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Não é por acaso que a grande parte dos compositores emigrantes, depois de
1950 até hoje, assumiram como seus, os valores dominantes dos países
onde foram acolhidos; de outro modo o conflito estético resultante teria
provocado a dificuldade de, simplesmente, trabalhar. Face às actuais
diferenças entre os países centrais, que só a ideologia universalista torna
invisíveis - uma vantagem do periférico: ver o que os outros não conseguem
ver - não é indiferente emigrar para a França, ou a Alemanha, ou a Inglaterra,
embora este aspecto não tenha sido até hoje objecto de grande reflexão
publicada. De certo modo ouve-se nas obras dos compositores emigrantes
(da segunda metade do século XX até hoje) a marca indelével do contexto
cultural escolhido, da narrativa aí predominante, a par com aquilo que sobra
para constituir uma assinatura de autor. Muitas obras foram compostas nas
quais é possivel à simpels audição detectar essas marcas. Algumas dessas
obras são boas composições. O que está em jogo não é da ordem do
julgamento de valor mas sim da marca geocultural. Na verdade cada lugar,
cada contexto, cada sistema de ensino, cada estrutura institucional, contribui
fortemente para "compor o compositor".
O facto de não tomar essas ideias como válidas hoje, permite-me não apenas
não considerar nenhum dos seus interditos, tal como não partilhar os
conceitos organicistas derivados de Goethe - unidade, coerência, lógica - e,
em consequência, abrir como zona de livre invenção e de imaginação criativa
a construção de "regras" para cada obra, sem por isso sentir como
necessário o estabelecimento de qualquer conjunto de principios teóricos
base. Nesse sentido vejo o acto de compor da forma que Stanley Cavell
descreveu como característica da arte moderna: "O artista deve criar a sua
obra num modo de radical auto-reflexão". (Hammer: 2002: 98)
Aqui reside a contingência essencial da arte: cada obra explica o seu próprio
ser ou não explica.
De uma forma geral não sigo igualmente estes procedimentos. Não pretendo,
à partida, que as minhas peças tenham uma sonoridade tradicional, um
discurso leve, nem as formas harmónicas que Richard Taruskin designa por
New Age. Mas, do mesmo modo, nada me garante que, do ponto de vista da
recepção, elas possam eventualmente recebidas como tal. Entre as
intenções do compositor e a forma como o seu trabalho é recebido, há a
barreira que sempre existe entre o fazer e o percepcionar - entre a poiesis e a
esthesis - que está para além daquilo que um compositor pode controlar. Faz
o seu trabalho, lança-o no mundo, mas depois as possibilidades de recepção
e de interpretação são infinitas, sendo isto válido para todas as obras e todos
os compositores.