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ensino paulista*
Resumo
Palavras-chave
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 335-344, maio/ago. 2004 335
I. tário, os autores cautelosamente se abstiveram
Num estudo de Gerth e Wright Mjlls, pu- de um balanço que se assemelhasse a uma
blicado pela primeira vez em 1953, eles afir- tentativa de procurar pontos de consenso nas
mam que “a palavra Democracia, em especial opiniões expressas, mas, pelo contrário, reco-
quando usada na moderna competição propa- nhecendo as inconciliáveis divergências, busca-
gandística, passou, literalmente, a significar ram compreender as suas razões. Nesses termos,
todas as coisas, para todos os homens”.1 Esta na conclusão referida, disseram eles:
observação que na sua contundência parece
dissuadir qualquer tentativa de clarificação do “...o significado geral de ‘democracia’ é tão claro
termo, reflete contudo uma característica da e livre de ambigüidade quanto a linguagem cor-
situação histórica que vivemos, na qual o pres- rente permite; é a expressão de um ideal, um
tígio da posição democrática é tão grande que modelo, e um desígnio, um reflexo de aspirações
o termo “democracia” e seus derivados se humanas. As disputas ideológicas não se levan-
transformaram em elemento indispensável a tam deste significado geral e do tipo ideal de
qualquer esforço ideológico de persuasão po- relações humanas que ele expressa; as disputas
lítico-social. Aliás, esse quadro já se havia re- dizem respeito às condições que levam ao pro-
velado claramente num simpósio promovido gresso até este ideal, aos meios pelos quais ele
pela UNESCO em 1948 e no qual se discutiram pode ser alcançado, à ordem das providências a
os “conflitos ideológicos acerca da democra- serem tomadas no seu desenvolvimento. Como
cia”.2 Nesse simpósio, aos especialistas convidados conseqüência, as atuais controvérsias ideológicas
— expoentes nas suas respectivas áreas — foi não se concentram no significado de ‘democra-
apresentado um elenco de tópicos e questões cia’, mas nas teorias sobre as condições de seu
que na sua variedade e formulação ensejou o desenvolvimento e os meios de sua realização”.5
aparecimento das profundas e irredutíveis di-
vergências dos autores consultados. Mas, não Neste trecho, fica muito claro como é
obstante as diferenças radicais de posição acer- ilusória a unanimidade das alegações democrá-
ca do significado de “democracia” e de suas ticas e como, em conseqüência, a simples pro-
implicações políticas, sociais e econômicas, fissão de fé democrática não divide os homens.
houve um ponto que foi a premissa fundamen- As formulações abstratas do ideal democrático
tal de todas as posições: a valorização do ideal são opacas e assépticas. Prestam-se a todos os
democrático. É claro que, muitas vezes, a teo- usos, servindo a todas as ideologias. É nos
logia de um soava como demonologia para esforços de realização histórica desse ideal que
outro, mas todos concordaram na “aceitação da as raízes das posições e das divergências se
democracia como a mais alta forma de organi- revelam.
zação política e social” e com a tese de que “a Partindo desse reconhecimento, delineia-
participação do povo e os interesses do povo se um caminho possível para tentar clarificar a
são elementos essenciais para o bom governo noção derivada de ensino democrático. É além
e para as relações que fazem possível o bom da zoada dos manifestos, das proclamações e
governo”.3 É essa unanimidade na superfície e dos slogans — que afinal não divide os “demo-
essa divergência profunda acerca do significa-
do de “democracia” que tomam muito difícil o 1. Gerth, H. e Mills, W. Caráter e Estrutura Social, trad. de Z.Dias, Civili-
esclarecimento da noção derivada de “ensino zação Brasileira, Rio de Janeiro, 1973, pág. 224.
2. McKleon, R. (Ed.) Democracy in a World of Tensions (A Symposium
democrático”. Contudo uma das conclusões do prepared by UNESCO), The University of Chicago Press, 1951.
inventário analítico do simpósio, encomendado 3. lbidem, págs. 522-523.
4. Naess, A. e Rokkan, S. Analytical Survey of Agreements and
pela UNESCO a Naess e Rokkan,4 fornece um Disagreements, Ibidem, p. 447-512.
itinerário possível para essa tarefa. Nesse inven- 5. lbidem, p.457.
