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Este e outros exemplos de experimentos de historiografia literária já foram por mim discutidos
parcialmente em contextos distintos. Cf. p.ex. OLINTO, Heidrun Krieger. Afinal, o que cabe
numa história de literatura? Cadernos de Pesquisas em Literatura, v. 1, 2010,p. 40-52; Uma
história literária afetiva. Cadernos de Pesquisas em Literatura, 2008,v. 1, p. 34-46;
Experimentos atuais da arte de narrar. Itinerários (UNESP), v. 24, 2006, p. 231-245; Notas
sobre uma historiografia (literária) do presente. In: Carlos Alexandre Baumgarten (org.). História
da literatura: itinerários e perspectivas. Rio Grande: Editora da FURG, 2012, p. 93-126;
Historiografia literária em cenários multiopcionais. In: Carlinda F. P. Nuñes et al. Historia da
literatura: fundamentos conceituais, Rio de Janeiro: Makunaíma, 2012, v.1, p. 80-95.
quadro, acontecimentos como a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, movimentos de
direitos civis, o movimento das mulheres e a luta de vários grupos minoritários
mudaram a visão de muitos americanos com respeito a sua própria nação e sua
literatura e cultura nacionais. Conflitos e reavaliações na vida política e intelectual
tinham criado, já nos anos 60 e 70 do século passado, uma atmosfera de indefinição e
de redefinições, também, do passado literário, gerando “exciting new critical
perspectives and literary expressions” que, para Emory, precisavam encontrar espaço
explícito no volume do final da década de 1980 (xi). Contudo, para ele não se tratava
de um novo consenso acerca da configuração adequada de histórias de literatura, uma
vez que se tornou problemática a própria concepção unificada acerca de uma
identidade nacional integrada. Por esta razão, um dos objetivos defendidos encontra a
sua tradução exemplar no uso da figura do mosaico, capaz de exibir a coexistência de
uma variedade de pontos de vista que mobilizam “current scholarship” em diversos
campos disciplinares do saber (xii). De acordo como este princípio – e em contraste
com outras histórias de caráter monumental, que optam por uma representação global
do passado – a nova história literária, desenhada como galeria de arte em que várias
entradas disponíveis garantem acesso aleatório a corredores e salas distintos,
privilegia modelos estruturantes com acento sobre dispersão. A escolha emblemática
da metáfora arquitetônica sinaliza, por seu lado, uma nova articulação entre as
dimensões espaciais e temporais com implicações significativas na própria prática
historiográfica que afeta de modo particular as reflexões em torno da periodização.
Em diálogo com Emory, três anos antes da efetiva publicação, a teórica da
literatura Annette Kolodny dá seu apoio enfático ao projeto da referida história literária
dos Estados Unidos para substituir aquele “monumental pony upon which generations
of American literature graduate students, from 1948 on, rode to their Ph.D. orals”
(KOLODNY, 1985). Entre diversas razões alegadas é dado destaque à urgência de
reexaminar o próprio estado da arte do campo disciplinar, passadas duas décadas de
intenso envolvimento com questionamentos teóricos e críticos com respeito às
próprias tradições literárias e aos hábitos cristalizados de valoração, seleção e
canonização de textos dignos de serem arquivados na memória. Naquele momento,
foi sobre o pano de fundo do surgimento de produções literárias de mulheres, negros,
americanos nativos, minoridades étnicas, gays e lésbicas, e à luz de novos
instrumentos analíticos e modos de interpretar, entre outros, a ficção popular, gêneros
não-canônicos, a escrita de classes operárias, que todas as histórias literárias
anteriores se tornaram parciais, inadequadas, obsoletas. Neste sentido, comparecem
na versão final, de fato, escritores da linhagem canonizada lado ao lado com autores
de tradições tão divergentes quanto “American Indian writers, black writers, women
writers, Asian and American, Hispanic and Jewish-American writers”, revelando a
multiplicidade coexistente de distintas obras literárias como igualmente de diversas
perspectivas da investigação contemporânea (ELLIOTT,1988: xxi). Ao reprimir o
desejo de vê-las unificadas por meio de uma intervenção sintetizadora se tornam
visíveis, assim, as marcas de diversidade, complexidade e contradição, seja nas
produções literárias, seja nas formas de pensar sobre elas. Esta orientação inverte,
assim, a direção anterior de histórias literárias que se legitimam por uma retórica de
tradições e valores compartilhados, consensuais, à custa de mecanismos ocultos de
exclusão seletiva não assumidos.
