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A CONSTRUÇÃO DE SILENCIAMENTOS:

reflexões sobre a vez e a voz de minorias sociais na sociedade contemporânea

Autores:
Marco Aurélio Máximo Prado
Marco Antônio Torres
Frederico Viana Machado
Frederico Alves Costa

Como citar:

PRADO, M. A. M.; Torres, M.; COSTA, F. A.; MACHADO, F. V.. A construção de


silenciamentos: reflexões sobre a vez e a voz de minorias sociais na sociedade
contemporânea. In: Mayorga, C. Rasera, E., Pereira, M.. (Org.). Psicologia Social - Sobre
Desigualdades e Enfrentamentos. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 31-49.
A CONSTRUÇÃO DE SILENCIAMENTOS:
reflexões sobre a vez e a voz de minorias sociais na sociedade contemporânea
Marco Aurélio Máximo Prado
Marco Antônio Torres
Frederico Viana Machado
Frederico Alves Costa
Introdução
Dispositivos de poder, entendidos como formas simbolicas que servem para
estabelecer e sustentar relações de dominação (Thompson, 1995), por diferentes maneiras,
acarretam na subordinação das minorias sociais, servindo ao silenciamento destas e à
negação da esfera civil como espaço de antagonismos sociais. Estes dispositivos de
silenciamento fazem com que se complexifique uma relação de dominação na qual se
reafirme a subordinação e se reproduza a opressão com a participação tanto de dominantes
como de subordinados.
Buscamos discutir, desta maneira, múltiplas formas de hierarquização social,
produzidas a partir da opressão de diferentes categorias sociais e interrogamos sobre os
modos que estas categorias podem se interrelacionar na construção de alternativas políticas
nas sociedades democráticas contemporâneas, de modo a problematizar os fundamentos
politicos da modernidade ocidental. Assim, compreendemos que a modernidade ocidental,
mesmo rompendo com justificativas teológicas da subordinação ao proclamar os ideários
modernos, acabou por construir novas dinâmicas de desigualdade e exclusão.
As reflexões deste texto decorrem de pesquisas e debates realizados junto ao Núcleo
de Psicologia Política da Universidade Federal de Minas Gerais, sobretudo ao que tange as
análises de dinâmicas do preconceito, movimentos sociais e relações de gênero, raça e
orientação sexual. Deste modo, sistematizamos algumas reflexões que consideramos
complementares e relevantes para as discussões destes campos de pesquisa.
Inicialmente, interpelamos a universalidade dos ideais modernos de igualdade,
liberdade e fraternidade, através do reconhecimento de que se instituíram a partir da
construção de outros, ou seja, da produção de dinâmicas que limitam a possibilidade de
algumas categorias sociais se nomearem e serem nomeadas como como sujeitos políticos no
debate público. Negros, mulheres, pessoas que se definem como LGBT (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais), indígenas, pobres, entre muitos outros grupos sociais,
cotidianamente denunciam a falência da pretensão universal destes ideais, que servem de
alicerce para a construção do Estado Moderno.
Como forma de exemplificar as diferentes dinâmicas pelas quais se opera o
silenciamento de minorias sociais, apresentamos alguns processos deste silenciamento, a
partir de discussões realizadas por Thompson (1995), Santos (2002, 2006) e Wallerstein
(2003). Por fim, consideramos, a partir de alguns autores, elementos importantes para
refletirmos sobre as potencialidades de construção de lutas democráticas, retomando
noções como a de sociologia das ausências e das emergências e teoria da tradução de
Boaventura Souza Santos e a democracia radical e plural de Chantal Mouffe e Ernesto
Laclau. Reconhecendo que tais autores possuem noções ontológicas e epistemológicas
diferentes, ao longo do texto, apontaremos aspectos complementares que buscam uma
síntese entre uma concepção mais materialista e outra mais discursiva. Entretanto,
reconhecemos que desta associação emanam questões que deverão ser respondidas por
reflexões posteriores. Neste texto nos concentraremos sobre a relação entre a lógica
democrática e as possibilidades de se pensar a emancipação social a partir de lutas políticas
e sociais.

Liberdade para quem? Igualdade entre quem? Fraternidade com quem?


A ocorrência de grandes transformações sociais, políticas e econômicas nas últimas
décadas, tais como a queda de regimes totalitários; o desaparecimento da dicotomia
democracia/totalitarismo; a expansão dos meios de comunicação; a intensificação dos
processos de globalização; a “redefinição das identidades coletivas e o estabelecimento de
novas fronteiras políticas" (Mouffe, 1999, p. 266); bem como a emergência no espaço
público de novas e renovadas cidadanias subalternizadas (Tejerina, 2005), têm demonstrado
a necessidade de se compreender o âmbito público e o âmbito privado de modo distinto,
mas não dicotômico1. No intuito de ampliar as noções de espaço público, tratando questões
até então consideradas como particulares e restritas ao privado como questões políticas, o
público e o privado são considerados como espaços sociais intrinsecamente relacionados,

