, 9 de julho de 1942,
“LOWIE, Robert H. (1942-49)”, Series 4, Correspondence, Box 8, RISA, NAA, SI. Nesta mesma ocasião havia
encontrado Radcliff-Brown, tecendo considerações irônicas a respeito da “antropologia colonial” britânica.
394
“PIERSON, Donald (1942-45)”, Series 4, Correspondence, Box 9, RISA, NAA, SI.
395
“PIERSON, Donald (1942-45)”, Series 4, Correspondence, Box 9, RISA, NAA, SI.
396
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
274

carta de Pierson), tivesse insistido, por meio de terceiros, para que ela aceitasse a parceria.
Berrien enviou duas cartas no dia 9 de outubro de 1944, com cópia para Steward. A
primeira era endereçada a Torres, e entre menções a Gilberto Freyre, que era um amigo comum,
aos momentos que ambos passaram no Rio na companhia dela e às saudades com que se
referiam à Torres e à sua mãe, Berrien explicou novamente todo o projeto do ISA na esperança
de que a diretora do Museu Nacional pudesse voltar atrás. Não encontrei registro nos NAA, no
entanto, de resposta a esta carta. A segunda missiva, remetida a Pierson, começava
demonstrando solicitude ao se dispor a conversar com Lewis Hanke (1905-1993), diretor da
Hispanic Foundation da Library of Congress, a fim de publicar um texto do sociólogo
estadunidense no Handbook of Latin American Studies, mencionando ainda a possibilidade de
que a sua seção fosse publicada em Yale, por intermédio de Wendell Bennett. Depois dessa
demonstração de camaradagem, seguia um texto muito semelhante ao que foi enviado a Torres
a respeito do ISA, como possível forma de manter Pierson por mais um ou dois anos no Brasil,
como desejava.397
Foi apenas depois de passado quase um mês sem a resposta de Torres à carta de
Berrien que Steward resolveu, enfim, escrever a Pierson, convidando-o para estabelecerem o
polo do ISA na ELSP. Para o possível desespero de Steward, Pierson, no entanto, recusou
inicialmente o seu pedido em sua resposta do dia 2 de dezembro de 1944.398 Segundo ele, não
havia ainda na ELSP um número suficiente de pessoas treinadas em ensino e pesquisa,
estudantes preparados de maneira competente, tempo suficiente e, por fim, dinheiro. Foi preciso
então que Steward esclarecesse, em carta do dia 21 de dezembro, que o pesquisador enviado
dos EUA seria pago com recursos da Smithsonian e que não era necessário empreender trabalho
de campo enquanto não houvesse pessoal qualificado para tanto.399
Pierson voltou a escrever para Steward em 16 de janeiro de 1945, demonstrando
ainda alguma desconfiança. Steward, por sua vez, tenta convencê-lo com base numa afirmação
que não se sustenta caso cotejada com o que aqui já demonstrei a respeito das primeiras
aparições da ideia sobre o ISA:

Como eu provavelmente te disse antes, a ideia do Institute of Social Anthropology foi


sugerida pelos seus maravilhosos resultados em São Paulo. […] Eu não posso pensar
noutra pessoa mais adequada para conduzir nosso trabalho no Brasil do que você,
pois, seu eu captei corretamente os seus objetivos e realizações, você tem feito

397
Ambas as cartas também estão na pasta “Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject File, Box 12, RISA,
NAA, SI.
398
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
399
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
275

precisamente o que nós gostaríamos de fazer.400

Como pude mostrar, Steward já havia pensado no projeto do ISA antes de viajar ao Brasil, e,
portanto, antes de conhecer o trabalho da ELSP, a partir das conversas que teve com Wagley
em 1941 a respeito dos planos de cooperação do Museu Nacional. Além disso, está claro que a
pessoa ideal para conduzir o ISA seria, de acordo com o que pudemos constatar, Heloisa Alberto
Torres, e não Pierson. Mas tratava-se de apelar para a vaidade desse último e, assim, garantir
um núcleo de produção de recursos etnográficos e sociológicos cujos fluxos, a partir do Brasil,
estivessem sob o controle de Steward.
Mas algo mais contribuiu para a sedução de Pierson: o salário e as vantagens que
receberia por meio da Smithsonian. O cargo intitulado “P-5” lhe garantiria uma soma maior do
que aquela que ele recebia no Brasil por um acordo entre a ELSP e o U.S. Department of State.
Além disso, embora todas essas ações de cooperação interamericana estivessem ligadas ao
esforço de guerra, era muito provável que os trabalhos do ISA se prolongassem por, pelo menos,
cinco anos (eles duraram, na verdade, até 1952). Steward aproveitou para sugerir que na
declaração de interesse da ELSP fosse dada preferência ao estudo de problemas
contemporâneos, que a colaboração se iniciasse, preferencialmente, antes do início do fim do
ano fiscal (julho) e, por fim, ainda acenava com outro incentivo: Pierson poderia visitar os EUA,
por dois ou três meses, para fazer novos contatos, rever o país e participar de algumas palestras,
isso depois de mais de cinco anos de trabalho ininterrupto no Brasil.
Feitos os últimos acertos entre os dois, Cyro Berlinck encaminhou o convite formal
para a cooperação entre a ELSP e o ISA, conforme solicitado por Steward, no dia 2 de abril de
1945. Steward então submeteu o “projeto de proposta de cooperação no campo da antropologia
social” a Raymund L. Zwemer (1902-1981), diretor executivo do Interdepartmental Committee
on Cultural and Scientific Cooperation, no dia 18 de abril e, no dia 28, já comunicava a sua
aprovação tanto a Berlinck quanto a Pierson.401
Em novembro do mesmo ano Pierson finalmente se encontrava nos EUA, e
Steward, que na mesma época estava no Peru, discutia com ele os nomes passíveis de serem
contratados pela Smithsonian a fim de trabalharem no ISA em São Paulo. Um dos nomes
cogitados era Carl Withers, já mencionado neste capítulo. No entanto, a sombra de Torres se

400
“As I have probably told you previously, the idea of the Institute of Social Anthropology was suggested by your
marvelous results in São Paulo. […] I can think of no one more ideal to carry out our work in Brazil than yourself,
for, if I grasp objectives and accomplishments correctly, you have been doing precisely what we would want to
do” – Carta de Steward para Pierson, 9 de fevereiro de 1945, “Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject
File, Box 12, RISA, NAA, SI.
401
“Brazil, General, 1942-51”, Series 5, Areal Subject File, Box 12, RISA, NAA, SI.
276

colocou no caminho desta escolha: uma vez que Withers havia recusado uma proposta de
trabalho do Museu Nacional, convidá-lo para trabalhar no ISA, ainda que ele estivesse
interessado em abandonar suas aulas no Brooklyn para realizar trabalhos de campo no Brasil,
seria correr o risco de perder a amizade de Torres, algo que, como vimos no Capítulo Epigráfico
desta tese, parecia ser algo que normalmente atemorizava as pessoas.402 A resposta de Pierson
a Steward é ainda mais esclarecedora, com todo o seu sabor behaviorista, sobre o temor dos
estadunidenses em relação a Torres:

Tudo o que eu tenho visto ou ouvido de Carl Withers o tem recomendado


favoravelmente, e não haveria objeção à sua indicação até onde seu interesse está
relacionado às comunidades contemporâneas. Mas eu devo dizer francamente que, no
meu julgamento, a situação com D.H. [Dona Heloisa] definitivamente descarta a sua
indicação no presente. Esta afirmação bastante positiva é baseada em vários anos de
intimidade com os indivíduos aqui. A resposta por parte de D.H., que você antecipou
em termos da nossa própria cultura, poderia ser intensificada por um condicionamento
cultural que aqui conduz o indivíduo a presumir, em tais casos, motivos que não
aqueles afirmados, usualmente ulteriores, e que, também, quase sem exceção, leva os
indivíduos a agirem considerando que um homem é culpado até que se prove o
contrário, ao invés da consideração reversa à qual nós estamos acostumados, que
tende a conceder ao outro homem “o benefício da dúvida”. Além disso, D.H. está
estrategicamente posicionada, especialmente como um membro do Conselho do
Serviço de Proteção aos Índios e poderia, se ela quisesse, sob atual legislação
brasileira, cuidar para que a permissão para visitar tribos indígenas fosse retida
indefinidamente ou mesmo recusada. De fato, considerando as circunstâncias aqui, eu
posso pensar em poucos desenvolvimentos que pudessem ser mais prejudiciais ao
nosso programa que a indicação de Withers no presente. Provavelmente, o assunto
poderia ser arranjado com cuidado em mais ou menos um ano, mas não agora.403

Ao menos no que diz respeito à posição estratégica de Torres, Pierson demonstrou


um poder quase divinatório. Em carta enviada em 11 de junho de 1948 para George M. Foster
(1913-2006), que substituiu Steward na direção do ISA a partir de 1946, Kalevo Oberg (1901-
1973), contratado para atuar na ELSP junto a Pierson também em 1946, reclamava das

402
Carta de Steward para Pierson, 14 de novembro de 1945, “PIERSON, Donald (1942-45)”, Series 4,
Correspondence, Box 9, RISA, NAA, SI.
403
“All that I have seen or heard of Carl Withers has favorably recommended him, and there would be no objection
to his appointment so far as his interest in contemporary communities is concerned. But I must say frankly that, in
my judgment, the situatien with D.H. definitely rules out his appointment at present. This rather positive statement
is based upon several years intimate acquaintance with individuals here. The response on D.H.’s part which you
anticipate in terms of our culture would be intensified by a cultural conditioning here which leads individuals to
presume, in such cases, motives other than the stated ones, usually ulterior, and which, also, almost without
exception, leads individuals to act on the consideratiion that a man is guilty until proved innocent, rather than the
inverse consideration to which we are accustomed which tends to give the other man ‘the benefit of the doubt.’
Moreover, D.H. is strategically placed, especially as a member of the Conselho of the Serviço de Proteção aos
Índios and could, if she desired, under present Brasilian law, see to it that permission to visit Indian tribes was
withheld indefinitely or even refused. In fact, considering circumstances here, I can think of few developments
which program than Withers’s appointment would be more prejudicial to our at present. Probably the matter
could be tactfully arranged in another year or so, but not now” – Carta de Pierson para Steward, 3 de dezembro
de 1945, “PIERSON, Donald (1942-45)”, Series 4, Correspondence, Box 9, RISA, NAA, SI.
277

dificuldades em realizar pesquisas na região do rio Xingu. 404 Para ele as causas de suas
dificuldades estavam claras:

Juntando todas as peças, o problema todo pode ser reduzido à oposição de Dona Eloisa
Torres, que tem um homem trabalhando no Xingu e quer mantê-la uma reserva
privada. Na presença do adido cultural, Jardim e eu mesmo, ela começou a discussão
assim: ‘Para ser perfeitamente franca, eu não gosto do instituto da Smithsonian’.
Jardim então acrescentou que em assuntos de pesquisa Eloisa era a presidente da
Fundação. Então, no que se refere ao Xingu a Dona é a chefe. Eu soube que ela teve
uma discussão com Julian alguns anos atrás que a deixou com um complexo em
relação à Smithsonian Institution. […] Um antigo estudante da Escola Livre, que
agora trabalha para o Serviço de Proteção aos Índios, nos contou que o Museu
Nacional não apenas fez objeção à nossa entrada no Xingu para a Fundação, mas
mandou um homem para protestar para o Serviço de Proteção aos Índios, que
felizmente não foi adiante com o plano.405

Steward não soubera preservar a valiosa amizade de Torres e então, depois de sua saída, o ISA
pagava o preço de seu erro. Algumas redes relacionais e fluxos de recursos etnográficos estavam
decididamente bloqueados para estes estadunidenses. Oberg por fim conseguiu entrar na reserva
do Xingú, mas continuou narrando problemas com Torres, que dificultava a participação de
outros membros do grupo de pesquisa e exigia a presença de um representante seu no interior
da expedição.406 Essa era a impressão de Foster em relação a Torres: “Com relação à Dona
Eloisa, ela sempre foi um tanto antagônica a Julian, e parece ser uma daquelas pessoas que
estende o seu antagonismo para todos que tenham contato com ele. Isso parece ser
primariamente uma questão de medo profissional e reconhecimento da superioridade por parte
da antropologia estadunidense”.407 De todo modo, em de 23 de abril de 1949, Oberg comunica
Gordon Willey (1913-2002), que então substituía Foster na direção geral do ISA, sua decisão
em pesquisar em outro lugar, entre os parecis e nambiquaras, diante do “monopólio” do Museu
Nacional no Xingú.408

404
“OBERG, Kalevo (1946-1949)”, Series 4, Correspondence, Box 9, RISA, NAA, SI.
405
“Putting the pieces together the trouble [can] all be reduced to the opposition of Dona Eloisa Torres who has
a man working in the Xingú and wants to keep it a private reserve. In the presence of the cultural attaché, Jardim
and myself she began the discussion thus. ‘To be perfectly frank, I don’t like the Smithsonian Institute.’ Jardim
then added that in research matter Eloisa was the president of the Fundação. Thus as far as the Xingú is concerned
the Dona is the boss. I hear she had an argument with Julian some years ago which has given her a complex about
the Smithsonian Institution. […] A former student of the Escola Livre who now works for the Indian Service told
us that the Museu Nacional not only objected to our entry into the Xingú to the Fundação but sent a man to protest
to the Indian Service who fortunately did not go along with the plan”.
406
Carta de Oberg para Foster, 6 de setembro de 1948, “OBERG, Kalevo (1946-1949)”, Series 4, Correspondence,
Box 9, RISA, NAA, SI.
407
“With regard to Doña Eloisa, she has always been somewhat antagonistic to Julian, and appears to be one of
those persons who extends her antagonism to anyone who has ever had contact with him. It appeas to be primarily
a question of professional fear and recognition of superiority on the part of American anthropology” – Carta de
Foster a Oberg, 21 de junho de 1948, “OBERG, Kalevo (1946-1949)”, Series 4, Correspondence, Box 9, RISA,
NAA, SI.
408
“OBERG, Kalevo (1946-1949)”, Series 4, Correspondence, Box 9, RISA, NAA, SI.
278

Antes de finalizar este capítulo eu gostaria de destacar um aspecto que considero


significativo a respeito de uma possível maior proximidade estabelecida entre os antropólogos
de Washington e São Paulo, em especial no que diz respeito à ELSP. Cristina Mehrtens mostra
que no início do século XX uma intrincada rede transnacional de profissionais se estabelece
entre o Brasil e os EUA, algo que, dentre outros fatores, moldou um ethos moderno de “classe
média” por meio de diversas práticas que se entrecruzam na cidade de São Paulo (PEIXOTO-
MEHRTENS, 2010). Uma das trajetórias que Mehrtens analisa mais de perto é a do antropólogo
Samuel H. Lowrie , trazido dos EUA pela elite paulistana para a fundação da ELSP. Neste caso
não se tratava, porém, apenas da construção de um novo modelo educacional: o que a elite
paulistana envolvida neste projeto buscava nos intelectuais estadunidenses era um verdadeiro
modelo civilizacional por meio do qual pudesse se distinguir das oligarquias tradicionais.
Tratava-se de construir um ethos distintivo, marcado mais pela meritocracia e menos pelo
clientelismo, ainda que, na prática, as duas coisas continuassem coexistindo. É justamente nisso
que pareceu residir a atração sentida por Willian Berrien em relação aos paulistas, em
detrimento de outros profissionais latino-americanos, e por isso é interessante lermos as suas
impressões sobre as diferenças entre o Rio de Janeiro e São Paulo:

Minha estadia em São Paulo foi uma das mais prazerosas e satisfatórias que eu tive
aqui [na América do Sul]. Eu não sei se foi ter saído de Buenos Aires, que eu
francamente não gosto, ou se foi porque eu geralmente admiro os paulistas, que são
eficientes sem serem arrogantes, ou o que quer que seja; mas eu ficarei feliz em
voltar a São Paulo a qualquer tempo. O Rio é quase tão bom quanto qualquer um pode
imaginar, se não fosse pelo calor, que me põe para baixo e parece contar em parte para
uma tendência da parte de todo mundo de “deixar para lá” facilmente; das duas
cidades, São Paulo é facilmente aquela para se ter as coisas feitas.409

Não deve ser negligenciado, portanto, o papel aglutinador de um conjunto de valores que
passam a ser apropriados pela classe média e pelos intelectuais paulistanos em seus anseios de
intervir nos rumos da nação. Esses valores são aqueles do mundo civilizado, agora cada vez
mais identificado com a praticidade, com o utilitarismo, com a racionalidade, com o mérito
individual, enfim, com o American way of life. Estes valores e os comportamentos deles
derivados podiam, como essas correspondências atestam, ter uma função importante nas

409
“My stay in São Paulo was one of the most pleasant and satisfactory visits I’ve had down here. I don’t know
whether it was getting away from Buenos Aires, which I frankly do not like, or whether it was that I generally
admired the ‘paulistas’, who are efficient without being overbearing, or what it was; but I’ll be glad to go back to
São Paulo any time. Rio is about as nice as anyone could ask for, if it were not for the heat, which gets me down
and seems to account in part for a tendency on everyone’s part to ‘let up’ easily; of the two cities, São Paulo is
easily the one for getting things done” – Carta de Berrien para David H. Stevens, 13 de maio de 1941, “BERRIEN,
William, (#1-#11)”, HAMP, APS.
279

escolhas relacionais estruturadas na rede transnacional de antropólogos(as) interamericanos(as)


que tenho apresentado neste capítulo.
Por outro lado, isso significou também, por vezes, a defesa bem-sucedida por parte
de setores tradicionais da antropologia nacional que buscavam trilhar suas sendas
modernizadoras de maneira mais autônoma, como no caso do Museu Nacional. Ainda que
prezasse a cooperação internacional, Heloisa Alberto Torres soube tirar vantagem de sua boa
inserção relacional e institucional a fim de controlar estrategicamente os fluxos de recursos por
entre os novos canais interamericanistas.

Este capítulo tratou da institucionalização da antropologia interamericanista no


Brasil por meio do ISA. Se por um lado esse projeto podia facilitar a missão civilizatória dessa
prática acadêmica, por outro ele pôs em contato interesses por vezes conflitantes. O fluxo de
recursos antropológicos produtores de modernidade, conforme pude demonstrar, não acontecia
em apenas uma direção. Enquanto alguns(mas) sujeitos da modernidade brasileira podiam se
aproveitar desses novos recursos, outros(as), a exemplo de Heloisa Alberto Torres, podiam se
dar ao luxo de dificultar ou mesmo bloquear esses circuitos.
Essa disputa entre sujeitos de modernidades nacionais, cujo objetivo era definir qual
nação conquistaria melhores condições de “civilizar a América”, impulsionava, por outro lado,
a criação de novos objetos. Curt Nimuendajú, por exemplo, prestou uma enorme contribuição
para isso, pois da coleta/produção de dados e artefatos etnográficos dependia a sua própria
sobrevivência, e foram os novos canais interamericanistas que lhe permitiram levar adiante a
sua luta cotidiana. Ao mesmo tempo, jovens pesquisadores(as) estadunidenses e brasileiros(as)
passaram a ter a oportunidade de construir suas respectivas carreiras a partir da definição de
novos “objetos de estudo” a partir das bolsas e oportunidades de pesquisa trazidas pelo impulso
da antropologia interamericanista. Em meio a tudo isso cada vez mais pessoas eram capturadas
pela sanha objetificadora da epistemologia moderna, agora em sua configuração
interamericana. Novas “tribos”, “culturas”, “línguas” passavam a ser “conhecidas” e, portanto,
logo poderiam ser melhor aproveitadas pelo mundo moderno que espraiava pelas Américas,
afinal, era necessário fazer frente à barbárie representada pelos totalitarismos de direita e, logo
mais, pelo comunismo.
No próximo capítulo veremos como o trânsito interamericano entre Brasil e Estados
Unidos foi impulsionado por uma outra instituição, o Committee of Inter-American Artistic and
Intellectual Relations. Poderemos flagrar, neste caso, a produção de um novo tipo de
280

subjetividade sendo construída no interior desses fluxos: o interamericanista profissional, e não


mais o(a) antropólogo(a) interamericanista.
281

CAPÍTULO 8: O COMMITTEE OF INTER-AMERICAN ARTISTIC AND

INTELLECTUAL RELATIONS E O SURGIMENTO DO INTERAMERICANISTA

PROFISSIONAL

8.1. O CIAAIR: AGÊNCIA E AGENTES

Dentre as diversas agências interamericanas criadas durante a Segunda Guerra


Mundial, a que parece ser menos conhecida entre os(as) historiadores(as) intelectuais é o
Committee of Inter-American Artistic and Intelectual Relations (CIAAIR).410 No entanto, essa
agência esteve envolvida em vários projetos de cooperação intelectual e artística que tiveram
como resultado um significativo fluxo bilateral de sujeitos, objetos e híbridos produtores de
modernidades específicas entre as duas Américas. Embora o CIAAIR merecesse um estudo
mais amplo, eu me restringirei a tratar de alguns aspectos relacionados às trocas estabelecidas
entre estadunidenses e brasileiros, de modo a seguir o plano esboçado para esta tese.
Os documentos relacionados ao CIAAIR estão arquivados nos Henry Allen Moe
Papers, 1920-1975 (Mss.B.M722), na American Philosofical Society (doravante simplesmente
HAMP, APS). A documentação produzida por Moe foi doada à American Philosophical Society
(APS), situada na cidade da Filadélfia, Pensilvânia, EUA, e sua função narrativa pode ser
interpretada de maneira muito semelhante à que propus para os arquivos do HSAI e do ISA
guardados pela NAA-SI. No entanto, neste caso, trata-se de um sujeito cuja atividade não se
caracteriza por ser acadêmica, mas por uma abnegada atuação em prol da seleção rigorosa de
outros sujeitos que serviram como instrumentos da construção do entendimento interamericano.
A construção do poder interamericano do qual Rockefeller se tornou uma figura central devia
ser constantemente registrada e arquivada, de modo que muitos aspectos desse processo estão
hoje disponíveis para os(as) historiadores(as) transnacionais interessados(as) nesta temática. Eu
pretendo apresentar, a partir dessa documentação, um aspecto fundamental para ampliação do
alcance e eficácia do fluxo de pessoas, recursos e saberes desta nova rede americanista: a
habilidade relacionada ao trânsito por entre diferentes instituições, à produção de conexões

410
Nos diversos trabalhos consultados para este capítulo, apenas o de Fabiana Servidio (2011) faz menção explícita
a esta instituição, enquanto que os demais tendem a confundir suas ações ou com as das Rockefeller ou
Guggenheim Foundations. Mesmo assim, Servidio tomou conhecimento do CIAAIR por meio de uma coleção
arquivística citada como “Washington D.C. Files, RG4, N.A.R. Personal, RAC”, sem fazer menção aos Henry
Allen Moe Papers, os quais utilizo para esta seção.
282

interpessoais entre pessoas até então desligadas entre si, e à produção de uma constante
credibilidade relacional assegurada pela manutenção dos fluxos de capital e de saberes
necessários para a implementação de diferentes projetos de modernização. Isso mostra,
portanto, um momento em que o interamericanismo se torna um campo específico, e não mais
simplesmente um ramo de ação, por exemplo, do campo antropológico.
Henry Allen Moe (1894-1975) foi o primeiro-secretário, depois administrador e,
finalmente, presidente da John Simon Guggenheim Memorial Foundation entre 1925, ano de
sua criação, e 1963. Essa fundação foi estabelecida pelo ex-Senador Simon Guggenheim em
memória de seu filho John – que falecera aos sete anos de idade –, visando colaborar com a
ciência, a literatura e as artes estadunidenses, bem como aprimorar o entendimento
internacional. Com esse fim passou a oferecer bolsas para indivíduos, primeiro apenas
estadunidenses, depois aqueles pertencentes a outras repúblicas americanas, que se destacassem
por sua produção artística ou científica.411
Moe se tornou, assim, uma espécie de especialista na avaliação dos talentos que
mereceriam receber o patrocínio econômico e o prestígio desta bolsa. Trata-se de um tipo de
profissional que, no caso dos EUA, possuía um papel fundamental na articulação de redes de
intelectuais em prol dos valores governamentais e de fundações vinculadas a associações ou
aos poderosos grupos empresariais estadunidenses. Sua centralidade repousava em seu papel
de broker, ou seja, de administrador de contatos entre intelectuais e agências. Desse modo, sua
função era gerir e pôr em movimento os recursos intelectuais produzidos por terceiros. Algo
que esta tese tem tentado demonstrar é que esses sujeitos aparecem como tendo um papel
fundamental na construção e consolidação das redes intelectuais transnacionais – ainda que, no
caso de Boas e Steward, por exemplo, o papel de broker fosse acumulado com o de produtor de
recursos.
Moe, que também foi presidente da American Philosophical Society (APS) entre
1959 e 1970, é apresentado no catálogo de sua coleção documental 412 como um devotado
funcionário das agências governamentais e fundações estadunidenses, sobretudo em função de
seu interesse pela América Latina. Seu papel de articulador também é destacado nesse
documento, que chama a atenção para os contatos que Moe estabeleceu com os “influentes” e
com os “aspirantes” no mundo dos bancos, das finanças, das artes e das ciências. Em suma,
trata-se da narrativa do funcionário exemplar em prol da ação civilizadora estadunidense, papel

411
Informações disponíveis em www.gf.org, acesso em 09/05/2017.
412
Disponível em http://www.amphilsoc.org/collections/view?docId=ead/Mss.B.M722-ead.xml, acesso em
09/03/2017.
283

este do qual os próprios sujeitos se investiam em seus respectivos devires. Mais uma vez, trata-
se de colocar aqui essa narrativa inscrita nos arquivos numa perspectiva transnacional.
O CIAAIR foi um subcomitê indicado pelo Coordinator of Inter-American Affairs
(CIAA), Nelson Rockefeller, e constituído a partir de um contrato firmado em 20 de fevereiro
de 1941 entre Rockefeller, então ainda Coordinator of Commercial and Cultural Relations
between the American Republics, David H. Stevens, Director of Humanities of the Rockefeller
Foundation, Henry Allen Moe, Secretary of the John Simon Guggenheim Memorial
Foundation, e Frederick P. Keppel (1875-1943), President of the Carnegie Corporation, sendo
que Moe foi apontado o seu presidente.413 Essa agência visava viabilizar uma das atribuições
legais do Coordinator, ou seja, “formular e executar um programa que reforçasse os laços entre
os Estados Unidos e outras Repúblicas do Hemisfério Ocidental”,414 algo que se daria
necessariamente pelo trânsito de “um certo número de acadêmicos, cientistas, engenheiros,
escritores, artistas e outros trabalhadores criativos”415 por entre esses países. Tratava-se de um
programa de “residência temporária” (estudantes de graduação não eram elegíveis) de caráter
também interamericano, ou seja, bilateral, o que quer dizer que os intercâmbios seriam
realizados necessariamente entre os EUA e as outras Repúblicas americanas, e nunca pelas
Repúblicas americanas, excluídos os EUA, entre si. Por fim, o contrato de fundação do
CIAAIR define de maneira bastante precisa o tipo de atuação de sujeitos como Moe: “[…] os
contratantes, por razão de suas longas experiências com suas respectivas fundações, têm
conhecimentos especiais sobre os peculiares serviços para a investigação e seleção de bolsistas
e professores intercambistas e para o planejamento, administração e supervisão do seu

413
Contract No. NDCar-12, 20 de fevereiro de 1941, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual
Relations” (#9 - #13), HAMP, APS. Moe, em carta dirigida a Pierson em 8 de setembro de 1942, esclarece que o
CIAAIR estava, na prática, subordinado ao Office of the Coordinatior of Inter-American Affairs de Nelson
Rockefeller – “Latin America: Pierson” (#1 - #2), HAMP, APS. A respeito das citações de fontes arquivísticas dos
HAMP, elas seguem, no geral, o mesmo padrão das anteriores. No entanto, essa documentação não é dividida por
“séries”, como no caso das coleções dos NAA; além disso, depois no nome da pasta, que também aparece entre
aspas, na maioria dos casos mostrarei, entre parênteses, a indicação da numeração que essas pastas recebem,
quando acontece de se desdobrarem em mais de uma – como, no caso da última citação, a indicação “(#1 - #2)”.
Isso significa, neste caso, que o documento está em uma das duas pastas com o mesmo nome, recebendo a primeira
o número “1” e a última o número “2”, pois, por um lapso, eu deixei de anotar individualmente a qual número de
pasta pertencia o documento quando os fotografei na Filadélfia e só percebi este problema quando já estava de
volta ao Brasil. No entanto, isso não inviabiliza e nem mesmo dificulta muito a conferência, pois, como as pastas
dos HAMP não são volumosas e, nos casos aqui apresentados, dificilmente ultrapassam uma dezena, será fácil
encontrar o documento indicado em função da sua organização em geral cronológica descendente.
414
“The Coordinator is charged by law with the duty of formulating and executing a program which will strengthen
the bonds between the United States and the other Republics of the Western Hemisphere” – Contract No. NDCar-
12, 20 de fevereiro de 1941, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations” (#9 - #13), HAMP,
APS.
415
“[…] a number of scholars, scientists, engineers, writers, artists and other creative workers” – Contract No.
NDCar-12, 20 de fevereiro de 1941, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations” (#9 - #13),
HAMP, APS.
284

trabalho”.416 O tipo de trabalho desempenhado por Moe era, portanto, reconhecido como
fundamental para a efetivação do empreendimento interamericano.
Esse contrato expiraria, a princípio, em 30 de junho de 1942, mas foi prorrogado
até 1943 – a última reunião do CIAAIR arquivada nos HAMP data de 22 de setembro daquele
ano). O CIAAIR começou a operar a partir de fundos fornecidos pela Carnegie Corporation
(100 mil dólares) e pelo OCIAA, o “Office de Rockefeller” (150 mil dólares), o que lhe permitiu
fornecer diversas bolsas, que duravam entre três meses e um ano, com possibilidade de
prorrogação, e cujo valor variava em função do tempo da residência e do tipo de trabalho a ser
desenvolvido, alcançando valores de até 5 mil dólares ou mais (um valor próximo ao recebido
anualmente por funcionários como Steward, no início da guerra, e Pierson, quando agente do
Institute of Social Anthropology, por exemplo).417
O contrato firmado com Nelson Rockefeller estabelecia apenas que os professores
universitários e bolsistas (“professors and fellows”) selecionados para as bolsas do CIAAIR
deveriam ser acadêmicos com produção reconhecida, e “trabalhadores criativos”
(“accomplished scholars, and creative workers”, termo este que abrangia escritores, músicos,
artistas plásticos etc.), ou “homens e mulheres mais novos com um excepcional trabalho
promissor em qualquer campo do conhecimento ou arte”.418 Além disso, os(as) candidatos(as)
selecionados/as deveriam ser “cidadãos(ãs) de uma República Americana e os intercâmbios
devem tomar lugar apenas entre os Estados Unidos da América, incluindo suas possessões no
Hemisfério Ocidental, e outra República Americana”,419 reforçando, assim, o caráter
interamericano e bilateral ao qual eu me referi acima.
O contrato ainda determinava que, “empregando os canais de aconselhamento que
a seu exclusivo critério podem eleger, os Contratantes devem investigar as qualificações e
aptidões das pessoas que serão professores e bolsistas visitantes sob os termos deste contrato, e
devem selecionar tais pessoas de acordo com os seus melhores julgamentos”.420 Cabia aos
“contratantes”, portanto, lançar mão dos instrumentos sob sua discrição para selecionar apenas
intelectuais de “primeira classe” (“first-rate”), termo que seria bastante utilizado em suas

416
“[…] the contractors, by reason of their long experience with their respective foundations, have special
knowledge of the unusual facilities for the investigation and selection of exchange professors and fellows, and for
the planning, administration, and supervision of their work” – Contract No. NDCar-12, 20 de fevereiro de 1941,
“Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
417
“Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
418
“[…] younger men and women of unusual promise working in any field of knowledge or art”.
419
“[…] citizens of an American Republics and interchanges shall take place only between the United States of
America, including its possessions in the Western Hemisphere, and another American Republic”
420
“Employing such channels of advice as they at their own discretion may elect, the Contractors shall investigate
the qualifications and suitability of persons to be exchange professors and fellows under the terms of this contract,
and shall make their selections of such persons in accordance with their best julgment”.
285

correspondências. A única obrigação quanto a isso era produzir registros minuciosos sobre todo
o processo e relatórios a serem encaminhados ao Coordinator que, assim, possuía o controle
virtual dos intercâmbios interamericanos pretendidos. Mas eu não cheguei a encontrar nenhum
tipo de conflito entre Rockefeller e Moe relacionado aos critérios utilizados por este último, o
que indica que se tratava de homens imbuídos de valores e ideais muito semelhantes.
Assim como Rockefeller escolheu Moe, este deveria, portanto, escolher os seus
ajudantes, conselheiros e bolsistas. A este respeito cabe uma pequena reflexão: qual é a
diferença entre esse tipo de procedimento e aqueles adotados pela elite burocrática brasileira
sob a ditadura de Vagas? Em essência não parece haver diferença significativa, a não ser pelo
fato de que Vargas teve que ceder a diversas pressões políticas, mesmo durante o Estado Novo,
quando loteou os inúmeros postos administrativos ao seu dispor, de modo a manter um ponto
ótimo de consenso sem a necessidade do custoso uso do aparato de violência; Rockefeler, por
sua vez, parecia gozar de maior autonomia em relação a essas pressões: o seu Office dispunha
de uma quase carta branca de Roosevelt e, em prol da civilização e da luta contra a barbárie
fascista, possuía ampla liberdade para implementar suas políticas de aproximação em relação à
América Latina.
O principal conselheiro/assistente de Moe foi William Berrien. Quando, em 1941,
começa a colaborar com os projetos do CIAAIR, Berrien ocupava o cargo de Adviser on Latin
American Studies do American Council of Leanerd Societies (ACLS), que, entre julho de 1942
e junho de 1943 passou a gerir o programa de centros binacionais do Office de Rockefeller
(SANTOMAURO, 2015, p. 48).421 Em 1942 o nome de Berrien já aparece ligado à Rockefeller
Foundation, onde ocupava o cargo de diretor assistente da Divisão de Ciências Humanas (David
H. Stevens era o diretor e John Marshall o diretor associado). Na década de 1950, quando
continuava se correspondendo com Moe, Berrien era professor de português em Harvard, mas
sentia falta de seu antigo papel na Rockefeller: “Eu me sinto bem, meu espírito está muito bom;
mas eu preciso de um senso-de-função, do tipo que se liga a ter uma tarefa num programa no
qual eu possa ser útil para os outros”.422
Com efeito, Berrien parecia muito talentoso no que fazia: falava fluentemente

421
A ACLS, que também financiava projetos de pesquisa na área das ciências humanas e sociais, foi criada em
1919 para representar os EUA na União Acadêmica Internacional, contando entre seus fundadores 13
representantes de associações intelectuais (www.acls.org/about/history). Dentre as associações que compunham a
ACLS em 1941 é possível mencionar, por exemplo, a própria APS, a American Historical Association (AHA) e a
American Anthropological Association (AAA).
422
“I feel fine; my spirits are very good; but I need a sense-of-function, the kind that goes with having an
assignment within a program where I can be useful to others” – Carta de Berrien para Moe, 14 de junho de 1954,
“Buarque de Holanda, Aurelio” (#1-#3), HAMP, APS.
286

português e espanhol, relacionava-se muito bem com os inúmeros intelectuais latino-


americanos que conheceu a serviço dessas instituições, conseguia obter informações
confidenciais sobre os pleiteantes a bolsas com extrema facilidade e, além disso, tinha uma
visão afiada para encontrar pessoas que pudessem atender às expectativas das instituições
estadunidenses. Suas informações se tornaram um recurso importante nas mãos de Moe, que
confiou em Berrien para operar a separação entre os “verdadeiros intelectuais” e os
“supostamente maravilhosos”, como Moe escreveu numa carta para Berrien a respeito de San
Tiago Dantas;423 ou, de acordo com a terminologia já mencionada acima, entre os “first-rate” e
os demais. Moe e seus associados funcionavam, portanto, como “elementos de filtragem” dos
canais pelos quais fluíam sujeitos e objetos da produção das culturas latino-americanas em suas
relações com a civilização estadunidense. Tudo isso provavelmente ficará mais claro com os
exemplos que apresentarei a seguir.

8.2. BARREIRAS VALORATIVAS AOS TRÂNSITOS INTERAMERICANOS:

POLÍTICA, COMPORTAMENTO, IDADE, GÊNERO E COR

O trânsito interamericanista não estava aberto a todos(as). Isso fica bastante claro
quando observamos mais de perto alguns entrecruzamentos entre o interamericanismo
profissional e o campo acadêmico. Em 20 de novembro de 1940, Nelson Rockfeller enviou uma
carta a Robert Gordon Sproul (1891-1975), presidente da University of California (cargo
correspondente ao de reitor nas universidades brasileiras), solicitando que fosse criada nessa
instituição um Comittee on Cultural Relations with the American Republics. Sproul atendeu a
essa solicitação, ocupando ele próprio a presidência do comitê e enviando, em resposta a
Rockefeller, um memorando apresentando as ações já desenvolvidas em sua universidade no
intuito de se estreitarem os laços com a América Latina. A sua carta, de 4 de fevereiro de 1941,
atesta a afinidade de Sproul em relação aos planos interamericanistas de Rockefeller:

Na determinação das políticas e programas interamericanos eu estou impressionado


com a importância da abordagem do mundo latino-americano por países em vez de
olhá-lo como um todo. Essa técnica permitiria uma larga diferenciação entre países
quanto a medidas melhores calculadas para a promoção das relações culturais entre
eles e os Estados Unidos. Além disso, eu sinto que as abordagens psicológicas para o
entendimento cultural poderiam ser uma consideração primordial. Tentativas de nossa
parte para sobrepor soluções ou indicar procedimentos unilateralmente serão

423
Carta de Moe para Berrien (Bill), 9 de fevereiro de 1943. “Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
287

autodestrutivas.424

Nessas suas considerações Sproul se mostra de acordo, portanto, com uma série de princípios
que nortearam as políticas interamericanas no período da Segunda Guerra Mundial: as relações
bilaterais, sempre entre os EUA e uma outra república latino-americana; a ideia de cooperação
que nasce do desejo espontâneo por parte dos países latino-americanos; e a fragmentação do
mundo latino-americano em culturas específicas a serem desenvolvidas em sua relação com a
civilização estadunidense.
O memorando anexo a esse documento ainda acrescenta alguns princípios mais
específicos. Em primeiro lugar, a University of California teria um papel estratégico a cumprir
na aproximação interamericana em função de sua localização geográfica. Havia também uma
variável histórica que precisava ser bem aproveitada: “o fluxo de estudantes latino-americanos
para a Europa, particularmente para a França, Alemanha e Itália, foi interrompido”.425 Isso
significava que era o momento exato para que as instituições estadunidenses assumissem a sua
liderança civilizacional em relação ao restante da América: “[…] a oportunidade agora
oferecida é de um tráfego de mão-dupla. Se os Estados Unidos podem oferecer uma certa
estrutura para os países latino-americanos principalmente por causa de sua grande riqueza, há
muito a ganhar com eles, particularmente no campo cultural”.426 É muito claro, portanto, o
anseio por parte dos estadunidenses em monopolizar o fluxo de sujeitos intelectuais e objetos
culturais que, até então, movimentava-se preferencialmente em direção à Europa. Esse influxo
de recursos culturais seria proveitoso também para o mundo estadunidense, pois poderia
revigorar a moderna civilização produzida a partir da riqueza extraordinária acumulada por sua
nação.
Havia também uma preocupação de caráter econômico. Por trás de “praticamente
todas as avenidas de intercâmbios” (“avenues of interchange”) – uma interessante metáfora,
diga-se de passagem, para expressar os fluxos transnacionais – repousaria o problema do ensino
e pesquisa avançados. A literatura latino-americana não obteria um público mais amplo se não

424
“In the determination of inter-American policies and programs I am impressed with the importance of
approaching the Latin American world by countries rather than looking upon it as a whole. This technique would
permit wide differentiation between countries as regards measures best calculated to advance cultural relations
between them and the United States. In addition, I feel that the psychological approaches to cultural understanding
should be a paramount consideration. Attempts on our part to superimpose solutions or unilaterally to indicate
procedure will be self-defeating” – “Buarque de Holanda, Aurelio” (#1-#3), HAMP, APS.
425
“The flow of Latin American students to Europe, particularly to France, Germany, and Italy, has been
interrupted”.
426
“[…] the oportunity now offered is for two-way traffic. If the United States can offer certain facilities to the
Latin American countries mainly because of greater wealth, it has much to gain from them, particularly in the
cultural field”.
288

se investisse no ensino adequado de línguas. Da mesma forma, “relações comerciais mais


próximas são dependentes em grande medida de mais atenção sendo prestada pelos cientistas
naturais aos recursos e métodos técnicos industriais nos respectivos países”.427
Finalmente, o memorando do comitê da University of California apresenta um rol
de dezoito programas acadêmicos já desenvolvidos pela instituição e voltados para problemas
latino-americanos. Dentre eles consta o Joint study of ethnography of Brasil, conduzido por
Robert Lowie e Curt Nimuendajú. Este “estudo conjunto da etnografia do Brasil” é descrito
como a “extensão de investigações de campo anteriores sobre tribos nativas, especialmente
famílias jês ou tapuias, em direção ao Oeste, e mais acima no vale do Amazonas, sobre os
estratégicos povos aruaques”.428 É interessante o uso do termo “estratégico”: seria ele devido
ao fato de que era justamente nos afluentes ao norte do rio Amazonas que se encontravam os
principais seringais brasileiros?429 Ainda consta dessa descrição que o projeto duraria mais três
anos e que as pesquisas de campo seriam realizadas por Nimuendajú sob a direção de Lowie.
Esse interesse que se desenvolveu na University of California para os programas de
colaboração intelectual e cultural com a América Latina logo seria dirigido para as redes
intelectuais brasileiras por intermédio de Moe e Berrien. Ainda em fevereiro Berrien foi
procurado por Sylvanus Griswold Morley (1883-1948), chefe do Department of Spanish and
Portuguese da University of California, Berkeley, pedindo-lhe para manter os seus olhos
abertos a respeito de algum acadêmico brasileiro que pudesse permanecer nessa instituição por
um ano, a fim de conduzir cursos de literatura brasileira e língua portuguesa. 430 Berrien então
procurou Moe, por meio de uma carta escrita em 17 de fevereiro de 1941, perguntando-se se
não seria possível utilizar a verba do Office de Rockefeller para esse fim. O seu interesse em
ajudar Morley se devia ao fato de que Berrien teria introduzido em Berkeley, pela primeira vez
no país, um curso de literatura brasileira no período em que atuou como professor da instituição.
Mas a University of California vinha negligenciando, segundo ele, os estudos relacionados à
América Latina, a não ser pelo bom trabalho desenvolvido pelo chileno Arturo Torres-Rioseco
(1897-1971), e por isso acreditava que a ida de um brasileiro “first-rate” para lá “mataria vários
coelhos com uma cajadada só” (“would kill a number of birds with one stone”). Além de
desenvolver os estudos brasileiros e portugueses em Berkeley, a ida de um tal professor visitante

427
“Closer commercial relations are dependent in large measure upon more attention being paid by natural
scientists to the resources and technical methods of industry in the respective countries”.
428
“Extension of past field investigations of native tribes, especially of the Gês or Tapuya family, westward, farther
up the Amazon Valley to the strategic Arawak peoples”.
429
Sobre um estudo a respeito dos aruaques disponível à época, cf. SCHMIDT, [1917].
430
Carta de Berrien para Moe, 17 de fevereiro de 1941, “Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
289

ainda fomentaria a aproximação da universidade com a comunidade local, uma vez que havia
ali um grande número de falantes da língua portuguesa.
Berrien, que partiria nessa mesma data para uma visita à América Latina (Argentina
e Brasil), propôs proceder de modo informal, se assim Moe o desejasse, para lidar com este
assunto. É interessante notar que ele ainda se encontraria nessa viagem com David Stevens, da
Rockefeller Foundation, e, certamente não por acaso, tornar-se-ia diretor assistente na divisão
de ciências humanas dessa mesma instituição logo depois. O desinteresse econômico por este
tipo de atividade – Berrien se ofereceu para tratar voluntariamente do caso – atesta que, para
esses sujeitos do interamericanismo estadunidense, o estabelecimento de laços sociais
estratégicos era muito mais valioso do que o seu retorno financeiro imediato. Estas pessoas
percebiam, talvez intuitivamente, o poder que fluía por meio desses canais comunicativos
privilegiados e dos recursos “culturais” neles percorridos transnacionalmente.
Já na Argentina, Berrien envia uma correspondência para Moe, em 23 de abril,
orientando-lhe a se comunicar diretamente com Morley a fim de saber quais seriam as
contrapartidas da University of California nesse empreendimento. Berrien ainda sugere que
Moe procurasse Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), que estava nos EUA por meio de
uma bolsa da Cultural Relations431 – “ele é muito bom; um historiador” (“he is very good; a
historian”) – e afirma que procuraria o musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1905-1992)
e Mário de Andrade, e, além disso, que esperava ver Gilberto Freyre antes de voltar para
Washington em 30 de maio. Corrêa de Azevedo, assim como Camargo Guarnieri e Francisco
Mignone, como veremos, tiveram um importante trânsito pelos EUA por meio justamente da
rede da qual trato neste capítulo. É interessante notar como Berrien, de fato, buscava se cercar
dos intelectuais mais influentes no Brasil, algo que também poderemos acompanhar nas
próximas páginas.
Um dos assuntos que Berrien foi tratar no Brasil dizia respeito à edição de um
Handbook of Brazilian Studies. Quando chegou em São Paulo no sábado (10 de maio), foi
recebido por Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e José Lins do Rêgo (1901-1957) –
foi este o fim de semana que tanto agradou Berrien a ponto de lhe permitir afirmar, como
mostrei no capítulo anterior, que essa tinha sido a sua visita mais satisfatória na América
Latina.432 No Rio de Janeiro ficaria ocupado com “Eloisa A. Torres et al.”, com quem iria tratar
a respeito de um projeto a ser trabalhado por intermédio do Instituto Nacional do Livro (INL).

431
Referia-se à Division of Cultural Relations do Department of State, chefiada por Charles A. Thomson e criada
em 1939 (THOMSON, 1944).
432
Carta de Berrien para Stevens, 13 de maio de 1941, “Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
290

Neste ponto aparece um primeiro filtro, de caráter comportamental, para o fluxo de sujeitos nas
redes interamericanas: Berrien estava receoso a respeito da colaboração do organizador do INL,
pois ouvira dizer que “Augusto Meyer [1902-1970], o muito agradável e talentoso chefe do I.
do L., é um alcoólatra e inclinado a ser pouco confiável”.433 Mas a presença de Sérgio Buarque
de Holanda e de Américo Facó (1885-1953) deixava Berrien um pouco mais confiante a este
respeito.
Esse “Handbook” estava sendo coeditado por Berrien e Rubens Borba de Morais
(1899-1986), e foi publicado em 1949 com o nome de Manual bibliográfico de estudos
brasileiros (MORAIS e BERRIEN, 1998). Em um almoço em São Paulo, os dois e os demais
editores de seções específicas presentes decidiram por mais um filtro, desta vez etário: só
usariam homens e mulheres abaixo dos cinquenta anos de idade e que estivessem realmente
produzindo algo, e não apenas “repousando sobre os louros do sucesso” – algo que, por sinal,
torna muito evidente a importância daquilo que Latour e Woolgar expressaram por meio do
conceito de “credibilidade”, ou seja, a capacidade individual permanente de continuar
produzindo objetos científicos (LATOUR e WOOLGAR, 1997) ou, neste caso, culturais. Vimos
no capítulo anterior que esse também foi um dos motivos que levou à rejeição de Artur Ramos
e da Universidade do Brasil para a instalação do polo brasileiro do Institute of Social
Anthropology.
O Manual bibliográfico tinha também um objetivo mais abrangente: “A ideia de
uma equipe de trabalho bem-sucedida pode se tornar mais generalizada por aqui antes que nós
possamos esperar que os sul-americanos possam saber do que nós estamos falando sobre nos
EUA e sobre o jeito que nós fazemos as coisas”.434 Tratava-se, portanto, de civilizar a América
do Sul por meio do exemplo de um trabalho coletivo bem-sucedido.
Nessa mesma carta do dia 13 de maio de 1941, Berrien volta a tratar do tema da
bolsa de professor visitante para Berkeley. Sua esperança era conseguir que Manuel Bandeira
(1886-1968) aceitasse a bolsa. O assunto foi mais detidamente abordado em carta do dia 20 de
setembro de 1941, de Berrien para Moe. Berrien soubera que Moe estava tratando do assunto
diretamente com Torres-Rioseco, e sua carta parece querer dizer que ele próprio já estava
inteirado do assunto, de modo a manter a sua centralidade na sua condução. Em primeiro lugar,
ele achava que seria difícil alguém que conhecesse sobre literatura brasileira e também falasse
inglês – mais uma vez, essa é uma evidência da ascendência europeia, especialmente francesa

433
“I am told that Augusto Meyer, the very likeable and talented head of the I. do L., is an alcoholic and inclined
to be unreliable”.
434
“The idea of sucessful team work must become more generalized down here before we can hope that South
Americans can know what we are talking about in the USA and the way we do things”.
291

e alemã, sobre as redes intelectuais brasileiras de então. Berrien segue com o que,
aparentemente, fazia de melhor, ou seja, definir quais sujeitos estariam aptos a participar da
grande rede interamericana cujos canais ele próprio podia controlar:

Gilberto Freyre, Borba de Moraes, Mário de Andrade e eu, todos concordamos que as
duas melhores pessoas para o trabalho seriam – do ponto de vista do sujeito em si –
Manuel Bandeira e Prudente de Moraes Neto. O primeiro sabe alguma coisa de inglês,
é um grande poeta e um bom professor, além de uma pessoa muito amável; mas sua
saúde é muito incerta (tuberculoso) e, quando eu tentei sondá-lo em maio, ele pareceu
satisfeito, mas disse que agora não. Eu posso tentar novamente, ou você pode.
Prudente de Moraes Neto é muito quieto e muito retraído, um acadêmico muito sólido
e uma boa pessoa. Ele tem, no entanto, uma esposa mal-humorada que pode arruinar
tudo se ela vier ou ficar aqui. E eu não sei nada do seu inglês.435

O que precisava ser conhecido era o sujeito em si, algo mais importante que a sua
própria obra. Desejava-se pessoas sociáveis, pois o interamericanismo era também uma questão
de amizade entre povos. Como outras correspondências também mostram, preferia-se os
solteiros, ou então esposas que pudessem “se comportar bem”. O conhecimento da língua era
uma vantagem, mas, mais do que isso, era importante fazer circular sujeitos que em si fossem,
também, uma boa imagem do interamericanismo.
Berrien ainda havia se inteirado de outros (candidatos a) sujeitos interamericanos.
Afrânio Peixoto (1876-1947) era um homem “distinto entre os medalhões” (é o próprio Berrien
que usa o termo em português). Luiz Jardim (1901-1987), por sua vez, era um “bom pintor” e
um cronista “que fez uma impressão muito agradável em todo mundo que ele conheceu aqui
numa viagem financiada pela Division of Cultural Relations”;436 além disso, nota que ele era
editor da revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), além de
ser muito querido por Gilberto Freyre, o que parecia contar muito.
Interessante também é a “leitura” que Berrien faz de Cecília Meireles (1901-1964),
outra candidata a sujeito interamericano. Segundo ele,

também há a possibilidade de Cecília Meireles, uma poetisa, crítica e editora, muito


atraente e vivaz e bem informada sobre as artes em geral. Ela ensinou em cursos de
verão no Texas, em 1940. Eu não sei se Morley escolheria uma mulher ou se você

435
“Gilberto Freyre, Borba de Moraes, Mário de Andrade, and I all agreed that the two top people for the job
would be – from the point of view of the subject itself – Manuel Bandeira and Prudente de Moraes Neto. The
former has some English, is a great poet and a good teacher and a very lovable person; but his health is very
uncertain (tubercular) and when I tried to sound him out in May, he seemed pleased but said not now. I might try
again, or you might. Prudente de Moraes Neto is very quiet and very retiring, a very sound scholar and fine
person; he has, however, a shrewish wife who might ruin everything whether she came up or stayed down there.
And I know nothing of his English”.
436
“Luiz Jardim, a good painter and short-story writer who made a very pleasant impression on everyone he met
while here on a travel grant of the Division of Cultural Relations”.
292

desejaria trazer uma para cá. Ela não é fluente em inglês, mas se vira bem, eu acredito.
Muitas pessoas a consideram a melhor poetisa no Brasil. Seu português é excelente
sem ser pedante. Olhos verdes, belos dentes, bem-apessoada; disseram-me que os
estudantes em Austin gostaram demais do jeito dela e eu posso imaginar isso. Ela
ensinou literatura brasileira na Universidade do Distrito Federal, enquanto aquilo
ainda estava indo; Maria Thereza Oliveira Martins diz que Meireles é uma professora
notavelmente boa.437

É fácil perceber, portanto, um novo tipo de filtro, isto é, o de gênero. Meireles era a melhor
poetisa do Brasil, mas talvez ela não fosse interessante simplesmente por ser mulher. Os
atributos físicos dela também são minuciosamente descritos, mas o mesmo não é feito em
relação a Manuel Bandeira ou Prudente de Morais Neto, por exemplo. A rede intelectual
interamericana é, portanto, como fica cada vez mais claro, uma rede patriarcal. Não existem em
seu interior “exceções” femininas, mas mulheres que souberam agir estrategicamente num
mundo no qual os códigos são definidos pelos homens.
Morley então decidiu que chegara finalmente a hora de tornar o assunto oficial e
escrever diretamente para Moe, o que fez em 6 de outubro de 1941. O interesse pelas aulas de
português aumentava exponencialmente em Berkeley e o chefe do Spanish and Portuguese
Department da University of California demonstra já alguma impaciência com as barreiras
impostas ao trânsito transnacional, como ainda faria outras vezes:

Eu fiquei impressionado com a verdade de algumas colocações feitas por Julien Bryan
[1899-1974] quando ele estava palestrando aqui. Ele falou emocionadamente da
dificuldade de tomar uma ação efetiva para implementar o movimento em direção à
boa vizinhança. Todo mundo, ele disse, quer fazer a coisa certa, mas é notavelmente
difícil de ter alguma coisa feita. A máquina está falhando em conduzir os intercâmbios
de forma bem-sucedida.438

De fato, a burocracia dos Estados-nações não facilita o cruzamento entre fronteiras


nacionais.439 Mas Morley queria que os objetos e os sujeitos intelectuais continuassem fluindo
por entre elas: “A coisa importante é manter o fluxo atual entre os dois países tão livremente

437
“There is also the possibility of Cecília Meireles, a poetess, critic, and editor, very attractive and vivacious and
well informed on the arts in general. She taught summer session at Texas in 1940. I don’t know whether Morley
would take a woman or whether you would want to bring one up. She is not fluent in English, but gets along, I
believe. Many people consider her the best poetess in Brazil. Her Portuguese is excellent without being pedantic.
Green eyes, fine teeth, nice looking; they tell me the students at Austin went for her in a big way and I can imagine
it. She taught Brazilian literature in the Universidade do Distrito Federal, while that was still going; Maria
Thereza Oliveira Martins says Meireles is a remarkably fine teacher”.
438
“I have been impressed with the truth of some remarks made by Julien Bryan when he was lecturing here. He
spoke feelingly of the difficulty of getting effective action to implement the movement toward cultural good-
neighborliness. Everybody, he said, wants to do the right thing, but it is notably hard to get anything done.
Machinery is lacking to conduct the interchange successfully”.
439
A minha própria experiência de pesquisa nos arquivos estadunidense pode ser tomada como um exemplo disso
(vide o “Apêndice” desta tese).
293

quanto possível”.440 Seu ideal era nobre: “sem dúvida o objetivo primordial é iniciar um sul-
americano sem experiência nas belezas de nossa civilização; mas não é igualmente desejável
que nós pudéssemos ter entre nós um sul-americano que esteja apto a interpretar a cultura da
sua terra para a nossa Universidade e para os habitantes desta região?”441 É impressionante
como Morley reproduz aqui o exato sentido que estou buscando nos conceitos civilização e
cultura no contexto específico do interamericanismo: era dever dos estadunidenses
compartilhar um pouco de sua civilização superior com os “primos pobres” sul-americanos;
todavia, os sul-americanos teriam algo valioso a oferecer em troca à civilização estadunidense:
os objetos de culturas ricas, raras, que poderiam trazer-lhe um novo vigor. Morley apenas não
se dava conta (ou simplesmente não enunciava isso) de algo fundamental: é que o próprio
controle desses fluxos e a centralidade que ele proporcionava numa rede de abrangência
transnacional era algo ardentemente desejado e disputado; por isso a “máquina” às vezes
emperrava.
Logo depois surge uma (a princípio) inusitada carta de Luiz Heitor Correia de
Azevedo, à época trabalhando como consultor do Inter-American Music Center, dirigido por
Charles Seeger (1886-1979) e pertencente à Music Division da Pan American Union. Esta carta
foi escrita no dia 17 de outubro, em português, e remetida a Carleton Sprague Smith (1905-
1994), Chief of Music Division da New York Public Library.442 Nessa carta, que foi
encaminhada como cópia para Moe, Correia de Azevedo fornece sua opinião a respeito de
vários nomes para a bolsa de professor visitante de literatura brasileira e língua portuguesa em
Berkeley. O musicólogo brasileiro considerava a tarefa difícil, pois, segundo ele, “não é fácil
encontrar-se um professor que seja igualmente bom para ensinar a lingua e a literatura. Os bons
filologos podem ser tacanhos no julgamento da literatura como obra de arte; e um maravilhoso
professor de literatura, como seriam Manoel Bandeira ou Mario de Andrade, não sei se
conseguiriam ensinar a gramática…”
Em seguida, Correia de Azevedo mostra ter se apropriado muito bem dos critérios
relacionais estadunidenses – pois do contrário talvez ele próprio não tivesse conseguido
ingressar no clube – e isso fica evidente nos filtros que ele utiliza; no entanto, também é bastante
provável que ele apenas estivesse contemplando os critérios que lhe foram solicitados para a
elaboração de sua lista. O primeiro nome que menciona é de José Oiticica, que no “Capítulo 5”

440
“The important thing is to keep the current flowing between the two countries as freely as possible”.
441
“Undoubtedly a prime objective is to induct an inexperienced South American into the beauties of our
civilization; but it is not equally desirable that we should have among us a South American who is able to interpret
the culture of his land to our University and to the inhabitants of this region?”
442
“Berrien, William” (#1-#11), HAMP, APS (carta escrita em português).
294

desta tese encontramos se correspondendo com Franz Boas:

Prof. do Colégio Pedro II, homem de formidável inteligência e ilustração, ex-


professor de filologia portuguesa na Universidade de Hamburgo. Provavelmente será
um mal professor de literatura, apaixonado, cheio de idiossincrasias. É homem de
trato dificil, ‘anarquista honorário’, preso, por precaução, em todos os
momentos críticos da vida política brasileira. Está velho e tem uma grande
família.

Aqui vemos depondo contra Oiticica quatro (!) filtros do interamericanismo ao mesmo tempo:
seu posicionamento político indesejável, seu comportamento “difícil”, sua idade avançada e sua
grande família. Sua “formidável inteligência e ilustração” de pouco ou nada lhe serviriam então.
Uma outra descrição, a que se segue ao nome de Antenor Nascentes (1886-1972),
é ainda mais chocante. Correia de Azevedo escreve que ele “é, como o anterior, uma das
autoridades consagradas em linguística, no Brasil. Tem muito mais equilíbrio pessoal do que o
anterior, mas para vocês tem a condição eliminatória de ser mulato escuro. É, também,
professor do Colegio Pedro II. Autor de dicionários, obras diversas, etc…” Se somarmos esse
novo filtro aos que foram interpostos ao convite de Oiticica, fica claro que a rede intelectual
interamericanista, além de liberal, patriarcal e bem-comportada, era definitivamente branca e
racista. Ser “mulato escuro” era uma “condição eliminatória” tratada com a maior naturalidade.
Correia de Azevedo ainda se lembra de Clóvis do Rego Monteiro (1898-1961), mais
um professor do Colégio Pedro II, mas ele também era velho demais (o que deve ter sido um
mal-entendido do musicólogo, pois em 1941 teria apenas 43 anos). Entre os que tinham menos
que cinquenta anos, são mencionados Andrade Muricy (1895-1984, não, sendo, portanto,
realmente mais jovem), Joaquim Ribeiro e Thiers Martins Moreira (1904-1970). No entanto,
Correia de Azevedo sugere que Sprague Smith escrevesse para Almir Andrade, seu amigo,
diretor da revista Cultura política e professor da Faculdade de Direito da Universidade do
Brasil.
Se pesquisarmos um pouco mais as ligações de Sprague Smith com os intelectuais
brasileiros veremos que essa troca de correspondências não foi, na realidade, tão inusitada
assim. Sprague Smith, que era amigo de Correia Azevedo, viajou pela América do Sul para
conhecer os acervos musicais de diversos países do continente e, de acordo com Flávia Toni e
Valquíria Carozze, visitou o Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo (TONI e CAROZZE,
2013, p. 197-198). Além de Pierson, Roquette-Pinto e Augusto Meyer, Sprague Smith se
encontrou ainda com Gilberto Freyre e vinha se correspondendo com Mário de Andrade. O
musicólogo estadunidense era adido cultural do seu país e estava interessado em construir, no
295

campo da música, um espaço de trocas interamericanas também no âmbito da política de boa


vizinhança. Não é difícil imaginar que, numa dessas conversas, tenha ficado sabendo do
interesse de Berkeley por um professor brasileiro e, como um dedicado agente do
interamericanismo, tenha tentado ajudar (e se destacar) com os seus próprios contatos. Daí
certamente o pedido de aconselhamento dirigido a Correia Azevedo.
Logo em seguida, outro nome que se interpôs neste assunto foi o de Stephen
Duggan, diretor do Institute of International Education.443 Morley também o havia procurado
e sua primeira indicação fora Anísio Teixeira (1900-1971), que havia estudado na Columbia
University, mas lhe seria impossível naquele momento aceitar o convite. Tanto Morley quanto
Monroe Deutsch (1879-1955), provost (uma posição abaixo do Board of Trustees e do President
na hierarquia universitária estadunidense), estavam se impacientando com a demora na
resolução do caso do professor visitante brasileiro. Duggan transcreve um trecho da carta que
Morley lhe enviou, na qual narra ter conhecido Érico Veríssimo (1905-1975), que teria criado
a “mais favorável impressão”. Veríssimo sugeriu o jovem gaúcho Hamilcar de Garcia (1913-
1991) e o paraibano Oswaldo Trigueiro (1905-1989). Morley tinha pressa e desejava que
algumas das barreiras ao trânsito interamericano fossem suspensas: “uma vez que a indicação
é temporária, nós não precisamos examinar as qualificações de um homem tão cuidadosamente
como se fosse algo permanente”.444 Morley ainda garantia que sua universidade arcaria com
20% do valor para a contratação, tentando talvez assim agilizar ainda mais o processo. Mas o
que Morley não percebia era que não se tratava só do interesse da University of California: era
a própria política interamericana que precisava ser preservada.
Após comentar as indicações feitas por Correia Azevedo, oportunidade em que
confirma, praticamente item por item, o que foi dito acima a respeito dos filtros
interamericanistas, Berrien também evidencia a disputa travada entre a University of Califórnia
e o CIAAIR pelo fluxo intelectual de latino-americanos.445 A Berrien parecia que, em Berkeley,

443
Carta de Duggan para Moe, 24 de outubro de 1941, “Buarque de Holanda, Aurelio” (#1-#3), HAMP, APS.
444
“Since the appointment is temporary, we do not need to examine a man’s qualifications as carefully as if it were
to be permanent”.
445
A respeito dos nomes apresentados por Correia Azevedo, Berrien escreve o seguinte: “Stevens se referiu, para
mim, à comunicação de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo a respeito de um possível homem em literatura brasileira
para Berkeley. Os homens que ele sugere são todos bons no que eles fazem no Brasil e eu acho que o julgamento
de Luiz Heitor mostra que ele pensou bem a respeito do assunto. Entretanto, nós não sabemos se alguns desses
homens sabem inglês, mesmo o mínimo necessário, e eu duvido que a maioria deles seria bem-sucedida numa
universidade americana. A questão da cor exclui Nascentes deste país; além disso, ele é consideravelmente mais
interessado em linguística do que em literatura. Oiticica é muito velho, muito limitado e temperamentalmente
muito difícil; isto não implica em que ele não seja um bom filólogo. Clovis Monteiro seria bom de várias formas,
mas eu duvido muito que ele pudesse escapar ou estivesse interessado. Dos três mais jovens (não realmente jovens,
mas os três primeiros, todos têm mais de cinquenta anos), Martins Moreira seria provavelmente o melhor, no
296

Morley e seus colegas ficariam satisfeitos com “um jovem ambicioso com um salário de
instrutor” (“an ambitious young man on a instructor’s salary”). Moe, no entanto, estava
interessado apenas em indicações de homens “first-rate”, e era nisso que vinha se esforçando.
Segundo Berrien, conversando separadamente com Freyre, Rubens Borba de Moraes e Mário
de Andrade, todos indicaram, de forma surpreendente, os mesmos nomes: Manuel Bandeira e
Prudente de Morais Neto. De posse desses nomes, Berrien escreveu a Morley, mas este último
alegava não ter recebido comunicação nenhuma. Berrien ainda se lembrou de ter mencionado
Cecília Meireles e Luís Jardim, mas, segundo ele, ambos não eram nem o “the person” e nem
jovens ambiciosos em busca de um mero salário de instrutor. Mas, se fosse para conseguirem
um jovem ambicioso, sugeria ainda o nome de Edgar Cavalheiro (1911-1958).
No dia 13 de dezembro Berrien ainda escrevera para Morley, conforme ele afirma
em carta do dia seguinte para Moe, com uma outra lista de nomes. Berrien se esforçava,
portanto, ao que parece, para agradar os dois interesses, mediando ambos da maneira a mais
satisfatória possível, pois sua nova lista trazia, aparentemente, nomes que podiam interessar a
Morley sem desagradar a Moe. Dentre esses nomes o que mais agradou a Morley foi o de Ruy
Esteves Ribeiro de Almeida Couto (1898-1963).
Depois disso, já em 17 de março de 1942, o próprio presidente da University of
California, Robert Sproul, escreveu a Moe tentando resolver a questão. Vimos acima que Sproul
estava muito interessado em estender os programas de colaboração intelectual com a América
Latina e que sua concepção de interamericanismo era muito próxima à do próprio Nelson
Rockefeller. Dos diversos nomes que haviam sido aventados, Sproul demonstrou predileção

sentido de que ele teria que fazer o mínimo de ajustes, mas ele não é um homem de definitiva distinção em literatura
ou linguística, e está primariamente interessado em problemas de administração educacional. Joaquim Ribeiro é
muito desorganizado para trabalho universitário neste país. Andrade Muricy é o mais amplo dos três em
treinamento e interesses e poderia, provavelmente, dado o tempo de poucos meses, trabalhar dois cursos
interessantes. Mas, como eu disse, nós não sabemos sobre o seu inglês, nem se ele quer vir. Eu duvido muito que
ele gostaria” (“Stevens referred to me the communication from Luiz-Heitor Corrêa de Azevedo concerning a
possible man in Brazilian literature for Berkeley. The men he suggests are all good at what they do in Brazil and
I think Luiz-Heitor’s judgment shows he has thought about the matter. However, we do not know whether any of
these men know English even passably, and I doubt that most of them would be successful in an American
University. The question of color rules Nascentes out for this country; besides he is considerably more interested
in linguistics than in literature. Oiticica is too old, too limited, and temperamentally very difficult; this does not
imply that he is not a good philolog. Clovis Monteiro would be good in many ways, but I doubt very much that he
could get away or would be interested. Of the younger three (not really young, but the first three are all over fifty)
Martins Moreira would probably be the best, in the sense that he would have to do the least adjusting, but he is
not a man of definite distinction in literature or linguistics, and is primarily interested in problems of educational
administration. Joaquim Ribeiro is too disorganized for university work in this country. Andrade Muricy is the
broadest of the six men in training and interests and could probably, given a few months’ time, work up two
interesting courses. But, as I say, we do not know about his English, nor whether he wants to come. I doubt very
much that he would”) – Carta de 28 de outubro de 1941, de Berrien para Moe, “Berrien, William”, (#1-#11),
HAMP, APS.
297

pelos de Manuel Bandeira, Prudente de Morais Neto e Ruy Ribeiro Couto. É interessante notar
que ser ou não mencionado no Who’s who in Latin America parecia ser um critério relevante, e
dos três apenas Prudente de Morais Neto não figurava na publicação. Sproul nota que Manuel
Bandeira era solteiro, nada diz a este respeito em relação a Prudente de Morais Neto e indica
que Ribeiro Couto era casado. Mas as recomendações de Berrien (e, por conseguinte, de Mário
de Andrade, Gilberto Freyre e Borba de Moraes) acabaram por fazer diferença: Manuel
Bandeira era o preferido, Prudente de Morais Neto ficou como a segunda alternativa e Ribeiro
Couto como a terceira.
Decididos os nomes e acertados os valores, Sproul convidou oficialmente, enfim,
Manuel Bandeira. Este, no entanto, embora lisonjeado, recusou por não dominar muito o inglês
e por não ter saúde suficiente para suportar uma viagem de avião (a única forma de transporte
possível em tempos de guerra), conforme resposta contida na carta do dia 4 de julho de 1942
ao convite que lhe foi feito em 1º de maio.446 O próximo da lista seria Prudente de Morais, e
Deutsch escreveu para Moe, pouco tempo depois, indagando se ele conhecia a língua inglesa.447
Berrien não soube informar a este respeito, mas logo viajaria para o Brasil novamente e Moe
gostaria que a University of California o autorizasse a fazer a escolha do intelectual para o curso
de língua portuguesa e literatura brasileira, pois, segundo acreditavam, era muito pouco
provável que um intelectual de primeira classe (“first-rate one”) fosse persuadido por meio de
cartas.
Essa segunda viagem de Berrien ao Brasil, em 1942, foi realizada quando ele já
estava a serviço da Rockefeller Foundation. O seu itinerário, recebido por Moe no dia 5 de
agosto, indicava que ele ficaria a maior parte do tempo em cidades brasileiras: depois de passar
por Lima (14-20 de agosto), Berrien visitaria São Paulo (24 de agosto – 1º de setembro), Rio
de Janeiro (2-15 de setembro), Recife (16-21 de setembro), Salvador (22-28 de setembro),
depois voltaria para o Rio de Janeiro (29 de setembro a 8 de outubro) e São Paulo (8-22 de
outubro), passando ainda por Lima, Quito e Bogotá.448 De São Paulo Berrien escreveu, no dia
21 de outubro, recomendando, finalmente, que Aurélio Buarque de Holanda fosse convidado
para o trabalho em Berkeley no lugar dos nomes anteriormente sugeridos. 449 Berrien havia
falado pessoalmente com o ministro da Educação Gustavo Capanema (1900-1985), que
concordara em conceder uma licença para Buarque de Holanda de seu cargo no Colégio Pedro

446
“Buarque de Holanda, Aurelio”, (#1-#3), HAMP, APS.
447
Carta de Deutsch para Moe, 21 de julho de 1942, “Buarque de Holanda, Aurelio”, (#1-#3), HAMP, APS.
448
“Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
449
“Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
298

II, e ainda recomendara José Honório Rodrigues (1913-1987), para quem Berrien também
pensava em viabilizar uma bolsa para viagem de pesquisa nos EUA.
Para não estender o relato deste caso de maneira demasiada, 450 basta apontar que,
depois de muitas idas e vindas, Buarque de Holanda teve problemas com sua licença e acabou
desagradando os professores da University of California em função de sucessivas ausências de
respostas que eles consideravam inconcebíveis. Chegou-se a suspeitar de que ele estivesse
sofrendo algum tipo de represália do governo de Getúlio Vargas, pois ele era “livre em sua
própria mente e não havia ‘se vendido’ a Vargas a ponto de estar disposto a fazer propaganda
ativamente para o Estado Novo, que é o que o regime de Vargas parece querer e o que quase
todo intelectual brasileiro com amor-próprio permanece relutante em fazer”.451 Na verdade, por
fim o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), presidido por Luís Simões
Lopes (1903-1994), tinha-lhe negado a possibilidade de manter o seu cargo no Colégio Pedro
II e, mesmo assim, Buarque de Holanda estava disposto a viajar para os EUA. O professor
alagoano contaria inclusive com a intervenção direta de Gustavo Capanema no assunto, como
lhe havia informado Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), caso o DASP continuasse
negando sua licença.452 Ainda que Morley estivesse já perdendo a paciência com o caso,
Buarque de Holanda escreveu, em carta para Berrien, que já simpatizava com o professor de
Berkeley, “embora nunca tenha o visto tão gordo” – a expressão gerou alguma confusão para
os tradutores estadunidenses, mas Berrien, como bom professor de português, soube decifrar o
seu significado.453
Depois de tantas idas e vindas, o Committee de Moe acabou perdendo a posição de
entreposto nesta transação em favor do Department of State, outra agência que se especializou
no interamericanismo artístico e intelectual e acabou, portanto, colocando-se como concorrente
velada do CIAAIR. O Department of State viabilizou finalmente o contrato de Érico Veríssimo,
que, por sinal, vinha causando uma ótima impressão nos EUA. Berrien demonstrou sua
frustração em relação aos limites impostos às trocas interamericanas em função do arbítrio e do

450
Depois da carta do dia 21 de outubro de 1942, de Berrien, indicando o nome de Buarque de Holanda, encontrei
22 cartas tratando do assunto, até o dia 23 de maio de 1943, quando a University of California finalmente decidiu
(alerta de spoiler!) por Veríssimo.
451
“[…] he is also free in his own mind and has not ‘sold out’ to Vargas to the extent of being willing actively to
propagandize the Estado Novo, which is what the Vargas régime seems to want and what almost any self-
respecting Brazilian intellectual remains unwilling to do” – carta de Berrien para Morley com cópia para Moe, 11
de fevereiro de 1943, “Buarque de Holanda, Aurelio (#1-#3)”, HAMP, APS.
452
Carta de Berrien para Morley, com cópia para Moe, 31 de março de 1943, “Buarque de Holanda, Aurelio (#1-
#3)”, HAMP, APS.
453
Carta de Aurélio Buarque de Holanda para Berrien, 13 de abril de 1943, “Buarque de Holanda, Aurelio (#1-
#3)”, HAMP, APS.
299

poder estatal:

O que torna mais simples para Veríssimo deixar o Brasil do que para Buarque de
Holanda é o fato de que Veríssimo é um dos poucos intelectuais brasileiros que não
ocupam um posto dependente do governo. É mais fácil para uma pessoa cujo trabalho
é no ramo das publicações desconsiderar as dificuldades de assegurar uma licença
oficial do que o é para uma pessoa que é um professor numa instituição oficial e que
é igualmente empregada como um especialista em um amplo projeto editorial
diretamente patrocinado e financiado pelo Ministro da Educação.454

Buarque de Holanda era branco, solteiro, relativamente jovem, discreto sem ser
antissocial, com um posicionamento político próximo ao liberalismo estadunidense, falava um
pouco de inglês e era considerado por seus pares um first-rate man na sua área de atuação
intelectual. Não obstante tudo isso, o seu tráfego transnacional foi bloqueado, não por desejo
do governo estadunidense, mas, pelo que tudo indica, por oposição do governo brasileiro. Este
caso, embora tenha representado um fracasso da parte do CIAAIR em intermediar um
empreendimento particular de caráter interamericano, é, todavia, muito rico para aquilo que
desejo evidenciar neste capítulo. Ele traz à tona um grande número de princípios e valores que
orientavam essa nova rede transnacional, agora norteada e controlada pelos objetivos
interamericanistas de intelectuais, burocratas e governantes estadunidenses. Ele permite, além
disso, preencher uma série de lacunas relacionais do mapa dessa rede transnacional específica,
o que ajudará a compreender como e onde ela se articulou com os diferentes interesses de seus
diversos polos sul-americanos. Mas ainda existem outros aspectos desta rede que considero
importante destacar.

454
“What makes it simpler for Veríssimo to leave Brazil than for Buarque de Hollanda to do so, is the fact that
Veríssimo is one of the few Brazilian intellectuals who does not hold a post dependent upon the Brazilian
government. It is easier for a person whose work is in the publishing business to disregard difficulties of securing
official leave, than it is for a person who is a professor at an official institution and who is likewise employed as
specialist in a large editorial project directly sponsored and financed by the Ministry of Education” – Carta de
Berrien para Morley, com cópia para Moe, 12 de abril de 1943, “Buarque de Holanda, Aurelio (#1-#3)”, HAMP,
APS.
300

8.3. NOVAS OPORTUNIDADES PARA O GRUPO DO MUSEU


NACIONAL

8.3.1. Em busca da continuidade da colaboração transnacional no treino de


jovens antropólogos brasileiros

Quando tratei do ISA no capítulo anterior, mostrei que em 1941 Wagley


compartilhava com Steward os projetos do Museu Nacional de tocar adiante o trabalho
cooperativo de pesquisa e ensino antropológico com jovens pesquisadores estadunidenses. A
Segunda Guerra Mundial inviabilizou a continuidade do projeto por meio do Council for
Research in the Social Sciences da Columbia University, formado primordialmente por fundos
da Laura Spelman Rockefeller Memorial Foundation, como vimos na “Parte I”, uma vez que a
família Rockefeller voltou seu poderio econômico para o esforço de guerra – devemos nos
lembrar de que vencê-la era condição fundamental para a continuidade dos negócios da
megacorporação familiar. Heloisa Alberto Torres logo começou a se movimentar a fim de
viabilizar um canal alternativo por meio do qual os recursos transnacionais necessários ao seu
projeto de consolidação da antropologia brasileira através do Museu Nacional pudessem
continuar fluindo.
Já em 1939 Torres tinha planos para aproveitar a experiência dos jovens
pesquisadores de Columbia no Brasil a fim de aprofundar a pesquisa e o treinamento de
antropólogos brasileiros no campo da linguística. A princípio, William Lipkind seria uma
escolha mais óbvia, tendo em vista que, dos jovens pesquisadores que vieram de Nova York
para o Brasil sob a tutela de Ruth Benedict e do Museu Nacional, ele era o único que possuía
treino propriamente linguístico. No entanto, o próprio Lipkind soube, por meio de Kate di Pierri,
do Instituto Brasil-Estados Unidos, que Torres preferiria Buell Quain (1912-1939) em seu
lugar.455 Edison Carneiro insinua que Torres tivesse uma predileção especial por Quain em
algumas de suas cartas enviadas para Ruth Landes, num período em que suas relações com a
diretora do Museu Nacional ainda eram marcadas pela desconfiança.456 No entanto, Quain se

455
Carta de Lipkind para Mrs. Urbach, 30 de maio de 1939, FBP, APS. Kate di Pierri tornou-se uma amiga próxima
de Ruth Landes no Brasil, ao lado de Maria Júlia Pourchet e de Isabel do Prado, conforme Landes indica no
“Foreword” do seu The city of women (1947).
456
Sobre as insinuações a respeito de uma possível relação amorosa entre Torres e Quain, primeiramente, quando
do suicídio deste último, Carneiro escreveu que “ella está desolada, mas consegue manter a cabeça no lugar. Outro
dia até fez uma pilheria acerca da miss Peck, no mesmo momento em que me contava a morte do namorado” –
301

suicidou no dia 3 de agosto457 e Torres confiava que Charles Wagley fosse o mais indicado para
trabalhar em seu lugar.
Em carta do dia 2 de dezembro de 1940, Franz Boas se aproximou de Torres
expressando seu desejo de que Lipkind desenvolvesse um projeto nos moldes daquilo que era
pretendido por ela: realizar pesquisas e treinar jovens cientistas brasileiros. Conforme já mostrei
no “Capítulo 5”, Lipkind havia rogado pela interseção de Mrs. Urbach, irmã de Boas que residia
no Rio de Janeiro, para que ela tentasse convencer seu irmão a dissuadir Torres da sua
substituição por outro nome, pois ele desejava muito retornar ao Brasil.458 Ao que parece,
portanto, as preces de Lipkind foram ouvidas por Boas, pois o mesmo buscou, junto a Frank
Aydelotte (1880-1956) – President do Swarthore College e chairman da Education Advisory
Board da John Simon Guggenheim Memorial Foundation entre 1925 e 1950 (à época estava a
cargo especificamente da Latin-American Division desta instituição) – uma bolsa para que seu
antigo aluno pudesse perseguir os seus objetivos, os quais, acreditava, também seriam os do
Museu Nacional.
Torres escreveu uma carta em resposta Boas, esclarecendo, em primeiro lugar, que
era Kate di Pierri, do Instituto Brasil-Estados Unidos, quem estava tentando viabilizar a vinda
de Lipkind para o Brasil, e não ela própria. Em segundo lugar, Torres explicou de maneira
bastante franca porque ela não queria que Lipkind trabalhasse no Museu Nacional:

Nunca houve, da parte do Museu Nacional, qualquer intenção de ter o Dr. Lipkind
trabalhando em cooperação com esta instituição. Eu acredito que ele não é o professor
apropriado para nossos estudantes brasileiros, que são normalmente muito inteligentes

carta de Carneiro para Landes, 21 de agosto de 1939, “Letters received, Ca”, Correspondence, 1931-1991, Ruth
Landes Papers, NAA, SI. Ainda a respeito desse fato, escreveu também que “Na quinta-feira conversamos nós
dois sós durante meia hora. (como ella estava bonita! Pela primeira vez achei que você tinha razão). Meia hora
sobre Quain. Parece que estão surgindo complicações em Carolina por causa do dinheiro que elle deixou. Parece
que elle pegou um parasita, que faz uma molestia feia, mas tôla, no pé. Ignorante de molestias tropicais (como
vocês todos), elle imaginou que era lepra. D. Heloisa mandou tirar fotos até da arvore onde ele se enforcou.
Radiographou para Wogley [sic] e Lipkind. Derivará o amor, por exemplo, em cima do Wogley? That is the
question. Censurou vocês novamente por nada terem dito a ella sobre o temperamento do Buell. E affirmou: ‘Eu
daria a vida para conversar uma hora com a dra. Benedict” – carta de Carneiro para Landes, 28 de agosto de 1939,
“Letters received, Ca”, Correspondence, 1931-1991, Ruth Landes Papers, NAA, SI. Sobre a desconfiança que, a
princípio, nutria por Torres, Carneiro escreveu, a respeito da partida de Landes do Brasil: “D. Heloisa – eu não sei
se ela é uma amiga sua ou uma grande artista – chorou (oh! seu pobre lenço) quando o barco Majestade foi
removido do cais” (“I don’t know if she is a friend of yours or a great artist – cried (oh! her poor small
handkerchief!) when the Majesty’s Vessel was removing [sic] from the quay”) – carta de Carneiro para Landes, 8
de junho de 1939, “Letters received, Ca”, Correspondence, 1931-1991, Ruth Landes Papers, NAA, SI. Em 18 de
setembro, em nova carta para Landes (“Letters received, Ca”, Correspondence, 1931-1991, Ruth Landes Papers,
NAA, SI), Carneiro ainda afirmou que “D. Heloisa tem sido muito camarada. Estou começando a gostar della,
embora ainda lhe faça muitas reservas. Tenho dado os recados que você manda”.
457
A respeito do episódio, vide o capítulo “Cartas de campo: Buell Quain”, escrito por Mariza Corrêa (CORRÊA
e MELLO, 2008).
458
Carta de Lipkind para Mrs. Urbach, 30 de maio de 1939, Franz Boas Papers, APS.
302

e capazes para o trabalho, mas que possuem um senso crítico muito alto para poderem
lidar com alguém tão convencido de sua própria superioridade como Dr. Lipkind. 459

Torres ainda acrescentou que Lipkind – assim como Landes e ao contrário de Quain e Wagley
– não havia entregado os relatórios exigidos pelas autoridades brasileiras. A diretora do Museu
Nacional ressentia-se de ter ajudado Lipkind de todas as formas à sua disposição e de não ter
recebido a devida contrapartida de sua parte, ainda que ele lhe tivesse deixado uma “bela
coleção etnográfica dos carajás para este Museu” – Torres ainda lamentava informar que as
coleções que, por direito, poderiam ser levadas para os EUA por Lipkind, seriam confiscadas
pelo fato de que ele não havia preenchido os requisitos legais junto ao governo brasileiro. Por
fim, sugere os nomes de Edward Kennard e Jules Henry para as pesquisas linguísticas e Wagley
para treinamento de campo em antropologia social.
Essa última carta de Torres deixa claro o que ela quis dizer a Julian Steward quando
dispensou a implantação do ISA no Museu Nacional por meio da já mencionada carta de 19 de
abril de 1944: quando falava de sua experiência com professores que não se adaptam aos modos
brasileiros certamente era a Lipkind que estava se referindo. Isso mostra também que a posição
estratégica de Torres no campo brasileiro realmente a colocava em condições de bloquear
determinados fluxos transnacionais pensados a partir dos EUA, bem como de negociar trocas
que melhor se adequassem ao seu projeto institucional. Boas escreveu a Jules Henry tão logo
recebeu a resposta de Torres, praticamente redigindo a resposta que ele deveria enviar à diretora
do Museu Nacional:

Fale para ela sobre sua experiência e enfatize, além do seu conhecimento linguístico,
seu conhecimento dos problemas em etnologia social; e diga a ela simplesmente que
se a oportunidade aparecer você estaria interessado no assunto. Eu acrescentaria à
carta de alguma forma que você esperaria trabalhar sob a direção dela, que seria
particularmente valiosa.460

Uma semana depois disso, Henry escreveu para “Papa Franz” dizendo que havia
encaminhado uma carta para Torres, como lhe havia sido sugerido. Henry queria, no entanto,
saber, por precaução, onde ela conseguiria o dinheiro para a sua viagem: “antes de ir para o

459
“There was never, on the part of the Museu Nacional, any intention of having Dr. Lipkind to work in cooperation
with it. I believe he is not the teacher fit for our Brazilian students who are usually very clever and capable of
working but who possess too high a sense of criticism to be able to deal with anyone so convinced of his own
superiority as Dr. Lipkind” – Carta de Torres para Boas, 2 de janeiro de 1941, FBP, APS.
460
“Tell her of your experience and emphasize, besides your linguistic knowledge, your knowledge of problems in
social ethnology; and tell her simply that if the opportunity should ever arise you would be interested in the matter.
I should add to the letter in some way that you would expect to work under her direction which would be
particularly valuable” – Carta de Boas para Henry, 10 de janeiro de 1941, Franz Boas Papers, APS.
303

Brasil, eu tenho que ter algumas garantias muito seguras. Claro, tudo isso não me impediu de
protestar meu desejo de ir ao Brasil, meu amor pelo povo brasileiro e, é claro, meu desejo de
trabalhar sob aquele grande cometa antropológico, Dona Heloise [sic]”.461
Boas também escreveu uma longa carta a Torres – algo não muito recorrente em se
tratando desse antropólogo, em geral muito objetivo e econômico em suas correspondências –,
na qual, além de afirmar que os dois nomes por ela sugeridos deveriam ser seriamente
considerados, apresenta uma extensa lista de pessoas que também poderiam servir aos planos
do Museu Nacional.462 Mas o que logo se percebe é que essa lista funcionava muito mais para
excluir os outros nomes em favor de seus próprios protegidos: Alfred Métraux seria “unilateral
a respeito da cultura material” (“one-sided in regard to material culture”) e, além disso, embora
considerasse que ele tivesse feito um bom trabalho no Gran Chaco, seus outros trabalhos não
seriam tão bons e ele também não possuiria um treino linguístico adequado; as limitações de
Herbert Baldus (conforme já mencionei no “Capítulo 4”) “já deveriam ser conhecidas por
Torres”; Paul Kirchhoff (1900-1972) seria um homem difícil e preguiçoso (“a very difficult man
and a very slow worker”), e sua viagem para Venezuela não teria trazido nenhum resultado;
Bernard Mishkin (1913-1954) estaria disponível para o trabalho etnológico, mas não para o
linguístico;463 Ruth Landes teria trabalhado somente com negros (o que era verdade apenas no
que se refere à América do Sul) e também não fazia trabalho linguístico, embora tivesse
“habilidade com as pessoas que ela pretendia estudar” (“she has the knack of people of whom
she intends to study”); Roberto Lehmann-Nietzche (1872-1938), do Museu de La Plata, não
teria aproveitado suas oportunidades para treinar gente mais nova e seria um antropólogo físico
com pouca noção de etnologia e nenhuma de linguística; por fim, Curt Nimuendajú, que seria
“evidentemente um excelente estudante de etnologia”, também não teria, segundo Boas, treino
linguístico. Boas encerra essa sua interessante carta com uma afirmação que corrobora aquilo
que eu apresentei no “Capítulo 5”: “meu interesse nesse assunto remonta a muitos anos, como

461
“[…] before I go to Brazil I'll have to have some very secure guarantees. Of course, all that did not prevent me
from protesting my eagerness to go to Brazil, my love of the Brazilian people, and, of course my eagerness to work
under that great anthropological comet, Dona Heloise” – Carta de Henry para Boas, 17 de janeiro de 1941, Franz
Boas Papers, APS.
462
Carta de Boas para Torres, 20 de janeiro de 1941, Franz Boas Papers, APS.
463
Mishkin teve uma carreira típica dessa antropologia impactada pela Segunda Guerra Mundial: conduziu
pesquisas a partir de 1937 pelo Council for Research in the Social Sciences da Columbia University; retornou ao
Peru como curador visitante do Museu Nacional daquele país em 1941, com uma bolsa do CIAAIR de Moe; entre
1942 e 1946 serviu como tenente da Marinha dos EUA e, entre 1943 e 1945, também como liason officer dos
governos dos Aliados para assuntos coloniais; a partir de 1948 passou a trabalhar como consultor da UNESCO,
tendo visitado diversos países sul-americanos, em especial o Brasil. Acabou trabalhando numa agência de
intercâmbio estudantil e esquecido pelos pares (WAGLEY, 1955).
304

você pode ver de um projeto que eu submeti à Carnegie Corporation anos atrás, em 1908”.464
Nesse ínterim, o Department of Anthropology da Columbia University, por meio de
seu diretor, Ralph Linton (1893-1953), já se movimentava para viabilizar novo projeto em
parceria com o Museu Nacional. Em carta do 11 de dezembro de 1940, escrita após uma
conversa informal ocorrida uma semana antes, Linton enviou a Moe cópias do “projeto para
pesquisa antropológica combinada ao treino de antropólogos brasileiros” que seria realizado
por Charles Wagley em colaboração com a diretora do Museu Nacional brasileiro.465 Linton
acreditava na viabilidade do projeto, mas precisava de recursos externos para a sua realização,
de modo que esperava que isso pudesse interessar ao CIAAIR. À época, Wagley já atuava como
professor assistente do departamento, e a disposição de Linton em cedê-lo para projetos a serem
executados na América do Sul ao longo de toda a Segunda Guerra Mundial evidencia que essas
oportunidades de trânsito transnacional, possibilitadas pelo projeto interamericanista de guerra,
eram de interesse também da antropologia acadêmica das universidades estadunidenses.
Passada essa fase inicial de sondagens, Torres começou então a tomar providências
mais concretas para a viabilização da vinda dos pesquisadores estadunidenses. Em carta
recebida por Moe no dia 25 de março de 1941, a diretora do Museu Nacional o informa do seu
interesse nos dois pesquisadores indicados por Boas na carta do dia 20 de janeiro.466 Torres
havia escrito pessoalmente para Frank Aydelotte, a fim de comunicar, aparentemente com a
mesma franqueza, o seu repúdio ao nome de Lipkind, e ao Dean da Columbia University,
objetivando solicitar a substituição de Wagley por um ano (junho de 1941 a junho de 1942) para
que o mesmo pudesse permanecer em campo entre os urubus do Rio Gurupí, nos estados do
Maranhão e do Pará. É interessante o que Torres afirma a respeito de Wagley: “Devido a uma
série de características pessoais (modos, caráter, cultura), Dr. Wagley me parece ser, no todo, a
melhor pessoa para lidar não apenas com estudantes, mas também com brasileiros em geral”.467
De Henry, por sua vez, escreve o seguinte: “O conhecimento do Dr. Henry sobre linguística e
psicologia primitiva e sua prática em ensino fazem dele um elemento indispensável no
desenvolvimento de qualquer trabalho etnológico que possa ser empreendido no Brasil”.468

464
“My interest in this matter dates back many years, as you may see from a project I submitted to the Carnegie
Corporation years ago, in 1908”.
465
“Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
466
Carta de Torres para Moe, recebida no dia 25 de março de 1941, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7),
HAMP, APS.
467
“Due to a series of personal characteristics (manners, character, culture) Dr. Wagley appears to me as having
been on the whole the best person to deal not only with students but also with Brazilians in general”.
468
“Dr. Henry’s knowledge of linguistics and primitive psychology, his practice in teaching, make him an
indispensable element in the development of any ethnological work which may be undertaken in Brazil”.
305

Cabe ainda ressaltar a justificativa apresentada por Torres para a realização do projeto de
cooperação: “Eu, uma vez mais, espero que a sua gentil compreensão veja apenas em minha
atitude um grande desejo de acelerar o progresso de uma instituição científica que necessita de
uma preparação adequada para tomar vantagem de um campo inexaurível de observação que a
rodeia: minha pátria mãe”.469
Aqui é fácil notar que os filtros para o trânsito transnacional se invertem. É Torres
quem estabelece os parâmetros comportamentais para a vinda de pesquisadores estadunidenses:
eles devem se adequar aos “modos” dos brasileiros. É ela também quem define os saberes
desejados, e seu interesse pela determinação das línguas indígenas do território brasileiro era o
objetivo mais urgente, segundo sua perspectiva, a ser perseguido pela antropologia no Brasil.
Por fim, Torres ainda demonstra pouco interesse pelos princípios interamericanistas: seu único
objetivo era o “progresso” da instituição científica à qual servia e o conhecimento da “pátria
mãe”.

