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Aprender na experiência: considerações sobre o aprendizado na capoeira angola e

no tiro com arco no zen budismo

Johnny Alvarez
Christian Sade1
Resumo: Baseados na discussão que Deleuze apresenta sobre aprendizagem e sobre o
conceito de intercessor, desenvolveremos o problema do aprendizado tomando como eixo o
ponto de vista do aprendiz e assim da experiência imediata de quem aprende. Dessa forma, o
aprender não é mais centrado em métodos e técnicas como mediadores que levam a um
resultado prévio, mas na própria experiência afetiva e imediata de um aprendizado engajado.
Esse modo de colocação do problema redefine o lugar do mestre no aprender, não mais como
mediador e sim como intercessor na experiência. Encontraremos essa discussão nas tradições
de ensinamento do tiro com arco no zen budismo e da capoeira angola, cujos casos
apresentaremos.
Abstract: Based on the argument that Deleuze presents on learning and on the concept
of intercessor, we will develop the problem of apprenticeship taking as kernel the point of
view of the apprentice and thus of his immediate experience. In this way, apprenticeship is not
centered in methods and techniques as mediating that lead to a previous result, but it is center
in the proper affective and immediate experience of an involved appenticeschip. This
statement redefines the position of the master on the apprenticeship, not more as mediating
but as intercessor in the experience. We will find this argument in the traditions of teaching of
shot with arc in zen buddhism and of capoeira angola, whose case we will present.

“... a aprendizagem está, antes de mais nada, do lado do rato no


labirinto, ao passo que o filósofo fora da caverna considera apenas o
resultado – saber – para dele extrair os princípios transcendentais. [...]. É do
‘aprender’ e não do saber que as condições transcendentais do pensamento
devem ser extraídas” (Deleuze – Diferença e repetição).

No capítulo três de Diferença e Repetição (1988) Deleuze apresenta uma crítica à


“imagem dogmática do pensamento”, marcada pela imagem do senso comum, da recognição
e da representação. Segundo esta “imagem dogmática” a aprendizagem é tratada como a

1
Respectivamente, doutorando em psicologia cognitiva na UFRJ e mestrando em psicologia na UFF. Ambos
participantes do grupo de pesquisa Cognição e Produção de Subjetividade, cujos integrantes são professores e
alunos da UFF e UFRJ.

1
busca de respostas a problemas dados. Ao discutir um experimento de aprendizagem, Deleuze
afirma que as respostas descontínuas que um sujeito oferece a um problema dado se faz sobre
um fundo contínuo de uma “aprendizagem ideal”, a qual é expressa quando uma resposta é
aquela esperada, surgindo como o “limite de um problema inteiramente compreendido e
determinado”. Dessa forma, uma situação problemática possui um significado a priori, na
medida em que suas variáveis e relações são pré-determinadas e devem ser (re)conhecidas
para bem agir.
A questão colocada por Deleuze (1988) é que as respostas que se dão a situações
problemáticas não devem ser vistas como a compreensão do problema, isto é, o
reconhecimento de suas relações intelectuais a priori, mas sim, como a entrada na “espessura
colorida do problema”. Entrar na “espessura do problema” é tocá-lo de maneira não
representativa, problematizar-se com ele. Portanto, a relação cognitiva (sujeito e objeto) que
se apresenta em tais situações não necessita de uma mediação representativa que garanta a
conexão racional entre o comportamento esperado e o significado a priori. O sujeito compõe-
se com o objeto numa relação imediata, e assim, os problemas e as respostas são inventados
como movimento de produção de si e do mundo (Kastrup, 1999). Mas, a despeito da produção
de si e do mundo, seja em termos de interesses, perceptos, imagens, ou, fazeres, respostas,
símbolos, aprende-se. O que está em jogo, então, na aprendizagem, não são os resultados ou
produtos, que poderiam subsumir a aprendizagem como meio para atingir fins. O que está em
jogo é esse entre no qual toca a experiência.
O que Deleuze (1988) nos faz ver é que a problematização surge desse entre, desse
movimento de composição. Há algo no objeto que força a problematização, mas não se trata
do objeto como categoria da representação. No encontro com o mundo algo escapa ao uso
concordante das faculdades e de suas supostas condições recognitivas, algo que toca ou afeta
o sujeito cognoscente e atua como potência de invenção, de criação do novo. Essa criação
depende da abertura para o que existe de diferencial no encontro, e que não foi codificado
pela representação. Essa potência de diferenciação do encontro aponta o movimento de
aprendizagem como aquilo que remete a cognição para além de si mesma e que lhe permite a
repetição somente na medida em que ela se diferencia. Por isso, Deleuze afirma: “É do
‘aprender’ e não do saber que as condições transcendentais do pensamento devem ser
extraídas”. O aprender “introduz o tempo no pensamento”, e assim, a aprendizagem é
entendida como tempo, como movimento de problematização anterior ao movimento de
solução do problema. A solução do problema resulta do movimento de composição com o
objeto e da temporalidade que lhe é intrínseca. No entanto, quando a aprendizagem é reduzida

