Está en la página 1de 78

CARTA ENCÍCLICA

IMMORTALE DEI
DO SUMO PONTIFÍCIO
PAPA LEÃO XIII
A TODOS OS NOSSOS VENERÁVEIS
IRMÃOS, OS PATRIARCAS,
PRIMAZES, ARCEBISPOS
E BISPOS DO ORBE CATÓLICO,
EM GRAÇA E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA

SOBRE A CONSTITUIÇÃO CRISTÃ


DOS ESTADOS

Veneráveis Irmãos,
Saudação e Bênção Apostólica

1. A obra imortal do Deus de misericórdia, a Igreja, se bem que em si e por sua natureza tenha por
fim a salvação das almas e a felicidade eterna, é entretanto, na própria esfera das coisas humanas, a
fonte de tantas e tais vantagens, que as não poderia proporcionar mais numerosas e maiores mesmo
quando tivesse sido fundada sobretudo e diretamente em mira a assegurar a felicidade desta vida.
Com efeito, onde quer que a Igreja tenha penetrado, imediatamente tem mudado a face das coisas e
impregnado os costumes públicos não somente de virtudes até então desconhecidas, mas ainda de
uma civilização toda nova. Todos os povos que a têm acolhido se distinguiram pela doçura, pela
equidade e pela glória dos empreendimentos.

2. E, todavia, acusação já bem antiga é que a Igreja, dizem, é contrária aos interesses da sociedade
civil e incapaz de assegurar as condições de bem-estar e de glória que, com inteira razão e por uma
aspiração natural, toda sociedade bem constituída reclama. Desde os primeiros dias da Igreja, como
sabemos, os cristãos foram inquietados em conseqüência de injustos preconceitos dessa espécie, e
expostos ao ódio e ao ressentimento, a pretexto de serem inimigos do Império. Naquela época, a
opinião pública imputava de bom grado ao nome cristão os males que assaltavam a sociedade, ao
passo que era Deus, o vingador dos crimes, quem infligia justas penas aos culpados. Essa odiosa
calúnia indignou com toda razão o gênio de Santo Agostinho e lhe acusou o estilo. Foi
principalmente no seu livro da “Cidade de Deus” que ele pôs em luz a virtude da sabedoria cristã
em suas relações com a coisa pública, de tal sorte que ele parece haver menos advogado a causa dos
cristãos de seu tempo do que alcançado um triunfo perpétuo sobre tão falsas acusações.

3. Todavia, o pendor funesto para essas queixas e para esses agravos não cessou, e muitos se
comprouveram em buscar a regra da vida social fora das doutrinas da Igreja Católica. E, mesmo de
então por diante, o “direito novo”, como lhe chamam, e que pretende ser o fruto de uma idade
adulta e o produto de uma liberdade progressista, começa a prevalecer e a dominar por toda parte.
Mas, a despeito de tantos ensaios, é fato que, para constituir e reger o Estado, nunca se achou
sistema preferível àquele que é a florescência espontânea da doutrina evangélica.

Julgamos, pois, ser de suma importância e conforme ao Nosso múnus Apostólico confrontar as
novas teorias sociais com a doutrina cristã. Destarte, temos a confiança de que a verdade dissipará,
por um só brilho, toda causa de erro e de dúvida, de tal sorte que cada um facilmente poderá ver
essas supremas regras de conduta que deve seguir e observar.
4. Não é muito difícil estabelecer que aspecto e que forma terá a sociedade se a filosofia cristã
governa a coisa pública. O homem nasceu para viver em sociedade, portanto, não podendo no
isolamento nem se proporcionar o que é necessário e útil à vida, nem adquirir a perfeição do espírito
e do coração, a Providência o fez para se unir aos seus semelhantes, numa sociedade tanto
doméstica quanto civil, única capaz de fornecer o que é preciso à perfeição da existência. Mas,
como nenhuma sociedade pode existir sem um chefe supremo e sem que a cada um imprima um
mesmo impulso eficaz para um fim comum, daí resulta ser necessária aos homens constituídos em
sociedade uma autoridade para regê-los; autoridade que, tanto como a sociedade, procede da
natureza e, por conseqüência, tem a Deus por autor.

5. Daí resulta ainda que o poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro
e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes sujeitas
e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito
senão de Deus, Chefe supremo de todos. “Todo poder vem de Deus” (Rom 13,1).

6. Aliás, em si mesma a soberania não está ligada a nenhuma forma política; pode muito bem
adaptar-se a esta ou àquela, contanto que seja de fato apta à utilidade e ao bem comum.

7. Mas, seja qual for a forma de governo, todos os chefes de Estado devem absolutamente ter o
olhar fito em Deus, soberano Moderador do mundo, e, no cumprimento do seu mandato, a Ele
tomar por modelo e regra. Com efeito, assim como na ordem das coisas visíveis Deus criou causas
segundas, nas quais se refletem de algum modo a natureza e a ação divina, e que concorrem para
conduzir ao fim para que tende este universo, assim também quis Ele que, na sociedade civil,
houvesse uma autoridade cujos depositários fossem como que uma imagem do poder que Ele tem
sobre o gênero humano, ao mesmo tempo que da sua Providência. Deve, pois, o mando ser justo; é
menos o governo de um Senhor do que de um Pai, pois é justíssima a autoridade de Deus sobre os
homens e se acha unida a uma bondade paternal. Deve ele, aliás, exercer-se para as vantagens dos
cidadãos, pois os que tem autoridade sobre os outros são dela investidos exclusivamente para
assegurar o bem público. Sob pretexto algum deve a autoridade civil servir à vantagem de um só ou
de alguns, visto haver sido constituída para o bem comum.

8. Se os chefes de Estado se deixarem arrastar a uma dominação injusta, se pecarem por abuso de
poder ou por orgulho, se não proverem ao bem do povo, saibam que um dia terão de dar contas a
Deus, e essas contas serão tanto mais severas quanto mais santa for a função que eles exercerem e
mais elevado o grau da dignidade de que estiverem investidos. “Os poderosos serão poderosamente
punidos” (Sab 6, 7).

9. Desta maneira, a supremacia do mando arrastará a homenagem voluntária do respeito dos


súditos. De feito, se estes estiverem uma vez bem convencidos de que a autoridade dos soberanos
vem de Deus, sentir-se-ão obrigados em justiça a acolher docilmente as ordens dos príncipes e a
lhes prestar obediência e fidelidade, por um sentimento semelhante à piedade que os filhos tem para
com seus pais. “Seja toda alma sujeita aos poderes mais elevados” (Rom 13,1).

10. Porquanto não é lícito desprezar o poder legítimo, seja qual for a pessoa em que ele resida, mais
do que resistir à vontade de Deus; ora, os que lhe resistem correm por si mesmos para sua perda.
“Quem resiste ao poder resiste à ordem estabelecida por Deus, e os que lhe resistem atraem a si
mesmos a condenação” (Rom 5, 2). Assim, pois, sacudir a obediência e revolucionar a sociedade
por meio da sedição é um crime de lesa-majestade, não só humana, mas divina.

11. Sendo a sociedade política fundada sobre estes princípios, evidente é que ela deve, sem falhar,
cumprir por um culto público os numerosos e importantes deveres que a unem a Deus. Se a natureza
e a razão impõem a cada um a obrigação de honrar a Deus com um culto santo e sagrado, porque
nós dependemos do poder dele e porque, saídos dele, a Ele devemos tornar, à mesma lei adstringem
a sociedade civil. Realmente, unidos pelos laços de uma sociedade comum, os homens não
dependem menos de Deus do que tomados isoladamente; tanto, pelo menos, quanto o indivíduo,
deve a sociedade dar graças a Deus, de quem recebe a existência, a conservação e a multidão
incontável dos seus bens. É por isso que, do mesmo modo que a ninguém é lícito descurar seus
deveres para com Deus, e que o maior de todos os deveres é abraçar de espírito e de coração a
religião, não aquela que cada um prefere, mas aquela que Deus prescreveu e que provas certas e
indubitáveis estabelecem como a única verdadeira entre todas, assim também as sociedades não
podem sem crime comportar-se como se Deus absolutamente não existisse, ou prescindir da religião
como estranha e inútil, ou admitir uma indiferentemente, segundo seu beneplácito. Honrando a
Divindade, devem elas seguir estritamente as regras e o modo segundo os quais o próprio Deus
declarou querer ser honrado.

12. Devem, pois, os chefes de Estado ter por santo o nome de Deus e colocar no número dos seus
principais deveres favorecer a religião, protegê-la com a sua benevolência, cobri-la com a
autoridade tutelar das leis, e nada estatuírem ou decidirem que seja contrário à integridade dela. E
isso devem-no eles aos cidadãos de que são chefes. Todos nós, com efeito, enquanto existimos,
somos nascidos e educados em vista de um bem supremo e final ao qual é preciso referir tudo,
colocado que está nos céus, além desta frágil e curta existência. Já que disso é que depende a
completa e perfeita felicidade dos homens, é do interesse supremo de cada um alcançar esse fim.
Como, pois, a sociedade civil foi estabelecida para a utilidade de todos, deve, favorecendo a
prosperidade pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente a não opor qualquer
obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à aquisição desse bem supremo
e imutável ao qual eles próprios aspiram. A primeira de todas consiste em fazer respeitar a santa e
inviolável observância da religião, cujos deveres unem o homem a Deus.

13. Quanto a decidir qual religião é a verdadeira, isso não é difícil a quem quiser julgar disso com
prudência e sinceridade. Efetivamente, provas numerosíssimas e evidentes, a verdade das profecias,
a multidão dos milagres, a prodigiosa celeridade da propagação da fé, mesmo entre os seus inimigos
e a despeito dos maiores obstáculos, o testemunho dos mártires e outros argumentos semelhantes,
provam claramente que a única religião verdadeira é a que o próprio Jesus Cristo instituiu e deu à
sua Igreja a missão de guardar e propagar.

14. Porquanto o Filho único de Deus estabeleceu na terra uma sociedade a que chamamos a Igreja, e
encarregou-a de continuar através de todas as idades a missão sublime e divina que Ele mesmo
recebera de seu Pai. “Assim como meu Pai me enviou, eu vos envio” (Jo 20, 21). “E eis que eu
estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28, 20). Do mesmo modo, pois, que Jesus Cristo
veio à terra a fim de que os homens “tivessem a vida e a tivessem mais abundantemente” (Jo 10,
10), assim também a Igreja propõe-se como fim a salvação eterna das almas; e, nesse intuito, é tal a
sua constituição que ela abrange na sua extensão a humanidade inteira e não é circunscrita por
limite algum nem de temo, nem de lugar. “Pregai o Evangelho a toda criatura” (Mt 16, 15).

15. A essa imensa multidão de homens o próprio Deus deu chefes com o poder de governá-los. À
testa deles propôs um só de quem quis fazer o maior e o maior seguro mestre da verdade, e a quem
confiou as chaves do reino dos céus. “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus” (Mt 16, 19).
“Apascenta meus cordeiros... apascenta minhas ovelhas” (Jo 21, 16-17). “Roguei por ti, a fim de
que tua fé não desfaleça” (Lc 22, 32).

16. Se bem que composta de homens como a sociedade civil, essa sociedade da Igreja, quer pelo
fim que lhe foi designado, quer pelos meios que lhe servem para atingi-lo, é sobrenatural e
espiritual. Distingue-se, pois, e difere da sociedade civil. Além disso, e isto é da maior importância,
constitui ela uma sociedade juridicamente perfeita no seu gênero, porque, pela expressa vontade e
pela graça do seu Fundador, possui em si e de per si todos os recursos necessários à sua existência e
ação. Como o fim a que a Igreja tende é de muito o mais nobre de todos, assim também o seu poder
prevalece sobre todos os outros poderes, e de modo algum pode ser inferior ou sujeita ao poder
civil. Efetivamente, Jesus Cristo deu plenos poderes aos seus apóstolos na esfera das coisas
sagradas, juntando-lhes tanto a faculdade de fazer verdadeiras leis como o duplo poder que dela
decorre, de julgar e de punir. “Todo poder me foi dado no céu e na terra; ide pois, ensinai todas as
nações...ensinando-as a observar tudo o que eu vos prescrevi” (Mt 28, 18-20). E ainda: “Tende
cuidado de punir toda desobediência” (2 Cor 10, 6). Demais: “Serei mais severo em virtude do
poder que o Senhor me deu para a edificação e não para a ruína” (2 Cor 13, 10). À Igreja, pois, e
não ao Estado, é que pertence guiar os homens para as coisas celestes, e a ela é que Deus deu o
mandato de conhecer e de decidir de tudo o que concerne à religião; de ensinar todas as nações, de
estender a tão longe quanto possível as fronteiras do nome cristão; em suma, de administrar
livremente e a seu inteiro talante os interesses cristãos.

17. Essa autoridade perfeita em si e só de si mesma dependente, de há muito tempo atacada por uma
filosofia aduladora dos príncipes, a Igreja nunca cessou de reivindicá-la, nem de exercê-la
publicamente. Os primeiros de todos os seus paladinos foram os Apóstolos, que, impedidos pelos
príncipes da Sinagoga de difundirem o Evangelho, respondiam com firmeza: “Devemos obedecer a
Deus antes que aos homens” (At 5, 29). Foi ela que os Padres da Igreja se aplicaram a defender por
sólidas razões quando tiveram ensejo, e que os Pontífices romanos nunca deixaram de reivindicar
com uma constância invencível contra os seus agressores.

18. Bem mais, tem ela tido por si, em princípio e de fato, o assentimento dos príncipes e dos chefes
de Estados, que, nas suas negociações e transações, enviando e recebendo embaixadas e
permutando outros bons ofícios, têm constantemente agido com a Igreja como com uma potência
soberana e legítima. Por isto, não é sem uma disposição particular da Providência de Deus que essa
autoridade foi munida de um principado civil, como da melhor salvaguarda da sua independência.

19. Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e
o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às coisas humanas. Cada uma delas no
seu gênero é soberana; cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e
traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que
uma esfera circunscrita em que cada uma exerce a sua ação “iure próprio”. Todavia, exercendo-se a
autoridade delas sobre os mesmos súditos, pode suceder que uma só e mesma coisa, posto que a
título diferente, mas no entanto uma só e mesma coisa, incida na jurisdição e no juízo de um e de
outro poder. Era, pois, digno da Sábia Providência de Deus, que as estabeleceu ambas, traçar-lhes a
sua trilha e a sua relação entre si. “Os poderes que existem foram dispostos por Deus” (Rom 13, 1).
Se assim não fora, muitas vezes nasceriam causas de funestas contenções e conflitos e muitas vezes
o homem deveria hesitar, perplexo, como em face de um duplo caminho, sem saber o que fazer, em
consequência das ordens contrárias de dois poderes cujo jugo em consciência ele não pode sacudir.
Sumamente repugnaria responsabilizar por essa desordem a sabedoria e a bondade de Deus, que, no
governo do mundo físico, todavia de ordem bem inferior, temperou tão bem umas pelas outras as
forças e as causas naturais, e as fez harmonizar-se de maneira tão admirável, que nenhuma delas
molesta as outras, e todas, num conjunto perfeito, conspiram para a finalidade a que tende o
universo. Necessário é, pois, que haja entre os dois poderes um sistema de relações bem ordenado,
não sem analogia com aquele que, no homem, constitui a união da alma com o corpo. Não se pode
fazer uma justa ideia da natureza e da força dessas relações senão considerando, como dissemos, a
natureza de cada um dos dois poderes, e levando em conta a excelência e a nobreza dos seus fins,
visto que um tem por fim próximo e especial ocupar-se dos interesses terrenos, e o outro
proporcionar os bens celestes e eternos.
20. Assim, tudo o que, nas coisas humanas, é sagrado por uma razão qualquer, tudo o que é
pertinente à salvação das alas e ao culto de Deus, seja por sua natureza, seja em relação ao seu fim,
tudo isso é da alçada da autoridade da Igreja. Quanto às outras coisas que a ordem civil e política
abrange, é justo que sejam submetidas à autoridade civil, já que Jesus Cristo mandou dar a César o
que é de César e a Deus o que é de Deus. Tempos ocorrem às vezes, em que prevalece outros modo
de assegurar a concórdia e de garantir a paz e a liberdade; é quando os chefes de Estado e os Sumos
Pontífices se põem de acordo por um tratado sobre algum ponto particular. Em tais circunstâncias,
dá a Igreja provas evidentes da sua caridade materna, levando tão longe quanto possível a
indulgência e a condescendência.

21. Tal é, consoante o esboço sumário que havemos traçado, a organização cristã da sociedade civil,
e essa teoria não é nem temerária nem arbitrária, mas se deduz dos princípios mais elevados e mais
certos, confirmados pela própria razão natural. Essa constituição da sociedade política não tem nada
que possa parecer pouco digno ou inconveniente para a dignidade dos príncipes. Longe de tirar o
que quer que seja aos direitos da majestade, pelo contrário, torna-os mais estáveis e mais augustos.
Muito mais: se olharmos isso mais de perto, reconheceremos nessa constituição uma grande
perfeição que falta nos outros sistemas políticos; e ela produziria certamente frutos excelentes e
variados se ao menos cada poder ficasse nas suas atribuições e pusesse todos os seus desvelos em
cumprir o ofício e a tarefa que lhes foram determinados.

22. Com efeito, na constituição do Estado, tal como a acabamos de expor, o divino e o humano são
delimitados numa ordem conveniente; os direitos dos cidadãos são assegurados e colocados sob a
proteção das mesmas leis divinas, naturais e humanas; os deveres de cada um são tão sabiamente
traçados quão prudentemente salvaguardada lhes é a observância. Todos os homens, nesse
encaminhamento incerto e penoso para a cidade eterna, sabem que tem a seu serviço guias seguros
para conduzi-los à meta, e auxiliares para atingi-la. Sabem, do mesmo modo, que outros chefes lhes
foram dados para obter e conservar a segurança, os bens e as outras vantagens dessa vida.

23. A sociedade doméstica acha a sua solidez necessária na santidade do vínculo conjugal, uno e
indissolúvel; os direitos e os deveres dos esposos são regulados com toda a justiça e equidade; a
honra devida à mulher é salvaguardada; a autoridade do marido modela-se pela autoridade de Deus,
o pátrio poder é temperado pelas atenções devidas à esposa e aos filhos; enfim, está perfeitamente
provido para a proteção, para o bem estar e para a educação desses últimos.

24. Na ordem política e civil, as leis têm por fim as bem comuns, ditadas não pela vontade e pelo
juízo enganador da multidão, mas pela verdade e pela justiça. A autoridade dos príncipes reveste
uma espécie de caráter mais sagrado do que humano, e é contida de maneira a não se afastar da
justiça, nem exceder o seu poder. A obediência dos súditos corre parelhas com a honra e a
dignidade, porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus,
que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um
dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder
político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.

25. Semelhantemente, nessa espécie dos deveres se colocam a caridade mútua, a bondade, a
liberalidade. O homem, que é ao mesmo tempo cidadão e cristão, não mais rasgado em dois por
obrigações contraditórias. Enfim, os bens consideráveis com que a religião cristã enriquece
espontaneamente a própria vida terrena dos indivíduos são adquiridos para a comunidade e para a
sociedade civil: donde ressalta a evidência destas palavras: “A sorte do Estado depende do culto que
se tributa a Deus: e há entre ambos numerosos laços de parentesco e de estrita amizade” (Sacr. Imp.
Ad Cyllirium Alexandr. Et Episcopos metrop. Cfr. Labbeum, Collect. Conc. T. III).
26. Em várias passagens Santo Agostinho, segundo o seu costume, salientou o valor desses bens,
mormente quando interpela a Igreja Católica nestes termos: “Tu conduzes e instruis as crianças
com ternura, os jovens com força, os velhos com calma, como o comporta a idade não somente
do corpo, mas ainda da alma. Sujeitas as mulheres aos maridos por uma casta e fiel
obediência, não para cevar a paixão, mas para propagar a espécie e constituir a sociedade da
família. Dás autoridade aos maridos sobre as mulheres, não para zombarem do sexo, mas
para seguirem as leis de um sincero amor. Subordinas os filhos aos pais por uma espécie de
servidão livre e prepões os pais aos filhos por uma espécie de terna autoridade. Unes não só
em sociedade, mas numa espécie de fraternidade, os cidadãos aos cidadãos, as nações às
nações e os homens entre si pela lembrança dos primeiros pais. Ensinas os reis a velarem
sobre os povos, e prescreves aos povos submeter-se aos reis. Ensinas com cuidado a quem é
que é devida a honra, a quem a afeição, a quem o respeito, a quem o temor, a quem a
consolação, a quem a advertência, a quem o incentivo, a quem a correção, a quem a
reprimenda, a quem o castigo; e fazes saber como, se nem todas essas coisas são devidas a
todos, a todos é devida a caridade, e a ninguém a injustiça” (De moribus Eccl., cap. XXX, n.
63).

27. Noutro lugar, o mesmo Doutor repreende nestes termos a falsa sabedoria dos políticos filósofos:
“Os que dizem que a doutrina de Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de
soldados tais como os faz a doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais
maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis, tais juízes, tais
contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a doutrina cristã! E então ousem ainda
dizer que ela é contrária ao Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma
grande salvaguarda para o Estado quando é seguida” (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap. II, n.
15).

28. Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a
influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os
costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião
instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda
parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o
sacerdócio e o império estavam ligados em si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de
bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos
cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício
algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer.

29. Se a Europa cristã domou as nações bárbaras e as fez passar da ferocidade para a mansidão, da
superstição para a verdade; se repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas, se guardou a
supremacia da civilização, e se, em tudo que faz honra à humanidade, constantemente e em toda
parte se mostrou guia e mestra; se brindou os povos com a verdadeira liberdade sob essas diversas
formas, se sapientissimamente fundou uma multidão de obras para o alívio das misérias; é fora de
toda dúvida que, assim, ela é grandemente devedora à religião, sob cuja inspiração e com cujo
auxílio empreendeu e realizou tão grandes coisas.

30. Todos esses bens durariam ainda se o acordo dos dois poderes houvesse perseverado, e
havia razão para esperar outros ainda maiores, se a autoridade, se o ensino, se os conselhos da Igreja
tivesses encontrado uma docilidade mais fiel e mais constante. Por quanto dever-se-ia ter como lei
imprescritível aquilo que Yves de Chartres escreveu ao Papa Pascoal II: “Quando o mundo é bem
governado, a Igreja é florescente e fecunda. Mas, quando a discórdia se interpõe entre eles,
não somente as pequenas coisas não crescem, mas as próprias grandes deperecem
miseravelmente” (Epist. 238).
31. Mas esse pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer, depois de
primeiro haver transtornado a religião cristã, em breve, por um declive natural, passou à filosofia, e
da filosofia a todos os graus da sociedade civil. É a essa fonte que cumpre fazer remontar esses
princípios modernos de liberdade desenfreada sonhados e promulgados por entre as grandes
perturbações do século último, como os princípios e fundamentos de um “direito novo”, até então
desconhecidos e sobre mais de um ponto em desacordo não somente com o direito cristão, mas com
o direito natural. Eis aqui o primeiro de todos esses princípios: todos os homens, já que são da
mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes, e, “ipso facto”, iguais entre si na prática
da vida; cada um depende tão bem só de si, que de modo algum está sujeito à autoridade de
outrem: pode com toda liberdade pensar sobre qualquer coisa o que quiser, fazer o que lhe
aprouver; ninguém tem o direito de mandar aos outros. Numa sociedade fundada sobre estes
princípios, a autoridade pública é apenas a vontade do povo, o qual, só de si mesmo dependendo, é
também o único a mandar a si. Escolhe os seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos
o direito do que a função do poder, para exercê-la em seu nome. A soberania de Deus é passada em
silencia, exatamente como se Deus não existisse, ou não se ocupasse em nada com a sociedade do
gênero humano; ou então como se os homens, quer em particular, quer em sociedade, não devessem
nada a Deus, ou como se pudesse imaginar-se um poder qualquer cuja causa, força, autoridade não
residisse inteira no próprio Deus.

32. Destarte, como se vê, o Estado não outra coisa mais senão a multidão soberana e que se governa
por si mesma e desde que o povo é considerado a fonte de todo o direito e de todo o poder, segue-se
que o Estado não se julga jungido a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente
nenhuma religião, não é obrigado a perquirir qual é a única verdadeira entre todas, nem a preferir
uma às outras, nem a favorecer uma principalmente; mas a todas deve atribuir a igualdade em
direito, com este fim apenas, de impedi-las de perturbarem a ordem pública. Por conseguinte, cada
um será livre de se fazer juiz de qualquer questão religiosa, cada um será livre de abraçar a religião
que prefere ou de não seguir nenhuma se nenhuma lhe agradar. Daí decorrem necessariamente a
liberdade sem freio de toda consciência, a liberdade absoluta de adorar ou de não adorar a Deus, a
licença sem limites de pensar e de publicar os próprios pensamentos.

33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande favor, fácil é ver a que lugar
se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática está de acordo com tais
doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade,
com sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja,
que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdizer toda
ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado
expedem por si mesmos decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo
pelas santas leis da Igreja.

34. Assim, fazem depender da sua jurisdição os casamentos dos cristãos; decretam leis sobre o
vínculo conjugal, sua unidade, sua estabilidade; deitam mão aos bens dos clérigos e negam à Igreja
o direito de possuir. Em suma, tratam a Igreja como se ela não tivesse nem o caráter nem os direitos
de uma sociedade perfeita, e fosse uma mera associação semelhante às outras que existem no
Estado. Por isso, tudo o que ela tem de direitos, de poder legítimo de ação, fazem-no eles depender
da concessão e do favor dos governantes.

35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua autonomia, e onde uma concordata
pública interveio entre os dois poderes, a princípio grita-se que é preciso separar os negócios da
Igreja dos negócios do Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e
fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos. Mas, como a Igreja não pode sofrê-lo
pacientemente, pois seria para ela desertar os maiores e os mais sagrados dos deveres, e como
reclama absolutamente o cumprimento religioso da fé que lhe foi jurada, muitas vezes nascem entre
o poder espiritual e o poder civil conflitos, cujo desfecho quase inevitável é sujeitar aquele que é
menos provido de meios humanos ao que é mais provido. Assim, nessa situação política que muitos
favorecem hoje em dia, há uma tendência das ideias e das vontades para expulsar inteiramente a
Igreja da sociedade, ou para mantê-la sujeita e acorrentada ao Estado. A maior parte das medidas
tomadas pelos governos inspiram-se nesse desígnio. As leis, a administração pública, a educação
sem religião, a espoliação e a destruição das Ordens religiosas, a supressão do poder temporal dos
Pontífices romanos, tudo tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãos, reduzir a nada a
liberdade da Igreja Católica, e ao nada os seus demais direitos.

36. A simples razão natural demonstra o quanto se afasta da verdade esta maneira de entender o
governo civil. O testemunho dela, com efeito, basta para estabelecer que tudo o que há de
autoridade entre os homens procede de Deus, como de uma fonte augusta e suprema. Quanto à
soberania do povo, que, sem levar em nenhuma conta a Deus, se diz residir por direito natural no
povo, se ela é eminentemente própria para lisonjear e inflamar uma multidão de paixões, não
assenta em nenhum fundamento sólido e não pode ter força bastante para garantir a segurança
pública e a manutenção tranqüila da ordem. De feito, sob o império dessas doutrinas, os princípios
cederam a ponto de, para muitos, ser uma lei imprescritível em direito político poder legitimamente
levantar sedições. Porquanto prevalece a opinião de que os chefes do governo são meros delegados
encarregados de executar a vontade do povo: donde esta conseqüência necessária: que tudo pode
igualmente mudar ao sabor do povo, e que sempre há a temer distúrbios.

37. Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas disparatadas e contrárias
equivale simplesmente a não querer nem escolher nem seguir qualquer delas. É o ateísmo menos o
nome. Efetivamente, quem quer que creia em Deus, se for conseqüentemente e não quer cair no
absurdo, deve necessariamente admitir diferença, disparidade e oposição, mesmo sobre os pontos
mais importantes, não podem ser todos igualmente bons, igualmente agradáveis a Deus.

38. Assim, também, a liberdade de pensar e publicar os próprios pensamentos, subtraída a toda
regra, não é por si um bem de que a sociedade tenha que se felicitar; mas é antes a fonte e a origem
de muitos males. A liberdade, esse elemento de perfeição para o homem, deve aplicar-se ao que é
verdadeiro e ao que é bom. Ora, a essência do bem e da verdade não pode mudar ao sabor do
homem, mas persiste sempre a mesma, e, não menos do que a natureza das coisas, é imutável. Se a
inteligência adere as opiniões falsas, se a vontade escolhe o mal e a ele se apega, nem uma nem
outra atinge a sua perfeição, ambas decaem da sua dignidade nativa e se corrompem. Não é, pois,
permitido dar a lume e expor aos olhos dos homens o que é contrário à virtude e à verdade, e muito
menos ainda colocar essa licença sob a tutela e a proteção das leis. Não há senão um caminho para
chegar ao céu, para o qual todos nós tendemos: é uma boa vida. O Estado afasta-se, pois, das regras
e prescrições da natureza se favorece a licença das opiniões e das ações culposas ao ponto de se
poderem impunemente desviar os espíritos da verdade e as almas da virtude.

39. Quanto à Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, excluí-la da vida pública, das leis, da educação
da juventude, da sociedade doméstica, é m grande e pernicioso erro. Uma sociedade sem religião
não pode ser bem regulada; e, mais talvez do que fora mister, já se vê o que vale em si e em suas
conseqüências essa pretensa moral civil.

40. A verdadeira mestra da juventude e a guardiã dos costumes é a Igreja de Cristo. É ela quem
conserva na sua integridade os princípios de onde emanam os deveres, e quem sugerindo os mais
nobres motivos de vem viver, ordena não somente fugir às más ações, mas domar os movimentos da
alma contrários à razão, ainda quando não se traduzem em ato.

41. Pretender sujeitar a Igreja ao poder civil no exercício do seu ministério é a um tempo uma
grande injustiça e uma grande temeridade. Por essa mesma razão, perturba-se a ordem, pois se dá o
passo às coisas naturais sobre as coisas sobrenaturais; estanca-se, ou, certamente, se diminui muito
o afluxo dos bens com que, se estivesse sem peias, a Igreja cumularia a sociedade; e, demais, abre-
se a voz a ódios e a lutas cuja grande e funesta influência sobre ambas as sociedades tem sido
demonstrado por experiências mais do que freqüentes.

42. Essas doutrinas, que a razão humana reprova e têm uma influência tão considerável sobre a
marcha das coisas públicas, os Pontífices romanos, Nossos predecessores, na plena consciência
daquilo que deles reclamava o múnus apostólico, jamais sofreram fossem impunemente emitidas.
Assim foi que, na sua Carta Encíclica “Mirari vos”, de 15 de agosto de 1832, Gregório XVI, com
grande autoridade doutrinal, repeliu o que se avançava desde então, insto é, que em matéria de
religião não há escolha a fazer: que cada um depende apenas da própria consciência e pode, além
disso, publicar o que pensa e tramar revoluções no Estado. A respeito da separação da Igreja do
Estado, exprime-se nestes termos esse Pontífice: “Não podemos esperar para a Igreja e para o
Estado resultados melhores das tendências dos que pretendem separar a Igreja do Estado e romper a
concórdia mútua entre o sacerdócio e o império. É que, com efeito, os fautores de uma liberdade
desenfreada temem essa concórdia, que sempre foi tão propícia e salutar aos interesses religiosos e
civis”. Da mesma maneira, Pio IX, cada vez que se apresentou ensejo, condenou as falsas opiniões
mais em voga, e que, em tal dilúvio de erros, os católicos tivessem uma direção segura.

43. Dessas decisões dos Sumos Pontífices, cumpre absolutamente admitir que a origem do poder
público deve atribuir-se a Deus, e não à multidão; que o direito à rebelião repugna a razão; que não
fazer nenhum caso dos deveres da religião, ou tratar da mesma maneira as diferentes religiões, não é
permitido nem aos indivíduos nem às sociedades; que a liberdade ilimitada de pensar e d emitir em
público os próprios pensamentos de modo algum deve ser colocada entre os direitos dos cidadãos,
nem entre as coisas dignas de favor e de proteção.

44. Do mesmo modo, cumpre admitir que, não menos que o Estado, a Igreja, por sua natureza e de
pleno direito, é uma sociedade perfeita; que os depositários do poder não devem pretender
escravizar e subjugar a Igreja, nem lhe diminuir a liberdade de ação na sua esfera, nem lhe tirar seja
qual for dos direitos que lhe foram conferidos por Jesus Cristo. Nas questões do direito misto, é
plenamente conforme à natureza, bem como aos desígnios de Deus, não separar um poder do
outros, e ainda menos pô-los em luta, mas sim estabelecer entre eles essa concórdia que está em
harmonia com os atributos especiais por cada sociedade recebidos da sua natureza.

45. Tais são as regras traçadas pela Igreja Católica relativamente à constituição e ao governo dos
Estados. Esses princípios e esses decretos, se se quiser julgar somente deles, não reprovam em si
nenhuma das diferentes formas de governo, visto que estas nada têm que repugne à doutrina
católica, e, se forem aplicadas com sabedoria e justiça, todos podem garantir a prosperidade pública.
Bem mais, não se reprova em si que o povo tenha sua parte maior ou menor no governo; isto até,
em certos tempos e sob certas leis, pode tornar-se não somente uma vantagem, mas um dever para
os cidadãos. Demais, não há para ninguém justo motivo de acusar a Igreja de ser inimiga quer de
uma justa tolerância, quer de uma são e legítima liberdade.

46. Efetivamente, se a Igreja julga não ser lícito por os diversos cultos no mesmo pé legal que a
verdadeira religião, nem por isso condena os chefes de Estado que, em vista de um bem a alcançar
ou de um mal a impedir, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada um seu lugar no
Estado.

47. É, aliás, costume da Igreja velar com o maior cuidado por que ninguém seja forçado a abraçar a
fé católica contra sua vontade, porquanto, como observa sabiamente Santo Agostinho, “o homem
não pode crer senão querendo” (tract. XXVI in Ioan., n. 2).
48. Pela mesma razão, não pode a Igreja aprovar uma liberdade que gera o desgosto das mais santas
leis de Deus e sacode a obediência devida à autoridade legítima. Isso é mais uma licença do que
uma liberdade, e Santo Agostinho lhe chama mui justamente “uma liberdade de perdição” (Epist.
CV, ad Donatistas, cap. II, n. 9) e o Apóstolo S. Pedro “um véu de maldade” (1 Ped 2, 16). Muito
mais: sendo oposta à razão, essa pretensa liberdade é uma verdadeira escravidão. “Aquele que
comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34).