8.3.2. Entre o americanismo e o interamericanismo

O projeto de cooperação, no entanto, teve obviamente que se adaptar às agências


financiadoras estadunidenses. Intitulado “Project for Anthropological Training and Research
in Brazil” e assinado por Wagley e Linton, seus propósitos destacam a urgência da realização
de estudos antropológicos no Brasil em termos de relações entre “civilizados” e “primitivos”,
bem como a participação de antropólogos(as) na formulação das políticas indigenistas
governamentais:

Os(as) próprios(as) brasileiros(as) civilizados(as) oferecem uma oportunidade única


para o estudo dos processos e resultados da mistura racial e cultural. Nas
fronteiras brasileiras há muitas tribos indígenas vivendo ainda sob condições
completamente aborígenes. A expansão em direção ao Oeste das populações
brasileiras incita francamente à aniquilação destas tribos na próxima geração, a menos
que antropólogos(as) treinados(as) possam ter uma parte na formulação das políticas
indígenas do governo brasileiro.470

469
“I once more hope that your kindly understanding will only see in my attitude a great wish to accelerate the
progress of a scientific establishment necessitating an adequate preparation to take advantage of that
inexhaustible field for observation that surrounds it: my fatherland”.
470
“Project for Anthropological Training and Research in Brazil”, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7),
HAMP, APS. “The civilized Brazilians themselves offer an unequaled opportunity for studying the processes and
results of racial and cultural mixture. On the Brazilian frontier there are many Indian tribes still living under
completely aboriginal conditions. The westward expansion of the Brazilian population bids fair to wipe out these
tribes within the next generation unless trained anthropologists can have a part in the formulation of the Brazilian
government's Indian policies”.
306

Reconhece-se, portanto, que também haviam “civilizados(as)” no Brasil, e a obra


interamericana passa a ser vista então como algo realmente transnacional, que poderia contar
com iguais civilizados(as) em países que não apenas os Estados Unidos, o que dificilmente teria
ocorrido se não fosse a firme tomada de posição de Heloisa Alberto Torres e o estratégico uso
que fez dos recursos à sua disposição. Também chama a atenção nesse documento a
coexistência de duas práticas antropológicas distintas: aquela preocupada em lutar contra o
tempo da extinção de culturas e línguas “primitivas”, característica do americanismo boasiano,
e, por outro lado, a antropologia de caráter mais aplicado, interessada no estudo das formas de
absorção das “culturas primitivas” pela “civilização moderna” e na utilização desses saberes na
condução de políticas públicas modernizadoras. As relações entre “raças” consideradas distintas
em suas formas peculiares de “acomodação” e “mistura” no Brasil também já começa a chamar
a atenção dos pesquisadores estadunidenses, e, para além das “tribos”, as “comunidades”
também passam a figurar como “campo” possível da pesquisa antropológica.471 É interessante
notar ainda que o desbravamento das fronteiras como algo definidor da ação e da identidade
estadunidense (TOTA, 2014; FAULHABER, 2016) também pode ser flagrado neste
documento, no desejo mal disfarçado de tomar as rédeas da expansão para o Oeste (brasileiro)
por meio de seu controle pelo conhecimento antropológico (estadunidense). Há, portanto, uma
clara identificação de fronteira com limites provisórios da civilização. Para Torres, no entanto,
tudo isso não fazia diferença, desde que esses impulsos vindos do Hemisfério Norte pudessem
ser colocados a serviço do Museu Nacional sem prejuízo de sua soberania.
Ainda que a preocupação com a extinção das “tribos primitivas” evoque uma
característica mais diretamente ligada à tradição boasiana, o que podemos perceber é que os
projetos ligados a essa vertente encontram cada vez menos espaço nas agências de colaboração
intelectual e cultural impulsionadas pela guerra. Antes muito bem-sucedido na conquista de
bolsas para seus orientandos tanto pela Guggenheim quanto pela Rockefeller (por meio do
Council for Research in the Social Sciences da Columbia University), Boas agora encontrava
dificuldades em emplacar seus planos. É certo que sua influência parece ter sido decisiva na
aprovação do projeto de Torres,472 e que, por outro lado, o seu esgotamento físico e, por
conseguinte, relacional, também deve ser considerado. Mas as correspondências que Boas

471
“Parte do tempo do etnólogo estadunidense seria gasto em trabalho de campo em uma comunidade brasileira
selecionada ou entre uma das várias tribos indígenas completamente desconhecidas da fronteira” (“The balance
of the American ethnologist's time in Brazil would be spent in field work in a selected Brazilian community or
among one of the many completely unknown Indian tribes of the frontier”).
472
Ele ainda escreveu uma carta para Moe no dia 27 de março de 1941 advogando pela necessidade de contratar
tanto Wagley quanto Henry – “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
307

trocou com Moe indicam também que o tipo de prática antropológica defendida pelo primeiro
interessava cada vez menos a essas novas agências. Vale a pena acompanhar rapidamente a
relação de Boas com Moe para que isso fique mais claro.
A correspondência mais antiga entre Boas e Moe arquivada nos HAMP da APS data
de 24 de setembro de 1928, quando Moe procurou o antropólogo da Columbia University
solicitando sugestões de nomes para bolsas da Guggenheim Foundation relativas ano de 1929-
1930.473 Entre essa data e a primeira correspondência do ano de 1939, às vésperas, portanto, da
deflagração da Segunda Guerra Mundial, Boas e Moe trocaram 19 cartas em que o primeiro
figura aparentemente como um distinto consultor para a distribuição de bolsas no campo da
antropologia pela Guggenheim.
Em 28 de fevereiro de 1939, no entanto, Moe negou um pedido de verbas feito por
Boas, enviado no dia anterior, para a publicação dos trabalhos que Jules Henry havia realizado
na América do Sul (ele próprio bolsista da Guggenheim orientado por Boas anos atrás).474
Depois, em carta do dia 2 de agosto de 1939, Boas explica para Moe que, por causa da
desistência da Rockefeller Foundation em relação ao trabalho antropológico (ao menos do tipo
de trabalho antropológico com o qual Boas estava acostumado), vários antropólogos da
Columbia University, que antes estavam na América Latina,475 ficaram agora
desempregados.476 Como considerava indispensável continuar esse trabalho e, diante do
interesse de Daniel de la Borbolla, no México, por pesquisas na área da linguística, Boas
recomendava veementemente os nomes de Jules Henry e William Lipkind a Moe. Este, no
entanto, alegou estar viajando e, aparentemente, não respondeu ao pedido que lhe foi feito.477
Depois disso, talvez percebendo uma certa indisposição da parte de Moe com
relação aos seus projetos, Boas indagou, cuidadosamente, “se problemas científicos puramente
abstratos estavam sendo favoravelmente considerados pela [Guggenheim] Foundation, ou se
há uma tendência a enfatizar os problemas que têm relação direta com nossa situação social e
cultural presente”.478 Em outras palavras, Boas queria saber, a final de contas, se a Guggenheim

473
“Boas, Franz”, (#1- #2), HAMP, APS.
474
“Boas, Franz”, (#1- #2), HAMP, APS.
475
Em carta anterior, Boas menciona os nomes de Ruth Bunzel (1898-1990), [Hannah Kahn?] Barsky, Jules Henry,
William Lipkind, Bernard Mishkin, Buell Quain, Ruth Landes, Irvin Goldman (1911-2002) e Morris Seigel (1906-
1961, que inclusive também trabalhou para o Office de Rockefeller, para o Office of Strategics Services – o famoso
OSS, precursor da CIA – e para a ONU) – carta de Boas para Moe, 22 de junho de 1939, “Boas, Franz”, (#1- #2),
HAMP, APS.
476
“Boas, Franz”, (#1- #2), HAMP, APS.
477
Carta de Secretary to Mr. Moe para Boas, 5 de agosto de 1939, “Boas, Franz”, (#1- #2), HAMP, APS.
478
“[…] whether purely abstract scientific problems are favourably considered by the Foundation, or whether
there is a tendency to stress such problems as have direct relation to our present social and cultural situation” –
carta de Boas para Moe, 20 de junho de 1940, “Boas, Franz”, (#1- #2), HAMP, APS.
308

havia abandonado de vez a antropologia puramente científica, autônoma em relação à guerra


travada entre as potências nacionais, em favor de uma antropologia aplicada a serviço do
governo estadunidense e ao esforço de guerra.
A resposta de Moe parece-me um tanto ríspida, o que não seria de se estranhar
considerando o público e notório conhecimento de que Boas era um pacifista avesso ao tipo de
trabalho que seu colega da Guggenheim agora desempenhava, com tanta desenvoltura, no
CIAAIR: “respondendo à sua carta de ontem eu devo dizer que não há tendência aqui a enfatizar
problemas que tenham relação direta com o presente. Toda nossa perspectiva é encontrar, ou
reconhecer, acadêmicos e artistas de primeira classe e, tendo-os achado, dar-lhes oportunidades
para fazerem o que eles (não nós) quiserem fazer”.479 O tom impaciente pode muito bem ser
uma resposta àquilo que Moe porventura considerou, em face do ethos (no sentido de “imagem
pública”) de Boas, como uma postura dissimulada ou mesmo cínica. Boas ainda pediu uma
bolsa para Irving Goldman480 e ajuda para Paul Rivet, “expulso daqui” (“ousted from here”),
encaminhando cópia da longa carta que etnólogo francês enviara para Boas em 14 de agosto de
1941, do exílio em Bogotá, e que já foi mencionada no “Capítulo 4”.481 Moe, no entanto, negou
os dois pedidos e a correspondência entre os dois se encerrou neste ponto. Não há dúvidas,
portanto, de que as transações transnacionais almejadas por Boas passaram a ser
sistematicamente bloqueadas por Moe certamente não em função de desentendimentos
pessoais, mas por causa de diferentes percepções a respeito da instrumentalização da
antropologia no cenário contemporâneo (ou seja, em face das prioridades advindas da Segunda
Guerra Mundial) de encontros entre a “civilização” e as “culturas”.
Voltemos ao projeto de Heloisa Alberto Torres. No dia 9 de abril de 1941, Moe
escreveu para Boas, Wagley e Torres confirmando a aprovação do projeto. 482 É bastante
interessante o que Boas afirma em carta enviada para Torres, congratulando-se pela conquista
no dia 11 de abril:

Eu estou ansioso para que todo o trabalho sobre os índios sul-americanos possa ser
fundamentado por relatórios [ou relatos] tomados diretamente nas línguas indígenas.
Este é o único método pelo qual as lacunas dos intérpretes podem ser evitadas e isso
é absolutamente necessário tanto para a ciência da linguística quanto para a

479
“Replying to our letter of yesterday’s date I should say that there is no tendency here to stress problems having
direct relation to the present. Our whole point of view is to find, or to recognize, first-rate scholars and artists
and, having founding them, give them opportunities to do what they (not we) want to do” – Carta de Moe para
Boas, 21 de junho de 1940, “Boas, Franz”, (#1- #2), HAMP, APS.
480
Carta de Boas para Moe, 20 de junho de 1941, “Boas, Franz”, (#1- #2), HAMP, APS.
481
Carta de 25 de agosto de 1941, “Boas, Franz”, (#1- #2), HAMP, APS.
482
“Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS).
309

reconstrução da história indígena.483

Esse documento mostra, portanto, os motivos pelos quais a pesquisa etnológica e linguística na
América do Sul interessava também à antropologia mais autonomamente acadêmica dos EUA
representada pelo americanismo boasiano, que, como vimos, desde o início do século XX se
voltou, especialmente, para os grupos indígenas situados no território brasileiro. Seguindo o
raciocínio kuhniano de George Stocking Jr. (vide o “Capítulo 3”), poderíamos dizer que, para
Boas, importava encontrar novas lacunas, ou “quebra-cabeças”, que ajudassem a fortalecer o
paradigma a cuja construção ele dedicou a sua própria vida.
Nos meses que se seguiram durante o ano de 1941 houve uma intensa troca de
correspondência que envolve Torres, Boas, Ruth Benedict, Jules Henry e sua esposa Zunia e o
próprio Moe. A princípio, Torres manteria Wagley no Museu com os recursos dessa instituição,
mas, com a aprovação do projeto de Wagley pelo CIAAIR, o mesmo dinheiro poderia ser usado
na vinda de Jules Henry.484 Enquanto aguardava o desenrolar dos arranjos no Brasil, Benedict
havia conseguido um outro trabalho para Henry, no México; no entanto, ele se sentia
desconfortável naquele país e a pesquisa no Brasil o deixava mais entusiasmado.485 Seu desejo
era o de estar no Brasil ainda em 1941. Contudo, com o passar do tempo a situação havia
mudado (a sua esposa dera à luz uma garotinha e a Guerra havia sido deflagrada) e Henry, por
fim, não se via mais em condições de abandonar a sua família ou trazê-la para tão longe dos
EUA num período tão conturbado e incerto.486
Torres ainda buscou outros nomes que pudessem substituir Henry, pois tinha o
equivalente, à época, a 1800 dólares a serem destinados a este fim. O primeiro nome de que se
lembrou, ainda na carta do dia 12 de fevereiro, foi o de Edward Kennard – ou então de alguém
ligado a Edward Sapir. Ralph Linton informou, em resposta a Moe, que Kennard estava bem
estabelecido no U. S. Indian Service e provavelmente não quereria o trabalho no Brasil. O

483
“I am eager that all work on South American Indians should be substantiated by reports taken directly in the
Indian languages. This is the only method by which the pitfals of interpreters can be avoided and it is absolutely
necessary both for the science of linguistics and for the reconstruction of Indian history”. FBP, APS.
484
Carta de Boas para Moe, 11 de abril de 1941, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS; carta
de Boas para Zunia Henry, 5 de junho de 1941, Franz Boas Papers, APS.
485
O projeto foi um requerimento formal de Enrique Arreguin Vélez (1907-?), então subsecretário de Educação
no México, para que Henry produzisse um estudo etnológico entre os tarahumaras, a fim de embasar projetos de
“ajustamento” dos índios e de criar um centro de treinamento de antropólogos (carta de Benedict para Boas, 2 de
julho de 1941, Franz Boas Papers, APS). Henry, no entanto, não acreditava muito nesse projeto, seja pela inércia
dos agentes mexicanos ou pelas tensões criadas pelo nacionalismo local em relação aos pesquisadores estrangeiros;
além do mais ele não suportava o grupo de Borbolla, que incluía Paul Kirchhoff, e queria sair do México o quanto
antes (carta de Henry para Boas, 8 de junho de 1941, Franz Boas Papers, APS).
486
Cópia de carta de Henry para Torres, 1º de fevereiro de 1942, enviada para Moe em 12 de fevereiro de 1942
(“Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS).
310

antropólogo então se lembrou do nome de Ruth Bunzel, mas achava que o montante proposto
por Torres era muito baixo tendo em vista a sua “reputação estabelecida” (“she is a person with
an established reputation”), e sugeriu que lhe fosse oferecido, no mínimo, 2400 dólares mais
as despesas com o transporte. Outro nome sugerido foi o de Bert Aginsky e sua esposa, e o
modo pelo qual se refere ao casal é interessante pois, mais uma vez, deixa transparecer os papéis
de gênero desejados para a rede interamericanista:

Ele é um linguista muito bom, mas mais interessado em organização social. A Sra.
Aginsky está agora lecionando em Hunter e é uma Ph.D. em linguística. Ela também
é uma mulher particularmente bonita e charmosa que poderia ser uma grande
aquisição para as relações familiares e sociais. Eles são um casal que poderia ser
genuinamente útil para a causa da educação antropológica no Brasil.487

Uma vez mais, percebe-se que, no caso da “Sra.” Aginsky, tão ou mais importante que o fato
de ela ter doutorado em linguística seriam os seus atributos físicos e sua condição de esposa.488
Moe indicou então o nome de Bunzel, que além ter sido treinada pelo próprio Boas
na realização de pesquisas linguísticas, falaria espanhol muito bem e já havia sido contemplada
com bolsas da Guggenheim por duas vezes. Torres assegurou Moe de que pagaria a quantia
anual sugerida por Linton489 e, no dia 11 de maio de 1942, escreveu pessoalmente para Bunzel,
fornecendo-lhe os detalhes do trabalho e esperando que ele começasse em 1943.490 Ao mesmo
tempo, Torres conversava com Berrien a respeito da possibilidade de trazer algum linguista da
Califórnia para o Brasil, mas, como afirmou para Moe, estava priorizando o acerto com
Bunzel.491 Numa outra carta enviada a Berrien, Torres deixa mais claro o motivo pelo qual se
fazia tão necessário um linguista em seu Museu:

Antes de qualquer coisa, eu quero realizar estudos de tupi nas várias tribos que ainda
existem e falam diferentes dialetos dessa língua. Eu penso que o tupi tem sido muito
estudado a partir de textos e vocabulários antigos e que uma série de problemas a
respeito dos quais muita tinta já foi gasta será facilmente resolvida pelo estudo do
dialeto de grupos vivos.492

487
“He is a fairly good linguist but more interested in social organization. Mrs. Aginsky is now teaching at Hunter
and is a Ph.D. in linguistics. She is also a particularly beautiful and charming woman who should be a great asset
to the family and social relations. They are a couple who would be genuinely useful to the cause of anthropological
education in Brazil” – carta de Linton para Moe, 24 de fevereiro de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 -
#7), HAMP, APS.
488
A respeito das relações de gênero no campo antropológico, cf. CORRÊA, 2003.
489
Carta de Moe para Bunzel, NYC, 23 de abril de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP,
APS.
490
“Latin America: Torres” (#1 - #2), HAMP, APS.
491
Carta de Torres para Moe, 11 de maio de 1942, “Latin America: Torres” (#1 - #2), HAMP, APS.
492
“Before anything else, I want to make studies of Tupi in so many tribes which still exist and speak different
dialects of that language. I think that Tupi has been studied too much out of old texts and vocabularies and that a
311

Mas em carta de 11 de maio de 1943, enviada para Moe a fim pleitear melhores condições
financeiras para a viagem que o linguista João Mattoso Câmara (1904-1970) faria aos Estados
Unidos, por meio de bolsa também conseguida por Berrien, Torres mostra que o assunto ainda
não havia sido resolvido e sua esperança era de que, com o fim da Guerra, ele pudesse ser
retomado.493 No entanto, como vimos, as atividades do CIAAIR foram finalizadas neste mesmo
ano e o Museu Nacional não conseguiria realizar a sua pesquisa linguística por meio das
oportunidades abertas pelo esforço interamericanista.
De qualquer maneira, enquanto isso, tudo transcorria aparentemente bem com o
trabalho de Wagley. Em carta do dia 11 de agosto de 1941 ele demonstra entusiasmo com o
pequeno grupo de estudantes que ficou sob sua responsabilidade (apenas seis estudantes
vinculados ao Museu Nacional, e esperava ainda mais dois da “University”, provavelmente,
portanto, da Faculdade Nacional de Filosofia) e planejava partir com três deles, em novembro,
para treinamento de campo na região Norte. Há uma recomendação interessante de Wagley
nesta carta: o Rio de Janeiro estava abarrotado, por essa época, de refugiados europeus, de modo
que ele precisou ficar na casa de amigos, por um tempo, por falta de vagas em hotéis, mesmo
nos de “segunda classe”.494
Segundo informações prestadas por Torres, Wagley chegara no Rio no dia 28 de
julho de 1941. Desde então passara os primeiros dias cuidando de sua instalação e discutindo,
até o início das suas aulas no dia 4 de agosto (segunda-feira), os seus planos para o trabalho a
ser conduzido durante o ano que se seguiria. As aulas duravam duas horas diárias e, dos seis
alunos, apenas três se dedicavam integralmente a elas e iriam, posteriormente, para a prática de
campo. A ideia era permanecer três ou quatro meses em sala de aula, quatro ou cinco meses no
campo e usar o restante do tempo para analisar os dados recolhidos e produzir relatórios sob a
orientação e crítica de Wagley.495 O seu trabalho não se restringiu a isso, no entanto: Wagley
produziu artigos para serem publicados pelo Museu (mais especificamente esperava-se que eles
pudessem sair no Boletim do Museu Nacional496), orientou seus estudantes no tempo disponível
e proferiu palestras em outras instituições, como a Universidade do Brasil e o Instituto Brasil-

series of problems about which so much ink has been wasted will be easily solved by the study of the dialects of
the living groups” – cópia de carta enviada por Torres para Berrien, 27 de maio de 1942, “Latin America: Torres”
(#1 - #2), HAMP, APS.
493
“Berrien, William, (#1-#11)”, HAMP, APS.
494
“Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
495
Carta de Torres para Moe, 11 de agosto de 1941, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
496
Carta de Torres para Moe, 4 de maio de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
312

Estados Unidos.
Após três meses de aulas, três dos alunos de Wagley (Eduardo Galvão, Nelson
Teixeira e Rubens Meanda497) partiram para São Luiz do Maranhão no dia 9 de novembro. O
próprio Wagley deixou o Rio no dia 14 e só chegou em São Luiz no dia 24, pois Torres achou
importante que ele aproveitasse a viagem para conhecer Curt Nimuendajú e o pessoal do Museu
Goeldi, em Belém. O grupo de Wagley trabalharia com os guajajaras, uma “tribo” tupi que
Torres considerava “pouco conhecida até agora”,498 durante quatro meses e, a partir de abril de
1942, começariam a redigir os resultados de suas pesquisas.499

8.3.3. Trilhando as próprias sendas interamericanistas: Charles Wagley e a


SESP

De volta ao Rio de Janeiro, Wagley produziu um interessante relato a respeito de


uma viagem que fez para São Paulo logo depois de seu retorno:

Eu passei a semana da Páscoa fora, em São Paulo, para conhecer e ter uma conversa
com o pessoal da Escola Livre e da Universidade [de São Paulo] e depois tive um
longo fim de semana numa plantação de café. Este último foi muito luxuoso; devia
ser prazeroso ser um barão feudal. Eu gostei do grupo da Escola Livre; eles são de
longe o mais avançado grupo no mundo local das ciências sociais. Eles contaram com
Radcliff-Brown, anteriormente de Chicago e Oxford, dando um seminário lá este ano.
Eu retornarei no próximo mês para dar uma palestra para eles.500

Nessa sua segunda estadia no Brasil, Wagley, portanto, começa tecer os seus planos
de maneira mais independente, relacionando-se com outros grupos e buscando novas posições
no campo antropológico brasileiro. A meu ver, merece ser aqui transcrito o trecho no qual
Wagley introduz, de maneira cuidadosa, os seus novos anseios interamericanistas a Moe, na
mesma carta mencionada anteriormente, ainda que seja uma passagem um pouco mais

497
Segundo informações prestadas por Torres em carta para Moe, 4 de maio de 1942, “Latin America: Charles
Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
498
“[…] a tribe little known until now” – carta de Torres para Moe, 4 de maio de 1942, “Latin America: Charles
Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
499
Carta de Torres para Moe, 19 de novembro de 1941, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
Na verdade, Wagley voltaria para o Rio no dia 14 de março e seus alunos ficariam por mais três semanas no campo,
para experimentarem trabalhar sozinhos e “finalizarem alguns detalhes” (“finishing some odds and ends”) – carta
de Wagley para Moe, 13 de março de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
500
“I took Easter week off going to São Paulo to know and have a talk with the people at the Escola Livre and the
University and then a long weekend at a coffee plantation. The latter was very luxurious; it must have been
pleasant to be a feudal baron. I liked the group at the Escola Livre; they are far the most advanced group in the
local social science world. They have Radcliffe-Brown, formely of Chicago and Oxford, giving a seminar there
this year. I am returning next month to give a lecture for them” – carta de Wagley para Moe, 15 de abril de 1942,
“Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
313

alongada:

Eu tenho uma carta de Linton dizendo-me que meu trabalho está aberto para mim em
Columbia para o próximo ano, minhas disciplinas atribuídas etc. Eu duvido que eu
fique lá o ano todo; eu sou jovem e tenho uma boa saúde com as medidas corretas
para uma farda. Desta distância, parece-me que qualquer um que não esteja fazendo
algum trabalho suficientemente necessário descobrirá que o governo tem um
lugar para ele. Pessoalmente, eu estou com muita vontade de ir. Várias pessoas têm
me escrito, e várias pessoas aqui têm dito que meu lugar lógico nisso seria com o
[Institute of] Inter-American Relations em alguma colocação. No Coordinator’s
Office local, eles chegaram a falar vagamente comigo sobre um lugar no projeto para
o desenvolvimento para o Vale Amazônico. Eles planejam pesquisas trabalhistas,
saneamento etc. etc. Meu valor particular nesses planos pareceria ser meus
conhecimentos de Sociologia (ou Antropologia Social) combinados com dois anos
e meio de experiência no interior brasileiro. Claro, meu conhecimento da língua
e de como as coisas são feitas aqui no Brasil poderia ajudar, também. Eu lhes
sugeri relatórios rápidos em linguagem simples sobre as condições sociais de áreas-
chave. “Áreas-chave” são aquelas áreas que produzem borracha e óleo de palma,
nas quais o governo está particularmente interessado por enquanto. Eu penso
que as técnicas antropológicas para a coleta de material são particularmente
boas para esses propósitos; ao menos, elas têm provado ser as melhores para o U. S.
Dept. of Agriculture (o que é testemunhado pelo grupo sob Taylor). […] Francamente,
a ideia de estar num esquema colossal como o do desenvolvimento da Amazônia me
emociona.501

Wagley claramente se imbuiu do “espírito interamericanista”. Sua escrita revela


uma espécie de senso de utilidade para o ofício antropológico que não está mais associado com
aquilo que vinha fazendo até então no Museu Nacional. Seu dever cívico mais premente seria
o de servir ao seu governo, de se engajar no esforço de guerra contra a ameaça da barbárie
representada pelo Eixo. O antropólogo também não deixa dúvidas sobre como o seu
conhecimento poderia ser estratégico num momento como aquele: o Office de Nelson
Rockefeller lhe acenava para sua atuação em key areas, ou seja, os espaços sul-americanos
dotados, ao mesmo tempo, de recursos naturais e embaraços culturais à produção de

501
“I had a letter from Linton telling me that my job was open for me at Columbia for next year, my courses listed,
etc.. I doubt whether I shall be there all year; I am young and in good health and with the correct porportions
[sic] for a uniform. From this distance, it strikes me that anyone who is not doing some job of sufficient necessity
will find that the gov’t has a place for him. Personally I am quite willing to go. Several people have written, and
several people here have said, that it would seem that my logical place in this would be with Inter-American
Relations in some capacity. At the local Coordinator’s Office, they have gone as far as to talk vaguely with me
about a place with the project for the development of the Amazon Valley. They plan labor surveys, sanitation, etc.
etc. My particular value in such plans would seem to be my knowledge of sociology (or Social Anthropology)
combined with two and half years experience in the Brazilian interior. Of course, my knowledge of the language
and how things get done in Brazil might help, too. I suggested to them rapid reports in simple language on the
social conditions the key areas. ‘Key areas’ are those areas which produce rubber and palm oil, those areas which
the gov't is particularly interested for the moment. I think the anthropological technics for collecting material are
particularly good for these purposes; at least, they have proved best for the US Dept. of Agriculture (witness the
group under Carl Taylor). People at this end see the need for this aspect to the Amazon problem and talk a great
deal to me about it. [...] Frankly, the idea of being in on such collossal scheme as the development of the Amazon
thrills me”.
314

trabalhadores aptos a explorá-los. A antropologia era o saber capaz de desvendar o caminho


mais eficaz que conduziria homens imersos em culturas primitivas ao mundo do trabalho
civilizado, sem, no entanto, abrir mão dos saberes e técnicas tradicionais que pudessem tornar
mais eficaz o labor (civilizado) de alimentação da máquina de guerra.
Já no dia 28 de abril, Berent Friele (1895-1985), representante especial do Office of
the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA, que tenho aqui chamado também de
“Office de Nelson Rockefeller”), enviou uma carta a Moe a fim de acertar a transferência de
Wagley do Museu Nacional/CIAAIR para o Institute of Inter-American Affairs (IIAA), a
respeito do qual já tratei no início do “Capítulo 6”.502 Friele era o braço-direito de Rockefeller
no Brasil e havia muito tempo era um importante negociante de café no país, especialmente no
estado de São Paulo, de modo que é possível suspeitar que a estadia de Wagley, mencionada
logo acima, numa luxuosa plantação de café paulista, tenha tido como objetivo justamente tratar
dos planos de Rockefeller no Brasil e do papel que lhe caberia nisso.503
Em síntese, George C. Dunham e George M. Saunders haviam chegado no Brasil
dia 11 de abril a fim de tratar com Arthur de Souza Costa, Ministro da Fazenda de Vargas, e
Sumner Welles, Subsecretário de Estado dos EUA, a respeito do programa de saneamento a ser
administrado de forma cooperativa entre os dois países. Saunders, que permaneceria no Brasil
para cuidar especificamente do projeto de saneamento daqui (enquanto Dunham trabalhava para
implementá-lo em diversos países latino-americanos), teria ficado impressionado com Wagley:
“a experiência do Sr. Wagley no Nordeste do Brasil, sua fluência em português, seu
conhecimento de diversos dialetos indígenas, assim como sua verdadeira experiência estudando
os problemas sociais dos índios, parecem ser admiravelmente adaptados para uma posição
como a de consultor do Dr. Saunders”.504 Restava apenas conseguir a liberação de Wagley do

502
Carta de Berent Friele para Moe, 9 de julho de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
503
De acordo com Antônio Pedro Tota, Friele era o homem de confiança de Rockefeller no Brasil, incumbido da
tarefa de “construir a solidariedade continental”: “Norueguês de nascimento, Friele imigrara muito jovem para os
Estados Unidos e seguira a tradição da família com negócios de café. Trabalhou para a American Coffee
Corporation, uma gigante compradora de café do Brasil. Passou um bom tempo no país e acabou casando-se com
uma brasileira. Falava português fluentemente e fez muitos amigos aqui, em especial entre os cafeicultores. Nelson
o contratou e ele foi o representante do Office no Rio de Janeiro por quase toda a guerra. Tornou-se um grande
amigo do milionário, com quem continuou trabalhando mesmo depois que Rockefeller deixou o governo. Friele
era muito importante na estrutura montada por Nelson, em especial nas relações com São Paulo” (TOTA, 2014, p.
113).
504
Carta de Friele para Moe, 28 de abril de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS. “Dr.
Saunders was very much impressed by Mr. Wagley. Mr. Wagley’s experience in the North East of Brazil, his
fluency in Portuguese, his knowledge of several Indian dialects, as well his actual experience studying the social
problems of the Indians, seems to be admirably adapted to a position as consultant to Dr. Saunders”.
315

Museu Nacional e de Columbia, o que não causou problema algum.505 O próprio Wagley se
comprometeu a finalizar seus textos e relatórios até junho, quando ingressaria nos quadros do
IIAA.506
De todo modo, a parceria estabelecida com Torres foi fundamental para que Wagley
desenvolvesse, por fim, os seus próprios projetos de trânsitos transnacionais. Esse
posicionamento de Torres como uma espécie de intermediária dos projetos interamericanistas
no Brasil junto ao CIAAIR ainda rendeu outros benefícios ao Museu Nacional. Além do projeto
levado a termo com Wagley, Torres ainda conseguiu emplacar mais dois projetos de cooperação
intelectual. O primeiro deles foi realizado por George Sprague Myers (1905-1985), Associate
Professor of Biology e diretor do Natural History Museum, da Stanford Univeristy, e duraria
um ano após a saída de Wagley (e depois seria ainda renovado por mais um), com o propósito
de “trabalhar em colaboração com o Museu Nacional e com o Ministério da Agricultura
brasileiro no treinamento de ictiologistas brasileiros e preparar um trabalho sobre os peixes de
água doce do Brasil”.507 O segundo projeto foi realizado em parceria com Llewllyn Ivor Price
(1905-1980), paleontólogo de Harvard, também pelo período de um ano a partir da primavera
(suponho que do Hemisfério Sul) de 1942, a fim de “trabalhar em cooperação com a [Seção de
Paleontologia da Departamento Nacional de Produção Mineral] e com o Museu Nacional, Rio
de Janeiro, no treinamento de jovens paleontologistas brasileiros”.508 Em ambos os casos,
manteve-se a ideia de Torres de aproveitar a disposição interamericana para treinar jovens
cientistas brasileiros com pesquisadores mais experientes dos EUA. O investimento em outras
áreas, para além da antropologia, também ajudava a assegurar sua posição junto a outros setores
internamente no Museu Nacional, pois, como vimos em sua correspondência com Steward
quando da recusa da implantação do ISA nesta instituição, havia uma espécie de ressentimento

505
Carta de Linton para Moe, 14 de maio de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS; e de
Torres para Moe, 27 de maio 1942, “Latin America: Torres” (#1 - #2), HAMP, APS.
506
Carta de Wagley para Moe, 29 de abril de 1942, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
507
“To work in collaboration with the National Museum of Brazil and the Brazilian Ministry of Agriculture in the
training of Brazilian ichtyologists, and to prepare a work on the fresh-water fishes of Brazil” – “Minutes of the
Nineteenth Meeting of the Committee for Inter-American Artistic and Intellectual Relations, Recorded April 15,
1942”, p. 78, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
508
“Work in cooperation with the Brazilian Geological Survey and the Museu Nacional, Rio de Janeiro, in the
training of young Brazilian paleontologists” – “Minutes of the Sixteenth Meeting of the Committee for Inter-
American Artistic and Intellectual Relations, Held October 14, 1941”, p. 54, “Committee for Inter-Amercian
Artistic and Intellectual Relations” (#9 - #13), HAMP, APS. Price orientou a desmontagem para restauração do
“megatério”, a ossada de um mamífero gigante extinto da paleofauna brasileira e até então em exposição no Museu
Nacional. Esse episódio foi alvo da denúncia de naturalistas contrários à direção de Heloisa Alberto Torres a partir
de 1946, ou seja, após a queda de Vargas. O nome de Price é citado em relação a esses eventos no documento
“Reparos à margem das informações sôbre o Museu Nacional prestadas pelo Senador Hamilton Nogueira, em
plenário do Senado Federal, a 2/12/46 na introdução ao seu requerimento de informações ao Ministro da Educação
e Saúde”, Cx 07 – envelope 18 – 06/13, CHAT, SEMEAR, MN.
316

das outras seções em relação a uma espécie de “abandono” por parte de Torres, que
supostamente estaria privilegiando o setor antropológico.
Foi ainda por meio das relações estabelecidas com o CIAAIR que Torres conseguiu,
em 1941, com a ajuda de David Stevens, a vinda de uma missão do Buffalo Museum para
auxiliar na reestruturação das exposições do Museu Nacional.509 Essa instituição passava,
naquele momento, por diversas reformas depois de seu tombamento pelo SPHAN. Veremos, na
terceira parte desta tese, que essa reformulação foi fundamental para a apresentação de uma
narrativa museográfica mais condizente com a concepção de cultura e patrimônio científico e
cultural nacionais defendida por Torres no Museu Nacional.
É possível afirmar que a participação de Torres nessa rede específica de trocas,
produzida pelo impulso interamericanista da Segunda Guerra Mundial, assegurou a manutenção
de sua posição destacada no meio intelectual brasileiro. Torres soube se aproveitar das
diferentes tendências antropológicas do seu tempo para delas extrair o máximo possível de
recursos e, assim, fortalecer o seu projeto profissional, institucional e ideológico. No auge do
americanismo boasiano Torres conseguiu se relacionar diretamente com o grupo de Franz Boas,
garantindo para o Museu Nacional a cooperação exclusiva de destacados pesquisadores de
Columbia e, mais que isso, interferindo diretamente nos resultados que eles produziram no
Brasil. Depois disso, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, encontrou no CIAAIR uma
fonte de fluxo de recursos para o Museu Nacional capaz de garantir uma maior autonomia para
os seus próprios projetos, algo que não vislumbrou, por exemplo, no projeto do Handbook ou
do ISA, ambos conduzidos por Julian Steward. Com o final da Guerra, Torres foi ainda capaz
de se adaptar a diferentes configurações dos projetos antropológicos transnacionais: buscou,
por exemplo, ainda que sem sucesso, a colaboração de Carl Withers para a realização de
“estudos de comunidade”, a partir de sugestão do próprio Wagley – que, por sua vez, passou a
auxiliar Moe na fundação Guggenheim depois de terminada a Guerra em 1945.510 Com o fim

509
Carta de Moe para Wagley, 21 de agosto de 1941, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS.
510
Eu tratei deste assunto na seção dedicada ao ISA. No entanto, a fim de completar essas informações, cabe
destacar que o assunto surgiu, após conversas que Torres estabeleceu com Wagley, numa carta que a diretora do
Museu Nacional enviou diretamente a David Stevens, da Rockefeller Foundation, em 4 de janeiro de 1944,
solicitando uma bolsa dessa instituição ou da Guggenheim para que Withers pudesse trabalhar, junto com Luís de
Castro Faria e um outro jovem pesquisador, em “estudos de etnologia regional de pequenas comunidades
brasileiras”, assunto no qual o Museu Nacional estaria “muito interessado” – “Latin America: Torres” (#1 - #2),
HAMP, APS. Stevens respondeu que, infelizmente, o trabalho do CIAAIR havia sido finalizado em 1º de
dezembro de 1943 e, desse modo, não teria mais como prestar esse tipo de assistência financeira; no entanto, sabia,
por intermédio de Berrien, que Withers estava em negociações com Steward, por meio da Smithsonian Institution,
recomendando a Torres que se inteirasse disso – cópia de carta de Stevens para Torres, 16 de fevereiro de 1944,
“Brazil, General, 1942-51”, Box 12, Series 5, Areal Subject File, RISA, SI. Essa carta foi encaminhada com cópia
para Steward, e foi a partir daí que, como vimos, se iniciou a disputa entre o ISA e o Museu Nacional em torno de
317

da guerra, Torres se engajou em diversas outras formas de colaboração internacional,


embebendo-se sobretudo de um novo vocabulário antropológico associado à geografia e à
ecologia (DOMINGUES, 2010). Podemos notar, portanto, que uma das atividades percebidas
por Torres como capaz de assegurar a sua “credibilidade” local foi o controle dos canais
privilegiados de fluxos de recursos criados por essas redes transnacionais. O que as liga entre
si é, como fica cada vez mais claro, as diferentes articulações entre as ações de sujeitos
civilizados em relação a objetos culturais.
Mas a atuação do CIAAIR não se restringiu à colaboração com o Museu Nacional.
Veremos, na próxima seção, que ela alimentou também redes nucleadas espacialmente e
ideologicamente fora, e mesmo em contraposição, às posições controladas por Torres e por seu
aparato institucional.

8.4. O CIAAIR E SÃO PAULO

Em carta de 4 de fevereiro de 1941, Carol H. Foster, do Consulado Geral


estadunidense em São Paulo, escreveu a Moe demonstrando o seu interesse em enviar para os
EUA, com os fundos do State Department, duas “lideranças culturais” paulistas. O mais
interessante é que a consulesa, que incentivava Moe a levar mais intelectuais daquele estado
para além dos dois mencionados, já possuía um “arquivo sobre as lideranças culturais de São
Paulo e do Brasil”.511 Isso demonstra um interesse especial pelo estado quando as políticas de
cooperação intelectual bilaterais com o Brasil começaram a ser pensadas mais seriamente pelo
governo estadunidense.
O State Department, por meio de seu Exchange of Person Program, enviou para os
EUA, entre 1941 e 1942, nomes como os de Jorge Americano (que assumiu a reitoria da USP
em 1941, mesmo ano em que viajou para lá), os historiadores Sérgio Buarque de Holanda e
Pedro Calmon (1902-1985, que também se tornaria reitor, mas da Universidade do Brasil) e
Érico Veríssimo (que esteve nos EUA em duas ocasiões, ambas pelo State Department, sendo
a segunda especificamente voltada para a bolsa de professor visitante da University of
California, em Berkeley, em substituição, como vimos, a Aurélio Buarque de Holanda)

seu nome (lembremo-nos de que Steward não estava interessado em patrocinar a vinda de Withers dentro dos
parâmetros de trabalho desejado por Torres, uma vez que seu objetivo era subordinar essa cooperação à construção
do projeto mais amplo do ISA). No final de 1944, Torres ainda tinha esperança na vinda de Withers, para o que
contaria ainda com o apoio de Rodrigo Mello Franco de Andrade (carta de Wagley para Moe, 29 de novembro de
1944, “Latin America: Charles Wagley” (#1 - #7), HAMP, APS). Eu não encontrei, contudo, informações a
respeito do desfecho desses planos na documentação pesquisada.
511
“Latin America: Lecturers” (#1 - #4). HAMP, APS.
318

(SANTOMAURO, 2015, p. 54). Entre 1942 e 1944, o mesmo programa também enviou para
os Estados Unidos o compositor Francisco Mignone (1897-1986), o historiador Dante de
Laytano (1908-2000), a escritora Nilda Bethlen, o geneticista André Dreyfuss (1897-1952), que
também foi um dos fundadores da USP, o médico Heitor Fróes, as assistentes sociais Maria
Kiehl e Maria Junqueira Schmidt, Assis Chateubriand (1892-1960) e, por fim, Sérgio Milliet
(SANTOMAURO, 2015, p. 56). Na mão contrária, vieram para o Brasil quinze professores,
sendo que sete foram destinados para a Universidade do Brasil, cinco para a USP e dois para a
ELSP (SANTOMAURO, 2015, p. 57), numa divisão bastante equilibrada, portanto, entre os
dois estados.
Os intelectuais paulistas que, anos antes, tiveram papel destacado à frente do
Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo (DC), conseguiram exercer uma influência
significativa na condução dessas trocas interamericanas. O fato de Mário de Andrade ter se
devotado a se tornar “brasileiro para o Brasil” (TONI, 2002) e não ter buscado viajar para os
Estados Unidos à procura das oportunidades profissionais abertas com os projetos
interamericanos pode conduzir à impressão de que o grupo que gravitou ao seu redor em São
Paulo não tivesse ligação com essa rede transnacional. Todavia, os documentos arquivados nos
HAMP mostram que as conexões relacionadas com o CIAAIR também foram importantes para
que os projetos modernizadores da intelectualidade paulista pudessem se sustentar num
momento que lhe era pouco favorável no âmbito nacional. Para entender isso melhor, será
interessante tratar do aconselhamento que Mário de Andrade, Sérgio Milliet e Rubens Borba de
Morais prestaram a William Berrien em suas viagens ao Brasil.
O DC foi criado pelo Decreto Municipal nº 861, assinado pelo prefeito Fábio Prado
(1887-1963) em 30 de maio de 1935. Silvana Rubino mostra que esse órgão fazia parte dos
projetos de uma “elite” esclarecida e preocupada, por um lado, em produzir saberes úteis para
a modernização da cidade de São Paulo (e, em seguida, do país), e, por outro, em produzir uma
identidade paulista por meio da recuperação histórica de “sua faceta mais bandeirante e
‘quatrocentona” (RUBINO, 1995, p. 493).
Além disso, Rubino fornece indicações, tomadas do “relato mítico” de um de seus
fundadores, Paulo Duarte, de que por trás desse projeto existia um grupo constituído por fortes
laços de amizade, produzidos principalmente pelo amor à cultura e à arte e por valores morais
e políticos comuns. Em relação aos valores morais, fica claro que eles dizem respeito a uma
espécie de “missão civilizadora” nacional por parte de um grupo convencido de sua
superioridade cultural (e a Semana de Arte Moderna de 1922 pode ser considerada uma tentativa
de evidenciar esse sentimento). No que diz respeito aos valores políticos, esses foram moldados
319

pela experiência comum da oposição dos “moços” do Partido Democrático aos “velhos” do
Partido Republicano Paulista e seus valores oligárquicos, num primeiro momento, e pela
participação no conflito armado de 1932. O malogro da “Revolução Constitucionalista”
impulsionou tanto um certo ressentimento com relação ao resto do país (RUBINO, 1995, p.
487) quanto a percepção de que era necessário formar quadros qualificados entre os paulistas
para a ocupação de posições de liderança no cenário nacional. No entanto, o fator coesivo mais
importante parece terem sido as “famosas reuniões noturnas” às quais se refere José Mindlin
(1998, p. 110), seja no apartamento de Paulo Duarte, na avenida São João, entre os anos de
1926 e 1931 (RUBINO, 1995, p. 491), ou no salon de Dona Olívia Guedes Penteado
(MINDLIN, 1998, p. 110).
Criado, enfim, o DC, Mário de Andrade o teria dirigido, segundo Lélia Coelho
Frota, “praticamente em sistema de livre colegiado com Paulo Duarte, Ségio Milliet e Rubens
Borba de Morais” (ANDRADE, 1981, p. 22-23). Isso se deu a partir de 1934, ou seja, num
momento político mais favorável,512 que foi tomado como a oportunidade de implementar o
ideal civilizador que lhes era peculiar, ao qual voltarei com um pouco mais de calma na terceira
parte desta tese.
Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) ficou conhecido pelo papel que
desempenhou na primeira metade da década de 1920 como “elemento de ligação” entre
modernistas brasileiros e as vanguardas europeias (BATISTA, 2012, p. 236), habilidade que
construiu após ter vivido em Genebra entre os anos de 1912 e 1920.513 No DC, Milliet assumiu
a chefia da sua Divisão de Documentação Histórica e Social. O crítico de arte também atuou
como professor na ELSP entre 1937 e 1944 (instituição de cuja fundação também participou
em 1933, sendo seu secretário até 1935) e, após ter viajado para os Estados Unidos com o
patrocínio do State Department, em 1943, assumiu a direção da Biblioteca Municipal de São
Paulo – a atual Biblioteca Mário de Andrade (CULTURAL, 2017a).
Rubens Borba de Moraes (1899-1986) teve uma trajetória em muitos aspectos
semelhante à de Milliet. Graduou-se em letras também em Genebra (curso que concluiu em
1919) e foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922 (da qual não participou
por problemas de saúde). Em 1935, também assumiu a direção da Biblioteca Municipal, posto
em que permaneceu até 1943. Borba de Moraes também viajou para os Estados Unidos, em

512
Além de Fábio Prado, cuja administração se pautava menos pelas “obras públicas” do que pela consolidação
de uma elite paulistana, esses sujeitos da modernização paulista ainda contavam com a proteção do interventor
Armando de Salles Oliveira.
513
Neste período, a Suíça, que adotou uma posição de neutralidade na Primeira Guerra Mundial, abrigava
intelectuais exilados tanto do lado dos Aliados quanto das Potências Centrais.
320

1939, graças a uma bolsa da Rockefeller Foundation, oportunidade em que realizou estudos na
área de biblioteconomia e foi o conferencista brasileiro da Ann Arbor Inter-American
Conference. Vimos, ainda, que ele foi um dos editores do projeto do Handbook of Brazilian
Studies ao lado do próprio William Berrien (MINDLIN, 1998; CULTURAL, 2017b). Em 1954,
quando Borba de Morais foi de Paris para Nova York a fim de dirigir as bibliotecas das Nações
Unidas, os dois dividiram o mesmo hotel e Berrien se referia a ele como “um velho e muito
bom amigo”.514
Já mostrei aqui que Berrien possuía franca predileção pelos intelectuais paulistas.515
As indicações que ele fez dos nomes de Manuel Bandeira e Prudente de Morais Neto para a
bolsa de professor visitante na University of California, em Berkeley, também não deixa
dúvidas do respeito que ele tinha pela opinião do antigo grupo do DC, pois, como é sabido,
aqueles dois intelectuais eram particularmente queridos por Mário de Andrade.516
Mas algo que eu gostaria de destacar aqui é que há algumas indicações de que
Berrien, além de tudo isso, acabou adotando um critério político muito próximo ao do núcleo
de Milliet e Borba de Morais em seu garimpo à procura de intelectuais no Brasil. Na mesma
carta em que descreve a Stevens a sua admiração pelos paulistas, Berrien comenta, por exemplo,
a propósito de um pedido de Moe, que ninguém sabia muito a respeito de Oscar Saraiva, a não
ser que era um jovem um tanto promissor e que, diziam, ele tinha uma “simpatia muito forte”
pelo Estado Novo (“They say Saraiva is very strongly ‘Estado Novo’ in his simpathies”). Por si
só esse comentário não parece significar muita coisa. No entanto, há alguns outros exemplos
que podem reforçar essa minha impressão.
Em primeiro lugar, Berrien tinha uma clara consciência da posição de Milliet no
campo intelectual e ideológico brasileiro. Sua opinião positiva a respeito de Milliet considerava,
portanto, sua posição em relação ao regime de Vargas, como se pode depreender dos
comentários que ele envia a respeito do intelectual paulista a propósito da bolsa da Division of
Cultural Relations do State Department:

Milliet é um dos mais conhecidos intelectuais de São Paulo. Eu diria que ele tem em
torno de quarenta e dois anos de idade. Ele é bem informado em geral, estudou por
anos na Europa, é um pensador e acadêmico honesto e ordenado. Escreveu trabalhos
sobre arte, crítica e história socioeconômica (Roteiro do Café), é um membro da

514
Carta de Berrien para Moe, 14 de junho de 1954, “Buarque de Holanda, Aurelio” (#1-#3).
515
Carta de Berrien para David Stevens, 13 de maio de 1941, “Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
516
“Gilberto Freyre, Borba de Moraes, Mário de Andrade e eu todos concordamos que as duas melhores pessoas
para o trabalho seriam – do ponto de vista do sujeito em si – Manuel Bandeira e Prudente de Moraes Neto”
(“Gilberto Freyre, Borba de Moraes, Mário de Andrade, and I all agreed that the two top people for the job would
be – from the point of view of the subject itself – Manuel Bandeira and Prudente de Moraes Neto”) – carta de 20
de setembro de 1941, de Berrien para Moe, “Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
321

Academia Paulista de Letras, e nos últimos anos está em alta na redação d’O Estado
de São Paulo, ainda o principal jornal daquela cidade e, antes do regime de Vargas
assumi-lo, um dos dois ou três melhores jornais do Brasil.
Eu não sei se Milliet fala inglês ou não. A razão pela qual ele não pôde aceitar o
convite do ano passado feito pela Division of Cultural Relations para vir para este país
é que a prefeitura (o gabinete do prefeito), em São Paulo, não lhe concederia licença
sem remuneração. Eu penso que se os convites não tivessem sido feitos ao mesmo
tempo para Milliet e Guilherme Almeida [1890-1969] (a quem eles estão tentando
punir por uma coisa ou outra negando-lhe quaisquer favores), Milliet teria
conseguido a licença que solicitou. Até onde eu sei, a Division almeja convidá-lo
novamente este ano […].
Milliet é sem dúvida um dos mais conhecidos homens no Brasil e universalmente
respeitado, salvo pelo grupo Nortista (Gilberto Freyre, José Lins do Rêgo et al.), que
não gosta do fato de Milliet ter criticado a tendência deles para interpretar todo o
Brasil usando o Nordeste como padrão e critério. Eu deveria dizer que Milliet tem um
pouco de um problema de personalidade no qual ele tem uma propensão a se tornar
temperamental ou furioso e não falar com pessoas com quem ele é associado por dias
a fio. Então, se [Lewis] Hanke está querendo prover um arranjo para ele, aqui Milliet
deve trabalhar bastante por sua conta ocasionalmente, o que deverá ser muito melhor
do que o ligar a alguma universidade. Milliet tem sido o verdadeiro espírito por trás
da Revista do Arquivo e é uma figura central na vida intelectual e acadêmica de São
Paulo […]517

Optei por transcrever este longo trecho da carta de Berrien para Moe em função do
conjunto de informações importantes que ela contém. Quem havia sugerido a Moe que tentasse
levar Milliet para os Estados Unidos por uma segunda vez foi o historiador Lewis Hanke (1905-
1993), chefe da Hispanic Foundation da Library of Congress. Em primeiro lugar, não obstante
o temperamento pouco indicado para a vida acadêmica nos EUA, Berrien recomenda
veementemente a sua ida por considerá-lo um dos principais intelectuais brasileiros. Ao fazer
isso, Berrien tem, no entanto, muita clareza dos conflitos intelectuais que permeiam o campo
brasileiro: ele se posiciona de maneira claramente crítica à ingerência de Vargas e de seus

517
“Milliet is one of the best known intellectuals of São Paulo. I should imagine he is about forty-two. He is well
informed generally, studied for years in Europe, is a straight and orderly thinker and scholar. Has written works
on art, criticism, and socio-economic history (Roteiro do Café), is a member of the Academia Paulista de Letras,
and in recent years has been high in the editorial offices of O Estado de São Paulo, still the leading newspaper in
that city and, before the Vargas régime took it over, one of the two or three best papers in Brazil.
I don’t know whether Milliet speaks any English or not. The reason he was not able to accept the invitation last
year of the Division of Cultural Relations to come to this country is that the prefeitura (mayor’s office) in São
Paulo would not grant his licença (leave with pay). I think that if invitations had not come for both Milliet and
Guilherme de Almeida (whom they were trying to punish for something or other by refusing him any favors),
Milliet would have been granted the required licença. As far as I know, the Division intends to ask him again this
year, so you might check with Charles Thomson on this. As you know, the Division is working hard to get a better
per diem for its guests this year.
Milliet is without doubt one of the best known men in Brazil and universally respected, save by the Nortista group
(Gilberto Freyre, José Lins do Rêgo et al) who do not like the fact that Milliet has criticized their tendency to
interpret all Brazil by using Northeast standards and criteria. I should say that Milliet is somewhat of a personality
problem in that he is apt to become moody or distracted and not talk to persons with whom he is associated for
days on end. So that if Hank is willing to provide a set-up for him where he might work pretty much on his own
and free-lance occasionally, that might be much better than attaching him to some one university. Milliet has been
the real spirit behind the Revista do Arquivo and is a central figure in São Paulo’s intellectual and scholarly life”
– carta de 5 de agosto de 1941, de Berrien para Moe, “Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
322

interventores naquilo que lhe parecem ser espaços legítimos e qualificados de produção e
difusão de ideias; além disso, a querela de Milliet com o grupo de Freyre, que também era
próximo a Berrien, não colocaria em questão a coerência do projeto interamericanista, pois
tratar-se-ia apenas de um “problema de personalidade”. Por fim, não resta dúvida também de
que, embora Milliet tenha viajado para os EUA com os fundos de um organismo independente
do CIAAIR, da ACLS ou do OCIAA, ou seja, a Division of Cultural Relations do State
Department, a ligação com Berrien foi fundamental para o sucesso do projeto individual de
Milliet. O que fica cada vez mais claro é que as agências de cooperação intelectual criadas pelo
governo estadunidense durante a guerra, embora possuíssem estruturas administrativas
apartadas umas das outras, dependiam de sujeitos capazes de transitar de maneira desenvolta
por entre elas, como era o caso principalmente de Berrien. Esse era um exemplo do tipo de
movimento que garantia o pleno funcionamento autorregulado da máquina burocrática
transnacional de guerra estadunidense.
A opinião de Milliet parece ter sido suficientemente importante para o bloqueio de
outro nome, dessa vez o de Tavares de Sá.518 Em carta escrita para S. G. Morley em 13 de
fevereiro de 1942 e enviada com cópia para Moe, Berrien escreve o seguinte:

Tavares de Sá é uma nulidade e um baita de um cabotino. Ele tenta se passar aqui


como um professor de biologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São
Paulo, quando qualquer um que conheça São Paulo pode lhe dizer que o Professor
[André] Dreyfus detém essa cadeira há anos. A única coisa que eu sei em seu favor é
que ele fala inglês. Eu compreendo que ele é bom em animar reuniões e coisas do tipo
e como tal ele tem sido usado pelo Office of the Coordinator of Inter-American Affairs,
não sem causar considerável desalento, eu devo admitir, para os poucos representantes
brasileiros por essas partes. Talvez venha ao caso mencionar que numa outra noite,
numa pequena reunião em que Dr. Sérgio Milliet de São Paulo (que realmente é
alguém) estava presente, surgiu o nome de Tavares Sá: Milliet disse, com toda
boa-fé, “Quem é esse Tavares de Sá? Eu nunca ouvi falar nêle”. Eu mesmo nunca
ouvi falar dele no Brasil, seja no Rio ou em São Paulo. Nesses confins, a única
notícia parece ser que ele é um de um grupo de jornalistas e escritores de rádio
antes associados ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) do governo
de Vargas; o DIP é notório por contratar gente medíocre, e os charlatões que ele
mandou para trabalharem em Nova York criaram problemas sem fim.519

518
Provavelmente Ernani Tavares de Sá. Segundo matéria publicada no Diário Carioca do dia 1º de janeiro de
1942, p. 8, intitulada “O Embaixador Rodrigues Alves chegou, ontem, pelo ‘Brasil”, e com um subtítulo em que
se lê “O Dr. Ernani Tavares Sá ganhou uma bolsa de viagem aos Estados Unidos – Vai escrever um livro sobre o
Brasil”, Tavares Sá, “professor das Faculdades de Filosofia e Direito de São Paulo”, havia ganhado uma bolsa de
estudos em função do livro Compreendamos a Política da Boa Vizinhança e, a convite do Departamento de Estado,
viajaria para a “terra do Tio Sam” (Disponível em
<http://memoria.bn.br/pdf/093092/per093092_1942_04155.pdf>, acesso em 08/03/2017).
519
“Tavares de Sá is a non-entity and very much of a cabotino. He tries to pass off here as professor of biology of
the Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, when anyone who knows São Paulo can tell you that
Professor Dreyfuss has held this chair for years. The only thing I know in his favor is that he possesses English. I
understanding that he is good in pep meetings and the like and as such he has been used by the Office of the
Coördinator of Inter-American Affairs, not, I must admit, without causing considerable dismay to the few
323

Esta carta também é muito interessante, pois, ao mesmo tempo em que reafirma a autoridade
do testemunho de Milliet, desqualifica de forma veemente a ação e a capacidade intelectual dos
agentes ligados de maneira mais direta ao Estado Novo. Também é necessário pontuar que
Berrien advogava, nesse momento, em favor de Aurélio Buarque de Holanda para a ocupação
do posto para o qual Morley ventilou o nome de Tavares Sá, e Aurélio, além do mais, era primo
de Sérgio Buarque de Holanda, outro intelectual prezado pelo broker estadunidense. A
propósito, lembremo-nos de que, num outro lugar neste capítulo, Berrien valorizou Aurélio
Buarque de Holanda por ser um intelectual que, ao contrário de muitos outros, não havia “se
vendido” ao governo de Vargas.520
Saindo um pouco das articulações de Berrien, Moe também recebeu em seu
escritório a cópia de uma carta bastante reveladora do posicionamento mais geral dos
interamericanistas a favor dos paulistas e contra o regime de Vargas. Em carta do dia 5 de
dezembro de 1940 para Stephen Duggan, do Institute of International Education, Percy W.
Bidwell (1888-1970), Director of Studies do Council on Foreign Relations, intercede em favor
de Armando de Salles Oliveira (1887-1945). Bidwell esperava que Duggan pudesse viabilizar
um convite para que Salles Oliveira fosse para os Estados Unidos a fim de realizar palestras em
universidades de lá:

Dr. Oliveira é mais conhecido por sua bem-sucedida administração como presidente
do estado de São Paulo entre 1934 e 1937. Sob a sua presidência, as finanças do estado
foram reorganizadas e as condições econômicas aprimoradas. Ele foi particularmente
bem-sucedido em estender e melhorar o sistema educacional. Ele foi ativo em
estabelecer a Universidade de São Paulo e em trazer para o seu corpo docente distintos
professores de países estrangeiros. Seus serviços à educação foram reconhecidos pelos
governos da Itália, Portugal e França, que lhe conferiram altas condecorações.
Em 1937, Dr. Oliveira renunciou à presidência do estado de São Paulo e declarou sua
candidatura ao gabinete do Presidente da República na eleição que estava marcada
para janeiro de 1938. Em novembro de 1937, todavia, o golpe de Estado promulgou
uma nova constituição e estabeleceu Vargas como ditador. Depois de um período de
‘custódia protetiva’, Dr. Oliveira foi para a França como um refugiado político.
Depois, na primavera de 1939, ele veio para este país, onde permaneceu até fevereiro
de 1940. Ele está vivendo agora em Buenos Aires.521

representative Brazilians around these parts. It might be to the point to mention that the other evening at a small
gathering where Dr. Sérgio Milliet of São Paulo (who really is somebody) was present, the name of Tavares de
Sá came up: Milliet said, in all good faith, ‘Quem é esse Tavares de Sá. Eu nunca ouvi falar nêle.’ I myself never
heard him spoken of in Brazil, either in Rio or São Paulo. On this end, the only news seems to be that he is one of
a group of journalists and radio writers formerly associated with the DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda) of the Vargas government; the DIP is notorious for hiring mediocre people and the charlatans it has
sent up to work in New York have created no end trouble” – “Buarque de Holanda, Aurelio” (#1-#3), HAMP, APS.
520
Carta de Berrien para Morley, 11 de fevereiro de 1943, “Buarque de Holanda, Aurelio” (#1-#3), HAMP, APS.
521
“Dr. Oliveira is best known for his successful administration as President of the state of Sao Paulo between
1934 and 1937. Under his presidency, the state’s finances were reorganized and economic conditions improved.
324

Bidwell ainda destaca que o interesse de Salles Oliveira em problemas de governo se deviam
muito mais a uma vocação acadêmica que política, lembrando de sua passagem por Harvard e
pelo Institute of Public Affairs, em Charlottesville, Virgínia. Além disso, Bidwell acreditava que
sua “sincera ligação à causa da democracia é testemunhada pelo fato de que, tivesse ele desejado
aceitar o regime de Vargas, ele poderia retornar ao seu país nativo e viver com sua família com
conforto e comodidade”.522 Somado ao fato de que Salles Oliveira seria um homem bonito e
charmoso (“he is a handsome man with charming manners”), essas supostas qualidades o
tornariam “apto a contribuir substancialmente para um melhor entendimento entre os
universitários deste país a respeito das condições políticas e econômicas da América do Sul”.523
Bidwell deixa claro que o regime de Vargas seria o oposto da democracia e,
portanto, dos ideais civilizacionais estadunidenses. Por outro lado, o trabalho desenvolvido por
Salles de Oliveira (e, por conseguinte, também por Fábio Prado e pelo DC) seria o mais próximo
do modelo almejado para a modernização das culturas ainda não civilizadas da América Latina.
Um ponto importante a ser destacado é o fato de Salles Oliveira ser também um homem
transnacional, que já conhecia os EUA e a Europa e era dotado da inteligência, charme e boas
maneiras necessários para levar a cabo a obra de modernização interamericana que se oporia à
barbárie dos regimes totalitários.524
Outros representantes da intelectualidade paulista também usufruíram dos recursos
disponibilizados pela circulação interamericana. Donald Pierson recorreu a Moe em função de

He was particularly successful in extending and improving the educational system. He was active in establishing
the University of Sao Paulo, and in bringing to its faculty distinguished professors from foreign countries. His
services in the field of education were recognized by the governments of Italy, Portugal and France who conferred
on him high decorations.
In 1937, Dr. Oliveira resigned the Presidency of the state of Sao Paulo and declared his candidacy for the office
of President of the Republic at the election which was scheduled for January 1938. In November 1937, however,
the Vargas coup d’etat promulgated a new constitution and established Dr. Vargas as dictator. After a period of
‘protective custody,’ Dr. Oliveira went to France as a political refugee. Later, in the spring of 1939, he came to
this country, where he remained until February 1940. He is living at present in Buenos Aires” – “Latin America:
Lecturers” (#1 - #4), HAMP, APS. É interessante notar nestas pastas o número de pessoas interessadas em “vender
a América” em palestras para a América Latina. No entanto, tais propostas eram geralmente rejeitadas por Moe,
pois o foco era a cooperação intelectual, científica e artística, e não esse tipo de atividade.
522
[“His sincere attachment to the cause of democracy is witnessed by the fact that, were he willing to accept the
Vargas regime, he could return to his native country and live with his family in comfort and ease”.
523
“My only excuse is my deep interest in Dr. Oliveira’s career and my sincere belief that he would be able to
contribute substantially to a better understanding among university people in this country of the political and
economic conditions in South America”.
524
Ao que parece o projeto não se desenrolou. Em resposta do dia 20 de dezembro de 1940, Duggan afirmou que
as instituições estadunidenses estavam abarrotadas de exilados, mas que continuaria tentando. Outra solução seria
tentar o CIAAIR de Moe, mas as complicações políticas envolvendo a Argentina poderiam obstar o
empreendimento. “Latin America: Lecturers” (#1 - #4), HAMP, APS. Não há nestes documentos menções
posteriores ao caso.
325

problemas com seu salário na ELSP, pois veio para o Brasil esperando que o State Department
complementasse os 60 contos (3 mil dólares) anuais pagos pela ELSP com mais 2 mil dólares,
o que não aconteceu nos mais de dois anos em que ele estivera São Paulo. 525 Por sugestão de
Melville Herskovits, Cyro Berlink, diretor da ELSP, escreveu para Moe no dia 25 de maio de
1942, solicitando que a totalidade do salário de Pierson fosse paga pelo CIAAIR, pelo período
de três anos, diante da importância da sua manutenção no Brasil para a política de boa
vizinhança.526 Mas, depois de muitas idas e vindas,527 Moe concluiu que o assunto não era de
sua alçada e David Stevens acabou encaminhando o problema para Willfred Mauck, Adviser on
Student Exchanges da Rockefeller Foundation.528 Ainda que o pagamento de Pierson não tenha
sido, portanto, feito diretamente pelo comitê de Moe, percebe-se que o sociólogo acertou em
procurá-lo a fim de conseguir uma solução para o seu problema, o que atesta a importância
central de brokers como Moe, Berrien e Stevens para o funcionamento da circulação
transnacional que alimentava a produção de saberes sobre as relações entre os civilizados e as
culturas neste novo contexto.
A ELSP ainda obteve outros recursos por meio do CIAAIR. O filósofo Willard
Quine (1908-2000), da Harvard University, e o sociólogo Herbert Blumer (1900-1987), da
University of Chicago, conseguiram ambos bolsas para passarem alguns meses ensinando na
Escola.529 Além da ELSP, a USP, marcadamente francófila em seus primórdios, agora também
se voltava para novos ares civilizacionais, sobretudo depois que Jorge Americano (que, como
mencionei acima, foi para os EUA com bolsa do State Department em 1941) assumiu a sua
reitoria: em carta que lhe foi enviada por Berrien em 5 de agosto de 1942, é possível flagrar o

525
A negociação estabelecida entre a University of Chicago e Samuel Lowrie, da ELSP, foi intermediada por
Foster, consulesa geral dos EUA no Brasil. Durante a Segunda Guerra Mundial a ELSP passava por problemas
financeiros que, segundo Pierson, eram devidos, em grande parte, à desconfiança em relação às ligações da
instituição com os EUA: “A presente situação internacional incerta fez a luta da Escola mais difícil, uma vez que
ela é agora identificada, na mente de muitos brasileiros, com influências estadunidenses, e as atividades ‘por
debaixo dos panos’ de elementos políticos hostis aos Estados Unidos pode, em parte, ser responsável por reduções
e longos atrasos em conexão com o orçamento da Escola” (“The present unsettled international situation has made
the Escola’s struggle more difficult since it has now come to be indentified, in the mind of many Brazilians, with
United States influences and the ‘behind the scenes’ activity of political elements unfriendly to the United States
may, in part, be responsible for reductions and long delays in connection with the Escola’s budget”) – carta de 21
de agosto de 1942, de Pierson para Edgar J. Fischer, Assistant Director do IEE, “Latin America: Pierson” (#1 -
#2), HAMP.
526
“Latin America: Pierson” (#1 - #2), HAMP, APS.
527
William Berrien, num memorando apresentado à Rockefeller Foundation, chegou a conclusão que o atraso na
resolução do problema se deveu ao desencontro de cartas que gerou uma tremenda confusão burocrática (percebe-
se mais uma vez que a hipertrofia do aparato administrativo voltado para a cooperação intelectual interamericana
nem sempre era sinônimo de eficiência) – “Memorandum DHS [David Stevens] from WB [William Berrien] re
Prof. Donald Pierson, “Latin America: Pierson” (#1 - #2), HAMP, APS.
528
Carta de Mauck para Stevens, 11 de novembro de 1942, “Latin America: Pierson” (#1 - #2), HAMP, APS.
529
Ata da 16ª reunião do CIAAIR, 14 de outubro de 1941, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual
Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
326

interesse de Americano em “preencher algumas cadeiras vagas” da USP com professores


estadunidenses, e Berrien desejava aproveitar a oportunidade para conseguir algo para Douglas
McClay (geometria) e Anna Mirante (língua e literatura italiana)530 – no entanto, o único
cientista que conseguiu uma bolsa para este fim no CIAAIR foi o geneticista Theodosius
Dobzhansky (1900-1975), da Columbia University, a fim de dar aulas e de desenvolver, em
1943, ao lado de André Dreyfuss, uma pesquisa de dois meses na planície amazônica a respeito
da mosca Drosophila.531 Por fim, o Instituto Agronômico de Campinas também estava
interessado nessas oportunidades e solicitou dois acadêmicos estadunidenses, Harry S. Smith e
H. D. Chapman, ambos da University of California.532

8.5. COOPERAÇÃO ARTÍSTICA INTERAMERICANA

8.5.1. A mensagem interamericanista dos murais da Library of Congress

O enfoque nas ações de cooperação artística do CIAAIR permite perceber, uma vez
mais, como a rede interamericanista continuou se aproximando do polo gravitacional
representado por Mário de Andrade. O artista plástico Cândido Torquato Portinari (1903-1962),
por exemplo, que se ligou de maneira mais estreita ao escritor, musicólogo e folclorista paulista
desde, pelos menos, 1934 (BATISTA e LIMA, 1998, p. XLIX), recebeu uma bolsa de 4 mil
dólares por meio do CIAAIR, mas paga pela Library of Congress, para permanecer em
Washington por um período de seis meses, entre 1941 e 1942, a fim de produzir pinturas murais
nessa biblioteca.533 No entanto, a ida de Portinari aos Estados Unidos está relacionada com os
planos do Estado Novo, e não com o polo político-ideológico representado pelos intelectuais
paulistas ligados a Mário de Andrade.
Desde 1940 (quando o CIAAIR ainda não havia sido criado, portanto) Moe já
investigava a obra de Portinari, ainda que não seja possível asseverar, pela documentação

530
Excerto encaminhado como anexo na carta de Berrien para Moe do dia 5 de agosto de 1942, “Berrien, William”,
(#1-#11), HAMP, APS.
531
Ata da 27ª reunião do CIAAIR, 22 de janeiro de 1942, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual
Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
532
Ata da 16ª reunião do CIAAIR, 14 de outubro de 1941, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual
Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
533
“Minutes of Fifteenth Meeting of the Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations”, 3 de
outubro de 1941, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations” (#9 - #13), HAMP, APS. A
proposta foi dirigida ao CIAAIR por meio do historiador Lewis Hanke, em carta do dia 19 de agosto de 1941,
conforme se lê num relatório apresentado a Nelson Rockefeller por Moe a respeito dos intercâmbios de intelectuais
e artistas por meio do CIAAIR, em 15 de abril de 1942, “Comm. Inter-Am. Art. & Int. Rel. – Coord. Rep. (#1 -
#3)”, HAMP, APS.
327

arquivada nos HAMP, o motivo exato dessas suas primeiras sondagens. Em carta de 13 de
setembro, o artista plástico Zoltan L. Sepeshy (1898-1974) prestou a Moe uma interessante
consultoria a respeito do pintor de Brodowski, SP. Na primeira parte de sua descrição ele
fornece a imagem de um artista já maduro e reconhecido internacionalmente, mas que
dificilmente produziria algo de novo depois de ter atingido o ápice de sua carreira:

Portinari é um homem de óbvias realizações. Uma boa parcela de alcance conceitual


e um grande refinamento pictórico. Um ‘conhecedor’ e um ‘incorporador’ de muitas
correntes contemporâneas de pintura, por um lado; ainda assim provavelmente tão
nativo e ‘nacional’ quanto se está acostumado a esperar de um astro da pintura
nacional. Eu devo dizer sem me arriscar: realizado. E eu não tenho dúvida de que ele
será capaz de explorar a abordagem e os métodos que ele já desenvolveu, mas devo
ser reticente em afirmar se há nele a capacidade para novas e diferentes
experimentações e para uma nova visão artística. 534

Portinari já havia, de fato, conquistado algum prestígio no mundo estadunidense.


Em 1935 ele já havia recebido uma menção honrosa na Carnegie International Exhibition,
realizada em Pittsburgh, Pensilvânia, por sua obra Café (SERVIDIO, 2011, p. 138). Entre 1939
e 1940 ele decorou o pavilhão brasileiro na feira mundial de Nova York, ao mesmo tempo em
que, em 1939, expunha parte de sua obra no MoMA (o Museu de Arte Moderna de Nova
York)535 – o sucesso do quadro Morro, de 1933, garantira-lhe uma exposição individual no
mesmo museu no ano seguinte, além de várias outras exposições e a confecção de um catálogo
pela University of Chicago (SADLIER, 2011, p. 6; NICODEMO, 2016, p. 11). Thiago
Nicodemo ainda destaca que Portinari teve obras encomendadas pelo próprio Nelson
Rockefeller antes de ter sido convidado por Archibald MacLeish (1892-1982) para a produção
dos murais na Library of Congress (NICODEMO, 2016, p. 11). Sobre a estadia de Portinari nos
EUA, Fabiana Servidio afirma que ele aproveitou a viagem a fim de incrementar a sua rede de
contatos, que incluía artistas, jornalistas e até políticos, algo que se dava, por exemplo, pela
produção de retratos dessas pessoas (SERVIDIO, 2011, p. 140). O julgamento de Sepeshy
dependeria, no entanto, da finalidade da bolsa a ser oferecida por Moe:

534
“Portinari is a man of obvious accomplishments. A great amount of conceptual range and great pictorial polish.
A ‘knower’ and ‘incorporator’ of many contemporary trends in painting, on the one hand; yet probably as
indigenous and ‘National’ as one is accustomed to expect of a national painting luminary. I should with little risk:
arrived. And I have no doubt that he will capably exploit the approach and methods he has already developed but
whether there is in him the capacity for new and further experimentation and new artistic vision I should be reticent
in saying” – “Latin America: Portinari” (#1 - #4), HAMP, APS.
535
Fabiana Servidio afirma que “El principal instrumento de gestión de exhibiciones del departamento de Arte de
la OCIAA fue un contrato directo estipulado con el Museo de Arte Moderno de Nueva York, mediante el cuál esta
institución se comprometía a ser el ente coordinador de la organización y/o circulación de las mismas por los
Estados Unidos y América latina” (SERVIDIO, 2011, p. 128).
328

Se o propósito dela é recompensar e engrandecer uma excelência já aclamada,


Portinari seria um receptor muito valioso pois que refletiria sua honra sobre a
[Guggenheim] Foundation, que reconheceu suas conquistas. Se o seu objetivo é
apostar na habilidade criativa em processo de expansão e em necessidade de
encorajamento eu desejaria pensar em outros artistas latino-americanos que poderiam
provar ser uma escolha ainda mais frutífera em virtude de suas potencialidades.536

No ano seguinte, de posse dessas informações, Moe optou finalmente por lançar
mão desse recurso valioso. Para isso, o presidente do CIAAIR explorou os anseios nacionalistas
de Vargas, que teve uma oportunidade, assim, de valorizar internacionalmente as conquistas
artísticas apadrinhadas pelo seu governo. Desta vez foi por intermédio do curador René
d’Harnoncourt (1901-1968)537 que David Stevens soube de um “fato interessante a respeito de
Portinari”:

Ele [d’Harnoncourt] soube por amigos no governo que Vargas está totalmente pronto
para providenciar todo o dinheiro para este projeto, e é reportado ter-se dito que ele
gostaria de ouvir como funcionaria a primeira fase da coisa. Se isso for verdade,
parece a DHS [David H. Stevens] que isso reforça o argumento para colocar a
responsabilidade da decisão na Library of Congress e no Architect of the Capitol,
oferecendo dar tanto quanto o governo brasileiro o fez até então por meio do Moe
Committee. Evidentemente, o trabalho agora é tornar possível para o nosso pessoal
em Washington desistir de uma resposta insatisfatória, e não ser deixado com a
possibilidade de rejeição de uma oferta de fundos do governo brasileiro.538

Em síntese, o que Stevens apontava para Moe era a oportunidade de forçar a Library
of Congress a ficar numa posição irrecusável de trazer Portinari, um artista de renome,
utilizando (e fortalecendo) os canais do CIAAIR para este fim. A oferta não poderia ser negada
pois o próprio governo brasileiro forneceria, numa articulação estabelecida diretamente com o
gabinete do presidente Vargas, um montante de recursos igual àquele oferecido pela Library of

536
“If its purpose is to reward and enhance an already acclaimed excellence, Portinari would be a very worthy
recipient in that he would reflect honor upon the Foundation which recognized his attainments. If its aim is to
gamble with creative ability in a process of expansion and in need of encouragement I should be willing to think
of other Latin American artists who might prove to be even more fruitful choice by virtue of their potencies”.
537
De acordo com Fabiana Servidio, “en 1943, a instancias de Nelson Rockefeller, D’ Harnoncourt se transformó
en director de los programas de arte de la OCIAA” (SERVIDIO, 2011, p. 132).
538
“Rene d’Harnoncourt, September 11, 1941, in New York, lately back from Rio, has one fact of interest regarding
Portinari. He knows from friends in the government that Vargas was quite ready to provide all the money for this
project, and is reported to have said he would like to hear how the thing went in the first stage. If this is true, it
seems to DHS to strengthen the argument for putting responsibility of decision on the Library of Congress and the
Architect of the Capital [Capitol], while offering to give as much as the Brazilian government has thus far through
the Moe Committee. Evidently the job now is to make it possible for our people in Washington to decline an
unsatisfactory decision, not to be left with the possibility of rejecting a Brazilian government offer of a gift” –
excerto de memorando de Stevens para Moe, 11 de setembro de 1941, “Latin America: Portinari” (#1 - #4), HAMP,
APS.
329

Congress.539 Tratava-se, portanto, da participação direta no esforço de colaboração


interamericana por parte de um presidente que vinha se portando pragmaticamente de maneira
dúbia entre os países do Eixo e os Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Desse modo o
CIAAIR poderia mostrar, portanto, o seu incontestável valor para a política de boa vizinhança.
E, com efeito, foi o que aconteceu. Em carta de 17 de setembro de 1941, o poeta e
biblioteconomista Archibald MacLeish, diretor da Library of Congress, escreveu uma carta para
o Presidente da República brasileiro, informando do prazer que teve em receber “o ilustre pintor
brasileiro, o senhor Cândido Portinari, que recentemente aquí chegou uma missão de grande
importância cultural”.540 Ainda escreveu o seguinte, em tom de diplomacia interamericana:

Em nome da Biblioteca do Congresso portanto desejo agradecer a Vossa Excelência


pela gentilíssima atenção que prestou ao nosso convite feito ao senhor Portinari para
que considerasse a preparação dessas decorações e a espléndida ação de Vossa
Excelência em mandar o distintíssimo pintor a Washington com o objetivo de executar
os desenhos preliminares. Tenho a certeza que a realização dêste importante projeto
nas paredes de nossa Fundação Hispânica, que rapidamente se torna um centro
preeminente nêste pais de estudos da cultura da América Latina, terá as mais largas e
benéficas consequências na atual obra de rapprochement cultural entre os povos das
duas grandes repúblicas, os Estados Unidos do Brasil e os Estados Unidos da América
do Norte. Do profundo interesse que Vossa Excelência sempre tem manifestado por
essa obra de ligação cultural representa a missão do senhor Cândido Portinari nova e
eloquente prova.

MacLeish voltaria a escrever a Vargas, em 3 de janeiro de 1942, para comunicar a finalização


dos murais: “Com uma rapidez quasi incrível e com profunda distinção este grande artista soube
executar quatro pinturas de proporções heróicas e tema nobre que simbolizam para nós em
forma destacada quatro aspetos triumfais da história colonial do seu país e de outros países
americanos”.541 O tom interamericanista obrigatoriamente se faz novamente presente: “Desejo,
então, agradecer-lhe profundamente, Senhor Presidente, em nome de todos os que verão estas
pinturas pela sua inspiração e generosidade em iniciar um projeto cuja feliz realização
cimentará mais seguramente que nunca a estreita harmonia e calorosa amizade que liga as
nossas duas grandes repúblicas”. Em que medida esse ato de valorização da cultura e da arte
nacional brasileira não teria angariado a simpatia de Vargas, cimentando, para além de seu
pragmatismo político, a decisão pelo apoio aos Aliados em 1942? Embora seja, a princípio,
impossível responder a esta questão, ela não pode, no entanto, ser de todo desconsiderada.
É interessante notar que havia uma versão em inglês para as duas cartas endereçadas

539
Isso de fato foi garantido, como se vê na ata da décima quinta reunião do CIAAIR, 3 de outubro de 1941,
“Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
540
“Latin America: Portinari” (#1 - #4), HAMP, APS.
541
“Latin America: Portinari” (#1 - #4), HAMP, APS.
330

a Vargas – Moe recebeu cópia das duas, talvez por não saber falar português. A propósito, esse
é certamente um dos motivos pelos quais a colaboração de Berrien se fez tão importante: o
domínio de línguas estrangeiras era um saber caro à ação interamericanista e Moe certamente
não teria o mesmo controle dos fluxos transnacionais se não pudesse contar com a
intermediação do professor de português (o mesmo poderia ser dito de Heloisa Alberto Torres,
por exemplo, uma das poucas pessoas no meio intelectual brasileiro que, à época, dominava o
inglês de forma fluente).542
É interessante acompanhar um pouco mais o trabalho de Portinari na Library of
Congress, pois ele deixa entrever como a ideologia interamericanista podia se expressar na
linguagem das artes plásticas. Em 15 de outubro o historiador Robert Chester Smith (1912-
1975), que substituía interinamente MacLeish na diretoria da Library of Congress, enviou para
Moe as fotografias com os esboços que Portinari havia preparado para os seus murais. O
comentário que ele produz a este respeito é valioso:

Você notará que nós rejeitamos o primeiro esboço para o ensino dos índios. Isso foi
feito porque o Senhor Portinari, Mr. MacLeish e eu sentimos que era desejável evitar
representar a ação como, em qualquer sentido, um disciplinamento dos índios. Pelo
contrário, nós desejamos expressar a penetração íntima dos clérigos espanhóis e
portugueses na vida de seus índios convertidos e a afeição que os índios tinham por
eles. Isto, penso eu, foi esplendidamente alcançado no esboço que foi aprovado. Essa
figura terá um lugar de honra, por assim dizer, na medida em que nós a escolhemos
para a parede que está defronte à sala de leitura da Hispanic Foundation. Eu acho que
você concordará que essa promete ser uma imagem digna de tal ênfase.

