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Rio de Janeiro
2013
José Paulo Antunes Teixeira
Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
CDU 616.89
Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que
citada a fonte.
_____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
José Paulo Antunes Teixeira
___________________________________________
Prof. Dr. Andre Luiz Vieira de Campos (Orientador)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
__________________________________________
Profª. Dra. Ana Teresa Acatauassú Venancio
Fundação Oswaldo Cruz
__________________________________________
Profª. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
Rio de Janeiro
2013
AGRADECIMENTOS
Cada vez mais o estudo parece intrínseco à minha vida. Não que em algum momento
tenha tido a expectativa de parar de estudar, muito ao contrário, sempre fui um menino
disposto neste âmbito da vida. Contudo, a história, isto é, o estudo dela, me permitiu algo que
em tempos de garoto nunca poderia imaginar: estar sempre estudando, mesmo quando não
aparento. Os eventos do cotidiano, as conversas de bar, o assistir o jornal (ok, também a
novela) com a esposa, em geral agora me remetem ao aprendizado, às relações históricas, à
crítica e a possibilidade do uso deste material como ferramenta de reflexão ou mesmo de
exemplificação para o entendimento de um período.
Tornar-me um pesquisador, e ainda um professor de história, me transformou em algo
que alguns poderiam considerar um chato, e que eu, por autopreservação, prefiro chamar de
apaixonado. Fazer referências, arremessar opiniões, vociferar “verdades”, propor questões sem
resposta objetiva, isto é o que aqueles que comigo convivem têm de aturar, e por isto estarão
presentes aqui, neste humilde agradecimento.
Pelas conversas, estímulos e suportes pessoais e intelectuais, agradeço e dedico esta
dissertação a meus amigos mais antigos: meu pai José Augusto, e meus irmãos, Cesar e
Gustavo. Que o tempo que passamos continue tendo a mesma qualidade, e talvez um pouco
mais de frequência, até o final dos tempos.
Mesmo que o tempo seja uma importante medida, certamente podemos reconhecer
outros apoiadores mais recentes. Neste sentido, agradeço ao Marcelo, amigo de faculdade, de
vida e padrinho da minha filha, pela presença, apoio e interesse nestes últimos tempos de
academia.
Pelo suporte na produção da dissertação em si, agradeço ao Programa de Pós-
Graduação em História da UERJ, seu corpo docente, bem como à CAPES pelo custeio deste
estudante bolsista. Agradeço, e mesmo atribuo esta dissertação ao meu orientador André Luiz
Vieira de Campos, professor dedicado, leitor incansável e corretor infalível para este
displicente orientando. Obrigado professor, pelas chamadas e pelos elogios.
Agradeço também à banca examinadora, isto é, às professoras Marilene Rosa e Ana
Venâncio pelo interesse e contribuição para minha formação já na defesa de projeto. Destaco
aqui ainda a participação da última professora, da Casa de Oswaldo Cruz, pela atenção e
empréstimo de grande parte dos textos que serviram de fonte nesta pesquisa.
Por último, ofereço este trabalho à minha família, isto é, Gabriela, minha esposa,
Cecília, a filha humana, e Amora, a filha cadela. A primeira por ser praticamente co-autora
deste trabalho. Sua leitura, críticas, procura e impressão de fontes fez dela tão conhecedora de
Juliano Moreira quanto eu. À Cecilia, agradeço simplesmente por existir e por, neste exato
momento, invadir meus pensamentos com seu olhar intrigante e seu sorriso inspirador me
trazendo a mais pura e ingênua felicidade. À Amora agradeço por estar deitada, também neste
exato momento, sobre os meus pés, aguardando o final da escrita e a possibilidade de um
afago. Adaptando a mim mesmo: “que nossos sorrisos continuem enfeitando a minha vida, os
meus pensamentos e as minhas projeções por toda a existência que nos cabe”.
RESUMO
The period of restructuring and reordering of the city of Rio de Janeiro at the beginning
of Brazil´s republican history, which culminates at the so called Belle Époque Carioca, is
analyzed here under the perspective of the hygienism. In that way, politics assumes a posture
of adequacy of the everyday based on social medicine and on intervention over the manners
considered improper, degenerating. An important field of knowledge in this process of
adequacy and imposition of a new order is psychiatry. Renewed by the propositions of Juliano
Moreira, that science would be responsible by the conceptualization of new standards of
abnormality, the so called psychopathic personalities, and by the withdrawal of these disturbers
of the order in relation to the interaction with society.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 8
1 A PSIQUIATRIA DO SÉCULO XIX: O DISCURSO FRANCÊS E OS
ECOS NO BRASIL............................................................................................... 10
1.1 Introdução .............................................................................................................. 10
1.2 Pressupostos teóricos da psiquiatria ................................................................... 11
1.3 O corpo em foco ................................................................................................... 22
1.4 O quadro institucional da psiquiatria brasileira ................................................ 32
1.5 Conclusão ................................................................................................................ 41
2 O DISCURSO DE JULIANO MOREIRA: PERMANÊNCIAS E
RUPTURAS............................................................................................................. 42
2.1 Introdução .............................................................................................................. 42
2.2 A influência alemã e as anormalidades ............................................................... 43
2.3 Juliano Moreira, Nina Rodrigues e a Lei Federal de 1903 ................................ 53
2.4 A assistência proposta por Juliano Moreira ....................................................... 59
2.5 O sentido da anormalidade em espaços cariocas ................................................ 61
2.6 Conclusão ................................................................................................................ 66
3 A MODERNIDADE REPUBLICANA E A NORMALIDADE
PSIQUIÁTRICA..................................................................................................... 68
3.1 Introdução ............................................................................................................. 68
3.2 A República no Brasil e a busca do moderno ..................................................... 68
3.3 O Rio de Janeiro no princípio do século XX ...................................................... 78
3.4 O discurso modernizador da psiquiatria e da política: resistências e
afirmações ............................................................................................................... 84
3.5 A normalidade como campo institucional e sua crítica ..................................... 90
3.6 Conclusão ................................................................................................................ 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 97
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 100
8
INTRODUÇÃO
Para atingir minhas metas, procurei estabelecer etapas de análise, centrados em uma
análise cronológica e epistemológica, do ponto de vista do desenvolvimento e aplicação da
psiquiatria no Brasil. Neste sentido, não me ocuparei apenas das atitudes de Juliano Moreira
em seu exercício da profissão, porém também discutirei as considerações que fez sobre o
passado, sobre os trabalhos que o antecederam, e suas projeções futuras sobre o cotidiano e a
saúde mental do povo brasileiro a partir da aplicação de suas teorias.
1.1 Introdução
Embora tenha sido apresentado desta forma, é preciso destacar que não é o objetivo
deste capítulo acreditar em uma dinâmica da história baseada em simples causas e
consequências diretas. Estudar aquilo que antecedeu o surgimento das propostas de Juliano
Moreira nos permitirá compreender a sua singularidade e mesmo o teor de inovação que seus
trabalhos acadêmicos apresentarão na passagem do século XIX para o XX. Em análise de
artigos escritos ou referidos por ele, a proposta aqui é mapear o que o próprio psiquiatra
enalteceu ou criticou em relação à produção dos chamados “alienistas” do século XIX.
Para me aproximar deste olhar de Moreira sobre a produção médica, utilizei um texto
programático dele mesmo, “Notícias da Evolução da Assistência a Alienados no Brasil”,
publicado em 1905 nos Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins,
periódico do qual foi editor em parceria com o também médico e psiquiatra Afrânio Peixoto.
Tal texto pode ser encaixado historiograficamente em um conjunto de publicações
denominadas “clássicas”, ou “positivistas”, e podem ser associadas ao interesse na afirmação
profissional da medicina e, em especial, no destaque do progresso alcançado pelas ciências ao
longo do século XIX e naquele início do XX (EDLER, 1998. VENANCIO; CASSILIA,
2010.).
11
O que se percebe a respeito da relação entre o Estado e a loucura, é que esta surge,
bem como os demais males citados, imersa em uma questão político-administrativa, isto é,
voltada à organização e à disciplina do corpo social, e não para uma conduta que exigiria
atenção específica à doença, diagnósticos e tratamentos. No entanto, naquele momento uma
limitação poderia ser observada na atitude para com aqueles passíveis de isolamento. Esta
consiste nas discussões a respeito da tutela, constantemente confusa, entre os papéis do
público e do privado, isto é, relacionada ao impasse em estabelecer os cuidados providos pelo
Estado ou pelas próprias famílias dos alienados. Em suas considerações a respeito do louco
enquanto ameaça à ordem social e do desinteresse pelas especificidades de seus diagnósticos
pela medicina até então, Michel Foucault estabelece:
Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar
onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. Jamais,
antes do fim do século XVIII, um médico teve a ideia de saber o que era dito (como
era dito, por que era dito) nessa palavra que, contudo, fazia a diferença. Todo este
imenso discurso do louco retornava ao ruído; a palavra só lhe era dada
simbolicamente. (FOUCAULT, 1971)
Mudanças nesta prática passam a ser percebidas apenas a partir das revoluções
burguesas e da emergência de uma ordem política liberal baseada em um modelo
contratualista de organização. Naquele momento, o que se pretende é uma racionalização das
13
Esta perspectiva paternalista, que tão bem descreve a relação inicial entre o médico e o
louco no momento de surgimento da psiquiatria, é fundamentada, inicialmente, pelo psiquiatra
francês Philippe Pinel, quando determina que
longe de serem culpados que se deva punir, são doentes cujo estado penoso merece
todas as considerações dadas à humanidade sofredora e cuja razão perdida devemos
procurar os meios mais simples de restabelecer. (PINEL, 1809)
Como baluarte deste direcionamento assistencial, Pinel será o médico responsável pela
crítica aos castigos corporais, ao uso de correntes e celas nas instituições de isolamento dos
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loucos, e à atuação de leigos na condução do cotidiano dos hospícios. Pregará, neste sentido, a
conformação de um espaço no qual a razão seja predominante, razão esta estabelecida e
orientada a partir de critérios médicos. Dessa maneira, a imposição física não será mais o
referencial aos condutores da assistência, uma vez que
[...] não é como pessoa concreta que ele vai enfrentar a loucura, mas como ser de
razão, investido exatamente por isso, antes de todo combate, da autoridade que lhe
vem do fato de não ser louco. A vitória da razão sobre o desatino era antes
assegurada apenas pela força material, e numa espécie de combate real. Agora, o
combate já se apresenta sempre como tendo existido: a derrota do desatino está
antecipadamente inscrita. (FOUCAULT, 1972)
Dessa forma, dentro do hospício, o médico será capaz de estabelecer um vínculo com o
paciente através da apresentação dos critérios para um convívio racional em sociedade. Será
neste momento que a psiquiatria de Pinel revelará a sua ambientação amparada no pensamento
liberal. Isto porque, para o médico francês e, portanto, para o arcabouço teórico da psiquiatria
naquele princípio de século XIX, a origem e o desenvolvimento da loucura pelos indivíduos
estavam fortemente associados às condições vivenciadas por eles em sociedade. Reflete-se
naquele momento sobre a questão social (CASTEL, 1998), isto é, o artificialismo urbano1, as
condições de vida dos mais pobres e as buscas por satisfações pessoais desvinculadas da
ordem produtiva capitalista, como os agentes determinantes na aquisição da doença mental,
como garante Pinel:
1
O termo artificialismo aqui utilizado diz respeito à perspectiva de que o crescimento das grandes cidades e a
vivência urbana a partir do advento industrial apresenta um cenário distante do natural e mesmo da natureza para
a população europeia no século XIX. É neste contexto que se insere a reflexão sobre as consequências da vida
citadina e o pensamento bucólico, que valorizava a vida no campo. Cf: CASTEL, R. Metamorfoses da Questão
Social: uma crônica do salário. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
15
funcionasse como antítese da realidade exterior, capaz de oferecer a reeducação social a partir
de um rígido acompanhamento normativo. Em termos gerais, substituía-se a repressão física
pela imposição de uma conduta ideal dentro dos limites do asilo.
