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Idéias sobre confetos e o diferencial da sociopoética

Sandra Haydée Petit


Shara Jane Holanda Costa Adad

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.


É preciso transvê o mundo.
Isso seja:
Deus deu a forma.Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Manoel de Barros

Para ajudar-nos a transvê o mundo, a Sociopoética afirma cinco princípios,


a saber: o reconhecimento do corpo como fonte do conhecimento; a valorização
das culturas dominadas e de resistência e das categorias que as mesmas
Princípios da
Sociopoética produzem; o fato de tornar os sujeitos pesquisados co-responsáveis pelos
conhecimentos produzidos enquanto co-pesquisadores; a potencialização da
criatividade de tipo artístico no aprender, no conhecer e no pesquisar; a busca do
sentido espiritual, humano, das formas e dos conteúdos no processo de construção
dos saberes.
Pensamos que, a fim de atingir tal intento, os cinco princípios da
Sociopoética convergem simultaneamente para o objetivo de potencializar o grupo-
pesquisador enquanto filósofo ou intelectual coletivo que cria pensamento mediante
confetos (conceitos perpassados de afetos), realizando assim uma produção que o
singulariza perante outras práticas grupais, notadamente com relação à pesquisa
participante e pesquisa-ação.
Se o diferencial da Sociopoética está no fato de se propiciar a produção do
pensamento do grupo-pesquisador mediante a produção de confetos, podemos nos
perguntar: Como isso acontece? Que planos criamos no ato de pensar, no ato de
filosofar? Que estilos de pensamento são criados pelo grupo-pesquisador nas
oficinas/vivências Sociopoéticas?
Para respondermos tais indagações, bebemos em Gauthier (2005) quem,
inspirado em Deleuze e Guattari (1991), nos traz os conceitos de plano de
imanência, plano de consistência e personagens filosóficos. Segundo Gauthier, o
ato de filosofar não é uma atividade reservada a especialistas pois este ímpeto
existe toda vez que instituímos um plano de imanência. O que é, então, a
imanência?

A imanência opõe-se a transcendência, ou seja, pensar não


necessita nenhuma aspiração à verticalidade, a um fundamento
absoluto, um princípio superior e eterno, nem a possessão de
capacidades reflexivas inesgotáveis, a contemplação de
generalizações abstratas ou a encenação de debates infinitos.
Começamos a filosofar quando filtramos o caos sem perder o
infinito das questões, ou seja, quando criamos o plano de imanência
(GAUTHIER, 2005, p. 258).

Assim, todos instituímos planos de imanência pois têm a ver com as nossas
práticas, e vivências. As vivências, por seu turno, nos colocam problemas. A prática
Sociopoética permite elucidar problemas que fazem parte da experiência vivida ou
implícita/herdada no inconsciente coletivo de um povo/grupo/categoria.
Pretendemos, pois, problematizar a vida com o grupo-pesquisador, o que supõe
descobrir rachaduras, divergências, diferenças que mobilizam este grupo mediante
postura (auto)crítica.
Para tanto, ajudamos o grupo pesquisador a transferir-se do plano de
imanência para o plano de consistência – o da criação de conceitos. O plano de
consistência

Define-se como a superfície onde os conceitos insistem, compõem-


se, criticam-se. Eles traçam linhas de fuga, de desterritorialização,
fugindo com velocidade de seu contexto de nascimento, para
constituir o pensamento abstrato. É a filosofia dos filósofos, tal
como é percebida: uma criação de conceitos (GAUTHIER, 2005, p.
258).

Assim, quando o grupo-pesquisador cria um conceito – inédito ou não –


este já não depende mais de seu contexto de nascimento, não é mais referido a um
corpo, a um ambiente e passa a relacionar-se com outros conceitos. As
personagens filosóficas, por sua vez, são
Os estilos de pensamento que vão e vêm de um plano para outro.
Na Sociopoética, pensar é coisa onde interferem afetos e conceitos.
Os afetos não são as emoções individuais, e sim intensidades que
percorrem corpos, potencializando-os, separando ou compondo-os.
Quando o grupo pesquisador está exercendo-se no pensamento, ele
trabalha segundo um estilo próprio, ele cria uma personagem
original [...] Com a noção de confeto, instalamo-nos no ‘entre-dois’,
no espaço-tempo diferenciador, ou seja, criador de cultura, como
esses ‘gênios híbridos’, poetas, pintores, músicos que [...]
modificam de maneira decisiva o que pensar significa, apresentando
uma nova imagem do pensamento povoando-o de entidades
artísticas. (GAUTHIER, 2005, p. 258-259).