542
A respeito de Berrien, André Egg se lembra de que “em Washington, após dar conferência na União Pan-
Americana, [Érico] Veríssimo conheceu William Berrien – professor de literatura brasileira na universidade da
cidade, que aponta como um amante do Brasil que falava português perfeitamente” (EGG, 2013, pp. 93-94).
331

Figura 1 Cândido Portinari, Teaching of Indians, 1941, pintura mural a têmpera, Hispanic Foundation, Library
of Congress, Washington, D.C. (https://www.loc.gov/rr/hispanic/portinari.html)

A ideia de decorar a sala de leitura da Hispanic Foudation da Library of Congress


com pinturas murais que representassem o espírito pan-americano é atribuída ao próprio Robert
Smith (SERVIDIO, 2011, p. 134). Portinari teria sido escolhido para este trabalho em função
de seu prestígio nos Estados Unidos e das “características estilísticas e semânticas” de suas
obras (SERVIDIO, 2011, p. 142), e deveria produzir quatro murais que tratassem da cultura
colonial da América Latina, a fim de “destacar a la Fundación Hispánica como unos de los
más importantes acervos de cultura hispanoamericana en los Estados Unidos” (SERVIDIO,
2011, p. 143). Portinari produziu o esboço de quatro cenas relacionadas à colonização da
América Latina, submetidos ao próprio Smith e a MacLeish, e ao Architect of Capitol (a
organização responsável pelo patrimônio arquitetônico do Complexo do Capitólio, em
Washington D. C.): a primeira recebeu o nome Discovery of the Land (“A descoberta da terra”),
a segunda Entry to the Forest (“A entrada na mata”), a terceira Teaching of the Indians (“O
ensino dos índios”, Figura 1) e a última Discovery of gold (“A descoberta do ouro”). Ainda
segundo Fabiana Servidio,
332

Si se analizan con cuidado cada uno de los murales, queda claro que Portinari eligió
interpretar la colonización de América a través de episodios culturalmente ligados a
la historia particular del Brazil, capitalizando lo realizado hasta ese momento en el
corpus general de su propia obra mediante la re-utilización de algunos fragmentos, y
estableciendo relaciones con iconografías nacionales que ya se habían ocupado de
estos episodios. (SERVIDIO, 2011, p. 144)

Se Portinari, por um lado, mediante o apoio governamental, “se apropria de una


clásica iconografía del arte occidental y subvierte funciones y relaciones de hegemonía racial,
proponiendo implícitamente a América como lugar de reinvención de la tradición moderna”
(SERVIDIO, 2011, p. 149), por outro, o artista também produziu, sobretudo no mural sobre o
tema da catequese dos índios, uma imagem colonial isenta de conflitos a fim de destacar a união
pan-americana. O rascunho original mostrava, no entanto, algo diferente: mais do que a atitude
afetiva e dialógica que ficou eternizada na versão final do mural, o projeto inicial de Portinari
era o da imagem de um padre falando para um grupo disciplinado de indígenas que, por sua
vez, apenas o escutavam passivamente. Era, portanto, como se o primeiro esboço representasse
a substituição ativa da cultura indígena, por meio de um sujeito colonizador, pela disciplina da
civilização europeia imposta aos objetos da colonização. Mas o que Smith e MacLeish
desejavam era apresentar (ainda que à custa do apagamento de conflitos) todo o mundo
americano como sendo o próprio sujeito civilizador do Novo Mundo a partir do contato
colonial, deixando assim os conflitos étnicos, culturais e sociais em segundo plano. Servidio
atribui essa alteração à liberdade da qual gozou Portinari no projeto (SERVIDIO, 2011, p. 150),
mas a carta que Smith enviou a Moe mostra o contrário: a intervenção dos agentes
estadunidenses se fez de forma direta a fim de assegurar que os limites do aceitável no que diz
respeito aos discursos críticos de esquerda no campo da circulação interamericanista não
ultrapassasse o ponto que pudesse pôr em risco a sua manutenção. Afinal, Diego Rivera (1886-
1957) já havia causado um verdadeiro incidente ao incluir um retrato de Lenin no mural que foi
convidado a pintar no Rockefeller Center.
Em contrapartida ao convite feito à Portinari, Gustavo Capanema viabilizou a
contratação do artista plástico estadunidense George Biddle (1885-1973) e da escultora Helène
Sardeau (1899-1969), sua esposa, para que oferecessem um curso na Academia de Belas Artes
no Rio de Janeiro. Biddle ainda teria tempo para pintar e ensinar informalmente, além de
participar do Congresso Pan-Americano que seria realizado no Rio de Janeiro em 1942, atuando
como uma espécie de “relator informal” para as agências estadunidenses.543 Biddle, a exemplo

543
Relatório apresentado a Nelson Rockefeller por Moe a respeito dos intercâmbios de intelectuais e artistas por
meio do CIAAIR, 15 de abril de 1942, “Comm. Inter-Am. Art. & Int. Rel. – Coord. Rep. (#1 - #3)”, HAMP, APS.
333

de outros muralistas do período, estava comprometido com ideais de esquerda, o que não o
impediu, no entanto, de ser lançado, como tantos outros intelectuais e artistas estadunidenses,
na obra de cooperação artística e intelectual interamericana contra a ameaça nazista.544

8.5.2. O projeto musicológico interamericanista

Mas são os projetos de cooperação artística no campo da música que aproximam


melhor as redes interamericanistas comandadas pelo grupo de Moe e o grupo de intelectuais
paulistas ligados a Mário de Andrade. Em 1941, quando de sua viagem de prospecção
interamericanista pela América Latina, ainda sob a égide do American Council of Learned
Societies (ACLS), Berrien também cuidou de encontrar candidatos em potencial para as bolsas
do Committe de Moe. Além de argentinos e uruguaios, as relações entre Aaron Copland,
Carleton Sprague Smith, Luiz Heitor (que era grafado com hífen pelos estadunidenses) Corrêa
Azevedo e Francisco Curt Lange (1903-1997) (cf. TONI e CAROZZE, 2013) colocavam
Berrien e Mário de Andrade em um mesmo cluster relacional.545
André Egg mostra que os músicos modernistas estadunidenses sofriam com as
dificuldades de terem suas obras reconhecidas no próprio país, restando para muitos deles a
atuação junto a agências governamentais num período em que o esforço de guerra abriu diversas
oportunidades no campo da cooperação artística e intelectual (EGG, 2013, p. 64) – algo análogo
ao que se passava, portanto, no campo antropológico. Do lado dos músicos e das musicistas
brasileiros(as), havia o desejo de projeção internacional de suas obras modernistas, aliado,
muitas vezes, à oposição política ao Estado Novo. Viajar para os Estados Unidos, concebidos
como o último bastião da civilização e da democracia em meio à barbárie e aos totalitarismos
que avançavam no início na Segunda Guerra Mundial, parecia algo promissor, em especial
nesse momento, para a conquista de ambos os objetivos.
Havia também o caso específico de Mário de Andrade. Em 1935, o intelectual

544
De acordo com Darlene Sadlier, Biddle “foi fortemente influenciado por Diego Rivera e pela tradição muralista
mexicana e foi um dos proponentes centrais do Federal Arts Project sob Franklin Delano Roosevelt, tendo o seu
primeiro mural aparecido em 1933 na Chicago World’s Fair” (SADLIER, 2011, p. 7). – “Biddle had been heavily
influenced by Diego Rivera and the Mexican muralist tradition and was a central proponent of the Federal Arts
Project under FDR, his first mural having appeared in the 1933 Chicago‘s World Fair”.
545
Um exemplo do entrecruzamento de diversos desses nomes pode ser encontrado na seguinte correspondência:
“Sobre Copland. Eu irei ver Juan Carlos Paz [1897-1972] amanhã e devo pedir-lhe que escreva a Aaron via correio
aéreo. Lange, em Montevidéu, concordou em escrever para ele; eu o lembrarei. No Brasil Luiz-Heitor disse que
escreveria para Copland. Se ele esqueceu, eu vou atrás dele e de Mário de Andrade nas próximas duas semanas,
no Brasil” (“About Copland. I am sending Juan Carlos Paz tomorrow and shall ask him to write Aaron by air
mail. Lange in Montevideo has agreed to write him; I’ll remind him. In Brazil Luiz-Heitor said he would write
Copland. If he has forgotten, I’ll get after him and Mário de Andrade within the next two weeks, in Brazil”) – Carta
de Berrien (Buenos Aires) para Moe, 23 de abril de 1941, “Berrien, William”, (#1-#11), HAMP, APS.
334

paulista interrompera o seu projeto de publicação da enciclopédia de música popular brasileira,


desenvolvido desde 1929 e que seria intitulado Na pancada do ganzá, para iniciar o seu trabalho
à frente do Departamento de Cultura. O mapeamento da música nacional ao qual ele vinha se
dedicando foi então transferido para a Discoteca Municipal, órgão pertencente ao DC, e que
ficaria a cargo de Oneyda Alvarenga (1911-1984), recém-formada no Conservatório Dramático
Musical de São Paulo, onde fora discípula do próprio Mário de Andrade (TONI, 2002, p. 79 e
ss.). A organização da Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), e principalmente do curso de
etnografia prática ministrado por Dina Lévi-Strauss (1911-1999), em grande medida se
relacionavam à necessidade de formar pesquisadores aptos à coleta de manifestações culturais
populares, em especial as musicais, que permitissem subsidiar os estudos sobre o folclore
brasileiro. A Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 (à qual voltarei na próxima parte da tese),
organizada por Mário de Andrade e liderada por um de seus colaboradores mais próximos a
partir de então, o engenheiro-arquiteto Luís Saia (1911-1975), foi fruto deste projeto
folclorístico e musicológico mais amplo. Essa missão constituiu um rico acervo cuja
organização foi iniciada por Alvarenga, num momento em que Mário de Andrade havia sido
destituído do seu cargo no DC em função das reviravoltas políticas que desmantelaram as
práticas implementadas sob o governo de Armando de Salles Oliveira.546
Flávia Toni e Valquíria Carozze mostram que o projeto de Mário de Andrade
chamou a atenção de Carleton Sprague Smith (1905-1994), músico estadunidense que viajou
pela América do Sul a fim de conhecer e estudar os seus acervos musicais mais importantes e
que acabou ficando muito interessado no material e nos métodos de catalogação do acervo da
Discoteca (TONI e CAROZZE, 2013). Smith, que era o chefe da divisão de música da New
York Public Library, também colaborava com o Inter-American Music Center, órgão da Music
Division da Pan-American Union que era chefiado por Charles Seeger (1886-1979). Tanto
Seeger quanto Aaron Copland (1900-1990), que foi fundador do American Music Center em
1939 e, em 1941, tornou-se agente do State Department, foram intelectuais de esquerda que,
durante o governo Roosevelt e em meio ao esforço de guerra contra o Eixo, colocaram em
primeiro lugar a cooperação interamericana (EGG, 2013).
Em outubro de 1941, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1905-1992), já aparece como
“consultor” do Inter-American Music Center, como se pode observar na correspondência, já

546
Segundo Flávia Toni, “Até 1938, quando da viagem da Missão de Pesquisas Folclóricas, o projeto partilhado
por Mário, Oneyda e Dina teria lançado as bases para nova linha de ação – a etnomusicologia – caso o diretor do
Departamento não tivesse sido destituído de seu cargo e a política cultura da cidade mudado de rumo” (TONI,
2002, p. 87).
335

mencionada nesta tese, enviada para Carleton Sprague Smith a respeito de um nome para a
bolsa de professor visitante na área de língua portuguesa e literatura brasileira em Berkeley. 547
Como vimos, era William Berrien quem estava intermediando essa negociação, e, em função
de seus diversos contatos, não lhe seria difícil saber que Corrêa de Azevedo estava trabalhando
com Smith e que poderia ajudá-los nesse assunto. Corrêa Azevedo acabou sendo apresentado a
Berrien pelo próprio Mário de Andrade.548
Corrêa de Azevedo era amigo de Almir Andrade, diretor da revista Cultura Política,
instrumento de propaganda do Estado Novo, e também havia trabalhado no Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) – redigindo e lendo crônicas musicais que foram veiculadas no
programa “Hora do Brasil” a partir de 1937 –, e no Instituto Nacional de Música (que, a partir
de 1937, passaria a fazer parte da Universidade do Brasil e a se chamar “Escola Nacional de
Música”),549 primeiro como bibliotecário e depois como professor da cadeira de Folclore. Não
obstante sua ligação com o regime de Vargas, o musicólogo correspondeu-se entre 1933 e 1944
com Mário de Andrade, tendo colaborado com ele na organização do Congresso da Língua
Nacional Cantada de 1937 (AZEVEDO, 1980). Corrêa de Azevedo, conforme ele mesmo
explica a respeito de uma carta que Mário de Andrade lhe enviou no dia 18 de novembro de
1937, havia também defendido o Departamento de Cultura em uma de suas crônicas lidas no
programa “Hora do Brasil”, preservando, desse modo, a amizade do intelectual paulista
(AZEVEDO, 1980, pp. 102-103). Já em 1944, Mário de Andrade agradeceu, em carta do dia
19 de maio, os artigos que Corrêa de Azevedo, Carleton Sprague Smith, Camargo Guarnieri,
Francisco Mignone e Antônio Sá Pereira (1888-1966) assinaram na Revista Brasileira de
Música em sua homenagem (AZEVEDO, 1980, pp. 106-107), o que reforça ainda mais o papel
de elemento de ligação e coesão do intelectual paulista no interior dessa rede musicológica
transnacional. É interessante, por fim, ler o que Berrien diz a respeito de Corrêa Azevedo em

547
Carta de Correia Azevedo para Smith, 17 de outubro de 1941, “Berrien, William, (#1-#11)”, HAMP, APS.
548
A respeito de um cartão, datado de 1941, no qual Mário de Andrade lhe introduz o “prof. William Berrien, da
Universidade da Califórnia, que se interessa muito pela música brasileira”, Corrêa de Azevedo diz o seguinte: “A
personalidade jovial e amiga do então Professor da Universidade da Califórnia, depois Professor em Harvard, e,
no intervalo entre essas duas posições acadêmicas, a serviço da Fundação Rockefeller, é lembrada com saudade
pelos intelectuais e artistas brasileiros que o conheceram (e foram muitos). Berrien falava corretamente o
português, empregando termos de gíria e sabia, como ninguém, fazer-se querido. No fim da sua vida esteve muito
ligado a Rubens Borba de Morais, então residente nos Estados Unidos. Encontrei-o, amiúde, no Rio, nos Estados
Unidos, em Paris. E essas excelentes relações, de que guardo tão boas e duradouras lembranças, começaram na
manhã em que ele me apareceu na já então Escola Nacional de Musica, de que eu me tornara Professor, munido
de um cartão de visita com o nome impresso em relevo de Mario de Andrade [...]” (AZEVEDO, 1980, p. 103-
104).
549
Informações disponíveis em
<http://www.musica.ufrj.br/index.php?option=com_content&view=article&id=45&Itemid=64>, acesso em
10/05/2017.
336

carta que enviou para Moe no dia 15 de janeiro de 1942, quando o musicólogo brasileiro já
estava prestes a voltar para o seu país de origem (repare-se também na menção que, mais uma
vez, é feita ao final a respeito do papel desempenhado pelas esposas interamericanistas):

Eu acho que você ficará feliz em saber que o professor Luiz-Heitor Corrêa de
Azevedo, que você trouxe para trabalhar com Charlie Seeger, na Pan-American
Union, foi extremamente bem em cada lugar em que ele apareceu. Ele fez uma
quantidade de coisas boas enquanto esteve em Washington, visitou centros musicais
no Meio-oeste e no Sul, e em todo lugar ele entrou no espírito local da melhor maneira
possível. Ele também apresentou artigos em diversos encontros profissionais, os quais
foram bem aceitos em todos os lugares. Ele produziu alguns textos acadêmicos muito
bons enquanto esteve aqui, e também participou de um concurso de milho de quatro
horas na Carolina do Norte.550 Esses dois extremos, eu presumo, significam que ele
tanto tem dado quanto recebido enquanto está aqui, e eu imagino que é isso que
estamos procurando. O comentário geral dos irmãos do campo musical tem sido “se
isso é o que os sul-americanos são, traga mais um tanto para cá e nós ficaremos felizes
em tomar conta deles”. Sua muito charmosa e animada esposa, Violetta, foi de grande
ajuda.551

Um outro músico que viajou para os Estados Unidos nesse período foi Francisco
Mignone (1897-1986), a convite da Division of Cultural Relations do State Department. John
Walter Beattie (1885-1962), Dean da Northwestern University School of Music, em Evanston,
Illinois, escreveu então para Moe indagando se o CIAAIR não poderia fornecer recursos
suplementares a fim de que Mignone estendesse sua estadia pelos meses de junho e julho de
1942, a fim ministrar um curso de verão sobre orquestração, composição e condução. Beattie
escreve o seguinte a respeito do músico brasileiro:

É de meu entendimento que a bolsa de viagem [concedida a Mignone] não é para uma
visita extensa, mas sim uma que possibilitaria a Mignone permanecer aqui por apenas
poucas semanas. Isso me parece lamentável, na medida em que Mr. Mignone tem uma
tal combinação de dons como condutor, compositor e pianista que seria vantajoso
estender a sua estadia se possível. Na nossa visita à América do Sul recentemente
completada, Mr. Louis Woodson Curtis e eu tivemos a oportunidade de conhecer
muito bem os Mignones. Nós consideramos que Mignone esteja entre os mais
importantes compositores da América do Sul. Ele é não apenas talentoso, mas tem um
sotaque e um estilo que poderiam ser populares aqui se suas composições pudessem

550
Não consegui encontrar referências mais precisas a respeito deste evento estadunidense.
551
“I think you will be glad to know that Professor Luiz-Heitor Corrêa de Azevedo, whom you brought up to work
with Charlie Seeger at the Pan American Union, has gone over extremely well in every place he has appeared. He
has done a number of good things while in Washington, has visited music centers in the middle west and in the
south, and everywhere has entered into the spirit of the locale in the very best possible way. He has also presented
papers on several professional meetings, papers which were accepted well everywhere. He has done some very
good scholarly writing while he has been here, and has also engaged in a 4-hour corn contest in North Carolina.
These two extremes, I take it, mean that he has both given and received while he has been up here, and I imagine
that is what we are after. The general remark of the brethren in the music field has been, ‘If that is what South
Americans are like, bring a lot more of them up and we shall be glad to take care of them’. His very charming and
animated wife, Violetta, has been a big help. Since I think you may be pleased to know when such things go off
well, I have jotted down these items for you” – “Berrien, William, (#1-#11)”, HAMP, APS.
337

ser publicadas e ouvidas.552

Beattie também desejava que a esposa de Mignone, a educadora musical e musicista


Liddy Chiaffarelli (Elisa Hedwig Carolina Mankel Chiaffarelli Mignone, 1891-1962) tratada
por ele apenas como Mrs. Mignone, também pudesse participar da summer session: “ela é uma
excelente professora de canto e seu conhecimento e uso da língua inglesa é tal que ela poderia
ser uma valiosa ajuda para seu marido”.553 Aqui vemos a repetição de algo recorrente nos
trânsitos interamericanistas: não obstante os seus próprios méritos, Chiaffarelli deveria servir
apenas como “apoio” ao marido. Esta também parece ser a impressão de Inês de Almeida Rocha
a partir de pesquisa que realizou com as correspondências trocadas entre o casal e Mário de
Andrade:

Pelas palavras dessa missiva [carta de Liddy Chiaffarelli para Mário de Andrade, 2 de
dezembro de 1941], inicialmente, o convite fora feito apenas a Francisco Mignone e
não a Liddy. Talvez possamos inferir que o trabalho desenvolvido por ela frente ao
curso de Iniciação Musical, embora fosse noticiado por periódicos e tivesse atraído
um grande número de alunos nas turmas, não havia ainda lhe rendido suficiente
prestígio para legitimá-la entre seus pares, a ponto de receber a mesma convocação
que o compositor. Por outro lado, ela mesma se projeta como mera acompanhante
familiar do convidado e não como profissional que já desenvolvia relevante trabalho
no ensino de crianças. Outra carta, porém, desvenda que Oswaldo Aranha intermediou
o financiamento de sua participação. (ROCHA, 2012, p. 107)

Rocha ainda toca num outro ponto importante. De acordo com suas pesquisas,
“Liddy, Mignone, Sá Pereira e Mário de Andrade já estavam inseridos em uma rede de
sociabilidade com ligações profissionais e afetivas que podem ter facilitado o convite para a
viagem” (ROCHA, 2012, p. 105). De fato é difícil não considerar plausível a participação de
Mário de Andrade nos fluxos de influências que, por meio de William Berrien e Sprague Smith,
amigos que fizera nos anos anteriores, tivessem favorecido a indicação de Mignone para sua
viagem aos Estados Unidos.
Em carta de 14 de abril de 1942, Beattie informa para Moe que “Mr. and Mrs.

552
“It is my further understanding that the travel grant is not for an extended visit but one which would enable
Mr. Mignone to remain here for a few weeks only. That seems unfortunate, inasmuch as Mr. Mignone has such a
combination of gifts as conductor, composer and pianist that it should be advantageous to extend that stay if
possible. On our visit to South America recently completed, Mr. Louis Woodson Curtis and I had opportunity to
become rather well acquainted with the Mignones. We consider Mignone among the most important of South
American Composers. He is not only highly talented, but uses an idiom and style that would be popular here if his
composition could be published and heard” – Excerto transcrito em carta enviada de Moe para Charles A.
Thomson, Chief da Division of Cultural Relations do Department State, 31 de janeiro de 1942, “Mignone,
Francisco”, HAMP, APS.
553
“She is an excellent teacher of singing and her knowledge and use of English is such that she would be a
valuable help to her husband”.
338

Mignone” estavam acompanhando o VIII Biennial Congress of Music Teachers, realizado


Milwaukee, Wisconsin.554 Ambos estavam ansiosos para os cursos de verão que seriam
realizados em Evanston, mas precisariam, para participar deles, de permissão das autoridades
brasileiras, e Beattie estava preocupado com isso pois, de acordo com o que foi acertado com o
State Department, eles ficariam nos EUA somente até o dia 6 de maio. No dia seguinte Moe
apresentou em reunião do CIAAIR a proposta de manter Mignone nos Estados Unidos, por
mais quatro meses a partir de abril, “para ensinar na School of Music of Northwestern
University, Evanston, Illinois, e se empenhar no trabalho criativo de composição musical”.555
Todavia, o esforço foi em vão, pois em carta enviada a Richard Pattee, com cópia para Beattie,
no dia 2 de maio, Moe informa que Mignone não conseguira autorização no Brasil para
permanecer nos EUA.556
Uma vez que a negativa da autorização foi feita pelo Ministro da Educação, é de se
suspeitar se esse bloqueio ao trânsito interamericano não se deu em função de um conflito de
projetos culturais estabelecido entre o Estado Novo e os intelectuais paulistas. Heitor Villa-
Lobos (1887-1959), por exemplo, não era exatamente prezado pelo grupo de músicos apontados
nesta seção. No ano anterior, o mesmo John Beattie havia enviado uma carta para Charles
Seeger – que, por sua vez, enviou cópia dela para Moe – a respeito de Villa-Lobos, a quem
Beattie conhecera em sua viagem pelo Brasil. Suas impressões são muito interessantes para o
problema que acabei de levantar:

Após recebida a sua carta, nós passamos várias horas com ele [Villa-Lobos]. Nós
gostamos dele e ele de nós. Conversamos duas vezes sobre uma possível visita aos
EUA. Ele primeiro disse que estava interessado apenas em uma viagem de caráter
profissional sob a administração de alguns homens puramente de negócios. Ele não
viria subsidiado por nenhum governo ou fundação. Ele não os considera sinceros e
suspeita de suas “conexões políticas”.
Em outra oportunidade ele afirmou novamente sua preferência por uma viagem
puramente profissional e declarou que não estava interessado em conduzir crianças
nos EUA. Isso nos deixou aliviados, pois nós não acreditamos que ele tenha algo para
contribuir conosco. Ele não fala inglês, é altamente emotivo, não sabe nada seja de
psicologia infantil ou de métodos vocais corretos. Nós dizemos isso depois de termos
ouvido aos seus ensaios, assistido ao seu grande show campal envolvendo 30 mil
crianças e visitado seu trabalho escolar. Suas acrobacias com sinais de mão são tais
que foram descartados por nós quarenta anos atrás, e são usados aqui [no Brasil],
porque não há música nas mãos das crianças. A qualidade tonal que ele quer e

554
A respeito do Congresso de Milwaukee, cf. ROCHA, 2012. O músico Antônio Leal de Sá Pereira também
representou o Brasil nessa oportunidade.
555
“To teach in the School of Music of Northwestern University, Evanston, Illinois, and to engage in creative work
in musical composition” – “Minutes of Nineteenth Meeting of the Comittee of Inter-American Artistic and
Intelectual Relations, recorded April 15, 1942”, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual
Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
556
“Mignone, Francisco”, HAMP, APS.
339

consegue é terrível.
Mais uma vez, deixe-me reforçar o fato de que nós consideramos Villa-Lobos um dos
grandes artistas criativos da atualidade. [Mas] Ele definitivamente não é um educador
musical. Aqueles que o tem promovido a tanto nunca ouviram o nosso trabalho nos
Estados Unidos e não têm como saber do que se trata.557

Por mais que Villa-Lobos pudesse ser considerado um expoente da composição


musical daquele período, vemos que várias de suas características pessoais não o habilitavam
ao circuito relacional interamericano – ao menos não como educador musical. Por seu lado,
Villa-Lobos também não se interessava em fazer uso das oportunidades interamericanas para
projetar sua obra internacionalmente, pois seu nacionalismo o fazia desconfiar das intenções do
governo estadunidense. Há evidências de que Villa-Lobos também teria participado do
congresso em Milwaukee, e a falta de menções a ele na correspondência trocada entre Liddy
Chiaffarelli e Mignone e Mário de Andrade seria um indício desses conflitos (ROCHA, 2012,
p. 123).
De fato, Mário de Andrade recusou-se participar, em 1944, de uma comissão
organizada por Villa-Lobos e composta por, além dele mesmo, Oscar Lorenzo Fernandes (1897-
1948), José Cândido de Andrade Muricy (1895-1984), Manoel Bandeira, Renato Almeida
(1895-1981), Brasílio Itiberê da Cunha Ferreira Luz (1896-1967) e Luiz Heitor Corrêa
Azevedo, a fim de assessorar Francisco Curt Lange na publicação de seu tomo VI do Boletín
Latino-Americano de Música. Segundo Corrêa Azevedo, Mário de Andrade recusou o convite,
mesmo com a insistência de Capanema, pois isso seria, para ele, uma “espécie de
reconhecimento público da incompetência musicológica de Curt Lange” (AZEVEDO, 1980, p.
105). Se isso não atesta necessariamente uma oposição a Villa-Lobos, por outro lado não deixa
de flagrar uma discordância em relação aos seus empreendimentos musicológicos. A bem da
verdade, a impaciência de Mário de Andrade em relação a Villa-Lobos remonta à década de

557
“Following receipt of your letter, we spent many hours with him. We like him and believe he likes us. We had
two talks about a possible visit to the U. S. He first said that he was interested only in a trip of a professional
character under management of some purely business men. He would not go under any government or foundation
subsidy. He does not consider them sincere but suspects them of ‘political connections’.
The next time he again stated his preference for a purely professional trip and declared he was not interested in
conducting children in U.S. That relieved us for we do not believe he has anything to contribute. He speaks no
English, is highly excitable, knows nothing of either child psychology or correct vocal methods. We say this after
having heard his rehearsals, attended his big outdoor show involving 30,000 children and visiting his school work.
His much vaunted stunts with hand signs are such as were discarded by us forty years ago and are used down here
because there is no music in the children’s hands. The tone quality he wants and gets is terrible.
Again, let me impress the fact that we consider Villa Lobos one of the great creative artists of the day. He is
definitely not a music educator. Those who have touted him as such have never heard our work in the States and
have no way of knowing what is it all about” – “Excerpt from letter of Dean John W. Beattie, dated September 13
from Brazil, to Charles Seeger, Chief Music Division, Pan American Union”, de Seeger para Moe, recebido em
22 de setembro de 1941, “Latin America: Villa Lobos”, HAMP, APS.
340

1930, como já o demonstrou Flávia Toni (TONI, 1987).558


Resta ainda tratar da passagem de Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) pelos
Estados Unidos. Ainda que ele discordasse de alguns aspectos dos princípios musicológicos de
Mário de Andrade quando este ainda vivia (SILVA, 1999), é inegável que Guarnieri foi um de
seus amigos mais diletos. Mário de Andrade conhecera Guarnieri em 1928, e em 1935, o
convidou para trabalhar no Departamento de Cultura. Com a saída de Mário de Andrade do DC,
Guarnieri vinha passando por dificuldades econômicas e as conexões interamericanas o
alcançaram em boa hora. Segundo juízo de André Egg, o compositor paulista foi “o personagem
da vida musical brasileira que mais se beneficiou desta colaboração” (EGG, 2013, p. 75). Egg
mostra que desde 1941 Guarnieri já vinha se correspondendo com Charles Seeger, que lhe
escreveu “encomendando uma obra que pudesse ser usada pelas bandas de música em colégios
norte-americanos”, e a presença de Corrêa Azevedo na Pan-American Union ao lado de Seeger
certamente está relacionada a este convite (EGG, 2013, p. 77). O mesmo pesquisador ainda faz
menção à relação de amizade estabelecida entre Guarnieri e Aaron Copland quando este viajou
para a América Latina em 1941: de fato, Copland também foi beneficiado pelo CIAAIR com
uma bolsa cujo propósito foi “estudar a música latino-americana contemporânea, palestrar
sobre música estadunidense e conduzir concertos de música estadunidense em diversos países
latino-americanos”.559 Copland, que também tinha restrições ao trabalho de Villa-Lobos, teria
sido “o contato mais próximo e estratégico” estabelecido por Guarnieri (EGG, 2013, p. 78).
Charles Seeger escreveu no dia 16 de fevereiro de 1942 para Moe a fim de tratar do
seu interesse em levar para os Estados Unidos educadores musicais latino-americanos para o já
mencionado congresso realizado em Milwaukee. Embora a Pan-American Union tivesse verba
para levar só mais um brasileiro a este evento (e o nome óbvio era o de Sá Pereira, que de fato
viajou para os Estados Unidos com este fim), Seeger expressou o seu desejo ter Guarnieri
naquele país, usando o pretexto do suposto interesse do compositor paulista pela educação
musical e demonstrando conhecer bem o seu trabalho:

De todos os compositores sul-americanos, parece-me que Guarnieri é possivelmente


o mais promissor, certamente um dos mais promissores, dentre os mais jovens. Ele
tem em sua música uma qualidade que muitas vezes falta na música latino-americana

558
Em artigo publicado em outubro de 1944, Mário de Andrade demonstra admiração pelas obras-primas de Villa-
Lobos, apenas considerando que ele não era “objeto de exportação nacional” em função de seu temperamento,
ingenuidade e propensão a dizer tolices (TONI, 1987, p. 51).
559
“To study contemporary Latin American music, to lecture on American music and to conduct concerts of
American music in several Latin American countries” – “Minutes of Fifth Meeting of the Committee for Inter-
American Artistic and Intelectual Relations, held May 31, 1941”, “Committee for Inter-Amercian Artistic and
Intellectual Relations” (#9 - #13), HAMP, APS.
341

– aquela da profunda organização que dá à sua música uma força inusual e claridade
de estilo. Eu sinceramente espero que você possa ter condições de ajudar Guarnieri a
vir para o nosso país nesse momento.560

Moe, como sempre, foi confirmar com Berrien – em cuja opinião no que se refere
às qualificações dos intelectuais brasileiros parecia confiar plenamente – se Guarnieri possuía
mesmo as qualidades necessárias para ingressar no mundo da circulação interamericana.
Berrien parece não ter exitado em confirmar a opinião de Seeger:

O que ele diz é perfeitamente correto. Esse jovem brasileiro é um dos mais
promissores homens em toda a América Latina. Faz tempo que eu tenho sentido que
ele poderia vir logo depois de Villa-Lobos na lista dos compositores brasileiros, e,
como você sabe, o Brasil tem bons compositores. Aaron Copland ficará feliz em
confirmar a impressão favorável que Seeger e eu temos de Camargo Guarnieri.561

Berrien também sugeriu que Guarnieri pudesse passar o verão na MacDowell Colony562 e
achava uma boa ideia que ele também pudesse participar da conferência em Milwaukee se
possível. Por fim, Berrien ainda reafirmou a solidez dos laços de confiança que unia esse grupo
de interamericanistas: “você sabe quão grande é a confiança que eu tenho em Seeger, e se ele
deseja se responsabilizar por Camargo Guarnieri, eu sinto honestamente que você pode contar
com um proveitoso projeto”.563
De posse dessas informações, Moe apresentou o projeto de financiamento da ida de
Guarnieri para os Estados Unidos na reunião do CIAAIR do dia 15 de abril de 1942. O propósito
da viagem era simplesmente realizar “trabalho criativo em composição musical e conhecer
compositores e a cena musical estadunidense”.564 No relatório que era obrigatoriamente

560
“Of all the South American composers, it seems to me that Guarnieri is possibly the most promising, certainly
one of the most promising, of the younger men. He has in his music a quality only too often lacking in Latin
American music – that of inner organization which gives his music an unusual strength and clarity of style. I
sincerely hope that you will be able to aid Guarnieri in coming to our country at this time” – “Guarnieri, Camargo”,
(#1 - #6), HAMP, APS.
561
“What he says is perfectly right. This young Brazilian is one of the most promising men in all Latin America. I
have long felt that he should come right after Villa Lobos in the list of Brazilian composers, and, as you know,
Brazil has good composers. Aaron Copland will be glad to back up the favorable impression Seeger and I have of
Camargo Guarnieri” – carta de Berrien para Moe, 24 de fevereiro de 1942, “Guarnieri, Camargo”, (#1 - #6),
HAMP, APS.
562
Situada numa fazenda em Peterborough, New Hampshire, essa colônia para músicos foi fundada por Marian
MacDowell, pianista e esposa do compositor Edward MacDowell, a fim de funcionar como um espaço capaz de
oferecer uma experiência criativa para músicos num lugar tranquilo e afastado dos centros urbanos. Informações
disponíveis em <http://www.macdowellcolony.org/about-History.html>, acesso 10/05/2017.
563
“You know how great a confidence I have in Seeger, and if he is willing to take the responsibility of Camargo
Guarnieri, I fell fairly certain that you can count on a fruitful project”.
564
“Creative work in musical composition and to become acquainted with American composers and the American
musical scene” – “Minutes of Nineteenth Meeting of the Comittee of Inter-American Artistic and Intelectual
Relations, recorded April 15, 1942”, “Committee for Inter-Amercian Artistic and Intellectual Relations” (#9 -
#13), HAMP, APS.
342

encaminhado a Nelson Rockefeller pelo CIAAIR existem informações mais detalhadas a seu
respeito. Dentre suas qualificações, informa-se que, como a maioria dos compositores, embora
ele fosse excelente, elas “não podiam ser atestadas em termos de treino acadêmico, posições
ocupadas etc.” (“Mr. Guarnieri qualifications cannot be stated in terms of academic training,
positions held , etc.” – é bom lembrar que Guarnieri não havia completado nem mesmo o
“primário”), e que, depois de aprender piano com seus pais, havia mudado para São Paulo, onde
estudou música com Ernani Braga e Antônio Sá Pereira e composição com Lamberto Baldi.
Também são mencionadas várias de suas obras, o fato de ele ser, à época, professor do
Conservatório Dramático de São Paulo e de ter conduzido diversos concertos na Sociedade
Filarmônica de São Paulo. Além disso, mais uma vez é apresentada uma opinião muito
favorável a seu respeito, sem, no entanto, indicação de autoria. Por fim, apresenta-se um
programa de atividades um pouco mais detalhado: a intenção era

aprimorar sua estatura como um compositor; ter tempo, livre de preocupações


financeiras, para seu próprio trabalho; ouvir performances de primeira classe de
músicos também de primeira classe; ouvir […] performances de primeira classe de
seu próprio trabalho; conhecer os compositores estadunidenses e seus trabalhos e
deixá-los conhecê-lo e a seu trabalho.565

Berrien ainda interviria outra vez em favor de Guarnieri, agora em função de sua
situação financeira precária. Embora fosse absolutamente “first-rate”, Guarnieri, nas palavras
de Berrien, era

extremamente pobre financeiramente; se isso é porque ele não tem tino para os
negócios, ou porque ele não gosta de rebaixar-se à realização de truques que outros
músicos usam para continuar indo em frente, eu não sei. O fato é que ele é um
compositor de primeira classe que nunca teve nenhum dinheiro e teve que trabalhar
no mais difícil ambiente e ainda assim entrega o trabalho.566

Guarnieri tinha uma esposa que dependia de seus proventos e um filho pequeno do seu primeiro
casamento, que estudava num internato, e o casal morava numa pensão para poder arcar com

565
“Mr. Guarnieri’s program is such as is designed to increase his stature as a composer of music: to have time,
free from financial worries, for his own work; to hear first-rate performances of firs-rate music; to hear, we hope,
first-rate performances of his own work; to become acquainted with United States composers and their work and
to let them become acquainted with him and his work” – “Camargo Guarnieri”, “Extract from our minutes:
“Guarnieri, Camargo: Composer of Music, Rio de Janeiro, Brazil”, “Comm. Inter-Am. Art. & Int. Rel. – Coord.
Rep.” (#1 - #3), HAMP, APS.
566
“Camargo Guarnieri is absolutely first rate. He is also extremely poor financially; whether it is because he has
no business head or because he does not like to stoop to tricks which other musicians use to get ahead, I do not
know. The fact is that he is a first-rate composer and musician who has never had any money and has had to work
in the most difficult environment and yet turns out the work” – “Excerpt from letter of WB to DHS, 10/11/42 from
Rio de Janeiro”, “Guarnieri, Camargo”, (#1 - #6), HAMP, APS.
343

os estudos do filho. Por isso Berrien pedia que seu auxílio fosse incrementado, haja vista que
outros intelectuais, menos importantes que o músico brasileiro, haviam conseguido, por
diversas vezes, estipêndios mais altos do que os que lhe eram oferecidos.
Passados cinco meses da visita de Guarnieri aos Estados Unidos, ele escreve a Moe
convidando-o, caso ele estivesse na capital paulista, para o concerto que conduziria à frente da
Orquestra Sinfônica de São Paulo no Teatro Municipal. Sua estadia em Nova York e o programa
que Seeger “tão eficientemente” tinha lhe arranjado havia lhe dado tempo e estímulo suficientes
para avançar em suas próprias composições, além de ter tido a oportunidade de conhecer um
grande número dos mais proeminentes músicos e compositores do país. Guarnieri garantiu que
em sua volta para o Brasil seria um guardião dos princípios interamericanistas – “você pode
estar certo de que no meu retorno para o Brasil, meus meses aqui me darão muita coisa para
trabalhar na vanguarda daqueles que estão sinceramente trabalhando em direção a um caloroso
entendimento e rapprochement intelectual entre nossos países”567 –, e, por isso estrearia no
Brasil a direção de obras de Aaron Copland, William Schumann (1910-1992), Virgil Thomson
(1896-1989) e Henry Cowell (1897-1965).
Guarnieri acabou tendo que encerrar sua estadia nos EUA um mês antes do previsto
por ordem do Exército brasileiro.568 Antes de partir, ainda teve problemas com uma taxação que
considerava injusta sobre um prêmio de 750 dólares que conquistou pelo seu Concerto para
violino,569 e conseguiu um vantajoso contrato para publicação de suas obras com os Associated
Music Publishers.570 Somado às diversas notícias sobre o sucesso de suas apresentações e
contatos nos EUA, não resta dúvida de que a passagem de Guarnieri por lá foi de extrema
importância para o impulsionamento de sua carreira como compositor.

Além de várias outras bolsas concedidas a intelectuais e artistas latino-americanos,


outras pessoas e instituições brasileiras também tiveram a oportunidade de ingressar no
universo das trocas interamericanas por intermédio do CIAAIR. Miguel Ozório de Almeida
(1890-1952), professor de fisiologia do Instituto Oswaldo Cruz, foi para a Medical School da
Yale University, onde, a partir de janeiro de 1942, desenvolveria um estudo sobre os reflexos

567
“You may be sure that on my return to Brazil my months here will give much to work with in the advance guard
of those who are sincerely working toward a warm understanding and intellectual rapprochement between our
two countries” – carta de Guarnieri para Moe, 3 de março de 1943, – “Guarnieri, Camargo”, (#1 - #6), HAMP,
APS.
568
Carta de Moe para o Local Board Number 26, 15 de março de 1943, “Guarnieri, Camargo”, (#1 - #6), HAMP,
APS.
569
Carta de Seegers para Moe, 31 de março de 1943, “Guarnieri, Camargo”, (#1 - #6), HAMP, APS.
570
Excerto de carta enviada de Seeger para Berrien em 2 de abril de 1943 em carta de J. Stewart, Secretary to Mr.
Berrien, para Moe, 3 de abril de 1943, “Guarnieri, Camargo”, (#1 - #6), HAMP, APS.
344

labirínticos pelo período de pelo menos três meses; Raymund Lull Zwemer (1902-1981),
professor assistente de anatomia da Columbia University Medical School daria aulas na Escola
Nacional de Medicina do Rio de Janeiro em 1942; tentou-se levar Gilberto Freyre, já bastante
concorrido, para dar aulas na Yale University, algo que, no entanto, não se concretizou; o
escritor Clodimir Viana Moog (1906-1988) passaria seis meses nos EUA a fim de preparar um
livro; o arquiteto Henrique Mindlin (1911-1971) viajaria em junho de 1943 a fim de realizar
estudos arquitetônicos.
No entanto, o que já foi escrito até aqui é suficiente para demonstrar o significado
das ações do CIAAIR – essa agência interamericana praticamente desconhecida pela história
intelectual brasileira (e das relações interamericanistas, em geral) –, para a forma por meio da
qual as relações entre civilização e cultura passariam a ser percebidas por nossa
intelectualidade. O CIAAIR, com seus diversos filtros políticos, comportamentais, etários, de
gênero e de cor, contribuiu de maneira inegável para moldagem dos sujeitos dessa
modernização e dos objetos que sofreriam a sua ação, produzindo entrecruzamentos que
passaram a ser marcados pelas novas concepções acerca das relações necessárias entre
civilização, culturas e a constante ameaça da barbárie totalitária. O Committee de Moe também
participou da produção dos fluxos que foram responsáveis pelo estabelecimento de novos
projetos de modernidade no Brasil.
É certo que esses novos fluxos não deixaram de produzir conflitos. Moe se viu
obrigado a lidar com os critérios de circulação transnacional impostos por Heloisa Alberto
Torres, por exemplo, quando desejou fazer uso da centralidade institucional do Museu Nacional
no Brasil. Por outro lado, o Estado Novo também teve condições de impor alguns bloqueios ao
fluxo interamericano, embora desejasse se manter em bons termos com o Tio Sam durante a
Segunda Guerra Mundial, mantendo-se, na maioria das vezes, neutro às escolhas realizadas por
Moe e Berrien.
Mário de Andrade, por sua vez, logrou ocupar a posição mais estratégica, no que
diz respeito ao CIAAIR, dentre os sujeitos brasileiros cuja centralidade estava baseada não só
na sua qualidade de broker de agentes e agências, mas também na formulação de projetos de
modernidade originais. O escritor paulista conseguiu exercer, pelo respeito que conquistou de
Berrien, uma autoridade direta sobre aqueles que escolhiam quais nomes deveriam ou não
circular pela rede interamericana de intelectuais e artistas. Berrien acabou se apropriando não
só dos critérios que Mário de Andrade tinha a respeito dos “first-rate men”, mas até mesmo de
um posicionamento político que passou a partilhar com aquele grupo de intelectuais paulistas e
que chegou a provocar alguns conflitos com a estrutura de poder do próprio Estado Novo.
345

Do ponto de vista dos problemas abordados nesta tese, a Segunda Guerra Mundial
significou menos um corte temporal do que um período de reconfiguração das relações
responsáveis pela produção e reprodução daquilo que tenho chamado de modernidade. Isso
significa dizer que a produção de relações de subordinação por meio dos conceitos de
civilização e cultura tomaram um novo impulso, o qual foi possibilitado por uma rede
transnacional de fluxos e relações cuja diferença é o seu caráter interamericano.
Este caráter interamericano transpareceu nas várias relações intelectuais que pude
mapear por meio da documentação consultada. O interamericanismo delimitou um espaço de
trocas, fluxos e movimentos determinado por relações de subordinação: nelas aos poucos se
foram definindo os polos da civilização e das culturas, os seus sujeitos e os seus objetos. O
sentido partilhado era o do processo de modernização. O consenso mínimo comungado por
todos esses sujeitos era que haveria uma nova civilização capaz de indicar às diversas culturas
da América Latina o caminho da modernidade. Segui-la seria a melhor opção diante do avanço
da barbárie. Assim, essas relações puderam ser concebidas como uma troca, uma cooperação
em que os dois lados tinham a ganhar: o polo da civilização estadunidense podia se espraiar e,
ao mesmo tempo, garantir a manutenção de sua força por meio do influxo de contribuições
culturais que tinha aprendido a valorizar graças ao culturalismo historicista do americanismo
anterior; do outro lado, as culturas podiam se tornar civilizadas sem, para isso, terem que abrir
mão de suas peculiaridades. As culturas latino-americanas também não precisariam assim
lançar mão de soluções revolucionárias para atingirem um estágio civilizacional superior:
bastava seguir o bem-sucedido American way of life sem abandonar as suas próprias
especificidades mais caras e não conflitantes com essa modernidade democrática, liberal e,
claro, branca, patriarcal e bem-comportada. É certo que os caminhos para esse tipo de
modernização podiam variar, e variavam sobretudo em função das melhores estratégias para o
controle do fluxo de recursos que a rede interamericanista proporcionava. Melhor que acumular
esses recursos era, como vimos, controlar os seus canais de circulação.
É bem verdade que nem todos participavam dessa rede de boa vontade e cooperação
ou concordavam com isso. Esses são os não-sujeitos e os objetos do interamericanismo. Os
não-sujeitos são os que não passaram pelos filtros do interamericanismo. Por sorte consegui
flagrar alguns momentos em que o processo de exclusão era posto em funcionamento: alguns
nomes quase ou totalmente hoje esquecidos (ou, se são lembrados, é por que o foram por meio
de outros circuitos de poder arcôntico que não o interamericano), foram registrados apenas para
servirem como contraexemplos. Esse era o caso dos anarquistas brigões, dos(as) intelectuais de
“segunda classe”, dos(as) negros(as) e mulatos(as), das mulheres feias ou malcomportadas,
346

dos(as) velhos(as), dos(as) comunistas radicais, fascistas, e até dos(as) antipáticos(as). O grande
aparato de registro produzido pela burocracia, pela economia e pela política de guerra garantiu
o aniquilamento da memória de todos esses não-sujeitos do interamericanismo.
Há ainda os objetos do interamericanismo, que, a seu modo, também são não-
sujeitos. A diferença é que esses objetos eram valorizados e mesmo disputados pelos sujeitos
do interamericanismo. Isso porque esses sujeitos não existiriam se não pudessem agir sobre os
seus objetos. Era preciso olhar para determinadas pessoas e objetificá-las em tribos,
comunidades ou culturas. Mas, na condição de objetos, essas pessoas não devem ter vozes, pois
só os sujeitos têm voz. São os sujeitos do americanismo que possuem os instrumentos capazes
de determinar os seus valores para o mundo moderno. Mas, para isso, é preciso transformar as
pessoas em objetos, extrair delas as suas manifestações culturais, isso para que os sujeitos da
cooperação interamericana pudessem consumi-las e transformá-las nas mercadorias de troca do
mundo civilizado.
É possível ainda flagrar essa rede interamericana em processo de expansão se
chocando em alguns pontos de impermeabilidade de uma outra rede moderna de relações
assimétricas: a rede regional produzida pelo Estado Novo. Se em alguns pontos específicos de
contato seria até possível utilizar a metáfora orgânica de uma simbiose, no âmago desses dois
monstros o que se percebe é uma incompatibilidade genética. E se a aparência era de união
contra o monstro maior do nazismo, no fundo o que os dois mais desejavam era devorar um ao
outro. Em vários momentos as tensões se tornavam visíveis, bloqueios mútuos se alternavam e
a plêiade de parasitas que habitava aquelas duas formações titânicas se aproveitava da melhor
forma possível para abocanhar a maior parcela de nutrientes disponível num e noutro lado.
Esses foram, respectivamente, os sujeitos e os objetos do interamericanismo: os parasitas e os
nutrientes.
É interessante também notar que cada mordida do monstro interamericano no
monstro do nacionalismo varguista podia trazer algumas infecções advindas dos corpos
estranhos que habitavam este último. Logo aquele desejo inicial de cooperação se contaminaria
por um anseio de destruição total. Não por acaso Wagley, por tanto tempo ligado às redes de
poder estadonovistas por meio do Museu Nacional, chegou a comemorar depois a possibilidade
de eleição do udenista Eduardo Gomes: em carta de 16 de novembro de 1945, “Chuck”
comentava com Julian Steward que “a situação política no Brasil é realmente muito boa. O
Exército entregou o governo interino para os civis e parece que Gomes pode ter a chance de ser
347

eleito. Meus maiores medos eram infundados”.571 Mesmo que a escala disso ainda precise ser
melhor mensurada, o alinhamento político e ideológico de estadunidenses e opositores ao
regime de Vargas, em especial os paulistas, não pode ser desconsiderado no que diz respeito ao
processo de desgaste da solução nacionalista da modernidade brasileira que, com o golpe de
1945 que levou Dutra ao poder, atingia uma espécie de ápice depois de todos aqueles anos de
Estado Novo.

571
“PS: The political situation in Brazil is really very good. The Army has turned over the interim government to
civilians and it looks as if Gomes may have a chance of being elected. My worst fears were unfounded” –
“WAGLEY, Charles (1941-52)”, Series 4, Correspondence, RISA, NAA.
348

PARTE III: CULTURA NACIONAL, PATRIMÔNIO ETNOGRÁFICO E


ARTÍSTICO E AS DISPUTAS PELA MODERNIDADE BRASILEIRA

Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo triunfal que leva
os senhores de hoje a passar por cima daqueles que hoje mordem o pó. Os despojos,
como é da praxe, são também levados no cortejo. Geralmente lhes é dado o nome de
patrimônio cultural. (BENJAMIN, 2013, p. 14)
349

CAPÍTULO 9: MUSEU NACIONAL, CULTURAS INDÍGENAS E A

MODERNIZAÇÃO NACIONAL POR MEIO DA CIÊNCIA CIVILIZADA

Até agora esta tese tratou de duas configurações ideológicas, o americanismo e o


interamericanismo, em que diferentes articulações entre os conceitos de civilização e cultura
foram postas em circulação transnacional, produzindo novos sujeitos e objetos de renovados
processos de modernização. Nos dois casos, o mundo latino-americano foi tomado como o
espaço ainda-não-moderno no qual essas novas concepções de modernidade poderiam ser
largamente desenvolvidas, algo que pôde ser demonstrado por meio das relações que foram
diretamente estabelecidas com os(as) intelectuais brasileiros(as). Vimos também como esses
movimentos produziram novas subjetividades e objetividades, isto é, novas hierarquias, novas
relações de subordinação, novas formas de domínio de objetos por sujeitos.
Nesta terceira e última parte desta tese, irei mostrar como esses fluxos
transnacionais de híbridos, sujeitos e objetos provocaram a produção de projetos alternativos,
e por vezes conflitantes, de modernidade nacional. Em tempos de crise generalizada de uma
concepção universalista de civilização liberal burguesa, a modernidade pôde se renovar,
ampliando-se por zonas antes tomadas como “bárbaras”. No Brasil, isso significou incorporar
o “sertão” à “civilização”, o que, a partir da década de 1920, permitiu perceber (ou produzir)
novidades em termos de modernidade, isto é, modernidades alternativas num espaço tropical
que, até bem pouco tempo, acreditava-se incivilizável. Isto produziu um campo de disputas por
autoridade e por postos institucionais no intuito de consolidar uma única modernidade para todo
o território nacional. As redes transnacionais americanista e interamericanista serviram,
diversas vezes, como fontes de recursos para essas disputas inter-regionais. Veremos como elas
se processaram acompanhando a trajetória de um outro tipo de híbrido, o patrimônio etnográfico
e artístico, ele próprio um desdobramento dos híbridos conceituais de civilização e cultura.
Neste capítulo eu tratarei de algumas evidências da subjetividade personificada na
pessoa de Heloisa Alberto Torres, a respeito de quem tanto já escrevi nesta tese, mostrando
também como ela própria trabalhou na rearticulação dos conceitos de civilização e cultura em
prol de um projeto alternativo de modernização nacional. Em seguida, apresentarei o Museu
Nacional enfocando suas práticas expositivas, de modo a compreender melhor como esse tipo
de híbrido, ou seja, o patrimônio etnográfico, produz subjetividades como a de Torres e se
encaixaram nesses espaços institucionais modernos de produção de sujeitos e objetos. Com isso
350

eu poderei tratar, no próximo capítulo desta tese, da circulação desse híbrido patrimonial
específico no interior de um circuito de trocas mais abrangente, que o Estado Novo brasileiro
tentou controlar por meio da criação do SPHAN, mas que, na verdade, participava de uma rede
não restrita ou controlada pelas fronteiras nacionais.

9.1. OS RASTROS DE UM COMETA

Já vimos que o antropólogo estadunidense Jules Henry se referiu a Torres, numa


certa ocasião, como um “grande cometa antropológico”.572 Essa metáfora astronômica é
realmente interessante, pois, assim como um cometa, que é destituído de luz própria, a
passagem fulgurante de Torres pelo universo da antropologia e do patrimônio cultural chamou
a atenção, mesmo assim, de todos que conviveram com ela. Além disso, o seu brilho também
foi mais efêmero do que o de outros nomes das ciências sociais brasileiras, cujas luzes
continuam iluminando, como estrelas já mortas, o céu historiográfico desse campo. A
subjetividade de Torres, como um cometa possuidor de uma bela cauda, parece ter desaparecido
do céu por um longo tempo e, apenas muito recentemente, começa a refazer o seu ciclo orbital.
Mas o mais correto seria pensar Torres como um astro anômalo, talvez uma estrela morta que
se transformou num buraco negro. Podem ser justamente essas perturbações gravitacionais que
a trazem novamente para a nossa própria órbita, sugando-nos para dentro do universo moderno
que se esconde do outro lado desses buracos negros.
Por outro lado, essa mesma metáfora também tem o poder de igualar a presença
fantasmática dessa subjetividade a um fenômeno de ordem natural, passível de ser
“representado” por uma narrativa biográfica. Se aqui me deixo possuir por essa assombração e
as alucinações que ela produz isso se dá, no entanto, pelo desejo de exorcizá-la, pondo em
suspensão/suspeição as relações modernas que ela continua produzindo entre nós.
Nesta seção eu tentarei coletar alguns rastros da emergência dessa subjetividade,
conforme nos é dado a ver nos arquivos que testemunham a sua produção.573 Para isso, voltarei
às minhas primeiras pesquisas relativas ao Museu Nacional, quando eu mesmo fui apanhado
pelo campo de força gravitacional dessas grandes subjetividades nacionais por acreditar no fato
de sua presença objetiva.574

572
Carta de Henry para Boas, 17 de janeiro de 1941, Franz Boas Papers, APS.
573
A respeito das especificidades dos arquivos do Museu Nacional, vide o “Capítulo 3”, seção “3.2. Os arquivos”.
574
Reproduzo aqui, portanto, com algumas correções e acréscimos, alguns trechos já apresentados na monografia
Coleção, narrativa e tutela: a proteção do patrimônio arqueológico e etnográfico no Brasil (1937-1961), finalizada
em 2013 e não publicada (LOWANDE, 2013c).
351

Ao decidir se ligar a Edgard Roquette-Pinto, Torres, ainda apenas uma jovem garota
de educação esmerada, talvez não imaginasse a amplitude das redes nas quais o Museu Nacional
já estava imerso. Roquette-Pinto era um admirador de Alberto de Seixas Martins Torres (1865-
1917), o pai de Heloisa, e frequentava a biblioteca deste antes que sua filha se resolvesse pela
carreira antropológica.575 Não é improvável que Heloisa Alberto Torres já conhecesse e
admirasse Roquette-Pinto desde muito jovem (Alberto Torres morrera em 1917, quando sua
filha tinha entre 21 e 22 anos), ouvindo-o contar sobre suas aventuras junto a Rondon na floresta
amazônica e sobre suas viagens ao exterior, deleitando-se com sua já reconhecida erudição e
militância em prol do progresso nacional. De fato, Roquette-Pinto possuía uma personalidade
atraente. Para além de sua erudição, é interessante ouvir, por exemplo, de Antonio Candido de
Mello e Souza, primo distante de Roquette-Pinto, que, quando este último soube da enfermidade
de uma “priminha” em comum, foi prestar-lhe assistência na condição de estudante de
medicina. O interessante é que Roquette-Pinto tentava animá-la tocando-lhe violão. Segundo
Candido, Roquette-Pinto “tinha uma voz lindíssima, um talento extraordinário. [...] Era um
primo lindo, estava no 4º ano de medicina, muito gentil, muito bondoso, e teve essa bondade
extraordinária de dar assistência a essa priminha com risco de vida”.576
Independente das pressuposições que possamos fazer acerca da admiração que
muito provavelmente Heloisa Alberto Torres guardou em relação a Roquette-Pinto, o fato é que
ela ingressou no Museu Nacional como assistente desse médico logo após o falecimento de
Alberto Torres, em 1918, a fim de seguir uma carreira antropológica sob sua orientação. Aquela
que aparentemente foi a primeira pesquisa de campo conduzida por Heloisa Alberto Torres se
deu, com efeito, sob orientação de Roquette-Pinto. Ela ocorreu em conjunto com uma “turma
de senhoras” preparadas especialmente para mensurações antropométricas em indivíduos do
sexo feminino, sendo que, segundo Roquette-Pinto, “antes de iniciar o respectivo serviço
praticaram sob [sua] direção” (KEULLER, 2008, p. 157). Torres ainda realizou expedições
antropológicas e arqueológicas em Iguape/SP (1927), Magé, Serra dos Macacos e São Francisco
Xavier (1928), Maceió/AL, Recife/PE, Belém e Ilha de Marajó (1930), Ponte Nova/MG e no
Estado do Rio de Janeiro (1935), antes de dedicar-se integralmente à administração do Museu

575
Segundo Regina Horta Duarte, Roquette-Pinto era “admirador convicto” de Alberto Torres: Roquette-Pinto
“insistia na dedicação desse pensador aos estudos da biologia, afirmando esse conhecimento como o elemento que
o diferenciara entre tantos intelectuais de sua geração, perdidos entre as ‘lantejoulas do discurso’. Torres possuíra
uma biblioteca na qual ‘achava-se o que havia de mais profundo e de melhor em matéria de biologia’, e, ao morrer,
deixara ainda com as páginas fechadas as publicações mais recentes, encomendadas da Europa. Roquette-Pinto
argumentava que, se a obra de Torres era decisiva no que dizia respeito à matéria social, tudo o que ele escrevera
só foi possível pela existência de uma ‘base biológica segura” (DUARTE, 2010, pp. 59-60).
576
Entrevista concedida a João Baptista Cintra, apud RANGEL, 2010.
352

Nacional (KEULLER, 2008, p. 157). O próprio Luiz de Castro Faria, antropólogo que em
alguma medida foi para Heloisa Alberto Torres o que esta foi para Roquette-Pinto, afirma que
este médico foi o “patrono científico” da diretora do Museu Nacional (apud DOMINGUES,
2010, p. 628).
Torres foi “praticante gratuito” e depois “auxiliar de pesquisa” antes de se tornar,
em 1925, mediante concurso, professora substituta de Seção de Antropologia e Etnografia
(KEULLER, 2008, p. 179). Antes de chegar à direção do Museu Nacional em 1937, Torres já
vinha consolidando sua autoridade no campo da antropologia. Já é possível, portanto, verificar
seu papel de sujeito na história intelectual nacional. E, ao invés de simplesmente se apoiar no
nome do pai, a professora e antropóloga buscou conquistar respeito em sua área como
especialista em cerâmica marajoara, com direito ao batismo do trabalho de campo.
Em 1926 Heloisa Alberto Torres já se tornava professora-chefe interina da Seção
de Antropologia e Etnografia, tendo em vista que Edgard Roquette-Pinto assumira a direção do
Museu Nacional. Torres foi selecionada num concurso em que, mesmo não contando com
formação universitária, demonstrou maiores conhecimentos antropológicos que seus pares,
superando nomes como Jorge Henrique Augusto Padberg Drenkpol (1877-1948) e Raimundo
Lopes (1894-1941) nas medições antropométricas, descrevendo com desenvoltura objetos
pertencentes às coleções do museu e dissertando seguramente sobre o tema que lhe foi proposto
(KEULLER, 2010; RIBEIRO, 2010).
Na condição de professora, Torres desenvolveu uma série de atividades que a
alçaram no mundo das pesquisas antropológicas. Das expedições que realizou, a mais
significativa foi certamente a que a conduziu ao Pará, em 1930. Adélia Ribeiro considera que
“foi o estudo da cerâmica marajoara que lhe propiciou o salto qualitativo que a emanciparia da
condição inicialmente exclusiva de filha de um grande homem do Estado para a de disciplinada
pesquisadora” (RIBEIRO, 2010, pp. 80-81).577 Além disso, esse tipo de atividade foi também
fundamental para o estabelecimento de contatos. 1930 foi também o ano em que Carlos Estevão
assumiu a diretoria do Museu Paraense Emilio Goeldi, e Torres por certo necessitou do apoio
desse museu para suas pesquisas, conquistando, a partir daí, um valoroso aliado em diversas
ocasiões.578 Essas viagens também lhe deram condições de melhor orientar, posteriormente, os

577
O antropólogo José Bastos de Ávila, também do Museu Nacional, chegou a produzir um premiado romance
inspirado nessa pesquisa de campo de Torres (ÁVILA, 1933).
578
Além da ajuda que prestou a Charles Wagley, quando de seus trabalhos de pesquisa e treinamento realizados
no Pará por intermédio do Museu Nacional, Estevão também esteve ao lado de Torres na defesa de Curt
Nimuendaju perante o Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil (CFE), quando
ela já havia deixado esse órgão (cf. GRUPIONI, 1998). Há uma foto, publicada no livro Querida Heloisa / Dear
353

pesquisadores(as) estrangeiros(as) que vieram realizar suas pesquisas no Brasil. Torres já havia
desenvolvido, dessa forma, uma parcela significativa de sua rede, uma vez que começou assim
a estabelecer contatos importantes para a realização de pesquisas de campo em diversos lugares
do país.
Ainda nesse curto período, não foi o Museu Paraense Emilio Goeldi a única
instituição científica ou cultural com a qual Torres se relacionou. Ribeiro também dá conta de
que, após proferir uma palestra sobre a arte marajoara na Escola Nacional de Belas Artes
(ENBA), Torres encaminhou o texto, que foi publicado num folheto, “a inúmeros museus e
instituições científicas, no Brasil e no exterior. Ao mesmo tempo, Heloisa guardou consigo as
mensagens, cartas e telegramas de agradecimento, que recebia dos contemplados” (RIBEIRO,
2010, p. 80). Adriana Keuller também menciona que Torres teria estabelecido contatos, entre
os anos de 1927 e 1931, além da já mencionada ENBA, com Institutos Históricos e com a
Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, sendo que nesta última instituição teria ministrado
um curso de etnografia (KEULLER, 2008, p. 187).
Foi também nesse período que Heloisa Alberto Torres constituiu um grupo que
seria de suma importância na sustentação e implementação de seus projetos. Além de Roquette-
Pinto, é importante mencionar nomes como Raimundo Lopes,579 Alberto Childe (1870-
1950),580 José Bastos de Ávila (1888-1971) e outros que, posteriormente, vieram a se juntar ao
grupo.
Após consolidar suficientemente uma rede intelectual e conquistar o respeito de
seus pares antropólogos, Heloisa Alberto Torres se tornou a principal referência do Museu
Nacional, sobretudo após o pedido de exoneração desta instituição feito por Roquette-Pinto em
1935, em função da lei que obrigava à desacumulação de cargos públicos. Em 1932, por
exemplo, já aparece como delegada do Brasil no Congresso Internacional de Americanistas
ocorrido na cidade de La Plata, Argentina (KEULLER, 2008, p. 182).
Pouco tempo depois, Torres começou a tentar galgar posições destacadas no campo
da proteção do patrimônio arqueológico e etnográfico brasileiro. A consciência de que esse

Heloisa, de Mariza Corrêa e Januária Mello (CORRÊA e MELO, 2008), que mostra a pesquisadora ao lado de
Estevão, a bordo do barco “Cassiporé”, no Porto de Belém, ilustrando essa amizade. No entanto, como vimos,
Estevão, assim como Torres, dirigiam instituições científicas em disputa por recursos escassos, sobretudo durante
o período da Segunda Guerra Mundial, e essas relações nem sempre foram apenas de camaradagem.
579
Raimundo Lopes da Cunha ingressou no Museu Nacional em 1922, substituindo Alfredo de Morais Coutinho.
Prestou o mesmo concurso que Heloisa Alberto Torres, sendo superado por esta, permanecendo na instituição até
sua morte em 1941. Foi membro do Conselho Consultivo do SPHAN.
580
Conservador de arqueologia do Museu Nacional desde 1911, sendo que já trabalhava na instituição
anteriormente como artista. Foi autor de uma das primeiras propostas de proteção ao patrimônio etnográfico
brasileiro, em 1920. Também foi membro do Conselho Consultivo do SPHAN. Permaneceu no Museu até 1938,
tendo ocupado também a posição de chefe da seção de Antropologia e Etnografia.
354

patrimônio estava sendo verdadeiramente pilhado por instituições estrangeiras já lhe aflorava
quando de suas pesquisas na década de 1920. Em um texto escrito em 1929, Torres

alertava para o fato de que, apesar das belas e preciosas peças trazidas por Ferreira
Penna e Ladislau Netto, para o Museu Nacional, e mesmo as de Orville Derby, já
como membro da Comissão Geológica do Império, constituírem um importante
acervo da instituição, tantas outras de valor inestimável para a cultura nacional saíam
do país sem controle algum por parte das autoridades brasileiras, rumo a museus mais
ricos que os nossos. (RIBEIRO, 2010, p. 81)

Mas, por si só o Museu Nacional não possuía recursos suficientes para tomar conta das diversas
jazidas arqueológicas e proteger as intocadas “culturas primitivas” ainda existentes no território
nacional.
Não era nova a tese de que o Estado deveria se responsabilizar pela proteção do
patrimônio científico do país, e o Museu Nacional teve papel destacado nessa discussão.
Segundo Grupioni (1998), em 1907 a Congregação do Museu já se manifestava sobre o
problema da regulação da saída de coleções do Brasil e da proteção de povos indígenas. Em
1909, no 1º Encontro Brasileiro de Geografia, clamava-se pelo auxílio dos governos da União
e dos Estados às instituições museológicas no que diz respeito ao incremento de suas coleções
e ao controle das expedições estrangeiras. Na década de 1930, o Marechal Cândido Rondon,
estreitamente ligado ao Museu Nacional, defendia as mesmas ideias, enfatizando o papel do
Estado. Por fim, em 1932, uma comissão da qual fazia parte o chefe da Seção de Botânica do
Museu Nacional, Alberto José Sampaio (1881-1946), ficou incumbida pelo Ministério da
Agricultura e pelo Ministério da Educação e Saúde Pública de “elaborar um projeto de decreto
que normatizasse as expedições estrangeiras que pretendessem percorrer os sertões do país em
estudos científicos ou pesquisas de qualquer natureza” (GRUPIONI, 1998, pp. 49-53).
Em 1933 foi finalmente criado o Conselho de Fiscalização das Expedições
Artísticas e Científicas no Brasil, e nele tomam assento dois representantes do Museu Nacional:
Candido Firmino de Mello Leitão (1886-1948) e Heloisa Alberto Torres. Regina Horta Duarte
mostra que, anteriormente, o Museu Nacional já vinha ocupando os espaços criados pela
estratégia de ampliação e centralização estatal do governo de Getúlio Vargas no campo
educacional. A perda de poder notada nesse campo,581 foi contrabalanceada pela ocupação de
outros postos criados pelo governo, sobretudo na área do indigenismo e da preservação do
patrimônio nacional. Desse modo, os projetos do Museu Nacional não foram derrotados nesse

Segundo a historiadora, Gustavo Capanema ascende no governo Vargas e “em seus projetos o grupo do Museu
581

Nacional perdeu importância e, como vimos, foi reduzido à categoria de ‘naturalistas” (DUARTE, 2010, p. 131).
355

primeiro momento: na verdade os membros da instituição antes garantiram um espaço que


posteriormente lhes seria deveras importante, como veremos adiante.
Ainda há, todavia, um elemento significativo que precisa ser abordado aqui: a
centralidade ocupada por Torres num universo eminentemente masculino é um aspecto
impossível de não ser notado. Este assunto já foi abordado de maneira magistral por Mariza
Corrêa no texto intitulado “Dona Heloísa e a pesquisa de campo” (CORRÊA, 2003), ao lado de
outras situações que chamam a atenção para as relações de gênero no campo antropológico em
seu processo de constituição no Brasil. A propósito de uma disputa interna pela direção do
Museu Nacional, quando este se encontrava fechado em função de obras de consolidação e
restauração empreendidas pelo SPHAN a partir de 1941 (às quais voltarei neste e no próximo
capítulo), Corrêa conclui que “o perigo estava na poluição das fronteiras entre o masculino e o
feminino, pela ocupação de lugares socialmente, explícita ou implicitamente, destinados a uma
dessas categorias” (CORRÊA, 2003, p. 152). Ao se esgotarem os argumentos elaborados por
um conjunto de naturalistas homens, politicamente posicionados contra o legado varguista,582
esta facção oposicionista à situação representada por Torres no Museu logo passou a apelar para
a sua suposta “prepotência feminina”, que seria responsável pela instauração de “um regimem
de matriarcado” (apud CORRÊA, 2003, p. 151), neste caso identificado com uma postura
supostamente totalitária denunciada em outras oportunidades.583 No entanto, este apelo ao

582
Assinaram uma carta publicada no jornal O Globo, contra Heloisa Alberto Torres, os seguintes naturalistas:
Othon H. Leonardos, Haroldo Travassos, Dalcy de Albuquerque, Newton Santos, José Oiticica Filho, Carlos de
Paula Couto, Emmanoel Martins, Romualdo Ferreira de Almeida, Joaquim Machado Filho, Herbert Berla e Alceu
de Castro. “Continua fechado o Museu Nacional”. A Noite. Rio de Janeiro, 14.06.1946, Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN. Em matéria também produzida a partir de
depoimento deste grupo, no jornal Diário de Notícias, o jornalista escreve que “Com o desperdiçado 29 de outubro,
todas as diretorias deviam cair com o ex-ditador. Mas em certas, a eleição poderia permitir o continuismo da
diretoria. Seria isso democrático. E veio a eleição para o Museu. E a diretora perdeu. Mas ficou”. Na mesma
matéria, desqualificava-se também a sua capacidade científica: “Ela não tem espírito científico. Aliás, não admira.
De sua lavra, existem dois ou três trabalhos sobre cerâmica marajoara. Publicou-os há vinte anos mais ou menos.
De lá para cá, nada fez sobre ciencia” – CAETANO, Daniel. “Anarquia organizada no Museu Nacional”. Diário
de Notícias, 13/10/1946 (capa de domingo), Cx 07 – envelope 18 – 06/13, CHAT, SEMEAR, MN. Em manchete
da Folha do Dia, lê-se a respeito da atuação de Torres: “reminiscências do Estado Novo – perseguição aos
cientistas – preterição de nacionais por estrangeiros – fechado ao público – os técnicos patrícios dirigem-se ao
general Dutra” – “Pedida a intervenção no Museu Nacional”. Folha do dia. Rio de Janeiro, 24.06.1946, Pasta
“Inventários”, AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
583
Provocado pelos naturalistas mencionados acima, o Senador Hamilton Nogueira, em requerimento transcrito
no Jornal do Comércio, afirma, por exemplo: “Mas, o que é mais grave, Sr. Presidente, vem a ser o caráter
nitidamente fascista que predomina no Museu Nacional” – “O Museu Nacional”. Jornal do Comércio. Rio de
Janeiro, 24.06.1946, AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ. A propósito de outra
entrevista concedida pelo naturalista Newton Santos, o Diário da Noite também se posiciona da seguinte forma:
“Depois que conquistamos as liberdades e garantias democráticas, que a imprensa ficou livre, que o 177 foi
derrubado, sendo, aos poucos, as irregularidades de toda ordem sendo denunciadas, foi possível avaliar os males
causados pelo regime filo-fascista imposto ao nosso povo em novembro de 1937 [...]”, associando assim a ditadura
varguista ao modo pelo qual Torres viria conduzindo a direção do Museu Nacional – “O caso do Museu Nacional:
356

ideário misógino de nossa sociedade patriarcal não foi suficiente para a destituição de Torres
de seu cargo, que levou as obras a cabo, renovou as exposições do Museu Nacional e se manteve
atuante no campo antropológico e indigenista por um bom tempo ainda depois disso.
A condição de gênero de Torres é, no entanto, para a minha surpresa inicial,
pouquíssimo evocada no interior do amplo conjunto de documentos que nos permitem constatar
a sua centralidade relacional à qual me referi acima. Isso se torna ainda mais surpreendente se
nos lembrarmos que, no caso dos trânsitos interamericanos, por exemplo, a circulação feminina
era estritamente regulada em função de um papel de gênero restrito à condição de esposa
charmosa e bem-comportada, algo abertamente enunciado em diversas correspondências
citadas neste trabalho, em especial no “Capítulo 8”. Pode ser que a desconfiança inicial de
Edison Carneiro em relação a Torres, confessada em algumas cartas que ele trocou com Ruth
Landes,584 também se devesse ao fato de que ela era percebida, antes de qualquer outra coisa,
como uma mulher ocupando um lugar que “deveria ser de um homem”. A única carta que
encontrei na qual Torres expressa o fardo de pressões que vinha sofrendo justamente por ser
mulher foi aquela citada no “Capítulo 7”: “eu não posso esquecer que a falha de um tal plano
seria explorado por aqueles que não acreditam no interesse em desenvolver o trabalho científico
e refletiria na atenção garantida ao trabalho científico, além de resultar na depreciação do
nosso museu e de minha habilidade feminina”.585 No mais, o que se encontra nos documentos
abrangidos por esta pesquisa são algumas poucas menções ao charme de Torres, como em um
comentário tecido por William Berrien, algo que, como também já vimos, era bastante
apreciado no interior das circulações interamericanistas.586
Foi por ocasião da morte de Torres, em 1977, já num outro contexto, portanto, que
o silêncio acerca da sua feminilidade foi quebrado por alguns de seus pares.587 Torres morreu

mais um atentado está sendo praticado á cultura do povo”, Diário da Noite, s.d. [1946], Cx 07 – envelope 18 –
06/13, CHAT, SEMEAR, MN.
584
Vide “Capítulo 5”, seção “5.2. Entre os Estados Unidos e o Brasil”, nota 457, p. 302-303
585
Carta de Torres para Steward, 19 de abril de 1944, “Brazil, General, 1942-51”, Series 5. Areal Subject File,
Box 12, RISA, NAA, SI. “I cannot forget that the failure of such a plan would be explored by those who do not
believe in the interest in developing scientific work and would reflect upon the attention granted to scientific work,
besides resulting in depreciation of our museum and feminine ability”. A data desta carta indica, no entanto, que
Torres já vinha sofrendo com o machismo de seus “colegas” bem antes do processo administrativo contra ela
instaurado pelo grupo de Newton Mendonça e Otho von Leonardos em 1946, conforme indicado por Corrêa
(2003).
586
Num bilhete manuscrito de William Berrien para Henry Allen Moe, de 2 de novembro de 1950, o remetente
acrescenta depois de sua assinatura, após ter informado que Torres havia pegado um certo material com ele, que
Torres era “a very chaming woman!” – “Latin America: Torres (#1 - #2)”, HAMP. Edison Carneiro também
comenta, na correspondência trocada com Landes e citada na nota 585, sobre a beleza da diretora do Museu
Nacional.
587
Agradeço à historiadora Cristina Meneguello por me alertar para o fato de que em outros contextos relacionais
e discursivos a figura de Torres era evocada como um símbolo do orgulho feminino burguês brasileiro, como nas
357

num quase total ostracismo em Itaboraí, RJ, sua cidade natal e à qual se recolhera depois de
exauridos os seus esforços em prol das causas antropológicas e indigenistas que defendia.588
Paschoal Lemme, que trabalhara na Seção de Extensão Cultural do Museu Nacional quando de
seu já mencionado fechamento temporário na década de 1940, evidenciou a condição de gênero
de Torres ao escrever que “só mesmo a coragem dessa mulher extraordinária poderia enfrentar
situação dessa natureza”,589 referindo-se aos ataques por ela sofridos naquele período.
No entanto, foi o poeta Carlos Drummond de Andrade aquele que, dentre os pares
de Torres, mais ousou ao tentar abordar a sua silenciada feminilidade. Jogando com os papéis
prescritos, sobretudo por meio das mídias impressas, às mulheres burguesas que pertenceram à
geração da falecida diretora do Museu Nacional, Drummond escreve o seguinte:

Mulher admirável, que não se satisfez apenas em ser bela (e foi das mais convincentes
belezas do Rio de Janeiro) ela se casou com a antropologia, como outras mulheres de
grande beleza se casam com o mundanismo ou com a fortuna. Uma antropóloga não
costuma ser notícia social, por maiores que sejam seus méritos, e Heloísa os tinha em
medida alta. Amava mais os índios e seus vasos, urupemas e ritos, do que o fugidio
destaque nos salões. Os meios científicos estrangeiros a reverenciavam, enquanto
muita gente por aqui veria nela, quando muito, a zelosa diretora do Museu Nacional,
tratando de interesses da instituição nos labirintos burocráticos, a reclamar verbas, a
organizar reuniões de especialistas, a promover a pesquisa e estudo dos valores
culturais primitivos da Amazônia. 590

Para Drummond, o dever do matrimônio e os anseios tipicamente reservados às mulheres de


sua classe social foram subvertidos pela personalidade de Torres, algo que a teria alçado a uma
posição de destaque em relação às outras mulheres de seu tempo. Quando o poeta se refere à
“beleza” de sua homenageada, ele também o faz ressignificando os padrões estéticos veiculados
pelo senso comum machista:

Heloísa foi devidamente esquecida, como de praxe entre nós, e só há poucos dias
alguém falou nela, com merecido carinho. Foi Afonso Arinos de Melo Franco, em
página do seu excelente diário-memorial, que acaba de aparecer sob o título Alto-Mar
Maralto, evocando ‘o seu belo sorriso de moça’. E os olhos também, seus olhos
maravilhosos, que impressionaram Jean-Louis Barrault quando, em um almoço no

ocasiões em que ela foi objeto das matérias da revista O Cruzeiro. Mariza Corrêa também lembra que parte da
imprensa de seu tempo a considerou parte do movimento feminista, embora fosse pouco provável que as feministas
de então a tomassem como participante de seu grupo (CORRÊA, 2003, p. 160).
588
Tanto Pachoal Lemme quanto Carlos Drummond de Andrade, os quais citarei a seguir, somente tomaram
conhecimento do falecimento de Torres após receberem um singelo convite para uma missa de 7º dia em sua
homenagem.
589
LEMME, Paschoal. “Carta dos Leitores. Heloísa Alberto Torres”. O Globo. Rio de Janeiro, 13.03.1977.
TORRES, Heloísa Alberto, pasta “Personalidades”, AA02/M003/P01/Cx. 0125/ P. 0404/, Arquivo Central do
IPHAN, RJ.
590
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Lembrança de Heloísa”. Jornal do Brasil, p. 8, caderno B, s.d. TORRES,
Heloísa Alberto, pasta “Personalidades”, AA02/M003/P01/Cx. 0125/ P. 0404/, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
358

qual eu estava presente, sentou-se do seu lado. ‘Qui est cette belle femme?’ A esse
tempo Heloísa já engordara bastante, mas conservava o sinal imperecível de uma
formosura que não era só de corpo, mas também de espírito. 591

Drummond também encontra em Torres um novo significado para o


comportamento emocional tido como tipicamente feminino:

Um dia vi Heloísa chorar. Era um sábado, ainda se trabalhava nas repartições até certa
hora, e vejo-a chegar no gabinete de Capanema com ar agitado que não era do seu
natural. Às primeiras palavras que me diz, lágrimas brotam-lhe dos olhos: o Museu
pegara fogo! O antigo paço de São Cristóvão, aquele prédio venerável em que tantas
riquezas da ciência estavam acumuladas, de par com inapreciáveis testemunhos do
passado, destruído pelas chamas, que querem lá saber de tradições históricas nem de
coleções científicas! Na realidade, era um foguinho modesto, que chamuscara
algumas paredes, sem afetar a estrutura do casarão. Não importa: a diretora, enérgica,
mulher de fibra comprovada, cedera lugar à emotividade feminina, que extravasava
em soluços o amor ao Museu, no qual transcorria toda a sua vida consagrada à
antropologia cultural.

Torres era uma mulher, mas Drummond pretende mostrar que isso não era uma
condição impeditiva para que ela também fosse, ao lado dele próprio, de seus(uas) colegas do
SPHAN, dos(as) naturalistas do Museu Nacional e dos(as) antropólogos(as) de todo mundo,
um autêntico sujeito da modernidade, ou, como prefere o poeta, “uma das pessoas reais deste
país, em que tantos seres irreais, frutos da propaganda ou do acaso, são celebrados na qualidade
de mitos do dia”.592 O fato de ser mulher, o que, para Drummond, marcava justamente a
originalidade de sua atuação como sujeito da modernidade brasileira, era justamente aquilo que
era silenciado em meio às relações cotidianas com os pares.
Esse silenciamento era possibilitado, dentre outras coisas, pelo uso do (neste caso)
excêntrico pronome de tratamento “Dona”, ao invés de “Dra.” ou “Profa.” – como seria
esperado em função do tratamento dispensado aos seus pares homens. “Dona”, em geral, é um
termo usado para um tratamento respeitoso em relação a mulheres mais velhas no interior de
sociedades patriarcais. Seu significado, no entanto, pode variar em função do contexto de uso,
sendo utilizado, em alguns casos, de maneira depreciativa.593 Neste caso, o termo “Dona”
parecia tentar resolver o problema das já “poluídas fronteiras entre o masculino e o feminino”,
reconhecendo o lugar de autoridade de Torres sem, contudo, equipará-la aos seus pares homens.

591
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Lembrança de Heloísa”. Jornal do Brasil, p. 8, caderno B, s.d. TORRES,
Heloísa Alberto, pasta “Personalidades”, AA02/M003/P01/Cx. 0125/ P. 0404/, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
592
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Lembrança de Heloísa”. Jornal do Brasil, p. 8, caderno B, s.d. TORRES,
Heloísa Alberto, pasta “Personalidades”, AA02/M003/P01/Cx. 0125/ P. 0404/, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
593
Uma discussão ao mesmo tempo interessante e instrutiva a esse respeito pode ser encontrada em
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/02/06/Qual-a-origem-da-express%C3%A3o-
%E2%80%98dona%E2%80%99-e-as-quest%C3%B5es-que-ela-desperta. Acesso em 25/03/2018. (Agradeço à
linguista Nayhara Pereira Thiers Vieira por me chamar a atenção para a complexidade deste uso linguístico.)
359

O “Dona”, portanto, indicava que ela não seria na verdade uma mulher stricto sensu, mas algo
neutro, uma mulher que perderia a sua feminilidade autêntica ao ocupar um lugar masculino,
uma mulher excêntrica, de modo semelhante às mulheres que, viúvas, assumiam o lugar de
mando do patriarca, apossando-se, ou seja, tornando-se donas de algo que, a princípio,
pertenceria aos homens, mas, em algumas situações especiais, poderiam ser reivindicados por
mulheres. Podemos entender este uso do pronome de tratamento dona como a extensão dos
processos de produção de sujeitos da modernidade para um setor da humanidade que antes
ocupava um lugar de objetividade: a mulher entendida como objeto da ação civilizatória de seus
maridos ou, quando muito, de uma edução para moças.594 Em casos como este, uma mulher
poderia se tornar também um sujeito modernizador, desde que sua condição feminina fosse
devidamente silenciada.
Ao morrer, logo a memória da antropologia, do patrimônio, enfim, do processo de
modernização nacional, esforçar-se-ia por suprimir a incômoda memória representada por essa
e por outras “donas”. Mas é justamente por debaixo desse peculiar pronome de tratamento que
Drummond reencontrará a feminilidade de Torres, recriando a possibilidade de que sua
subjetividade fosse reinvocada como moderna e como feminina:

Heloísa se foi, envolta em silêncio total do Brasil, e é para quebrar esse silêncio que
pela primeira vez a trato assim, sem o convencional ‘Dona’ que na conversa precedia
sempre o seu nome. Não é mais Dona Heloísa, amiga de nós todos seus compatrícios
mas principalmente dos índios, servidora exemplar do país, discreta e sábia, como os
verdadeiros sábios costumam ser. E, por isso mesmo, esquecida. Como cresce o
Brasil, e como, crescendo, esquece depressa, depressa!

O “crescimento do Brasil”, ou seja, a sua modernização, modernização esta pela


qual lutou a própria Heloisa Alberto Torres ao lado de Drummond e de outras subjetividades
modernas, é a mesma modernização que ilumina a história de algumas de suas subjetividades
ao passo que suprime outras em seus arquivos. Drummond talvez tenha inaugurado, aqui, uma
possibilidade de desdobrar a subjetividade moderna de Torres em outras subjetividades

594
Guacira Lopes Louro nos lembra que “Ler, escrever e contar, saber as quatro operações, mais a doutrina cristã,
nisso consistiam os primeiros ensinamentos para ambos os sexos; mas logo algumas distinções apareciam: para os
meninos, noções de geometria; para as meninas, bordado e costura” (LOURO, 2006, p. 444). Mesmo nas classes
mais abastadas essa distinção era muito clara: “Para as filhas de grupos sociais privilegiados, o ensino da leitura,
da escrita e das noções básicas da matemática era geralmente complementado pelo aprendizado do piano e do
francês que, na maior parte dos casos, era ministrado em suas próprias casas por professoras particulares, ou em
escolas religiosas. As habilidades com a agulha, os bordados, as rendas, as habilidades culinárias, bem como as
habilidades de mando das criadas e serviçais, também faziam parte da educação das moças; acrescida de elementos
que pudessem torná-las não apenas uma companhia mais agradável ao marido, mas também uma mulher capaz de
bem representá-lo socialmente. O domínio da casa era claramente o seu destino e para esse domínio as moças
deveriam estar plena mente preparadas” (LOURO, 2006, p. 446).
360

modernas femininas ao reautorizá-la, quando ela já parecia esquecida entre nós – e na condição
de um dos arcontes-mores da modernidade brasileira – como subjetividade exemplar de uma
modernização brasileira ainda por se fazer. O poeta mineiro forneceu, assim, as lentes que
permitem captar o espectro daquele astro anômalo e o poder que ele ainda pode exercer sobre
nós. Vejamos que tipo de articulação entre os conceitos de civilização e cultura permitiu a
produção dessa subjetividade moderna sui generis.

9.2. UMA REARTICULAÇÃO PARA OS CONCEITOS DE CIVILIZAÇÃO E

CULTURA

Discorrendo sobre os contatos entre povos “civilizados” e “primitivos” no Brasil


diante da audiência do Rotary Club do Rio de Janeiro, em 10 de janeiro de 1968,595 Heloisa
Alberto Torres diz o seguinte, referindo-se inicialmente aos índios brasileiros ao tempo do
descobrimento:

Formavam eles sociedades humanas, com sistemas econômicos diferentes do nosso,


do da civilização ocidental, organização familiar, forma de governo e religião
próprias. Em suma, eram grupos que estavam, por assim dizer, situados em etapas
mais elementares de desenvolvimento, atrasados, em relação à nossa situação, de
alguns milênios.

Não obstante o “atraso cultural” em relação aos “povos civilizados” europeus, ou à


“nossa situação”, a cultura indígena apresentaria características “perfeitamente adaptadas ao
clima tropical”. Percebe-se, desde já, o caráter antropogeográfico da cultura segundo a acepção
de Torres. Domingues destaca esse traço “ecologista” que não escapou ao Museu Nacional,
tomando como base a proposta, elaborada por Torres, de um inquérito nacional sobre as ciências
sociais e antropológicas no Brasil.596 As culturas indígenas são naturalizadas genericamente,
desse modo, no solo do território nacional.
No entanto, segundo a palestrante, “obviamente, considerando o estágio cultural

595
“O índio e a assistência que cumpre dar-lhe. Palestra da Professora Heloisa Alberto Torres – Rotary Club do
Rio de Janeiro”, 10 de janeiro de 1968. Envelope 04, caixa 05, Coleção Heloisa Alberto Torres, Seção de Memória
e Documentação, Museu Nacional, UFRJ (doravante apenas CHAT, SEMEAR, MN).
596
“De fato, o estudo da cultura relativamente ao meio geográfico, como objeto da antropologia, impunha-se nos
anos 1930 e 1940. Essa prática antropológica – ou etnológica – ligava-se também à nova ciência, a ecologia, e foi
chamada de antropologia ecológica, o que não foi estranho ao Museu Nacional, como se vê nos trabalhos de Luiz
de Castro Faria, conforme ele mesmo salienta no projeto de pesquisa que fez para obtenção de bolsa da UNESCO,
em 1951. Heloisa Alberto Torres descrevia o antropólogo como um cientista engajado nos problemas e nas
questões sociais e, assim, deixava transparecer uma contradição da antropologia: o antropólogo, tal como descrito,
não podia fazer ciência neutra” (DOMINGUES, 2010, p. 635).
361

mais desenvolvido [Torres risca o termo “superior”] em que nos encontrávamos, em breve
passamos a exercer, sobre os índios, a proteção”.597 Mencionando as iniciativas coloniais e
imperiais, Torres afirma que

a verdadeira proteção é obra leiga da República, é obra de Rondon. De Rondon e de


alguns de seus amigos, militares, sem dúvida, mas que sobre serem militares, eram
positivistas.
Foi, portanto, Cândido Mariano da Silva Rondon, o criador do Serviço Nacional de
Proteção aos Índios e o fez de acordo com as normas educacionais correntes na época,
em que o paternalismo tinha força predominante, mas cuja essência ainda hoje é válida
podendo resumir-se nos seguintes itens:
a) respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades tribais;
b) garantia à posse permanente das terras habitadas pelos índios e ao usufruto
exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes;
c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contato com a
sociedade nacional;
d) resguardo à aculturação do índio, de forma que as mudanças socioeconômicas se
processem a favor de seu desenvolvimento.

