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Psicologia do Testemunho
21 DE NOVEMBRO, 2003
I. Nota preliminar
1. A protecção de testemunhas tem constituído, ao longo das três últimas décadas, um objecto novo nos
debates políticos e judiciais de muitos Estados, trazendo à colação plúrimas questões, que se espraiam da
Ética às instituições e dispositivos da penalidade, em todos os seus graus e qualidades, em especial ao
nível processual. Efectivamente, a partir do decénio de Setenta da pregressa centúria, as comunidades e os
Poderes viram-se confrontados com novos focos de criminalidade, cuja configuração geral se oferece
plenamente estruturada e organizada, observando desígnios bem definidos, deixando para trás, nas
margens do progresso, a delinquência artesanal de outrora.
2. Face a este surtos, geradores do medo e do síndroma de insegurança das populações, estabeleceu-se
um estado de ansiedade social, frequentes vezes convertido em pânico: o surto fez-se susto e as
comunidades apelaram aos poderes, esperando reacção adequada, à escala internacional e na dimensão
dos Estados.
A História da Humanidade regista, desde os tempos mais ancestrais, a capacidade de mudança dos
fenómenos criminais: cada época do processo histórico-cultural engendra os seus próprios objectos
delinquenciais, como demonstrou Foucault (1999). Essa a razão por que a reacção institucional vai também
evoluindo, exibindo novas facetas, perspectivas e racionalidades: existe uma relação estímulo-reacção entre
a criminalidade e a actuação preventivo-repressiva dos Estados, por vezes em regime de circularidade,
espiralizando os comportamentos quer dos agentes do crime quer das instâncias de controle (Poiares,
1999).
Perante o surto, perante o susto, os Estados e as organizações internacionais procuraram encontrar meios
idóneos e adequados ao restabelecimento da ordem: o crime ameaçava tornar-se patológico, dada a sua
prevalência; já não era apenas a entidade que Durkheim (1983) considerava útil, necessário e normal, mas
algo que se patologizava, do ponto de vista social.
Todavia, como reagir? Regredindo na consagração de direitos que como inalienáveis haviam sido
proclamados, há duas centúrias? Quebrando as regras da auto-limitação do poder, em prol dos direitos
fundamentais, filosofia triunfante com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (de 26 de Agosto
de 1789)? Era a aporia que se instalava nesta era do vazio, para utilizar a expressão de Lipovetsky (1989).
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Aparentando tranquilidade, artificialmente instituída, para serenar os ânimos sociais e os desejos da opinião
política, os Estados iniciaram-se na (re)descoberta de meios de constrangimento e de combate ao crime:
reforçaram-se verbas e orçamentos, afectaram-se recursos humanos nunca imaginados, criaram-se novos
corpos policiais, alteraram-se leis - algumas das quais se havia acreditado serem imutáveis e imperecíveis.
Se a dinâmica criminal se alterou, há que investir em novas dinâmicas de prevenção, repressão e defesa
social - proclamava-se, um pouco em estratégia de convencimento político e popular. Assim surgiram novas
vias de actuação contra o crime e os sujeitos que os cometem - principalmente as organizações que os
enquadram, suportam e subvencionam. Pelo caminho iam ficando, feridos, por vezes, direitos, liberdades e
garantias, ainda que a intensidade da criminalidade, a sua tentacularidade - ora real, ora fantasiada -
legitimassem essas mutações de lógicas penais.
3. Criámos, pois, a novel quadriculatura social, a era de uma nova disciplina, como diria Foucault (1999).
Entretanto, urgia criar condições que pudessem proporcionar que as cruzadas contra o crime seriam
plenamente sucedidas, isto é, que conduzissem à punição, tão exemplar quanto possível, dos presumíveis
delinquentes. Acontece, porém, que o submundo do crime não cruzou os braços: e, não tão raramente
quanto se poderia prever, atingia o coração das investigações policiais e da aplicação da lei, eliminando,
fisicamente ou pela violência psicológica, aqueles que poderiam constituir-se em motores do exercício da
penalidade - as testemunhas. E, sem testemunhas, frustrava-se a prova e, consequentemente, a acção
punitiva. Importava, portanto, assegurar condições que favorecessem o desempenho daqueles que, pelo
depoimento ou pelo reconhecimento, poderiam ser co-responsáveis pela realização da justiça. Importava,
pois, proteger as testemunhas, condição absolutamente necessária e inevitável de consumação da justiça.