2
a um telos, a um resultado como solução adequada, ela é sublimada de suas condições
concretas e factuais nas quais a repetição pela diferença de fato ocorre. Deleuze apresenta um
elogio à aprendizagem seguido de uma crítica a sua subsunção aos resultados produzidos.
Portanto, ressaltamos, a partir dessa posição deleuziana, a crítica à idéia de uma
aprendizagem em geral, pois que independente do concreto factual deve sempre convergir
para um mesmo resultado. Essa crítica só pode ser entendida ao tomarmos a aprendizagem do
ponto de vista de quem aprende e não do ponto de vista do observador para quem só importa
os resultados, o comportamento “ideal”: “...a aprendizagem está, antes de mais nada, do lado
do rato no labirinto...”. Dessa forma, é a experiência concreta e afetiva que passa a ser tomada
como eixo, e assim nos possibilita falar em um aprendizado encarnado. Esta é a tese que
queremos discutir nesse trabalho, pensar um aprender na experiência, e apontar para a
problematização que isso coloca ao lugar do mediador no processo de aprendizagem.
Na aprendizagem em geral se trata de regras “frias”, de formas sem conteúdo, de
sistemas gerais que se encarnariam no concreto. Todavia, o concreto, o “quente” da
experiência, é onde estamos e onde aprendemos (Varela et al, 2003). Dizer que é na
experiência “quente” que se aprende é ampliar a noção de concreto para além da relação
sensório-motora. O concreto não se reduz a manipulação do mundo, ele é, sobretudo a
experiência afetiva que emerge na composição desse encontro e que nos mobiliza a se engajar
no processo de aprendizagem. O movimento de problematização anterior ao movimento de
solução do problema também não é outra coisa que uma experiência afetiva. Sendo assim,
buscaremos desenvolver nossa argumentação apresentando dois casos de aprendizagem: de
tiro com arco no zen budismo e da capoeira angola. No aprendizado dessas duas práticas o
mais importante não é a execução de esquemas sensório-motores, mas, é experimentar o que
se faz fazendo.
Eugen Herrigel (1977) relata a experiência que teve de prática de tiro com arco com um
mestre zen budista japonês. Essa arte, da forma como é exercitada em alguns locais do
oriente, não visa resultados práticos, como melhor acertar o alvo. Mas então, para que
serviria? Como seria exercitá-la se justamente não visa o desenvolvimento de uma habilidade
específica (acertar o alvo), e assim, o aprendizado das variáveis e procedimentos (regras)
referentes? “Era este, pois o quid da questão: não se tratava de nenhum ardil técnico que em
vão havia querido descobrir, senão de uma respiração liberadora que abria novas
perspectivas” (1977: 42). Herrigel aprendia a apoiar-se na própria respiração para praticar o
tiro com arco, cada uma das fases – segurar o arco, colocar a flecha, levantar o arco, estirá-lo
e mantê-lo no máximo de tensão e disparar – é acentuada e entrelaçada ritmicamente segundo