Torres prescreve assim, a partir da produção de uma subjetividade exemplar, como deveriam se
portar os sujeitos da modernização nacional diante das culturas objetivadas do nosso território.
O sujeito se confunde com a própria ação do Estado em relação aos objetos culturais, e assim
essa subjetividade pode se desdobrar, investindo-se na ação de outras pessoas que passam a se
identificar com os mesmos valores modernizantes. Era necessário preservar essas culturas antes
que o avanço da civilização as suprimisse, e esse caráter protecionista inevitavelmente remete
à concepção de modernidade da antropologia americanista cujos desdobramentos no Brasil
foram evocados na “Parte I”. Conhecer os pontos de vista relativos das outras culturas seria a
forma de eliminar os aspectos destrutivos, porque homogeneizadores, da civilização moderna.
É muito significativa a conexão entre as subjetividades de Heloisa Alberto Torres e
Rondon, sobretudo no que tange à compreensão do papel do “civilizado” em relação ao
indígena. Até mesmo a orientação positivista era comum: segundo Domingues, tanto Torres
quanto Roquette-Pinto “se identificavam pelo forte sentimento de nacionalidade e,
teoricamente, pela orientação positivista, para quem as ciências, neutras e internacionais,
constituíam a solução dos problemas do país” (DOMINGUES, 2010, p. 629). No entanto, o
desdobramento dessas subjetividades demanda inovações produtivas adaptadas aos novos
contextos, e talvez isso explique uma sutil distinção em relação ao protecionismo de Rondon:
a ênfase no papel do cientista. Torres agia a partir do campo científico, que gozava, cada vez

597
“O índio e a assistência que cumpre dar-lhe. Palestra da Professora Heloisa Alberto Torres – Rotary Club do
Rio de Janeiro”, 10 de janeiro de 1968. Envelope 04, caixa 05, Coleção Heloisa Alberto Torres, Seção de Memória
e Documentação, Museu Nacional, UFRJ (doravante apenas CHAT, SEMEAR, MN).
362

mais, de uma autonomia relativa em relação à política, sem abrir mão, contudo, de disputar os
rumos da nação com base num discurso de “neutralidade”.598 As Forças Armadas, que haviam
logrado uma autonomia semelhante apoiadas na ideologia positivista, agora viam nos
desdobramentos de seu próprio posicionamento, ou seja, a defesa do desenvolvimento das
instituições científicas nacionais, os limites de sua própria atuação política. Por outro lado, a
profissionalização das Forças Armadas nos anos 1930 produziu uma coesão interna cada vez
mais fortalecida, que se ligava à ideologia da “segurança nacional” elaborada por seu estado
maior, o que também contribuiu para o enfraquecimento de frações internas mais autônomas
como aquelas produzidas, ao longo da Primeira República, nos seus extratos médios.599 O
discurso rondoniano representava assim, cada vez menos, o discurso da própria corporação.
Heloisa Alberto Torres introduziu no SPI a sua Seção de Estudos, que depois foi
transferida para o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), órgão consultivo criado
em 1939 a fim de orientar as ações do SPI. Naquela mesma palestra proferida para o público
do Rotary Club do Rio de Janeiro, Torres afirma que “não houve alteração da política
(teoricamente falando), da filosofia de Rondon; o que o CNPI propôs foi a modificação –
consoante normas científicas da educação moderna – dos métodos de aplicação dessa
política”. É interessante que as novas concepções educacionais a que se refere Torres
inspiraram-se naquelas que passaram a ser propostas a partir de então pela UNESCO, órgão que
se ligará posteriormente ao Museu Nacional no intuito de criar o Instituto Internacional da
Hileia Amazônica (IIHA) (DOMINGUES e PETIJEAN, 2010). Ao protecionismo americanista
soma-se, na fala de Torres, mais esse aspecto que lhe era característico: o internacionalismo
científico.
Trata-se, desse modo, de uma postura extraída da própria epistemologia moderna,
a partir da qual somente uma ciência progressista, neutra e, portanto, internacional, seria capaz
de efetivamente modernizar a nação. Isso explica não somente a aproximação de Torres com a
UNESCO para o conhecimento e proteção internacional da Amazônia, mas também o apoio
que ela ofereceu, antes, por meio de seus canais relacionais, aos cientistas estrangeiros em suas
expedições ao país, sobretudo quando esteve à frente do Conselho de Fiscalização das
Expedições Científicas e Artísticas no Brasil (CFE, órgão a respeito do qual me deterei com
mais vagar quando for tratar, no próximo capítulo, das coleções protegidas pelo Museu
Nacional).

598
A respeito dessa autonomia relativa conquistada pela ciência, seja ela entendida como “comunidade” ou como
“campo”, cf. KUHN, 1998 e BOURDIEU, 1983.
599
Sobre o processo de autonomização do campo militar no Brasil, cf. CARVALHO, 2006 e CASTRO, 2000.
363

A ciência, em especial a antropologia, se afigura, portanto, como valor supremo. É


só por intermédio dela que a nação pode se modernizar: “em face dessa complexidade da
estruturação das culturas, do seu caráter eminentemente dinâmico, nenhum país, que se tenha
em conta de progressista, pode fazer tábua rasa do que tem sugerido estudo teórico dos
problemas da cultura e do que, em aplicação, vem tentando realizar a Antropologia”.600 Assim,
o patrimônio cultural, para Torres, era também científico.
Mas de que maneira o conceito de cultura seria articulado no seio da ciência
antropológica pela qual advogava? No início de um esboço para um guia das exposições
antropológicas do Museu Nacional que seriam reinauguradas em 1947, podemos encontrar
definidas por Torres a Antropologia e a Etnografia, em seus sentidos estritos:

Como “Ciência do Homem”, a Antropologia se propõe a estudar:


a) Como Antropologia propriamente dita, os problemas da descendência humana, a
classificação das raças, as variedades humanas. Baseia-se na Anatomia Comparada,
na Antropometria, na Craniologia e em outras ciências descritivas do corpo humano e
de suas funções.
b) Como Etnologia: todos os aspetos do produto das atividades humanas ou, numa
palavra, da cultura. Assenta os seus fundamentos na Etnografia, na Linguística, na
Arqueologia, na Musicologia, na História das Artes Técnicas, das Artes Plásticas,
etc.601

Se nesse documento a divisão dos dois ramos do conhecimento aparece de forma


mais ou menos clara, definindo dois objetos da ciência nacional, isto é, o homem e a cultura,
não é isso que ocorre, na prática, na atuação cotidiana do Museu. Numa outra palestra, Heloisa
Alberto Torres dizia o seguinte: “uma particularidade feliz presidiu à eclosão dos ramos das
ciências sociais constituídas em tempos mais recentes; já nessa época o reconhecimento
crescente do entrecruzamento de todas as trilhas humanas estabelecia as condições para que as
tradicionais barreiras de isolamento se esboroassem por completo”.602
Além de louvar esse entrecruzamento das ciências, Torres ainda afirma o seguinte:

embora aqui interesse somente o que hoje se chama de Antropologia Cultural ou


Antropologia Social, apenas excepcionalmente a conclusão de um estudo apresentaria
segurança se um aspecto biológico do problema não fosse também considerado com
a atenção devida, não só na significação que porventura imprimisse aos fundamentos
desse problema como na correlação eventual com fases ou aspectos específicos do
mesmo.603

600
Envelope 04, caixa 05, CHAT, SEMEAR, MN. Não há título nesse documento. Todavia, o seu último parágrafo
não deixa dúvidas quanto a tratar-se de uma palestra, ainda que não seja possível afirmar a que público tenha sido
dirigida.
601
Envelope 08, caixa 05, CHAT, SEMEAR, MN.
602
Envelope 04, caixa 05, CHAT, SEMEAR, MN.
603
Envelope 04, caixa 05, CHAT, SEMEAR, MN.
364

Em outro documento (o projeto de criação de um “Instituto de Antropologia” do


Museu Nacional), Heloisa Alberto Torres se pergunta: “como poderá a Cultura ignorar que tem,
como substratum necessário, o Homem na diversidade de formas, aptidões e temperamentos?
Como poderá o físico-antropologista desconhecer que os hábitos culturais podem influir no
aspecto físico das populações que estuda?” Em seguida, ainda afirma o seguinte:
“desconhecimento ou esquecimento de qualquer política eugênica visando a um melhor futuro
para a humanidade não é possível sem o justo conhecimento das populações presentes e que
este será sempre falho sem a visão do passado, sem a noção clara da sua gênese e evolução”.604
As citações aqui trazidas bastam para mostrar que a cultura humana é entendida em
seus aspectos mais amplos numa ciência antropológica que, se não abandonou de todo a paixão
pelas caveiras, havia absorvido as conclusões mais recentes da etnologia ou da antropologia
cultural. Se as falas da diretora do Museu Nacional evocam o culturalismo historicista de Franz
Boas, com quem já havia se correspondido pessoalmente por diversas vezes, por outro lado ela
parece continuar se inspirando na antropologia física de feição neolamarckiana desenvolvida
no Brasil por Roquette-Pinto, ao mesmo tempo em que está atenta à antropologia ecológica que
se desenvolvia nos EUA – como vimos nos capítulos “6” e “7”, Torres conhecia muito bem
Julian Steward. A “eugenia”, que via de regra se confunde com “branqueamento” das
populações não brancas (ou mesmo o seu extermínio), em função das origens dessa corrente de
pensamento no século XIX, podia significar também uma política de desenvolvimento
biológico e cultural não necessariamente genocida. No caso dos povos indígenas, uma política
eugênica, segundo a acepção empregada por Heloisa Alberto Torres, significaria a garantia de
seu desenvolvimento físico e cultural autônomo de forma harmônica com seu meio natural.
Cada “cultura” poderia, portanto, progredir para o estágio “civilizado” dentro de suas próprias
especificidades antropogeográficas ou eco-antropológicas.
O aspecto evolutivo dessa noção de cultura explica também o interesse dirigido às
culturas indígenas. O que causava fascinação era seu estágio primitivo de desenvolvimento
civilizacional: o território brasileiro abrigaria uma incomensurável riqueza científica, uma vez
que o conhecimento desses diversos estágios civilizacionais de cada cultura permitiria lançar
luz no desenvolvimento civilizacional humano geral. Segundo as palavras de Heloisa Alberto
Torres, extraídas do mesmo documento citado anteriormente, “A história prolongada por uma
visão dos fatos da proto-história e da pré-história desenrola à observação do antropólogo uma

604
“Justificação”. Envelope 100, caixa 14, CHAT, SEMEAR, MN.
365

sequência tão extensa do problema da cultura que vão surgindo novas teorias a seu respeito,
teorias que se vão encaminhando para uma interpretação neoevolucionista da cultura”.
Todavia, é um documento de 1949, produzido por Torres “como contribuição à
festa do centésimo vigésimo quinto aniversário do Jornal do Comércio”, 605 que nos dá uma
imagem mais clara a respeito da forma por meio da qual diretora do Museu Nacional articulava
os conceitos de civilização e cultura. Em primeiro lugar, Torres problematiza o uso do termo
“cultura autóctone”, de um modo que nos lembra em muito as pesquisas histórico-culturais
levadas a cabo por Franz Boas e Ruth Benedict na Columbia University por meio dos fundos
do Council for Research in the Social Sciences da Laura Spelman Rockefeller Foundation (vide
“Capítulo 5”):

Parece questão fora de dúvida que o grande desenvolvimento cultural das tribos
indígenas da América se processou no próprio território do Novo Mundo, mas daí a
dizer que todos os traços de cultura dessas populações são autóctones, na acepção que
em antropologia se dá à palavra, vai uma diferença.
Uma vez que não se encontrou, até o presente, prova de que o homem americano seja
autóctone e que se verificou mesmo não haver fundamento científico que
prognostique alguma cousa de positivo nesse sentido, é forçoso admitir que o têrmo
autóctone, encabeçando estas notas, tem apenas o sentido que se lhe dá em linguagem
corrente. Não deveria, na verdade, chocar mais ao antropólogo do que a palavra
indígena, que usa frequentemente, sem atentar para a limitação etimológica ao seu
sentido. O indígena é o indivíduo gerado dentro; teria, a rigor, a mesma significação
que autóctone. Em botânica e zoologia o têrmo conserva ainda seu rigor etimológico;
em antropologia, a analogia com a palavra índio parece ter causado certa confusão.606

Essa postura lembra muito a atitude cética boasiana em relação à definição de


qualquer tipo de origem ou autenticidade cultural a priori. De acordo com essa concepção, o
termo “cultura” não é percebido como coisa estática, mas como algo sujeito a um lento processo
histórico de transformações devidas a fatores complexos:

Um dos processos na mudança da cultura – tema que, no momento, tanto ocupa a


atenção dos antropólogos – é a incorporação de novos elementos. De aparência tão
simples em seu enunciado, a questão de mudança de cultura cobre um campo muito
complexo. Nele entram em jogo os empréstimos, com as consequentes modificações
de seus elementos; as substituições de conceitos e os ajustamentos desses fenômenos.
Tais ajustamentos, modificações e substituições ocorrem tanto com relação ao modo
de utilizar os elementos materiais componentes da cultura, como em respeito à
constituição e arranjo dos diferentes organismos sociais (governo, família, etc.); ao
funcionamento, estrutura e configuração dêsses órgãos; aos artefatos inspirados em
tais conceitos, sejam êles símbolos, representados por objetos em suas formas reais
ou fantasiosas, brinquedos, vestimentas ou armas. 607

605
“Elementos autóctones na civilização do Brasil”. Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN. Estão
arquivadas apenas as duas primeiras páginas deste documento.
606
“Elementos autóctones na civilização do Brasil”. Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN.
607
“Elementos autóctones na civilização do Brasil”. Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN.
366

Um outro traço que chama a atenção na fala de Torres é a relação entre cultura e
meio físico, o que a leva a problematizar o conceito de “cultura material”, preferindo, em vez
dele, o termo “aspectos materiais de cultura”:

Os aspectos materiais da cultura são, dentre todos êsses traços, aquêles cuja origem
tem sido mais analisada entre nós. Os antropólogos costumam chamá-lo de traços de
cultura material ou elementos de cultura material, em oposição aos que denominam
traços ou elementos de cultura mental, espiritual ou não material. Essas expressões
parecem-me pouco recomendáveis. Elas podem levar a crer que a representação de
uma entidade sobrenatural em cerâmica, osso, pedra, madeira ou qualquer outra
substância seja um elemento de cultura material, tal como se poderia admitir que se
dissesse de uma flecha ou de um pilão. Nem compreendo que se fale em cultura
material. A cultura resulta de um processo mental em face de um ambiente físico
(geológico, vegetal, animal) ou psicológico, dêle recebendo sugestões e sofrendo
restrições. Tal processo repercute freqüêntemente na feitura de objetos destinados a
satisfazer a anseios puramente mentais ou espirituais ou a necessidade de caráter
estritamente utilitário, material. Êsses objetos, portanto, constituirão aspectos
materiais de cultura, mas nunca elementos de cultura material.608

Os artefatos apresentados nos mostruários do Museu Nacional a partir da gestão de


Torres compõem, portanto, aspectos de culturas percebidas como algo vivo, em constante
transformação seja em função do contato com o meio ou com outras culturas. Conhecer essas
culturas em seus diferentes aspectos significaria compreender a melhor forma de protegê-las
contra influências estranhas que pudessem perturbar o seu desenvolvimento natural. O
“civilizado” seria o(a) herdeiro(a) de um desenvolvimento cultural mais complexo que aquele
apresentado pelas culturas mais simples e que antecederam a presença dos europeus nas
Américas, e por isso ele(a) teria o dever de cuidar para que essas culturas desenvolvessem as
suas próprias “civilizações”. Fica implícito, desse modo, o pressuposto segundo o qual o
progresso civilizacional corresponde ao bem-sucedido desenvolvimento das diversas culturas
específicas que compõe o conjunto da civilização, conforme a tradição de pensamento também
presente no americanismo boasiano (vide “Parte I”). “Civilização”, portanto, é um termo
utilizado tanto como referência ao conjunto de conquistas artísticas, científicas e tecnológicas
das diversas culturas mais desenvolvidas do globo quanto a patrimônios específicos de culturas
dotadas de uma longa história evolutiva.
É verdade que, se era o desenvolvimento científico que media o grau de civilização
de um povo, nós ainda estaríamos, segundo Torres, um tanto atrasados. Conforme indicou numa
entrevista, “o índice da cultura e do vigor progressista de uma nação – diz inicialmente D.

608
“Elementos autóctones na civilização do Brasil”. Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN.
367

Heloisa – é expresso, na moderna organização do mundo, pela medida em que aplica o método
científico à resolução dos problemas humanos”.609 O desenvolvimento civilizacional de uma
jovem nação como a nossa dependeria, como não poderia deixar de ser, do grau de domínio da
natureza pelo conhecimento científico, ou, nos termos que tenho empregado nesta tese, do nível
de domínio de objetos por sujeitos da modernidade: “O meio biogeográfico para ser posto a
serviço dos interesses humanos – no presente, como no futuro, e não apenas com relação ao
homem do Brasil, mas tendo em vista os interesses superiores da humanidade – precisa ser
dominado, para tanto dizer, conhecido. E é exatamente o que nos falta”.610
A “cultura brasileira” poderia, de todo modo, ser entendida, neste contexto
semântico, como uma “civilização”:

Há, em nosso País, uma faixa relativamente pequena, em comparação com a extensão
territorial brasileira, na qual se distribuem os centros mais densamente povoados e
adiantados; esta seria, para muitos, o que se chamaria de zona da civilização
brasileira. Na verdade, pela facilidade de contacto com o exterior – que cada vez mais
se acentua – há possibilidade de receber tudo o que é forasteiro (coisas e pessoas) e
em consequência rapidamente adotam-se-lhes as idéias e assimila-se-lhes o
comportamento. A introdução de elementos estranhos é quase ininterrupta; não dá
margem ao processamento de uma harmonização, de um ajustamento, quer entre êsses
mesmos elementos, quer com os do meio em que se infiltram. Ao envez, vai se dando,
por sua acumulação precipitada, uma série de processos de desajustada imitação de
outras regiões do mundo e essa faixa vai ficando historicamente cada vez menos
brasileira.
O estudioso da cultura faz um conceito diferente do que seja a civilização
brasileira. Não esquece de que fora dessa faixa fica uma porção considerável da
população do País. Não pode ser excluída tôda uma gente (brancos, pretos, índios e
seus descendentes), cujo modo de viver constitui, para o conjunto da terra, além de
uma expressão econômica, às vezes considerável, certamente uma expressão de
vitalidade biológica e cultural da mais alta significação. Êsse patrimônio, resultante
de uma experiência ecológica centenária, se não milenar, decorreu do atrito entre o
meio biogeográfico pouco favorável à vida humana e o ímpeto de sobrevivência por
parte de populações que condições históricas situaram em localidades menos
accessíveis ou menos favoráveis.611

Seria, portanto, por meio do conceito de cultura que se poderia conhecer a civilização
brasileira. Essa civilização, isto é, esse patrimônio cultural acumulado pela “experiência
ecológica centenária, se não milenar”, dos diversos grupos que participaram da ocupação de
nosso território, também vinha sofrendo um processo de desajustamente em função de contatos
culturais estranhos e não pertinentes à vida no território nacional. Se o litoral apresentava a
“faixa de civilização brasileira” mais descaracterizada, em função da maior facilidade de

609
“É preciso que os brasileiros descubram o proprio Brasil”, O Globo, s.d. Cx 07 – envelope 18 – 06/13, CHAT,
SEMEAR, MN.
610
“É preciso que os brasileiros descubram o proprio Brasil”, O Globo, s.d. Cx 07 – envelope 18 – 06/13, CHAT,
SEMEAR, MN.
611
“Elementos autóctones na civilização do Brasil”. Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN.
368

contatos com o exterior, as regiões do interior ofereciam ainda exemplos de uma história ou
patrimônio de desenvolvimento cultural ainda bastante ajustado ao meio, que deveria ser
conhecido pela ciência civilizada e protegido por meio do aparato estatal.
Em síntese, caberia aos sujeitos da modernização da civilização brasileira conhecer
e proteger os patrimônios culturais do território nacional, tanto aqueles que os(as)
antropólogos(as) americanistas vinham identificando, ainda que erroneamente, como
“autóctones”, quanto aqueles passíveis de estudo pela “etnografia sertaneja”. As exposições
abrigadas no Museu Nacional cumpririam, portanto, tanto um papel pedagógico, no sentido de
municiar a população brasileira a tomar parte nessa necessária ação protetiva e de valorizar os
próprios aspectos da civilização brasileira, quanto de uma proteção imediata, ao abrigar em
suas salas alguns dos últimos remanescentes dos aspectos materiais de culturas já em vias de
extinção.

9.3. AS NARRATIVAS MUSEOGRÁFICAS DO MUSEU NACIONAL

A historiografia não é a única forma por meio da qual uma ideia de sentido histórico
pode ser apresentada narrativamente. As coleções museográficas também cumprem esse papel.
Ao ordenar no espaço os próprios artefatos do passado de modo a indicar como um determinado
aspecto da vida humana se desenrolou no tempo, por meio de uma disposição cronológica dos
objetos ou pela mera apresentação de uma alteridade apoiada no tempo ou no espaço, o museu
produz sentido de forma potencialmente mais eficaz que um texto de história, que apenas
consegue se referir indiretamente aos indícios apresentados em sua própria presença imediata
num museu. É assim que, ao mesmo tempo em que os artefatos são expostos no museu em
busca de um objeto invisível, a exemplo da própria nação, eles também produzem os próprios
sujeitos dessa busca. Cientistas, curadores(as), e, no caso específico das décadas de 1930 e
1940, naturalistas, conservadores(as), preparadores(as) etc., só assumem seus respectivos
papéis e condutas no contato e manejo daqueles artefatos museais.
Além disso, o museu, sobretudo em sua forma tradicional (à qual podemos ligar o
Museu Nacional do Rio de Janeiro), possui um apelo comunicativo especial que o aproxima do
mundo do sagrado. Está claro que os museus, tradicionalmente, foram pensados como espécies
de templos cívicos, dotados de uma arquitetura monumental e nos quais se deve adentrar com
respeito e devoção pelas relíquias únicas ali depositadas e exibidas. A própria necessidade de
deslocamento para tomar contato com o conhecimento à disposição em um museu lembra as
369

peregrinações às cidades santas, às quais os fiéis se dirigem em busca do sagrado. Desse modo,
os sujeitos produzidos nos museus ainda conquistam uma legitimidade que, por analogia,
portanto, poderíamos considerar quase sagrada: eles se tornam os arcontes responsáveis pelos
saberes sobre a nação.

Figura 2: Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro, RJ


(http://www.museunacional.ufrj.br/casadoimperador/img/Museu.jpg)

No caso do Museu Nacional, esse status que o aproxima do sagrado se tornou


bastante evidente quando o antigo palácio da Quinta da Boa Vista foi tomado pelo fogo em
1944. No jornal Correio da Manhã lê-se, por exemplo, a respeito do sinistro:

Por muitos motivos seria de lamentar profundamente que a ação destruidora do fogo
houvesse feito desaparecer aquela verdadeira relíquia tão cuidadosamente conservada
para a admiração das modernas e futuras gerações. O velho palácio de São Cristovão,
antiga residencia dos ultimos imperadores do Brasil, tem na historia patria uma
projeção que não pode ser ultrapassada por nenhum outro monumento. Foi a moldura
soberba de inúmeras e significativas cenas de nosso passado, razão porque hoje
desperta a mais fervorosa admiração.612

Mas, por sorte, “o fogo não destruiu senão pequena parte daquele templo de veneração ao
passado”.613 No próximo capítulo, veremos como esse sagrado valor de ancianidade do palácio
da Boa Vista podia, por vezes, entrar em conflito com os usos científicos que lhe eram
reservados pelo Museu Nacional. Por ora, vejamos como se constituiu historicamente as

612
“Devoradas pelo fogo algumas dependências do Museu Nacional: poupado á destruição, pela bravura dos
bombeiros, inestimavel patrimônio”. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 12.01.1944. AA01/M033/P01/Cx.
RJ104/P. 02, Série “Inventários”, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
613
“Devoradas pelo fogo algumas dependências do Museu Nacional: poupado á destruição, pela bravura dos
bombeiros, inestimavel patrimônio”. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 12.01.1944. AA01/M033/P01/Cx.
RJ104/P. 02, Série “Inventários”, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
370

relações entre o patrimônio etnográfico em forma de coleções, seus sujeitos e objetos por meio
das exposições do Museu Nacional.

9.3.1. Do Museu Real ao Museu Nacional: “nação e civilização nos trópicos”614

O “Museu Real” foi criado pelo Decreto de 06 de junho de 1818, por D. João VI,
num contexto de transferência do complexo institucional centralizador da Corte para o novo
centro tropical do Império Português. Assim se justifica, no texto legal, a criação dessa
instituição museológica:

Querendo propagar os conhecimentos e estudos das sciencias naturaes no Reino do


Brazil, que encerra em si milhares de objectos dignos de observação e exame, e que
podem ser empregados em beneficio do commercio, da industria e das artes que muito
desejo favorecer, como grandes mananciaes de riqueza: Hei por bem que nesta Côrte
se estabeleça hum Museu Real […].615

As “ciências naturais” são tomadas nesse decreto como condição da produção de


“riqueza” no Reino do Brasil por meio de seus três “mananciais”: o comércio, a indústria e as
artes. No entanto, “riqueza” deve ser apreendida aí tanto em seu sentido material quanto
simbólico. Do ponto de vista material, o estudo dos elementos naturais brasileiros deveria gerar
saberes úteis relacionados à exploração econômica do meio. Do ponto de vista simbólico, a
nação portuguesa precisava exibir um alto nível de conhecimento e de domínio da sua própria
natureza, exuberante, mas ainda pouco conhecida em suas possessões americanas, pois,
sobretudo a partir do Iluminismo, o grau de desenvolvimento científico e tecnológico de um
povo passa a ser visto como indicador do seu estágio civilizacional. Desse modo, os dois tipos
de riqueza concorriam para o mesmo fim: o engrandecimento da nação portuguesa, agora
centrada em seu domínio tropical.
O advento da independência política brasileira produziu questões fundamentais de
cunho identitário: em que medida a nova nação seria diferente de Portugal? Ela poderia se
equiparar às nações europeias? Manoel Salgado Guimarães (1988) nos forneceu importantes
elementos para compreender como esse problema foi processado por meio da historiografia
produzida no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). No século XIX, a vida social

614
Esta subseção é uma versão, com pequenas alterações, extraída do artigo “As coleções do Museu Nacional no
século XIX: patrimônio cultural e identidade nacional pela perspectiva dos naturalistas”, publicado nos Anais da
VI Semana Nacional de Museus na UNIFAL-MG (LOWANDE, 2014b).
615
Decreto de 06 de junho de 1818, AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Série “Inventários”, Arquivo Central do
IPHAN, RJ.
371

e política passava a ser organizada mundialmente em torno da ideia de um “concerto das


Nações” definidas por identidades e projetos específicos. No entanto, o modelo de nações
brancas europeias esbarrava na diversidade étnica do território brasileiro. Tratava-se de uma
população mestiça e desigual. Mas era necessário inventar uma cultura homogênea em que se
destacasse o que de europeu havia no Brasil, ou seja, a herança portuguesa da nova nação, e o
conhecimento que passou a se produzir sobre esse legado inseria-se igualmente num projeto de
dominação das elites detentoras do poder político e econômico do Estado-nação em processo
de cunhagem.
Guimarães demonstrou o modo pelo qual esse projeto ideológico foi construído por
intermédio das narrativas historiográficas produzidas no âmbito do IHGB. Tratava-se de uma
“concepção herdada do iluminismo, de tratar a história enquanto um processo linear e marcado
pela noção de progresso”, no qual se tentaria “recuperar a cadeia civilizadora, demonstrando a
inevitabilidade da presença branca como forma de assegurar a plena civilização”
(GUIMARÃES, 1988, p. 11). Desse modo, produziam-se tanto “histórias exemplares”,
sedimentando no panteão da história nacional a sua aristocracia branca, quanto se lançava mão
de um saber etnográfico a definir o “outro”, no caso os indígenas e africanos cuja
“inferioridade” demandaria a orientação pelo elemento branco.
O então “Museu Real” (que se tornaria em seguida “Museu Imperial” para,
finalmente, com o advento da República, passar a ser chamado de “Museu Nacional”) foi
encarregado de fornecer, portanto, as evidências materiais desse duplo discurso: o da opulência
nacional e o da elaboração racial de uma ideia de nacionalidade. E assim passou-se a produzir
no âmbito dessa instituição projetos próprios de construção de uma nação moderna nos trópicos.
A princípio era o modelo do “gabinete de curiosidades” que prevalecia na
organização das coleções do Museu Nacional. Na verdade, essa ordenação expositiva perdurou
ainda por muito tempo, como se depreende da matéria que o Correio da manhã do dia 9 de abril
de 1947 dedicou à reabertura da instituição após a reforma por que passou durante a gestão de
Heloisa Alberto Torres: “O Museu Nacional perdeu o seu aspecto de casa de bric-à-brac, com
mostruários apinhados de curiosidades que falavam mais aos olhos que à inteligência – para
adquirir a de uma verdadeira escola de Etnografia e História Natural”.616
Esse modo de expor objetos, no entanto, não deve ser considerado caótico ou
aleatório. Comum aos museus de “história natural” que se multiplicam no século XIX
(SCHWARCZ e DANTAS, 2008), na verdade esse modelo expositivo pautava-se na taxionomia

“O Museu em sua nova fase”. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 09 de abril de 1947. Série “Inventários”,
616

AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 03, Arquivo Central do IPHAN.


372

moderna fundada por Carl von Linné (1707-1778), em que, grosso modo, os artefatos são
dispostos lado a lado numa classificação hierárquica do mundo natural, numa gradação que vai
da menor para a maior complexidade. Trata-se, portanto, de um discurso museográfico muito
útil à perspectiva eurocêntrica que se forja como justificativa para a colonização de outros povos
durante o século XIX: o dominado é apresentado como o exótico inferior e incivilizado por
meio das coleções adquiridas nas viagens exploratórias do colonizador. Um exemplo
emblemático desse modelo expositivo é o conjunto de coleções obtidas pelo britânico James
Cook (1728-1779) e organizadas por Ashton Lever (1729-1788) no Leverian Museum, ou
simplesmente Holophusicon, à época um importante concorrente do British Museum
(KAEPPLER, 2011).
Luiz de Castro Faria, discípulo de Heloisa Alberto Torres, em documento que
produz para a reinauguração das exposições do Museu Nacional em 1947, destaca a respeito do
período português do Museu (1818-1822) o seu caráter utilitário, a pequena participação da
instituição na vida cultural da capital e a desorganização de seu acervo (FARIA, 1947).617
Heloísa Bertol Domingues também destaca o utilitarismo que marcou a instituição desde seu
início (DOMINGUES, 2010, p. 647). O acesso público era ainda muito restrito, pois a
mentalidade de “gabinete do príncipe”, acessível apenas aos espíritos supostamente mais dignos
e ilustres, ainda prevalecia. Exemplo disso é o decreto datado de 24 de outubro de 1821, no
qual determina-se o seguinte:

[...] que faculte a visita ao Museu, na quinta-feira de cada semana, desde as 10 horas
da manhã até 1 da tarde, não sendo dia santo, a todas as pessoas, assim estrangeiros
como nacionais, que se fizerem dignas pelos seus conhecimentos e qualidades; e que
para conservar-se em tais ocasiões a boa ordem e evitar-se qualquer tumulto, tem o
mesmo Senhor [o Conselheiro Inspetor Geral dos Estabelecimentos Literários]
ordenado pela repartição da Guerra que no referido dia se mandem alguns soldados
da Guarda Real de Polícia para fazer manter aí o sossego que é conveniente. (apud
FARIA, 1947, pp. 2-3)

No entanto, com o advento da independência política do país o acervo do Museu


vai tomando corpo e logo já começa a se distinguir pelo valor de raridade de suas coleções, pela
autoridade que começa a adquirir no que tange à produção de conhecimento sobre a flora, fauna
e populações autóctones do território nacional e pelo reconhecimento internacional por meio da
constituição de redes transnacionais de intelectuais. Castro Faria menciona a “célebre coleção
mineralógica de Werner”, que era o “orgulho do Museu Real e durante muito tempo foi
provavelmente a única coleção cientificamente organizada do seu acervo heterogêneo”. Além

617
Essa obra está disponível em AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Série “Inventários”, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
373

disso, com base no primeiro inventário das coleções da instituição, produzido em 1838 durante
a gestão de Frei Custódio Alves Serrão (1799-1873),618 Faria pôde afirmar que “já figuravam
ali quase todas as coleções exóticas que hoje possuímos, de quase nada acrescidas
posteriormente – a coleção egípcia [...]; a coleção africana; a coleção oceânica; a coleção da
América boreal – todas elas ainda em exposição atualmente” (FARIA, 1947, p. 5).
Ainda segundo Castro Faria é possível afirmar que as coleções indígenas já se
destacavam. Afiguravam-se, a princípio, como mais um grupo de objetos curiosos, mas logo
foram enriquecidas e se tornaram bastante significativas. Para tanto, concorreram os contatos
de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), ministro do Império, com os naturalistas
que percorriam o território brasileiro – a exemplo de Johann Natterer (1787-1843), Georg
Heinrich von Langsdorff (1774-1852) e Friedrich Sellow (1789-1831) –, “solicitando material
para o Museu e oferecendo como recompensa todas as facilidades oficiais, que pudessem
favorecer os seus trabalhos no interior das províncias” (FARIA, 1947, p. 3). Outra iniciativa
tomada no sentido de ampliação das coleções do Museu foi a circular dirigida aos presidentes
de província por Estevam Ribeiro de Resende (1777-1856), Ministro do Império e mais tarde
marquês de Valença, em que se determinava a remessa de “todos os produtos naturais dos seus
territórios” (FARIA, 1947, p. 4). No mesmo relatório de Serrão (1838), lia-se que as coleções
indígenas se compunham de “vestimentas; carapuças, cetros de penas matizadas de diferentes
cores; enfeites de forma as mais variadas; armas de caça, de pesca e de guerra e mais de
duzentos artefatos diferentes, peculiares a muitas tribos dos aborígenes do Brasil” (apud
FARIA, 1947, p. 5). Não se deve imaginar, contudo, que esses dados significassem especial
cuidado do Império para com a instituição museológica. Só depois de vários apelos as coleções
do Museu Nacional puderam contar com maiores cuidados, e os artefatos etnográficos foram
alocados numa divisão específica por força do regulamento de 3 de fevereiro de 1842, que
criava o setor “De numismática, artes liberais, arqueologia, usos e costumes das nações antigas
e modernas” (FARIA, 1947, p. 6).
De todo modo, podemos perceber que estava em movimento, ainda que de modo
tímido, uma política pública de produção de uma ideologia nacionalista baseada na opulência
nacional, na diferenciação dos povos e nas especificidades da nação brasileira. As “coleções
exóticas” mencionadas por Castro Faria, que antes ou pertenciam às coleções particulares dos
Orleans e Bragança ou foram arrematadas em hasta pública, nos parecem figurar no Museu

618
Nomeado em 1828 para o cargo de diretor do Museu, Frei Custódio, professor de física e de química na Escola
Militar, “viria em princípio”, segundo Castro Faria, “dar maior realce ao papel de consultor sobre matérias de
interesse econômico que o Museu desempenhava desde a fundação” (FARIA, 1947, p. 4).
374

como que por uma espécie de imitação dos impérios europeus no que diz respeito à exibição do
poder pela espoliação simbólica dos povos dominados. É certo que os artefatos do Museu não
foram adquiridos pela guerra ou pelo patrocínio de expedições científicas internacionais
próprias, mas ao menos poderiam dar assim a impressão de colocar o Império do Brasil ao lado
das nações colonialistas, e não das colonizadas.
Já as coleções advindas dos “produtos naturais” do território nacional – e aqui é
necessário incluir os próprios indígenas e a sua “cultura material”, pois que o “outro” à época
era um objeto de estudo da história natural –, deveriam ter o encargo, nos dizeres de Ladislau
Netto (1838-1894), de “ilustrar o povo, dando-lhe pela melhor classificação e disposição dos
objetos que possuía uma ideia aproximada dos dons e magnitudes da natureza de sua pátria”
(apud FARIA, 1947, p. 4). As coleções ameríndias merecem especial atenção, pois elas vão
tomando corpo no Museu Nacional ao mesmo tempo em que se começa a esboçar uma cultura
“indianista” no país, valorizadora do “tronco tupi”, seja por meio do IHGB ou de uma literatura
romântica idealizadora do elemento autóctone – nos moldes da percepção idílica do mundo
medieval europeu em suas manifestações literárias românticas.
A partir dos anos de 1840 é que o Museu Nacional começa a adquirir um papel
realmente estratégico na tarefa mais ampla de produção de uma ideologia nacionalista. Em
primeiro lugar, essa instituição estava diretamente ligada à descoberta de riquezas naturais
nacionais, por intermédio de expedições ao interior do país, especialmente agrícolas e minerais,
realizadas a partir da década de 1850 (KEULLER, 2008, p. 90). Por outro lado, o conhecimento
das populações indígenas passava a ser valorizada, como já assinalei, em meio a um cenário
intelectual marcado por um movimento romântico, em que se prezava tanto pelas riquezas
naturais do país quanto pelo conhecimento das populações “exóticas” de seu interior, sobretudo
num momento em que se discutia a viabilidade de substituição da mão de obra escrava pela
indígena (KEULLER, 2008, p. 55).
É preciso levar em conta também a inserção do Museu Nacional na política
econômica brasileira de então. O Brasil portava-se como exportador de matérias-primas no
cenário econômico mundial. Explorar o interior do território nacional significava ampliar as
possibilidades de enriquecimento não apenas científico, mas também comercial. Logo essa
atividade de prospecção conduziu ao incremento do acervo do Museu Nacional, em grande
medida encarregado dessas pesquisas, dando a essa instituição, por conseguinte, visibilidade
internacional (DOMINGUES, 2010, p. 627-628).
D. Pedro II foi, em grande medida, responsável pelo fortalecimento do Museu
Nacional neste período. Lilia Schwarcz e Regina Dantas mostram como a coleção particular do
375

Imperador e a do Museu Real por vezes se confundiam (SCHWARCZ; DANTAS, 2008). Além
disso, o próprio D. Pedro II se incumbiu de dialogar com as instituições congêneres do mundo
europeu e de receber coleções particulares, entregues ao Museu, em troca de títulos e benesses.
Assim, o Imperador espelhava a feição que queria atribuir à jovem nação tropical, ou seja, a de
um povo civilizado pela ciência, pelo conhecimento de suas riquezas naturais, protegidas e
apresentadas numa instituição que aos poucos deveria se comparar às melhores do gênero no
mundo. Por outro lado, pode-se também dizer que foram essas mesmas coleções, apropriadas
pela busca imperial pela identidade da nação, que produziram essa subjetividade ao mesmo
tempo exemplar e única que era a do Imperador.
Contudo, foi somente a partir da década de 1870 que a antropologia tomou destaque
dentro do Museu Nacional. Esse período coincide, segundo Schwarcz, com a emergência de
“um discurso científico evolucionista como modelo de análise social. Largamente utilizado pela
política imperialista europeia, esse tipo de discurso evolucionista e determinista penetra no
Brasil a partir dos anos 70 como um novo argumento para explicar as diferenças internas”
(SCHWARCZ, 1993, p. 28). Com as gestões de Ladislau Netto, de 1870 a 1893, e de João
Bastista de Lacerda (1846-1912), de 1895 a 1915, o Museu Nacional passa a ser reconhecido
como uma das mais importantes instituições científicas da América Latina. Nesse período é
criada uma divisão específica para a antropologia, além da importante publicação Archivos do
Museu Nacional, e são instituídos os primeiros cursos de antropologia do país. A instituição
passava a se estruturar nos moldes dos grandes museus europeus congêneres, participando
assim ativamente do debate científico da época. Em 1882 foi ainda realizada a Exposição
Antropológica Brasileira no Museu, com o consequente incremento de suas coleções.
Havia agora, portanto, maior interesse pelo estudo dos “botocudos” que dos “tupis”,
uma vez que os primeiros, segundo os cientistas do Museu Nacional, aproximavam-se mais do
homem primitivo.619 O estudo desses grupos criaria no Brasil, desse modo, um importante locus
de pesquisa científica, acenando para a possibilidade de fornecer um espaço único para o
esclarecimento acerca da origem da humanidade, dada a suposta proximidade, física e cultural,
que os “botocudos” guardariam com os primeiros hominídeos. Embora apartados da
civilização, considerados mesmo uma espécie distinta de ser humano, esses povos deveriam ser
preservados pelo seu valor científico.620
Esse período representou também outras mudanças na instituição. Em primeiro

619
Sobre essa visão reducionista a respeito das tribos indígenas nacionais, cf. MONTEIRO, 2001.
620
Outros naturalistas, como Hermann von Ihering (1850-1930), primeiramente funcionário do próprio Museu
Nacional e depois diretor do Museu Paulista, chegaram, no entanto, a defender seu extermínio. A respeito desta
polêmica, cf. BREFE, 2005, LIMA, 1989 e SCHWARCZ, 1993.
376

lugar, o Museu Nacional se tornou um dos mais importantes centros de pesquisas na área das
ciências naturais da América Latina, firmando seu prestígio junto ao governo imperial e,
posteriormente, federal. Num cenário em que a biologia produzia o discurso científico mais
autorizado para tratar da evolução humana, o Museu Nacional passou a ser uma importante
referência à época para a compreensão homem nacional, investigando cientificamente as
possibilidades de seu desenvolvimento, a pertinência ou não da miscigenação e produzindo um
conhecimento sistemático sobre um patrimônio nacional que era representado pelas riquezas
naturais e científicas do país, incluindo-se aí suas diversas culturas “primitivas”. O patrimônio
cultural do Brasil se confundia, portanto, com seu patrimônio científico e significava a
possibilidade de acessar objetivamente a nação.
Keuller também destaca “o caráter pedagógico sugerido às coleções do Museu
Nacional [pela reforma de 1890] que serviam para informar o público sobre os conhecimentos
das seções e também para mostrar-lhe a importância e incutir-lhe o ‘gosto’ pelas instituições
científicas” (KEULLER, 2008, p. 72). A nação, enquanto objeto do conhecimento desses
naturalistas, não era algo, portanto, a ser apenas conhecido: também era preciso comunicá-la a
fim de produzir novos sujeitos que a protegessem e fossem, igualmente, agentes de sua
“evolução”.

9.3.2. Roquette-Pinto e a função educativa do Museu621

Com o advento da República não houve, ao contrário do que se poderia supor, um


abandono das atividades desenvolvidas no Museu Nacional. Se, por um lado, Regina Horta
Duarte afirma que após o “período de ouro” vivido entre 1870 e 1890, “o Museu perdeu
prestígio e sofreu a concorrência de novas instituições” (DUARTE, 2010, p. 86), Keuller
encontra motivos para chamar o período que vai de 1912 a 1925 de “era de prosperidade da
antropologia” na instituição (KEULLER, 2008, p. 113).
Em 1909 o Museu Nacional voltou a fazer parte do Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio, demandando dessa instituição o incremento de suas ações consultivas
junto ao governo federal, sobretudo no âmbito da agricultura. A instituição adquiriu, assim, um
papel importante junto ao governo republicano, graças às pesquisas relacionadas ao
desenvolvimento agrícola do país, ao controle de doenças e pragas e ao conhecimento relativo
à fauna, flora, solo e à integração e “civilização” do país mediante o conhecimento de suas

621
Esta subseção foi extraída, também com atualizações, da monografia Coleção, narrativa e tutela (LOWANDE,
2013c).
377

possessões mais distantes. A ciência passou a ser tomada como estratégica no desenvolvimento
das nações, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial (KEULLER, 2008, p. 135 e ss). As
direções de Bruno Lobo (1884-1945), de 1915 a 1923, e Arthur Neiva (1880-1943), de 1923 a
1926, representaram um crescimento no que diz respeito à atividade científica e pedagógica do
Museu, com a retomada das publicações e com a criação de novos laboratórios.
Nesse período todos os principais sujeitos da rede que mais interessa a esta tese já
haviam ingressado no Museu Nacional: Edgard Roquette-Pinto passou no concurso para
assistente da 4ª seção em 1905, atuando várias vezes como professor interino em substituição a
Domingos Sérgio de Carvalho; Alberto Childe, que já trabalhava como artista no Museu, foi
contratado, por indicação de Roquette-Pinto, como conservador de arqueologia em 1911;
Heloisa Alberto Torres, como vimos, iniciou suas atividades no Museu como estagiária em
1918; Raimundo da Cunha Lopes era naturalista auxiliar do Museu desde 1922, quando assumiu
o lugar antes ocupado por Alfredo de Morais Coutinho.
Todavia, não há dúvida de que Roquette-Pinto foi o principal responsável pelas
mudanças que ocorreriam, a partir de então, no Museu Nacional. Heloísa Domingues aponta
que ele foi responsável por uma mudança de orientação política inalterada desde a fundação da
instituição. Segundo a historiadora, “para ele, o Museu não podia ser apenas uma vitrine de
produtos naturais, mas deveria funcionar como difusor do conhecimento da natureza para que
as riquezas pudessem ser bem aproveitadas. Roquette Pinto dava ao Museu uma dupla função:
científica e educacional” (DOMINGUES, 2010, p. 628).
Embora Roquette-Pinto, médico formado na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, partilhasse ainda dos métodos introduzidos pela Sociedade Antropológica Francesa, há
claramente uma cisão observável em seu posicionamento sobre as populações brasileiras.
Segundo ele, “hoje a doutrina da igualdade vai ganhando terreno, [populações] ‘superiores’ e
‘inferiores’ são agora ‘adiantadas’ e ‘atrazadas” (apud KEULLER, 2008, p. 168). Adepto de
uma antropologia fisiológica, em detrimento de uma antropologia anatômica, Roquette-Pinto
não acreditava que medições cranianas pudessem comprovar a superioridade de uma raça em
relação a outra. As diferenças entre povos relacionar-se-iam ao “estado de cultura”, à língua e
à distribuição geográfica.
Do ponto de vista social, era um positivista, e do ponto de vista biológico, um
neolamarckista. Desse modo, ao contrário de um liberalismo radical somado a uma da
incessante luta representada pela seleção natural, Roquette-Pinto acreditava que uma sociedade
orgânica, em que seus elementos pudessem se adaptar ao meio e às suas funções, é que
conduziria a nação ao progresso. Regina Horta Duarte mostra que Roquette-Pinto foi, por
378

exemplo, um admirador de Alberto Torres, ainda que contestasse suas teses racistas (DUARTE,
2010, p. 61). Para Roquette-Pinto, o atraso brasileiro não era um problema racial, mas de
educação e saúde.
Diversas ações encabeçadas por Roquette-Pinto resultaram em mudanças que
passariam a definir a postura oficial do Museu Nacional em relação ao “homem” e à “cultura”
nacionais, esses dois objetos em processo de dissociação. Em primeiro lugar, devemos destacar
sua participação em duas expedições lideradas pelo Marechal Cândido Mariano da Silva
Rondon (1912 e 1915). O envolvimento direto de Roquette-Pinto na Comissão de Linhas
Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas dotou o Museu Nacional de novas
coleções,622 produzindo assim uma nova postura em relação às populações indígenas e,
portanto, novos sujeitos do progresso civilizacional nacional. Os métodos de “pacificação”
adotados nas expedições de Rondon, ele próprio um descendente de indígenas, certamente
mostraram a Roquette-Pinto que a civilização dos indígenas não seria um problema racial, mas
de educação. Roquette-Pinto pôde encontrar entre os parecis pessoas que, segundo ele, já seriam
os “verdadeiros sertanejos”, considerados por ele a “raça forte” que poderia levar a cabo o
projeto de civilização do interior do país. A partir de então, as populações indígenas se tornam
alvo da tutela do Estado que, através de órgãos como o Serviço Nacional de Proteção ao Índio
e Localização do Trabalhador Nacional (SPILTN), criado em 1910, e do Conselho Nacional de
Proteção ao Índio (CNPI), passaram a pregar a preservação das populações autóctones
nacionais. Novos saberes demandaram, portanto, novas instituições produtoras de novos
sujeitos. Os agentes do Museu Nacional foram, como veremos, parte ativa dessa trajetória,
integrando o CNPI e participando decisivamente das políticas indigenistas nacionais.623
A necessidade de tornar o Museu Nacional uma instituição acessível a todos os
brasileiros fez com que ali fossem desenvolvidas diversas formas de interação com a sociedade.
Os “brasilianos”, como preferia Roquette-Pinto, seriam os novos sujeitos da modernidade
nacional. A experiência de Roquette-Pinto na área radiofônica624 transformou o Museu num

622
Segundo Duarte, “entre 1908 e 1916, a instituição recebeu 17.866 peças, 8.827 das quais botânicas, 5.637
zoológicas, 42 geológicas e 3.380 antropológicas. Esse material revitalizou as coleções do Museu e originou
inúmeros estudos e publicações” (DUARTE, 2010, p. 47). A documentação referente à doação desses objetos
encontra-se na Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional, “Documentos encaminhados pelo Setor de
Etnologia do Departamento de Antropologia em 2005”, Cx. 06, pasta 07.
623
Em relação às expedições de Roquette-Pinto junto a Rondon, cf. SANTOS, 2011.
624
Roquette-Pinto foi o precursor, no Brasil, na utilização do rádio como meio educativo, fundando, em 1923, por
intermédio da Academia Brasileira de Ciências (da qual também foi um dos membros fundadores), a Rádio
Sociedade. Em 1924 lançou a revista Radio, que em 1926 passaria a se chamar Electron, e que articulava material
impresso e a programação radiofônica da Rádio Sociedade, que foi doada ao Governo Federal em 1936, por falta
de recursos. Em 1934 foi fundada a rádio-escola PRD-5, por Anísio Teixeira e Roquette-Pinto, que, em 1937,
379

verdadeiro “centro multimídia”. Em 1927, ele criou o Serviço de Assistência ao Ensino de


História Natural do Museu Nacional, uma seção independente pertencente ao Museu em que se
orientava a organização de museus escolares, ofereciam-se cursos e palestras,625
confeccionavam-se diversas ferramentas de aprendizagem, exibiam-se filmes etc., funcionando
também como centro de extensão da Universidade do Rio de Janeiro. Além disso, eram exibidos
filmes e diapositivos no “Salão Marajó”, criado em 1932. Desejava-se realmente fornecer uma
experiência indelével ao público (agora também composto por jovens estudantes) que
transitasse pelos corredores daquela “miniatura da pátria”.626

Figura 3 Fotografia (27658) – Seção de Assistência ao Ensino de História Natural, AA01/M033/P01/Cx.


RJ104/P. 02, Série "Inventário", Arquivo Central do IPHAN, RJ.

deixou suas atividades radiofônicas dedicando-se apenas ao Instituto Nacional de Cinema Educativo (DUARTE,
2010, p. 78-85).
625
Segundo Regina H. Duarte, “os cursos focalizavam museologia prática, taxidermia, técnicas histológicas, coleta
de animais, organização de herbários, fotografia – incluindo manejo de máquinas, iluminação, revelação e
impressão –, desenho e modelagem em cera” (DUARTE, 2010, p. 89).
626
No que tange às atividades educacionais, é importante lembrar que Roquette-Pinto ainda foi um dos signatários
do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” em 1932, ano em que também se tornou responsável pela Revista
Nacional de Educação e pela censura cinematográfica do governo de Vargas, até o ano de 1934, quando essas
atribuições deixariam o Museu Nacional e passariam para o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (cf.
DUARTE, 2010, p. 100-116), tendo também colaborado com a Coleção Brasiliana, dirigida por Fernando
Azevedo.
380

Outra ação importante de Roquette-Pinto foi o estabelecimento de laços com outras


instituições, principalmente no exterior. Além das que já foram mencionadas, a exemplo do
SPI, do CNPI e da Academia Brasileira de Ciências, Roquette-Pinto também ligou o Museu
Nacional ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, à Academia Brasileira de Letras, à
Academia Brasileira de Ciências e à Associação Brasileira de Educação, dos quais era membro,
ao Museu Paulista, então dirigido por Afonso de Escragnole Taunay (1876-1958),
reorganizando a sua seção de etnografia, à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, da qual
era professor, a projetos editoriais como a Revista Nacional de Educação e à Coleção
Brasiliana, a sociedades civis, como a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres e a Sociedade
dos Amigos das Árvores, a congressos nacionais e internacionais de antropologia e relativos à
proteção da natureza e, não por fim, à proposição de leis, como, por exemplo, o Código de Caça
e Pesca de 1934.
No exterior, Roquette-Pinto relacionou-se com os principais expoentes da
antropologia nos Estados Unidos, França e Alemanha. Em 1911 foi secretário do Brasil no
Congresso de Raças de Londres, tendo de lá seguido para França, onde realizou estudos, visitou
instituições biológicas e antropológicas e assistiu a palestras de cientistas importantes, como as
do alemão Felix von Luschan (mencionado no “Capítulo 3”). Em 1924 participou do Congresso
Internacional de Americanistas, realizado em 1924 em La Haya, Holanda, e Gotemburgo,
Suécia, onde firmou contato com intelectuais como Franz Boas, Walter Lehmann, Fritz Krause
(1881-1963), Melville Herskovitz, Paul Rivet e outros (KEULLER, 2008, p.141-149).
Estabeleceu contatos com médicos e cientistas do Paraguai, país em que fundou uma cátedra
de Fisiologia em sua Faculdade de Medicina de Assunção, e da Argentina. Além do próprio
Rivet, recebeu, posteriormente no Museu Nacional nomes como Max Schmidt, do Museu de
Berlim (1926), Alfred Metraux (1929) e Leslie Spier (1929). Esses contatos inseriram o Brasil,
por intermédio do Museu Nacional, numa rede transnacional de americanistas que, depois, seria
como que legada a Heloisa Alberto Torres. Através de um intenso intercâmbio entre cientistas,
o Museu Nacional se tornou um polo privilegiado para essas discussões, dotando a instituição
de um relevante papel na consolidação da antropologia em nosso país a partir da década de
1930.
É importante mencionar, por fim, a aproximação do Museu Nacional com o regime
autoritário de Vargas. Quando da reviravolta política de 1930, Roquette-Pinto chegou a pedir
exoneração de seu cargo na diretoria do Museu por ser amigo de Washington Luís e de Júlio
Prestes. Este pedido foi, no entanto, negado pelo ministro Francisco Campos, então à frente da
pasta da Educação e Saúde Pública (KEULLER, 2008, p. 175-176). Na verdade, os anseios do
381

Museu e do Governo Federal se mostrariam bastante afinados. Como salienta Regina H. Duarte,
por um lado, havia um bom tempo que os integrantes do Museu viam a necessidade da
intervenção do poder federal na defesa do patrimônio natural e cultural brasileiro, de modo a
fazer frente aos interesses econômicos particulares que ameaçavam essas reservas. Por outro, o
governo de Vargas encontrou no Museu Nacional uma instituição organizada, com potencial
educacional em função das reformas introduzidas por Roquette-Pinto e com um projeto de
nação muito semelhante àquele vislumbrado pelo poder executivo (DUARTE, 2010). O Museu
Nacional funcionava, portanto, como um quadro de reserva para a objetificação da ideologia
nacionalista moderna varguista, fosse por meio dos artefatos que comporiam uma alegoria da
evolução da natureza nacional, fosse pelos desdobramentos dessa ideologia por meio da
educação de novos sujeitos da modernidade nacional.

9.3.3. As reformulações narrativas no Museu Nacional627

A partir de meados da década de 1930 o Museu Nacional teve que lidar, no entanto,
com uma série de mudanças. A instituição, que em 1930 passara a se subordinar à Universidade
do Brasil, a partir de 1934 perdeu algumas das funções educacionais que lhes foram atribuídas
pelo governo de Vargas, a exemplo da Revista Nacional de Educação e da censura
cinematográfica exercida por meio do Instituto Nacional de Cinema Educativo, dirigido por
Roquette-Pinto desde sua criação em 1936. Além disso, as atividades radiofônicas foram
abandonadas totalmente por Roquette-Pinto até 1937, e a mudança de ministérios implicou
também na perda das funções consultivas que antes o Museu desempenhava junto ao Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio. Regina H. Duarte atribui o declínio das atribuições
educacionais do Museu Nacional ao crescimento da corrente educacional católica, contrária aos
ideais escola-novistas (DUARTE, 2010, p. 131).
Lilia Moritz Schwarcz considera que a década de 1930 representa o “fim da era dos
museus etnográficos” (SCHWARCZ, 1993), ao menos no que diz respeito àquela função que
eles desempenharam no século XIX. Esse período também corresponderia a uma “separação
epistemológica” entre natureza e sociedade no âmbito dos estudos antropológicos, conforme
nota Domingues (DOMINGUES, 2010, p. 630). O Museu Nacional continuou negando essa
divisão, o que acarretou numa certa oposição entre a instituição e os cursos acadêmicos que
surgiriam a partir de então, a exemplo da criação da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1939

627
Esta subseção, assim como a anterior, reproduz, com atualizações significativas, um trecho da monografia
Coleção, narrativa e tutela (LOWANDE, 2013c).
382

(ano em que também foi criada a cadeira de etnologia brasileira na Escola Livre de Sociologia
Paulista). A propósito, a mesma reforma que criou essa Faculdade limitou as funções do Museu
ao ensino e divulgação científica, privando a instituição daquela função consultiva
anteriormente mencionada.
Por fim, a década de 1930 também trouxe ao Museu Nacional dificuldades
institucionais. Além da falta de verbas, é possível mencionar a péssima situação de conservação
do edifício do Museu e as dificuldades ocasionadas pela lei que instituiu a desacumulação de
cargos. A esse respeito, manifesta-se da seguinte forma o jornal Ciência para todos:

Os antigos naturalistas que sustentaram por tantos anos o renome internacional do


nosso Museu, depois de 1935 o foram abandonando por aposentadoria ou morte, ou
ainda por força da lei que proibia acumulações de cargos públicos. O Museu viu-se
seriamente desfalcado de técnicos; extinguiu-se quase de tudo a produção cientifica;
interromperam-se as publicações. Além disso, o velho Palácio Imperial exigia
urgentes e profundos reparos.628

No entanto, não é correto deduzir do que foi exposto que o Museu Nacional tenha
perdido o significativo papel ocupado no cenário intelectual nacional e internacional,
construído ao longo de mais de um século. Aproveitando-se dos caminhos anteriormente
desbravados por Roquette-Pinto, Heloísa Alberto Torres inseriu o Museu na maioria das
organizações relacionadas à antropologia (abarcando a etnografia e a arqueologia) e à questão
indígena no país. Além disso, garantiu o assento do Museu em importantes instituições
internacionais e expandiu ainda mais sua rede intelectual nacional e internacional, tendo feito
da instituição um lugar central na constituição de uma antropologia renovada, que privilegiava
os estudos culturais em detrimento dos raciais. Segundo Mariza Corrêa,

confronto é uma palavra que poderia sintetizar boa parte da atuação de Heloisa no
mundo intelectual de sua época: portadora de um nome importante neste mundo, ela
ocupou inúmeras posições politicamente importantes, a maioria vinculada diretamente
à disciplina à qual dedicou o melhor de seus esforços, outras apenas indiretamente:
todas, no entanto a colocavam no centro do palco numa época em que poucas mulheres
lá estavam. (CORRÊA, 1997, p. 19)

Foi nesse período que Torres empreendeu uma reformulação das estratégias
expositivas do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Essas obras causaram alguma
repercução na imprensa local, e seus elogios e críticas foram guardados tanto pela instituição
museológica quanto pelo SPHAN em seus respectivos arquivos. Além disso, guias e rascunhos

628
“Instituições científicas do Brasil”. Ciência para todos, s.l., [1948]. AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Série
“Inventários”, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
383

de discursos redigidos por ocasião da inauguração das novas exposições também nos permitem
adentrar no canteiro de obras em que se transformou o Museu Nacional a partir de 1941 e
conhecer os diversos conflitos que essas transformações provocaram. Veremos que essas
reformulações também foram atravessadas significativamente por algumas das conexões
transnacionais já apresentadas nesta tese.
Num texto aparentemente produzido como rascunho para um discurso público ou
divulgação na imprensa, Torres justifica a realização das grandes obras pelas quais passou o
Museu Nacional por uma necessidade de acompanhar a “marcha evolutiva de seus congêneres
no mundo”.629 O objetivo obedecia a “uma norma regimental, que estabelece uma divisão entre
as atividades dos pesquisadores e a dos educadores”, de modo tal que os pesquisadores apenas
selecionariam “o material ilustrativo”, podendo assim se dedicarem mais à pesquisa de ponta,
e passariam então “aos educadores e museógrafos a responsabilidade da montagem das
exposições”.630 Isso se devia ao fato de que

no mundo moderno, em que tantos aspectos do problema da educação têm de ser


atendidos concomitantemente, não era mais possível deixar sôbre os ombros do
pesquisador maiores responsabilidades e encargos tão vários quanto a sua própria
responsabilidade de estudo, abrangendo a sempre crescente bibliografia especializada,
[que] deve absorver inteiramente o seu tempo e demanda com exclusividade, a sua
atenção.631

A dinâmica expositiva não era mais, portanto, aquela que norteou a “era dos
museus” entre finais do século XIX e início do XX. Quanto tratei de Franz Boas no “Capítulo
3”, vimos que importantes polêmicas antropológicas de então eram travadas em torno de
representações museográficas, produzidas pelos próprios antropólogos, sobre teorias a respeito
dos processos de diferenciação racial ou cultural, como ficou claro, por exemplo, na disputa
entre Boas e Ottis Mason. A tendência que Torres agora procurava seguir era a da
especialização e separação das funções educativas e investigativas dos museus “do mundo
moderno”.
Seguindo na leitura do documento, percebemos que a principal inspiração para essa
mudança de postura vinha das orientações de Carl Cummings (ou “Carlos Cummings”, como

629
Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN. Trata-se de um documento incompleto, sem data ou
assinatura, com notas e correções manuscritas de Heloisa Alberto Torres, em que se justifica retrospectivamente a
“remodelação radical” pela qual havia passado o Museu nacional a partir de 1941, não apenas no que se refere às
suas exposições, mas também em relação às “instalações de pesquisa e mesmo das normas reguladoras de suas
atividades”.
630
Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN.
631
Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN.
384

Torres escreve), Diretor da Academia de Ciências de Buffalo, que veio para o Brasil numa
missão bancada pela Fundação Rockefeller em função das relações estabelecidas entre Torres
e David Stevens, conforme se depreende de uma correspondência trocada entre Henry Allen
Moe e Charles Wagley em 21 de agosto de 1941.632 Uma matéria publicada no jornal O Globo
no dia 19 de agosto de 1941 explica que Cummings veio para o Brasil junto com outros dois
“grandes especialistas norte-americanos”, Ch. Hamlin, presidente da Sociedade de Ciências
Naturais de Buffalo, e o “antropologista Philips Clawson.633 A matéria também confirma que a
missão foi “coadjuvada” pela Fundação Rockfeller, que foi procurada por Torres “nas vésperas
da reforma e da restauração do edifício, como da organização de seus mostruarios e de suas
finalidades educativas”.634
Ainda naquele rascunho, Torres cita um “inédito” Report to the Rockefeller
Foundation on the Museu Nacional do Rio de Janeiro – Brasil, produzido por Cummings, no
qual ele afirma que

No Museu Nacional, o chefe do departamento, que necessariamente deve ser um


homem de altas realizações científicas, é chamado meramente a selecionar o material
de exibição adequado a partir de suas coleções e suprir as informações necessárias
para guias e legendas, e talvez, de vez em quando, analisar criticamente os dioramas
e agrupamentos realizados nas salas de exposição e laboratórios de preparação, e,
depois disso, ele pode deixar todo o resto para que outra pessoa tome conta, o que
pareceria mais decididamente ser uma apropriada e lógica divisão do trabalho em
qualquer museu.635

632
Moe escreve da cidade de Nova York para Wagley, atestando que compreendia o fato de Torres não poder ir
para os EUA naquele ano porque o próprio Stevens havia lhe contado a respeito da “Buffalo Museum mission”
recebida pelo Museu Nacional logo depois que Wagley havia deixado essa instituição – “Latin America: Charles
Wagley (#1 - #7)”, HAMP, APS.
633
“Feição moderna para o Museu Nacional”. O Globo. Rio de Janeiro, 19.08.1941. Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
634
Ainda segundo a versão jornalística, “Há cerca de quatro anos, o Bufalo Museum of Science recebeu da
Fundação Rockefeller a incumbencia de instruir um grupo de conservadores de museus, e, por ocasião das duas
grandes feiras – Golden State International Expedition, em S. Francisco, e a New York World’s Fair – o último
grupo de estudantes terminava o curso de especialização. Altos funcionários da Fundação Rockefeller, julgando
que alguns mostruários dessas duas feiras pudessem oferecer sugestões interessantes do ponto de vista da técnica
de exposição, de grande valor para os museus em geral, pediram ao Sr. Cummings que os visitasse em companhia
de alguns assistentes e que publicasse o resultado de suas observações.
Do cuidadoso estudo empreendido pelo Sr. Cummings, resultou a obra intitulada ‘East is East and West is West’,
para a qual contribuiu, não só a visita levada a efeito às feiras internacionais, mas sobretudo a experiencia dos seus
quarenta anos de serviço no Museu de Bufalo, o que lhe assegura um lugar entre os maiores técnicos em materia
de museus nos Estados Unidos, especialização na qual ocupa, em realidade, o lugar de decano” – “Feição moderna
para o Museu Nacional”. O Globo. Rio de Janeiro, 19.08.1941. Pasta “Inventários”, AA01/M033/P01/Cx.
RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
635
“[…] in the National Museum, the department head, who must of necessity be a man of high Scientific
attainments, is called on merely to select suitable exhibit material from his collections and supply the necessary
information for guides and labels, and perhaps from time to time criticize the Scientific dioramas and groups made
in the workrooms and laboratories of preparation, after which he can leave all the rest to someone else to worry
about, which would seem most decidedly to be a proper and logical division of labor in any museum” – Caixa 07,
envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN. Note-se que, para Cummings, a chefia de departamento deveria ser
385

Antes dessa espécie de consultoria prestada pela missão dos profissionais do Museu
de Buffalo, o palácio da Quinta da Boa Vista havia sido tombado pelo SPHAN, em 1938,
conforme veremos no próximo capítulo. Logo em seguida foi constatada a necessidade de
intervenções urgentes para garantia da integridade do antigo edifício, cujas estruturas estavam
a ponto de ruir sobre funcionários(as), coleções e visitantes do Museu Nacional. O fechamento
da instituição para obras e as oportunidades abertas pelos fluxos interamericanistas colocaram
diante de Torres a possibilidade de batalhar também pela atualização de exposições do Museu,
que ainda lembravam gabinetes de curiosidades. Tanto que, em matéria de 9 de abril de 1947,
ou seja, logo depois da reinauguração das exposições da instituição, o Correio da Manhã
afirmava que “O Museu Nacional perdeu o seu aspecto de casa de bric-a-brac, com mostruários
apinhados de curiosidades que falavam mais aos olhos que a inteligência – para adquirir a de
uma verdadeira escola de Etnografia e História Natural”.636
Segundo Luiz de Castro Faria, Georges Julien Simioni foi o artista responsável pela
nova apresentação museográfica do Museu Nacional após a consultoria prestada pela missão
de Buffalo. Simoni trabalhava para o SPHAN e já teria atuado no Museu da Inconfidência
(FARIA, 1947, p. 21). Ao lado da influência artística de Simoni, Castro Faria também explicita
a dívida em relação às concepções museológicas de Paul Rivet, que, por sua vez, como vimos
no “Capítulo 4”, possuíam inspiração francamente boasiana. Segundo Castro Faria,

Ninguém melhor que Rivet, o idealizador do Museu do Homem, definiu com mais
clareza e simplicidade a função do museu moderno, cuja existência deve estar a
serviço da coletividade e a técnica a ser empregada para atingir os seus objetivos: “O
seu fim será dar ao visitante idéias claras e precisas, desenrolar para êle os fatos
essenciais sem o fatigar com uma documentação excessiva. As peças antropológicas
ou etnográficas serão escolhidas entre as mais típicas e se evitará cuidadosamente a
apresentação de séries numerosas, onde a atenção se cansa e se dispersa”.
Êsses princípios foram rigorosamente observados. Será fácil para aquêles que
conheceram as antigas exposições, verificar as mudanças radicais operadas nesse
particular. Houve, sem dúvida, uma visível diminuição da quantidade de material
exposto, mas houve também valorização e planejamento adequados dos diferentes
conjuntos, que se tornaram mais compreensivos, mais atraentes e mais racionalizados.
(FARIA, 1947, p. 15-16)

ocupada por um homem. Sobre isso, é interessante notarmos a observação feita pelo jornal O Globo sobre a sua
esposa: “O Sr. Hamlin, em seguida, acrescenta que sua esposa, tambem, uma especialista na matéria, viajou em
sua companhia. Tendo visitado o nosso país há cerca de quinze anos, é uma grande entusiasta do Brasil” – “Feição
moderna para o Museu Nacional”. O Globo. Rio de Janeiro, 19.08.1941. Pasta “Inventários”, AA01/M033/P01/Cx.
RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ. Ou seja: não obstante também fosse especialista na matéria, sua
função é apresentada muito mais como a de mera acompanhante de seu marido, algo, aliás, muito comum, como
vimos no “Capítulo 8”, no interior dos trânsitos interamericanos.
636
“O Museu Nacional em sua nova fase”. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 09.04.1947. Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
386

Essa conferência de Castro Faria sobre as exposições de antropologia e arqueologia


do Museu Nacional, somada a um “Projeto de guia de exposição” arquivado na Coleção Heloisa
Alberto Torres (SEMEAR, MN),637 a alguns outros documentos guardados na mesma coleção
e a matérias jornalísticas coletadas no Museu Nacional e no IPHAN nos permitirão visualizar
qual o formato tomado pelas exibições dispostas nas salas e corredores do velho palácio da
Quinta da Boa Vista.
O “Projeto de guia” das exposições baseia-se numa concepção de “antropologia”
como ciência do homem, dividida em “antropologia propriamente dita” (antropologia física) e
“etnologia” (estudo da “cultura”, que “assenta seus fundamentos na Etnografia, na Linguística,
na Arqueologia, na Musicologia, na História das Artes Técnicas, das Artes Plásticas etc.”).638
Os principais elementos para o estudo de uma cultura e que, portanto, estariam refletidos nos
arranjos expositivos do Museu, eram: “1. Quanto à vida mental”; “2. Quanto à vida social”; e
“3. Quanto à vida material”.639
Além disso, os armários e vitrines das salas de exposições passaram a contar com
um maior cuidado de caráter didático:

Os mostruários das exposições, em suas linhas simples, apagam-se diante do fundo


variadamente colorido dos seus interiores e da disposição harmoniosa dos objetos
expostos. As explicações, sempre que possível, são fornecidas por meio de gráficos
(mapas geográficos, desenhos, fotografias) de modo a reduzir-se o texto ao mínimo.
Cada mostruário, ou conjunto de mostruários, documenta fatos que se procura, tanto
quanto possível, relacionar com os interêsses da vida. Embora as idéias ilustradas
pelas exposições se subordinem a um plano geral prèviamente estabelecido, apenas
alguns tópicos são esplanados, não sòmente devido à exiguidade de espaço, como
também para estimular a curiosidade e conduzir o visitante a procurar informar-se
acêrca de questões não abordadas directamente. 640

637
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN. Não há indicação
de autoria no documento, apenas correções manuscritas que podem ser atribuídas a Heloisa Alberto Torres pela
caligrafia e pela coleção no qual ele está arquivado. Pelos tipos de erros de digitação, é muito provável que a
pessoa que datilografou o texto não foi a mesma que o criou, certamente um(a) secretário(a) que desconhecia
elementos básicos de etnografia pois redigiu “cultura matinal” ao invés de “cultura material”, “Siony” ao invés de
“Sioux”, “Métrany” ao invés de “Métraux” etc. Estes dois últimos erros indicam que o documento apresentado
ao(à) possível datilógrafo(a) foi escrito por Torres, pois, de fato, os seus “ux” que corrigiram os esquivocados “ny”
pareciam mesmo “ny” – de modo que é possível até mesmo imaginar que o(a) digitador(a) tenha ficado
extremamente confuso ao ver os “ny” corrigidos por outros “ny”. No entanto, embora escrito por ela,
provavelmente o texto não é de autoria de Torres, ao menos em seu todo, pois, por exemplo, ao corrigir o trecho
sobre os “Índios das Planícies”, ela não teve segurança em relação ao termo “Catlinita”, que ali aparece como o
material utilizado para produção do “pipe-stone” (ela anotou uma interrogação acima desse nome). Por fim, como
há muitas lacunas na indicação dos números dos artefatos (todos eles recebem uma numeração quando são
recebidos no Museu) e dos armários, é possível supor-se que o guia foi preparado para a reabertura das exposições
antes que ela estivesse totalmente concluída.
638
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
639
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
640
Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN. Este documento, do qual restaram apenas as duas últimas
páginas do total de quatro, foi produzido por Torres para a reabertura das coleções de Geologia e Mineralogia em
1951.
387

Essa preocupação expositiva tinha por fim complementar a função educativa


própria dos museus de então, ao lado de outras ações e espaços produzidos pelo Museu, que,
segundo Torres, podiam ser enumerados da seguinte forma:

a) exposições públicas de caráter permanente ou temporário;


b) assistência ao público (escolares, grupos prèviamente inscritos ou eventualmente
encontrados na exposição, por um monitor);
c) assistência a professôres primários e secundários, pela cessão gratuita de sala
para aulas, de projeções fixas e cinematográficas; seminários em que se discutem
os interêsses dos currículos de ensino e as aspirações dos professôres em
modificá-los; classificação do material pertencente aos museus escolares;
d) colaboração com entidades governamentais para realização dos respectivos
programas educativos e de pesquisa;
e) sessões cinematográficas;
f) cursos, conferências, intercâmbio com instituições culturais de vários tipos, no
país e no estrangeiro;
g) biblioteca.641

O foco das exposições antropológicas estava centrado na “Etnologia brasileira”, e


os aspectos materiais de cultura de outros povos ficariam dispostos de modo a reforçar o sentido
da formação de uma “civilização brasileira”, que, como vimos neste capítulo, compunha-se de
“culturas” ainda autênticas representadas pelos “autóctones” (conceito impreciso, segundo
Torres) e pelos “sertanejos”. Assim, “antes de entrar na apreciação da Etnologia brasileira, o
visitante encontrará alguns aspetos etnológicos da África, das Américas e das Ilhas do Pacífico,
escolhidos para exemplificar culturas diversas, às quais a nossa, sob certos aspetos, se acha
vinculada”.642 Esta informação contradiz, no entanto, o que afirma Luiz de Castro Faria em sua
conferência de 1947, pois, segundo o antropólogo, África, América do Norte e Oceania
ocupariam as “salas seguintes” em relação à antropologia física e à etnologia brasileira – essas
salas seriam, inclusive, “aquelas que ainda conservam a dignidade de Palácio Imperial – a do
trono (América do Norte) e a dos embaixadores, (Oceania) com tetos esplêndidamente
decorados” (FARIA, 1947, p. 18).643
De qualquer maneira, iniciemos nosso “tour” por essas últimas coleções, tendo em
vista que esse parece ser o sentido sugerido mais plausível (e também confirmado
posteriormente por algumas matérias jornalísticas). As culturas africanas são caracterizadas no

641
Caixa 07, envelope 18, 13/13, CHAT, SEMEAR, MN.
642
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
643
No próximo capítulo veremos, no entanto, que essas salas eram as menos propícias para o abrigo das exposições
do Museu Nacional em função da incompatibilidade das funções arquitetônicas pretéritas para os usos
museológicos.
388

“Projeto de guia” com base nos escritos de Leo Viktor Frobenius (1873-1938), “autoridade
africanista”, Maurice Delafosse (1870-1926), Clouzot – possivelmente o cineasta Henri-
Georges Clouzot (1907-1977) – Level (a respeito de quem não consegui encontrar maiores
informações), “Tollenave” – provavelmente se trata do comerciante e cronista francês Louis
François de Tollenare (1780-1853) –, Padre Etienne Ignace Brasil e Raimundo Nina Rodrigues.
Os diversos aspectos culturais do continente eram mostrados em seis armários, de maneira
“inter-relacionada”, “uma vez que é difícil isolar, ou separar uns dos outros, os seus elementos
constitutivos”. Além disso, obedecia-se “a orientação geral, citada linhas acima, para estudo de
uma determinada cultura”, isto é, apresentando elementos da “vida mental”, da “vida social” e
da “vida material”, conforme se procurava fazer em relação a todas as demais culturas.644
Depois disso o visitante encontraria o “pequeno mostruário etnológico” relativo à
América do Norte, composto também por seis armários. É muito interessante notar que,
conforme atesta o “Projeto de guia”, “a maioria dos objetos expostos provêm da Coleção
Quain”. Buell Quain, como vimos “Capítulo 5”, foi um dos antropólogos(as) colocado(as) em
circulação transnacional pelo americanismo boasiano, conectando assim projetos
modernizadores estadunidenses e brasileiros. O documento ainda cita o antropólogo Jacques
Soustelle (1912-1990) – importante figura do americanismo francês ligado a Paul Rivet, Marcel
Mauss e Lucien Lévy-Bhrul no Musée de l’Homme,645 – F. Douglas e “René d’Harnaucourt”
(Indian art of the United States, The Museum of Modern Art) – certamente o mesmo René
d’Harnoncourt, curador do MoMA, que ligou Cândido Portinari a David Stevens, da
Rockefeller Foundation, como vimos no “Capítulo 8”. A respeito especificamente dos
esquimós, o documento cita André Leroc Gourhand (“Póle Nord”, Encyclopédie Française,
Tome VII).646 É importante notar que essas publicações certamente foram adquiridas em meio
a práticas transnacionais de trocas de materiais impressos, algo que, como vimos logo acima,
fazia parte do escopo de ações do Museu Nacional e, além disso, era também uma atividade
bastante difundida, de maneira geral, no interior das redes americanistas, conforme pudemos
verificar em capítulos anteriores desta tese.
Em seguida o “Projeto de guia” trata da exposição relativa à Oceania, constituída
por oito armários. Inspiraram essa exposição os trabalhos de Alfred Métraux – que, como

644
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
645
“En Amérique – Nord et Centre”, in Encyclopedie Française, Tome VII, conforme consta do “Projeto de Guia”.
646
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN. Algo interessante
nesta parte do documento é o fato de que Torres demonstra alguma segunça em relação à literatura sobre a
etnografia da América do Norte quando corrige o texto, em especial no que diz respeito à sua área de interesse, ou
seja, a contribuição feminina ao desenvolvimento de “culturas primitivas”, conforme atesta Mariza Corrêa (2003):
Torres risca “usados pelas mulheres” quando se refere ao uso do umak, o caiaque de couro dos esquimós.
389

vimos, também foi uma figura importante para a conexão entre os projetos antropológicos
estadunidenses e brasileiros (“Capítulo 4”) –, a respeito dos “três elementos” que teriam
conformado a “raça polinésia”; um texto de Ralph Linton – que foi o orientador e o chefe de
Charles Wagley na Columbia University (“Capítulo 8”) –, publicado na mesma enciclopédia
em que se encontra o texto de d’Harnoncourt (Arts of the South Seas, The Museum of Modern
Art); e os trabalhos do missionário inglês Roberty Henry Condrington (1830-1922), para tratar
do “mana”, e de Robert Ranulph Marrett (1866-1943), a respeito das relações do “mana” com
o “tabu”. Os povos australianos são considerados no “Projeto de guia” os mais “atrasados”, em
função do isolamento de “qualquer influência civilizadora” e do ambiente inóspito. Por fim,
sobre a aquisição de artefatos micronésios, o documento chama a atenção para o fato de que
eles foram oferecidos a D. Pedro II por Jamehameha II, das Ilhas Sandwich, atestando assim
um trânsito transnacional ainda mais remoto do Museu Nacional e do Estado brasileiro no que
diz respeito à sua inserção no mundo civilizado e moderno por meio da circulação do
patrimônio etnográfico.647
Depois disso, a narrativa museográfica do Museu Nacional se aproxima um pouco
mais da etnologia brasileira tratando das culturas sul-americanas. O primeiro grupo de culturas
a ser apresentado era o relacionado ao Peru, território onde se encontraria “o mais alto índice
das antigas civilizações em terras sul americanas”. Por esse motivo as culturas peruanas são
historicizadas, traçando-se a “sequência das suas culturas”. O documento cita o trabalho de J.
E. Thompson (Archeology of South America, Field Museum of Nat. History), a respeito do
império Nazca e Chimú, além de Alfred Kroeber e Wendell Bennett, a partir de seus textos
publicados no Handbook of South American Indians (sobre a produção transnacional desta obra,
vide o “Capítulo 6”).648
As culturas colombianas e venezuelanas são apresentadas como as mais
desconhecidas dos estudiosos americanistas, embora também representassem um “importante
campo arqueológico”. Além de J. E. Thompson, o “Projeto de guia” cita Jean Vellard
(Archéologie des Andes Venezueliennes, Bol. M.N. XIV-XVII), americanista francês que
desenvolveu pesquisas no Brasil, sendo a mais conhecida delas a “missão Vellard-Lévi-
Strauss”, realizada entre os nambiquara.649 Vellard inclusive forneceu ao Museu Nacional

647
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
648
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
649
Segundo Fernanda Peixoto, “em 1929, Jean Vellard faz uma viagem do Rio de Janeiro ao Pará, atravessa o
Araguaia e realiza um estudo sobre os Carajá; em 1936, Dina e Claude Lévi-Strauss passam um período entre os
Bororo e, em 1938, acompanhados por Vellard, realizam uma visita aos índios do Mato Grosso” (PEIXOTO, 1998,
p. 86)
390

vários exemplares de artefatos venezuelanos, algo que provavelmente também se deu graças às
ações empreendidas por Torres junto ao Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas
e Artísticas no Brasil, assunto do qual tratarei com mais detalhes no próximo capítulo.650
Em seguida, o “Projeto de guia” trata da “grande sala central destinada à etnografia
brasileira”.651 No entanto, a conferência de Castro Faria dá a entender que esta seria precedida
por uma exposição de antropologia física. A sua descrição da “parte de antropologia física” nos
oferece uma visualização bastante detalhada de sua configuração:

A parte de antropologia física dispõe atualmente de dez armários e de duas grandes


vitrines, hábil aproveitamento de vãos de porta, fechados por conveniência de
circulação.
A ciência em si mesmo, isto é, a sua conceituação, os seus pressupostos de estudo, os
seus campos de pesquisa, a sua aplicação aos problemas brasileiros, acham-se ali
documentados de uma forma capaz de despertar o interêsse do grande público.
O primeiro conjunto é composto de três armários e foi destinado, por estar ao lado da
pequena sala ainda não arrumada, mas que deverá ser de paleontologia humana, às
coleções de paleoantropologia do Brasil. Ali estão os representantes das camadas
mais primitivas de povoamento da América – o ‘homem de Lagoa Santa’, o
‘homem dos sambaquis’ e os Botocudos, últimos remanescentes da mesma
entidade racial.
Na grande vitrine que se segue estão os esqueletos de primatas e vários gráficos
indicam as linhas gerais de evolução e revelam as diferenciações anatômicas dos
ramos divergentes ali representados.
Cada armário seguinte representa uma unidade mais ou menos definida – sexo e idade,
Tipos brasilianos e indígenas do Brasil. Surge então uma nova vitrine, onde foram
reunidos vários bustos de indígenas e um corpo inteiro de índio botocudo, trabalho
realizado em 1882 para a exposição antropológica. O último armário dêsse mesmo
lado foi consagrado ao estudo das raças e da sua caracterização. Do lado oposto temos
mais três armários, além daquele dedicado ao Homem de Lagoa Santa – um de técnica
antropométrica, outro de deformações étnicas e o terceiro de Tipos constitucionais e
anatomia étnica. No fundo dêsse mesmo salão uma grande vitrine exibe belíssimos
vasos gregos, cartão de visitas da sala seguinte. (FARIA, 1947, p. 16-17)

Chama a atenção neste ponto, portanto, a importância ainda conferida à


antropologia física no que diz respeito à compreensão dos processos evolucionários que
conduziram à conformação da “civilização brasileira”. Os “botocudos” são apresentados como
“povos primitivos” em função de suas características craniométricas, talvez mais próximos dos
primatas que precederam a nossa espécie do que da própria “civilização”, mesmo que ainda
pudessem ser encontrados entre nós. No interior dessa construção narrativa, o valor dessa
população assim objetificada continua assentado no seu caráter de “elo perdido” na evolução

650
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN. A passagem de
Vellard pelo Brasil gerou uma série de conflitos que também envolveram oposições entre o Museu Nacional, o
Departamento de Cultura de São Paulo e o governo federal, e que acabaram na aquisição pouco amistosa das
coleções científicas adquiridas em função da segunda expedição de Lévi-Strauss no Brasil em 1938 (GRUPIONI,
1998, pp. 140-161).
651
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
391

da espécie humana, isto é, no processo que nos teria conduzido da “natureza” à “civilização”.
Mais do que isso, este seria um patrimônio autenticamente nacional, uma vez que caracterizava
um processo evolucionário específico da “civilização brasileira”.
De acordo com a descrição de Castro Faria (que, como mencionei, contradiz a do
“Projeto de guia”), a próxima sala trataria da cultura greco-romana e etrusca, em seis armários,
contando com “uma parte selecionada da encantadora coleção herdada do Império” (FARIA,
1947, p. 17). Depois disso viriam três salas dedicadas à coleção egípcia, todas arranjadas a partir
do trabalho de Alberto Childe, responsável pelo setor de “Arqueologia Clássica” do Museu
Nacional. Sem entrar em maiores detalhes a respeito desses mostruários, fica clara, aqui, a
herança de um período no qual o Estado brasileiro tentava se firmar entre as nações
“civilizadas”, por meio de um mercado etnográfico que permitia dividir colonizadores e
colonizados, condição essencial para a conquista do status “Império” nacional, a partir do uso
de um patrimônio expositivo.652
Ainda segundo Castro Faria, depois das exposições da Antiguidade Clássica viriam
“as quatro pequenas salas seguintes, com um número relativamente reduzido de armários”,
dedicadas ao Peru, México e América (FARIA, 1947, p. 17). Essas coleções já foram
apresentadas acima, com exceção daquilo que se refere ao México, pois não existem
informações a este respeito no “Projeto de guia”. O próprio Castro Faria não fornece maiores
detalhes sobre essa exposição.
O próximo capítulo da narrativa museográfica do Museu Nacional seria, segundo
Castro Faria, “a grande sala de arqueologia brasileira”. Segundo ele, essa sala teria

dezoito armários e um caixão central com grandes urnas – a própria apresentação


sugere a amplitude e a relevância do tema. Culturas amazônicas e litorâneas ali se
encontram documentadas por uma seleção de peças características, muito menos
numerosa que a exposta anteriormente, mas sem dúvida nenhuma muito mais
expressiva, em virtude do agrupamento em unidades definidas, de base lógica
facilmente perceptível. (FARIA, 1947, p. 17)

Estas exposições tratavam, segundo o “Projeto de guia”, da cerâmica marajoara

652
Segundo o “Projeto de guia”, “grande parte da coleção egípcia do Museu Nacional – entre outras peças cinco
múmias com seus caixões antropomorfos, foi comprada em hasta pública pelo Imperador Pedro I ao italiano
Fiengo, em 1824. Nesse mesmo ano, François Champollion, dito Le Jeune, estabelecia, pelo seu ‘Precis du
Système hiérofliphique’, os princípios firmes que serviram à interpretação dos textos e ao conhecimento exato dos
monumentos egípcios. Esta data garante, pois, a autenticidade dos objetos expostos. Diversas outras peças são
donativos feitos ao Imperador Pedro II, entre elas um caixão da época saïta, que lhe fora oferecido pelo Khedive
do Egito em 1876”. Por sua vez, “os motivos pompeianos, constantes da exposição, foram oferecidos ao Imperador
Pedro II no ano de 1857” – “Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR,
MN.
392

(não há menção à cerâmica tapajônica), aos sambaquis e aos muiraquitãs. 653 A respeito da arte
arqueológica encontrada nos “tesos” de Marajó, o texto fornecido foi retirado de alguns
parágrafos dos trabalhos da própria Heloisa Alberto Torres, sendo interessante citar o seguinte
trecho: “A maior documentação que nos resta sôbre os primitivos de Marajó é no terreno
espiritual, a sua arte. De certo, não seria sensato comparar potes de Marajó com templos maia,
mas se confrontarmos os produtos cerâmicos dessas civilizações, a cultura artística de Marajó
se destaca e distancia de muito”.654 A afirmativa de Torres visava, claramente, a atestar a
riqueza do patrimônio arqueológico brasileiro para o estudo dos processos culturais que
conduziram ao mundo civilizado nacional. Outro objetivo das exposições sobre Marajó seria
firmar a importância da contribuição feminina para a obra civilizatória no território brasileiro:
Torres deduz de citação de Jean de Léry, 1592, que “a arte de cozinhar compete á mulher”, “o
que se verifica entre todos os aborígenes do Brasil”, algo mencionado pelo fato de que a
fabricação de louça é “anexa” à culinária. A rica cerâmica marajoara seria, portanto, obra
feminina, ainda que a origem dos seus desenhos fosse produto masculino.
Chega-se finalmente, depois disso, às salas dedicadas à “etnografia brasileira”,
ponto alto das exposições de antropologia do Museu Nacional. Sua divisão obedeceu aos
critérios linguísticos firmados por Karl von den Steinen (vide “Capítulo 4”). De acordo com o
“Projeto de guia”, “logo à entrada, o visitante encontrará um mapa etnográfico que tem por
objetivo apresentar a distribuição das populações indígenas, discriminadas pela filiação
lingüística e em agrupamentos tribais”.655 É interessante observarmos também os critérios
empregados para a tipificação dos grupos linguísticos-culturais apresentados pelo mesmo
documento:

Os grupos indígenas são representados não como territórios com fronteiras definidas,
mas como massas que se desdobram sugerindo migrações, zonas de penetração etc.
As quatro principais famílias lingüísticas, tupi-guarani, cariba, aruaque e gê, estão
representadas respectivamente pelas cores, vermelho, azul, marrom e verde, e os
grupos lingüísticos isolados pela cor cinza.
Sendo de diversas épocas os dados relativos às várias tribos, considera-se como
localização atual ou recente as regiões percorridas ou ocupadas por essas tribos nos
últimos cem anos.656

653
O “Projeto de guia” menciona, a respeito dos sambaquis, o livro Hileia Amazônica, publicado por Gastão Cruls
em 1944. Sobre os muiraquitãs, que são pequenas esculturas em pedra esverdeada, representando em geral um
sapo ou rã, o mesmo texto se refere a autores como Schomburgk, Heriarte, La Condamine e João Barbosa
Rodrigues, cujo Poranduba Amazonense (1890) foi procurado por Franz Boas em correspondência trocada com
Maria Júlia Pourchet na década de 1930 (vide “Capítulo 5”).
654
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
655
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
656
“Antropologia: Projeto de guia da exposição”, Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
393

O método cartográfico lembra aquele empregado por Curt Nimuendaju (vide


“Capítulo 7”), mas não há menção de seu nome a este respeito. Também são bastante
interessantes as referências evocadas por Castro Faria a respeito dessas coleções:

Na primeira sala de etnografia um arranjo extraordinàriamente feliz permitiu que ali


ficassem representados em quatro grandes unidades de espaço os quatro grandes
grupos linguísticos-culturais. Ali estão os Gê, representados pelos Canela, tão
queridos de Curt Nimuendaju; os Aruaque, representados principalmente pelos Pareci,
aquêles mesmos Pareci de Rondon e Roquette-Pinto; os Cariba do Xingu, numa
evocação de von den Stein[en]; finalmente os Tupi-Guarani, dos cronistas, dos
primeiros viajantes e etnógrafos, de Raimundo Lopes e do plano de pesquisa
sistemática dos seus remanescentes empreendido pelo Museu Nacional. Em vez do
agrupamento de material por tribos, nomes em geral de difícil memorização e quase
nenhum conteúdo real, ou por regiões geográficas, pouco favorável à discriminação
das culturas, o critério adotado facilita a fixação de uma imagem mais ou menos
definida e mais correta, que é a da reunião das tribos em grandes unidades de língua
e de cultura. Como a existência dêsses quatro grupos é ensinada nos cursos
secundários, a nova apresentação tem um valor ilustrativo muito maior. (FARIA,
1947, p. 17-18)

Como se depreende da citação, a tradição etnológica sul-americanista passava pelo


Museu Nacional e tinha um caráter transnacional. O caráter educativo assumido pelas
exposições da instituição tentava a partir de agora honrar o nome dessas grandes subjetividades
da modernidade nacional, disseminando numa linguagem acessível para os(as) brasileiros(as)
(ou “brasilianos”, como preferia Roquette-Pinto), todos os anos dedicados por aqueles
desbravadores e antropólogos em prol do justo conhecimento da evolução civilizatória
nacional.
Além disso, os aspectos materiais de cultura das “tribos” discriminadas em função
das divisões linguísticas objetivas de suas respectivas culturas parece, por fim, retomar o ideal
expresso no Handbook of South American Indians de representar apenas as “tribos que
importam”. Mas, no caso do Museu Nacional, isso se referia à “ciência da civilização brasileira”
em suas funções também educativas:

Na outra sala estão representados alguns traços ou complexos de cultura, em arranjos


obedientes ao mesmo critério de museu para o grande público. Ali são exibidos, em
conjuntos que quase dispensariam legendas, o fumo, o paricá, o guaraná, o curare, a
navegação.
Foi ainda o mesmo critério que impôs a escolha dos grupos de língua isolada, que
figuram no outro grande salão, simetricamente disposto em relação ao de arqueologia
brasílica. Não figuram ali os grupos que oferecem interêsse especial para o
antropólogo, mas sim os que têm existência real no conhecimento do povo – os
Boróro, Carajá, Nambiquara.
Um dos extremos dessa sala, fechado por grandes e vistosas vitrines com máscaras e
bastões de dança foi reservado para a representação de uma área geográfico-cultural,
o Alto Amazonas. A caracterização é das mais impressivas.
394

Esperava-se somar à narrativa museográfica do Museu Nacional uma exposição das


suas “coleções de etnografia regional”, que ainda se achava “em período de formação”, segundo
um documento parcial arquivado junto ao “Projeto de guia”.657 De acordo com o texto, essas
coleções

Documentam apenas as feições mais típicas das grandes áreas culturais, ainda
vagamente esboçadas. A Amazonia com a indústria da borracha, os artífices de pesca,
as embarcações; o nordeste com as suas jangadas e as suas rendas, a roupa de couro e
os trabalhos em chifres; a Baía com as suas bonecas, os seus trançados de palha de
ouricurí, as suas técnicas afro-brasileiras; o centro, com suas indústrias caseiras de
tessidos, as suas panelas de pedra sabão, as suas armadilhas de pesca; o sul com os
trajos e os aperos inconfundiveis do gaúcho.
A falta de um colecionamento sistemático, tem impedido que se agrupem conjuntos
expressivos do ponto de vista de significação estrictamente regional e etnográfica da
documentação coligida. Peças, às vezes, recolhidas ao acaso, representam quasi
sempre a curiosidade que atraiu a atenção do viajante ou decorrem de colecionamento
feito à margem das atividades de um naturalista, que visava diretamente outras
finalidades.
Ainda assim, muitas dessas coleções oferecem hoje um interesse todo especial: feitas
algumas ha dezenas de anos, são os unicos testemunhos de pequenas indústrias, que
o tempo aperfeiçoou; de artes rústicas que as fábricas mataram, de técnicas incipientes
que o progresso desenvolveu. Representam, embora incompletamente, etapas da
formação e desenvolvimento da cultura material do nosso povo.
O número de peças eleva-se a 850.