Esta lógica interna, entretanto, não seria a única idealização psiquiátrica na primeira
metade do século XIX. Naquele contexto, era interessante dar conta daquilo que se formulava
além dos muros do hospício, fortalecendo a perspectiva da medicina enquanto instância
administrativa da doença.
2
Para ver uma crítica da versão dos autores ditos foucaultianos, como Roberto Machado e Jurandir Freire Costa,
ao processo de medicalização da sociedade brasileira no final do século XIX e início do XX, ver: COELHO, E.
C. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro (1822 – 1930). Rio de Janeiro:
Record, 1999.
16
Tal afinidade pode ser apontada ainda no preâmbulo da tese, quando o médico
brasileiro afirma a partir do XIX, o estabelecimento da medicina como recurso científico para
a explicação da loucura, em detrimento dos caracteres baseados nas crenças religiosas,
afirmando que
3
Como já apontado na introdução do capítulo, a tese do Dr. Peixoto é um a dar obras tidas como de referência da
psiquiatria brasileira do século XIX por Juliano Moreira. Observar as acepções deste médico é seguir uma
linearidade traçada pelo próprio psiquiatra baiano em MOREIRA, J. “Notícia Sobre a Evolução da Assistência a
Alienados no Brasil” In: Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins. Rio de Janeiro, 1(1):
52-98, 1905.
17
[...] o estudo da alienação mental foi por muito tempo influenciado pelos prejuízos, e
por isso era ela atribuída a causas sobrenaturais. Assim, os antigos, não procurando
definir nem estudar esta moléstia com exatidão, davam como causa de sua existência
o demônio, os espíritos animais no cérebro, através dos quais a alma não podia sentir
nem pensar com precisão. (PEIXOTO, 1837. P.II)
Dentre as mais complexas, pode ser percebido o idiotismo. Este também diz respeito à
“obliteração ou debilidade das faculdades intelectuais”, contudo, se difere da demência por
não apresentar caracteres “acidentais” e sim “congeniais”. Sobre este termo, o que se busca é a
afirmação de que a debilidade não é adquirida, apenas manifesta de acordo com o gênio, a
própria índole ou natureza do indivíduo. A partir disso, é subdividido em duas categorias:
idiotismo propriamente dito e imbecilidade. Estes são caracterizados pela intensidade da
obstrução da inteligência, que permite, no primeiro caso, a suscetibilidade a algum tipo de
educação, e no segundo, até mesmo a obliteração total do intelecto, permitindo apenas um
estado vegetativo (PEIXOTO, 1837).
Sobre esta classificação dos doentes, cabe o comentário de que os três primeiros, ou
seja, os maníacos, os dementes e os idiotas, não são responsabilizados pelos seus atos, uma
vez que são portadores de deficiência intelectual capaz de invalidar sua atuação em uma
sociedade organizada sob preceitos racionais. Já nos últimos, portadores da monomania, tipo
de enfermidade notadamente mais raro, pode ser percebida a categoria de “delírio parcial”,
isto é, momentâneo e relacionado a alguma adversidade enfrentada pelo indivíduo em sua
vivência. Reconhecer a existência da monomania significava, naquele contexto, estabelecer a
capacidade de interação do louco para com a sociedade e, mais do que isso, a problemática no
momento de identificação da enfermidade e da necessidade de sequestração. Sobre isto, Dr.
Peixoto adverte:
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[...] alguns alienados tem bastante discernimento para ocultar o estado de desordem
de sua razão: eles procuram mesmo provar por meio de argumentos, aliás, muito
convincentes, que não estão doidos; que os dão por tais para lhes roubarem o uso dos
seus direitos civis. (PEIXOTO, 1837. P.21)
Uma educação viciosa pode ser causa de alienação mental. Pinel e Esquirol citam
alguns fatos a respeito. [...] Por exemplo, o uso imoderado de vinho e das bebidas
alcoólicas predispõe a loucura, enfraquecendo as faculdades intelectuais [...] os
prazeres venéreos levados em excesso e sem escolha, degradam e enfraquecem a
razão do homem: o celibato, sobre tudo quando forçado, também concorre para
aliená-la. (PEIXOTO, 1837. p.5)
4
Por negociantes especuladores ou militares decadentes, pode-se supor que Dr. Peixoto esteja fazendo menção a
homens de passado glorioso que sofreram algum tipo de frustração, como homens ricos que perderam posses, ou
líderes militares reformados. Cf: PEIXOTO, A. L. da S. Considerações Gerais Sobre a Alienação Mental. Tese
defendida no ano de 1837 para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
20
quadro completo das causas morais da loucura. Não há talvez circunstâncias na vida que não
possam tornar causas da alienação mental” (PEIXOTO, 1837. P.8), Dr. Peixoto reconhece os
limites daquele saber psiquiátrico fundamentado no princípio do XIX. Ao apontar “o amor
levado ao excesso”, “os revezes da fortuna” ou os “desgostos domésticos” como possíveis
causas para o desenvolvimento da alienação, o discurso médico sobre a loucura assume o risco
de se tornar um tanto genérico e carente de uma etiologia, isto é, de um discurso que desvende
os limites e reações corporais ao invés de fazer menção à adversidades sentimentais
ocasionadas pela convivência em sociedade.
Este tom semiológico, isto é, que diz respeito aos sinais e sintomas de uma doença em
referência a um conjunto de valores em exercício, em detrimento do etiológico, voltado para a
análise das reações orgânicas com interesse marcadamente corporal, será característico da
primeira metade do século XIX na psiquiatria francesa. (CASTEL, 1978). E ainda será a
referência determinante para o crescimento da psiquiatria no Brasil, apesar de demonstrar
carências, tanto na etiologia, como nos próprios parâmetros de sintomatologia e tratamento.
Sobre as lacunas deixadas pela psiquiatria – francesa – até então, a respeito das origens
da alienação, Dr. Peixoto confirma:
imposição intelectual da razão, revelando uma prática não menos agressiva (MACHADO,
1978; COSTA, 1980; PORTOCARRERO, 2002). Embora se reconheça aqui a construção
deste saber psiquiátrico no princípio do XIX, associado aos ditames racionalistas do
liberalismo francês, o que se deseja enfatizar aqui é a psiquiatria de Pinel e Esquirol como o
estabelecimento do primeiro passo na atenção específica sobre a loucura. E observar ainda
como os ecos destas formulações teóricas e práticas serão importantes para a afirmação
psiquiátrica na organização do espaço público brasileiro. A geração de Pinel e Esquirol, bem
como a geração de seus colegas brasileiros, como o Dr. Peixoto, ainda deixariam por
completar um sistema de controle onde a verdade médica fosse mais favorecida, através de
discursos majoritariamente orgânicos.
Ainda em análise sobre a tese de Antonio Luis da Silva Peixoto, o que se pode
perceber é o reconhecimento do clima como um dos fatores determinantes para o
desenvolvimento da degeneração mental. Mesmo que a discussão sobre este tópico seja
5
Tal definição pode ser encontrada em qualquer dicionário da Língua Portuguesa e não se trata de um conceito
em questão.
22
reduzida quando comparada aos demais fatores condicionantes, como a insalubridade urbana e
os comportamentos viciosos, Dr. Peixoto observa:
Podem os climas ser causa da loucura, e assim, nos temperados, sujeitos a grandes
variações atmosféricas, e principalmente nos que são de uma temperatura
alternativamente fria e úmida, úmida e quente, a alienação é mais freqüente.
(PEIXOTO, 1837. p.2)
Uma proposta de explicação para estas relações de causalidade entre o clima tropical e
a alienação, poderia ser percebida em um trabalho relacionado a outra corrente médica
existente e circulante no Brasil em meados do século XIX: o naturalismo. Expoente desta
escola, o médico naturalista francês José Francisco Xavier Sigaud6, em sua obra “Do clima e
das doenças do Brasil” faria considerações sobre diversas enfermidades desenvolvidas no
território nacional que poderiam ser relacionadas não apenas com a questão social, o
alcoolismo e o esgotamento, como também com a questão climática. Seria o caso, segundo
Sigaud, das “Doenças Nervosas”:
6
Sigaud, bem como do Dr. Peixoto, é um dos médicos citados e referenciados por Juliano Moreira em seu texto
informativo. Cf: MOREIRA, J. “Notícia Sobre a Evolução da Assistência a Alienados no Brasil” In: Arquivos
Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins. Rio de Janeiro, 1(1): 52-98, 1905.
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biológico da doença. Consciente disso, Morel afirma: “Procurei seguir minha ideia
predominante que era a de vincular, de maneira mais vigorosa do que se tinha feito até então,
a alienação mental à medicina geral.” (MOREL, 1857. P.12). A loucura se traduz, portanto,
em uma lesão orgânica. Não mais em uma consequência de uma adversidade social ou
sentimental. Em tempo, o que Morel sugere é um interesse na descrição da doença e seu
desenvolvimento, ao invés da dedicação a uma infindável quantificação de diagnósticos.