3
os movimentos de inspiração e expiração. O tiro é feito num estado de tensão, porém,
paradoxalmente uma tensão relaxada, isto é, sem esforço. Uma tensão como a da folha de
uma árvore, sobre a qual se acumula a neve até que ela deslize fazendo a folha ceder, mas
cuja tensão jamais é vencida – a flecha sai do arco como a neve cai da folha. É esta condição
que se visa, ser capaz de estirar o arco de forma espiritual, ou seja, sem intenção ou “eu”, mas
plena de presença ensejada pela concentração na respiração. A condição espiritual é o
objetivo do tiro com arco praticado pelos mestres zen, não é o desenvolvimento de uma
resposta a uma tarefa específica, mas, a própria experiência, o cultivo da experiência.
Esse aprendizado, que se caracteriza como uma aprendizagem inventiva2, transversaliza
a ação de atirar com suas condições de possibilidade na experiência da qual provém, de modo
que o artista e sua obra se encontram no mesmo plano. Não se trata de treinar o ego para bem
fazer algo, mas de “diminuí-lo”, colocar-se em um estado em que não se pensa em algo
definido, em que nada se projeta, deseja ou espera, e que não aponta em nenhuma direção
determinada, pois somente assim a experiência pode “ir por si”, pode submeter-se à tensão de
estirar o arco como a folha à neve. O esforço da atitude intencional é o principal obstáculo ao
relaxamento característico do estado espiritual, fundamental para que o tiro ocorra de forma
apropriada. O relaxamento físico que o arqueiro deve ter, estirando o arco de modo a vencer-
lhe a resistência sem aplicar todas as suas forças – o objetivo não é fortalecer os músculos –
entrelaça-se com o relaxamento psíquico-espiritual – não é questão de esforça-se para ficar
relaxado. Assim pode-se liberar o espírito para o estado de presença plena ou onipresença, no
qual ele não está preso em lugar algum: “... embora se relacione com isto ou aquilo, não se
liga a nada reflexivamente e, portanto, não perderá a sua mobilidade original” (1977: 61).
Essa mobilidade original caracteriza a “consciência cotidiana” para o zen, “dormir quando se
tem sono”, “comer quando se tem fome”. A atitude intencional egóica impõe significados e
representações pré-determinados, temos hora certa para dormir, comemos “racionalmente”
escolhendo criteriosamente os alimentos em função de seu valor nutricional.

“Lao Tse disse que a vida autêntica se parece com a água, que a tudo
se adapta porque a tudo se submete” (1977: 45) “... esquecidos por
completo de nós mesmos e livres de toda intenção, adaptemo-nos ao
acontecer, então sua execução exterior tem que se desenrolar com

2
“ ...a aprendizagem inventiva possui duas características que a distingue das concepções psicológicas
tradicionais: ela inclui a invenção de problemas e consiste em um processo de invenção tanto de si quanto do
mundo” (Kastrup, 2002: 300).

4
espontaneidade, prescindindo de toda reflexão diretriz e controladora”
(1977: 64).

A atitude reflexiva apresenta-se como um “centralismo interno” ou “ensimesmamento”.


Sentimos como se girássemos a manivela da roda da nossa vida. Submeter-se aos
acontecimentos seria um movimento contrário a esse, de contato com o “fora”, com a
hetereogeneidade. “O que obstrui o caminho é sua vontade demasiado ativa. Você crê que o
que você não fizer não se fará” (1977: 53). Herrigel salienta a facilidade com que os orientais
executam um ato que exige força. Ora, se observarmos a graça e a precisão dos
empreendimentos de um perito, reconheceremos facilmente um gesto animado pela plena
coordenação corpo e espírito, em uma unidade digna do estado espiritual almejado pelo
arqueiro. Se este não se põe no estado de tensão pertinente esperando a consumação (disparo
da flecha), ele fica num estado de expectativa, e assim, estirando a corda voluntariamente, seu
esforço dá lugar a uma tensão insuportável que o compele a provocar o disparo ele mesmo, de
forma que a mão não se abre do modo adequado.

