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ein Ee A Biblia ie nao tinha razao Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman = eee cr \ | acabeca nas nuvens Cheick Copyright© 20034 Gin rs ede Copyright ©2001 lal Felsen «Ned aber Serna “Teal docrignsk ‘he ile UnarasArcueie’s ea Vion of ie adhe ‘One aS ese No ¢ aermlnidssreoroduco ders abs, pal ou fetta, Sema autoagteepren da eto eo tor Coordenagio edie rales can E72: Comment Yous eset eco «agro ln bah Jv Cn de ae Prepaaso de tno ndeazo Magda Monee Resists Adres Meco as Heke Ysane Campos dos tueaainas de Cae na Pains (CP) (Ciera Bren doa. S, Dra aitsen boat ‘Abia ela so / wal kee eNl Ader Stlemnadodo por Tornoe ‘Sie Poaoy A Grats Eo, 2008 “Talo ryinak The ibe seabed EN Essun6ODs |. Biia- Anstvidaes? Bb Aucridde tenuate, SUN: Hite Hin Serna Nel Acer, psn Tada ry ‘eopm209s (adie ata oo site 1. Bis Aru itd ean “Tercie ego 2005 (dis peep datas we Tinga pores to eras a ‘A GIRAEA EDITORA LTDA. Avera, 2503, 125 01297200- So Pade SP wivaiafacombe sinker Sumario Agradecimentos ProLoGo — No tempo do rei Josias, InTropugio — A arqueologia e a Biblia Pante 1 — A Biblia como historia? 1. Em busca dos patriarcas IL. © Exodo aconteceu? UL Conquista de Canai IV. Quem exam os istaelitas? \V. Memérias de uma era de ouro? Panre 2 — Ascensio ¢ queda do antigo Israel VI. Um Estado, uma nagio, um povol: ¢. 930-720 aC. VIL Primeito reino esquecido de Isracl: 884-842 a.C. VIIL Na sombra do império: 842-720 a.C. Paare 3 — Juda e a criacio da histéria btblica IX. Transformagdo de Judé: c. 930-705 aC. X. Entre a guerra e a sobrevivéncia: 705-639 aC. il 15 45 14 106 139) 174 207 234 269 Bil 339) A Biblia nio tinhe vez80 XI. Uma grande reforma: 639-586 a.C. XIL. Exflio e retorno: 586-440 aC. Epiooo — Futuro do Israel biblico ‘Apénpice A - Teorias da historicidade da era patriarcal Avenpice B - Em busca do Sinai ‘Aptxpice C - Teorias altemativas da conquista israclita ‘Avinoice D - Por que a arqueologia tradicional do perfodo de Davi e de Salomao esté errada Arfnvoice E - Identificando a era de Manassés no registro arqueolbgico Apfupice F - Quéo vasto era 0 reino de Josias? Aptxpice G - Fronteiras da provincia de Yehud IREFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS indice geral 370 397 421 427 436 439 453 459 461 470 43 501 Agradecimentos A idéia deste livro nasceu bé quase oito anos, na costa do Maine, durante um sereno final de semana de verdo com nossas familias. A discussio sobre a confiabilidade da Biblia comegava, de novo, a atrair considertvel atenco fora dos cfreulos académi- cos, ¢ chegames & coneluséo de que era necessério um livro atua- lizado sobre o tema, pata os leitores comuns. Nesse livro, poderia- ‘mos descrever 0 que acreditévamos ser uma persuasiva evidéncia arqueologica e hist6rica para nova compreensio do aparecimento do antigo Israel, ¢ 0 surgimento de seus textos histéricos sagrados. Durante os tltimos anos, a batalha arqueolégica a respeito da Biblia tomou-se demasiada e progressivamente amarga. E se afun- dou — em alguns momentos e em alguns lugares — em ataques pessoais e acusacSes por motivos politicos ocultos. O Exodo de Davi ¢ Salomao governaram mesmo um vasto império? Perguntas como estas tém fato aconteceu? Houve a conquista de Can: atrafdo a atengio de jornalistas e criticos em todo o mundo. E, com muita freqligncia, a discussio pablica de cada uma dessas quest&es foi além dos limites da arqueologia académica e da criti- cabiblica, para as esferas apaixonadamente controvertidas da teo- logia ¢ da crenca religiosa, Apesat das paixées provocadas pelo tema, acreditamos que a reavaliagéo dos achados de antigas escavagdes ¢ as continuas des- cobertas de outros sitios arqueolégicos deixam claro que os estu- ‘A Biblia nio tinh razio diosos precisam abordar hoje, sob nova perspectiva, os problemas relacionados com as origens biblicas e da antiga sociedade israelita. Nos capitulos seguintes, vamos apresentar evidéncias para defen- der essa contradigao e para reconstruir uma historia bem diferen- te da antiguidade de Israel. Os leitores julgardio por si mesmos se nossa reconstrugao se adapta aos indicios disponiveis. Antes de comegar, precisamos destacar algumas informagbes @ respeito de fontes e de transliteragbes. Todas as nossas citagbes diretas do texto biblico foram tiradas da versio revisada padtio, VRP da Biblia judaica. Embora tenhamos utilizado essa versio quando nos referimos ao nome do Deus de Israel dentro das eita- ges, usamos © nome YHWH no nosso texto para designar 0 tetragrama — as quatro letras hebraicas que formam 0 nome de Jeové —~ ou 0 nome explicito de Deus. Na VRB ele € representado pela palavra SENHOR, enquanto Elohim ou Elohei é representa- do pela palavra ‘Deus’ Em relacao & cronologia biblica, com suas incertezas ¢ armadi- Ihas, decidimos que uma combinago de sistemas de datas oferece a melhor correspondéncia para a realidade arqueol6gica emergen- te: desde 0 infcio da monarquia israclita até o tempo de Acab, seguimos as datas determinadas em The chronology of the kings of Israel and Judah (A cronologia dos reis de Israel e de Jud), de Gershon Galil (Leiden, 1996). Para as datas dos reinos subseqiien- tes, dos reis israelitas e judaicos, seguimos o artigo de Mordecai Cogan sobre cronologia, no Anchor Bible Dictionary (New York, 1992). Por certo, muitas dividas — relacionadas com as datas precisas de reis mais antigos, co-regéncias posteriores e contradi- _s0es dentro do material iolico — permanecem, mas sentimos que, em geral, esse esquems cronoldgico é confidvel para os propésitos deste trabalho. Agealecimentos ‘As renovadas escavages de Tel Megiddo, realizadas pela Uni- versidade de Tel Aviv em parceria com a Pennsylvania State University (Universidade do Estado da Pensilvania), ofereceram oportunidade excepcional para raciocinar, refleti e discutit com ccolegas sobre o material inclutdo neste livro, Gostarfamos de esten- der nossos agredecimentos especiais aos outros co-diretores da Ex- pedigio Megiddo, os professores David Ussishkin e Baruch Halpern, «para os muitos profissionais e membros da equipe dessa expedigio que desempenharam, durante anos, papel fundamental nas escava- ‘g6es ¢ no amplo trabalho erudito de arqueologia biblica ‘A pesquisa e 0 registro inictal do texto deste livro foram reali- zados por Israel Finkelstein durante um ano sabético passado em Paris, ¢ por Neil Asher Silberman, em New Haven. © professor Pierre de Miroschedji, colega e amigo, ajudou a tornar possivel uma temporada produtiva e prazerosa em Paris. Durante a elabo- ragio deste livro, varias bibliotecas ofereceram excelentes centros de pesquisa: a biblioteca do Instituto de Arqueologia da Universi- dade de Tel Aviv; o Instituto Catélico do Centro de Arqueologia Oriental, na Sorbonne, ¢ a Secéo de Estudos Semiticos do Collage de France (Colégio da Franca), em Paris; e, em Yale, a Sterling Memorial Library e a biblioteca da Yale Divinity School. Temos profunda gratido por Judith Dekel, do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel Aviv, que preparou os mapas, diagramas e desenhos que aparecem neste livro. ‘Os professores Baruch Halpern, Nadav Naaman, Jack Sasson ¢ David Ussishkin foram generosos em conselhos e com seus conhe- cimentos; muito nos ajudaram com perguntas que fizemos e que ros foram respondidas —em telefonemas tarde da noite, para Nadav Naaman e Baruch Halpern, que nos auxiliaram na classificagio de problemas complexos de redago