Ou, pelo menos, de tranquilização da Opinião Pública...
1. Cabe precisar o conceito de testemunha, ainda que de forma simplesmente operativa e no âmbito da
economia deste estudo. Nesta sequência, quando me refiro a testemunha estou a englobar, para efeitos de
abordagem psicológica, quer o depoimento prestado por testemunhas, na acepção jurídica que o termo
comporta, quer todos os depoimentos feitos perante entidades judiciárias ou policiais, no decurso de um
processo judicial, independentemente da respectiva natureza. Esta noção aproxima-se da construção legal
ínsita na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho (Protecção de Testemunhas em Processo Penal), que define
«a) Testemunha: qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha
de informação ou conhecimento necessários à revelação, percepção ou apreciação de factos que
constituam objecto do processo, de cuja utilização resulte um perigo para si ou para outrem [...]» [artigo 2º,
alínea a)].
Assim, incluirei nas observações que aqui deixar, os depoimentos prestados por testemunhas, pelas
testemunhas-vítimas e pelas partes (depoimentos de parte), considerando aquelas como os particulares
convocados a depor em juízo, acerca de factos de que previsivelmente tenham conhecimento (Prata, 1980).
Na verdade, em termos de Psicologia do Testemunho interessam todos os depoimentos dos quais possa
resultar uma decisão judicial, para além do estatuto jurídico e processual do seu actor. Naturalmente que,
pela frequência e pela significância, privilegia-se ordinariamente o depoimento das testemunhas, pedra
angular na formação da convicção de julgadores - trate-se de juízes ou de jurados.
2. O testemunho remete-nos, desde logo, para o problema da verdade. O que é a verdade, judicialmente
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falando? Existe sempre, forçosamente, aritmeticamente, uma correspondência entre a verdade real e a
verdade judicial? A leitura da empolgante obra de Floriot (1972), Erros judiciários, traduz a resposta, por
sinal dramática, a esta interrogação:
«O homem mais honesto e mais respeitado pode ser vítima da Justiça. Pode considerar-se um bom pai, um
bom marido, um bom cidadão. Anda de cabeça levantada. Pensa que jamais terá de prestar contas aos
magistrados do seu país. Que fatalidade o poderia fazer passar por um homem indigno, por um criminoso?
«Essa fatalidade existe, tem um nome: erro judiciário»
(Floriot, 1972, p. 7).
Em plena época positivista, um dos introdutores da Psicologia na vida forense, Altavilla (1925/1953)
proclamava
«A verdade judicial, como qualquer outra realidade, só pode, portanto, ter um valor muito relativo, no
conhecimento do magistrado, ao qual chega através de depoimentos e interrogatórios, suportando um largo
trabalho de transformação, desde a sensação, no momento inicial, até à exposição verbal ou escrita, que é o
momento terminal» (Altavilla, 1981, p. 20)
A verdade é, por conseguinte, o produto da filtragem, selecção e assimilação dos factos narrados junto dos
operadores judiciários, por uma ou mais testemunhas, podendo ser complementada - ou exclusivamente
fundada - por documentos. Todavia, importa prestar atenção aos tempos da formação da verdade oficial ou
institucional: filtragem dos depoimentos recolhidos ou a recolher - que podem ser prescindidos pelas partes,
por razões várias, incluindo por temor que sejam hostis, frágeis ou inoportunos; selecção, na medida em que
o destinatário vai ter de escolher entre as várias orientações que lhe aparecem, optando por aquelas que,
por um ou outro motivo, se lhe ofereceram de maior fidedignidade; e, enfim, assimilação, ou seja,
assumpção de que aquela é a versão dos factos mais consentânea com a verdade ocorrida. A assimilação
resulta, por conseguinte, da selecção: e, neste percurso, o sujeito que vai escolher e assimilar, porque é um
actor social, na acepção fornecida por Touraine (1982), vai produzir a opção através de mecanismos de
identificação. Na realidade, a entidade de acolhimento do testemunho vai projectar-se, de alguma forma, no
discurso (ou nos discursos) que lhe são levados ao conhecimento: existe uma adesão àquela versão, para o
que são contribuintes as suas crenças e até os estereótipos. Essa adesão resulta do convencimento do
julgador que aquela é, no momento, a visão mais adequada à eventual realidade dos factos, pelo menos a
que vende melhor, ou a que ele, receptor do depoimento, está em condições de melhor comprar.
