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Zona tórrida – certa pintura do Nordeste

Por Clarissa Diniz e Paulo Herkenhoff

Estamos na dourada habitação da luz. Do alto do céu todo o vasto continente


brasileiro aparecerá como um diamante a cintilar nas sombras do Infinito... A terra
é perpetuamente vestida de luz. A sua refulgência abre no silêncio dos espaços uma
claridade inextinguível, fulva, ardente, branda ou pálida. Tudo é sempre luz.
Descem do sol as luminosas vagas ofuscantes, que mantêm na terra a quietação
profunda. A luz tudo invade, tudo absorve. Chapeia nos cimos das montanhas,
derrama-se pelos vales, [...] [a vida] vibra, fulgura o ar incandescido, a terra se
volatiza numa pulverização de luz. Desmaiam as cores do mundo e tudo se torna da
1
cor da luz .
Graça Aranha. A estética da vida, 1921.

Advertência

Pintura não é “produto agrícola”, adverte o pintor José Cláudio. Nela, a cor tem ecologia própria.
Daí a fotossíntese não obedecer à luz do cânon. Pintura dubitante: isso é moça ou castanha de
caju? Galo ou abacaxi? Contra o behaviorismo estético, um olhar se lança a pensar as relações
entre luz equatorial e a pintura que emerge dos trópicos. O olho esquiva-se de Newton e Goethe
2
porque “a luz que penetra [na pintura] não se mede com fotômetro”. O en plein air produz sentido
quando é captura de luz latitudinal. Seria a luz a energia capaz de “absorção do ser na unidade
3
cósmica” pensada por Graça Aranha?

A zona tórrida – área do globo que se estende entre o Trópico de Câncer e o Trópico de
Capricórnio, mediada pela Linha do Equador – é uma circunscrição cegada pela extravagância de
luz. Zona tórrida guarda uma distância longitudinal estratégica de Greenwich, Paris, Jerusalém,
São Petersburgo, ou qualquer outra referência. Longitude é convenção arbitrária. Nosso Norte não
é o Sul, como no mapa invertido de Torres-Garcia, nem corre sob Capricórnio, como vendeu

1
ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: INL, 1968, p. 625.
2
CLÁUDIO, José. Não há Nordeste. Diário da Noite. Recife, 13 jun. 1961.
3
ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: INL, 1968, p. 625.
Mário de Andrade. Romper com a orientação teocêntrica, heliocêntrica, caipirocêntrica,
capricornicêntrica. Na zona tórrida, o Norte é o Nordeste. O pintor aspira a mácula original da
4
latitude. Borrados os limites das latitudes, é na direção oposta àquela do risco de configuração de
um regime óptico para certa pintura do Nordeste que se mapeia esta Zona tórrida. O Brasil, ou
qualquer uma de suas regiões, é irredutível a um único sistema de cor.

Estética da vida
O mesmo acontece com a pintura no Nordeste em seus múltiplos sistemas. Nos anos 1980, diz
Delson Uchôa que sua preocupação era fazer uma pintura que tivesse uma identidade, e não era
nem uma questão de uma identidade brasileira, ou latino-americana, como é percebida hoje em
meus trabalhos, mas uma preocupação bem localizada: eu queria que minha pintura remetesse ao
5
Nordeste. Latitude sem a densidade da cultura concreta é só lugar geográfico e explicação física
da luz. A estética da vida, do escritor Graça Aranha, é o marco que introduz uma vontade
autônoma e própria de cor, pensando uma fenomenologia da luz no Brasil.

Graça Aranha foi moderno apesar do modernismo. O escritor problematiza a cor com um regime
cultural e projeta uma possível fenomenologia não separada da dimensão etnológica. Graça Aranha
deplora a falta de comunhão da “alma brasileira” com a natureza por decorrência do artificialismo
das “três raças”: a “melancolia portuguesa”, a “metafísica do terror” dos índios (enchendo de
fantasmas os espaços entre o espírito humano e a natureza) e a “infantilidade africana” (“terror
6
cósmico”). O maranhense planta os fundamentos do projeto de cor modernista como modo de
enunciação da cultura nova de um país complexo. Urgia transformar sensações da paisagem em
arte – cor, linha, planos, massas. No projeto de A estética da vida, existe a unidade e não o império
de qualquer província cultural sobre as demais. Na diversidade geográfica do continente
brasileiro, a unidade moral, política e histórica da Nação é o efeito espiritual da unidade de raça
que é o princípio criador do País. As várias regiões do País são disparatadas e tendem todas a
diferentes destinos geográficos, e nenhum aço de ordem geológica as funde para formar com elas
7
um só todo físico. No disparate entre as regiões, o próprio Nordeste é muitos.

Em A estética da vida, Graça Aranha afirma que a natureza é uma prodigiosa magia. E no Brasil
ela mantém nas almas um perpétuo estado de deslumbramento e de êxtase. [...] No Brasil, o
4
A mácula reúne a maior densidade de células cone do olho, responsáveis pela percepção das cores.
5
UCHÔA, Delson. Delson Uchôa. Milão: Charta, 2009, p. 29.
6
ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Op. cit., p. 620-621.
7
Idem.
espírito do homem rude, que é o mais significativo, é a passagem moral, o reflexo da esplêndida e
8
desordenada mata tropical. Há nele uma floresta de mitos. Em 1923, rompidos com Graça
Aranha, os dois Andrades não escapam de emular A estética da vida em Paris e São Paulo. Tarsila
9
do Amaral recebia em Paris a lição de Léger quanto à aplicação da “couleur local”. Numa
conferência marota na Sorbonne, Oswald apoia-se no tripé étnico da formação brasileira conforme
Graça Aranha. Por conta disso, Benedito Nunes argumentou, Oswald operou “uma inversão
parodística da filosofia de Graça Aranha”, em que a metafísica bárbara é recuperada em
10
antropofagia.

Virgindades
Em novembro de 1923, quando Tarsila do Amaral embarcava para São Paulo, um Mário de
Andrade inspirado em Graça Aranha convocava a artista a retornar de Paris e a pintar em
brasileiro: “volta para dentro de ti mesma. […] Abandona Paris! Tarsila! Vem para a mata
11
virgem”.

Mata-virgismo é a tradução/tradição da “metafísica do terror” e da couleur local. Mário pensa a


pintura como silvicultura. José Cláudio não pensa como Mário. Tarsila aplica a lição de Léger tão
logo volta ao Brasil: Morro da favela e Carnaval em Madureira (1924). A receita légeriana ecoa
na paleta empírica de Oswald do Manifesto da poesia pau-brasil (1924): “A poesia nos fatos. Os
casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.”
Definitivamente, em fevereiro de 1924, o vernáculo da primeira cor pau-brasil de Tarsila e a
ambiência do Manifesto da poesia pau-brasil são urbanos e cariocas na temática e na paleta.

Na operação do modernismo paulista, a cor política deveria passar de pau-brasil a caipira, e esta,
de regional a símbolo nacional. Já convertida ao projeto, Tarsila, doze anos depois de pintar Morro
da favela e Carnaval, reescreve a história e informa que encontrou em Minas as cores que
adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto
apurado. Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas: azul puríssimo,
rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou menos fortes, conforme a
8
ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Op. cit., 1968, p. 621.
9
LÉGER, Fernand. Notes sur la vie plastique actuelle (1923). In: Fonctions de la peinture. Paris: Gallimard,
1997.
10
NUNES, Benedito. Prefácio a Obras completas de Oswald de Andrade, vol. VI. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, p. XXXII.
11
ANDRADE, Mário. Carta de 15 de novembro de 1923, apud Amaral e Salzstein (op. cit., nota 13 infra,
p.145).
mistura de branco. Pintura limpa […]. Contornos nítidos, dando a impressão perfeita da
12
distância que separa um objeto de outro. Tudo isso é Léger à brasileira que já estava no Morro
da favela: a cor local vernacular, a técnica da formação da cor e o princípio do “contraste das
formas” (quando o contorno nítido dos volumes separa um dos outros).

Para Gilberto Freyre, em 1925, a virgindade da pintura moderna era outra: não temos ainda
produzido um pintor verdadeiramente nosso: a paisagem e a vida do Nordeste brasileiro se acham
13
apenas arranhadas na crosta. Nos seus valores íntimos continuam virgens. Wilson Martins
apontou o “célebre tópico” na história da literatura brasileira, o “irreconciliável antagonismo que
14
opunha o mestre pernambucano aos escritores paulistas”. Com ânsia de totalização, a pintura
pau-brasil não dava conta do Brasil, fosse ela fundada no léxico cromático do Rio, de Minas
Gerais ou de São Paulo.

Desde o século XIX, a zona tórrida contava com a vigorosa pintura de Telles Júnior dedicada aos
Atlânticos – mata e mar. O território mais urgente para uma invenção simbólica do lugar envolvia
atmosferas mais luminosas opostas a um regime de sombras: o sertão, o mar e os manguezais. Na
zona tórrida, adotar cegamente a ideia de cor caipira é aceitar um enlatado como outro qualquer.

A sensibilidade cromática do regionalismo nordestino (“a seu modo, moderno”, como ressaltava
Freyre) seria eminentemente mais tórrida que o regionalismo paulista da cor. Ou não tinha mistura
de branco (como no Cícero Dias abstrato) ou era excesso de branco (como na pintura de Vicente
15
Leite). O “mortífero derrame de luz equatorial geraria, diferentemente da nitidez caipira
percebida por Tarsila na região de Minas Gerais e São Paulo, “um escândalo de sangue fresco […];
amarelos e roxos espessos, oleosos, gordos, às vezes dando vida a formas que são meios-termos
16
grotescos entre o vegetal e o humano”. Assim, à “perfeita distância que separa um objeto de
outro” criada por Tarsila em pinturas de elementos bem definidos, que não se misturam – senão
coabitam a imagem –, o pernambucano Cícero Dias responderia com uma mais radical

12
AMARAL, Tarsila. Pintura pau-brasil e antropofagia. In: Revista Anual do Salão de Maio, nº 1. São Paulo,
1939. Revista editada por Flávio de Carvalho.
13
FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al.
Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Recife: Off. do
Diário de Pernambuco, 1925.
14
MARTINS, Wilson. Leituras brasileiras (?). Disponível em
http://www.jornaldepoesia.jor.br/wilsonmartins068.html. Acessado em 29 de fevereiro de 2012.
15
ALMEIDA, José Américo. A Paraíba e seus problemas. 3ª ed., rev. (1ª ed., 1923). João Pessoa-Paraíba:
Secretaria de Educação e Cultura/A União, 1980.
16
FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: Gilberto Freyre et al. Livro
do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Op. cit.
hibridização.

Frutaria
Cícero Dias desponta no Rio de Janeiro nos anos 1920 com incontrastável frescor. Suas aquarelas
eram os sonhos eróticos de um menino de engenho fascinado pela metrópole, lugar de realização
do desejo. Aparece com seus arranha-céus, transatlânticos, Pão de Açúcar, aqueduto, trânsito e a
demanda de um equilíbrio precário do mundo. O desenho deslocou o desejo para uma zona da
fantasmática. Cícero Dias veio ao mundo para desandar a cor caipira, a paleta que Mário de
Andrade quis ver, a partir de Tarsila, como alavanca para seu projeto bandeirante de predomínio
simbólico de São Paulo na formação do Brasil modernista. Já na década de 1920, as aquarelas
desse Chagall selvagem rejeitavam o reducionismo do escritor.

Há dois Cíceros Dias fundamentais na zona tórrida: o surrealista ingênuo das décadas de 1920 e
1930, e o geométrico indomável de fins da década de 1940. Depois, no retorno à figuração, o
pintor torna-se caipira, a custo da perda da solaridade nordestina. O desafio geral da cor tórrida,
anticaipira, sempre esteve mais na fenomenologia da cor do que em seu caráter ilustrativo da
temática de pintura de gênero prevalecente no modernismo.

Mário de Andrade foi apegado a Dias, de quem possuía treze obras (inclusive três cartas ilustradas)
que datam de até 1930. Em 1931, Cícero expôs o impactante desenho Eu vi o mundo... Ele
começava no Recife (1926-29) no Salão Revolucionário. Mário recalcou a obra com silêncio
tático, pois nela pode ter percebido uma oposição a seu projeto geopolítico, já que Dias
configurava uma geografia excêntrica. Já em 1928, para o Mário ideológico, o problema de Cícero
17
era não ser paulista, pois lhe faltava “bandeirismo: o longe vago buscado”.