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em 1920, demonstrou plena consciência da sua escolar não mais começava aos 7, mas aos 9
significação política: anos; os programas foram concentrados e o
ensino primário, reduzido para dois anos. Com
Sempre que penso na realização prática dos princí- essas medidas — pensava-se — o ensino primá-
pios democráticos, uma dúvida, uma quase des- rio poderia num curto período estender-se a
crença, me assalta o espírito, diante do espetáculo todos e, portanto, democratizado. Não havia
doloroso da ignorância popular. Como organizar- dois caminhos: ou o privilégio de alguns — a
se, por si mesmo, politicamente, um povo que não “heresia democrática ou o mínimo “para todos
sabe ler, não sabe escrever, não sabe contar? Se o os que se acharem em condições idênticas,
povo não souber o que quer, como há de querer o como é da essência pura da democracia”.10
que deve? Governos populares, sem cultura, viverão O que já vimos é bastante; porque fugiria
morrendo da sua própria incultura. ao propósito deste trabalho comentário mais
amplo das inúmeras medidas introduzidas ou
Eis por que me interessou, sempre, a solução preconizadas pela Reforma Sampaio Dória. O
prática do problema do analfabetismo. A ins- que interessa já foi resultado: a compreensão
trução, primaria e obrigatória, a todos, por que ela revelou de que não se democratiza uma
toda parte, é ideal que seduz...8 instituição pública como a escola sem que ela
alcance a todos. Esta trivialidade do credo de-
Urgia, pois, erradicar o analfabetismo. Era mocrático em educação, tão facilmente aceita
uma exigência democrático-nacionalista. Mas, no plano teórico, parece que causa repugnân-
não havia recursos para isso. Embora o proble- cia na prática, porque exaspera a sensibilidade
ma fosse e agravado por deficiências pedagógi- pedagógica dos especialistas preocupados com
cas, não era, evidentemente, uma questão teó- a qualidade do ensino. Assim foi no caso de
rica de política educacional num sentido amplo. Sampaio Dória, cuja reorganização e redução
E o reformador — não obstante educador — do ensino primário provocou duras críticas e
escapou à sedução das soluções simplistamente protestos, não apenas na época (e que acaba-
pedagógicas e acuidade para os termos políticos ram por levar à sua revogação), mas também ao
em que a situação se apresentava: longo dos anos da parte dos estudiosos que a
analisaram. Dentre estes últimos, talvez valha a
Sabe-se que sem igualdade, não há justiça. A pena destacar a figura de Anísio Teixeira - um
desigualdade com que o Estado matéria de ensi- incansável propagandista do ideal democrático
no elementar, tem tratado aos seus filhos, é uma em educação — mas que não obstante isso, vá-
injustiça. E como sem justiça, não há democra- rias vezes se referiu à reforma paulista de 1920,
cia digna, a sustentação do systema actual seria sempre para criticá-la, como por exemplo, nas
democrática. seguintes paragens:
Dizer que é preferível favorecer, com mais algu-
mas noções, a um terço da população escolar, e, A reforma reduziu o curso primário, em primei-
como conseqüência, negar tudo aos outros, é ra tentativa, a dois anos e, finalmente, em face
heresia democrática e necedade. O governo es- de críticas e protestos, a quatro anos de estudos
taria pronto a aceitar este ponto de vista, se, nas cidades e três anos na zona rural.
primeiro demonstrassem que é justo, e, depois, Era a chamada democratização do ensino, que
que dois anos de escola não valem nada.9 passou a ser concebida como a sua diluição e o
Nessas condições, um dos pontos cen- 8. Sampaio Doria, A. de Questões de ensino, v. 1, Monteiro Lou C. Edi-
tores, São Paulo, 1923, p. 39-40.
trais da reforma foi a reorganização do ensino 9. Ibidem, p. 91-92.
primário, de tal forma que a obrigatoriedade 10. Ibidem,p. 91.