Estabelecia-se aí uma possibilidade de crítica aos próprios espaços asilares, uma vez
que esta loucura, que se mostrava tão diversa, não necessariamente seria passível de
intervenção, cura ou tratamento em um único espaço de correção. Neste sentido, o discurso
psiquiátrico de Morel será eficiente por contribuir para o fortalecimento da medicina
organicista francesa, ao compor uma leitura para a doença mental. Além disso, surgirá em
uma década de 1860 onde os hospitais de alienados franceses receberão diversas críticas
relativas à superlotação, incapacidade de tratamento e ineficiência no isolamento. Em relação
a isto, a teoria moreliana contribuiria da seguinte forma:
7
O atavismo é um conceito que ganha projeção ao final do século XIX e diz respeito à crença na transmissão de
valores e comportamentos a partir da herança biológica. O uso destes princípios daria embasamento a diversas
tentativas de interrupção de linhagens. Cf: CORREA, Mariza. “Antropologia e medicina legal: variações em
torno de um mito” In: EULÁLIO et al. Caminhos Cruzados: Linguagem, antropologia e ciências naturais. São
Paulo: Brasiliense, 1982.
27
A questão da mestiçagem, a ser tratada no artigo, é apresentada logo de início uma vez
que considera:
Não se trata mais de saber se os mestiços são, sim ou não, eugenésicos, mas se são
um produto normal, socialmente viável, ou, se, ao contrário, constituem raças
abastardas, inferiores, uma descendência incapaz e degenerada. (RODRIGUES apud
BENCHIMOL, 2008. p.1152)
Dessa forma, o que Nina Rodrigues sugere é que não se trata de uma eugenesia dos
mestiços, isto é, uma incapacidade reprodutiva que possa ameaçar o crescimento ou a
resistência fisiológica do povo brasileiro, e sim de uma questão de organização social, que diz
respeito à impossibilidade não apenas de tornar possível o convívio, como de obter a
excelência, aos moldes europeus de civilização. E para responder esta pergunta, embasado em
critérios orgânico-científicos, Nina Rodrigues recorre ao arsenal acadêmico de fundamentação
do racismo científico da época, citando autores franceses já relacionados, como Arthur de
Gobineau, Gustav Le Bon, além de Louis Agassiz, e também ingleses, como Herbert Spencer,
responsáveis pela roupagem social do darwinismo (RODRIGUES apud BENCHIMOL, 2008).
8
A versão deste artigo aqui utilizada está disponível na Revista “História, ciências, saúde: Manguinhos. v. 15; n.
4 (out.-dez.2008). Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2008.”.
28
Uma forma de suprir esta lacuna na produção científica brasileira é sugerida por Nina
Rodrigues ao se debruçar sobre um estudo de caso: a pequena comunidade do interior da
Bahia chamada Serrinha. Ali, segundo o médico maranhense, seria possível observar os
impactos do clima, do trabalho camponês, dos comportamentos viciosos e finalmente dos
cruzamentos raciais nos processos de degeneração mental. Os indivíduos daquela
circunscrição são apresentados como tendo uma reputação de trabalhadores, pacíficos, e de
grande sobriedade, além, obviamente, de serem, em sua maioria formada por mestiços, negros
e índios. Além disso, a cidade não apresenta problemas considerados viciosos em larga escala
como a mendicância, a promiscuidade ou o consumo excessivo de cachaça, tal qual nas
grandes cidades, mesmo do Brasil naquela época (RODRIGUES apud BENCHIMOL, 2008).
A partir de um olhar mais atento e minucioso sobre a organização e a produção desta
pequena comunidade, Nina Rodrigues, entretanto, conclui que
Em primeiro lugar, se ela não padece de uma indolência invencível, como muitas
outras, não obstante está longe de ser realmente trabalhadora. Os procedimentos de
cultivo são de fato primitivos [...] o que só exige deles um trabalho intermitente,
leve, bom para mulheres e crianças mais do que para homens. As pessoas se dedicam
à criação de gado, mas utilizam o mais primitivo dos sistemas. (RODRIGUES apud
BENCHIMOL, 2008. p.1155)
Nada mais apropriado para manter o gosto da vida nômade nesse povo semibárbaro.
[...] Entre os raros indivíduos que fazem exceção a essa regra, o espírito
empreendedor é pouco progressista, sempre estreito e quase nulo. (RODRIGUES
apud BENCHIMOL, 2008. p.1155)
Além disso, o resultado de uma análise corpórea sobre a mesma população adquire
perspectivas pessimistas, uma vez que a degenerescência se verifica de maneira tão acentuada
ali como numa população citadina, esgotada e viciosa. Assim, a propensão e a incidência de
enfermidades mentais e comprometimentos do sistema nervoso são percebidas como
excessivas. As relações de consanguíneas são assumidas por Nina Rodrigues como principais
29
responsáveis pelo desenvolvimento destes desvios, contudo, além disso, para afastar a
centralidade de outros fatores como o alcoolismo ou os excessos venéreos, o autor constrói um
argumento no qual:
[...] é preciso atentar para a tendência que a degenerescência cria em relação a essas
bebidas, de modo que a embriaguez, em vez de ser uma causa, poderia muito bem
ser o simples sintoma de um desequilíbrio mental destinado a se agravar sob a
influência, tanto no indivíduo quanto em sua descendência. (RODRIGUES apud
BENCHIMOL, 2008. p.1160)
Naquela segunda metade do século XIX seria consolidada, então, uma ruptura para
com um modelo psiquiátrico descritivo e semiológico, baseado na acumulação de referências
e sintomas vinculados a um interesse na manutenção de uma ordem social. Em sequência, é
adotado um padrão de análise da doença a partir de sua evolução, caracterizando um olhar
etiológico, capaz de vislumbrar suas diversas causas, bem como seus possíveis
desenvolvimentos e transmissões. Contudo, o que se percebe em determinados círculos da
intelectualidade européia e brasileira, é a apropriação de determinados conceitos como
hereditariedade e degenerescência em prol do fortalecimento de um discurso paralelo,
condizente a um estudo não das enfermidades mentais especificamente, e sim provenientes da
constituição de um discurso civilizador europeu sobre as ditas raças inferiores em fins do
31
século XIX. Em um momento onde o dogmatismo científico era a chave para ordenar o
funcionamento da sociedade, das relações humanas, a medicina social se empenhava em
estabelecer lugares sociais para os indesejáveis, agora a partir de justificativas biológicas.
Os ecos do alienismo francês poderiam ser percebidos no Brasil não apenas a partir do
desenvolvimento de novas concepções teóricas acerca da identificação, da observação e do
tratamento da loucura. De modo complementar a este trabalho acadêmico de discussão e
propagação do novo campo de conhecimento, poderemos perceber um engajamento político e
social dos médicos da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em reformular, de maneira
profunda, o tratamento dos loucos naquela cidade. Assim como o corpo teórico, estas
proposições práticas da psiquiatria brasileira buscariam uma maior autonomia em relação a
outras instituições envolvidas com práticas de cunho médico ou asilar, como as ordens e
irmandades religiosas, sem, no entanto, se afastar da chancela e dos recursos do Estado
Imperial.
Recorramos a historia, e dela colheremos que o estudo da alienação mental foi por
muito tempo influenciado pelos prejuízos, e por isso era ela atribuída a causas
sobrenaturais. Assim, os antigos, não procurando definir nem estudar esta moléstia
com exatidão, davam como causa de sua existência o demônio, os espíritos animais
no cérebro, através dos quais a alma não podia sentir nem pensar com precisão.
(PEIXOTO, 1837 )
A construção e direção de uma casa de alienados influi muito para o bom êxito do
tratamento. Um estabelecimento deve ser feito fora das grandes povoações e cidades,
em um lugar plano e elevado, e disposto de modo que o ar possa renovar-se
facilmente. (PEIXOTO, 1837. P.30)
[...] operou-se uma grande reforma no tratamento dos alienados dessa cidade, devido
às enérgicas representações dos médicos, concernentes à terrível condição destes
doentes no hospital da Misericórdia e seu abandono nas cidades, no meio da
população sadia, sem serem detidos ou submetidos a um tratamento qualquer.
(SIGAUD, 2008. P250)
Em primeiro lugar, deve ser comentado o fato de que a instituição permaneceria sob a
tutela da Santa Casa de Misericórdia, respondendo desta maneira, ainda a ditames do mesmo
dogmatismo católico criticado ao longo de toda a metade do século XIX pela gestão de um
espaço não específico de tratamento. Recursos deveriam ser buscados e justificados junto a
um provedor leigo da Santa Casa, bem como caberia a este a nomeação dos médicos
responsáveis pela condução do Hospício, como fica explícito no decreto de fundação:
Esta submissão, sob a interpretação de Juliano Moreira em seu texto informativo, teria
como resultado a relativa escassez de mão-de-obra específica dos laboratórios e enfermarias
do Hospício. Segundo o médico, a inexistência de uma cadeira para estudo de psiquiatria na
faculdade de medicina, criada apenas na década de 1880, bem como de cursos de enfermagem
no Rio de Janeiro, também contribuiria para que predominasse naquela instituição a
concentração de responsabilidades sobre médicos generalistas e irmãs de caridade para
atender aos serviços da administração interna dos doentes e do próprio Hospício (MOREIRA,
1905).
35
Outra consideração diz respeito ao fato de que, até a década de 1870, o Hospício
receberia todos os alienados que eram remetidos pelas autoridades públicas, desde indigentes
internados sob a solicitação da Polícia da Corte, pacientes de outras províncias e até militares
em retorno da Guerra do Paraguai. Tal condição levaria o Hospício a um estado de
36
superlotação e, por isso, a admissão de enfermos naquele espaço se tornaria cada vez mais
restrita.