49. Pelo contrário, liberdade verdadeira e desejável é a que, na ordem individual, não deixa o
homem escravo nem dos erros, nem das paixões, que são os seus piores tiranos; e na ordem pública
traça regras sábias aos cidadãos, facilita largamente o incremento do bem-estar e preserva do
arbítrio de outrem a coisa pública. Essa liberdade honesta e digna do homem, a Igreja a aprova ao
mais alto ponto, e, para garantir aos povos o firme e integral gozo dela, nunca cessou de lutar e de
combater.

50. Sim, na verdade, tudo o que pode haver de salutar para o bem geral no Estado; tudo o que é útil
para proteger o povo contra a licença dos príncipes que lhe não provêem ao bem; tudo o que impede
as usurpações injustas do Estado sobre a comuna ou sobre a família; tudo o que interessa à honra, à
personalidade humana e à salvaguarda dos direitos iguais de cada um; de tudo isso a Igreja Católica
sempre tomou quer a iniciativa, quer o patrocínio, quer a proteção, como atestam os monumentos
das idades precedentes. Sempre coerente consigo mesma, se, de uma parte, dela repele uma
liberdade imoderada que, para os indivíduos e para os povos, degenera em licença ou em
escravidão, de outra parte abraça com todo o gosto os progressos que todo dia nascem, se
verdadeiramente contribuem para a prosperidade desta vida, que é como um encaminhamento para
a vida futura e para sempre duradoura. Assim, pois, dizer que a Igreja vê com maus olhos as formas
mais modernas dos sistemas políticos e repele em bloco todas as descobertas do gênio
contemporâneo, é uma calúnia vã e sem fundamento. Sem dúvida, ela repudia as opiniões malsãs,
reprova a inclinação perniciosa para a revolta, e mui particularmente essas predisposições dos
espíritos em que já reponta a vontade de se afastar de Deus; mas, como tudo o que é verdadeiro não
pode proceder senão de Deus, em tudo o que as investigações do espírito humano descobrem de
verdade, a Igreja reconhece como que um vestígio da inteligência divina; e como não há nenhuma
verdade natural que infirme a fé nas verdades divinamente reveladas, como há muitas que a
confirmam, e como todo descobrimento da verdade pode levar a conhecer e a louvar ao próprio
Deus, a Igreja acolherá sempre de bom grado e com alegria tudo o que contribuir para alargar a
esfera das ciências; e, assim como sempre o fez para com as outras ciências, favorecerá e
incentivará aquelas que tem por objeto o estudo da natureza. Nesse gênero de estudos, a Igreja não
se opõe a nenhuma descoberta do espírito; vê sem desprezar tantas investigações que tem por fim o
prazer e o bem-estar; e, mesmo, inimiga nata da inércia e da preguiça, deseja grandemente que o
exercício e a cultura façam o gênio do homem dar frutos abundantes. Ela tem incentivos para toda
espécie de artes e indústrias, e, dirigindo por sua virtude todas essas investigações para um fim
honesto e salutar, aplica-se a impedir que a inteligência e a indústria do homem não o desviem de
Deus e dos bens celestes.

51. Esta maneira de agir, todavia tão racional e tão sábia, é que é desacreditada nestes tempos em
que os Estados não somente recusam conformar-se aos princípios da filosofia cristã, mas parecem
querer afastar-se dela cada dia mais. Não obstante, sendo próprio da luz irradiar por si mesma ao
longe e penetrar aos poucos os espíritos dos homens, movidos como somos pela consciência das
altíssimas e santíssimas obrigações da missão apostólica de que estamos investidos para com todos
os povos, livremente proclamamos, consoante o Nosso dever, a verdade, não porque não levemos
em nenhuma conta os tempos, ou julgamos dever proscrever os honestos e úteis progressos da
Nossa idade; mas porque quereríamos ver os negócios públicos seguirem caminhos menos
perigosos e repousarem em fundamentos mais sólidos, e isso deixando intacta a liberdade legítima
dos povos; essa liberdade de que a verdade é entre os homens a fonte e a melhor salvaguarda: “A
verdade vos libertará” (Jo 7, 32).

52. Se, pois, nessas conjunturas difíceis os católicos Nos escutarem, como é seu dever, saberão
exatamente quais são os deveres de cada um na “teoria” como na “prática”. Na teoria, primeiro, é
necessário ater-se com decisão inabalável a tudo o que os Pontífices romanos têm ensinado ou
ensinarem, e, todas as vezes que as circunstâncias o exigirem, fazer disso profissão pública.
Particularmente no que diz respeito às “liberdades modernas”, como lhes chamam, deve cada um
ater-se ao julgamento da Sé Apostólica e conformar-se com suas decisões. Cumpre resguardar-se de
se deixar enganar pela honestidade especiosa dessas liberdades, e lembrar-se de que fontes elas
emanam e por que espírito se propagam e se sustentam. A experiência já tem feito suficientemente
conhecer os resultados que elas têm tido para a sociedade, e o quanto os frutos que elas têm dado
inspiram com toda razão pesares aos homens funestos e prudentes. Se existe algures, ou pelo
pensamento se imaginar um Estado que persiga disfarçada e tiranicamente o nome cristão, e se o
confrontarmos com o gênero do governo moderno de que falamos, este último poderá parecer mais
tolerável. Certamente, os princípios em que este último se baseia são de tal natureza, como
dissemos, que em si mesmo por ninguém devem ser aprovados.

53. Na prática, a ação pode exercer-se já nos negócios privados e domésticos, já nos negócios
públicos. Na ordem privada, o primeiro dever de cada um é de conformar exatamente a própria vida
e os próprios costumes aos preceitos do Evangelho, e de não recuar ante o que a virtude cristã
impõe de um pouco difícil de sofrer e aturar. Todos devem, além disso, amar a Igreja como sua Mãe
comum, obedecer às suas leis, prover à sua honra, salvaguardar-lhe os direitos, e tomar cuidado de
que aqueles sobre os quais exercem alguma autoridade a respeitem e a amem com a mesma piedade
filial.

54. À salvação pública importa ainda que os católicos emprestem sensatamente o seu concurso à
administração dos negócios municipais e se apliquem sobretudo a fazer com que a autoridade
pública atenda à educação religiosa e moral da juventude, como convém a cristãos: daí depende
sobretudo a salvação da sociedade. Será geralmente útil e louvável que os católicos estendam a sua
ação além dos limites desse campo demasiado restrito, e se cheguem aos grandes cargos do Estado.
“Geralmente”, dizemos, porque aqui os Nossos conselhos se dirigem a todas as nações. Aliás, pode
suceder algures que, por motivos os mais graves e os mais justos, absolutamente não seja
conveniente participar dos negócios públicos seria tão repreensível como não trazer à utilidade
comum nem desvelo nem concurso: tanto mais quanto, em virtude mesmo da doutrina que
professam, os católicos são obrigados a cumprir esse dever com toda integridade e consciência.
Aliás. Abstendo-se eles, as rédeas do governo passarão sem contestação às mãos daqueles cujas
opiniões certamente não oferecem grande esperança de salvação para o Estado.

55. Seria isso, ademais, pernicioso aos interesses cristãos, porque os inimigos da Igreja teriam todo
o poder e os defensores dela, nenhum. Evidentemente é, pois, que os católicos têm justos motivos
para participar da vida política; porquanto o fazem e o devem fazer não para aprovar aquilo que
pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas; porquanto o fazem e o devem
fazer não para aprovar aquilo que pode haver de censurável presentemente nas instituições políticas,
mas para tirar dessas próprias instituições, tanto quanto possível, o bem público sincero e
verdadeiro, propondo-se infundir em todas as veias do Estado, como uma seiva e um sangue
reparador, a virtude e a influência da religião católica.

56. Assim foi nas primeiras idades da Igreja. Nada estava mais distanciado das máximas e costumes
do Evangelho do que as máximas e costumes dos pagãos; viam-se, todavia, os cristãos,
incorruptíveis em plena superstição e sempre semelhantes a si mesmos, entrarem corajosamente em
toda parte onde se abria um acesso. De uma fidelidade exemplar para com os príncipes e de uma
obediência às leis do Estado tão perfeita como lhes era lícito, eles lançavam de toda parte um
maravilhoso brilho de santidade, esforçavam-se por ser úteis a seus irmãos e por atrair os outros a
seguirem Nosso Senhor, dispostos entretanto a ceder o lugar e a morrer corajosamente se não
pudessem, sem vulnerar a sua consciência, conservar as honras as magistraturas e os cargos
militares. Desse modo, introduziram eles rapidamente as instituições cristãs não somente nos lares
domésticos, mas nos acampamentos, na cúria, e até no palácio imperial. “Somos apenas de ontem, e
já enchemos tudo o que é vosso, vossas cidades, vossas ilhas, vossas fortalezas, vossos municípios,
vossos conciliábulos, vossos próprios acampamentos, as tribos, as decúrias, o palácio, o senado, o
fórum” (Tertull., Apol., n. 37). Por isso, quando foi permitido professar publicamente o Evangelho,
a fé cristã apareceu em grande número de cidades não em vagidos ainda, porém forte e já cheia de
vigor.

57. Nos tempos em que estamos, há toda razão para renovar esses exemplos de nossos pais. Antes
de tudo, é necessário que todos os católicos dignos deste nome se determinem a ser e mostrar-se
filhos dedicados da Igreja; que repilam sem hesitar tudo o que seja incompatível com essa
profissão; que se sirvam das instituições públicas, tanto quanto o puderem fazer em consciência, em
proveito da verdade e da justiça; que trabalhem para que a liberdade não exceda o limite traçado
pela lei natural e divina; que tomem a peito reconduzir toda constituição pública a essa forma cristã
que havemos proposto para modelo.

58. Não é coisa fácil determinar um modo único e certo para realizar esses dados, visto dever ele
convir a lugares e a tempos mui dispares entre si. Não obstante, cumpre antes de tudo conservar a
concórdia das vontades e tender à uniformidade da ação. Obter-se-á seguramente esse duplo
resultado se cada um tomar como regra de conduta as prescrições da Sé Apostólica e a obediência
aos bispos, que “o Espírito Santo estabeleceu para reger a Igreja de Deus” (At 20, 28). A defesa do
nome cristão reclama imperiosamente que o assentimento às doutrinas ensinadas pela Igreja seja da
parte de todos unânime e constante, e, por este lado, cumpre resguardar-se ou de estar, no que quer
que seja, de conivência com as falsas opiniões, ou de combatê-las mais molemente do que comporta
a verdade. Quanto às coisas sobre que se pode discutir livremente, será lícito discutir com
moderação e no intuito de procurar a verdade, mas pondo de lado as suspeitas injustas e as
acusações recíprocas.

59. Para este fim, no medo de que a união dos espíritos seja destruída por acusações temerárias, eis
aqui o que todos devem admitir: a profissão íntegra da fé católica absolutamente incompatível com
as opiniões que se aproximam do “racionalismo” e do “naturalismo”, e cujo capital é destruir
completamente as instituições cristãs e estabelecer na sociedade a autoridade do homem em lugar
da de Deus. Não é, tão pouco, permitido ter duas maneira de proceder: uma em particular e outra
em público, de modo a respeitar a autoridade da Igreja ma vida privada e a rejeitá-la na vida
pública; isso seria aliar juntos o bem e o mal e pôr o homem em luta consigo mesmo, quando, ao
contrário, deve ele sempre ser coerente, e em nenhum gênero de vida ou de negócios afastar-se da
virtude cristã. Mas se se tratar de questões puramente políticas, do melhor gênero de governo, de tal
ou tal sistema de administração civil, divergências honestas são lícitas. A justiça não sobre, pois,
que se criminem homens cuja piedade é aliás conhecida, e cuja mente é inteiramente disposta a
aceitar docilmente as decisões da Santa Sé, por serem de opinião diferente sobre os pontos em
questão. Injustiça muito maior ainda seria suspeitar-lhes a fé ou acusá-los de traí-la, como mais de
uma vez o havemos lamentado. Seja esta lei uma imprescritível para os escritores e sobretudo para
os jornalistas.

60. Numa luta em que os maiores interesses estão em jogo, não se deve deixar lugar algum às
dissensões intestinas ou ao espírito de partido; mas, num acordo unânime dos espíritos e dos
corações, todos devem perseguir o escopo comum, que é salvar os grandes interesses da religião e
da sociedade. Se, pois, no passado, tiveram lugar alguns dissentimentos, cumpre sepultá-los num
sincero esquecimento; se alguma temeridade, se alguma injustiça foi cometida, seja qual for o
culpado, cumpre tudo reparar por uma caridade recíproca tudo redimir por um comum assalto de
deferências para com a Santa Sé. Deste modo, obterão os católicos duas vantagens
importantíssimas: a de ajudarem a Igreja a conservar e a propagar a doutrina cristã, e a de prestarem
o serviço mais assinalado à sociedade, cuja salvação está fortemente comprometida pelas más
doutrinas e pelas más paixões.

61. É isso, Veneráveis Irmãos, o que julgamos dever ensinar a todas as nações do orbe católico
sobre a constituição cristã dos Estados e os deveres privados dos súditos. Resta-Nos implorar por
ardentes preces o socorro celeste, e suplicar a Deus fazer Ele próprio atingirem o termo desejado
todos os Nossos desejos e todos os Nossos esforços para a sua glória e para a salvação do gênero
humano, Ele que é só quem pode iluminar os espíritos e tocar os corações dos homens. Como
penhor das bênçãos divinas e em testemunho da Nossa paternal benevolência, damo-Vos na
caridade do Senhor, Veneráveis Irmãos, a Vós bem como ao clero e ao povo inteiro confiado à
Vossa guarda e à Vossa vigilância, a Benção Apostólica.

Dado em Roma, em S. Pedro, a 1° de novembro de 1885, oitavo ano do Nosso Pontificado.

LEÃO XIII, PAPA.

CARTA ENCÍCLICA
MORTALIUM ANIMOS
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XI
AOS REVMOS. SENHORES PADRES PATRIARCAS,
PRIMAZES, ARCEBISPOS, BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DOS LUGARES
EM PAZ E UNIÃO COM A SÉ APOSTÓLICA

SOBRE A PROMOÇÃO DA VERDADEIRA


UNIDADE DE RELIGIÃO

Veneráveis irmãos
Saúde e Bênção Apostólica

1. Ânsia Universal de Paz e Fraternidade

Talvez jamais em uma outra época os espíritos dos mortais foram tomados por um tão grande desejo
daquela fraterna amizade, pela qual em razão da unidade e identidade de natureza – somos
estreitados e unidos entre nós, amizade esta que deve ser robustecida e orientada para o bem comum
da sociedade humana, quanto vemos ter acontecido nestes nossos tempos.

Pois, embora as nações ainda não usufruam plenamente dos benefícios da paz, antes, pelo contrário,
em alguns lugares, antigas e novas discórdias vão explodindo em sedições e em conflitos civis;
como não é possível, entretanto, que as muitas controvérsias sobre a tranquilidade e a prosperidade
dos povos sejam resolvidas sem que exista a concórdia quanto à ação e às obras dos que governam
as Cidades e administram os seus negócios; compreende-se facilmente (tanto mais que já ninguém
discorda da unidade do gênero humano) porque, estimulados por esta irmandade universal, também
muitos desejam que os vários povos cada dia se unam mais estreitamente.

2. A Fraternidade na Religião. Congressos Ecumênicos

Entretanto, alguns lutam por realizar coisa não dissemelhante quanto à ordenação da Lei Nova
trazida por Cristo, Nosso Senhor.

Pois, tendo como certo que rarissimamente se encontram homens privados de todo sentimento
religioso, por isto, parece, passaram a Ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os
povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão
fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida
espiritual.

Por isto costumam realizar por si mesmos convenções, assembléias e pregações, com não medíocre
frequência de ouvintes e para elas convocam, para debates, promiscuamente, a todos: pagãos de
todas as espécies, fiéis de Cristo, os que infelizmente se afastaram de Cristo e os que obstinada e
pertinazmente contradizem à sua natureza divina e à sua missão.

3. Os Católicos não podem aprová-lo

Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se
fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e
louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele
sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos
obsequiosamente o seu império.

Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da
verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e
para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem
tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada.

4. Outro erro. A união de todos os Cristãos. Argumentos falazes

Entretanto, quando se trata de promover a unidade entre todos os cristãos, alguns são enganados
mais facilmente por uma disfarçada aparência do que seja reto.

Acaso não é justo e de acordo com o dever – costumam repetir amiúde – que todos os que invocam
o nome de Cristo se abstenham de recriminações mútuas e sejam finalmente unidos por mútua
caridade?

Acaso alguém ousaria afirmar que ama a Cristo se, na medida de suas forças, não procura realizar
as coisas que Ele desejou, ele que rogou ao Pai para que seus discípulos fossem "UM" (Jo 17, 21)?

Acaso não quis o mesmo Cristo que seus discípulos fossem identificados por este como que sinal e
fossem por ele distinguidos dos demais, a saber, se mutuamente se amassem: "Todos conhecerão
que sois meus discípulos nisto: se tiverdes amor um pelo outro?" (Jo 13, 35).

Oxalá todos os cristão fossem "UM", acrescentam: eles poderiam repelir muito melhor a peste da
impiedade que, cada dia mais, se alastra e se expande, e se ordena ao enfraquecimento do
Evangelho.
5. Debaixo desses argumentos se oculta um erro gravíssimo

Os chamados "pancristãos" espalham e insuflam estas e outras coisas da mesma espécie. E eles
estão tão longe de serem poucos e raros mas, ao contrário, cresceram em fileiras compactas e
uniram-se em sociedades largamente difundidas, as quais, embora sobre coisas de fé cada um esteja
imbuído de uma doutrina diferente, são, as mais das vezes, dirigidas por acatólicos.

Esta iniciativa é promovida de modo tão ativo que, de muitos modos, consegue para si a adesão dos
cidadão e arrebata e alicia os espíritos, mesmo de muitos católicos, pela esperança de realizar uma
união que parecia de acordo com os desejos da Santa Mãe, a Igreja, para Quem, realmente, nada é
tão antigo quanto o reconvocar e o reconduzir os filhos desviados para o seu grêmio.

Na verdade, sob os atrativos e os afagos destas palavras oculta-se um gravíssimo erro pelo qual são
totalmente destruídos os fundamentos da fé.

6. A verdadeira norma nesta matéria

Advertidos, pois, pela consciência do dever apostólico, para que não permitamos que o rebanho do
Senhor seja envolvido pela nocividade destas falácias, apelamos, veneráveis irmãos, para o vosso
empenho na precaução contra este mal. Confiamos que, pelas palavras e escritos de cada um de vós,
poderemos atingir mais facilmente o povo, e que os princípios e argumentos, que a seguir
proporemos, sejam entendidos por ele pois, por meio deles, os católicos devem saber o que devem
pensar e praticar, dado que se trata de iniciativas que dizem respeitos a eles, para unir de qualquer
maneira em um só corpo os que se denominam cristãos.

7. Só uma religião pode ser verdadeira: A revelada por Deus

Fomos criados por Deus, Criador de todas as coisas, para este fim: conhecê-lO e serví-lO. O nosso
Criador possui, portanto, pleno direito de ser servido.

Por certo, poderia Deus ter estabelecido apenas uma lei da natureza para o governo do homem. Ele,
ao criá-lo, gravou-a em seu espírito e poderia portanto, a partir daí, governar os seus novos atos pela
providência ordinária dessa mesma lei. Mas, preferiu dar preceitos aos quais nós obedecêssemos e,
no decurso dos tempos, desde os começos do gênero humano até a vinda e a pregação de Jesus
Cristo, Ele próprio ensinou ao homem, naturalmente dotado de razão, os deveres que dele seriam
exigidos para com o Criador: "Em muitos lugares e de muitos modos, antigamente, falou Deus aos
nossos pais pelos profetas; ultimamente, nestes dias, falou-nos por seu Filho" (Heb 1,1 Seg).

Está, portanto, claro que a religião verdadeira não pode ser outra senão a que se funda na palavra
revelada de Deus; começando a ser feita desde o princípio, essa revelação prosseguiu sob a Lei
Antiga e o próprio Cristo completou-a sob a Nova Lei.

Portanto, se Deus falou – e comprova-se pela fé histórica Ter ele realmente falado – não há quem
não veja ser dever do homem acreditas, de modo absoluto, em deus que se revela e obedecer
integralmente a Deus que impera. Mas, para a glória de Deus e para a nossa salvação, em relação a
uma coisa e outra, o Filho Unigênito de Deus instituiu na terra a sua Igreja.

8. A única religião revelada é a Igreja Católica

Acreditamos, pois, que os que afirma serem cristão, não possam fazê-lo sem crer que uma Igreja, e
uma só, foi fundada por Cristo. Mas, se se indaga, além disso, qual deva ser ela pela vontade do seu
Autor, já não estão todos em consenso.
Assim, por exemplo, muitíssimos destes negam a necessidade da Igreja de Cristo ser visível e
perceptível, pelo menos na medida em que deva aparecer como um corpo único de fiéis, concordes
em uma só e mesma doutrina, sob um só magistério e um só regime. Mas, pelo contrário, julgam
que a Igreja perceptível e visível é uma Federação de várias comunidades cristãs, embora aderentes,
cada uma delas, a doutrinas opostas entre si.

Entretanto, cristo Senhor instituiu a sua Igreja como uma sociedade perfeita de natureza externa e
perceptível pelos sentidos, a qual, nos tempos futuros, prosseguiria a obra da reparação do gênero
humano pela regência de uma só cabeça (Mt 16, 18 seg.; Lc 22, 32; Jo 21, 15-17), pelo magistério
de uma voz viva (Mc 16,15) e pela dispensação dos sacramentos, fontes da graça celeste (Jo 3, 5;
6,48-50; 20,22 seg.; cf. Mt 18, 18; etc.). Por esse motivo, por comparações afirmou-a semelhante a
um reino (Mt, 13), a uma casa (Mt 16, 18), a um redil de ovelhas (Jo 10, 16) e a um rebanho (Jo 21,
15-17).

Esta Igreja, fundada de modo tão admirável, ao Lhe serem retirados o seu Fundador e os Apóstolos
que por primeiro a propagaram, em razão da morte deles, não poderia cessar de existir e ser extinta,
uma vez que Ela era aquela a quem, sem nenhuma discriminação quanto a lugares e a tempos, fora
dado o preceito de conduzir todos os homens à salvação eterna: "Ide, pois, ensinai a todos os povos"
(Mt 28, 19).

Acaso faltaria à Igreja algo quanto à virtude e eficácia no cumprimento perene desse múnus, quando
o próprio Cristo solenemente prometeu estar sempre presente a ela: "Eis que Eu estou convosco,
todos os dias, até a consumação dos séculos?" (Mt 28, 20).

Deste modo, não pode ocorrer que a Igreja de Cristo não exista hoje e em todo o tempo, e também
que Ela não exista hoje e em todo o tempo, e também que Ela não exista como inteiramente a
mesma que existiu à época dos Apóstolos. A não ser que desejemos afirmar que: Cristo Senhor ou
não cumpriu o que propôs ou que errou ao afirmar que as portas do inferno jamais prevaleceriam
contra Ela (Mt 16,18).

9. Um erro capital do movimento ecumêmico na pretendida união das Igrejas cristãs

Ocorre-nos dever esclarecer e afastar aqui certa opinião falsa, da qual parece depender toda esta
questão e proceder essa múltipla ação e conspiração dos acatólicos que, como dissemos, trabalham
pela união das igrejas cristãs.

Os autores desta opinião acostumaram-se a citar, quase que indefinidamente, a Cristo dizendo:
"Para que todos sejam um"... "Haverá um só rebanho e um só Pastos"(Jo 27,21; 10,16). Fazem-no
todavia de modo que, por essas palavras, queriam significar um desejo e uma prece de cristo ainda
carente de seu efeito.

Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase
nunca existiu até hoje e nem hoje existe; que ela pode, sem dúvida, ser desejada e talvez realizar-se
alguma vez, por uma inclinação comum das vontades; mas que, entrementes, deve existir apenas
uma fictícia unidade.

Acrescentam que a Igreja é, por si mesma, por natureza, dividida em partes, isto é, que ela consta de
muitas igreja ou comunidades particulares, as quais, ainda separadas, embora possuam alguns
capítulos comuns de doutrina, discordam todavia nos demais. Que cada uma delas possui os
mesmos direitos, que, no máximo, a Igreja foi única e una, da época apostólica até os primeiros
concílios ecumênicos.
Assim, dizem, é necessários colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiquíssimas variedade
de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas,
elaborar e propor uma certa lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conheçam e se
sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um certo pacto,
existiria já a condição para que os progressos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo
sólido e frutuoso.

Estas são, Veneráveis Irmãos, as afirmações comuns.

Existem, contudo, os que estabelecem e concedem que o chamado Protestantismo, de modo


bastante inconsiderado, deixou de lado certos capítulos da fé e alguns ritos do culto exterior, sem
dúvida gratos e úteis, que, pelo contrário, a Igreja Romana ainda conserva.

Mas, de imediato, acrescentam que esta mesma Igreja também agiu mal, corrompendo a religião
primitiva por algumas doutrinas alheias e repugnantes ao Evangelho, propondo acréscimos para
serem cridos: enumeram como o principal entre estes o que versa sobre o Primado de Jurisdição
atribuído a Pedro e a seus Sucessores na Sé Romana.

Entre os que assim pensam, embora não sejam muitos, estão os que indulgentemente atribuem ao
Pontífice Romano um primado de honra ou uma certa jurisdição e poder que, entretanto, julgam
procedente não do direito divino, mas de certo consenso dos fiéis. Chegam outros ao ponto de, por
seus conselhos, que diríeis serem furta-cores, quererem presidir o próprio Pontífice.

E se é possível encontrar muitos acatólicos pregando à boca cheia a união fraterna em Jesus Cristo,
entretanto não encontrareis a nenhum deles em cujos pensamentos esteja a submissão e a obediência
ao Vigário de Jesus Cristo enquanto docente ou enquanto governante.

Afirmam eles que tratariam de bom grado com a Igreja Romana, mas com igualdade de direitos,
isto é, iguais com um igual. Mas, se pudessem fazê-lo, não parece existir dúvida de que agiriam
com a intenção de que, por um pacto que talvez se ajustasse, não fossem coagidos a afastarem-se
daquelas opiniões que são a causa pela qual ainda vagueiem e errem fora do único aprisco de Cristo.

10. A Igreja Católica não pode participar de semelhantes reuniões

Assim sendo, é manifestamente claro que a Santa Sé, não pode, de modo algum, participar de suas
assembléias e que, aos católicos, de nenhum modo é lícito aprovar ou contribuir para estas
iniciativas: se o fizerem concederão autoridade a uma falsa religião cristã, sobremaneira alheia à
única Igreja de Cristo.

11. A verdade revelada não admite transações

Acaso poderemos tolerar – o que seria bastante iníquo-, que a verdade e, em especial a revelada,
seja diminuída através de pactuações?

No caso presente, trata-se da verdade revelada que deve ser defendida.

Se Jesus Cristo enviou os Apóstolos a todo o mundo, a todos os povos que deviam ser instruídos na
fé evangélica e, para que não errassem em nada, quis que, anteriormente, lhes fosse ensinada toda a
verdade pelo Espírito Santo, acaso esta doutrina dos Apóstolos faltou inteiramente ou foi alguma
vez perturbada na Igreja em que o próprio Deus está presente como regente e guardião?
Se o nosso Redentor promulgou claramente o seu Evangelho não apenas para os tempos
apostólicos, mas também para pertencer às futuras épocas, o objeto da fé pode tornar-se de tal modo
obscuro e incerto que hoje seja necessários tolerar opiniões pelo menos contrárias entre si?

Se isto fosse verdade, dever-se-ia igualmente dizer que o Espírito Santo que desceu sobre os
Apóstolos, que a perpétua permanência dele na Igreja e também que a própria pregação de Cristo já
perderam, desde muitos séculos, toda a eficácia e utilidade: afirmar isto é, sem dúvida, blasfemo.

12. A Igreja Católica: depositária infalível da verdade

Quando o Filho unigênito de Deus ordenou a seus enviados que ensinassem a todos os povos,
vinculou então todos os homens pelo dever de crer nas coisas que lhes fossem anunciadas pela
"testemunha pré-ordenadas por Deus" (At 10, 41). Entretanto, um e outro preceito de Cristo, o de
ensinar e o de crer na consecução da salvação eterna, que não podem deixar de ser cumpridos, não
poderiam ser entendidos a não ser que a Igreja proponha de modo íntegro e claro a doutrina
evangélica e que, ao propô-la, seja imune a qualquer perigo de errar.

Afastam-se igualmente do caminho os que julgam que o depósito da verdade existe realmente na
terra, mas que é necessário um trabalho difícil, com tão longos estudos e disputas para encontrá-lo e
possuí-lo que a vida dos homens seja apenas suficiente para isso, com se Deus benigníssimo tivesse
falado pelos profetas e pelo seu Unigênito para que apenas uns poucos, e estes mesmos já
avançados em idade, aprendessem perfeitamente as coisas que por eles revelou, e não para que
preceituasse uma doutrina de fé e de costumes pela qual, em todo o decurso de sua vida mortal, o
homem fosse regido.

13. Sem fé, não há verdadeira caridade

Estes pancristãos, que empenham o seu espírito na união das igrejas, pareceriam seguir, por certo, o
nobilíssimo conselho da caridade que deve ser promovida entre os cristãos. Mas, dado que a
caridade se desvia em detrimento da fé, o que pode ser feito?

Ninguém ignora por certo que o próprio João, o Apóstolo da Caridade, que em seu Evangelho
parece ter manifestado os segredos do Coração Sacratíssimo de Jesus e que permanentemente
costumavas inculcar à memória dos seus o mandamento novo: "Amai-vos uns aos outros", vetou
inteiramente até mesmo manter relações com os que professavam de forma não íntegra e incorrupta
a doutrina de Cristo: "Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem
digais a ele uma saudação" (2 Jo 10).

Pelo que, como a caridade se apóia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, então é
necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade de fé como no vínculo principal.

14. União Irracional

Assim, de que vale excogitar no espírito uma certa Federação cristã, na qual ao ingressar ou então
quando se tratar do objeto da fé, cada qual retenha a sua maneira de pensar e de sentir, embora ela
seja repugnante às opiniões dos outros?

E de que modo pedirmos que participem de um só e mesmo Conselho homens que se distanciam
por sentenças contrárias como, por exemplo, os que afirmam e os que negam ser a sagrada Tradição
uma fonte genuína da Revelação Divina?
Como os que adoram a Cristo realmente presente na Santíssima Eucaristia, por aquela admirável
conversão do pão e do vinho que se chama transubstanciação e os que afirmam que, somente pela fé
ou por sinal e em virtude do Sacramento, aí está presente o Corpo de Cristo?

Como os que reconhecem nela a natureza do Sacrifício e a do Sacramento e os que dizem que ela
não é senão a memória ou comemoração da Ceia do Senhor?

Como os que crêem ser bom e útil invocar súplice os Santos que reinam junto de Cristo - Maria,
Mãe de Deus, em primeiro lugar - e tributar veneração às suas imagens e os que contestam que não
pode ser admitido semelhante culto, por ser contrário à honra de Jesus Cristo, "único mediador de
Deus e dos homens"? (1 Tim 2, 5).

15. Princípio até o indiferentismo e o modernismo

Não sabemos, pois, como por essa grande divergência de opiniões seja defendida o caminho para a
realização da unidade da Igreja: ela não pode resultar senão de um só magistério, de uma só lei de
crer, de uma só fé entre os cristãos. Sabemos, entretanto, gerar-se facilmente daí um degrau para a
negligência com a religião ou o Indiferentismo e para o denominado Modernismo. os que foram
miseravelmente infeccionados por ele defendem que não é absoluta, mas relativa a verdade
revelada, isto é, de acordo com as múltiplas necessidades dos tempos e dos lugares e com as várias
inclinações dos espíritos, uma vez que ela não estaria limitada por uma revelação imutável, mas
seria tal que se adaptaria à vida dos homens.

Além disso, com relação às coisas que devem ser cridas, não é lícito utilizar-se, de modo algum,
daquela discriminação que houveram por bem introduzir entre o que denominam capítulos
fundamentais e capítulos não fundamentais da fé, como se uns devessem ser recebidos por todos, e,
com relação aos outros, pudesse ser permitido o assentimento livre dos fiéis: a Virtude sobrenatural
da fé possui como causa formal a autoridade de Deus revelante e não pode sofrer nenhuma distinção
como esta.

Por isto, todos os que são verdadeiramente de Cristo consagram, por exemplo, ao mistério da
Augusta Trindade a mesma fé que possuem em relação dogma da Mãe de Deus concebida sem a
mancha original e não possuem igualmente uma fé diferente com relação à Encarnação do Senhor e
ao magistério infalível do Pontífice romano, no sentido definido pelo Concílio Ecumênico Vaticano.

Nem se pode admitir que as verdade que a Igreja, através de solenes decretos, sancionou e definiu
em outras épocas, pelo menos as proximamente superiores, não sejam, por este motivo, igualmente
certas e nem devam ser igualmente acreditadas: acaso não foram todas elas reveladas por Deus?

Pois, o Magistério da Igreja, por decisão divina, foi constituído na terra para que as doutrinas
reveladas não só permanecessem incólumes perpetuamente, mas também para que fossem levadas
ao conhecimento dos homens de um modo mais fácil e seguro. E, embora seja ele diariamente
exercido pelo Pontífice Romano e pelos Bispos em união com ele, todavia ele se completa pela
tarefa de agir, no momento oportuno, definindo algo por meio de solenes ritos e decretos, se alguma
vez for necessário opor-se aos erros ou impugnações dos hereges de um modo mais eficiente ou
imprimir nas mentes dos fiéis capítulos da doutrina sagrada expostos de modo mais claro e
pormenorizado.

Por este uso extraordinário do Magistério nenhuma invenção é introduzida e nenhuma coisa nova é
acrescentada à soma de verdades que estando contidas, pelo menos implicitamente, no depósito da
revelação, foram divinamente entregues à Igreja, mas são declaradas coisas que, para muitos talvez,
ainda poderiam parecer obscuras, ou são estabelecidas coisas que devem ser mantidas sobre a fé e
que antes eram por alguns colocados sob controvérsia.

16. A única maneira de unir todos os cristãos

Assim, Veneráveis Irmãos, é clara a razão pela qual esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus
estarem presentes às reuniões de acatólicos por quanto não é lícito promover a união dos cristãos de
outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado
que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela.