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uma “profecia auto-realizadora”.16 Fundado na matrículas em escolas que, a rigor, não chegam
convicção de uma inevitável queda da qualida- realmente a existir e que pouco podem ensinar
de do ensino, o professorado não procurou se — a ponto de seus professores serem convidados
ajustar à nova realidade da clientela escolar e a participar de provas que não vão além da ‘si-
insistiu na manutenção de exigências intra- mulação — não é dar provas de autêntica fide-
curso que anulariam pela reprovação maciça o lidade à democracia e aos ideais inerentes à
esforço de abertura escolar. Nem se alegue que tarefa educativa.17
isso seria a evidência empírica da queda do
nível de ensino. Ao contrário, nível de ensino A renovação dos Ginásios Vocacionais:
não é variável abstrata, e reprovação em mas- Os ginásios vocacionais representaram um dos,
sa é sempre índice de defasagem entre critéri- poucos esforços sistemáticos de renovação do
os de exigência e reais condições de ensino- ensino público paulista. A maior parte dos as-
aprendizagem. Ao expandir as matrículas, a Ad- pectos desse esforço ainda não foi suficiente-
ministração estava executando uma política de mente estudada, de modo que não é possível
educação num sentido amplo, que não pode- no momento um ajuizamento global da inicia-
ria nem deveria ser aferida didaticamente como tiva. No entanto, para os nosso propósitos, é
se fosse uma simples questão interna da esco- dispensável essa visão mais ampla porque o
la. O pressuposto dessa política era de que a que interessa é focalizar essas instituições es-
democratização do ensino era incompatível colares como tentativas de democratização do
com as exigências estritas de admissão; conse- ensino. Nessas condições, tentaremos colher
qüentemente, era também incompatível com a sucintamente o que foi apresentado à guisa de
permanência das anteriores exigências internas. filosofia da educação do projeto.
Consciente disso, a Administração, para contor- O ensino vocacional foi desenvolvido,
nar a iminência da reprovação maciça, instituiu desde 1962 até 1968, por seis unidades ginasi-
um sistema de pontos por alunos aprovados ais instaladas na Capital e em cidades do inte-
que pesava na recontratação dos professores. rior. Não havia entre essas unidades nenhuma
Essa medida, embora tenha produzido os diferença básica de orientação. Por força de um
resultados visados, repercutiu intensamente e estatuto legal próprio gozaram de uma ampla e
reviveu as críticas à política de ampliação de ma- privilegiada autonomia didática, administrativa e
trículas. Uma dessas críticas é bem significativa financeira. Foi possível assim um trabalho não
porque exemplifica o que já dissemos a respei- viável na rede comum de escolas. Essa oportu-
to da discrepância entre a pregação democráti- nidade foi intensamente aproveitada e as ativi-
ca e a ação democratizadora em educação: dades desenvolvidas orientaram-se sempre num
sentido de renovação metodoló-gica e curricular
Os preceitos constitucionais não existem, todos com confessadas intenções democratizadoras.
eles, meramente para consagrar situações de Para o nosso propósito — que não é propria-
fato. Muitos deles (é o próprio das ‘constitui- mente o exame técnico-pedagógico das
ções-programa’, como são as nossas desde metodologias praticadas — mais importa o modo
1934) indicam uma meta, um ideal a atingir. A pelo qual essas intenções foram explicitadas e
obrigatoriedade escolar é um desses casos. É que constituiu o fundamento do projeto.
claro que, quanto mais rapidamente transfor-
mamos o preceito em fato, garantindo às cri-
16. “a este tipo pertencem as predições (...) que acabam se realizando
anças oito anos de escolaridade efetiva, mais fi- devido às ações empreendidas pelo fato de se acreditar nelas (as predi-
éis estaremos sendo aos propósitos democráticos ções)”. NAGEL, E. - La estrutura de Ia ciencia. Trad. de Nestor Mígues,
Paidés, Buenos Aires, 1968, pág. 423.
que inspiram a nossa concepção da vida e da
17. “A crise do ensino secundário oficial”, editorial publicado no Jornal
sociedade. Mas é claro, também, que garantir O Estado de S. Paulo (19 de dezembro de 1968).