dos textos e da historia biblica. A Biblia nao tinha razéo_ Baruch também leu e discutiu conosco os primneitos rascunhos de rnuitos dos capitulos. Somos gratos a esses € a outros amigos e cole- gas a quem consultamos, mas ainda assim queremos deixar claro que a responsabilidade pelo resultado final é inteiramente nossa. Em Nova York, nossa agente literdria Carol Mann conduziu habilmente o projeto, da primeira idéia até a sua publicagdo. Na Free Press, queremos agradecer a0 editor assistente, Daniel Freedberg, por sua eficiéncia e ajuda incessante em cada etapa do twabalho. O editor sénior Bruce Nichols foi defensor entusiasma- do e incansivel deste livro desde o comego; gragas ao seu discernimento perceptive e talento editorial, a evolugio do nosso manuscrito foi incomensuravelmente aperfeigoad: Por fim, nossas familias — Joélle, Adar e Sarai Finkelstein e Ellen e Maya Silberman — merecem parte substancial do crédito, por seu amor, paciéncia ¢ disposigdo para perdoar muitos finais de semana ocupados e nossa auséncia em varios encontros familiares cenquanto este livro tomava forma. Esperamos que o resultado de nossos esforgos justifique a confianga depositada em nés e nessa idéia de um livro sobre a arqueologia e a Biblia, que se moldou primeiro na presenga delas, hi poucos anos apenas. LE NAS. lo Prdlogo No tempo do rei Josias mundo no qual a Biblia foi criada nfo era um reino mitico de grandes cidades e her6is santificados, mas um peque- no reino, simples, onde as pessoas lutavam por seu futuro, con- tra os medos, compreensivelmente humanos, da guerra, da po- breza, da injustica, das doengas, da fome e da seca. A saga __hist6rica contida na Biblia —do encontro de Abraio com Deus e sua jornada para Canaa a libertagéo da escravidio dos filhos de Tarael por Moisés, 2 ascenséo queda dos reinos de Is Juda =o for uma revelagéo miraculosa, mas um inteligen produto da imaginago humana; sua concepglo teve infcio — ‘como os recentes achados arqueolégicos sugerem — durante 0 breve espaco de tempo de duas ou trés geragies, ha cerca de 2.600 anos. © local de nascimento foi o reino de Judé, regio pouco povoada por pastores ¢ fazendeiros, assentada de forma precéria no meio de uma terra montanhosa, sobre estreito espinhago, entre ravinas escarpadas e rochosas e governada por uma cidade real afastada, Durante poucas décadas notaveis de efervescéncia espiti- tual e agitacdo politica, perto do final do século VII a.C., uma improvével coalisio de oficiais da corte de Juda — escribas, it A Biblia née tinha vazio & sacerdotes, camponeses e profetas — se formou para criar um movimento, No seu Amago estava uma escritura sagrada de in- —compardvel geno liternioeespsitual: era uma saga pica, com- posta por uma surpreendente coleglo de escritos hist6ricos, memeérias ¢ lendas, contos foleléricos ¢ historietas, propaganda real, profecia e poesia antiga. Uma parte dela era composigio original e a outra, uma adaptagio de fontes e versées antiges, mas aquela obra-prima literdria passatia por nova edigéo e ela- boragio, a fim de tornar-se uma Ancora espiritual néo apenas para os descendentes do povo de Judé, mas para comunidades do mundo inteiro, © mago histérico da Béblia nasceu no alvoroco das ruas api- nhadas de Jerusalém, nas cortes do paldcio real da dinastia do rei Davi e no Templo do Deus de Israel. Num perfeito e rematado contraste com 0s outros incontéveis santudrios do antigo Orien- te Proximo, com sua disposigao ecuménica de conduzir as rela- ‘Ges internacionais por meio da adorago dos deuses e dos sim- bolos dos aliados, 0 Templo de Jerusalém permaneceu insistentemente solitério. Em reagio ao ritmo e ao alcance das mudangas levadas a Juda do exterior, os lideres do século VI, em Jerusalém, governados pelo rei Josias — décima sexta gera- go de descendentes do rei Davi — declararam que todos os tacos de adoragao estrangeira eram um andtema e, na verdade, a causa das desgracas que ocorriam em Judé. Eles iniciaram uma campanha enéxgica de purificagio religiosa no territério do rei- no ¢ ordenaram a destruigo de santusrios rurais, declarando-os fontes do mal. Dali em diante, 0 Templo de Jerusalém, com seu santuétio, 0 altar ¢ os patios internos que o ciscundavam no alto da cidade, seria reconhecido como 0 tinico e legitimo lugar de adoragio para o povo de Isracl. Com essa inovagto, nasceu 0 compete neveeOH 2 Prélogo monotefsmo" moderno. Ao mesmo tempo, as ambigées politicas “Gos lideres de Juda cresceram; tais ambicées pretendiam fazer do ‘Templo de Jerusalém e do palécio real o centro de amplo reino pan-israclita, a realizagio do lendério reino unificado de Israel, de Davi e Salomao. Peerreeeeeeeeeeet © Comio € extratiho pensar que Jerusalém s6 ressurgiu bem mais tarde — ¢ repentinamente —~ no centro da consciéncia israclital Tal € o poder da propria historia da Biblia, que per- suadiu o mundo de que Jerusalém era fundamental para o com- pleto conhecimento de Israel de que os descendentes de Davi sempre foram abengoados por uma santidade especial ao invés de serem apenas outro clé aristocrdtico lutando para permane- cer no poder, apesar das disputas internas e das ameacas exter- nas sem precedentes. Quio pequena pareceria a cidade real a um observador mo- dero! No século Vil a.C., a area construida de Jerusalém cobria extensiio de nao mais que 150 acres, cerca de metade do tamanho da atual Cidade Velha de Jerusalém. Sua populagiio de cerca de 15 mil habitantes dificilmente a faria parecer muito mais que uma pequena cidade-mereado do Oriente Médio, amontoada atrés de ‘uralhas e portes, com bazares ¢ casas agrupadas a oeste ¢ a0 sul Por monotefmo isrelita aludimos a adoragio ordenada biblicamente de um 56 deus, num s6 lugar 0 Templo de Jerusalém ~ que era impregnado de santidade especial. A moderna literatura erdita identificou Iago espectro dle mades de adorago, no qual um énico deus & central, mas ndo exclusivo (Le., acompanhade por deldades secundivias e varios seres celestial), Reconecemos que durante © leno pertodo monérquico, ¢ por um longo incervalo de tempo depois, a adora- Go ao Deus de Israel era regularmente acompanhada pela venerago des atendentes divinos e de ours seres eelestiais. No entanto, sugerinas que midanga dectsiva ta diteg2o do monotefemo mademo tenha sido feita no tempo de Josias, com a¢ idelas do Deweronémia, 13 A Biblia no tinha raxéo de um modesto palécio real e do complexo do Templo. Ainda as- sim, Jerusalém jamais tinha sido tdo grande. No século VII, ela ultrapassava seus limites, com uma populaco inflada de funcio- nrios reais, sacerdotes, proferas, refugiados e camponeses desalo- jados da 4rea rural; poucas cidades, de qualquer era hist6rica, mantém-se to conscientes de sua hist6ria, identidade, destino diteta relagio com Deus. Essas percepgdes novas da antiga Jerusalém e das circunstan- cias hist6ricas que provocaram o nascimento da Biblia se devem, em grande medida, as recentes descobertas da arqueologia; seus achados revolucionaram o estudo do antigo Israel e jogaram sérias ividas sobre as bases histSricas de muitasnarrativas biblicas, como a peregrinagGes dos patrarcas, 0 éxodo do Bgito © a conquista de_ Canal, €6 glorioso império de Davi e Saloméo. Este liveo pretende contar @ histSria do antigo Israel’ € 0 nas- cimento de suas sagradas escrituras sob nova perspectiva arqueo- légica. O objetivo € tentar separar a hist6ria da lenda. Por meio da evidencia de recentes descobertas, construiremos outra histéria do antigo