“É preciso manter a corda esticada, explicou o mestre, como a criança


que segura o dedo de alguém. Ela o retém com tanta firmeza que é de
admirar a força contida naquele pequeno punho. Ao soltar o dedo, ela o faz
sem a menor sacudidela. Sabe porque? Porque a criança não pensa: ‘agora
vou soltar o dedo para pegar outra coisa’. Sem refletir, sem intenção
alguma, volta-se de um objeto para o outro, e dir-se-ia que joga com eles, se
não fosse igualmente correto que são os objetos que jogam com a criança”
(1977: 51).

Surpreender-se com a saída da flecha é submeter-se ao acontecimento para o arqueiro,


ou melhor, acontecer com o acontecimento; eis a experiência concreta – um ato em ato,
fazendo-se. Pelo conceito de apprenticeship3, o aprendizado ocorre numa práxis ininterrupta,
como um eterno aprendiz, aprendizagem inventiva. Não há um momento em que estamos

3
Depraz et al (2003) apresentam esse conceito para desenvolver o aprendizado de um método de exploração da
experiência chamado Devir-consciente. Eles enfatizam que esse aprendizado somente pode ocorrer através da
experiência, através de uma prática efetiva; não é uma questão de pensar sobre ou de adquirir um saber para
então agir, é uma questão de aprender fazendo (learning on the job). Assim sendo, diferencia-se aprendizado de
aprendizagem, que está mais próxima da idéia de um sistema geral e, portanto distante da idéia de que é preciso
“sujar as mãos” para aprender. Aprendizado refere-se ao período ou posição no qual se é um aprendiz, e assim
mais próximo do processo pelo qual alguém se torna um artesão no engajamento direto com sua arte.

5
prontos e formados como portadores de uma habilidade acabada. A lógica temporal do
apprenticeship é de que estamos “sempre à frente de nós mesmos”, de nossas capacidades
recognitivas e sentidos a priori. Estar à frente de si mesmo é surpreender-se com si mesmo, já
que nossas ações não estão pré-determinadas, são processos em ato que continuam na
diferença, na descontinuidade. No entanto, você somente se surpreende se estiver enraizado e
por isso submetido ao acontecimento, do contrário é o princípio da representação que
submete. Por sua vez, a ação somente enraíza com a experiência reiterada da surpresa, de
forma que a ação se desenvolva ao se diferenciar, sempre em contato com o mundo como a
mão da criança. O arqueiro pratica incessantemente a sua arte, de maneira que ele possa estar
sempre à frente de si mesmo e alcance seu tiro espiritualizado. No entanto, é preciso perceber
aqui que a prática incessante não é uma mera repetição, pois ela é acompanhada de uma
atenção à experiência que enseja o enraízamento e a surpresa – acontecer com o
acontecimento.
O arqueiro, o alvo, o arco e a flecha, formam um todo tal como as crianças e os objetos.
Herrigel pergunta como o disparo pode ocorrer “se não for eu que o fizer”, ao que seu mestre
responde: “algo atira e algo acerta”. Nesse estado de presença de espírito, a vivacidade com
que o arco é manejado permite tiros mais potentes e mais certeiros, “entretanto, como é
possível que a meta exterior, o alvo de papel, seja atingida sem que o arqueiro tenha feito
pontaria, de maneira que os acertos confirmem exteriormente o que se passa no interior?”
(Herrigel, 1977: 87). A pergunta de Herrigel poderia muito bem ser compreendida à luz da
“imagem dogmática do pensamento” de modo que a relação cognitiva seja mediada por
princípios racionais que representam a correspondência sujeito e objeto (interior e exterior).
Porém, os disparos feitos pelo arqueiro zen resultam de um estado de espírito para o qual a
intencionalidade da pontaria seria um obstáculo. Por outro lado, a idéia de que “algo atira sem
apontar” é um insólito contra-senso perante a dicotomia sujeito e objeto.

“... a aranha ‘dança’ sua rede sem saber nada da existência de moscas
que seriam apanhadas nela. A mosca, dançando despreocupadamente em um
raio de sol, se enreda sem saber o que a espera. Mas através de ambas ‘algo’
dança, e o interior e o exterior são uno nessa dança. Da mesma maneira, o
arqueiro acerta o alvo sem apontar exteriormente” (1977: 88).