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dade é que, historicamente, pelo menos no concebida como sendo mero reflexo de carac-
caso de São Paulo, têm se apresentado como terísticas dos indivíduos que a compõem.22 É
opções que se excluem. É o que pretendemos claro que se assim fosse — se a sociedade de-
tomar explícito nos comentários que se seguem. mocrática apenas realizasse a soma de vonta-
Democratização do ensino como prática des individuais livres — caberia à escola inter-
da liberdade: namente democratizada o papel de forjadora
de uma tal sociedade. Mas, não parece haver
As perturbações e questões provocadas pelas fundamento histórico para esse modo de ver,
crises de razão e liberdade não podem, natural- para essa suposta relação de precedência entre
mente, ser formuladas como um grande proble- democratização do ensino e democracia num
ma, nem podem ser enfrentadas, e muito menos sentido político-social. Desde a Antiga Grécia —
resolvidas, tratando cada uma delas microscopi- onde a democratização educacional decorreu
camente, como uma série de pequenas ques- da democratização política23 — até nossos dias,
tões... (W. Milis). a emergência histórica de regimes democráticos
nunca foi precedida de esforços democratizantes
Sem um âmbito público politicamente assegura- na esfera do ensino. Ao assinalar esse fato his-
do, falta à liberdade o espaço concreto onde tórico, não pretendemos afirmar que essa rela-
aparecer. Ela pode, certamente, habitar ainda ção seja invariável e que, eventualmente, a edu-
nos corações dos homens como desejo, vontade, cação não possa ter um efeito transformador
esperança ou anelo; mas o coração humano, mais amplo. Pretendemos apenas escapar da in-
como todos o sabemos, é um lugar muito som- genuidade de supor que “ a democracia não
brio, e qualquer coisa que vá para a sua obs- pode funcionar sem democratas. E (que) cabe
curidade não pode ser chamada adequadamente à educação formá-los”;24 porque democracia se
de um fato demonstrável (H. Arendt). refere a uma situação política, social e econô-
mica que não se concretiza pela simples asso-
Democratizar o ensino pela instituição ciação de indivíduos democráticos.
de práticas educativas fundadas na liberdade Essa suposição nos leva de volta a um
do educando, tem sido uma proposta seduto- ponto, em que já tocamos de passagem, mas
ra para os educadores: e a sua aceitação ou que vale a pena retomar: a prática da liberda-
não é sempre interpretada como uma visão de dentro da escola como condição suficiente
progressista ou retrógrada da educação. Exami- para a formação de personalidades aptas à
nemos, porém, alguns dos compromissos liga- prática da liberdade política. Esta idéia, além
dos a uma pretensa visão progressista. Um de- da simplificação de conceber o social como
les, embora não essencial mas muito freqüen-
te, é a aspiração de transformar politicamente
22. “Segundo em tradição [a liberal clássica), a sociedade política é (ou
a sociedade por meio de educação. Isso fica deveria ser — pois o liberalismo é igualmente ambíguo a respeito) uma
muito claro no caso dos Ginásios Vocacionais, associação de indivíduos independentes que conjugam a vontade e reúnem
poderes no Estado com o objetivo de alcançar fins de interesse mútuo”.
mas não só aí, pois seria até difícil encontrar Wolff, R. P. “Beyond Tolerance”, in A critique of pure tolerance. Wolff, R.
no que tem sido escrito sobre educação no Bra- P.; Moore JR., B. e Marcuse, H., Beacon Press, Boston, 1969, p.5.
23. “Atenas (...) tornou-se uma verdadeira democracia: seu povo con-
sil exemplos que não reflitam essa orientação. quistou, por extensão gradual, não só os privilégios, direitos e deveres
Nem linha, é como se a escola democratizada, políticos, mas ainda o acesso a este tipo de vida, de cultura, a este ideal
formando homens livres, fosse condição para humano do qual somente a aristocracia havia, de início, usufruído (...) Com
este ideal, com a cultura que ele anima, é toda a educação aristocrática que
edificar a sociedade democrática — reunião dos agora se estende e se torna a educação - tipo de toda criança grega”.
homens livres. Esta aspiração — não obstante a Marrou, H. 1. História da Educação na Antigüidade. Trad. de M. L. Casanova,
Editora Herder/EDUSP, 2ª reimp., 1971, p. 70-71.
simpatia e o entusiasmo que desperta — repou- 24. REeboul, 0. Filosofia da Educação. Trad. de Luis Damasco Pena e J.
sa numa idéia simplista da sociedade política B. Damasco Penna, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1974, p. 98.