18
Ícone de sua pintura moderna de sexualidade explícita, como também de sua relação com o
Nordeste e com a história social, o painel Eu vi o mundo... Ele começava no Recife (1926-1929)
vivenciaria a temerosa reação do público à libido exposta pelo artista pernambucano. Parcialmente
depredado quando exibido no Salão Revolucionário, o painel de aproximadamente doze metros,
em sua transparência de forma e tema, profanava o distanciamento da arte diante das sensações e
narrativas mais ordinárias. Na grande pintura de Dias – realizada sobre papel kraft, já indício de
profanação do métier –, a luminosidade tropical se transforma em clareza do enunciado e, assim,
se o pretexto inicial da obra era o de contar a história de Joaquim Nabuco, inevitavelmente
17
ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. “29 de novembro, 10 horas [1928]”. São Paulo: Duas Cidades,
1983, p. 204.
18
“Não cultivo a penumbra, mas a resplandecência. Nada é obscuro na minha obra”, anota Cícero Dias em
sua biografia. In: DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 74.
metamorfoseou-se por uma enxurrada de imagens do cotidiano: “Tudo se mexia na minha cabeça.
Imagens do começo da minha vida. Tantas coisas: mulheres, histórias fantásticas, escada de Jacó,
19
as onze mil virgens. Levaria todas essas imagens para dentro de um grande afresco?” O intuito
épico é atravessado pela experiência da vida; ordinário e mítico se fundem no corpo do artista
transformado numa carnalidade pictórica capaz de atrair e repelir, seduzir e revoltar. Cícero Dias
20
sabia que “passava pelo seu corpo toda a história de um Nordeste”.

O início do diálogo entre Gilberto Freyre e Cícero Dias foi em 1932, quando o pintor retorna a
Pernambuco: “Estaria eu participando de suas ideias?”, pergunta o pintor, “o notável sociólogo
jamais poderia encontrar uma pintura onde as afinidades literárias e sociológicas estivessem tão
21
perto das artes plásticas”. Os fantasmas sociais das novas aquarelas – como Condenação dos
usineiros (1930) – introduzem contundente crítica ao sistema oligárquico e diferenciam-se da
sociologia de conciliação de Tarsila do Amaral e de Gilberto Freyre. Na volta a Pernambuco, o
artista paulatinamente deixa a aquarela pela pintura. Desaparece o traço potente do desenho tosco
suplantado pelo empaste da pintura.

A trajetória de Cícero Dias, exposta em retrospectiva de 1948 na Faculdade de Direito do Recife,


incluía quatro pinturas que (con)fundiam imagens e sentidos através de um surrealismo de eixo
linguístico: Guarda-chuva ou instrumento de música (1943), Galo ou abacaxi (1946), Moça ou
castanha de caju (1946) e Mamoeiro ou dançarino (década de 1940). São justaposições conforme
a lógica do Conde de Lautréamont (“encontro casual de uma máquina de costura e um guarda-
chuva numa mesa de operações”). Esses quadros-paradoxos substituíam o fortuito encontro de
coisas da sociedade industrial por frutas tropicais – o título, uma espécie de dissimulação verbal do
22
significante, desestabilizava e ativava a recepção. A ambivalência da forma inquietou o Recife.

Para Mário Pedrosa, não havia abstracionismo nessas situações, em que o assunto já perdia
importância ou desaparecia: dos temas regionais só restou o que era realmente do domínio
plástico: certas formas vegetais e arquitetônicas tiradas da paisagem pernambucana, sobretudo
23
recifense e certas cores locais, azuis e amarelos que resistem a qualquer luz. Os trópicos
reacendiam a pintura de Dias em seus mais luminosos quadros de alusão vegetal, que retomavam
um verde que ele atribuiria à experiência ecológica nordestina, em consonância com o pensamento
19
DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. Op. cit., p. 55.
20
Idem, p. 83.
21
DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. Op. cit., p. 69-70.
22
Cf. Revista Região. Recife, dezembro de 1948.
23
PEDROSA, Mario. Pernambuco, Cícero Dias e Paris. Recife: Revista Região, dezembro de 1948.
freyreano: Teria sido Gilberto o primeiro a mostrar-me os verdes que empregava nos quadros? Os
verdes dos mares pernambucanos, quando todos os pintores pernambucanos convencionalmente
olhavam os mares azuis. Curioso que os pintores copiadores da natureza ao retratar os verdes os
24
faziam azuis. Ademais, Cícero de então compreendia “a pintura na América” como
25
“demasiadamente anedótica”. Autocentrado, esqueceu-se da antropofagia de Tarsila e mesmo do
surrealismo vegetal entre alguns mexicanos. Em evocação a Graça Aranha, ele advoga que para
constituir o signo pictórico de um lugar (no caso, Pernambuco), “há elementos pictoriais de
26
primeira ordem [...], em cores e em formas.”

O raciocínio intuitivo de Cícero Dias, afetado pela guerra, indica que a abstração geométrica
surgia-lhe como sintoma da crise do sujeito do inconsciente que emergiu nos anos 1920. No pós-
guerra em Paris, ele deixa o surrealismo para ser o mais francês dos geométricos brasileiros e
posicionar-se à distância da lógica do suprematismo, do neoplasticismo e da arte concreta. Longe
da razão construtiva, atuava conforme a ideia de composição geométrica como lugar da cor.
Compunha como francês, coloria como brasileiro. Sua geometria é quase-caos. A cor tem
surpreendente espontaneidade das aquarelas dos anos 1920 com sua base intuitiva, quase inculta,
inclassificável, indomável. Tinha caráter em seus experimentos estridentes. A paleta retomara a
solaridade da obra juvenil e uma audácia antieconômica frontalmente antineoplástica.

Em São Paulo, Waldemar Cordeiro, o concretista, foi ácido: “julgamos hedonista o não
27
figurativismo do sr. Cícero Dias porque cria ‘formas novas de princípios velhos’”. Cordeiro não
lhe tolerava as relações cromáticas arbitrárias ou o “gosto gratuito”. O pintor nordestino
justificava-se de outra forma: “a abstração atende a meu lado espiritual, é preciso lembrar a relação
28
que Santo Agostinho já fazia entre a arte e o número.” Cícero Dias, o precursor, já era
geométrico em 1946, época em que, paradoxalmente, Cordeiro ainda era “figurativo” e ainda não
pensara a cor com o vigor da década de 1960.

Ecologia
Já em 1925, Gilberto Freyre pede às artes que atentem para “a paisagem e a vida do Nordeste
24
DIAS, Cícero. Eu vi o mundo: Cícero Dias. Op. cit., p. 69.
25
ASSIS FILHO, Waldir Simões de (org). Cícero Dias – uma vida pela pintura. Curitiba: Editora Simões de
Assis, 2002.. p.146.
26
Idem.
27
CORDEIRO, Waldemar. Ruptura. Correio Paulistano. São Paulo, 11 jan. 1953, p. 3.
28
Entrevista a Napoleão Saboia. Pintura de Cícero Dias alimenta-se de música e poesia. O Estado de São
Paulo. São Paulo, 24 jul. 2001.
brasileiro” e para não “resvalarem para o caipirismo ou para o separatismo literário ou artístico.
Nem para o patriótico, anedótico ou apologético – perigos a evitar nessa fase nova de
29
abrasileiramento da nossa arte e da nossa literatura”. Seu pensamento social e cultural aborda a
30
mestiçagem. O processo cultural não se estanca em identidades rígidas – seu movimento é da
31
dinâmica relacional: “precisamos cada vez mais pensar em termos de inter-relação das coisas”.
Em longa trajetória, Freyre libera o regionalismo da vinculação única com a região Nordeste.
Regionalismo e ecologia confluem-se em suas teorias sobre as relações – biológicas, geográficas,
sociais, culturais – que imbricam civilização e ambiente. O “homem do Nordeste” não interessará a
Freyre por possíveis características culturais “próprias” ou “essenciais”, mas, sobretudo, pelo
modo como continuamente responde às especificidades de seu contexto natural, social e cultural –
32
nas palavras do autor, como “homem situado”. Sob um regime ético-político, o “homem situado”
de Freyre alcança uma tríplice dimensão que entrevê a ecosofia de Félix Guattari, a articulação das
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três ecologias: o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade. O “homem situado” é um
pintor tão diverso quanto Lula Cardoso Ayres, Rubem Valentim, Montez Magno, Delson Uchôa,
Paulo Meira ou Thiago Martins de Melo.
34
O pensamento ecológico de Gilberto Freyre diferencia-o da perspectiva folclorista de Mário de
Andrade ao desestabilizar a concepção regionalista para além do caráter dogmático do
modernismo: O que o Regionalismo criou [...] foi apenas uma espécie de atmosfera nova, que fez
[...] ver sob uma nova luz a gente e as coisas, a paisagem e o passo de sua região e do seu país; e
também os problemas do seu tempo. E essa nova visão, a um tempo regional e universal, da vida e
dos problemas humanos, é uma nota identificadora de alguns dos trabalhos mais sérios saídos do
29
FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al.
Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Op. cit.
30
“São vários os exemplos desse vigor híbrido que nos permite ver na floração artística do Brasil de hoje não
a negação mas a afirmação de vantagens culturais da mestiçagem tal como a que se vem praticando no nosso
país desde os tempos coloniais. Mestiçagem, miscigenação, interpenetração de culturas”. FREYRE, Gilberto.
Portinari. O Jornal. Rio de Janeiro, 16 dez. de 1942.
31
FREYRE, Gilberto. A favor da arte popular regional. Diário de Pernambuco. Recife, 27 fev. de 1972.
32
FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al.
Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Op. cit.
33
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.
34
[…] procuramos realizar estudos concretos de ecologia social e não apenas divagar ou delirar a respeito.
O ponto de vista da ocupação humana do espaço não nos permite ser rigorosamente fisicistas ou naturalisas
no estudo sociológico de uma região: de suas inter-relações. O critério antropocêntrico nos leva a
considerar como valores – valores do ponto de vista humano e relativos a condições regionais de vida e
economia – rios, composições de solo, animais, vegetais, minerais. FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos
da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1989.
p. 27.
Nordeste nos últimos vinte ou vinte e poucos anos. [...] Nenhum deles é sectariamente,
regionalista. Nenhum deles traz a marca ou o carimbo nítido e inconfundível de uma seita, de uma
escola, de um movimento sistematizado, de um nome de mestre ou chefe absorvente de uma data
certa de convenção ou de primeira comunhão literária aos pés de um novo messias literário. Mas
em todos aqueles trabalhos há um critério ou sentido regional da vida ou da cultura humana que
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se faz mais adivinhar do que aprender. Mais universal, o pensamento social, que incluía uma
agenda estética mais complexa, não preconiza uma “questão central” nem reduz a pauta cromática
a uma única versão, fosse caipira ou tropical. Gilberto Freyre não pretendeu alcançar respostas,
senão sublinhar o problema das relações do pintor – do pintor, do escultor, do arquiteto – com a
luz regional [...]: até que ponto é a arte independente das condições regionais de meio físico e de
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meio sociocultural em que se desenvolve ou em que se desenvolve o artista?

Lula Cardoso Ayres

Enquanto Gilberto Freyre imaginava uma pintura do Nordeste que trouxesse a memória canavieira
das “fornalhas onde arde a lenha, para avivar o fogo […], e os corpos meio nus em movimento,
oleosos de suar, [que] se avermelham à luz das fornalhas, e assumem, na tensão de algumas
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atitudes, relevos de estátuas de carne”, por sua vez, Lula Cardoso Ayres, filho da aristocracia
canavieira de Pernambuco, escolhe outra abordagem para a relação entre corpo e fogo. A carne
tocada pelo pintor será – na esteira da paleta de terracota marajoara de Vicente do Rego – a da
cerâmica popular produzida no Alto do Moura, em Caruaru, cuja cor e forma são reencenadas
pictorialmente.

O desenho tátil de Vicente – informado por sua prática escultórica inicial – é ressignificado pela
obra de Lula Cardoso Ayres de muitas maneiras. O desejo de efetivamente “pôr a mão” nas
imagens nordestinas cujas “crostas achavam-se apenas arranhadas” levaria Lula a frequentar a
partir de 1932, no Recife e arredores, terreiros e outros espaços de manifestações populares, bem
como a fazer viagens e passeios de pesquisa pela Zona da Mata, registrados em fotografias de
caráter antropológico. O método eminentemente vivencial de Lula – que o diferenciava da
abordagem de Vicente, baseada em pesquisas realizadas em museus e livros – conferiria uma

35
FREYRE, Gilberto. A propósito de “regionalismo”, “modernismo” e “romance social”. Diário de
Pernambuco. Recife, 14 set. 1947.
36
FREYRE, Gilberto. A propósito de Francisco Brennand, pintor, e do seu modo de ser do trópico. In: Vida,
forma e cor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.
37
FREYRE, Gilberto. Algumas notas sobre a pintura do Nordeste do Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al.
Livro do Nordeste, comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco: 1825-1925. Op. cit.
carnalidade especial às suas pinturas e desenhos, mais espontâneos do que a ordenação
estruturadora da obra de seu conterrâneo. Os desenhos que o pintor canavieiro realizara no
princípio dos anos 1930, a partir de suas visitas aos xangôs locais, participariam do I Congresso de
Estudos Afro-Brasileiros (proposto por Freyre em 1934) e paulatinamente configurariam um
repertório imagético e metodológico depois retomado por Abelardo da Hora no Ateliê Coletivo
(1952), quando levava os artistas do grupo aos terreiros, mangues, canaviais e periferias com a
intenção de que fossem representados por meio de um desenho ágil e performativo, numa técnica
que denominou como pose-rápida.