Dessa forma o arqueiro se torna mestre da arte sem arte, sendo ele mesmo essa arte,
assim como é mestre e não mestre – não há centramento, “algo dança”. Ser mestre e não

6
mestre da arte sem arte: não há um mestre que determine o aprendizado assim como
instruções que o substituam. Essa idéia é expressa como o momento no qual Herrigel não
mais necessita das sinalizações do mestre, tornando-se capaz de encaminhar o cultivo da
experiência espiritualizada por conta própria. Ainda que, num primeiro momento, o
aprendizado do arqueiro zen necessite da interferência do mestre para apontar as condições
nas quais o aprendiz recebe a vivência mística de um tiro espiritualizado. Então: qual é o
lugar do mestre num aprendizado encarnado, que se faz na experiência? A asserção de que a
relação cognitiva é imediata redefine o lugar do mediador do aprendizado, pois seu lugar não
é mais o meio (em seu duplo sentido) de quem aprende e do que é aprendido, mas sim, de
instigador ou provocador dessa relação/composição. Assim, diremos que o mestre é um
intercessor na experiência, na qual o aprendizado de fato ocorrerá.
Deleuze (1992) apresenta o conceito de intercessor para mostrar como a criação não é
espontânea, mas se faz a partir da interferência ou transversalização entre forças. O
intercessor é um falseador, não necessariamente algo ou alguém, mas a própria experiência do
encontro. Essa potência do falso, que é o intercessor, segundo Deleuze, intervém lá onde a
atitude natural ou o senso comum tende a dicotomizar, caindo na representação (certo ou
errado, saber ou não saber, justo ou injusto). O intercessor falseando instaura a hesitação de
um paradoxo que prolonga a experiência e a bifurca. Herrigel pergunta “como o disparo pode
ocorrer se não for eu que o fizer?”, “como acertar sem mirar?”, ao que seu mestre responde:
“você crê que o que você não fizer não se fará”, “algo atira e algo acerta”; “Eu o
conseguirei?” pergunta Herrigel, ao que o mestre responde: “Espere pacientemente o que vier
e como vier!”. O mestre propõe tarefas, mas seu foco não é as tarefas em si, pois que não se
trata de uma aprendizagem geral de habilidades, e sim de criar as condições para que a
experiência enseje o aprendizado, experiência sem constrangimentos ou subsunção à
representações sensório-motoras. Essa atitude intercessora marca o mestre não pelo lugar
tradicional de mestre, mas pela maestria, a qual não é ensinar, mas reger a composição, como
o maestro que rege a composição dos diferentes ritmos e sonoridades a partir do qual a
música acontece e ele acontece com a música.
Situação semelhante podemos observar no trabalho de transmissão da Capoeira Angola4.
Quando iniciamos a prática da capoeira angola somos levados a praticar um treinamento que a
princípio pode ser reduzido a uma pratica de aquisição de habilidades (tocar instrumentos,

4
Desde 1930 a Capoeira se dividiu em duas grandes vertentes: a capoeira regional (mais comum) e a capoeira
angola. Esta última busca preservar as tradições da capoeira impedindo que tal cultura seja reduzida a mera luta,
atividade física ou dança. Em nosso trabalho estaremos nos referindo apenas aos aspectos da capoeira angola.

