Documentos de Académico
Documentos de Profesional
Documentos de Cultura
Ditadura e Repressão. Paralelos e Distinções Entre Brasil e Argentina
Ditadura e Repressão. Paralelos e Distinções Entre Brasil e Argentina
RESUMEN: Los modelos represivos utilizados por las dictaduras latinoamericanas vienen siendo
objeto puntual de análisis por parte de historiadores y científicos sociales. En Brasil, la Comisión
Nacional de la Verdad representa una posibilidad de que se reinterpreten los mecanismos
específicos del modelo brasileño y sus relaciones con otros del Cono Sur. Esto demanda mayor
profundización en el análisis de semejanzas y diferencias entre los modelos. El presente estudio
procura satisfacer esa demanda, utilizando como referencia la obra de Pilar Calveiro, entre otras
herramientas de reflexión. Entre las principales conclusiones se destaca el hecho de que las
prácticas de tortura y represión circularon por el continente, siendo Brasil el principal polo de
diseminación, más allá de la existencia estrategias diferenciadas en cuanto a la aplicación del
terrorismo de Estado. Estas diferencias pueden ser señaladas cuando se compara Argentina,
donde predominó el poder desaparecedor del Estado con Brasil, donde prevaleció el poder
torturador.
PALABRAS CLAVE: dictadura; represión en el Cono Sur; aparato represivo; modelos comparativos;
memoria.
ABSTRACT: The repressive models employed by dictatorships in Latin America have been subject
of intense analysis by historians and social scientists. In Brazil, the National Truth Commission
represents a possibility of shedding new lights over the specific mechanisms of the Brazilian
repressive model and its relations with other models of the Southern Cone. This context demands
a deeper look at the parallels and distinctions between these models. The present study aims to
meet this demand using, among other reflexive basis, Pilar Calveiro's reference work. Among the
key findings is the fact that torture and repression circled the continent having Brazil as the main
dissemination pole, in spite of the existence of different strategies regarding the application of the
state terror. These differences can be pointed out when comparing Argentina, where
predominated the disappearing power of the state, and Brazil, where, in contrast, prevailed the
torturing power.
KEYWORDS: Dictatorship; repression in the Southern Cone; the repressive apparatus; comparative
models; memory.
RESUMO: Os modelos repressivos utilizados pelas ditaduras latino-americanas vêm sendo objeto
de intenso escrutíneo por parte de historiadores e cientistas sociais. No Brasil, a Comissão
Nacional da Verdade representa uma possibilidade de que nova luz seja lançada sobre os
mecanismos específicos do modelo brasileiro e suas relações com outros do cone sul. A ocasião
demanda maior aprofundamento sobre os paralelos e distinções entre esses modelos. O presente
∗
Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: janateles@uol.com.br.
Recibido: 12 de Mayo de 2014 | Aceptado: 4 de Julio de 2014.
[99]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
estudo procura satisfazer essa demanda, utilizando entre outras bases reflexivas, a obra de
referência de Pilar Calveiro. Entre as principais conclusões destacam-se o fato de que práticas de
tortura e repressão circularam pelo continente, tendo o Brasil como principal pólos disseminador,
a despeito da existência de diferenças de estratégia quato à aplicação do terror de estado, o que
este artigo revela em relação à Argentina, onde predominou o poder desaparecedor, em contraste
com o Brasil, onde prevaleceu o poder torturador.
CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Teles, Janaína de Almeida (2014) “Ditadura e repressão. Paralelos e
distinções entre Brasil e Argentina”. Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política
en América Latina, Vol. 3, N° 4, pp. 99-117.
Este ensaio visa à proposição de um quadro comparativo dos dois países, utilizando como
pontos de partida um conjunto de entrevistas originais conduzidas pela autora junto a ex-
presos políticos brasileiros e membros de suas antigas redes de solidariedade 1 e o estudo
de Pilar Calveiro “Poder e desaparecimento”, que oferece uma visão crítica e bastante
pessoal acerca dos aspectos visíveis e invisíveis do aparato repressivo argentino. O caráter
estratégico da tomada desta obra como referencial alinha-se à particular relevância que o
tema da experiência individual das vítimas e algozes adquiriu desde a formação da
Comissão da Verdade brasileira, em 2012, com vias à reconstituição factual da ditadura e
à revelação da profunda dimensão da repressão empreendida neste país.