Interessa-nos mostrar, mediante exemplos extraídos de nossas pesquisas,


alguns processos que se dão durante as oficinas Sociopoéticas, na passagem do
plano de imanência para o plano de consistência, enfatizando aqui três dimensões:
a diagramática, a generativa e a maquínica1.

1
Jacques Gauthier (2004) identifica outras dimensões, mas escolhemos apresentar neste texto apenas as que identificamos nas
nossas próprias investigações.
A dimensão diagramática

Essa dimensão aparece quando são traçadas linhas de desterritorialização,


ou seja,

relâmpagos que percorrem e quebram a forma de conteúdo, o


agenciamento maquínico dos corpos, tornam-se incorporais,
desvelando a sua atividade filosófica na sua intensidade primitiva. É
a criação do deleuziano e guattariano CsO, corpo sem órgãos, ou
seja, este ‘entre tempo e entre lugar’ chamado de pensamento
(GAUTHIER, 2005, p. 263).

Esse tipo de confeto com significado desterritorializado de uma expressão já


existente é bastante comum nas nossas pesquisas.
Um caso de desterritorialização é quando os co-pesquisadores geram
sentidos inexistentes no dicionário para determinados lugares, como acontece na
vivência dos lugares geomíticos. Na pesquisa com o tema gerador preconceito na
escola, realizada por Petit e Alcântara (2003), com crianças e adolescentes, isso se
deu quando, por exemplo, o lugar geomítico – caminho - foi assimilado ao espaço
da humilhação do negro ou em contraposição, a um possível refúgio face ao
preconceito racial. Já ao vento foram atribuídos sentidos divergentes: ora este é
um vulcão exterminador dos negros, ora é sinônimo de decadência (cai-se no vento
como se cai no poço); ora é mansidão discriminatória – é suave apenas com os
brancos – ou pelo contrário, veículo de justiça – punindo os preconceituosos – ou
ainda símbolo da invisibilidade do preconceito na falsa democracia racial brasileira.
Apesar da extrema polissemia das palavras caminho e vento, os sentidos
metafóricos acima citados são no mínimo incomuns e possivelmente originais até
na literatura não acadêmica.
A desterritorialização pode acontecer mediante ampliação do significado
trazido comumente por uma palavra existente. Esse efeito de ampliação pode ser
exemplificado com a pesquisa de Costa (2002) que tratou da participação do aluno
na escola. Para o grupo pesquisador, a participação do aluno na escola passou a
envolver uma multiplicidade enorme de elementos tais como: a solidariedade entre
colegas, a estrutura física da escola, a (não)interligação da própria experiência com
o se que aprende na escola, a organização dos alunos pelos seus direitos, o
engajamento em atividades de melhoria do ambiente, a socialização e iniciação aos
saberes de transgressão (por exemplo o uso de drogas), o (não) respeito à
trajetória de vida dos alunos, a (não) dinamização das aulas, a (falta de)
dialogicidade aluno-professor, o telensino, o estado de ânimo e a motivação do
aluno, o desempenho escolar, a interferência do trabalho e do deslocamento no
transporte público, a violência urbana no caminho à escola; a relação escola-
família, as relações intrafamiliares; as relações afetivas/de convivência na escola e
na família; as práticas de disciplinamento do aluno e o esquadrinhamento do tempo
e do espaço, a mentira como instrumento de transgressão às regras; a falta à
aula.; a (falta) de produção coletiva do conhecimento; as relações hierárquicas.
Nota-se como o conceito de participação na escola termina se revestindo de
dimensões que extrapolam às categorizações usuais que tendem a ficarem mais
delimitadas pois o grupo sociopoético favorece a descoberta da transversalidade
que perpassa todo tema gerador.
Outra forma de desterritorialização é a transversalização de conceitos. Na
pesquisa de Adad (2004), realizada com os educadores sociais de rua, em Teresina,
com o tema “O desejo na convivência do grupo”, a contra-análise propiciou aos co-
pesquisadores transversalizarem os conceitos produzidos e assim criarem novos
elos inesperados entre eles.
Nesta pesquisa, durante a fase de produção de dados, tinham sido criados
os conceitos de educador luz no final do túnel e de desejos maternais. O
confeto de educador luz no final do túnel diz respeito ao educador que se
considera a luz, a esperança, a alegria de todos, um caminho e um futuro a ser
seguido, pois tem a solução para os desejos na convivência do grupo e o conceito
de desejos maternais tem a ver com o desejo de cuidar da família, dos filhos, das
crianças, das mulheres, dos doentes e dos velhos. Esses desejos foram expressos
em painéis de recortes com imagens de mães: mãe com filhos, avós em família,
Maria com Cristo, retrato de mãe com seu filho. Na contra-análise estes conceitos
ou personagens filosóficos, foram transversalizados: um conceito foi cruzado,
tomado, assimilado, retrabalhado, recriado quando o primeiro conceito foi remetido
ao outro conceito. O cruzamento fez o grupo criar um novo conceito, o de
educador encaminhador – aquele que é resultado da ligação dos conceitos
anteriores e que propiciou aos co-pesquisadores as seguintes reflexões sobre sua
convivência no grupo e com as entidades que trabalham:

Buscando refletir sobre os desejos maternais, produzido no texto


anterior, e, ao mesmo tempo, ligando ao conceito de educador luz
no final do túnel, penso que de uma certa maneira esses
conceitos refletem a idéia de instituição controladora – aquela que
não vê a potência do menino ou que não vê que ele pode ser ou ter
desejos de um modo grande. Acho que o educador luz no final do
túnel acaba concentrando os desejos na gente, e os outros acabam
nos vendo como instituição, como a instituição, que, nesse caso,
tem que ser do jeito deles: identificar e encaminhar esperança. Nós
acabamos por resolver e decidir pel2os meninos, e acabamos por
acelerar o seu processo de institucionalização. A Secretaria
Municipal da Criança e do adolescente - SEMCAD diz que somos
protetores, mas acaba, também, por tomar decisões pela família e
pelo menino. Educador luz no final do túnel – idéia missionária –
que se aproxima da Secretaria ao usar de autoritarismos, e ao
neutralizar a autonomia dos outros. Assim, em vez da autonomia
do menino, a gente cria é a dependência. Outro co-pesquisador
argumenta: Eu vejo assim: quando a gente trabalhava no tempo do
menino, se passava para ele aquela responsabilidade de mudança.
O educador trabalhava o tempo do menino mas na perspectiva dele
perceber o momento em que precisava mudar. É ele que faz e não
nós... nós não vamos fazer por ele. A gente dava apenas indicativos
para que ele decidisse. Mas houve modificação. Hoje, a gente não
trabalha mais o tempo do menino, o desejo do menino, mas, sim, o
da logo. Hoje, nós somos o educador encaminhador (ADAD,
2004, p. 228).

Desse modo o grupo realimentou os conceitos de educador luz no final


do túnel e de desejos maternais numa encruzilhada de problemas que se
proliferaram em outro contexto, o momento da contra-análise, num processo de
heterogênese e de afinição de conceitos que atraiu e criou outros significados,
mostrando que a produção do conhecimento é infinita, inacabada e aberta, sendo
portanto oposto ao movimento da definição que acaba, delimita e fecha o
significado. (GAUTHIER, 2005, p. 261).
Os conceitos criados na Sociopoética são sempre perpassados de afetos,
resultado das intensidades que percorrem os corpos e da fusão entre arte e
filosofia. São, portanto, um misto de emoção, razão, sensação, intuição, não
consciente (não nos arriscamos muito à palavra inconsciente pela conotação psico-
analítica). Dessa forma, os confetos são mais do que enunciados intelectuais, são a
expressão de experiências coletivas que implicam o corpo sensível, portanto, uma
forma potente de pensamento que não se limita à razão. Os conceitos, portanto,
podem ser poéticos e/ou metafóricos, miscigenados, interferenciais Geralmente,
anarquizam referências prévias.
Podemos destacar outro exemplo na pesquisa com os educadores sociais
de rua de desterritorializações que produzem elos inesperados entre os conceitos.
Na contra-análise, Adad levou esta poesia, fruto da análise plástica da técnica A
invenção do corpo coletivo do educador de rua2 para que os educadores
problematizassem o tema O desejo na convivência do grupo:

Quantos corpos desejantes o educador tem dentro de si?