Assim, Lula Cardoso Ayres implicaria o corpo do artista na pintura. Tal relação entre carnes, não
sendo libidinal como aquela explorada pelo Cícero Dias surrealista ou em Carybé, ou por um
pintor da atualidade como Tiago Martins de Melo, delineava, todavia, uma carnalidade
francamente social, típica de um modelo estética e culturalmente ecológico: “[...] olhos
transferidos para as pontas dos dedos […]. Olhos-dedos de pintor discípulo de ceramistas rústicos.
Descobrindo novas relações entre luz tropical e forma. Entre luz tropical e cores. Entre luz tropical
38
e gentes”. É o caso de Frevo (1945), cuja área central do quadro é tomada por um redemoinho de
gente, sombrinhas, pés, gestos e cores, que surgem misturados como os híbridos vegetais de
Cícero Dias, numa temperatura que, sendo a do calor carnavalesco, é também a da forja da
memória de Antônio Bandeira. Ainda que a pintura de Lula Cardoso Ayres pareça tangenciar
algumas das soluções do cubismo no que diz respeito à coabitação de múltiplos pontos de vista, o
artista não opta por uma decomposição matemática de seu “objeto”. Corpo cúmplice da
experiência da cultura popular, a lógica de construção de Frevo será menos uma relação espacial
racionalizada, e mais o desejo de trazer à luz a organização dos corpos na bagunça de uma
multidão de carnaval. O sujeito – inseparável do “objeto” de sua pintura – está em cena,
alimentando a balbúrdia que emerge sobre um cenário de cidade esvaziada, cuja tranquilidade
arquitetônica de traços europeus é abalada pela zona do frevo que se intensifica sob um amarelo
luminoso de sol nordestino.

Em Frevo, as cores primárias (amarelo, vermelho e azul) abundam, balizadas pelo branco que,
tomado pelo reflexo da intensidade das cores vizinhas, vai se azulando ou se esverdeando. O jogo
de variação entre as primárias – presente nas peças das roupas, nas listras das camisas ou nas
sombrinhas de frevo – será visto também em outras pinturas de Lula Cardoso, como nos quadros
dedicados aos caboclos de lança, figura central do maracatu de zona rural pernambucano. As
faixas de tecido e fita – que, absolutamente vibrantes, identificam as guiadas (lanças) e os chapéus

38
FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: VALLADARES, Clarival do Prado. Lula Cardoso Ayres, revisão crítica
e atualidade. Rio de Janeiro-Recife: Spala, 1978, p. 11.
(cabeleiras) dos caboclos – surgem, nessas pinturas, como estrutura da imagem. Criando uma
padronagem que quase se repete entre figura e fundo, diferenciando-se apenas por uma mudança
de direção e pela variação do curto repertório cromático, as faixas ritmam o olhar que percorre a
pintura, alternando seu foco entre os caboclos e o fundo, descentrado por entre o excesso de cor e
de luz. Desse modo, Lula Cardoso Ayres aproxima a experiência da contemplação de sua pintura
da própria relação travada diante de um maracatu, cujo esbanjamento cromático ao mesmo tempo
seduz e espanta.

Bandeira ígneo

Em termos da estética de Gilberto Freyre, Bandeira é um artista ecológico. O vínculo ambiental


travado em suas cidades é demografia explodida, cartografia de diferenças sociais, desequilíbrio
climático e memória subjetiva. Na convivência com os artistas abstratos Camille Bryen e Wols, em
Paris, Bandeira vivia a ideia de margem. Ele se via um pintor retirante nordestino e considerava
que Wols estivera interno num hospital nazista por quatorze meses. Bryen encontrava em Wols o
esforço da improvável totalização da humanidade marcada pelos desastres do nazismo: “ali
39 40
começa a unidade de um homem habitado pela unidade do mundo” (Pour Wols, 1945). Há uma
trama na obra dos três que justifica o éthos humanista entre eles e o sentimento de resistência à
exclusão. A trajetória de Bandeira tem algo daquela busca de unidade através do quadro, forjado
mediante a manipulação da matéria. O signo pictórico experimental de Bandeira – pincelada,
chapisco, estêncil, carimbo com objetos como latas, atos ideogramáticos ou escorrimento – é a
escrita do sujeito e obra do pintor como homo faber. A experimentação material de Bandeira
constituiu um sistema de montagem racional do quadro. Sua inteligência pictórica trabalha a malha
desregulada como a cidade. O excesso de sobreposições – como na experiência urbana marginal
no Brasil – impede uma geometria matematicamente concebida, alusão à sua vivência entrópica na
capital cearense. As linhas de tinta escorrida são a escritura do real através da gravidade, como nas
favelas do Rio de Janeiro. É assim com La grande ville bleue (1953), uma paisagem
ideogramática. A pintura de Bandeira, como a de Guignard, está baseada no senso da verticalidade.
Por vezes, a matéria pictórica não aspira à representação da gravidade porque o discurso simbólico
parece desafiar a organização gravitacional do quadro, pois tal qual em mocambos e favelas, a
precariedade é parte da lógica do abrigo.

A torridez em Bandeira não é unívoca, pois ora é dispêndio, como a energia empregada no
39
Permanecem muito frágeis as evidências da formação efetiva e produtiva do grupo Banbrywols que,
composto por Bandeira, Bryen e Wols (advém da junção das sílabas iniciais sobrenomes dos integrantes o
nome do grupo), teria atuado entre 1947 e 1948.
40
BANDEIRA, Antônio. Pour Wols, 1945.
trabalho, ora é entropia e violência, movimentos que perpassam, com força inaugural, o rubor
orgânico e metalúrgico de Flamboyant (1949). Como o centro da pintura Cercle de feu (1965), a
vermelhidão de Flamboyant é o lugar onde o olho arde e a vista se abrasa. A fenomenologia da
visão em Bandeira forjou-se como experiência primal da luz através do corpo vivido (corps vécu),
tão próximo do pensamento de Maurice Merleau-Ponty. No texto inédito A árvore da infância, o
pintor descreve seu encantamento inaugural por aqueles vermelhos e verdes que ancoram sua
relação com a cor: “Quando me apaixonei pelas tintas, meu amor pela árvore cresceu
41
desmesuradamente”. O informe não perde a dimensão simbólica. A árvore, imagina Novalis, não
42
é senão uma chama florescente. A tela revigora a revolta contra a derrubada de uma árvore da
espécie que marcara a infância do pintor. Mesmo sem o carvão ardente de Mata reduzida a carvão
(c. 1841) de Félix-Émile Taunay, ou a lenha de A derrubada (1913) de Pedro Weingartner,
Flamboyant é fogo vivo na história transversal da arte brasileira no registro da desarmonia com a
natureza. A vermelhidão de Flamboyant constitui o locus de resposta à violência da vida. A cor se
irradia em veios para vivificar o espaço e ativar a memória corporal do calor, da faísca, dando as
bases para a pintura que, a partir dos anos 1940, desenvolve o artista – “da fundição aprendi
43
misturas que meu pai nem suspeita”.

A forja de Vulcano foi a lição de cor para Antônio Bandeira na infância: a luz ígnea da oficina do
pai se reacenderá em pintura como memória da luz e vontade material. “De corpo e alma /
ofereço / cadinho de ferro e bronze / (uma lembrança de meu pai) / cadinho de corpo e alma / esse
44
cadinho de raças / Fortaleza,” escreve num poema. A linguagem, quem diz é Gaston Bachelard
45
sobre a fenomenologia do forjador, é uma chama vermelha, pronta a trabalhar o ferro. A matéria
em brasa da forja é o informe em busca da forma. Cedo o crítico paraibano Rubem Navarra
compreendeu a gestação de uma fenomenologia nessa obra: “Bandeira está lutando entre a
46
dissolução e a construção, a fluidez e a solidez”. A zona tórrida na tela Cidade queimada de sol
(Homenagem a Fortaleza) (1959) tem calor e índice da forja e da seca, energia do homo faber e
drama social. Também em certa pintura de Jenner Augusto, como Campo vermelho (1963), o

41
BANDEIRA, Antônio apud RIOS, Dellano. A árvore da infância (déc 1930). In: RIOS, Dellano. Retratos
do artista. Diário do Nordeste. Fortaleza, 30 de setembro de 2007.
42
NOVALIS. Les disciples à Saïs. Iéna: Ed. Minor, 1927. vol II, p. 216.
43
BANDEIRA, Antônio. Diálogo sem censura. Revista de Cultura Clã, n. 20, outubro de 1964. p. 109.
44
BANDEIRA, Antônio. Fortaleza. Cidade queimada de sol. Poema de 1961.
45
BACHELARD, Gaston. La Terre et les rêveries de la volonté. Paris: Librairie José Corti, 1947, p. 181.
46
“Um novo pintor se despede”. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 mar de 1946.
quadro é vermelhidão tórrida e os acidentes do monocromo primário formam a geografia da
inclemência do Sol. O passo seguinte é compreender que, para Bandeira, a percepção
fenomenológica é o acesso racional e afetivo à pintura: “Antes era preciso somente o ângulo visual
para se olhar um quadro. Hoje necessitamos mais que isso, queremos também o ângulo do
47
sentimento. Buscamos olhos não somente na cara, mas também no cérebro e no coração”.

Trópico

Houve tropicalismo antes do tropicalismo, porque a cultura brasileira é processo sólido e não uma
sequência de achados. É fato que Tropicália (1967) foi, segundo Hélio Oiticica, a primeira
“tentativa consciente objetiva, de impor uma imagem obviamente ‘brasileira’ ao contexto [...] da
48
vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional”, antecedendo à cunhagem do nome
para o movimento cultural que, com Caetano Veloso e outros, articula a Bahia, o Rio e São Paulo.

No Recife, no entanto, já havia a Tropicologia (1965), que passara a tratar de maneira científica o
49
tropicalismo em seminário acadêmico. Formalizava-se academicamente a constante
preocupação, anterior aos anos 50, do pensamento ecológico de Gilberto Freyre sobre uma região
natural e espaço sociocultural. Entendida como “modo de ser dos trópicos”, uma ecologia
tropicalista regionalista alimentou leituras diversas acerca das “soluções” do “homem situado”, a
exemplo da análise de Freyre, em regionalismo aberto às vanguardas, sobre as ações de Flávio de
Carvalho, a quem atribuía uma experiência valorosa no sentido da “solução do problema do
50
vestuário ecológico para o trópico”. Antes ainda, em A estética da vida lê-se na posição de Graça
Aranha que “no Brasil, o espírito do homem rude, que é o mais significativo, é a passagem moral,
51
o reflexo da esplêndida e desordenada mata tropical. Há nele uma floresta de mitos”.

47
BANDEIRA, Antônio. Depoimento. Originalmente publicado por Walmir Ayala no Jornal do Brasil, em
1969. Republicado no jornal O Povo, Fortaleza, em 8 abr de 1995.
48
OITICICA, Hélio. Tropicália. 4 de março de 1968.
49
“O Seminário de Tropicologia, foi criado por Gilberto Freyre em 1965 para confrontar experiências
heterogêneas então isoladas nos especialismos. O seminário funcionou na UFPE desde 1966, passou pela
Fundação Joaquim Nabuco e hoje está na Fundação Gilberto Freyre. Seminário e Instituto de
Tropicologia mantêm o objetivo de contribuir para a compreensão do homem situado nos Trópicos, em
seu contínuo desafio de criar formas de vida e cultura sem afronta à ecologia”. Ver Seminário de
Tropicologia. Disponível em http://www.fgf.org.br/seminariodetropicologia/seminariodetropicologia.html
em 12 de janeiro de 2012.
50
FREYRE, Gilberto. Arte e civilizações tropicais. In: Vida, forma e cor. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1962.
51
ARANHA, Graça. Estética da vida (1921). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: INL, 1968, p. 621.
Para Freyre, no entanto, o tropicalismo é tropicalismos. O sociólogo mantém a irredutibilidade das
formas sociais a um modelo único, e muito menos a fronteiras políticas. Ademais, à semelhança da
expansão da ideia de regionalismo, que avança para além do “movimento regionalista de 1926”, os
tropicalismos também não se cristalizariam em “modos de ser” fixos, existindo em deriva
constante. Para o sociólogo, “conceitos de tropicalismos estão sendo revistos, para que admitam
autênticas expressões de arte tropical, que não correspondem à ideia estereotipada de serem os
52
artistas tropicais sempre mais do que exuberantes, em seu abuso de cores violentas”. Para o
autor, não é preciso parecer tropical para ser tropicalista: Nada de fazermos do tropicalismo, em
geral, e do brasileiro, em particular, uma seita fora da qual não haja salvação para os homens
nascidos nos trópicos. O mundo é vasto e muito diverso nas cores e nas suas formas, nos seus
climas e nos seus ambientes. O puro fato de nascer um indivíduo no Brasil tropical não o obriga a
ser, como artista, um entusiasta do sol forte, da luz crua e das cores quentes. O seu ideal de luz e
de cor pode ser o boreal; e sua vocação pode ser a pintura verlaineana, toda de nuances, de
cinzentos, de azuis claros, de cores chamadas frias em oposição às quentes. O que sucede, porém,
é que, revoltando-se contra o meio, eles realizam obra de quem não se achando integrado com
esse meio, é provocado, excitado, estimulado pelo mesmo meio a reações como que
53
antiecológicas. É nesse sentido que, desde cedo, Gilberto Freyre reconhece o caráter
ecologicamente tropical da obra de Vicente do Rego Monteiro.