Neste sentido, é interessante notar que Calveiro reflete de maneira sistemática sobre um
tema que a envolveu pessoalmente durante a década de 1970, quando esteve presa em
campos de extermínio argentinos como a Mansão Seré, a Delegacia de Castelar e a temida
Esma (Escola de Mecânica da Armada). Sua capacidade de refletir sobre a formação da
1
Trata-se de um conjunto de 107 entrevistas realizadas com ex-presos políticos (80 delas gravadas em
vídeo, somando mais de 300h – Projeto USP/Unicamp/Fundação Ford), advogados e militantes constituído
ao longo da minha pesquisa de doutorado. Janaína de A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e
os testemunhos dos presos políticos no Brasil, Doutorado, História/FFLCH, USP, 2011.
[100]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
A partir do golpe argentino de março de 1976, a repressão deixou de girar ao redor dos
cárceres, passando a ter como eixo de sua atividade repressiva o desaparecimento de
pessoas, levado a efeito nos campos de extermínio. A estrutura do aparelho repressivo
brasileiro não recorreu de maneira intensa a esse recurso, mas antes desenvolveu um
modelo híbrido e bastante sofisticado de repressão, com várias instâncias e dispositivos
para garantir a seletividade da morte de dissidentes e demais “indesejáveis” 3.
2
C. Almeida; S. Lisbôa; J. De A.Teles; M. A. Teles (Orgs.) Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no
Brasil (1964-1985), São Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009, pp. 704-707.
3
Janaína de A. Teles, op. cit.
4
Pilar Calveiro Poder y desaparición. Los campos de concentración en Argentina, Buenos Aires: Colihue,
2006, p.13.
5
Expressão tomada emprestada de Jean Amèry, cf. Jean Amèry Más allá de la culpa y la expiación.
Tentativas de superación de una víctima de la violencia. 2ª ed., Valencia/Espanha, Pré-Textos, 2004, pp. 85,
93.
6
Pilar Calveiro, op. cit., p. 27.
7
Cf. Eduardo Luis Duhalde El Estado terrorista argentino Barcelona: Ed. Argos Vergara, 1983; no qual cita o
relatório intitulado Comisión Argentina de Derechos Humanos: Informe del campo de concentración y
Exterminio de "La Perla", Madrid, 1980; e tb. Flávio Koutzii Pedaços de morte no coração. Um depoimento de
um brasileiro que passou quatro anos no inferno das prisões políticas da Argentina, Porto Alegre: LPM, 1984,
[101]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
O Brasil, por outro lado, teve uma ditadura empenhada em ações repressivas seletivas,
que preservou uma aparente normalidade institucional, com focos de ação violenta, os
quais foram diferentemente orientados conforme o alvo e o período em questão. No que
tange à organização do Estado, não houve uma simples continuação ou repetição
aumentada de práticas antes vigentes, mas uma reorganização do aparelho repressivo
previamente instalado.
Até hoje não foi possível fazer um levantamento abrangente das vítimas da repressão
política brasileira, mas sabe-se que somente nos primeiros meses após o golpe de 1964
cerca de 50 mil pessoas foram presas no país 8. A maioria das vítimas da repressão estatal
era sequestrada e torturada, mas uma parte muito menor foi processada pela justiça
militar e outra menor ainda foi condenada e permaneceu nos cárceres. Entre os
condenados, alguns recursos de presos políticos encaminhados ao Superior Tribunal
Militar (STM) lograram obter a redução de pena daqueles enquadrados na Lei de
Segurança Nacional (LSN). Esse cenário contrasta com o argentino, no qual entre 15 mil e
20 mil pessoas passaram pelos campos, sendo que 90% delas desapareceram sem deixar
vestígios 9.