Partes de corpos expressam


os desejos na convivência do grupo
composição de corpos
são experimentados
proliferando-se e multiplicando-se
os sentidos tornam-se polifônicos

Interligados em sua convergência


os desejos

2
A técnica A invenção do corpo coletivo do educador de rua desenvolveu-se, inicialmente, com um relaxamento, onde cada
participante era levado a imaginar um parte do seu corpo que tivesse a ver com o tema gerador os desejos na convivência do
grupo. Em seguida, cada educador modelou sua parte do corpo com folhas jornais, grude, pincéis e tintas coloridas. Posteriormente,
juntaram as partes de cada um formando o corpo coletivo que denominaram Reimundis.
na convivência do grupo
apresentam-se de muitos jeitos
ora retraídos ora dispostos
ora ambíguos ora desequilibrados

No corpo cabeça-perna-pé-braços com mão


Os desejos são retraídos
estão presos na escuridão
dos sentimentos frios
fixos e sem movimento
um corpo estagnado e ordeiro
triste e controlado
com medo de machucar-se

No corpo cabeças-boca-nariz-olhos-coração-pernas-pé
Os desejos de convivência são de multiplicidade
de possibilidades, desafios, disposição
e de muita criação
são desejos sensíveis, vivazes, alegres, dispostos
cheios de energia e prontidão

E o corpo cabeça-olhos-coração-braço-mão?
O pensamento do grupo
é de estranhamento e ambigüidade
pensamentos claros-escuros
de difícil entendimento pois
a totalidade é aberta mas
a abertura e a invasão das cores
são parciais e restritas
abertura com proteção
limites de uma mão-luva
desejos no convívio do grupo

No corpo coração-braço-perna-pé
Os desejos são fraturados
doídos
desequilibrados
na corda bamba

estão por um fio


desejos que são como
tubulações roliças que se movimentam
canais abertos
onde correm o fluxo
o jorro
no palco da convivência em grupo. (ADAD, 2004, p. 164-165)

Diante da poesia, o grupo produziu uma análise densa de seus desejos na


convivência em vários âmbitos. Segundo Adad (2004, p. 166), os educadores
disseram que a terceira estrofe, mostra um corpo educador que não possui o
coração, e por isso, o desejo retraído – aquele que “possui algumas amarras,
tem algo que o impede de ver a coisa pelo lado do coração, vai mais pela razão; vê
a coisa mais obscura [...]”. Os desejos retraídos na convivência são “o momento
em que nós estamos diante dos nossos desejos frente à instituição que
trabalhamos, o nosso corpo fica assim, controlado, contraído, com vontade de
mostrar os desejos mas não se movimenta, não vai em frente.”
Já a quarta estrofe que apresenta um corpo com desejos de multiplicidade,
desafios, possibilidades, disposição e de muita criação

é a interação do nosso corpo com o corpo do menino de rua. Pois,


mesmo possuindo algumas arestas, ou algo que impeça o nosso
movimento, enfrentamos os desafios sempre com disposição,
usando a criatividade dos nossos desejos mais sensíveis, e que
fogem um pouco daquela coisa racional, e que muitas vezes faz com
que nos movimentemos. (ADAD, 2004, p. 166)

No terceiro corpo, expresso no quinto momento da poesia, Adad (2004, p.