Dizemos à única verdadeira Igreja de Cristo: sem dúvida ela é a todos manifesta e, pela vontade de
seu Autor, Ela perpetuamente permanecerá tal qual Ele próprio A instituiu para a salvação de todos.
Pois, a mística Esposa de Cristo jamais se contaminou com o decurso dos séculos nem, em época
alguma, poderá ser contaminada, como Cipriano o atesta: "A Esposa de Cristo não pode ser
adulterada: ela é incorrupta e pudica. Ela conhece uma só casa e guarda com casto pudor a
santidade de um só cubículo" (De Cath. Ecclessiae unitate, 6).

E o mesmo santo Mártir, com direito e com razão, grandemente se admirava de que pudesse alguém
acreditar que "esta unidade que procede da firmeza de Deus pudesse cindir-se e ser quebrada na
Igreja pelo divórcio de vontades em conflito" (ibidem).

Portanto, dado que o Corpo Místico de Cristo, isto é, a Igreja, é um só (1 Cor 12, 12), compacto e
conexo (Ef. 4, 15), à semelhança do seu corpo físico, seria inépcia e estultície afirmar alguém que
ele pode constar de membros desunidos e separados: quem pois não estiver unido com ele, não é
membro seu, nem está unido à cabeça, Cristo (Cfr. Ef. 5, 30; 1, 22).

17. A obediência ao Romano Pontífice

Mas, ninguém está nesta única Igreja de Cristo e ninguém nela permanece a não ser que,
obedecendo, reconheça e acate o poder de Pedro e de seus sucessores legítimos.

Por acaso os antepassados dos enredados pelos erros de Fócio e dos reformadores não estiveram
unidos ao Bispo de Roma, ao Pastor supremo das almas?

Ai! Os filhos afastaram-se da casa paterna; todavia ela não foi feita em pedaços e nem foi destruída
por isso, uma vez que estava arrimada na perene proteção de Deus. Retornem, pois, eles ao Pai
comum que, esquecido das injúrias antes gravadas a fogo contra a Sé Apostólica, recebê-los-á com
máximo amor.

Pois se, como repetem freqüentemente, desejam unir-se Conosco e com os nossos, por que não se
apressam em entrar na Igreja, "Mãe e Mestra de todos os fiéis de Cristo" (Conc. Later 4, c.5)?

Escutem a Lactâncio chamado amiúde: "Só... a Igreja Católica é a que retém o verdadeiro culto.
Aqui está a fonte da verdade, este é o domicílio da Fé, este é o templo de Deus: se alguém não
entrar por ele ou se alguém dele sair, está fora da esperança da vida e salvação. é necessário que
ninguém se afague a si mesmo com a pertinácia nas disputas, pois trata-se da vida e da salvação
que, a não ser que seja provida de um modo cauteloso e diligente, estará perdida e extinta" (Divin.
Inst. 4, 30, 11-12).

18. Apelo às seitas dissidentes


Aproximem-se, portanto, os filhos dissidentes da Sé Apostólica, estabelecida nesta cidade que os
Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo consagraram com o seu sangue; daquela Sede, dizemos, que
é "raiz e matriz da Igreja Católica" (S. Cypr., ep. 48 ad Cornelium, 3), não com o objetivo e a
esperança de que "a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade" (1 Tim 3, 15) renuncie à
integridade da fé e tolere os próprios erros deles, mas, pelo contrário, para que se entreguem a seu
magistério e regime.

Oxalá auspiciosamente ocorra para Nós isto que não ocorreu ainda para tantos dos nossos muitos
Predecessores, a fim de que possamos abraçar com espírito fraterno os filhos que nos é doloroso
estejam de Nós separados por uma perniciosa dissensão.

Prece a Nosso Senhor e a Nossa Senhora. Oxalá Deus, Senhor nosso, que "quer salvar todos os
homens e que eles venham ao conhecimento da verdade"(1 Tim. 2, 4) nos ouça suplicando
fortemente para que Ele se digne chamar à unidade da Igreja a todos os errantes.

Nesta questão que é, sem dúvida, gravíssima, utilizamos e queremos que seja utilizada como
intercessora a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe da graça divina, vencedora de todas as heresias
e auxílio dos cristãos, para que Ela peça, para o quanto antes, a chegada daquele dia tão desejado
por nós, em que todos os homens escutem a voz do seu Filho divino, "conservando a unidade de
espírito em um vínculo de paz" (Ef. 4, 3).

19. Conclusão e Bênção Apostólica

Compreendeis, Veneráveis Irmãos, o quanto desejamos isto e queremos que o saibam os nossos
filhos, não só todos os do mundo católico, mas também os que de Nós dissentem. Estes, se
implorarem em prece humilde as luzes do céu, por certo reconhecerão a única verdadeira Igreja de
Jesus Cristo e, por fim, nEla tendo entrado, estarão unidos conosco em perfeita caridade.

No aguardo deste fato, como auspício dos dons de Deus e como testemunho de nossa paterna
benevolência, concedemos muito cordialmente a vós, Veneráveis Irmãos, e a vosso clero e povo, a
bênção apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia seis de janeiro, no ano de 1928, festa da Epifania de
Jesus Cristo, Nosso Senhor, sexto de nosso Pontificado.

PIO PP. XI.

© Copyright - Libreria Editrice Vaticana

CARTA ENCÍCLICA
FIDES ET RATIO
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
AOS BISPOS DA IGREJA CATÓLICA
SOBRE AS RELAÇÕES
ENTRE FÉ E RAZÃO

Venerados Irmãos no Episcopado,


saúde e Bênção Apostólica!

A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se
eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de
conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-
O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8-9; 6362, 2-3;
Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).

INTRODUÇÃO

«CONHECE-TE A TI MESMO »

1. Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um caminho que, ao longo dos séculos,
levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. É
um caminho que se realizou — nem podia ser de outro modo — no âmbito da autoconsciência
pessoal: quanto mais o homem conhece a realidade e o mundo, tanto mais se conhece a si mesmo na
sua unicidade, ao mesmo tempo que nele se torna cada vez mais premente a questão do sentido das
coisas e da sua própria existência. O que chega a ser objecto do nosso conhecimento, torna-se por
isso mesmo parte da nossa vida. A recomendação conhece-te a ti mesmo estava esculpida no dintel
do templo de Delfos, para testemunhar uma verdade basilar que deve ser assumida como regra
mínima de todo o homem que deseje distinguir-se, no meio da criação inteira, pela sua qualificação
de « homem », ou seja, enquanto «conhecedor de si mesmo ».

Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram
simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as questões
fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu? Donde venho e
para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas
encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá;
achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de Buda; e
assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos
tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que têm a sua fonte comum naquela
exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas
depende efectivamente a orientação que se imprime à existência.

2. A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no
Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelas
estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é « o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14, 6).
De entre os vários serviços que ela deve oferecer à humanidade, há um cuja responsabilidade lhe
cabe de modo absolutamente peculiar: é a diaconia da verdade. [ 1] Por um lado, esta missão torna
a comunidade crente participante do esforço comum que a humanidade realiza para alcançar a
verdade, [ 2] e, por outro, obriga-a a empenhar-se no anúncio das certezas adquiridas, ciente todavia
de que cada verdade alcançada é apenas mais uma etapa rumo àquela verdade plena que se há-de
manifestar na última revelação de Deus: « Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa,
mas então veremos face a face. Hoje conheço de maneira imperfeita, então conhecerei exatamente »
(1 Cor 13, 12).
3. Variados são os recursos que o homem possui para progredir no conhecimento da verdade,
tornando assim cada vez mais humana a sua existência. De entre eles sobressai a filosofia, cujo
contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta: constitui, pois,
uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia
grega, « amor à sabedoria ». Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se
quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela
demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria
natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da
sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que
evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.

A grande incidência que a filosofia teve na formação e desenvolvimento das culturas do Ocidente
não deve fazer-nos esquecer a influência que a mesma exerceu também nos modos de conceber a
existência presentes no Oriente. Na realidade, cada povo possui a sua própria sabedoria natural,
que tende, como autêntica riqueza das culturas, a exprimir-se e a maturar em formas
propriamente filosóficas. Prova da verdade de tudo isto é a existência duma forma basilar de
conhecimento filosófico, que perdura até aos nossos dias e que se pode constatar nos próprios
postulados em que as várias legislações nacionais e internacionais se inspiram para regular a vida
social.

4. Deve-se assinalar, porém, que, por detrás dum único termo, se escondem significados diferentes.
Por isso, é necessária uma explicitação preliminar. Impelido pelo desejo de descobrir a verdade
última da existência, o homem procura adquirir aqueles conhecimentos universais que lhe permitam
uma melhor compreensão de si mesmo e progredir na sua realização. Os conhecimentos
fundamentais nascem da maravilha que nele suscita a contemplação da criação: o ser humano
enche-se de encanto ao descobrir-se incluído no mundo e relacionado com outros seres semelhantes,
com quem partilha o destino. Parte daqui o caminho que o levará, depois, à descoberta de
horizontes de conhecimentos sempre novos. Sem tal assombro, o homem tornar-se-ia repetitivo
e, pouco a pouco, incapaz de uma existência verdadeiramente pessoal.

A capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite elaborar, através da actividade


filosófica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir, com coerência lógica entre as
afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um conhecimento sistemático. Graças a tal processo,
alcançaram-se, em contextos culturais diversos e em diferentes épocas históricas, resultados que
levaram à elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas
vezes a tentação de identificar uma única corrente com o pensamento filosófico inteiro. Mas,
nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa «soberba filosófica », que pretende arvorar em
leitura universal a própria perspectiva e visão imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico,
sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a
prioridade do pensar filosófico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.

Neste sentido, é possível, não obstante a mudança dos tempos e os progressos do saber, reconhecer
um núcleo de conhecimentos filosóficos, cuja presença é constante na história do pensamento.
Pense-se, só como exemplo, nos princípios de não-contradição, finalidade, causalidade, e ainda na
concepção da pessoa como sujeito livre e inteligente, e na sua capacidade de conhecer Deus, a
verdade, o bem; pense-se, além disso, em algumas normas morais fundamentais que geralmente são
aceitas por todos. Estes e outros temas indicam que, para além das correntes de pensamento, existe
um conjunto de conhecimentos, nos quais é possível ver uma espécie de patrimônio espiritual da
humanidade. É como se nos encontrássemos perante uma filosofia implícita, em virtude da qual
cada um sente que possui estes princípios, embora de forma genérica e não reflectida. Estes
conhecimentos, precisamente porque partilhados em certa medida por todos, deveriam constituir
uma espécie de ponto de referência para as diversas escolas filosóficas. Quando a razão consegue
intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correta e coerentemente
conclusões de ordem lógica e deontológica, então pode-se considerar uma razão reta, ou, como era
chamada pelos antigos, orthòs logos, recta ratio.

5. A Igreja, por sua vez, não pode deixar de apreciar o esforço da razão na consecução de objetivos
que tornem cada vez mais digna a existência pessoal. Na verdade, ela vê, na filosofia, o caminho
para conhecer verdades fundamentais relativas à existência do homem. Ao mesmo tempo, considera
a filosofia uma ajuda indispensável para aprofundar a compreensão da fé e comunicar a verdade do
Evangelho a quantos não a conhecem ainda.

Na sequência de iniciativas análogas dos meus Predecessores, desejo também eu debruçar-me sobre
esta atividade peculiar da razão. Faço-o movido pela constatação, sobretudo em nossos dias, de que
a busca da verdade última aparece muitas vezes ofuscada. A filosofia moderna possui, sem dúvida,
o grande mérito de ter concentrado a sua atenção sobre o homem. Partindo daí, uma razão cheia de
interrogativos levou por diante o seu desejo de conhecer sempre mais ampla e profundamente.
Desta forma, foram construídos sistemas de pensamento complexos, que deram os seus frutos nos
diversos âmbitos do conhecimento, favorecendo o progresso da cultura e da história. A
antropologia, a lógica, as ciências da natureza, a história, a linguística, de algum modo todo o
universo do saber foi abarcado. Todavia, os resultados positivos alcançados não devem levar a
transcurar o facto de que essa mesma razão, porque ocupada a investigar de maneira unilateral o
homem como objecto, parece ter-se esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também
para uma realidade que o transcende. Sem referência a esta, cada um fica ao sabor do livre arbítrio,
e a sua condição de pessoa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados
essencialmente sobre o dado experimental, na errada convicção de que tudo deve ser dominado pela
técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a
verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o
olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar
a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez
de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas
limitações e condicionalismos.

Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a
perder-se nas areias movediças dum cepticismo geral. E, mais recentemente, ganharam relevo
diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava
certo de ter alcançado. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido,
fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais
difusos, no contexto atual, de desconfiança na verdade. E esta ressalva vale também para certas
concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à verdade o seu carácter exclusivo, ao
partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo
contraditórias entre si. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião. Dá a impressão de um
movimento ondulatório: enquanto, por um lado, a razão filosófica conseguiu avançar pela estrada
que a torna cada vez mais atenta à existência humana e às suas formas de expressão, por outro tende
a desenvolver considerações existenciais, hermenêuticas ou linguísticas, que prescindem da questão
radical relativa à verdade da vida pessoal, do ser e de Deus. Como consequência, despontaram, não
só em alguns filósofos mas no homem contemporâneo em geral, atitudes de desconfiança
generalizada quanto aos grandes recursos cognoscitivos do ser humano. Com falsa modéstia,
contentam-se de verdades parciais e provisórias, deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre
o sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social. Em suma, esmoreceu a
esperança de se poder receber da filosofia respostas definitivas a tais questões.

6. Credenciada pelo facto de ser depositária da revelação de Jesus Cristo, a Igreja deseja reafirmar a
necessidade da reflexão sobre a verdade. Foi por este motivo que decidi dirigir-me a vós, venerados
Irmãos no Episcopado, com quem partilho a missão de anunciar « abertamente a verdade » (2 Cor
4, 2), e dirigir-me também aos teólogos e filósofos a quem compete o dever de investigar os
diversos aspectos da verdade, e ainda a quantos andam à procura duma resposta, para comunicar
algumas reflexões sobre o caminho que conduz à verdadeira sabedoria, a fim de que todo aquele
que tiver no coração o amor por ela possa tomar a estrada certa para a alcançar, e nela encontrar
repouso para a sua fadiga e também satisfação espiritual.

Tomo esta iniciativa impelido, antes de mais, pela certeza de que os Bispos, como assinala o
Concílio Vaticano II, são « testemunhas da verdade divina e católica » [3]. Por isso, testemunhar a
verdade é um encargo que nos foi confiado a nós, os Bispos; não podemos renunciar a ele, sem
faltar ao ministério que recebemos. Reafirmando a verdade da fé, podemos restituir ao homem de
hoje uma genuína confiança nas suas capacidades cognoscitivas e oferecer à filosofia um estímulo
para poder recuperar e promover a sua plena dignidade.

Há um segundo motivo que me induz a escrever estas reflexões Na carta encíclica Veritatis
splendor, chamei a atenção para « algumas verdades fundamentais da doutrina católica que, no
contexto atual, correm o risco de serem deformadas ou negadas ». [ 4] Com este novo documento,
desejo continuar aquela reflexão, concentrando a atenção precisamente sobre o tema da verdade e
sobre o seu fundamento em relação com a fé. De facto, não se pode negar que este período, de
mudanças rápidas e complexas, deixa sobretudo os jovens, a quem pertence e de quem depende o
futuro, na sensação de estarem privados de pontos de referência autênticos. A necessidade de um
alicerce sobre o qual construir a existência pessoal e social faz-se sentir de maneira premente,
principalmente quando se é obrigado a constatar o carácter fragmentário de propostas que elevam o
efêmero ao nível de valor, iludindo assim a possibilidade de se alcançar o verdadeiro sentido da
existência. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até à borda do precipício, sem saber o que
os espera. Isto depende também do facto de, às vezes, quem era chamado por vocação a exprimir
em formas culturais o fruto da sua reflexão, ter desviado o olhar da verdade, preferindo o sucesso
imediato ao esforço duma paciente investigação sobre aquilo que merece ser vivido. A filosofia, que
tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura através do apelo perene à busca
da verdade, deve recuperar vigorosamente a sua vocação originária. É por isso que senti a
necessidade e o dever de intervir sobre este tema, para que, no limiar do terceiro milênio da era
cristã, a humanidade tome consciência mais clara dos grandes recursos que lhe foram concedidos, e
se empenhe com renovada coragem no cumprimento do plano de salvação, no qual está inserida a
sua história.

CAPÍTULO I
A REVELAÇÃO DA SABEDORIA DE DEUS

1. Jesus, revelador do Pai

7. Na base de toda a reflexão feita pela Igreja, está a consciência de ser depositária duma
mensagem, que tem a sua origem no próprio Deus (cf. 2 Cor 4, 1-2). O conhecimento que ela
propõe ao homem, não provém de uma reflexão sua, nem sequer da mais alta, mas de ter acolhido
na fé a palavra de Deus (cf. 1 Tes 2, 13). Na origem do nosso ser crentes existe um encontro, único
no seu género, que assinala a abertura de um mistério escondido durante tantos séculos (cf. 1 Cor 2,
7; Rom 16, 25-26), mas agora revelado: « Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-Se a
Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1, 9), segundo o qual os homens, por
meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da
natureza divina ». [5] Trata-se de uma iniciativa completamente gratuita, que parte de Deus e vem
ao encontro da humanidade para a salvar. Enquanto fonte de amor, Deus deseja dar-Se a conhecer, e
o conhecimento que o homem adquire d'Ele leva à plenitude qualquer outro conhecimento
verdadeiro que a sua mente seja capaz de alcançar sobre o sentido da própria existência.

8. Retomando quase literalmente a doutrina presente na constituição Dei Filius do Concílio


Vaticano I e tendo em conta os princípios propostos pelo Concílio de Trento, a constituição Dei
Verbum do Vaticano II continuou aquele caminho plurissecular de compreensão da fé, reflectindo
sobre a Revelação à luz da doutrina bíblica e de toda a tradição patrística. No primeiro Concílio do
Vaticano, os Padres tinham sublinhado o carácter sobrenatural da revelação de Deus. A crítica
racionalista que então se fazia sentir contra a fé, baseada em teses erradas mas muito difusas,
insistia sobre a negação de qualquer conhecimento que não fosse fruto das capacidades naturais da
razão. Isto obrigara o Concílio a reafirmar vigorosamente que, além do conhecimento da razão
humana, por sua natureza, capaz de chegar ao Criador, existe um conhecimento que é peculiar da fé.
Este conhecimento exprime uma verdade que se funda precisamente no facto de Deus que Se
revela, e é uma verdade certíssima porque Deus não Se engana nem quer enganar. [6]

9. Por isso, o Concílio Vaticano I ensina que a verdade alcançada pela via da reflexão filosófica e a
verdade da Revelação não se confundem, nem uma torna a outra supérflua: « Existem duas ordens
de conhecimento, diversas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo objecto. Pelo seu
princípio, porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro fazêmo-lo por meio da fé divina;
pelo objecto, porque, além das verdades que a razão natural pode compreender, é-nos proposto ver
os mistérios escondidos em Deus, que só podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto ».
[ 7] A fé, que se fundamenta no testemunho de Deus e conta com a ajuda sobrenatural da graça,
pertence efectivamente a uma ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filosófico. De
facto, este assenta sobre a percepção dos sentidos, sobre a experiência, e move-se apenas com a luz
do intelecto. A filosofia e as ciências situam-se na ordem da razão natural, enquanto a fé, iluminada
e guiada pelo Espírito, reconhece na mensagem da salvação a « plenitude de graça e de verdade »
(cf. Jo 1, 14) que Deus quis revelar na história, de maneira definitiva, por meio do seu Filho Jesus
Cristo (cf. 1 Jo 5, 9; Jo 5, 31-32).

10. No Concílio Vaticano II, os Padres, fixando a atenção sobre Jesus revelador, ilustraram o
carácter salvífico da revelação de Deus na história e exprimiram a sua natureza do seguinte modo: «
Em virtude desta revelação, Deus invisível (cf. Col 1, 15; 1 Tim 1, 17), na riqueza do seu amor, fala
aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14-15) e convive com eles (cf. Bar 3, 38), para os
convidar e admitir à comunhão com Ele. Esta economia da Revelação realiza-se por meio de acções
e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na
história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras;
e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a
verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens manifesta-se-
nos, por esta Revelação, em Cristo, que é simultaneamente o mediador e a plenitude de toda a
revelação ». [ 8]

11. Assim, a revelação de Deus entrou no tempo e na história. Mais, a encarnação de Jesus Cristo
realiza-se na « plenitude dos tempos » (Gal 4, 4). À distância de dois mil anos deste acontecimento,
sinto o dever de reafirmar intensamente que, « no cristianismo, o tempo tem uma importância
fundamental ». [ 9] Com efeito, é nele que tem lugar toda a obra da criação e da salvação, e
sobretudo merece destaque o facto de que, com a encarnação do Filho de Deus, vivemos e
antecipamos desde já aquilo que se seguirá ao fim dos tempos (cf. Heb 1, 2).

A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida insere-se, portanto, no
tempo e na história. Sem dúvida, aquela foi pronunciada uma vez por todas no mistério de Jesus de
Nazaré. Afirma-o, com palavras muito expressivas, a constituição Dei Verbum: « Depois de ter
falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são
os últimos, através de seu Filho (Heb 1, 1-2). Com efeito, enviou o seu Filho, isto é, o Verbo eterno,
que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus
(cf. Jo 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem para os homens, "fala,
portanto, as palavras de Deus" (Jo 3, 34) e consuma a obra de salvação que o Pai Lhe mandou
realizar (cf. Jo 5, 36; 17, 4). Por isso, Ele — vê-l'O a Ele é ver o Pai (cf. Jo 14, 9) —, com toda a
sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo
com a sua morte e gloriosa ressurreição, e enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa
totalmente e confirma com o testemunho divino a Revelação ». [ 10]

Assim, a história constitui um caminho que o Povo de Deus há-de percorrer inteiramente, de tal
modo que a verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à acção
incessante do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o também a constituição Dei Verbum, quando
afirma que « a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade
divina, até que nela se realizem as palavras de Deus ». [ 11]

12. A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a acção de Deus em favor da
humanidade. Ele vem ter connosco, servindo-Se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de
verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos.

A encarnação do Filho de Deus permite ver realizada uma síntese definitiva que a mente humana,
por si mesma, nem sequer poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no
fragmento, Deus assume o rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revelação de Cristo
deixou de estar circunscrita a um restrito âmbito territorial e cultural, abrindo-se a todo o homem e
mulher que a queira acolher como palavra definitivamente válida para dar sentido à existência.
Agora todos têm acesso ao Pai, em Cristo; de facto, com a sua morte e ressurreição, Ele concedeu-
nos a vida divina que o primeiro Adão tinha rejeitado (cf. Rom 5, 12-15). Com esta Revelação, é
oferecida ao homem a verdade última a respeito da própria vida e do destino da história: « Na
realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente »,
afirma a constituição Gaudium et spes. [12] Fora desta perspectiva, o mistério da existência pessoal
permanece um enigma insolúvel. Onde poderia o homem procurar resposta para questões tão
dramáticas como a dor, o sofrimento do inocente e a morte, a não ser na luz que dimana do mistério
da paixão, morte e ressurreição de Cristo?

2. A razão perante o mistério

13. Entretanto, não se pode esquecer que a Revelação permanece envolvida no mistério. Jesus, com
toda a sua vida, revela seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de
Deus; [ 13] e contudo, o conhecimento que possuímos daquele rosto, está marcado sempre pelo
carácter parcial e limitado da nossa compreensão. Somente a fé permite entrar dentro do mistério,
proporcionando uma sua compreensão coerente.

O Concílio ensina que, « a Deus que revela, é devida a obediência da fé ». [ 14] Com esta breve mas
densa afirmação, é indicada uma verdade fundamental do cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar,
que a fé é uma resposta de obediência a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na sua
divindade, transcendência e liberdade suprema. Deus que Se dá a conhecer na autoridade da sua
transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que revela. Pela fé, o
homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa que reconhece plena e
integralmente a verdade de tudo o que foi revelado, porque é o próprio Deus que o garante. Esta
verdade, oferecida ao homem sem que ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicação
interpessoal e impele a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. É por isso que o
acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela Igreja como um momento de
opção fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligência e vontade põem em acção o melhor
da sua natureza espiritual, para consentir que o sujeito realize um acto no pleno exercício da sua
liberdade pessoal. [ 15] Na fé, portanto, não basta a liberdade estar presente, exige-se que entre em
acção. Mais, é a fé que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua própria liberdade. Por
outras palavras, a liberdade não se realiza nas opções contra Deus. Na verdade, como poderia ser
considerado um uso autêntico da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que permite a realização de si
mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua existência; de facto,
nele a liberdade alcança a certeza da verdade e decide viver nela.

Em auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm também os sinais presentes na
Revelação. Estes servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente possa
autonomamente investigar inclusive dentro do mistério. De qualquer modo, se, por um lado, esses
sinais dão maior força à razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistério com os seus
próprios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua
realidade de sinais para apreender o significado ulterior de que eles são portadores. Portanto, já há
neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e da qual esta não pode prescindir
sem destruir o próprio sinal que lhe foi proposto.

Chega-se, assim, ao horizonte sacramental da Revelação e de forma particular ao sinal eucarístico,


onde a união indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a
profundidade do mistério. Na Eucaristia, Cristo está verdadeiramente presente e vivo, actua pelo seu
Espírito, mas, como justamente diz S. Tomás, « nada vês nem compreendes, mas t'o afirma a fé
mais viva, para além das leis da Terra. Sob espécies diferentes, que não passam de sinais, é que está
o dom de Deus ». [ 16] Temos um eco disto mesmo nas seguintes palavras do filósofo Pascal: «
Como Jesus Cristo passou despercebido no meio dos homens, assim a sua verdade permanece, entre
as opiniões comuns, sem diferença exterior. O mesmo se dá com a Eucaristia relativamente ao pão
comum ».[17]

Em resumo, o conhecimento da fé não anula o mistério; torna-o apenas mais evidente e apresenta-o
como um facto essencial para a vida do homem: Cristo Senhor, « na própria revelação do mistério
do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime », [ 18] que
é participar no mistério da vida trinitária de Deus. [ 19]

14. A doutrina do primeiro e segundo Concílio do Vaticano abre um horizonte verdadeiramente


novo também ao saber filosófico. A Revelação coloca dentro da história um ponto de referência de
que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua existência;
mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o mistério de Deus que a mente
não consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na fé. Entre estes dois momentos, a razão
possui o seu espaço peculiar que lhe permite investigar e compreender, sem ser limitada por nada
mais que a sua finitude ante o mistério infinito de Deus.

A Revelação introduz, portanto, na nossa história uma verdade universal e última que leva a mente
do homem a nunca mais se deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espaços do próprio
conhecimento até sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada descurar. Ajuda-
nos, nesta reflexão, uma das inteligências mais fecundas e significativas da história da humanidade,
à qual obrigatoriamente fazem referência a filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra,
Proslogion, o Arcebispo de Cantuária exprime-se assim: « Detendo-me com frequência e atenção a
pensar neste problema, sucedia umas vezes que me parecia estar para agarrar o que buscava, outras
vezes, pelo contrário, furtava-se completamente ao meu pensamento; até que finalmente,
desesperado de o poder achar, decidi deixar de procurar algo que me era impossível encontrar. Mas,
quando quis afastar de mim tal pensamento para que a sua ocupação da minha mente não me
alheasse de outros problemas de que podia tirar algum proveito, foi então que começou a
apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de mim, um dos pobres filhos de Eva, longe
de Deus, o que é que comecei a fazer e o que é que consegui? O que é que visava e a que ponto
cheguei? A que é que aspirava e por que é que suspiro? (...) Ó Senhor, Vós não sois apenas algo
acerca do qual não se pode pensar nada de maior (non solum es quo maius cogitari nequit), mas sois
maior de tudo o que se possa pensar (quiddam maius quam cogitari possit) (...). Se não fôsseis o que
sois, poder-se-ia pensar algo maior do que Vós, mas isso é impossível ». [ 20]

15. A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré, permite a quemquer que seja
perceber o « mistério » da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a
autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência. Aqui, a relação entre
liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do
Senhor: « Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á » (Jo 8, 32).

A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem, que avança por entre os
condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática; é a
última possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto primordial
de amor que teve início com a criação. Ao homem ansioso de conhecer a verdade — se ainda é
capaz de ver para além de si mesmo e levantar os olhos acima dos seus próprios projectos — é-lhe
concedida a possibilidade de recuperar a genuína relação com a sua vida, seguindo a estrada da
verdade. Podem-se aplicar a esta situação as seguintes palavras do Deuteronómio: « A lei que hoje
te imponho não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance. Não está no céu, para que digas:
"Quem subirá por nós ao céu e no-la irá buscar?" Não está tão pouco do outro lado do mar, para que
digas: "Quem atravessará o mar para no-la buscar e no-la fazer ouvir para que a observemos?" Não,
ela está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração; e tu podes cumpri-la » (30, 11-14).
Temos um eco deste texto no famoso pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho: « Noli
foras ire, in te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas ». [ 21]

À luz destas considerações, impõe-se uma primeira conclusão: a verdade que a Revelação nos dá a
conhecer não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo
contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser
acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a presença antecipada na nossa história
daquela visão última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam n'Ele ou O
procuram de coração sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é objecto de estudo quer da
filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos diversos, ambas apontam para aquele «
caminho da vida » (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a fé, tem o seu termo último de chegada na
alegria plena e duradoura da contemplação de Deus Uno e Trino.

CAPÍTULO II
CREDO UT INTELLEGAM

1. « A sabedoria sabe e compreende todas as coisas» (Sab 9, 11)

16. Quão profunda seja a ligação entre o conhecimento da fé e o da razão, já a Sagrada Escritura no-
lo indica com elementos de uma clareza surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros
Sapienciais. O que impressiona na leitura, feita sem preconceitos, dessas páginas da Sagrada
Escritura é o facto de estes textos conterem não apenas a fé de Israel, mas também o tesouro de
civilizações e culturas já desaparecidas. Como se de um desígnio particular se tratasse, o Egipto e a
Mesopotâmia fazem ouvir novamente a sua voz, e alguns traços comuns das culturas do Antigo
Oriente ressurgem nestas páginas ricas de intuições singularmente profundas.
Não é por acaso que o autor sagrado, ao querer descrever o homem sábio, o apresenta como aquele
que ama e busca a verdade: « Feliz o homem que é constante na sabedoria, e que discorre com a sua
inteligência; que repassa no seu coração os caminhos da sabedoria, e que penetra no conhecimento
dos seus segredos; vai atrás dela como quem lhe segue o rasto, e permanece nos seus caminhos;
olha pelas suas janelas, e escuta às suas portas; repousa junto da sua morada, e fixa um pilar nas
suas paredes; levanta a sua tenda junto dela, e estabelece ali agradável morada; coloca os seus filhos
debaixo da sua protecção, e ele mesmo morará debaixo dos seus ramos; à sua sombra estará
defendido do calor, e repousará na sua glória » (Sir 14, 20-27).

Para o autor inspirado, como se vê, o desejo de conhecer é uma característica comum a todos os
homens. Graças à inteligência, é dada a todos, crentes e descrentes, a possibilidade de « saciarem-
se nas águas profundas » do conhecimento (cf. Prov 20, 5). Seguramente, no Antigo Israel, o
conhecimento d o mundo e dos seus fenómenos não se realizava pela via da abstracção, como já o
fazia o filósofo jónico ou o sábio egípcio. E menos ainda podia o bom israelita conceber o
conhecimento nos parâmetros próprios da época moderna, mais propensa à subdivisão do saber.
Apesar disso, o mundo bíblico fez confluir, para o grande mar da teoria do conhecimento, o seu
contributo original.

Qual? O carácter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que existe uma unidade profunda
e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé. O mundo e o que nele acontece, assim como a
história e as diversas vicissitudes da nação são realidades observadas, analisadas e julgadas com os
meios próprios da razão, mas sem deixar a fé alheia a este processo. Esta não intervém para
humilhar a autonomia da razão, nem para reduzir o seu espaço de ação, mas apenas para fazer
compreender ao homem que, em tais acontecimentos, Se torna visível e atua o Deus de Israel.
Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os factos da história, sem ao mesmo
tempo professar a fé em Deus que neles atua. A fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para
descobrir, no curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência. A tal propósito, é
significativa uma expressão do livro dos Provérbios: « A mente do homem dispõe o seu caminho,
mas é o Senhor quem dirige os seus passos » (16, 9). É como se dissesse que o homem, pela luz da
razão, pode reconhecer a sua estrada, mas percorrê-la de maneira decidida, sem obstáculos e até ao
fim, ele só o consegue se, de ânimo recto, integrar a sua pesquisa no horizonte da fé. Por isso, a
razão e a fé não podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de
conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus.

17. Não há motivo para existir concorrência entre a razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual
tem o seu espaço próprio de realização. Aponta nesta direção o livro dos Provérbios, quando
exclama: « A glória de Deus é encobrir as coisas, e a glória dos reis é investigá-las » (25, 2). Deus e
o homem estão colocados, em seu respectivo mundo, numa relação única. Em Deus reside a origem
de tudo, n'Ele se encerra a plenitude do mistério, e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo
contrário, compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisto está a sua nobreza. Um
novo ladrilho é colocado neste mosaico pelo Salmista, quando diz: « Quão insondáveis para mim, ó
Deus, vossos pensamentos! Quão imenso o seu número! Quisera contá-los, são mais que as areias;
se pudesse chegar ao fim, estaria ainda convosco » (139/ 138, 17-18). O desejo de conhecer é tão
grande e comporta tal dinamismo que o coração do homem, ao tocar o limite intransponível, suspira
pela riqueza infinita que se encontra para além deste, por intuir que nela está contida a resposta
cabal para toda a questão ainda sem resposta.

18. Podemos, pois, dizer que Israel, com a sua reflexão, soube abrir à razão o caminho para o
mistério. Na revelação de Deus, pôde sondar em profundidade aquilo que a razão estava procurando
alcançar sem o conseguir. A partir desta forma mais profunda de conhecimento, o Povo Eleito
compreendeu que a razão deve respeitar algumas regras fundamentais, para manifestar do melhor
modo possível a própria natureza. A primeira regra é ter em conta que o conhecimento do homem é
um caminho que não permite descanso; a segunda nasce da consciência de que não se pode
percorrer tal caminho com o orgulho de quem pensa que tudo seja fruto de conquista pessoal; a
terceira regra funda-se no « temor de Deus », de quem a razão deve reconhecer tanto a
transcendência soberana como o amor solícito no governo do mundo.