Aliada a essa estrutura estava a face mais visível da repressão sustentada na legalidade de
exceção, composta pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DOPS),
existente desde os anos 1920; pela Justiça Militar, com competência para processar e
julgar os enquadrados na LSN desde 1965; os Institutos Médicos Legais (IMLs); os
cemitérios públicos; e os presídios. O sistema carcerário já existente foi reutilizado para
punir, separar e isolar os dissidentes. O uso sistemático de valas clandestinas em
pp.122-125; e Nilda Actis Goretta, e outros Ese infierno, Buenos Aires: Altamira, 2006, pp. 283-296; entre
outros.
8
Maria Helena M. Alves Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, p. 59.
9
Pilar Calveiro, op. cit., p. 29.
10
Carlos Fico Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar, Rio de Janeiro: Record,
2004, p. 82.
[102]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
Esse panorama alinha-se à máxima de que o poder esconde-se e revela-se naquilo que
exibe e oculta, como assinala Calveiro 14. Exibiu-se, no Brasil, como um sistema penal e no
exercício supostamente legítimo da violência contra a influência do ‘comunismo
internacional’, com o qual taxavam as ações da oposição, esquivando-se do diálogo.
Paralelamente, escondeu-se em sua face notoriamente “vergonhosa”, a qual promoveu a
difusão da “cultura do medo”, direcionando o estabelecimento de critérios para a
ocultação ou divulgação das notícias sobre a tortura, os mortos e os desaparecidos
políticos.
O modelo argentino, cuja face de terror era tanto mais explícita, distribuía-se por um
conjunto de centros clandestinos de tortura que Calveiro crê possuir características que
nos permitem considerá-los verdadeiros campos de concentração e extermínio. A autora
partiu das tentativas da ditadura argentina de implementar um poder totalizante e suas
formas de castigo, repressão e normalização para estabelecer uma comparação com a
experiência europeia, assinalando suas semelhanças 15.
Pode-se dizer que a premissa de Calveiro dialoga com a obra de Giorgio Agamben, autor
que aprofundou o debate teórico sobre o desenvolvimento dos campos de concentração,
notadamente, os nazistas. Para ele, a essência dos campos “[…] consiste na materialização
do estado de exceção e na criação de um espaço em que a vida nua [a vida puramente
11
Janaína de A. Teles Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos por
“verdade e justiça” no Brasil. Mestrado em História Social, São Paulo, FFLCH/USP, 2005.
12
Arquidiocese de São Paulo, Brasil: Nunca Mais, 22ª ed., Rio de Janeiro, Vozes, 1989, pp. 15-16.
13
C. Almeida, e outros, op. cit. Estima-se que 7000 mil indígenas tenham sido assassinados durante a
ditadura, cf. Lucas Reis, “Comissão apura mortes de índios na ditadura”, Folha de S. Paulo, 26 de Abr., 2014.
Segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), 1.188 camponeses foram assassinados
entre 1964 e 1986. Não há ainda, contudo, estudo conclusivo confirmando se a autoria desses crimes foi de
agentes do Estado ou não.
14
Pilar Calveiro, op. cit., p. 25.
15
Idem, pp.39-40.
[103]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
biológica] e a norma entram num limiar de indistinção [...]” 16. O habitante dos campos era
despojado de seu estatuto político, reduzido à vida biológica e privado de suas
prerrogativas humanas 17. Agamben assinala que desde o final do seculo XIX, os campos se
caracterizaram como locais de internamento de civis considerados “indesejáveis”, em
moldes “industriais”, com a justificativa de manter sob “custódia protetora” suspeitos,
cujas ofensas não podiam ser provadas e que não podiam ser condenados pelo processo
legal comum 18.
Na Argentina, grosso modo, dir-se-ia que havia dois modelos de organização do espaço
nos campos: o de celas e o de cubículos21. Nestes, os presos permaneciam sempre
encapuzados e acorrentados pelos pés, obrigados a ficar deitados ou agachados, sem
poder falar ou se mexer, geralmente mantidos em compartimentos sem teto, separados
individualmente por divisórias de madeira de cerca de 80 centímetros de altura. Esses
cubículos chamavam-se “cuchetas” e permitiam aos guardas ver os prisioneiros
simultaneamente, como num panóptico, conforme o modelo da Esma. As celas, por seu
16
Giorgio Agamben Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Humanitas/UFMG, 2004,
p. 181.