Há muitos anos, no desempenho de funções forenses, mantive uma entrevista com uma representante do
Ministério Público numa comarca do sul do país, no âmbito de um processo de droga, relativamente simples.
Aos dois arguidos era imputado o crime de tráfico, estando ambos em prisão preventiva - que se prolongou
por nove meses. Eu requerera a substituição da medida de coacção aplicada por outra, não reclusiva, o que
a minha interlocutora considerou um absurdo. E desabafou: «ó senhor doutor, já viu a cara do seu cliente?
Vê-se logo que é um traficante!...» Não se viu: foi absolvido; porém, este discurso simboliza na perfeição a
função das crenças e da esteriotipação, a que ninguém está imune.
Todavia, nem sempre existe, como referi, exacta correspondência entre a verdade real e a provada em
tribunal: Galileu representa o caso mais emblemático desse desajustamento.
Daí que possamos arrancar para a reconstrução da verdade judicial, considerando-a apenas como aquilo
que resulta provado em tribunal. Por outras palavras, a questão da verdade (judicial) apela à verdade
relativa, conjuntural.
O apuramento da verdade assenta, com frequência, na produção da prova testemunhal. Donde, as
testemunhas assumirem um papel de eixo de descoberta da verdade (judicial). Contudo, o problema da
verdade apela à sua antítese, a mentira; e a mentira em tribunal pode derivar de n factores e pode provir de
diversas origens, desde o transgressor à vítima, passando pelas testemunhas.
Na Antiguidade era já conhecida a força das testemunhas como entidades aptas à formação da convicção
do julgador, pelo que era permitido, em algumas épocas, o recurso à intimidação e à coacção física e
psicológica, nomeadamente a tortura, como acontecia na Grécia (Peters, 1996). Será que já não é (ou não é
de novo) assim? Pense-se nos sistemas que consentem as escutas telefónicas de testemunhas, e não só, e
reflicta-se se o tempo de tentar dominá-las, pela coacção psicológica, não está outra vez aí...
3. A palavra testemunho designa narrativa elaborada e apresentada por um sujeito relativamente a factos de
que tem conhecimento directo (Askevis- Leherpeux, 2001). Trata-se de um discurso, ou seja, um corpo
coerente e ordenado de proposições, através do qual o sujeito verbaliza as suas crenças e convicções,
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A Psicologia do Testemunho visa estudar os depoimentos prestados junto de instâncias de controlo social e,
do ponto de vista científico, é um segmento da Psicologia Forense (ou Judiciária) Experimental. Neste
sentido, o seu objecto consiste na averiguação da verdade, do erro e da mentira no cenário judicial (Sabaté,
Bayés e Munné, 1980, citados por Diges e Alonso-Quecuty, 1993).
4. Protecção de testemunhas: um objecto (re)descoberto nos finais do século XX. No século das Luzes,
protecção dos direitos de defesa dos arguidos. Protecção e apoio às vítimas, lançados em programas,
públicos e privados, desde as últimas décadas do precedente século. Vítima e testemunha: estatutos por
vezes sobrepostos, por vezes distantes.