Vicente do Rego Monteiro

Em 1922, não havia um ateliê no Brasil, no Rio ou São Paulo, com intensa invenção cultural como
54
naquele dos irmãos Vicente e Joaquim do Rego Monteiro em Paris. Motivos indígenas, três
pinturas de 1922 de Vicente exemplificam sua capacidade de substanciar de modo abstrato um
léxico cromático e uma paleta arquetípica do Brasil. Ele era então o artista brasileiro da mais bem
resolvida obra modernista com sólidos fundamentos em pesquisa realizada nas coleções do Museu
Nacional no Rio de Janeiro na década anterior. A reduzida paleta terrosa, montada a partir da pauta
cromática da cerâmica arqueológica amazônica tanto apresenta os nativos do Brasil (Motivos
indígenas, 1922) quanto a própria Paris (Torre Eiffel, 1922) através de um ensaio de escritura
indígena. A cor atávica finca o paradigma telúrico da brasilidade modernista; depois, Portinari

52
FREYRE, Gilberto. Ouro como cor característica. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 abr de 1966.
53
FREYRE, Gilberto. Arte, ciência social e sociedade. Revista da Escola de Belas-Artes de Pernambuco.
Recife: Escola de Belas-Artes de Pernambuco, 1958. p. 17-30.
54
Ver 1922, um ano sem arte moderna. Paulo Herkenhoff. Arte brasileira na coleção Fadel: da
inquietação do moderno à autonomia da linguagem. Rio de Janeiro: CCBB, 2002, p. 30-67.
emprega a terra roxa em Café (1935) e Futebol (1935) para simbolizar seu universo de imigrante
na região cafeeira de São Paulo. Os irmãos Rego Monteiro pertencem à primeira geração de
artistas que sofre o impacto do telúrico trágico de Canudos (1896-1897) no interior da Bahia, já
que o drama social não mobilizou um pintor de gênero como Almeida Jr.. A ecologia da “pairagem
impressionante” foi descrita por Euclides da Cunha em Os sertões (1902): “as forças que
trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície, sem intervalos na ação
55
demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.” A
rudeza tórrida do lugar sustenta o discurso da terra na obra de Vicente. De nada lhe bastaria a
temática sem a elaboração de signos materiais da pintura. A instância do significante definiria seu
programa de brasilidade, segundo o qual uma onça ou uma madona seria igualmente construída
com um léxico visual atávico.

Além de registrar objetos da arqueologia amazônica no Museu Nacional, também leu Barbosa
56
Rodrigues e Couto Magalhães. Sua pesquisa resultou em dezenas de desenhos e aquarelas que
interpretam e representam lendas indígenas, exibidos no Recife, São Paulo e Rio de Janeiro entre
1919 e 1921. O vasto corpus é o primeiro marco sólido da ideia de brasilidade da geração de 22.
Tal ângulo de ecologia de Vicente antecedeu o projeto de Graça Aranha em A estética da vida
(1921). Algumas daquelas aquarelas formaram a base gráfica do refinado livro Légendes,
croyances et talismans des indiens de l’Amazonie (Paris, 1923), de P. L. Duchartre. A cerâmica
está na gênese de sua pintura.

A partir do modelo da cerâmica amazônica, a terra crua e cozida, mais que crua, é o valor plástico
de Vicente do Rego Monteiro em itens como paleta, desenho, volume, forma e redução estrutural
da figura. O pintor revoga o modelo de índio do escritor romântico francês Chateaubriand e de
seus reflexos sobre a pintura indianista brasileira, como a tela Exéquias de Atalá (1878) de
Augusto Rodrigues Duarte. As cores deste Rego Monteiro evocam terra cozida e a pintura em
engobo da cerâmica indígena. Suas figuras emergem de uma vontade de volumetria como relevos
de cerâmica na fatura de um artista que tanto viu os bonecos de barros do Nordeste quanto o
cubismo tubular de Fernand Léger. É mesmo possível retraçar a relação concreta entre peças de
cerâmica específicas da Amazônia – a mais complexa em termos técnicos e formais no Brasil –
copiadas nos desenhos dos anos 1910, e a reelaboração formal em sua pintura na década seguinte.
Em Madona e menino (1924), a anatomia da criança sai de uma cerâmica Santarém de base lunar.
Cabeça, orelha, seios, posição dos braços, as pernas dobradas, enfim a pose hierática da senhora
seguem os padrões das urnas ossuárias Tapajós-Trombetas de Miracangueira vistas no museu. O
55
CUNHA, Euclides da. Os sertões (1902). Belo Horizonte: Itatiaia, 1998, p. 27.
56
Cf. Walter Zanini. Vicente do Rego Monteiro, artista e poeta. São Paulo: Marigo, 1998.
hieratismo remete às madonas. As cabeças dos seus personagens religiosos de A crucifixão (1922)
ou de O atirador de arco (1925) inspiram-se nas tampas das urnas Maracá. Vicente do Rego
Monteiro deve ser proclamado também o inventor da ideia de projeto modernista de cor.

Recalque

A zona tórrida aguarda por seu mapeamento que elimine regiões de uma rica terra incógnita da
57
arte brasileira: Hic sunt dracones. O desconhecimento sobre a obra de Joaquim do Rego
Monteiro (1903-1934) é grave problema historiográfico. Morto prematuramente em Paris, sua
obliteração tem razões variadas, que vão de seu internacionalismo à distância física e à escassez de
obra. A crítica modernista praticamente viveu um desconhecimento de sua pintura, pois só expôs
no Brasil em individual em 1924 e coletiva em 1927. Joaquim, ademais esteve longe da temática
regionalista e nacionalista. Por fim, seu diminuto corpus conhecido gira em torno de quinze obras,
fato que impede melhor conhecimento e avaliação de seu significado. Portanto, Joaquim do Rego
58
Monteiro é um vácuo na zona tórrida para o modernismo latino-americano. Ausente de coleções
públicas (as exceções principais são o Mamam no Recife e o IEB-USP), seus quadros, no entanto,
estão em algumas das principais coleções de arte brasileira moderna: Gilberto Chateaubriand,
Sérgio Fadel e Luís Antônio de Almeida Braga.

O diminuto corpus conhecido da produção deste Rego Monteiro inclui algumas paisagens
europeias, uma madona (1930, col. Fadel), duas pinturas com vontade de abstração (col. Tuiuiu) e
duas “paisagens” (1927, col. Mamam). Em Cais (1923), o desenho é feito com objeto duro, como
a ponta do pincel, para abrir sulcos na camada pictórica como linhas conclusivas da imagem. Esse
procedimento não canônico é raro no modernismo brasileiro, pouco dado a experimentos com a
materialidade do signo pictórico. Tendo participado da mostra de arte moderna trazida por seu
irmão Vicente ao Recife, Rio de Janeiro e São Paulo em 1930, pode-se pensar que a pintura de
Joaquim estivesse em acordo com o vocabulário pictórico do panorama então apresentado. Seus
quadros América do Sul e La Rotonde (1927, col. Mamam) sugerem um diálogo da pintura de
Joaquim do Rego Monteiro com a obra de seu irmão Vicente e de Joaquín Torres-Garcia. Desde
1917 que o bistrô está localizado em Montmartre e sempre foi frequentado por artistas. La
59
Rotonde, segundo Gilberto Freyre, era o café em Paris onde Vicente ganhou a vida dançando. O
57
Aqui há dragões. Era a expressão para imaginar o que existiria em terras não mapeadas na cartografia do
século XVI.
58
Cf. Artistas pintores no Brasil (São Paulo: Nacional, 1942, p. 203). Teodoro Braga lista nessa obra quatro
artigos sobre o artista. Walter Zanini discutiu as causas do esquecimento do pintor.
59
Introdução. In: BOGHICI, Jean (coord.). Vicente do Rego Monteiro pintor e poeta. 5ª ed. Rio de Janeiro:
espaço é raso, diagramático, destituído de alusões à perspectiva. Tudo corre na superfície da
pintura. A linguagem cartográfica e de plantas arquitetônicas evoca o livro Quelques visages de
Paris (1925) no qual Vicente trabalha a paisagem da capital francesa com um vocabulário de
signos. A cor chapada reduz o espaço a lugar de uma escrita que corre verticalmente sobre a
superfície do suporte. A cor do chão é de um marrom telúrico. Aqui, Joaquim e Torres-Garcia se
60
aproximam no desenvolvimento de um léxico anatômico. Pessoas e coisas estão reduzidas a
sinais, denotativos de suas ações e funções na cena. Em La Rotonde, a anatomia mínima reduz os
corpos em movimento em sinais econômicos das ações desenvolvidas no trabalho (músicos, por
exemplo) e nas relações sociais (cumprimento e beijo) e uma provável galeria de arte. As pessoas
se situam na geometria dinamizada por planos geométricos de retângulos dos quadros e dos
círculos dos tampos das mesas. Dos referentes empíricos, este Rego Monteiro produz geometria
com olhos de quem viu o neoplasticismo. Nenhum brasileiro parece ter tido uma articulação da
superfície concreta do quadro tão radical quanto Joaquim.

Congá construtivo Rubem Valentim

Nascido num período de repressão policial aos cultos de origem africana, Rubem Valentim levou a
61
arte brasileira a novo patamar simbólico e a novo plano ético. Valentim não é um “primitivista”,
mas um projeto de experiência moderna do sagrado. Ele era Obá da Casa de Mãe Senhora e deixou
62
a profissão de dentista para se dedicar à pintura a conselho da Iyalorixá. Ele foi obsessivamente
dedicado aos orixás. O machado duplo de Xangô, que corta de dois lados, é a metáfora da arte que
se pensa na modernidade construtiva ocidental e incorpora genuinamente as raízes africanas do
Brasil. Valentim demarca seus princípios no Manifesto ainda que tardio: Intuindo o meu caminho
entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento – e depois de haver feito algumas
composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos – passei a ver nos instrumentos simbólicos,
nas ferramentas do candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxés, um tipo de “fala”, uma
poética visual brasileira, capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu
interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um “design” (que

Cor, 1994, p. 32.


60
A propósito das relações entre a obra dos irmãos Rego Monteiro e Torres-Garcia, cf. Paulo Herkenhoff.
Vicente do Rego Monteiro, o primeiro projeto modernista brasileiro. Recife: Mamam, 2006 (no prelo).
61
Este ensaio foi parcialmente publicado em Pincelada: pintura e método no Brasil, projeções da década
de 1950. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2009, p. 185.
62
Entrevista de Antônio Olinto ao autor, em 27 de maio de 1996.
63
chamo riscadura brasileira), uma estrutura apta a revelar nossa realidade. Poderíamos dizer
que Valentim fez arte possuído pelos orixás. No entanto, ele já não vive a nostalgia da África, mas
busca a atualidade do presente afro-brasileiro. Luta no interior de uma sociedade que sofria de um
“complexo de inferioridade do passado africano”, em que negro e africano tornaram-se sinônimos
64
de escravo, conforme nota o antropólogo Arthur Ramos.

Rubem Valentim, depois dos vínculos com a espiritualidade ioruba, busca uma síntese de símbolos
espirituais de vários sistemas religiosos. “No Rio de Janeiro, conhece os pontos riscados da
65
umbanda, inexistentes no candomblé da Bahia”. Tendo como referência o texto Do espiritual na
arte de Kandinsky, Valentim aprendeu com Torres-García que a tela é campo da escritura do
símbolo. Sua teogonia opera a redução radical dos símbolos religiosos a elementos estruturais e
geométricos. Giulio Carlo Argan explica a síntese de Valentim: É necessário expor, antes que eles
[os signos simbólicos-mágicos] apareçam subitamente imunizados, privados das suas próprias
virtudes originárias, evocativas ou provocatórias: o artista os elabora até que a obscuridade
66
ameaçadora do fetiche se esclareça na límpida forma de mito. Um quadro é um texto
cosmogônico contínuo, que mantém seu sentido totêmico, imemorial e sincrético. A importância
da obra de Valentim está ainda no código semiológico para uma teogonia construtiva. Admitir o
caráter simbólico da geometria aproxima-o dos princípios do neoconcretismo. O historiador Jaime
Sodré está desenvolvendo um trabalho de leitura estrutural das formas e cores na obra sacra de
Valentim. A julgar por trabalho análogo A influência da religião afro-brasileira na obra
escultórica do Mestre Didi (2006), o novo estudo representará um salto no conhecimento da obra
de Valentim.