17
Idem, p. 178.
18
Em Cuba (1896) teriam surgido os primeiros campos de concentração, cf. Idem, p.173. Por definição, nos
campos, a vida nua atinge sua máxima indeterminação, cf. Giorgio Agamben O estado de exceção, São
Paulo: Boitempo, 2004, p.15.
19
Arendt classificou os campos em três categorias: Limbo, Purgatório e Inferno. O primeiro tipo foi criado
para os que se tornaram supérfluos e inoportunos em geral; o segundo é representado pelos campos de
trabalho da União Soviética; e o terceiro é representado pelos campos nazistas, destinados a causar o maior
tormento possível. Cf. Hannah Arendt Origens do totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
pp.496-498. A autora se fundamentou também nos estudos de Michel Foucault sobre o poder e as
instituições disciplinares. Ver Michel Foucault Genealogia del racismo, Madrid, La Piqueta, 1992; Michel
Foucault Vigiar e Punir. História da violência nas prisões, 10ª ed., Petrópolis: Vozes, 1993.
20
Pilar Calveiro, op. cit., p. 44.
21
Note-se que, na Argentina, uma parte dos prisioneiros políticos foi submetida ao poder judicial e outra
ficou à disposição do poder executivo sem sofrer processo judicial. Esse dispositivo legal “de exceção” foi
criado pelo estado de sítio decretado por Isabel Perón em 1974 e mantido até as eleições de 30/10/83,
quando teve fim a ditadura. Antes do golpe de 26/03/76, calcula-se que havia 1.500 presos políticos no país.
A maior parte daqueles considerados “legais” foi presa no período anterior ao golpe, cf. Flávio Koutzii, op.
cit., pp. 26-29.
[104]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
22
Pilar Calveiro, op. cit., p. 47.
23
Idem, pp. 31-32.
24
Idem, pp. 96-97, 119-124.
25
Idem, p. 37.
26
Idem, p. 32.
27
Idem, p. 34. De acordo com a organização Memoria Abierta, a Argentina contou com 560 campos de
concentração e extermínio. Cf. <http://www.memoriaabierta.org.ar/ccd/index.htm>. Acesso em 10 de abril
de 2014.
28
João Roberto Martins Filho “Tortura e ideologia: os militares brasileiros e a doutrina de guerre
révolutionnaire (1959-1974)”, In: Cecília M. Santos, Edson E. Teles, Janaína De A. Teles (orgs.) Desarquivando
a ditadura: memória e justiça no Brasil, São Paulo: Hucitec, 2009, v. 1, p. 194.
29
Pilar Calveiro, op. cit., pp. 36-38.
[105]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
adormecidos por soníferos, para onde eram transportados de caminhão ou de avião, nos
chamados “voos da morte” 30. “A aplicação do sonífero arrebatava do prisioneiro sua
última possibilidade de resistência, além de lhe arrancar também seus mais elementares
traços de humanidade: a consciência, o movimento” 31. Amordaçados, adormecidos,
manietados, encapuzados, os “pacotes” eram jogados ao mar ainda vivos.
A determinação em anular as marcas da existência dos “subversivos” fez com que fossem
organizadas maternidades improvisadas nos campos argentinos para que as prisioneiras
grávidas tivessem seus filhos antes de serem assassinadas. As crianças foram criadas pelos
militares e algozes de seus pais, para que crescessem educadas pela ideologia contrária,
para que as marcas da presença e a herança dos pais não sobrevivessem nem nos filhos.
Estima-se que haja 500 bebês “apropriados”, cuja identidade foi possível reconstituir em
110 casos32.
No Brasil, os DOI-Codis, a partir de 1970, foram os principais locais onde se dava a decisão
sobre a vida e a morte dos dissidentes e perseguidos políticos e onde muitos deles foram
30
Horácio Verbitsky O voo, Rio de Janeiro: Globo, 1995.
31
Pilar Calveiro, op. cit., p. 38.
32
Cf. “Encontramos a la nieta 110”, Buenos Aires, 06 fev. 2014. Disponível em:
<http://www.abuelas.org.ar/comunicados/restituciones/res140206_1040-1.htm>. Acesso em 20 de abril de
2014.