Segundo Kolodny, entre outros, a escrita fronteiriça de mulheres, a evocação
de tradições narrativas afro-americanas e de expressões cantadas de americanos
nativos, desafiam categorias discursivas herdadas e tornam evidente que elas não
cabem em molduras estabelecidas prestigiadas, e muito menos nos quadros
tradicionais de periodização. Como, então, avaliar os autores de obras não-canônicas
e acomodar aqueles que desafiam os limites sancionados de uma época? No referido
diálogo, o próprio editor da Columbia Literary History of the United States, Emory
Elliott, admite candidamente não saber ao certo o que seja história ou literatura
americana e tampouco se ele próprio possuía crédito para explicar qualquer das
duas.2 A partir destas inseguranças, os editores acolhem as contribuições dos
diferentes autores em sua forma original sem intervenção unificadora que pudesse
transformar a coletânea, de autoria e comprometimentos plurais, em narrativa linear e
coerente que aplaina tais diferencias. O livro, portanto, é concebido para produzir
efeitos de heterogeneidade, problematizando a concepção tradicional da maioria das
histórias de literatura que, ao contrário, procuram minimizar o desconforto da falta de
uma síntese. É esta qualidade, presente na Columbia Literary History of the United
States que diferencia esse experimento de congêneres anteriores, tanto em sua
proposta temática quanto estrutural. E, é desta forma que leitores, leigos e
profissionais, são estimulados a compor o seu próprio menu individual e a participar
concretamente de um circuito comunicativo por princípio aberto e interativo. A estes
permite-se, deste modo, a vivencia paradoxal do confronto com eventos e objetos
pertencentes a tempos históricos distintos, articulados ao acaso, numa estrutura
dissonante sem síntese. Este tipo de experiência realça procedimentos condizentes
com diagnósticos e hipóteses recentes que, no caso de histórias de literatura
questionam, por exemplo, a ideia da existência de uma identidade nacional integrada
refletida em obras literárias que coparticipam supostamente do mesmo processo de
2
Diálogo entre Emory Elliott, Princeton, New Jersey e Annette Kolodny, Troy, New York, 19
June 1984.
desenvolvimento progressivo em direção ao futuro. Ao mesmo tempo é reforçada a
convicção de que histórias de literatura são sempre também histórias políticas e, por
princípio, fazem parte do concerto de todas as histórias. Em suma, trata-se, em última
instância, da transformação em prática historiográfica das reflexões epistemológicas,
teóricas e metodológicas que mobilizam teóricos e historiadores da literatura, no
terreno das ideias, desde os anos de 1960.
Na análise do estado da arte da discussão daquele momento, no livro hoje
clássico, Is Literary History Possible?, David Perkins aponta igualmente caminhos
alternativos para a formatação de histórias de literatura e defende a ideia de que estas
deviam atribuir “less unity to their subjects” (PERKINS, 1992: 3). Entre os projetos bem
sucedidos ele destaca especialmente a Columbia Literary History of the United States
(ELLIOTT,1988), apresentada como compilação de sessenta e seis ensaios individuais
sobre obras e autores diversos sem enfatizar semelhanças de família, continuidade e
desenvolvimento ao dispensar deliberadamente “consecutiveness and coherence” (3).
Ainda que seja mantida uma ordem cronológica, ela não sublinha, no caso, vínculos
específicos entre os eventos arrolados capazes de sugerir convergências consensuais
em termos de estilo, gênero ou época que pudessem permitir uma divisão precisa na
escala temporal de uma periodização confiável. Na visão de Perkins, o mérito de sua
forma enciclopédica, encontra-se, antes, no desejo de dar corpo à nossa sensação de
“overwhelming multiplicity and hetereogenity of the past”, entendido em sua
descontinuidade, como “ever-living, ever-working Chaos of Being” (56). Neste sentido,
a configuração enciclopédica, por ele rotulada de pós-moderna, pode ser vista, não
como forma mais ingênua de histórias de literatura mas, eventualmente, como a sua
expressão mais sofisticada.
Uma segunda história literária publicada no ano seguinte, em 1989, pela
universidade de Harvard, A New History of French Literature, editada por Denis Hollier
(1989), recebe um veredito menos favorável. Trata-se de um notável e inédito esforço
coletivo neste tipo de experimento historiográfico – além do organizador responsável,
de um conselho editorial, de consultores específicos por assunto e época –
comparecem cento e sessenta e cinco ensaistas de origens nacionais, geográficas,
disciplinares, étnicas, raciais, culturais e de orientação filosófica divergentes. O editor
explica na introdução que a obra não apresenta a literatura francesa como simples
inventário de autores e títulos no eixo linear da história, mas como campo histórico e
cultural visto a partir de um imenso leque de perspectivas críticas contemporâneas. À
medida que os ensaios se seguem, eles são introduzidos por determinada data
seguindo uma ordem cronológica respeitando, neste aspecto, a forma de
apresentação usual em histórias da literatura tradicionais, mas por outro lado, o
próprio princípio de montagem nega a pretensão de compor imagens unificadas. Nesta
ótica, os ensaios, individual e cumulativamente, colocam sob suspeita a nossa
percepção convencional de um contínuo histórico, baseada em métodos de
classificação por faixas temporais datáveis de duração pré-determinada. Essas datas
são acompanhadas por um título evocando eventos que acentuam menos o conteúdo
dos ensaios do que o seu ponto de partida cronológico.
REFERÊNCIAS
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