Rubem Valentim investigava uma escritura arquetípica, de fundamento junguiano de O homem e


seus símbolos. Pela primeira vez, o espaço da arte brasileira tem uma dicção autêntica, autônoma e
contemporânea da espiritualidade afro-brasileira. Sua estratégia foi criar uma forma moderna de
inscrever esse sistema axiológico. Nesse sentido, antecedeu Mira Schendel, e não foi menos
rigoroso do que ela, ao tramar relações entre escritura, linguagem e metafísica. Para Mário
63
O texto é datado como: Bahia, Rio, São Paulo, Brasília. Janeiro 1976. In: Rubem Valentim. São Paulo:
Bienal de São Paulo, 1977.
64
Arthur Ramos. Arte negra do Brasil. Cultura, 2:189-212. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Saúde, 1949.
65
Depoimento do artista, apud MORAIS, Frederico. Rubem Valentim: construção e símbolo. Rio de
Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil, 1994, p. 45.
66
ARGAN, G. C. In: Rubem Valentim. Roma, 1966. Apud VALENTIM, Rubem. 32 objetos emblemáticos e
relevos emblemas. Rio de Janeiro: MAM, 1970, não numerado.
67
Pedrosa, Valentim “pertence à mesma família espiritual de Volpi, de uma Tarsila”. Se tivesse
analisado mais profundamente, Pedrosa teria notado a diferença entre Tarsila e Valentim. Seu
paralelo modernista de autorrepresentação do negro é Di Cavalcanti, que na década de 1920 pinta
os gêneros musicais do Rio de Janeiro. Com Valentim, a cultura negra no Brasil retoma seu sentido
espiritual original. As religiões afro-brasileiras passam a ser tomadas como sistema de valores,
deixando de ser caso de polícia, superstição, objeto antropológico (Nina Rodrigues e Arthur
Ramos), cristianização (Tarsila) e diferença folclórica (Mário de Andrade). A África brasileira
chega sem intermediações estilísticas, reificação ou apropriações políticas que renunciassem à
identidade e a seu exercício. A alvura do monumental Templo de Oxalá (1977) é um ato extremo
da relação entre arte e metafísica na produção brasileira.

Montez Magno

Montez Magno sempre alertou: “sou muitos”. A multiplicidade de obra e pensamento – que se
estende para além da diversidade de linguagens, invadindo o campo mesmo da pluralidade dos
modos de ver e de operar no processo de criação – dá as bases para uma relação eminentemente
ecológica com o mundo. Ao artista não interessa se fixar num tema ou numa identidade poética,
mas transitar por entre caminhos múltiplos, em contínua – e, por vezes, paradoxal – variação.
68
Assim, reconhecendo ter sido “sempre camaleônico”, estará aberto e disponível ao mundo,
travando com ele uma relação ambiental e de posicionamento político e estético ao longo de sua
complexa trajetória. Montez Magno não permitirá, portanto, encapsular-se na etiqueta “artista do
Nordeste” no que concerne a uma fixidez identitária, fato que o justifica como artista ecológico –
em termos de Gilberto Freyre –, inclusive por fugir a quaisquer determinações específicas como,
por exemplo, a de uma possível “paleta de zona tórrida”. O artista compreendeu que o tempo
histórico do modernismo havia se concluído. Ciente de que sua sensibilidade cromática pode
69
variar do “lunar ao solar”, do “vernacular” ao “erudito”, o que importará ao artista, para as
escolhas sempre pontuais de sua sintaxe estética, serão as relações contextuais entre pintura,
mundo, sujeito, história, geografia, política: “o espaço-tempo e a cor-luz serão cada vez mais os

67
Mário Pedrosa. Contemporaneidade dos artistas da Bahia. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 29 jan
1967.
68
Depoimento em entrevista a Clarissa Diniz, em 6 de março de 2009.
69
“A minha pintura se divide em duas visões – uma lunar, outra solar. Lunares são séries
como Morandi, Fachadas do Nordeste, Desconstrução da Geometria e Variações Geométricas. Solares, as
séries Negra, Tantra e Barracas do Nordeste. São solares porque são feitas com cores muito vibrantes,
fortes, em que há uma luminosidade muito patente. Na pintura lunar há uma paleta mais clara, mais amena,
mais tênue”. Depoimento de Montez Magno em entrevista a Clarissa Diniz. Recife, 7 de março de 2009.
70
elementos que os artistas utilizarão em suas obras”. Se o “homem situado” pede uma força
criadora em relação – exercício constante de uma libertária produção de subjetividade –, a obra de
Magno é um profícuo território de experimentações neste registro.

Sua produção dará conta, assim, da problematização das relações do capital no emergente processo
de globalização dos anos 1960 – do que são emblemáticos um objeto e dois projetos de
interpenetração das formas e das cores das bandeiras do Brasil e dos EUA, de 1969 –, às questões
de antropologia visual da cultura de um Brasil pouco conhecido, esforço entrevisto em séries
como Barracas do Nordeste (1977-1985), Teares de Timbaúba (1979-1998), Portas de
Taquaritinga (1983) e Fachadas do Nordeste (1996), dentre outras. Em qualquer direção, o
trabalho é irredutível ao anedótico. Cor e forma impregnam-lhe significado político preciso, pois
Montez foi sempre avesso ao clichê midiático “que raramente traz símbolos / e não é metafórico /
mas incisivo e direto / sem rodeios, é o que é / a palo seco, enxuta, / faca de ponta no olho / [...] é
71
o outro lado da medalha”.

Instâncias privilegiadas do discurso político de Montez Magno, a cor e a forma serão intensamente
experimentadas num construtivismo que ocupa lugar singular na história da arte brasileira. Seu
projeto não se enquadra confortavelmente em categorias, movimentos ou grupos, razão da
singularidade de seu contributo à cultura contemporânea no Brasil, de modo significativo. Em
1985, Aracy Amaral notou com precisão a particularidade cromática das Barracas do Nordeste: as
cores cálidas, intensas (os verdes e amarelos-bandeira combinados com vermelho intenso ou azul
cobalto) a comunicar uma liberdade total da cor sem a preocupação do bom gosto “civilizado”,
porém, atento ao rigor compositivo como diretriz maior deste grande pintor do Nordeste
72
contemporâneo. Na pioneira mostra “O popular como matriz” (MAC-USP, 1985), Amaral
articula a vontade visual antropológica de artistas da zona tórrida, como Rubem Valentim,
Genilson Soares, César Romero, Emanuel Nassar e Montez Magno, e realça-lhes a dimensão no
urgente papel social: “importante [...] forma de expressar uma realidade típica deste continente, em
73
que a massa é praticamente sem voz ou desprovida de articulação com as camadas dominantes”.
De fato, Montez e Nassar operam a partir da base vernacular do “Brasil profundo”.

As dimensões ecológicas e políticas da obra de Montez Magno estão na pintura como em outros
70
Trecho do Testo e Contesto, texto de Montez Magno, publicado em folder de exposição individual do
artista na Petite Galerie. Rio de Janeiro, 1970.
71
MAGNO, Montez. Manuscrito para o livro inédito Barracas do Nordeste.
72
AMARAL, Aracy. O popular como matriz. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da USP,
1985.
73
Idem.
experimentos. Dodeskaden (1977) expõe em fotografias as gritantes diferenças sociais de uma
favela de Olinda – com título do filme homônimo de Akira Kurosawa –, e forma um corpus da
exclusão com Tropicália de Oiticica, certas ações de Lygia Pape e algumas esculturas de Ascânio
MMM. Atento ao índice do déficit social do capitalismo, Dodeskaden sublinha contradições da
metrópole a partir da economia, circunscrevendo-as em termos da esquizofrenia que se forma no
sistema socioeconômico. A partir dos anos 1960, Montez explorou a dimensão participativa do
outro na experiência estética porque “a meta da arte é de se reintegrar com a vida, de tal forma que
74
todos possam participar criativamente de tudo o que for feito pelo homem para o homem”. No
mesmo período político, Montez ressalta que uma característica da arte de então era seu “poder de
levar o espectador a uma ação”, processo que “implica uma tomada de posição filosófica, da parte
do artista (e também do público) […], [estendendo-se] a todos e desenvolvendo a nossa capacidade
75
perceptiva”. Cria trabalhos participativos como Caixas (1967), Escultura manipulável (1968 e
1970), Pela fresta (1972) e, em 1969, projetos arquitetônicos nunca construídos, como O Ovo e
Museu Mausoléu, dito MMMausoléu. Enquanto o pensamento pictórico da cor-luz é a base da
concepção de suas Caixas – série de apropriações de estojos escolares colados e pintados que, na
manipulação do público, revelam cores e formas insuspeitas –, O ovo e MMMausoléu representam
a negação ao contato com a luminosidade, metáfora da tensa relação sujeito-mundo sob a ditadura.
Arquitetura de isolamento e resistência à violentadora realidade, esses projetos denunciam a
falência da liberdade nos estados de exceção.

Sua obra múltipla resiste à sedução da tropicalidade reduzida à bandeira ideológica e de mercado.
Contra a exotização da luz e da cultura brasileiras – ou nordestina –, Montez Magno mantém-se
escorregadio, operando em registro que excede qualquer limite geopolítico. Tampouco é desatento
à história da arte ocidental. Na série Morandi (1964), ele busca a serenidade cromática do mestre
italiano. Antitético à geometria afrancesada de Cícero Dias, pautada por estridente gama de cores
“tropicais”, Montez estrutura sua fluida maneira morandiana em suave ordenação racional para
76
tocar a noção de geometria sensível da América Latina, já que privilegia a regência da intuição.
Italiana, a série Morandi torna visível o encantamento comovido em terra estrangeira do jovem
Montez. Nisso seu pertencimento está próximo da ecologia regional de Gilberto Freyre: “[...] eu
não sou nacionalista, nem sou regionalista, nem sou bairrista. [...] Você pode fazer coisas ligadas à

74
MAGNO, Montez. Depoimento. Folder de exposição individual do artista. Rio de Janeiro: Ibeu, 1968.
75
Idem.
76
Cf. Exposição “Geometria sensível”, curadoria de Roberto Pontual, realizada no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, em 1978.
77
região – como eu fiz. […] Mas isso me interessa estando aqui ou, por exemplo, na Cisjordânia”.

Almandrade

A relação entre a luz da zona tórrida e a produção artística dessa região se dá também em escala
urbana, por meio de trabalhos que, instalados a céu aberto, criam uma inteligência própria em
diálogo com as condições atmosféricas, sociais e culturais de determinado lugar. Contudo, talvez
com alguns paradigmas como Sérvulo Esmeraldo em Fortaleza, Abelardo da Hora no Recife e
Mário Cravo Júnior em Salvador – artistas cujas esculturas públicas habitam a cidade –, dada a
rarefação econômica do campo da cultura no Nordeste do Brasil, parte significativa dessa
inteligência encontra-se adormecida. Por entre ateliês e instituições, restam desenhos e projetos de
obras nunca concretizadas, pensadas para o espaço público. É o caso do baiano Almandrade, artista
com uma vasta produção pictórica que, porém, adverte que a “escultura e a instalação [o] atraem
mais”: “gostaria de fazer trabalhos para dialogar com o espaço urbano, talvez pela minha formação
78
de urbanista”. No entanto, Almandrade não teve essa oportunidade. A latente lógica arquitetônica
de sua obra sublinha, portanto, uma fundamental chave de leitura para o seu trabalho: muitos dos
objetos e esculturas de Almandrade devem ser compreendidos como maquetes ou projetos para
esculturas de dimensões urbanísticas. Assim é que, do plano inclinado amarelo de uma de suas
esculturas (2003), resta desconhecido seu pleno potencial – somente uma vez instalada em
Salvador, por exemplo, a obra revelaria sua força de imenso rebatedor da luz tropical, instância da
experiência sensível do trabalho que, por ora, permanece silenciada, sobrevivendo apenas como
projeção. Tal situação de latência é, no entanto, apenas um dos muitos débitos do campo da arte
diante da produção de artistas do Nordeste – como, igualmente, de outras regiões do País. Ao
manter certo etnocentrismo, a historiografia brasileira não foi ainda capaz de dar conta da
contribuição, para o contexto construtivo e conceitual de nossa arte, de artistas como Sérvulo
Esmeraldo, José Tarcísio, Montez Magno, Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Rogério Gomes,
Martha Araújo, Raul Córdula e Almandrade, dentre muitos outros.