33
Pilar Calveiro, op. cit., p. 39.
34
Idem, pp. 37-39.
35
Idem, p. 38.
36
Idem, p. 39.
[106]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
assassinados. No DOI-Codi do II Exército (São Paulo), por exemplo, pelo menos 105
pessoas foram vítimas de homicídio ou desaparecimento forçado, no período transcorrido
entre junho de 1969 e dezembro de 1976 37. Tais locais constituíram-se na materialização
do estado de exceção; neles a suspensão de direitos, a desumanização e a
despersonalização dos prisioneiros buscaram transformá-los em corpos destituídos de
autonomia, vidas torturáveis e matáveis, expostas aos limites da violência, da crueldade e
do extermínio.
37
C. Almeida; S. Lisbôa; J. De A.Teles; M. A. Teles (Orgs.) op. cit.
38
Arquidiocese de São Paulo, op. cit., p. 175.
39
Giorgio Agamben Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I, op. cit., p. 177.
40
Carlos Fico, op. cit., pp. 76-91.
41
Janaína de A. Teles Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos por
“verdade e justiça” no Brasil, op cit.
42
Idem.
[107]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
Estes foram utilizados contra os que participaram da “Revolta da Vacina”, em 1904, e nas
revoltas tenentistas dos anos 1920. Na Primeira República, desde 1922, o país esteve sob
a vigência do estado de sítio em largos períodos e eram afastados da sociedade os
considerados “indesejáveis” ou que promoviam “ameaça” à ordem estabelecida. Dessa
forma, internaram dissidentes e revoltosos, mas também proletários, pobres e “vadios”
que eram punidos com o desterro ou enviados a campos de concentração 46.
43
No ano de 1974, 54 militantes de diversas organizações sumiram sem deixar vestígios, sendo apenas dois
considerados “mortos oficialmente”. Cf. C. Almeida, e outros, op. cit., p.529-603.
44
Cf. Declaração do coronel da reserva Jarbas Passarinho. In: S. Buarque; V. Carelli; P. Dória; J. Sautchuk
História imediata. A guerrilha do Araguaia, no.1. São Paulo : Alfa-Omega, 1978, pp. 23-24.
45
Janaína de A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no
Brasil, op. cit., p. 86.
46
Paulo Sérgio Pinheiro Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil (1922-1935), São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, pp. 13-14.
47
Idem, p. 104.
48
Priscila Ferreira Perazzo Prisioneiros de guerra. Os “súditos do eixo” nos campos de concentração
brasileiros (1942-1945). São Paulo: Humanitas-Imesp, 2009, p. 33.
[108]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
Entre 1972 e 1974, os militares realizaram três campanhas no Araguaia para combater 70
guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PC do B) estabelecidos na região. As
operações envolveram mais de 7.200 homens das três forças 49, profissionais
especializados, agentes infiltrados e o que havia de mais moderno em termos de
armamento e logística. Em nenhum momento os militares deixaram a área. Cada fase foi
executada por meio de diversas operações.
A maioria dos lavradores e pequenos comerciantes da região foi levada presa para essas
bases militares, do que se desprende a noção de que esta forma de repressão não apenas
serviu ao massacre de guerrilheiros como afetaram profundamente a população local,
produzindo vários danos materiais. Muitos moradores foram presos sem sequer
compreender o motivo. Outros foram presos por terem deliberadamente aderido à
49
T. Morais e E. Silva Operação Araguaia. Os arquivos secretos da guerrilha. São Paulo: Geração Editorial,
2005, p. 236.
50
Pesquisas recentes indicam que, durante a ditadura, o uso de campos de concentração ocorreu em outros
lugares, conforme o que aconteceu em Itaqui (RS) em 1964; cf. Juremir Machado da Silva “Campos de
concentração em Itaqui (RS)”, Correio do Povo, Porto Alegre (RS), 209, 27/04/2011; Iberê Athaide Teixeira
Nuvens de Chumbo sobre o Cambaí - a Queda de João Goulart, um Campo de Prisioneiros em Itaqui, Porto
Alegre: Martins Livreiro, 2009.