Israel, na qual alguns dos mais eélebres acontecimentos ce personalidades mencionados na Biblia desempenham papéis ines- peradamente diferentes. Enfirm, nossa premissa ndo é a mera esconstrugdo; é patilhar os discernimentos arqueolégicos —~ ainda muito desconhecidos fora dos cfrculos eruditos — ndo apenas so- bre quando, mas também sobre por que a Biblia foi escrita e por que permanece tfo influente até hoje. * Ao longo deste livro wsamos © nome Isae” em dots sents distints e alterna ties; como o nome do reine do norte e come nome coletivo para a comunidade de tovlos os isralitas. Na mairia dos casos, &refertneia 20 reino do nore como 0 “reino de Israel, ¢ 8 comunidade em sentido amglo coma o ‘antigo Israel, ou 0 ‘ove de Israel “4 Introdugao A arqueologia e a Biblia A historia de quando e como foi escrita a Biblia — e de como s¢ ajusta na extraordinatia historia do povo de Israel — esté estrei- tamente ligada a um conto fascinante da descoberta moderna. Cen- tralizou-se a busca numa extensio pequena de terra, confinada em dois lados pelo deserto e em um lado pelo Mediterraneo, que tem sido, através dos milénios, flagelada pela seca recorrente e por um estado de guerra quase permanente, Suas cidades e sua populagéo ceram mintisculas, comparadas com 2s dos impérios vizinhos do Egito e da Mesopotamia; da mesma maneira, seus elementos culeurais ceram pobres, se confrontados com o splendor ¢ a extravagincia dos outros. E ainda assim essa terra foi o local de nascimento de uma obra-prima literdria, que exerceu impacto incompardvel na ivilizago do mundo como sagrada escritura e como hist6ria. Mais de duzentos anos de estudos detalhados do texto hebraico a Biblia e de extensas exploragves em todas as terras entre 0s rios Nilo, Tigre e Eufrates permitiram-nos comecar a compreender quando, por que e como a Biblia existiu. A andlise detathada da lingua e dos distintos géneros literérios da Biblia levou os estudio- 503 a identificar as fontes orais e escritas sobre as quais est basea- doo atual texto biblico. Ao mesmo tempo, # arqueologia produziu 15 A Biblia née tinha raxio formidével conhecimento, quase enciclopédico, sobre as condi- ‘GOes materiais, as linguas, as sociedades ¢ o desenvolvimento his- térico dos séculos durante os quais as tradigbes do antigo Israel gradualmente se cristalizaram, transpondo cerca de seiscentos anos, mais ou menos de 1000 a 400 a.C. Mais importante de tudo, a compreensio textual combinada com a evidéncia arqueolégica contribuiu para que fosse possivel distinguir entre o poder ea poe- sia da saga biblica ¢ os acontecimentos e processos realistas da antiga histéria do Oriente Préximo. Nunca desde os tempos antigos o mundo da Biblia foi 120 acessivel e to integralmente explorado. Hoje, por meio de es- cavagbes arqueolégicas, conhecemos que saftas os israelitas e seus vizinhos cultivavam, o que comiam, como construframn suas cidades e com quem comercializavam. Dizias de metrépoles e cidades mencionadas na Biblia foram identificadas e descober- tas. Os métodos modernos de escavagio e um amplo espectro de testes de laboratério tém sido usados para datar e analisar a civilizagio dos antigos israelivas e a8 de seus vizinhos, os flisteus, fenicios, araméus, amonitas, moabitas e edomitas. Em alguns -as0s, foram descobertos selos chancelados e inscrigées que po- dem estar diretamente associados com individuos citados no texto biblico. Mas i que a arqueologia provou ser verdadeira a narrativa biblica, em todos os seus detalhes Longe dissor agora é evidente que muitos eventos da histéria no signifi biblica néo aconteceram numa determinada era ou da maneita como foram descritos. Alguns dos eventos famosos da Biblia ja mais aconteceram inteiramente. A arqucologia ajudou-nos @ réconstruir a historia oculta da Biblia, tanto no plano dos grandes res habitos da vida disria. E, como ser4 explicado nos préximos capt- ¢ reinos como nos modos € 16 Giiinamentos éticos do isl, transmitidos por meio do texto do “Alcorio. Tradicionalmente, a Biblia hebraica esté dividida em trés Introdugéo tulos, sabemos agora que os livros da Btblia mais antigos e suas famosas narrativas sobre a histéria israelita antiga foram primeira- mente codificados e, em certos aspectos fundamentais, escritos em lugar ¢ tempo determinados: Jerusalém no século VII a.C. O que é a Babli Em primeiro lugar, algumas definig6es basicas. Quando fala- mos da Biblia estamos nos referindo & colegao de escritos antigos conhecida durante longo tempo como Velho Testamento, agora comumente mencionado pelos estudiosos como a Biblia hebraica, E uma colegéo de lendas, leis, poesia, profecias, filosofia ¢ h serita quae Inteiramente em hebraco, com poucaspassagens num t6ria _dialeto variante do semitico, a __ lingua usual do Oriente Médio depois de 6000 a.C. Essa colegao ~compreende 39 livros, divididos, a principio, por assunto ou por aramaico, que se tornou a autor, ou, no caso dos mais longos, como Samuel I ¢ 2, Reis 1 ¢ 2, @ CrOnicas 1 ¢ 2, pelo tamanho padrio dos rolos de papiro, A Biblia hebraica é a principal escritura do judafsmo, a prime te do clnone da cristandade e uma rica fonte dealusies e de partes principais (Tabela 1) A Tor — também conhecida como os cinco livros de Moisés ‘ou Pentateuco (em grego, cinco livros) —inclui o Génesis, Exodo, Levitico, Ntimeros e Deuterondmio. Esses livros narram a histéria do povo de Israel desde a criagdo do mundo, _incluindo 0 pe- riodo do diltivio e dos patriarcas, até o Exodo do Egito, a jornada pelo deserto e a entrega da Lei no monte Sinai. A Tord finaliza com a despedida de Moisés 20 povo de Israel. 7 Introdugéo Crbnieas Le 2 A parte seguinte,os Profs, € dividida em dois grupos principaisde escrituras. Os Profetas Anteriores — Josué, Juizes, Samuel 1 ¢ 2, ¢ Reis Le 2 —contam a histéria do povo de Isreel, da passagem pelo rio Jordio € a conquista de Cana, por meio da ascensiio e queda dos rei- Eada Neemias Daniel nos israélitas, até sua derrota e exflio nas maos dos assirios e babil6nios. Os Profetas Posteriores incluem os ordculos, os ensinamentos sociais, as ‘condenagbes amangas ¢ as expectativas messiinicas de umn diversfica- do grupo de indivicluos inspirados, abrangendo petiodo de cerca de 350 Inco ROLOS | PROFECIA | HISTORIA Cangio de ESCRITOS fou HAGIGGRAFOS) Canticns dos Cinticos Salomio — Rute 1 | anos, de meados do séeulo VIII aC. até 0 final do século V a.C. Finalmente, os Escritos sso uma colego de homilias, poemas, see preces, proveérbios e calmos que representam as mais memoraveis € convincentes expressGes de devogéo do israelita comum em tempos de alegria, de crise, de adoracao de reflexdo pessoal. Na maioria Tamentagies Eclesiastes Eser POESIA Salmos dos casos, séo extremamente dificeis de ser relacionados a quais- quer acontecimentos histéricos ou a autores; sfio produto de um processo ininterrupto de composigio que se estende por centenas de anos, Embora as partes mais antigas nessa colegio — os Salmos Provérbios i eas Lamentagbes — possam ter sido reunidas nos étimos perfodos mondrquicos, ou logo depois da destruicdo de Jerusalém em 586 aC, a maioria dos Escritas foi composta, aparentemente, bem mais tarde, do século V ao Il a.C., nos perfodos persa ¢ helenistico. Jeremias (Ossias Tool Aime Abdiae Jonas ‘Miqusias News Habscve Sofonias Agen Zacarias Malaguias PROFETAS ANTERIORES | POSTERIORES Josué CO livro examina as principais obras ‘hist6ricas’ da Biblia, basica- mente a Tord e os Profetas Anteriores, que narram a saga do povo de Israel, do seu comego até A destruigéo do Templo de Jerusalém, em 586 2.C. Comparamos essa narrative com a riqueza dos dados arqueol6gicos coletados nas tiltimas décadas; 0 resultado é a desco- Somuel Tei | Baul Reis fel TORA Genesis Tabela 1 — Livros da Biblia hebraica berta de uma relagéo fascinante e complexa entre o que realmente aconteceu na terra da Biblia durante o periodo béblico — da melhor forma como isso pode ser determinado — e os detalhes bern conhe- Deuceronéenio Beodo Levtico Neimeros cidos da elaborada narrativa hist6rica contida na Biblia hebraica. 