Percebe-se, portanto, que a “etnografia regional”, ou “etnografia sertaneja”, como


preferia Roquette-Pinto, era um passo indispensável para a compreensão do processo
civilizatório nacional expresso na cultura material brasileira. Era preciso cuidar daqueles
aspectos autênticos do desenvolvimento cultural nacional ainda não tocados pelo “progresso”,
ou seja, pela razão universalista da civilização ocidental. Com efeito, o Museu Nacional vinha
se dedicando a isso desde a gestão de Bruno Lobo (1915-1923), quando Roquette-Pinto já se
encarregava das coleções de antropologia da instituição, conforme atestam os diversos
documentos da série “Divisão de Antropologia, Coleções do Museu Nacional, Etnologia
Brasileira, (Folclore), Coleção por Estado”, também encontrados no SEMEAR, MN. Mas a
forma por meio da qual esses artefatos eram recebidos no Museu não garantiriam a devida
segurança científica quanto à sua finalidade de esclarecer a respeito do sentido do processo
civilizatório nacional, de modo que se tornava necessário articular uma rede trans-regional de
folcloristas treinados para a coleta sistemática do material demandado para o estudo de nossa
etnografia sertaneja. Isso só foi possível depois da realização do Congresso Nacional de
Folclore, realizado a partir de 23 de agosto de 1957, no Museu Nacional, e organizado por
Torres, por meio da articulação com as Comissões de Folclore de nove estados, ligadas ao

657
Cx. 05 – envelope 08, CHAT, SEMEAR, MN.
395

Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC) do Ministério das Relações


Exteriores.658 Foi apenas neste Congresso que as “Exposições de Folclore” foram finalmente
inauguradas, contando tanto com as coleções já existentes no Museu quanto com as que foram
recebidas pelos colaboradores das Comissões Estaduais de Folclore, dentre eles Edson Carneiro
e Manuel Diégues Júnior (1912-1991).659
As principais alterações verificadas nas novas exposições de antropologia do
Museu Nacional diziam respeito, portanto, ao caráter educativo ao qual deveriam obedecer. O
tamanho da exposição, bem como seu número efetivo de armários, havia diminuído660 a fim de
torná-la mais acessível ao visitante comum. Depois de fechado por quase sete anos, a reabertura
das exposições do Museu Nacional chamou a atenção dos jornais da época, conforme pode ser
notado no material arquivado tanto nessa instituição quanto no IPHAN. O jornal A noite, por
exemplo, adiantou-se aos concorrentes e publicou uma matéria a respeito antes mesmo da
finalização das obras, em 11 de junho de 1946:

Em setembro próximo, conforme se espera, o Museu Nacional reabrirá as suas portas


para o público. Os que conheceram a casa dos últimos anos vão, por certo, se extasiar
com as transformações. Tudo está sendo modificado ou substituído. A primeira
surpresa será a limpeza. Foram-se as vitrines sujas, os armários encardidos, as paredes
desbotadas, os assoalhos cheios de buracos. Os operários estão ultimando a
substituição quase total dos assoalhos e da iluminação elétrica. As novas vitrines estão
recebendo lâmpadas de neon, que permitirão iluminação mais adequada. Os
especialistas trabalham ininterruptamente para concluir a seleção das peças que irão

658
Cx. 13, envelope 80 – Exposição do Folclore, 1957, CHAT, SEMEAR, MN.
659
Heloisa Alberto Torres descreve as feições desta exposição em seu discurso de inauguração: “Em homenagem
ao Congresso de Folclore e por intermédio desse douto conclave, que chamou à nossa cidade quantos representam
em todo o extenso território brasileiro, o interesse pelos assuntos folcloricos, entregamos ao público a sala de
exposição permanente de etnografia regional, que é parte integrante das exposições deste museu. Esta que hoje
apresentamos é uma segunda feição com que tais coleções aparecem, desde que, há última vintena do seculo
passado, espiritos de escol, pertencentes a esta casa, como Ladislau Neto e Julio Trajano de Moura, pela primeira
vez sonharam em fazer uma exposição deste tipo. Em sonho ficou o primeiro projeto que, embora desconhecido
por seu realizador concretisou-se na sala Euclides da Cunha inaugurada por volta de 1912. Roquette-Pinto, que a
executou, chamava-a de sala etnografia sertaneja – em falta de melhor nome que lhe ocorresse, dizia – e alem
reuniu documentos sôbre a vida humilde e enérgica, às vezes vigorosa, vivida pelas nossas populações humildes
do interior: meios de transporte terrestres e aquáticos; de abrigo contra as intemperes: casas, toldos, vestes e capas
– Tão rudimentares às vezes na feição que assumem; os meios de contagem e de registro do tempo: calcularios
amazônicos e tiras de couro entalhadas nas margens; elementos festejos e vestes regionais com todo o seu cortejo
de manifestações artisticas, desde os santos até as rezas; rendas bonecos feitiços”. Torres ainda informa que a
exposição seguiu os critérios geográficos prescritos pelo “Conselho Nacional de Geografia” – Cx. 13, envelope
80 – Exposição do Folclore, 1957, CHAT, SEMEAR, MN.
660
“A área anteriormente ocupada pelas exposições de Antropologia era de 1.269,49 metros quadrados, enquanto
a área atual, franqueada ao público é de 1.088,42. Uma diferença, por conseguinte, de 181,07 metros quadrados.
É verdade que a área definitiva deve ser maior, porque não foram preparadas as salas de paleontologia humana e
de etnografia regional, já previstas. Só êste último setor mereceria um museu, mas infelizmente a bela iniciativa
de Roquette Pinto, o organizador da chamada coleção sertaneja, que teve uma sala com o nome de Euclides da
Cunha, ainda não teve o desenvolvimento que merece.
O número total de armários também diminuiu bastante, pois, em vez de 132, temos atualmente 105 em exposição.
É preciso lembrar, contudo, que êsse número só se refere aos armários padronizados e contamos ainda com 16
vitrines embutidas” (FARIA, 1947, p. 18-19).
396

figurar nas exposições. Caligrafos e desenhistas cuidam dos letreiros explicativos de


cada especime. O visitante, outrora, era esmagado pela massa de material que se
acumulava em cada armário. Veremos, para o futuro, nas salas públicas do Museu,
apenas um exemplar de cada peça ali existente. As demais serão recolhidas às
dependências técnicas ou aos depósitos, cujos armários já estão nos seus lugares. 661

A ideia de que o Museu estava realizando uma obra de atualização em relação aos seus
congêneres estadunidenses se tornou um lugar comum, conforme se lê na mesma matéria:

Se as reformas em vias de conclusão visam a melhor conservação do patrimônio do


Museu, pretendem, de outra parte, atrair o povo para as suas salas. Sem deixar de ser
uma instituição de altos estudos de ciências naturais, o Museu Nacional vai assumir,
entre nós, a posição que desempenham seus congêneres, principalmente os norte-
americanos. Como se sabe, os museus modernos exercem eminente papel na educação
popular, quer auxiliando as escolas, quer exercendo uma ação altamente cultural no
seio do povo em geral. O nosso Museu está terminando a sua ‘toilette’ para uma
grande, ininterrupta e instrutiva recepção. Todos, sem distinção de idade, sexo ou
cultura, terão alguma coisa que aprender ou com que se maravilhar.662

O mesmo jornal volta a escrever, em 1950, sobre as inovações expositivas do


Museu Nacional, agora por ocasião da reabertura das exibições de zoologia. A matéria destaca
as inovações das técnicas expositivas, mostrando claramente que agora elas privilegiavam uma
leitura mais narrativa e menos descritiva do sentido almejado pela instituição:

Os armários passaram, pois, a ser construídos com a mesma técnica com que são feitas
as vitrines, introduzindo-se, assim, uma arte nova para a apresentação de obras
antigas. Também a distribuição dos assuntos de maneira a formar uma sequência,
foi trabalho que ainda hoje está preocupando os técnicos do Museu Nacional.
O que o visitante do Museu da Quinta da Boa Vista encontra logo que penetra o
umbral da velha casa imperial, é algo novo, uma síntese completa de tudo o que em
pormenores vai analisar, lá em cima, pelos dois austeros andares do edifício de três
pavimentos. Daí por diante tudo será fácil de localizar.
Outra técnica recentemente introduzida, e de grande importância quer para o visitante
curioso como para o que ali vai entrar em novos conhecimentos, foi a do isolamento

661
“O palácio encantado da Quinta da Boa Vista”. A noite. Rio de Janeiro, 11.06.1946. Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 002, Arquivo Central do IPHAN, RJ. Essa matéria gerou a revolta de um grupo de
servidores do Museu Nacional que se opunham a Torres, que publicaram uma carta denunciando uma suposta má
administração da instituição por sua diretora: “Continua fechado o Museu Nacional”. A Noite. Rio de Janeiro,
14.06.1946. Pasta “Inventários”, AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ
662
“O palácio encantado da Quinta da Boa Vista”. A noite. Rio de Janeiro, 11.06.1946. Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 002, Arquivo Central do IPHAN, RJ. É interessante notar que, anos antes, o mesmo
jornal mostrava um certo desprezo pelo patrimônio etnográfico do Museu, valorizando muito mais o valor de
ancianidade de vetusto palácio em que residiram os antigos imperadores do Império: “De há muito o velho casarão,
quase abandonado, esquecido pelo povo e ignorado pelos turistas, apenas servia para guardar cascalhos de todas
as espécies, gigantescas ossadas, mumias de origem duvidosa e relíquias nem sempre brasileiras. Felizmente, ainda
em tempo de se aproveitar muita coisa, o Serviço do Patrimônio Histórico resolveu restaurar o solar dos Braganças,
iniciando uma obra louvável por todos os motivos, uma vez que não se trata de um passatempo arcáico e sim da
perpetuação de um sentimento que anima aqueles que sabem amar a sua terra, as suas glórias e as suas tradições”
– “O mesmo esplendor da época colonial”. A noite. 14.03.1943, Pasta “Inventários”, AA01/M033/P01/Cx.
RJ104/P. 002, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
397

da atenção do observador com a restrição do seu ângulo visual. Numa só sala, por
exemplo, estão amostras de diferentes assuntos, nos seus respectivos armários. E essa
circunstância, outrora, fazia com que a atenção pulasse de um assunto para outro, não
permitindo uma catalogação uniforme dos temas a assimilar.
Hoje, os mostruários estão dispostos de tal modo que quem está vendo uma coisa
não pode ver outra, absolutamente. Formaram-se, pela disposição dos móveis,
como que departamentos estanques.
O mostruário de documentos e costumes da África são uma preparação para o
conhecimento dos problemas afro-brasileiros. Até nas simples salas com
documentário sôbre etnografia regional, são dispostos os mostruários de maneira
a levar o indivíduo de um a outro plano, sem interrupções que perturbem.663

Essa matéria reforça a hipótese de que, à época, as exposições sobre África, América do Norte
e Oceania precedessem as de etnografia brasileira, pois, como afirma o texto, as exposições
sobre a África são uma “preparação para o conhecimento dos problemas afro-brasileiros”. A
mesma matéria ainda reforça o caráter transnacional dessas modificações:

Êsse é mais um dos trabalhos silenciosos da Sra. Heloisa Alberto Torres, que
conseguiu, inclusive, introduzir no Museu de História Natural e História da
Civilização, a nova técnica hoje adotada os mais modernos museus de todo o mundo.
A vinda do diretor do Museu de Buffalo, por intermédio da Organização das Nações
Unidas, com o objetivo de transplantar para cá todos os recursos que aplicou no Museu
mais moderno dos Estados Unidos, é um dêsses grandes passos que se perdem na
anônimidade dos noticiários comuns. 664

Além disso, o pintor brasileiro José Rescala, encarregado do trabalho para as novas exposições,
teria ganhado um “prêmio de viagem aos Estados Unidos e [se] especializado na nova técnica
de Museus”.665
O jornal Correio da manhã também confirma, após a abertura das exposições em
abril de 1947, aquilo que os demais periódicos haviam afirmado sobre as novas características
educativas dos mostruários. Como já mencionei acima, para este jornal o Museu Nacional havia
perdido “o seu aspecto de casa de bric-a-brac”. Ao adentrar no museu, o(a) jornalista teve uma
impressão mais positiva:

Logo de entrada, tivemos a impressão – não desmentida, aliás – de que um


espírito didático presidira a distribuição das diferentes exposições. Para começar,
um mostruário com todo o moderno instrumental de Antropometria e quadros
sinóticos indicando com precisão os pontos de referência das diversas medidas
somatofísicas.
Admitindo que o visitante já se tivesse assenhorado de tôdas as minúcias dessas
mensurações, segue-se outra exposição mostrando como se chega à identificação de

663
“Arte nova auxiliando obras antigas”. A noite. Rio de Janeiro, 11.12.1950. Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 002, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
664
“Arte nova auxiliando obras antigas”. A noite. Rio de Janeiro, 11.12.1950. Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 002, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
665
“Arte nova auxiliando obras antigas”. A noite. Rio de Janeiro, 11.12.1950. Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 002, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
398

um dado tipo biológico, a partir dos dados assim colhidos. A propósito, enfileiram-se
desde logo os chamados ‘tipos brasilianos’ de Roquette-Pinto.
Se ao visitante interessar o problema do transformismo, ali tem à vista a série
Primatas, com os respectivos esqueletos, a serem comparados com o do homem, ato
continuo. Se o preocuparem antes as questões puras de nossa Indiologia encontrará à
mão, crânios do homem dos Sambaquis, do homem de Lagoa-Santa, de Botocudo,
Bororo, Manducurú, etc. E passando do particular para o geral, um último
mostruário apresentará a classificação das raças, com mapas de sua distribuição dos
Caucasóides, Mongolóides, Negróides e Australóides, tudo obedecendo a normas bem
estudadas e realizadas com bom gôsto e elegância.
Na Secção de Etnografia, o mesmo critério didático preside à distribuição do
material. Isolaram-se os grupos linguísticos Gê, Aruaque, Cariba e Tupí-Guarani.
Em merecida evidência, acham-se expostos em mostruários especiais alguns traços
culturais, característicos, por exemplo, o do guaraná, o do curare, o do algodão, do
fumo, etc. À cerâmica, cuja coleção é das mais ricas, reservou-se toda uma sala, em
que se encontram espécimes dos Tupí-Guaraní do centro e do litoral e, sobretudo,
magníficas peças de Marajó e outras regiões amazonenses.
A carência de espaço obriga-nos a deixar de parte interessantes notas de etnografia
etrusca, greco-romana, pompeana, africana, oceânica, etc. Mas não deixaremos de
focalizar a secção de Egiptologia, com as suas estelas, urnas funerárias, hieróglifos,
tão bem estudados e interpretados por Alberto Child. (Sugeririamos aqui que se
colocasse ao lado das estelas, a sua tradução em vernáculo: bem pode haver entre nós
quem se interesse pela questão).
Não esqueceremos tampouco, na Secção de Etnografia Oceânica, o mostruário em
que se admira o riquíssimo manto que ao nosso primeiro Imperador ofereceu Sua
Majestade o rei Mamahamalú, das ilhas Sandwiche, quando de passagem pelo Rio de
Janeiro, e encantado com a acolhida de nosso soberano, bem diversa das que tivera
nas côrtes da velha Europa...666

Essas longas transcrições são interessantes pois nos permitem visualizar os efeitos
narrativos das novas disposições museográficas apresentadas no Museu Nacional. Fica claro
que o sentido enunciado por meio daqueles arranjos expositivos estava agora muito mais
evidente para os(as) visitantes em função dos esforços didáticos envidados. Além disso, não
parece demasiado deduzir que se sugeria ao espectador um percurso coincidente com uma ideia
de um progresso cultural em direção à formação da civilização brasileira. Era como se, por meio
das exposições, os(as) naturalistas do Museu Nacional dissessem aos(às) seus(suas) visitantes:
“todo este nosso complexo trabalho de objetificação de culturas tem por objetivo mostrar que
nós, brasileiros, ocupamos um lugar destacado na cadeia civilizatória da humanidade. Por isso
nós devemos continuar o nosso valioso trabalho de proteção do patrimônio etnográfico
brasileiro, de dedução das culturas às quais pertencem e de indicação dos caminhos naturais de
nossa harmônica modernização”.667

666
“O Museu Nacional em sua nova fase”. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 09.04.1947 – Pasta “Inventários”,
AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 002, Arquivo Central do IPHAN, RJ.
667
Também tratam da reabertura das exposições do museu nacional as seguintes matérias: “Feição moderna para
o Museu Nacional. O Globo. Rio de Janeiro, 19.08.1941” (Pasta “Inventários”, AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P.
02, Arquivo Central do IPHAN, RJ); “Novas instalações no Museu Nacional”. A manhã. Rio de Janeiro,
16.10.1941 (Pasta “Inventários”, AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ); “Sessenta
minutos revendo preciosas coleções ha anos não expostas”, O jornal [1947] (Cx 07 – envelope 18 – 06/13, CHAT,
399

É certo que nem todos ficaram satisfeitos com a mudança. Com o fim do Estado
Novo, alguns naturalistas do Museu Nacional, identificados com a oposição ao legado
varguista, como vimos, começaram a contestar a posição de Torres à frente da instituição. A
demora na finalização das obras e o incêndio de 1944 abriram espaços para outras críticas,
muitas vezes injustas e mesmo misóginas (vide a seção “9.1” deste capítulo) que também foram
alvo de exposição por meio da imprensa. Por outro lado, até mesmo Castro Faria se mostrou
insatisfeito com alguns aspectos da “modernização” das exposições do Museu:

o critério de curiosidades, dominante nos primeiros museus, foi definitivamente


suprimido não apenas pelo aperfeiçoamento, digamos mesmo criação, de uma nova
técnica museográfica, mas sobretudo, pela mais exata definição dos verdadeiros
objetivos de tais institutos. Pareceu-nos, contudo, lobrigar na nova técnica uma
tendência para supervalorizar as condições de apresentação dos elementos, criando
assim um preciosismo capaz de nos fazer voltar, por paradoxal que isso pareça, ao
tempo dos mostruários de cousas raras, isto é, aos museus de curiosidade. (FARIA,
1947, p. 22)

O antropólogo ainda levanta um outro inconveniente:

essa mesma tendência parece exercer sôbre o grave problema das legendas uma
influência que deve ser quanto antes combatida, pois chega a dar origem a uma
verdadeira repulsa aos dizeres e comentários que realizam a função primordial dos
museus, por excessiva consideração para com os valores estéticos dos arranjos, que
passam assim a representar um fim e não um processo apenas. A legenda passou a ser
uma cousa que enfeia e a lição de ciência deve obedecer ao princípio do equilíbrio de
volumes. O [meteorito de] Bendegó, que é simplesmente o Bendegó, tem direito a
meio metro de legenda, um muiraquitá a meio centímetro… (FARIA, 1947, p. 22.)

Percebe-se claramente como os artefatos do Museu vão ganhando cada vez mais
autonomia em relação aos textos. Eles passam a falar dos objetos invisíveis que evocam de
maneira direta, como ruína ou vestígio de algo cuja totalidade é, assim, experenciada de
maneira fragmentada. Desse modo, o caráter alegórico desses híbridos produtores de sujeitos e
objetos da modernidade nacional acaba se sobrepondo às narrativas que lhes são imaginadas
previamente; eles acabam por impor uma experiência possível da totalidade ilusória que é a
nação.

Neste capítulo vimos como a rearticulação entre os conceitos de civilização e


cultura está ligada à produção de subjetividades exemplares e de espaços em que movimentos
transnacionais são capturados e institucionalizados no interior de uma burocracia estatal

SEMEAR, MN); “Valioso acervo científico que honra uma nação”. Ciência para todos. s.l., 25.07.1948 (Pasta
“Inventários”, AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, Arquivo Central do IPHAN, RJ).
400

nacional preexistente. Heloisa Alberto Torres tornou-se aos poucos um sujeito central de um
certo tipo de projeto modernizante ao entrar em contato com essas instituições e redes
transnacionais. Esse processo de subjetivação, quando bem-sucedido, mostra-se ao mesmo
tempo produto e produtor da modernidade: sua criatividade – nesse caso reconfigurando a
articulação entre os conceitos de civilização e cultura –, saudada como sendo fruto da ação de
pessoas excepcionais, permite uma expansão mais eficiente das relações de subordinação
moderna em espaços antes não alcançados por elas.
A ideia de que uma nação só pode se dizer realmente civilizada a partir do momento
em que conhece plenamente as suas riquezas naturais, incluindo aí as suas culturas ainda não
civilizadas, permitiu o surgimento de novos sujeitos – os(as) novos(as) antropólogos(as)
brasileiros(as), legitimados(as) pelas redes americanistas transnacionais – e de novos objetos –
as “culturas” ameríndias e sertanejas como componentes da própria “civilização brasileira”. Os
mecanismos de tutela projetados e realizados a partir daí dizem respeito, igualmente, a formas
de dominação amparadas pelos instrumentos legais e administrativos de um Estado que
encampa essas práticas. Determinar se uma “tribo” é “primitiva” ou “aculturada” pressupõe
formas específicas de regulação de ações governadas, nesse caso, pelo Estado. Não são as
próprias pessoas que demandam essa proteção, mas a voz dos sujeitos da modernidade que
constroem as suas culturas e definem tecnicamente as formas de intervenção estatal que lhes
devem ser dispensadas. O Museu Nacional se tornou, a partir daí, um ponto de passagem
regulado desses fluxos modernizantes de sujeitos, objetos e híbridos.
Este capítulo enfocou o processo de subjetivação que conduziu Heloisa Alberto
Torres a um lugar estratégico no interior do Museu Nacional. Essa subjetividade, também
marcada por sua condição feminina, adquiriu uma conotação própria por meio de uma
articulação original entre os conceitos de cultura e civilização, capazes de configurar, desse
modo, um projeto específico de modernização nacional perpassado por circuitos trans-regionais
e transnacionais. Essa rearticulação de híbridos conceituais desdobrados em um patrimônio
etnográfico nacional pôde ser flagrada tanto nos discursos públicos de Torres, arquivados como
evidência de uma grande subjetividade da ciência e da modernização nacional, e nas próprias
exposições elaboradas, ao longo da Segunda Guerra Mundial, no Museu Nacional. Essa
instituição passou, a partir de então, a expressar uma nova governamentalidade amparada numa
nova antropologia. O próximo capítulo mostrará como diferentes tipos de híbridos participaram
desse processo produtivo específico.
401

CAPÍTULO 10: O MUSEU NACIONAL E A PRESERVAÇÃO DO

PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO E ETNOGRÁFICO (1937-1955)668

Vimos, no capítulo anterior, que as coleções científicas do Museu Nacional, em


especial as etnográficas, são os elementos vitais para a apresentação narrativa da ideologia
modernizante e nacionalista que configura a sua razão de ser. São elas que produzem tanto uma
nação objetificada quanto os sujeitos que a procuram. Essa cisão renovada entre sujeitos e
objetos da nação provoca uma busca incessante por novos artefatos, pois a modernidade é
totalizante e nada pode escapar à sua sanha classificatória.
Neste capítulo tratarei exatamente da procura e apropriação do patrimônio
arqueológico e etnográfico nacional. Para tanto, deveremos ampliar a noção de patrimônio
cultural nacional, que deixa de ser necessariamente coincidente com aquele que o Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) salvaguardou diretamente.
No que tange às ações empreendidas no âmbito do Museu Nacional da Quinta da
Boa Vista, esse patrimônio cultural corresponderia, dentro do período em que essa instituição
esteve sob o comando de Heloisa Alberto Torres, aos modos de vida “indígenas”, “autóctones”
ou “primitivos” (ainda não aculturados) e “sertanejos” ou “neobrasileiros”, em suas respectivas
adaptações culturais ao meio. As coleções abrigadas pela instituição científica, numa tentativa
de representação dessas “culturas” componentes da “civilização brasileira” (vide capítulo
anterior), cumpririam tanto um papel pedagógico, dando a conhecer um patrimônio cultural
autenticamente nacional, quanto científico, ao fornecer elementos para um conhecimento
sistematizado acerca dessas mesmas culturas. Todavia, é possível perceber, além disso, que se
trata separar os objetos que dão a ver a nação (seja pela integração de categorias específicas ao
seu conjunto ou pela discriminação daquilo que é “primitivo” e “civilizado”) e os sujeitos
autorizados a operar essa cisão.
Desse modo, chamarei aqui de patrimônio etnográfico o conjunto de híbridos
protegidos por intermédio do Museu Nacional para o trabalho de produção e reprodução de
uma modernidade nacional específica, baseada numa forma peculiar de articulação entre os
conceitos de civilização e cultura, conforme foi visto no capítulo anterior. Em função disso, as
próprias culturas indígenas e sertanejas objetivadas e as coleções que elas forneceram,

668
Este capítulo é composto de partes, com atualizações, do artigo “Para além da pedra-e-cal: o Museu Nacional
e as ações de preservação do patrimônio arqueológico e etnográfico (1937-1955)” (LOWANDE, 2013b), e também
de partes, com atualizações, da monografia Coleção, narrativa e tutela (LOWANDE, 2013 c).
402

abrigadas ou pelo próprio Museu ou por outras instituições dignas da confiança dos naturalistas
dessa instituição, no Brasil ou no exterior, podem ser alocadas nessa categoria de híbridos.
Procurarei reconstituir a circulação desses híbridos tratando, primeiramente, das relações do
Museu Nacional com o campo indigenista, ou seja, com a tutela das “culturas indígenas”,
chamando atenção para as especificidades dessas relações no período de atuação de Torres. Em
seguida, abordarei o fluxo desses híbridos em dois circuitos específicos de trocas e de produção
de sujeitos e objetos: o colecionista e o patrimonial.
Para a produção deste capítulo lancei mão dos documentos disponíveis na Seção de
Arquivo e Memória do Museu Nacional (SEMEAR/MN) e no Arquivo Central do IPHAN.
Conforme já havia notado Mariza Corrêa, Torres não nos legou um conjunto expressivo de
trabalhos acadêmicos, tendo dedicado a maior parte de sua vida à administração do Museu
Nacional (CORRÊA e MELLO, 2008). Se Corrêa encontrou nas suas cartas uma alternativa
para compreender melhor a sua prática antropológica, aqui eu lançarei mão, mais uma vez, de
alguns de seus pronunciamentos públicos registrados em documentos burocráticos e rascunhos
de palestras, buscando, no entanto, algo além da reconstrução da sua subjetividade. No
“Capítulo 2” pude argumentar a respeito da especificidade dos testemunhos produzidos por
esses arquivos: ao mesmo tempo em que eles dão conta de subjetividades exemplares –
intelectuais ou funcionários públicos – do processo de modernização nacional, eles também
contam uma versão de sucesso dessa metanarrativa em seus espaços concretos de realização.
Este capítulo também tentará apresentar uma rede específica da história da expansão da própria
modernidade por meio da produção de subjetividades e objetividades. Os híbridos responsáveis
por essa produtividade precisam ser deduzidos, mais uma vez, do próprio ato arquivístico que
os invisibiliza ou os silencia.

10.1. O CAMPO INDIGENISTA E O MUSEU NACIONAL

As políticas indigenistas republicanas possuem algumas especificidades que podem


ser designadas pela noção de “regime tutelar” (OLIVEIRA e FREIRE, 2006), cuja expressão
se daria em grande medida no trabalho realizado pelo Serviço de Proteção aos Índios e
Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), criado em 1910 e, a partir de 1918,
denominado apenas SPI. Segundo Oliveira e Freire,

o SPI foi a primeira agência leiga do Estado brasileiro a gerenciar povos indígenas.
Embora em muitos momentos os seus ideólogos enunciem os seus princípios de
403

acordo com uma linguagem positivista (e mesmo com uma retórica anticlerical), o
modelo indigenista adotado retoma – como herdeiro – formas de administração
colonial empregadas desde os tempos dos missionários jesuítas. Os postos indígenas
do séc. XX mantêm muitos pontos de semelhança com os aldeamentos missionários
constituídos desde o séc. XVI. (OLIVEIRA e FREIRE, 2006, p. 112)

Esse “regime tutelar” deve ser pensado no âmbito de uma reorganização mais ampla
do Estado nacional brasileiro. Ao fim da primeira década posterior à derrubada da monarquia
no país, havia uma grande porção do território brasileiro ainda totalmente desconhecida, que
deveria ser integrada à nação. Seria necessário demarcar seus limites, franquear-lhe o acesso e
possibilitar a exploração racional de seu solo e de seus recursos naturais. Esses propósitos
fizeram parte de um rol de anseios científicos mais amplos, que deram ensejo à criação, em
1909, do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), ao qual passariam a se
submeter tanto o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista quanto o SPI, além de outras
instituições de pesquisa preexistentes ou criadas a partir de então.669
Conforme demonstram os trabalhos de Souza Lima (1989) e de Oliveira e Freire
(2006), as políticas indigenistas se constituíram nesses primeiros anos do século XX em torno
de uma rede entretecida por laços administrativos e ideológicos. Souza Lima mostra que para a
criação do MAIC foi fundamental a ação de Domingos Sérgio de Carvalho (1866-1924),670 da
Seção de Antropologia do Museu Nacional e membro da Sociedade Nacional de Agricultura.
Segundo Oliveira e Freire, o SPI “foi criado a partir das redes sociais que ligavam os integrantes
do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), do Apostolado Positivista e do
Museu Nacional” (OLIVEIRA e FREIRE, 2006, p. 112). Cândido Mariano da Silva Rondon
(1865-1958),671 que poucos anos antes vinha propondo a criação de uma agência indigenista do
Estado, foi convidado a dirigir o recém-criado SPILTN, em função “de sua competência no
trato com povos indígenas demonstrada nos trabalhos das Comissões de Linhas Telegráficas e

669
Já em 1860, durante o Segundo Reinado, portanto, foi criada a Secretaria de Estado dos Negócios da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas, cuja estrutura foi mantida até o início do Regime Republicano, quando
suas atribuições são incorporadas ao Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, por meio da Secretaria de
Agricultura, Indústria e Comércio. A criação do MAIC, em 1909, por sua vez, corresponde à postura de uma nova
elite intelectual, informada por um “positivismo difuso”, que via nas ciências aplicadas o caminho para o progresso
da nação brasileira (cf. BHERING e MAIO, 2011).
670
O engenheiro agrônomo Domingos Sérgio de Carvalho iniciou sua carreira no Museu Nacional em 1895, tendo
se tornado professor efetivo de Antropologia e Etnografia nessa instituição. Foi membro da Sociedade Nacional
de Agricultura (SNA), técnico interino da Secretaria de Estado de Negócios Agricultura e consultor técnico do
Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (KEULLER, 2008).
671
Descendente de povos indígenas, o mato-grossense Cândido Mariano da Silva ingressou no exército em 1881
e, dois anos depois, na Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Chefiou as atividades na Comissão
de Construção das Linhas Telegráficas (que posteriormente passaram a ser conhecidas pelo nome do próprio
militar) e foi nomeado o primeiro diretor do SPILTN, em 1910. Após longa e conhecida ação indigenista no país,
foi condecorado Marechal em 1955.
404

das ideias positivistas sobre os índios, convergentes com os projetos de colonização e


povoamento definidos na criação do MAIC” (OLIVEIRA e FREIRE, 2006, p. 113). Foram
esses laços que, portanto, também ligaram Rondon ao Museu Nacional. Participaram da
Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA),
posteriormente rebatizada de Comissão Rondon, dentre outros cientistas, Alípio de Miranda
Ribeiro (1874-1939) e Edgard Roquette-Pinto, ambos naturalistas do Museu Nacional.
Num trabalho realizado por pesquisadores da Casa Oswaldo Cruz/Fiocruz (HAAG,
2012), enfatizam-se os resultados científicos dessa expedição, preocupação essa cuja
importância já se equiparava à de proteção das fronteiras e de expansão agrícola.672 Haag afirma
que “o Museu Nacional cresceu a passos largos: entre 1908 e 1916 a instituição recebeu 8.837
espécimes botânicos, 5.637 espécimes zoológicos, 42 exemplares geológicos, mineralógicos e
paleontológicos e 3.380 peças antropológicas, tudo originado da Comissão Rondon [...]”
(HAAG, 2012, p. 77). Percebe-se, portanto, que o próprio Museu Nacional crescia, dinamizava-
se e adquiria relevância nacional conforme suas coleções se proliferavam.
Rondon, como o demonstra Cavalcanti-Schiel (2009), e ao contrário de
interpretações mais simplistas que tendem a reduzi-lo imediatamente a um integracionismo
positivista genérico, aproximou-se muito mais da defesa de uma espécie de autodeterminação
capaz de conduzir os índios à sua própria “civilização”, o que se assemelhava muito com a
postura defendida (como vimos no capítulo anterior) pelos antropólogos do Museu Nacional.
Essa postura já era encampada por Roquette-Pinto no início do século, a partir dos contatos
com a Comissão Rondon. Nas palavras do antropólogo, “nosso papel social deve ser
simplesmente proteger, sem procurar dirigir nem aproveitar essa gente. Não há dois caminhos
a seguir. Não devemos ter a preocupação de os fazer cidadãos do Brasil. Todos entendem que
índio é índio; brasileiro é brasileiro” (ROQUETTE-PINTO, 2005, p. 200-201).
Contudo, nos interessa aqui a ação de proteção das “culturas indígenas”
empreendida durante a gestão de Heloisa Alberto Torres. Embora ela tenha sido o principal
epígono de Roquette-Pinto, há especificidades que a diferenciam de seu mestre.
Durante o período que nos ocupa, a participação direta do Museu Nacional nas
políticas indigenistas brasileiras se deu no âmbito do Conselho Nacional de Proteção aos Índios
(CNPI), criado pelo Decreto-Lei nº 1.794 de 22 de novembro de 1939. O CNPI era composto
por sete membros, designados por decreto presidencial, sendo que deveria contar com o diretor

672
Na Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional é possível encontrar toda a documentação referente às
coleções recebidas por esta instituição em função das expedições da Comissão Rondon. – Cx. 06 (lote 2005), pasta
07.
405

do SPI, um representante do Museu Nacional e outro do Serviço Florestal. Esse órgão


consultivo visava a um planejamento sistemático e profissional no âmbito de suas políticas
públicas e possuía como metas específicas o estudo das questões indígenas e a sugestão de
medidas a serem adotadas pelo poder público, especialmente pelo SPI, no que diz respeito a
esse assunto (OLIVEIRA e FREIRE, 2006, p. 128 ss).
Rondon presidiu o CNPI até 1955, quando foi substituído por Heloisa Alberto
Torres, que, por sua vez, permaneceu à frente desse Conselho até 1967, quando de sua extinção
e criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Segundo Adélia Ribeiro, “Heloísa Alberto
Torres foi conselheira do órgão, desde sua criação, insistindo para que interferisse nos aspectos
técnico-administrativos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a fim de que se estabelecessem
uma mais franca cooperação entre ambos, CNPI e SPI” (RIBEIRO, 2010, p. 86). Interessa, para
os fins do presente trabalho, saber se essa atuação de Torres representa alguma modificação das
políticas indigenistas anteriores e a relação disso com uma preocupação de proteção do
patrimônio cultural nacional.
Já indiquei a afinidade existente entre Rondon e Museu Nacional, e na coalizão
destes em torno da autodeterminação indígena contra os interesses exclusivamente econômicos
(coalizão esta muitas vezes pouco efetiva no SPI, não obstante o peso da influência rondoniana).
Não é possível encontrar entre Torres e Rondon nenhum tipo de divergência mais aguda. Muito
pelo contrário: a relação entre ambos era, claramente, de admiração e respeito mútuos. Torres,
no entanto, enfatizava a necessidade de conhecer antes de proteger, de modo que a obra dos
sertanistas devia ser precedida pela dos cientistas. Há nesse ponto, portanto, uma diferença entre
o caráter científico de Torres e o sertanista prático de Rondon.
Essa pequena diferença não passou despercebida, seja na análise de Oliveira e
Freire, seja na de Adélia Ribeiro. Os primeiros notam que a gestão de Torres

foi o período em que o Conselho contou com inúmeros cientistas sociais como
membros, entre os quais Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira. A presença
indígena no meio urbano, assim como a integração com o indigenismo latino-
americano estiveram entre as principais polêmicas do CNPI. Foi no âmbito do
Conselho que foram gestados os planos para uma nova política indigenista a ser
implementada na FUNAI a partir de 1968. (OLIVEIRA e FREIRE, 2006, p. 130-131)

Ribeiro, por sua vez, também nota que o círculo científico se fortaleceu no CNPI a partir do
comando de Torres:

Ao longo dos anos, conviveu não apenas com Rondon, seu amigo pessoal, mas com
Darcy Ribeiro, David Azambuja, Jorge Ferreira, Noel Nutels, Raymundo de
406

Vasconcellos Aboim, Roberto Cardoso de Oliveira, Orlando Villas Bôas, dentre


outros. Trouxe para o CNPI a ex-Seção de Estudos do SPI, criando a nova Seção de
Documentação e Divulgação do CNPI, através do Decreto n. 10.652, de 16 de outubro
de 1942 com o fito de, ao se verificar a impossibilidade das pesquisas manterem seu
ritmo no SPI, assumir a continuidade das atividades de pesquisa. (RIBEIRO, 2010, p.
87)

A própria Heloisa Alberto Torres destaca essa mudança de postura:

É certo que o exercício da proteção aos índios motivado pelo idealismo e devotamento
heroicos, que caracterizaram a fase executada por Cândido Mariano da Silva Rondon
e os companheiros, que dele se acercaram, não se ajusta às condições de vida moderna
marcada pela marcha decidida para a industrialização e, entre nós, de pioneirismo
exploratório cada vez mais acentuado. Substitui-lhe a fase científica: o exame das
condições de vida de cada grupo indígena relativamente ao seu habitat, à sua cultura
e às condições de contacto com os civilizados, o balanço dos recursos que as ciências
sociais oferecem, em seus campos de aplicação, além da lição proporcionada por uma
experiência de 50 anos (1912-1962) de proteção aos índios.673

Percebe-se aqui, claramente, que se trata de uma atividade preservacionista, cujo


objeto era um patrimônio cultural específico, e cuja proteção pelo Estado nacional brasileiro,
no bojo de outras políticas culturais, fazia-se imprescindível. O ser humano, embora
considerado um só, diferenciar-se-ia, conforme já propusera Roquette-Pinto, por um “verniz
cultural”, em diferentes estágios de evolução. Entender o grau desse desenvolvimento seria
igualmente encontrar respostas para importantes problemas científicos, como a diferenciação
étnica sul-americana e, de maneira mais ampla, as características gerais desses processos ao
longo do globo e do tempo. Aqui, uma vez mais, o Estado é disputado como instrumento para
proteção de culturas objetivadas, que passam a ser compreendidas, pelos sujeitos que as
produzem no campo científico, como patrimônio a ser apropriado pela nação como condição
para que ela possa ser percebida como civilizada ou moderna.

10.2. AS COLEÇÕES DO MUSEU NACIONAL

Um outro tipo de híbrido que surge como desdobramento dessa forma específica de
articulação entre os conceitos de civilização e cultura toma forma nas coleções antropológicas
abrigadas pelo Museu Nacional. Em torno desse tipo de híbrido constituem-se redes
transnacionais de trocas das quais as subjetividades produzidas no interior do Museu Nacional
passam a tomar parte. Esse foi um ramo de atuação especialmente importante no âmbito dessa

673
Terceira página de um texto incompleto, contendo críticas ao SPI. Envelope 18, 13/13, caixa 07, CHAT,
SEMEAR, MN.
407

instituição, principalmente a partir dos instrumentos fornecidos pelo Conselho de Fiscalização


das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil (CFE). Segundo Luís Grupioni, o estudo dessa
agência conduz

ao problema da nacionalidade e do patrimônio histórico e cultural que lhe dá suporte,


onde o que interessa não são os índios reais, mas a herança que eles poderiam deixar
para a nacionalidade brasileira. A discussão deve deslocar-se, assim, do eixo do
destino dos índios para o da imagem do índio e de seu legado. É como patrimônio que
os índios interessam ao Conselho de Fiscalização e é nesta ação particular de
preservação que o Conselho ocupa lugar e papel no campo indigenista brasileiro.
(GRUPIONI, 1998, p. 44)

O Conselho de Fiscalização foi um instrumento criado pelo Ministério da


Agricultura no intuito de cumprir as determinações do Decreto nº 22.698, de 11 de maio de
1933. Ao Conselho competiria, portanto, “fiscalizar as expedições nacionais, de iniciativa de
particulares e sem vinculação institucional, e as estrangeiras, de qualquer natureza,
empreendidas em território brasileiro” (GRUPIONI, 1998, p. 53-54).
Luís Grupioni foi quem mais diretamente tratou desses problemas em seu livro
Coleções e expedições vigiadas (1998). É possível encontrar nesse trabalho uma consistente
análise sobre o papel que uma determinada rede de sujeitos e instituições desempenhou na
proteção desse patrimônio específico, representado pelas coleções arqueológicas e etnográficas
adquiridas em território nacional. Grupioni mostra que essas redes se inseriam na confluência
do campo indigenista com o intelectual mediante a análise de um amplo espectro documental,
em especial da legislação pertinente e da documentação institucional do Conselho de
Fiscalização.
De fato, os grupos do Museu Nacional e de Rondon encabeçaram os projetos de
criação de um órgão federal que garantisse a posse desse patrimônio material (GRUPIONI,
1998; DUARTE, 2010; LIMA, 1989). Tratava-se, também, de uma questão de soberania
nacional. Por um lado, os cientistas brasileiros ressentiam-se do fato de que o patrimônio
científico e cultural nacional estaria rendendo mais pesquisas às instituições estrangeiras, dada
a superioridade de recursos, que às brasileiras.674 Por outro, era necessário restringir a
circulação de estrangeiros num território que, a todo custo, pretendia-se nacionalizar.
Essa situação de falta de controle sobre o recolhimento de artefatos arqueológicos
e etnográficos, mas também botânicos, zoológicos e mineralógicos, feria em especial ao Museu
Nacional. Seus naturalistas viam o prestígio da instituição decrescendo diante do que parecia

674
De acordo com Keuller (2010, p. 127), essas reclamações remontam aos últimos anos do século XIX.
408

uma verdadeira apropriação ilícita, por instituições congêneres internacionais, daquilo que seria
patrimônio brasileiro. As coleções recolhidas por Rondon, Roquette-Pinto e Alípio Miranda
haviam enriquecido de maneira expressiva as reservas do Museu, mas não era possível depender
para isso apenas de empreendimentos como a Comissão de Linhas Telegráficas, que, sabia-se,
não duraria eternamente.
A principal estratégia de combate a essa situação se deu a partir da ocupação dos
espaços institucionais criados durante o governo de Getúlio Vargas. A posição ocupada por
Heloisa Alberto Torres nas instituições e redes relacionadas tanto ao campo indigenista como
intelectual possibilitou-lhe uma boa margem de manobras no interior do Conselho de
Fiscalização. Até o desligamento coletivo do órgão em 1939, movimento do qual ela fez parte
e o qual, muito provavelmente, encabeçou, sua presença garantiu que sucessivas
regulamentações favorecessem os interesses do Museu Nacional. Cabe aqui analisar mais
detidamente a forma como isso se deu.
O argumento da necessidade de especialização, via de regra, funcionava de modo a
garantir maior legitimidade às instituições científicas. Grupioni mostra que esse tema foi alvo
de acalorados debates no interior do Conselho de Fiscalização.675 Desobrigar um membro do
Conselho de ser um especialista nas áreas que o órgão cobria significava liberar essa cadeira
para interesses políticos e comerciais que dificilmente seriam os mesmos que os científicos.
Enquanto Heloisa Alberto Torres pôde controlar a seu favor o Conselho, o destino das coleções
apreendidas em geral obedecia aos interesses do Museu. Isso pôde ser observado enquanto
vigorou o regulamento de 1934, que substituiu o primeiro, considerado “draconiano” por
Torres. A esse respeito, ela se pronuncia da seguinte maneira:

Conscientes de que desserviam aos interesses do país e da ciência, trabalhando dentro


daquelas normas, os naturalistas convidados para representar este instituto no
Conselho e entre eles se achava então o Prof. Mello Leitão, na primeira reunião do
Conselho expuseram ao então Ministro da Agricultura, dr. Juarez Tavora, o seu modo
de pensar. Com visão esclarecida do nosso problema de fiscalização ordenou, em boa
hora, o sr. Ministro que o Conselho iniciasse os seus trabalhos pela elaboração de novo
regulamento mais conforme aos interesses dos estudos científicos. O decreto nº
24.337, de 5 de junho de 1934 dava nova organização ao Conselho de Fiscalização. 676

675
Cf. GRUPIONI, 1998, especialmente o segundo capítulo.
676
Esse documento, manuscrito, referente a uma palestra proferida pela então Vice-Diretora do Museu Nacional
para a abertura da exposição fruto das coleções conseguidas por intermédio do Conselho de Fiscalização entre os
anos de 1934 e 1935, também foi analisado por Grupioni (1998). Com base na Ata da 50ª reunião do Conselho,
ocorrida em 26 de março de 1936, o antropólogo conseguiu, com bastante precisão, apontar a data em que
provavelmente foi proferida a palestra: 6 de maio de 1936, às 14h30. Envelope 109, caixa 15, CHAT, SEMEAR,
MN.
409

Esse mesmo documento nos permite compreender o quanto o Conselho de


Fiscalização contemplara os anseios científicos e preservacionistas do Museu Nacional, embora
fosse sugerido o progressivo aprimoramento da legislação:

Acolhido com a reprovação de muitos que receavam se transformasse em obstáculo


para a pesquisa científica em nossa terra, com a descrença de outros que nele viam
apenas um novo órgão absolutamente ineficiente pela impossibilidade material de
exercer fiscalização real, o Conselho pode hoje responder com documentos e fatos
que ambos os prognósticos foram verificados falsos.
Não há um protesto, uma queixa de excursionista licenciado contra a ação do
Conselho, ao contrário aqui no Museu sempre tenho recebido palavras de louvor e de
agradecimentos.
Por outro lado, não me consta tenha havido excursão visando estudos etnográficos, no
território nacional de que o Museu não tivesse direta ou indiretamente beneficiado.
Quando não foram recolhidos nesta casa espécimes etnográficos, sempre recebemos
informações referentes aos trabalhos realizados: roteiros, fotografias, vocabulários,
indicações de jazidas paleoetnográficas, notícias sobre pequenos restos de populações
indígenas dispersos em localidades do interior e que se julgavam completamente
extintas. De qualquer maneira documentação útil.

A palestra em que essas palavras foram proferidas apresentava três conjuntos de


artefatos cuja existência se devia ao trânsito transnacional de americanistas, fossem eles
autorizados ou não pelos “filtros valorativos” (vide “Capítulo 8”) estabelecidos a partir do
Museu Nacional. O primeiro constituía-se de artefatos etnográficos e zoológicos adquiridos
ilegalmente por um excursionista estrangeiro de nome Basilly Sampieri. O segundo foi doado,
em cumprimento à legislação vigente, por Emil Heinrich Snethlage (1897-1939) –
comissionado pelo Museu de Berlim e sobrinho da ornitóloga Emília Snethlage (1868-1929),
que trabalhara no Museu Nacional –, e era composto por 250 objetos indígenas da região do
Guaporé, além de precioso relatório deixado na instituição. O terceiro foi adquirido pelo Museu
Nacional, graças à preferência de compra determinada legalmente, de Curt Nimuendajú, sendo
composto de uma coleção completa dos índios canelas. O CFE se mostrava, assim, uma
importante fonte de recursos para a missão de produção de uma modernidade nacional
específica da qual se investiram os sujeitos do Museu Nacional.
Grupioni ainda elenca uma série de outras aquisições do Museu Nacional, que se
deram por intermédio do Conselho de Fiscalização. Além dessas, é importante mencionar o
controle que a instituição museológica tinha sobre as expedições realizadas por importantes
americanistas estrangeiros, sempre na dependência burocrática do Conselho (ao passo que o
Museu Nacional se encontrava na dependência econômica dessas expedições internacionais),
como se pode observar, dentre outros casos já mencionados nesta tese, na expedição
410

empreendida por Claude e Dina Lévi-Strauss.677 Após tensas negociações, Torres conseguiu
enfim fazer com que Luís de Castro Faria os acompanhasse à Serra do Norte, na condição de
fiscal do Conselho, levando Grupioni a afirmar, com razão, que “ao longo dos anos, o Museu
Nacional aparece como o grande beneficiário das ações de fiscalização do Conselho”
(GRUPIONI, 1998, p. 83).
A utilização do CFE como uma espécie de catalizador dos trânsitos transnacionais,
a despeito do nacionalismo mais cerrado que emanava dos projetos varguistas, fica bastante
claro naquele mesmo texto em que Torres anunciava as exposições advindas das coleções
adquiridas por meio daquele canal:

Na hipótese de estarmos em ótimas condições econômicas e podermos manter no


campo permanentemente algumas dezenas de naturalistas nacionais para coligir
documentação em todos os ramos da história natural, no seu sentido mais amplo,
incluindo a antropologia, – e cumpre notar que, neste particular a urgência em agir é
premente, em face da rapidez com que vão desaparecendo as nossas populações
indígenas – ainda que pudéssemos, repito manter no campo, permanentemente
algumas dezenas de naturalistas hábeis – o que também nos falta em numero tão
elevado – a carência da cooperação estrangeira se faria sentir em pouco tempo. 678

Não é que a nação estivesse em segundo plano para Torres. Todavia, seria a ciência
internacional, em cuja neutralidade ela cegamente confiava, o único movimento capaz de
produzir sujeitos esclarecidos o bastante para a defesa dos interesses ligados ao progresso da
“civilização brasileira”. Isso pressupunha, portanto, a livre circulação desses sujeitos pelo
espaço nacional, desde que eles não ameaçassem os projetos modernizadores específicos
produzidos a partir do Museu Nacional. A diretora dessa instituição teve força suficiente para
segurar, entre 1933 e 1939, os conflitos inerentes a um órgão pensado, a princípio, para o
controle e restrição da circulação transnacional de pessoas estrangeiras, conseguindo
representar, ao contrário, os interesses ligados aos valores do internacionalismo científico (a
este respeito vide “Parte I”). O desligamento coletivo do CFE por ela presidido em 1939 parece
indicar, por outro lado, que a correlação de forças no segundo ano do Estado Novo deve ter
pendido com mais força para o lado dos interesses comerciais e políticos afeitos a um maior
fechamento das fronteiras nacionais.
Percebe-se, portanto, que esse tipo específico e significativo de patrimônio
nacional, composto pelas coleções etnográficas, foi um recurso fundamental para a conexão dos
interesses americanistas – e depois interamericanistas – aos projetos civilizacionais

677
Cf. Correia (2003). Para uma análise pormenorizada dessa expedição, cf. Grupioni (1998) e Valentini (2010).
678
Envelope 109, caixa 15, CHAT, SEMEAR, MN.
411

nacionalistas sistematizados no Museu Nacional. Mesmo no interior de um projeto nacionalista


crescentemente xenófobo, Torres conseguiu garantir a continuidade dos fluxos transnacionais
que tanto importavam para a posição ocupada por usa instituição museológica. Ao lograr ocupar
estrategicamente esses espaços, Torres pôde, ao mesmo tempo, canalizar e redirecionar essas
fontes transnacionais de recursos modernizadores e, ao mesmo tempo, se constituir como
subjetividade central, à época, para esses processos. Vejamos, por fim, como relações
semelhantes se processaram no interior de uma outra instituição, também voltada para a
proteção de um híbrido fundamental para a constituição de uma modernidade alternativamente
nacional: o SPHAN e o patrimônio histórico e artístico nacional.

10.3. EMBATES PATRIMONIAIS

Não obstante o controle do CFE pelo Museu Nacional, as coleções arqueológicas e


etnográficas continuavam se perdendo. Isso porque o que estava sendo ameaçado agora eram
as jazidas arqueológicas em virtude da exploração descontrolada da terra. Os sambaquis se
tornavam fonte de material calcário, enquanto que os “tesos” ou “mounds”, “achadouros” de
artefatos arqueológicos da região Norte do país davam lugar a pastos ou plantações. A
ignorância quanto ao valor dos materiais cerâmicos, líticos, ossadas e outros tipos de artefatos
etnográficos e arqueológicos fazia, segundo os sujeitos do Museu Nacional, com que um
valioso patrimônio se perdesse por falta de controle.
O Decreto-Lei nº 25 de 30 de novembro de 1937 permitiria, em tese, tentar resolver
este problema. Conforme aponta Regina Coeli Pinheiro da Silva, Alberto Childe propôs, num
projeto de 1920, a desapropriação das jazidas arqueológicas, o que, no entanto, feria o texto
constitucional de 1891, que garantia a livre propriedade independentemente do interesse social
(SILVA, 2007). Essa situação foi modificada apenas com a constituição de 1934, e Silva destaca
a tentativa, por parte de Antônio Alcântara Machado, de propor uma norma que também levasse
em conta as pesquisas arqueológicas realizadas no país. Mas o golpe de 1937 interrompeu a
tramitação anterior, apresentando, em seu lugar, o famoso Decreto-Lei mencionado no início
deste parágrafo. Esse decreto determinava o seguinte:

Art. 1º – Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens


móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer
por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional
valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
§ 1º – Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante
do patrimônio histórico e artístico brasileiro, depois de inscritos separada ou
412

agrupadamente num dos quatro livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei.

E arrola como primeiro Livro do Tombo, além do Histórico, do das Belas Artes e do das Artes
Aplicadas, o Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em que seriam inscritas “as coisas
pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim
as mencionadas no § 2º do citado art. 1º”, a saber:

Art. 1º [...] § 2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também
sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que
importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela
natureza ou agenciados pela indústria humana.

Esse texto legal traria de fato dificuldades às práticas de proteção do patrimônio


arqueológico e etnográfico nacional, o que levou, posteriormente, às discussões que
conduziram à Lei 3.924/61. Mas, para o período em tela, isto é, de 1937 até essa renovação
legal, importa perceber que o aspecto mais interessante dessa lei foi, justamente, seu caráter
genérico. Garantida essa caracterização da arqueologia e da etnografia ao lado da paisagem
natural, ou seja, como ramos de uma ciência natural mais ampla, bem ao gosto da antropologia
praticada no Museu Nacional, bastaria aos membros dessa instituição garantir, na prática, uma
participação efetiva nas políticas do SPHAN.

10.3.1. A ocupação do SPHAN pelo Museu Nacional

Vimos que a concepção de patrimônio cultural nacional era, para Torres e para o
Museu Nacional, bastante ampliada, abrangendo tanto “culturas” objetificadas em sua
totalidade quanto os seus “aspectos materiais de cultura” que poderiam ser transformados em
coleções museológicas. Não era esse o tipo de híbrido cujo fluxo o grupo principal do SPHAN
pretendia canalizar prioritariamente naquele momento. No entanto, esse órgão federal oferecia
recursos institucionais que interessaram diretamente aos projetos do Museu Nacional.
A percepção de que o governo federal deveria intervir na proteção do patrimônio
arqueológico e etnográfico nacional já aparece na década de 1920. Ainda no ano de 1920, como
vimos, Alberto Childe, então presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes e conservador
de antiguidades clássicas do Museu Nacional, elaborou uma proposta de preservação do
patrimônio arqueológico e etnográfico nacional.679 Heloisa Alberto Torres também manifesta,

679
Além de SILVA, 2007, vide MIRANDA, 2006 e RUBINO, 1991.
413

num artigo de 1929, sua preocupação no que tange à falta de controle desse patrimônio
(RIBEIRO, 2010), assunto que seria retomado de forma pormenorizada num outro artigo seu,
já com um tom bastante programático, publicado no primeiro número da Revista do SPHAN,
em 1937. Segundo a autora,

só uma campanha longa e insistente, lançando mão de múltiplos recursos, poderá vir
corrigir todos os males que decorrem da ignorância do povo sobre o interesse que têm
esses documentos de culturas primitivas, guardados no seio da terra e que, entre nós,
vão se revelando quasi que ao acaso. Às vezes, manifesta-se não somente descaso mas
um sentimento de avidez que leva as pessoas, ao encontrarem peças de cerâmica, a
destrui-las, ato contínuo ao descobrimento, no propósito de apoderar-se depressa do
ouro que supõem estar ali guardado. (TORRES, 1937, pp. 14-15.)

Não se pode desconsiderar o peso do campo antropológico em construção no país


no que diz respeito à construção do SPHAN. Em 1924 já começava a se esboçar, como veremos
no próximo capítulo, um interesse preservacionista num grupo constituído em torno da figura
de Mário de Andrade. Posteriormente, em meados da década de 1930, essas preocupações se
juntariam à necessidade de se conhecer cientificamente a cultura brasileira, o que se expressaria
nos projetos etnográficos constituídos, como também mostrarei no próximo capítulo, no interior
do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo (DC) e, especificamente, na Sociedade de
Etnografia e Folclore (SEF) dali surgida.
Mas a institucionalização das práticas de proteção do patrimônio cultural nacional
não foi incumbida diretamente à intelectualidade paulista, como eles próprios desejavam. Com
o sucesso político de Gustavo Capanema no governo Vargas, a organização de um serviço de
proteção patrimônio histórico e artístico nacional acabou ficando a cargo de um grupo de
intelectuais mineiros que, antes mesmo do grupo paulista aqui mencionado, possuía seus
próprios anseios preservacionistas, ancorados numa longa tradição de se considerar as cidades
coloniais mineiras como uma espécie de “sacrário” da nação.680 Todavia, Rodrigo Mello Franco
de Andrade, que ficou responsável por sua organização, não deixou de encomendar a Mário de
Andrade o anteprojeto do Serviço.
Se o SPHAN não se tornou um órgão de antropólogos (ao menos durante suas
primeiras gestões), o saber antropológico e etnográfico que se constituía naquele momento foi
fundamental para compreendermos não só o formato tomado pela instituição, mas igualmente
a forma pela qual o patrimônio arqueológico e etnográfico passou a ser ali protegido. Eram

680
A este respeito, cf. BRAGA, 2010. Trata-se de artigo especialmente importante por lançar luz a aspectos não
levados em conta ou mesmo apagados no que diz respeito à constituição das políticas públicas brasileiras de
preservação patrimonial.
414

esses saberes, como já argumentei, que permitiam articular os conceitos de civilização e cultura
como forma de produzir projetos específicos de modernização nacional. O anteprojeto para o
“Serviço do Patrimônio Artístico Nacional” de Mário de Andrade, elaborado em 1936,
propunha uma política museológica em que as ciências naturais deveriam se separar da
etnografia, de acordo com uma compreensão específica do que se poderia considerar uma
cultura autenticamente nacional. Essa acepção de “cultura brasileira” vinha sendo construída
na Sociedade de Etnografia e Folclore com base nas orientações de Dina Lévi-Strauss e do
interesse folclorístico de Mário de Andrade. Isso significava buscar, registrar e analisar
amplamente as manifestações culturais populares que pudessem indicar elementos de uma
constituição cultural autenticamente nacional. Esta acepção específica de cultura expressou-se
no conceito ampliado de “arte” que se pode encontrar no anteprojeto de Mário de Andrade.
Foi ao explicitar tais pressupostos que, finalmente, os projetos de nação da
intelectualidade paulista se chocaram com o dos naturalistas do Museu Nacional, como vimos
no triângulo epistolar apresentado no início desta tese. Torres considerava, em primeiro lugar,
o estudo da cultura como ramo específico da biologia, e o homem não poderia ser corretamente
compreendido se, para além de aspectos socioculturais, não fossem considerados os elementos
mesológicos e fisiológicos. Em segundo lugar, embora no Museu Nacional não se descurasse
da cultura popular ou “sertaneja”, considerava-se a preservação das culturas indígenas muito
mais urgente, tanto por causa de sua rápida extinção, sobretudo pelo pouco preparo tecnológico
para o enfrentamento do elemento “civilizado”, quanto pelo fato de representarem culturas num
estágio “primitivo” de desenvolvimento, portanto cientificamente mais valiosas para os
paradigmas de então.
Na carta em que Torres responde a Mello Franco de Andrade sobre o anteprojeto,
lembremos, ela se coloca na ofensiva, e deixa claro, primeiramente, que não abriria mão da
posição conquistada pelo Museu:

Admitamos que se pudesse remediar a todos esses inconvenientes [trazidos pelo


projeto de Mário e expostos à Mello Franco de Andrade nesta carta] creando o
‘Serviço do Patrimônio Artístico, Histórico e Antropológico Nacional’, e instalado em
edifício anexo ao ou próximo do Museu de História Natural, ainda surgem
considerações muito ponderàveis. Uma, de natureza tradicionalística, não pode deixar
de ser tomada em conta no momento em que se pretende organizar a defesa do
patrimônio histórico do Brasil: é o golpe desferido a uma instituição de 118 anos de
existência e que, máu grado a incomprensão de suas finalidades, pela maioria dos
Governos, tem conseguido levar e manter em alto nível o nome do Brasil por todo
mundo, na divulgação do que a nossa terra tem de mais belo: a sua natureza e a sua
gente. A organização desses trabalhos de defesa não pode ser iniciada pela mutilação
de um instituto centenário e glorioso, quando um dos primeiros monumentos
nacionais a serem tombados pelo Serviço projectado devería ser certamente o Museu
415

Nacional.681

No entanto, Torres sugere uma forma de colaboração entre as duas instituições:

Penso que se poderia estabelecer uma colaboração estreita entre a Secção de


Etnografia do Museu Nacional e o ‘Serviço’, uma verdadeira articulação entre as duas
entidades e da qual poderia resultar benefício consideràvel para êste sem prejuizo dos
trabalhos que aquela levasse a efeito. Todo o material de etnografia constaria do
tombamento, os técnicos do Museu Nacional colaborariam no Conselho Consultivo
da S.P.A.N., organizariam relações de jazidas etnográficas a serem tombadas,
levantariam mapas com a distribuição geográfica dos monumentos a serem
protegidos, elaborariam monografias a serem publicadas pela S.P.A.N.
Por seu lado a S.P.A.N. providenciaria melhores condições para o desenvolvimento
dos trabalhos da Secção de Etnografia do Museu Nacional.

Veremos que Rodrigo Mello Franco de Andrade optou pela proposta de Torres e
não pela de Mário de Andrade. O que o teria levado a essa decisão? Essa resposta passa pela
compreensão da forma pela qual os intelectuais envolvidos se estruturavam, naquele momento,
em redes sociais.
Mello Franco de Andrade deparou-se, já em 1937, com quatro agrupamentos mais
importantes interessados no que o futuro SPHAN poderia oferecer: 1) o seu próprio grupo de
modernistas mineiros, interessado na proteção da arte e arquitetura colonial brasileira,
sobretudo a mineira e religiosa; 2) o grupo de arquitetos modernos que havia se aproximado de
Capanema via projeto do edifício do MESP; 3) a intelectualidade paulista, que desejava ampliar
ao nível nacional os seus projetos culturais; 4) e o Museu Nacional, que desde a década de 1920,
como vimos, ansiava pelo apoio do governo federal.
Postas as cartas na mesa, Mello Franco de Andrade possuía três alternativas: 1)
propor uma política com ênfase no patrimônio arquitetônico, o que agradaria arquitetos
modernos e modernistas mineiros; 2) contemplar a proposta de proteção do patrimônio
arqueológico e etnográfico do Museu Nacional; 3) acatar o projeto amplo de Mário de Andrade.
Os projetos “1” e “2” poderiam coexistir, e Mello Franco teria apoio de seus correligionários
mineiros, dos arquitetos modernos e do Museu Nacional; mas a adoção da opção “3”
pressuporia desagradar todos os outros grupos para contar com o apoio apenas dos paulistas.
Na verdade, Mello Franco dispunha então de apenas duas alternativas.
Poderíamos imaginar que todos os grupos estivessem em pé de igualdade no que
tange aos laços manipuláveis e aos recursos à disposição, e aí já teríamos uma situação que
claramente penderia a favor do Museu Nacional nessa disputa específica com o grupo de Mário

681
AA02/M003/P01/Cx. 0125/ P. 0404, Pasta “Personalidades”, “TORRES, Heloísa Alberto”, Arquivo Central
do IPHAN, RJ.
416

de Andrade. Mas este não era o caso: os grupos “cariocas” e “mineiros” eram vistos com
simpatia pelo governo de Vargas, ao contrário do grupo de Mário de Andrade, que se ligava a
interesses políticos diametralmente opostos aos que se consolidariam com o Estado Novo.
Enquanto Torres estava inserida em outras instituições federais mais antigas e consistentemente
compostas por outras redes políticas e intelectuais, Mário de Andrade vinha de uma constituição
institucional recente682 e em grande medida ainda restrita à sua região geográfica.
Desse modo, se a princípio a notável competência e conhecimento de causa de
Mário de Andrade haviam determinado que lhe fosse confiado, por Mello Franco, o anteprojeto
do órgão preservacionista federal, logo sua implementação se mostrou politicamente inviável.
Mas ainda restam duas questões: por que Heloisa Alberto Torres foi consultada por Mello
Franco? E como ela conseguiu representar, de maneira bastante significativa, como veremos, o
Museu Nacional no interior do SPHAN?
Torres conseguiu se inserir em diversas instituições estratégicas para a divulgação
e defesa de seus projetos culturais. Ao fazê-lo, ela trazia também para sua órbita de influência
uma série de outros intelectuais, com os quais poderia contar em qualquer disputa. Não há
dúvidas de que Torres possuiria forças, inclusive fora do país, caso necessário, para mobilizar
um contingente suficiente de intelectuais e políticos contra Mello Franco de Andrade caso o
SPHAN se tornasse uma ameaça ao Museu Nacional, o que de fato ocorreria se o projeto
marioandradino fosse implementado. É igualmente provável que o jurista mineiro não pudesse
resistir a tal investida, pois a situação política de Capanema e, por conseguinte, de Rodrigo
Mello Franco de Andrade, no limiar do golpe de 1937, era claramente periclitante, conforme
demonstram Simon Schwartzman, Helena Bomeny e Vanda Costa (2000). O próprio Mello
Franco trata dessa situação em carta dirigida a Mário de Andrade em 2 de dezembro de 1937:

[...] você bem pode imaginar que o nosso amigo ministro não andará numa disposição
de espírito muito favorável para deliberar sobre assuntos como esse na posição
insegura em que se encontra ainda no governo. A todo momento correm boatos sobre
a substituição dele pelos personagens mais imprevistos. E é claro que, saindo o
Capanema, o diretor do SPHAN se demitirá também, pois exerce um cargo de
confiança. Em tais condições, fica tudo difícil para se encaminhar no sentido de
qualquer solução”. (ANDRADE, 1987, p. 140)

Mas Torres sabia muito bem construir alianças, e a opção pela paz era muito mais
eficaz que a deflagração de guerras (que poderiam ocorrer, no entanto, caso não restassem
outras alternativas). A naturalista não almejava dirigir o SPHAN ou trazer para o Museu

682
O Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo fora criado em 1935, e a USP, em que se inseriam boa
parte dos intelectuais ligados a Mário, em 1934, por exemplo.
417

Nacional, já tão carente de recursos, as atribuições daquele serviço. Bastava uma colaboração
nos moldes do que fora proposto em sua carta e a presença de seus representantes no órgão
deliberativo da nova instituição.
O pedido formal de cooperação viria em ofício datado de 24 de fevereiro de 1938,
escrito por Mello Franco de Andrade e endereçado à Heloisa Alberto Torres:

Havendo necessidade de essa repartição prosseguir nos trabalhos iniciados, sob a


vossa orientação pessoal, com o objetivo de proceder ao tombamento dos bens de
excepcional valor arqueológico e etnográfico existente no país e bem assim de adotar
as medidas convenientes para a localização e proteção dos achadouros do material
daquela natureza, venho consultar-vos sobre a possibilidade de, na forma do
disposto no art. 25 do decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, o Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional obter a cooperação do Museu Nacional
para o fim da secção de antropologia e etnografia desse estabelecimento tomar a
si a execução da referida tarefa. Na hipótese de resposta favorável à presente
consulta, esta diretoria delegará a mencionada secção do Museu Nacional os poderes
que lhe foram atribuídos pelo dito decreto-lei para o efeito desejado, correndo as
despesas que se tiverem de realizar com os trabalhos em apreço por conta das dotações
consignadas no vigente orçamento ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Quanto à elaboração do programa a ser realizado durante o ano corrente no
tocante às questões de arqueologia, etnografia e arte popular, deverá ser assentado
mediante proposta que vos dignardes apresentar a esta diretoria logo que vos parecer
oportuno. (Apud. DIAS e LIMA, 2012, p. 206)

Já na reunião do Conselho Consultivo do SPHAN de 9 de maio de 1938, quando se


instituíram as formas de funcionamento, estavam presentes nada menos que quatro
representantes do Museu Nacional (de longe a instituição mais bem representada) e que
permaneceriam por décadas na composição deste órgão deliberativo: Edgard-Roquette Pinto,
Alberto Childe, Raimundo Lopes e a própria Heloisa Alberto Torres, na condição de dirigente
de um dos museus nacionais.683

10.3.2. Coleções etnográficas e arqueológicas e o tombamento do Museu


Nacional

O próprio Decreto-Lei 25/1937 contemplava os anseios da carta de Torres. Em seu


generalismo e tipificação patrimonial, este texto legal favorece muito mais a concepção

683
Além dos quatro mencionados, compuseram esta reunião os seguintes intelectuais: Gustavo Capanema (que
presidiu apenas esta reunião inaugural, não mais participando do Conselho), Otávio José Correia Lima, Augusto
José Marques Júnior, Manuel Bandeira, Rodolfo Gonçalves Siqueira, Francisco Marques dos Santos, Carlos de
Azevedo Leão, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Gustavo Barroso, Osvaldo Teixeira e Afonso Arinos de Mello
Franco. Esta composição se modificaria esporadicamente e de forma lenta ao longo dos anos, sobretudo em função
do caráter vitalício do Conselho. Sobre as trajetórias individuais desses intelectuais e sobre este órgão deliberativo,
consultar CHUVA, 2009.
418

antropológica de Torres que aquela defendida por Mário de Andrade. No entanto, há na carta
de 5 de setembro de 1936, de Torres para Mello Franco de Andrade, como vimos, um verdadeiro
rol de “tarefas” a serem cumpridas, em regime de colaboração, quase que informal, pelas duas
instituições.
Com relação à primeira proposta contida na carta de Torres, isto é, a de que “todo
material de etnografia constaria do tombamento”, pode-se ter, a princípio, a impressão de que
se tratava das coleções etnográficas do próprio Museu Nacional. Posteriormente, no entanto,
em artigo que escreve para o primeiro número da Revista do SPHAN, Torres arrola as coleções
etnográficas e arqueológicas espalhadas pelo país e passíveis de proteção federal (TORRES,
1937). Mas o próprio material arqueológico e etnográfico do Museu Nacional não foi tombado,
com a exceção de algumas coleções específicas.
Não encontrei documentos que apontassem o motivo dessa exclusão, restando
apenas levantar uma hipótese que, no entanto, careceria de mais elementos para confirmação.
É possível que Torres não tenha insistido no tombamento das coleções do Museu temendo que
isso, de alguma forma, atravancasse as pesquisas ali desenvolvidas. De acordo com o art. 16 do
Decreto-Lei 25/1937, “as coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas,
demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de
50% (cinquenta por cento) do dano causado”. Desse modo, o mesmo artigo legal que, por suas
restrições, conduziu posteriormente às discussões de um projeto de lei específico para a
proteção dos sítios arqueológicos (que tomou forma na já mencionada Lei 3.924/61), poderia
vir a impedir ou dificultar a utilização e conservação necessária aos estudos dos naturalistas do
Museu Nacional. Não obstante essa instituição fosse, como vimos, bem representada no
Conselho Consultivo do SPHAN, isso por certo diminuiria a autonomia que o Museu possuía
em relação ao patrimônio que tinha sob sua proteção direta, além de tornar muito mais morosas
as práticas de pesquisa ali desenvolvidas, que teriam assim que aguardar a aprovação, mediante
a tramitação processual do SPHAN, para quaisquer intervenções em suas coleções. Mas, como
se disse, trata-se de hipótese a carecer de confirmação.
Todavia, como bem demonstra o artigo de Carla da Costa Dias e Antônio Carlos de
Souza Lima, “o Museu Nacional ganhou, além de uma [...] cadeira no Conselho Consultivo do
Sphan, a função de definir o patrimônio etnográfico e arqueológico nacional” (DIAS e LIMA,
2012, p. 207). Este artigo mostra que Heloisa Alberto Torres foi a responsável direta por uma
série de ações colecionistas junto ao SPHAN efetivadas a partir de uma noção de “cultura
419

regional”, correspondente à “etnografia sertaneja” de Roquette-Pinto. Dentre essas ações, os


autores debruçam-se especificamente em duas coleções, adquiridas pelo fotógrafo Hermann
Kruse em viagens dirigidas em conjunto por Mello Franco de Andrade e Torres.
De qualquer forma, Torres conseguiu do SPHAN uma outra forma de proteção para
as coleções do Museu por intermédio do tombamento do edifício no qual elas se encontravam.
Embora não se possa afirmar que o tombamento da antiga residência imperial tenha garantido
as condições ideais para proteção do patrimônio arqueológico e etnográfico ali abrigado, sem
as verbas e obras conseguidas pelo SPHAN certamente o Museu Nacional teria sofrido perdas
irreparáveis.
No Arquivo Central do IPHAN no Rio de Janeiro há um precioso acervo
documental relativo ao inventário que precedeu o tombamento do Palácio da Quinta da Boa
Vista e às obras que nele foram realizadas após o ato discricionário. A primeira série possui
interessantes documentos reunidos por Noronha Santos sobre a história da Quinta da Boa Vista,
com levantamento iconográfico e textual (incluindo um artigo jornalístico do historiador e reitor
da Universidade do Brasil, Pedro Calmon). No entanto, interessa aqui especialmente a segunda
série documental, em que poderemos perceber nitidamente como se conflitaram e se
conciliaram interesses preservacionistas das duas instituições.
Antes de passar aos documentos da série “Obras”, convém mencionar, todavia,
alguns documentos interessantes da série “Inventários”. O parecer favorável ao tombamento da
Quinta da Boa Vista foi exarado pelo arquiteto Paulo Thedim Barreto (1908-1973), em 1938.684
Em documento datilografado, assinado pelo arquiteto, após uma rápida explanação histórica
relativa à origem do bem, têm-se o seguinte parecer:

Tem esse imovel passado por sucessivas modificações, como se pode verificar na obra
de Debret. Hoje em dia, aí se acha o Museu Nacional. O que actualmente de mais
típico se acha conservado nesse palácio é o chamado jardim da Princesa com suas
prateleiras, escadas, fontes, bancos, banquetas e o embasamento do gradil com suas
guirlandas. Todos esses elementos são trabalhados com conchas, azulejos e pedaços
de louças. Como elementos de ornamentação de jardim brasileiro, é o que de melhor
nos resta.

A justificativa para o tombamento da Quinta da Boa Vista prende-se a elementos de arquitetura.

684
Doc. 01, AA01/M033/P01/Cx. RJ104/P. 02, série “Inventários”, Arquivo Central do IPHAN/RJ. Segundo notas
biográficas de Márcia Regina Romeiro Chuva, Paulo Thedim Barreto (Rio de Janeiro, RJ, 1908, Rio de Janeiro,
RJ, 1973) formou-se arquiteto pela ENBA e “integrou a equipe do primeiro grupo de técnicos mobilizados por
Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 1937, quando da organização do SPHAN, cabendo-lhe a tarefa de proceder
aos levantamentos, para posterior tombamento, dos monumentos localizados principalmente no antigo Distrito
Federal e Espírito Santo. [...] Chefiou a seção de obras da Diretoria de Conservação e Restauração, além da seção
de arte da Diretoria de Estudos e Tombamento na DPHAN” (CHUVA, 2009, p. 438-439).
420

O fato museológico é apenas constatado rapidamente: “Hoje em dia, aí se acha o Museu


Nacional”.
O edifício da Quinta da Boa Vista foi tombado em 11 de maio de 1938, com a
Coleção Arqueológica Balbino de Freitas, composta por conchais do litoral Sul. Esses bens
foram inscritos no Livro de Belas Artes (volume 01, folha 010, inscrição 051) e no Livro
Histórico (volume 01, folha 005, inscrição 023). Em 30 de junho do mesmo ano, o sítio
paisagístico da Quinta da Boa Vista também foi tombado (Livro de Belas Artes, volume 01,
folha 027, inscrição 154, e Livro Histórico, volume 01, folha 027, inscrição 068). 685 A partir
desse momento, o SPHAN passaria a fiscalizar (e colaborar com) a conservação do prédio onde
se encontravam as principais coleções etnográficas e arqueológicas do país.
Já em 8 de outubro de 1938, encontramos novamente o arquiteto Paulo Thedim
Barreto, agora apresentando um “orçamento das obras de que está carecendo o edifício do
Museu Nacional, antigo Paço Imperial”. O documento mostra de modo enfático a situação
precária e arriscada em que se encontrava o prédio. Logo de início o arquiteto já atesta que “a
segurança do imovel está ameaçada. A maior parte do prédio tem a sua estrutura arruinada.
Melhor que qualquer exposição dizem as vinte e quatro fotografias juntas, onde se vêm
elementos vitais do vigamento completamente podres, e, vigas com as cabeças carcomidas”.686
O documento continua apontando problemas: todo estado do forro era precário,
havia necessidade de se fazer novo piso, em concreto armado, de execução de consertos nas
esquadrias, de renovação das instalações de eletricidade e gás, de reforma do telhado, que vinha
incorrendo “em prejuízo visível do imovel e dos objetos expostos”, e, por fim, de novas
instalações sanitárias. Para tanto, o orçamento atingia a quantia considerável de “dois mil e sete
contos e setenta e cinco mil reis, e se refere apenas aos serviços mais urgentes de conservação”.
Ao final do documento, Barreto informa que a administração do museu já havia sido obrigada
a interditar algumas salas do edifício, “tal o estado do imovel”, e que, portanto, “urge que se
façam os trabalhos referidos, a fim de anular a consoante ameaça em que vivem os funcionários,
as coleções e os visitantes do Museu Nacional”.
Cinco dias depois, Rodrigo Mello Franco de Andrade, diretor do SPHAN, já
encaminha esse relatório, com todas as plantas e fotografias anexas, ao Ministro da Educação
e Saúde Pública, Gustavo Capanema. Andrade transmite da seguinte forma as impressões de
Barreto ao Ministro da Educação:

685
Em 04 de março de 1999 foi tombada também um manuscrito da Torah, composto por nove rolos de
pergaminhos, pertencente ao Museu, que foi inscrito com o número 553, volume 02, folha 047 do Livro Histórico.
686
“Orçamento do técnico Paulo Thedim Barreto relativo às obras necessárias no Museu Nacional. Rio de Janeiro,
08.10.1938”. AA01/M047/P04/Cx. 0575/P. 2347.3, Série “Obras/Museus”, Arquivo Central do IPHAN/RJ.
421

O precioso edificio em que se acha instalado o Museu Nacional reclama urgentemente


obras de proteção. O estado de ruina a que chegou a quasi totalidade do seu
madeiramento, apesar dos expedientes a que se têm recorrido para atenuar-lhe os
efeitos, ameaça gravemente a propria estabilidade do antigo Paço de São Cristovão.
Pode dizer-se, sem exagero, que grande parte da construção está na iminencia de ruir,
com sacrificio não só das inestimaveis coleções do museu, mas tambem com grave
ameaça à vida do pessoal do estabelecimento e do numeroso publico que aflue a visitá-
lo.687

A fim de que não parecesse mero artifício retórico o tom da carta, Andrade ainda acrescenta:
“Para que Vossa Excelência avalie da necessidade inadiavel das medidas que venho pleitear
para a salvação do edificio tão profundamente vinculado à nossa historia, bastará examinar as
fotografias que instruem o presente oficio, assim como as plantas que as precedem”. Havia,
porém, um problema:

Essa quantia excede mais de quatro vezes à modesta importancia de que dispôs
esta repartição no corrente ano para atender às despesas com a reparação,
conservação e restauração dos monumentos de valor histórico e artístico existentes
em todo o Brasil. Torna-se, por conseguinte, impossivel empreender as obras
requeridas no edificio do Museu Nacional por conta das dotações atribuidas ao
S.P.H.A.N. no orçamento vigente. 688

O diretor do SPHAN aproveita a oportunidade para reclamar, discretamente, da


falta de recursos para sua instituição. Todavia, esse era um problema que, em casos especiais,
poderia ser resolvido:

Entretanto, atendendo-se à circunstancia de ser o Museu Nacional parte integrante da


Universidade do Brasil e bem assim o respetivo edificio se achar incluido entre os que
constituirão a futura Cidade Universitária, 689 é certo que os serviços de reparação e
conservação ali reclamados podem considerar-se ‘obras de instalação da Universidade
do Brasil’, sendo licito, portanto, atender a suas despesas com dotação orçamentaria
constante da verba 3 – Serviços e Encargos, I – Diversos, subconsignação nº 1, 01
(10.000:000$000690).691

687
Ofício de Rodrigo Mello Franco de Andrade a Gustavo Capanema. Rio de Janeiro, 13.10.1938 e 21.12.1938,
datil., 2p., ass. Rodrigo M. F. Andrade, Capanema e G. Vargas. AA01/M047/P04/Cx. 0575/P.2347.5, Série
“Obras/Museus”, Arquivo Central do IPHAN/RJ.
688
Ofício de Rodrigo Mello Franco de Andrade a Gustavo Capanema. Rio de Janeiro, 13.10.1938 e 21.12.1938,
datil., 2p., ass. Rodrigo M. F. Andrade, Capanema e G. Vargas. AA01/M047/P04/Cx. 0575/P.2347.5, Série
“Obras/Museus”, Arquivo Central do IPHAN/RJ.
689
A respeito dos projetos de Capanema para o ensino superior, inclusive sobre o problema específico da Cidade
Universitária, cf. SCHWARTZMAN et al., 2000, especialmente o capítulo 7, intitulado “O grande projeto
universitário”.
690
Dez mil contos de réis.
691
Ofício de Rodrigo Mello Franco de Andrade a Gustavo Capanema. Rio de Janeiro, 13.10.1938 e 21.12.1938,
datil., 2p., ass. Rodrigo M. F. Andrade, Capanema e G. Vargas. AA01/M047/P04/Cx. 0575/P.2347.5, Série
“Obras/Museus”, Arquivo Central do IPHAN/RJ.
422

Ao fim do documento encontra-se, manuscrito, o “Á consideração do Sr. Presidente”, assinado


por “Capanema” e, com data de 29 de dezembro de 1938, o “Autorizado” do Presidente da
República, Getúlio Vargas.
Alguns elementos desse documento devem ser destacados. Percebe-se que Heloisa
Alberto Torres soube escolher bem seus amigos. Não havia verbas no Museu suficientes para a
garantia da integridade do patrimônio representado pelas coleções do Museu. No entanto, o
tombamento do edifício abria outras vias e verbas à instituição. Não obstante a quantia de dez
mil contos de réis estivesse disponível pelo canal da Universidade do Brasil, foi pelo SPHAN
que ela foi disponibilizada. Torres recorreu a Rodrigo M. F. de Andrade. Entre a diretora do
Museu Nacional e o gabinete de Vargas havia apenas dois indivíduos que, por conta da posse
de um elevado capital político, tornavam o trânsito de recursos por seus respectivos canais
muito mais céleres.
Mas a análise desse documento, desvinculado de um corpus mais abrangente, pode
transmitir a falsa impressão de um privilégio, por parte de Vargas, em direção às políticas
culturais. As obras do Museu Nacional se estenderam por quase uma década, até que a visitação
pública fosse restabelecida apenas durante a presidência de Eurico Gaspar Dutra (1883-1974),
o que acabou servindo de pretexto para que facções rivais a Torres, no interior da própria
instituição museológica, buscassem derrubá-la do posto diretivo, como vimos no capítulo
anteiror. Além disso, vimos que o caráter canalizador de fluxos transnacionais do Museu
Nacional podia contrariar os projetos mais “protecionistas” do regime varguista, como já
pudemos notar nos conflitos existentes no interior do CFE, o que também podia se traduzir em
algum tipo de descaso do governo federal para com sua principal instituição museológica. Além
disso, o “patrimônio arquitetônico” tão caro ao SPHAN por vezes podia se chocar com o
“patrimônio etnográfico” abrigado na Quinta da Boa Vista. Convém, portanto, trazer a este
trabalho alguns dos documentos relativos ao andamento dessas obras, de modo que possamos
perceber também as tensões entre os interesses antropológicos/museográficos do Museu
Nacional versus arquitetônicos/patrimoniais do SPHAN.
Em 10 de maio de 1939, Barreto apresenta novo orçamento para a mesma obra,
agora alcançando um montante de 3.059:808$450.692 O fato de não terem sido utilizados a
tempo os recursos solicitados ensejou uma determinação de Capanema para que fossem
empreendidos novos estudos. Segundo Mello Franco de Andrade, o objetivo de Capanema seria

692
Ofício de Paulo Thedim Barreto para Rodrigo Mello Franco de Andrade, 10 de maio de 1939.
AA01/M047/P04/Cx. 0575/P.2347.5, Série “Obras/Museus”, Arquivo Central do IPHAN/RJ.
423

“não só estabilizar-se definitivamente toda a estrutura do edifício, mas tambem adaptá-lo a


qualquer destinação que o Governo Federal lhe queira atribuir no futuro”. 693 Substituía-se o
orçamento anterior, que visava à realização de obras emergenciais, por outro, amparado em
novos estudos e visando a conferir perenidade ao edifício, fossem quais fossem os usos a que
posteriormente serviria. Tanto eram cogitados esses outros usos possíveis que há, nessa mesma
série documental, um relatório elaborado por Ernesto de Souza Campos (1882-1970), datado
de 22 de outubro de 1938 e enviado a Capanema no intuito de avaliar, a pedido deste, a
possibilidade de se transferir para o Antigo Paço Imperial a Escola Nacional de Música.694 Nas
entrelinhas desse documento deve-se ler o desejo que Capanema possuía de construir, na Quinta
da Boa Vista, sua grandiosa Cidade Universitária.
A documentação burocrática disponível nos arquivos do IPHAN a respeito dessas
obras cessa por aí. Há, no entanto, na Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional, um
esboço de projeto para as obras do Museu Nacional elaborado pela própria Heloisa Alberto
Torres. Nele se percebe, claramente, que não obstante a existência física das coleções do Museu
Nacional dependesse da proteção oferecida pelo SPHAN ao edifício que as abrigava, havia uma
constante tensão no convívio entre os interesses patrimoniais de ambas as instituições. As obras
apontadas por Barreto em 1938/1939, ao que parecem, teriam começado apenas em 1941:

Em 1941, verificou-se que o edifício apresentava sinais de insegurança; o Serviço do


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional deu, então, início a grandes obras para a
respectiva consolidação, para a restauração de alguns aspectos históricos, bem como
adaptação temporária a interêsses museográficos.
O interêsse de preservação dos característicos arquitetônicos de uma casa
protegida por lei e os de instalação de um museu científico em moldes modernos,
determinaram, em vários casos, conflitos. Verificando-se que o Museu Nacional
não poderia conformar-se em permanecer para sempre em local de proporções tão
exíguas, deliberou-se que se sacrificariam o menos possível os aspectos de caráter
histórico, fazendo-se apenas adaptações de interêsse museográfico indispensáveis.
Daí associações de elementos dispares de arquitetura e mobiliário, que as projeções
que seguem bem documentam.695

Embora eu não tenha encontrado os elementos visuais que certamente


acompanharam esta exposição, é interessante seguirmos a descrição dessas “projeções”, que
dão bem a ideia da incompatibilidade da proteção histórica, artística e arquitetônica com a
etnográfica, arqueológica e científica:

693
Ofício de Rodrigo M. F. Andrade para Gustavo Capanema, 13 de julho de 1939, AA01/M047/P04/Cx.
0575/P.2347.5, Série “Obras/Museus”, Arquivo Central do IPHAN/RJ.
694
A data deste documento sugere que a ideia de Capanema lhe ocorreu antes de encaminhar a Vargas aquela
primeira solicitação de dotação orçamentária. AA01/M047/P04/Cx. 0575/P.2347.5, Série “Obras/Museus”,
Arquivo Central do IPHAN/RJ.
695
Página 2 de um documento incompleto. Envelope 18 – 13/13, caixa 07, CHAT, SEMEAR, MN.
424

Segunda projeção: Portaria, vista do pátio interior para a porta principal, que se acha
fechada.
Terceira projeção: Idem, vista lateral.
Quarta projeção: Nave da capela particular da Imperatriz; aí se acham dispostas
coleções de arqueologia americana, avistando-se, à direita, uma múmia encontrada no
Deserto de Atacama (Chile) e, no fundo, um mostruário com tecidos peruanos.
Quinta projeção: Em meio a portadas carregadas de decoração e tetos estucados, o
trono de um régulo africano talhado em madeira.
Sexta projeção: O antigo Salão de Recepção dos Embaixadores Estrangeiros, com o
seu teto e paredes pesadamente decorados, constitui um ambiente desfavorável às
exposições. Não poude, todavia, o local deixar de ser utilizado, em vista do vulto das
instalações, grandes e imprescindíveis, a serem feitas (laboratórios, exposições,
serviços auxiliares de pesquisa e serviços administrativos).