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O sistema da livre educação até qualquer grau se poderia limitar a sua aplicação a uma parcela
para todo aquele que queira, é o único sistema da sociedade como na Antiga Grécia, onde a
compatível com os princípios da liberdade, e o vida democrática era privilégio de alguns. Não se
único que dá uma razoável esperança de permitir democratiza o ensino, reservando-o para uns pou-
uma completa realização do talento” (B.Russell). cos sob pretextos pedagógicos. A democratização
“Uma vez que fosse admitido o dever de obrigar da educação é irrealizável intra-muros, na cidade-
à educação universal, acabariam as dificuldades la pedagógica; ela é um processo exterior à es-
a respeito do que o Estado deva ensinar, e de cola, que toma a educação como uma variável
como deva ser esse ensino, o que hoje converte a social e não como simples variável pedagógica.
questão num mero campo de batalha para as O outro equívoco a que nos referimos é
seitas e partidos, fazendo que o tempo que deve- mais grave, porque é mais sutil. Consiste em su-
ria ser gasto em educar se desperdice em ques- por que o ajuizamento acerca da qualidade do
tionar sobre educação (S. Mill). ensino seja feito a partir de considerações exclu-
sivamente pedagógicas, como se o alegado rebai-
Embora a pregação da democratização do xamento pudesse ser aferido numa perspectiva
ensino seja antiga e constante no pensamento meramente técnica. Contudo, essa suposição é
brasileiro, sempre que ocorreu uma maciça exten- ilusória e apenas disfarça interesses de uma classe
são das oportunidades educativas os educadores sob uma perspectiva técnico-pedagógica. Esta —
sentiram-se chocados no seu zelo pedagógico. E ainda que sinceramente invocada e mesmo quan-
a argumentação que extravasa esse sentimento, do baseada em pesquisas empíricas — apenas
invariavelmente, invoca o rebaixamento da qua- obscurece o significado político dos argumentos
lidade do ensino como um preço inadmissível à em jogo. Para constatar isso, é suficiente assina-
ampliação de vagas. O argumento até parece ra- lar que qualidade do ensino não é algo que se
zoável quando examinado de um ponto de vista defina em termos abstratos e absolutos. Sendo
pedagógico e com abstração de situações histó- assim, a queda dessa qualidade é relativa a um
ricas específicas. No entanto, ele repousa sobre nível cultural anterior. Mas, que nível? Não, evi-
dois equívocos que têm uma mesma matriz: a ile- dentemente, o da grande maioria até então desa-
gitimidade da perspectiva pedagógica para o exa- tendida. Para esta, até mesmo a “escola aligeira-
me do assunto. Esta legitimidade se revela, em da”, de que falava Sampaio Dória, representa um
primeiro lugar, ao se considerar que a extensão acréscimo, uma elevação. É óbvio, pois, que o re-
das oportunidades educativas é apenas um aspec- baixamento da qualidade do ensino, decorrente da
to do processo pedagógico de democratização do sua ampliação, somente ocorre por referência a
ensino. Se assim fosse, é claro que a ênfase nes- uma classe social privilegiada, porque, “nesta es-
se aspecto, em detrimento de outros, seria uma fera, como em outras, os móveis egoístas de al-
providência parcial e teria uni efeito deteriorante guns setores da população (as classes conserva-
sobre o sistema escolar. O equívoco dessa idéia dores e uma parcela das classes médias) tendem
reside em desconhecer que a extensão de opor- a prevalecer sobre as necessidades essenciais da
tunidades é, sobretudo, uma medida política e sociedade brasileira”.29 E é nesse esforço para con-
não uma simples questão técnico-pedagógica. A tinuar a prevalecer que se lamenta a queda de
ampliação de oportunidades decorre de uma in- qualidade de ensino, mistificando, consciente ou
tenção política e é nesses termos que deve ser inconscientemente, uma questão política em ter-
examinada. Aliás, não poderia ser de outra manei- mos pedagógicos.
ra, pois qualquer que seja o significado que se
atribua, atualmente, ao termo “democracia”, não 29. Fernandes, F. Mudanças Sociais no Brasil, Difel, 1974, pág.110.