19 A Biblia nao tinha raza0 Do Eden ao Sido O ceme, 0 coragao da Biblia hebraica é uma historia épica que descreve o aparecimento do povo de Israel e sua continuada rela- ‘cdo com Deus. Ao contrério de outras mitologias do Oriente Pr6- ximo, como os contos de Osiris, fris e Hérus, no Egito, ou 0 épico de Gilgamesh, da Mesopotamia, a Biblia é solidamente baseada ‘numa hist6ria terrena; é um drama divino interpretado diante dos olhos da humanidade. Diferente também das historias e das cr6- nicas reais de outras nagSes do Oriente Préximo, essa nio celebra apenas 0 poder da tradigao ¢ das dinastias dominantes; oferece uma visio complexa, ainda que clara, de por que a historia se ma- nifestou e se desdobrou para o povo de Israel — e de fato, para 0 resto do mundo — num pado ligado, de modo direto, com as exigéncias ¢ com as promessas de Deus. © povo de Israel € 0 ator central desse drama. Seu comportamento e devogo aos manda- mentos de Deus determinam a diregéo por onde fluiré a hist6ria. Depende do povo de Israel — e, por meio dele, de todos os leito- res da Biblia — definir 0 destino do mundo. A narrativa bfblica tem inicio no jardim do Eden, continua com as histérias de Caim e Abel, do dibtivio de Nog, e por fim focaliza uma Gnica familia, a de Abrao. Abraio foi escolhido por Deus para se tornar pai de uma grande nacdo, e seguiu fielmente as ordens do Senhor. Ele viajou com a familia do lar original na Mesopotémnia, em Us, para a terra de Canaa, onde, no decorrer de uma longa vida, peregrinou como estrangeiro entre uma popula- do apaziguada c teve de sua mulher, Sara, o filo Tsaac, que het- datie as promessas divinas concedidas primeiramente a Abiaio. Foio filho de Isaac, Jacé — a terceira geragio do patriarca —, que se tomou o pai de 12 tribos distintas. No decurso de uma vida 20 Introdugio pitoresca e cadtica, de peregrinacZo, ctiando uma grande familia € estabelecendo altares em toda a terra, Jacé lutou com um anjo ¢ recebeu o nome de Israel — que significa ‘aquele que Iutou com Deus’ —, pelo qual todos os seus descendentes ficariam conheci- dos. A Biblia relata como os 12 filhos de Jacé lutaram entre si, trabalharam juntos ¢ eventualmente deixaram sua terra natal para procurar refiigio no Egito, no tempo da grande fome. Eo patriarca Jacd revelou em seus diltimos desejos € no testamento que a tribo de seu filho Judé governaria todas as outras (Génesis 49, 8-10). ‘A grandiosa saga entéo muda de drama familiar para espeticulo histérico. O Deus de Israel revelou sua forga terrfvel numa demons- tragdo contra o faraé do Egito, o homem mais poderoso da Terre. Os fithos de Israel haviem se transformado numa notével nago, mas foram escravizados por uma minoria desprez(vel, construindo os gran- ces monumentos do regime esipeio. A intengao de Deus, de se fazer conhecet a0 mundo, materializou-se na escolha da pessoa de Moisés como seu intermedisrio para buscar a libertagio dos israelitas, de modo que pudessem comecar seu destino. E, talver na seqiiéneia ‘mais brilhante de eventos da literatura do mundo ocidental, os li vr0s do fixodo, Levitico, ¢ Niimeros descrevem, por meio de sinais e milagtes, como o Deus de Israel condusiu os filhos de Israel para fora do Bgito, pelo deserto. No monte Sinai, Deus revelow & nagao sua verdadeita identidade como YHWH —o sagrado nome com- posto de quatro letras hebraicas — e lhes deu uma colegio de leis para guiar suas vidas, como comunidade e como individuos. Os termos sagrados do pacto de Israel com YHWH, escritos ‘em tébuas de pedra ¢ contidos na Arca da Alianga, tornaram-se 0 estandarte divino de batalha, enquanto marchavam a caminho da “Terta Prometida. Em algumas culturas, um mito de fundagéo teria parado neste ponto, como uma explicagdo milagrosa de como o au A Biblia nfo tinha raxio povo se levantou. Mas a Biblia tinha séculos mais de histéria para contar, com indmeros triunfos, milagres, derrotas inesperadas e Inuito softimento. Os triunfos da conquista istaelita de Cana, 0 estabelecimento de um grande império pelo rei Davi e a construe 80 do Templo de Jerusalém pelo rei Saloméo foram seguidos pelo grande cisma, por deslizes repetidos na idolatria e, finelmente, pelo exilio. Pois « Biblia descreve como, logo aps a morte de Salomao, asdez tribos do norte, ressentidas pela subjugacao aos reis davidicos em Jerusalém, unilateralmente separaram-se da monarquia unificada, forgando, dessa maneira, a criago de dois reinos rivais: o reino de Israel, ao notte, € o reino de Judé, ao sul. Nos duzentos anos seguintes, 0 povo de Israel viveu em dois teinos separados, sucumbindo repetidas vezes & sedugdo das dei- dades estrangeiras. Todos os lideres do reino do norte so deserie tos na Biblia como irremediavelmente pecadores: sabe-se tam: bém que alguns dos lideres de Judé se desviaram da tritha de devogio total a Deus. Na hora certs, Deus enviou, de fora, inva- sores e opressores para punir 0 povo de Israel por seus pecados. Primeizo, os arameus da Siria ameagaram o reino de Israel. De- ois, 0 poderoso império assitio provocou uma devastagio sem precedentes nas cidades do reino do norte e o destino amargo da destruigio e do exilio em 720 a.C. para parte significativa das dez tribos. O reino de Judé sobreviveu mais um século, mas seu povo nao pode evitar o inevitavel julgamento de Deus. Em $86 a.C. 0 crescent e brutal império babilénio disimou a tetra de Israel, € incendiou Jerusalém ¢ seu Templo. Com essa tragédia, a narrativa biblica se desvia, dramatica- mente, ¢ de outra maneira ainda mais caracterfstica, do modelo normal dos antigos épicos religiosos. Em muitos desses épicos, a derrota de um deus por um exército rival significaria também o 22 Tntrodugéo. fim de seu culto. Mas na Biblia o poder do Deus de Israel era visto como ainda maior depois da queda de Juds e do exilio dos israclitas. Longe de ter sido humilhado pela devastaco de seu Templo, 0 Deus de Israel passou a ser considerado uma deidade de forca in- compardvel afinal, Ele manipulou assitios e babilénios, transfor- mando-os em seus agentes involuntérios para punir 0 povo de Israel por sua infidelidade. Dali em diante, depois do retorno de alguns dos exilados para Jerusalém e da reconstrugao do Templo, Israel jamais vol- tou a ser uma monarquia, mas tornou-se uma comunidade reli- siosa, guiada pela lei divina e dedicada a realizacao formal dos tuais prescritos nos textos sagrados. E seria da livre escolha de homens ¢ mulheres manter ou violar aquela ordem divina- mente decretada — ao invés do comportamento de seus reis ou da ascensio e queda de grandes impérios — que determina- ria 0 curso da histéria subseqitente de Israel. E € nesse ponto singular sobre a responsabilidade humana que reside o grande poder da Biblia. Outros épicos antigos desapareceriam, aos pou- cos, com 0 tempo. O impacto da histéria da Béblia na civiliza- so ocidental s6 cresceria Quem escreveu