166-167) nos diz que o pensamento do grupo é de ambigüidade, de pensamentos
claros-escuros e de difícil entendimento, “expressa bem as nossas relações. Dentro
do nosso grupo nós temos cores que se juntam, mas não se misturam, pois o grupo
não está suficientemente maduro pra se misturar. Acho que está faltando essa
97
mistura mesmo [pois o grupo] está com uma luva.” Uma co-pesquisadora
identifica a combinação entre este devir luva com os desejos fraturados da
sexta estrofe, aquele que possui laços rompidos, como se a convivência entre eles
estivesse numa corda bamba com o momento da chegada dos novos educadores no
grupo. Os veteranos os receberam como algo estranho, provocando medo,
constrangimentos e mágoas, a ponto de afetar a prática pedagógica.
Na produção desse elo inesperado, o grupo analisa a presença de um
elemento de poder entre eles mesmos – correlações de forças entre o saber-
experiência dos educadores veteranos, que inibiam a ação dos novos, e o saber
acadêmico que estes traziam. Os veteranos ficaram com medo de serem
substituídos por este saber. Eles disseram: “Mudou a convivência, alguns
educadores saíram, e para a seleção da nova equipe o critério de seleção foi a
formação acadêmica: uns eram biólogos, outros pedagogos, outros psicólogos e eu
acho que isso, em certo momento, nos causou medo.” (ADAD, 2004, p. 214-215).
O conhecimento dos educadores veteranos, portanto, fechou-se sobre si mesmo e
impediu que o fluxo e a intensidade dos novos se manifestassem. O educador novo,
por sua vez, revelou que tinha receio do trabalho, não conseguia se sentir à
vontade:

No início, nós não fomos bem acolhidos pelos veteranos, a gente se


sentia excluído. Eu me perguntava: – Será que eu vou me adaptar a
esse trabalho porque eu não estou me sentindo à vontade? [...]
Assim, o grupo não se misturava, porque ora se dizia que o que
valia era o saber-experiência, ora era o outro, assim se mostrava a
importância do curso superior. Esse conflito ficou por muito tempo...
(ADAD, 2004, p. 215).

97
Quando necessário, uso o recurso dos colchetes para acrescentar expressões que possam complementar as idéias do grupo para
determinado pensamento.
Ou seja, tal dimensão da análise, evidenciou que o mesmo conhecimento
que treina e faz as pessoas crescerem, pode fazer com que “as coisas não se
transformem, a partir do momento em que a gente se fecha e deseja um
conhecimento dominante, ponderou um co-pesquisador.” (ADAD, 2004, p. 167).

Dimensão generativa e supercontextualização

Na oralidade, tendemos a expressar mais as nossas intuições e de maneira


contextualizada. O teatro de Boal, quando trabalhado na perspectiva do Arco-íris do
Desejo (1996), e, sobretudo, sem o verbo, permite a criação filosófica disjuntiva
porque faz emergir uma polifonia imediata nos sentidos atribuídos – é a
supercontextualização:

Geralmente, o processo de abstração, tal como é ensinado na


escola, segue o modelo platônico: ao percebermos o que é comum
na diversidade, isolamos a essência, e se confunde com a definição,
de tipo matemática, clara, distinta e unívoca. Nessa visão platônica
[...] o contexto particular, a diversidade do sensível, as diferenças
de percepção [...] são obstáculos ao conhecimento científico. [...]
quando um membro do grupo-pesquisador propõe uma leitura de
um teatro-imagem, ele espontaneamente mergulha na sua
subjetividade, enunciando contextos singulares, lembranças
secretas, conexões complexas que só ele faz. Assim podemos dizer
que ele supercontextualiza. (GAUTHIER, 2005, p. 279).

Por exemplo, numa oficina Sociopoética (ano) com o tema gerador A ética
na ciência, recorremos ao Teatro Imagem de Boal. Uma das imagens corporais foi:
“uma pessoa em pé com um braço dobrado e a mão espalmada, com a outra mão
tirando os óculos como se fosse ver melhor ao longe.” Para essa imagem corporal
os participantes que a observaram formularam as seguintes análises:

• A pesquisa é algo que fazemos às cegas


• É a atitude contemplativa que temos na pesquisa
• O político tem que ter o óculo bifocal: para enxergar de longe e de perto; a
ciência também deve dar conta do perto e do longe, sem que sejam
excludentes
• Representa a visão reducionista da ciência, está numa direção bem
determinista
• Percebeu que a ciência não é objetiva, a pessoa vê que ao olhar com os
óculos nota determinadas coisas, mas que ao tirar os óculos talvez enxergue
outras coisas, menos claras
• Eu aumento mas permaneço no lugar, os óculos me protegem do contato
com o outro (é um escudo?)
• Vejo o que está por trás do olhar: isso pode mudar a minha visão das coisas
• Quer proteger-se dos pesquisados

No final, ficamos sabendo qual a intenção do escultor da imagem corporal.