Quando o homem se afasta destas regras, corre o risco de falimento e acaba por encontrar-se na
condição do « insensato ». Segundo a Bíblia, nesta insensatez encerra-se uma ameaça à vida. É que
o insensato ilude-se pensando que conhece muitas coisas, mas, de facto, não é capaz de fixar o olhar
nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr ordem na sua mente (cf. Prov 1, 7) e de assumir
uma atitude correcta para consigo mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a
afirmar que « Deus não existe » (cf. Sal 1413, 1), isso revela, com absoluta clareza, quanto seja
deficiente o seu conhecimento e quão distante esteja ele da verdade plena a respeito das coisas, da
sua origem e do seu destino.

19. Encontramos, no livro da Sabedoria, alguns textos importantes, que iluminam ainda melhor este
assunto. Lá, o autor sagrado fala de Deus que Se dá a conhecer também através da natureza. Para os
antigos, o estudo das ciências naturais coincidia, em grande parte, com o saber filosófico. Depois de
ter afirmado que o homem, com a sua inteligência, é capaz de « conhecer a constituição do universo
e a força dos elementos (...), o ciclo dos anos e a posição dos astros, a natureza dos animais mansos
e os instintos dos animais ferozes » (Sab 7, 17.19-20), por outras palavras, que o homem é capaz de
filosofar, o texto sagrado dá um passo em frente muito significativo. Retomando o pensamento da
filosofia grega, à qual parece referir-se neste contexto, o autor afirma que, raciocinando
precisamente sobre a natureza, pode-se chegar ao Criador: « Pela grandeza e beleza das criaturas,
pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor » (Sab 13, 5). Reconhece-se, assim,
um primeiro nível da revelação divina, constituído pelo maravilhoso « livro da natureza »; lendo-o
com os meios próprios da razão humana, pode-se chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem,
com a sua inteligência, não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever não
tanto à falta de um meio adequado, como sobretudo ao obstáculo interposto pela sua vontade livre e
pelo seu pecado.

20. Nesta perspectiva, a razão é valorizada, mas não superexaltada. O que ela alcança pode ser
verdade, mas só adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num horizonte mais amplo,
o da fé: « O Senhor é quem dirige os passos do homem; como poderá o homem compreender o seu
próprio destino? » (Prov 20, 24). A fé, segundo o Antigo Testamento, liberta a razão, na medida em
que lhe permite alcançar coerentemente o seu objecto de conhecimento e situá-lo naquela ordem
suprema onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem alcança a verdade, porque,
iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e, particularmente, da própria existência.
Justamente, pois, o autor sagrado coloca o início do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: «
O temor do Senhor é o princípio da sabedoria » (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).

2. « Adquire a sabedoria, adquire a inteligência » (Prov 4, 5)

21. Segundo o Antigo Testamento, o conhecimento não se baseia apenas numa atenta observação do
homem, do mundo e da história, mas supõe como indispensável também uma relação com a fé e os
conteúdos da Revelação. Aqui se concentram os desafios que o Povo Eleito teve de enfrentar e a
que deu resposta. Ao reflectir sobre esta sua condição, o homem bíblico descobriu que não se podia
compreender senão como « ser em relação »: relação consigo mesmo, com o povo, com o mundo e
com Deus. Esta abertura ao mistério, que provinha da Revelação, acabou por ser, para ele, a fonte
dum verdadeiro conhecimento, que permitiu à sua razão aventurar-se em espaços infinitos,
recebendo inesperadas possibilidades de compreensão.
Segundo o autor sagrado, o esforço da investigação não estava isento da fadiga causada pelo embate
nas limitações da razão. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com que o livro dos
Provérbios denuncia o cansaço provado ao tentar compreender os misteriosos desígnios de Deus (cf.
30, 1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste. E a força para continuar o seu caminho
rumo à verdade provém da certeza de que Deus o criou como um « explorador » (cf. Coel 1, 13),
cuja missão é não deixar nada sem tentar, não obstante a contínua chantagem da dúvida. Apoiando-
se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre, inclinado para o que é belo, bom e
verdadeiro.

22. S. Paulo, no primeiro capítulo da carta aos Romanos, ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja
incisiva a reflexão dos Livros Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma
argumentação filosófica, o Apóstolo exprime uma verdade profunda: através da criação, os « olhos
da mente » podem chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, através das criaturas, Ele faz
intuir à razão o seu « poder » e a sua « divindade » (cf. Rom 1, 20). Deste modo, é atribuída à razão
humana uma capacidade tal que parece quase superar os seus próprios limites naturais: não só
ultrapassa o âmbito do conhecimento sensorial, visto que lhe é possível reflectir criticamente sobre
o mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados dos sentidos, pode chegar também à causa que está
na origem de toda a realidade sensível. Em terminologia filosófica, podemos dizer que, neste
significativo texto paulino, está afirmada a capacidade metafísica do homem.

Segundo o Apóstolo, no projecto originário da criação estava prevista a capacidade de a razão


ultrapassar comodamente o dado sensível para alcançar a origem mesma de tudo: o Criador. Como
resultado da desobediência com que o homem escolheu colocar-se em plena e absoluta autonomia
relativamente Àquele que o tinha criado, perdeu tal facilidade de acesso a Deus criador.

O livro do Génesis descreve de maneira figurada esta condição do homem, quando narra que Deus
o colocou no jardim do Éden, tendo no centro « a árvore da ciência do bem e do mal » (2, 17). O
símbolo é claro: o homem não era capaz de discernir e decidir, por si só, aquilo que era bem e o que
era mal, mas devia apelar-se a um princípio superior. A cegueira do orgulho iludiu os nossos
primeiros pais de que eram soberanos e autónomos, podendo prescindir do conhecimento vindo de
Deus. Nesta desobediência original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando à razão
traumas sérios que haveriam de dificultar-lhe, daí em diante, o caminho para a verdade plena. Agora
a capacidade humana de conhecer a verdade aparece ofuscada pela aversão contra Aquele que é
fonte e origem da verdade. O próprio apóstolo S. Paulo nos revela como, por causa do pecado, os
pensamentos dos homens se tornaram « vãos » e os seus arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom 1,
21-22). Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver claramente: a razão foi progressivamente
ficando prisioneira de si mesma. A vinda de Cristo foi o acontecimento de salvação que redimiu a
razão da sua fraqueza, libertando-a dos grilhões onde ela mesma se tinha algemado.

23. Deste modo, a relação do cristão com a filosofia requer um discernimento radical. No Novo
Testamento, especialmente nas cartas de S. Paulo, aparece claramente este dado: a contraposição
entre « a sabedoria deste mundo » e a sabedoria de Deus revelada em Jesus Cristo. A profundidade
da sabedoria revelada rompe o círculo dos nossos esquemas de reflexão habituais, que não são
minimamente capazes de exprimi-la de forma adequada.

O início da primeira carta aos Coríntios apresenta radicalmente este dilema. O Filho de Deus
crucificado é o acontecimento histórico contra o qual se desfaz toda a tentativa da mente para
construir, sobre razões puramente humanas, uma justificação suficiente do sentido da existência. O
verdadeiro ponto nodal, que desafia qualquer filosofia, é a morte de Jesus Cristo na cruz. Aqui, de
facto, qualquer tentativa de reduzir o plano salvífico do Pai a mera lógica humana está destinada à
falência. « Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o investigador deste século?
Porventura, Deus não considerou louca a sabedoria deste mundo? » (1 Cor 1, 20) — interroga-se
enfaticamente o Apóstolo. Para aquilo que Deus quer realizar, não basta a simples sabedoria do
homem sábio, requer-se um passo decisivo que leve ao acolhimento duma novidade radical: « O
que é louco segundo o mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios (...). O que é vil e
desprezível no mundo, é que Deus escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para
destruir as que são » (1 Cor 1, 27-28). A sabedoria do homem recusa ver na própria fragilidade o
pressuposto da sua força; mas S. Paulo não hesita em afirmar: « Quando me sinto fraco, então é que
sou forte » (2 Cor 12, 10). O homem não consegue compreender como possa a morte ser fonte de
vida e de amor, mas Deus, para revelar o mistério do seu desígnio salvador, escolheu precisamente o
que a razão considera « loucura » e « escândalo ». Usando a linguagem dos filósofos do seu tempo,
Paulo chega ao clímax da sua doutrina e do paradoxo que quer exprimir: « Deus escolheu, no
mundo, aquelas coisas que nada são, para destruir as que são » (cf. 1 Cor 1, 28). Para exprimir o
carácter gratuito do amor revelado na cruz de Cristo, o Apóstolo não tem medo de usar a linguagem
mais radical que os filósofos empregavam nas suas reflexões a respeito de Deus. A razão não pode
esgotar o mistério de amor que a Cruz representa, mas a Cruz pode dar à razão a resposta última que
esta procura. S. Paulo coloca, não a sabedoria das palavras, mas a Palavra da Sabedoria como
critério, simultaneamente, de verdade e de salvação.

Por conseguinte, a sabedoria da Cruz supera qualquer limite cultural que se lhe queira impor,
obrigando a abrir-se à universalidade da verdade de que é portadora. Como é grande o desafio
lançado à nossa razão e como são enormes as vantagens que terá, se ela se render! A filosofia, que
por si mesma já é capaz de reconhecer a necessidade do homem se transcender continuamente na
busca da verdade, pode, ajudada pela fé, abrir-se para, na « loucura » da Cruz, acolher como
genuína a crítica a quantos se iludem de possuir a verdade, encalhando-a nas sirtes dum sistema
próprio. A relação entre a fé e a filosofia encontra, na pregação de Cristo crucificado e ressuscitado,
o escolho contra o qual pode naufragar, mas também para além do qual pode desembocar no oceano
ilimitado da verdade. Aqui é evidente a fronteira entre a razão e a fé, mas torna-se claro também o
espaço onde as duas se podem encontrar.

CAPÍTULO III
INTELLEGO UT CREDAM

1. Caminhar à procura da verdade

24. Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista Lucas narra a chegada de Paulo a Atenas, numa das suas
viagens missionárias. A cidade dos filósofos estava cheia de estátuas, que representavam vários
ídolos; e chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e base
comum para iniciar o anúncio do querigma: « Atenienses — disse ele —, vejo que sois, em tudo, os
mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos
sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: "Ao Deus desconhecido". Pois bem! O que
venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio » (Act 17, 22-23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes
de Deus enquanto criador, como Aquele que tudo transcende e a tudo dá vida. Depois continua o
seu discurso, dizendo: « Fez a partir de um só homem, todo o género humano, para habitar em toda
a face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que os
homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-Lo, mesmo tacteando, embora não Se
encontre longe de cada um de nós » (Act 17, 26-27).

O Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no seu tesouro: no mais
fundo do coração do homem, foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de
Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar pelos que não crêem, diz: « Deus eterno e
omnipotente, criastes os homens para que Vos procurem, de modo que só em Vós descansa o seu
coração ». [ 22] Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto
de partida está na capacidade de a razão superar o contingente para se estender até ao infinito.

De vários modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que conseguia dar voz a este seu
desejo íntimo. A literatura, a música, a pintura, a escultura, a arquitectura e outras realizações da sua
inteligência criadora tornaram-se canais de que ele se serviu para exprimir esta sua ansiosa procura.
Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este movimento, exprimindo, com os
meios e segundo as modalidades científicas que lhe são próprias, este desejo universal do homem.

25. « Todos os homens desejam saber », [ 23] e o objecto próprio deste desejo é a verdade. A
própria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do que
ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só
de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê.
Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é
falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. É a
lição que nos dá Santo Agostinho, quando escreve: « Encontrei muitos com desejos de enganar
outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado ». [24] Considera-se, justamente, que
uma pessoa alcançou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus próprios meios, entre
aquilo que é verdadeiro e o que é falso, formando um juízo pessoal sobre a realidade objectiva das
coisas. Está aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências, que
levaram, nos últimos séculos, a resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da
humanidade inteira.

E a pesquisa é tão importante no campo teórico, como no âmbito prático: ao referir-me a este,
desejo aludir à procura da verdade a respeito do bem que se deve realizar. Com efeito, graças
precisamente ao agir ético, a pessoa, se actuar segundo a sua livre e recta vontade, entra pela estrada
da felicidade e encaminha-se para a perfeição. Também neste caso, está em questão a verdade.
Reafirmei esta convicção na carta encíclica Veritatis splendor: « Não há moral sem liberdade (...).
Se existe o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da verdade, há ainda antes a
obrigação moral grave para cada um de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida ».
[ 25]

Por isso, é necessário que os valores escolhidos e procurados na vida sejam verdadeiros, porque só
estes é que podem aperfeiçoar a pessoa, realizando a sua natureza. Não é fechando-se em si mesmo
que o homem encontra esta verdade dos valores, mas abrindo-se para a receber mesmo de
dimensões que o transcendem. Esta é uma condição necessária para que cada um se torne ele
mesmo e cresça como pessoa adulta e madura.

26. Ao princípio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma interrogativa: A vida tem um sentido?
Para onde se dirige? À primeira vista, a existência pessoal poderia aparecer radicalmente sem
sentido. Não é preciso recorrer aos filósofos do absurdo, nem às perguntas provocatórias que se
encontram no livro de Job para duvidar do sentido da vida. A experiência quotidiana do sofrimento,
pessoal e alheio, e a observação de muitos factos, que à luz da razão se revelam inexplicáveis,
bastam para tornar iniludível um problema tão dramático como é a questão do sentido da vida. [ 26]
A isto se deve acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossa existência, para
além do facto de existirmos, é a inevitabilidade da morte. Perante um dado tão desconcertante como
este, impõe-se a busca de uma resposta exaustiva. Cada um quer, e deve, conhecer a verdade sobre
o seu fim. Quer saber se a morte será o termo definitivo da sua existência, ou se algo permanece
para além da morte; se pode esperar uma vida posterior, ou não. É significativo que o pensamento
filosófico tenha recebido, da morte de Sócrates, uma orientação decisiva que o marcou durante mais
de dois milénios. Certamente não é por acaso que os filósofos, perante a realidade da morte, sempre
voltam a pôr-se este problema, associado à questão do sentido da vida e da imortalidade.
27. A tais questões, não pode esquivar-se ninguém — nem o filósofo, nem o homem comum. E, da
resposta que se lhes der, deriva uma orientação decisiva da investigação: a possibilidade, ou não, de
alcançar uma verdade universal. Por si mesma qualquer verdade, mesmo parcial, se realmente é
verdade, apresenta-se como universal e absoluta. Aquilo que é verdadeiro deve ser verdadeiro
sempre e para todos. Contudo, para além desta universalidade, o homem procura um absoluto que
seja capaz de dar resposta e sentido a toda a sua pesquisa: algo de definitivo, que sirva de
fundamento a tudo o mais. Por outras palavras, procura uma explicação definitiva, um valor
supremo, para além do qual não existam, nem possam existir, ulteriores perguntas ou apelos. As
hipóteses podem seduzir, mas não saciam. Para todos, chega o momento em que, admitam-no ou
não, há necessidade de ancorar a existência a uma verdade reconhecida como definitiva, que
forneça uma certeza livre de qualquer dúvida.

Os filósofos procuraram, ao longo dos séculos, descobrir e exprimir tal verdade, criando um sistema
ou uma escola de pensamento. Mas, para além dos sistemas filosóficos, existem outras expressões
nas quais o homem procura formular a sua « filosofia »: trata-se de convicções ou experiências
pessoais, tradições familiares e culturais, ou itinerários existenciais vividos sob a autoridade de um
mestre. A cada uma destas manifestações, subjaz sempre vivo o desejo de alcançar a certeza da
verdade e do seu valor absoluto.

2. Os diferentes rostos da verdade do homem

28. Há que reconhecer que a busca da verdade nem sempre se desenrola com a referida
transparência e coerência de raciocínio. Muitas vezes, as limitações naturais da razão e a
inconstância do coração ofuscam e desviam a pesquisa pessoal. Outros interesses de vária ordem
podem sobrepor-se à verdade. Acontece também que o próprio homem a evite, quando começa a
entrevê-la, porque teme as suas exigências. Apesar disto, mesmo quando a evita, é sempre a verdade
que preside à sua existência. Com efeito, nunca poderia fundar a sua vida sobre a dúvida, a
incerteza ou a mentira; tal existência estaria constantemente ameaçada pelo medo e a angústia.
Assim, pode-se definir o homem como aquele que procura a verdade.

29. É impensável que uma busca, tão profundamente radicada na natureza humana, possa ser
completamente inútil e vã. A própria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas implica já
uma primeira resposta. O homem não começaria a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou
considerasse absolutamente inatingível. Só a previsão de poder chegar a uma resposta é que
consegue induzi-lo a dar o primeiro passo. De facto, assim sucede normalmente na pesquisa
científica. Quando o cientista, depois de ter uma intuição, se lança à procura da explicação lógica e
empírica dum certo fenómeno, fá-lo porque tem a esperança, desde o início, de encontrar uma
resposta, e não se dá por vencido com os insucessos. Nem considera inútil a intuição inicial, só
porque não alcançou o seu objectivo; dirá antes, e justamente, que não encontrou ainda a resposta
adequada.

O mesmo deve valer também para a busca da verdade no âmbito das questões últimas. A sede de
verdade está tão radicada no coração do homem que, se tivesse de prescindir dela, a sua existência
ficaria comprometida. Basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cada
um de nós se sente o tormento de algumas questões essenciais e, ao mesmo tempo, se guarda na
alma, pelo menos, o esboço das respectivas respostas. São respostas de cuja verdade estamos
convencidos, até porque notamos que não diferem substancialmente das respostas a que muitos
outros chegaram. Por certo, nem toda a verdade adquirida possui o mesmo valor; todavia, o
conjunto dos resultados alcançados confirma a capacidade que o ser humano, em princípio, tem de
chegar à verdade.
30. Convém, agora, fazer uma rápida menção das diversas formas de verdade. As mais numerosas
são as verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: esta
é a ordem própria da vida quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de
carácter filosófico, que o homem alcança através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por
último, existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes também na filosofia;
estão contidas nas respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às questões
últimas. [ 27]

Quanto às verdades filosóficas, é necessário especificar que não se limitam só às doutrinas, por
vezes efémeras, dos filósofos profissionais. Como já disse, todo o homem é, de certa forma, um
filósofo e possui as suas próprias concepções filosóficas, pelas quais orienta a sua vida. De diversos
modos, consegue formar uma visão global e uma resposta sobre o sentido da própria existência: e, à
luz disso, interpreta a própria vida pessoal e regula o seu comportamento. É aqui que deveria
colocar-se a questão da relação entre as verdades filosófico-religiosas e a verdade revelada em Jesus
Cristo. Antes de responder a tal questão, é preciso ter em conta outro dado da filosofia.

31. O homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa família, para depois se inserir,
pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em
várias tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a formação cultural, mas também muitas
verdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturação pessoal
implicam que tais verdades possam ser postas em dúvida e avaliadas através da actividade crítica
própria do pensamento. Isto não impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades
sejam « recuperadas » com base na experiência feita ou em virtude de sucessiva ponderação. Apesar
disso, na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que
aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente
os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem
poderia, por conta própria, controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de todas as
partes do mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer
novamente todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais se foram acumulando os
tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade,
é também aquele que vive de crenças.

32. Cada um, quando crê, confia nos conhecimentos adquiridos por outras pessoas. Neste acto,
pode-se individuar uma significativa tensão: por um lado, o conhecimento por crença apresenta-se
como uma forma imperfeita de conhecimento, que precisa de se aperfeiçoar progressivamente por
meio da evidência alcançada pela própria pessoa; por outro lado, a crença é muitas vezes mais rica,
humanamente, do que a simples evidência, porque inclui a relação interpessoal, pondo em jogo não
apenas as capacidades cognoscitivas do próprio sujeito, mas também a sua capacidade mais radical
de confiar noutras pessoas, iniciando com elas um relacionamento mais estável e íntimo.

Importa sublinhar que as verdades procuradas nesta relação interpessoal não são primariamente de
ordem empírica ou de ordem filosófica. O que se busca é sobretudo a verdade da própria pessoa:
aquilo que ela é e o que manifesta do seu próprio íntimo. De facto, a perfeição do homem não se
reduz apenas à aquisição do conhecimento abstracto da verdade, mas consiste também numa relação
viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o homem encontra plena
certeza e segurança. Ao mesmo tempo, porém, o conhecimento por crença, que se fundamenta na
confiança interpessoal, tem a ver também com a verdade: de facto, acreditando, o homem confia na
verdade que o outro lhe manifesta.

Quantos exemplos se poderiam aduzir para ilustrar este dado! O primeiro que me vem ao
pensamento é o testemunho dos mártires. Com efeito, o mártir é a testemunha mais genuína da
verdade da existência. Ele sabe que, no seu encontro com Jesus Cristo, alcançou a verdade a
respeito da sua vida, e nada nem ninguém poderá jamais arrancar-lhe esta certeza. Nem o
sofrimento, nem a morte violenta poderão fazê-lo retroceder da adesão à verdade que descobriu no
encontro com Cristo. Por isso mesmo é que, até agora, o testemunho dos mártires atrai, gera
consenso, é escutado e seguido. Esta é a razão pela qual se tem confiança na sua palavra: descobre-
se neles a evidência dum amor que não precisa de longas demonstrações para ser convincente,
porque fala daquilo que cada um, no mais fundo de si mesmo, já sente como verdadeiro e que há
tanto tempo procurava. Em resumo, o mártir provoca em nós uma profunda confiança, porque diz
aquilo que já sentimos e torna evidente aquilo que nós mesmos queríamos ter a força de dizer.

33. Deste modo, foi possível completar progressivamente os dados do problema. O homem, por sua
natureza, procura a verdade. Esta busca não se destina apenas à conquista de verdades parciais,
físicas ou científicas; não busca só o verdadeiro bem em cada um das suas decisões. Mas a sua
pesquisa aponta para uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se,
por conseguinte, de algo que não pode desembocar senão no absoluto. [ 28] Graças às capacidades
de que está dotado o seu pensamento, o homem pode encontrar e reconhecer uma tal verdade.
Sendo esta vital e essencial para a sua existência, chega-se a ela não só por via racional, mas
também através de um abandono fiducial a outras pessoas que possam garantir a certeza e
autenticidade da verdade. A capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra
pessoa constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos.

É bom não esquecer que também a razão, na sua busca, tem necessidade de ser apoiada por um
diálogo confiante e uma amizade sincera. O clima de suspeita e desconfiança, que por vezes
envolve a pesquisa especulativa, ignora o ensinamento dos filósofos antigos, que punham a amizade
como um dos contextos mais adequados para o recto filosofar.

Do que ficou dito conclui-se que o homem se encontra num caminho de busca, humanamente
infindável: busca da verdade e busca duma pessoa em quem poder confiar. A fé cristã vem em sua
ajuda, dando-lhe a possibilidade concreta de ver realizado o objectivo dessa busca. De facto,
superando o nível da simples crença, ela introduz o homem naquela ordem da graça que lhe
consente participar no mistério de Cristo, onde lhe é oferecido o conhecimento verdadeiro e
coerente de Deus Uno e Trino. Deste modo, em Jesus Cristo, que é a Verdade, a fé reconhece o
apelo último dirigido à humanidade, para que possa tornar realidade o que experimenta como desejo
e nostalgia.

34. Esta verdade, que Deus nos revela em Jesus Cristo, não está em contraste com as verdades que
se alcançam filosofando. Pelo contrário, as duas ordens de conhecimento conduzem à verdade na
sua plenitude. A unidade da verdade já é um postulado fundamental da razão humana, expresso no
princípio de não-contradição. A Revelação dá a certeza desta unidade, ao mostrar que Deus criador
é também o Deus da história da salvação. Deus que fundamenta e garante o carácter inteligível e
racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam confiadamente, [ 29] é o
mesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Esta unidade da verdade, natural e
revelada, encontra a sua identificação viva e pessoal em Cristo, como recorda o apóstolo Paulo: « A
verdade que existe em Jesus » (Ef 4, 21; cf. Col 1, 15-20). Ele é a Palavra eterna, na qual tudo foi
criado, e ao mesmo tempo é a Palavra encarnada que, com toda a sua pessoa,[30] revela o Pai (cf.
Jo 1, 14.18). Aquilo que a razão humana procura « sem o conhecer » (cf. Act 17, 23), só pode ser
encontrado por meio de Cristo: de facto, o que n'Ele se revela é a « verdade plena » (cf. Jo 1, 14-16)
de todo o ser que, n'Ele e por Ele, foi criado e, por isso mesmo, n'Ele encontra a sua realização (cf.
Col 1, 17).

35. Tendo estas considerações gerais como pano de fundo, é necessário agora examinar, de maneira
mais directa, a relação entre a verdade revelada e a filosofia. Tal relação requer uma dupla
consideração, visto que a verdade que nos vem da Revelação tem de ser, simultaneamente,
compreendida pela luz da razão. Só nesta dupla acepção é que será possível especificar a justa
relação da verdade revelada com o saber filosófico. Por isso, vamos considerar, em primeiro lugar,
as relações entre a fé e a filosofia ao longo da história, donde será possível individuar alguns
princípios, que constituem os pontos de referência aos quais recorrer para estabelecer a correcta
relação entre as duas ordens de conhecimento.

CAPÍTULO IV
A RELAÇÃO ENTRE A FÉ E A RAZÃO

1. As etapas significativas do encontro entre a fé e a razão

36. Os Actos dos Apóstolos testemunham que o anúncio cristão se encontrou, desde os seus
primórdios, com as correntes filosóficas do tempo. Lá se refere a discussão que S. Paulo teve com «
alguns filósofos epicuristas e estóicos » (17, 18). A análise exegética do discurso no Areópago
evidenciou repetidas alusões a ideias populares, predominantemente de origem estóica. Certamente
isso não se deu por acaso; os primeiros cristãos, para se fazerem compreender pelos pagãos, não
podiam citar apenas « Moisés e os profetas » nos seus discursos, mas tinham de servir-se também
do conhecimento natural de Deus e da voz da consciência moral de cada homem (cf. Rom 1, 19-21;
2, 14-15; Act 14, 16-17). Como, porém, na religião pagã, esse conhecimento natural tinha
degenerado em idolatria (cf. Rom 1, 21-32), o Apóstolo considerou mais prudente ligar o seu
discurso ao pensamento dos filósofos, que desde o início tinham contraposto, aos mitos e cultos
mistéricos, conceitos mais respeitosos da transcendência divina.

De facto, um dos cuidados que mais a peito tiveram os filósofos do pensamento clássico, foi
purificar de formas mitológicas a concepção que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a
religião grega, como grande parte das religiões cósmicas, era politeísta, chegando a divinizar até
coisas e fenómenos da natureza. As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e,
nestes, a do universo tiveram a sua primeira expressão na poesia. As teogonias permanecem, até
hoje, o primeiro testemunho desta investigação do homem. Os pais da filosofia tiveram por missão
mostrar a ligação entre a razão e a religião. Estendendo o olhar para os princípios universais,
deixaram de contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento racional à sua crença
na divindade. Embocou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradições particulares, levava
a um desenvolvimento que correspondia às exigências da razão universal. O fim que tal
desenvolvimento tinha em vista era a verificação crítica daquilo em que se acreditava. A primeira a
ganhar com esse caminho feito foi a concepção da divindade. As superstições acabaram por ser
reconhecidas como tais, e a religião, pelo menos em parte, foi purificada pela análise racional. Foi
nesta base que os Padres da Igreja instituíram um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo
a estrada ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo.

37. Quando se menciona este movimento de aproximação dos cristãos à filosofia, é obrigatório
recordar também a cautela com que eles olhavam outros elementos do mundo cultural pagão, como,
por exemplo, a gnose. A filosofia, enquanto sabedoria prática e escola de vida, podia facilmente ser
confundida com um conhecimento de tipo superior, esotérico, reservado a poucos iluminados. É,
sem dúvida, a especulações esotéricas deste género que pensa S. Paulo, quando adverte os
Colossenses: « Vede que ninguém vos engane com falsas e vãs filosofias, fundadas nas tradições
humanas, nos elementos do mundo, e não em Cristo » (2, 8). Como são actuais estas palavras do
Apóstolo, quando as referimos às diversas formas de esoterismo que hoje se difundem mesmo entre
alguns crentes, privados do necessário sentido crítico! Seguindo as pegadas de S. Paulo, outros
escritores dos primeiros séculos, particularmente Santo Ireneu e Tertuliano, puseram reservas a uma
orientação cultural que pretendia subordinar a verdade da Revelação à interpretação dos filósofos.
38. Como vemos, o encontro do cristianismo com a filosofia não foi fácil nem imediato. A
exercitação desta e a frequência das respectivas escolas foi vista mais vezes pelos primeiros cristãos
como transtorno, do que como uma oportunidade. Para eles, a primeira e mais urgente missão era o
anúncio de Cristo ressuscitado, que havia de ser proposto num encontro pessoal, capaz de levar o
interlocutor à conversão do coração e ao pedido do Baptismo. De qualquer modo, isso não significa
que ignorassem a obrigação de aprofundar a compreensão da fé e suas motivações; antes pelo
contrário. É injusta e pretextuosa a crítica de Celso, quando acusa os cristãos de serem gente «
iletrada e rude ». [ 31] A explicação deste seu desinteresse inicial tem de ser procurada noutro lado.
Na realidade, o encontro com o Evangelho oferecia uma resposta tão satisfatória à questão do
sentido da vida, até então insolúvel, que frequentar os filósofos parecia-lhes uma coisa sem
interesse e, em certos aspectos, superada.

Isto é, hoje, ainda mais claro, se se pensa ao contributo dado pelo cristianismo, quando defende o
acesso à verdade como um direito universal. Derrubadas as barreiras raciais, sociais e sexuais, o
cristianismo tinha anunciado, desde as suas origens, a igualdade de todos os homens diante de Deus.
A primeira consequência deste conceito registou-se no tema da verdade, ficando decididamente
superado o carácter elitista que a sua busca tinha no pensamento dos antigos: se o acesso à verdade
é um bem que permite chegar a Deus, todos devem estar em condições de poder percorrer esta
estrada. As vias para chegar à verdade continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade cristã tem
valor salvífico, cada uma delas só pode ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à revelação
de Jesus Cristo.

Como pioneiro dum encontro positivo com o pensamento filosófico, sempre marcado por um
prudente discernimento, há que recordar S. Justino. Apesar da grande estima que continuava a ter
pela filosofia grega depois da sua conversão, afirmava decidida e claramente que tinha encontrado,
no cristianismo, « a única filosofia segura e vantajosa ». [ 32] De forma semelhante, Clemente de
Alexandria chamava ao Evangelho « a verdadeira filosofia », [ 33] e, em analogia com a lei
mosaica, via a filosofia como uma instrução propedêutica à fé cristã [ 34] e uma preparação ao
Evangelho. [ 35] Uma vez que « a filosofia anela por aquela sabedoria que consiste na rectidão da
alma e da palavra e na pureza da vida, está aberta à sabedoria e tudo faz para a alcançar. No nosso
meio, designam-se por filósofos os que amam a sabedoria que é criadora e mestra de tudo, isto é, o
conhecimento do Filho de Deus ».[36] Segundo este pensador alexandrino, a filosofia grega não
tem como primeiro objectivo completar ou corroborar a verdade cristã; a sua função é, sobretudo, a
defesa da fé: « A doutrina do Salvador é perfeita em si mesma e não precisa de apoio, porque é a
força e a sabedoria de Deus. A filosofia grega não torna mais forte a verdade com o seu contributo,
mas, porque torna impotente o ataque da sofística e desarma os assaltos traiçoeiros contra a
verdade, foi justamente chamada sebe e muro de vedação da vinha ».[37]

39. Entretanto, na história deste desenvolvimento, é possível constatar a assunção crítica do


pensamento filosófico por parte dos pensadores cristãos. No meio dos primeiros exemplos
encontrados, sobressai, sem dúvida, Orígenes. Contra os ataques lançados pelo filósofo Celso, ele
recorre à filosofia platónica para argumentar e responder-lhe. Citando vários elementos do
pensamento platónico, começa a elaborar uma primeira forma de teologia cristã. Naquele tempo, a
designação mesma de teologia e a sua concepção como discurso racional sobre Deus ainda estavam
ligadas à sua origem grega. Na filosofia aristotélica, por exemplo, o termo designava a parte mais
nobre e o verdadeiro apogeu do discurso filosófico. Mas, à luz da revelação cristã, o que
anteriormente indicava uma doutrina genérica sobre a divindade, passou a assumir um significado
totalmente novo, ou seja, a reflexão que o crente realiza para exprimir a verdadeira doutrina acerca
de Deus. Este pensamento cristão novo, que estava a desenvolver-se, servia-se da filosofia, mas ao
mesmo tempo tendia a distinguir-se nitidamente dela. A história revela que o próprio pensamento
platónico, quando foi assumido pela teologia, sofreu profundas transformações, especialmente em
conceitos como a imortalidade da alma, a divinização do homem e a origem do mal.

40. Nesta obra de cristianização do pensamento platónico e neoplatónico, merecem menção


particular os Padres Capadócios, Dionísio chamado o Areopagita e sobretudo Santo Agostinho. O
grande Doutor ocidental contactara diversas escolas filosóficas, mas todas o tinham desiludido.
Quando se lhe deparou a verdade da fé cristã, então teve a força de realizar aquela conversão radical
a que os filósofos anteriormente contactados não tinham conseguido induzi-lo. Ele mesmo refere o
motivo: « Preferindo a doutrina católica, já sentia, então, que era mais razoável e menos enganoso
sermos obrigados a crer o que não demonstrava, quer houvesse prova, mesmo que esta não estivesse
ao alcance de qualquer pessoa, quer a não houvesse. Seria isto mais sensato do que zombarem da
crença os maniqueístas, apoiados em temerária promessa de ciência, para depois nos mandarem
acreditar em inúmeras fábulas tão absurdas que as não podiam provar ». [38] Quanto aos platónicos,
que ocupavam lugar privilegiado nos pontos de referimento de Agostinho, este censurava-os
porque, embora conhecessem o fim para onde se devia tender, tinham, porém, ignorado o caminho
que lá conduzia: o Verbo encarnado. [ 39] O Bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande
síntese do pensamento filosófico e teológico, nela confluindo correntes do pensamento grego e
latino. Também nele a grande unidade do saber, que tinha o seu fundamento no pensamento bíblico,
acabou por ser confirmada e sustentada pela profundidade do pensamento especulativo. A síntese
feita por Santo Agostinho permanecerá como a forma mais elevada de reflexão filosófica e
teológica que o Ocidente, durante séculos, conheceu. Com uma história pessoal intensa e ajudado
por uma admirável santidade de vida, ele foi capaz de introduzir, nas suas obras, muitos dados que,
apelando-se à experiência, antecipavam já futuros desenvolvimentos de algumas correntes
filosóficas.