o Pentateuco e quando? Durante séculos, os leitores da Biblia consideraram que as es- crituras eram igualmente revelacZo divina e uma histéria exata transmitida por Deus para uma ampla variedade de sdbios, profe- tas e sacerdotes israelitas. Autoridades religiosas constitutdas, ju- daicas ¢ cristis, assumiram que os cinco livres de Moisés haviam sido escritos pelo préprio Moisés antes de sua morte no monte Nebo, como narrado no livro do Deuteronémio. Os livtos de Josué, 23 A Biblia néo tinha razio dos Juizes ¢ de Samuel eram, do mesmo modo, considerados regis- ttos sagrados preservados pelo venerével Samuel em Silo, c.gslivros dos Reis eram vistos como produto da pena do profeta ‘remias. Da mesma maneira, acreditava-se que o rei Dayi era 0 autor dos Salmos, ¢ o rei Salomso, das Provérbios ¢ da Selomao, Todavia, no despertar da era moderna, no século XVI, ‘os eruditos que se dedicavam so estudo literério e lingtifstico de- ralhado da Biblia descobriram que ndo eta assim to simples; 0 poder da logica e da raxfio, aplicado ao texto das sagradas escritu- tas, levantou questdes muito problemsticas sobre a credibilidade histérica da Biblia. ~Aprimeita questi era se Moisés poderia realmente ter sido autor dos cinco livros, j4 que o dltima-deles, o Deut: jeuterondmio, Tescrevia em AStaINES a hora precisa ¢ as citcunsténcias de sua Bi€pria morte, Logo outres incongrincias fcaram aparentes: © ~ xis biblico eFa repleto de apartes literdrios, explicando os anti- gos nomes de certos lugares e, freqilentemente, observando que as evidéncias de oélebres acontecimentos biblicos ainda eram vist- veis ‘até hoje’. Esses fatores convenceram alguns eruditos do séeu- lo XVII de que os primeitos cinco livros da Biblia, pelo menos, haviam sido modelados, desenvolvidos e ornamentados por anti- gos editores andnimos ¢ por revisores, através dos séculos. No final do século XVIII, e mais ainda no XIX, rauitos estudio- sos crfticos da Biblia passaram a duvidar de que Moisés rivesse escrito qualquer texto das escrituras; comegaram a acreditar que a Biblia era exclusivamente obra de escritores extemportneos. Es- ses estudiosos observaram o que pareciam ser as diferentes versdes das mesmas histérias dentro dos livros do Pentateuco, sugerindo que 0 texto biblico era produto de muitas maos reconhectveis. _Unna leitura cuidadosa do Génesis, por exemplo, revelou duas ver _ 24 Tateodugéo. _s6es conflitantes da eriagSo (1y1-2,3 ; 24-25), duas genealogias bein diferentes dos descendentes de Adio (4,17-26; 3,18), e duas histérias emendadas e. teagrupadas sobre: odildvio 6 559,17) Além disso, havia dzias de duplicatas, ou mesmo triplicatas, dos ‘mesmos eventos nas narrativas da peregrinagio dos patriarcas, do éxodo do Egito e da entrega das tabuas da Lei. Ainda assim, havia uma ordem clara nessa repeti¢o aparen- temente caética. Como ja fora observado no século XIX — e ex- plicado por completo pelo estudioso americano da Biblia, Richard Elliott Friedman, em seu livro Who wrote the Bible? (Quem escre- veu a Biblia?) — as duplicagées que ocorreram originalmente no Génesis, no Exodo e nos Niimeros néo eram vatiagées atbitratias ou reprodugdo das mesmas histérias. Elas mantinham certas ca- racterfsticas identificaveis, de imediato, no que se refere & termi- nologia e ao foco geogrifico, e, de modo conspicuo, usaram dife- rentes nomes na narragio para descrever o Deus de Israel. Assim, uum conjunto de histérias usou consistentemente o tetragrama — o nome de quatro letras YHWH, assumido pela maioria dos estu- diosos como tendo sido pronunciado Yahweh — no curso da sua narracao, é seus varios relatos pareceram interessados sobretudo na tribo ¢ no territério de Judé. O outro conjunto de histérias tusou os nomes Elohim ou El para Deus, e pareceu preocupado, em particular, com as tribos ¢ com os tertitérios no norte do pats — Efraim, Mansssés e Benjamin principalmente. Com o tempo, fic cou claro que as duplicatas derivavam de duas fontes distintas, escritas em tempos ¢ lugares diferentes. Os estudiosos deram o nome ‘P para a fonte javista (yahwist) — escrita jahwist, em ale- mao — e ‘E’ para a fonte eloista (elohist) Os usos caracterfsticos da terminologia geografica, dos sim- bolos religiosos ¢ dos papéis desempenhados pelas varias tribos, 25 opus egy A Biblia ngo tinha rez0 nas duas fontes, convenceram os estudiosos de que texto J tinha sido escrito em Jerusalém e representava a perspectiva da monarquia unificada, ou do reino de Judé, presumivelmente no tempo do rei Salomao (c.970-930 a.C.) ou logo depois. Da mes- ma maneira, o texto E parecia ter sido escrito no norte € tepre- sentava a perspectiva do reino de Istacl; sua redacao pode ter ocorrido durante a vida independente daquele reino (c.970-720 a.C.). O livto do Deuteronémio, em sua mensagem ¢ estilo ca- racteristicos, parecia set um documento independente, 'D’. E entre as segdes do Pentateueco, que ndo podem ser atribuidas a J, E ou D, existia grande némero de passagens tratando sobre as- suntos rituais, Com 0 tempo, essas passagens foram considera- das parte de um longo tratado, chamado ‘P’, ou a fonte sacerdo- tal (priestly, em inglés), que mostra especial interesse na pureza, no culto e nas leis do sacrificio, Ein outras palavras, os estudlio- radualmente chegaram 2 conclusdo de que os primeiros.cin- co livros da Biblia, tal coma agora so conhecidos, eram 0 esul- tado de um complexe processo editorial, no qual os documentos das quatro fontes principals —], E, Pe D — foram combinados com habilidade ¢ editados por eseribas compiladores, ou eda: ores, cujos tragos fterarisy"chatados por alguns estudiosos “de paszagens Ry, consistiram de sentengas cransacionais ¢ apar- 6 ein, Dessasreagses, as masta aconteceram no Nas tias deSiss, a opiniGes enuditas sobre as datas © a autoria dessas fontes individuais tém vatiado desordenadamente. Enquanto alguns estudiosos argumentam que 0s textos foram es- ctitos e editados durante a existéncia da monarquia unificada dos reinos de Judé e de Israel (c.1000-586 a.C.), outros insistem que so composigGes tardias, coletadas e editadas por sacerdotes & 26 Introdugéo escribes durante 0 exilio na Babilénia ¢ a restauragio (nos séculos Vie V aC), ou mais tarde, durante o periodo helentstico (sécu- los IV e I.a.C,). Ainda assim, todos concordam que o Pentateuco ‘io € composigao Gnica e sem costuras, mas uma colcha de reta- Thos de fontes variadas, cada uma escrita sob diferentes circuns- tncias histricas, para expressar diferentes pontos de vista religio- 80s ou politicos, Duas versées da histéria posterior de Israel Os primeiros quatro livros da Biblia —Génesis, Exodo, Levitico © Nameros — parecem ser 0 resultado de habilidoso entrelaca- ‘mento das fontes J, Ee P Mas 0 quinto livro, o Deuteronémio, exa um. caso completamente diferente, Ele ostenta rerminologia cau racterfstica (que no € compartilhada por nenhuma das outias __fontes) €nclui condenagio intiansigente Wa adoragio a outros ies, uma nova visio completamente transcendente de Deus e a absoluta proibico da veneragio sacrificial do Deus de Israel em qualquer outro luger que no o Templo de Jerusalém. Ha muito tempo os estudiosos reconheceram a possfvel conextio desse livro com outro misterioso ‘livro da Lei’, descoberto pelo sumo sacer- dote Helcias durante as renovages do Templo, no reinado do rei Josias, em 622 a.C. Como é narrado no 2° Reis, 22,8-23,24, esse documento tomou-se inspirago para uma teforma religiosa de seriedade nunca