Aqui, mais uma vez a interpretação de Juliano Moreira se faz de forma a apresentar o
Hospício na Corte Imperial como um espaço desinteressado nas práticas de tratamento, sendo
relegado à assistência “dos favorecidos pela proteção dos poderosos ou os que podiam
pagar” (MOREIRA, 1905. P.74). A prática de desvio das internações provenientes das classes
desfavorecidas para espaços mais genéricos no acolhimento e tratamento da marginalidade
urbana, como prisões, casas de correção ou o Asilo de Mendicidade seria vista por Juliano
como uma demonstração de diferenciação do Estado no tratamento de classes. Assim fica
registrado na seguinte passagem:
Por meio dos documentos pudemos apreender, sobretudo, que o empenho dos
médicos e mesmo do provedor (que apoiava as reivindicações dos facultativos do
estabelecimento) se voltava para o intuito de tratar indivíduos acometidos por
distúrbios mentais. O que se contrapunha ao interesse de diversas famílias, senhores
de escravos, e setores do governo, que visavam utilizar o hospício como um depósito
de alienados incuráveis, tratados como indigentes. (EDLER; GONÇALVES, 2009)
É sob este conjunto de fatores que Morel evoca uma postura mais higiênica e
profilática sobre o tratamento da loucura. O isolamento enquanto ferramenta de controle sobre
a loucura era inviabilizado em prol de uma postura de disciplina e vigilância sobre os
costumes para combater as patologias em sua origem. Seria uma forma de combater as
38
perspectivas curativas de Pinel e Esquirol que até então haviam se mostrado falhas no intento
de combater a loucura, justamente pela manutenção de sua aplicação limitada ao espaço físico
do hospital psiquiátrico.
O prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza
de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente.
[...] Trata-se de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de
extrair o eterno do transitório. [...] A Modernidade é o transitório, o efêmero, o
39
Tais preceitos expostos por Baudelaire em muito contribuem para um olhar crítico
sobre a escrita de “Notícias sobre a evolução da Assistência a alienados no Brasil” de Juliano
Moreira. A expectativa de afirmação da medicina em um ambiente positivista9 republicano
torna a visão de Juliano Moreira simplista e mesmo equivocada em certos momentos. Neste
sentido, a sua importância como editor sugerida no princípio deste capítulo supera a de
médico, uma vez que a produção de um enunciado foi responsável em determinados
momentos pela disseminação de um discurso particular sobre a psiquiatria no século XIX. Em
dados momentos atua de forma reducionista, relegando o corpo teórico desenvolvido pela
psiquiatria naquele momento a alguns poucos indivíduos interessados e dedicados, contudo
carentes de conhecimento, e em outros como um adversário político de fato, ao associar o
insucesso da prática psiquiátrica ao tratamento secundário dado por um Estado Imperial
marcado pelo misticismo e pela corrupção.
Juliano Moreira deve ser descrito pelas suas contribuições ao ambiente psiquiátrico e
mesmo científico brasileiro. Contudo, deve-se ter cuidado ao descrever suas rupturas com o
que se produziu no século XIX no Brasil, evitando a ignorância daquilo que aproveitou e
mesmo reproduziu em seu discurso.
1.5 Conclusão
9
Considerações sobre o positivismo e mesmo sobre a direção do Estado Republicano no Brasil a partir de sua
proclamação serão apresentadas no capítulo 3.
40
Resta, portanto, observar como Juliano Moreira atuará neste quadro institucional. Que
tipo de modificações aplicará no tratamento psiquiátrico a partir do advento da República. E
de que forma alcançará o reconhecimento enquanto responsável pela superação do alienismo e
consolidação da medicina psiquiátrica no Brasil.
41
2.1 Introdução
Um segundo capítulo de uma obra tem caráter de continuidade no que diz respeito ao
desenvolvimento de um estudo. Este não será diferente. Uma vez explicitadas as concepções
teóricas da psiquiatria no século XIX tanto no exterior quando em território nacional, pode-se
compreender aquilo que foi apreendido ou refutado pela retórica de Juliano Moreira. Assim,
este será o momento para se discutir as propostas institucionais do psiquiatra baiano, e de seus
colegas, partícipes neste tratamento, na passagem do século XIX para o XX.
Uma vez que trata de discursos, ideias, críticas e concepções, o teor deste capítulo é
descritivo e utiliza artigos de periódicos, discursos e relatórios escritos e publicados pelo
próprio Juliano Moreira, de forma a privilegiar sua ótica e os termos escolhidos por ele.
Embora a produção de Juliano tenha sido vasta, bem como sua atuação política, dei
preferência a artigos publicados entre 1903 e 1908. Neste período em que este ainda retornava
de seus estudos no exterior, Moreira se consolidava no espaço acadêmico nacional e
internacional como referência, compondo e por vezes presidindo sociedades intelectuais de
renome, além de ser este o momento em que assumiria cargos de gestão importantes como a
direção do Hospício Nacional de Alienados.
A crítica que buscarei aqui, tende a dissociar em parte a atuação de Juliano Moreira da
noção apresentada por Vera Portocarrero em sua obra de referência “Arquivos da Loucura”10,
quando aponta uma descontinuidade histórica da psiquiatria a partir do surgimento deste
expoente no cenário científico brasileiro. Como será demonstrado, as perspectivas organicistas
de Juliano Moreira, embora buscassem novas matrizes de inspiração alemã, assumiam
perspectivas continuístas no que diz respeito ao organicismo apresentado por Morel. Também
perpassa por este as críticas ao Hospício como instituição única de referência para o
tratamento de alienados em sua totalidade. E, finalmente, o fato de que é atribuída ao
psiquiatra a apresentação de uma perspectiva curativa da medicina psiquiátrica embasada por
10
PORTOCARRERO, V. M. Arquivos da Loucura – Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da
psiquiatria. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2002.
42
critérios científicos positivistas do final do século XIX, quando sabe-se que, apesar do
discurso contrário do próprio médico baiano, a cura teria sido sempre uma ambição dos
médicos do Hospício Pedro II, no período imperial.
É preciso demarcar que tais perspectivas apresentadas aqui não retiram de Juliano
Moreira sua relevância no cenário psiquiátrico brasileiro, nem ao menos seu destaque na
prática das ciências de uma forma geral. O objetivo aqui é problematizar uma noção que o
apresenta como um deslocado, uma mente virtuosa, elucidativa e mesmo “clarividente” no
cenário médico brasileiro. Juliano defendeu posições importantes, atravessou barreiras e
alcançou dimensões institucionais de renome, isto por que pertenceu a um cenário favorável a
tais tendências naquele final de século XIX e início do XX e pela possibilidade de
aproveitamento de perspectivas já instituídas.
Frente a este panorama, que compreende o louco ainda como um alienado, ou seja,
estranho, alheio à ordem vigente, a teoria psiquiátrica no período republicano busca
renovação, embasada em uma postura voltada para a classificação das enfermidades mentais e
43
para o estudo das origens orgânicas de tais doenças. O psiquiatra baiano Juliano Moreira
surgirá neste contexto, liderando tais propostas e pregando uma abordagem evolucionista11
sobre o estudo das anormalidades e dos comportamentos desviantes, em contraposição às
correntes atávicas e racistas da medicina brasileira. Trato aqui de conferir historicidade a esta
etapa do desenvolvimento deste saber no Brasil, voltado para suas aplicações científicas,
institucionalização acadêmica e a consequente consolidação naquele princípio de regime
republicano12.
Uma vez adquirido o seu diploma na Faculdade de Medicina da Bahia, Juliano Moreira
não se mostraria restrito ao convívio e aos estudos daquela localidade, construindo uma rede
intelectual muito mais abrangente. Seu trânsito por universidades europeias, a construção de
relações com professores de cadeiras diversas em outros países e a leitura de periódicos
estrangeiros revela na trajetória do médico um interesse em alinhar os conhecimentos
brasileiros com os estrangeiros em relação às descobertas clínicas. Entre os diversos estudos
do campo da medicina, pode se destacar a aproximação com a psiquiatria, que se dá através do
prosseguimento dos trabalhos do professor alemão Emil Kraepelin. A exaltação a este aparece
nas próprias palavras de Juliano Moreira, como uma percepção de que o Brasil se encontrava
em atraso em relação às demais nações:
Demais a adoção de suas ideias por uma bela plêiade de psiquiatras franceses,
ingleses, americanos, italianos, etc. demonstram que não somente para o Brasil foi
inventada a notoriedade de Kraepelin, como malignamente já foi assoalhado.
(MOREIRA; PEIXOTO, 1905b. P.205)
11 Cabe ressaltar que o termo evolução é utilizado pelo próprio psiquiatra em seus textos, como uma forma de
defender o estudo da loucura a partir da observação da doença em curso, e não do interesse em defini-la a partir
de uma possível origem hereditária, ou relacioná-la imediatamente a alguma particularidade familiar, hereditária.
12 Embora o contexto político seja extremamente relevante para estas discussões, a relação entre a República e a
ascensão de Juliano Moreira no cenário científico brasileiro será apenas tangenciada aqui, e aprofundada no
terceiro capítulo deste trabalho.
44
Juliano defende então uma assimilação das ferramentas Kraepelianas para o estudo da
psiquiatria. Contudo, percebe-se na última frase do trecho citado a tentativa de equilibrar as
proposições teóricas do alienismo europeu e brasileiro. Adotar a matriz alemã não deveria
significar apenas uma transcrição dos valores europeus em uma espécie de cartilha
psiquiátrica no Brasil. Juliano não abriria mão da autonomia brasileira para lidar com suas
próprias condições, e desenvolver seus próprios estudos, contudo, sempre sobre um único
embasamento científico, que seria o estimulado por Kraepelin. Isto fica mais uma vez claro
quando determina:
[...] analisa ele as bases sobre as quais tem sido estabelecidas as classificações de
moléstias mentais: a anatomia patológica, as causas e os signais clínicos; mostra a
insuficiência destas bases tomadas isoladamente e conclui que somente o quadro de
conjunto dos casos clínicos seguidos em sua evolução do começo ao fim da moléstia
pode fornecer elementos necessários a seu agrupamento com os fatos análogos.
(MOREIRA; PEIXOTO, 1905b. p.205)
É neste sentido que Juliano Moreira estabelece a noção de doença mental como uma
doença corpórea, tal como as demais enfermidades estudadas pela medicina clínica brasileira.
Traçando este paralelo, seria possível promover diversas inferências e analogias entre ambos
os campos. Numa delas, afirmava que
Não há muito tempo todas doenças as eram hereditárias: para tomar só uma delas, a
tuberculose. [...] agora, Berend demonstrou-o, filhos de hecticos [sic] até, ninguém
traz originariamente a semente de Koch e só mais tarde, nós todos, na vida, vamos
ficando mais ou menos tuberculosos. (MOREIRA; PEIXOTO, 1905c. P.7-8)
Estabelecer contato entre doenças tratadas pela medicina clínica, como a tuberculose, e
pela psiquiatria, como a sífilis ou a paranoia, que ainda viriam a ser classificadas, amparava a
recém-surgida ideia de enfermidade mental numa matriz teórica em ascensão acadêmica e
mesmo cultural13, como a medicina laboratorial representada pela descoberta de Richard
Koch, citada no trecho. A utilização deste padrão de causalidade a respeito das doenças
mentais seria mais uma marca de Kraepelin, cuja obra mais conhecida, o Compêndio de
Psiquiatria (1883), tratava para além das noções de classificação de doenças também da
adoção de modelos teóricos em evidência como se expõe na passagem a seguir:
13
Como apresenta Nicolau Sevcenko em seu texto introdutório d´A História da Vida Privada no Brasil Vol.3, os
sucessos da farmacologia, bem como as demais inovações tecnológicas da segunda metade do século XIX na
Europa, fazem parte de um contexto no qual os europeus passam a conceber o alcance da modernidade e do
progresso, passando a definir seu status de civilização, em um período demarcado como a Bélle Epoque. Cf:
SEVCENKO, Nicolau. “O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso” In: NOVAIS,
Fernando. História da Vida Privada no Brasil – Vol. 3. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998.