E que espécie de protecção para as testemunhas? Evitar que sejam (re)vitimizadas, se prestarem
depoimento? Defendê-las fisicamente ou também psicologicamente? Como compatibilizar a protecção de
testemunhas com a defesa dos direitos (processuais) dos arguidos? E com o princípio do contraditório? E
com o princípio da igualdade de armas, entre a acusação (do Estado) e a defesa (particular)?
Que fronteira entre os direitos de uns e de outros? E a protecção de testemunhas, por exemplo apartando-
as dos arguidos, não pressuporá já um pré-juízo de culpabilidade dos acusados? E, por inerência, da
veracidade das narrativas carreadas aos órgãos judiciais pelas testemunhas?
Eis algumas questões que se me oferecem de especial interesse, quer nos territórios jurídicos quer no
espaço de intervenção da Psicologia - a denominada intervenção juspsicológica (Poiares, 1999; 2001).
aplicação), existe um momento crucial - o crime -, cujo actor social é o Transgressor. Estes dois momentos
pressupõem uma outra fase, a criminalização terciária, que se ocupa da execução da pena e da reinserção
social, na circunstância de o Transgressor ter sido condenado (Poiares, 1999; 2001).
Ora, para além deste triângulo, existem outros actores (individuais e colectivos), cuja emissão discursiva
pode determinar a mutação dos discursos e das práticas dos outros - incluindo os do triângulo inaugural:
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cada actor intervém, voluntária ou involuntariamente, no sistema, sendo co-autor de uma intervenção idónea
à mutação da ordenação do sistema.
Assim:
Esta intervenção acontece também, como é óbvio, com as vítimas e com as testemunhas, provocando
potenciais alterações na configuração geral do sistema. Nesta conformidade, as emissões discursivas das
testemunhas são destinadas à produção de lógicas penais casuísticas, revelando-se fundamentais para a
tomada de decisão por parte do Aplicador.
2. Esta constatação implica a necessidade de todos os actores sociais partícipes na construção do processo
criminalizador (concreto) serem erigidos em objecto de estudo, no que tange aos seus discursos e práticas,
bem como às respectivas causas contribuintes; e isto porque um discurso nunca é fruto do acaso nem da
coincidência, antes traduz as crenças, as convicções e as expectativas de quem o emite, podendo ser
alterado (acrescido ou diminuído) pelas crenças de quem for o receptor.
Assim, é nítido que o discurso das testemunhas pretende contribuir para a construção do real a que o
tribunal vai proceder: essa a razão por que devem incidir sobre as testemunhas (sejam ou não vítimas) os
focos da Psicologia, procurando conhecer da veracidade dos depoimentos prestados: esta é, aliás, a lógica
estruturante da Psicologia do Testemunho.
É caso para dizer: que espinhosa é a função da testemunha! Mais: que difícil é ter de decidir mediante
testemunhos! Mais, ainda: que tremendo é ser-se acusado porque a testemunha viu mal, ouviu mal,
imaginou mal - e ter no cárcere o resultado de uma má percepção ou de uma má memória!
3 -A mentira existe, desde sempre, no sistema de justiça; e este, desde sempre, procurou detectar o espaço
preenchido pela mentira, fosse proveniente de testemunhas, do próprio acusado ou do acusador. A História
está eivada de registos sobre a caça à mentira judicial: desde as provas do arroz, na China e na Índia, há
mais de 3000 anos, até à busca de alterações físicas - suor nas palmas das mãos, diminuição da saliva,
faces ruborizadas, alterações do ritmo cardíaco -, diversas foram, na Antiguidade e desde então, as
sugestões e “provas” de mentira em tribunal (Alonso-Quecuty, 1994; Queirós, 2001).