Em suas trajetórias – cruzadas, visto que são interlocutores – Montez, Esmeraldo e Almandrade,
por exemplo, criaram um lugar profícuo entre a construção e o conceito, irredutível aos genéricos
enquadramentos teóricos de um ou outro. Essa posição singular é evidente em Almandrade.
Oriundo da poesia visual e do poema processo, na Salvador de meados dos anos 1970, o artista dá
início às suas incansáveis investigações, travando uma relação de ambiguidade semântica com o
77
Depoimento em entrevista a Clarissa Diniz, em 6 de março de 2009.
78
In: Almandrade, um olhar do artista sobre o seu trabalho. Catálogo de exposição homônima. Museu de
Arte Moderna da Bahia, 2011.
espaço. Em muitas de suas pinturas, esculturas, objetos ou diagramas, a espacialidade será a base
sobre a qual Almandrade problematiza a relação entre significante e significado, constituindo
experiências espaciais cujo instável equilíbrio físico de tantas vezes é o eixo sobre o qual se
desequilibram os sentidos. Na recente pintura Uma tarde de verão (2011), por exemplo, à tensão
do enfrentamento de suas quase-simetrias de linhas e cores – que parecem esforçar-se por manter-
se estáveis sobre a imensidão de um amarelo vivaz que, como a luz atmosférica, tende a imprimir
movimento –, soma-se a instabilidade da sugestão semântica advinda com o título do trabalho.
Como já anunciava em seu livro Linguagem (déc. 1970), no qual páginas se sucedem
transformando uma linha em onda, a onda em caligrafia, e a caligrafia na palavra que intitula o
trabalho, Almandrade está interessado em pôr em jogo as diferentes forças que criam valores na e
para além da linguagem, preocupação reforçada constantemente também em sua atuação como
crítico de arte.

Delson Uchôa

Em três décadas de pintura, a “experiência luminosa” de Delson Uchôa no ateliê era resposta
“muito natural” à hora afetiva do dia. A harmonia protegida não admitia tratar de temperatura,
contrastes ou antagonismos entre cores, mas cabia “adjetivá-las, para humanizá-las”. Surge então,
numa pintura que toma paredes, chão e teto da casa, “a alegre luz da manhã, a austera luz do meio-
79
dia, a saudosa luz da tarde, que dramatiza o mundo, propicia os namoros”. Só depois, percebe a
“luz calorosa” ou a “luz orvalhada” em dimensões afetuosas de uma luz meteorológica. Já não se
interessava pela ciência da luz, pois a pintura não é exercício da física da luz. “Então, já não
conversava mais sobre luz, como um livro de física tentando explicar a luz”. Todo seu esforço de
uma episteme transversal da luz converge para a poiesis da luz. A corporeidade da cor toma, em
reflexo de sua formação em medicina, dimensão orgânica: vermelho venoso, vermelho arterial,
encarnado, verde biliar, amarelo lipoide, roxo cólera; azul linfa; [...] do cultivo do suporte no
chão; da reconstrução cirúrgica de minhas telas com transplantes, implantes, enxertos, retalhos
80
de membranas, mucosas; a pele, o couro, o pigmento em coágulo, queloide. Se o pintor empresta
seu corpo à pintura, conforme a poesia de Paul Valéry e a fenomenologia de O olho e o espírito de
Merleau-Ponty, o corpo é usina de cor na lição de anatomia de Uchôa. Na mente, afirma o pintor, a
cor é eletromagnética, fotoelétrica; os fótons não se deslocam no vácuo com a velocidade da luz,
e não é a cor a sua matéria. Não se contempla a pintura num campo imaterial de luz, entre o visto

79
UCHÔA, Delson. Delson Uchôa. Milão: Charta, 2009, p. 17.
80
Ibidem
e a visão. Acho que agora começo a entender o que é a eletricidade da cor; ou não? Não importa,
81
meu sonho colorido vem do espírito, do self. No entanto, essa pintura é ainda mais densa de
sentidos ao borrar os limites entre a zona tórrida instintiva e a possível ideia de norma culta da
arte.

Carybé

O discurso simbólico adquire ressonância inédita nas primeiras décadas do século XX por sua
capacidade de criar identidades regionais em disputa pela legitimidade nacional. No contexto da
publicação de teorias de formação do Brasil – dos quais se destacam Casa-grande e senzala
(1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1935), de Sérgio Buarque de Holanda –, a arte e a
literatura do período inventam o País numa proporção expandida pela política que antecede e,
posteriormente, inaugura o Estado Novo. Depois do primeiro ímpeto modernista, no momento
seguinte, Freyre tem papel central na construção da ideia de Nordeste, como Jorge Amado ao
mesmo tempo inventa e é inventado pela Bahia. A produção artística que dialoga com essas
concepções de Brasil busca efetivar uma imagem – social, política, cultural, subjetiva – para a
Nação e, mais especificamente, para suas regiões. Rubem Braga, cúmplice desse intensificado
poder simbólico da arte, apontaria, em referência ao pintor argentino naturalizado brasileiro, que,
“na Bahia […], de repente a gente vê um negro de camiseta branca ou uma baiana de saia rodada
82
ou um sobradinho de telhado escuro ‘imitando’ os desenhos de Carybé”, evidenciação da força
de significação da imagem que Mirabeau Sampaio sintetizaria com precisão: “nasci e me criei aqui
em Salvador, e posso lhe afirmar: na Bahia, não existia um negro, era uma coisa que ninguém
83
tinha visto aqui, até a chegada de Carybé”.

O caráter ideológico da arte e das versões de Nordeste que estavam se construindo calcadas sobre
o mito da democracia racial construído por Gilberto Freyre faria da pintura de Cícero Dias, Lula
Cardoso Ayres e Carybé um testemunho das virtudes apregoadas por tal sociologia que,
transbordando disciplinas, funda o romance de 30 e dá as bases para a segunda geração modernista
das artes visuais. No caso de Carybé, sua copiosa produção protagoniza a naturalização da
miscigenação e a tolerância racial (A morte de Alexandrina, 1939) num tempo em que Sérgio
Buarque de Hollanda concebe o homem cordial. A contundente obra crítica de Carybé nos anos 30
81
Delson Uchôa em e-mail a Paulo Herkenhoff em 16 de abril de 2011.
82
Rubem Braga apud ARAÚJO, Emanoel (org). As artes de Carybé. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p.
98.
83
Mirabeau Sampaio apud ARAÚJO, Emanoel (org). As artes de Carybé. São Paulo: Imprensa Oficial,
2009. p. 98.
o aproxima da pauta marxista do muralismo mexicano ou da obra de seu compatriota Antonio
Berni, pelo elogio à força de trabalho pós-escravagista (Beira-rio, 1939). A celebração da cultura
afro-brasileira passa pelo mito da sexualidade exacerbada (a ideia de vadiagem), pelos costumes
do dia a dia, pela alegria, pela festa (Vadiação, 1965). Os sistemas religiosos afro-brasileiros
recebem sua atenção de Carybé (Iconografia dos deuses africanos no candomblé da Bahia, 1981)
e, em época de intensa representação simbólica por outros artistas da Bahia (Rubem Valentim,
Mário Cravo Júnior, Calasans Neto, Mestre Didi e Agnaldo), cumpriram papel central na
legitimação dessa herança na esfera pública. Valentim e Mestre Didi produzem uma rigorosa
poética sacra. Através dessa arte o legado africano vivo invade a cidade e a mídia. Artistas e
escritores, como Jorge Amado, em que pese sua singularidade, foram apropriados na Bahia,
sobretudo no governo de Antônio Carlos Magalhães, para a transformação do “modo de vida” e
das especificidades estéticas da zona tórrida em discurso oficial de baianidade em dimensão
nacional. Para além da cultura do espetáculo, a penetração social de Carybé – que, na
comemoração dos 70 anos de Carybé, o Pelourinho encheu-se de 15 mil pessoas em sua
homenagem (1981) –, talvez apenas comparável à de Jorge Amado, que inclusive transformara o
pintor em personagem de seu romance Dona Flor (1966). Da obra de Carybé, geralmente
interpretada em hipótese consensual e cordial da cultura brasileira, os aspectos conflitivos – como
alude Briga de cães (1942) – e de dissenso da obra de Carybé restam ainda desconhecidos. O
sistema de arte aguarda a publicação da tese de Marcelo Campos (“Carybé e a construção da
brasilidade: arte e etnografia para uma análise para além das representações”, 2001) para que o
valor de Carybé, a partir das qualidades simbólicas e plásticas de seu trabalho, possa ser
criticamente resgatado do limbo folclorista em que foi submergido.

Luzes sazonais

Existe uma neve nordestina em pintura. As areias alvas da Lagoa do Abaeté em dia estival têm
para Pancetti alguma coisa em comum com uma nevada para Cézanne. Historicamente, os
fenômenos atmosféricos e lumínicos são problemas de pintura. Neve, neblina e solaridade
excessiva cobram luz do olhar do pintor. Pode-se pensar na paisagem gelada de Geada (1885) de
Claude Monet em contraste com a umidade atmosférica na obra de Castagneto no Rio, nas franjas
Luz tras mi enramada (1926) do venezuelano Armando Reverón e, finalmente, em imagens da
zona tórrida de José Pancetti, Vicente Leite e Flavio-Shiró. O historiador Charles Moffet tomou
uma fotografia de E. Loydreau (Effet de neige, 1853) como o ponto de partida para definir o
84
padrão de paisagem invernal impressionista. Caspar David Friedrich (Mar de gelo: o naufrágio
84
MOFFET, Charles. Impressionists in winter: effets de neige. Charles Washington, The Phillips Collection,
do Hope, 1824) e Gustave Courbet – que pintou inúmeras paisagens (a partir da década de 1850) –
apontam caminhos ao impressionismo. Courbet concentrou-se em “efeitos da neve” (effets de
neige), uma forma particular de representar a luz, o ar, e as aparências da cor e do frio na
paisagem. Os effets de neige povoam a obra impressionista de Monet, Renoir, Guillaumin,
Pissarro, Sisley e Caillebotte.

A solaridade da zona tórrida deve ser justaposta aos effets de neige da pintura moderna. Na
Europa, a homogeneização depois de uma geada pede sutilezas tonais; o sol causticante do
Nordeste desbota a paleta do real. Onde quer que estivesse, o branco luminoso das praias de
Vicente Leite mantém-se impregnado da luminosidade excessiva e cegante de Fortaleza. José
Pancetti pintando nas dunas da Lagoa do Abaeté opera com uma cor severa em que o excesso de
luminosidade, como no real, produz a perda do relevo, tornando a pintura puro fenômeno da
superfície material. A série branca de Shiró, também pintada na Bahia, guarda uma evocação da
neve: “o Japão ficou, a vida toda, para mim como memória de cores – o branco da neve – ou de
certos sons – os pés de meu pai pisando a neve, quando me levava nas costas, a caminho dos
85
banhos públicos”. O pintor revela uma precoce e aguda memória sensorial, fator chave no
desenvolvimento de sua obra em frequência do tórrido. Justapor as pinturas brancas de Shiró aos
effets de neige parece mais paradoxal que surpreendente, pois elas sempre mantiveram uma
espessura atmosférica equatorial, referência ao calor úmido de Tomé-Açu, que o crítico francês
Georges Boudaille percebeu como umidade amazônica em texto do final dos anos 50. O branco
abafado nas pinturas brancas, com luminosidade comedida e matizes cinzas, evoca o ensaio Elogio
86
da sombra (1933) do escritor Jun’ichiro Tanikazi. O Japão é eminentemente a cultura da sombra.

No entanto, há um efeito nordestino de neve que oscila entre o real e o simulacro. Leonilson
trabalha, em colaboração com Albert Hien, com a própria neve como matéria de um vulcão
esfumaçando. Tudo é transitório: a fumaça, a neve mesma e o degelo – a própria economia da arte
enfrenta um modelo crítico de volatilidade. Em crítica da importação de cultura, Marepe ironiza
com a neve tórrida simulada em algodão nas árvores de Natal nos trópicos. A cegueira do excesso
de luz é experimentada como excesso e ausência já que no branco residem, potencialmente, todas
as vibrações cromáticas. Essa dupla neve nordestina trabalha a desterritorialização da luz cegante.

Na década de 1960, Flávio-Shiró viveu a solaridade na Bahia, que se converte em cor estridente e

1998, p. 19.
85
Cf. BRANDÃO, Ignácio Loyola. In: Flávio-Shiró Pinturas. São Paulo: Galeria de Arte São Paulo, 1985,
não numerado.
86
In praise of shadows. Trad. Thomas J. Harpter e Edward G. Seidensticker. New Haven: Leetee’s
Island Books, 1977.
tórrida no retorno à França. Shiró experimentou o mais intenso processo de deslocamento físico-
geográfico-cultural, como a figueira brava que se expande em três continentes e muitas ecologias:
as memórias infantis da neve no Japão e a pintura matérico-abstrata na França são entremeadas por
muitos brasis. A pintura é seu multiculturalismo intrabrasileiro da infância na Amazônia dos cipós
e taturanas em Tomé-Açu, da iniciação à arte em São Paulo e da luminosidade do Rio e na Pituba.
Não são mudanças de paisagem nem a busca de motivos regionais de um turista. Seu caldeirão
antropofágico incorpora diferenças porque sempre foi permeável a impactos e irredutível à
expressão de um único lugar para negociar símbolos, ideias plásticas, soluções materiais e agenda
conceitual.