7
cantar chulas, ladainhas e corridos, realizar determinados golpes). Mas desde o inicio o mestre
aponta para outros aspectos referentes à tradição da capoeira, suas lendas, narrativas,
resistência e arte. E logo nos deparamos com perguntas a respeito da finalidade da capoeira.
Seria uma luta? Mestre Pastinha5 respondia “é uma luta quando tem que ser, sendo portanto
uma arma extremamente letal, mas ela não se reduz a uma luta” 6. O mesmo tipo de resposta
escutamos sempre que as perguntas indicam um fechamento numa habilidade que busca fins
(ficar forte, “sarado”, etc). Mestre Pastinha tenta nos mostrar que capoeira é isso tudo e muito
mais: “tudo que a boca come é capoeira”, “Não há diferença entre a roda da vida e da
capoeira, se na vida há traição, também há na capoeira, etc”. Mas sempre se traz a situação
paradoxal de não fechar o movimento da capoeira em definições ou práticas: “É tudo isso,
mas não se reduz a isso”. Tal como na vida, na capoeira qualquer vantagem é impossibilitada
àquele que entra na roda com a expectativa de enfrentar uma situação pré-estabelecida. Tudo
é capoeira, e por isso não podemos nos preparar antecipadamente. De saída, o mestre vai
ambientando os aprendizes nestas situações estranhas e paradoxais no se fazendo da própria
capoeira, falseando suas expectativas e representações. A quebra de tais mediações coloca o
aprendiz na relação imediata de uma prática efetiva e essa relação imediata é a própria
experiência na qual não há distinção sujeito e objeto, ou, quem aprende e o que é aprendido:
“Sua habilidade se revela no momento em que a mão, dominadora incondicional da técnica,
executa e torna visível a idéia que naquele exato momento está sendo criada pelo espírito, sem
que haja qualquer distanciamento entre a concepção e a realização” (Herrigel, 1977: 96). Nem
sempre quem treina buscando estar de antemão preparado para o jogo é um bom capoeirista.
Na capoeira angola os treinamentos não se destacam como o ambiente fundamental no
processo do aprendizado. Como no jargão do futebol “treino é treino e jogo é jogo” o
aprendiz é logo levado a ver que é na roda7 que todos os elementos da capoeira atuam
conjuntamente, sendo, portanto o principal lugar do aprendizado. Os capoeiristas reúnem-se
numa roda onde alguns assumem (sempre provisoriamente) certos papéis, com exceção do
papel de mestre. Portanto numa roda há mestres e aprendizes (única hierarquia) mestre é
mestre e aprendiz é aprendiz. Não há níveis de hierarquia entre os mestres e entres os
aprendizes, logo um aluno novato é “igual” a um veterano. Não há nenhuma marca nos

5
Fundador do movimento da Capoeira Angola.
6
Muitas de nossas citações, não terão fonte de referência escrita, por se tratar a capoeira angola de uma prática
cuja tradição é eminentemente oral. Portanto as citações são referencias que nós capoeiristas (um dos autores
deste testo é praticante de capoeira angola) escutamos nas rodas de capoeira
7
A roda é a consagração da capoeira, momento em que todos os elementos estão juntos numa comunhão de
capoeiristas. As rodas são realizadas em qualquer ambiente, sendo que a rua aparece como o mais propício deles.