As ordálias tiveram maior divulgação na Idade Média (Peters, 1996), a par de outros meios de prova sobre a
autenticidade dos meios de prova. A vertente biológica esteve presente, desde muito cedo, procurando-se
articular a emoção da mentira com as alterações fisiológicas, o que se prolongou até à contemporaneidade,
com o uso do polígrafo e do “soro da verdade” (Queirós, 2001). Trata-se, com efeito, de uma «[...] quase
obsessão que se verifica pela identificação da mentira [...] (Queirós, 2001, p. 60), a qual tem feito carreira ao
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longo de todo o processo histórico. O polígrafo, inicialmente usado por Munsterberg (Marston, 1938, citado
por Queirós, 2001), emergiu como o aparelho que permitiria detectar mentiras, o que é enviesado, já que a
interpretação dos seus dados é não só objecto de polémica como até perigosa (Queirós, 2001).
A invenção do polígrafo decorreu dos pressupostos de rigor e medição, inserindo-se no amplo contexto das
tendências quantificadoras em Psicologia, destarte procurando assegurar a sua cientificidade, dentro do
registo do positivismo.
4 -A testemunha pode ser honesta e pretender oferecer um depoimento sério e, no entanto, debitar um
testemunho inexacto, por erro de memória ou por deficiente percepção, como já referi. Efectivamente, o erro
do depoimento não depende sempre da vontade do emissor, mas de factores (endógenos e exógenos), que
podem levá-lo a alterar a realidade, sem se aperceber dessa situação. Os rumores podem, por exemplo,
justificar essa alteração. Com efeito, atribuindo ao rumor a noção de «notícia não controlada que surge na
ausência de informações precisas sobre um acontecimento importante [...] (Askevis-Leherpeux, 2001, p.
678), a sua ocorrência pode significar o grão de areia susceptível de emperrar a máquina. Trata-se de um
pós-acontecimento, que o sujeito captou em lugar do acontecimento real, ou que é o resultado da erosão da
imagem real, inicialmente construída em relação ao facto, ou da elaboração intelectual posteriormente feita
pelo sujeito. O rumor propaga-se, concisando-se e facilitando a transmissão; acentua-se, amplificando-se - é
o velho rifão: quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto...; e é alvo do processo de assimilação, isto é,
os detalhes mantidos são objecto de reprogramação
«[...] de tal maneira que o conjunto possui a unidade e a pregnância de uma boa forma, que reflecte a
ideologia, os desejos e os interesses dos que propagam o rumor» (Askevis-Leherpeux, 2001, p. 678).
O testemunho é objecto de uma estratégia transmissora, ou seja, o «[...] sujeito escolhe, organiza e gere as
suas acções com vista a concluir uma tarefa ou atingir um objectivo» (Ducret, 2001, p. 309); reprogramar o
discurso, enchendo-o, porventura, de pormenores, com que quer dar consistência à ideação da ocorrência.
Significa isto que ele pode ter perdido a noção dos factos - ou, até, nunca a ter tido - construindo uma
imagem, virtual ou sucedânea, que crê verdadeira. Imagem do que viu ou ouviu.
5- A literatura psicológica fornece vasto material alusivo a esta realidade, quer no que concerne aos
depoimentos quer no referente ao reconhecimento de rostos. Altavilla (1981) apresentava já diversos
exemplos, nas edições de 1925 e 1955 da sua obra. Como referiu, há que destrinçar entre veridicidade e
sinceridade, termos que não são sinónimos, já que «[...] se pode ser sincero, sem se ser verídico, o que nos
leva a distinguir entre falsidade e erro da testemunha» (Altavilla, 1982, p. 251).
Os trabalhos mais recentes apontam justamente no mesmo sentido: Kapardis (1994); Loftus (1999).