1
Identificamos que os âmbitos público e privado possuem dinâmicas sociais distintas, que variam com relação
ao tempo e ao espaço que ocupam nas variadas sociedades multiculturais, entretanto, a partir da noção de
modernidade da qual nos utilizamos, observamos que os limites entre estes espaços oscilam de contexto a
contexto produzindo uma indiferenciação que na grande maioria das vezes termina por reafirmar as relações de
dominação/subordinação, sendo inclusive determinante para o reconhecimento do que seja o “político” pela
gramática política hegemônica.
mas que desempenham papéis estratégicos para a articulação das diferentes hierarquias
sociais.
Apesar destas grandes transformações sociais serem causa e sintoma da expansão da
modernidade, ou modernidade ocidental, nas palavras de Santos (2002), pouco se ampliou
nestas últimas décadas o acesso aos direitos de cidadania, mantendo as subcidadanias
(Souza, 2003) relegadas à invisibilidade público-política (Offe, 1988 apud Tejerina, 2005). Tal
invisibilidade faz com que questões advindas do espaço privado e/ou da cultura não sejam
reconhecidas como questões políticas, legitimando o privilégio de acesso à esfera pública e
seus lugares de poder àqueles “qualificados” para o debate político.
A segregação de alguns grupos sociais do espaço público e o consequente
silenciamento das reivindicações destes no debate político possibilitam questionar os
ideários políticos da modernidade: liberdade para quem? Igualdade entre quem?
Fraternidade com quem?
Santos (2002), ao tratar do modelo de razão hegemônica, presente no Ocidente nos
últimos dois séculos, explicita o quanto esta racionalidade é marcada pela hierarquização
social e pela busca de um universalismo, que em sua pretensão universal, homogeneíza e
naturaliza a particularidade de um grupo dominante, e, conseqüentemente, inferioriza e/ou
exclui os diferentes: "não-heterossexuais", “pobres”, “mulheres”, "não-brancos", etc.
Neste sentido, segundo Pateman (1992), por trás da discussão sobre a universalidade
de direitos, a partir da qual se funda a modernidade, observa-se a localização das mulheres
numa posição de inferioridade social, ao não ser postulado a elas a condição natural de livres
e iguais e, portanto, de indivíduos, considerando-as como nascidas na sujeição e
naturalmente subordinadas aos homens, limitando-as à esfera doméstica, o que nos faz
conceber as diferenças sexuais como diferenças políticas.
Ademais, a organização da sociedade moderna também reproduz, de acordo com
Rubin (1984), um sistema de hierarquização sexual, pautado na normatização das práticas
sexuais. Nesta hierarquia, segundo Rubin (1984), encontra-se em local privilegiado os
heterossexuais casados, enquanto pessoas que se identificam como LGBT, fetichistas,
sadomasoquistas, prostitutas e modelos pornô, e todos aqueles que transgridem a norma
privilegiada são considerados doentes mentais, sem reputação, criminosos, cabendo a eles
sanções sociais.
Estas diferentes formas de desigualdade e exclusão produzidas na sociedade
moderna ocidental buscam, de acordo com Santos (2006), reduzir as possibilidades de
emancipação social através de algumas estratégias de controle. No sistema de desigualdade
estas estratégias caracterizam-se pela integração subordinada ou por uma metamorfose do
sistema de exclusão em sistema de desigualdade (por exemplo, pela assimilação subalterna
do excluído).
Exemplos da produção deste sistema de desigualdade podem ser observados: na
integração das mulheres e dos negros no mercado de trabalho, diante de um quadro de
menores salários e de constante preconceito; na apropriação por multinacionais do
conhecimento indígena para a resolução do problema da biodiversidade, numa situação de
intensa exploração e negação de direitos aos índios2 (Santos, 2006); na incorporação do
“mercado-rosa” pelo mercado capitalista, bem como do tema da homossexualidade pela
mídia de maneira extremamente estereotipada e caricata (Costa & Prado, 2008).
Diferentemente, no sistema de exclusão as estratégias de controle caracterizam-se
pela segregação ou por metamorfoses do sistema de desigualdade em sistema de exclusão
(por exemplo, pela falência de algumas profissões), sendo a pertença neste sistema afirmada
pela não-pertença. Neste sentido, podemos compreender, por exemplo, a construção e
reprodução de um habitus precário nas sociedades ocidentais periféricas, discutidas por
Souza (2003), caracterizado pela inexistência de um consenso nestas sociedades de que
todos os indivíduos sejam reconhecidos como cidadãos e como dignos de humanidade,
justificando, desse modo, seu não-reconhecimento na esfera pública, sua restrição às franjas
da sociedade e a compreensão de que a exclusão é decorrente de uma falha pessoal. No
caso das travestis e transexuais, por exemplo, lhes é negado até mesmo o direito de ir e vir
pelas ruas durante o dia sem serem constantemente atacadas por apresentarem-se de um
modo que não permite categorizá-las na dualidade homem-mulher, colocando em “risco”
um silêncio: a condição naturalizada do padrão de gênero heterossexista.
Esta gestão da desigualdade e da exclusão, de acordo com Santos (2006), apresenta
como dispositivo ideológico o universalismo, seja o “universalismo antidiferencialista”,
caracterizado pela negação das diferenças, através da norma da homogeneização. Seja o
“universalismo diferencialista” que, ao se pautar pela norma do relativismo, torna
incomparável as diferenças, devido à ausência de critérios transculturais. Estas duas faces
da universalidade, desta forma, estão a serviço do tamponamento das relações de poder,