41. De diversas formas, pois, os Padres do Oriente e do Ocidente entraram em relação com as
escolas filosóficas. Isto não significa que tenham identificado o conteúdo da sua mensagem com os
sistemas a que faziam referência. A pergunta de Tertuliano: « Que têm em comum Atenas e
Jerusalém? Ou, a Academia e a Igreja? », [ 40] é um sintoma claro da consciência crítica com que
os pensadores cristãos encararam, desde as origens, o problema da relação entre a fé e a filosofia,
vendo-o globalmente, tanto nos seus aspectos positivos como nas suas limitações. Não eram
pensadores ingénuos. Precisamente porque viviam de forma intensa o conteúdo da fé, eles
conseguiam chegar às formas mais profundas da reflexão. Por isso, é injusto e redutivo limitar o seu
trabalho a mera transposição das verdades de fé para categorias filosóficas. Eles fizeram muito
mais; conseguiram explicitar plenamente aquilo que resultava ainda implícito e preliminar no
pensamento dos grandes filósofos antigos. [ 41] Estes, conforme já disse, tiveram a função de
mostrar o modo como a razão, livre dos vínculos externos, podia escapar do beco sem saída dos
mitos, para melhor se abrir à transcendência. Uma razão purificada e recta era capaz de se elevar
aos níveis mais elevados da reflexão, dando fundamento sólido à percepção do ser, do transcendente
e do absoluto.

Aqui mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a razão na sua plena abertura ao
absoluto e, nela, enxertaram a riqueza vinda da Revelação. O encontro não foi apenas questão de
culturas, uma das quais talvez seduzida pelo fascínio da outra; mas verificou-se no íntimo da alma,
e foi um encontro entre a criatura e o seu Criador. Ultrapassando o fim mesmo para o qual
inconscientemente tendia por força da sua natureza, a razão pôde alcançar o sumo bem e a suma
verdade na pessoa do Verbo encarnado. Ao encararem as filosofias, os Padres não tiveram medo de
reconhecer tanto os elementos comuns como as diferenças que aquelas apresentavam relativamente
à Revelação. A percepção das convergências não ofuscava neles o reconhecimento das diferenças.

42. Na teologia escolástica, o papel da razão educada filosoficamente torna-se ainda mais notável
sob o impulso da interpretação anselmiana do intelectus fidei. Segundo o santo Arcebispo de
Cantuária, a prioridade da fé não faz concorrência à investigação própria da razão. De facto, esta
não é chamada a exprimir um juízo sobre os conteúdos da fé; seria incapaz disso, porque não é
idónea. A sua tarefa é, antes, saber encontrar um sentido, descobrir razões que a todos permitam
alcançar algum entendimento dos conteúdos da fé. Santo Anselmo sublinha o facto de que o
intelecto deve pôr-se à procura daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem
vive para a verdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama num amor sempre
maior por aquilo que conhece, embora admita que ainda não fizera tudo aquilo que estaria no seu
desejo: « Ad te videndum factus sum; et nondum feci propter quod factus sum ». [42] Assim, o
desejo da verdade impele a razão a ir sempre mais além; esta fica como que embevecida pela
constatação de que a sua capacidade é sempre maior do que aquilo que alcança. Chegada aqui,
porém, a razão é capaz de descobrir onde está o termo do seu caminho: « Penso efectivamente que,
quem investiga uma coisa incompreensível, se deve contentar de chegar, pela razão, a reconhecer
com a máxima certeza a sua existência real, embora não seja capaz de penetrar, pela inteligência, o
seu modo de ser (...). Aliás, que há de tão incompreensível e inefável como aquilo que está acima de
tudo? Portanto, se aquilo de cuja essência suprema discutimos até agora, ficou estabelecido sobre
razões necessárias, ainda que a inteligência não o possa penetrar de forma a conseguir traduzi-lo em
palavras claras, nem por isso vacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com efeito, se uma
reflexão anterior compreendeu de maneira racional que é incompreensível (rationabiliter
comprehendit incomprehensibile esse) o modo como a sabedoria suprema sabe aquilo que fez (...) ,
quem explicará como ela mesma se conhece e exprime, dado que sobre ela o homem nada ou quase
nada pode saber? ». [ 43]

Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental entre o conhecimento filosófico e o
conhecimento da fé: a fé requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua
vez a razão, no apogeu da sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta.

2. A novidade perene do pensamento de S. Tomás de Aquino

43. Neste longo caminho, ocupa um lugar absolutamente especial S. Tomás, não só pelo conteúdo
da sua doutrina, mas também pelo diálogo que soube instaurar com o pensamento árabe e hebreu do
seu tempo. Numa época em que os pensadores cristãos voltavam a descobrir os tesouros da filosofia
antiga, e mais directamente da filosofia aristotélica, ele teve o grande mérito de colocar em primeiro
lugar a harmonia que existe entre a razão e a fé. A luz da razão e a luz da fé provêm ambas de Deus:
argumentava ele; por isso, não se podem contradizer entre si. [ 44]

Indo mais longe, S. Tomás reconhece que a natureza, objecto próprio da filosofia, pode contribuir
para a compreensão da revelação divina. Deste modo, a fé não teme a razão, mas solicita-a e confia
nela. Como a graça supõe a natureza e leva-a à perfeição, [ 45] assim também a fé supõe e
aperfeiçoa a razão. Esta, iluminada pela fé, fica liberta das fraquezas e limitações causadas pela
desobediência do pecado, e recebe a força necessária para elevar-se até ao conhecimento do
mistério de Deus Uno e Trino. Embora sublinhando o carácter sobrenatural da fé, o Doutor
Angélico não esqueceu o valor da racionabilidade da mesma; antes, conseguiu penetrar
profundamente e especificar o sentido de tal racionabilidade. Efectivamente, a fé é de algum modo
« exercitação do pensamento »; a razão do homem não é anulada nem humilhada, quando presta
assentimento aos conteúdos de fé; é que estes são alcançados por decisão livre e consciente. [ 46]

Precisamente por este motivo é que S. Tomás foi sempre proposto pela Igreja como mestre de
pensamento e modelo quanto ao recto modo de fazer teologia. Neste contexto, apraz-me recordar o
que escreveu o meu Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, por ocasião do sétimo centenário da
morte do Doutor Angélico: « Sem dúvida, S. Tomás possuiu, no máximo grau, a coragem da
verdade, a liberdade de espírito quando enfrentava os novos problemas, a honestidade intelectual de
quem não admite a contaminação do cristianismo pela filosofia profana, mas tão pouco defende a
rejeição apriorística desta. Por isso, passou à história do pensamento cristão como um pioneiro no
novo caminho da filosofia e da cultura universal. O ponto central e como que a essência da solução
que ele deu ao problema novamente posto da contraposição entre razão e fé, com a genialidade do
seu intuito profético, foi o da conciliação entre a secularidade do mundo e a radicalidade do
Evangelho, evitando, por um lado, aquela tendência anti-natural que nega o mundo e seus valores,
mas, por outro, sem faltar às exigências supremas e inabaláveis da ordem sobrenatural ». [ 47]

44. Entre as grandes intuições de S. Tomás, conta-se a de atribuir ao Espírito Santo o papel de fazer
amadurecer, como sapiência, a ciência humana. Desde as primeiras páginas da Summa theologiæ,
[ 48] o Aquinate quis mostrar o primado daquela sapiência que é dom do Espírito Santo e que
introduz no conhecimento das realidades divinas. A sua teologia permite compreender a
peculiaridade da sapiência na sua ligação íntima com a fé e o conhecimento de Deus: conhece por
conaturalidade, pressupõe a fé e chega a formular rectamente o seu juízo a partir da verdade da
própria fé: « A sapiência elencada entre os dons do Espírito Santo é distinta da mencionada entre as
virtudes intelectuais. De facto, esta segunda adquire-se pelo estudo; aquela, pelo contrário, "provém
do alto", como diz S. Tiago. Mas é também distinta da fé, porque esta aceita a verdade divina tal
como é, enquanto é próprio do dom da sapiência julgar segundo a verdade divina ». [ 49]

Mas, ao reconhecer a prioridade desta sapiência, o Doutor Angélico não esquece a existência de
mais duas formas complementares de sabedoria: a filosófica, que se baseia sobre a capacidade que
tem o intelecto, dentro dos próprios limites naturais, de investigar a realidade; e a sabedoria
teológica, que se fundamenta na Revelação e examina os conteúdos da fé, alcançando o próprio
mistério de Deus.

Intimamente convencido de que « omne verum a quocumque dicatur a Spiritu Sancto est », [ 50] S.
Tomás amou desinteressadamente a verdade. Procurou-a por todo o lado onde pudesse manifestar-
se, colocando em relevo a sua universalidade. Nele, o Magistério da Igreja viu e apreciou a paixão
pela verdade; o seu pensamento, precisamente porque se mantém sempre no horizonte da verdade
universal, objectiva e transcendente, atingiu « alturas que a inteligência humana jamais poderia ter
pensado ».[51] É, pois, com razão que S. Tomás pode ser definido « apóstolo da verdade ».[52]
Porque se consagrou sem reservas à verdade, no seu realismo soube reconhecer a sua objectividade.
A sua filosofia é verdadeiramente uma filosofia do ser, e não do simples aparecer.

3. O drama da separação da fé e da razão

45. Quando surgiram as primeiras universidades, a teologia começou a relacionar-se mais


directamente com outras formas da pesquisa e do saber científico. Santo Alberto Magno e S. Tomás,
embora admitindo uma ligação orgânica entre a filosofia e a teologia, foram os primeiros a
reconhecer à filosofia e às ciências a autonomia de que precisavam para se debruçar eficazmente
sobre os respectivos campos de investigação. Todavia, a partir da baixa Idade Média, essa distinção
legítima entre os dois conhecimentos transformou-se progressivamente em nefasta separação.
Devido ao espírito excessivamente racionalista de alguns pensadores, radicalizaram-se as posições,
chegando-se, de facto, a uma filosofia separada e absolutamente autónoma dos conteúdos da fé.
Entre as várias consequências de tal separação, sobressai a difidência cada vez mais forte contra a
própria razão. Alguns começaram a professar uma desconfiança geral, céptica ou agnóstica, quer
para reservar mais espaço à fé, quer para desacreditar qualquer possível referência racional à
mesma.

Em resumo, tudo o que o pensamento patrístico e medieval tinha concebido e actuado como uma
unidade profunda, geradora dum conhecimento capaz de chegar às formas mais altas da
especulação, foi realmente destruído pelos sistemas que abraçaram a causa de um conhecimento
racional, separado e alternativo da fé.
46. As radicalizações mais influentes são bem conhecidas e visíveis, sobretudo na história do
Ocidente. Não é exagerado afirmar que boa parte do pensamento filosófico moderno se desenvolveu
num progressivo afastamento da revelação cristã até chegar explicitamente à contraposição. No
século passado, este movimento tocou o seu apogeu. Alguns representantes do idealismo
procuraram, de diversos modos, transformar a fé e os seus conteúdos, inclusive o mistério da morte
e ressurreição de Jesus Cristo, em estruturas dialécticas racionalmente compreensíveis. Mas a esta
concepção, opuseram-se diversas formas de humanismo ateu, elaboradas filosoficamente, que
apontaram a fé como prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso da razão. Não
tiveram medo de se apresentar como novas religiões, dando base a projectos que desembocaram, no
plano político e social, em sistemas totalitários traumáticos para a humanidade.

No âmbito da investigação científica, foi-se impondo uma mentalidade positivista, que não apenas
se afastou de toda a referência à visão cristã do mundo, mas sobretudo deixou cair qualquer alusão à
visão metafísica e moral. Por causa disso, certos cientistas, privados de qualquer referimento ético,
correm o risco de não manterem, ao centro do seu interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida.
Mais, alguns deles, cientes das potencialidades contidas no progresso tecnológico, parecem ceder à
lógica do mercado e ainda à tentação dum poder demiúrgico sobre a natureza e o próprio ser
humano.

Como consequência da crise do racionalismo, apareceu o niilismo. Enquanto filosofia do nada,


consegue exercer um certo fascínio sobre os nossos contemporâneos. Os seus seguidores defendem
a pesquisa como fim em si mesma, sem esperança nem possibilidade alguma de alcançar a meta da
verdade. Na interpretação niilista, a existência é somente uma oportunidade para sensações e
experiências onde o efémero detém o primado. O niilismo está na origem duma mentalidade difusa,
segundo a qual não se deve assumir qualquer compromisso definitivo, porque tudo é fugaz e
provisório.

47. Por outro lado, é preciso não esquecer que, na cultura moderna, foi alterada a própria função da
filosofia. De sabedoria e saber universal que era, foi-se progressivamente reduzindo a uma das
muitas áreas do saber humano; mais, sob alguns dos seus aspectos, ficou reduzida a um papel
completamente marginal. Entretanto, foram-se consolidando sempre mais outras formas de
racionalidade, pondo assim em evidência o carácter marginal do saber filosófico. Em vez de
apontarem para a contemplação da verdade e a busca do fim último e do sentido da vida, essas
formas de racionalidade são orientadas, ou pelo menos orientáveis, como « razão instrumental » ao
serviço de fins utilitaristas, de prazer ou de poder.

Quanto seja perigoso absolutizar esta estrada, fi-lo notar já na minha primeira carta encíclica, ao
escrever: « O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz, ou seja,
pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua
inteligência e das tendências da sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade do homem, com
grande rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser não tanto objecto de "alienação",
no sentido de que são simplesmente tirados àqueles que os produzem, como sobretudo, pelo menos
parcialmente, num círculo consequente e indirecto dos seus efeitos, tais frutos voltam-se contra o
próprio homem. Eles são de facto dirigidos, ou podem sê-lo, contra o homem. Nisto parece consistir
o acto principal do drama da existência humana contemporânea, na sua dimensão mais ampla e
universal. Assim, o homem vive mergulhado cada vez mais no medo. Teme que os seus produtos,
naturalmente não todos nem a maior parte, mas alguns e precisamente aqueles que encerram uma
especial porção da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical
contra si mesmo ». [53]
Na sequência destas transformações culturais, alguns filósofos, abandonando a busca da verdade
por si mesma, assumiram como único objectivo a obtenção da certeza subjectiva ou da utilidade
prática. Em consequência, deu-se o obscurecimento da verdadeira dignidade da razão,
impossibilitada de conhecer a verdade e de procurar o absoluto.

48. Assim, o dado saliente desta última parte da história da filosofia é a constatação duma
progressiva separação entre a fé e a razão filosófica. É verdade que, observando bem, mesmo na
reflexão filosófica daqueles que contribuíram para ampliar a distância entre fé e razão, se
manifestam às vezes gérmenes preciosos de pensamento que, se aprofundados e desenvolvidos com
mente e coração recto, podem fazer descobrir o caminho da verdade. Estes gérmenes de pensamento
podem-se encontrar, por exemplo, nas profundas análises sobre a percepção e a experiência, a
imaginação e o inconsciente, sobre a personalidade e a intersubjectividade, a liberdade e os valores,
o tempo e a história. Inclusive o tema da morte pode tornar-se, para todo o pensador, um severo
apelo a procurar dentro de si mesmo o sentido autêntico da própria existência. Todavia isto não
pode fazer esquecer a necessidade que a actual relação entre fé e razão tem de um cuidadoso
esforço de discernimento, porque tanto a razão como a fé ficaram reciprocamente mais pobres e
débeis. A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de
perder de vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a
experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo
pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser
reduzida a um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé
adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser.

À luz disto, creio justificado o meu apelo veemente e incisivo para que a fé e a filosofia recuperem
aquela unidade profunda que as torna capazes de serem coerentes com a sua natureza, no respeito
da recíproca autonomia. Ao desassombro (parresia) da fé deve corresponder a audácia da razão.

CAPÍTULO V
INTERVENÇÕES DO MAGISTÉRIO EM MATÉRIA FILOSÓFICA

1. O discernimento do Magistério como diaconia da verdade

49. A Igreja não propõe uma filosofia própria, nem canoniza uma das correntes filosóficas em
detrimento de outras. [ 54] A razão profunda desta reserva está no facto de que a filosofia, mesmo
quando entra em relação com a teologia, deve proceder segundo os seus métodos e regras; caso
contrário, não haveria garantia de permanecer orientada para a verdade, tendendo para a mesma
através dum processo racionalmente controlável. Pouca ajuda daria uma filosofia que não agisse à
luz da razão, segundo princípios próprios e específicas metodologias. Fundamentalmente, a raiz da
autonomia de que goza a filosofia, há que individuá-la no facto de a razão estar orientada, por sua
natureza, para a verdade e dotada em si mesma dos meios necessários para a alcançar. Uma
filosofia, ciente deste seu « estatuto constitutivo », não pode deixar de respeitar as exigências e
evidências próprias da verdade revelada.

E, todavia, vimos, na história, os extravios e erros em que várias vezes incorreu o pensamento
filosófico, sobretudo moderno. Não é função nem competência do Magistério intervir para colmar
as lacunas dum discurso filosófico carente. Mas, já é sua obrigação reagir, de forma clara e
vigorosa, quando teses filosóficas discutíveis ameaçam a recta compreensão do dado revelado e
quando se difundem teorias falsas e sectárias que semeiam erros graves, perturbando a simplicidade
e a pureza da fé do povo de Deus.
50. Por conseguinte, o Magistério eclesiástico pode, e deve, exercer com autoridade, à luz da fé, o
discernimento crítico sobre filosofias e afirmações que contradigam a doutrina cristã. [ 55] Ao
Magistério compete, antes de mais, indicar os pressupostos e as conclusões filosóficas que são
incompatíveis com a verdade revelada, formulando assim as exigências que, do ponto de vista da fé,
se impõem à filosofia. Além disso, no desenvolvimento do saber filosófico, surgiram diversas
escolas de pensamento; ora, este pluralismo impõe ao Magistério a responsabilidade de exprimir o
seu juízo sobre a compatibilidade ou incompatibilidade das concepções de base, defendidas por
essas escolas, com as exigências próprias da palavra de Deus e da reflexão teológica.

A Igreja tem o dever de indicar aquilo que pode existir, num sistema filosófico, de incompatível
com a sua fé. Na verdade, muitos conteúdos filosóficos — relativos, por exemplo, a Deus, ao
homem, à sua liberdade e ao seu comportamento ético —, têm a ver directamente com a Igreja,
porque tocam na verdade revelada que ela guarda. Quando nós, Bispos, realizamos o referido
discernimento, temos a obrigação de ser « testemunhas da verdade », no cumprimento dum serviço
humilde, mas firme, que todo o filósofo devia prezar, em benefício da recta ratio, ou seja, da razão
que reflecte correctamente sobre a verdade.

51. Em todo o caso, tal discernimento não deve ser visto primariamente de forma negativa, como se
a intenção do Magistério fosse eliminar ou reduzir qualquer possibilidade de mediação; ao
contrário, as suas intervenções visam em primeiro lugar suscitar, promover e encorajar o
pensamento filosófico. Os filósofos são, aliás, os primeiros a compreender a exigência de
autocrítica, de correcção de eventuais erros, e a necessidade de ultrapassar os limites demasiado
estreitos em que a sua reflexão foi concebida. De modo particular, deve-se considerar que a verdade
é uma só, embora as suas expressões acusem os vestígios da história e sejam, além disso, obra duma
razão humana ferida e enfraquecida pelo pecado. Daqui se conclui que nenhuma forma histórica da
filosofia pode, legitimamente, ter a pretensão de abraçar a totalidade da verdade ou de possuir a
explicação cabal do ser humano, do mundo e da relação do homem com Deus.

E hoje, com esta multiplicação de sistemas, métodos, conceitos e argumentos filosóficos, muitas
vezes extremamente fragmentários, impõe-se ainda com maior urgência um discernimento crítico à
luz da fé. Este discernimento não é fácil, porque, se já é custoso reconhecer as capacidades naturais
e inalienáveis da razão com as suas limitações constitutivas e históricas, mais problemático ainda se
pode tornar às vezes o discernimento de cada uma das propostas filosóficas para verificar, do ponto
de vista da fé, o que apresentam de válido e fecundo e o que existe nelas de errado ou perigoso. De
qualquer modo, a Igreja sabe que os « tesouros da sabedoria e da ciência » estão escondidos em
Cristo (Col 2, 3); por isso, ela intervém, estimulando a reflexão filosófica, para que não se obstrua a
estrada que leva ao conhecimento do mistério.

52. Não foi só recentemente que o Magistério da Igreja interveio para manifestar o seu pensamento
a respeito de determinadas doutrinas filosóficas. A título de exemplo, basta recordar, no decurso dos
séculos, as tomadas de posição acerca das teorias que defendiam a preexistência das almas, [ 56] e
ainda sobre as diversas formas de idolatria e esoterismo supersticioso, contidas em teses
astrológicas; [ 57] sem esquecer os textos mais sistemáticos contra algumas teses do averroísmo
latino, incompatíveis com a fé cristã. [ 58]

Se a palavra do Magistério se fez ouvir mais frequentemente a partir da segunda metade do século
passado, foi porque, naquele período, numerosos católicos sentiram o dever de contrapor uma
filosofia própria às várias correntes do pensamento moderno. Daqui resultou, para o Magistério da
Igreja, a obrigação de vigiar a fim de que tais filosofias não degenerassem, por sua vez, em formas
erróneas e negativas. Acabaram assim censurados os dois extremos: dum lado, o fideísmo [ 59] e o
tradicionalismo radical,[60] pela sua falta de confiança nas capacidades naturais da razão; e, do
outro, o racionalismo [ 61] e o ontologismo, [ 62] porque atribuíam à razão natural aquilo que
apenas se pode conhecer pela luz da fé. Os conteúdos positivos deste debate foram formalizados na
constituição dogmática Dei Filius, por meio da qual um concílio ecuménico — o Vaticano I —
intervinha, pela primeira vez e de forma solene, sobre as relações entre razão e fé. A doutrina
contida neste texto marcou, intensa e positivamente, a investigação filosófica de muitos crentes e
constitui ainda hoje um ponto normativo de referência para uma correcta e coerente reflexão cristã
neste âmbito particular.

53. Mais do que teses filosóficas isoladas, as tomadas de posição do Magistério ocuparam-se da
necessidade do conhecimento racional — e por conseguinte, em última análise, do conhecimento
filosófico — para a compreensão da fé. O Concílio Vaticano I, sintetizando e confirmando
solenemente os ensinamentos que o Magistério pontifício tinha proposto aos fiéis de maneira
ordinária e constante, pôs em evidência como são inseparáveis e ao mesmo tempo irredutíveis entre
si o conhecimento natural de Deus e a Revelação, a razão e a fé. O Concílio partia da exigência
fundamental — pressuposta também pela Revelação — da cognoscibilidade natural da existência de
Deus, princípio e fim de todas as coisas, [ 63] para concluir com a solene afirmação já citada: «
Existem duas ordens de conhecimento, distintas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo
seu objecto ». [ 64] É que era preciso afirmar, contra qualquer forma de racionalismo, a distinção
entre os mistérios da fé e as conclusões filosóficas, e ainda a transcendência e precedência daqueles
sobre estas; por outro lado, contra as tentações fideístas, tornava-se necessário corroborar a unidade
da verdade e também o contributo positivo que o conhecimento racional pode, e deve, dar para o
conhecimento da fé: « Mas, embora a fé esteja acima da razão, não poderá existir nunca uma
verdadeira divergência entre fé e razão, porque o mesmo Deus que revela os mistérios e comunica a
fé, foi quem colocou também, no espírito humano, a luz da razão. E Deus não poderia negar-Se a Si
mesmo, pondo a verdade em contradição com a verdade ».[65]

54. Neste século, o Magistério voltou várias vezes ao mesmo assunto, alertando contra a tentação
racionalista. É neste horizonte que se devem colocar as intervenções do Papa S. Pio X, pondo em
relevo como, na base do modernismo, havia posições filosóficas de linha fenomenista, agnóstica e
imanentista.[66] E não se pode esquecer a importância que teve a rejeição católica da filosofia
marxista e do comunismo ateu.[67]

Sucessivamente, o Papa Pio XII fez ouvir a sua voz quando, na carta encíclica Humani generis,
preveniu contra interpretações erróneas que andavam ligadas com as teses do evolucionismo, do
existencialismo e do historicismo. Explicava ele que estas teses não foram elaboradas nem eram
propostas por teólogos, mas tinham a sua origem « fora do redil de Cristo »; [ 68] acrescentava,
porém, que tais extravios não deviam ser liminarmente rejeitados, mas examinados criticamente: «
Ora, estas tendências, que se afastam em medida desigual da recta via, não podem ser ignoradas ou
transcuradas pelos filósofos e teólogos católicos, que têm o grave dever de defender a verdade
divina e humana, e de fazê-la penetrar na mente dos homens. Pelo contrário, devem conhecer bem
estas opiniões, quer porque as doenças não podem ser curadas, se primeiro não são bem conhecidas,
quer porque algumas vezes mesmo nas afirmações falsas se esconde um pouco de verdade, quer
finalmente porque os próprios erros forçam a nossa mente a investigar e a perscrutar, com maior
diligência, certas verdades filosóficas e teológicas ».[69]

Por último, também a Congregação da Doutrina da Fé, no cumprimento do seu múnus específico ao
serviço do magistério universal do Romano Pontífice, [ 70] teve de intervir para sublinhar o perigo
que comportava a assunção acrítica, feita por alguns teólogos da libertação, de teses e metodologias
provenientes do marxismo. [ 71]
Vemos assim que, no passado, o Magistério exerceu reiteradamente e sob diversas modalidades o
discernimento em matéria filosófica. Aquilo que os meus Venerados Predecessores enunciaram,
constitui um contributo precioso que não pode ser esquecido.

55. Se observarmos a situação actual, constatamos que os problemas retornam, mas com
peculiaridades novas. Já não se trata de questões que interessam apenas a indivíduos ou grupos, mas
de convicções tão generalizadas no ambiente que se tornam, em certa medida, mentalidade comum.
Tal é, por exemplo, a desconfiança radical na razão, que evidenciam as conclusões mais recentes de
muitos estudos filosóficos. De várias partes ouviu-se falar, a este respeito, de « fim da metafísica »:
querem que a filosofia se contente com tarefas mais modestas, tais como a mera interpretação dos
factos ou apenas a investigação sobre determinados campos do saber humano ou das suas
estruturas.

Também, na teologia, voltam a assomar as tentações de outrora. Por exemplo, em algumas teologias
contemporâneas comparece novamente um certo racionalismo, principalmente quando asserções,
consideradas filosoficamente fundadas, são tomadas como normativas para a investigação teológica.
Isto sucede sobretudo quando o teólogo, por falta de competência filosófica, se deixa condicionar de
modo acrítico por afirmações que já entraram na linguagem e cultura corrente, mas carecem de
suficiente base racional. [ 72]

Não faltam também perigosas recaídas no fideísmo, que não reconhece a importância do
conhecimento racional e do discurso filosófico para a compreensão da fé, melhor, para a própria
possibilidade de acreditar em Deus. Uma expressão, hoje generalizada, desta tendência fideísta é o
« biblicismo », que tende a fazer da leitura da Sagrada Escritura, ou da sua exegese, o único
referencial da verdade. Assim, acaba-se por identificar a palavra de Deus só com a Sagrada
Escritura, anulando deste modo a doutrina da Igreja que o Concílio Ecuménico Vaticano II
expressamente reafirmou. Com efeito, a constituição Dei Verbum, depois de recordar que a palavra
de Deus está presente tanto nos textos sagrados como na Tradição, [ 73] afirma sem rodeios: « A
Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus,
confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus Pastores na doutrina
dos Apóstolos ».[74] Portanto, a Sagrada Escritura não constitui, para a Igreja, a sua única
referência; a « regra suprema da sua fé » [ 75] provém efectivamente da unidade que o Espírito
estabeleceu entre a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja, numa
reciprocidade tal que os três não podem subsistir de maneira independente.[76]

Além disso, não se deve subestimar o perigo que existe quando se quer individuar a verdade da
Sagrada Escritura com a aplicação de uma única metodologia, esquecendo a necessidade de uma
exegese mais ampla que permita o acesso, em união com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos.
Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer que as diversas
metodologias hermenêuticas têm também na sua base uma concepção filosófica: é preciso examiná-
las com grande discernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados.

Outras formas de fideísmo latente podem-se identificar na pouca consideração que é reservada à
teologia especulativa, e ainda no desprezo pela filosofia clássica, de cujas noções provieram os
termos para exprimir tanto a compreensão da fé como as próprias formulações dogmáticas. O Papa
Pio XII, de veneranda memória, alertou contra este esquecimento da tradição filosófica e abandono
das terminologias tradicionais. [ 77]

56. Constata-se, enfim, uma generalizada desconfiança relativamente a asserções globais e


absolutas sobretudo da parte de quem pensa que a verdade resulte do consenso, e não da
conformidade do intelecto com a realidade objectiva. Compreende-se que, num mundo subdividido
em tantos campos de especializações, se torne difícil reconhecer aquele sentido total e último da
vida que tradicionalmente a filosofia procurava. Mas nem por isso posso, à luz da fé que reconhece
em Jesus Cristo tal sentido último, deixar de encorajar os filósofos, cristãos ou não, a terem
confiança nas capacidades da razão humana e a não prefixarem metas demasiado modestas à sua
investigação filosófica. A lição da história deste milénio, quase a terminar, testemunha que a estrada
a seguir é esta: não perder a paixão pela verdade última, nem o anseio de pesquisa, unidos à audácia
de descobrir novos percursos. É a fé que incita a razão a sair de qualquer isolamento e a abraçar de
bom grado qualquer risco por tudo o que é belo, bom e verdadeiro. Deste modo, a fé torna-se
advogada convicta e convincente da razão.

2. Solicitude da Igreja pela filosofia

57. O Magistério, porém, não se limitou a pôr em destaque os erros e desvios das doutrinas
filosóficas. Mas, com igual cuidado, quis confirmar os princípios fundamentais para uma genuína
renovação do pensamento filosófico, indicando mesmo percursos concretos a seguir. Nesta linha, o
Papa Leão XIII, com a carta encíclica Æterni Patris, realizou um passo de alcance verdadeiramente
histórico na vida da Igreja. Efectivamente aquela constitui, até ao dia de hoje, o único documento
pontifício dedicado, a esse nível, inteiramente à filosofia. O grande Pontífice retomou e
desenvolveu a doutrina do Concílio Vaticano I sobre a relação entre fé e razão, mostrando como o
pensamento filosófico é um contributo fundamental para a fé e para a ciência teológica. [ 78]
Passado mais de um século, muitas indicações, lá contidas, nada perderam do seu interesse tanto do
ponto de vista prático como pedagógico; a primeira de todas é a que diz respeito ao valor
incomparável da filosofia de S. Tomás. A reposição do pensamento do Doutor Angélico era vista
pelo Papa Leão XIII como a melhor estrada para se recuperar um uso da filosofia conforme às
exigências da fé. S. Tomás, escrevia ele, « ao mesmo tempo que, como é devido, distingue
perfeitamente a fé da razão, une-as a ambas com laços de amizade recíproca: conserva os direitos
próprios de cada uma e salvaguarda a sua dignidade ».[79]

58. São conhecidas as felizes consequências que teve este convite pontifício. Os estudos sobre o
pensamento de S. Tomás e doutros autores escolásticos receberam novo incentivo. Foi dado um
forte impulso aos estudos históricos, de que resultou uma nova descoberta das riquezas do
pensamento medieval, até então amplamente desconhecidas, e constituíram-se novas escolas
tomistas. Com a aplicação da metodologia histórica, fizeram-se grandes progressos no
conhecimento da obra de S. Tomás, e muitos foram os estudiosos que corajosamente introduziram a
tradição tomista nas discussões dos problemas filosóficos e teológicos daquele tempo. Os teólogos
católicos mais influentes deste século, a cuja reflexão e pesquisa muito deve o Concílio Vaticano II,
são filhos de tal renovação da filosofia tomista. E assim a Igreja pôde, no decurso do século XX,
dispor dum vigoroso grupo de pensadores, formados na escola do Doutor Angélico.

59. Contudo, a renovação tomista e neotomista não foi o único sinal de retoma do pensamento
filosófico na cultura de inspiração cristã. Já antes, e contemporâneamente ao convite do Papa Leão
XIII, tinham surgido vários filósofos católicos que, valendo-se de correntes de pensamento mais
recentes e com uma metodologia própria, geraram obras filosóficas de grande influência e valor
duradouro. Houve quem tivesse organizado sínteses de nível tão alto que nada tinham a invejar aos
grandes sistemas do idealismo, e quem pusesse as bases epistemológicas para uma nova exposição
da fé, à luz de uma renovada compreensão da consciência moral; houve quem tivesse elaborado
uma filosofia que, partindo da análise da imanência, abria o caminho para o transcendente, e quem
tentasse traduzir as exigências da fé no horizonte da metodologia fenomenológica. Em suma,
partindo de diversas perspectivas, continuou-se a elaborar formas de reflexão filosófica, que
visavam manter viva a grande tradição do pensamento cristão na unidade de fé e razão.