Essas obras se desenrolariam até 1947. É possível acompanhar esse processo por
intermédio de textos jornalísticos. Paschoal Lemme (1904-1997), num documento já
mencionado no capítulo anterior e escrito por ocasião do falecimento de Torres, narra essa obra
num tom de quase epopeia:

Só mesmo a coragem dessa mulher extraordinária poderia enfrentar situação dessa


natureza. Assumiu a responsabilidade de fechar o museu à visitação pública e com
energia invulgar lançou-se à sua reorganização. [...] Com a ajuda de Rodrigo de Melo
Franco, diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pois o prédio
era tombado, iniciou a obra imensa de restaurar o velho e enorme edifício imperial,
cujo estado era dos mais precários, ameaçando até a integridade física dos visitantes
que se acumulavam nos salões de exposições, especialmente aos domingos. O
madeiramento secular ameaçava ruir.
As obras se arrastaram com a lentidão característica dados os conhecidos
estrangulamentos pelos canais burocráticos e a tradicional exiguidade de verbas
quando se trata de problemas culturais e científicos. E a reabertura do Museu Nacional
era assim protelada de ano para ano, apesar dos esforços ingentes da diretora. Chegou-
se assim ao fim do Estado Novo (1945) e aí tentou-se, solertemente, responsabilizar a
direção da instituição, acusando-a até de incompetência e incapacidade. Tratava-se,
porém, apenas de jogo de ambições recalcadas.
A tudo Heloísa Alberto Torres resistiu e, apoiada pelos colegas da Divisão de
Antropologia, conseguiu reabrir as exposições das 20 salas desta especialidade, em
moldes modernos, dentro dos recursos existentes. Em seguida o mesmo ocorreu
quanto às outras divisões, de Zoologia, de Botânica, de Mineralogia e Geologia.696

Não obstante o tom laudatório, esse documento não mente quanto ao desenrolar das
obras “iniciadas” em 1938. Fechadas as exposições para o início das obras no Museu, apenas
em 1947 a instituição reabria suas portas a visitação, com as exposições renovadas, conforme
vimos no capítulo anterior. Neste ínterim, como também já indiquei no capítulo anterior, além
da demora na realização da restauração arquitetônica e até mesmo de possíveis sabotagens
(vide, no capítulo anterior, o incêndio aparentemente crimonoso que tomou o edifício em 1944),

Recorte de jornal: LEMME, Paschoal Lemme. “Heloisa Alberto Torres”. O Globo, 13 de março de 1977.
696

AA02/M003/P01/Cx. 0125/ P. 0404/, série “Personalidades”, Arquivo Central do IPHAN, RJ.


425

uma facção rival de naturalistas chegou mesmo a tentar depor Torres da direção do Museu
Nacional, tendo o caso conquistado uma grande repercussão na imprensa carioca. A ciência
transnacional que embasava o colecionismo do Museu Nacional se viu assim, portanto,
desafiada tanto pelo nacional-estatismo protecionista de Vargas quanto por seus opositores
liberais conservadores inseridos na mesma instituição museológica.

10.3.3. O papel de conselheiros(as) e técnicos(as) ad hoc do SPHAN

A segunda prescrição da carta de Heloisa Alberto Torres a Rodrigo Mello Franco


de Andrade previa a colaboração dos técnicos do Museu Nacional no Conselho Consultivo do
SPHAN. Vimos que, de fato, o Conselho tinha o Museu Nacional representado de forma
majoritária, com quatro membros dessa instituição (a própria Heloisa Alberto Torres, na
condição de diretora do Museu Nacional, Edgard Roquette-Pinto, Raimundo Lopes e Alberto
Childe). Resta saber se essa representatividade expressiva correspondia à efetivação das
políticas públicas baseadas nas premissas etnográficas dos naturalistas do Museu Nacional.
Uma análise exemplar a este respeito pode ser encontrada na tese de doutoramento
de Lucieni de Menezes Simão (SIMÃO, 2008). Embora seu foco esteja centrado, neste caso
particular, especificamente no elo entre Luiz de Castro Faria e Rodrigo Mello Franco de
Andrade, fica claro que seu objetivo é observar, por intermédio da série documental relativa às
Atas do Conselho Consultivo do SPHAN, dentre outras séries, os imbricamentos entre os
campos antropológico e patrimonial, ou, de maneira mais geral, entre os campos científico e
político, no âmbito da construção do Estado nacional brasileiro.
O modelo institucional dos “conselhos técnicos” foi largamente aplicado nos mais
diversos âmbitos da administração pública federal a partir do governo de Getúlio Vargas, que
privilegiou um modelo de “cidadania corporativa” e tecnocrática em detrimento de uma política
democrática (CAPELATO, 2003). Uma rápida observação permite entrever que, de modo geral,
esses órgãos buscavam estabilizar esferas de ação política marcadas por conflitos. Assim, não
obstante se constituísse para cada órgão público um corpo de agentes que conciliasse
competência técnica e lealdade ao governo central, era necessário permitir, no interior dessas
agências, um espaço em que as diversas tensões espraiadas por toda a rede administrativa do
governo getulista pudessem se acomodar, não prejudicando assim o equilíbrio de poder que
sustentaria a estabilidade do executivo federal. Trata-se de uma notável obra de engenharia
administrativa que contribuiu para a manutenção, por quinze anos, da figura de Vargas à frente
do poder público federal.
426

O Conselho Consultivo do SPHAN não funcionava de forma diferente. Silvana


Rubino há muito demonstrou que, antes da implementação do Serviço, isto é, durante sua
“proto-história”, diversos grupos regionais se interessavam pela preservação de um patrimônio
histórico e artístico (RUBINO, 1991). Esses interesses se prendiam a projetos políticos
particulares a cada um desses grupos, por vezes opostos entre si. Ao entregar a proteção do
patrimônio histórico e artístico nacional a um grupo específico de profissionais (o enlace entre
modernistas universalistas mineiros e arquitetos modernos cariocas já muito bem documentado
por diversos analistas de nossas práticas patrimoniais), não há dúvida de que clusters diversos
sentir-se-iam lesados. O Conselho Consultivo do SPHAN permitiu, portanto, a representação
de algumas dessas instituições não diretamente contempladas com o poder institucional do
órgão federal.697
O Conselho Consultivo não nasceu com um formato previamente estabelecido. Por
opinião de Gustavo Barroso, diretor do Museu Histórico Nacional, e de Edgard Roquette-Pinto,
acordou-se, na sessão inaugural do Conselho, em 10 de maio de 1938, que a presidência do
órgão caberia a Rodrigo M. F. de Andrade, e que este não possuiria poder de voto. Decidiu-se
também, acatando a sugestão do presidente do SPHAN, que se adotaria um modelo semelhante
aos tribunais de segunda instância, isto é, com a figura de um relator, e que a distribuição dos
processos aos relatores se faria a critério do presidente, tendo em vista a especialização dos
conselheiros. As reuniões extraordinárias ocorreriam por convocação do presidente ou a
requerimento assinado por dois ou mais conselheiros e as ordinárias aconteceriam às primeiras
segundas-feiras úteis de cada mês. Ficava vedado o voto por procuração e deliberou-se sobre o
Salão Nacional de Belas Artes. Roquette-Pinto ainda tomou a palavra ao final dessa sessão
inaugural para declarar que prepararia filmes a fim de propagar o conhecimento do patrimônio
artístico do país, para ele constituído pelas coleções dos museus.
Posteriormente, poucas são as participações significativas dos naturalistas do
Museu Nacional no Conselho. Na 10ª reunião ordinária, ocorrida em 16 de abril de 1940,
Roquette-Pinto foi o relator do processo 197-T, em que foi tombada provisoriamente a “Gruta
da Mangabeira-BA”, classificada como monumento natural. Em 17 de julho de 1946, na 11ª
reunião ordinária, já se tem o voto de pesar em função do falecimento de Raimundo Lopes, que
realizou, segundo consta da ata, o inventário do patrimônio histórico e artístico do Estado do
Maranhão. Também Roquette-Pinto se ausentava frequentemente das sessões em virtude de

697
Um caso excepcional, de verdadeira “divisão de águas” surgida no interior do Conselho, só foi observado muito
tempo depois, com o caso do tombamento do Terreiro da Casa Branca, em 14.08.1986. Para a análise que segue,
recorri à série documental “Atas do Conselho Consultivo”, que se encontra digitalizada na íntegra no Arquivo
Central do IPHAN/RJ.
427

problemas de saúde, conforme justificado na 14ª sessão ordinária, ocorrida em 29 de agosto de


1947. Em 1953 também já havia falecido Alberto Childe e, em 1955, Roquette-Pinto, reduzindo
assim a representação do Museu Nacional no Conselho.
Já depois de Heloisa Alberto Torres deixar o Museu Nacional, aparece na ata da 23ª
sessão ordinária, do dia 14 de julho de 1957, uma “comunicação de interesse do Museu
Nacional” José Cândido de Melo Carvalho, o novo diretor da instituição. Na próxima sessão
ordinária, que se realizou em 18 de dezembro do mesmo ano, Melo Carvalho volta a se
manifestar, agora em tom de alerta em relação à situação da Quinta da Boa Vista.
Em 1958, a partir da 25ª sessão ordinária, Luiz de Castro Faria já aparece no
Conselho, como diretor substituto do Museu Nacional. Para este período, podemos contar com
a análise de Lucieni Simão (2008). Essa antropóloga mapeia a participação de Castro Faria até
a 48ª sessão do Conselho (18 de novembro de 1966), tendo ele comparecido esparsamente até
a 35ª sessão e assiduamente, na condição de diretor do Museu Nacional, de 1965 em diante, ou
seja, a partir da 45ª sessão. Percebe-se que há também pouco a ser extraído diretamente das
respectivas atas, como pode ser notado no período anterior do Conselho que trouxemos à baila
neste trabalho. Houve, nesse meio tempo, relatórios de José Cândido de Melo Carvalho e do
próprio Luiz de Castro Faria, com destaque para relatório contrário deste último ao tombamento
do morro do Santuário do Bom Jesus da Lapa, Estado da Bahia, que gerou algum debate no
seio do Conselho, conforme se depreende da leitura da ata da 26ª sessão ordinária, de 21 de
agosto de 1958. A propósito, como bem nota Simão, o que se constata da leitura das atas do
Conselho Consultivo é que os debates eram constantes, em nada aconselhando afirmar que a
maioria das decisões ocorria por unanimidade, embora assim se fizesse constar. O consenso
vinha, em boa parte dos casos, somente depois de pedidos de diligências nos locais em questão
e posteriormente a novos e, por vezes, acalorados debates.
Quanto ao caso do Santuário de Bom Jesus da Lapa, Simão consegue extrair uma
interpretação interessantíssima das motivações de Castro Faria, por meio do cruzamento entre
as informações contidas na referida ata e o seu parecer no processo de tombamento. A opinião
contrária ao tombamento amparava-se numa percepção, que já começava a tomar importância,
de que as manifestações populares, assim como os sítios arqueológicos, em nada ganhariam
com a estagnação possibilitada pelo instrumento do tombamento.
Se, por um lado, as atas do Conselho Consultivo se mostram pouco significativas
para a observação da constituição das políticas culturais brasileiras até o início da década de
1960, por outro não se pode negar o espaço que esse órgão deliberativo abria a outras formas
de atuação direta, além de servir, como já sugerimos, como válvula de escape para os conflitos
428

que, no caso das políticas culturais, eram latentes e potencialmente destrutivos, embora
estruturantes. Simão pôde notar como isso funcionava de fato por intermédio de um parecer
contido num processo de tombamento. Para as décadas de 1930 e 1940 isso infelizmente não é
possível, pois os raros processos de tombamento de bens arqueológicos e etnográficos eram,
nesse período, sucintos ao extremo.
Contudo, há um documento, nos arquivos do Museu Nacional, que dá pistas sobre
outras formas possíveis de utilização do Conselho Consultivo. Trata-se de documento intitulado
Monumentos naturais, sitios e paisagens, com subtítulo “Esboço de normas para a
documentação e regulamentação do tombamento de tais monumentos pelo S.P.H.A.N. e as
apreciações do seu Conselho Consultivo”.698 A partir dele, Cristiane Magalhães pôde
aprofundar uma consistente pesquisa que aponta para o fato de que os agentes do Museu
Nacional foram responsáveis, também, pela definição e proteção do patrimônio paisagístico,
cujo significado então se atrelou ao do campo mais amplo das ciências naturais, conforme
pensado por intelectuais como Alberto José Sampaio, Berta Lutz, Raimundo Lopes e a própria
Heloisa Alberto Torres (MAGALHÃES, 2015, em especial a seção “3.2”, intitulada “O
SPHAN e o Museu Nacional: relações e interesses imbricados”). Embora não conste das atas
do Conselho Consultivo do SPHAN que esse documento tenha sido debatido naquele espaço,
Magalhães demonstra como todos os bens ali elencados foram objetos de processos de tutela
no interior desse órgão federal.
Uma outra forma de colaboração entre os naturalistas do Museu Nacional e o
SPHAN foi prescrita por Heloisa Alberto Torres de forma que convém relembrar: os primeiros
“organizariam relações de jazidas etnográficas a serem tombadas, levantariam mapas com a
distribuição geográfica dos monumentos a serem protegidos”.
Embora as políticas do SPHAN de fato tenham privilegiado a proteção de um
patrimônio arquitetônico, os bens etnográficos e arqueológicos participavam de seu escopo de
ação. Analisando a documentação de Luiz de Castro Faria no Museu de Museu de Astronomia
e a série documental “Arqueologia” do Arquivo Central do IPHAN no Rio de Janeiro, Lucieni
Simão chega à conclusão de que “a questão da ancestralidade como marca de construção
identitária e elemento conformador do ‘caráter nacional’ estava presente na definição do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, posto que eram reconhecidos os valores
arqueológico e/ou etnográfico desses bens patrimonializáveis” (SIMÃO, 2008, p. 56).

698
Envelope 46, caixa 11, CHAT, SEMEAR, MN. Documento sem data e sem local, mas, segundo demonstra a
historiadora Cristiane Magalhães, há fortes evidências de que ele tenha sido produzido por Raimundo Lopes
(MAGALHÃES, 2015, pp. 224 e ss.).
429

A autora mostra como Luiz de Castro Faria foi, paulatinamente, adquirindo


autoridade intelectual e institucional a ponto de se tornar, entre as décadas de 1960 e 1970,
referência da DPHAN (agora “Diretoria” e não mais “Serviço”) para assuntos relacionados ao
patrimônio arqueológico pré-cabralino nacional. Sua atuação teria se ligado também a uma
percepção da especificidade desse patrimônio arqueológico, para o qual não caberiam as
categorias de excepcionalidade e autenticidade, uma vez que, para a pesquisa arqueológica, não
fazia sentido uma hierarquização valorativa das jazidas: todas elas teriam interesse científico e,
igualmente, seriam capazes de atestar aquela “ancestralidade” almejada. O tombamento, por
sua vez, seria um instrumento ineficaz no que se refere ao patrimônio arqueológico, haja vista
a necessidade de intervenção num tipo de bem que, para ser conhecido, precisaria ser escavado
e por vezes mutilado. O posicionamento de Castro Faria e a autoridade que conquistou no
campo arqueológico, sobretudo no que diz respeito especificamente aos sambaquis, teria
contribuído de forma fundamental para a discussão e implementação da Lei 3.924/61.
Mas esse é um aspecto que foi praticamente esgotado por Lucieni Simão. Resta
apenas apontar algumas poucas aparições prévias do Museu Nacional neste campo de atuação,
que talvez sejam importantes por terem aberto o terreno posteriormente desbravado por Castro
Faria.
Se Castro Faria, já arqueólogo respeitado, mostrava-se muito mais resoluto em
relação às ações mais eficazes à proteção do patrimônio arqueológico brasileiro (a legislação é
que deveria ser mudada), Heloisa Alberto Torres, à sua época, ainda não havia encontrado
instrumentos eficazes para esses mesmos fins. Bem o demonstra a sequência de ofícios na qual
tenta solucionar um problema que lhe foi apresentado. Em documento endereçado à diretora do
Museu Nacional, o engenheiro Heitor Cordeiro, funcionário do Ministério da Agricultura em
Iguape, faz-lhe o seguinte apelo em relação às jazidas de sambaquis que estavam sendo
destruídas em seu Estado:

[...] aguardava que saisse qualquer espécie de legislação que regulasse o


aproveitamento, guarda etc. dessas reliquias preciosas que se encontram agora, mais
do que nunca, entregues à sanha de gentes impiedosas e gananciosas que tudo
destroem no sentido de satisfazerem apenas interesses egoista [sic] – ganhar dinheiro
– de qualquer forma.
Mas tenho a impressão que nossos legisladores dormem muito ou senão ignoram in
totum o valor intrinseco desses sambaquis, não considerando-os como material
comerciavel, e assim, vão destruindo-os cada vez mais e quando a ciência quiser
aproveitá-los, já será tarde. [...]
Diante deste quadro triste e revoltante, peço permissão para voltar à presença de V.S.
e pedir-lhe encarecidamente que obtenha do Conselho ou Diretoria do Patrimonio
Historico, ou coisa semelhante, uma Delegação qualquer a mim, [...] a fim de conter
essa onda de destruição de um Patrimonio valioso que precisamos preservar até que a
ciência tenha dele se utilizado suficientemente como um grande livro do nosso
430

passado desconhecido.699

Não é possível afirmar se os técnicos do Museu realizaram estudos na área (segundo


o engenheiro agrônomo, os sambaquis de Itinguçu já haviam sido estudados pela instituição),
pois em minha pesquisa não encontrei documentação que permita afirmar isso. No entanto, os
esclarecimentos de Mello Franco de Andrade a Torres já indicam a forma de colaboração que
esse tipo de assunto ensejaria. De fato, a partir da Lei 3.924/61, começa a aparecer uma
documentação mais significativa a respeito dessa colaboração, documentação essa, como
mencionamos, já analisada no trabalho de Simão.
Também não encontrei outros documentos que demonstrem uma atuação mais
incisiva de Torres nessa questão, e, realmente, a partir já da década de 1940, como o demonstra
Simão, é a Castro Faria que vai competindo a cooperação vislumbrada inicialmente na carta da
então vice-diretora do Museu Nacional. Encontrei, nesse sentido, apenas suas manifestações no
processo de tombamento nº 77-T-38, relativo à coleção Balbino de Freitas, ainda assim pouco
significativo no que diz respeito à colaboração técnica do Museu com o SPHAN. É possível
que essa tímida colaboração inicial se deva também à desorganização pela qual passava o
Museu no período que vai de 1938 a 1947, em que, como vimos, a instituição passou por
intermináveis obras e por uma verdadeira crise institucional.

10.3.4. As publicações antropológicas e arqueológicas no SPHAN

Resta ainda um elemento prescrito por Torres em sua carta que merece nossa
especial atenção. Além das narrativas museográficas já analisadas neste trabalho, os naturalistas
do Museu Nacional também se inseriram no espaço privilegiado da produção editorial do
SPHAN, conforme prescrito por Heloisa Alberto Torres em sua carta ao diretor do SPHAN.
Vejamos como se deu essa colaboração.
O SPHAN produziu, em suas primeiras décadas, duas importantes séries de
publicações. Uma delas é a Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e
a outra a série de “Publicações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. Nas
duas o grupo de Heloisa Alberto Torres foi significativamente representado. Márcia Chuva
analisa os números da Revista publicados entre as décadas de 1930 e 1940 (CHUVA, 2009).
Sua interpretação pormenorizada opera por intermédio de dois cortes: um relativo às redes

699
Ofício nº 298 de Heitor Cordeiro a Heloisa Alberto Torres, 25 de janeiro de 1949. Pasta 12.1, Móvel 130, série
“Arqueologia/Museus/RJ”, Arquivo Central do IPHAN/RJ.
431

sociais consolidadas nessas publicações e outro de ordem temática.


Em relação ao primeiro corte, a historiadora classifica os(as) autores(as) que
publicaram na Revista por sua área de atuação e pelo tipo de relação que mantinham com o
SPHAN. Dentre esses grupos profissionais, Chuva destaca a categoria dos(as) antropólogos(as),
que “ampliavam, potencialmente, o discurso possível do SPHAN, via de regra, pela diversidade
de objetos culturais com que lidavam” (CHUVA, 2009, p. 265).
Do ponto de vista temático, a autora observa que não obstante a diversidade de
temas abordados pela publicação, sua concentração se deu, de fato, na arte e arquitetura
coloniais com vistas à invenção de um barroco nacional. Os textos relacionados à etnografia e
arqueologia ficariam por conta dos(as) antropólogos(as), especialistas num tipo de patrimônio
que, segundo Chuva, não se confundiria com o “patrimônio nacional”, que ela toma como uma
categoria construída no âmbito dos interesses de universalização da arte e arquitetura
brasileiras. Segundo Chuva, “os antropólogos foram considerados especialistas da época,
produzindo, com exclusividade, estudos classificados na linha temática etnografia, pois essa
área de conhecimento não se confundia com aquela em construção”. Mais adiante ainda
acrescenta que

outras raízes culturais possíveis não se fizeram presentes, e os trabalhos de cunho


etnográfico demonstram isso, ao retratar um patrimônio material localizado em
território brasileiro, cujas características deveriam ser preservadas, pela sua
irremediável perda ou extinção, no processo de nacionalização que se empreendia,
mas não como elementos constituidores do “patrimônio nacional”. (CHUVA, 2009,
p. 273)

Com efeito, as concepções de cultura nacional advindas da direção do SPHAN e do


grupo do Museu Nacional partem de articulações diferenciadas entre os conceitos de civilização
e cultura. Para o núcleo diretivo do SPHAN, o patrimônio (em especial o arquitetônico) seria a
evidência de um desenvolvimento civilizacional específico da cultura nacional, processo este
do qual os próprios técnicos do SPHAN fariam parte. Para o grupo do Museu Nacional, tratava-
se, em primeiro lugar, de cuidar da diversidade de culturas ainda não civilizadas, e essa tutela
seria um dever dos já “civilizados”, isto é, do Estado nacional moderno brasileiro. No entanto,
como acredito ter demonstrado ao longo deste capítulo, as duas concepções de patrimônio
encontraram abrigo no interior das instituições estatais como “patrimônios nacionais”, ambas
compondo, inclusive, o texto do Decreto-Lei nº 25/1937. As coleções etnográficas e as próprias
culturas indígenas seriam patrimônio nacional, pois seria o seu conhecimento e preservação que
dotariam o Estado brasileiro do caráter de uma “civilização moderna”, marcada pelo progresso
432

científico e pelo conhecimento do seu próprio território. Por esse motivo, convém pensarmos
aqui nas possíveis motivações específicas dos textos publicados na Revista do SPHAN.
Já no primeiro número da Revista, que é datado de 1937,700 podemos encontrar três
publicações relacionadas ao grupo do Museu Nacional: os artigos “Contribuição para o estudo
da proteção ao material arqueológico e etnográfico no Brasil”, da própria Heloisa Alberto
Torres, “Estilização”, de Edgard Roquette-Pinto, e “A natureza e os monumentos naturais”, de
Raimundo Lopes.
O artigo de Torres, assim como os de Gilberto Freyre (“Sugestões para o estudo da
arte brasileira”), Lucio Costa (“Documentação necessária”) e Mário de Andrade (“A capela de
Santo Antônio”), tem um tom claramente programático, e, por esse motivo, me interessa mais
diretamente. A autora apresenta os aspectos que deveriam ser considerados em relação à
proteção à “documentação arqueológica e etnográfica (quer indígena, quer de populações néo-
brasileiras)”, destacando que seriam “muito vários por sua natureza e, por isso mesmo,
interessando, às vezes, a serviços públicos já existentes, mas enquadrando-se perfeitamente
dentro das finalidades visadas pelo SPHAN”. De acordo com a visão dos(as) antropólogos(as)
do Museu Nacional, portanto, como já afirmei, o patrimônio arqueológico e etnográfico
transcenderia a noção restrita de proteção patrimonial existente no SPHAN, o que não o
eximiria de responsabilidade quanto a esses artefatos. O artigo de Torres serviria, portanto, para
orientar como deveria se dar essa proteção.
Ao SPHAN, de acordo com Torres, caberia proteger:

I) jazidas arqueológicas;
II) coleções e espécimes arqueológicos e etnográficos que se achem em museus ou
quaisquer outras instituições federais, estadoais, municipais ou de propriedade
particular.
III) produtos de arte de populações indígenas ou neo-brasileiras atuais que, tendo
possuido um patrimônio de cultura original, se encontrem em condições precárias
econômicas e sociais e se revelem, assim, incapazes de defender o seu regime normal
de vida. (TORRES, 1937, p. 9)

Para cada um desses aspectos Torres propõe um “estudo minudente”. No que se refere às
jazidas, propõe a organização de mapas relacionados às suas localizações e a realização de
estudos para um conhecimento mais aprofundado desses locais, o que seria feito com base num
extenso material já possuído pelo próprio Museu Nacional, além de uma espécie de “educação

700
Márcia Chuva destaca que nem sempre a data estampada na capa da Revista correspondia à sua real data de
publicação. Segundo a historiadora, essa discrepância deveu-se à intenção de se conferir a impressão de uma “certa
continuidade institucional interrompida, delimitando, intencionalmente, o momento em que as ideias expostas
haviam frutificado” (CHUVA, 2009, p. 249).
433

patrimonial” visando à colaboração da população em geral quanto ao valor de tais


“achadouros”.
A seguir, numa primeira seção do artigo, Torres passa a tratar de três ordens de
causas para a destruição das jazidas arqueológicas. A primeira das causas seriam os danos
naturais, como a erosão do solo causada por rios (no caso dos tesos de Marajó) ou mar (para o
caso dos sambaquis), sugerindo medidas, se não de engenharia, pelo alto custo, ao menos de
diminuição do impacto pelo plantio de espécies que controlassem esses processos erosivos,
citando uma série de casos encontrados na literatura arqueológica e “antropogeográfica”.
A segunda causa seria a “ignorância do povo sobre o interesse que têm esses
documentos de culturas primitivas, guardados no seio da terra e que, entre nós, vão se revelando
quasi que ao acaso” (TORRES, 1937, p. 9). Aí se incluiriam o descaso, a avidez e mesmo um
colecionismo amador, que destituiria o interesse científico das peças recolhidas pela falta de
registros antropológicos adequados. Caberia, contra esses males, uma atividade educativa
somada a outra, fiscalizadora.
A terceira causa seria de ordem econômica, havendo que se diferenciar a atividade
predatória de grandes indústrias daquelas realizadas por comunidades carentes e que, sem
outras alternativas, dependessem daqueles pedaços de terra, coincidentes com as jazidas
arqueológicas, para sobrevivência. Revela-se aqui a atenção dos(as) antropólogos(as) do Museu
para os modos de vida rudimentares e adaptados ao meio natural, que deveriam também ser
alvo da ação preservacionista. Torres ampara-se em documentação histórica e observação
geográfica de seus próprios funcionários (como Raimundo Lopes) para traçar um quadro da
depredação de jazidas arqueológicas em função da exploração comercial, visando, por exemplo,
à obtenção de calcário e salitre, além da depredação para construção de rodovias e ferrovias.
Nesse ponto, Torres propõe soluções que apenas seriam implementadas posteriormente com a
Lei 3.924/61, isto é, a notificação de arqueólogos quando da execução de obras de engenharia
e a realização de estudos prévios por parte desses cientistas.
Numa segunda seção, Torres passa a tratar especificamente das coleções ou
espécies arqueológicas e etnográficas existentes em museus, pertencentes ao poder público ou
a particulares. Após reclamar da falta de estudos que acompanhassem as inúmeras coleções
recolhidas pelo país, a autora apresenta uma extensa listagem, que toma mais de três páginas
de seu artigo, com os nomes das instituições museológicas e coleções particulares que abrigam
artefatos arqueológicos e etnográficos, a fim de “destruir a ideia falsa, que vem sendo propalada
ardentemente, de que, em nosso país, ninguem se interessa pela arqueologia e pela etnografia”
(TORRES, 1937, p. 24). Torres almejava assim possibilitar a aproximação desses
434

colecionadores com institutos como o Museu Nacional, no intuito de sistematizar e tirar maior
proveito científico da coleção desses artefatos culturais.
Na terceira seção do artigo, Torres trata do “problema de proteção aos produtos de
arte de populações atuais, indígenas ou néo-brasileiras” (TORRES, 1937, p. 24). Têm-se aqui
um conceito bastante alargado de “arte”, que não nos permite encontrar à primeira vista
diferenças em relação àquele proposto por Mário de Andrade. Poderíamos mesmo dizer que vai
além dele, por propor a proteção das próprias populações que produzem esses artefatos
artísticos:

Entende-se, naturalmente aqui, a expressão ‘produtos de arte’, no sentido amplo de


quaisquer manifestações da indústria humana, originais e peculiares a certos grupos e
documentando aspectos do seu patrimônio material ou espiritual de cultura. É claro
que essa proteção implicaria necessariamente em proteção às próprias populações.
(TORRES, 1937, p. 24)701

Após esta definição conceitual, Torres passa a narrar a situação de exploração dos
povos indígenas, colocados sistematicamente numa posição de inferioridade cultural, e as
medidas cabíveis à sua proteção, reafirmando os pressupostos já indicados ao longo deste
trabalho. Em primeiro lugar, justifica-se uma postura que, embora tutelar, deveria respeitar o
modo de vida indígena. Segundo Torres, se por um lado haveria uma diferença de ordem
cultural em função da qual os povos indígenas em muitos casos não possuíam nem ao menos
condições de exprimir “o modo por que desejara ser amparada”, por outro, parecia

ocioso repetir aqui que a existência de serviços públicos da natureza daqueles a que
vimos aludindo decorre do reconhecimento por parte dos civilizados de que os
indígenas devem ser conservados, pela constatação do direito á terra que habitavam;
pelo interesse que fornecem, para a melhor compreensão do espírito humano, que eles
representam em condições mais primitivas; pela reparação que lhes é devida ao cabo
de alguns séculos de perseguições. (TORRES, 1937, p. 25)

A melhor forma de prestar esse amparo devido seria, segundo a autora, demarcar suas terras. A
seguir, descreve como deveria ocorrer essas demarcações:

Elas deverão ser suficientemente grandes para garantir o sustento dos selvícolas, de
modo conforme às normas econômicas peculiares a cada grupo (caça, pesca,
agricultura). Mas o seu sustento eles deverão consegui-lo a custa do seu próprio
esforço e para que este possa ser rendoso cumpre não impor deformações ao quadro
natural de vida dos selvícolas. Essas terras, no caso de índios ainda hostís ou vivendo
segregados, deveriam ser completamente fechadas á penetração do civilizado e
unicamente visitadas por empregados do Serviço de Proteção e por pesquisadores, sob

701
É certo, porém, que Torres pode ter se apropriado ou feito uma releitura a partir do conceito de arte que conheceu
no anteprojeto de 1936.
435

o controle do Serviço. Aos índios seria dado instrumental mais adequado do que o
possuem para o tamanho das terras. Saberiam que havia um posto accessivel a que
poderiam recorrer em caso de necessidade. Resta a questão, mais grave, de
regulamentação e fiscalização das atividades do civilizado com relação ao índio;
deveriam ser rigorosíssimas e sem elas todos os esforços do Serviço seriam baldados.
(TORRES, 1937, p. 28).

Torres esperava que essa “nota” se desdobrasse em “outras tratando de diferentes


aspectos de proteção ao nosso patrimônio arqueológico e etnográfico” (TORRES, 1937, p. 30),
que neste seu artigo foi tratado da forma ampla como viemos sugerindo ao longo deste trabalho.
Mas essas outras notas não foram escritas e pouco do que foi ali proposto foi de fato
implementado, ao menos imediatamente. Também não fica claro quais ações competiriam
exatamente ao SPHAN, tratando-se de um texto que procurou levantar, de forma genérica, o
que caberia à proteção do patrimônio arqueológico e etnográfico nacional, definição esta na
qual se inseria, insisto, os próprios modos de vida não só dos indígenas, mas, igualmente, dos
“neobrasileiros”. Os estudos, mapeamentos, relatórios de especialistas quando da realização de
obras com impacto ambiental só ocorreriam após estabelecido o formato definitivo da lei
3.924/61, e sua posterior regulamentação (de cuja comissão inclusive participou Torres). As
políticas de demarcação de terras indígenas também apenas alcançariam um modelo semelhante
àquele por ela proposta com a ação dos irmãos Villas-Boas na região do Xingu, na década de
1960.
Ainda no mesmo número da Revista, Edgard Roquette-Pinto apresenta o artigo
intitulado “Estilização”. Segundo o autor, este tema, por “não ser um fenômeno artístico que,
como os outros, tem uma base psicológica”, autorizaria aos antropólogos tratarem de temas
artísticos, firmando, assim, uma posição de legitimidade para o seu grupo profissional nas
discussões acerca desse patrimônio. A estilização, analisada de forma sistemática nesse artigo,
seria “a tradução estética integral da alma do povo; a estilização é um gesto artístico”, um
fenômeno de “transmissão hereditária dos conceitos psicológicos que só com o germe da raça,
preservado de contactos deturpadores, transitam pelas gerações” (ROQUETTE-PINTO, 1937,
p. 52). Segundo Roquette-Pinto,

Não fosse assim, não haveria, na Escola de Belas Artes, lugar para que um modesto
antropólogo viesse conversar a respeito do tema. Mas a antropologia não é hoje mais
a exclusiva apaixonada das caveiras e, sem renunciar ao minudente estudo das feições
morfológicas da espécie, vai, cada vez mais em nossos dias, consagrando-se às
pesquisas superiores e difíceis da fisiologia e principalmente da psícologia dos grupos
humanos. (ROQUETTE-PINTO, 1937, p. 51)

Um exemplo importante de artefato artístico cuja valoração caberia aos


436

antropólogos seria a arte cerâmica marajoara: “E foi assim que surgiu e cresceu um estilo
puríssimo desdobrando-se na magnífica cerâmica de Marajó, obra de arte de imperecivel beleza,
que insulados primitivos imaginaram e construiram nas regiões cortadas pelo Equador. Que os
que ainda julgam a civilização flor de climas temperados, lancem um golpe de vista naquelas
maravilhas” (ROQUETTE-PINTO, 1937, p. 52). Mais adiante veremos que Heloisa Alberto
Torres ainda publicou um texto cujo trunfo foi deixar clara a autoridade desses cientistas quanto
a este artefato específico, cuja materialidade deveria também ser protegida pelo SPHAN. De
qualquer forma, esse artigo já ajudava a assegurar aos antropólogos do Museu Nacional o lugar
de “especialistas”, conforme notou Márcia Chuva.
Há também um artigo de Raimundo Lopes neste primeiro número da Revista do
SPHAN, intitulado “A natureza e os monumentos naturais”. Nele Lopes reafirma a concepção
de patrimônio cultural dos agentes do Museu Nacional ao tratar da importância da
“compreensão integral do ambiente e da cultura”, bem como da exigência quanto ao “zelo pelos
produtos culturais indígenas atuais e a restauração de seus aspectos históricos” (LOPES, 1937,
p. 88). Proteger os índios seria uma forma de proteger os próprios monumentos naturais, haja
vista o seu modo mais sustentável de vida. Segundo Cristiane Magalhães, “para ele os indígenas
e a natureza faziam parte do mesmo grupo dos monumentos naturais e culturais a serem
protegidos e ‘restaurados’ nos seus aspectos históricos” (MAGALHÃES, 2015, p. 228).
No segundo número da Revista, datada de 1938, podemos encontrar três artigos
passíveis de enquadramento no campo da antropologia. Um deles, intitulado “Pesquisa
etnologica sobre a pesca brasileira no Maranhão” também foi produzido por Raimundo Lopes,
antropólogo do Museu Nacional (LOPES, 1938). Carlos Estevão entregou o artigo “Resumo
historico do Museu Paraense Emilio Goeldi”, (ESTEVÃO, 1938) e Estevão Pinto (1895-1968)
publicou o texto “Alguns aspetos da cultura artistica dos Pancarús de Tacarutú” (PINTO, 1938).
Esses escritos ajudaram a firmar, como já defendeu Márcia Chuva, a posição
dos(as) antropólogos(as) como especialistas de um domínio específico da cultura material
brasileira, especialmente a indígena. Raimundo Lopes, por exemplo, além de compor o
Conselho Consultivo do SPHAN a partir de 1938, desde sua criação, ficaria responsável,
posteriormente, pela realização dos inventários relacionados ao Estado do Maranhão. Em seu
artigo demonstra grande erudição ao descrever minuciosamente a pesca nos rios e lagos da
baixada maranhense, dando detalhes dos artefatos utilizados e descrevendo
pormenorizadamente os usos e costumes que envolviam essa “indústria”. Carlos Estevão pode
ser considerado um componente da “zona primária” de amizades do grupo do Museu Nacional,
437

pois a instituição que dirigia era um ponto de apoio fundamental para as pesquisas
antropológicas que pesquisadores(as) brasileiros(as) e estrangeiros(as) realizavam no norte do
país. Estevão Pinto, embora etnógrafo reconhecido, aparentemente realizava suas pesquisas de
forma mais autônoma em relação ao Museu Nacional (ao menos não encontrei elementos que
autorizassem uma ligação direta ou mesmo indireta com essa instituição).
Posteriormente os textos etnográficos vão rareando. Carlos Estevão volta a publicar
um artigo no nº 3 da Revista, dessa vez sobre a cerâmica de Santarém, buscando contribuir para
a ação do SPHAN em relação a esses “achadouros” cujo valor demonstra (ESTEVÃO, 1939).
Gastão Cruls (1888-1959), também próximo ao Museu Nacional, publica dois artigos: o
primeiro sai no nº 5, e trata da ornamentação interior das malocas indígenas (CRULS, 1941), e
o segundo no próximo número, discorrendo sobre a arqueologia amazônica (CRULS, 1942).
Em ambos os textos Cruls define a região amazônica como sendo uma “hileia”, e já se percebe
aqui o interesse pela preservação da região como um todo, partindo-se de um ponto de vista
“antropogeográfico”, projeto este contaria com o apoio da UNESCO e visaria, posteriormente,
a criação do também transnacional Instituto Internacional da Hileia Amazônica, do qual
também participaria Heloisa Alberto Torres (DOMINGUES e PETIJEAN, 2001). No segundo
artigo que publica na Revista, Cruls aborda o mesmo tema sobre o qual Torres se debruçaria
em seu texto para as “Publicações do SPHAN”. Trata-se de uma clara tentativa de valorização
dos artefatos arqueológicos marajoaras e “tapajônicos” (encontrados em Santarém e também
abordados na Revista por Carlos Estevão), num artigo em que cita profusamente a própria
diretora do Museu Nacional e Curt Nimuendajú. Ainda que Cruls não fosse funcionário do
Museu Nacional, é possível encontrá-lo ligado à instituição. Na coleção de documentos
institucionais de Torres, há uma carta sua em que responde a Cruls, opinando sobre o segundo
artigo publicado na Revista, em 1942. A diretora do Museu Nacional rasga elogios ao artigo e
agradece, ao final, por ter lhe oferecido uma “leitura avant la lettre”.702 Percebe-se, portanto, o
controle que Torres assumira em relação ao assunto que tocava sua especialidade: não seria de
bom tom publicar um artigo sobre arqueologia amazônica na Revista do SPHAN sem antes dar
ciência à “D. Heloisa”.
Nimuendajú, cuja ligação com o Museu Nacional não necessita ser reafirmada,
também escreveu um artigo na Revista, intitulado “A habitação dos Timbira” (NIMUENDAJÚ,
1944).
Mas a participação dos naturalistas vinculados ao Museu Nacional não se esgota

702
Carta de Torres para Cruls, 30 de abril 1942. Doc. 78, caixa 04, CHAT, SEMEAR, MN.
438

neste periódico. Resta ainda mencionar o outro texto que Torres publicou no SPHAN. Trata-se
do livro Arte indígena da amazônia, em que detalha 50 gravuras nas quais são representados
diversos artefatos artísticos indígenas, em especial a cerâmica pré-cabralina marajoara e
tapajônica (TORRES, 1940). A produção textual limita-se a umas poucas páginas em que
Torres apresenta as fotografias com base nas hipóteses que ela própria ajudou a estabelecer. No
entanto, a obra se enquadra perfeitamente no objetivo geral dessas publicações, que, segundo
Chuva,

era produzir estudos minuciosos sobre objetos específicos da cultura material,


basicamente aqueles integrantes do universo selecionado como patrimônio histórico
e artístico nacional, ou ainda estudos sobre os artistas e artífices que os produziram.
A série concentrava-se na produção de uma história da arte no Brasil, com o objetivo
claro de inaugurar uma nova área de produção intelectual, delimitando o âmbito de
intervenção do Sphan. (CHUVA, 2009, p. 249)

Como vimos, os antropólogos do Museu Nacional tornavam-se, no SPHAN, também,


“historiadores da arte”, mas de uma arte específica, apenas compreensível por intermédio do
saber antropológico, como defendeu Roquette-Pinto. Mais que isso, Torres pôde se inserir numa
rede de especialistas que a Revista aos poucos vinha consagrando, além de nomear, com a
autoridade conquistada, o que deveria ser alvo, no âmbito arqueológico e etnográfico, da
proteção do recém-criado órgão federal. Desse modo, a ciência transnacional definidora de uma
rearticulação dos conceitos de civilização e cultura encontrou, também no SPHAN, um espaço
privilegiado para a canalização de seus fluxos produtores de novos sujeitos e objetos da
modernidade.

Retomando o triângulo epistolar apresentado no começo desta tese, podemos


perceber que algumas questões fundamentais ali suscitadas já começam a ser respondidas. Estes
dois últimos capítulos puderam mostrar em que medida uma rede central de práticas
antropológicas brasileiras na década de 1930, e mesmo antes, esteve diretamente conectada aos
fluxos relacionados ao patrimônio cultural nacional. A rearticulação americanista dos conceitos
de civilização e cultura produziu desdobramentos no mundo latino-americano, em especial no
Brasil, que conduziram a novas práticas antropológicas e a projetos autônomos de
modernização nacional. Essas práticas também produziram e foram produzidas por um novo
tipo de híbrido: as coleções antropológicas e o patrimônio etnográfico e arqueológico brasileiro.
Logo esses fluxos de produção se entrecruzariam com o projeto de um Estado
centralizador em gestação desde, pelo menos, o período que sucede imediatamente a Primeira
439

Guerra Mundial, e que toma ímpeto com as comemorações do Centenário da Independência do


Brasil. A modernização da “civilização brasileira” recorreria, também, a híbridos patrimoniais,
e, ao invés de se prender ao “patrimônio pedra e cal”, vimos que os sujeitos do Estado Novo
buscaram trazer para o seu campo de visão e controle outras práticas patrimoniais, a exemplo
daquelas que vinham sendo produzidas no Museu Nacional. Por outro lado, os sujeitos do
Museu Nacional também saíram em busca das ferramentas administrativas oferecidas pelo
aparato burocrático do Estado Novo para consolidar o seu próprio projeto modernizador.
Vimos, neste capítulo, que esses complexos entrecruzamentos tanto reforçaram produtividades
quanto causaram conflitos. É essa tensa relação entre colaboração e conflito que percebemos
expressa na troca epistolar apresentada no “Capítulo epigráfico” desta tese.
Contudo, precisamos deslocar a nossa atenção para um outro foco regional, isto é,
o paulista, para que seja possível responder a outras questões que ainda continuam em aberto.
Em síntese, faz-se necessário ainda compreender a participação de outra grande subjetividade
da modernização nacional, isto é, Mário de Andrade e seu grupo, naqueles relacionamentos que
ensejaram a produção desta tese.
440

CAPÍTULO 11: DESCOBRIR A CULTURA E CIVILIZAR A NAÇÃO:

SUJEITOS E OBJETOS DA MODERNIDADE NACIONAL PAULISTA

Neste capítulo tratarei do contexto relacional específico que permeou a produção


da subjetividade modernista de Mário de Andrade, a fim de entender melhor como ele se
conectou ao circuito de produção da modernidade nacional por meio de seus patrimônios
culturais. Para isso precisamos perceber como se constitui historicamente um ethos intelectual
regional específico em São Paulo a partir de uma confluência entre os campos político e
intelectual. Desse modo, apontarei alguns elementos significativos desse percurso, a fim de
compreender como ele se expressa numa subjetividade dotada de uma centralidade relacional
marcante e devotada à proteção do patrimônio artístico nacional. A partir disso será possível
compreender de maneira um pouco mais clara, no próximo capítulo, o sentido das práticas de
tutela do patrimônio histórico e artístico na região paulista.

11.1. UMA “RAÇA DE GIGANTES”

Ao longo da Primeira República, a oligarquia paulista, por meio do Partido


Republicano do seu estado, o PRP, gozou de uma posição privilegiada no cenário político
nacional.703 As sucessivas “políticas de valorização” do café e a autonomia gozada pelo estado
para a contratação de empréstimos externos logo conduziria elite agrária do estado a uma
posição de predomínio econômico. Não tardaria para que ela passasse a almejar também a
condução dos destinos de toda a pátria.704
A elite paulista já vinha investindo desde o final do século XIX em instituições
intelectuais que pudessem servir à projeção de seus interesses regionais ao nível da condução
da própria nação. A respeito da fundação do Museu Paulista em 1895, João Batista de Lacerda,

703
A respeito dos “atores políticos” da Primeira República, numa perspectiva mais sofisticada que o lugar-comum
da “República café-com-leite”, cf. VISCARDI, 2001.
704
Boris Fausto fala em “predomínio e hegemonia da burguesia do café no plano interno” e em uma “subordinação
no plano internacional” que condicionaria a própria forma assumida por essa hegemonia (FAUSTO, 2006). Numa
síntese mais recente, Gustavo H. B. Franco e Luiz Aranha Corrêa do Lago chamam a atenção, no entanto, para o
fato de que “[…] o enredo dominante durante a Primeira República não foi o da predominância inconteste da
oligarquia cafeeira, e tampouco o de concepções ortodoxas de política econômica. A historiografia inclina-se ora
para um lado, ora para o outro, muitas vezes adotando versões esquemáticas dos interesses em jogo nesses anos,
que ignoram aparentes paradoxos, com a indiscutível importância da ortodoxia na definição da política econômica,
e as complicações pertinentes ao chamado ‘pacto federativo’, a interferir na suposta hegemonia de São Paulo”
(FRANCO e LAGO, 2012, p. 224).
441

então diretor do Museu Nacional, afirmou que “o Dr. Von Ihering tem naturalmente em vista
insuflar os ânimos próprios dos paulistas e recomendar aos poderosos do Estado os seus
incomparáveis serviços. Procedeu bem, trabalho pro domo sua” (apud SCHWARCZ, 1993, p.
81). Além do Museu Paulista, outras instituições que podem ser arroladas nesse grupo são a
Faculdade de Direito (fundada durante o Império, em 1827), o Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo (IHGSP), de 1894.
De modo geral, pode-se dizer que todas elas encamparam um discurso de
“excepcionalidade” do povo paulista e de uma espécie de “destino manifesto” ou “missão
civilizadora” de direção da pátria rumo ao progresso. O Museu Paulista, primeira instituição
que mencionei e cujo edifício foi erigido simbolicamente às margens do rio Ipiranga a fim de
marcar a participação paulista na construção da nação, foi instituído, sob a gestão de von
Ihering, com o intuito de dotar o estado de um centro de excelência científica comparável ou
superior ao que existia no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Mas, na verdade, o esforço
assemelhava-se mais a uma “obra de fachada”:

O MP […] em seus primeiros anos personifica o exemplo mais extremado de um


‘gabinete de quinquilharias’ a serviço da elite local e em homenagem a ela. No próprio
monumento, que pouco se assemelhava a um museu, revelava-se o casamento da ideia
de construção de uma ‘grande e imponente obra’ com os desejos da elite paulista de
se fazer representar na esfera da cultura. Longe da cidade, o museu sofreria com a
distância e os problemas de comunicação que ela acarretava; mas alcançaria projeção
no mirrado ambiente cultural da época. (SCHWARCZ, 1993, p. 90)

Lilia Schwarcz ainda afirma que “viabilizado por uma elite econômica poderosa e dirigido por
um cientista alemão bastante isolado, o estabelecimento mais se parecia com uma ‘casa de
fachada’. Modelo mimético dos centros realizados alhures, o museu paulista preenchia todos
os quesitos formais, sem a mínima condição de viabilizá-los” (SCHWARCZ, 1993, p. 91).
Antônio Carlos de Souza Lima destaca o papel de von Ihering também na
formulação de um discurso indigenista para o estado. Materializado na polêmica afirmação
sobre o extermínio dos caigangues, esse discurso não era, em essência, tão diferente daquele
dos demais naturalistas positivistas brasileiros: tratava-se de civilizar-se, a todo custo, o interior
do país, e as afirmações do renomado cientista apadrinhado pelas elites paulistas certamente
soavam como música aos seus ouvidos (LIMA, 1989, p. 289).
A partir da gestão de Affonso d’Escragnole Taunay, iniciada em 1917, o Museu
Paulista passou a narrar uma história de São Paulo “como a própria história do Brasil”. Segundo
Ana Cláudia Fonseca Brefe, esse caráter esteve muito claramente presente na exposição
organizada para a efeméride de 1922:
442

Os acontecimentos estavam alinhavados numa perspectiva teleológica, isto é, todo o


oceano de imagens que começava no peristilo e se estendia até o salão de honra,
passando pela escadaria monumental e por todas as salas anexas que contavam a saga
dos paulistas na conquista do território brasileiro, tudo convergia para um único e
previsível ponto de chegada prefixado: a nação brasileira fora fundada em solo
paulista. A Independência brasileira aí proclamada vinha apenas confirmar esse fato.
(BREFE, 2005, p. 81)

Antes de dirigir o Museu Paulista, Taunay fora admitido no IHGSP em 1911. A


respeito do instituto paulista, ainda de acordo com Brefe, “apesar de se orientar e se estruturar
segundo o modelo comum, isto é, do IHGB, seu direcionamento singular foi logo fixado no
primeiro volume da [sua] revista: ‘A história de São Paulo é a própria história do Brasil’,
deixando claro que o IHGSP pretendia reescrever a história nacional, ‘tendo à frente o percurso
e exemplo paulistas” (BREFE, 2005, p. 64).705 Seria pertinente, portanto, afirmar que “o
instituto paulista, com suas pesquisas, trabalhos publicados e intenso intercâmbio intelectual
entre seus sócios, foi responsável pelo desenvolvimento de um ‘nacionalismo paulista’,
definidor da nação sobre outras bases” (BREFE, 2005, p. 67), o que significava o mesmo que
dizer que, “se São Paulo tomou a frente no passado, deveria, no presente, continuar a irradiar
sua ação, ao mesmo tempo difusora e unificadora” (BREFE, 2005, p. 67). “Composto por boa
parte da reduzida elite intelectual paulista, que em sua maioria já participava do MP [Museu
Paulista] e da Academia de Direito” (SCHWARCZ, 1993, p. 126), o IHGSP elegeu como
temática privilegiada a “era dos bandeirantes”, que “estava presente nas revistas de forma
reiterada, sendo resgatada como metáfora de uma identidade mais propriamente paulista”
(SCHWARCZ, 1993, p. 127). Ainda segundo Schwarcz, “São Paulo, que na época da formação
do instituto vivia um momento de pujança econômica e política, atribuía ao IHGSP a tarefa de
restituir ao estado símbolos de ‘cultura e civilização’, até então concentrados na corte”
(SCHWARCZ, 1993, p. 127).
É interessante notar que essa identidade paulista tem sua continuidade assegurada
no tempo por meio de um discurso racial. Alfredo Ellis Jr. (1896-1974), um epígono de Taunay,
sistematizou essa vertente intelectual em sua produção historiográfica. Segundo John Manuel
Monteiro,

Ao contrário de seu mestre Afonso de Escragnolle Taunay, cuja vastíssima obra


constitui uma desordenada crônica de fatos, eventos e personagens pitorescos, Ellis
Jr. ambientou o bandeirante e, sobretudo, a mestiçagem num contexto cientificista tão

705
A última frase foi pronunciada pelo próprio Taunay em seu discurso de posse no IHGSP, que foi publicado na
revista da instituição em 1913.
443

emaranhado quanto a densa mata penetrada pelos mesmos sertanistas. Lançando mão
de uma verdadeira floresta de pressupostos evolucionistas, em que pesavam as teorias
abraçando o papel determinista da raça e do meio físico, Ellis Jr. esforçou-se para
mostrar as bases científicas e históricas da especificidade do caráter paulista, que
fundamentavam o papel de liderança econômica do Estado de São Paulo na República
e justificavam seus anseios autonomistas. (MONTEIRO, 2001, p. 196-7)

Na obra de Ellis Jr. o “mameluco” aparece de “alma lavada”, “assumindo um papel histórico
sem paralelos no passado colonial” (MONTEIRO, 2001, p. 201): “Sub-raça fixa e eugênica,
antepassados dos heróicos combatentes de 1932, faltava aos mamelucos, porém, uma
fundamentação científica capaz de se contrapor ao pessimismo dos arautos do evolucionismo
racista” (MONTEIRO, 2001, p. 201).
Formado pela Faculdade de Direito do estado, Ellis Jr. foi eleito deputado pelo PRP,
cargo em que permaneceu até quando das reviravoltas de 1930, participou da Liga de Defesa
Paulista (ao lado de Rubens Borba de Morais) em 1931 e se destacou como um dos
doutrinadores do levante de 1932, no qual ele próprio chegou a pegar em armas (MONTEIRO,
2001, pp. 197-198). Além disso, Ellis Jr. ocupou a cadeira inaugurada por Taunay na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde permaneceu de 1939 a 1956. Ainda segundo
Monteiro,

As primeiras obras de Alfredo Ellis Júnior surgiram no auge do surto regionalista que
animava a vida intelectual e política em São Paulo após o advento da República. Este
surto corria paralelamente às manifestações modernistas que brotavam em São Paulo
na mesma época, movimentos que convergiam em alguns pontos e em alguns autores,
mas que divergiam de modo significativo em termos de suas interpretações da nação
e da nacionalidade. (MONTEIRO, 2001, p. 200)

Por fim, a Faculdade de Direito de São Paulo produziu um “liberalismo


conservador” e “antidemocrático”, “[…] assimilado com certas adaptações que o fariam
conviver com a escravidão e o latifúndio durante o Império, e com a hipertrofia estatal e o
autoritarismo político republicano [...]” (SCHWARCZ, 1993, p. 181). Sua função era formar
uma elite política e burocrática capaz de intervir na estrutura social por meio de sua ação no
Estado: “a crítica ao determinismo racial não implicava [...] descartar a perspectiva evolutiva.
Os homens continuavam desiguais, porém passíveis de ‘evolução e perfectibilidade’ em função
da ação de um Estado soberano e acima das diferenças não só econômicas como raciais”
(SCHWARCZ, 1993, p. 182). Sua clientela era “caracterizada pelo pertencimento a uma elite
econômica de ascensão recente” (SCHWARCZ, 1993, p. 187).
Esses elementos são componentes importantes para compreendermos a identidade
comum dos diferentes sujeitos que compuseram as redes relacionais atreladas ao nome de Mário
444

de Andrade. Todos eles, de um modo ou de outro, comungavam desses ideais ou passaram por
uma dessas instituições. As décadas de 1920 e 1930 trouxeram algumas mudanças específicas
que, todavia, devem ser consideradas para que seja possível refinarmos um pouco mais esse
contexto relacional, fundamental para a compreensão das disputas pela modernidade brasileira
que se estabeleceram em torno da defesa de seu patrimônio histórico e artístico.

11.2. A CONFORMAÇÃO DE UMA NOVA ELITE

Fernando Limongi (1989) chama a atenção para um conflito geracional que emerge
no interior das elites paulistas a partir da década de 1920. Segundo ele, “já no início dos anos
vinte, a diversificação interna do ‘complexo cafeeiro’ teria alcançado tal magnitude que não
mais se pode tomar os interesses cafeeiros e paulistas ‘como um bloco inteiriço” (LIMONGI,
1989, p. 114). Com isso o PRP se tornou mais fechado em torno dos velhos coronéis do interior,
dificultando assim o acesso de um grupo de políticos mais jovens à estrutura eleitoral da
Primeira República. Para alcançar tal fim o partido passou a reforçar sua coesão interna por
meio de instrumentos como fraudes eleitorais e decisões arbitrárias a respeito dos nomes
indicados para os processos sucessórios, gerando um crescente descontentamento de pessoas
que, assim, viam-se alijadas do campo político-eleitoral.
Essa situação possibilitou a emergência de um grupo identificado a valores que
passaram a ser contrapostos aos da velha oligarquia estadual. Em 1917 foi fundada a Liga
Nacionalista, voltada, a princípio, para a pregação da necessidade de reformas políticas
moralizadoras, com a adoção do voto secreto obrigatório, da erradicação do analfabetismo e da
assimilação do imigrante à comunidade nacional. O caráter “nacionalista” do grupo se ligava
ao descontentamento relativo ao alistamento de estrangeiros enriquecidos nos quadros do PRP,
algo que não seria admitido na Liga. Os seus membros eram recrutados nas “camadas urbanas
educadas” – “sobretudo entre alunos e professores da Faculdade de Direito” (LIMONGI, 1989,
p. 116), e era justamente esse ambiente urbano, com seu expressivo contingente de imigrantes
– e imigrantes alfabetizados e bem-sucedidos economicamente – que justificava o
posicionamento xenófobo do grupo. O jornal O Estado de São Paulo, pertencente a Júlio de
Mesquita Filho (1892-1969), assumiu o papel de porta-voz das ideias da Liga, e Limongi afirma
que o veículo era “um importante ponto de referência profissional e intelectual” para o “mundo
cultural paulista das primeiras décadas deste século [XX]”, “local das rodas em que se discutiam
os problemas e projetos culturais” (LIMONGI, 1989, p. 112). Ali se criou, portanto, um grupo
445

que se identificava como a “elite cultural” do estado e que, por isso mesmo, seria a mais apta a
ocupar os postos políticos regionais e mesmo nacionais, ao contrário dos “políticos
profissionais” que desmoralizavam a política paulista.
Em 1922 a Liga Nacionalista apoiou a candidatura de Washington Luís para a
presidência do estado, esperando com isso emplacar um programa de alfabetização
sistematizado por Antônio Sampaio Dória (1883-1964).706 Uma vez na presidência, Washington
Luís acabou traindo as esperanças do grupo, o que motivou protestos, veiculados n’O Estado
de São Paulo, por parte de nomes como o do folclorista Amadeu Amaral (1875-1929) e do
próprio Júlio de Mesquita Filho. Este último afirmou, num artigo intitulado “A comunhão
paulista”, publicado em seu jornal no dia 22 de novembro de 1922 (e depois reproduzido no
número 84, em dezembro de 1922, da Revista do Brasil) que os “políticos militantes”
desconheceriam a “missão fundamental dos bandeirantes para com a construção da
grandeza da nacionalidade” (LIMONGI, 1989, p. 118).
Os eventos da “Revolução de 1924” não chegaram a desarticular esse grupo, e os
ex-membros da Liga Nacionalista, sob a liderança de Monteiro Lobato, produziram uma carta
aberta dirigida ao presidente Artur Bernardes e em nome da “Liga pelo Voto Secreto”, datada
de 9 de agosto de 1924. Entre os 24 signatários do documento constavam os nomes de Sampaio
Dória, Fernando Azevedo (1894-1974) e Prudente de Morais Neto. O mais interessante desse
documento é o “elitismo cultural” que ele representa. Em primeiro lugar, uma de suas principais
preocupações era a de se evitar uma convulsão social que pudesse provocar algo semelhante ao
que havia se passado na Rússia em 1917. De acordo com os signatários, o sistema eleitoral de
então privilegiava a manipulação dos votos de uma turba inconsciente, desinteressando assim
a elite cultural da participação na vida política. De acordo com Limongi, “o voto secreto é a
bandeira levantada pelo grupo, pois, acreditam, por seu intermédio seria possível inverter o
quadro descrito, abrindo a carreira política a homens de ‘capacidade” (LIMONG, 1989, p. 123).
Outra pauta desse grupo foi a criação de uma universidade no estado. O texto “A
crise nacional”, também publicado por Júlio de Mesquita Filho, em 15 de novembro de 1925
no seu jornal, mostra que esse projeto se ligava, igualmente, ao desejo de reconectar as “elites
culturais” do estado à sua classe política. A ideia central era formar “intelectuais
desinteressados” capazes de “dotar o povo de um mínimo de princípios gerais em harmonia
com o nosso passado histórico e com as tendências naturais da nacionalidade, isto é,
procurando, num esforço continuado e sincrônico, a fórmula intelectual que mais se aproxime

706
Sampaio Dória bacharelou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo e à época era professor da “Escola Normal
da Praça”, a mais importante do Estado.
446

de uma ideal unidade de doutrina, sob cuja orientação envolva livremente a coletividade
brasileira” (apud LIMONGI, 1989, pp. 126-127). Fica claro aqui, portanto, que às elites caberia
o papel de direção da nação, e por isso era urgente o seu fortalecimento.
Esses mesmos ideais estavam presentes quando da criação do Departamento de
Cultura da Cidade de São Paulo. O próprio Mário de Andrade afirmou, em carta dirigida a Paulo
Duarte em 1937, que

Há que forçar um maior entendimento mútuo, um maior nivelamento geral da cultura


que, sem destruir a elite, a torne mais acessível a todos, e em consequência lhe dê uma
validade verdadeiramente funcional. Está claro que o nivelamento não pode consistir
em cortar o tope ensolarado das elites, mas em provocar com atividade o erguimento
das partes que estão na sombra, pondo-as em condições de receber mais luz. Tarefa
que compete aos governos. (apud FROTA, 1981, p. 22)

Silvana Rubino também liga o conjunto de iniciativas culturais empreendidas na prefeitura de


São Paulo na década de 1930 aos ideais que, de acordo com o que tenho indicado neste capítulo,
prendem-se a uma identidade cultural e política paulista criada ao longo da Primeira República:

As associações, seus artigos, a revista que por um período foi seu veículo, o
departamento, tudo isso formava um conjunto de iniciativas no campo da cultura que
se pretendiam não apenas exemplares como ‘germinadoras’ de similares em todo o
país. Esse caráter embrionário, lançador de sementes, é uma demonstração de como
grupos da elite paulista mantinham um forte ressentimento em relação ao resto do país
enquanto tinham planos de tornar São Paulo um centro ao menos de cultura.
(RUBINO, 1995, p. 487)

Como lembra Limongi (1989), a Liga Nacionalista seria o embrião do Partido


Democrático (PD), que faria oposição direta ao PRP a partir de sua fundação em 1926. Segundo
relato de Antônio Cândido, “foram elementos ligados de um modo ou de outro ao Partido
Democrático, ou aos seus próceres, que tiveram iniciativas como a fundação da Universidade,
a criação da Faculdade de Filosofia, o contrato das missões estrangeiras de professôres, a
criação de Departamento Municipal de Cultura, que deveria transformar-se em Estadual através
de um Instituto” (CÂNDIDO, 1971, p. XVI). Foi nesta “espécie de esquerda democrática”
formada “dentro ou na periferia” do PD (CÂNDIDO, 1971, p. XVI), que se reforçaram os laços
identitários de uma parcela dinâmica da intelectualidade paulista em torno dos valores da
civilidade moderna dos herdeiros dos bandeirantes, da descoberta estética da cultura popular e
de uma missão civilizadora a ser realizada por meio do Estado.
O “relato mítico” de Paulo Duarte (RUBINO, 1995, p. 485) de fato lança luz sobre
este entrelaçamento entre política e cultura em São Paulo. Duarte era “redator-chefe” do Diário
447

Nacional, órgão oficial do Partido Democrático, “onde convivemos os tempos duros da luta
contra o Partido Republicano Paulista e onde meu grupo (Amadeu Amaral e outros) se entrosou
com o grupo de 1922. Mário participava do nosso entusiasmo regenerador, embora não se
metesse nos embates políticos” (DUARTE, 1971, p. 2).707 Segundo Duarte, Mário de Andrade
fazia parte do grupo de intelectuais e políticos que se reuniam regularmente no apartamento que
dividiu, primeiramente, com Sérgio Milliet, e, depois, com Nino Gallo, na Avenida São João.
De que se tratava de um núcleo de conspiração política do Partido Democrático não deixa
dúvida o fato de que, segundo Duarte, seu apartamento foi invadido pela polícia em 1932,
ocasião em que seu companheiro, Nino Gallo, foi preso (DUARTE, 1971, p. 50). Mas ali
também se bebiam bons vinhos, ouvia-se música num gramofone e elaboravam-se projetos
culturais que, a partir de São Paulo, deveriam ganhar o Brasil, sendo que um deles seria o do
próprio Departamento de Cultura. Dentre as pessoas que ali se encontravam, Duarte se lembra,
além de Mário de Andrade, dos nomes de Antônio de Alcântara Machado (1901-1935), Tácito
de Almeida (1889-1940),708 Sérgio Milliet, Antônio Carlos Couto de Barros (1896-1966),709
Henrique da Rocha Lima,710 Rubens Borba de Morais, Nino Gallo e Randolfo Homem de Melo,
além de outros que apareciam esporadicamente, como André Dreyfus e José Wasth Rodrigues
(1891-1957).
Paulo Duarte dá a entender que a escolha pelo serviço público para a implementação
dos projetos desse grupo era algo de cunho pragmático:

Pois foi nessa sala [do apartamento da Avenida São João], em torno da fria mesa de
granito, que um de nós – quem poderá saber qual de nós? – falou na perpetuação
daquela roda numa organização brasileira de estudos de coisas brasileiras e sonhos
brasileiros. Mas cadê dinheiro? O nosso capital eram sonhos, mocidade e coragem.
Havia quem conhecesse uns homens ricos de São Paulo. Mas homem rico não dá
dinheiro para essas loucuras. Quando muito deixa para a Santa Casa. Caridade
espiritual, jamais. Que testamento pinchou legado para uma universidade ou para uma
biblioteca? A nossa gente ainda está no paleolítico da caridade física. À vista de tantos
argumentos, ficou decidido que um dia seríamos govêrno. Só para fazer tudo aquilo
com dinheiro do govêrno. (DUARTE, 1971, p. 50)

No entanto, vimos acima que era comum entre os formados na Faculdade de Direito de São
Paulo – e muitos deles compunham esse grupo de políticos e intelectuais – defender uma

707
O folclorista Amadeu Amaral, como vimos, era um membro atuante da Liga Nacionalista e foi uma das maiores
influências de Paulo Duarte, como ele mesmo reconhece. Por “grupo de 1922” Duarte obviamente se refere aos
artistas e intelectuais envolvidos com a Semana de Arte Moderna daquele ano.
708
Formado pela Faculdade de Direito de São Paulo.
709
Formado pela Faculdade de Direito de São Paulo.
710
É possível que se trate do importante médico e pesquisador do Instituto Biológico Henrique da Rocha Lima
(1879-1956).
448

concepção orgânica e autoritária de Estado, cujos postos diretivos deveriam ser ocupados por
uma elite intelectual capaz de guiar e dar forma a uma coletividade percebida como amorfa.
Além disso, os pronunciamentos dos membros da Liga Nacionalista atestam o profundo
ressentimento da elite intelectual paulista por não ter ocupado o lugar que supostamente lhe
seria de direito, pelo seu papel de “cérebro” de uma coletividade que, para além desses sábios,
era apenas “força bruta”. Havia, portanto, algo mais neste grupo que o desejo pragmático de
uso do Estado. Do contrário, essas pessoas, do mais militante (a exemplo de Paulo Duarte) ao
mais desconfiado (a exemplo de Mário de Andrade) não teriam participado diretamente do
conflito armado de 1932.
Os paulistas saíram derrotados da “Revolução de 1932” e os seus principais
mentores – dentre eles o próprio Paulo Duarte – foram exilados a partir da rendição de outubro.
Mas a nomeação de Armando de Salles Oliveira, vinculado ao Partido Democrático, para a
interventoria no estado de São Paulo em 1934 trouxe a acalentada oportunidade de
implementação dos projetos culturais esboçados no apartamento da Avenida São João. Segundo
Paulo Duarte, Fábio Prado, que fora nomeado por Salles Oliveira para a Prefeitura, o procurou
naquele mesmo ano para que começassem a organizar o Departamento de Cultura, e Duarte
indicou o nome de Mário de Andrade para a sua condução.
Neste ponto é importante perceber que uma nova identidade começa a se constituir
na capital paulista de maneira mais abrangente. De acordo com Cristina Mehrtens, este período
representa um “momento liminar”, isto é, um contexto de transição no qual uma identidade
paulista se cristaliza por meio de um aparato burocrático em expansão. Essa burocracia abrangia
diversos grupos sociais, mas principalmente uma camada da “classe média urbana” composta
por intelectuais, engenheiros, técnicos e demais funcionários públicos que, por intermédio do
aparato estatal – cujos limites entre o “público” e o “privado”, no entanto, ainda não se
encontravam plenamente definidos – dariam forma à modernidade local. Essa “forma” à qual
me refiro não estaria desligada das construções identitárias bandeiristas forjadas ao longo da
Primeira República: “O corpo administrativo fundiu os ideais de 1932 aos trabalhos na cidade,
e o trabalho de intelectuais e engenheiros municipais misturaram profundamente status e
produção” (PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, Loc 2765).711
Mehrtens mostra, por meio da análise da Revista do Arquivo Municipal, que tanto

711
A referência diz respeito à versão para o aplicativo Kindle, que infelizmente oferece uma localização própria
não coincidente com o número das páginas da versão impressa. “The administrative body fused the ideals of 1932
to the works in the city, and the work of intellectuals and municipal engineers thoroughly mingled status and
production”.
449

o DC quanto o Departamento de Obras Públicas (DOP) serviram como instrumentos desse


projeto identitário: “por um lado, o DOP abriu avenidas em São Paulo e, por outro lado, o DC
produziu história nomeando essas obras e explicando historicamente os novos espaços”
(PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, Loc 2765).712 Outras frentes de trabalho no interior do DC
ainda contribuíram no mesmo sentido: a premiação de trabalhos históricos que lidassem com a
criação das tradições urbanas paulistanas,713 e a Revista do Arquivo Municipal, que também
passou a ser editada no âmbito do DC, “ajudou a preparar o cenário para a historicização de
São Paulo como um estado feito pelas famílias quatrocentonas. Isso refletiu uma abordagem
social darwinista, spenceriana e evolucionista que já caracterizava a maior parte dos setores
conservadores paulistas” (PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, Loc 2814).714
Outro aspecto importante notado por Mehrtens foi o caráter transnacional que o
projeto intelectual paulista adquiriu. Muito se escreve a respeito da missão de professores
franceses encarregados de criar a USP e, em especial, a FFCL. A contribuição de Dina Lévi-
Strauss para a formação de etnógrafos práticos na Sociedade de Etnografia e Folclore –
associação umbilicalmente ligada ao DC – e os projetos partilhados entre o casal Lévi-Strauss
e Mário de Andrade colaboram igualmente para essa ênfase. Mas se não chegou a haver
propriamente uma “missão estadunidense”, como pontua Mehrtens, a sua influência “não foi
mais fraca do que a francesa. A influência estadunidense permeou todas as práticas na máquina
municipal da mesma maneira que a missão francesa estabeleceu sua influência no nível
acadêmico” (PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, Loc 2945).715
No “Capítulo 7” tratei brevemente da participação de estadunidenses na criação da
Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP). Além de Samuel H. Lowrie (cujo professor
assistente era Sérgio Milliet), outro professor estadunidense que esteve presente na criação da
ELSP foi Horace Bancroft Davis (1898-?). Lowrie, no entanto, foi contratado também pela
Prefeitura, em 1935, para trabalhar como técnico em pesquisas sociais no DC, sob a chefia
imediata de Milliet na Divisão de Documentação Histórica e Social (ao mesmo tempo, portanto,
seu chefe e subordinado). Em suas pesquisas sobre as origens dos imigrantes paulistas, a partir

712
“On the one hand, the DOP tore up avenues in São Paulo and, on the other hand, the DC created history by
naming these works and by historically explaining the new spaces”.
713
Eurípedes Simões de Paula (1910-1997), que se formou na FFCL, ganhou o prêmio de 1936, com uma
monografia sobre João Teodoro, presidente da província de São Paulo entre 1872 e 1875.
714
“RAM helped to set the stage for historicizing São Paulo as a state made by these ‘four-century’
(quatrocentona) families. This reflected a Social Darwinist, Spencerian, evolutionist approach that already
characterized most of the conservative paulista sectors”.
715
“[…] the U.S. influence was no weaker than that of the French as U.S. influence permeated all practices in the
municipal machine in the same manner that the French mission found its influence at the academic level".
450

de dados coletados nos Parques Infantis (outro projeto do DC, inspirado nos playgrounds
estadunidenses e nos kindergarten alemães) Lowrie deixava transparecer, segundo Mehrtens, a
perspectiva culturalista boasiana (PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, Loc 2836).716 Lowrie e os
vários outros intelectuais estrangeiros que transitaram por São Paulo neste período (além dos
franceses, Mehrtens ainda cita os alemães Herbert Baldus e Emílio Willems e o estadunidense
Donald Pierson) “eram componentes essenciais do contexto político dos anos 1930, um
contexto que permitiu a passagem por diferentes instituições culturais e construiu uma influente
rede profissional desenvolvida em torno da tríade formada pela ELSP, FFCL/USP e DC”
(PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, Loc 2914).717 Além disso, ao invés de apresentar os brasileiros
como um “nós” que articularam a vinda de estrangeiros para o Brasil, Mehrtens prefere tratar
também como “nós’ aqueles estrangeiros que abraçaram novas ocupações como parte de
imensos grupos médios brasileiros de origens estrangeiras. Imersos em um processo de
intercâmbio cultural, essas traduções profissionais de suas formações estavam interligadas com
as práticas locais contingentes” (PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, Loc 2932).718
É importante destacar esses aspectos pois, como eu pude mostrar no “Capítulo 7”,
no momento em que, dentro do país, as oportunidades de ocupação intelectual foram
drasticamente restringidas para aquelas pessoas não alinhadas aos projetos nacionais do Estado
Novo, o movimento transnacional possibilitado pelo interamericanismo surgiu como uma
valiosa oportunidade para importantes elementos deste grupo, a exemplo de Sérgio Milliet,
Rubens Borba de Morais e outros. Mário de Andrade, que preferiu lutar com os recursos
disponibilizados nessa restrita rede nacional, teve seus projetos culturais seriamente limitados
a partir do golpe que conduziu ao Estado Novo. Esse é um aspecto importante para
compreendermos a inserção concreta dos projetos nacionalistas paulistas produzidos por Mário
de Andrade (e que, igualmente, lhe produziram) no interior das políticas públicas de proteção
ao patrimônio cultural brasileiro. Para isso, no entanto, é preciso traçar ao menos um rápido
trajeto de suas ações relacionadas ao colecionamento da cultura popular nacional.

716
Lowrie também havia se doutorado em Columbia, e sua vinda para o Brasil se deu por indicação da American
Society of Universities e do Institute of International Education (IEE).
717
“All were part and parcel of the 1930s political context, a context that permitted transitions within different
cultural institutions and built an influential professional network developed around the triad formed by ELSP,
FFCL/USP, and the DC”.
718
“As opposed to depicting Brazilians as ‘we’ who articulated the coming of ‘them’, the foreigners, this work
approaches as ‘we’ those foreigners who embraced new occupations as part of the immense Brazilian middling
groups of foreign origin. Immersed in a process of cultural interchange, these professionals’ translations of their
training was interwoven with contingent local practices”.
451

11.3. DAS VIAGENS DE DESCOBERTA DO BRASIL À BUROCRACIA: A

SUBJETIVAÇÃO DE MÁRIO DE ANDRADE E A OBJETIFICAÇÃO DA CULTURA NACIONAL

POR MEIO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

As relações entre os campos intelectual e político em São Paulo já foram notadas


em outros trabalhos. Antônio Gilberto Ramos Nogueira, por exemplo já havia escrito que

perceber a importância do Departamento de Cultura para o Partido Democrático em


sua primeira gestão na cidade pressupõe uma análise que leve em consideração a ação
política do governador Armando de Sales Oliveira juntamente com o prefeito Fábio
Prado – ação decorrente de um conjunto de transformações políticas e das relações de
força no interior do circuito da oligarquia paulista. A cidade de São Paulo deveria
consolidar-se como polo irradiador da ‘civilização’ ratificando o papel de vanguarda
que a capital representava para o restante do país. Caberia ao Departamento e às suas
atividades pôr em foco a hegemonia paulista perdida com a revolução de 1930.
(NOGUEIRA, 2005, p. 199)

O próprio Nogueira enumera diversos trabalhos produzidos na década de 1990 que já apontam
para as relações entre os intelectuais paulistas e a política neste período que, segundo autor,
pode ser chamado de “fase ideológica do modernismo”, ou seja, o momento em que a invenção
da nacionalidade e de sua cultura lança mão do Estado para se realizar. Num trabalho mais
recente, Luísa Valentini também apresenta um outro tanto de trabalhos que ou restauram “a
memória sobre as iniciativas pioneiras na política de patrimônio e na colaboração das ciências
sociais com o poder público no país” ou “pauta[m] as interações entre ciência, arte e política
no caso do Departamento de Cultura” (VALENTINI, 2010, p. 20).
A respeito especificamente de Mário de Andrade, também é muito difícil encontrar
algo que não tenha ainda sido objeto de minuciosa perscrutação acadêmica. Sua obra e atuação,
ao mesmo tempo datada e aberta, continua se desdobrando em inúmeros trabalhos. Essa
subjetividade continua sendo alvo de persistente reconstrução, como se ela portasse a esperança
de uma modernidade ideal, perdida no passado, mas ainda desejada para o futuro. A sua voz é
constantemente reinvocada por meio dos incontáveis registros que ele nos legou num trabalho
de esmerado arquivamento de si. Seu imenso espólio epistolográfico, suas coleções de
fotografias, artefatos e obras de arte, seus arquivos burocráticos, tudo foi disposto para uma
infindável produção de presença, passível de ser montada e remontada pela obra de outros e
novos sujeitos da modernidade, que se veem assim atravessados por essa fantasmática
subjetividade originária. A todas e todos a linguagem andradina captura por um tom de
proximidade, de camaradagem, de conforto e calor humano, que poucos – talvez ninguém –
452

conseguiram igualar, a tal ponto que em muitas narrativas ele é simplesmente o Mário, quase
um velho amigo. Esse nome próprio parece vagar sem descanso por causa de uma espécie de
obra de feitiçaria: a sua correta reinvocação ritual é capaz de trazer uma vida de sucesso
acadêmico, mas tudo isso é acompanhado da maldição da perpetuação da modernidade. Mário
de Andrade sucumbiu como poucos ao mal moderno do arquivo: investiu-se do poder arcôntico
de tal forma que produziu uma poderosíssima presença espectral de si próprio, capaz até mesmo
de vencer a morte. O preço da eternidade foi se tornar essa alma penada, que vaga por teses,
artigos, livros, exposições e outros tantos objetos amaldiçoados que não cessam de invocar sua
presença. Não seria a hora de deixar essa pobre alma descansar em paz? Se aqui tomo parte
desse ritual macabro, eu o faço na esperança de, quem sabe um dia, conjurar o espírito de
“Mário” e de toda a legião de modernos que o acompanha.

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,


As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh, espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,


E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,


Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.719

Mário de Andrade faz parecer nesse poema que ele podia sentir o processo de
subjetivação que o perpassava e ao qual ele se entregou. Aos poucos ele se “desgeografizava”,
os efeitos de sua fala e de seus atos fugiam ao seu controle, o seu ethos se desdobrava em outros
trezentos, trezentos-e-cincoenta. Ao final, ele parece também expressar a dor que isso causa, o
desejo de se livrar desse fardo pesadíssimo, o que lhe escapa num aparente pedido de descanso:
“Só o esquecimento é que condensa,/ E então minha alma servirá de abrigo”.

11.3.1. As viagens e as coisas

Um dos Mários de Andrade desdobrados nas narrativas acadêmicas é o Mário

“Eu sou trezentos...”, poema de 7 de junho de 1929, publicado originalmente no livro Remate dos Males
719

(ANDRADE, 1972, p. 157).