[109]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
guerrilha e ido morar na mata com os guerrilheiros 51. Entrevistas coletadas e estudos
recentes revelam que a relação entre os guerrilheiros e a população foi mais positiva e
colaborativa do que originalmente subsumido pelos estudos mais conhecidos sobre o
tema 52.
51
Pedro M. Silva (06 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, entrevista concedida a Janaína de A.
Teles; Luiz Martins dos Santos (05 de Jul., 2001), Tabocão, município de Brejo Grande/PA, entrevista
concedida a Janaina de A. Teles.
52
De acordo com Major Curió, um dos militares responsáveis pelo extermínio dos guerrilheiros, as
investigações das FFAA revelaram que 26 camponeses aderiram à guerrilha, 194 moradores da região
apoiavam diretamente o movimento e sua rede de apoio movimentava 258 pessoas. Leonêncio Nossa,
Mata. O major Curió e as guerrilhas no Araguaia, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.132.
53
Este é o caso de Sabino Alves da Silva, morto quando mexia numa granada. Lauro Rodrigues dos Santos
perdeu o braço. Cf. Lauro Rodrigues Santos (04 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento
concedido ao Ministério Público Federal (MPF).
54
Raimundo N. dos Santos (Peixinho) (15 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, entrevista concedida
a Janaina de A. Teles.
55
José Rufino Pinheiro (05 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao MPF.
56
José Francisco Dionísio (06 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao MPF.
57
Margarida Ferreira Félix (02 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao MPF;
João Vitório da Silva (05 de Jul., 2001), São Domingos do Araguaia/PA, Depoimento concedido ao MPF.
58
Alguns relatos dão conta que a mulheres de dois camponeses que aderiram à guerrilha, Batista e Pedro
Carretel, foram presas, torturadas e obrigadas a trabalhar nos campos de concentração.
[110]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
Em agosto de 1974, o general Ernesto Geisel iniciou a fase da chamada distensão política
“lenta, gradual e segura”, que buscava atrair para si o status de “moderado”. Tal
conjuntura foi acompanhada por um recrudescimento da repressão à Guerrilha do
Araguaia e aos remanescentes da luta armada urbana, bem como pelo aumento da
repressão sobre a oposição não armada, tais como membros do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), da Ação Popular Marxista Leninista (AP-ML) e militantes católicos60.
Essa foi a forma encontrada pela ditadura para lidar com os problemas de legitimidade
relativos ao declínio do “milagre econômico” e ao aumento das denúncias sobre os abusos
aos direitos humanos, dentro e fora do país. Geisel tinha como objetivo, entretanto, emitir
sinais claros de que eliminaria qualquer ameaça à distensão política e à ampliação da
institucionalização do regime planejadas pelos militares. Assim, continuaram, em menor
escala, as simulações de suicídios e mortes em tiroteio 61.
Essa influência do modelo repressivo brasileiro deve-se ao fato de ele ter servido, desde
1964, como um verdadeiro laboratório de experiências golpistas na região. Tratava-se de
um sistema inspirado nos preceitos da guerra revolucionária, particularmente do
59
Há indícios de que 8 filhos de guerrilheiros foram apropriados pelos militares. Um exame de DNA
confirmou que Lia Cecília (adotada por um policial) é filha do guerrilheiro Antonio Theodoro de Castro. Lucas
Figueiredo “Os filhos do Araguaia. Chegam à justiça os primeiros casos de bebês sequestrados pela
ditadura”, Carta Capital, 04/05/2011, pp. 24-26. Major Curió afirmou que Osvaldão (o guerrilheiro mais
famoso) teve um filho com uma camponesa e que a criança foi adotada. Leonêncio Nossa, op. cit., p.111.
Dina (a notória guerrilheira) estaria grávida quando foi presa. C. Almeida e outros, op. cit., p.582.
60
Janaína de A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no
Brasil, op. cit.
61
Janaína de A. Teles Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos por
“verdade e justiça” no Brasil, op. cit.
62
Carlos Fico Como eles agiam, Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 135.