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uniformes (cordéis etc) que possam diferenciar isto. Esse detalhe é importante, pois, qualquer
praticante da capoeira está apto, desde sempre, a freqüentar uma roda de capoeira. Alguns
capoeiristas assumem os instrumentos da orquestra: três berimbaus com tamanho de cabaças
diferentes (sons grave [gunga], médio [médio] e agudo [viola]), dois pandeiros, um atabaque,
um reco-reco e um agogô. A orquestra se inicia e um dos capoeiristas, geralmente pertencente
à orquestra, inicia os cânticos. Neste momento, aos pés dos berimbaus, dentro da roda, se
reúnem e se cumprimentam dois capoeiristas que irão jogar entre si. O cântico inicial é
conhecido como ladainha, onde o cantador solitário realiza uma canção sem a participação de
ninguém, todos sem exceção escutam a ladainha, inclusive os dois jogadores agachados nos
pés dos berimbaus. Ao seu fim, o mesmo cantador inicia uma chula, cuja principal
característica é a repetição em coro dos versos cantados pelo cantador. Finda a chula iniciam
os corridos, canções de letras variadas, cujos refrões são repetidos pelo coro dos demais.
Neste momento os dois capoeiristas iniciam o jogo. Quem está tocando o berimbau maior
(gunga) comanda a roda. É ele quem indica quando o jogo começa e quando ele termina,
assim como pode efetivar outras intervenções, também o mestre, esteja ele onde estiver, pode
intervir.
Um observador diante da roda, impactado com a sincronia dos movimentos do jogo,
pode imaginar o trabalho e o esforço para que os jogadores atinjam tal destreza. Para o
observador, também parece que esta destreza é a aquisição de uma habilidade sensório-
motora, uma espécie de reação motora a estímulos do jogo. Nesse sentido, os movimentos
seriam um esforço para atingir determinados objetivos, tais como, dar uma rasteira, ou
proteger-se de uma cabeçada. Segundo esta perspectiva, o jogador estaria presente numa
atenção focada no resultado ou na habilidade, o tempo todo tendo que avaliar a situação e
reagir a ela, o que implica um grau enorme de esforço. O iniciante tal como um observador
entra no jogo desta maneira. Seu esforço é manter-se focado nas variáveis e procedimentos
(regras), o que subsume a roda a uma prática guiada por funções gerais: como devo cantar,
tocar, ou jogar. O aprendiz age, circunscrevendo o seu campo de ação, sempre buscando um
foco específico, e deste modo, ao fim do jogo ou da roda ele experimenta um cansaço, tanto
físico, quanto mental. Assim, podemos dizer que o aprendiz atua um pouco como quem quer
entrar e participar, buscando sempre se adequar a uma suposta situação de movimentos e
sons, mas sua participação ainda é como a de um observador desencarnado, que se esforça
para aprender movimentos e sons em geral.

9
Mas a roda, encarnada de toda a tradição8 da capoeira, sinaliza e apresenta situações que
nos forçam a sair da posição em geral e penetrarmos na experiência rica e “quente” da
capoeira. Elementos de mistério, risos, malandragem, mandinga, vão “exigindo” do aprendiz
um refinamento de sua prática. À atividade física e suas habilidades específicas vão se
incorporando outros elementos, e com eles novas formas de engajamento e de emoção. O
capoeirista é “levado” 9 a deslocar sua atenção, do como se comportar para o estar atento ao
espírito do jogo, liberando-se do sensorio-motor e expandindo-o, abrindo-se ao plano dos
sentidos numa experiência encarnada e atenção desfocada, a qual enseja o enraízamento e a
surpresa – acontecer com o acontecimento. Numa roda em Niterói, anos atrás, por exemplo,
espantava a alguns principiantes como o Mestre Moraes10 podia ao mesmo tempo jogar e
ouvir detalhes dos instrumentos da orquestra, numa atitude totalmente encarnada e plena de
sentido. Para isso, é preciso treinar a sensibilidade, deixando-se afetar por aquilo que faz e
acolher seus efeitos sobre si. Há uma força afetiva na capoeira, assim como no tiro com arco,
e essa é sua dimensão não recognitiva ou impessoal, imediaticidade da experiência concreta e
afetiva. Essa força afetiva produz, do ponto de vista do aprendiz, uma sensibilização que
engaja (dá “onda”): pratica-se pela experiência afetiva de praticar. É pelo engajamento que o
aprendizado ocorre.
No exemplo do arqueiro Zen, a respiração o liberta das forças do ego e dos interesses
adaptativos da ação (querer acertar o alvo). Na capoeira podemos destacar a importância de
todo o ritual da roda, principalmente os sons dos instrumentos e os cânticos que vão
embalando uma misteriosa intervenção no jogo. Sendo assim, o “espírito da roda”, e não
apenas a figura do mestre, atua como intercessor na experiência, rachando as representações e
expectativas que o iniciante/observador julgava serem necessárias para aprender. O tempo
todo a roda falseia introduzindo o paradoxo, como dar uma rasteira sem nenhuma intenção,
ou como a capacidade do mestre Moraes de jogar e escutar a orquestra ao mesmo tempo.
Portanto, o salto do aprendizado é quando o aprendiz entende/fazendo que não há como saber
sem sujar as mãos, estando atento à experiência da roda onde o paradoxal não assusta mas
persiste e insiste. O paradoxo só assusta ao expectador curioso, ao intelectual que o trata