453

Patrimônio. Esse Mário de Andrade teria nascido em 1919, quando fez sua primeira “Viagem
de Descobrimento do Brasil” (NOGUEIRA, 2005), retomada, em 1924, ao lado de Olívia
Guedes Penteado (1872-1934) e de seu genro, Gofredo da Silva Teles (1888-1980), do então
casal Tarsila do Amaral (1886-1973) e Oswald de Andrade (1890-1954) com o filho Nonê, e
do poeta francês Blaise de Cendrars (1887-1961). O modernismo pau-brasil e depois
antropofágico teria surgido aí, nessa sua segunda viagem para o coração de Minas Gerais, o que
significa dizer, em outras palavras, que este é o momento em que se percebe, na condição de
um grupo, uma solução estética capaz de liberar um novo futuro por meio do material do
passado.
O irmão gêmeo desse modernismo é o patrimônio cultural da nação. Era preciso
proteger tudo o que servisse de matéria-prima para a modernidade estética nacional. Não por
acaso, 12 anos depois, o “Anteprojeto do SPAN”, produzido por Mário de Andrade em nome
do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo a pedido de Gustavo Capanema, aponta
como objeto da proteção pelo governo federal o “patrimônio artístico nacional”, que é definido
como “todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou
estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a particulares nacionais,
a particulares estrangeiros, residentes no Brasil” (ANDRADE, 2002).
Essa descoberta toma forma antes, no entanto, em pelo menos dois documentos. O
primeiro deles é o estatuto da “Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil”,
redigido por Cendrars, cuja finalidade era “a proteção e a conservação dos monumentos
históricos do Brasil. Igrejas, palácios, mansões, casas particulares dignas de interesse (móveis,
objetos e obras de arte, pinturas, estátuas, livros e arquivos, prataria etc.)”. A julgar pela
interpretação de Carlos Augusto Calil, esse projeto antecipava aquilo que, mais de uma década
depois, seria implementado no Departamento de Cultura:

A ecologia, a culinária e as manifestações populares, com suas festas pagãs e


religiosas, também encontram abrigo. A vertente antropológica, com sua mirada
abrangente para a cultura dos povos indígenas e dos negros conquista um lugar. Para
avaliar essa novidade, é preciso ter em mente que em 1924 ‘as manifestações dos
negros’ ainda não haviam sido assimiladas pela cultura burguesa, que a elas resistia
em função de sua origem racial e por serem portadoras de valores de um grupo social
inferiorizado. Cendrars enxerga nessa valorização das culturas não europeias o
embrião de uma Sociedade Folclórica Brasileira, que Mário de Andrade concretizaria
com a fundação em 1937 da Sociedade de Etnologia e Folclore. (CALIL, 2012)

A “Revolução de 5 de julho” teria interrompido, no entanto, o desenvolvimento do projeto em


função do ambiente pouco favorável para os Prados a partir de então (CALIL, 2012).
Um outro documento é o poema “Noturno de Belo Horizonte”, de 1924, publicado
454

no livro Clan do jabotí (ANDRADE, 1972, pp. 125-137). Nesse poema Mário de Andrade
parece querer fixar a revelação que teve em sua viagem a Minas Gerais. A paisagem belo-
horizontina, numa luta entre natureza e civilização (“Minas progride./ Tambem quer ter tambem
capital modernissima tambem”) evoca, em seu sono noturno, aquilo que os mineiros pareciam
querer recalcar:

[…]
E o noturno apagando na sombra o artifício e o defeito
Adormece em Belo Horizonte
Como um sonho mineiro.
Tem festas do Tejuco pelo céu!
As estrêlas baralham-se num estardalhaço de luzes.
O sr. barão das Catas-Altas
Reune todas as constelações
Pra fundir uma baixela de mundos…
Bulício de multidões matizadas…
Emboabas, carijós, espanhois de Felipe IV…
Tem baianos redondos…
Dom Rodrigo de Castel Branco partirá!…
Lumeiro festival… Gritos… Tocheiros…
O Triunfo Eucaristico abala chispeando…
Os planetas comparecem em pessoa!
Só as magnolias – que banzo dolorido! –
As carapinhas fofas povilhadas
Com a prata da Via-Latea
Seguem prá igreja do Rosario
E pro jongo de Chico-Rei

Mário de Andrade vislumbra neste seu devaneio onírico um universo de possibilidades de


captar, nas manifestações artísticas populares tradicionais, ou seja, no patrimônio histórico e
artístico, os traços essenciais de uma nacionalidade formada por inúmeros contatos, esse
“bulício de multidões matizadas”. Em Minas Gerais (que Mário de Andrade faz questão de
lembrar ser “fruta paulista”) existiriam manifestações que condensariam o Brasil em sua
diversidade: “emboabas, carijós, espanhois de Felipe IV…/ tem baianos redondos...” É preciso,
então, “contar as histórias de Minas/ Pros brasileiros do Brasil…” antes que a “tolice” de Belo
Horizonte (“[…] uma tolice como as outras./ São Paulo não é a única cidade arlequinal”), a
tolice da “civilização” europeia (“Mas no Grande Hotel de Belo Horizonte servem à francesa./
Et bien! Je vous demande un toutou!”) botasse tudo a perder. Trata-se, por fim, de uma missão
nacionalista dirigida para o progresso da própria humanidade, numa chave que remete ao
conceito humboldtiano de Kultur conforme evocado no “Capítulo 3” desta tese:

[…]
Que vergonha si representassemos apenas contingencia de defesa
Ou mesmo ligação circunscrita de amor…
455

Porém as raças são verdades essenciais


E um elemento de riqueza humana.
As patrias têm de ser uma expressão de Humanidade.

Separadas na guerra ou na paz são bem pobres


Bem mesquinhos exemplos de alma
Mas compreendidas juntas num amor consciente e exato
Quanta história mineira pra contar!

As “viagens etnográficas” de Mário de Andrade, realizadas entre 1927 e 1929,


foram os desdobramentos dessas primeiras descobertas e os deslocamentos que permitiram a
fixação de um método – método de objetificação da nação por meio de seu patrimônio cultural,
ou, poderíamos também dizer, de seu patrimônio etnográfico. De acordo com Telê Ancona
Lopez e Tatiana Longo Figueiredo,

A coleta de documentos, realizada durante a permanência no Norte e no Nordeste,


frutificará no magno projeto de Mário etnógrafo, Na pancada do ganzá, que
recebe publicação póstuma, organizado por sua discípula Oneyda Alvarenga,
como os volumes Danças dramáticas do Brasil, Música de feitiçaria no Brasil,
Melodias do boi e outras peças e Os cocos. O encontro com o ‘cantador sublime’
Chico Antônio, no engenho Bom Jardim, Rio Grande do Norte, não se resume às
músicas recolhidas e aos folhetins a ele dedicados na coluna O Turista Aprendiz.
Será matéria do romance inacabado Café e da série ‘Vida do Cantador’ na coluna
Mundo Musical, na Folha da Manhã, de São Paulo, em 1943. (LOPEZ e
FIGUEIREDO, 2015, p. 35)

Esses são momentos de descoberta (ou melhor, invenção) da cultura nacional por Mário de
Andrade, algo que comportaria uma experiência não mais coincidente com a velha civilização
europeia: “O viajante metropolitano posto em contato, no espaço amazônico, com o
desmesurado ‘na magnificência daquela paisagem feita às pressas’, [se depara] com situações
incomuns perante a expectativa do ‘europeu cinzento e bem arranjadinho que ainda tenho
dentro de mim [...]” (apud LOPEZ e FIGUEIREDO, 2015, p. 38). Além disso, essas viagens
permitiram o cultivo de uma rede de contatos e trocas que teria alçado Mário de Andrade a uma
posição de grande centralidade num campo relacional inter-regional.720 A partir dessas viagens,

a figura de Mário parece ter se constituído na década seguinte como um polo


crucial de investimentos e intercâmbios coletivos. É que, desde as viagens, cada
vez mais o escritor atuava como intelectual público, talvez o grande intelectual
público do país à época, engajado na organização da cultura e na constituição de

720
Segundo José Tavares Correia de Lira, “Com as viagens ao Norte e Nordeste, contudo, para além das
experiências pessoais de maravilhamento e reflexão nelas descritas, o escritor parece ter consolidado uma liderança
incontrastável em uma rede intelectual bem mais ampla, variada e influente que a anterior, absorvendo também
anfitriões e cicerones como Rodrigo Melo Franco de Andrade, Godofredo Filho, Sérgio Olindense, Luís da Câmara
Cascudo, José Américo de Almeida, Antônio Bento de Araújo Lima, Ascenso Ferreira, Joaquim Inojosa, Cícero
Dias, Jorge de Lima, entre vários outros” (LIRA, 2015, p. 366).
456

um dos pontos de vista mais originais, complexos e abertos do Brasil, graças ao


trabalho permanente de pesquisa, interpretação, crítica e divulgação das artes, de
atuação junto à imprensa, de formulação de políticas e instituições, de
estabelecimento e preservação de um patrimônio cultural nacional. (LIRA, 2015,
p. 366)

É preciso notar, portanto, que a identidade de sujeito da modernidade nacional é


construída relacionalmente: é em função da troca de experiências, informações, contatos e
recursos que se constituía aos poucos o “Mário Patrimônio”. Se, num primeiro momento, essas
conexões adquirem um alcance geográfico inter-regional, posteriormente, nas décadas de 1930
e 1940, como mostrei no capítulo anterior, elas se tornam cada vez mais transnacionais.
A primeira dessas “viagens etnográficas”, realizada a partir de maio de 1927 ao
lado, mais uma vez, de Olívia Guedes Penteado, agora acompanhada de duas adolescentes, sua
sobrinha Margarida Guedes Penteado e a filha de Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto,
passou, como escreveu Mário de Andrade, “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a
Bolívia e por Marajó até dizer chega”.721 Nessa viagem, no entanto, Mário de Andrade ainda
não dispôs da liberdade necessária para o desenvolvimento de um inventário sistemático da
“cultura nacional”.722 Ele é ainda um “turista aprendiz”, aguçando a sua sensibilidade para
captar (inventar), por meio das coisas folclóricas, a essência da nacionalidade.
Na sua segunda “viagem etnográfica”, Mário de Andrade visitou o Nordeste entre
novembro de 1928 e fevereiro de 1929, presenciando, portanto, as festividades ocorridas entre
o natal e o carnaval. Lá o papel de turista deu lugar ao de folclorista já munido de preocupações
etnográficas,723 ao lado das obrigações como correspondente do Diário Nacional – como vimos,

721
Esse é o subtítulo que consta do dossiê completo sobre as viagens de 1927, que serviu de base para a publicação
recente do livro O turista aprendiz, e que seria uma paródia ao título de um outro livro, publicado por seu avô
materno, Joaquim de Almeida Leite Morais: Apontamentos de viagem de São Paulo à capital de Goiás, desta à
do Pará, pelos rios Araguaia e Tocantins e do Pará à corte: considerações administrativas e políticas
(ANDRADE, 2015, p. 47)
722
Segundo Lopez e Figueiredo, “os passeios e os compromissos oficiais – pois Dona Olívia fora recomendada
por Washington Luís, o presidente da República, aos presidentes dos estados, que haviam desdobrado a
recomendação aos prefeitos – tinham-lhe frustrado a entrega sistemática à coleta de manifestações da cultura
popular” (LOPEZ e FIGUEIREDO, 2015, p. 23).
723
De acordo com Lira, “ao que tudo indica, o interesse do escritor pelo folclore é anterior a suas viagens, tendo
ele encontrado incentivo para o estudo e apropriação literária da cultura popular já nas conferências proferidas por
Afonso Arinos, em 1917, na Sociedade de Cultura Artística. Ao lado da leitura de estudiosos do assunto, como
Sílvio Romero, Pereira da Costa, Mello Moraes Filho e Couto de Magalhães, havia o trabalho de coleta que se
mescla à criação do poeta de Pauliceia desvairada, em 1922. Há evidências ainda de informações sobre tradições
brasileiras em sua poesia de 1924 a 1926, quando compôs o ‘Noturno de Belo Horizonte’ e a maior parte de Clã
do jabuti. Em 1926, o autor já demonstrava conhecer uma grande quantidade de lendas populares brasileiras,
registradas e não registradas, tendo se debruçado sobre os livros do etnólogo Koch-Grünberg sobre a Amazônia e,
muito especialmente, sobre os capítulos acerca de música e lendas indígenas, base de seu Macunaíma, sendo então
redigido” (LIRA, 2015, p. 368). Elizabeth Travassos, por sua vez, destaca que à época dessas viagens “a análise
da cultura popular por Mário de Andrade inclinava-se numa direção intelectualista que se manifestou na
curiosidade por processos mentais, no espanto diante de práticas aparentemente irracionais, no desejo de desvendar
457

órgão oficial do Partido Democrático. Seria esse, portanto, o momento de definição


metodológica de construção daquilo que Antônio Nogueira chama de “inventário dos sentidos”:

O rico e farto material que colheu revela os sentidos físicos e simbólicos do Brasil
(materializados na arquitetura, nas artes plásticas, na literatura, na poesia, nos
modos de vida) e uma sistemática pesquisa sobre cultura popular (festas, música
de feitiçaria, melodias de boi, poesia popular, coco, crenças, falas, superstições,
arquitetura, imaginária sacra). Mas registrou também cores, aromas e sabores.
(NOGUEIRA, 2005, p. 43-4)

José Tavares Correia de Lira também destaca o caráter de maior sistematização da segunda
“viagem etnográfica” de Mário de Andrade:

Se, na Amazônia, o viajante parecia bem mais disponível ao décor equatorial, à


apreensão estética das paisagens naturais e humanas e ao trabalho literário, agora
o propósito era mais específico. A vocação etnográfica do empreendimento, o
trabalho de coleta, o registro instrutivo, inclusive fotográfico, impunham-se como
mote fundamental do deslocamento pelo Nordeste. Se no primeiro caso as
sensações de ócio, tédio, deriva ou evasão pareciam acompanhar o viajante, desta
vez vemo-lo engajar-se resolutamente nas atividades de estudo, movimentando-
se entre um estado e outro, as capitais e o interior à procura de seus objetos, fontes
e informantes. (LIRA, 2015, p. 376)

Mário de Andrade se constituiu, portanto, como um sujeito etnógrafo ao mesmo


tempo que constituiu a nação como objeto de sua etnografia. Essa dupla produção tornou-se
possível por intermédio de um certo tipo de “coisas”, que Mário de Andrade identificaria como
o “patrimônio artístico nacional”. Lira percebe bem essa agência própria das coisas em seus
cruzamentos com o sujeito Mário de Andrade. A natureza, a “cultura material” e as próprias
coletividades humanas (todas objetificadas pela inventividade do sujeito, portanto) impactam a
sensibilidade do viajante, permitindo assim a produção tanto do sujeito quanto do objeto da
modernidade nacional:

Das formas de contato entre o visitante e os nativos, das paisagens naturais às


paisagens edificadas, da fauna e da flora a suas imagens e apropriações humanas,
da cultura material em seus usos e significados, dos costumes, ritos e festas,

a ‘psicologia dos seres incultos’ (expressão usada na crônica ‘Notas sobre o cantador nordestino’). Tal inclinação
facilitou a recepção favorável das leituras sobre pensamento pré-lógico e mentalidade primitiva, tal como
discutidos por Lucien Lévy-Bruhl. É nesse terreno que se encontra um desenvolvimento interessante dos
problemas colocados pelas diferenças culturais percebidas entre ‘eles’ (o povo) e ‘nós’ (indivíduos ‘cultos’,
‘educados’)” (TRAVASSOS, 2002, p. 99). Ainda segundo Travassos, foi a apropriação do conceito de mentalidade
primitiva de Lévy-Bruhl “que, com Edward Tylor e James Frazer, constitui o trio de referências antropológicas
básicas de Mário, que lhe forneceram instrumentos conceituais para pensar as particularidades da cultura brasileira
e da cultura popular, de uma perspectiva que privilegiava os fenômenos mentais. Entre outras coisas, podem ter
contribuído para cristalizar a ideia de que o folclore contém sobrevivências de estágios anteriores à civilização”
(TRAVASSOS, 2002, p. 101-2).
458

urbanos, ribeirinhos e indígenas a suas representações, impasses e


transformações, das artes populares e ameríndias às questões sociais e econômicas
que as envolvem, a experiência em campo parecia não apenas fornecer-lhe
elementos, motivos e sugestões para a criação artística, mas também princípios de
juízo estético, antropológico, filosófico, político, que viriam a desempenhar papel
decisivo na constituição de um arsenal de valores e narrativas culturais nacionais.
(LIRA, 2015, p. 387)

Essas coisas passaram a ser dotadas de um valor de autenticidade e de raridade (afinal, a


“civilização” artificial europeia estaria acabando com elas), e a sua missão – bem como a dos
demais intelectuais identificados com o projeto andradino – seria inventariar e proteger toda
essa “matéria-prima” de uma nacionalidade a ser elaborada. Esse era o sentido da modernidade
brasileira da qual esses intelectuais se tornaram, de maneira abnegada, produtores e
reprodutores.

11.3.2. O Departamento de Cultura

Embora imbuído de algo que aqui eu chamaria despretensiosamente de “orientação


etnográfica”, Mário de Andrade era ainda um “etnógrafo amador”. Foi a ascensão política, no
estado e na capital de São Paulo, do grupo constituído em torno do PD na década de 1920, que
abriu, a partir de fins de 1934, uma avenida de oportunidades para que Mário de Andrade
pudesse, enfim, conferir um caráter científico ao projeto modernizador (e civilizador) do qual
se tornou porta-voz.724
Cristina Mehrtens chama a atenção para algo aparentemente pouco desenvolvido
pela historiografia brasileira. Quando eu, por exemplo, pensava no sujeito Mário de Andrade,
em quaisquer de seus “trezentos-e-cincoenta” desdobramentos, em geral me vinha à mente uma
pessoa que se tornou notável, reconhecida, respeitada, isto é, um sujeito já pronto, a partir da
Semana de Arte Moderna de 1922. Não tenho condições de sustentar aqui a hipótese de que
essa é a recepção predominante tanto do senso comum quanto dos sistemas educacionais
formais, sejam eles de nível básico ou superior. Mas acredito que a própria memória produzida
pelos autoproclamados sujeitos do modernismo brasileiro contribua para essa minha
impressão/imprecisão, a qual suspeito não seja só minha. O fato é que, independente do alcance
das redes relacionais que possam ser reconstituídas a partir do sujeito Mário de Andrade antes
de sua passagem pelo DC, é depois de 1934 que elas parecem ter adquirido uma notoriedade
mais concreta:

724
Dentre os inúmeros trabalhos que tratam desse processo, que aqui já abordei em algumas oportunidades, vide,
em especial, RUBINO, 2002, NOGUEIRA, 2005, VALENTINI, 2010, e LIRA, 2015.
459

Dos anos 1930 em diante, o serviço público conferiu legitimidade, potência e


reconhecimento para o novo intelectual profissional. Por exemplo, antes de seu
mandato como diretor do DC, Paulo Duarte reconheceu que as pessoas não
levavam Mário de Andrade a sério. Mário de Andrade era visto como um
‘futurista amalucado, talentoso, mas não confiável, de quem mesmo O Estado de
São Paulo havia recusado contribuições’. Antônio Cândido também confirmou
que antes de sua influente posição municipal como diretor do DC, Andrade era
visto como ‘um tipo descuidado, sensacionalista e demolidor’. Enquanto diretor
do DC e chefe da Divisão de Expansão Cultural, Mário de Andrade adquiriu uma
legitimidade intelectual contemporânea que o intelectual e escritor Oswald de
Andrade nunca teve. (PEIXOTO-MEHRTENS, 2010, Loc 3387-3398)725

Isso nos mostra que é difícil ignorar a importância dos aparatos burocráticos para a
consolidação de projetos intelectuais. Os projetos de Heloisa Alberto Torres teriam tido o
mesmo efeito caso ela não tivesse ao seu dispor o Museu Nacional e todas as outras instituições
que ela ocupou por seu intermédio? Se é despropositado responder a uma matéria contrafatual,
isto é, a se lançar à interpretação de algo que não ocorreu, por outro lado isso nos chama a
atenção para a raridade das memórias que conseguiram se projetar sem o amparo de
organizações e de suas gestões racionais-burocráticas de contatos e de fluxos de recursos.
É inegável que Mário de Andrade possuía amigas e amigos antes de assumir o DC.
No entanto, a posição de diretor e de chefe lhe dava condições de colocar outras pessoas
trabalhando em prol de seus juízos pessoais e sob suas ordens. Mário de Andrade foi assim
alçado, como outros(as) intelectuais/gestores(as) públicos, a um posto que lhe permitia
controlar e distribuir recursos e posições em larga escala, num momento em que o aparato
estatal se tornava, no país, um dos principais reservatórios de poder.726 Uma vez no DC, Mário
de Andrade pôde mobilizar outras instituições, a exemplo da USP e da ELSP, e projetar sua
rede de contatos, que antes era apenas inter-regional, ao nível transnacional.
Com isso o inventário e a proteção das matérias-primas da nacionalidade poderiam,
enfim, adquirir o caráter profissional (etnográfico) desejado por Mário de Andrade. Bastaria
reunir um contingente significativo de intelectuais que representassem, sem deixar dúvidas,
essa postura, de modo a situar o DC num lugar exterior e superior ao folclorismo diletante que

725
“From the 1930s on, public service conferred legitimacy, capacity, and recognition to the new professional
intellectual. For instance, before his term as DC director, Paulo Duarte acknowledged that people did not take
Mário de Andrade seriously. Mário de Andrade was seen as a ‘crazy futurist’ (futurista amalucado), talented but
not trustful [from whom] even the O Estado de São Paulo had refused contributions’. Antonio Candido also
confirmed that before his influential municipal position as DC director, Andrade was seen as ‘a careless,
sensationalist, and demolishing type”. As DC director and Division of Cultural Expansion chief, Mário de
Andrade acquired a contemporary intellectual legitimacy that the intellectual and writer Oswald de Andrade never
did”.
726
Com essa expressão pretendo preservar a concepção foucaultiana de poder, pois se o Estado não produz ou
detém o poder, ele é, no entanto, um espaço fundamental, sobretudo nesse período, para a canalização de seus
fluxos.
460

então se praticava. Era necessário, ao mesmo tempo, formar novos quadros que pudessem
garantir a continuidade desse trabalho de longo prazo no futuro. O primeiro passo foi distribuir
posições-chave para os amigos de confiança que comungassem do mesmo projeto: Sérgio
Milliet, Rubens Borba de Morais, a jovem varginhense Oneyda Alvarega (1911-1984), recém-
formada (por Mário de Andrade) no Conservatório Dramático e Musical da capital paulista, e
outros. No entanto, esse contingente ainda era restrito, e fazia-se necessário encontrar um outro
sistema capaz de aglutinar uma rede de colaboradores de longo alcance – afinal, o projeto tinha
uma pretensão de abrangência nacional, e não apenas local, ainda que fizesse parte do aparato
burocrático municipal. A solução encontrada foi a fundação de associações – a Sociedade de
Etnografia e Folclore (SEF) e a Sociedade de Sociologia – que fossem capazes de criar um
quadro de reserva flexível para os subprojetos que começariam a pipocar no DC.727
É importante notar que profissionalização significou, para o DC sob a gestão de
Mário de Andrade, uma aproximação em relação à rede transnacional de americanistas
apresentada na “Parte I”. Isso se deu por meio da parceria estabelecida com Dina Dreyfus (à
época Dina Lévi-Strauss) e Claude Lévi-Strauss. A dissertação de mestrado de Luísa Valentini
(2010) não deixa dúvidas quanto a essa aproximação e quanto aos critérios de cientificidade
então adotados por Lévi-Strauss: eles diziam respeito muito mais à antropologia americanista
praticada por Boas e seus discípulos e pelo próprio Paul Rivet – do qual tanto Dreyfus quanto
Lévi-Strauss vieram a se aproximar no Musée de l’Homme – do que à sociologia
durkheimiana.728 Como lembra Valentini, o primeiro contato de Lévi-Strauss com a
antropologia se deu por meio da leitura de obras de Robert Lowie, Alfred Kroeber e Bronislaw
Malinowski. Na sua proposta para um Instituto de Antropologia que deveria funcionar na USP
– mas que não se concretizou – Lévi-Strauss incorporava a possibilidade de desenvolver em
São Paulo um programa de pesquisas semelhante àquele que Boas realizou entre os imigrantes
nos Estados Unidos, interessando-se, portanto, por problemas como a variabilidade dos tipos
raciais, a história do povoamento do continente americano e dos processos de difusão cultural
entre seus agrupamentos humanos. Dina Dreyfus também se mostrava interessada nessa
perspectiva analítica ao apresentar o seu Curso de Etnografia, realizado por intermédio do
Departamento de Cultura: os métodos da antropologia física encontrariam um vasto

727
A respeito dessas duas associações, cf. RUBINO, 1995.
728
Isso é algo que fica evidente nas disputas travadas entre Paul Arbousse-Bastide e Lévi-Strauss em torno do tipo
de sociologia que deveria ser ensinada na USP, bem como na bibliografia anexa à aula de cultura material Curso
de Etnografia ministrado por Dreyfus no Departamento de Cultura, que incluía nomes como Franz Boas, Alfred
Kroeber, Robert Lowie, Alexander Goldenweiser, Clark Wissler, Paul Radin, Alfred Métraux (VALENTINI,
2010).
461

“laboratório” em São Paulo, cidade que abrigava imigrantes de diversas partes do mundo e que
permitiria observar os problemas privilegiados por Boas nos EUA, a exemplo da “plasticidade
dos tipos” e do “elemento mental” (VALENTINI, 2010, p. 106).
Ainda que as referências antropológicas de Mário de Andrade estivessem mais
ligadas a Lucien Lévy-Bruhl, Edward B. Tylor e James Frazer (TRAVASSOS, 2002;
VALENTINI, 2010), para ele a definição científica da especificidade cultural nacional dependia
muito mais de uma coleta sistemática de evidências do que da elaboração de teorias. Isso
também o aproximava, portanto, dos padrões de cientificidade e profissionalismo amparados
numa postura indutiva ou empirista, da qual o próprio Boas foi um dos mais aguerridos
advogados. A parceria com Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss permitiu trazer o projeto
folclorista de Mário de Andrade para a zona de segurança epistemológica produzida pela
etnografia culturalista e pela antropologia física de então.
Essa aproximação era, no entanto, de mão dupla. O interesse pelas vanguardas
artísticas parece ter ligado de antemão Lévi-Strauss a Mário e Oswald de Andrade, além de
estar conectado a “um dos projetos do Departamento de Cultura, o da disseminação de uma arte
culta na massa paulistana, traduzido em iniciativas como ônibus-bibliotecas, os concertos
gratuitos no Teatro Municipal, a criação da discoteca pública e a realização dos ‘cursos livres’,
que foram inaugurados pelo curso de Dreyfus” (VALENTINI, 2010, p. 81). Os ideais
civilizacionais ultrapassavam, portanto, barreiras de caráter nacional, unificando sujeitos de
origem diversa em torno da meta supostamente universal de modernização dos costumes.
Os padrões de cientificidade produzidos no contato entre Mário de Andrade,
Dreyfus e Lévi-Strauss, especialmente por meio de um metódico sistema de fichários, puderam
se materializar em diversas iniciativas patrocinadas pelo DC. O “casal Lévi-Strauss” chegou ao
Brasil no começo de 1935, junto com a “missão francesa” contratada para lecionar na recém-
fundada FFCL (cf. LIMONGI, 1989 e MASSI, 1989), quase ao mesmo tempo em que se dava
início aos trabalhos do DC. Em outubro Lévi-Strauss publicou o artigo “Em prol de um Instituto
de Antropologia Física e Cultural” n’O Estado de São Paulo, oportunidade em que apresentou
ao público paulista os parâmetros de cientificidade por ele então pretendidos para a ciência do
homem e da cultura. No mês seguinte partiu com sua esposa para o estado do Mato Grosso,
onde realizou uma pesquisa de campo entre os cadiuéus e os bororos, depositando no DC,
quando de seu retorno para São Paulo em março de 1936, os registros e artefatos colhidos nessa
primeira “Missão Lévi-Strauss”. Já em maio do mesmo ano Dreyfus inicia o Curso de
Etnografia do Departamento de Cultura (realizado na Escola de Comércio Álvares Penteado
com duração até outubro), cujo intuito era habilitar diletantes, diante de uma situação
462

considerada de urgência, para a coleta e o registro das evidências folclóricas e etnográficas da


cultura nacional a partir de um método mais próximo à etnografia profissional. Ao final desse
curso, Mário de Andrade sugere a organização de um “Clube de Etnografia”, que em abril de
1937 passaria a se chamar “Sociedade de Etnografia e Folclore”, congregando uma rede de
intelectuais francamente transnacional, tanto por causa da presença de nomes estrangeiros como
os de Dreyfus, Lévi-Strauss, Fernand Braudel (1902-1985), Paul Arbousse-Bastide (1899-
1985), Pierre Monbeig (1908-1987) e Samuel Lowrie, quanto por causa de uma potencialidade
de segunda ordem – ou seja, da possibilidade de intermediação direta – devido à presença de
nomes “já transnacionalizados” como Heloisa Alberto Torres e Arthur Ramos.729 As atividades
(pesquisas e comunicações) desse grupo passaram a contar com um espaço para sua
publicização na Revista do Arquivo Municipal, intitulado “Arquivo Etnográfico” e surgido a
partir de dezembro de 1936 e, no mesmo mês, Mário de Andrade pôde começar a investir em
instrumentos profissionais para a pesquisa folclórica e etnográfica, como equipamentos para
coleta fonográfica e aparelhos fotográfico e cinematográfico.
Com isso o DC pôde dinamizar o seu trabalho de pesquisa. Em janeiro de 1937
enviou Camargo Guarnieri e Frutuoso Viana a Salvador para acompanhar o II Congresso
Afrobrasileiro, oportunidade aproveitada para a realização de coleta de cantos e melodias de
candomblés baianos. A partir de maio, a Discoteca Pública produziu registros de folguedos em
diversas cidades do interior de São Paulo e de Minas Gerais. Em julho, o DC realizou o
Congresso da Língua Nacional Cantada e, em agosto, Nicanor Miranda (1907-1990) foi enviado
a Paris para participação no Congresso Internacional de Folclore, onde apresentou os mapas
folclóricos produzidos pela SEF a partir de um conjunto massivo de dados enviados por
informantes contatados em diversas localidades do interior do estado.730

11.3.3. O SPHAN

Foi em meio a esse turbilhão de atividades que Mário de Andrade foi convidado
por Gustavo Capanema para esboçar o formato de um “Serviço do Patrimônio Artístico
Nacional” (SPAN), cujos pressupostos são claramente embasados pela experiência no DC,

729
Ramos, embora não apareça na lista de sócios da SEF, participou como jurado, ao lado de Lowrie, Mário de
Andrade, Plínio Ayrosa e Dina Dreyfus, de um concurso de monografias lançado pelo DC (VALENTINI, 2010,
p. 51). A lista completa dos sócios da SEF pode ser encontrada no “Anexo 4” da dissertação de mestrado de Luísa
Valentini (2010).
730
Para a exposição cronologicamente ordenada destes dois últimos parágrafos me orientei pela valiosa
“Cronologia de referência” produzida por Luísa Valentini e apresentada no Anexo 1 de sua dissertação de mestrado
(VALENTINI, 2010).
463

ainda que a contribuição específica de Andrade esteja mais visível neste documento – em
especial na separação que faz entre “arte [etnografia] ameríndia” e “arte [etnografia] popular”.
Já tive oportunidade de mostrar, no “Capítulo 10”, que essa posição se mostrou incompatível
com outros interesses patrimoniais mais poderosos – os da antropóloga do Museu Nacional, os
dos modernistas mineiros e os dos arquitetos modernos cariocas. No entanto, Mário de Andrade
logrou manter uma posição, ainda que um tanto marginal, no interior do projeto cultural federal
que logo viria a inviabilizar a existência autônoma de seus concorrentes regionais: mesmo que
de forma relutante, acabou acatando o convite de Rodrigo Melo Franco de Andrade para
assumir a chefia da 6ª Região do SPHAN em SP.
O deputado Paulo Duarte, que em 7 de outubro de 1937 publicou o artigo “Contra
o vandalismo e o extermínio” n’O Estado de São Paulo, almejava construir um órgão
semelhante ao SPHAN no estado de São Paulo com o apoio de Armando de Salles Oliveira, e
Mário de Andrade temia que isso confrontasse diretamente os planos de Capanema a este
respeito. Os dois paulistas já vinham viajando de carro pelo interior do estado “à procura das
ruínas de Santo André da Borda do Campo, da primeira forja do Brasil que ficou por aqui, etc.
E está visto que, todos os poetas em estado de descanso exaltado, descobrimos coisas
espantosas, casas de bandeirantes e outras loucuras. E está claro que bonitas coisas também”.731
Depois, a pedido de Franco de Andrade, Mário de Andrade alega “excesso de trabalho” e indica
o nome de Luís Saia para a chefia do SPHAN em São Paulo: “poderia propor um rapaz bastante
inteligente, estudante de engenharia, dedicado à arquitetura tradicional, não passadista: Luiz
Saia. Tem o defeito de ser integralista. Serviria havendo este complexo de inferioridade? Sei
que é ativo e como vivo em contacto com ele, poderia orientá-lo bem”.732 No próximo capítulo
tratarei com mais vagar da figura de Saia, mas é interessante adiantar que ele participara
ativamente do Curso de Etnografia de Dina Dreyfus e fora um dos sócios-fundadores da SEF,
tendo apresentado as conferências “Um caso de arquitetura popular” (22 de setembro de 1937,
Boletim SEF nº 1), “Notas de uma viagem a Bertioga” (11 de novembro de 1937, Boletim SEF
nº 3), “Catimbó do Nordeste” (19 de agosto de 1938) e “Arquitetura tradicional em
Carapicuíba” (3 de fevereiro de 1939) (VALENTINI, 2010, Anexos 3, 4 e 5). Mas depois, em
carta do dia 13 de abril de 1937, Mário de Andrade escreveu a Franco de Andrade
contemporizando a respeito do seu próprio nome para o cargo:

Tenho pensado muito na proposta que você me faz e, pra ser inteirinho entre nós,

731
Carta de Mário de Andrade para Rodrigo Melo Franco de Andrade, 27 de setembro de 1936 (ANDRADE, 1981,
p. 63).
732
Carta de Mário de Andrade para R. M. Franco de Andrade, 6 de abril de 1937 (ANDRADE, 1981, p. 65).
464

confesso que já tinha antes imaginado em ficar eu com o cargo e mandar os


pesquisadores. Mas estou numa hesitação danada. Muito embora eu tenha certeza da
minha honorabilidade pessoal e estando certo de em qualquer tempo poder prestar
contas com os recibos dos pesquisadores, o simples fato de poder ser xingado de
“cabide de empregos” me dói o coração. O título é mesmo ‘assistente técnico’?
(ANDRADE, 1981, p. 65)

Mais do que lançar o “certeza da minha honorabilidade” à conta de algum tipo de


comportamento pedante, é preciso notar que faz parte do processo de produção e reprodução
dessas modernidades específicas convencer as pessoas do papel de seus sujeitos: o intelectual
genial, o funcionário dedicado e o pesquisador abnegado compõem o repertório do qual essas
pessoas se imbuíam por meio de um senso de missão. E foi assim que, mesmo às voltas com o
Congresso da Língua Nacional Cantada, Mário de Andrade acatou a nova tarefa, conforme
comunicou a Franco de Andrade em carta do dia 17 de abril de 1937: “Pois bem aceito”
(ANDRADE, 1981, p. 66). O papel de “herói civilizador” transparece numa outra
correspondência, datada de 23 de maio de 1937 e enviada também ao diretor do ainda não
regulamentado SPHAN:

[…] a sua última carta chegada ontem me dizendo que tem pouco dinheiro à minha
disposição, veio me facilitar a vida. Realmente só poderei dedicar algum tempo mais
fecundo ao SPHAN depois de 15 de julho, quando o Congresso terminar. Basta dizer
que o meu heroísmo foi a ponto de recusar uma viagem à Europa, representando
o Departamento em diversos congressos agora em Paris, e com 40 contos no bolso, é
duro, companheiro. Recusei e vão o Sérgio Milliet, da Documentação Social e o
Rubens Borba de Morais, das Bibliotecas. Eu fico pra bem de todos e felicidade
geral de não sei mais o quê. (ANDRADE, 1981, p. 67)

Na verdade Mário de Andrade devia saber muito bem de quem era a felicidade geral: o objeto
de sua ação de sujeito era a nação, essa comunidade imaginada em processo de construção.
Produzir a modernidade era uma tarefa mal paga em termos financeiros, mas esses sujeitos não
esperavam necessariamente uma recompensa em vida: a nação que criavam iria se lembrar
deles, por meio de seus arquivos e outros lugares de memória, como seus “heróis civilizadores”.
Conquistariam a imortalidade perante a coletividade que criavam, e isso era o que bastava. A
sujeição desinteressada ainda é expressa uma vez mais na mesma missiva:

Quando foi do seu telefonema, chamei imediatamente os dois principais


colaboradores que vou pagar com meus cobres, o Nuto Sant’Ana historiador e o
Luiz Saia engenheirando dedicado e apaixonado de coisas históricas e coloniais, e
lhes dei as incumbências principais. Chamei também um fotógrafo pra ver se podia
nos acompanhar nas viagens imprescindíveis. E estudamos o complexo problema das
viagens. Dividimos o Estado em zonas vastas e principais, o vale do Paraíba, o
caminho do Tietê, litoral sul, litoral norte, S. Paulo e arredores. Como viajar? Ficou
resolvido que de trem é perder tempo imenso e fugir de coisas importantes. É
principalmente nos vilejos e no meio dos caminhos que a gente encontra em S.
465

Paulo coisas mais valiosas sob os dois pontos de vista que mais nos interessam,
história e arte. (ANDRADE, 1981, p. 67)

Esta correspondência atesta também o modo como a nacionalidade brasileira-


paulista ia sendo construída, no interior do SPHAN, por meio dos métodos profissionais
forjados ao longo do processo de produção do sujeito “Mário Patrimônio”. No último trecho
que destaquei, a viagem e a prospecção etnográfica dos arredores desenvolvidos pelo grupo de
Mário de Andrade antes da e durante a consolidação do DC são imediatamente postos a serviço
do órgão federal responsável pela definição do patrimônio cultural nacional – e, por
conseguinte, da própria nacionalidade.733 Com um automóvel cedido gratuitamente pelo
prefeito Fábio Prado, Mário de Andrade e seus assistentes saíram pelos arredores de São Paulo
em busca de monumentos arquitetônicos passíveis de serem tombados pelo órgão federal. O
problema era que, do ponto de vista estético, Mário de Andrade considerava, ainda na carta de
23 de maio, que São Paulo tinha pouco a oferecer em comparação com outros estados:

Você entenderá comigo que não é possível entre nós descobrir maravilhas espantosas,
do valor das mineiras, baianas, pernambucanas e paraibanas em principal. A
orientação paulista tem de se adaptar ao meio: primando a preocupação histórica à
estética. Recensear e futuramente tombar o pouco que nos resta seiscentista e
setecentista, os monumentos onde se passaram grandes fatos históricos. Sob o ponto
de vista estético, mais que a beleza propriamente (esta quase não existe) tombar os
problemas, as soluções arquitetônicas mais características e originais. Acha bom
assim? (ANDRADE, 1981, p. 69)

Ainda assim Mário de Andrade anunciou as contribuições de sua regional para a


composição do primeiro número da Revista do SPHAN: “Um só histórico Nuto Sant’Ana.
Outro, um estudo sobre a igreja S. Antônio, do município de S. Roque, com engenharia dentro,
feito por mim e Luiz Saia”.734 No dia 16 de outubro de 1937 ele encaminhou a Franco de
Andrade o “Primeiro Relatório enviado pelo Assistente Técnico à Diretoria do SPHAN”, um
“trabalho de visão geral do Estado, proveniente de pesquisas históricas”, que não se referia
necessariamente aos diversos lugares visitados e fotografados (ANDRADE, 1981, p. 80). Neste
documento Mário de Andrade respondia à solicitação de um inventário o mais completo
possível das obras de arquitetura com interesse artístico e histórico do estado, feito pelo diretor
do SPHAN (SODRÉ, 2014, p. 87). Os dados históricos eram coligidos por Nuto Sant’Ana
(1889-1975) – que também era o responsável pela Subdivisão de Documentação Histórica do

733
A respeito do papel das viagens para a formação dessas práticas e concepções, vide o já mencionado LIRA,
2015, mas também SODRÉ, 2014. Sobre as pesquisas nos arredores de São Paulo, vide o capítulo 3 de
VALENTINI, 2010.
734
Carta de Mário de Andrade a R. M. Franco de Andrade, 25 de junho de 1937 (ANDRADE, 1981, p. 73).
466

DC) –, os dados técnicos das construções eram de autoria de Luís Saia e as imagens foram
produzidas por Germano Graeser (1898-1966), fotógrafo de São Carlos conhecido de Saia, que
também vinha dessa cidade. Após reiterar nesse documento a “pobreza artística” dos
monumentos da região, Mário de Andrade enumera diversas igrejas, algumas residências civis,
prédios oficiais e industriais e fortes, acompanhados de comentários, tudo isso imediatamente
arquivado como um conjunto de saberes fundadores sobre patrimônio arquitetônico nacional.
O mais interessante talvez sejam as menções a autenticidades desfiguradas, passíveis, quem
sabe, por meio do tombamento, de obras restauradoras: “A fachada da igreja [de Embú],
reformada neste século, foi na realidade deformada com impetuosa estultície. Conservam-se
porém fotografias do aspecto anterior, como por exemplo, no livro de Joaquim Gil Pinheiro
Memórias de Mboy, por onde será possível retrazer o monumento ao seu aspecto antigo”
(ANDRADE, 1981, p. 84). Assim, entre a história e a engenharia (arquitetura), assegurava-se,
aos poucos, uma via para a existência de monumentos nacionais paulistas autênticos.
Já no dia 11 de novembro de 1937, Mário de Andrade escrevia a Franco de Andrade
como se nada de mais estivesse acontecendo no “primeiro dia da nova República”, a não ser
pelo fato de que seu irmão, o “exmo. sr. dr. Morais Andrade, deputado federal por S. Paulo”,
estava preso no próprio hotel no Rio de Janeiro (ANDRADE, 1981, p. 110). Os trabalhos
continuavam aparentemente bem e em 28 de novembro de 1937 Mário de Andrade enviou o
seu segundo relatório para o diretor do SPHAN, onde tratou da suspensão das pequisas in locu
por causa das chuvas; da requisição de informações, por meio de circulares, a respeito de
museus e coleções particulares (evidenciando ainda, portanto, um interesse em relação ao
patrimônio museológico paulista); do Forte de São Tiago ou São João, na Bertioga; das pinturas
rupestres de Sant’Ana da Chapada, em Mato Grosso, de acordo com informações coletadas por
Hebert Baldus; de fotos a serem trocadas no primeiro relatório; e da pintura religiosa na região
de Itu, à qual Mário de Andrade se dedicaria nos últimos anos de sua vida para a escrita da
monografia sobre o Padre Jesuíno do Monte Carmelo (ANDRADE, 2012). O que parece ter
chamado a sua atenção neste último aspecto foi a possibilidade de descobrir, por meio da obra
do padre Jesuíno, uma estética religiosa autenticamente brasileira, capaz até mesmo de desvelar
o significado universal da nacionalidade. Num verdadeiro exercício de culturalismo visual,
Mário de Andrade relata o seguinte a Franco de Andrade:

Não se recorda agora o relator se foi Martius ou o próprio Saint-Hilaire quem observou
serem as igrejas brasileiras no geral muito claras e impróprias ao recolhimento da
oração. Ainda este último, ao tratar da Carmo de Itu, insiste que ‘é talvez iluminada
demais para um templo’. Ideia de rezador europeu. Ideia de quem não sabe rezar à
brasileira, rezar conjuntamente com muitos pecados, rezar entre promessas à Senhora
467

e chamados à benzedeira mais sórdida, rezar de barriga cheia e uma alma cheia da
mais paralógica ingenuidade. Uma grande inocência. Difícil de garantir se lastimável.
É possível que o teto da Carmo fuja muito aos cânones da decoração europeia. Porém,
menos que imaginar por isso deficiência, não seria mais lógico olhar uma obra
assim por olhos que não estejam facetados à europeia?… Porque, antes de salientar
deficiência, não salientaríamos a originalidade! Templos claros por demais. Pintura
clara por demais, cândida, sem fundos. Mas feliz. Uma grande mistura de ingênua
religiosidade e mesa farta. Daí uma vaga semelhança com a voluptuosidade da pintura
renascentista italiana. Mas não passa duma coincidência, que o relator acentuou,
apenas porque não tinha senão esse elemento, desesperantemente europeu, para se
fazer compreender.
Se o teto da Matriz de Itu nos atrai logo, familiarizados com essa tradição erudita
europeia a que ele mais docilmente se afaz, parece a este Assistente que o teto da
Carmo terá maior valia tanto nacional como universal. Porque apresenta formas
mais representativas de nós, mais originais, mais contribuidoras. (ANDRADE,
1981, p. 126)

Logo, no entanto, as mudanças políticas trazidas pelo Estado Novo afetariam o


trabalho de Mário de Andrade de uma maneira geral. Forçado à desacumulação de cargos
(decreto do Interventor do estado de São Paulo do dia 11 de janeiro de 1938), ele optou pela
direção do Departamento de Cultura e cobrava a Franco de Andrade, em carta do dia 12 de
janeiro de 1938, a sua substituição (ANDRADE, 1981, p. 128). O primeiro nome sugerido foi
o de Paulo Duarte (21 de janeiro de 1938), ao mesmo tempo em que Saia partia para o Nordeste
brasileiro a fim de chefiar a Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura –
Mário de Andrade escreveu ao diretor do SPHAN solicitando-lhe cartas de apresentação para
este fim. Não obstante Paulo Duarte tenha sido preso por seis dias a partir de 8 de janeiro, Mário
Andrade ainda acreditava que seu nome era o mais indicado para a sua substituição. Além de
sua campanha pela proteção dos monumentos históricos paulistas veiculada n’O Estado de São
Paulo, Duarte tinha sido o autor da lei que criaria um serviço idêntico ao SPHAN no nível
estadual, algo não realizado em função do “golpe de 10 de novembro”, além de ser “conhecedor
profundo [do estado de São Paulo], com grande relação em todos os nossos meios sociais,
artísticos e políticos” (ANDRADE, 1981, p. 129).
Em maio Mário de Andrade já expressava o sofrimento advindo do choque de
realidade:

Você creio que poderá compreender: muito mimados pelos chefes e encontrando
facilidades e liberdades pra agir, com as mudanças políticas, ficamos, os do
Departamento, tomados de desânimo. As desilusões têm sido penosas, companheiro,
e os sofrimentos. As modificações por enquanto não têm sido grandes, pelo menos
não destruíram por enquanto o organismo fundamental do Departamento. Mas cada
coisinha que cortam me dói de passar noite acordada. Me sinto bastante alquebrado,
quero reagir, minto a mim mesmo, e depois o desânimo volta. 735

735
Carta de Mário de Andrade para R. M. Franco de Andrade, 23 de maio de 1938 (ANDRADE, 1981, p. 131).
468

Em 9 de junho Mário de Andrade escrevia novamente ao diretor do SPHAN, agora


já “pedindo emprego”. Num momento em que a Discoteca alcançava reconhecimento
internacional,736 Mário de Andrade se via totalmente de mãos atadas: “E aqui, um governo de
vingança, acompanhado de um prefeito vesgo e um diretor burro e ignorante, acabam com
tudo!”. Se o sujeito “Mário Patrimônio” nasceu de sua admiração pela arte do Aleijadinho em
1919, ele morreu em 1938, quando se afastou de sua amada pauliceia para se esconder na
burocracia carioca.737 Mário de Andrade primeiro ingressou no Instituto Nacional do Livro,
comandado pelo seu amigo Augusto Meyer. Depois, na Universidade do Distrito Federal, logo
desmantelada por Capanema para dar lugar ao seu grandioso projeto de uma Universidade do
Brasil. Por fim, de volta à São Paulo, em 1941, mas já tolhido do prazer do descobrimento
folclórico e etnográfico que desenvolvera desde suas “viagens de descobrimento do Brasil”,
Mário de Andrade se dedicou àquele tema que tanto lhe tinha chamado a atenção durante suas
prospecções patrimoniais no interior do estado: a pintura de padre Jesuíno do Monte Carmelo.
Depois disso, segundo Paulo Duarte, um dos arcontes da memória do sujeito Mário de Andrade,
“sentia-se que Mário morria. Morria assassinado pelo Departamento de Cultura, no qual se
integrara xifòpagamente. A cirurgia aí era fatal. E fôra fatal, todos os dois estavam morrendo”
(DUARTE, 1971, p. 57). Morria, mas tal qual um outro grande sujeito da modernidade
brasileira, “saía da vida para entrar na história”.
Mas se Mário de Andrade havia se esgotado em seu afã de “fazer-se brasileiro para
o Brasil”, os efeitos de sua subjetividade continuavam circulando e produzindo novas
evidências do nacional. Como vimos no “Capítulo 8”, um número significativo de outros
sujeitos da modernidade nacional paulista próximos a Mário de Andrade (ao contrário dele
próprio) se embrenharam na rede transnacional interamericanista, a exemplo de Rubens Borba
de Morais, Sérgio Milliet, além de seus amigos artistas como Luiz Heitor Corrêa de Azevedo,
Camargo Guarnieri, Francisco Mignone e Candido Portinari. Como foi mostrado por Flávia
Toni e Valquíria Carozze (2013), isso rendeu inclusive uma sobrevida às ações do
Departamento de Cultura, em especial da Discoteca Pública, que continuou sob a gestão de
Oneyda Alvarenga: o interesse de Carleton Sprague Smith pelo seu acervo garantiu algum

736
“Me chegaram agora de Berlim, do Phonogrammarchiv os 112 fonogramas existentes, creio que únicos no
mundo, de música dos índios brasileiros. Só com proposta de troca com os meus! E de Praga, me mandam pedir a
constituição da Discoteca e regulamentos porque o governo tcheco quer fazer uma igual lá” (ANDRADE, 1981,
p. 131).
737
“Prefiro mil vezes um posto que me conserve na obscuridade, subalterno de outros que mandem em mim e a
quem eu obedeça sem responsabilidade. Quero escuridão, não quero me vingar de ninguém, quero escuridão” –
carta para Franco de Andrade, 14 de junho de 1938 (ANDRADE, 1981, p. 132).
469

fôlego ao órgão no interior de uma gestão pouco afeita, segundo a versão daqueles que perderam
a batalha, às realizações culturais.

Creio que o que foi acima exposto seja suficiente para compreender qual projeto
estava inscrito na subjetividade exemplar de Mário de Andrade, produzida em meio às suas
viagens, suas relações com o mundo da política paulista e sua experiência na burocracia local,
quando o mesmo se colocou naquela delicada situação apresentada pelo triângulo epistolar
transcrito no início desta tese. O Mário a que temos acesso só pode ser essa subjetividade
moderna produtora de outros desdobramentos modernizantes em todos(as) aqueles(as) que o
evocam como exemplo. É inútil qualquer tentativa de acessar o “verdadeiro Mário” que não
aquele impresso nesses arquivos da modernidade, nas grandes subjetividades que eles nos dão
a ler. O “Mário sujeito”, esse “Mário patrimônio” que observamos a partir dos traços
arquivísticos que ele mesmo nos legou, também foi um Mário afetado por híbridos e um
dominador de objetividades. O que nos resta é apenas essa “ilusão biográfica”. A verdadeira
memória de Mário, ou seja, a que esteve impressa em sua mente enquanto ele esteve vivo, essa
está “condensada pelo esquecimento”, abrigada numa alma que nem mesmo o impulso
modernizante agora pode alcançar.
No próximo capítulo eu gostaria de chamar a atenção para outra vertente paulista
de construção do objeto nacional por meio dos sujeitos da modernidade brasileira. Os
monumentos arquitetônicos paulistas, esses “híbridos” que garantiriam a produção de uma
modernidade nacional marcada pela paulistanidade, continuaram agindo no interior do SPHAN
por um longo tempo, amparados, contudo, num novo “sentido”, “descoberto”
historiograficamente por um novo sujeito, em grande medida um desdobramento da própria
subjetividade andradina: refiro-me ao engenheiro-arquiteto Luís Saia.
470

CAPÍTULO 12: O SPHAN EM SÃO PAULO E OS ASPECTOS REGIONAIS


DA CULTURA NACIONAL

O projeto modernizador reconfigurado por Mário de Andrade ainda teve


importantes desdobramentos. Neste capítulo tratarei do modo como ele se expressa na
subjetividade de Luís Saia (1911-1975), a fim de que seja possível compreender como os
híbridos patrimoniais surgidos em São Paulo, em meio a conexões transnacionais específicas,
como vimos em capítulos anteriores, puderam continuar convivendo com todos os demais,
mesmo diante das diversas incompatibilidades iniciais apontadas ao longo deste trabalho.
É importante também advertir que eu resgato aqui elementos trazidos de minha
dissertação de mestrado (LOWANDE, 2010), com algumas atualizações e alterações. Isso
significa que o que segue é fruto de uma abordagem metodológica um pouco diferente da que
foi vista no decorrer desta tese. Aqui eu privilegio uma análise historiográfica baseada em
aspectos que, naquela ocasião, me permitiram reconstituir uma apresentação subjetiva de Saia,
com apoio principalmente em algumas memórias pessoais e da marginália encontrada em sua
biblioteca na 9ª SR do IPHAN, SP. O intuito dessa reconstituição foi tentar, à época, lançar
uma nova possibilidade interpretativa para a produção historiográfica do arquiteto, o que me
permitiria compreender por um novo ângulo o sentido de suas ações preservacionistas no estado
de São Paulo. Decidi reinvocar aquelas interpretações, mesmo que elas venham a soar um tanto
estranhas aqui, pois acredito que isso permitirá visualizar um pouco melhor a amplitude do
impulso tomado pelos híbridos produzidos no interior dos circuitos transnacionais alternativos
rearticulados em torno da figura de Mário de Andrade. Se, para esse fim, a análise
historiográfica aqui empreendida extrapola os limites metodológicos e cronológicos desta tese,
isso se deve ao meu interesse em sugerir os desdobramentos subjetivos e objetivos provocados
pela rearticulação deste projeto modernizador nacional paulista, algo que pode ser flagrado
tanto na apresentação historiográfica do livro Morada paulista quanto no patrimônio
arquitetônico protegido durante a gestão de Saia à frente do SPHAN em São Paulo. No entanto,
para que isso se tornasse possível, não tomei os mesmos cuidados em termos de
contextualização relacional, ideológica e política, conforme acredito ter feito ao longo desta
tese, para o período que extrapola o final da Segunda Guerra Mundial. Espero, assim, que o(a)
leitor(a) acate este último fôlego, sem o qual não poderíamos perceber a abrangência das
tensões flagradas na troca epistolar transcrita no início desta tese, e que possa, ao mesmo tempo,
471

aguardar eventuais aprofundamentos futuros das hipóteses aqui aventadas.

12.1. DESDOBRAMENTOS SUBJETIVOS

Filho de imigrantes italianos, Saia nasceu em São Carlos, SP, em 1911.738


Posteriormente seguiu para Campinas, com sua família, tendo estudado no “Ginásio de
Campinas”, fundado em 1869 com o nome de “Colégio Culto à Ciência” por obra da iniciativa
privada de membros da elite republicana campineira – dentre eles o próprio Campos Salles
(CANTUÁRIA, 2000). Saia ingressou na Escola Politécnica em 1931, iniciando seus estudos
no curso de engenheiro-arquiteto no ano seguinte, quando estourou o conflito armado em São
Paulo contra o governo provisório de Vargas – segundo João Clark de A. Sodré, Saia integrou,
nesse levante, o Batalhão de Engenharia das Forças Revolucionárias de São Paulo (SODRÉ,
2014, p. 77). Em função de suas diversas atividades no Departamento de Cultura e no SPHAN,
Saia apenas conseguiu se formar na “Poli” no ano de 1948, quando já era, portanto, o
responsável pela regional paulista do SPHAN.739
Saia ingressou, também em 1932, na Ação Integralista Brasileira (AIB). Ele
participou, ao lado de Ernani Silva Bruno (1912-1986) – ambos se tornariam membros, mais
adiante, da Sociedade de Etnologia e Folclore – da “Assembleia de Fundação da Sociedade de
Estudos Políticos”, realizada no dia 12 de março de 1932. Saia, então com 21 anos, ouviu um
discurso proferido por Plínio Salgado, no qual exortava os que estavam ali presentes a “estudar
os problemas nacionais” e traçar, “em consequência desses estudos, os rumos definitivos de
uma política salvadora”.740 O “Manisfesto de outubro” pregava, dentre outras coisas, a luta
contra a influência estrangeira, considerando brasileiras todas as origens étnicas encontráveis
no território nacional, desde que demonstrassem interesse no “engrandecimento da nação”.
Nota-se assim um tom bastante ufanista que, no entanto, incentivava a análise dos problemas
nacionais. Quando ingressou no SPHAN, em 1937, Saia ainda se mantinha fiel a essa postura
ideológica, conforme se pode depreender da correspondência trocada entre Mário de Andrade
e Rodrigo Melo Franco de Andrade (ANDRADE, 1981).
Dentre os possíveis fatores que conduziram o arquiteto à AIB, seria possível

738
As indicações biográficas que seguem compõem uma versão, com algumas pequenas modificações, daquilo
que já foi apresentado em minha dissertação de mestrado (LOWANDE, 2010).
739
Em depoimento pessoal, o arquiteto Nestor Goulart Reis Filho também atribui essa procrastinação ao
desinteresse de Saia pelas matérias mais técnicas, que ele teria trancado por diversas vezes (LOWANDE, 2010, p.
69).
740
“Manifesto de 7 de outubro de 1932” e “Apêndice Histórico sobre o manifesto de outubro” disponíveis em
<http://www.integralismo.org.br/novo/?cont=75> Acesso em 24.01.2010.
472

entrever uma preocupação nacionalista mais genérica. Muito embora tal atitude pudesse
também sugerir uma simpatia por uma ideologia autoritária de cunho fascista, é possível
relativizar essa impressão a partir do relato do jornalista Mário Mazzei Guimarães (1915-2013):
“minha geração foi muito integralista. Sentíamos muito as injustiças sociais, mas não fomos
comunistas, porque o Partido Comunista não era ainda muito importante. Pertenci a uma facção
integralista antifascista que incluía Ernani Silva Bruno, Luís Saia, Roland Corbusier,
Constantino Ianni”.741 Antonio Candido afirma, por sua vez, que “modernismo, cultura popular,
sociologia, socialismo, regeneração do Brasil, tensão entre direita-esquerda – tudo isso surgiu
ligado ao nacionalismo e ao profundo interesse pelas coisas brasileiras” (PONTES, 2001, p. 9).
Tanto que, ao longo da década de 1940, Luís Saia acabou convertendo-se ao comunismo,
conforme atesta em depoimento prestado em 1945 a Mário Neme (1912-1973):

[…] Quantos da minha geração foram da direita até o momento que tiveram que
descobrir por nós mesmos que na direita se acotovelava a camarilha mais reacionária
do Brasil? Até o momento em que tivemos que descobrir por nós mesmos que a direita
representava o preconceito religioso, o preconceito da raça, a defesa do capitalismo,
a defesa da burguesia? Até o momento em que pudemos descobrir com nossos
próprios olhos que a direita defendia organizadamente tudo aquilo que queríamos
combater da vida burguesa? Positivamente há dez anos poderia ter havido
desorientação, mas hoje as máscaras caíram e não pode mais haver sombra de dúvida
para aqueles que querem bem enxergar. Hoje o problema não se põe mais em termos
de partido politico, mas em termos de atitude não apenas politica mas sobretudo
social. […] (apud SODRÉ, 2014, p. 77)

A migração da direita para esquerda não foi, portanto, algo incomum naquela
primeira metade do século XX brasileiro. A adesão inicial a ideologias nacionalistas e
autoritárias não seria empecilho inexorável ao contato com os textos marxistas. O próprio Plínio
Salgado chegou a confessar que, em meados da década de 1920, suas leituras e as de seus
companheiros eram “todas marxistas” (KONDER, 1988, p. 158). De fato, o conhecimento da
literatura marxista pelos integralistas não deveria mesmo causar surpresa, haja vista que os
mesmos necessitariam se armar a fim de combater o comunismo, ainda que o distorcendo
propositalmente. Por outro lado, Antônio Cândido também já teve oportunidade de lembrar o
quanto era comum ao espírito rebelde da época esse tipo de guinada ideológica (CANDIDO,
1995).
Luís Saia se interessou pelo materialismo histórico na medida em que este lhe
possibilitou a compreensão da realidade social paulista e sua ação em relação a ela, realidade

741
Disponível em
<http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=175&breadcrumb=1&Artigo_ID=2631&
IDCategoria=2676&reftype=1> Acesso em 25.03.2010.
473

que para esse arquiteto se tornou assim processual e dialética. Não lhe agradavam, no entanto,
os dogmatismos da versão “marxista-leninista” que aportou no Brasil a partir da década de 1940
(talvez uma precaução empirista adquirida nos tempos de SEF e ao lado de Mário de Andrade)
e sempre esteve aberto às contribuições teóricas e historiográficas que lhe permitissem uma
compreensão ao mesmo tempo ampla e específica da realidade paulista. Naquele mesmo
depoimento prestado a Mário Neme, Saia afirmava que para ter tal visão e agir socialmente não
seria necessário “carteirinha de partido”.
Saia era também um defensor do funcionalismo da arquitetura moderna. Esse
movimento, representado no Brasil sobretudo pela figura de Lucio Costa (1902-1998), lançou
mão, em suas mais bem-acabadas expressões, de uma análise mais ampla da realidade
construtiva, investigando aspectos históricos, sociais e culturais que pudessem responder com
mais eficácia aos problemas arquitetônicos contemporâneos. Saia aderiu aos preceitos da
arquitetura moderna brasileira, principalmente pelo “racionalismo” que esta pregava, ou seja, a
investigação das condições reais de vida que conduziriam a uma “saúde plástica perfeita”, ou,
em outras palavras, a um correto equilíbrio entre forma e função. Saia critica, isso sim, um outro
“modernismo”, praticado em São Paulo, sobretudo a partir da década de 1950.742
Saia ainda compartilhava com Lucio Costa uma certa concepção acerca da
historicidade nacional, ou seja, algo que pode ser unificado numa linha evolutiva dotada de
momentos de originalidade e de “submissão” cultural. Assim, o século XIX era visto por ambos
como um momento em que o Brasil estava na dependência de outras potências econômicas
europeias, o que teria interrompido um longo período de experimentação e de criação de formas
originais de organização cultural e social. Seria um dever dos arquitetos colaborar com o reatar
desse fio evolutivo rompido, atuando nas diversas frentes relacionadas com a modificação dos
espaços de vida e convivência. Assim, a concepção corbusieriana de arquitetura tomava forma,
por aqui, numa história da arquitetura nacional dotada de uma historicidade própria.743 Esses

742
“A pesquisa desesperada dessa interpretação unicamente através da forma – o que leva a arquitetura modernista
de São Paulo a uma exploração incansável e inútil de combinações dos elementos da linguagem plástica que
incidentalmente serviram a alguns projetos nacionais mais reussidos [neologismo a partir do verbo francês réussir,
que significa “ser bem sucedido”] (rampas, pilotis, brise-soleil etc.) – sobre constituir uma preocupação
amazonicamente alheia à substância do verdadeiro problema, representa um desmentido à respeitável lição da
arquitetura tradicional, cuja ‘inteligência’ e temática expressional souberam, mesmo nos momentos de atividade
criadora mais discreta, manter-se num alto nível de respeito próprio, resolvendo, sem pretensões, os problemas
que lhes eram propostos pela comunidade […] Se cada época e cada comunidade têm uma temática expressiva e
uma intenção peculiar, é evidente teimosia pretender repetir experiências plásticas destituindo-as de senso e de
funcionalidade, especialmente quando essas experiências não representam – como não representam no caso
particular de São Paulo atual – a única e mais importante contribuição para a solução dos legítimos problemas
regionais” (SAIA, 2005, p. 262).
743
Refiro-me a Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudônimo de Le Corbusier. A respeito de
sua concepção arquitetônica vinculada à preocupação de cunho social, vide LE CORBUSIER, 2006.
474

profissionais teriam se apegado à “crença quase ilimitada nos poderes da ciência e, no caso da
arquitetura, na capacidade de esta mudar a condição e comportamento dos indivíduos através
do espaço” (CAVALCANTI, 1996, p. 106). Além disso, a arquitetura moderna, de acordo com
Le Corbusier (1887-1965) e também Walter Gropius (1883-1969), traduziria um momento de
ruptura com o passado – mas com um passado imediato, representado pelos arquitetos
“academicistas”, a exemplo dos chamados neocoloniais. Segundo Cavalcanti, “no campo da
arquitetura a ‘vitória’ dos modernos se dá mediante uma vinculação histórica e uma vinculação
ética; ao assumirem os polos do passado e do futuro, logram se colocar, em uma perspectiva
evolucionista, como a natural depuração e herdeiros de toda uma tradição construtiva brasileira”
(CAVALCANTI, 1996, p. 113). Dessa forma, em função de uma série de afinidades discursivas
entre governo e intelectuais, sobretudo arquitetos, estes teriam percebido no serviço público a
melhor forma de intervenção na sociedade. Comprovariam estas afirmações o “predomínio
massivo de arquitetos” no SPHAN e o privilégio dado ao “patrimônio pedra e cal” nos primeiros
números da revista editada por este órgão.
Dentre as correntes modernas internacionais que mais influenciaram Luís Saia, é
forçoso destacar o “funcionalismo orgânico” de Frank Lloyd Wright (1867-1959), “o
racionalismo empírico” de Alvar Aalto (1898-1976) e a estética funcionalista moderna da
Bauhaus, sobretudo no que diz respeito à obra de Walter Gropius, a respeito da qual chegou a
escrever um artigo, intitulado “Gropius – o arquiteto no fundo do posso”,744 além do próprio Le
Corbusier. A interação entre construção e terreno conforme pregada por Wright pode facilmente
ser notada, por exemplo, na restauração do Sítio Santo Antônio, no município de São Roque.

12.1.1. Saia e a historiografia brasileira

Luís Saia também possuía um especial interesse pelo passado e pela produção
historiográfica. É possível encontrar na “Biblioteca Luís Saia”, formada a partir do espólio do
arquiteto e sob a guarda atual da 9ª Superintendência Regional do IPHAN, uma grande
quantidade de obras de Varnhagen, Martius, Capistrano de Abreu e, principalmente, Afonso de
E. Taunay e Alfredo Ellis Jr., que dedicaram vários estudos à história bandeirante. Esses dois
últimos claramente influenciaram o interesse que Saia dirigiu ao passado nacional, haja vista a
energia que dedicou à interpretação do modo de vida bandeirante em sua história da arquitetura.

744
Essa informação pode ser encontrada em seu currículo profissional elaborado em 1974, cuja cópia me foi
fornecida pelo historiador Jaelson Bitran Trindade, que indica que esse artigo foi publicado em 1962 pela
Publicação DAFAM, nº 2.
475

Esse aspecto também ligou Saia, portanto, ao conjunto da intelectualidade paulista aglutinada
no DC.
É na década de 1930, no entanto, que a historiografia brasileira dará um salto
qualitativo no que diz respeito às grandes interpretações da história nacional. Casa-Grande &
Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), de Gilberto Freyre (FREYRE, 2003 e 1981), e
Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (HOLANDA, 1995), inovaram nesse
debate trazendo à baila a análise da cultura material e tratando de forma diferenciada problemas
como a contribuição da miscigenação para a formação nacional, tema este que já vinha sendo
trabalhado por autores como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna e outros. Essa
literatura não escapou a Luís Saia, adquirindo, pelo contrário, importante papel em sua obra.
Em nota de rodapé, o arquiteto afirma que

na década de 30, os interessados no estudo dos problemas brasileiros eram presas,


quando não de um pretenso universalismo palavroso, do saudosismo aristocratizante
dos Oliveira Vianna e do ‘nacionalismo’ de Ricardo Severo. Dois livros, Casa Grande
e Senzala e Raízes do Brasil, respectivamente de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Holanda, contribuíram demais como tábua de salvação. (SAIA, 2005, p. 63)

Com efeito, não é difícil encontrar em sua obra e trajetória elementos que
comprovam o contato de Saia com o pensamento de Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Com
relação ao primeiro, ao menos o artigo sobre “O alpendre nas capelas brasileiras” (SAIA, 1939),
indica uma leitura atenta da obra do intelectual pernambucano, cujas ideias a respeito desse
assunto são problematizadas, o que não significa uma discordância completa em relação ao seu
pensamento. No que toca a Sérgio Buarque de Holanda, a proximidade é ainda maior. Esse
historiador paulista, como vimos no “Capítulo 8”, participou diretamente das redes
transnacionais nas quais estava envolvido o Departamento de Cultura, e, por conseguinte, Mário
de Andrade.
Com relação aos aspectos que Saia mais aproveitou dessa historiografia, é possível
destacar ao menos três deles: 1) uma certa noção de processo histórico nacional, 2) a cultura
material como fonte privilegiada e 3) a miscigenação como fator explicativo importante para a
formação nacional, ainda que em Raízes do Brasil ela não possua papel tão fundamental quanto
em Casa-grande & senzala.
Essa noção de processo histórico nacional apropriada por Saia de nossos
476

“historiadores modernistas”745 está ligada à identificação de uma “essência” ou “ethos”


existente por todo um período da história nacional, no qual teria predominado uma organização
rural da sociedade e sobre o qual repousaria a originalidade de nossa civilização. Esse período
de formação nacional original teria sido interrompido bruscamente por uma série de valores
“importados” em função da explosão urbana ocorrida a partir do século XIX. O papel de todos
esses intelectuais modernistas seria, grosso modo, conhecer melhor as especificidades culturais
da nação a fim de melhor controlar a sua modernização.
Essa mesma ideia de processo encontra-se presente nas interpretações de Luís Saia.
No entanto, a perspectiva dialética conferiu à análise do arquiteto um importante grau de
originalidade. O processo evolutivo paulista teria, portanto, suas próprias qualidades e
contradições internas. São Paulo não conheceria, por exemplo, uma sociedade rural como a
nordestina, tendo em vista que a “tese” de ocupação territorial inicial adotada na região foi a da
negação do binômio rural-urbano. Além disso, a produção em larga escala não teria logrado
êxito na capitania do Sul, assentando o poder patriarcal muito mais no poderio bélico, baseado
no apresamento de índios, que na monocultura voltada para a exportação.
Essa tradição historiográfica também ampliou o rol de fontes trabalhadas. Na obra
de Gilberto Freyre a casa se torna um documento privilegiado para a compreensão da formação
nacional, fato este que ajudou a legitimar no SPHAN uma preocupação mais imediata com o
patrimônio edificado. As relações sociais e a formação cultural que teriam se dado nesse meio
demandaram fontes alternativas para sua compreensão. Freyre lança mão, assim, de uma
infinidade de fontes para compreender, sobretudo em Casa-Grande & Senzala, a vida rural
nacional e as bases que, a partir dela, teriam sido lançadas para nossa formação cultural. Essa
espécie de “gênero de vida” (organizado patriarcalmente, com base na agro-exportação
escravista e gerador de soluções culturais mestiças) teria conformado nossas características
essenciais, que seriam contrapostas, em seguida (sobretudo em Sobrados e Mucambos), a uma
vida urbana, na qual a adoção de normas de conduta exógenas teria deteriorado uma forma mais
bem adaptada às imposições do meio natural.
Na obra de Sérgio Buarque de Holanda também fica claro que nossas “raízes”
seriam rurais, bem como que a antinomia “rural-urbano”, desencadeada com o traslado da corte
para a colônia, teria gerado importantes consequências sobre nossa vida cultural. No entanto,

745
De acordo com Berenice Cavalcante (2008), a historiografia produzida a partir da década de 1930 por autores
como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. é tributária das discussões surgidas a partir de
1924, ou seja, da “segunda fase do Modernismo brasileiro”, caracterizando-se, principalmente, pelo
“distanciamento entre discurso e realidade”, pela busca de nossa singularidade e pela acentuada preocupação com
o presente e o futuro.
477

sua obra não gravita, como em Freyre, em torno de somente um “objeto material” (a casa). Fica
antes dispersa em vários aspectos de nossa “cultura material” (dentre os quais não deixam de
figurar as habitações, numa posição menos privilegiada, no entanto) ligando-se mais a um
objeto que, a partir da década de 1970 poderia ser facilmente identificado, mutatis mutandis, às
“mentalidades”.
Luís Saia também tomou a arquitetura como objeto privilegiado para a
compreensão da evolução regional paulista e nacional. Para ele, a casa bandeirista, por exemplo,
é a expressão de um modo de vida mestiço e organizado socialmente com base em fórmulas de
origens feudais. No entanto, a análise do arquiteto paulista transcende o espaço da casa,
estendendo-se a uma ocupação mais ampla do território e relacionando-se a um processo de
divisão internacional do trabalho. Essa análise é possibilitada pela perspectiva dialética da qual
parte Saia, que lhe permite analisar diferentes processos (o da evolução arquitetônica, o da
evolução regional paulista, o da formação nacional e o da divisão internacional do trabalho),
tanto em suas características e contradições internas como nas conexões que guardam entre si.
Dessa forma, para Luís Saia “a expressão casa-grande, […] legítima no Nordeste, nunca fez
praça em São Paulo” (SAIA, 2005, p. 63, nota 3). Isso significa que, para ele, o binômio “casa-
grande e senzala” não forneceria a chave explicativa ideal para a compreensão da nação como
um todo: ele apenas comporia, como um processo específico e com um conjunto de outros
processos (do qual também faz parte o da evolução da casa paulista) um processo mais amplo,
ou seja, o da formação da cultura nacional.
Contudo, o arquiteto se aproxima em grande medida desses dois intelectuais pelo
tema elegido. Em última instância, a nação era o grande objeto desses sujeitos. Quando a casa
passa a ser uma espécie de artefato para a investigação da formação nacional, o olhar a ela
dirigido foca aspectos mais profundos que a materialidade da construção. Procura-se desvendar
o que os elementos construtivos podem dizer acerca dos processos de formação e organização
originais da nação. A “casa brasileira” (ou, mais especificamente, a “morada paulista”) se
tornou então o “híbrido” a moldar o olhar histórico-etnográfico perscrutador da nação.
Por fim, tem-se a questão da miscigenação, que se tornou um ponto importante no
argumento de Luís Saia. Pela forma como é empregado no texto do arquiteto, é possível afirmar
que sua definição de arquitetura paulista só pôde ser levada a cabo em função da tentativa
anterior, intentada pela historiografia modernista, em definir um conceito não racista (mais
cultural que biológico) de miscigenação. A esse respeito é providencial a seguinte passagem,
retirada de Morada paulista:
478

é claro que o antipelagismo e o imediatismo biológico da mestiçagem levaram os


colonos a um nível de interpretação das condições naturais, cuja extraordinária
eficácia operativa somente poderia ser explicada pela intimidade ecológica que
ocorreu em São Paulo e que resultou em tamanha importância nacional na atividade
dos bandeirantes. (SAIA, 2005, p. 228)

Ora, para Sérgio Buarque de Holanda o mameluco, conforme se pode depreender de seu
Caminhos e fronteiras (HOLANDA, 1994), também foi produzido a fim de dar conta de uma
forma de civilização que dependeu de dificultosas jornadas sertão a dentro, para as quais a
população autóctone já estava plenamente adaptada em função do longo convívio com o meio
tropical. Assim o português teria procriado e criado o mameluco, dotado tanto de características
genéticas (o pé achatado, por exemplo, que facilitaria as extensas caminhadas no “mato”)
quanto culturais, aprendidas com suas mães índias. Esses novos traços “raciais” (entendidos
mais em termos de adaptação cultural e biológica ao meio) possibilitariam enfim as “bandeiras”,
que, por sua vez, teriam sido fundamentais para o domínio colonial sobre faixas mais extensas
que do litoral inicialmente ocupado. Vimos acima que essa era também uma temática cara para
Alfredo Ellis Jr., de cuja obra Saia era também conhecedor.
No entanto, o próprio Sérgio Buarque de Holanda se inspirou em Gilberto Freyre
(embora as referências ao escritor pernambucano deixem de comparecer em Raízes do Brasil a
partir de sua 2ª edição) ao elencar como fator explicativo para a formação nacional a
miscigenação. Não há uma definição clara para o conceito de “miscigenação” em Raízes do
Brasil. Cristalina, todavia, é a aplicação deste conceito em suas interpretações, que permitem
antever uma matriz muito semelhante à empregada por Freyre.746
É possível assim supor que Freyre, Holanda e Saia partissem todos, portanto, de
uma mesma definição de miscigenação. No entanto, para o arquiteto paulista não são apenas os
contatos culturais e étnicos que explicam a conformação arquitetônica da casa bandeirista, mas,
igualmente, fatores diversos como as relações sociais e de produção e as características do
terreno, por exemplo.

12.1.2. O DC e o SPHAN

Luís Saia participou do Curso de Etnografia ministrado por Dina Dreyfus no DC,

746
Essa conceitualização está claramente expressa em Casa-Grande & Senzala, escrito três anos antes, sobretudo
no “Prefácio à primeira edição”, no qual, em extensa nota de rodapé, Freyre arrola o longo percurso a partir do
qual aprendeu a “considerar fundamental a diferença entre raça e cultura”, na qual “assenta todo o plano deste
ensaio” (FREYRE, 1954, p. 18, nota 3). Ricardo Benzaquen de Araújo foi talvez quem primeiro tenha lembrado
essa origem neolamarckiana do conceito freyreano, conforme exposto em ARAÚJO, 1994.
479

foi sócio da SEF, onde apresentou várias comunicações e, por fim, foi escolhido por Mário de
Andrade para liderar, em campo, a Missão de Pesquisas Folclóricas, em 1938, último
empreendimento seu na instituição, ao mesmo tempo em que subsidiava a expedição Lévi-
Strauss-Vellard à Serra do Norte. Antes disso, Saia também foi escolhido como assistente de
Mário de Andrade na 6ª Região do SPHAN, em SP. Segundo Sodré,

a participação de Luís Saia no contexto da Missão de Pesquisas Folclóricas parece ter


sido decisiva por revelar um ponto de cruzamento privilegiado da arquitetura com a
história e com a etnografia. Com efeito, a presença de Luís Saia à frente da viagem
parece ter sido decisiva para o desenvolvimento de uma sensibilidade para com a
arquitetura rústica no país e seu reconhecimento como parte de um mundo de heranças
compartilhadas no enfrentamento das mais diversas circunstâncias naturais, sociais e
econômicas de estabelecimento. (SODRÉ, 2014, p. 89)

Saia dá vazão, portanto, ao projeto de uma coleta cientificamente conduzida do


folclore nacional, algo almejado por Mário desde, pelo menos, sua “viagem etnográfica” ao
Nordeste, e acrescenta ao rol desses artefatos culturais a própria habitação, que se tornaria um
“híbrido” privilegiado para a decifração do nacional e do regional. A “matriz politécnica” de
Saia é complementada assim pelo folclore e etnografia (SODRÉ, 2014, p. 93), permitindo a
constituição de um sujeito apto a transitar no órgão federal de proteção ao patrimônio cultural
nacional. Saia representa assim uma subjetividade que se produz como forma de viabilizar a
continuidade do projeto de nacionalidade moderna paulista no interior de um ambiente
relacional e institucional agora dominado pelo projeto centralista emanado da capital federal.
Saia, assim como Mário de Andrade, se fez “brasileiro para o Brasil”, e, embora não tenha
transitado transnacionalmente como o fizeram outros sujeitos pertencentes ao núcleo relacional
intelectual paulista, não há dúvida de que foi atravessado pelo americanismo presente de forma
flagrante na SEF.
Durante todo esse conturbado período, Mário de Andrade e Luís Saia trabalharam
juntos nos primeiros levantamentos daquilo que, do ponto de vista arquitetônico, seria digno da
proteção do SPHAN (pois já vimos que a tutela do patrimônio arqueológico e etnográfico foi
informalmente monopolizada pelo Museu Nacional). A confiança de Mário de Andrade em
relação a Luís Saia expressava-se tanto na forma como o primeiro se referia ao último em
algumas de suas correspondências (ANDRADE, 1981) como nas responsabilidades que lhe
atribuiu nesses anos de trabalho conjunto. Prova maior disso é o fato de Saia ter sido escolhido
para chefiar a Missão de 1938, expedição que havia muitos anos o próprio Mário sonhava em
realizar (CARLINI, 1994). Por isso é difícil afirmar com segurança onde terminaria a
contribuição intelectual de um e começaria a do outro nesse período e no que se refere à
480

definição do patrimônio histórico e artístico do estado de São Paulo. O próprio Mário de


Andrade comenta que o artigo que publicou com o seu nome no primeiro número da Revista
do SPHAN deve ser atribuído a Saia (ANDRADE, 1981). Além disso, do respeito intelectual
de Mário de Andrade em relação a Luís Saia não restam dúvidas, haja vista o ressentimento do
primeiro quando, após ter escrito uma primeira versão do trabalho sobre o Padre Jesuíno do
Monte Carmelo (do qual foi incumbido pelo SPHAN no início da década de 1940), ficou
profundamente ressentido por causa das críticas que lhe fez o seu amigo engenheiro-arquiteto,
demonstrando desse modo, acima de qualquer outra coisa, respeito por sua opinião
(ANDRADE, 1981).
Mário de Andrade, Luís Saia, Nuto Sant’Anna e Hermann Graesser (o “Germano”)
começaram, então, em 1937, a inventariar a arquitetura paulista passível de futuros
tombamentos. Uma vez mais o projeto de nação da intelectualidade paulista se via, no entanto,
ameaçado por uma espécie de “sub-representação”, pois que as igrejas e as “casas velhas”
arroladas no primeiro relatório enviado por Mário de Andrade ao núcleo dirigente do SPHAN
no Rio de Janeiro mostrava uma série de edifícios pouco interessantes do ponto de vista da
tipologia técnica e estética de uma arquitetura previamente definida como representativa da
identidade nacional. Em outras palavras, as construções paulistas não se comparavam,
conforme constatava um desanimado Mário de Andrade, à beleza das igrejas mineiras, baianas
e pernambucanas. No entanto, já se imaginava uma alternativa: “a orientação paulista tem de
se adaptar ao meio: primando a preocupação histórica à estética” (ANDRADE, 1981, p. 69).
Mário de Andrade deixou, nesse ponto, um projeto inacabado. Contribuiu, por
certo, com as discussões que produziram um “tipo arquitetônico” representativo da cultura
bandeirista, pois o contato com as “casas velhas” paulistas arroladas em seu relatório e o estudo
pormenorizado da residência do Sítio Santo Antônio, em São Roque, já permitiriam as
constatações que seriam levadas adiante por Luís Saia. No entanto, foi a articulação desse
aspecto material da cultura com uma nova ideia de sentido produzida pelo arquiteto paulista
que deu um novo impulso à obra civilizatória iniciada por Mário de Andrade. Vejamos em que
medida a obra historiográfica Morada paulista pode nos servir como um arquivo desse
rejuvenescido processo de produção de subjetividades e objetividades por meio de um
patrimônio arquitetônico que também foi desdobrado dos outros híbridos apresentados nesta
tese.
481

12.2. MORADA PAULISTA747

O livro Morada paulista propõe um sentido bastante amplo para a evolução da


arquitetura regional paulista. Essa narrativa historiográfica se insere num processo mais
abrangente de produção de uma modernidade brasileira especificamente paulista. Ela faz eco,
portanto, a um conjunto de práticas e relações, regionais e transnacionais, que, como mostrei
no capítulo anterior, produziram regionalmente sujeitos da modernidade que se destacariam,
entre políticos e intelectuais, por uma suposta herança bandeirante.
A arquitetura regional paulista é o objeto produzido nesta relação narrativa. No
entanto, ele se desdobra num outro objeto mais abrangente, ou seja, a própria nação, que então
adquire um ponto focal de origem distinto. A nação deixa de ser pensada como homogeneidade
para dar lugar a um conjunto interconectado de feições regionais.
Essa narrativa também expressa a construção de um sujeito. Ele constitui o sentido
das ações empreendidas pelo próprio Luís Saia ao longo de sua trajetória como diretor regional
do SPHAN, arquiteto, urbanista e docente. Os diversos textos reunidos no livro Morada
paulista, no final da vida do arquiteto, de forma a fornecer sentido para esse conjunto de ações,
adquire assim uma função normativa: ele busca fornecer sentido e produzir uma identidade que
precisariam se desdobrar em outras subjetividades a fim de levar a cabo a obra de uma
modernidade brasileira especificamente paulista.
Assim, tanto os vestígios arquitetônicos, protegidos, alterados e costurados por um
sentido narrativo, quanto a própria narrativa, são menos a “obra de um autor” do que híbridos
dotados de agência própria, produtores e reprodutores de objetos e sujeitos que mantêm a
modernidade em funcionamento e em expansão num nível mais localizado. Nesta seção
buscarei mostrar em detalhes essa rede produtiva por meio de uma abordagem historiográfica
que permita perceber essa produção.
De acordo com o próprio Luís Saia, a ideia para a organização do livro Morada
paulista partiu de uma série de artigos publicados na revista Acrópole, em 1956, sobre a
“evolução da arquitetura residencial paulista” (“Arquitetura de circunstância”, “Intermezzo
roceiro”, “Economia de sobremesa” e “Ciclo ferroviário”). Segundo ele, “nessa época estava
empenhado em recolocar certos problemas de planejamento, armando cursos de extensão,
elaborando projetos de lei sobre reforma urbana e organizando a Comissão de Planejamento do

747
Esta subseção reproduz, com algumas modificações, alguns trechos do artigo “Luís Saia e a evolução
arquitetônica regional” (LOWANDE, 2014).
482

IAB de São Paulo” (SAIA, 2005, p. 7). Somados aos artigos sobre geologia, pedologia e
edafologia, aqueles artigos foram republicados pela revista Acrópole sob o título “Notas sobre
revolução da morada paulista”.
Morada paulista foi então organizado a partir daquelas “Notas”, com o acréscimo
de outros textos sobre a mesma temática. Selecionados os artigos (escritos entre 1945 e 1963),
o livro foi então dividido em duas partes: “Notas sobre a evolução da morada paulista”
(suprime-se o “r” de “revolução”) e “Notas relacionadas com a tetônica demográfica de São
Paulo”. Introduzindo os trabalhos reunidos na primeira parte do livro, Saia escreve uma “Nota
prévia”, cujo objetivo é amarrar um sentido para textos produzidos em diferentes momentos de
sua trajetória, tendo sido certamente elaborado por ocasião da publicação do livro. Nele o
significado da arquitetura paulista é contraposto ao da arquitetura oitocentista mineira e baiana
e, além disso, explicitam-se os tipos de fonte utilizados, apontando sua validade e limitações.
O próximo capítulo, intitulado “Quadro geral dos monumentos paulistas”, refere-
se a uma palestra “destinada a divulgar os esforços no sentido de proteção do patrimônio
histórico e artístico de São Paulo” (SAIA, 2005, p. 8). Esse capítulo funciona, no livro, como
uma consideração preliminar de cunho teórico, na qual são expostos os períodos da evolução
regional paulista bem como as “teses” principais e ancilares de cada um deles, além daquelas
teses ou hipóteses (a que chama de “negadas”) que foram preteridas em detrimento de soluções
mais recomendadas ao modo de vida que se instalou no planalto paulista. Esse capítulo é de
suma importância para a compreensão da ideia de sentido que perpassa a narrativa, algo que
pode ser subsumido ao conceito de “evolução regional da arquitetura paulista” ou simplesmente
“evolução regional paulista”. Para exemplificar o quadro proposto por Luís Saia, talvez seja útil
a elaboração de uma tabela (Tabela 1).
483

Tabela 1 Esquema de periodização utilizado por Luís Saia em Morada Paulista


484

Com base nessa síntese do que Saia considera a evolução da implantação


populacional no estado de São Paulo, logo se depreende que ele foi além da definição tipológica
daquilo que corresponderia à arquitetura propriamente bandeirista. A interpretação construída
para essa evolução se prende a uma análise das relações materiais de produção do paulista ao
longo da história brasileira, com especial consideração do relacionamento desse tipo social com
o meio e de modo a demonstrar, via arquitetura e implantação urbana, em que medida a “cultura
paulista”, entendida como algo em constante transformação, seria significativa para a
compreensão da “cultura brasileira” em sua historicidade mais ampla. Têm-se, portanto, uma
valoração da obra cultural paulista tanto por sua singularidade como por suas conexões
indispensáveis com a formação da própria cultura nacional. É neste ponto, a meu ver, que essa
narrativa completa e mesmo supera as limitações iniciais do projeto de objetificação cultural
paulista no interior das políticas federais de cultura: ao longo do trabalho da regional paulista
do SPHAN produz-se um sentido bastante eficaz para o conjunto das manifestações culturais
dessa região. A crise de sentido percebida e a que se responde é, portanto, um problema
identitário relacionado ao fato de que intelectuais paulistas se viam preteridos diante da ideia
de nacionalidade homogênea e hegemônica produzida a partir da década de 1930.
E como essa narrativa opera com a “tradição”, isto é, com o conjunto de
experiências que funcionam como “componente intencional prévio do agir, que vem do passado
para o presente e influencia as perspectivas de futuro no âmbito da orientação da vida prática
atual”? (RÜSEN, 2001, p. 76). Esse caldo de experiências não pode, por si só, orientar condutas.
Era necessário, primeiramente, que estas experiências pudessem ser consideradas verdadeiras,
ou seja, deveriam possuir uma “pertinência empírica”. Por outro lado, era preciso também que
tais experiências fossem recolhidas a partir de um significado imputado subjetivamente, o que,
no caso da obra em questão, relaciona-se com o que Saia considerou importante para a prática
arquitetônica em seus variados nichos, algo que se pode chamar de “pertinência axiológica”.
Por fim, para orientar eficazmente a ação dos “indivíduos alvo”, no caso todos os atores,
principalmente arquitetos e urbanistas, ligados às práticas preservacionistas e projetivas, isso
tudo deveria ser narrado de modo que fizesse sentido, ou seja, que permitisse a produção de
novos sujeitos percebidos como elementos específicos da construção de uma temporalidade
moderna.