Várias experiências, em laboratório e em outros contextos, nomeadamente num registo de simulação, têm
revelado a facilidade com que o mesmo facto, assistido por muitas pessoas, por vezes com formação
superior e jurídica, acaba por ser narrado com enormes desconformidades em relação aos acontecimentos
(Altavilla, 1982; Diges e Alonso-Quecuty, 1993). A visualização colectiva de um acontecimento, no caso de
as eventuais testemunhas trocarem impressões entre si, acabará por produzir alterações nas futuras
narrativas; e se o facto for noticiado na imprensa, porque atinge outra dimensão descritiva e de massas,
acabará, quase inevitavelmente, por sofrer transformações e composições por parte das testemunhas. Por
isso, algumas legislações como a portuguesa, impedem que as testemunhas assistam às inquirições
anteriores. No contexto das declarações da testemunha - o relato ou narrativa -, a avaliação que deve fazer-
se tem como coordenadas a quantidade e a qualidade de informação recuperada pelo sujeito, o que
pressupõe utilização de técnicas específicas de avaliação, e.g. a análise da declaração, compreendendo
uma análise de conteúdo, cuja relevância gramatical e semântica pode ser significativa, em função, por
exemplo, das características sócio-culturais e linguísticas da testemunha. Impõe-se, neste casos, a
pesquisa, a captação e descodificação do intradiscurso (o que está para além do legível, a racionalidade do
sujeito: Poiares, 2001). Pode recorrer-se, nestes casos, à estilometria, procedimento técnico que liga a
investigação em Psicolinguística com a Psicologia Forense (Diges e Alonso-Quecuty, 1993).
As memórias irreais podem ser também condicionantes da fidelidade da testemunha: o sujeito observou o
facto, mas não o observou completamente, quer porque estava situado num ponto em que só podia captar
parcialmente, quer porque associou à observação a sua emocionalidade, alterando o registo do facto.
Ocorre, portanto, uma captação disfuncional, que redundará em depoimento igualmente disfuncional. Outras
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vezes, o sujeito viu o acto delituoso, que ocorreu em segundos; a ter visualizado a face ou a figura do sujeito
presumível delinquente, dispôs de fracções de segundo em que o viu - e estava, provavelmente, diminuído,
pelo susto ou pela ansiedade, pelo que as suas faculdades mnésicas estavam diminuídas; pode ter retido
que o criminoso era alto, ou gordo, ou louro - e se o sujeito a reconhecer tiver uma destas características
tenderá a identificá-lo. Se as condições de observação forem deficientes - noite, fraca iluminação, espaço
muito movimentado - o erro será potenciado.
Por outro lado, a testemunha chamado ao reconhecimento, se já tomou qualquer contacto com as
expectativas dos investigadores ou da Opinião Pública, neste caso através da media, terá tendência a
corresponder a essas expectativas no procedimento identificatório do presumível culpado, podendo
funcionar o princípio da desejabilidade social.
Os estereótipos, por seu turno, podem ser responsáveis por imprecisões e erros vários, quer na emissão do
depoimento quer no reconhecimento; neste particular, os aspectos raciais e xenófobos podem habilizar o
agravamento da distorção.
O cenário pode também influenciar, por esteriotipação, o depoimento: o sujeito assiste ao crime num bairro
de população maioritariamente não branca; logo, terá tendência a apresentar um relato em que o hipotético
delinquente será um não caucasiano.
A maneira como se desenrola a inquirição não é também inócuo: o uso das formas interrogativa ou
afirmativa, ou interrogativa-negativa, por exemplo, podem alterar a resposta do sujeito - tanto mais que se
encontra num espaço que não é o seu, que não lhe é, em regra, familiar, entre situações que desconhece:
na verdade, a liturgia policial ou judicial e a arquitectura dos tribunais são desconfortáveis para os residentes
de passagem, podendo contribuir para a distorção dos resultados, principalmente se o agente que estiver no
papel de interrogador for pouco simpático, ríspido ou ameaçador; acrescente-se, ainda, o factor ansiedade,
que pode precipitar o depoente em conclusões que, fora desse estado, não extrairia.
Loftus (1999) apresenta situações em que a troca do artigo definido pelo artigo indefinido provoca
modificações na resposta.