60. O Concílio Ecuménico Vaticano II, por sua vez, apresenta uma doutrina muito rica e fecunda a
propósito da filosofia. Não posso esquecer, sobretudo no contexto desta carta encíclica, que um
capítulo inteiro da constituição Gaudium et spes constitui uma espécie de compêndio de
antropologia bíblica, fonte de inspiração também para a filosofia. Naquelas páginas, trata-se do
valor da pessoa humana criada à imagem de Deus, indicam-se os motivos da sua dignidade e
superioridade relativamente ao resto da criação, e mostra-se a capacidade transcendente da sua
razão. [ 80] Na referida Constituição conciliar, considera-se também o problema do ateísmo e
denunciam-se, juntamente com suas causas, os erros desta visão filosófica, sobretudo no que diz
respeito à dignidade inalienável da pessoa e da sua liberdade. [ 81] E um profundo significado
filosófico reveste também o ponto culminante daquelas páginas, que transcrevia já na minha
primeira carta encíclica, a Redemptor hominis, e mantive como um dos pontos de referência
constante no meu magistério: « Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo
encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do
futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu
amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime ». [ 82]

O Concílio ocupou-se também do estudo da filosofia, ao qual se devem dedicar os candidatos ao


sacerdócio; são recomendações que se podem generalizar a todo o ensino cristão. Afirma-se num
dos documentos conciliares: « As disciplinas filosóficas sejam ensinadas de forma que os alunos
possam adquirir, antes de mais, um conhecimento sólido e coerente do homem, do mundo e de
Deus, apoiados num património filosófico perenemente válido, tendo em conta as investigações
filosóficas dos tempos actuais »[83]

Estas directrizes foram depois retomadas e especificadas noutros documentos do Magistério, com o
intuito de garantir uma sólida formação filosófica sobretudo àqueles que se preparam para os
estudos teológicos. Também eu sublinhei, em várias ocasiões, a importância desta formação
filosófica para todos os que, um dia, terão de enfrentar, na vida pastoral, as questões do mundo
actual e individuar as causas de determinados comportamentos, a fim de lhes dar pronta resposta.
[ 84]

61. Se foi necessário intervir, em diversas circunstâncias, sobre este tema, reiterando o valor das
intuições do Doutor Angélico e insistindo a favor da aquisição do seu pensamento, isso ficou a
dever-se também ao facto de não terem sido sempre observadas as directrizes do Magistério, com a
solicitude desejada. De facto, nos anos posteriores ao Concílio Vaticano II, pôde observar-se, em
muitas escolas católicas, um certo declínio nesta matéria, devido à menor estima sentida não apenas
pela filosofia escolástica, mas pelo estudo da filosofia em geral. Com surpresa e mágoa, tenho de
constatar que vários teólogos compartilham este desinteresse pelo estudo da filosofia.

Na base desta indiferença, há diversas razões. Em primeiro lugar, aquela falta de confiança na razão
que se manifesta em grande parte da filosofia contemporânea, abandonando em larga escala a
investigação metafísica das questões últimas do homem para concentrar a sua atenção sobre
problemas particulares e regionais, às vezes puramente formais. Depois, há que acrescentar o
equívoco que se gerou sobretudo a respeito das « ciências humanas ». O Concílio Vaticano II
afirmou, várias vezes, o valor positivo da pesquisa científica para um conhecimento mais profundo
do mistério do homem. [ 85] Mas, o convite dirigido aos teólogos para conhecerem estas ciências e,
se vier a propósito, aplicá-las correctamente nos seus estudos, não deve ser interpretado como uma
implícita autorização para marginalizar a filosofia, pondo-a de parte na formação pastoral e na
præparatio fidei. E, finalmente, não se pode esquecer o interesse novamente sentido pela
inculturação da fé. Em particular, a vida das jovens Igrejas permitiu descobrir, ao lado de formas
elevadas de pensamento, a presença de múltiplas expressões de sabedoria popular. Isto constitui um
autêntico património de cultura e de tradições. Todavia, o estudo dos costumes tradicionais deve ser
acompanhado simultaneamente pela pesquisa filosófica. Será esta que possibilitará fazer sobressair
os traços positivos da sabedoria popular, criando a necessária ligação com o anúncio do Evangelho.
[86]
62. Desejo insistir novamente que o estudo da filosofia reveste um carácter fundamental e
indispensável na estrutura dos estudos teológicos e na formação dos candidatos ao sacerdócio. Não
é por acaso que o currículo dos estudos teológicos é antecedido por um período de tempo
especialmente consagrado ao estudo da filosofia. Esta decisão, confirmada pelo Concílio
Ecuménico Lateranense V, [ 87] tem as suas raízes na experiência maturada durante a Idade Média,
quando foi posta em relevo a importância de uma harmonia construtiva entre o saber filosófico e o
teológico. Esta organização dos estudos influenciou, facilitou e promoveu, embora de forma
indirecta, uma boa parte do progresso da filosofia moderna. Temos um exemplo significativo na
influência exercida pelas Disputationes metaphysicæ de Francisco Suárez, que eram seguidas até
mesmo nas universidades luteranas da Alemanha. Pelo contrário, o abandono desta metodologia foi
causa de graves carências, tanto na formação sacerdotal como na investigação teológica. Basta
considerar, por exemplo, como a sua negligência no âmbito do pensamento e da cultura moderna
levou ao encerramento de toda a forma de diálogo ou à recepção indiscriminada de qualquer
filosofia.

Nutro profunda esperança de que estas dificuldades serão superadas mercê de uma sábia formação
filosófica e teológica, que nunca deve faltar na Igreja.

63. Em virtude das razões aduzidas, senti a urgência de confirmar, por meio desta carta encíclica, o
grande interesse que a Igreja tem pela filosofia; ou melhor, a ligação íntima do trabalho teológico
com a investigação filosófica da verdade. Daqui nasce o dever que o Magistério tem de discernir e
estimular um pensamento filosófico que não esteja em dissonância com a fé. A minha missão é
propor alguns princípios e pontos de referência, que considero necessários para se poder instaurar
uma relação harmoniosa e eficaz entre a teologia e a filosofia. À luz deles, será possível discernir
com maior clareza se e como deve a teologia relacionar-se com os diversos sistemas ou asserções
filosóficas que o mundo actual apresenta.

CAPÍTULO VI
INTERACÇÃO DA TEOLOGIA COM A FILOSOFIA

1. A ciência da fé e as exigências da razão filosófica

64. A palavra de Deus destina-se a todo o homem, de qualquer época e lugar da terra; e o homem,
por natureza, é filósofo. Por sua vez, a teologia, enquanto elaboração reflexiva e científica da
compreensão da palavra divina à luz da fé, não pode deixar de recorrer às filosofias que vão
surgindo ao longo da história, tanto para algumas das suas formas de proceder como para realizar
funções mais específicas. Sem pretender indicar aos teólogos metodologias particulares — porque
tal não compete ao Magistério —, desejo, porém, lembrar algumas funções próprias da teologia,
onde, por causa da própria natureza da Palavra revelada, se exige o recurso ao pensamento
filosófico.

65. A teologia está organizada, enquanto ciência da fé, à luz dum duplo princípio metodológico:
auditus fidei e intellectus fidei. Com o primeiro, recolhe os conteúdos da Revelação tal como se
foram explicitando progressivamente na Sagrada Tradição, na Sagrada Escritura e no Magistério
vivo da Igreja. [ 88] Pelo segundo, a teologia quer responder às exigências próprias do pensamento,
através da reflexão especulativa.
Quanto à preparação para um correcto auditus fidei, a filosofia proporciona à teologia a sua ajuda
peculiar, quando examina a estrutura do conhecimento e da comunicação pessoal, e sobretudo as
várias formas e funções da linguagem. Igualmente importante é a contribuição da filosofia para uma
compreensão mais coerente da Tradição eclesial, das intervenções do Magistério e das sentenças
dos grandes mestres da teologia: estes, de facto, exprimem-se frequentemente por conceitos e
formas de pensamento conotados com determinada tradição filosófica. Neste caso, pede-se ao
teólogo não só que exponha conceitos e termos através dos quais a Igreja possa reflectir e elaborar a
sua doutrina, mas que conheça profundamente também os sistemas filosóficos que tenham,
porventura, influenciado as noções e a terminologia, a fim de se chegar a interpretações correctas e
coerentes.

66. Relativamente ao intellectus fidei, importa considerar, antes de mais, que a Verdade divina, «
que nos é proposta nas Sagradas Escrituras, interpretadas correctamente pela doutrina da Igreja »,
[89] goza de uma inteligibilidade própria, logicamente tão coerente que se deve propor como um
autêntico saber. O Intellectus fidei explicita esta verdade, não só quando investiga as estruturas
lógicas e conceptuais das proposições em que se articula a doutrina da Igreja, mas também e
sobretudo quando põe em realce o significado salvífico de tais proposições para o indivíduo e para a
humanidade. É pelo conjunto destas proposições que o crente chega a conhecer a história da
salvação, que culmina na pessoa de Jesus Cristo e no seu mistério pascal; ele participa deste
mistério, com a sua adesão de fé.

A teologia dogmática deve ser capaz de articular o sentido universal do mistério de Deus, Uno e
Trino, e da economia da salvação, quer de modo narrativo, quer sobretudo de forma argumentativa.
Por outras palavras, deve fazê-lo mediante expressões conceptuais, formuladas de modo crítico e
universalmente acessível. De facto, sem o contributo da filosofia não seria possível ilustrar certos
conteúdos teológicos como, por exemplo, a linguagem sobre Deus, as relações pessoais no seio da
Santíssima Trindade, a ação criadora de Deus no mundo, a relação entre Deus e o homem, a
identidade de Cristo que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. E o mesmo se diga de diversos
temas da teologia moral, onde é preciso recorrer, de imediato, a conceitos como lei moral,
consciência, liberdade, responsabilidade pessoal, culpa, etc., cuja definição provém da ética
filosófica.

Por isso, é necessário que a razão do crente tenha um conhecimento natural, verdadeiro e coerente
das coisas criadas, do mundo e do homem, que são também objecto da revelação divina; mais ainda,
ela deve ser capaz de articular este conhecimento de maneira conceptual e argumentativa. Assim, a
teologia dogmática especulativa pressupõe e implica uma filosofia do homem, do mundo e, mais
radicalmente, do próprio ser, fundada sobre a verdade objectiva.

67. A teologia fundamental, pelo seu próprio carácter de disciplina que tem por função dar razão da
fé (cf. 1 Ped 3, 15), deverá procurar justificar e explicitar a relação entre a fé e a reflexão filosófica.
Já o Concílio Vaticano I, reafirmando o ensinamento paulino (cf. Rom 1, 19-20), chamara a atenção
para o facto de existirem verdades que se podem conhecer de modo natural e, consequentemente,
filosófico. O seu conhecimento constitui um pressuposto necessário para acolher a revelação de
Deus. Quando a teologia fundamental estuda a Revelação e a sua credibilidade com o relativo acto
de fé, deverá mostrar como emergem, à luz do conhecimento pela fé, algumas verdades que a razão,
autonomamente, já encontra ao longo do seu caminho de pesquisa. A essas verdades, a Revelação
confere-lhes plenitude de sentido, orientando-as para a riqueza do mistério revelado, onde
encontram o seu fim último. Basta pensar, por exemplo, ao conhecimento natural de Deus, à
possibilidade de distinguir a revelação divina de outros fenômenos, ou ao conhecimento da sua
credibilidade, à capacidade que tem a linguagem humana de falar, de modo significativo e
verdadeiro, mesmo do que ultrapassa a experiência humana. Por todas estas verdades, a mente é
levada a reconhecer a existência duma via realmente propedêutica à fé, que pode desembocar no
acolhimento da Revelação, sem faltar minimamente aos seus próprios princípios e autonomia. [ 90]

Da mesma forma, a teologia fundamental deverá manifestar a compatibilidade intrínseca entre a fé e


a sua exigência essencial de se explicitar através de uma razão capaz de dar com plena liberdade o
seu consentimento. Assim, a fé saberá « mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca
sincera da verdade. Deste modo a fé, dom de Deus, apesar de não se basear na razão, decerto não
pode existir sem ela; ao mesmo tempo, surge a necessidade de que a razão se fortifique na fé, para
descobrir os horizontes aos quais, sozinha, não poderia chegar ». [91]

68. A teologia moral tem, possivelmente, uma necessidade ainda maior do contributo filosófico. Na
Nova Aliança, a vida humana está efetivamente muito menos regulada por prescrições do que na
Antiga. A vida no Espírito conduz os crentes a uma liberdade e responsabilidade que ultrapassam a
própria Lei. No entanto, o Evangelho e os escritos apostólicos não deixam de propor ora princípios
gerais de conduta cristã, ora ensinamentos e preceitos específicos; para aplicá-los às circunstâncias
concretas da vida individual e social, o cristão tem necessidade de valer-se plenamente da sua
consciência e da força do seu raciocínio. Por outras palavras, a teologia moral deve recorrer a uma
visão filosófica correta tanto da natureza humana e da sociedade, como dos princípios gerais duma
decisão ética.

69. Talvez se possa objectar que, na situação atual, o teólogo, mais do que à filosofia, deveria
recorrer à ajuda de outras formas do saber humano, concretamente à história e sobretudo às
ciências, de que todos admiram os progressos extraordinários recentemente alcançados. Outros,
impelidos por uma maior sensibilidade à relação entre fé e culturas, defendem que a teologia
deveria dar preferência às sabedorias tradicionais, em vez de uma filosofia de origem grega e
eurocêntrica. Outros ainda, partindo duma concepção errada do pluralismo de culturas, negam
simplesmente o valor universal do patrimônio filosófico abraçado pela Igreja.

Os aspectos sublinhados, já presentes aliás na doutrina conciliar, [92] contêm uma parte de verdade.
O referimento às ciências, útil em muitos casos porque permite um conhecimento mais completo do
objecto de estudo, não deve, porém, fazer esquecer a necessidade que há da mediação duma
reflexão tipicamente filosófica, crítica e aberta ao universal, solicitada também por um fecundo
intercâmbio entre as culturas. A minha preocupação é pôr em destaque o dever de não se ficar pelo
caso isolado e concreto, descuidando assim a tarefa primária que é manifestar o carácter universal
do conteúdo de fé. Além disso, não se deve esquecer que a peculiar contribuição do pensamento
filosófico permite discernir, tanto nas diversas concepções da vida como nas culturas, « não o que
os homens pensam, mas qual é a verdade objectiva ». [ 93] Não as diversas opiniões humanas, mas
somente a verdade pode servir de ajuda à filosofia.

70. Além do mais, o tema da relação com as culturas merece uma reflexão específica, apesar de
necessariamente não exaustiva, pelas implicações que daí derivam para as vertentes filosófica e
teológica. O processo de encontro e comparação com as culturas é uma experiência que a Igreja
viveu desde os começos da pregação do Evangelho. O mandato de Cristo aos discípulos para irem, a
toda a parte « até aos confins do mundo » (Act 1, 8), transmitir a verdade revelada por Ele, fez com
que a comunidade cristã pudesse bem cedo dar-se conta da universalidade do anúncio e dos
obstáculos resultantes da diversidade das culturas. Um trecho da carta de S. Paulo aos cristãos de
Éfeso oferece uma válida ajuda para compreender como a Comunidade Primitiva enfrentou este
problema. Escreve o Apóstolo: « Agora porém, vós, que outrora estáveis longe, pelo Sangue de
Cristo vos aproximastes. Ele é a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de
inimizade que os separava » (2, 13-14).
Iluminada por este texto, a nossa reflexão pode debruçar-se sobre a transformação que se operou
nos gentios quando abraçaram a fé. As barreiras que separam as diversas culturas caem diante da
riqueza da salvação, realizada por Cristo. Agora, em Cristo, a promessa de Deus torna-se uma oferta
universal: não limitada já à dimensão particular de um povo, da sua língua ou dos seus costumes,
mas alargada a todos, como um patrimônio ao qual cada um pode livremente ter acesso. Dos mais
diversos lugares e tradições, todos são chamados, em Cristo, a participar na unidade da família dos
filhos de Deus. Cristo faz com que dois povos se tornem « um só ». Os que « estavam longe »
ficaram « próximo », graças à novidade gerada pelo mistério pascal. Jesus abate os muros de
divisão e realiza a unificação, de um modo original e supremo, por meio da participação no seu
mistério. Esta unidade é tão profunda que a Igreja pode dizer com S. Paulo: « Já não sois hóspedes
nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus » (Ef 2, 19).

Nesta asserção tão simples, está contida uma grande verdade: o encontro da fé com as diversas
culturas deu vida a uma nova realidade. Na verdade, quando as culturas estão profundamente
radicadas na natureza humana, contêm em si mesmas o testemunho da abertura, própria do homem,
ao universal e à transcendência. É por isso que elas apresentam perspectivas distintas da verdade,
que são de evidente utilidade para o homem, porque lhe fazem vislumbrar valores capazes de tornar
a sua existência sempre mais humana. [94] Por outro lado, na medida em que evocam os valores das
tradições antigas, as culturas trazem consigo — embora de modo implícito, mas nem por isso
menos real — a referência à manifestação de Deus na natureza, como se viu antes nos textos
sapienciais e no ensinamento de S. Paulo.

71. Uma vez que as culturas estão intimamente relacionadas com os homens e a sua história,
partilham das mesmas dinâmicas do tempo humano. E, consequentemente, registam transformações
e progressos com os encontros que os homens promovem e com as recíprocas transmissões dos seus
modelos de vida. As culturas alimentam-se com a comunicação de valores, e a sua vitalidade e
subsistência dependem da sua capacidade de permanecerem abertas para acolher a novidade. Como
se explicam tais dinâmicas? Todo o homem está integrado numa cultura; depende dela, e sobre ela
influi. É simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido. Em cada manifestação da sua
vida, o homem traz consigo algo que o caracteriza no meio da criação: a sua constante abertura ao
mistério e o seu desejo inexaurível de conhecimento. Em consequência, cada cultura traz gravada
em si mesma e deixa transparecer a tensão para uma plenitude. Pode-se, portanto, dizer que a
cultura contém em si própria a possibilidade de acolher a revelação divina.

Também o modo como os cristãos vivem a fé, está imbuído da cultura do ambiente circundante, e
vai progressivamente contribuindo, por sua vez, para modelar as características do mesmo. Os
cristãos transmitem, a cada cultura, a verdade imutável que Deus revelou na história e na cultura
dum povo. Ao longo dos séculos, continua a reproduzir-se o mesmo fenómeno testemunhado pelos
peregrinos presentes em Jerusalém, no dia de Pentecostes. Ao escutarem os Apóstolos,
perguntavam-se: « Mas quê! Essa gente que está a falar não é da Galileia? Que se passa, então, para
que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da
Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das
regiões da Líbia, vizinha de Cirene, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes,
ouvimo-los anunciar nas nossas línguas as maravilhas de Deus! » (Act 2, 7-11). O anúncio do
Evangelho nas diversas culturas, ao exigir de cada um dos destinatários a adesão da fé, não os
impede de conservar a própria identidade cultural. Isto não provoca qualquer divisão, pois o povo
dos baptizados distingue-se por uma universalidade que é capaz de acolher todas as culturas,
fazendo com que aquilo que nelas está implícito se desenvolva até à sua explanação plena na
verdade.

Em consequência disto, uma cultura nunca pode servir de critério de juízo e, menos ainda, de
critério último de verdade a respeito da revelação de Deus. O Evangelho não é contrário a esta ou
àquela cultura, como se quisesse, ao encontrar-se com ela, privá-la daquilo que lhe pertence, e a
obrigasse a assumir formas extrínsecas que lhe são estranhas. Pelo contrário, o anúncio que o crente
leva ao mundo e às culturas é uma forma real de libertação de toda a desordem introduzida pelo
pecado e, simultaneamente, uma chamada à verdade plena. Neste encontro, as culturas não são
privadas de nada, antes são estimuladas a abrirem-se à novidade da verdade evangélica, de que
recebem impulso para novos progressos.

72. O facto da missão evangelizadora ter encontrado em primeiro lugar no seu caminho a filosofia
grega, não constitui de forma alguma impedimento para outros relacionamentos. Hoje, à medida
que o Evangelho entra em contacto com áreas culturais que estiveram até agora fora do âmbito de
irradiação do cristianismo, novas tarefas se abrem à inculturação. Colocam-se à nossa geração
problemas análogos aos que a Igreja teve de enfrentar nos primeiros séculos.

O meu pensamento vai espontaneamente até às terras do Oriente, tão ricas de tradições religiosas e
filosóficas muito antigas. Entre elas, ocupa um lugar especial a Índia. Um grande ímpeto espiritual
leva o pensamento indiano a procurar uma experiência que, libertando o espírito dos
condicionamentos de tempo e espaço, tenha valor de absoluto. No dinamismo desta busca de
libertação, situam-se grandes sistemas metafísicos.

Compete aos cristãos de hoje, sobretudo aos da Índia, a tarefa de extrair deste rico património os
elementos compatíveis com a sua fé, para se obter um enriquecimento do pensamento cristão. Nesta
obra de discernimento, que tem a sua fonte de inspiração na declaração conciliar Nostra aetate,
deverão ter em consideração um certo número de critérios. O primeiro é a universalidade do espírito
humano, cujas exigências fundamentais são idênticas nas mais distintas culturas. O segundo,
derivado do anterior, consiste no seguinte: quando a Igreja entra em contacto com grandes culturas
que nunca tinha encontrado antes, não pode pôr de parte o que adquiriu pela inculturação no
pensamento greco-latino. Rejeitar uma tal herança seria contrariar o desígnio providencial de Deus,
que conduz a sua Igreja pelos caminhos do tempo e da história. Aliás, este critério é válido para a
Igreja de todos os tempos — também para a Igreja de amanhã, que se sentirá enriquecida com as
aquisições resultantes do encontro em nossos dias com as culturas orientais, e desta herança há-de
tirar, por sua vez, indicações novas para entrar frutuosamente em diálogo com as culturas que a
humanidade fizer florir no seu caminho rumo ao futuro. Em terceiro lugar, há-de precaver-se por
não confundir a legítima reivindicação de especificidade e originalidade do pensamento indiano,
com a ideia de que uma tradição cultural deve enclausurar-se na sua diferença e afirmar-se pela sua
oposição às outras tradições — ideia essa que seria contrária precisamente à natureza do espírito
humano.

O que fica dito para a Índia, vale também para a herança das grandes culturas da China, do Japão e
demais países da Ásia, bem como das riquezas das culturas tradicionais da África, transmitidas
sobretudo por via oral.

73. À luz destas considerações, a justa relação que se deve instaurar entre a teologia e a filosofia há-
de ser pautada por uma reciprocidade circular. Quanto à teologia, o seu ponto de partida e fonte
primeira terá de ser sempre a palavra de Deus revelada na história, ao passo que o objectivo final só
poderá ser uma compreensão cada vez mais profunda dessa mesma palavra por parte das sucessivas
gerações. Visto que a palavra de Deus é Verdade (cf. Jo 17, 17), uma melhor compreensão dela só
tem a beneficiar com a busca humana da verdade, ou seja, o filosofar, no respeito das leis que lhe
são próprias. Não se trata simplesmente de utilizar, no raciocínio teológico, qualquer conceito ou
parcela dum sistema filosófico; o facto decisivo é que a razão do crente exerce as suas capacidades
de reflexão na busca da verdade, dentro dum movimento que, partindo da palavra de Deus, procura
alcançar uma melhor compreensão da mesma. É claro, de resto, que a razão, movendo-se dentro
destes dois pólos — palavra de Deus e melhor conhecimento desta —, encontra-se prevenida, e de
algum modo guiada, para evitar percursos que poderiam conduzi-la fora da Verdade revelada e, em
última análise, fora pura e simplesmente da verdade; mais ainda, ela sente-se estimulada a explorar
caminhos que, sozinha, nem sequer suspeitaria de poder percorrer. Esta relação de reciprocidade
circular com a Palavra de Deus enriquece a filosofia, porque a razão descobre horizontes novos e
inesperados.

74. A prova da fecundidade de tal relação é oferecida pela própria vida de grandes teólogos cristãos
que se distinguiram também como grandes filósofos, deixando escritos de tamanho valor
especulativo que justificam ser colocados ao lado dos grandes mestres da filosofia antiga. Isto é
válido tanto para os Padres da Igreja, de entre os quais há que citar pelo menos os nomes de S.
Gregório Nazianzeno e S. Agostinho, como para os Doutores medievais entre os quais sobressai a
grande tríade formada por S. Anselmo, S. Boaventura e S. Tomás de Aquino. A relação entre a
filosofia e a palavra de Deus manifesta-se fecunda também na investigação corajosa realizada
por pensadores mais recentes, de entre os quais me apraz mencionar, no âmbito ocidental,
personagens como John Henry Newman, António Rosmini, Jacques Maritain, Étienne Gilson,
Edith Stein, e, no âmbito oriental, estudiosos com a estatura de Vladimir S. Solov'ev, Pavel A.
Florenskij, Petr J. Caadaev, Vladimir N. Losskij. Ao referir estes autores, ao lado dos quais
outros nomes poderiam ser citados, não tenciono obviamente dar aval a todos os aspectos do seu
pensamento, mas apenas propô-los como exemplos significativos dum caminho de pesquisa
filosófica que tirou notáveis vantagens da sua confrontação com os dados da fé. Uma coisa é certa:
a consideração do itinerário espiritual destes mestres não poderá deixar de contribuir para o avanço
na busca da verdade e na utilização dos resultados conseguidos para o serviço do homem. Espera-se
que esta grande tradição filosófico-teológica encontre, hoje e no futuro, os seus continuadores e
estudiosos para bem da Igreja e da humanidade.

2. Diferentes estádios da filosofia

75. Como consta da história das relações entre a fé e a filosofia, apontada acima brevemente, podem
distinguir-se diversos estádios da filosofia relativamente à fé cristã. O primeiro é a filosofia
totalmente independente da revelação evangélica: é o estádio da filosofia, existente historicamente
nas épocas que precederam o nascimento do Redentor, e, mesmo depois dele, nas regiões onde o
Evangelho ainda não chegou. Nesta situação, a filosofia apresenta a legítima aspiração de ser um
empreendimento autónomo, ou seja, que procede segundo as suas próprias leis, valendo-se
simplesmente das forças da razão. Embora cientes dos graves limites devidos à debilidade congénita
da razão humana, uma tal aspiração deve ser apoiada e fortalecida. De facto, o trabalho filosófico,
como busca da verdade no âmbito natural, pelo menos implicitamente permanece aberto ao
sobrenatural.

E, mesmo quando é o próprio discurso teológico que se serve de conceitos e argumentações


filosóficas, a exigência de correcta autonomia do pensamento há-de ser respeitada. Com efeito, a
argumentação conduzida segundo rigorosos critérios racionais é garantia para a obtenção de
resultados universalmente válidos. Também aqui se verifica o princípio segundo o qual a graça não
destrói, mas aperfeiçoa a natureza: a anuência de fé, que envolve a inteligência e a vontade, não
destrói mas aperfeiçoa o livre arbítrio do crente, que acolhe em si próprio o dado revelado.

Desta exigência em si mesma correcta, afasta-se nitidamente a teoria da chamada filosofia «


separada », sustentada por vários filósofos modernos. Mais do que afirmação da justa autonomia do
filosofar, ela constitui a reivindicação duma auto-suficiência do pensamento que é claramente
ilegítima: rejeitar as contribuições de verdade vindas da revelação divina significa efectivamente
impedir o acesso a um conhecimento mais profundo da verdade, danificando precisamente a
filosofia.
76. Um segundo estádio da filosofia é aquilo que muitos designam com a expressão filosofia cristã.
A denominação, em si mesma, é legítima, mas não deve dar margem a equívocos: com ela, não se
pretende aludir a uma filosofia oficial da Igreja, já que a fé enquanto tal não é uma filosofia. Com
aquela designação, deseja-se sobretudo indicar um modo cristão de filosofar, uma reflexão
filosófica concebida em união vital com a fé. Por conseguinte, não se refere simplesmente a uma
filosofia elaborada por filósofos cristãos que, na sua pesquisa, quiseram não contradizer a fé.
Quando se fala de filosofia cristã, pretende-se abraçar todos aqueles importantes avanços do
pensamento filosófico que não seriam alcançados sem a contribuição, directa ou indirecta, da fé
cristã.

Assim, a filosofia cristã contém dois aspectos: um subjectivo, que consiste na purificação da razão
por parte da fé. Esta, enquanto virtude teologal, liberta a razão da presunção — uma típica tentação
a que os filósofos facilmente estão sujeitos. Já S. Paulo e os Padres da Igreja, e mais recentemente
filósofos, como Pascal e Kierkegaard, a estigmatizaram. Com a humildade, o filósofo adquire
também a coragem para enfrentar algumas questões que dificilmente poderia resolver sem ter em
consideração os dados recebidos da Revelação. Basta pensar, por exemplo, aos problemas do mal e
do sofrimento, à identidade pessoal de Deus e à questão acerca do sentido da vida, ou, mais
diretamente, à pergunta metafísica radical: « Porque existe o ser? ».

Temos, depois, o aspecto objectivo, que diz respeito aos conteúdos: a Revelação propõe claramente
algumas verdades que, embora sejam acessíveis à razão por via natural, possivelmente nunca seriam
descobertas por ela, se tivesse sido abandonada a si própria. Colocam-se, neste horizonte, questões
como o conceito de um Deus pessoal, livre e criador, que tanta importância teve para o progresso do
pensamento filosófico e, de modo particular, para a filosofia do ser. Pertence ao mesmo âmbito a
realidade do pecado, tal como é vista pela luz da fé, e que ajuda a filosofia a enquadrar
adequadamente o problema do mal. Também a concepção da pessoa como ser espiritual é uma
originalidade peculiar da fé: o anúncio cristão da dignidade, igualdade e liberdade dos homens
influiu seguramente sobre a reflexão filosófica, realizada pelos filósofos modernos. Nos tempos
mais recentes, pode-se mencionar a descoberta da importância que tem, também para a filosofia, o
acontecimento histórico, centro da revelação cristã. Não foi por acaso que aquele se tornou perne de
uma filosofia da história, que se apresenta como um novo capítulo da busca humana da verdade.

Entre os elementos objectivos da filosofia cristã, inclui-se também a necessidade de explorar a


racionalidade de algumas verdades expressas pela Sagrada Escritura, tais como a possibilidade de
uma vocação sobrenatural do homem, e também o próprio pecado original. São tarefas que induzem
a razão a reconhecer que existe a verdade e o racional, muito para além dos limites estreitos onde
ela seria tentada a encerrar-se. Estas temáticas ampliam, de facto, o âmbito do racional.

Ao reflectirem sobre estes conteúdos, os filósofos não se tornaram teólogos, já que não procuraram
compreender e ilustrar as verdades da fé a partir da Revelação; continuaram a trabalhar no seu
próprio terreno e com a sua metodologia puramente racional, mas alargando a sua investigação a
novos âmbitos da verdade. Pode-se dizer que, sem este influxo estimulante da palavra de Deus, boa
parte da filosofia moderna e contemporânea não existiria. O dado mantém toda a sua relevância,
mesmo diante da constatação decepcionante de não poucos pensadores destes últimos séculos que
abandonaram a ortodoxia cristã.

77. Outro estádio significativo da filosofia verifica-se quando é a própria teologia que chama em
causa a filosofia. Na verdade, a teologia sempre teve, e continua a ter, necessidade da contribuição
filosófica. Realizado pela razão crítica à luz da fé, o trabalho teológico pressupõe e exige, ao longo
de toda a sua pesquisa, uma razão conceptual e argumentativamente educada e formada. Além
disso, a teologia precisa da filosofia como interlocutora, para verificar a inteligibilidade e a verdade
universal das suas afirmações. Não foi por acaso que os Padres da Igreja e os teólogos medievais
assumiram, para tal função explicativa, filosofias não cristãs. Este facto histórico indica o valor da
autonomia que a filosofia conserva mesmo neste terceiro estádio, mas mostra igualmente as
transformações necessárias e profundas que ela deve sofrer.

É precisamente no sentido de uma contribuição indispensável e nobre que a filosofia foi chamada,
desde a Idade Patrística, ancilla theologiæ. De facto, o título não foi atribuído para indicar uma
submissão servil ou um papel puramente funcional da filosofia relativamente à teologia; mas no
mesmo sentido em que Aristóteles falava das ciências experimentais como « servas » da « filosofia
primeira ». A expressão, hoje dificilmente utilizável devido aos princípios de autonomia antes
mencionados, foi usada ao longo da história para indicar a necessidade da relação entre as duas
ciências e a impossibilidade de uma sua separação.

Se o teólogo se recusasse a utilizar a filosofia, arriscar-se-ia a fazer filosofia sem o saber e a fechar-
se em estruturas de pensamento pouco idóneas à compreensão da fé. Se o filósofo, por sua vez,
excluísse todo o contacto com a teologia, ver-se-ia na obrigação de apoderar-se por conta própria
dos conteúdos da fé cristã, como aconteceu com alguns filósofos modernos. Tanto num caso como
noutro, surgiria o perigo da destruição dos princípios básicos de autonomia que cada ciência
justamente quer ver garantidos.

O estádio da filosofia agora considerado, devido às implicações que comporta na compreensão da


Revelação, está, como acontece com a teologia, mais directamente colocado sob a autoridade do
Magistério e do seu discernimento, como expus mais acima. Das verdades de fé derivam,
efectivamente, determinadas exigências que a filosofia deve respeitar, quando entra em relação com
a teologia.

78. À luz destas reflexões, é fácil compreender porque tenha o Magistério louvado reiteradamente
os méritos do pensamento de S. Tomás, e o tenha proposto como guia e modelo dos estudos
teológicos. O que interessava não era tomar posição sobre questões propriamente filosóficas, nem
impor a adesão a teses particulares; o objectivo do Magistério era, e continua a ser, mostrar como S.
Tomás é um autêntico modelo para quantos buscam a verdade. De facto, na sua reflexão, a
exigência da razão e a força da fé encontraram a síntese mais elevada que o pensamento jamais
alcançou, enquanto soube defender a novidade radical trazida pela Revelação, sem nunca humilhar
o caminho próprio da razão.

79. Ao explicitar melhor os conteúdos do Magistério precedente, é minha intenção, nesta última
parte, indicar algumas exigências que a teologia — e, ainda antes, a palavra de Deus — coloca,
hoje, ao pensamento filosófico e às filosofias actuais. Como já assinalei, o filósofo deve proceder
segundo as próprias regras e basear-se sobre os próprios princípios; todavia, a verdade é uma só. A
Revelação, com os seus conteúdos, não poderá nunca humilhar a razão nas suas descobertas e na
sua legítima autonomia; a razão, por sua vez, não deverá perder nunca a sua capacidade de
interrogar-se e de interrogar, consciente de não poder arvorar-se em valor absoluto e exclusivo. A
verdade revelada, projectando plena luz sobre o ser a partir do esplendor que lhe vem do próprio Ser
subsistente, iluminará o caminho da reflexão filosófica. Em resumo, a revelação cristã torna-se o
verdadeiro ponto de enlace e confronto entre o pensar filosófico e o teológico, no seu recíproco
intercâmbio. Espera-se, pois, que teólogos e filósofos se deixem guiar unicamente pela autoridade
da verdade, para que seja elaborada uma filosofia de harmonia com a palavra de Deus. Esta filosofia
será o terreno de encontro entre as culturas e a fé cristã, o espaço de entendimento entre crentes e
não crentes. Ajudará os crentes a convencerem-se mais intimamente de que a profundidade e a
autenticidade da fé saem favorecidas quando esta se une ao pensamento e não renuncia a ele. Mais
uma vez, encontramos nos Padres a lição que nos guia nesta convicção: « Crer, nada mais é senão
pensar consentindo [...]. Todo o que crê, pensa; crendo pensa, e pensando crê [...]. A fé, se não for
pensada, nada é ». [ 95] Mais: « Se se tira o assentimento, tira-se a fé, pois, sem o assentimento,
realmente não se crê ». [ 96]

CAPÍTULO VII
EXIGÊNCIAS E TAREFAS ACTUAIS

1. As exigências irrenunciáveis da palavra de Deus

80. A Sagrada Escritura contém, de forma explícita ou implícita, toda uma série de elementos que
permite alcançar uma perspectiva de notável densidade filosófica acerca do homem e do mundo. Os
cristãos foram gradualmente tomando consciência da riqueza contida naquelas páginas sagradas.
Delas se conclui que a realidade que experimentamos, não é o absoluto: não é incriada, nem se
autogerou. Só Deus é o Absoluto. Nas páginas da Bíblia, o homem é visto como imago Dei, que
contém indicações precisas sobre o seu ser, a sua liberdade e a imortalidade do seu espírito. Uma
vez que o mundo criado não é autosuficiente, qualquer ilusão de autonomia que ignore a essencial
dependência de Deus de toda criatura — incluindo o homem — leva a dramas que destroem a busca
racional da harmonia e do sentido da existência humana.