12.2.1. A relação com os vestígios

A pretensão de pertinência empírica da história da arquitetura paulista narrada em


485

Morada paulista se assenta numa espécie de “método de prospecção arqueológica” da


arquitetura tradicional bandeirante. A este respeito, Carlos Gutierrez Cerqueira, técnico da 9ª
Superintendência Regional do IPHAN, afirma o seguinte:

Consistia essa cuidadosa tarefa naquilo que os arquitetos do IPHAN denominariam


depois trabalho de prospecção, efetuada nos monumentos e realizados
concomitantemente de maneira a obter informações sobre os materiais e sua aplicação
e confrontá-las entre si, constituindo desse modo um primeiro conhecimento sobre as
formas primitivas de suas edificações. Tais atividades demandaram vários meses e
tinham o propósito de distinguir o que havia sido acrescentado ao longo do tempo por
razões diversas, ao mesmo tempo em que se desvelavam os materiais e as formas
originais dos monumentos. Aos resultados assim obtidos, afora o conhecimento
adquirido pelo restaurador, ganhavam também em experiência os trabalhadores
engajados nos serviços, pois iam compreendendo as diferenças entre as obras de
simples reforma e reconstrução daquelas de restauração propriamente dita que
pioneiramente ajudavam a executar. (CERQUEIRA, 2016, p. 25)

Este método foi desenvolvido, na regional paulista (se não de maneira precursora no país), por
Luís Saia. Mário de Andrade depositava total confiança na erudição técnica de Saia, confiando-
lhe especialmente os trabalhos de “engenharia” necessários para o conhecimento do patrimônio
arquitetônico do estado. Ainda segundo Cerqueira, Mário de Andrade, em notícia veiculada
n’O Estado de S. Paulo em julho de 1939,

[…] retorna aos trabalhos em realização, especialmente as tarefas do restaurador,


daquele ‘engenheirando’ que trouxera em 1937 para trabalhar consigo e que agora era
o responsável pela condução das obras de restauração desses [Forte de São João,
Bertioga, capela de São Miguel e igreja e convento de Embu] e de outros monumentos
paulistas, do cuidado deste profissional no preparo dos operários, nos estudos
encetados, na tarefa meticulosa de registrar tudo quanto ocorria nas obras,
desenhando, fichando e ‘fotando’ cada pormenor interessante revelado nas
prospecções das paredes de taipa do edifício, dos revestimentos posteriores com
tijolos, bem como na análise desses materiais que lhe permitia perscrutar as técnicas
e as formas anteriores dos edifícios reformados ao longo do tempo – tudo reunido no
‘caderno de obra’, acrescido ainda da coleta de informações junto a membros da
comunidade local sobre o monumento na tentativa de reconstituir sua trajetória
recente e pretérita [...] (CERQUEIRA, 2016, p. 25-6)

Diante de casas que antes eram valorizadas apenas por sua “ancianidade”, Saia
empreendeu uma espécie de “exegese construtiva” de cunho estratigráfico que cuidadosamente
ia revelando as motivações técnicas e culturais de um modo de se construir casas próprio de um
espaço e um tempo específicos. Tratava-se, portanto, muito menos de um a priori teórico a
conduzir suas restaurações do que hipóteses fornecidas por uma leitura metódica dos
486

monumentos arquitetônicos a partir das suas entranhas.748 Esse tipo de prática, metodicamente
registrada nos cadernos de obra legados por Luís Saia, fornecia as “inscrições” (LATOUR e
WOOLGAR, 1997), necessárias para os enunciados narrativos que foram produzidos acerca
das especificidades arquitetônicas e, por conseguinte, culturais dos brasileiros piratininganos.
Mais que isso, essas materialidades, conforme escavadas, iam produzindo, também, o próprio
Saia como sujeito da brasilidade paulista e da modernidade nacional, produzindo, assim, novos
enunciados que abrangiam espaços até então intocados.
O método de validação empírica desenvolvido por Saia guarda, sem dúvida,
relações com o seu período formativo (teórico e prático) na SEF. Prova disso é a comunicação
que ele apresentou a essa sociedade em 22 de setembro de 1937, posteriormente publicada na
Revista do Arquivo Municipal com o título “Um detalhe de arquitetura popular”. Segundo João
Sodré,

naquela ocasião, ele chamou a atenção para o desaparecimento quase sistemático do


uso da tesoura na habitação popular brasileira, sobretudo na casa de pau-a-pique,
tendo recolhido inclusive os termos populares que se referiam à estrutura do telhado
e seus detalhes. Ao apresentar o problema, ele tinha como pressuposto as pesquisas
que vinha realizando no âmbito do recenseamento dos bens paulistas passíveis de
tombamento pelo SPHAN. No entanto, fica evidente também a importância do curso
ministrado por Dina Lévi-Strauss durante o segundo semestre de 1936, sobretudo das
aulas específicas acerca do estudo de arquitetura no âmbito das pesquisas de campo.
(SODRÉ, 2014, p. 89)

Fica claro, portanto, que a arquitetura é um aspecto dentre os demais que comporiam o
patrimônio cultural (especialmente folclórico) nacional – algo que será melhor desenvolvido no
momento em que eu me ater ao modo pelo qual Saia interpretava esses artefatos arquitetônicos.
Assim, a proteção do patrimônio “taipa e canela-preta” em São Paulo foi uma realização
possível da concepção de “patrimônio artístico nacional” elaborada por Mário de Andrade no
interior do patrimônio “pedra e cal” do SPHAN.
Todavia, a Missão de Pesquisas Folclóricas enviada ao Nordeste pelo DC parece
ter tido uma importância ainda mais definitiva na consolidação do sujeito “Luís Saia arquiteto-
etnógrafo” e do objeto “morada paulista”. Ainda de acordo com Sodré,

A participação de Luís Saia no contexto da Missão de Pesquisas Folclóricas parece


ter sido decisiva por revelar um ponto de cruzamento privilegiado da arquitetura com
a história e com a etnografia. Com efeito, a presença de Luís Saia à frente da viagem
parece ter sido decisiva para o desenvolvimento de uma sensibilidade para com a
arquitetura rústica no país e seu reconhecimento como parte de um mundo de heranças

748
A respeito dos trabalhos de restauração empreendidos por Saia, vide também ANDRADE, 1992 e 1993,
MAYUMI, 2005, e GONÇALVES, 2007.
487

compartilhadas no enfrentamento das mais diversas circunstâncias naturais, sociais e


econômicas de estabelecimento. (SODRÉ, 2014, p. 89)

A arquitetura popular é procurada, nesse empreendimento investigatório cujo principal


entusiasta era o próprio Mário de Andrade, como parte de um acervo de artefatos mais amplo
capaz de dar conta de um “modo de vida” tradicional, autêntico, parte fundamental e ameaçada
daquilo que se poderia chamar de cultura nacional. A busca desses artefatos produziu,
imediatamente, registros que constituíram, por décadas a fio, novos “sujeitos do patrimônio”.
Até mesmo as críticas aos critérios e interpretações propostos por Saia, que ainda hoje
continuam suscitando diversas polêmicas,749 não escapam ao essencial dessa produção: a
definição da “verdade histórica”, com base naquilo que diriam os vestígios, sobre as
configurações sociais e culturais que nos informariam a respeito da identidade nacional (no
caso, uma configuração e evolução especificamente paulista da nacionalidade). Essa obra
alegórica de objetivação de uma cultura nacional/regional por meio de ruínas arquitetônicas é
parte e desdobramento, contudo, da etnografia americanista que aportou na SEF, onde Saia
frequentou o curso de Etnografia Prática, pelas mãos de Dina e Claude Lévi-Strauss.
Trata-se, portanto, de uma narrativa fortemente amparada na materialidade,
condição indispensável para que um produto historiográfico seja percebido como válido, pois

as histórias convencem seus destinatários da credibilidade de seus conteúdos na


medida em que demonstram o que foi o caso, no passado, por recurso aos vestígios
ainda presentes desse mesmo passado. Dessa forma, quem quiser saber como as
coisas aconteceram poderá convencer-se de que assim foi como está sendo dito.
Para reforçar sua pertinência empírica, as histórias podem remeter a uma instância
de autenticação. Essa instância consiste na contemporaneidade factual do
passado, ou seja, no fato de que subsiste algo dele e que dá testemunho dele. As
pretensões de validade suscitadas pelas histórias com relação a seus conteúdos
empíricos são fundamentadas, destarte, com a operação tipicamente histórica da
validação (RÜSEN, 2001, p. 100-101).

Não somente Luís Saia, mas toda a atuação do IPHAN caracteriza-se justamente
por produzir uma “instância de autenticação” para uma série de narrativas sobre nacionalidade,
fossem elas produzidas por modernistas mineiros (arquitetura civil e religiosa “barroca”), por
antropólogos ou “naturalistas” (patrimônio arqueológico, etnográfico e paisagístico) ou
arquitetos modernos (arquitetura brasileira dotada de “equilíbrio” e “sobriedade”, ligada
universalmente a uma estética harmoniosa de raízes mediterrâneas e, sobretudo, não
relacionada às impurezas estéticas produzidas pelo “ecletismo”). A produção historiográfica

749
Conferir, a este respeito, TRINDADE, 2014, e CERQUEIRA, 2016.
488

em questão logrou garantir que o estado de São Paulo fosse representado no interior da ideia de
nacionalidade então em produção graças a um texto histórico solidamente amparado na
materialidade das residências que tombou, consolidou e “restaurou”. O que Rüsen talvez não
tenha percebido, no entanto, é que não são apenas os(as) historiadores(as) que validam suas
narrativas a partir do recurso às evidências empíricas: as próprias evidências também validam
os(as) historiadores(as), conformando suas sensibilidades visuais e cognitivas a um “poder de
consignação”, como diria Derrida, que as dispôs previamente como ruínas da metanarrativa da
modernidade.

12.2.2. A relação com os valores

Ainda segundo Rüsen, “são normativamente pertinentes as histórias que […]


fundamentam o significado do passado, no presente, com normas que estão na base das
intenções determinantes do agir de seus destinatários” (RÜSEN, 2001, p. 108). Trata-se,
portanto, da produção de subjetividades a partir de pressupostos normativos a serem partilhados
como elementos de uma identidade coletiva. A respeito disso é importante que observemos três
momentos distintos na trajetória do sujeito Luís Saia, o que, no interior desse esforço de caráter
narrativo, produziria uma espécie de exemplaridade a ser desdobrada em novas subjetividades
do patrimônio, da arquitetura e da modernidade paulistas-brasileiros.
Em primeiro lugar, o interesse manifestado por Luís Saia pela arquitetura
residencial e, em especial, popular, no período que vai de 1936 a 1945 (estou considerando,
portanto, os anos que esteve ao lado de Mário de Andrade), relacionava-se diretamente com os
seus anseios intelectuais e acadêmicos somados ao desejo de se aprofundar no conhecimento
da “alma nacional”, em grande medida incentivado pela militância inicial junto à AIB. São
esses os valores contidos nos estudos que Saia realizou, nessa época, tanto a respeito da
arquitetura tradicional paulista quanto no que se refere à arquitetura popular brasileira. Ambas
seriam uma porta de entrada para uma melhor compreensão do ethos nacional, e tanto a SEF
quanto o SPHAN proporcionariam os meios eficazes para a realização desses objetivos.
A partir de meados da década de 1940, como já notei, as casas paulistas passaram
a ser interpretadas por Saia por meio de uma perspectiva materialista dialética peculiar, em
grande medida somada à sua formação etnográfica americanista e em constante diálogo com a
historiografia modernista brasileira produzida a partir da década de 1930. A adesão de Saia ao
materialismo histórico é perceptível na medida em que, a partir desse momento, possibilitou a
elaboração de uma interpretação renovada da formação cultural paulista. Essa, como vimos
489

(Tabela 1), se desenvolveria como uma sucessão de estágios determinados por uma relação
dialética entre as necessidades do homem em suas relações mesológicas e de produção e as
contradições que lhe eram impostas por esse mesmo meio, gerando um movimento evolutivo
no qual se encontrariam as especificidades da cultura paulista. Trata-se, portanto, de um sentido
materialista, dialético, mas muito pouco ortodoxo. Saia, que não se prendeu ao dogmatismo das
interpretações históricas do marxismo-leninismo de então, percebia, no entanto, essa relação do
homem com o meio como determinada por uma dependência para com as diversas formas de
dominação que teriam colocado a economia e a cultura brasileira numa posição subordinada,
algo a ser superado em busca de uma arquitetura e de um urbanismo verdadeiramente nacionais.
Como também já foi mencionado, a arquitetura moderna do período estava em grande medida
voltada para a resolução de problemas sociais, e muitos arquitetos hoje bastante conhecidos se
voltaram a partir de então para o pensamento marxista, a exemplo de Oscar Niemeyer (1907-
2012), Lina Bo Bardi (1914-1992) e Vilanova Artigas (1915-1985), dentre outros.
Foram essas motivações que muito provavelmente conduziram Luís Saia a uma
atuação mais efetiva na área do planejamento urbano e da docência a partir da década de 1950,
embora isso não se mostrasse incompatível com a manutenção das práticas de tutela do
patrimônio cultural brasileiro no DPHAN (a partir de 1946 o “Serviço” se tornara “Diretoria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”). E, como mostrei acima, foram esses dois aspectos,
ou seja, a visão materialista dialética e as ações voltadas para o urbanismo e para a docência,
que conduziram à escrita dos artigos que, somados aos escritos da primeira fase, compuseram
o livro Morada paulista. Saia então somava os saberes etnográficos e folclóricos, práticos e
teóricos, a uma perspectiva social e histórica mais abrangente, para a qual o arquiteto teria um
papel especial a desempenhar. Esse profissional, narrado, portanto, como sujeito da história,
teria um papel transformador significativo. Ele teria uma grande parcela de responsabilidade
sobre os rumos da sociedade, cabendo-lhe identificar os principais problemas urbanos (numa
escala inicialmente regional) para, então, intervir de forma eficaz, visando a um uso mais
igualitário das cidades e à transformação social mais geral. Morada paulista está, assim, repleto
de um sentimento que se tornou cada vez mais notável no meio arquitetônico brasileiro.

12.2.3. O sentido

Segundo Jaelson Bitran Trindade,750 “o estudo e intervenção prática na arquitetura

750
Trindade trabalhou ao lado de Saia na regional paulista do IPHAN a partir de 1969.
490

das capelas de S. Miguel Paulista e do Sítio Santo Antônio, bem como as prospecções feitas em
outras casas-grandes rurais com tipologia similar, suscitaram, desde logo, uma análise
histórico-arquitetônica e uma tentativa de interpretação dessas obras” (TRINDADE, 2014, p.
130). É como se o contato com a arquitetura, esse conjunto de híbridos produtores de uma certa
modernidade paulista, disparassem imediatamente no sujeito em formação uma ânsia pela
descoberta de um sentido objetivo, ou melhor, de uma temporalidade moderna para o objeto
que assim se construía.
Se num primeiro momento – “Notas sobre a arquitetura rural paulista” (1944) e “A
casa bandeirista” (1955) – Saia “buscou entender as relações que se estabeleceram entre o
habitante daquelas unidades, o tipo de sociedade em que ele se inseria e o espaço arquitetônico
que foi produzido” (TRINDADE, 2014, p. 131), a partir da década de 1950 o acúmulo de casos
possibilitou que Saia aprofundasse sua reflexão de caráter diacrônico. Para Mário de Andrade,
a tradição do passado parecia se ligar ao seu projeto moderno por meio de uma estética cuja
essência nacional permanecia imutável no tempo. No trabalho de Saia, no entanto, essa conexão
se tornou possível por meio da articulação entre o passado (a cultura conformada nos primeiros
tempos de colonização), o presente e o futuro por meio do conceito de “evolução regional”,
algo que podia ser atestado pelo estudo histórico da “evolução da morada paulista”. No nível
da escrita, portanto, essa expressão passou a representar uma adaptação onomasiológica e
semasiológica do próprio conceito de “cultura nacional”.
O mesmo método etnográfico-histórico utilizado para a análise das casas
bandeiristas podia assim ser aplicado aos sucessivos “períodos” da história paulista, de modo a
permitir uma comparação entre eles (vide a “Tabela 1”). Essa justaposição de períodos
permitiria entrever uma lógica evolutiva, atrelada ao conflito dialético entre as transformações
do capitalismo internacional e as soluções regionais produzidas para lhe fazer frente num
contexto de contínua dependência, primeiro colonial e, depois, por causa das novas formas de
subordinação num sistema de divisão internacional do trabalho pós-Revolução Industrial.
Fica claro, portanto, que o processo histórico regional, articulado ao nacional e ao
internacional, era percebido como passível de apreensão objetiva por um sujeito do
conhecimento. Uma vez alcançada essa meta, era dever desse sujeito intervir na realidade
presente de modo a produzir um futuro superior ao passado, no qual as antigas formas de
dependência pudessem ser superadas para dar lugar ao livre desenvolvimento de um modo de
vida mais ecologicamente adaptado ao meio. O objetivo desses sujeitos é interpretado como
uma missão civilizatória por intermédio da construção de uma nação mais igualitária, ainda que
permaneça, pelo menos a princípio, o papel de vanguarda dessa elite de intelectuais e, em
491

especial, de arquitetos. Isso mostra como sujeitos, objetos e híbridos se articulavam, nesse
contexto específico, como forma de produzir uma modernidade regional no interior de uma
temporalidade e de relações de subordinação tomadas como universais.
Convém notar que Saia não se prendeu a modelos pré-estabelecidos ao analisar a
sociedade paulista em seus diferentes recortes cronológicos. Foram considerados assim os
processos específicos regionais em conexão com aqueles de maior amplitude. As peculiaridades
foram percebidas em seus elementos mesológicos, mediante um olhar etnográfico que relaciona
cultura e sociedade às condições de economia e meio. No entanto, não se tratou de uma análise
puramente estrutural: importaria conhecer os motivos pelos quais a sociedade paulista
tradicional se alterou a ponto de, no presente, dever ser como que “resgatada” em sua
objetividade autêntica, sob o risco de desaparecimento das “soluções regionais”, consideradas
as mais indicadas para um correto desenvolvimento regional e nacional a partir do presente.
Neste ponto impõe-se um questionamento fundamental para a compreensão da ideia
de sentido presente na obra de Luís Saia. Essa “evolução regional paulista” seria natural ou
dependente da criatividade subjetiva? Isso desloca a reflexão para os debates em torno da
concepção marxista de “dialética”.
Tudo leva a crer que Saia tenha tido à sua disposição, inicialmente, textos
produzidos por uma vertente bastante próxima do pensamento positivista e evolucionista. Foi
o caso das primeiras traduções brasileiras, realizadas na década de 1930, das obras de Nicolau
Bukharin, além da própria produção nacional. A partir de 1923 já se encontrava disponível uma
tradução do Manifesto Comunista, realizada por Octávio Brandão e publicada no jornal operário
carioca “Voz Cosmopolita”. No entanto, conforme aponta Edgar Carone, “apesar da existência
de alguns ensaios escritos na década de 1930, é na seguinte que se dá uma maior expansão da
literatura marxista” (CARONE, 1976, p. 212). Em São Paulo, as primeiras obras marxistas
foram traduzidas e publicadas pelo grupo trotskista dissidente do Partido Comunista Brasileiro
composto por Mário Pedrosa, Aristides Lobo e Lívio Xavier, que fundaram a Editora Unitas –
os primeiros livros editados foram ABC do Comunismo, de Nicolau Bukharin (1933) e O Estado
e a revolução, de Lênin (1934). Em 1935 Caio Prado Júnior traduziu e publicou, pelas Edições
Caramuru, o Tratado do materialismo histórico, também de Bukharin.751 Não é possível afirmar

751
“Este livro teve divulgação mundial e gerou significativa polêmica com alguns dos principais quadros da
Intelligentsia do marxismo europeu nas décadas de 1920 e 1930, formuladas como duras críticas à natureza
positivista do marxismo bukharinista, pela sua tentativa de ‘melhorar’ o marxismo, pelo fato do pensador
bolchevique buscar uma aproximação metodológica com as ciências sociais acadêmicas, principalmente aquelas
centradas pelas proposições da reflexão sociológica durkheimiana” (PINTO, 2007).
492

com certeza se Saia tomou contato com o materialismo histórico através desses livros, embora
intelectuais bastante próximos a Saia, a exemplo de Antônio Cândido e o próprio Mário de
Andrade, tenham se aproximado do marxismo via Bukharin.752
A partir da década de 1960, existem evidências que demonstram o interesse de Saia
por um aprofundamento das questões relacionadas à dialética marxista, o que se traduziu em
seus textos escritos a partir de então. É possível afirmar com segurança que Saia leu o livro
Dialectique de la nature, de Friedrich Engels (a Biblioteca Luís Saia conta com a edição de
1955 deste livro, profusamente fichada pelo arquiteto) e O Capital, de Karl Marx (Saia trouxe
da Argentina uma edição, de 1960, em 5 volumes, da editora Fondo de Cultura Económica).753
O arquiteto também teria lido (e fichado) o livro Introdução à lógica dialética, de Eli de Gortari,
numa edição de 1960. No entanto, Saia já poderia ter acesso, nesse período, às publicações de
Georg Lukács e Antônio Gramsci, que desde a década de 1920 se preocupavam em superar o
reformismo hegemônico da Segunda Internacional mediante uma retomada da dialética
marxiana.754 Além disso, segundo Ciro Flamarion Cardoso, “a partir da década de 1950 e, mais
ainda, do decênio seguinte, um grande debate teórico e metodológico entre marxistas de muitos
países iniciou nova fase, muito mais crítica e aberta ao trabalho criador do que a anterior”
(CARDOSO e BRIGNOLI, 1981). De qualquer forma, Saia nunca buscou no marxismo
modelos fechados nos quais pudesse ser enquadrada a sociedade paulista, mas uma ferramenta
que pudesse explicar de forma eficaz o seu processo histórico. E ele o fez em grande medida de
maneira articulada com a tradição historiográfica brasileira a respeito da qual já tratei neste
capítulo.
É no capítulo “Quadro geral dos monumentos paulistas” que se pode encontrar a
explicação mais acabada de como é interpretado o processo compreendido na noção de
“evolução regional paulista”. Saia divide a sociedade paulista, tomada em sua instância
temporal, em “períodos” ou “ciclos” classificados de acordo com as soluções que lhes foram
predominantes. O foco da análise incide em dois pontos: na descrição desses elementos
predominantes de cada ciclo (economia, forma de ocupação territorial – consideradas as
condições do terreno –, relações sociais, cultura e, por fim, arquitetura) e os fatores que levaram
às mudanças dessas preferências.

752
A título de exemplo, seria possível citar alguns nomes de importantes intelectuais paulistas que se iniciaram no
marxismo (ainda que não necessariamente tenham se tornado marxistas) pelas leituras de Bukharin: Caio Prado
Júnior (PINTO, 2007) Antônio Cândido (PONTES, 2001), Mário de Andrade (KONDER, 1991).
753
De acordo com informações que me foram prestadas pelo historiador Jaelson Britran Trindade.
754
Sobre a historiografia marxista, vide CARDOSO e BRIGNOLI, 1981. Mais especificamente acerca da crítica
empreendida à Dialética da natureza por Lukács, especialmente em seu História e consciência de classe, cf.
MUSSE, 2005.
493

O movimento diacrônico da análise de Saia é possibilitado pelo confronto travado


entre aquilo que ele chama de “teses”. A partir da oposição entre os interesses econômicos e as
condições do meio emergiria uma síntese expressa nos modelos predominantes de exploração
econômica, ocupação territorial e arquitetura. Sobre essas “teses”, Saia escreve o seguinte:

Cada período característico da formação regional contém pelo menos uma tese
principal e uma família de teses ancilares. É possível que a hierarquização dessas teses
acolha controvérsias, mas é certo, por outro lado, que é sempre possível distinguir,
não só em relação à tese principal, como no que diz respeito às teses ancilares, um
jogo dialético de oposições que desembocam em decididas preferências por soluções
características, partidos dominantes, esquemas endossados pela maioria ou mesmo
por uma quase unanimidade coletiva. Em certos casos, a proposição-tese é tão clara
que o simples enunciado dela é bastante esclarecedor; em outros casos é indispensável
uma análise crítica para extrair dos fatos aquele travamento ou aquelas aproximações
que lhes conferem significados expressivos, os quais de outra forma permaneceriam
despercebidos. (SAIA, 2005, p. 224)

É justamente a partir dessa compreensão do processo histórico que Saia pôde elaborar o “quadro
teórico” que possibilitou a periodização exposta na “Tabela 1”.
Pode-se afirmar, portanto, que, para Luís Saia, a evolução de um processo histórico
não é nem puramente objetiva nem subjetiva, mas um confronto entre essas duas forças.
Exemplo disso é o “quadro” no qual situou os monumentos paulistas. O primeiro período da
evolução regional paulista, por exemplo, caracterizar-se-ia, como está exposto na “Tabela 1”,
pelo confronto entre a “tese mercantilista” – ou seja, uma espécie de “teoria” que orienta a ação
colonizadora, para a qual interessaria a exploração da cana-de-açúcar para a exportação – e sua
“negação” – as condições topológicas e pedológicas adversas do litoral santista –, do qual teria
emergido uma síntese expressa numa outra tese, a da “mestiçagem intensiva”, “de tudo, de
gente, de técnica militar, de dieta alimentar, de linguagem, de estilo de vida” (SAIA, 2005, p.
224). Isso teria possibilitado, por sua vez, uma penetração mais eficaz no interior do continente
e a criação de soluções econômicas e materiais mais propícias ao meio. Desse modo, “ao sentido
carismático da ação religiosa (…) se opôs, em São Paulo, uma ação colona de sentido
dessacralizante, fundada na montagem de uma estrutura social de caráter feudal-militar” (SAIA,
2005, p. 28). O próprio uso do termo “feudal-militar” para se referir ao modo de vida dos
proprietários paulistas do “segundo século” da colonização denota uma apropriação de
elementos da literatura marxista de então (TRINDADE, 2014).
Em síntese, a ação dos sujeitos colonizadores seria negada pelas condições
objetivas do meio, às quais os agentes da metrópole tiveram que se adequar por intermédio de
soluções inovadoras. O meio não determinaria assim o processo social, mas influiria
decisivamente nas soluções encontradas. Ou, o que significa dizer o mesmo, a ação criativa
494

dos sujeitos encontraria no meio limitações às quais deveria adequar-se.


Tem-se, assim, uma sucessão de períodos ou ciclos que vão se engendrando de
forma “dialética”. O que ocorreria seria uma alternância entre o predomínio de soluções
características, expresso em ciclos ou períodos bem demarcados cronologicamente, e a
emergência de contradições sistêmicas que conduziriam à ruptura de um ciclo e ao surgimento
de outro. Em cada um destes períodos seria possível identificar teses principais, ancilares e teses
que foram negadas (mas que, no entanto, podem continuar existindo de forma mitigada, até
que, por alguma contingência, retomem sua força acarretando a ruptura do ciclo). As sínteses
identificáveis em cada período (não excluídas suas novas antíteses) levariam não só à
compreensão dos partidos arquitetônicos adotados, mas de toda configuração social da região
analisada em função de seus determinantes estruturais então predominantes.
Desta forma, a meu ver, seria sempre a iniciativa de um sujeito histórico (o
“paulista”), buscando novas formas de produção e trabalho e engendrando, por conseguinte,
novos modos de exploração social, que ocasionaria as mudanças de ciclos dentro da evolução
regional, muito embora o “povo paulista” estivesse sempre condicionado pelas condições reais
de vida (modos de exploração econômica, relações sociais pré-estabelecidas, disponibilidade e
qualidade do solo etc.). Aqui é possível, portanto, reconhecer mais uma diferença em relação
ao marxismo clássico, visto que não se trata de uma luta de classes propriamente dita, mas da
disputa entre paulistas (tanto dominadores quanto dominados) e a metrópole, ou melhor, contra
as imposições externas à cultura regional. Caberia aos sujeitos paulistas identificarem as
determinações objetivas do meio a fim de construir uma sociedade autêntica, isto é,
verdadeiramente autônoma, no mundo tropical. A paulistanidade seria a cultura objetificada
capaz, portanto, de integrar a sociedade regional e, ao mesmo tempo, resolver os conflitos de
classe.
Isso explica o motivo da retirada, por parte de Saia, do “r” de “revolução paulista”,
transformando-a numa “evolução paulista”. O arquiteto desloca a luta de classes para o conflito
entre sociedade paulista/brasileira vs. capitalismo internacional, dissolvendo, por outro lado, os
conflitos de classe internos da sociedade brasileira e paulista. É possível entrever aí, desse
modo, uma proximidade em relação às teses que propunham a suspensão dos conflitos entre
capital e trabalho (aqui alçados à posição de característica imanente da cultura
nacional/paulista) no nível nacional como tática de combate ao imperialismo capitalista
internacional.755

755
A respeito dessa discussão, cf., a título de exemplo, DE DECCA, 1981 e PRADO JR, 2014.
495

A evolução regional paulista tampouco deve ser pensada de forma unilinear, mas
em conexão com processos mais amplos. Os compromissos com uma “economia colonial”
nunca são esquecidos, seja no período bandeirista ou no ciclo cafeeiro. Nos primeiros séculos
da colonização, a sociedade paulista, embora tivesse alcançado uma relativa autonomia em
relação à metrópole, teria se constituído num contexto de exploração comercial europeia e em
resposta às suas tentativas mal-sucedidas de colonização na zona meridional brasileira. A partir
do século XIX, por sua vez, a dependência em relação à economia metropolitana seria ainda
maior, determinando inclusive a adoção de costumes e gostos europeus.
Um exemplo dessa situação de dependência seria a posição subordinada ocupada
pela colônia na “divisão internacional do trabalho”, situação que somente no século XX passaria
a ter condições de ser modificada. No período bandeirista, essa divisão teria levado a técnica,
de um modo geral, a uma involução limitada ao nível do artesanato. Essa situação só não teria
correspondido a uma maior pobreza técnica e artística pelo fato de que, dadas as condições de
relativa autonomia em relação à metrópole, a sociedade paulista pôde selecionar de forma mais
livre, através do que Saia denominou “inteligência coletiva”, as soluções mais indicadas ao
meio e ao modo de vida. Tal situação não se repetiria no período cafeeiro, uma vez que todas
as soluções técnicas e tecnológicas foram postas a serviço dos interesses da “economia
colonial”, em prejuízo de soluções regionais “autênticas”. A situação de dependência em
relação à economia e cultura europeia seria a contradição a ser superada, segundo se depreende
da leitura de Morada paulista, do momento inicial da colonização até seu presente imediato.
Tratava-se, portanto, de reencontrar aquela “inteligência coletiva” objetiva que define a própria
cultura regional paulista.
Desse modo, conclui-se que o sentido elaborado historicamente no intuito de
conferir significado à arquitetura paulista no interior da arquitetura nacional se sustenta num
materialismo dialético sui generis, mas se confunde também, em grande medida, com o sentido
histórico mais amplo fornecido por uma arquitetura e historiografia modernas para a formação
cultural brasileira. Reconhecer na noção de “evolução regional paulista” um processo dialético
evita confundi-la com um evolucionismo determinista, o que reduziria em muito a compreensão
da ideia que orientou as práticas preservacionistas paulistas no período analisado. Trata-se de
uma ferramenta analítica que, segundo acreditou Saia, tornaria possível reconhecer os
sucessivos estágios da realidade histórica paulista e, dessa forma, orientar com mais eficácia a
ação da regional do IPHAN. A narrativa histórica produzida por Saia, norteada pela noção de
“evolução regional paulista”, pôde ser traduzida num esforço de assegurar a validade do
trabalho ao qual se lançou com tanto afinco ao longo de seus últimos 38 anos de vida, e que
496

hoje se encontra profusamente registrado nos arquivos do amplo complexo institucional


produtor da modernidade brasileira.

12.3. AS AÇÕES PRESERVACIONISTAS

Vitor Hugo Mori escreveu que “Saia era o IPHAN e o IPHAN era Luís Saia”
(LEMOS et al., 2008, p. 30), referindo-se à regional paulista do órgão federal. Assim como
aconteceu como Rodrigo Melo Franco de Andrade, Lúcio Costa, Mário de Andrade, Heloisa
Alberto Torres e outros, sujeito e instituição parecem fundir-se numa só coisa. Os traços
arquivístico que temos dessas pessoas dão conta de uma vida exemplar dedicada com
abnegação à obra modernizadora empreendida pelo Estado. No caso de Saia, essa identidade
foi produzida pela ideia de sentido constituída historiograficamente em seus escritos e nos
próprios arquivos da instituição, ainda que o status de sua memória continue em disputa no
campo mais amplo dos sujeitos da arquitetura paulista. Saia e o IPHAN se tornaram a mesma
coisa no conceito de “evolução regional”, da arquitetura e do ethos paulista/nacional, e assim,
esse conceito, ou melhor, esse híbrido, conectou sujeitos e objetos nas produções regionais da
modernidade nacional.
A fim de tornar ainda mais evidentes essas conexões, seria interessante
correlacionar os tombamentos efetivados pela regional paulista do IPHAN no período em que
Saia esteve à frente deste órgão (50 num universo de 58, considerando dados recolhidos até
2008) com a produção historiográfica acima apresentada. No entanto, essa evidência é
insuficiente para a compreensão dos efeitos efetivos em termos de práticas de subjetivação e
objetificação em torno da cultura regional/nacional produzidas a partir de São Paulo no período
posterior a 1945. Para isso seria necessário produzir um estudo mais aprofundado das redes
relacionais intelectuais da região para esse período, algo que, como já mencionei, ultrapassa as
possibilidades investigativas deste trabalho.
A produção historiográfica levada a efeito por Luís Saia se intensificou na década
de 1950, quando a questão urbana se torna fundamental em sua obra. No entanto, o arquiteto já
havia publicado dois importantes artigos: “Os alpendres nas capelas brasileiras” (1939), e
“Notas sobre a arquitetura rural paulista no segundo século” (1944), além de ter contribuído
com o artigo de Mário de Andrade sobre a capela de Santo Antônio, publicado em 1937
(ANDRADE, 1937). Do total dos bens tombados durante a atuação de Luís Saia, 17
tombamentos foram realizados até o final da década de 1940. Isso indicaria que todos esses
497

bens foram tombados sem o apoio dos critérios históricos elaborados mais consistentemente
após a década de 1950, ou seja, sem que estivessem amparados na construção teórica
fundamentada na noção de “evolução regional paulista”, mas apenas numa definição já precisa
dos “tipos” que conformariam a arquitetura tradicional paulista.
É justamente a partir da década de 1950 que se amplia o lapso temporal no qual
estão inseridos os bens paulistas tombados pelo IPHAN. Com exceção dos ciclos mais recentes
(ou seja, aqueles posteriores à expansão ferroviária ocorrida no território paulista), todos os
demais possuem ao menos um representante típico tombado (vide “Tabela 1”). Da “arquitetura
de circunstância”, é possível citar a “Casa Sede da Fazenda Engenho d’Água”, em Ilhabela; do
ciclo cafezista (“economia de sobremesa”), foi tombada, entre outros edifícios, a “Fazenda Pau
d’Alho”, considerada um tipo “clássico” do período pelo arquiteto; do ciclo ferroviário, a “Casa
de Prudente de Morais”, em Piracicaba, ou o “Edifício do Museu Republicano da Convenção
de Itu”. Do período chamado “intermezzo roceiro”, talvez se pudesse incluir a “Casa Natal de
Oswaldo Cruz”, em São Luís do Paraitinga, que se ligaria mais àquele “5º ciclo” apresentado
em “Quadro geral dos monumentos paulistas”, ao qual pertenceu esta cidade.
Não seria de todo justo afirmar que, de qualquer forma, a regional paulista do
IPHAN acabou por simplesmente reproduzir um patrimônio “pedra e cal”. É necessário
considerar as limitações materiais da instituição, ao lado da posição subordinada de Saia em
relação às diretrizes cariocas.
Além disso, o pequeno número de bens tombados em São Paulo (em comparação
ao total de tombamentos efetuados pelo IPHAN) poderia indicar a pouca relevância do trabalho
da regional paulista para a definição de uma memória e identidade nacionais. No entanto, este
argumento não é condizente com a autoridade que Saia conquistou no meio preservacionista,
nem com o lugar que a arquitetura bandeirista adquiriu na história da arquitetura brasileira.
Além da já mencionada escassez de recursos, os tombamentos implicavam na proteção,
conservação e restauro de monumentos tombados numa ampla região geográfica do país, não
restrita apenas ao estado de São Paulo, por um contingente bastante reduzido de funcionários.
Mas o aspecto mais importante a se ressaltar em relação ao papel da regional paulista no interior
do órgão federal diz respeito ao bom grau de autonomia que conseguiu conquistar.
A decisão final de fato cabia ao Diretor de Estudos e Tombamentos, ou seja, Lucio
Costa. Isso demonstra o caráter centralizador da burocracia vigente durante o Estado Novo:
Vargas confiou uma série de poderes a Gustavo Capanema, que, por sua vez, delegou alguns
deles a Rodrigo Melo Franco de Andrade que, por fim, confiou a Lucio Costa as decisões sobre
todos os aspectos ligados ao tombamento e à manutenção dos bens tombados. Assim, pode-se
498

depreender que o aparato burocrático do governo Vargas se estruturou por intermédio de uma
série de laços interpessoais que garantiam um relativo controle das decisões políticas e
administrativas nas mãos do Presidente da República. Entre a atuação de Saia e o gabinete
ditatorial havia apenas três homens, todos da mais estrita confiança do presidente (já mostrei,
no capítulo anterior, que o mesmo valia para o Museu Nacional, com a diferença de que entre
Heloisa Alberto Torres e Vargas estavam apenas Melo Franco de Andrade e Capanema).
No entanto, essa consistente rede não é suficiente para assegurar um total controle
das ações de todos os sujeitos subordinados ao poder central. Existem trabalhos que mostram o
grau de arbitrariedade conquistado nas restaurações levadas a cabo pela regional paulista sob a
chefia do arquiteto paulista (ANDRADE, 1992; GONÇALVES, 2007). Mesmo que com o
“nariz torcido”, ou seja, ainda que a contragosto, Lucio Costa acabou acatando, por exemplo,
as sugestões de Saia para os beirais e torre sineira da Igreja de Embu. Da mesma forma, foi
aceita a ideia para o gradil lateral da Igreja de São Miguel Paulista, a demolição da “casa do
Barão”, no Sítio de Santo Antônio em São Roque, a extensão total da casa grande restaurada na
mesma localidade e a feição do alpendre de sua capela (sempre com a desconfiança de Lucio
Costa). Nem mesmo a autoridade de Paulo Thedim Barreto, que publicou um artigo versando
sobre a tipologia das casas de câmara e cadeia brasileiras (BARRETO, 1947), foi suficiente
para impedir que Saia se baseasse na sua teoria sobre a evolução regional paulista e restaurasse
a Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia da forma como ela se encontra atualmente nessa cidade,
em oposição a técnicos influentes da Direção Central do SPHAN, a exemplo do próprio Barreto
e de Edgard Jacintho da Silva.
Esses episódios demonstram que, mais que a imposição de um consenso por parte
da direção central do órgão estatal, o SPHAN estruturou o seu trabalho (e a base de
conhecimento para trabalhos posteriores) na acomodação de dissensos. Para tanto, realizou-se
um acordo em torno de um consenso mínimo (ou seja, a incessante pesquisa das raízes da
nacionalidade e a utilização prática disso para a modernização do país) e do estabelecimento de
consensos secundários com base na autoridade demonstrada pelos sujeitos em questão. Luís
Saia conquistou credibilidade neste campo através das pesquisas que levou a cabo e, sobretudo,
pela apresentação historiográfica de suas ideias, produzindo uma argumentação lógica de difícil
refutação pelos pares.
Mas a ação da regional paulista não ficou restrita à proteção do patrimônio
arquitetônico. A este respeito, é necessário levar em conta o imenso trabalho de remanejamento
fotográfico realizado nesse órgão, o “Inventário de Artes Menores”, o papel central
desempenhado no “Encontro de Governadores de Salvador”, em 1970, com a posterior
499

assinatura do compromisso de Brasília, a exposição intitulada “Madeira e Civilização” e uma


série de outros trabalhos que ainda merecem melhor investigação. Neles se ouvem os ecos dos
projetos interrompidos no DC.
Entre esse conjunto de ações realizadas a partir da década de 1970 (certamente em
função da maior abertura conceitual possibilitada pela gestão de Renato Soeiro), é necessário
destacar ainda a criação do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,
Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), em 1969. Antes mesmo
das discussões realizadas em Salvador e em Brasília a respeito da necessidade de
descentralização da gestão do patrimônio cultural brasileiro e da necessidade de colaboração
entre as repartições públicas e as universidades, esse órgão estadual, em grande medida
influenciado por Saia (RODRIGUES, 2000), já colocava em prática aspectos que passariam a
contribuir para a renovação das ações preservacionistas no país. Além da proteção mais
descentralizada do patrimônio regional, é necessário destacar o Curso de Conservação e
Restauro realizado na FAU-USP em 1974. O trabalho de João Sodré (SODRÉ, 2014) mostra,
por fim, como essa identidade produtora de sujeitos da modernidade paulista, em especial
arquitetos, continuou desempenhando o seu trabalho produtor nesta instituição de ensino e em
outros espaços.
Nesse incansável labor, ouvimos os ecos daquelas elites paulistas do começo do
século XX. Ouvimos de forma ainda mais cristalina as vozes dos intelectuais modernistas. Se
aguçarmos um pouco mais a audição, é possível notar ainda ao longe uma poliglotia confusa,
cruzada por diversas interferências, mas da qual será possível divisar, sem muito esforço, as
velhas palavras civilisation e Kultur. São as ondas curtas da modernidade que continuamos a
escutar.
500

CONCLUSÃO

Esta tese se iniciou com um desencontro epistolar. Ao se chocarem, aquelas três


eminentes subjetividades da modernidade brasileira criaram uma fratura na aparentemente
sólida estrutura do processo de modernização global. A partir dessa fenda foi possível adentrar
na casa das máquinas desses grandes navios transoceânicos da modernidade, e, daí, conhecer
as ferramentas sem as quais os(as) seus(uas) comandantes não poderiam navegar. Sem os
instrumentos de navegação não se formaria o(a) arrais em seu contato íntimo com os mares; da
mesma forma, as águas não tomariam a forma de uma área náutica, de um espaço capaz de
conduzir as pessoas de um ponto de origem para um ponto de destino, caso não existissem as
ferramentas propícias para este fim.
Em outras palavras, aquele embate epistolar foi capaz de revelar uma história
transnacional de sujeitos, objetos e híbridos para além de uma intenção narrativa que procura
evidenciar apenas a ação criadora do polo subjetivo sobre a espera passiva do polo objetivo.
Tudo está latente e palpitante ali: duas subjetividades que se investem de uma missão
salvacionista atrelada à ideia de nação; a nacionalidade como objeto privilegiado de suas ações;
os híbridos (etnográficos, patrimoniais e conceituais) que permitem essa dupla construção
subjetiva-objetiva; as conexões transnacionais do que está sendo ali enunciado; e, por fim, as
relações de força intelectuais e institucionais envolvidas. Além disso, para além da aparente
simetria entre os sujeitos ali envolvidos, o que se pôde por fim verificar foram relações de força
que ora pendiam decisivamente para um lado da disputa, ora para o outro, dependendo da
estruturação estratégica de uma rede de trocas e movimentos bastante complexa e incerta.
A distinção, captada por Mário de Andrade, entre “etnografia ameríndia” e
“etnografia popular”, o ponto central do conflito no interior do projeto de modernização
nacional ao qual aquelas três subjetividades foram lançadas, ganha um novo relevo quando se
aguça a audição a fim de ouvir ali os ecos de vozes produzidas desde o século XVIII, ou seja,
no momento em que a temporalidade moderna já está significativamente madura no mundo
ocidental. O que parecia um bate-boca entre três amigos se torna, se bem ouvido, uma complexa
plurivocidade. O que aquelas três cartas comportam, portanto, é uma complexa teia de
entrecruzamentos temporais, relacionais e intelectuais. Esses entrecruzamentos são o resultado
da força motriz produtiva da modernidade, produtiva de sujeitos, objetos e híbridos, e cuja
pulsão combustora é retirada do aceno para a realização de formas privilegiadas de
501

sobrevivência. Em síntese, a modernização é propelida pelas formas de relação de subordinação


descobertas pela grande tribo ocidental, e o que vemos naquelas cartas é a busca de formas mais
eficazes para a sua produção e reprodução num território entendido como nacional. Aliás, era a
própria nacionalidade, esse objeto ainda por conhecer, que clamava pela modernidade.
A disputa pela modernidade nacional que tomou forma no desentendimento entre
Heloisa Alberto Torres e Mário de Andrade, mediada ainda pela posição específica de Rodrigo
Melo Franco de Andrade, não foi um evento isolado. Ela estava profundamente entrecruzada
pelos fluxos daquilo que chamei de “rede transnacional de americanistas”. Por um longo tempo
essa rede se constituiu em função de uma modernidade possível: tratava-se da expectativa de
um mundo moderno que fosse livre dos preconceitos baseados na ideia de raça, em que o
conhecimento científico pudesse transitar livremente por entre as fronteiras nacionais, e no qual
os Estados nacionais estivessem emancipados do direcionamento econômico que os vinha
conduzindo a uma situação de rivalidade e de autodestruição. O que embasava em grande
medida esses ideais era uma concepção, herdada do pensamento contra-iluminista de origem
alemã, segundo a qual as diferenças culturais dos povos poderiam conviver harmoniosamente
e conduzir a humanidade a novas conquistas tecnológicas, cada vez mais eficazes, e a uma vida
pacífica. Essa concepção também pressupunha um método específico, em grande medida
historicista e empirista, isto é, pouco afeito às generalizações a priori. Enfim, o caminho para
a civilização não seria a imposição de uma perspectiva unívoca que se pretendia universal, mas
no reconhecimento da riqueza e da diversidade de culturas que compunham a humanidade. Para
tanto era necessário conhecer as culturas, e o território brasileiro, em particular, e sul-
americano, em geral, se mostravam laboratórios promissores para esse fim. Não tardou para
que essas ideias produzissem novos sujeitos da modernidade num território até então em grande
medida considerado avesso a ela. Se toda cultura poderia fornecer uma contribuição original à
civilização, bastava apenas conhecer a fundo as especificidades da cultura nacional, e logo o
Brasil também seria um polo irradiador de modernidade.
Esses aspectos fomentaram a produção de uma rede transnacional por meio da qual
fluíam recursos, pessoas e ideias. Sua capacidade de produção de modernidades autônomas,
mas percebidas como interconectadas a um movimento global, gerou fluxos de duas mãos. Os
recursos produzidos no mundo latino-americano interessavam a europeus e estadunidenses ao
passo que os recursos produzidos nos Estados Unidos e na Europa interessavam aos latino-
americanos. Também foram gerados fluxos mais restritos, especificamente intercontinentais
(EUA/Europa; América Latina/Europa), interamericanos (EUA/América Latina; América
Latina/América Latina) e inter-regionais (São Paulo/Nordeste; Rio de Janeiro/Minas Gerais
502

etc.).
Os “recursos” aos quais me refiro foram produzidos em meio a uma das principais
(se não a principal) formas de dominação descobertas na modernidade: a cisão entre o sujeito
do conhecimento e seus objetos do saber. O caráter de subordinação foi, contudo,
sistematicamente ocultado pela invisibilização/inaubilização dos híbridos que tornavam esse
tipo de poder possível. Desse modo, o lugar de sujeito e de objeto nesse jogo se tornava algo
aparentemente natural. Isso permitiu que pessoas, como as que viviam nos sertões e em
agrupamentos indígenas, fossem dissolvidas em objetos de estudo como “culturas populares”,
“culturas ameríndias”, “culturas nacionais” etc. Essa operação, que demarcou o lugar de
pessoas assim diferenciadas entre si na produção da modernidade nacional, foi possível por
meio de instrumentos (os “híbridos”) como os conceitos – produtores de categorias de objetos
antes invisíveis – e de artefatos – idem, pois sua recomposição em espaços museológicos,
historiográficos ou patrimoniais “evidenciavam” objetos (como a nação ou as culturas nela
enquistadas) antes inexistentes. Esses conceitos e artefatos, os “híbridos” que costuraram essa
narrativa, permitiram, igualmente, a produção dos próprios sujeitos da modernidade: eles
produziram pessoas destacadas por uma missão civilizatória e lembradas como tais por meio
de instituições arquivísticas e de outros lugares de memória.
Encontrar esses híbridos não foi tarefa fácil. Eles “estão” justamente onde foram
tornados invisíveis ou inaudíveis, isto é, no momento mesmo da produção dos sujeitos e dos
objetos da modernidade. Deste modo, não consegui deixar de invocar, mais uma vez, esses
sujeitos e objetos. O que pude fazer foi vê-los e ouvi-los a partir de uma nova perspectiva, ou
seja, aquela que me permitisse localizar o momento em que ambos se produziam na produção
do próprio mundo moderno. Isso significa flagrar, por exemplo, Franz Boas sendo produzido
como um grande sujeito de uma modernidade culturalista, ao mesmo tempo em que as próprias
culturas ganhavam vida como objeto desse saber cujo sentido era modernizador – isto é, o de
uma modernidade pautada pela tolerância pluricultural. Nesse processo foi possível captar
coisas que, não sendo nem sujeitos e nem objetos, ou seja, não-seres que por isso escaparam ao
trabalho de eternização de essências dos arquivos modernos, tiveram, no entanto, um papel
fundamental na construção das redes transnacionais produtoras de novas formas de
modernização pelo mundo afora. O direcionamento dessa produtividade para o mundo sul-
americano fez com que esses híbridos fluíssem também para cá. Os conceitos e os artefatos
etnográficos por eles produzidos logo se acumularam por aqui a ponto de permitir se falar em
uma nova nação, ou, o que dá no mesmo, em uma nova modernidade. Para essa nova nação,
plena de futuridade, era preciso produzir novos sujeitos e novos objetos por meio de novos
503

híbridos. Num contato direto com essa rede transnacional americanista é que se criaram, como
creio ter demonstrado, “Heloísas Albertos Torres” e “Mários de Andrades”, e, junto com eles,
tribos e Brasis. Para isso, no entanto, foi necessário que se proliferassem patrimônios
etnográficos e definições de culturas.
Esses não eram, todavia, os únicos projetos de modernidade existentes. O recorte
realizado nesta tese é um dentre inúmeros possíveis, ainda que, para o período enfocado, o
futuro da nação parecesse estar particularmente vinculado ao conhecimento de sua cultura
específica por meio da antropologia – assim como para o século XIX ele estava ligado ao estudo
biológico das “raças” e, mais recentemente, ao estudo econômico voltado para o
“desenvolvimento nacional”. Existiam, portanto, diversas redes alternativas por onde o mundo
moderno se disseminava. Existiam, também, redes e projetos em conflito com o americanismo
transnacional. Esse era o caso, como mostrei, dos grupos que se opunham à rede de aliados de
Franz Boas no interior de um americanismo transnacional mais amplo, que incluía desde
cientistas ainda ligados às tradições do século XIX quanto uma nova geração afoita por uma
antropologia que pudesse se lançar a generalizações mais ambiciosas.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial esses conflitos se tornaram mais
patentes. Se antes a barbárie era identificada com o primitivo, agora ela era personificada pelos
totalitarismos, em especial pelo nazismo, que rompiam com o frágil equilíbrio sustentado pelas
democracias liberais no jogo político internacional. O campo da antropologia não ficou imune
a isso e foi arrebatado pelo turbilhão da máquina de guerra que então se estabeleceu. Esse campo
passou a receber especial atenção do governo estadunidense, e diante das escassas
possibilidades de atuação profissional de antropólogos(as) cada vez mais abundantes no
mercado, conseguiu redirecionar a pesquisa e a atuação desses profissionais. A rede
americanista transnacional rapidamente deu lugar a uma rede “interamericanista”, claramente
orientada por uma nova articulação entre os conceitos de civilização, cultura e barbárie.
Estando a velha civilização europeia, nascida da Revolução Francesa, esgotada pelo fardo da
tradição e pelas sucessivas guerras, a nova fonte de civilidade do globo passa a ser associada
ao Novo Mundo, em especial à mais moderna de suas nações: os EUA. No entanto, os anos de
americanismo permitiram consolidar a ideia de que as demais nações americanas, com suas
respectivas culturas, também possuíam valores que podiam contribuir para a construção de uma
nova civilização global. Caberia aos Estados Unidos, portanto, dentro da ideologia
interamericanista, guiar as nações irmãs à modernização. Para tanto se fazia necessário uma
obra de cooperação científica e cultural na qual a antropologia exercia um papel fundamental.
A ela cumpria realizar a tradução entre as diferentes culturas e valores, sem descuidar, no
504

entanto, de uma meta modernizadora geral que permitisse às Américas fazerem frente à ameaça
do barbarismo nazista.
Em termos das relações abordadas nesta tese, a nova situação dos fluxos
transnacionais implicou na necessidade de novas estratégicas de canalização do poder nos
níveis regional e nacional brasileiros. Heloisa Alberto Torres, que soube capitalizar, na medida
do possível, o interesse americanista pelo Brasil, também conseguiu se conectar aos novos
canais por meio dos quais os recursos antropológicos passaram a se movimentar. Ela logo
percebeu a relativa independência das novas agências estadunidenses originadas do esforço
interamericanista de guerra, encontrando em Henry Allen Moe um importante aliado, sobretudo
quando as relações com Julian Steward, o novo sujeito exemplar da antropologia
interamericanista, pareciam não estar funcionando muito bem.
Essa transformação também pode ser localizada no núcleo paulista de
modernizadores nacionais. Solucionado um problema interno de correlações de força, graças à
conjuntura favorável que conduziu o grupo do Partido Democrático ao poder em São Paulo, em
1934, Mário de Andrade conseguiu conectar alguns dos fios da rede americanista em seu
Departamento de Cultura, ainda que por meio de conexões bem menos poderosas que aquelas
de que dispunha Torres – afinal Dina Dreyfus e Lévi-Strauss ainda eram muito pouco
conhecidos, e nomes como Samuel Lowrie e outros eram, na melhor das hipóteses, intelectuais
secundários que vieram para o Brasil em busca de melhores oportunidades de trabalho diante
do papel marginal ocupado no próprio país, ao contrário dos nomes de Franz Boas e Ruth
Benedict, por exemplo.
Todavia, com o advento do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial as coisas
mudaram bastante para os paulistas naquele momento: o governo federal conseguiu minar
qualquer resquício de projeto de nação advindo dos quadros do PD. Diversos intelectuais
ligados a Mário de Andrade souberam ler e se aproveitar dessa nova conjuntura, e a proximidade
de suas concepções de modernidade em relação àquelas dos próprios estadunidenses garantiram
diversas oportunidades de atuação no trânsito intelectual transnacional que se abriu com a
política de cooperação interamericanista. Mas o próprio Mário de Andrade não quis abandonar
o país, pois se havia feito “brasileiro para o Brasil”. Para aqueles que optaram em permanecer
aqui – ou não conseguiram se conectar à rede interamericanista – restava, na melhor das
hipóteses, o abrigo sob os tentáculos do Estado Novo. Essa foi a opção de Mário de Andrade,
mas, já esgotado, essa nova posição acabou não rendendo frutos tão significativos quanto
aqueles do DC, nos permitindo compreender em grande medida a assimetria de poder entre o
intelectual paulista e a diretora do Museu Nacional quando da troca de cartas que incluía
505

Rodrigo Melo Franco de Andrade. Restou a Luís Saia insistir nessa estratégia, e os resultados
que conquistou foram notáveis diante da precária situação à qual os intelectuais paulistas foram
lançados nessa situação que perdurou, pelo menos, até o fim do conflito mundial em 1945.
Uma vez melhor esclarecidos os caminhos percorridos por todos esses fluxos de
pessoas, recursos e ideias, senti-me mais à vontade para cerrar um pouco mais o foco de meu
diálogo com esses sujeitos, objetos e híbridos do passado numa escala mais restrita, inter-
regional. Fazendo isso eu poderia me reaproximar do conflito flagrado na troca de cartas
apresentada no início desta tese. Minha perspectiva também se alterou neste ponto no que diz
respeito ao tipo de relações que foram privilegiadas: se nos “capítulos transnacionais” a atenção
recaiu em uma série de relações intersubjetivas mediadas por híbridos conceituais, agora, nos
capítulos “regionais”, o meu interesse se voltou para as relações intersubjetivas mediadas por
híbridos patrimoniais. Em ambos os casos, tratava-se de objetificar a civilização e as culturas
no interior da ideologia moderna. O objetivo, na última parte da tese, foi revisar as narrativas
da modernização nacional produzidas pelos dois núcleos intelectuais em contenda naquelas
cartas – o de Heloisa Alberto Torres e o de Mário de Andrade – a fim de perceber como a própria
constituição narrativa de sentido produziu os sujeitos e objetos da modernidade brasileira a
partir da mediação dos híbridos – o patrimônio etnográfico (incluído aí as “tribos indígenas”
registradas e tuteladas por meio do aparato institucional do Museu Nacional, bem como o
“patrimônio arquitetônico” paulista) e os conceitos ressemantizados de “civilização” e
“cultura” em sua íntima correlação. Isso permite, a meu ver, limpar o “patrimônio cultural” da
capa de “nacionalidade autêntica” que esses anos de ações preservacionistas lhes investiram.
Agora, finalmente despidos desse manto sagrado, podem ser compreendidos como os simples
híbridos que foram e assim, apresentar mais claramente o uso que deles foram feitos na
produção da modernidade nacional.
A partir do Rio de Janeiro, esses novos híbridos se tornaram visíveis em grande
medida pelas lentes do americanismo transnacional, ainda que um “santo de casa”, Edgard
Roquette-Pinto, pudesse ser considerado também um dos construtores daquela rede.756 Os
novos candidatos a sujeitos da modernidade nacional se aproximaram, portanto, desses híbridos
– no caso de Torres, sua origem social e familiar somada à inserção precoce e inusitada no
masculino Museu Nacional faziam dela na verdade uma espécie de sujeito predestinado, cuja
condição feminina ainda permitiu acrescentar um tom de epopeia à sua trajetória de
subjetivação. Num primeiro contato, quando eram chamados de “artefatos etnográficos”,

756
A este respeito, vide DUARTE, 2010, e SANTOS, 2012.
506

aqueles híbridos fizeram desses sujeitos em formação antropólogos profissionais, não antes de
um minucioso ritual, aprendido por meio de uma tradição passada adiante havia várias gerações,
isto é, a tradição científica guardada, em sua linguagem esotérica, por seus arcanos
cuidadosamente selecionados para os ritos de iniciação reservados apenas para uns poucos
escolhidos. Mas aquelas “coisas” ainda tinham muitos poderes desconhecidos, e bastava
nomear-lhes corretamente a fim liberar a suas potências mágicas. Tão logo deixaram de ser
nomeados como simples “artefatos” e passaram a ser chamados de “patrimônio etnográfico”,
essas coisas produziram sujeitos ainda mais potentes, cujo poder era tal a ponto de alçar-lhes à
posição de definidores da modernidade nacional no interior de um aparato ampliado de Estado
– afinal, só eles conheciam os segredos divinatórios contidos naqueles seres estranhos.
O poder desses híbridos residia em sua capacidade de revelar os destinos da nação
por meio da invocação feita pelos sujeitos da modernidade. Esse destino, partilhado por todos
aqueles que se vinculavam à terra pátria, era dado a ver por meio de uma narrativa que, disposta
nos espaços do templo cívico representado pelo Museu Nacional, adquiria um caráter de
sacralidade. O destino da nação era revelado por meio de suas raízes imersas nas profundezas
do tempo, lá onde a própria Terra se formara. O território nacional havia sido palco de diversas
realizações naturais que inescapavelmente moldariam o nosso caráter atual. A modernidade
seria alcançada por esse inestimável conhecimento do mundo natural, mundo este do qual nós
mesmos, “humanos”, faríamos parte, a exemplo do que podia ser demonstrado pelos modos de
vida de nossos irmãos indígenas. Trata-se, portanto, de uma potente invenção objetificadora.
Em São Paulo, por sua vez, pessoas cujo domínio regional era assegurado
economicamente desejaram investir-se de uma subjetividade modernizadora de abrangência
mais ampla, nacional. Com esse fim, esse grupo incluiu membros menos abastados do ponto de
vista econômico, mas bem-dotados em termos daquilo que Pierre Bourdieu chamaria de “capital
cultural”. Alguns deles, como Sérgio Milliet e Rubens Borba de Morais, trouxeram da Europa
as lentes que auxiliariam na busca paulista: era preciso encontrar os elementos que
possibilitassem a produção de uma arte nova, uma arte de vanguarda que fosse, no entanto,
diferente daquilo que já existia na velha civilização. A partir daí, Mário de Andrade e um seleto
grupo de escolhidos saíram à caça de um trabalho de descobrimento. Buscavam também aquelas
“coisas” que lhes poderiam revelar a nacionalidade. Encontraram-nas primeiro em Minas,
depois no Norte e Nordeste e, por fim, nos próprios arredores da capital paulista. O “fazer-se
brasileiro” de Mário de Andrade representa, portanto, este trabalho de subjetivação na busca
pelo objeto nacional e por meio dos híbridos que lhe franqueariam tal acesso. Assim como
Torres, o status subjetivo de Mário de Andrade foi elevado a um novo patamar quando as
507

condições inter-regionais brasileiras lhe possibilitaram nomear essas coisas de “patrimônio


artístico nacional”, patrimônio este que, além do caráter etnográfico já entrevisto no Museu
Nacional (e em outros espaços/redes, sejamos justos), prometia o desvelamento da estética
nacional, com toda a potencialidade libertadora contida nessa instância. Ao lado da eternização
da subjetividade estética de Mário de Andrade, forjada também no contato mesmo com esses
híbridos dotados de valor estético, outra, mais específica, desdobrou-se no campo das
instituições patrimoniais: o caminho aberto pelo SPHAN, ou seja, a institucionalização e
burocratização da produção de híbridos especificamente arquitetônicos, permitiu ainda que os
projetos modernos regionais paulistas encontrassem espaço no interior do organismo federal,
numa apresentação mais especificamente etnográfica e historiográfica da “evolução regional
paulista”.
O que este novo híbrido, ou seja, o conceito de “evolução regional paulista”,
expressava era também uma articulação específica entre os velhos conceitos de civilização e
cultura. A especificidade regional paulista torna-se, então, um processo de constituição de uma
cultura cujo desfecho, no presente, teria criado um grupo – nacional –, muito mais próximo da
civilização – a referência agora era os EUA – que as demais regiões do país, incluída aí a capital
federal. Um tal estágio civilizacional superior seria o mais indicado, portanto, para a descoberta
da verdadeira cultura nacional, aquela que permitiria a construção de uma nação moderna capaz
de fazer inveja às demais, ou, numa chave mais humanista, de conduzir às demais em direção
a uma humanidade plenamente civilizada. Para esse fim estava orientada a atividade produtiva
do DC, e o sentido disso foi expresso, de maneira renovada (isto é, mais adequada aos critérios
de cientificidade do SPHAN), com apoio na narrativa historiográfica produzida por Luís Saia,
agora também incluída no baú das particularidades da cultura nacional. Esse arquiteto, como
mostrei há pouco, foi também uma subjetividade produzida no contato com os híbridos que lhe
indicariam o sentido modernizador do estado e da nação: a morada paulista.

Por fim, é inevitável a produção efeitos reflexivos abordando, da forma como o fiz,
esses processos de produção da modernidade. O seu poder subjetivador e objetivador é tão
potente que hoje os desastres que ela própria produz muito raramente lhe são atribuídos. Tanto
as “soluções” dos grupos que se organizam seja à direita seja à esquerda no campo da política
clamam por mais modernidade! Hoje, no entanto, essa modernidade recebe a alcunha de
“desenvolvimento”. Para a direita, esse desenvolvimento pleno não é alcançado porque o
Estado e determinados grupos humanos carregam consigo a barbárie – alcançar a modernidade
significaria, portanto, exterminar a ambos, ao passo que apenas a iniciativa privada conheceria
508

a verdadeira civilização, aquela representada pela autorregulação dos interesses individuais


pelo mercado. Para a esquerda, vários são os diagnósticos para o não-desenvolvimento, mas é
possível identificar duas tendências mais pronunciadas: a neodesenvolvimentista e a
revolucionária. A primeira, herdeira dos reformismos do passado, acredita que um bom uso do
Estado traria o tão sonhado desenvolvimento sem necessidade de um conflito declarado com os
donos do fluxo de capitais. A segunda acredita, por sua vez, que há uma boa e uma má
modernidade: a má é a modernidade capitalista, enquanto que a boa é aquela na qual o capital
e a propriedade privada são abolidos. Mas, abolindo o capital e a propriedade privada
conseguiriam abolir, igualmente, essas formas elementares de produção de relações de
subordinação e dominação para as quais chamei a atenção neste trabalho, isto é, a produção de
sujeitos e objetos pela intermediação de híbridos?
Obviamente esta tese não pretende resolver esse problema, que está situado para
além dos testemunhos que pude evocar aqui nos limites de um trabalho historiográfico. No
entanto, por se tratar de uma narrativa que tenta colocar em suspeição a própria epistemologia
moderna – algo que, a meu ver, nem a direita nem a esquerda modernas têm se arriscado muito
a fazer –, ele não escapa de apontar para a plausibilidade de um questionamento de ordem
ontológica direcionado à própria modernidade. Isso significa relativizar os seus próprios mitos,
suas narrativas, suas tradições, sua epistemologia, buscando alternativas que, de fato, apontem
para um futuro no qual a existência humana não esteja ameaçada pela própria produtividade
moderna. Significa, talvez, renunciar à provocação moderna que nos é feita para, sempre,
governarmos algo, seja uma instituição ou uma nação, ou para que sejamos nós mesmos os
sujeitos da modernidade, seja pela via das reformas democráticas ou até mesmo da revolução.
Talvez precisemos, de uma vez por todas, abandonarmos todas essas disputas pela
modernidade.
509

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APÊNDICE: A CRÔNICA DA CHEGADA NOS ARQUIVOS

[…] historiadores(as) só podem se tornar realmente historiadores ou escrever


história uma vez que eles tenham ido para o arquivo. A chegada originária do(a)
historiador(a) no arquivo é muito parecida com a chegada do(a) antropólogo(a) no
campo – esse limiar da certificação disciplinar –, o momento mágico quando o(a)
cientista-acadêmico(a) atraca numa costa que acena para a promessa de que ele(a)
pode finalmente se engajar no ato da descoberta, ao menos se colocar cara a cara
com a verdade e com o reino da evidência imediata. Mas, enquanto os(as)
antropólogos(as) têm reconhecidamente submetido suas estórias de chegada ao
escrutínio narrativo – alguns(mas) diriam excessivamente levados pela virada
reflexiva –, o relato de chegada do(a) historiador(a) ainda está em grande medida
não revelado, protegido pelo fato de que, enquanto o arquivo muitas vezes pareceu
místico, [por outro lado] ele nunca se afigurou exótico. Contos de viajantes e lendas
de aventureiros nunca dedicaram ao arquivo uma fonte privilegiada de memória,
ainda que a monumentalidade do arquivo esteja consagrada num conjunto de
pressuposições sobre a verdade que são fundamentais tanto para a disciplina da
história quanto para as fundações nacionais da história. Enquanto pressupostos
básicos sobre verdade e história têm sido criticados em relação à escrita da história
(e ao uso das fontes), eles raramente têm sido examinados em relação aos
repositórios institucionais das próprias fontes, exceto no interior das mesmas notas
de rodapé que invocam o maior respeito pelo arquivo como um repositório de valor
incalculável. (DIRKS, 2015, p. 28-9)757

As palavras de Nicholas Dirks me convenceram de que nós, historiadores(as),


precisamos mesmo nos aventurar nesta espécie de crônica reflexiva a respeito da chegada nos
arquivos.758 No caso desta tese, esse relato se prende especialmente a um relato também de
caráter transnacional.

757
“[…] historians can only really become historians or write history once they have been to the archive. The
originary arrival of the historian in the archive is much like the arrival of the anthropologist in the field – that
threshold of disciplinary certification – the magical moment when the scientist-scholar sets down upon a shore
that beckons with the promise that one can finally engage in the act of discovery, at last come face to face with
truth and the realm of unmediated evidence. But while anthropologists have famously subjected their arrival
stories to narrative scrutiny – some would say carried away too much by the reflexive turn – the historian’s arrival
story is still largely untold, shielded by the fact that while the archive has often seemed mystical, it has never
appeared exotic. Travelers’ tales and adventurers’ yarns have never rendered the archive a major source of
memoir, yet the monumentality of the archive is enshrined in a set of assumptions about truth that are fundamental
both to the discipline of history and to the national foundations of history. While basic assumptions about truth
and history have been critiqued in relation to historical writing (and the use of sources), they have rarely been
examined in relation to the institutional repositories for the sources themselves, except inside the very historical
footnotes that summon the greatest respect for the archive as a repository of ultimate value. The archive is
simultaneously the outcome of historical process and the very condition for the production of historical
knowledge”.
758
A respeito das narrativas sobre a experiência de campo do etnógrafo, James Clifford afirma o seguinte: “Um
subgênero de escrita etnográfica emergiu [nos anos 1960], o autorreflexivo ‘relato de campo’. Variadamente
sofisticados e ingênuos, confessionais e analíticos, estes relatos forneceram um importante fórum para a discussão
de um amplo leque de questões epistemológicas, existenciais e políticas. O discurso do analista cultural não pode
mais ser simplesmente aquele do observador experimentado, descrevendo e interpretando costumes. Diferentes
estratégias textuais foram tentadas” (CLIFFORD, 1986a, p. 14) – “A subgenre of ethnographic writing emerged,
532

É realmente possível que um novo tipo de historiografia esteja surgindo em função


da própria mobilidade inaudita de pessoas pelo planeta. Seria muito difícil que esta tese
adquirisse a forma de uma “história transnacional da modernidade” caso eu não pudesse ter a
oportunidade de desenvolver minha pesquisa em arquivos situados em mais de um país.759 Se
uma história transnacional realmente se encontra na dependência da realização de pesquisas
empíricas em mais de um país, isso pode significar, por outro lado, um grande problema,
sobretudo quando regimes políticos – como o que estamos vivenciando no Brasil neste
momento – apontam para a progressiva extinção de políticas de investimento em pesquisa e,
especialmente, de sua internacionalização. Além disso, este tipo de pesquisa demanda, em
geral, ao menos o domínio de duas línguas por parte do pesquisador, e nossos programas de
pós-graduação via de regra não têm investido nesse tipo de formação, que fica inteiramente na
dependência das possibilidades de seus estudantes em arcarem com esse pesado investimento.
A vivência transnacional (e, portanto, transcultural e multilíngue) é algo ainda muito mais
comum nos centros acadêmicos mais desenvolvidos, mas ainda pouco difundida entre nós.760
É certo que a digitalização dos arquivos tende a superar progressivamente as dificuldades de
acesso. Mas há aspectos específicos das relações transnacionais que só podem ser interpretados
a partir de uma vivência transnacional, e isso continua sendo, de fato, uma barreira para o
desenvolvimento desta perspectiva.
No entanto, antes da barreira linguística sempre há uma barreira
cultural/corporativa que separa o(a) historiador(a) do(a) arquivista. O ato de descobrir uma
pasta com documentos relevantes para o problema abordado é sempre um investimento mais

the self-reflexive ‘fieldwork account’. Variously sophisticated and naive, confessional and analytic, these accounts
provide an important forum for the discussion of a wide range of issues, epistemological, existential, and political.
The discourse of the cultural analyst can no longer be simply that of the ‘experienced’ observer, describing and
interpreting custom. Ethnographic experience and the participant-observation ideal are shown to be problematic.
Different textual strategies are attempted”. O texto de Mary Louise Pratt (1986), publicado no mesmo livro
organizado por Clifford e George Marcus, oferece uma visão mais específica a respeito das narrativas de
experiência de campo, de modo que sua crítica, dirigida a determinadas formas de etnografia moderna, não invalida
o esforço aqui empreendido de tentar perceber, na prática de arquivo, os elementos externos que atravessam a
escrita historiográfica para além do ponto de vista do próprio historiador.
759
Segundo Mae Ngai, “Amplamente concebida, a história transnacional segue o movimento ou alcance de
pessoas, ideias e/ou coisas através de fronteiras nacionais (ou de outros tipos). Além disso, ela envolve pesquisa
empírica em arquivos de mais de uma nação” (NGAI, 2012) – “Broadly conceived, transnational history follows
the movement or reach of peoples, ideas, and/or things across national (or other defined) borders. In addition, it
involves empirical research in more than one nation's archives”.
760
Segundo Bernhard Struck, Kate Ferris e Jacques Revel, uma das razões relacionadas ao sucesso recente da
história transnacional reside no fato de que “uma geração de estudantes, graduandos(as) e jovens historiadores(as)
– embora, claro, não exclusivamente – está, por causa de seu próprio treinamento, de suas capacidades muitas
vezes multilíngues e através de intercâmbios internacionais, num caminho muito mais transnacional do que
qualquer geração ou grupo já visto” (STRUCK et al., 2011, p. 575) – “[…] a generation of students, graduate
students and younger historians – though of course not exclusively – is by its very training, its often multi-linguistic
capabilities and through international exchanges in a way far more transnational than any generation or cohort
ever before”.
533

ou menos complexo. Cada vez mais os catálogos informatizados têm ajudado pesquisadoras e
pesquisadores nesta tarefa, mas sempre há as caixas ainda não processadas, a má catalogação,
a escassez de tempo. Desse modo, a produção de “provas” é uma atividade que depende muito
da capacidade de diálogo entre esses profissionais: um mal-entendido no polo arquivístico pode
lançar o polo historiográfico numa busca infrutífera.
No arquivo do IPHAN em São Paulo, o primeiro no qual eu me aventurei na pós-
graduação, eu percebi que a minha demonstração de simpatia em relação à narrativa pretendida
pela instituição arquivística foi condição fundamental para que seus segredos fossem aos
poucos desvendados. O meu desejo de tratar de uma trajetória pouco considerada, até então, na
historiografia sobre o patrimônio cultural nacional, logo me permitiu desfrutar de longas horas
de conversas com seus funcionários mais antigos, ansiosos em dar visibilidade à sua própria
instituição e, por conseguinte, ao seu próprio trabalho. Tais relações, que entram no nível dos
afetos, dão acesso, sem dúvida, a documentos que de outro modo dificilmente poderiam ser
encontrados. Num arquivo voltado para a prática cotidiana de tutela do patrimônio cultural, esse
tipo de relacionamento é fundamental para a construção de novas possibilidades narrativas. No
entanto, a empatia em relação aos percalços profissionais, às batalhas cotidianas vividas por
pessoas que já não mais tipificamos como “funcionárias”, mas agora como “amigas”, pode
produzir o indesejável efeito de uma tomada afetiva de posição que cega para outras variáveis,
a exemplo da construção de subjetividades supervalorizadas.
A minha relação com os arquivos do Museu Nacional foi menos afetada por coisas
deste tipo. Graças à disponibilização virtual do catálogo da Coleção Heloisa Alberto Torres
minha relação com os documentos pôde ser menos mediada por terceiros. Além disso, há no
Museu Nacional um maior distanciamento afetivo entre o pessoal do arquivo e os rastros
investigados. Enquanto em São Paulo eu podia dizer que conheci o amigo em segundo grau de
Mário de Andrade e em primeiro grau de Luís Saia, no Rio de Janeiro nada do tipo me ligava a
Heloisa Alberto Torres, a não ser os seus próprios documentos.
Os espaços em que estes vestígios estão guardados também reforçam as suas
narrativas. No Museu Nacional eu pude verificar a materialização in loco das ideias de sentido
produzidas pelo grupo de Heloisa Alberto Torres quando, nos intervalos da pesquisa,
aproveitava para visitar os salões das exposições museográficas. Na Superintendência Regional
do IPHAN, na casa da Rua Baronesa de Itu, eu pude sentir as dificuldades logísticas de pessoas
que emprestavam suas residências e imóveis para o ofício de dar sentido à cultura nacional por
meio de ações que se estendiam pelos estados do Mato Grosso e Paraná, por exemplo. Mas
534

todos esses espaços são, ao mesmo tempo, opressores: são espaços de vigilância, de condutas
prescritas, e, nestes casos específicos, de respeito aos mortos.
Nada mais emblemático, nesse sentido, do que realizar pesquisas de arquivo no
Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, onde se encontra o Arquivo Central do IPHAN.
É impossível não se portar de maneira respeitosa em relação às figuras de Lucio Costa e Oscar
Niemeyer no interior daquele edifício monumental, fruto da imaginação e da capacidade
relacional desses arquitetos. Na primeira vez que fui a esse arquivo, em 2009, em função da
bolsa de pesquisa fornecida pela própria instituição, eu fui recebido antes no Rio pelo
superintendente da regional fluminense, que ouviu sobre meus interesses de pesquisa e me
direcionou a outros profissionais. Estes rapidamente me introduziram nos meandros labirínticos
das experiências pessoais e vestígios materiais da história do IPHAN. Tratando pesquisadores
dessa forma calorosa e atenciosa a instituição cuida também da sua própria autoimagem
narrativa: ela traz para dentro de seu círculo relacional pessoas que, do contrário, podiam
desejar explorar aspectos prejudiciais à manutenção da identidade e do funcionamento do
organismo burocrático. Mas foi também a exploração dessas oportunidades relacionais que me
franqueou o acesso a relatos pessoais e a documentos ainda pouco conhecidos, como aqueles
relacionados com as práticas arqueológicas e etnográficas da instituição – ainda que, depois,
eles tenham se mostrado de pouca valia para aquela minha pesquisa.761
Até então minha ida aos EUA era apenas uma vaga expectativa. No entanto, as
relações que fui encontrando em todos estes arquivos brasileiros indicavam cada vez mais a
necessidade de investigar mais a fundo os laços que só muito mais tarde eu passaria a chamar
de transnacionais. A primeira possibilidade de viabilizar esse sonho foi por meio de uma bolsa
que consegui junto à Comissão Fulbright, que financiaria, junto à CAPES, a minha estadia nos
Estados Unidos por 10 meses. No entanto, esse projeto teve que ser adiado pois, no mesmo

761
Ainda que eu não tenha usado de maneira sistemática a documentação do IEB nesta tese, também é interessante
notar alguns aspectos dessa instituição. O arquivo do IEB, a princípio, parece ser um espaço muito mais sisudo e
pouco afável ao(à) pesquisador(a). As suas regras de acesso são as mais rigorosas que conheci (mais rigorosas até
que as dos arquivos estadunidenses). No entanto, a excelência profissional de instituições arquivísticas como essa
garante uma maior facilidade de busca e de coleta de informações em seus catálogos virtuais, além de assegurar
uma conservação e organização mais eficazes dos materiais ali guardados. Embora eu estivesse já realizando minha
pesquisa de doutorado, meu ingresso como pesquisador ali foi credenciado por uma instituição cultural privada,
ligada a uma das principais instituições bancárias do país, interessada na realização de uma exposição sobre Mário
de Andrade da qual eu, a convite da minha orientadora, participei na condição de assistente de curadoria. A
experiência de participar de um grupo de pesquisadores foi algo muito estimulante e enriquecedor, tanto pela troca
geral de experiências quanto pela circulação de informações arquivísticas: foi muito mais fácil captar a “lógica
interna” do arquivo dessa forma. Por outro lado, o fato de que a Coleção Mário de Andrade ganharia com isso uma
grande visibilidade certamente também ajudou para que eu pudesse ter acesso a documentos ainda em fase de
catalogação – mas é claro que isso sempre depende, no fim das contas, de uma relação de confiança mútua
estabelecida entre arquivistas e nós, pesquisadores(as).
535

período, eu fui nomeado para o cargo efetivo de Professor do Magistério Superior da


Universidade Federal de Alfenas, em Minas Gerais, e por razões econômicas e familiares não
pude rejeitar essa outra oportunidade. Foi apenas no primeiro semestre de 2015 que eu pude,
finalmente, viajar para a América do Norte, agora graças ao Programa de Doutorado Sanduíche
no Exterior da CAPES; mas o período de permanência teve que ser de apenas três meses em
função dos compromissos impostos pelo meu novo trabalho.
A Comissão Fulbright, como nos lembra Nicholas Dirks, foi estabelecida pelo
Senador J. William Fulbright, em 1946, ao final da Segunda Guerra Mundial, a partir da
percepção de que os EUA não podiam mais manter uma posição de isolacionismo diante do
novo cenário internacional; mais que isso, era necessário conquistar uma posição de
centralidade global. As oportunidades de pesquisa para acadêmicos estadunidenses e de outros
países visava disponibilizar assim, junto a um conjunto de ações bem mais amplo, trocas de
informações e saberes especializados sobre regiões estratégicas do globo por meio dos area
studies (DIRKS, 2015, p. 2 e ss.). Com a bolsa da CAPES eu, ao menos, pude me ver
atravessando fronteiras políticas e acadêmicas livre desse tipo de comprometimento – por mais
que eu não superestime tanto assim o poder determinista deste tipo de financiamento para a
apresentação historiográfica. O fato é que foi interessante ir para os EUA não como um
pesquisador patrocinado pelo governo estadunidense, mas como uma espécie de avesso do
“brasilianismo” que de maneira tão importante produziu efeitos nas ciências humanas de nosso
país. Parecia-me, à época, que a relação sujeito-objeto do conhecimento podia ser invertida
assim de maneira um pouco mais livre. Por mais que agora eu perceba essa relação de um outro
modo, essa inversão de comprometimentos ensejou, sem dúvida, efeitos específicos em minha
pesquisa, a começar por não precisar prestar esclarecimentos detalhados ao governo
estadunidense a respeito do que investiguei ou produzi.
Mas o primeiro aprendizado que tive com esta experiência foi que não é assim tão
fácil cruzar fronteiras nacionais. Em um nível muito importante elas existem e demandam um
grande esforço para serem superadas. O problema mais exaustivo a ser ultrapassado diz respeito
às políticas de imigração: embora eu não tenha sofrido nenhuma suspeita pessoal mais grave (a
não ser um arrombamento de bagagem no meu retorno com direito a um bilhetinho de desculpas
do Department of State), é impossível não sentir o peso das suspeitas políticas e culturais que
pesam sobre os que almejam ingressar na “América”. Foram muitas idas e vindas até conseguir
todos os documentos, recomendações e condições necessárias para o ingresso no território
estadunidense com um visto de estudante.
536

Um outro problema diz respeito à língua. Se já é difícil conhecer os meandros dos


arquivos pátrios em busca dos segredos documentais, é fácil imaginar o que se deve passar nos
estrangeiros. Logo no serviço de imigração, já em Nova York, eu pude constatar as tensões que
gravitam em torno disso: um brasileiro, negro, que estava na minha frente na fila, foi barrado
pelo funcionário do Departamento de Estado. Já bastante impaciente, o oficial estadunidense
perguntou se havia alguém na fila que falava português. Eu não estava seguro em relação ao
meu domínio do inglês, mas não pude deixar de me compadecer de meu conterrâneo, que não
falava inglês, e me lancei à minha primeira aventura em terras desconhecidas. O officer queria
saber algumas informações básicas como tempo de estadia, motivo da visita e profissão,
questões que eu consegui traduzir em ambas direções. Em seguida, meu patrício precisou
apresentar o formulário da alfândega preenchido, mas logo eu percebi que ele também não sabia
escrever. Foi quando o officer perdeu a paciência e disse exatamente o que segue: “Oh, man,
what are you doing? Are you uneducated?”, tomando, em seguida e de modo abrupto, o
formulário do senhor brasileiro para preenchê-lo ele próprio. Depois disso me mantive em
silêncio, intimidado, sem traduzir para aquele administrador de condomínio, que viajava a fim
de visitar um parente, o que lhe havia dito o officer, para que aquelas palavras não surtissem
nele o mesmo efeito que produziram em mim. Foi-se então o janitor (palavra da qual não me
lembrei naquela hora), e ficamos eu e o officer, que em sua secura profissional demonstrou-me
alguma gratidão atendendo-me em seguida, não me perguntando mais nada além de “Are you
a researcher?” (por causa do visto J1) e murmurando, de má vontade, algumas palavras de
agradecimento à minha saída.
Naquele momento eu percebi que minha condição de homem branco, com um nível
aceitável de inglês e, acima de tudo, um pesquisador (talvez também o meu sobrenome, de
origem estadunidense não-evidente), garantia para mim acessos naquele mundo nacional que
certamente eram vedados a outras pessoas. Era uma fronteira que claramente barrava em função
da língua, da cor e da profissão – talvez não tanto em função do gênero, como se sabe acontecer,
por ouvir dizer, principalmente em países ibéricos. Mas é preciso dizer que a minha posição de
acadêmico (Ph.D. student, como eu dizia para me proteger, de maneira quase inconsciente, de
possíveis discriminações étnicas e linguísticas) me garantiu uma respeitabilidade para mim
inusitada, mesmo em relação aos próprios estadunidenses, como pude observar em diversas
situações cuja descrição não cabe nesta tese. Os EUA continuam estrategicamente abertos aos
estrangeiros que podem depositar em suas alfândegas algum capital científico-cultural. Tanto
que minha recepção na University of Massachussetts Dartmouth, intermediada por minha
amável supervisora, foi muito mais acolhedora do que eu poderia imaginar.
537

O pouco tempo que fiquei nos EUA não me permitiu alugar casas ou quartos, de
modo que tive que optar por soluções de relativo baixo custo por meio de sites que oferecem
hospedagem em residências privadas. Nas três cidades em que permaneci para realizar pesquisa
optei então por ficar em bairros periféricos, habitados majoritariamente por migrantes
trabalhadores de classe média baixa. Na verdade, em Washington D.C. eu fiquei em um bairro
negro, Anacostia, separado apenas pelo rio que leva o mesmo nome da área central da cidade:
lá negros(as) e brancos(as) trabalham juntos, mas não convivem e se divertem da mesma forma;
suas residências ficam apartadas das áreas mais centrais e é possível encontrar muita pobreza,
homeless people, mas também trabalhadores(as) em busca de um padrão estadunidense de
classe média de vida e consumo (casas amplas e carros impossíveis de serem comprados por
um(a) brasileiro(a) situado(a) numa faixa socioeconômica equivalente). Na Filadélfia e em
Nova York eu fiquei em bairros latinos (o porto-riquenho Kensington, na primeira, e o
dominicano Washington Heights, na segunda). Foi nesses espaços periféricos, nos quais a
segregação étnica fica evidente, que eu pude vivenciar uma verdadeira experiência da
transnacionalidade, para além daquela da “república internacional das letras”: os EUA, ao
menos no eixo “BosWash”762, é um espaço em que a experiência do trânsito entre fronteiras
nacionais é dominante, de modo tal que em nenhum desses espaços eu me senti realmente
deslocado. Eu partilhava com aquele(as) trabalhadores(as) uma experiência de deslocamento,
de dificuldade linguística, e a classe trabalhadora que conheci nos EUA foi muito diferente
daquele(a) americano(a) médio(a) em relação ao qual me precavi desde quando me imaginei
viajando para lá.
Uma outra surpresa que tive é que os arquivos estadunidenses em que pesquisei
estavam muito bem preparados para esse tipo de trânsito transnacional de scholars. O avançado
trabalho de disponibilização de dados via internet e a linguagem, também transnacional, ainda
que ocidental, das práticas arquivais, asseguraram-me uma rica experiência intelectual. Os
funcionários do arquivo pacientemente decifravam meus anseios, indicavam-me pessoas e
caminhos de acesso a acervos de modo tal que não senti diferenças em relação àquilo que já
tinha conseguido aqui no Brasil. Pude mesmo saber que os NAA abrigam coleções praticamente
ainda “virgens” a respeito de Jean Albert Vellard (1901-1996), que acompanhou Lévi-Strauss
em suas expedições pelo Brasil, e de James (1918-2009) e Virginia Watson (1918), que também
estiveram no Brasil, com alguns atritos, inclusive, relacionados a Heloisa Alberto Torres –
coleções essas que infelizmente não tive condições de averiguar. Também em Washington D.C.

762
Megalópole formada pelas grandes cidades que vão de Boston, Massachusetts, até Washington D.C.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/BosWash).
538

pude digitalizar (!), utilizando a tecnologia Optical Character Recognition (OCR), tantas obras
quanto o meu tempo me permitiu na biblioteca do American Museum of Natural History,
também pertencente à Smithsonian Institution. Na American Philosophical Society cheguei a
ser alertado sobre bolsas de pesquisa para estrangeiros e sempre fui gentilmente orientado pelos
funcionários da casa. Em Nova York, talvez refletindo uma cultura citadina específica, é que
as pessoas estavam um pouco mais distantes e as informações mais confusas e dispersas num
enorme universo de possibilidades de imensas coleções divididas, por exemplo,
alfabeticamente, como no caso dos arquivos centrais da Columbia University – e neste caso
específico algumas descobertas se deram mais em função do acaso do que pela garantia técnica
de encontro de uma informação decisiva.
Por fim, pude perceber que as estratégias que aprendi no Brasil sobre observação
das normas locais, sobre a relação respeitosa com os sentidos pré-inscritos na organização
arquivística e sobre a busca cuidadosa por diálogos reveladores são igualmente úteis para
aqueles arquivos – que talvez guardem mais relações com os daqui do que se pode à primeira
impressão imaginar. Embora se tratem de diferentes níveis de tecnologia arquivística (em certos
casos as instituições brasileiras não ficam atrás das estadunidenses), tratam-se de lugares que
partilham objetivos comuns, ou seja, as estratégias específicas de inscrição de narrativas
particulares nas metanarrativas nacionais e, de maneira mais abrangente, do mundo ocidental
moderno. Todos eles partilham, no entanto, uma experiência produzida transnacionalmente, de
modo que fica evidente a possibilidade de encontrar, nesses espaços, traços de movimentos,
relações e vivências transnacionais.

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