2
A própria homogeneização das diversas origens dos afrodescendentes e dos povos indígenas sob as categorias
“negro” e “índio” denuncia este sistema (Quijano, 2005).
pois, a construção da homogeneização necessita do obscurecimento de outras
possibilidades possíveis, isto é, da negação do seu caráter contingente, já que visa
naturalizar uma diferença como universal e “conseqüentemente transmutar o acto de
violência impositiva em princípio de legitimidade e consenso social” (Santos, 2006, p. 294). O
relativismo atua de modo a limitar as possibilidades de se distinguir o que é diferença do que
é desigualdade, permitindo considerar o que é desigualdade como simples diferença,
justificando, assim, a segregação de alguns grupos a espaços privados ou híbridos entre o
espaço privado e o espaço público, não os concebendo como sujeitos políticos legítimos.
Outra maneira de se compreender a construção e manutenção da exclusão e da
desigualdade de grupos sociais não dominantes é a partir dos modos de operação da
ideologia apresentados por Thompson (1995), que servem como dispositivos que limitam as
possibilidades de vez e voz de minorias sociais. A regulação social da sexualidade – a partir
da medicalização da ciência àqueles comportamentos que “desviavam-se” do padrão
heterossexual, monogâmico e reprodutor – pode ser pensada como uma estratégia típica de
construção simbólica de legitimação das relações de dominação, denominada por Thompson
(1995) de racionalização, por buscar legitimar relações de desigualdade e exclusão sobre as
mulheres e pessoas que se identificam como LGBT.
A legitimação das relações de dominação pode ser analisada através de outro
processo simbólico, denominado narrativização (Thompson, 1995), que diz respeito à
reprodução destas relações via transmissão de “histórias” que servem para “justificar o
exercício de poder por aqueles que o possuem e, também, para justificar, diante dos outros,
o fato de que eles não têm poder” (Thompson, 1995, p. 83). Esta estratégia simbólica de
legitimação pode ser observada através das corriqueiras piadas divulgadas em nosso
cotidiano, fazendo do preconceito a diferentes minorias sociais conteúdo de risos e
deboche.
A unificação é outro modo de operação da ideologia, segundo Thompson (1995), e
busca formar uma unidade entre os indivíduos, com o propósito de construir uma
identidade coletiva, mas desconsiderando as diferenças e divisões existentes entre eles. Tal
modo de operação ideológica se assemelha ao “universalismo antidiferencialista” e pode ser
percebido na produção da exclusão e desigualdade de minorias sociais tanto através, por
exemplo, do discurso da heterossexualidade como única possibilidade legítima; ou como na
marginalização das lésbicas, das transexuais e das travestis na história do próprio
movimento homossexual ou das “mulheres do Terceiro Mundo” na história do movimento
feminista.
A fragmentação é mais um modo de operação da ideologia explicitado por Thompson
(1995), e pode ser associado ao que foi denominado de “universalismo diferencialista”, uma
vez que diz respeito à segmentação ou expurgo de indivíduos que são percebidos pelos
grupos dominantes como um desafio ou um perigo real. Assim, a afirmação da diferença
serve de justificativa para a discriminação, o preconceito, a exclusão e a inferioridade
(Santos & Nunes, 2003).
Outro modo bastante observado na exclusão e marginalização de diferentes minorias
sociais é a reificação (Thompson, 1995), sendo marcado por uma exposição a-histórica da
opressão, como se fosse natural dos homossexuais uma condição de menos direitos
humanos do que os heterossexuais; das mulheres uma posição subordinada aos homens;
dos negros à subserviência aos brancos; dos pobres serem explorados pelos ricos.
Este quadro de desigualdade e exclusão vivenciado na modernidade ocidental acaba
por acarretar na dificuldade de sujeitos pertencentes a grupos sociais oprimidos afirmarem
suas identidades no espaço público, pois diante desta afirmação ficam passíveis de sofrerem
várias formas de violência, simbólicas e físicas.
Hierarquias e Instituições Sociais
Diante da discussão sobre a desigualdade e exclusão produzidas na modernidade,
cabe identificarmos alguns aspectos dos processos de institucionalização que se deram neste
momento histórico e que determinaram estes processos de subalternidade. A modernidade
caracteriza-se como um processo histórico no qual se busca legitimar e explicar os
fenômenos sociais a partir das instituições que fundam a própria modernidade, tais como o
Estado Moderno e a Ciência moderna. Uma vez que pretensamente todos os indivíduos de
uma dada sociedade foram declarados iguais e livres, as hierarquias sociais passaram a
apresentar novas formas de estruturação. Localizar as relações políticas no espaço-tempo da
modernidade é relevante para esta discussão, não só por estarem fundamentadas nos
princípios ideológicos e conceituais inaugurados neste momento histórico 3, mas também,
por que nela ocorre um rearranjo dos princípios de hierarquização social, não sendo passível
mais justificativas pautadas em argumentos teleológicos.