46
O que este novo olhar da psiquiatria estruturava, portanto, era um pensamento crítico
não relacionado às possíveis consequências da miscigenação do povo brasileiro, mas voltado
para a solução de uma realidade urbana profundamente marcada por uma série de
esgotamentos condicionantes a um processo de degeneração. Traria exemplos, como o mental,
devido ao excesso de trabalho, o venéreo, ocasionado pela promiscuidade e pelas perversões
sexuais e, finalmente, o fisiológico, associado aos hábitos intoxicantes como o alcoolismo e o
“cocainismo” (PORTOCARRERO, 2002). Neste sentido, quando justificava a maior
incidência de desvio mental na população negra no Brasil, Juliano Moreira atribuía
14
Tal colocação do termo desigualdade diz respeito a uma proposta apresentada por Lilian Moritz Schwarcz em
“O Espectáculo das Raças”, no qual discorre sobre a diferença, um termo utilizado para ambientar a crença na
inferioridade racial dos negros e mestiços, e sobre a desigualdade, termo que diz respeito às diferenças de classe
e acesso aos direitos sociais. Cf: SCHWARCZ, L.M. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras: 1993.
47
responsabilidade à forma como aquela etnia foi integrada ao território brasileiro. Assim, o
principal agente responsável pela exposição daquela população à hábitos degenerantes seria a
própria colonização portuguesa, quando
[...] ora se descrevem doenças diversas com o mesmo nome, ora enfermidades
idênticas com outros nomes, ora finalmente, algumas designações qualificativas
precisam espécies mórbidas que se não podem conter dentro do mesmo gênero. É
um verdadeiro estado de Babel ou confusão psiquiátrica em que a gente se arrisca,
no fim, a não sair à luz com uma ideia definida. (MOREIRA; PEIXOTO, 1905c.
p.05)
enumerando-as em: psicose infectuosa, psicose por esgotamento, psicose tireogena, demência
precoce, paralisia geral, psicoses por lesões no cérebro e psicoses de involução.
O primeiro caso, a psicose infectuosa poderia ser associada à perturbações gerais do
organismo, e manifestadas através de delírios febris, delírios infectuosos e estados de
enfraquecimento. Já a psicose por esgotamento, seria descrita a partir do gasto excessivo ou
restauração insuficiente dos elementos nervosos a partir de moléstias agudas ou hemorragias
abundantes, que levariam a uma perturbação intelectual profunda, à dificuldade na
coordenação das ideias e na faculdade de pensar. Descrições mais simplistas seriam
apresentadas para as psicoses tireogenas, que se dariam devido à lesão no “corpo thyroide”,
para a demência precoce, como um estado de enfraquecimento psíquico, para a paralisia geral,
para as psicoses nas lesões do cérebro, associadas a doenças cerebrais degenerativas como a
esclerose, a sífilis e a corea de Huntington e finalmente para as psicoses de involução, como
perturbações regressivas, que levariam à senilidade, como a melancolia, o delírio pré-senil e a
demência senil (MOREIRA; PEIXOTO, 1905b).
[...] olhando-se para a vida com uma certa acuidade, descobrem-se destes indivíduos
o que se poderia chamar de temperamentos ou caracteres paranoicos; não são
predispostos porque a anomalia já existe, falta apenas a irrupção. (MOREIRA;
PEIXOTO, 1905c. p.10)
E para aqueles cuja atuação pode levar a um agravamento das condições mentais, tais
como os usuários do álcool, da cocaína ou da morfina, isto é, as chamadas “personalidades
psicopáticas”, uma nova terminologia seria utilizada: a “anormalidade”. A intenção aqui seria
tornar estes indivíduos doentes, e não apenas sujeitos ao desenvolvimento da doença, como já
dito, construindo, dessa forma, um arcabouço teórico capaz de justificar a intervenção sobre
atitudes consideradas indesejáveis pela medicina social do final do XIX e princípio do século
XX.
51
É fato que, já no princípio do século XX, Juliano pode ser identificado como uma
verdadeira personalidade do campo científico, uma vez que seria nomeado Diretor do
Hospício Nacional de Alienados em 1903, participaria da fundação da Sociedade Brasileira de
Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins; e representaria o país em diversos congressos
médicos no exterior, como em Lisboa (1906), Amsterdã (1907), Milão (1907) e Londres
(1913). Contudo, o psiquiatra baiano sofria ainda com questionamentos em relação a suas
proposições raciais. Tais questionamentos tinham origem na Faculdade de Medicina da Bahia
e eram personificados pelo já citado no capítulo anterior Dr. Raimundo Nina Rodrigues.
Para melhor fundamentar a participação dos médicos sob esta atmosfera, partiria então
do Congresso Nacional a promulgação da primeira Lei Federal de Assistência a Alienados, o
Decreto 1.132, de 22/12/1903. Elaborada sob o endosso do pensamento de Juliano Moreira, tal
legislação submetia todas as instituições de alienados no Brasil, públicas e particulares, ao
Ministério da Justiça e Negócios Interiores, e tornava a loucura um caso de assistência médica
com finalidades de segurança pública (ENGEL, 2001).
15
O lamarckismo aqui deve ser relacionado à teoria de que as heranças deixadas aos sucessores de uma linhagem
no que diz respeito às características do corpo podem ser adquiridas ao longo da vida. Neste contexto,
significaria afirmar que caso a pobreza ou a doença fossem alvo de assistência, educação e cultura a população
brasileira vivenciaria um processo de regeneração. Cf: STEPAN, N. A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação
na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005.
16
Naquele princípio do século XX, a ciência procurava buscar as relações entre o estado de sanidade mental de
determinados indivíduos e sua propensão ou não à criminalidade. Casos clássicos de estudo das relações entre a
loucura e o crime ficariam eternizados em processos como o de Custódio Alves Ferrão. Cf: CARRARA, S.
Crime e loucura: o surgimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro/ São Paulo:
Eduerj / Eduesp, 1998.
54
Tal lei, em princípio, poderia ser vista como a consolidação da visão de dois
personagens nos espaços urbanos. Se antes haveria algum espaço para a imagem irreverente,
incomum e até mesmo de escárnio, quando se refere às peculiaridades cometidas por
alienados nas ruas do Rio de Janeiro, agora, o louco era apresentado como um problema, por
vezes perigoso. Além disso, a mesma lei faria do psiquiatra uma autoridade sobre qualquer
caractere do comportamento desviante, uma vez que era de sua responsabilidade a análise
sobre eventos que fugissem a normalidade e a determinação do destino de indivíduos que
perturbassem a “ordem pública ou a segurança das pessoas” e que “cometessem desatinos em
público” (ENGEL, 2001).
Esta lei é de fato um marco para as instituições médicas no Brasil, inicialmente porque
definia condições bastante favoráveis para a sequestração do louco em relação ao convívio
social e sua devida internação para tratamento em asilos, contrariando os princípios básicos de
liberdades individuais definidos e acordados em Constituição pela República. Contudo, o que
se tornaria mais relevante no texto seria a abertura dada ao médico psiquiatra, para que este
definisse e julgasse o que de fato seriam os tais “desatinos” capazes de pôr em risco a
“segurança das pessoas”. Ansioso pelo combate a tudo aquilo que impedisse a sociedade
brasileira de se equiparar aos moldes de civilização europeus, o Estado republicano conferia à
prática psiquiátrica, poderes arbitrários para identificar o que de fato seria a loucura, e resolvê-
la para a melhoria do convívio social nas cidades (ENGEL, 2001).
A percepção sobre esta arbitrariedade do período não ficaria imune à crítica social.
Mesmo que fora daquele contexto, em tratamento a períodos anteriores, pode ser citada aqui a
obra “O Alienista”, de Machado de Assis, na qual o mesmo descreveria uma autoridade
psiquiátrica, Simão Bacamarte, e a fundação de uma “casa de loucos” na cidade de Itaguaí,
onde seriam reclusos todos os que fossem julgados loucos pelo médico. O desenvolvimento da
trama teria como consequência o avanço da ciência, personificada por Bacamarte, sobre toda a
população da cidade, até que não se soubesse mais diferenciar a loucura do estado de
normalidade, ou saúde mental. Esta tendência faz com que, em determinados momentos da
trama, o psiquiatra optasse por internar um indivíduo vaidoso, ou uma supersticiosa, chegando
até mesmo à conclusão de que todos deveriam ser soltos, sendo apenas ele, o próprio Simão
Bacamarte, o único a ser isolado e protegido da anormalidade e da loucura, comuns a todos os
habitantes daquela cidade (ASSIS, 1882).
55
O pano de fundo para tais discussões seria o embate entre a perspectiva de existência
de loucos criminosos, ou de criminosos loucos. O despertar para tal questão se dava através do
caso de um estudante chamado Custodio Alves Ferrão, jovem de 21 anos que seria preso pelo
assassinato de um funcionário público de idade avançada e sua empregada, em cenário de
“loucura e sangue” segundo a imprensa da época. Então frequentadores de sua casa,
conhecidos de sua irmã e, segundo esta, alvos da perseguição do próprio Custodio, e não o
contrário, suas mortes fariam surgir a contraposição entre um assassinato cometido em um
momento de monomania ou por um criminoso responsável por seus atos. Tal momento seria
determinante por contrapor ambos os campos: as ciências médica e jurídica em um espaço de
julgamento (CARRARA, 1997).