vi O impacto do livro do Deuteronémio na mensagem definiti- va da Biblia hebraica vai bem além de seus estritos cédigos legais. A narrativa histérica combinada dos livros que seguem o Pentateuco — Josué, Juizes, Samuel 1 © 2, Reis | e 2 — est tao hermeticamente relacionada ao Deuteronémio, sob os aspectos 27 A Biblia nto tinba raxao lingaistico ¢ teolégico, que passou a ser chamada pelos estudio- sos de ‘histéria deuteronomista’ desde meados dos anos 1940. E Biblia. Ela continua a historia do destino de Israel, da conquista da Terra Prometida até o extlio na BabilOnia, e expressa a ideolo- gia de novo movimento religioso surgido entre 0 povo de Israel, numa data relativamente posterior. Essa obra também foi edita- da mais de uma vez, Alguns estudiosos argumentam que foi com- pilada durante o extlio, numa tentativa de preservar a hist6ria, a cultura e a identidade da nagio derrotada, depois da catéstrofe da destruigéo de Jerusalém, Outros estudiosos sugerem que a maior parte da histéria deuteronomista foi escrita no tempo do rei Josias, a fim de servir a sua ideologia religiosa e suas ambigies territoriais, e que foi concluida e editada no exflio, poucos anos €a segunda grande obra literdria sobre a histéria de Israel na mais tarde. Q5s livros das Crénicas — terceira grande obra histérica na Biblia, abordando o Israel pés-exilio — s6 foram compilados no século V ou IV a.C,, virios séculos depois dos acontecimentos que descreve. Suas petspectivas hist6ricas inclinam-se com niti- dez a favor das alegacées hist6ricase poltticas da dinastia davidiea e de Jerusalém; os livros ignoram o norte quase completamente. De muitas maneiras, as Crénicas refletem de forma excepcional 1 ideologia e as necessidades do segundo Templo de Jerusalém, € a maior parte reformula uma saga hist6rica que j4 existia escrita. Por essas raz6es, utilizaremos minimamente as Cronicas neste livro, mantendo nosso foco no antigo Pentateuco e na histéria deuteronomista. ‘Como veremos nos préximos capitulos, a arqueologia propor cionou indicio suficiente para sustentar nova controvérsia, de que ‘0 Amago historico do Pentateuco e da histéria deuteronomista foi 28 _confiveis em relagao aos principais contomos da histéria do ant Introdugéo substancialmente formado no século Vil a.C. Dessa forma, dizecionaremos o foco para Judé, no final do século VIL e no sé. culo VIL a.C,, quando esse processo literétio comegou de verda- de, ¢ discutiremos que muito do Pentateuco € ctiagao tardia do final do petiodo monérquico, defendendo a ideologia ¢ as necessi- dades do reino de Judé e, como tal, intimamente relacionado & historia deuteronomista. E nos alinharemos com os estudiosos que argumentam que a hist6ria deuteronomista foi compilada, em sua parte principal, na época do rei Josias, com a intengéo de prover validagao ideolégica para ambigdes politicas especificas ¢ refor- mas religiosas. Histéria ou nao histéria? A arqueologia sempre desempenhou papel crucial nos debates sobre a composigio e a credibilidade histérica da Biblia. No come- 0, a arqueologia parecia refutar os mais radicais argumentos dos criticos, de que a Biblia era trabalho bem mais posterior e que grande parte de seu texto no era historicamente confiavel. Des- de o final do século XIX, quando a exploragdo moderna das terras da Biblia teve inicio, uma série de descobertas espetaculares e dé- cadas de constante escavagao € interpretagao arqueolégica suge- riram que muitos dos relatos da Biblia eram fundamentalment go Israel. Dessa maneira, mesmo que pareca que o texto brblico wena sido compilado ¢ registrado muito tempo depois dos even- tos que descreve, ele deve ter se baseado num corpo substancial de memérias, pteservadas de forma pontual. Essa concluséo tem seus alicerces em algumas categorias modemas de evidéncia ar- queolégica e histérica A Biblia nfo tinba varo Identificagdes geograficas Embora peregrinos ocidentais ¢ exploradores tenham percor- rido a terra da Biblia desde o perfodo bizantino, foi somente com o aparecimento da histéria moderna e dos estudos geogréficos, no final do século XVIII e comego do século XIX, que estudiosos bern versados sobre a Biblia e sobre outras fontes antiges comecaram a reconstruit a paisagem do antigo Israel, tomando como base a to- pografia, as referéncias bilicas e os remanescentes arqueol6gicos, a0 invés de confiar nas tradigbes eclesifsticas dos varios lugares sagrados. O pioneiro nesse campo foi um ministro religioso ameri- cano, 0 congtegacionalista Edward Robinson, que realizou duas Tongas exploragies através da Palestina otomana em 1838 ¢ em 1852, a fim de localizar ¢ identificar os auténticos sitios biblicos hhistoricamente comprovados, num esforgo de refutar as teorias dos criticos. Enquanto algumas das principais localidades da historia btbli- ca, como Jerusalém, Hebron, Jaffa (Jafa), Betsct (Betsa), e Gaza, nunca foram esquecidas, centenas de outros lugares mencionados na Biblia cram desconhecidos. Usando a informacio geogréfica contida na Biblia e estudando de forma meticulosa os nomes éra- bes modemos dos lugares do pats, Robinson descobriu que era possivel identificar dizias de antigos outeizos e ruinas com sitios bifblicos previamente esquecidos. Robinson € seus sucessores foram capazes de conciliar vastas rufnas em lugares como el-Jib, Beitin (Baytin) e Seilun, todas ao norte de Jerusalém, com os provaveis sitios brblicos de Gabaon, Betel ¢ Silo. Essa marcha foi Gtil em particular em regides que haviam sido habitadas continuamente através dos séculos e onde ‘o nome do sitio havia sido preservado. Dessa maneita, subseqiien- 30 Introdugio tes geragées de estudiosos compreenderam que em outros lugaves, onde os nomes modemos nio tinham relacdo com aqueles dos sitios btblicos na viinhanga, outros critérios, tais como tamanho e tipos de cerdimica datada, poderiam ser utilizados para fazer iden- tificago. Assim, Megiddo, Hazor (Azor), Lachish (Laquis) e dé- zias de outras locelidades biblicas foram aos poucos adicionadas & expandida reconstrugao da geogratia religiosa, No final do século XIX, engenheiros reais britdnicos do Palestine Exploration Fund (Fundo Palestino de Exploragao) comecaram esse trabalho de modo rnuito sistemético, compilando mapas topograficamente detalha- dos do pais inteiro, das nascentes do rio Jordo no norte a Bersabéia, no deserto do Negueb, ao sul. ; Ainda mais importante que as identificagSes especificas foi a crescente familiaridade com as principais regiées geogrdficas da terra da Biblia (Figura 1): a ampla e fértil planicie da costa do Mediterraneo, os contrafortes do Shephelah (Séfela) assomando para a area montanhosa ao sul, 0 érido Negueb, a regio do mar Morto eo vale do Jordao, a regio montanhosa do norte e 08 am- plos vales no norte. A terra biblica de Israel era uma érea com extraordingrios contrastes de clima ¢ meio ambiente, Também servia como ligagio natural de terra entre as duas grandes civiliza- bes do Egito e da Mesopotamia; suas paisagens e condigées ca- racteristicas provaram refletir, em quase todos os casos, de forma consideravelmente exata, as descricdes da narrativa biblica. Monumentos e arquivos do Egito e da Mesopotamia Durante a Idade Média e o Renascimente, foram feitas repeti- das tentativas a fim de estabelecer uma cronologia padronizada a Shechern Shecher ‘planalios do “Negi | Coomsntnerer J neminn Figura 1 — Regides geogeéficas da terra de Israel Introdug para os eventos descritos na Biblia; a maioria era