3
Referimos-nos às noções de igualdade e liberdade e a conceitos como cidadania, nacionalismo e outros.
Segundo Wallerstein (2003), com as revoluções burguesas e a consolidação do Estado
Moderno, emergem noções como as de nacionalismo/etnicidade, racismo e machismo que,
apesar de aparentemente contradizerem o liberalismo, estabeleceram com ele uma
dinâmica eficaz na manutenção do poder. Mesmo que as hierarquizações que definiam os
lugares sociais destas minorias já existissem antes, aqui “o que ocorreu é que foi nessa época
que elas se tornaram, pela primeira vez, explícitas, partes teorizadas da geocultura,
adquirindo, portanto, um significado novo e muito mais perigoso” (Wallerstein, 2003:32)4.
A associação entre nacionalismo, etnia e racismo é utilizada para definir a
superioridade de alguns, produzindo uma justificativa ideológica para o imperialismo
capitalista. Quando o nacionalismo se associa à cidadania, isto permite que o liberalismo
efetive as transformações sociais necessárias, sem que isso impeça a realização do projeto
capitalista e imperialista, que Wallerstein (2003) chama de sistema-mundo. Neste sentido,
“o que a cidadania fez foi transferir a exclusão de uma pessoa através de uma evidente
barreira de classe, e excluí-la através de uma barreira nacional e oculta” (Wallerstein,
2003:33).
O Estado Moderno torna-se, então, o responsável por assegurar a coesão social
numa sociedade dividida por classes, atravessadas por lógicas de (des)igualdade e exclusão
(Wallerstein, 2003). No caso do machismo, por exemplo, ao confinar a mulher ao domínio
privado, desvalorizando sistematicamente seu trabalho e tornando-o improdutivo do ponto
de vista da renda, como aponta Wallerstein (2003), tem-se um efeito consoante com a
manutenção dos privilégios sociais e a legitimidade do Estado que opera de três formas: 1)
Esconde parte da mais-valia, pois dá a impressão de que o homem tem uma renda maior; 2)
O confinamento da mulher atribui status ao trabalho masculino, produzindo um efeito
sóciopsicológico: “quanto maior o número de excluídos, mais valorizada é a inclusão” (p.36);
3) Produz adesões ideológicas interessantes para a reprodução do sistema, tais como a
definição do papel de gênero masculino associado ao patriotismo, o que atribui status ao
serviço militar e assegura a participação dos cidadãos em guerras étnicas.

4
Não coincidentemente, neste momento, emergem os conceitos de raça, de homossexualidade (Machado &
Prado, 2008) e da mulher como “dona de casa”, e seu eixo de exclusão passa a oscilar entre os espaços público e
privado (Wallerstein, 2003). A ciência moderna passa a ter um papel fundamental na organização política,
atribuindo ao homem, e suas valorações, branco, heterossexual, produtivo etc., uma centralidade natural em
relação a tudo aquilo considerado passivo, objeto, inferior, improdutivo, tal como a natureza, a mulher e assim
por diante (Santos, 2002).
Em outras palavras, as hierarquias sociais que antes eram reafirmadas pela
naturalização inquestionável dos discursos teológicos, passaram a fazer parte dos discursos
políticos, reproduzidas e naturalizadas agora, por mecanismos ideológicos de subordinação,
tais como os apresentados por Thompson (1995) e Santos (2006).
Neste sentido, talvez não seja demais afirmar que, as múltiplas hierarquizações
sociais contribuam para se disfarçarem entre si, e que os Estados Modernos asseguram
direitos sociais e econômicos como universais, de modo a manter a desigualdade em níveis
toleráveis, através do controle de quais particulares se tornarão universais, seja no plano
local ou global. Tais modos de gestão das hierarquias sociais ao mesmo tempo em que o
coloca em risco, uma vez que a politização destas hierarquias revela a falsidade destes
universais, é condição de possibilidade para a manutenção da legitimidade do Estado, pois
contribuem para a construção de uma idéia de nação.
Outros autores já apontaram a importância de tratarmos de forma articulada as
diversas formas de opressão da sociedade contemporânea, tais como as de classe social,
gênero5, raça e orientação sexual (Rodrigues, 2006; Santos, 2003; Marsiaj, 2003; Anthias,
2002; Adelman, 2000; Castro, 1992 e muitos outros). Neste sentido, ao concebermos as
diversas formas de hierarquização social, intrinsecamente relacionadas entre si e com a
consolidação e manutenção da legitimidade do Estado, podemos argumentar que para
compreendermos as nuances destas articulações, é necessário considerarmos as
particularidades dos processos de formação das instituições sociais em cada contexto
histórico e cultural e como estas sustentam os sistemas de desigualdade e exclusão6.
Ancoramos nossa fundamentação teórica à necessidade de enfrentarmos dicotomias
tais como cultura/política e indivíduo/sociedade, buscando uma abordagem psicopolítica
dos fenômenos políticos. Consideramos importante superarmos a tradicional dicotomia
entre cultura e política (Alvarez, Dagnino & Escobar, 2000), uma vez que a dimensão
sociológica das hierarquias sociais revela que a legitimidade das instituições modernas