[111]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
63
João Roberto Martins Filho, op. cit., p. 194.
64
Marie-Monique Robin Escuadrones de la muerte. La escuela francesa, Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 2005.
65
Cf. site da ONG National Security Archive (NSA):
<http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB465/>;
<http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB118/index.htm>. Acesso em 10 de abril de 2014.
66
Pilar Calveiro, op. cit., pp. 45-46.
67
Idem, pp. 56, 62.
68
Arquidiocese de São Paulo, op. cit., pp.243-6.
[112]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
O caso das torturas levadas a cabo na casa de Petrópolis é emblemático, tal como
revelado pelos relatos da ex-prisioneira Inês Etienne Romeu, única sobrevivente entre
pelo menos onze presos desaparecidos, que resistiu durante 96 dias a enormes pressões e
sofrimentos voltados à sua desestruturação psíquica e emocional, visando sua
colaboração e retratação pública 70.
O terror de Estado nos dois países pode ser assim considerado como parcialmente
sobreposto. Semelhanças conviveram com diferenças consideráveis que, no caso dos
campos de tortura e extermínio, têm muito a ver com a extensão e massividade
empregadas na Argentina. Nesse país, “o eixo do mecanismo desaparecedor era a
obtenção da informação necessária para multiplicar os desaparecimentos até acabar com
o ‘inimigo’71”. No modelo brasileiro, por sua vez, o foco era a seletividade e a obtenção de
informações para desestruturar os grupos oposicionistas. Enquanto, no Brasil, os campos
do Araguaia estiveram restritos geograficamente, os argentinos distribuíram-se por todo o
país visando exterminar os “indesejáveis”.
A centralidade da atividade de inteligência era semelhante nos dois países 72, como atesta
o poder operacional do “Batalhão de Inteligência 601” (sob controle do Exército) durante
69
Alguns depoimentos de presos políticos dão conta da existência de outros centros clandestinos de tortura:
a “Casa de São Conrado” e a “Casa do Alto da Boa Vista”, Rio de Janeiro (RJ); a “Casa dos horrores”, próxima
a Fortaleza (CE); uma casa e o Colégio Militar, em Belo Horizonte (MG); as casas do Ipiranga e da av. 23 de
maio, em São Paulo (SP); o “Sítio 31 de março”, em Parelheiros (SP), e a casa de Itapevi (SP). Cf. Janaína de
A. Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no Brasil, op. cit.,
p.113 e Arquidiocese de São Paulo, op. cit., pp. 239-246. Havia outras casas em Jacarepaguá, Rio de Janeiro
(RJ); em Itaipava (RJ) e no Rio Grande do Sul, segundo o coronel reformado Paulo Malhães, do CIE. Em
25/04/2014, Malhães apareceu morto; o caso não foi esclarecido. Cf. Rodrigo Martins e Marcelo Auler “Uma
voz sufocada. A estranha morte de Malhães, um dos raros torturadores dispostos a falar, representa revés
na busca da verdade”, Carta Capital, 07/05/2014, no. 798, pp. 22-29.
70
Inês Etienne Romeu “Relatório Inês: dossiê da tortura”, Pasquim, Rio de Janeiro: n. 607, 12 a 18 jan. 1981,
p.4-5 e 26.
71
Pilar Calveiro, op. cit., p.56. Destaques da autora.
72
Agradeço a Melisa Slatman pelas observações relativas à centralidade da atividade de inteligência na
Argentina.
[113]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
Nos DOI-Codi havia uma clara divisão de tarefas e setores compartimentados com
distintas atribuições. Em São Paulo, por exemplo, três equipes de “interrogatório” se
revezavam em turnos de 24-48 hrs. Elas, geralmente, não eram compostas pelos mesmos
agentes das equipes de “busca e apreensão”. O trabalho de sistematizar as informações
extorquidas nos “interrogatórios” era feito pelo setor de “informação e análise”, cuja sala
ficava no mesmo corredor das salas de torturas. Divisão de tarefas que aumentava a
eficiência e compartilhava responsabilidades. A confiança na impunidade dos torturadores
73
John Dinges Os anos do Condor. Uma década de terrorismo internacional no Cone Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, p. 173.