pontualmente literal. Para verificar a cronologia interna da Biblia, foram nece: sérias fontes externas, eventualmente encontradas entre os rema- nescentes arqueolégicos de duas das mais influentes —e cultas — civilizagdes do mundo antigo. © Bgito, com seus assombrosos monumentos vasto tesouro de inscrigées hieroglificas, comecou a ser intensamente explorado pelos estudiosos europeus no final do século XVIII. Mas foi 6 com 2 decifragio dos hier6elifos egipcios — bascada na pedra de Rosetta, em trés idiomas — em torno de 1820, pelo erudito francés Jean- Frangois Champollion, que 0 valor hist6rico dos remanescentes arqueoldgicos do Egito para datar e possivelmente verificar 03 acon- tecimentos hist6ricos na Biblia tomou-se aparente. Emboraa iden- tificagio de farads definidos nas historias de José e do éxodo tenha permanecido incerta, outras conexées diretas tomaramn-se claras Uma estela de vitéria erigida pelo faraé Meneptah (ou Minephtah), em 1207 aC, mencionava um grande triunfo sobre um povo cha- mado Israel. Numa época logo depois, o faraé Sesac (citado no 12 Reis 14,25 como tendo marchado contra Jerusalém para exigir tributo, durante 0 quinto ano do reinado do filho de Salomao), foi identificado como Sheshong I, da XXII dinastia, que reinou de 945 a 924 a.C. e deixou registro de sua campanha em uma parede do templo de Amon, em Karak, no Alto Egito. Outra rica fonte de achados para a cronologia e para identifi- cages hist6ricas veio das amplas planicies entre os rios Tigre € Bufrates, na antiga regio da Mesopotamia. Comegando em torno do ano de 1840, estudiosos representantes da Inglaterra, Franca ¢, posteriormente, dos Estados Unidos ¢ Alemanha descobriram as cidades, os amplos palécios ¢ os arquivos cuneiformes dos impé- rios da Assiria ¢ da Babillénia, Pela primeira vez desde 0 petfodo 33 A Biblia nao tinha razto beiblico, os principais monumentos e cidades daqueles poderosos impérios orientais foram desenterrados. Lugares como Ninive ¢ Babilénia, em especial, conhecidos originalmente da Biblia, pude- am ser vistos como as capitais de poderosos ¢ agressivos impérios, ccujos artistas e escribas documentaram inteiramente as campa- rnhas militares e os acontecimentos politicos de seu tempo. Dessa maneira, referéncias a um niimero de prestigiosos reis btblicos fo- ram identificadas nos arquivos cuneiformes da Mesopotamia — os reis de Israel Amri, Acab ¢ Jed, ¢ os reis de Judé Ezequias ¢ Manassés, entre outros. Essas referéncias externas permitiram que 6s estudiosos olhassem a hist6ria biblica de uma perspectiva am- pla e que ajustassem os reinados dos monarcas btblicos com os sistemas de dados mais completos sobre o antigo Oriente Préxi- mo, As conexdes foram feitas, de forma lenta, ¢ as datas dos reina- dos dos teis de Israel e de Juda, dos governantes asstios e babilénios ¢ dos farads egipcios foram colocadas em ordem, estipulando pela primeira vez datas muito precisas. ‘Além disso, arquivos mesopotamios ¢ egipcios muito mais an- tigos, da Idade do Bronze (c.2000-1150 a.C.), de sftios primitives como Mati, Tell el-Amama ¢ Nuzi espalharam conhecimento es- sencial no mundo do Oriente Préximo antigo também no am biente cultural de onde a Biblia posteriormente emergiu. Em Greas mais préximas da terra de Israel, seriam encontradas, ainda inscrigbes espalhadas, as quais ofereceriam elos mais preci- 50s. Desctigio triunfal do rei moabita Mesha, descoberta no sécu- lo XIX na Transjordania, mencionava a vit6ria daquele rei sobre os exércites de Israel, além de oferecer testemunho externo de uma guerra entre Israel ¢ Moab, que foi relatada no livro 2° Reis 34-27. A Gica inscrigio significativa para a validacio histérica foi descoberta em 1993, no sitio de ‘Tel Dan, norte de Israel, regis- 34 Introdugio trando, aparentemente, a vit6ria do rei arameu Hazael sobre o rei de Israel ¢ 0 rei da ‘casa de Davi’, no século IX a.C. Como a inscri- cio moabita, ela oferece uma ancora extrabiblica para a histéria do antigo Israel. Escavagées em sitios biblicos De longe, a fonte mais valiosa de evidéncia sobre 0 contex- to hisc6rico da Biblia ¢ 0 resultado de mais de cem anos de modemas escavagdes arqueolégicas em Israel, na Jordania e nas regides vizinhas. Estreitamente ligada aos progressos da técni- ca arqueolégica no mundo inteiro, a arqueologia biblica tem colaborado na identificacao de uma longa seqiiéncia de estilos de arquitetura, de formatos de cerdmica e outtos attefatos re- conheciveis de imediato, os quais permitem aos estudiosos da- tar os niveis de cidades enterradas e timulos com razodvel grau de preciso. O pioneito desse ramo da arqueologia no comeco do século XX foi o estudioso american William F. Albright, que concentrou seu trabalho prineipalmente na escavacéo de grandes cOmoros de cidades — elevagées de terreno nao muito altas, chamados tells em rabe e tels em hebraico — compostos de muitos nfveis superpostos de cidades antigas, nos quais 0 desenvolvimento da sociedade e da cultura pode ser tragado através de milénios. Depois de décadas de escavacio, pesquisadores esto aptos a reconstruir 0 amplo contexto arqueolégico no qual se deve ajus- tar a histéria bblica (Tabela 2). Comegando com a primeira cer- teza, a da agricultura e das comunidades estabelecidas na regio, no exato final da Idade da Pedra, os arqueslogos prosseguiram até delinear o crescimento da civilizagio urbana na Idade do 35 A Biblia néo tinha racio Bronze (3500-1150 a.C.) e sua transformagao em estados territoriais no periodo seguinte, a Idade do Ferro (1150-586 a.C.), quando a maioria dos acontecimentos hist6ricos descritos na Biblia presumivelmente ocorreu. No final do século XX, a arqueologia havia mostrado, de ma- nelra si ue existiam muitas correspondéncias materials entre ‘os achados em Israel e em todd o Oriente Préximo e no mundo escrito na Béblia, para sugerir que toda essa histéria seja storia seja apenas “lima literatura sacerdotal posterior e fantasiosa, esctita sem qual- ~“tradigdes ent¥e os achados arqueolégicos e as narrativas biblicas para propor que a Biblia oferecia uma descrigéo precisa do que cocorrera de fato. Da ilustragao biblica & antropologia do antigo Israel Enquanto 0s ertticos dos textos btblicas e os arquedlogos bi- blicos mantiveram sua atitude basicamente conflitante sobre a credibilidade histérica da Biblia, continuaram a viver em dois mundos intelectuais separados; o modo de ver a Biblia, de acor- do com os criticos de seus textos, persistiu de tal forma que para eles néo deixou de ser encarada apenas como sendo um objeto de dissecacdo, que podia ser dividido em fontes ¢ subfontes cada vez menores, de acordo com as diferentes idéias religiosas e polt- tices que cada fonte supostamente expressaria. Ao mesmo tem- po, 08 arquedlogos, com freqiiéncia, consideraram as narrativas histéricas ao pé da letra; ao invés de usar os dados arqueolégicos como fonte independente para a reconstruco da hist6ria da re- gifo, continuaram @ confiar nas narrativas biblicas — em patti- ‘Tabcla 2 — Principais periodos arqueolégicos e cxonologia dos reis de Judé e de Israel REIS DE ISRAEL E DE JUDA" 3 BERE tae SBg28 E2aad ae883 Tisid RERES PERIODOS ARQUEOLOGICOS” 3500-2200 a. 2200-2000 ac. 2000-1550 a 1500-1150 aC. tale do Brone posterior Ida do Ferro E lee do Feo fod bl Frsiodo pon 3 — 852 2851 51882 2314 517 — 800" 54 — 573 554 — aso" Thi A fe Osos Joie es Jorere ~ Govern val 35 80 882 836 86 — 798 15 — 733" 7 Te 2 mi 68 688 — 642 641 — 640 6309 ed 586 188 — 768 os — 598 301 A Biblia nfo tinhe vaxio cular nas tradigdes do surgimento de Israel — para interpretar seus achadlos. Naturalmente, houve novos entendimentos sobre © aparecimento ¢ 0 desenvolvimento de Israel, & medida que as escavagées ¢ 0s levantamentos topogrficos prosseguiram. Ques- tdes eram levantadas sobre a existéncia hist6rica dos patriarcas e sobre a época e a extensio do exodo, Também foram desenvolvic. _-las-outras tcarias sugerindo que a conquista istaelita de Canad pode nao ter ocorrido como o livro de Jo =o “como uma campanha militar unificada. Mas, para os aconteci- mentos biblicos principiando no tempo de Davi — por volta de 1000 a.C. —, oconsenso arqueolégico, pelo menos até o ano de 1990, era que @ Biblia poderia ser lida basicamente como um docu- mento hist6rico confiével. Por volta do ano de 1970, entretanto, novas tendéncias come- garam a influenciar a conduta da arqueologia bfblica e, eventual- mente, a zaudar seu foco principal, revertendo por completo a re- lagho tradicional entre 'artefato’ ¢ texto btblico. Pela primeira vee, arquedlogos trabalhando em terras bfblicas deixaram de usar os achados escavados como ilustragdes da Biblia; numa mudanga dramética para os métodos das ciéncias sociais, eles procuraram examinar realidades humanas que residiriam por trés do texto. Escavando sitios antigos, no se atribuia mais énfase a associagdes com os sitios biblicos. Artefatos, arquitetura, exemplos de funda- Goes, assim como ossos de animais, sementes, andlise quimica de amostras do solo e modelos antropol6gicos de longo prazo, retira- dos de muitas culturas do mundo, tomaram-se as chaves da per- cepgio de mudangas amplas na economia, na historia politica, nas préticas religiosas, na densidade habitacional e na propria estrutu- ra da antiga sociedade israelita. Adotando métodos empregados por arquedlogos e antropélogos em outras regides, nimero cres- 38 Introdugio cente de estudiosos tentou compreender como a interagdo huma- na com 0 complexo meio ambiente natural e fragmentado da terra de Israel influenciou 0 desenvolvimento de seu sistema social ex- cepcional, sua religiio seu legado espiritual. Nova visio da histéria biblica Progressos recentes na arqueologia permitiram-nos, enfim, cru- zat o fosso entre o estuddo dos textos biblicas e os achados arqueo- légicos. Agora pode-se ver que a Bitlia é, ao lado de formas distin- tas de cerimica, estilos arquiterénicos e inscrigbes hebraicas, um artefato caracteristico que conta muita coisa sobre a sociedade na qual foi produzida. Isso acontece porque agora esté claro que fatos como a manu tengio de registros, a correspondéncia administrativa, as cxOnicas da realeza e a compilagio da escritura sagrada nacional —em espe- cial uma tio profunda e sofisticada como a Biblia — estdo relacio- nadas com um estagio especifico de desenvolvimento social. Ar quedloges e antropélogos trebalhando no mundo inteiro estudaram cuidadosamente 0 contexto no qual emergem os géneros sofistica- dos de eserita, e em quase todos os casos eles so um sinal da situa- gfo de um Estado no qual o poder € centralizado em instituigbes nacionais, como um culto oficial ou uma monarquia. Outros tragos dese estigio de desenvolvimento social ineluem prédios monumen- tais, a especializago econémica e a presenca de uma densa rede de comunidades entrelagades, variando em tamanho, de grandes cida- des a centros regionais, a cidades de tamanho médio e aldeias. Até recentemente, os estudiosos dos textos ¢ arquedlogos ti- nba assumido que o antigo Israel alcangara o estdgio de comple- ta formagéo de um Estado na época da monarquia unificada de 39 A Biblia nao tinha ravéo Davi ¢ Salomao. De fato, muitos especialistas biblicos continuam a acreditar que a primeira fonte do Pentateuea € o documento J, ou javista (yahwist), ¢ que foi compilado em Judé na era de Davie Salomao, no século X a.C. Neste livro, argumentaremos que essa conclusio & altamente improvavel. Da anélise da evidéncia ar- queoldgica, no existe nenhum sinal de extensa alfabetiza¢o ou de qualquer outro dos atributos de um Estado completo, formado em Juda — e, em particular, em Jerusalém — até mais de dois séculos e meio mais tarde, no final do século VI a.C. Natural- mente, nenhum arquedlogo pode negar que a Biblia contém len~ Pe eres fe deca a épocas et tigas. Mas os arquedlogos podem mostrar que a Tord ¢ a historia deuteronomista trazem inequivacas marcas que atestam a qualidade de sua compilagéo inicial no século VII a.C. Por que € assim, € 0 que isso significa para nossa compreensao sobre a gran- de saga biblica, € o principal assunto deste livro. Veremos como muito da narrativa biblica € produto de espe- tangas, de medos ¢ de ambigées do reino de Judé, culminando no. de Josias, no final do século VII a.C. Argumentaremos que o ama- go histérico da Biblia surgiu, de forma nitida, de condigSes politi- cas, sociais ¢ espitituais, e que foi moldado pela criatividade e pela visio de homens e mulheres extraordindrios. Muito do que é comumiente aceito como relatos precisos — as hist6rias dos patri- arcas, 0 Exodo, a conquista de Cana e mesmo a saga da gloriosa monarquia unificada de Davi e Salomio — sio, ao contrétio, ex- press6es criativas de um poderoso movimento de reforma religiosa que floresceu no reino de Jud, no final da Idade do Ferro. Embora_ esses relatos possam ter sido haseados em sementes histiticas se- auras, elas refletem primariamentea fdCologia e a visio de mundo de seus escritores. Mostraremos como @ natrativa da Biblia foi ex- 40 Introdugio cepcionalmente adequada para o avanco da reforma religiosa e das ambigées territoriais de Judd, durante as derradeiras décadas do final do século VI a.C. Mas sugerir que as mais famosas hist6rias da Biblia nao aconte- conan camaasuigais RID SEROTEC ES “ipo laa nt ie una TS Nove ie los, a histéria do antigo Israel ser reconstrufda com hase na evi- déncia arqueolégica, tinica fonte de informagao para o perfodo que no foi corrigida, editada ou censurada, de forma extensa, por mui- tas geracdes de escribas btblicos. Assistidos pelos achados arqueo- légicos e registtos extrabiblicos, veremos como as narrativas bfblicas so, elas mesmas, parte da histéria, néo a estrutura histérica inquestiondvel na qual cada achado ou toda conclusto deve se ajus- tar. Nossa histéria vai divergir, dramaticamente, da narrativa bibli- ca familiar; € a histéria ndo de um, mas de dois reinos escolhidos que, juntos, abrangem as ratzeshistéricas do povo de Israel. ‘Um reino — o reino de Israel — nasceu nos vales férteis e nas colinas onduladas do norte de Torael € cresceu para se situar entre os reinos mais ricos, mais cosmopolitas e mais poderosos da regio. Hoje, est quase totalmente esquecido, exceto pelo papel infame que de- sempenha nos livros biblicos dos Reis. O outro reino —9 reino de Judé — surgiu na regio inéspita e rochosa do sul. Sobreviveu man- tendo 0 isolamento e uma feroz devogio ao seu Templo e a sua di- nastia real. Esses dois reinos representam dois lados da antiga expe- riéncia de Israel, duas sociedades muito diferentes, com atitudes € identidades nacionais distintas. Passo a passo tragaremos os estégios pelos quais a histéria, a meméria e as esperangas ce ambos 0s reitos foram poderosamente incorporados numa tinica escritura, que mol dou, mais do que qualquer outro documento jamais escrito —~ e continua a moldar —, 0 carter da sociedade ocidental a

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