5
Anthias (2002) aponta algumas destas relações e as discute geopoliticamente, a partir do conceito de
Posicionamento Translocal. Santos (2002) também reconhece formas de hierarquização entre o global e o local,
e aponta a importância de tratarmos destes contextos a partir de uma ecologia das trans escalas.
6
Quijano (2005) critica radicalmente a concepção de Estado derivada do marxismo, por não dar conta da
diversidade de experiências sócio-históricas desenvolvidas fora do projeto moderno ocidental. Segundo ele, a
centralização do poder não é compatível com a pluralidade de diferenças étnicas, sexuais, etc., bem como a
primazia da noção de classe defendida pelo marxismo desconhece os fundamentos históricos relacionados às
diferenciações sociais, tais como raça e gênero, e que foram cruciais para a consolidação e manutenção da lógica
de produção e seus discursos.
(Estado, Ciência etc.) se sustenta a partir de lógicas políticas, econômicas e culturais
(Mouffe, 1988). Nesta direção, a superação da dicotomia entre indivíduo e sociedade revela
que o campo político e, conseqüentemente, a formação e manutenção das hierarquias
sociais apresentam dinâmicas sociológicas e psicológicas. Se por um lado, as instituições
sociais são internalizadas pelos indivíduos, por outro lado, elas são legitimadas e
materializadas pela ação destes, o que aponta para a importância de uma noção de sujeito
psicossocial.
Hierarquias e a formação do sujeito
A formação das hierarquias sociais apresenta funções e mecanismos históricos e
coletivos que dificilmente se sustentariam sem reverberações psicológicas e
comportamentais. Entretanto, muitas vezes identificam-se discursos e teorias que, ao
explicarem relações sociais, tendem a buscar fundamentos, ou em princípios sociais e
institucionais, ou em princípios individuais e psicológicos, redundando em explicações
reducionistas e deterministas, bem como em práticas sociais opressivas e políticas públicas
ineficazes.
Diversos exemplos podem ser apontados a fim de demonstrar a extensão do caráter
reducionista e determinista das justificativas atribuídas à desigualdade e exclusão e a
reprodução destas por aqueles que se nomeam e são nomeados como “qualificados” para o
debate público. Muitas vezes, identificamos que o não reconhecimento do sujeito como
psicossocial acarreta em análises de vitimização, assistencialismo, patologização e
criminalização daqueles que ocupam lugares de inferioridade no sistema social. Não é difícil
encontrarmos projetos sociais hierarquizados que não ganham adesão dos destinatários por
não levarem em conta as especificidades sociais e a implicação dos sujeitos na construção
das alternativas políticas da qual fazem parte. Iniciativas como estas, ao mesmo tempo, em
que partem do princípio de que sujeitos inferiorizados não são capazes de argumentar sobre
o próprio destino, e sobre os caminhos políticos pelos quais serão amparados pelo Estado7;
reforçam este mesmo princípio, pois ao encontrarem sua ineficácia a atribuem à
incapacidade ou indolência dos sujeitos atendidos. Por melhores que sejam as intenções,
mais uma vez, se dá a construção do silenciamento das minorias sociais e a reafirmação de

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Esta concepção busca justificação tanto através de atribuições sociais que tomam estes sujeitos como
individualmente incapazes, do ponto de vista psicológico e cognitivo, como determinados pelo lugar que ocupam
na estrutura social, concebendo tais minorias como sujeitadas e vitimas de um sistema do qual não fazem parte e
não são responsáveis.
sua subalternidade, já que é negado a estes atores o direito de vez e voz frente a estas
iniciativas.
Uma concepção de sujeito psicossocial requer que reconheçamos que as identidades
não são predeterminadas unicamente por características individuais, mas que se formam a
partir de complexos arranjos interacionais permeados por hierarquias que produzem
inferiorizações simbólicas e materiais. Assim, os lugares hierarquizados da sociedade vêm
acompanhados de categorizações e atribuições sociais que definem estereótipos e traços de
caráter e personalidade que vão influenciar tanto relações de discriminação e preconceito
dos grupos externos a uma determinada identidade social, como os processos de
identificação e organização dos mesmos.
Tais relações, influenciadas por posições políticas, marcam nossa percepção da
realidade social, produzindo justificativas que naturalizam as hierarquias e inferiorizações
sociais, dando coerência à vida cotidiana e legitimidade às instituições sociais. Para que tais
justificativas se naturalizem, é necessário que sejam ocultados seus fundamentos históricos
ou que tais fundamentos sejam cúmplices da versão histórica hegemônica, a qual Jacques
Rancière chamou de “a história dos vencedores” (Ansara, 2005). Uma vez que as
justificativas da inferiorização ocultam seus fundamentos históricos, legitimam a
manutenção desta hierarquização. Isto faz deste mecanismo algo supostamente paradoxal
porque quanto mais verdadeiro se proclama, mais fundamentado nas crenças que necessita
ocultar está (Prado & Machado, 2008).
Para que se conservem os valores morais é importante que se desqualifique ou se
invisibilize outras versões da história, negando aos inferiorizados o direito de falar. A
naturalização e internalização das posições e das hierarquias sociais molda a produção de si,
por parte dos subalternos, limitando a capacidade destes indivíduos de perceberem ou
interpelarem relações de injustiça, influenciando traços individuais como auto-estima e o
auto-conceito8. No campo social a cristalização dos valores sociais reforçará a hierarquização
social a partir de diversos mecanismos de produção do outro. Neste sentido, no plano
institucional poderemos identificar a legitimidade de ideologias que naturalizam relações de
violência, discriminação e preconceito, e do ponto de vista psicológico, baixa auto-estima,
baixo auto-conceito, sentimentos de inferioridade com relação a identificações sexuais,