Também o problema do mal moral — a forma mais trágica do mal — é considerado na Bíblia,
dizendo-nos que este não pode ser reduzido a uma mera deficiência devida à matéria, mas é uma
ferida que provém de uma manifestação desordenada da liberdade humana. Finalmente, a palavra
de Deus apresenta o problema do sentido da existência e revela a resposta para o mesmo,
encaminhando o homem para Jesus Cristo, o Verbo de Deus encarnado, que realiza em plenitude a
existência humana. Poder-se-iam ainda explicitar outros aspectos da leitura do texto sagrado; de
qualquer modo, o que sobressai é a rejeição de toda a forma de relativismo, materialismo,
panteísmo.

A convicção fundamental desta « filosofia » presente na Bíblia é que a vida humana e o mundo têm
um sentido e caminham para a sua plenitude, que se verifica em Jesus Cristo. O mistério da
Encarnação permanecerá sempre o centro de referência para se poder compreender o enigma da
existência humana, do mundo criado, e mesmo de Deus. A filosofia encontra, neste mistério, os
desafios extremos, porque a razão é chamada a assumir uma lógica que destrói as barreiras onde ela
mesma corre o risco de se fechar. Somente aqui, porém, o sentido da existência alcança o seu ponto
culminante. Com efeito, torna-se inteligível a essência íntima de Deus e do homem: no mistério do
Verbo encarnado, são salvaguardadas a natureza divina e a natureza humana, com sua respectiva
autonomia, e simultaneamente manifesta-se aquele vínculo único que as coloca em mútuo
relacionamento, sem confusão. [ 97]

81. Deve ter-se em conta que um dos dados mais salientes da nossa situação actual consiste na «
crise de sentido ». Os pontos de vista, muitas vezes de carácter científico, sobre a vida e o mundo
multiplicaram-se tanto que estamos efectivamente assistindo à afirmação crescente do fenómeno da
fragmentação do saber. É precisamente isto que torna difícil e frequentemente vã a procura de um
sentido. E, mais dramático ainda, neste emaranhado de dados e de factos, em que se vive e que
parece constituir a própria trama da existência, tantos se interrogam se ainda tem sentido pôr-se a
questão do sentido. A pluralidade das teorias que se disputam a resposta, ou os diversos modos de
ver e interpretar o mundo e a vida do homem não fazem senão agravar esta dúvida radical, que
facilmente desemboca num estado de cepticismo e indiferença ou nas diversas expressões do
niilismo.
Em consequência disto, o espírito humano fica muitas vezes ocupado por uma forma de pensamento
ambíguo, que o leva a encerrar-se ainda mais em si próprio, dentro dos limites da própria
imanência, sem qualquer referência ao transcendente. Privada da questão do sentido da existência,
uma filosofia incorreria no grave perigo de relegar a razão para funções meramente instrumentais,
sem uma autêntica paixão pela busca da verdade.

Para estar em consonância com a palavra de Deus ocorre, antes de mais, que a filosofia volte a
encontrar a sua dimensão sapiencial de procura do sentido último e global da vida. Esta primeira
exigência, por sinal, constitui um estímulo utilíssimo para a filosofia se conformar com a sua
própria natureza. Deste modo, ela não será apenas aquela instância crítica decisiva que indica, às
várias partes do saber científico, o seu fundamento e os seus limites, mas representará também a
instância última de unificação do saber e do agir humano, levando-os a convergirem para um fim e
um sentido definitivos. Esta dimensão sapiencial é ainda mais indispensável hoje, uma vez que o
imenso crescimento do poder técnico da humanidade requer uma renovada e viva consciência dos
valores últimos. Se viesse a faltar a estes meios técnicos a sua orientação para um fim não
meramente utilitarista, poderiam rapidamente revelar-se desumanos e transformar-se mesmo em
potenciais destrutores do género humano. [ 98]

A palavra de Deus revela o fim último do homem, e dá um sentido global à sua acção no mundo.
Por isso, ela convida a filosofia a empenhar-se na busca do fundamento natural desse sentido, que é
a religiosidade constitutiva de cada pessoa. Uma filosofia que quisesse negar a possibilidade de um
sentido último e global, seria não apenas imprópria, mas errónea.

82. De resto, este papel sapiencial não poderia ser desempenhado por uma filosofia que não fosse,
ela própria, um autêntico e verdadeiro saber, isto é, debruçado não só sobre os aspectos particulares
e relativos — sejam eles funcionais, formais ou úteis — da realidade, mas sobre a verdade total e
definitiva desta, ou seja, sobre o próprio ser do objecto de conhecimento. Daqui, uma segunda
exigência: verificar a capacidade do homem chegar ao conhecimento da verdade; mais, um
conhecimento que alcance a verdade objectiva por meio daquela adæquatio rei et intellectus, a que
se referem os Doutores da Escolástica. [ 99] Esta exigência, própria da fé, foi explicitamente
reafirmada pelo Concílio Vaticano II: « A inteligência, de facto, não se limita ao domínio dos
fenómenos; embora, em consequência do pecado, esteja parcialmente obscurecida e debilitada, ela é
capaz de atingir com certeza a realidade inteligível ». [100]

Uma filosofia, radicalmente fenomenista ou relativista, revelar-se-ia inadequada para ajudar no


aprofundamento da riqueza contida na palavra de Deus. De facto, a Sagrada Escritura sempre
pressupõe que o homem, mesmo quando culpável de duplicidade e mentira, é capaz de conhecer e
captar a verdade clara e simples. Nos Livros Sagrados, e de modo particular no Novo Testamento,
encontram-se textos e afirmações de alcance propriamente ontológico. Os autores inspirados, com
efeito, quiseram formular afirmações verdadeiras, isto é, capazes de exprimir a realidade objectiva.
Não se pode dizer que a tradição católica tenha cometido um erro, quando entendeu alguns textos
de S. João e de S. Paulo como afirmações sobre o ser mesmo de Cristo. Ora, quando a teologia
procura compreender e explicar estas afirmações, tem necessidade do auxílio duma filosofia que
não renegue a possibilidade de um conhecimento objectivamente verdadeiro, embora sempre
passível de aperfeiçoamento. Isto vale também para os juízos da consciência moral, que a Sagrada
Escritura supõe ser objectivamente verdadeiros. [ 101]

83. As duas exigências, já referidas, implicam uma terceira: ocorre uma filosofia de alcance
autenticamente metafísico, isto é, capaz de transcender os dados empíricos para chegar, na sua
busca da verdade, a algo de absoluto, definitivo, básico. Trata-se duma exigência implícita tanto no
conhecimento de tipo sapiencial, como de carácter analítico; de modo particular, é uma exigência
própria do conhecimento do bem moral, cujo fundamento último é o sumo Bem, o próprio Deus.
Não é minha intenção falar aqui da metafísica enquanto escola específica ou particular corrente
histórica; desejo somente afirmar que a realidade e a verdade transcendem o elemento factível e
empírico, e quero reivindicar a capacidade que o homem possui de conhecer esta dimensão
transcendente e metafísica de forma verdadeira e certa, mesmo se imperfeita e analógica. Neste
sentido, a metafísica não deve ser vista como alternativa à antropologia, pois é precisamente ela que
permite dar fundamento ao conceito da dignidade da pessoa, assente na sua condição espiritual. De
modo particular, a pessoa constitui um âmbito privilegiado para o encontro com o ser e,
consequentemente, com a reflexão metafísica.

Em toda a parte onde o homem descobre a presença dum apelo ao absoluto e ao transcendente, lá se
abre uma fresta para a dimensão metafísica do real: na verdade, na beleza, nos valores morais, na
pessoa do outro, no ser, em Deus. Um grande desafio, que nos espera no final deste milénio, é saber
realizar a passagem, tão necessária como urgente, do fenómeno ao fundamento. Não é possível
deter-se simplesmente na experiência; mesmo quando esta exprime e manifesta a interioridade do
homem e a sua espiritualidade, é necessário que a reflexão especulativa alcance a substância
espiritual e o fundamento que a sustenta. Portanto, um pensamento filosófico que rejeitasse
qualquer abertura metafísica, seria radicalmente inadequado para desempenhar um papel de
mediação na compreensão da Revelação.

A palavra de Deus alude continuamente a realidades que ultrapassam a experiência e até mesmo o
pensamento do homem; mas, este « mistério » não poderia ser revelado, nem a teologia poderia de
modo algum torná-lo inteligível, [ 102] se o conhecimento humano se limitasse exclusivamente ao
mundo da experiência sensível. Por isso, a metafísica constitui uma intermediária privilegiada na
pesquisa teológica. Uma teologia, privada do horizonte metafísico, não conseguiria chegar além da
análise da experiência religiosa, não permitindo ao intellectus fidei exprimir coerentemente o valor
universal e transcendente da verdade revelada.

Se insisto tanto na componente metafísica, é porque estou convencido de que este é o caminho
obrigatório para superar a situação de crise que aflige actualmente grandes sectores da filosofia e,
desta forma, corrigir alguns comportamentos errados, difusos na nossa sociedade.

84. A importância da instância metafísica torna-se ainda mais evidente, quando se considera o
progresso actual das ciências hermenêuticas e das diferentes análises da linguagem. Os resultados
alcançados por estes estudos podem ser muito úteis para a compreensão da fé, enquanto manifestam
a estrutura do nosso pensar e falar, e o sentido presente na linguagem. Existem, porém, especialistas
destas ciências que tendem, nas suas pesquisas, a deter-se no modo como se compreende e exprime
a realidade, prescindindo de verificar a possibilidade de a razão descobrir a essência da mesma.
Como não individuar neste comportamento uma confirmação da crise de confiança, que a nossa
época está a atravessar, acerca das capacidades da razão? Além disso, quando estas teses, baseando-
se em convicções apriorísticas, tendem a ofuscar os conteúdos da fé ou a negar a sua validade
universal, então não só humilham a razão, mas colocam-se por si mesmas fora de jogo. De facto, a
fé pressupõe claramente que a linguagem humana seja capaz de exprimir de modo universal —
embora em termos analógicos, mas nem por isso menos significativos — a realidade divina e
transcendente. [ 103] Se assim não fosse, a palavra de Deus, que é sempre palavra divina em
linguagem humana, não seria capaz de exprimir nada sobre Deus. A interpretação desta Palavra não
pode remeter-nos apenas de uma interpretação para outra, sem nunca nos fazer chegar a uma
afirmação absolutamente verdadeira; caso contrário, não haveria revelação de Deus, mas só a
expressão de noções humanas sobre Ele e sobre aquilo que presumivelmente Ele pensa de nós.

85. Bem sei que, aos olhos de muitos dos que actualmente se entregam à pesquisa filosófica, podem
parecer árduas estas exigências postas pela palavra de Deus à filosofia. Por isso mesmo, retomando
aquilo que, já há algumas gerações, os Sumos Pontífices não cessam de ensinar e que o próprio
Concílio Vaticano II confirmou, quero exprimir vigorosamente a convicção de que o homem é
capaz de alcançar uma visão unitária e orgânica do saber. Esta é uma das tarefas que o pensamento
cristão deverá assumir durante o próximo milénio da era cristã. A subdivisão do saber, enquanto
comporta uma visão parcial da verdade com a consequente fragmentação do seu sentido, impede a
unidade interior do homem de hoje. Como poderia a Igreja deixar de preocupar-se? Os Pastores
recebem esta função sapiencial directamente do Evangelho, e não podem eximir-se do dever de
concretizá-la.

Considero que todos os que actualmente desejam responder, como filósofos, às exigências que a
palavra de Deus põe ao pensamento humano, deveriam elaborar o seu raciocínio sobre a base destes
postulados, numa coerente continuidade com aquela grande tradição que, partindo dos antigos,
passa pelos Padres da Igreja e os mestres da escolástica até chegar a englobar as conquistas
fundamentais do pensamento moderno e contemporâneo. Se conseguir recorrer a esta tradição e
inspirar-se nela, o filósofo não deixará de se mostrar fiel à exigência de autonomia do pensamento
filosófico.

Neste sentido, é muito importante que, no contexto actual, alguns filósofos se façam promotores da
descoberta do papel determinante que tem a tradição para uma forma correcta de conhecimento. De
facto, o recurso à tradição não é uma mera lembrança do passado; mas constitui sobretudo o
reconhecimento dum património cultural que pertence a toda a humanidade. Poder-se-ia mesmo
dizer que somos nós que pertencemos à tradição, e por isso não podemos dispor dela a nosso bel-
prazer. É precisamente este enraizamento na tradição que hoje nos permite poder exprimir um
pensamento original, novo e aberto para o futuro. Esta observação é ainda mais pertinente para a
teologia, não só porque ela possui a Tradição viva da Igreja como fonte originária, [ 104] mas
também porque ela, em virtude disso mesmo, deve ser capaz de recuperar quer a profunda tradição
teológica que marcou as épocas precedentes, quer a tradição perene daquela filosofia que, pela sua
real sabedoria, conseguiu superar as fronteiras do espaço e do tempo.

86. A insistência sobre a necessidade duma estreita relação de continuidade entre a reflexão
filosófica actual e a reflexão elaborada na tradição cristã visa prevenir do perigo que se esconde em
algumas correntes de pensamento, hoje particularmente difusas. Embora brevemente, considero
oportuno deter-me sobre elas, para pôr em relevo os seus erros e consequentes riscos para a
actividade filosófica.

A primeira aparece sob o nome de ecletismo, termo com o qual se designa o comportamento de
quem, na pesquisa, na doutrina e na argumentação, mesmo teológica, costuma assumir ideias
tomadas isoladamente de distintas filosofias, sem se preocupar com a sua coerência e conexão
sistemática, nem com o seu contexto histórico. Deste modo, a pessoa fica impossibilitada de
discernir entre a parte de verdade dum pensamento e aquilo que nele pode ser errado ou
inadequado. Também é possível individuar uma forma extrema de ecletismo no abuso retórico dos
termos filosóficos, às vezes praticado por alguns teólogos. Este género de instrumentalização não
favorece a busca da verdade, nem educa a razão — tanto teológica, como filosófica — a argumentar
de forma séria e científica. O estudo rigoroso e profundo das doutrinas filosóficas, da linguagem
que lhes é peculiar, e do contexto onde surgiram, ajuda a superar os riscos do ecletismo e permite
uma adequada integração daquelas na argumentação teológica.

87. O ecletismo é um erro de método, mas poderia também ocultar em si as teses próprias do
historicismo. Para compreender correctamente uma doutrina do passado, é necessário que esteja
inserida no seu contexto histórico e cultural. Diversamente, o historicismo toma como sua tese
fundamental estabelecer a verdade duma filosofia com base na sua adequação a um determinado
período e função histórica. Deste modo nega-se, pelo menos implicitamente, a validade perene da
verdade. O que era verdade numa época, afirma o historicista, pode já não sê-lo noutra. Em resumo,
a história do pensamento, para ele, reduz-se a uma espécie de achado arqueológico, a que recorre a
fim de pôr em evidência posições do passado, em grande parte já superadas e sem significado para o
tempo presente. Ora, apesar de a formulação estar de certo modo ligada ao tempo e à cultura, deve-
se considerar que a verdade ou o erro nela expressos podem ser, não obstante a distância espácio-
temporal, reconhecidos e avaliados como tais.

Na reflexão teológica, o historicismo tende a maior parte das vezes a apresentar-se sob uma forma
de « modernismo ». Com a justa preocupação de tornar o discurso teológico actual e assimilável
para o homem contemporâneo, faz-se apenas uso das asserções e termos filosóficos mais recentes,
descuidando exigências críticas que, à luz da tradição, dever-se-iam eventualmente colocar. Esta
forma de modernismo, pelo simples facto de trocar a actualidade pela verdade, revela-se incapaz de
satisfazer as exigências de verdade a que a teologia é chamada a dar resposta.

88. Outro perigo a ser considerado é o cientificismo. Esta concepção filosófica recusa-se a admitir,
como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas,
relegando para o âmbito da pura imaginação tanto o conhecimento religioso e teológico, como o
saber ético e estético. No passado, a mesma ideia aparecia expressa no positivismo e no
neopositivismo, que consideravam destituídas de sentido as afirmações de carácter metafísico. A
crítica epistemológica desacreditou esta posição; mas, vemo-las agora renascer sob as novas vestes
do cientificismo. Na sua perspectiva, os valores são reduzidos a simples produtos da emotividade, e
a noção de ser é posta de lado para dar lugar ao facto puro e simples. A ciência, prepara-se assim
para dominar todos os aspectos da existência humana, através do progresso tecnológico. Os
sucessos inegáveis no âmbito da pesquisa científica e da tecnologia contemporânea contribuíram
para a difusão da mentalidade cientificista, que parece não conhecer fronteiras, quando vemos como
penetrou nas diversas culturas e as mudanças radicais que aí provocou.

Infelizmente, deve-se constatar que o cientificismo considera tudo o que se refere à questão do
sentido da vida como fazendo parte do domínio do irracional ou da fantasia. Ainda mais
decepcionante é a perspectiva apresentada por esta corrente de pensamento a respeito dos outros
grandes problemas da filosofia que, quando não passam simplesmente ignorados, são analisados
com base em analogias superficiais, destituídas de fundamentação racional. Isto leva ao
empobrecimento da reflexão humana, subtraindo-lhe aqueles problemas fundamentais que o animal
rationale se tem colocado constantemente, desde o início da sua existência sobre a terra. Na mesma
linha, ao pôr de lado a crítica que nasce da avaliação ética, a mentalidade cientificista conseguiu
fazer com que muitos aceitassem a ideia de que aquilo que se pode realizar tecnicamente, torna-se
por isso mesmo também moralmente admissível.

89. Portador de perigos não menores é o pragmatismo, atitude mental própria de quem, ao fazer as
suas opções, exclui o recurso a reflexões abstractas ou a avaliações fundadas sobre princípios éticos.
As consequências práticas, que derivam desta linha de pensamento, são notáveis. De modo
particular, tem vindo a ganhar terreno uma concepção da democracia que não contempla o
referimento a fundamentos de ordem axiológica e, por isso mesmo, imutáveis: a admissibilidade, ou
não, de determinado comportamento é decidida com base no voto da maioria parlamentar. [ 105] A
consequência de semelhante posição é clara: as grandes decisões morais do homem ficam
efectivamente subordinadas às deliberações que os órgãos institucionais vão assumindo pouco a
pouco. Mais, a própria antropologia fica fortemente condicionada com a proposta duma visão
unidimensional do ser humano, da qual se excluem os grandes dilemas éticos e as análises
existenciais sobre o sentido do sofrimento e do sacrifício, da vida e da morte.

90. As teses examinadas até aqui conduzem, por sua vez, a uma concepção mais geral, que parece
constituir, hoje, o horizonte comum de muitas filosofias que não querem saber do sentido do ser.
Estou a referir-me à leitura niilista, que é a rejeição de qualquer fundamento e simultaneamente a
negação de toda a verdade objectiva. O niilismo, antes mesmo de estar em contraste com as
exigências e os conteúdos próprios da palavra de Deus, é negação da humanidade do homem e
também da sua identidade. De facto, é preciso ter em conta que o olvido do ser implica
inevitavelmente a perda de contacto com a verdade objectiva e, consequentemente, com o
fundamento sobre o qual se apoia a dignidade do homem. Deste modo, abre-se espaço à
possibilidade de apagar, da face do homem, os traços que revelam a sua semelhança com Deus,
conduzindo-o progressivamente a uma destrutiva ambição de poder ou ao desespero da solidão.
Uma vez que se privou o homem da verdade, é pura ilusão pretender torná-lo livre. Verdade e
liberdade, com efeito, ou caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem. [ 106]

91. Ao comentar as correntes de pensamento acima lembradas, não foi minha intenção apresentar
um quadro completo da situação actual da filosofia: aliás, esta dificilmente poderia ser integrada
numa visão unitária. Faço questão de assinalar que a herança do saber e da sabedoria se enriqueceu
efectivamente em diversos campos. Basta citar a lógica, a filosofia da linguagem, a epistemologia, a
filosofia da natureza, a antropologia, a análise profunda das vias afectivas do conhecimento, a
perspectiva existencial aplicada à análise da liberdade. Por outro lado, a afirmação do princípio de
imanência, que está no âmago da pretensão racionalista, suscitou, a partir do século passado,
reacções que levaram a pôr radicalmente em questão postulados considerados indiscutíveis.
Nasceram assim correntes irracionalistas, ao mesmo tempo que a crítica punha em evidência a
inutilidade da exigência de auto-fundamentação absoluta da razão.

A nossa época foi definida por certos pensadores como a época da « pós-modernidade ». Este
termo, não raramente usado em contextos muito distanciados entre si, designa a aparição de um
conjunto de factores novos, que, pela sua extensão e eficácia, se revelaram capazes de determinar
mudanças significativas e duradouras. Assim, o termo foi primeiramente usado no campo de
fenómenos de ordem estética, social, tecnológica. Depois, estendeu-se ao âmbito filosófico,
permanecendo, porém, marcado por certa ambiguidade, quer porque a avaliação do que se define
como « pós-moderno » é umas vezes positivo e outras negativo, quer porque não existe consenso
sobre o delicado problema da delimitação das várias épocas históricas. Uma coisa, todavia, é certa:
as correntes de pensamento que fazem referência à pós-modernidade merecem adequada atenção.
Segundo algumas delas, de facto, o tempo das certezas teria irremediavelmente passado, o homem
deveria finalmente aprender a viver num horizonte de ausência total de sentido, sob o signo do
provisório e do efémero. Muitos autores, na sua crítica demolidora de toda a certeza e ignorando as
devidas distinções, contestam inclusivamente as certezas da fé.

De algum modo, este niilismo encontra confirmação na terrível experiência do mal que caracterizou
a nossa época. O optimismo racionalista que via na história o avanço vitorioso da razão, fonte de
felicidade e de liberdade, não pôde resistir face à dramaticidade de tal experiência, a ponto de uma
das maiores ameaças, neste final de século, ser a tentação do desespero.

Verdade é que uma certa mentalidade positivista continua a defender a ilusão de que, graças às
conquistas científicas e técnicas, o homem, como se fosse um demiurgo, poderá chegar por si
mesmo a garantir o domínio total do seu destino.

2. Tarefas actuais da teologia

92. Enquanto compreensão da Revelação, a teologia, nas sucessivas épocas históricas, sempre
sentiu como próprio dever escutar as solicitações das várias culturas, para permeá-las depois,
através duma coerente conceptualização, com o conteúdo da fé. Também hoje lhe compete uma
dupla tarefa. Por um lado, deve cumprir a missão que o Concílio Vaticano II lhe confiou: renovar as
suas metodologias, tendo em vista um serviço mais eficaz à evangelização. Nesta perspectiva, como
não pensar às palavras pronunciadas pelo Sumo Pontífice João XXIII, na abertura do Concílio?
Dizia ele: « Correspondendo à viva expectativa de quantos amam sinceramente a religião cristã,
católica e apostólica, é necessário que esta doutrina seja conhecida mais ampla e profundamente e
que nela sejam instruídas e formadas mais plenamente as consciências; é preciso que esta doutrina
certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada segundo as
exigências do nosso tempo ». [ 107]

Mas, por outro lado, a teologia deve manter o olhar fixo sobre a verdade última que lhe foi confiada
por meio da Revelação, não se contentando nem se detendo em etapas intermédias. O teólogo
recorde-se de que o seu trabalho corresponde « ao dinamismo interior próprio da fé » e que o
objecto específico da sua indagação é « a Verdade, o Deus vivo e o seu desígnio de salvação
revelado em Jesus Cristo ». [ 108] Esta tarefa, que diz respeito em primeiro lugar à teologia,
interpela também a filosofia. De facto, a quantidade imensa de problemas, que hoje aparece, requer
um trabalho comum, embora desenvolvido com metodologias diversas, para que a verdade possa
novamente ser conhecida e anunciada. A Verdade, que é Cristo, impõe-se como autoridade universal
que rege, estimula e faz crescer (cf. Ef 4, 15) tanto a teologia como a filosofia.

O facto de acreditar na possibilidade de se conhecer uma verdade universalmente válida não é de


forma alguma fonte de intolerância; pelo contrário, é condição necessária para um diálogo sincero e
autêntico entre as pessoas. Só com esta condição será possível superar as divisões e percorrer juntos
o caminho que conduz à verdade total, seguindo por sendas que só Espírito do Senhor ressuscitado
conhece. [109] O modo como se configura hoje concretamente a exigência de unidade, tendo em
vista as tarefas actuais da teologia, é o que desejo agora indicar.

93. O objectivo fundamental, que a teologia persegue, é apresentar a compreensão da Revelação e o


conteúdo da fé. Assim, o verdadeiro centro da sua reflexão há-de ser a contemplação do próprio
mistério de Deus Uno e Trino. E a este chega-se reflectindo sobre o mistério da encarnação do Filho
de Deus: sobre o facto de Ele Se fazer homem e, depois, caminhar até à paixão e à morte, mistério
este que desembocará na sua gloriosa ressurreição e ascensão à direita do Pai, donde enviará o
Espírito de verdade para constituir e animar a sua Igreja. Neste horizonte, a obrigação primeira da
teologia é a compreensão da kenosi de Deus, mistério verdadeiramente grande para a mente
humana, porque lhe parece insustentável que o sofrimento e a morte possam exprimir o amor que se
dá sem pedir nada em troca. Nesta perspectiva, impõe-se como exigência fundamental e urgente
uma análise atenta dos textos: os textos bíblicos primeiro, e depois os que exprimem a Tradição
viva da Igreja. A este respeito, surgem hoje alguns problemas, novos só em parte, cuja solução
coerente não poderá ser encontrada sem o contributo da filosofia.

94. Um primeiro aspecto problemático refere-se à relação entre o significado e a verdade. Como
qualquer outro texto, também as fontes que o teólogo interpreta transmitem, antes de mais, um
significado, que tem de ser individuado e exposto. Ora, este significado apresenta-se como a
verdade acerca de Deus, que é comunicada pelo próprio Deus por meio do texto sagrado. Assim, a
linguagem de Deus toma corpo na linguagem humana, comunicando a verdade sobre Ele mesmo
com aquela « condescendência » admirável que reflecte a lógica da Encarnação. [ 110] Por isso, ao
interpretar as fontes da Revelação, é necessário que o teólogo se interrogue sobre qual seja a
verdade profunda e genuína que os textos querem comunicar, embora dentro dos limites da
linguagem.

Quanto aos textos bíblicos, e em particular os Evangelhos, a sua verdade não se reduz seguramente
à narração de simples acontecimentos históricos ou à revelação de factos neutros, como pretendia o
positivismo historicista. [ 111] Pelo contrário, esses textos expõem acontecimentos, cuja verdade
está para além da mera ocorrência histórica: está no seu significado para e dentro da história da
salvação. Esta verdade adquire a sua plena explicitação na leitura perene que a Igreja faz dos
referidos textos ao longo dos séculos, mantendo inalterado o seu significado originário. Portanto, é
urgente que se interroguem, filosoficamente também, sobre a relação que há entre o facto e o seu
significado; relação essa que constitui o sentido específico da história.

95. A palavra de Deus não se destina apenas a um povo ou só a uma época. De igual modo, também
os enunciados dogmáticos formulam uma verdade permanente e definitiva, ainda que às vezes se
possa notar neles a cultura do período em que foram definidos. Surge, assim, a pergunta sobre como
seja possível conciliar o carácter absoluto e universal da verdade com o inevitável condicionamento
histórico e cultural das fórmulas que a exprimem. Como disse anteriormente, as teses do
historicismo não são defendíveis. Pelo contrário, a aplicação duma hermenêutica aberta à questão
metafísica é capaz de mostrar como se passa das circunstâncias históricas e contingentes, onde
maturaram os textos, à verdade por eles expressa que está para além desses condicionalismos.

Com a sua linguagem histórica e limitada, o homem pode exprimir verdades que transcendem o
fenómeno linguístico. De facto, a verdade nunca pode estar limitada a um tempo, nem a uma
cultura; é conhecida na história, mas supera a própria história.

96. Esta consideração permite vislumbrar a solução de outro problema: o da perene validade dos
conceitos usados nas definições conciliares. Já o meu venerado Predecessor Pio XII enfrentara a
questão, na carta encíclica Humani generis. [ 112]

A reflexão sobre este assunto não é fácil, porque tem-se de atender cuidadosamente ao sentido que
as palavras adquirem nas diversas culturas e nas diferentes épocas. Entretanto, a história do
pensamento mostra que certos conceitos básicos mantêm, através da evolução e da variedade das
culturas, o seu valor cognoscitivo universal e, consequentemente, a verdade das proposições que os
exprimem. [ 113] Se assim não fosse, a filosofia e as ciências não poderiam comunicar entre si, nem
ser recebidas por culturas diferentes daquelas onde foram pensadas e elaboradas. O problema
hermenêutico é real, mas tem solução. O valor objectivo de muitos conceitos não exclui, aliás, que o
seu significado frequentemente seja imperfeito. A reflexão filosófica poderia ser de grande ajuda
neste campo. Possa ela prestar o seu contributo particular no aprofundamento da relação entre
linguagem conceptual e verdade, e na proposta de caminhos adequados para uma sua correcta
compreensão.

97. Se uma tarefa importante da teologia é a interpretação das fontes, mais delicado e exigente ainda
é o trabalho seguinte: a compreensão da verdade revelada, ou seja, a elaboração do intellectus fidei.
Como já aludi, o intellectus fidei requer o contributo duma filosofia do ser que, antes de mais,
permita à teologia dogmática realizar adequadamente as suas funções. O pragmatismo dogmático
dos inícios deste século, segundo o qual as verdades da fé nada mais seriam do que regras de
comportamento, foi já refutado e rejeitado; [ 114] apesar disso, persiste sempre a tentação de
compreender estas verdades de forma puramente funcional. Neste caso, cair-se-ia num esquema
inadequado, redutivo e desprovido da necessária incisividade especulativa. Por exemplo, uma
cristologia que partisse unilateralmente « de baixo », como hoje se costuma dizer, ou uma
eclesiologia elaborada unicamente a partir do modelo das sociedades civis dificilmente poderiam
evitar o perigo de tal reducionismo.

Se o intellectus fidei quer integrar toda a riqueza da tradição teológica, tem de recorrer à filosofia do
ser. Esta deverá ser capaz de propor o problema do ser segundo as exigências e as contribuições de
toda a tradição filosófica, incluindo a mais recente, evitando cair em estéreis repetições de
esquemas antiquados. No quadro da tradição metafísica cristã, a filosofia do ser é uma filosofia
dinâmica que vê a realidade nas suas estruturas ontológicas, causais e inter-relacionais. A sua força
e perenidade derivam do facto de se basear precisamente sobre o acto do ser, o que lhe permite uma
abertura plena e global a toda a realidade, superando todo e qualquer limite até alcançar Aquele que
tudo leva à perfeição. [ 115] Na teologia, que recebe os seus princípios da Revelação como nova
fonte de conhecimento, esta perspectiva é confirmada através da relação íntima entre fé e
racionalidade metafísica.

98. Idênticas considerações podem ser feitas a propósito da teologia moral. A recuperação da
filosofia é urgente também para a compreensão da fé que diz respeito ao agir dos crentes. Diante
dos desafios que se levantam actualmente no campo social, económico, político e científico, a
consciência ética do homem desorientou-se. Na carta encíclica Veritatis splendor, pus em evidência
que muitos problemas do mundo contemporâneo derivam de uma « crise em torno da verdade.
Perdida a ideia duma verdade universal sobre o bem, cognoscível pela razão humana, mudou
também inevitavelmente a concepção de consciência: esta deixa de ser considerada na sua realidade
original, ou seja, como um acto da inteligência da pessoa, a quem cabe aplicar o conhecimento
universal do bem a uma determinada situação e exprimir assim um juízo sobre a conduta justa a ter
aqui e agora; tende-se a conceder à consciência do indivíduo o privilégio de estabelecer
autonomamente os critérios do bem e do mal, e de agir em consequência. Esta visão identifica-se
com uma ética individualista, na qual cada um se vê confrontado com a sua verdade, diferente da
verdade dos outros ». [116]

Ao longo de toda a encíclica agora citada, sublinhei claramente o papel fundamental que compete à
verdade no campo da moral. Ora esta verdade, na maior parte dos problemas éticos mais urgentes,
requer, da teologia moral, uma cuidadosa reflexão que saiba pôr em evidência as suas raízes na
palavra de Deus. Para poder desempenhar esta sua missão, a teologia moral deve recorrer a uma
ética filosófica que tenha em vista a verdade do bem, isto é, uma ética que não seja subjectivista
nem utilitarista. Tal ética implica e pressupõe uma antropologia filosófica e uma metafísica do bem.
A teologia moral, valendo-se desta visão unitária que está necessariamente ligada à santidade cristã
e à prática das virtudes humanas e sobrenaturais, será capaz de enfrentar os vários problemas que
lhe dizem respeito — tais como a paz, a justiça social, a família, a defesa da vida e do ambiente
natural — de forma mais adequada e eficaz.

99. Na Igreja, o trabalho teológico está, primariamente, ao serviço do anúncio da fé e da catequese.


[ 117] O anúncio, ou querigma, chama à conversão, propondo a verdade de Cristo que tem o seu
ponto culminante no Mistério Pascal: na verdade, só em Cristo é possível conhecer a plenitude da
verdade que salva (cf. Act 4, 12; 1 Tim 2, 4-6).