Outro fenómeno curioso - e perigoso - é a designada transferência inconsciente: a testemunha ou a vítima-
testemunha indica como agressor um sujeito, convencida que o rosto que tem à frente lhe é familiar. Porém,
essa familiaridade, que existe, decorre de se tratar de alguém que já encontrou na rua, ou porque é
personagem púbica e a cara lhe diz algo (Diges e Alonso -Quecuty, 1993). Como sublinham estes
investigadores
«[...] os psicólogos que estudam a memória mostraram empiricamente que a recordação que se tem de um
acontecimento não é uma réplica exacta desse acontecimento, porque a memória não é em absoluto uma
gravação fiel de eventos, mas uma reconstrução a partir de esquemas e categorias prévias» (Diges e
Alonso-Quecuty, 1993, p. 53).
Acresce que a relação ocasional mantida entre a autoridade que está a dirigir a inquirição e o sujeito pode
ser determinante: perguntas vexatórias ou humilhantes; em tom jocoso ou agressivo; ameaças; perguntas
de constrangimento, como os inquisidores medievais gostavam de fazer: é judeu?; ou os agentes da
Gestapo ou da PIDE: é comunista?; prolongamento do interrogatório por várias horas, com interrupções
inúteis; realização das sessões a horas nocturnas, por vezes acordando os sujeitos, a meio da noite;
privação de água, alimentos, fármacos ou tabaco; sugestões sobre o estado de saúde ou segurança de
familiares ou próximos - eis alguns vectores que são susceptíveis de enviesar as declarações das
testemunhas, distorcendo as narrativas face à realidade.
A participação de crianças em juízo carece, obviamente, de ser rodeada de especiais cuidados, seja no
decurso de um processo de poder paternal ou em sede de procedimento criminal, devendo recensear-se os
eventuais factores de stress mais graves.
Na Alemanha, o Supremo Tribunal decidiu, em meados do século passado, que nos casos de abuso sexual,
quando o único meio de prova for o depoimento da criança, deverá ser submetida a perícia psicológica,
procedimento que a justiça espanhola acompanha (Rodríguez, 2000).
A especial atenção concedida a menores, em caso de abuso sexual, decorre não só da sua fragilidade como
do risco de manipulação:
«Um pai pode projectar as suas próprias fantasias sobre o menor, distorcendo a realidade e transmitindo-lhe
continuamente informação errada» (Rodríguez, 2000, p. 195),
razão por que se reforça a necessidade de perícia e, se acusação e defesa o desejarem, nada deve obstar à
efectivação de duas perícias - o que serve para obstaculizar a que as perícias técnicas possam ser
dispensadas do princípio do contraditório, como aconteceu, em diversas ocasiões, no uso abusivo de
psiquiatras oficiais nas ditaduras do leste europeu.
Todavia, o que agora referi sobre a hipotética necessidade de avaliação psicológica de menores é também
extensível a maiores: com efeito, importa indagar e conhecer o estado mental daqueles que, por mero
acaso, podem provocar a condenação de outrém; e, como já escrevi em outro local (Poiares, 2001), a
avaliação dos actores do processo de criminalização poderá representar a salvaguarda dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos. Principalmente quando houver coragem para que todos - mas todos -
os actores do processo judicial possam ser avaliados nas suas competências cognitivas.
6 A decisão judicial é um micro-cosmos, em que a decisão final é precedida de segmentos decisórios, actos
de poder, condicionantes de todo o processo (Sobral, Arce e Prieto, 1994).
A Psicologia do Testemunho revela necessidades sociais cada vez mais prementes: a de protecção às
testemunhas e a da preservação da verdade. Trata-se, fundamentalmente, de assegurar os direitos,
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liberdade e garantias dos cidadãos, levando o saber e as práticas da Psicologia ao interior do sistema de
justiça.
25.SETEMBRO.2003.
REFERÊNCIAS
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24/06/2018 Psicologia do Testemunho - Ordem dos Advogados
Sobral, J., Arce, R. E Prieto, A. (1994). Manual de Psicología Jurídica. Barcelona: Ediciones Paidos.
https://portal.oa.pt/comunicacao/noticias/2003/11/21/psicologia-do-testemunho/ 11/11