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Estas relações permeiam debates políticos diversos, tais como os de cotas em universidades para negros e
pobres, a dificuldade encontrada por pessoas que se identificam como LGBT para se assumirem, se aceitarem e
“saírem do armário”, padrões de estética aceitos por todos, entre muitos outros.
sociais, culturais e políticas. Estas dimensões (institucionais e psicológicas) são inseparáveis e
se complementam através de dinâmicas de sustentação das subcidadanias9.
As diversas estratificações sociais baseadas em sexo, poder econômico, raça, entre
outras, para manterem os processos de subalternização, constroem concessões parciais que
contribuem para a manutenção da superioridade de determinados grupos, sem questionar
seus privilégios políticos, jurídicos e sociais. Nas questões da sexualidade qualquer
reconhecimento aos direitos sexuais de lésbicas, gays ou transexuais aparece como
concessão dos heterossexuais, enquanto esses se colocam como portadores dos direitos
sexuais como privilégio da heterossexualidade. Não questionar o lugar dos heterossexuais,
dos brancos, dos homens, como construção social é reiterar que os homossexuais, negros,
mulheres, entre outros, são aqueles que precisam de uma concessão especial para existir.
Ao tomar as categorias sociais como dadas, o discurso coloca-se na esfera da moral e afasta-
se do político que poderia revelar as contingências históricas do que é ser heterossexual, ser
homem, ser branco, etc.
Podemos reconhecer que o silêncio, ou silenciamento, tem duas funções nas lógicas
dessas subalternizações. A primeira se dá quando o silêncio ocorre entre os subalternizados,
temos assim a naturalização da subordinação. A segunda função aparece quando o silêncio
emana do lugar de poder, pois disfarça a dominação. Nas sociedades contemporâneas
encontramos este disfarce, muitas vezes, no uso da tolerância como noção mediadora dos
conflitos sociais, sendo que através dela, pretende-se que os enfrentamentos sociais
deveriam ser pautados pela aceitação do outro. Contudo ela impede de colocar na esfera do
político os enfrentamentos por desconsiderar a construção histórica das categorias sociais,
como alguns se tornam os iguais e outros ou diferentes, ou seja, aqueles a serem tolerados.
A insuficiência da tolerância (Pinto, 2000) parece relacionar ao fato dela exigir o
silêncio de ambas as partes, pois a explicitação de uma delas coloca em xeque quem tem o
poder de definir seus limites. Numa relação de tolerância brancos e negros, heterossexuais e
homossexuais, entre outras categorias sociais que possam refletir subordinações, ao

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Desta forma, podemos identificar claramente como tais valores sociais definem quem é mais humano e,
conseqüentemente, quem tem mais direitos e legitimidade pública. A naturalização da violência contra
homossexuais, profissionais do sexo, etc., e sua impunidade, são sintomas destas relações hierárquicas. Não é
desnecessário lembrarmos-nos de dois casos brasileiros bastante ilustrativos: quando o Índio Galdino foi
queimado em Brasília, a justificativa para tal ato foi o de que seus algozes pensaram que este era um mendigo;
quando, em 2007, uma empregada doméstica foi espancada, seus agressores declararam pensar que se tratava de
uma prostituta. Com tais exemplos, podemos identificar como os valores sociais afirmam um grau menor de
humanidade para categorias sociais subalternas, tais como mendigos e profissionais do sexo e como a ação dos
indivíduos acabam por materializar e reafirmar estes valores sociais.
reconhecerem que não são categorias dadas a priori, podem questionar essas
subordinações. A tolerância se impõe como dispositivo silenciador naturalizando diferenças
constituídas historicamente, também desconhece que seus limites serão sempre arbitrários.
Questionar os limites da tolerância pode levar ao reconhecimento da impossibilidade de um
consenso universal, de qualquer discurso moral que regule as possibilidades do sujeito por
premissas de caráter essencialista, sejam elas ideológicas, religiosas, científicas, ou outras
quaisquer.
Dessa maneira, como quebrar o silêncio imposto às subcidadanias no espaço público,
em vista a se construir sociedades caracterizadas por cidadanias plurais e, ao mesmo tempo,
igualitárias? Sociedades que se pautem por diferentes alternativas criativas e possíveis, e
não no monopólio de uma ordem, de um progresso e de uma justiça, afastando-se tanto do
totalitarismo de um relativismo extremo quanto da norma da homogeneização.