17
Mais tarde, a fuga de Custódio do Hospício, que então colocava em prática a política de uma assistência sem
grades provocaria uma grande exposição do então diretor responsável Henrique Teixeira Brandão, que por sua
vez apontaria a irresponsabilidade em colocar um criminoso nato junto aos doentes mentais em recuperação. Tais
discussões que levariam à criação do Manicômio Judiciário, não pertinentes aqui, foram alvo de análise na obra
56
E ainda conclui:
Acho bem preferível deixar ao paciente o direito de recorrer ao juiz dos tribunais
contra uma possível ou suposta sequestração [arbitrária] do que o deixar sequestrado
com os sacramentos da autorização do juiz. (MOREIRA, 1907. P.231)
CARRARA, S. Crime e loucura: o surgimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro/
São Paulo: Eduerj / Eduesp, 1998.
57
Os doentes que voluntariamente queiram ser tratados entram naquela categoria dos
que devem ir para as clínicas psiquiátricas, para os hospitais psicopáticos urbanos,
ou para os serviços especiais nos hospitais gerais, de onde sairão curados sem terem
passado pelos trâmites de uma internação, como a entendem os juristas. Caso se
apure que ele é perigoso à segurança das pessoas, a própria ou alheia, é indicada a
sua remoção para um manicômio. (MOREIRA, 1907. P.225)
18
A instituição só viria a ser chamada de Hospital Nacional de Alienados a partir de 1911.
58
Antônio Dias de Barros, cuja administração seria envolvida em uma série de escândalos, tais
como maus tratos a pacientes, promiscuidade entre crianças e adultos e má conservação do
ambiente. (VENANCIO; CARVALHAL, 2005) A presença de Juliano deveria trazer ordem
ao funcionamento, especificidade ao quadro de atendimento e, em especial, legitimidade à
aplicação da psiquiatria enquanto campo científico no Brasil.
Elevado que foi à categoria de mero doente do cérebro é evidente que a casa de
Orates se humanizou paralelamente, transformando-se pouco a pouco de prisão em
depósito e depois em hospital. (MOREIRA, 1908. p.374)
estes ainda não representassem a especificidade psiquiátrica por sua carência acadêmica até
1880 (EDLER; GONÇALVES, 2009).
Tal paralelo com a medicina clínica se faz também quando Juliano Moreira idealiza o
hospital urbano ideal para assistência imediata aos males de caráter psiquiátrico:
aspecto exterior dos caracteres opressores dos antigos hospícios e a organização interior faria
lembrar a moradia comum, uma sugestão de lar e de convívio em sociedade. Este seria o
chamado “asilo colônia”. Sobre a caracterização singular dos espaços de assistência, Juliano
afirmaria:
O que Juliano propunha a partir desta diversificação de estruturas era adequar a prática
de assistência aos doentes da psiquiatria ao arcabouço teórico que ele mesmo procurava
consolidar através de seu trabalho editorial com os periódicos Arquivos Brasileiros de
Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, e Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e
Medicina Legal. Se era reconhecido o preceito da doença sobre os loucos, deveria se buscar a
cura ou, ao menos, a definição e a exposição dos casos curáveis ou não curáveis.
Uma postura como esta, quando relacionada ao ambiente histórico na qual está
inserida, isto é, no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX, ganha significado
especial, uma vez que se reconheciam naquela cidade necessidades urgentes no combate à
insalubridade e às patologias sociais. Não é equívoco dizer que tais patologias seriam
fortemente condenadas pela filosofia moral, contudo sua apresentação seria ainda mais
ameaçadora quando associada à ação sobre o córtice cerebral que levaria ao cenário de
desenvolvimento de sintomas que traduziam perturbações do corpo e da mente (VENANCIO,
2004).
Sobre a considerada pior dentre elas, a sífilis, Juliano afirmava que esta enfermidade
poderia causar distúrbios psíquicos, lesões neurológicas e processo degenerativo tão graves
quanto o alcoolismo. Tanto uma quanto o outro, quando não encaradas como
potencializadores, eram vistos também como sintomas, e agrupados a outro mal bastante
controverso até então: a epilepsia. Sobre a visão destas doenças enquanto sintomas, Juliano
discorre:
Almejara eu, aliás, que já estivéssemos naquela fase social em que o mecanismo
dessa assistência tivesse atingido tal perfeição, que apenas necessitássemos cuidar do
problema, para mim de valia ainda maior, da profilaxia das doenças mentais.
(MOREIRA, 1908. P.373)
2.6 Conclusão
fomentar editorialmente novas teorias para a psiquiatria, Moreira pôde colocar em prática
propostas que não necessariamente eram novas, e mesmo exclusivas daquele psiquiatra
baiano.
3.1 Introdução
Para discorrer sobre o impacto das transformações sobre aqueles que foram de fato
alvos das reformas, é importante promover uma leitura do que considero ser um sentido
modernizador, bem como sua interação e aceitação junto àqueles que foram seus objetos.
Antes de alcançar o momento de aplicação de tais reformas, considero importante que se faça
aqui um estudo do amadurecimento de tal sentido modernizador, que se dá em conjunto com o
fortalecimento do movimento republicano no Brasil. Desta forma, a primeira tarefa que se faz
relevante aqui é a observação das estruturas políticas e culturais que se formavam na segunda
metade do século XIX e princípio do século XX, e que se consolidam na Primeira República.
Enquanto nas zonas pioneiras os fazendeiros introduzem nas fazendas métodos mais
aperfeiçoados, substituindo o escravo pelo trabalhador livre, os fazendeiros das
zonas mais antigas – atingidos pela decadência e ruína dos cafezais cuja
produtividade diminuía consideravelmente, apegavam-se a formas tradicionais de
produção e ao trabalho escravo. (COSTA, 1977. P.307).
Esta profunda modificação nas bases da economia brasileira teria ainda como
consequência uma dinamização da sociedade, verificada acima de tudo pela intensificação da
urbanização e do fortalecimento dos laços entre os setores produtivos monocultores e a
estrutura de abastecimento citadina. Formava-se então um indivíduo diferenciado, ativo
economicamente no campo, e esclarecido politicamente ao vivenciara difusão de ideias e a
troca de influências características da urbe. O resultado destas movimentações conflui para o
fortalecimento do movimento republicano, cristalizando uma proposta definida para o
combate e substituição da instituição monárquica no Brasil. (NEVES, 2003)
Em paralelo a este movimento liberal republicano e também associado aos valores das
esferas produtivas e da integração do país à modernidade estaria o projeto positivista, adotado
em larga escala pela jovem oficialidade do Exército. O positivismo no Brasil surgiria como
uma adequação à filosofia francesa de August Comte, cujo lema defenderia o “amor como
princípio, a ordem como base e o progresso como fim”, determinando a formação de
estruturas voltadas para a inserção brasileira no ideal de civilização organizado ao longo do
século XIX na Europa. Grosso modo, isto significava a ordenação da sociedade, promovida
sob a tutela dos militares formados pela Escola Militar da Praia Vermelha que, pelo estudo
nesta instituição, se tornavam privilegiados no acesso aos saberes necessários para a tutela do
país. Isto configuraria uma República centralizada, representante de seu povo, condutora para
um status quo de progresso social, político e cultural. (NEVES, 2003)
19
Sobre tais movimentos e tais campanhas ver: COSTA, Emilia Vioti da. “A Proclamação da República” In: Da
Monarquia à República – Momentos decisivos. São Paulo: Ed. Grijalbo, 1977.
70
construção de um referencial de organização política e econômica ideal aos olhos das nações
europeias do século XIX. As novas descobertas tecnológicas e científicas, e uma consequente
reformulação de hábitos e costumes da população, caracterizam o binômio civilização e
progresso, como um objetivo a ser atingido e estimulado, não só em território europeu ou
norte-americano, como também em âmbito mundial. Isto é, nesta nova leitura, a concepção de
progresso determinava um padrão de organização ideal para os povos, e este padrão era o de
uma economia capitalista industrial e de uma política liberal republicana. A crítica construída
então recai sobre aqueles, no caso, os países latino-americanos, ainda não inseridos nesta
ordem mundial, considerados carentes de um processo civilizatório. A perspectiva
eurocêntrica pressupõe que seriam reconhecidos não como diferentes em seus sistemas
culturais, e sim desiguais por não terem desenvolvido a mentalidade ideal pretendida a todos
pelo raciocínio dominante. (NEVES, 1998)
Podemos tomar ainda como um agravante a este contexto de crise monárquica, o abalo
provocado pela Lei Áurea à classe senhorial tradicionalmente escravocrata do Vale do Paraíba
Fluminense. A crise daqueles que se colocavam como importantes alicerces da política
imperial, próximos ideológica e geograficamente, fará com que esta perca vigor e estabilidade.
(COSTA, 1977)
20
Não é objetivo deste trabalho discutir a identidade nacional brasileira no século XIX, contudo, houve esforços
do Estado brasileiro ao longo daquele século no sentido de fortalecimento do nacionalismo, através da criação do
IHGB, dos Institutos Históricos nas províncias e dando suporte ao movimento romântico na constituição de um
ideário nacional para as elites. Cf: GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O
Instituto Histórico e Geográfico e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 1,
1988, p. 5-27.
21
Embora importante para o estudo da desestruturação do Estado Imperial, a caracterização da Guerra do
Paraguai, e mesmo a uma descrição da atuação do Exército brasileiro naquele conflito não serão abordadas aqui.
Para aprofundamento conferir DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
73
República: o 15 de Novembro. A ação militar, entretanto, como se pode supor, não seria
desvencilhada de participação civil.
É sob esta ótica que observamos os governos dos presidentes Deodoro da Fonseca
(1889 – 1891) e Floriano Peixoto (1891 – 1894), como um período de consolidação da
República no Brasil. Neste sentido, a aliança entre os interesses liberais republicanos e as
forças militares comandadas por Deodoro e Floriano seriam essenciais para promover a
superação de um momento inicial marcado por desequilíbrios econômicos e suas consequentes
contestações sociais.
O pacote fazendário elaborado por Rui Barbosa, que teria como resultado a crise
chamada de Encilhamento, é um exemplo, visto que consistia na emissão de moeda e crédito
voltado para a produção industrial, sem, contudo, atentar para o controle da especulação e dos
altos índices de inflação provocados pelas negociatas do novo regime. A política de caráter
artificialista em relação ao desenvolvimento de uma economia industrial logo provocaria
reações negativas, como as críticas e a oposição da burguesia cafeeira e mesmo greves de
trabalhadores urbanos. Além disso, marca o período também a eclosão de movimentos da
74
[...] mesmo sob a ditadura de Deodoro ou sob o férreo controle de Floriano, o jogo
dos interesses regionais foi mantido. Estes sempre se fizeram representar junto ao
Governo Central, detendo pastas importantes nos Ministérios e, enquanto a energia
republicana voltou-se contra setores (real ou supostamente) ligados à ordem
imperial-escravocrata, o democratismo agrário-regional dos grandes Estados não
teve por que opor-se à conduta militar. (CARDOSO, 2004. P.43).