Neste contexto, é fácil compreender a razão por que, além da teologia, assuma também grande
relevo a referência à catequese: é que esta possui implicações filosóficas que têm de ser
aprofundadas à luz da fé. A doutrina ensinada na catequese pretende formar a pessoa. Por isso a
catequese, que é também comunicação linguística, deve apresentar a doutrina da Igreja na sua
integridade, [ 118] mostrando a ligação que ela tem com a vida dos crentes. [ 119] Realiza-se,
assim, uma singular união entre doutrina e vida, que é impossível conseguir de outro modo. De
facto, aquilo que se comunica na catequese não é um corpo de verdades conceptuais, mas o mistério
do Deus vivo. [120]

A reflexão filosófica muito pode contribuir para esclarecer a relação entre verdade e vida, entre
acontecimento e verdade doutrinal, e sobretudo a relação entre verdade transcendente e linguagem
humanamente inteligível. [ 121] A reciprocidade que se cria entre as disciplinas teológicas e os
resultados alcançados pelas diversas correntes filosóficas, pode traduzir-se numa real fecundidade
para a comunicação da fé e para uma sua compreensão mais profunda.

CONCLUSÃO

100. Passados mais de cem anos da publicação da encíclica Æterni Patris de Leão XIII, à qual me
referi várias vezes nestas páginas, pareceu-me necessário abordar novamente e de forma mais
sistemática o discurso sobre o tema da relação entre a fé e a filosofia. É óbvia a importância que o
pensamento filosófico tem no progresso das culturas e na orientação dos comportamentos pessoais e
sociais. Embora isso nem sempre se note de forma explícita, ele exerce também uma grande
influência sobre a teologia e suas diversas disciplinas. Por estes motivos, considerei justo e
necessário sublinhar o valor que a filosofia tem para a compreensão da fé, e as limitações em que
aquela se vê, quando esquece ou rejeita as verdades da Revelação. De facto, a Igreja continua
profundamente convencida de que fé e razão « se ajudam mutuamente », [ 122] exercendo, uma em
prol da outra, a função tanto de discernimento crítico e purificador, como de estímulo para progredir
na investigação e no aprofundamento.

101. Se detivermos o nosso olhar sobre a história do pensamento, sobretudo no Ocidente, é fácil
constatar a riqueza que sobreveio, para o progresso da humanidade, do encontro da filosofia com a
teologia e do intercâmbio das suas respectivas conquistas. A teologia, que recebeu o dom duma
abertura e originalidade que lhe permite existir como ciência da fé, fez seguramente com que a
razão permanecesse aberta diante da novidade radical que a revelação de Deus traz consigo. E isto
foi, sem dúvida alguma, uma vantagem para a filosofia, que, assim, viu abrirem-se novos horizontes
apontando para sucessivos significados que a razão está chamada a aprofundar.

Precisamente à luz desta constatação, tal como reafirmei o dever que tem a teologia de recuperar a
sua genuína relação com a filosofia, da mesma forma sinto a obrigação de sublinhar que é
conveniente para o bem e o progresso do pensamento que também a filosofia recupere a sua relação
com a teologia. Nesta, encontrará não a reflexão dum mero indivíduo, que, embora profunda e rica,
sempre traz consigo as limitações de perspectiva próprias do pensamento de um só, mas a riqueza
duma reflexão comum. De facto, quando indaga sobre a verdade, a teologia, por sua natureza, é
sustentada pela nota da eclesialidade [ 123] e pela tradição do Povo de Deus, com sua riqueza
multiforme de conhecimentos e de culturas na unidade da fé.

102. Com tal insistência sobre a importância e as autênticas dimensões do pensamento filosófico, a
Igreja promove a defesa da dignidade humana e, simultaneamente, o anúncio da mensagem
evangélica. Ora, para estas tarefas, não existe, hoje, preparação mais urgente do que esta: levar os
homens à descoberta da sua capacidade de conhecer a verdade [ 124] e do seu anseio pelo sentido
último e definitivo da existência. À luz destas exigências profundas, inscritas por Deus na natureza
humana, aparece mais claro também o significado humano e humanizante da palavra de Deus.
Graças à mediação de uma filosofia que se tornou também verdadeira sabedoria, o homem
contemporâneo chegará a reconhecer que será tanto mais homem quanto mais se abrir a Cristo,
acreditando no Evangelho.

103. Além disso, a filosofia é como que o espelho onde se reflecte a cultura dos povos. Uma
filosofia que se desenvolve de harmonia com a fé aceitando o estímulo das exigências teológicas,
faz parte daquela « evangelização da cultura » que Paulo VI propôs como um dos objectivos
fundamentais da evangelização. [125] Pensando na nova evangelização, cuja urgência não me canso
de recordar, faço apelo aos filósofos para que saibam aprofundar aquelas dimensões de verdade,
bem e beleza, a que dá acesso a palavra de Deus. Isto torna-se ainda mais urgente, ao considerar os
desafios que o novo milénio parece trazer consigo: eles tocam de modo particular as regiões e as
culturas de antiga tradição cristã. Este cuidado deve considerar-se também um contributo
fundamental e original para o avanço da nova evangelização.

104. O pensamento filosófico é frequentemente o único terreno comum de entendimento e diálogo


com quem não partilha a nossa fé. O movimento filosófico contemporâneo exige o empenhamento
solícito e competente de filósofos crentes que sejam capazes de individuar as expectativas,
possibilidades e problemáticas deste momento histórico. Discorrendo à luz da razão e segundo as
suas regras, o filósofo cristão, sempre guiado naturalmente pela leitura superior que lhe vem da
palavra de Deus, pode criar uma reflexão que seja compreensível e sensata mesmo para quem ainda
não possua a verdade plena que a revelação divina manifesta. Este terreno comum de entendimento
e diálogo é ainda mais importante hoje, se se pensa que os problemas mais urgentes da humanidade
— como, por exemplo, o problema ecológico, o problema da paz ou da convivência das raças e das
culturas — podem ter solução à luz duma colaboração clara e honesta dos cristãos com os fiéis
doutras religiões e com todos os que, mesmo não aderindo a qualquer crença religiosa, têm a peito a
renovação da humanidade. Afirmou-o o Concílio Vaticano II: « Por nossa parte, o desejo de um tal
diálogo, guiado apenas pelo amor pela verdade e com a necessária prudência, não exclui ninguém:
nem aqueles que cultivam os altos valores do espírito humano, sem ainda conhecerem o seu Autor,
nem aqueles que se opõem à Igreja e, de várias maneiras, a perseguem ». [ 126] Uma filosofia, na
qual já resplandeça algo da verdade de Cristo, única resposta definitiva aos problemas do homem,
[127] será um apoio eficaz para aquela ética verdadeira e simultaneamente universal de que, hoje, a
humanidade tem necessidade.

105. Não posso concluir esta carta encíclica sem dirigir um último apelo, em primeiro lugar aos
teólogos, para que prestem particular atenção às implicações filosóficas da palavra de Deus e
realizem uma reflexão onde sobressaia a densidade especulativa e prática da ciência teológica.
Desejo agradecer-lhes o seu serviço eclesial. A estrita conexão entre a sabedoria teológica e o saber
filosófico é uma das riquezas mais originais da tradição cristã no aprofundamento da verdade
revelada. Por isso, exorto-os a recuperarem e a porem em evidência o melhor possível a dimensão
metafísica da verdade, para desse modo entrarem num diálogo crítico e exigente quer com o
pensamento filosófico contemporâneo, quer com toda a tradição filosófica, esteja esta em sintonia
ou contradição com a palavra de Deus. Tenham sempre presente a indicação dum grande mestre do
pensamento e da espiritualidade, S. Boaventura, que, ao introduzir o leitor na sua obra Itinerarium
mentis in Deum, convidava-o a ter consciência de que « a leitura não é suficiente sem a compunção,
o conhecimento sem a devoção, a investigação sem o arrebatamento do enlevo, a prudência sem a
capacidade de abandonar-se à alegria, a actividade separada da religiosidade, o saber separado da
caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem o suporte da graça divina, a reflexão sem a
sabedoria inspirada por Deus ». [ 128]

Dirijo o meu apelo também a quantos têm a responsabilidade da formação sacerdotal, tanto
académica como pastoral, para que cuidem, com particular atenção, da preparação filosófica
daquele que deverá anunciar o Evangelho ao homem de hoje, e mais ainda se se vai dedicar à
investigação e ao ensino da teologia. Procurem organizar o seu trabalho à luz das prescrições do
Concílio Vaticano II [ 129] e sucessivas determinações, que mostram a tarefa indeclinável e urgente,
que cabe a todos nós, de contribuir para uma genuína e profunda comunicação das verdades da fé.
Não se esqueça a grave responsabilidade de uma preparação prévia e condigna do corpo docente,
destinado ao ensino da filosofia nos Seminários e nas Faculdades Eclesiásticas. [130] É necessário
que uma tal docência possua a conveniente preparação científica, proponha de maneira sistemática
o grande património da tradição cristã, e seja efectuada com o devido discernimento face às
exigências actuais da Igreja e do mundo.

106. O meu apelo dirige-se ainda aos filósofos e a quantos ensinam a filosofia, para que, na esteira
duma tradição filosófica perenemente válida, tenham a coragem de recuperar as dimensões de
autêntica sabedoria e de verdade, inclusive metafísica, do pensamento filosófico. Deixem-se
interpelar pelas exigências que nascem da palavra de Deus, e tenham a força de elaborar o seu
discurso racional e argumentativo de resposta a tal interpelação. Vivam em permanente tensão para
a verdade e atentos ao bem que existe em tudo o que é verdadeiro. Poderão, assim, formular aquela
ética genuína de que a humanidade tem urgente necessidade, sobretudo nestes anos. A Igreja
acompanha com atenção e simpatia as suas investigações; podem, pois, estar seguros do respeito
que ela nutre pela justa autonomia da sua ciência. De modo particular, quero encorajar os crentes
empenhados no campo da filosofia para que iluminem os diversos âmbitos da actividade humana,
graças ao exercício de uma razão que se torna mais segura e perspicaz com o apoio que recebe da
fé.

Não posso, enfim, deixar de dirigir uma palavra também aos cientistas, que nos proporcionam, com
as suas pesquisas, um conhecimento sempre maior do universo inteiro e da variedade
extraordinariamente rica dos seus componentes, animados e inanimados, com suas complexas
estruturas de átomos e moléculas. O caminho por eles realizado atingiu, especialmente neste século,
metas que não cessam de nos maravilhar. Ao exprimir a minha admiração e o meu encorajamento a
estes valorosos pioneiros da pesquisa científica, a quem a humanidade muito deve do seu progresso
actual, sinto o dever de exortá-los a prosseguir nos seus esforços, permanecendo sempre naquele
horizonte sapiencial onde aos resultados científicos e tecnológicos se unem os valores filosóficos e
éticos, que são manifestação característica e imprescindível da pessoa humana. O cientista está bem
cônscio de que « a busca da verdade, mesmo quando se refere a uma realidade limitada do mundo
ou do homem, jamais termina; remete sempre para alguma coisa que está acima do objecto imediato
dos estudos, para os interrogativos que abrem o acesso ao Mistério ». [131]

107. A todos peço para se debruçarem profundamente sobre o homem, que Cristo salvou no
mistério do seu amor, e sobre a sua busca constante de verdade e de sentido. Iludindo-o, vários
sistemas filosóficos convenceram-no de que ele é senhor absoluto de si mesmo, que pode decidir
autonomamente sobre o seu destino e o seu futuro, confiando apenas em si próprio e nas suas
forças. Ora, esta nunca poderá ser a grandeza do homem. Para a sua realização, será determinante
apenas a opção de viver na verdade, construindo a própria casa à sombra da Sabedoria e nela
habitando. Só neste horizonte da verdade poderá compreender, com toda a clareza, a sua liberdade e
o seu chamamento ao amor e ao conhecimento de Deus como suprema realização de si mesmo.

108. Por último, o meu pensamento dirige-se para Aquela que a oração da Igreja invoca como Sede
da Sabedoria. A sua vida é uma verdadeira parábola, capaz de iluminar a reflexão que desenvolvi.
De facto, pode-se entrever uma profunda analogia entre a vocação da bem-aventurada Virgem
Maria e a vocação da filosofia genuína. Como a Virgem foi chamada a oferecer toda a sua
humanidade e feminilidade para que o Verbo de Deus pudesse encarnar e fazer-Se um de nós,
também a filosofia é chamada a dar o seu contributo racional e crítico para que a teologia, enquanto
compreensão da fé, seja fecunda e eficaz. E como Maria, ao prestar o seu consentimento ao anúncio
de Gabriel, nada perdeu da sua verdadeira humanidade e liberdade, assim também o pensamento
filosófico, quando acolhe a interpelação que recebe da verdade do Evangelho, nada perde da sua
autonomia, antes vê toda a sua indagação elevada à mais alta realização. Os santos monges da
antiguidade cristã tinham compreendido bem esta verdade, quando designavam Maria como « a
mesa intelectual da fé ». [ 132] N'Ela, viam a imagem coerente da verdadeira filosofia, e estavam
convencidos de que deviam philosophari in Maria.

Que a Sede da Sabedoria seja o porto seguro para quantos consagram a sua vida à procura da
sabedoria! O caminho para a sabedoria, fim último e autêntico de todo o verdadeiro saber, possa
ver-se livre de qualquer obstáculo por intercessão d'Aquela que, depois de gerar a Verdade e tê-La
conservado no seu coração, comunicou-A para sempre à humanidade inteira.

Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 14 de Setembro — Festa da Exaltação da Santa Cruz —
de 1998, vigésimo ano de Pontificado.

IOANNES PAULUS PP. II


1 Na minha primeira encíclica, a Redemptor hominis, já tinha escrito: « Tornámo-nos participantes
de tal missão de Cristo profeta, e, em virtude desta mesma missão e juntamente com Ele, servimos a
verdade divina na Igreja. A responsabilidade por esta verdade implica também amá-la e procurar
obter a sua mais exacta compreensão, a fim de a tornarmos mais próxima de nós mesmos e dos
outros, com toda a sua força salvífica, com o seu esplendor, com a sua profundidade e
simultaneamente a sua simplicidade » [N. 19: AAS 71 (1979), 306].

2 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
16.

3 Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 25.

4 N. 4: AAS 85 (1993), 1136.

5 Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 2.

6 Cf. Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, III: DS 3008.

7 Ibid., IV: DS 3015; citado também em Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 59.

8 Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 2.

9 João Paulo II, Carta ap. Tertio millennio adveniente (10 de Novembro de 1994), 10: AAS 87
(1995), 11.

10 N. 4.

11 N. 8.

12 N. 22.

13 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum , 4.

14 Ibid., 5.

15 O Concílio Vaticano I, ao qual se refere a sentença anteriormente citada, ensina que a obediência
da fé exige o empenhamento da inteligência e da vontade: « Dado que o homem depende totalmente
de Deus, enquanto seu Criador e Senhor, e a razão criada está submetida completamente à verdade
incriada, somos obrigados, quando Deus Se revela, a prestar-Lhe, mediante a fé, a plena submissão
da nossa inteligência e da nossa vontade » [Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, III: DS
3008].

16 Sequência, na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.

17 Pensées (ed. L. Brunschvicg), 789.

18 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.

19 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 2.

20 Proémio e nn. 1 e 15: PL 158, 223-224.226.235.


21 De vera religione, XXXIX, 72: CCL 32, 234.

22 « Ut te semper desiderando quærerent et inveniendo quiescerent »: Missale Romanum.

23 Aristóteles, Metafísica, I, 1.

24 Confessiones, X, 23, 33: CCL 27,173.

25 N. 34: AAS 85 (1993), 1161.

26 Cf. João Paulo II, Carta ap. Salvifici doloris (11 de Fevereiro de 1984), 9: AAS 76 (1984), 209-
210.

27 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra
ætate, 2.

28 Desenvolvo, há muito tempo, esta argumentação, tendo-a expresso em diversas ocasiões: «


"Quem é o homem, e para que serve? E que bem ou que mal pode ele fazer?" ( Sir 18, 8) (...) Estas
perguntas estão no coração de cada homem, como bem demonstra o génio poético de todos os
tempos e de todos os povos, que, quase como profecia da humanidade, repropõe continuamente a
séria pergunta que torna o homem verdadeiramente tal. Exprimem a urgência de encontrar um
porquê da existência, de todos os seus instantes, tanto das suas etapas salientes e decisivas como dos
seus momentos mais comuns. Em tais perguntas, é testemunhada a razão profunda da existência
humana, pois nelas a inteligência e a vontade do homem são solicitadas a procurar livremente a
solução capaz de oferecer um sentido pleno à vida. Estes interrogativos, portanto, constituem a
expressão mais elevada da natureza do homem; por conseguinte, a resposta a eles mede a
profundidade do seu empenho na própria existência. Em particular, quando o porquê das coisas é
procurado a fundo em busca da resposta última e mais exauriente, então a razão humana atinge o
seu vértice e abre-se à religiosidade. De facto, a religiosidade representa a expressão mais elevada
da pessoa humana, porque é o ápice da sua natureza racional. Brota da profunda aspiração do
homem à verdade, e está na base da busca livre e pessoal que ele faz do divino » [ Alocução da
Audiência Geral de quarta-feira, 19 de Outubro de 1983, 1-2: L'Osservatore Romano (ed.
portuguesa, de 23 de Outubro de 1983), 12].

29 « [Galileu] declarou explicitamente que as duas verdades, de fé e de ciência, não podem nunca
contradizer-se, "procedendo igualmente do Verbo divino a Escritura santa e a natureza, a primeira
como ditada pelo Espírito Santo, a segunda como executora fidelíssima das ordens de Deus",
segundo ele escreveu na sua carta ao Padre Benedetto Castelli, a 21 de Dezembro de 1613. O
Concílio Vaticano II não se exprime diferentemente; retoma mesmo expressões semelhantes,
quando ensina: "A investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo (...)
segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé
têm origem no mesmo Deus" ( Gaudium et spes, 36). Galileu manifesta, na sua investigação
científica, a presença do Criador que o estimula, que Se antecipa às suas intuições e as ajuda,
operando no mais profundo do seu espírito » [João Paulo II, Discurso à Pontifícia Academia das
Ciências, a 10 de Novembro de 1979: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa, de 25 de Novembro
de 1979), 6].
30 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 4.

31 Orígenes, Contra Celso 3, 55: SC 136, 130.

32 Diálogo com Trifão, 8, 1: PG 6, 492.


33 Stromata I, 18, 90, 1: SC 30, 115.

34 Cf. ibid. I, 16, 80, 5: SC 30, 108.

35 Cf. ibid. I, 5, 28, 1: SC 30, 65.

36 Ibid., VI, 7, 55, 1-2: PG 9, 277.

37 Ibid., I, 20, 100, 1: SC 30, 124.

38 Santo Agostinho, Confessiones VI, 5, 7: CCL 27, 77-78.

39 Cf. ibid. VII, 9, 13-14: CCL 27, 101-102.

40 « Quid ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiæ et ecclesiæ? » [De præscriptione


hereticorum, VII, 9: SC 46, 98].

41 Cf. Congr. da Educação Católica, Instr. sobre o estudo dos Padres da Igreja na formação
sacerdotal (10 de Novembro de 1989), 25: AAS 82 (1990), 617-618.

42 Santo Anselmo, Proslogion, 1: PL 158, 226.

43 Idem, Monologion, 64: PL 158, 210.

44 Cf. S. Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, I, VII.

45 « Cum enim gratia non tollat naturam, sed perficiat » [Idem, Summa theologiæ, I, 1, 8 ad 2].

46 Cf. João Paulo II, Discurso aos participantes no IX Congresso Tomista Internacional (29 de
Setembro de 1990): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28 de Outubro de 1990), 9.

47 Carta ap. Lumen Ecclesiæ (20 de Novembro de 1974), 8: AAS 66 (1974), 680.

48 « Præterea, hæc doctrina per studium acquiritur. Sapientia autem per infusionem habetur, unde
inter septem dona Spiritus Sancti connumeratur » [Summa theologiæ, I, 1, 6].

49 Ibid., II, II, 45, 1 ad 2; cf. também II, II, 45, 2.

50 Ibid., I, II, 109, 1 ad 1, que cita a conhecida frase do Ambrosiaster, In prima Cor 12,3: PL 17,
258.

51 Leão XIII, Carta enc. Æterni Patris (4 de Agosto de 1879): AAS 11 (1878-1879), 109.

52 Paulo VI, Carta ap. Lumen Ecclesiæ (20 de Novembro de 1974), 8: AAS 66 (1974), 683.

53 Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 15: AAS 71 (1979), 286.

54 Cf. Pio XII, Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 566.

55 Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Primeira const. dogm. sobre a Igreja de Cristo Pastor Aeternus: DS
3070; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 25c.
56 Cf. Sínodo de Constantinopla, DS 403.

57 Cf. Concílio de Toledo I, DS 205; Concílio de Braga I, DS 459-460; Sisto V, Bula Cœli et terræ
Creator (5 de Janeiro de 1586): Bullarium Romanum 44 (Roma, 1747), 176-179; Urbano VIII,
Inscrutabilis iudiciorum (1 de Abril de 1631): Bullarium Romanum 61 (Roma, 1758), 268-270.

58 Cf. Conc. Ecum. de Viena, Decr. Fidei catholicæ: DS 902; Conc. Ecum. Lateranense V, Bula
Apostolici regiminis: DS 1440.

59 Cf. Theses a Ludovico Eugenio Bautain iussu sui Episcopi subscriptæ (8 de Setembro de 1840):
DS 2751-2756; Theses a Ludovico Eugenio Bautain ex mandato S. Congr. Episcoporum et
Religiosorum subscriptæ (26 de Abril de 1844): DS 2765-2769.

60 Cf. S. Congr. Indicis, Decr. Theses contra traditionalismum Augustini Bonnety (11 de Junho de
1855): DS 2811-2814.

61 Cf. Pio IX, Breve Eximiam tuam (15 de Junho de 1857): DS 2828-2831; Breve Gravissimas
inter (11 de Dezembro de 1862): DS 2850-2861.

62 Cf. S. Congr. do Santo Ofício, Decr. Errores ontologistarum (18 de Setembro de 1861): DS
2841-2847.

63 Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, II: DS 3004; e cân. 2-§1: DS
3026.

64 Ibid., IV: DS 3015, citado em Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 59.

65 Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, IV: DS 3017.

66 Cf. Carta enc. Pascendi dominici gregis (8 de Setembro de 1907): ASS 40 (1907), 596-597.

67 Cf. Pio XI, Carta enc. Divini Redemptoris (19 de Março de 1937): AAS 29 (1937), 65-106.

68 Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 562-563.

69 Ibid.: o.c., 563-564.

70 Cf. João Paul o II, Const. ap. Pastor Bonus (28 de Junho de 1988) arts. 48-49: AAS 80 (1988),
873; Congr. da Doutrina da Fé, Instr. sobre a vocação eclesial do teólogo Donum veritatis (24 de
Maio de 1990), 18: AAS 82 (1990), 1558.

71 Cf. Instr. sobre alguns aspectos da « teologia da libertação » Libertatis nuntius (6 de Agosto de
1984), VII-X: AAS 76 (1984), 890-903.

72 Com sua palavra clara e de grande autoridade, o Concílio Vaticano I tinha já condenado este
erro, ao afirmar, por um lado, que, « relativamente à fé (...), a Igreja Católica preconiza que é uma
virtude sobrenatural pela qual, sob a inspiração divina e com a ajuda da graça, acreditamos que são
verdadeiras as coisas por Ele reveladas, não por causa da verdade intrínseca das coisas percebida
pela luz natural da razão, mas por causa da autoridade do próprio Deus que as revela, o qual não
pode enganar-Se nem enganar » [Const. dogm. sobre a doutrina católica Dei Filius, III: DS 3008; e
cân. 3-§ 2: DS 3032]. E, por outro lado, o Concílio declarava que a razão nunca « chega a ser capaz
de penetrar [tais mistérios], nem as verdades que formam o seu objecto específico » [ibid., IV: DS
3016]. Daqui tirava a seguinte conclusão prática: « Os fiéis cristãos não só não têm o direito de
defender, como legítimas conclusões da ciência, as opiniões reconhecidas contrárias à doutrina da
fé, especialmente quando estão condenadas pela Igreja, mas são estritamente obrigados a considerá-
las como erros, que apenas têm uma ilusória aparência de verdade » [ibid., IV: DS 3018].

73 Cf. nn. 9-10.

74 Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 10.

75 Ibid., 21.

76 Cf. ibid., 10.

77 Cf. Carta enc. Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 565-567.571-573.

78 Cf. Carta enc. Æterni Patris (4 de Agosto de 1879): ASS 11 (1878-1879), 97-115.

79 Ibid.: o.c., 109.

80 Cf. nn. 14-15.

81 Cf. ibid., 20-21.

82 Ibid., 22; cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 8: AAS 71
(1979), 271-272.

83 Decr. sobre a formação sacerdotal Optatam totius, 15.

84 Cf. João Paulo II, Const. ap. Sapientia christiana (15 de Abril de 1979), arts. 79-80: AAS 71
(1979), 495-496; Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25 de Março de 1992), 52: AAS 84
(1992), 750-751. Vejam-se também algumas reflexões sobre a filosofia de S. Tomás: Discurso na
Pontifícia Universidade de S. Tomás (17 de Novembro de 1979): L'Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 1; Discurso aos participantes no VIII Congresso Tomista
Internacional (13 de Setembro de 1980): L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 28 de Setembro
de 1980), 4; Discurso aos participantes no Congresso Internacional da Sociedade S. Tomás de
Aquino sobre « A doutrina tomista da alma » (4 de Janeiro de 1986): L'Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 12 de Janeiro de 1986), 9. E ainda: S. Congr. da Educação Católica, Ratio
fundamentalis institutionis sacerdotalis (6 de Janeiro de 1970), 70-75: AAS 62 (1970), 366-368;
Decr. Sacra theologia (20 de Janeiro de 1972): AAS 64 (1972), 583-586.

85 Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 57.62.

86 Cf. ibid., 44.

87 Cf. Bula Apostolici regimini sollicitudo, Sessão VIII: Conc. Ecum. Decreta (1991), 605-606.

88 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 10.

89 S. Tomás de Aquino, Summa theologiæ, II-II, 5, 3 ad 2.


90 « A busca das condições, nas quais o homem faz por si próprio as primeiras perguntas
fundamentais acerca do sentido da vida, do fim que lhe deseja dar e daquilo que o espera depois da
morte, constitui para a Teologia Fundamental o preâmbulo necessário, para que, também hoje, a fé
possa mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca sincera da verdade » [João Paulo II,
Carta aos participantes no Congresso Internacional de Teologia Fundamental por ocasião do 125º
aniversário da promulgação da Const. dogm. « Dei Filius » (30 de Setembro de 1995), 4:
L'Osservatore Romano, (ed. portuguesa de 7 de Outubro de 1995), 10].

91 Ibid., 4: o.c., 10.

92 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
15; Decr. sobre a actividade missionária da Igreja Ad gentes, 22.

93 S. Tomás de Aquino, De Cœlo 1, 22.

94 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
53-59.

95 S. Agostinho, De prædestinatione Sanctorum 2, 5: PL 44, 963.

96 Idem, De fide, spe et caritate, 7: CCL 64, 61.

97 Cf. Conc. Ecum. de Calcedónia, Symbolum, definitio: DS 302.

98 Cf. João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 15: AAS 71 (1979), 286-
289.

99 Veja-se, por exemplo, S. Tomás de Aquino, Summa theologiæ, I, 16, 1; S. Boaventura, Coll. in
Hex., 3, 8, 1.

100 Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 15.

101 Cf. João Paulo II, Carta enc. Veritatis splendor (6 de Agosto de 1993), 57-61: AAS 85 (1993),
1179-1182.

102 Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, IV: DS 3016.

103 Cf. Conc. Ecum. Lateranense IV, De errore abbatis Ioachim, II: DS 806.

104 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 24; Decr. sobre a
formação sacerdotal Optatam totius, 16.

105 Cf. João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitæ (25 de Março de 1995), 69: AAS 87 (1995), 481.

106 Neste mesmo sentido, escrevi na minha primeira encíclica, comentando a frase « conhecereis a
verdade, e a verdade tornar-vos-á livres » do Evangelho de S. João (8, 32): « Estas palavras
encerram em si uma exigência fundamental e, ao mesmo tempo, uma advertência: a exigência de
uma relação honesta para com a verdade, como condição de uma autêntica liberdade; e a
advertência, ademais, para que seja evitada qualquer verdade aparente, toda a liberdade superficial e
unilateral, toda a liberdade que não compreenda cabalmente a verdade sobre o homem e sobre o
mundo. Ainda hoje, depois de dois mil anos, Cristo continua a aparecer-nos como Aquele que traz
ao homem a liberdade baseada na verdade, como Aquele que liberta o homem daquilo que limita,
diminui e como que despedaça pelas próprias raízes essa liberdade, na alma do homem, no seu
coração e na sua consciência » [Carta enc. Redemptor hominis (4 de Março de 1979), 12: AAS 71
(1979), 280-281].

107 Discurso de abertura do Concílio (11 de Outubro de 1962): AAS 54 (1962), 792.

108 Congr. da Doutrina da Fé, Instr. sobre a vocação eclesial do teólogo #13; Donum veritatis (24
de Maio de 1990), 7-8: AAS 82 (1990), 1552-1553.

109 Escrevi na encíclica Dominum et vivificantem, comentando Jo 16, 12-13: « Jesus apresenta o
Consolador, o Espírito da Verdade, como Aquele que "ensinará e recordará", como Aquele que
"dará testemunho" d'Ele; agora diz: "Ele vos guiará para a verdade total". Este "guiar para a verdade
total", em relação com aquilo que "os Apóstolos por agora não estão em condições de
compreender", está necessariamente em ligação com o despojamento de Cristo, por meio da sua
paixão e morte de cruz, que então, quando Ele pronunciava estas palavras, já estava iminente. Mas,
em seguida, torna-se bem claro que aquele "guiar para a verdade total" tem a ver não apenas com o
scandalum crucis, mas também com tudo o que Cristo "fez e ensinou" (Act 1, 1). Com efeito, o
mysterium Christi na sua globalidade exige a fé, porquanto é ela que introduz o homem
oportunamente na realidade do mistério revelado. O "guiar para a verdade total" realiza-se, pois, na
fé e mediante a fé: é obra do Espírito da verdade e é fruto da sua acção no homem. O Espírito Santo
deve ser em tudo isso o guia supremo do homem, a luz do espírito humano » [n. 6: AAS 78 (1986),
815-816].

110 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a revelação divina Dei Verbum, 13.

111 Cf. Pontifícia Comissão Bíblica, Instr. sobre a verdade histórica dos Evangelhos (21 de Abril de
1964): AAS 56 (1964), 713.

112 « É claro que a Igreja não pode estar ligada a qualquer sistema filosófico efémero; aquelas
noções e termos que, segundo o consenso geral, foram compostos ao longo de vários séculos pelos
doutores católicos para se chegar a um certo conhecimento e compreensão do dogma, sem dúvida
que não se apoiam sobre fundamento tão caduco. Apoiam-se, ao contrário, em princípios e noções
ditadas por um verdadeiro conhecimento da criação; e, para deduzirem estes conhecimentos, a
verdade revelada, como se fosse uma estrela, iluminou a mente humana por meio da Igreja. Por
isso, não há de que maravilhar-se se alguma destas noções acabou não apenas por ser usada em
Concílios Ecuménicos, mas foi aí de tal modo ratificada que não é lícito abandoná-la » [Carta enc.
Humani generis (12 de Agosto de 1950): AAS 42 (1950), 566-567; cf. Comissão Teológica
Internacional, Doc. Interpretationis problema (Outubro de 1989): Enchiridion Vaticanum, XI, nn.
2717-2811].

113 « Quanto ao próprio significado das fórmulas dogmáticas, este permanece, na Igreja, sempre
verdadeiro e coerente, mesmo quando se torna mais claro e melhor compreendido. Por isso, os fiéis
devem rejeitar a opinião segundo a qual as fórmulas dogmáticas (ou uma parte delas) não podem
manifestar exactamente a verdade, mas apenas aproximações variáveis que, de certa forma, não
passam de deformações e alterações da mesma » [S. Congr. da Doutrina da Fé, Decl. sobre a defesa
da doutrina católica acerca da Igreja Mysterium Ecclesiæ (24 de Junho de 1973), 5: AAS 65 (1973),
403].

114 Cf. Congr. S. Officii, Decr. Lamentabili (3 de Julho de 1907), 26: ASS 40 (1907), 473.

115 Cf. João Paulo II, Discurso na Pontifícia Universidade de S. Tomás (17 de Novembro de 1979),
6: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 25 de Novembro de 1979), 8.
116 N. 32: AAS 85 (1993), 1159-1160.

117 Cf. João Paulo II, Exort. ap. Catechesi tradendæ (16 de Outubro de 1979), 30: AAS 71 (1979),
1302-1303; Congr. da Doutrina da Fé, Instr. sobre a vocação eclesial do teólogo Donum veritatis
(24 de Maio de 1990), 7: AAS 82 (1990), 1552-1553.

118 Cf. João Paulo II, Exort. ap. Catechesi tradendæ (16 de Outubro de 1979), 30: AAS 71 (1979),
1302-1303.

119 Cf. ibid., 22: o.c., 1295-1296.

120 Cf. ibid., 7: o.c., 1282.

121 Cf. ibid., 59: o.c., 1325.

122 Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, IV: DS 3019.

123 « Ninguém pode tratar a teologia como se fosse uma simples colectânea dos próprios conceitos
pessoais; mas cada um deve ter a consciência de permanecer em íntima união com aquela missão de
ensinar a verdade, de que é responsável a Igreja » [João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4
de Março de 1979), 19: AAS 71 (1979), 308].

124 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanæ, 1-3.

125 Cf. Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), 20: AAS 68 (1976), 18-19.

126Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 92.

127 Cf. ibid., 10.

128 Prólogo, 4: Opera omnia, t. V (Florença 1891), 296.

129 Cf. Decr. sobre a formação sacerdotal Optatam totius, 15.

130 Cf. João Paulo II, Const. ap. Sapientia christiana #13;(15 de Abril de 1979), arts. 67-68: AAS
71 (1979), 491-492.

131 João Paulo II, Discurso na Universidade de Cracóvia, por ocasião dos 600 anos da Alma Mater
Jaghelónica (8 de Junho de 1997), 4: L'Osservatore Romano (ed. portuguesa de 21 de Junho de
1997), 6.

132 « 'e noerà tes pìsteos tràpeza » [Pseudo-Epifânio, Homilia em louvor de Santa Maria Mãe de
Deus: PG 43, 493] .

© Copyright - Libreria Editrice Vaticana

También podría gustarte