Construção de alternativas para outro mundo possível


De acordo com Santos (2003) “mais do que procurar qualquer essência de
emancipação, urge identificar caminhos, sementes, formas diversas e alternativas de
emancipar os sujeitos e de os capacitar na luta contra a exclusão” (Santos, 2003, p. 364).
Como se antevê neste texto, capacitar na luta contra a exclusão não implica apenas em
acirrar as relações políticas entre as minorias e as classes dominantes, mas também,
relacionar as diferentes lutas entre si.
Partimos do pressuposto de que uma completa realização da democracia é
impossível, uma vez que se, por um lado, uma nova positividade do social deve ser buscada,
baseada no respeito ao direito de igualdade de todos os grupos subordinados, por outro
lado, esta nova positividade do social nunca pode ser plena, pois é continuamente
penetrada por uma precariedade constitutiva, devendo a igualdade sempre ser limitada e
complementada pela demanda da liberdade (Laclau & Mouffe, 1985). Longe desta
compreensão significar o abandono da utopia, apontamos possíveis elementos que se
articulados podem auxiliar na construção de outro mundo possível, no qual vozes
marginalizadas possam “falar com suas próprias palavras e linguagens” (Santos, 1995) e
serem ouvidas como atores que têm direito à reciprocidade no debate público.
Um primeiro elemento seria a interpelação da dicotomia público/privado, que traz
como conseqüência a redefinição da política, tendo muitas ações construídas na atualidade
evidenciado que a política contemporânea não se reduz a espaços
institucionais, propiciando também a construção de arenas mais plurais tanto no que se
remete aos atores, quanto no que diz respeito às demandas em disputa no próprio jogo
político.
Tejerina (2005) ressalta a noção de privacidade compartilhada para analisar o espaço
político na atualidade. Tal noção propõe enfatizar experiências privadas que são
compartilhadas em esferas semi-públicas, as quais se inserem, portanto, em um espaço de
latência com relação à emergência dos indivíduos no espaço público, alcançando visibilidade
e reconhecimento na esfera pública através da mobilização política. Esta noção propicia a
politização de experiências encaradas, a partir das dicotomias público-privado e pessoal-
político, como pré-políticas ou, muitas vezes, como anti-políticas.
Nesse entrelaçamento entre esfera pública e esfera privada, consideramos os
movimentos sociais como importantes espaços de participação política na sociedade
contemporânea, pois “se situam em um espaço de privacidade compartilhada que possibilita
a conversão de interesses privados em questões de debate na esfera pública, e permitem
encontrar uma estrutura de plausibilidade para viver a cidadania vicaria” (Tejerina, 2005, p.
81, tradução nossa). Assim, os movimentos sociais são cada vez mais necessários como
motores da "inovação democrática" (Tejerina, 2005, p. 82, tradução nossa) ao atentar para
novas e criativas formas de articulações contra-hegemônicas.
A construção de identidades políticas, para que grupos até então subjugados
consigam se mobilizar e reivindicar direitos ausentes ou inexistentes é um segundo
elemento a ser apontado. A formação de identidades políticas decorre não somente de uma
compreensão da repressão estrutural que incide sobre os indivíduos ou de simples
interesses individuais, mas, sobretudo, do reconhecimento, por parte dos indivíduos e entre
eles, de que são subjugados e discriminados socialmente, não por falhas pessoais, e sim por
não fazerem parte das objetivações sociais que derivam do universal hegemônico, colocando
em questão exatamente a condição particular e contingente deste universal.
Assim, a constituição de identidades políticas depende da articulação de três
fenômenos psicossociais necessários à motivação e manutenção da participação política: 1)
a construção da identidade coletiva, a qual se remete à produção de vínculos de pertença e
a formação de redes sociais, contrariando a privatização da vida (Tejerina, 2005); 2) a
passagem de relações de subordinação para relações de opressão, indo de encontro a
modos de operação da ideologia, como a reificação, sendo fundamental o reconhecimento
das lógicas da igualdade e da diferença; 3) a delimitação de fronteiras políticas, caracterizada
pela distinção entre um NÓS e um ELES, sendo este último compreendido como responsável
pela condição de opressão daquele, produzindo antagonismos e politizando identidades
coletivas (Prado, 2002).
Um terceiro elemento é o reconhecimento de novas posições de sujeito e de um
novo senso comum "que transforme a identidade de grupos diferentes, de forma que as
exigências de cada grupo possam ser articuladas com as dos outros, segundo o princípio da
equivalência democrática" (Mouffe, 1996, p.33), de modo que as reivindicações de uns não
acarretem na exclusão ou marginalização de outros. Este reconhecimento é determinante
para a construção de lutas democráticas a fim de se promover sociedades democráticas
radicais e plurais e, conseqüentemente, para pensarmos a constituição das identidades
políticas contemporâneas, pois enfrenta os dilemas postos pela candente questão do
multiculturalismo das sociedades complexas (Laclau & Mouffe, 1985).
No entanto, apesar de observarmos a articulação entre alguns movimentos sociais ao
redor do mundo, isto ainda esbarra em muitos obstáculos. Os movimentos LGBTs por
exemplo, encontra dificuldades nessa articulação, sobretudo, em decorrência da homofobia,
