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SOCIOLOGIA - PROBLEMAS E PRATICAS 1812, 1992, pp. 9-17 Pasargada revisitada* Eliane Botelho Junqueira** José Augusto de Souza Rodrigues*** Resumo: Vinte anos apds a pesquisa realizada por Boaventura de Sousa Santos numa favela da cidade do Rio de Janeiro, este attigo procura demonstrar que nos anos noventa a juridicidade mediacional das Associagdes dos Moradores dessas localida- des tem vindo a ser substituida por uma juridicidade fundamentada na violéneia exercida pelo crime organizado do trifico de drogas. Desta forma. o direitoalternativo das favelas do Rio de Janeizo ndo conduz a formas de sociabilidade, mas traduz ¢ reforga o processo mais geral de atomizagio das relagdes sociais que vem sendo vivenciado por toda a sociedade brasileira a partir dos anos oitenta. Vou-me embora pra Pasdrgada Aqui eu ndo sou feliz Ld a existéncia é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanka Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive (Manuel Bandeira) A recente! morte de seis criancas - com idades entre os nove ¢ os dezassete anos -, que teriam praticado furtos numa favela do Rio de Janeiro ironicamente conhe- cida como “Nova Jerusalém”, convida a uma reflexdo sobre determinadas praticas correntes nas favelas c nas areas periféricas dos grandes centros urbanos brasileiros Este texto apoia-se nos desenvolvimentos de uma pesquisa cujos resultados anteriores foram apresentados no nosso texto “A volta do parafuso: cidadania e violéneia’. Cf. JUNQUEIRA, Eliane & RODRIGUES, José Augusto de Souza, “A volta do parafuso: cidadania e violencia’, in: PLASTINO, Carlos Alberto et alii, Direitos humanos: um debate necessério, Sao Paulo, Brasilicnse, 1988, Nesta segunda versio, os dados obtidos na pesquisa desenvolvida pela Seccional Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil na Favela do Morro da Coroa server como base de analise, ainda que sejam agregadas informagdes sobre as priticas de resolugao de conflites existentes noutras areas marginalizadas da cidade do Rio de Janeiro. Para esta complementagio da pesquisa consideroi-se como hipstese de trabalho que o padrao de juricidade altemativa detectado no Morro da Coroa é comum 2 outras favelas ou areas periféricas da cidade, Professora na Pontificia Universidade Catélica do Rio de Janeiro, +9 Professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. sek 10 Eliane Junqueira/José Augusto Rodrigues e, em especial, da cidade do Rio de Janeiro, que lidera a tragica estatistica do exterminio dos denominados “meninos de rua”. Apesar deste assunto comover a opiniao publica internacional, sensibilizada pelas reportagens sobre esta “guerra” de rua, intermamente esta questo ¢ dificil de abordar, tanto pelos intelectuais, como pela populagao em geral, aterrorizada pelo clima de inseguranga proveniente, entre outtos aspectos, do aumento da criminalidade patrimonial violenta. No Brasil, a pratica do exterminio, retratada de forma “grotesca” pelos jornais sensacionalistas, nao parece capaz de se tornar uma questo ptiblica, transformando-se apenas numa “questo policial”. Sea sobrevivéncia de uma das criangas da chacina de “Nova Jerusalém” - uma menina de dezasseis anos - e a surpreendentemente ripida ac¢do policial na identificagao e prisao de um dos envolvidos no cxterminio - um traficante de drogas - inverteram o clima de indiferenga que caracteriza a atitude perante a morte no Brasil, dois aspectos nfo tém sido suficientemente abordados pelos meios de comunicagao de massa, Em primeiro lugar salienta-se 0 envolvimento de faixas ctdrias cada vez mais jovens com o mundo do crime, tanto através de uma criminalidade patrimonial mais tradicional, como - principalmente - através da participacao no trifico de drogas. Sobre este assunto, so especialmente recomendadas as andlises descnvol- vidas por Alba Zaluar’ com base em entrevistas, depoimentos ¢ historias de vida colhidas entre traficantes de drogas de uma drea periférica do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, a chacina de “Nova Jerusalém” faz emergir a violéncia subterrinea do dia-a-dia das populagdes marginalizadas, obrigadas a estabelece- rem, como estratégia de sobrevivéncia, compromissos com o crime organizado, Ao contrario dos esquadrées da morte - cuja formagao tem origem na década de cinquenta, por policiais inconformados com a necessidade de se aterem aos estreitos limites da legalidade no combate ao crime - que s6 conseguem gerar terror e reptidio entre a populagao de baixos rendimentos, ¢ das “policias mineiras” (denominadas de justiceiros, em Sao Paulo), percebidas como um recurso dos “ticos" (dos comerciantes das dreas periféricas) que tm dinheiro para contratar uma seguranca privada’, o crime organizado, em virtude do “poder de policia” exercido pelos traficantes contra criminosos que porventura se arrisquem a agirem suas bases territoriais, tem-se tornado uma forga de “ordem juridica” para a populagio de baixos rendimentos. A actuag3o do crime organizado no “combate-ao-crime”, enquanto juridicida- de alternativa, no estatal, revela-se um tema bastante actual, devido as respostas claboradas nos paises centrais para a, deslegitimagio do sistema penal, realizada principalmente pela criminologia da reac¢ao social ¢ pela criminologia critica’ Formuladas no auge da crise do Estado-Providéncia, estas respostas, que tém 0 scu exemplo mais radical no abolicionismo, pretendem a informalizagdo, descentra- lizacdo, desprofissionalizagao, desregulamentagfo, comunitarizacao e privatiza- do dos diversos campos da vida social, especialmente da administragao da justiga, como cxemplificam as propostas de policias comunitdrias, prises privadas e formas nio estatais de resolugao dos conflitos. Noutros termos, estas respostas a referem-se a um processo de societalizagao que toma por referente o mito da comunidade, do qual pode ser um bom exemplo a favela que, a partir da invest gagio empirica realizada por Boaventura de Sousa Santos no inicio da década de setenta no Rio de Janeiro, veio a ser conhecida como Pasi gada?, No entanto, pensar a favela a partir do lugar utdpico dos versos de Manuel Bandeira, s6 faz sentido a partir do discurso dos intelectuais europeus que, no final da década de sessenta, imaginaram a América Latina como representante dos limites do capitalismo e da faléncia da sua utopia civilizatoria e a favela, imagem sintética da pobreza, como ponto de partida para a construgdo do novo mundo. Hoje, passados mais de vinte anos, os factos parecem ter desmentido os sonhos da década de sessenta, pois as favelas representam apenas bairros populares inseridos na cidade através de uma intensa rede de wocas materiais e simbdlicas. Desta forma, pensar a favela a partir da categoria de "marginalidade" corresponde, quase que exclusivamente, a dimensio do imaginério social das camadas médias®. Isto nao significa, no entanto, negar a existéncia de uma forte identidade local por parte dos “favelados”, mas apenas lembrar o total despropésito de caracterizd-los como “les misérables“, os supostos sujcitos das esperangas de redengao secular cultivadas pela intelligenrzia critica de entio. A violéncia do crime organizado nessas dreas “marginalizadas” contesta, portanto, o referente a partir do qual as propostas de societalizacao sio desenvol- vidas e torna urgente, para os que convivem quotidianamente com a dura realidade da justiga informal, um retorno 4 Pasdrgada. Com estes objectivos, este texto pretende reconstruir as principais formas de juridicidade existentes nas favelas, enfatizando-se a andlise do poder de policia do crime organizado. 1 - Pasargada ea dualidade do sistema de ordem juridica no Brasil Mais do que a estranheza desenvolvida pela populagao pobre em relagio ao Poder Judiciario, percebido, a partir de uma visao dual do mundo dos ricos e do mundo dos pobres, como um dispositivo privativo de intermediago de conflitos das elites, ¢ 0 sentimento de repulsa provocado pelas praticas corruptas, arbitrdrias e violentas da policia que pode explicar 0 recurso a outras “forgas de ordem” nas favelas. Antes de tudo, a populacao das favelas das reas periféricas lanca sobre a policia uma suspeita generalizada de comportamento ilicito, ao perceber que esta instituigdo esta ao servico dos que tém influéncia e poder, seja do macropoder da sociedade inclusiva, seja do micropoder de facto das quadrilhas, para cujas activi- dades fazem “vista grossa”. Desta forma, ao terem consciéncia de que, para os que nao possuem dinheiro ou relagdes pessoais, pedir ajuda policia pode ser inutil, os sectores populares sentem-se excluidos do jogo de influéncias que efectivamen- te determina a ordem nessas localidades. Além de corruptas, as praticas policiais sao arbitrarias, devido a vigilancia que, exercida sobre a populagdo pobre em geral, é incapaz de distinguir 0 "trabalhador” do “bandido”, “transformando a todos em alvos indistintos”’, Se, com estas priticas, a policia cumpre sua fungdo historica de controle das “classes perigosas”,

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