8
Nos referimos a tradição num sentido ampliado. Não se trata de um passado que pode constranger e
discriminar, mas da presença de um “espírito”, que os capoeiristas denominam de “axé”. Uma roda é
considerada boa quando esse “espírito” está presente, quando tem “axé”. Portanto a tradição não é o retorno a
um passado, mas é a própria continuação encarnada de um “espírito” que se faz presente, na forma da própria
experiência da capoeira angola se fazendo.
9
Utilizamos aqui o verbo levar no sentido da levada de uma dança, de um jogo ou de um som, e não no sentido
do encaminhamento a um lugar pré-determinado.
10
Discípulo indireto de Mestre Pastinha. Atualmente é o líder do grupo GCAP (Grupo Capoeira Angola
Pelourinho) na Bahia.

10
como uma questão lógica. "Amigos o corpo é um grande systema de razão, por detraz de
nosssos pensamentos acha-se um Snr. poderoso, um sabio desconhecido”(Decanio, 1997: 9).
É notória nesta arte a distinção que os capoeiristas fazem entre um golpe forçado, cuja força e
violência atuam em primeiro plano e um golpe “natural e espontâneo”, neste último,
considerado um golpe de mestre, os capoeiristas dizem que o oponente já ia cair, e a rasteira
só ajudou o movimento da queda. Para realizar tais golpes “espontâneos e naturais” só
estando numa atenção plena e desfocada. Não adianta saber tocar berimbau, cantar, realizar
golpes espetaculares se não está entregue as situações do jogo. A roda de angola cultiva11
desde o início esse espírito de experimentação de uma presença plena e encarnada.
Presente em todos os momentos nesse aprendizado o mestre atua, mas, nem sempre sua
atuação ou presença é percebida. Ciente de que o “espírito da capoeira”, enquanto uma
experiência viva é onde se aprende, o mestre muitas vezes atua garantindo as condições
mínimas para que o “axé” possa acontecer. Sem garantias de que esse “espírito” se
presentifique, intervém como uma espécie de maestro da orquestra. Atua como um
provocador, instigando quando a “axé” ainda não aconteceu. É importante distinguirmos o
provocador daquele que se julga responsável, como aquele que sabe. O espírito da capoeira
não pertence a ninguém, nem mesmo a um mestre. O que podemos fazer é iniciar o ritual e
permanecermos atentos, abertos à experiência. Tal como um surfista ou um piloto de asa
delta, que aproveita as ondas e os ventos, o capoeirista também é levado pelas ondas da roda.
Esses casos de aprendizado da capoeira angola e do tiro com arco no zen budismo são
intercessores para pensarmos o que é aprender. Dessa forma, dão expressão para questões que
estão em ressonância direta com a posição deleuziana discutida acima. O ponto principal que
buscamos desenvolver aqui foi o da experiência como eixo para o aprendizado e a virada na
colocação do problema que ele implica, o qual deve ser colocado do ponto de vista do
aprendiz e não do ponto de vista de quem ensina ou de um observador intelectual. Do ponto
de vista do aprendiz a ênfase deve ser posta no aprender e não na aprendizagem submetida ao
aprendido e aos resultados. O aprender não é pessoal e nem circunstancial, não está amarrado
à praticas “frias” (métodos e técnicas), mas está ligado à experiência de uma tradição
impessoal: o “espírito” da capoeira e do zen budismo. Como diz mestre Pastinha, capoeira é:

11
Ressaltamos a diferença entre cultivo e exercício. O exercício é marcado pela atenção aos resultados, ao
comportamento. Já o cultivo é marcado pela atenção à experiência encarnada.

11
“Mandinga de escravo em ânsia de
liberdade, seu princípio não tem método
e seu fim é inconcebível ao mais sábio
capoeirista.”

Referências:

DECANIO FILHO, A. A herança de Pastinha. Editoração eletrônica do texto; revisão;


criação e arte final da capa: Angelo A. Decanio Filho. 2a Edição: com dicionário dialetal,
1997.

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