do machismo e do desinteresse de outros movimentos em defender as bandeiras do
movimento, as invisibilizando ou as secundarizando em suas lutas (Costa & Prado, 2008).
O quarto e último elemento que apontamos diz respeito à construção de formas de
tradução (Santos, 2002) entre os saberes e práticas de diferentes sujeitos sócio-histórico-
politicamente situados, buscando romper com a condição de saberes totalizantes, universais
e essencialistas. Deve-se ter como pressupostos que o conhecimento não é totalizante, mas
parcial, não é universal, mas contingente, não é “inocente” (Santos, 1995), mas marcado por
relações de poder.
Dessa forma, o trabalho de tradução possibilita a articulação de diferentes saberes e
práticas localizadas e, assim, busca criar condições para que discursos oprimidos possam ser
visibilizados, combatendo as “lógicas de não-existência” e, conseqüentemente, ampliando o
número e a diversidade das experiências disponíveis e possíveis no presente, bem como das
pistas e sinais para a construção de um futuro de possibilidades plurais e concretas como
pretende a sociologia das ausências e das emergências de Boaventura de Souza Santos.
Além disso, deve-se considerar que a tradução de saberes é uma constante dinâmica
bidirecional, na qual os diferentes grupos envolvidos devem ser compreendidos como
sujeitos da ação, no sentido de fazerem parte do processo, e de, ação no sentido de serem
considerados como detentores de vez e voz, em que tanto a linguagem hegemônica quanto
as “outras” linguagens devem ser traduzidas a um “universalismo negativo” (Santos, 2002)
deve ser construído, pois do contrário, a tradução será sempre colonial.
Dessa maneira, cabe lembrar aqui, quão pouco traduzíveis e tão colonizadoras são as
muitas e constantes capacitações produzidas por grupos dominantes não “junto”, mas
“para” populações marginalizadas, marcadas pela unilateralidade do discurso hegemônico
em direção ao discurso não-hegemônico, a qual, a partir de uma pretensa democratização
dos saberes, mantém o monopólio da compreensão do mundo, reforçando os lugares de
qualificados para fala e de aprendizes de uma verdade única.
Assim, a construção de processos de tradução exige que os atores que participem
deste processo questionem sobre o que traduzir; quando traduzir; quem traduz e como
traduzir para que se estabeleça uma inteligibilidade recíproca entre as diferentes culturas,
“com vista a se identificar preocupações isomórficas entre elas e as diferentes respostas que
fornecem para elas" (Santos, 2002, p. 263), não se pressupondo a priori nem uma prática ou
um saber como completo e privilegiado.
Para que possamos interrelacionar estas diferentes teorias, é necessário
compreendermos que a noção de posições de sujeito e a noção de teoria da tradução
possuem uma sobreposição que precisamos pontuar. Do reconhecimento das posições de
sujeito decorre como modo de construção da luta democrática a construção de cadeias de
equivalência, a qual se baseia na articulação de identidades contingentes e inerentemente
parciais, remetendo-se a articulação não a uma mera aliança entre diferentes identidades
políticas plenamente constituídas, e sim a uma redefinição destes antagonismos em torno
de um significante "vazio" a ser significado por um “nome” que não representa nenhuma
das demandas em sua particularidade, e sim é um elemento “singular” construído no
processo de articulação das diferentes demandas e que pretende abranger toda
heterogeneidade, convertendo-se, assim, no fundamento da “coisa”, ou seja, de um projeto
contra-hegemonico, dividindo o espaço social e condensando significados em torno de dois
pólos antagônicos.
A teoria da tradução, por sua vez, adota a forma de uma "hermenêutica diatópica"
(Santos, 2002), a qual parte da noção de que toda cultura é incompleta e assim pode ser
enriquecida a partir do diálogo e confronto com outras e "consiste no trabalho de
interpretação entre duas ou mais culturas com vista a identificar preocupações isomórficas
entre elas e as diferentes respostas que fornecem para elas" (Santos, 2002, p. 263). Segundo
Santos (2002), não há um saber ou uma prática total e privilegiada a priori, devendo no
processo de tradução, em cada momento e contexto histórico, se considerar as constelações
de práticas com maior potencial contra-hegemônico. Neste sentido, tanto a concepção de
posições de sujeito, quanto a teoria da tradução se pautam na crítica a noção de "universal"
como uma totalidade plena e homogênea, bem como na afirmação de que a emancipação
social depende do reconhecimento da pluralidade de saberes e práticas, sendo as formas
com que diferentes identidades se "articulam" ou se "traduzem" uma questão essencial para
o nosso tempo.
Diante da permanência de vozes silenciadas na sociedade contemporânea parece ser
fundamental, portanto, a construção de lutas políticas que contrariem uma concepção de
luta que negligencia a existência do “estranho”, pautando-se numa compreensão
universalista e homogeneizadora; uma concepção de luta pela assimilação do “estranho”
que, por vezes, ao compreender a desigualdade como simples diferença, distancia-se da
discussão da igualdade e acarreta numa inclusão subalternizada; bem como uma concepção
de luta pela diferenciação total com relação ao “estranho”, pautando-se num extremo
relativismo, acarretando, muitas vezes, na busca da destruição daqueles que não
compartilham da minha “humanidade”

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