74
Anivaldo Padilha (09 e 21 de Dez., 2009), São Paulo/SP, entrevista concedida a Janaína de A. Teles,
Arquivo Audiovisual de Presos Políticos/AEL-Diversitas (USP).
75
C. Almeida, e outros, op. cit.
76
Pilar Calveiro, op. cit., p. 62.
77
Idem, pp. 32, 63, 65-66.
[114]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
era enorme, tanto que muitos ex-presos políticos entrevistados não mencionam o uso de
capuzes durante as sessões de tortura no DOI-Codi/SP 78.
Diversos relatos dão conta de que os prisioneiros permaneciam sem poder avistar-se com
seus familiares ou defensores por meses e, somente após longo período de reclusão,
iniciava a formalização dos processos na Justiça Militar. No DOI-Codi/SP, os presos não
conseguiam fazer contato com familiares e advogados, na maioria das vezes isso ocorria
somente no DOPS, depois de alguma espera. O isolamento era quase total. A espera para
saber qual seria o destino do prisioneiro era outra forma de tortura e representava uma
ameaça permanente, pois várias pessoas voltaram a ser torturadas depois da fase inicial
de “interrogatórios preliminares”.
78
Presos pelo DOI-Codi/SP em 1975 mencionaram o uso de capuz; prisioneiros do Rio de Janeiro também,
mas não foi possível determinar os períodos ou locais onde essa prática era mais utilizada, cf. Janaína de A.
Teles Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no Brasil, op cit.
79
Pilar Calveiro, op. cit., pp. 44, 54, 66.
80
Maria Amélia de A. Teles (15 de Ago., 2001), São Paulo/SP, entrevista concedida a Janaina de A. Teles;
Rosalina de O. Santa Cruz (08 de Mai., 2009), São Paulo/SP, entrevista concedida a Janaína de A. Teles.
AAPP/AEL-Diversitas (USP).
[115]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
Esse é outro aspecto que distingue os dois países. A transição política brasileira contrasta
com o modelo argentino de memória, o qual inclui o amplo registro de testemunhos, seja
através da formação de uma Comissão da Verdade (a Conadep) em 1984, seja pelo
restabelecimento dos restos mortais dos desaparecidos ou pela realização de julgamentos
penais, permitindo o conhecimento e a “oficialização” de meandros que o terrorismo de
Estado procurou apagar 86.
81
Pilar Calveiro, op. cit., pp. 159-160.
82
Idem, p. 161.
83
Carolina Varsky “El testimonio como prueba em procesos penales por delitos de lesa humanidad. Algunas
reflexiones sobre su importancia en el proceso de justicia argentino.” In: CELS. Hacer justicia. Nuevos
debates sobre el juzgamiento de crímenes de lesa humanidad en Argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno,
2011, p. 50.
84
Ana Longoni Traiciones. La figura del traidor en los relatos acerca de los sobrevivientes de la represión,
Buenos Aires: Norma, 2007.
85
Pilar Calveiro, op. cit., pp. 165-166.
86
Emílio Crenzel La historia política del Nunca Más. La memoria de las desapariciones em la Argentina,
Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2008.
[116]
Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina
Vol. 3, N° 4 (2014) ISSN: 0328-7726
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Outro aspecto digno de nota diz respeito ao contraste existente entre os dois países
quanto à transição política e os respectivos modelos de memória. Não obstante a pouca
presença de testemunhos na esfera pública brasileira sobre o período ditatorial, as
experiências registradas tem demonstrado como as memórias da militância ou da
guerrilha produzem um efeito catalisador de outros testemunhos e ajudam a esclarecer
aspectos importantes da história factual.
Nesta perspectiva, destacamos que o trabalho da memória tem sido realizado por meio de
processos judiciais ou extrajudiciais e de instrumentos capazes de promover o
esclarecimento dos fatos e o acolhimento das narrativas das vítimas e de seus algozes, a
exemplo do que (em tese) fazem as Comissões da Verdade. Muitas vezes, estes
instrumentos são acionados simultanea ou posteriormente e atuam de maneira
complementar, conforme ocorre, especialmente, na Argentina.
[117]