Depois da estância na Bahia, Shiró elabora a cor tórrida dos Trópicos em Paris. O vermelho
assume-se como energia, dor, violência e morte. Há algo simultaneamente tenebroso e político
enunciado na passagem radical para fantasmas sociais inadiáveis. A ditadura de 64, as guerras de
descolonização da África, a ameaça atômica, o conflito da Guerra Fria, maio de 68 promovem o
pano de fundo de seu drama planetário. Por não aludir a lugar algum, o drama se localiza por toda
parte. Da estridência cromática de Apocalipse (1966) à pauta ética em Máquina humana (1969),
tudo funde meio ambiente, processo social e comoção psíquica em seu corpus de pinturas.
Nenhuma zona do quadro se estabiliza e abundam dejetos políticos, sangramentos, bombas,
superfícies impactadas, velocidade. Tudo é pulsão pela vida.

Em 1965, Flavio-Shiró pintou o políptico As quatro estações. São muitas as Quatro estações da
história da cultura ocidental, do barroco à produção contemporânea em arte ou música (com
Vivaldi, Haydn, Delacroix, Kandinsky, Chagall, Piazzola e Cy Twombly). No Brasil, enquanto
Freyre advogava, em 1925, que “deveríamos, na verdade, ter passado a idade passivamente
colonial de decorar edifícios públicos com as figuras das quatro estações do ano que não
representam aspectos da nossa vida nem regional nem mesmo brasileira”, quarenta anos mais
tarde, o ciclo anual das estações de Flavio-Shiró possibilita uma impossibilidade: reunir dimensões
climáticas de três mundos, três continentes e dois hemisférios – opostos simétricos e inconciliáveis
no plano astronômico das estações – porque nesses quadrantes geográficos (Europa, Amazônia e
Sudeste do Brasil e França) o pintor encontrou os elementos culturais que formam sua pintura.
Essas disparidades climáticas são oriundas da vivência do pintor, pois as Quatro Estações (1965)
justapõem os sistemas temperados (Sapporo e Paris), equatorial (Tomé-Açu), subtropical (Rio de
Janeiro e na São Paulo de Trópico de Capricórnio) e a zona tórrida (Pituba). O ciclo anual não
determina a longitude, mas opera uma profusão de fatos astronômicos, geográficos e climáticos.
Shiró articula temperaturas frias e quentes (inverno/verão, zonas tórridas/zonas temperadas), cores
selvagens e gestos naturais e cultos de um clima imaginário de convívio das diferenças e todas as
Estações cabem num único país, nação, etnia ou continente ou cultura. Cada uma é cheia de
interstícios das demais, como um caleidoscópio de lugares da cultura e da luz.

José Cláudio

José Cláudio é um polissêmico na trajetória de seis décadas de ação. Sua formação foi com Cravo
Jr., Jenner Augusto e Carybé na Bahia e Di Cavalcanti e Livio Abramo em São Paulo. São escolhas
que indicam a proximidade com o ideário marxista predominante nas iniciativas coletivas na época
(e. g., Atelier Coletivo no Recife, 1952) no arco ideológico antagônico oscilante entre o
trotskysmo de Abramo e a orientação stalinista do Partido Comunista aos Clubes de gravura.
Enquanto os Talleres de Gráfica Popular mexicanos, sob a tutela de Leopoldo Mendez, davam as
cartas à produção xilográfica nesses ateliês, na representação do trabalho (Mulher fazendo telha,
1952), José Cláudio exibe um monumentalismo anatômico de quem viu o muralismo mexicano.
Na década de 60, período de eclosão do pós-moderno, ele experimenta a expansão do campo e a
ruptura do cânon, como no uso de carimbos em ações sígnicas.

A pintura é a linguagem inatual de José Cláudio para além de noções de contemporaneidade ou


sincronia com pautas de qualquer natureza. A pintura é para ele urgência e necessidade. A partir
dos anos 80, três grandes nomes encontram-se na ação expressiva de pintor no Brasil: Flávio-
Shiró, Iberê Camargo e José Cláudio. Shiró foi o pintor das fantasmagorias da infância amazônica
vertida em sentido trágico da história: taturanas formam seu exército do armagedom atômico no
contexto das disputas na Guerra Fria. O olho da consciência é o olhar mais terrível do Angelus
novus da história benjaminiana. Os dois outros tocam o patriarcalismo do Brasil. Camargo, depois
de cometer um homicídio, retrata-se em trágica auto-condescendência (série Hora, 1984). Tudo o
que virá depois é sintoma da incapacidade de estar com o Outro: o “vigor do real” se esvai na
impossibilidade de a pintura estabelecer como mal-estar coletivo aquilo que era processo infértil
de expiação da culpa pessoal. Daí a melancolia da pintura com pulsão de morte. Com igual força
de pincelada, convergência no tônus da pincelada, mas com exarcerbada torridez cromática, José
Cláudio, no entanto, está em campo oposto ao de Iberê. O figural em José Cláudio transfigura a
matéria do real sustentada pela pulsão de vida. O pintor em plena potência já não mais carrega a
culpa social do Atelier Coletivo nem parâmetros de constrição ideológica. O agenciamento da arte
engajada havia se esgotado diante da avalanche autoritária de 64. A potência do sujeito desejante
move agora numa pintura que ultrapassa o paradigma de erotismo da literatura de Jorge Amado. O
signo material estará a serviço da libido; o quadro é uma região erótica da fantasmática. A
carnalidade da pintura de José Cláudio esxuda calor como o sujeito em estado de gozo.
Thiago Martins de Melo

O desejo na obra de Thiago Martins de Melo – fora da simetria entre voyeurismo e exibicionismo
– só tem paralelo no Brasil na obra de Maria Martins (L’impossible, 1944), Flávio de Carvalho
(Nossa Senhora do Desejo, 1955) e Adriana Varejão (Filho bastardo, 1992). A fotografia de Alair
Gomes, por exemplo, é o êxtase do voyeur e a produção de Antônio Dias na década de 60 é a
violência do voyeur – são dois regimes econômicos do desejo visível. No entanto, a primeira
instância na pintura de Martins de Melo é a exposição de si mesmo. Por isso, a qualidade dessa
explicitude não pode ser comparada à recatada Louise Bourgeois. Só Georges Bataille – Histoire
d’oeil, Madame Edwarda seguido de El Muerto, L’érotisme – daria conta de tanta complexidade.
Fillette (1968) de Bourgeois é o aparato genital do homem (para ela, “o frágil absoluto”) tão
exposto como o da mulher em L’origine du monde (1866) de Gustave Courbet e Iris (1890-91), de
Auguste Rodin. A exposição hiperbólica, direta e íntima, não é crueza da mecânica, mas a relação
afetiva e violenta com o alvo (o alvo sexual está sob o domínio de uma zona erógena). Courbet
pintou antes de Freud – a ciência apenas começava a compreender o psiquismo do desejo. Thiago
Martins de Melo põe Courbet, Rodin e Bourgeois em sua cena pictórica. Bourgeois esculpe depois
de se confrontar com a dúvida de Sigmund Freud (a única pergunta que ele diz não saber
responder seria o que deseja uma mulher) e a afirmação de Jacques Lacan (a mulher não existe) e
entendê-las a seu próprio modo. A pintura de Martins de Mello desvela tais limites.

A pintura de Martins de Melo, como a obra de Antônio Dias ou Tunga, é campo da fantasmática.
Incorpora a carnalidade como o corpo sexualizado do pintor transferido à pintura. Sem essa
aparente redundância reiterativa da carne não se dará conta das instâncias do desejo e do corpo, do
signo material da pintura e da relação fenomenológica entre pintor e pintura lançada por Paul
Valéry e conceituada por Merleau-Ponty. O pintor, para Valéry e na fenomenologia de Merleau-
87
Ponty de L’oeil et l’esprit, empresta seu corpo à pintura. O corpo emprestado pelo pintor Martins
88
de Melo é o corpo sem órgãos, a máquina desejante. O desejo se encarna na vontade material.
Essa temperatura de obra compõe certa história do olho: afinal, L’origine du monde não pertenceu
a Jacques Lacan? Afinal, Lacan não se casou com Silvia, ex-mulher de Bataille? Esse Thiago,
pintor-psicólogo que descrê em pudor moralista em pintura, pode estar no lugar de Jacques ou de
Georges, ou dos dois? Não há como classificar o inclassificável. Não há o imencionável, o
socialmente indizível por recato, privacidade ou moralidade, mas também não há autoexposição
egótica: isto é o próprio território da fantasmática que não vem em imagens mentais nem verbais,

87
Maurice Merleau-Ponty. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1986, p. 16.
88
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia. Trad. Robert Hurley, Mark
Seem e Helen R. Lane. Minneapolis: Minneapolis University Press, 1998.
mas se encarna como pintura. O que se vê é a emergência do possível. Surge com uma violência
avassaladora, com uma urgência de visibilidade capaz de construir afasia em resposta ao olhar.
Despida de estratégias de dissimulação (a robe mouillée da Vênus de Milo seria o oposto dessa
estratégia de enunciação). Um quadro expande as possibilidades visíveis do íntimo.

Diante do canibalismo melancólico de Pierre Fédida – o luto antecipado decorrente da vontade de


89
devoração do parceiro no coito – conclui-se ser preciso expulsar a morte. É necessário espancar o
esqueleto e não dançar com ele como em Ensor e em toda Todtanz da cultura europeia nórdica. A
batalha de tesouras e a linguagem das lâminas, entre a castração e o rompimento do hímen. Sem
90
culpa e sem qualquer vergonha, como se personagens de Georges Bataille se tornassem vivos. Os
sentimentos de culpa, vergonha ou repulsa transferem-se para cada espectador, se for o caso. Não
há estratégias de choque, mas de presentificação da cena.

Fundamentalmente, Martins de Melo pinta dípticos. A separação entre duas telas não decorre da
intenção ingênua de produzir um díptico em que duas partes se conjugam na formação de uma
imagem, nem provém da penúria (não dispor de uma tela maior). Isto é corte. Daí ser a cisão da
superfície uma operação indissociável. A linha orgânica de Lygia Clark reitera a separação do que
se deseja unido e uno no quadro, o abismo da falta e fenda da incompletude. Pulsões de vida,
movimentos da libido, fantasmas de desejo – o signo pictórico é trabalho libidinal, como na
escultura de Bourgeois. O esforço do pintor é manter a imbricação entre o inconsciente – um
possível projeto de uma escrita na linguagem do inconsciente e não sua ilustração – e a experiência
pulsional do pictórico, do inescapável confronto com o signo material da linguagem. Essa relação
mantém a coesão tramada entre significante, significado e significação.

Bruno Vilela

O universo pop, somado ao caráter catártico e autobiográfico, atravessa as experimentações de


Bruno Vilela, cuja intensidade do gesto pictórico é transposta para a colagem, o risco, o pixo, a
apropriação. O gesto de abrir e fechar – desvelar – é aludido na série de maletas e livros (2000),
que forra o interior desses objetos de referências da cultura visual do mundo globalizado,
sobrepostas a pequenas lembranças de sua vida – objetos de infância, fotografias de família,
roupas de sua filha. A intersecção entre esses universos se dá de modo conflitivo: a demasiada
presença tende a anular singularidades – diversidade e poluição se confundem; os cortes são

89
FÉDIDA, Pierre. Le cannibale mélancholique in destins du cannibalisme de Nouvelle Revue de
Psychanalyse. Paris: Gallimard, 1978, vol. 6, p. 123-127.
90
BATAILLE, Georges. Guilty. Trad. Bruce Boone. Venice: The Lapis Press, 1988, p. 13.
abruptos (rasgos e elementos sequestrados de seus contextos de origem); a temática é a da
derrocada da civilização, do indivíduo traumatizado. A cor – amarelos, pretos, vermelhos e roxos –
será pano de fundo para as narrativas incompletas e trágicas de Vilela, ao passo que configurará
um vislumbre de redenção através da beleza: agrupados também por meio de uma lógica
cromática, os objetos pintados do artista seduzem por seu escandaloso apelo visual.
Diferentemente da antieconomia cromática de Cícero Dias, as cores do jovem artista se combinam
numa gama reduzida de nuances: o esbanjamento de virada de século de Bruno Vilela explora
menos a saturação da luz e mais a saturação dos sentidos, dos discursos, das verdades que se
ficcionalizam.

Paulo Meira

A contemporaneidade da pintura realizada na zona tórrida do Brasil acontece a despeito da


“nordestinidade”, como também fora da pintura. Concerto para final de milênio (2000), instalação
laranja-rubro de Paulo Meira, será emblemática diante do percurso de desconstrução vivida na
pós-modernidade: entre cabos de aço tensionados estão elementos do fazer pictórico tradicional –
pregos, molduras, telas – e índices daquilo que voa, asas e hélices. Dispostos no espaço, os
elementos a um só tempo aludem a um “ritmia” musical – concerto – e a uma desordem funcional,
conserto, instaurando uma sensação de instante congelado no espaço-tempo, anúncio e expectativa
de um milênio por vir. A força de uma entropia interrompida – sensação de algo que fora
implodido (partes por todos os lados), porém apreendido antes da dispersão absoluta – falaria de
uma subjetividade em vias de transformação radical, mais ainda devedora de esquemas
estruturantes?