Dessa forma, no plano estadual, eram construídas relações sociais alicerçadas “no
privilégio, no arbítrio, na lógica do favor, na inviolabilidade senhorial dos coronéis e nas
rígidas hierarquias assentadas sobre a propriedade, a violência e o medo” (NEVES, 2003.
P.15). Já no meio urbano, especificamente na cidade do Rio, o que se buscava era a
reprodução dos “modos de viver, os valores, as instituições, os códigos e as modas daquelas
que eram vistas como as nações progressistas e civilizadas” (NEVES, 2003. P.19). A
República se constituía a partir de um distanciamento da realidade do campo para com a
cidade.
22
Como já dito anteriormente, constituir-se-ia naquele momento uma definição para o termo urbano, ou
urbanidade, como uma qualidade ou característica relacionada à ideia de educação, cultura e polidez,
características ambicionadas pela direção política da época. Cf: AZEVEDO, Andre Nunes de. Entre o progresso
e a civilização: O Rio de Janeiro na grande reforma de 1903 a 1906 In: Da Monarquia à República:Um Estudo
dos Conceitos de Civilização e Progresso na Cidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906.( Tese de Doutorado
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2003)
76
manejassem a ordem e até mesmo o processo eleitoral. Em troca desta liderança institucional
tudo o que o poder federal exigia era o respaldo político, através dos votos em eleições
fraudadas ou manipuladas, para a manutenção do status quo de condutor do equilíbrio
republicano.
Como representação deste poder federal, a cidade do Rio de Janeiro enquanto capital
deveria operar não apenas como um centro irradiador de reflexão política e da implantação de
inovações administrativas agora republicanas, mas como um espaço de culto ao regime e à
modernização proposta por ele. Deveria representar tudo aquilo que se desejava assimilar
nesta passagem do século XIX para o XX: uma sociedade civilizada, disciplinada, ordenada
em direção ao tão discutido e idealizado progresso. A cidade se estabeleceria enquanto uma
“Vitrine do Progresso” (NEVES; HEIZER, 1998), e tal qual uma vitrine, teria como
funcionalidade única e exclusiva a representação de um produto desenvolvido a uma distância
considerável dali, produto este, diga-se de passagem, a própria política republicana.
No princípio do século XX, a descrição feita pelos higienistas sobre a cidade contava
com a caracterização de espaços físicos compostos por vielas estreitas, que dificultavam a
circulação de pessoas e veículos, morros que cercavam a cidade impedindo a circulação de ar,
além da predominância da precariedade nas moradias, os cortiços. Nestes a grande maioria de
sua população vivia em condições miseráveis, por partilharem cômodos limitadíssimos,
condições insalubres e estarem expostos à dita promiscuidade de seus habitantes. Estas
condições do espaço de convívio eram apontadas como os principais problemas para a
reprodução de uma civilização aos moldes europeus no Rio de Janeiro, juntamente com o
caráter fortemente miscigenado de seu povo. A presença do elemento estrangeiro aqui se fazia
77
[...] num momento de intensa demanda por capitais, técnicos e imigrantes europeus,
a cidade deveria operar como um atrativo para os estrangeiros. Mas, ao contrário, ela
era acometida por uma série de epidemias, que assolavam e vitimavam sua
população e, eram ainda mais vorazes para com os estrangeiros, os quais não
dispunham dos anticorpos longamente desenvolvidos pela população local. [...] Por
isso a cidade tinha, desde o século XIX, a indesejável reputação de túmulo do
estrangeiro. (SEVCENKO, 1998. P.18).
Uma vez percebido que a simples abertura política e cultural brasileira em relação às
influências estrangeiras não seria suficiente para “regenerar” um povo e constituir em
definitivo o modelo de civilização baseado no progresso e na modernidade, o discurso das
elites se volta para a reforma urbana. Ao lançar seu olhar sobre a intensa pobreza
característica das ruas da cidade-capital, a imensa quantidade de cortiços amontoados no
centro da cidade, a ausência de saneamento, de potencial de crescimento e de organização
para a superação daquelas estruturas distantes do padrão civilizatório que se buscava, o que os
dirigentes na nova República concluiriam era a necessidade de reforma. O discurso
reformador não surgia a partir daí como opção de desenvolvimento tomada pela sociedade,
mas como uma imposição do progresso a partir dos entendimentos técnicos e científicos do
novo regime. E essa imposição se fazia em favor da superação de tudo aquilo que se
reconhecia como arcaico, decrépito, e, na prática, um resgate ao atraso monárquico e a tudo o
que ele representava (RODRIGUES apud AZEVEDO, 2002).
[...] como era de se esperar, se voltaram contra os casarões da área central, que
congregavam o grosso da população pobre. Porque eles cerceavam o acesso ao porto,
78
Como já pode ser percebido, tais reformas assumiam um caráter interventor sobre o
espaço urbano e seus habitantes. Este caráter se torna um fomentador no que diz respeito às
revoltas populares. Estas revoltas, caracterizadas pela reação contrária à chamada vacina
obrigatória, ganham sentido quando inseridas neste contexto maior. Dessa forma, sejam
voltados contra a intervenção governamental sobre a propriedade em um avanço desrespeitoso
do público sobre o privado, ou manifestações contra a violação da intimidade corpórea, os
79
movimentos populares reagiam principalmente revelando sua hostilidade ao novo regime que
as impunha (CARVALHO, 1984). Excluídos de qualquer forma de participação na construção
republicana, a marginalidade carioca, composta pelos malandros, ambulantes e prostitutas se
revoltava contra a imposição de valores a que eram completamente indiferentes, senão
contrários.23
23 Há outras interpretações para a Revolta da Vacina, como a apresentada por Sidney Chalhoub em “Cidade
Febril”, onde relaciona a obrigatoriedade da vacina contra a varíola a uma imposição contra as práticas religiosas
de origem africana, que a entendiam como ritual semelhante ao da variolização como a manifestação de
Obaluaie, a entidade da doença. Cf: CHALHOUB, Sidney. “Cortiços” In: Cidade Febril – Cortiços e Epidemias
na Corte Imperial. São Paulo: Cia. Das Letras, 1996.
80
24
Considerações sobre as mazelas da industrialização no século XIX já foram comentadas nesta dissertação no
primeiro capítulo, contudo é importante ressaltar que, mesmo o progresso das nações europeias foi acompanhado
do consequências como o esgotamento físico e mental, exploração do trabalho feminino e infantil, proliferação
dos vícios e da criminalidade. Cf: STEPAN, N. L. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
81
que toma força a figura do médico, capaz de superar o individualismo das consultas ou a
restrição dos muros dos hospitais para tratar a comunidade. Este médico, higienista, pensará
não só no combate às bactérias e aos grandes surtos epidêmicos, mas também às reconhecidas
e denominadas “deficiências” gerais da população. Antecipar estas deficiências, educar maus
hábitos e evitar “perversões” seria essencial no estabelecimento de uma sociedade civilizada.
(SCHWARCZ, 1993)
É baseado nesta linha de raciocínio que se promove a exclusão das classes pobres,
associadas ao perigo por sua evidente exposição à vícios tais como, a promiscuidade, o
alcoolismo, entre outras intoxicações. Sobre estas classes, seus comportamentos e seus hábitos
de moradia se debruçará a política nos primeiros anos da República no Brasil. Vistos como
nocivos à sociedade pelo acúmulo de pobreza e degradação, os cortiços serão demolidos pelas
intervenções reformistas, que, além disso, vão impor políticas sanitárias contra epidemias, e,
no limite sobre os chamados “maus costumes” da população (CHALHOUB, 1996).
[...] a ideia de que uma cidade pode ser administrada, isto é, gerida de acordo com
critérios unicamente técnicos ou científicos: trata-se da crença de que haveria uma
racionalidade extrínseca às desigualdades sociais urbanas, e que deveria nortear a
condução não-política, competente, eficiente, das políticas públicas. (CHALHOUB,
1996. P.20)
Se a dissolução dos costumes que todos anunciam existente, há antes dela houve a
dissolução do sentimento, do imarcescível sentimento de solidariedade entre os
homens. (BARRETO apud SEVCENKO, 1985. P.56)
25
A curiosidade aqui se dá pela inversão das significações dos conceitos na cidade do Rio de Janeiro neste
período de reformas urbanas. Enquanto o sentido da Civilização seria o de finalidade do progresso material de
uma sociedade, aqui a mesma Civilização se apresenta como meio para possibilitar tal progresso. Cf:
AZEVEDO, André Nunes de. Entre o progresso e a civilização: O Rio de Janeiro na grande reforma de 1903 a
1906 In: Da Monarquia à República:Um Estudo dos Conceitos de Civilização e Progresso na Cidade do Rio de
Janeiro entre 1868 e 1906. Tese de Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2003.
84
Onde vai perdida nossa fama de povo preguiçoso, amolentado pelo clima e pela
educação, incapaz de longo esforço e tenaz trabalho? [...] já é tempo de se recolher
ao gavetão onde se guardam os chavões inúteis, essa lenda tola da nossa incurável
preguiça. (BILAC apud SEVCENKO, 1985. P 45)
Percebe-se na fala do deputado a referência aos problemas trazidos pela inserção dos
escravos na sociedade a partir de sua libertação. Contudo, a abordagem se assemelha à de
Juliano Moreira quando percebe não na raça, ou na constituição hereditária, os problemas de
adaptação em uma sociedade civilizada. Segundo o referido discurso político, bem como
também para a psiquiatria do princípio do século XX, a resolução dos vícios e a regeneração
da cidade caminhavam lado a lado com a assistência preventiva, isto é, com a educação
higiênica e a intervenção sobre as anormalidades praticando a internação dos “doentes” em
espaço adequado.
A postura de Juliano Moreira, no entanto, chama atenção não apenas por sua afinidade
junto ao pensamento liberal capitalista defendido pelo Estado. Há também, nas palavras do
psiquiatra, o reconhecimento da ciência como resposta para todas as questões nacionais.
Através do estudo do meio, da sociedade e dos indivíduos haveria de se encontrar respostas
86
para todas as questões que atravancavam o progresso da nação. Tal mentalidade se engloba no
conjunto de perspectivas atribuídas por Luiz Otávio Ferreira ao positivismo, quando em seu
trabalho afirma:
Não perderei tempo em [...] insistir sobre os deveres do Estado para com os
[insanos]. Em países civilizados não se perdem mais palavras para demonstrar que a
coletividade tem obrigação de amparar com a sua assistência efetiva aqueles, cujo
cérebro baqueou durante a concurrência [sic] vital. [...] No Brasil há ainda tanto a
fazer relativamente à assistência a alienados que bem me parecer não ser ainda
completa a compenetração pública daqueles deveres elementares aos quais acabo de
referir-me. (MOREIRA, 1908. P.374)
Entretanto, assistência direta aos enfermos e aos seus devaneios não seria a única
preocupação de Juliano como figura central da psiquiatria nas primeiras décadas do século
XX. Pode ser reconhecida neste médico também sua atuação como porta-voz dos novos
conhecimentos e novas produções científicas, através de sua dedicação editorial a diversos
periódicos, que tratavam do tema da medicina psiquiátrica e a higiene mental. A importância
da divulgação dos saberes produzidos por brasileiros é defendida pelo psiquiatra como tão
88
relevante quanto a aplicação do conhecimento, uma vez que equiparava o Brasil aos países
mais maduros no que diz respeito à produção intelectual. Mais importante do que isso,
mostrava a capacidade brasileira aos círculos acadêmicos de tais países. Tal intento ficaria
evidente na seguinte passagem:
Como expoente de nosso progresso nos domínios das ciências médicas temos ainda
o seguinte: excelentes associações que animam a produção científica: publicam-se no
país revistas que rivalizam com as da Europa e Norte América não somente pelo lado
tipográfico como ainda pelo valor das monografias nelas contidas; em terceiro lugar
os trabalhos nacionais já são largamente citados nos trabalhos e revistas europeias, e,
o que é mais, os grandes chefes do movimento científico no velho mundo já se
dignam honrar aos trabalhadores brasileiros, solicitando-lhes a colaboração
remunerada em seus livros e revistas. (MOREIRA, 1912. P.47)
Tais problemáticas não seriam alteradas até o acolhimento republicano aos princípios
da psiquiatria de Juliano Moreira. É durante o estabelecimento deste regime de governo, em
sua fase de consolidação na passagem do século XIX para o XX, que se deu a criação das
instituições utilizadas por Moreira na normatização da sociedade. A reorganização da
Assistência a Alienados, a Lei Federal de Assistência a Alienados e a sua nomeação para a
Direção do Hospício Nacional, todas em 1903, demarcam a importância dada pelo Estado
republicano às propostas e ao trabalho de Juliano Moreira no controle das ditas
anormalidades.
Cabe ressaltar aqui a importância do intermediário das relações entre Rodrigues Alves
e Juliano Moreira, o Ministro da Justiça e Negócios Interiores, e também baiano, José Joaquim
Seabra, amigo pessoal do psiquiatra. Sobre o político, Moreira assume que
Sobre estas relações entre a administração e a ciência, não pode ser percebida nenhuma
espécie de sobreposição. Transparece, no entanto, uma sinergia entre Estado e ciência, na qual
cabe ao primeiro legitimar a aplicação do conhecimento, enquanto a atribuição do segundo é
embasar teoricamente o processo de normalização e higienização da cidade do Rio de Janeiro.
Ambos – Estado e ciência – instrumentalizados pelo direcionamento intelectual liberal se
voltam para a mesma finalidade: a superação do atraso brasileiro e a busca da modernidade.
A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das generalizações, e as mais
infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro como nome arrevesado, assim os
russos, polacos, romaicos são para ela forçosamente cáftens: todo cidadão de cor há
de ser por força um malandro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só
transportáveis em carros blindados. (BARRETO apud CHALHOUB, 1996. p. 23)
Por este motivo, a psiquiatria de Juliano Moreira é tratada aqui não apenas como fruto
da dedicação ao estudo da conservação corpórea – mesmo que também o seja – mas sim como
demonstrações da legitimação de uma ideologia. Contribuindo para a adequação do
comportamento ao padrão liberal de modernidade, estimulando o esvaziamento nas ruas e
fortalecendo a lógica de relação doméstica, familiar, o discurso médico sobre a loucura
assumia, cada vez mais, o papel de ferramenta. Dessa forma, respaldar a psiquiatria enquanto
instituição responsável pelo comportamento público a validava como instrumento na
administração dos costumes, revelando a olhares mais atentos uma afinidade entre seus
postulados e o direcionamento cultural e político do Estado. (MACHADO, 1978)
91
[...] uma ciência política, já que respondeu a um problema de governo. Ela permitiu
administrar a loucura. Mas deslocou o impacto diretamente político do problema
para o qual propunha solução transformando-o em questão puramente técnica.
(CASTEL, 1978. P.19).
Após este conjunto de afirmações, reservo um espaço nesta dissertação para apresentar
a crítica ao conceito de medicalização, isto é, às análises orientadas por estudos foucaultianos
no Brasil que enxergam nos médicos do princípio do século XX uma espécie de agentes do
Estado. Para tal corrente de pesquisadores, a psiquiatria, como campo da medicina, é
associada a uma ferramenta de controle social de caráter inquestionável frente às necessidades
de intervenção sobre os costumes para o estabelecimento da ordem (VENANCIO; CASSILIA,
2010).
Tais visões sobre a atuação médica no Brasil, tanto a medicalização quanto a sua
negação por Edmundo Campos Coelho, podem ser encaradas como extremos de um exercício
de análise do contexto. Ao estudar a medicina na passagem do século XIX para o XX, e seu
papel político e social, deve ser priorizado o rigor sobre as fontes, bem como deve ser levado
em consideração o reconhecimento da dedicação profissional dos indivíduos estudados. A
visão defendida – e praticada – nesta dissertação buscou atender a ambos os aspectos, de
forma a buscar Juliano Moreira sempre como um referencial na edição de textos e no
apontamento de saberes. Suas palavras nem sempre foram tomadas como verdade, mas como
opinião defendida em meio a um círculo de intelectuais influenciados pelo mesmo momento
histórico, por valores semelhantes e por objetivos compartilhados pela categoria de progresso,
em busca dos parâmetros de civilização e modernidade. Tomar a psiquiatria como um campo
de saber, ao invés de uma simples ferramenta faz parte, neste sentido, de um exercício
descritivo do historiador sobre seus objetos. Assim como tomar o psiquiatra enquanto um
profissional permite considerar não apenas sua utilidade em determinado momento, como suas
ambições em se fazer relevante, ou mesmo necessário em um contexto de afirmação das
ciências aplicadas à sociedade. (HUERTAS, 2001)
[...] entrecruzar o interesse por uma história dos sintomas, das doutrinas e das teorias
psiquiátricas com o contexto sociopolítico, cultural e profissional do período [...]
[alem de] pensar a psiquiatria como racionalidade científica submetida a fatores
socioculturais de seu tempo e lugar, recebida e reelaborada ativamente pelos agentes
que dela se apropriam. (FACCHINETTI et al In: BENCHIMOL, 2010. P.531)
93
3.6 Conclusão
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora ao final de cada capítulo tenha pontuado as conclusões alcançadas para cada
etapa do estudo, fazem-se necessárias ponderações ao final do trabalho, que apresentem um
vínculo entre os capítulos e suas respectivas conclusões. O interesse é tomar um sentido de
análise mais amplo e retomar perspectivas do princípio do estudo e da escrita.
Ao longo desta dissertação procurei sempre me ater ao discurso de Juliano Moreira,
expresso através de seus artigos científicos e conferências em sociedades intelectuais. Desta
forma, o produto de Moreira foi utilizado como fonte para compreender suas atitudes, seus
interesses e seus valores. Por vezes, suas palavras reforçaram as perspectivas progressistas da
República. Da mesma forma, pronunciamentos sobre a importância da ciência psiquiátrica na
transformação do convívio da sociedade brasileira o identificaram como um positivista. E
finalmente, nos momentos em que destacou o próprio trabalho, e as modificações impostas
pela psiquiatria no processo de modernização do país revelaram o indivíduo Juliano Moreira,
e a defesa do papel social do médico psiquiatra.
Este conjunto de observações foi inserido num contexto, no caso, a transição para a
república e as reformas da cidade do Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o XX.
Ali, podem ser percebidas mudanças pelas quais passou a cidade, não restritas ao âmbito
material, mas também ao intelectual e cultural. Neste sentido, a medicina psiquiátrica teve
grande relevância ao tratar de temas como o alcoolismo, a promiscuidade e outros vícios do
cotidiano carioca. Em um espaço urbano marcado pela transição do escravismo para o
trabalho livre, pelo crescimento desordenado e pela industrialização desvinculada de uma
política de assistências, a insalubridade, a pobreza, a criminalidade, isto é, um conjunto que
traduziria a dita “degeneração” ganharia cada vez mais amplitude.
Unir ambos os eixos de análise, isto é, as teorias e postulados voltados para a
transformação da assistência aos chamados alienados na cidade do Rio de Janeiro – e nos
demais núcleos urbanos do Brasil – e as políticas públicas de “regeneração” estrutural e
populacional da mesma, nos fez deparar com assuntos coincidentes. O ambiente propício, e
mesmo a funcionalidade das ideias transformaram seu autor, Juliano Moreira, num
personagem chave para o entendimento do processo de modernização do povo brasileiro
durante a fase de consolidação da República no Brasil (1889-1930).
95
Moreira foi um assíduo editor de textos a respeito dos critérios científicos utilizados na
civilização do povo brasileiro. Através de suas conferências, ou de artigos de colegas
psiquiatras acolhidos por ele em seus periódicos, foi possível compreender o ideal de
organização pretendido pela categoria de médicos psiquiatras da época. Analisar a
proximidade entre estas expectativas médicas e pronunciamentos do Presidente da República,
legislações da época e mesmo crônicas da elite intelectual permitiram a reconstituição daquele
cenário de intervenção e reformulação dos costumes.
Dessa forma, ao final, tornaram-se mais claras as razões pelas quais Moreira ocupou
cargos como o de Diretor do Hospício Nacional de Alienados, Diretor da Assistência a
Alienados, ou como consultor para a elaboração da Lei Federal de Assistência a Alienados.
Em todos estes, não assumia apenas as atribuições de um agente do Estado. Da mesma forma
não atuava apenas como um médico psiquiatra. É da conjunção de ambas as atribuições que
resultará o entendimento sobre a obra de Juliano Moreira e os valores que defendeu, uma vez
que mesmo um expoente de determinada área de atuação deve ser retirado de tal condição
para ser enxergado como indivíduo, profissional, político, humano.
96
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