Na atmosfera de movimento em suspensão de Concerto para final de milênio, o gozo que se


realiza é o do prazer da cor. A vermelhidão espacializada impregna o ar e o corpo do outro,
experimentando a força da monocromia mesmo quando destituída de seu projeto moderno de
autonomia, sensação também atiçada por Coração para amassar (1966), de Antônio Dias, cuja
emulação de um semblante pop cria ambiguidades em torno dos sentidos e usos do objeto
vermelho, pretensamente macio, e em forma de coração. Presentes também em trabalhos como
Alaranjado via e Os flutuantes (2001), a cor saturada e a lógica pictórica da obra de Paulo Meira
se mantêm como fundamentais na sua produção recente, inclusive em seus vídeos. Emblemática,
nesse registro, é a personagem do palhaço do filme Marco amador – sessão cursos (2007), cujo
rosto caricatamente coberto de tinta é retomado na pink pintura The painter, the model and the
painting (2008), na qual a face da personagem aparece sendo maquiada, enquanto encara o
espectador – ou, anteriormente, como sugerido no título de caráter velazqueano, o próprio pintor.
Esse jogo de forças – entre sujeitos, bem como entre a arte e o outro – adquire importância nos
últimos trabalhos do artista. Em objetos feitos para a participação do espectador – como o
divertido e violento Omphalós (2008) – e por meio da ficção audiovisual, Paulo Meira dialoga
com aspectos da cultura popular e midiática, relendo-os crítica e sarcasticamente através de
citações e versões que se apoiam, dentre outros aspectos, na alteração e na intensificação da
experiência temporal, espacial e cromática às quais estamos acostumados.

Antônio Dias

O macio e o violento, o despudor e a ética, a palavra e a censura, o amor e a dor, o tátil e o adverso
(em terrível estado de mútua reversibilidade), a história e o resto (o Angelus novus contempla o
futuro), o capital e o trabalho, o trabalho e o valor de troca (a mais valia), o dilema da Bauhaus
entre artesanato e produção industrial, GOD/DOG, duelo, Moebius unilátero, João Cabral, Clarice
e poesia concreta, conceitual e sensorial, o abjeto sublime, objeto e sujeito em trânsito de
reversibilidade, economia resolvida em densidade, a cultura dos quadrinhos ágrafa. Talvez isso
seja pouco para afirmar que Antônio Dias, mais do que paradoxos, inventa contradições e o lugar
temporal, entre o começo e o fim especulares, da arte como o caminho mais difícil.

Desde seu aparecimento no início da década de 1960, Antônio Dias apresentou-se como a mais
veemente ruptura com a abstração geométrica. Com finura intelectual e crueza semiótica, sua arte,
no entanto, soube respeitar e dialogar com os desdobramentos da produção dos artistas
neoconcretos. Dias é o elo entre a tríade Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape e a segunda
tríade Cildo Meireles, Antônio Manuel e Barrio. Sua saída do Brasil para a Europa em 1968, em
voluntário exílio da ditadura, foi quase um desastre para o ambiente. Sua presença no Rio teria
potencializado ainda mais o grande Molotov intelectual que foram aqueles tempos pós-AI 5. A
dimensão materialista da obra inicial de Antônio Dias fricciona pop e Cinema Novo como uma
espécie de tropicalismo trágico antecipado. A visceralidade e a carnificina nos anos 60 expõem a
subjetividade do afeto e a bruteza social e política. Essa é a beleza convulsa da obra. Esse é o
modo brechtiano de montar a cena.

Glauber Rocha viu Antônio Dias num ponto de fusão ético-estética da zona tórrida. O eixo
inaugural da obra de Dias foi sustentado por Hélio Oiticica e Mário Pedrosa. O artista proclama
que, do fundo da adversidade de que vivemos, Notas sobre a morte imprevista (1965), de Antônio
Dias, é o turning point do campo pictórico-plástico-cultural no contexto da sociedade brasileira em
91
que formulam os princípios gerados no processo da nova objetividade. Pedrosa, no artigo Do
pop americano ao sertanejo Dias, foi agudo na indicação de seu éthos ecológico: “o nordestino,
seco e enxuto, que é Antônio Dias, teme qualquer decaída nas concessões mundanas de teor
92
elevado. Seu pensamento artístico (e moral) foge às essências, para não fugir ao substancial”.

Há sempre um Nordeste em Dias, algo imemorial como restos insepultos de Canudos, passagens
de Vidas secas, mas nunca o discurso do engenho. No predomínio do vermelho e preto ressoa uma
heráldica trágica de resistência à República Velha – em lugar da afirmação NEGO, o vermelho e
preto da bandeira da Paraíba, momento histórico também aludido em Made in PB – feito em
chumbo (2007), pintura do paraibano radicado em Pernambuco, Raul Córdula. A obra replica a
bandeira do Estado de origem do artista, transformando sua faixa negra em placa de chumbo, e
suprimindo o N inicial de “NEGO”, problematizando assim o violento desejo de afirmação de
parte dos sujeitos sociais de uma região que, em 1930, no seio do ambiente político que
prenunciava a Revolução de 30, intempestivamente criaram uma nova imagem simbólica para a
capital da Paraíba, então batizada de João Pessoa.

A obra de Antônio Dias tem uma visitação política da margem – a zona tórrida é margem no
colonialismo interno brasileiro – onde quer que ela esteja. Suas franjas são as do capitalismo
avançado e do capitalismo selvagem: KasaKosovoKasa, Nepal, o Nordeste mesmo. Por isso, a
geometria do retângulo vira a bandeira do território econômico; é sempre o lugar da falta. Um
monocromo amarelo é a biografia de Lin Piao. É ali que se inventa um país. Um monocromo
vermelho – agora sem o preto da bandeira da Paraíba – é o locus de invenção de um país e,
necessariamente, de suas contradições e sem o heroísmo positivista. Todas as cores do homem, ou
toda redução ou ampliação, é diálogo “frictivo” ou é acomodação. A história em Antônio Dias é o
presente vivido intensamente como violência exposta – neste ponto talhou sua tarefa de artista
como agenciamento da história vivida. O pintor encontra duas duplas assimétricas, Brecht e
Benjamin e (mas não ou) o opressor e o oprimido. “Esse rapaz só conhece um purismo – o da nua
violência”, nota Pedrosa. Não se fala com Deus em português. O pintor assumiu que a língua
franca do capital é o inglês. O monocromo preto promove a reversibilidade política entre Deus e
cão, entre a metafísica e o real. O palindrômico caminho mais difícil: a reversão da língua e a
operação emancipatória proposta por essa obra politicamente tórrida ao olhar do sujeito da
história.

91
OITICICA, Hélio. “Esquema geral da nova objetividade”. In: Nova objetividade brasileira. Rio de
Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967, não numerado.
92
PEDROSA, Mário. “Do pop americano ao sertanejo Dias”. In: AMARAL, Aracy (org.). Dos murais de
Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 221.
Ecologia-luz

A Zona tórrida situa-se entre os paralelos de 07° 12’ 35” de latitude sul e 48° 20’ 07” de latitude
sul e entre os meridianos de 34° 47’ 30” e 48° 45’ 24” a oeste de Greenwich. Fotógrafo de cinema,
Mário Carneiro mede a luz do sol brasileiro: “você está com 8 diafragmas entre a luz e a sombra!
É um inferno” (apud Lauro Escorel e Tuca Moraes no site da ABC). Essa luz é o que não se deixa
amansar. A caatinga devora cores. O regime ótico-político da luz em Glauber Rocha inclui a luz
estourada do Ceará, diz Eduardo Frota. O potiguar Abraham Palatnik, pioneiro da arte cinética,
redefine o objeto quadro: pinta por luzes projetadas por lâmpadas contra uma superfície
translúcida. Face a excessiva solaridade cegante, a luz só é possível se artifício e artefato
industrial. O objeto estofado Coração para amassar (1966) de Antonio Dias resplende em
incandescência artificial. O semi-árido abriu “uma fenda de luz, dando o abolicionismo para o
Brasil,” aduz Frota, para quem “o lugar mais desassistido historicamente” antecipou a abolição
(1884), o que valeu a Fortaleza o epíteto de cidade luz (entrevista a Paulo Herkenhoff, 2009).

A plasticidade integra a poesia de Joaquim Cardozo e de João Cabral de Melo Neto; a escritura, a
poética visual de Lygia Pape e, logo, a de Schendel, Oiticica, Dias, Maiolino, Duke Lee e Montez.
O complexo texto, paisagem e persona em Voilà mon coeur (Eis meu coração, c. 1989) de
Leonilson é um claro enigma drummondiano: o coração é a ecologia da dureza, fragilidade e
translucidez dos cristais como cor espectral, lágrimas de pedra e gotas de luz em epifania do
desejo e homoafetividade. No eixo de poder entre o artista e o crítico, Leonilson mapeia seus
limites (Leo não consegue mudar o mundo, 1989) e faz a encomiástica irônica da onipotência da
crítica (Para quem comprou a verdade, 1991, inspirada em Ronaldo Brito). Para sobreviver à
violência da crítica e dos afetos, o artista erige a “montanha interior protetora” (1989).

O sistema de cor de Julio Cesar Leite transtorna a alfabetização visual ao instalar cartazes nas
cidades com nome de cores escrita em outra cor que não ela própria: lê-se amarelo em letras
garrafais rosas sobre um fundo numa terceira cor. A dissonância entre nome, cor e escrita desafia a
percepção. O feixe de fótons desajusta a escritura no confronto entre a razão e o sensorial ao cindir
a leitura sob uma barafunda cromático-mental. A cor vive a pane linguística com o corte da lógica
entre significante e significado. O vocábulo não se auto-define cromaticamente. A paleta de
deslocamentos toma cores indecomponíveis para escrever as componíveis, lida com cores aditivas,
subtrativas, quentes, frias, tórridas e temperadas. O comprimento das ondas do espectro
eletromagnético desajusta o léxico visual. Se a palavra amarelo grava-se em rosa, a própria
amarelidão do amarelo estará deslocada em deriva por uma significação. A escritura-cor suspendeu
a racionalidade dos Remarks on colour de Wittgenstein porque o paradoxo da pintura é
desconstruir a cor-conceito no desajuste do ver/ler. As ambiguidades admitem e desconfirmam a
cisão porque sem ler não se obtém o jogo Gestáltico em que a impressão cromática no sistema
nervoso não coincide com a operação cognitiva da leitura. A memória inaugural do
reconhecimento das cores ressitua o sujeito em reaprendizado do legível.

O modo auto-biográfico de Henry Miller expõe o eu de Trópico de Capricórnio no quiasma entre


existência e ação, diferindo do cogito cartesiano. “Fui o mau produto de um mau solo,” escreve.
Tal “eu” é o artista na tarefa de ruptura perturbadora do mundo. A solaridade em Joaquim Cardozo
e de João Cabral situa-se em outra latitude: O cão sem plumas deste pensa-se em estado de “um
não saber sabendo” de um rio que, parecendo ignorar a cor nominada, “nada sabia da chuva azul,/
da fonte cor-de-rosa” porque se posiciona como acercamento ao indizível. Trata-se de uma
exologia ibérico-nordestina quase-wittgensteiniana. No regionalismo paulista de Mário de
Andrade, Araraquara é uma “natureza tão sincera” que desafia as metáforas. Contra a verdade
unívoca no campo do imaginário, a Zona tórrida aponta, com Leonilson, que são tantas as
verdades cromáticas. Quem comprou a verdade cromática? Não foi Gilberto Freyre que construiu
especificidades e relatividade sócio-ambiental da cor, mas talvez o próprio Mário ao arbitrar a cor
caipira como emblema totalizante unívoco de um Brasil plural? A tragédia de Canudos integra a
mesma história de exclusão da escravidão na pintura de Almeida Junior. Ser escravo nas condições
das obras desse pintor oficial de São Paulo era suave na operação de controle ideológico da
representação das bandeiras. Sua pintura legitimoava exclusão dos vencidos da história. É por isso
que a voz do Severino retirante no João Cabral emancipatório sabe que o sangue “que usamos tem
pouca tinta.”

A arte brasileira é uma rede de autonomias que escapa ao modelo geopolítoco dominante. Filho de
uma cearense e de um índio da Amazônia peruana, Chico da Silva nasceu no Acre (1910) no ocaso
da economia da borracha. Fez o caminho inverso: deixou os seringais do Acre pelo Ceará. A
pintura deste “índio arigó” supera os limites da escravidão seringalista e do olhar acadêmico sobre
a arte. Com consciência da autonomia da pincelada, seu imaginário articula um bestiário arcaico
de monstros míticos, animais da Amazônia profunda e seres abissais atlânticos. Em Sociedade do
Espetáculo, Guy Debord aponta como a sociedade que elimina a distância geográfica reproduz a
distância internamente como uma separação espetacular. Portanto, a dimensão ecológica da Zona
tórrida recusa o exótico como espetacularização do espaço social. A pintura propõe processos de
conhecimento tão convergentes quanto dissonantes na individualização de cada ecologia porque
são tantas as zonas tórridas.

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