Para ele tratava-se do:
• Olhar que olha o olhar do que olha: O braço permite ver melhor,
proteger-se do sol.

Como vemos nesse exemplo, a linguagem das esculturas corporais abre


para uma multiplicidade de significações onde cada participante referencia-se no
seu próprio contexto de vida, sentimentos, visão de mundo e imaginação para
atribuir sentido ao que vê. Longe de nos preocuparmos com a verdade do escultor,
o que procuramos é suscitar a polifonia e assim entendermos o quanto um tema
como o da A ética da ciência sugere uma diversidade de sentidos. Para essa única
escultura, as problematizações giraram em torno de várias reflexões sobre o olhar
do pesquisador – relacionado, por um lado, a capacidade da ciência enxergar o
todo, ou pelo contrário, à limitação da visão segundo o ângulo de observação ou
ainda à atitude de auto-observação. Mas numa direção diferente, referem-se à
postura de distanciamento para com os outros/pesquisados, ou ainda, à
contemplação, e por fim, à incerteza que marca o ato investigativo, feito às cegas.
Junto com a “escultura” acima descrita foram apresentadas ao mesmo
tempo mais duas imagens corporais, referidas ao tema gerador A ética da
ciência, e que propiciaram as seguintes análises: “Em pé em desequilíbrio, com as
pernas cruzadas, o braço no queixo, pensativa.” Para essa imagem corporal os
participantes que a observaram formularam as seguintes análises:

• A ordem e a desordem enquanto complexidade; a base sendo pequena fica


difícil manter a posição
• Há uma relação entre o simples e o complexo
• Hoje não existe mais equilíbrio, não se pode mais falar nisso, só existe a
dinâmica constante na natureza
• É a desordem organizadora

No final, ficamos sabendo qual a intenção do escultor da imagem corporal. Para


ele tratava-se:

• Os movimentos lineares e curvos indicam desequilíbrio com harmonia. Gosto


de olhar nas dobras, um no limite do outro, na fronteiras. É o princípio da
pesquisa: perceber a diversidade numa unidade aberta.

Nas análises dessa imagem corporal destacam-se as associações feitas com


as relações binárias complexo/simples, ordem/desordem, diversidade/unidade ou
pelo contrário, noções de integração de contrários que soam paradoxais, na
acepção de Edgar Morin de diálogo: desequilíbrio com harmonia; desordem
organizadora ou ainda, à idéia de movimento/dinâmica.
Eis a terceira imagem apresentada no mesmo ato: “Em pé com uma das
mãos nos olhos, com um braço apontado para frente.”

As observações que esta imagem suscitou foram:

• As teorias não são o reflexo do real, o que a ciência aponta, ela não está
vendo
• A ciência está com a mão na cara (tenha vergonha na cara!) e apontando,
assim parece que quer tocar em alguma coisa, quer apalpar por uma via
empírica
• A observação tem a ver com a visão, aqui a visão está impossibilitada, então
vai ter que desenvolver outros sentidos
• Esse braço estendido evoca o mistério
• Os olhos fechados: se ela é a ciência, mas segue em frente vedada, então
isso coloca uma questão ética, a saber, qual é a ética da ciência?

Como o escultor foi embora, aqui faltou o registro de qual tinha sido a sua
intenção.
Nessa imagem retorna o mote do olhar, mas com outras acepções –
cegueira ética, enquanto rechaço da ética por parte da ciência, mas também, numa
outra direção de pensamento, a limitação da observação como fonte de
conhecimento, exigindo a empiria com o aguçar de outros sentidos, como “apalpar
por uma via empírica”. Por fim, uma nuança mais diferente, a noção de ciência
como mistério.
Numa fase seguinte, a facilitadora pediu para os participantes evocarem qual
o título que dariam à cena que as três imagens corporais formavam juntas, de
maneira fortuita, uma vez que nenhum/a dos/as escultores/as tinha planjejado a
disposição dessas três esculturas na sala. Eis os diferentes títulos dados à cena
fortuita assim criada, mas relacionada ao tema gerador A ética na ciência:

• O indeterminismo na ciência
• A ciranda da pesquisa científica
• Diversos olhares sobre a pesquisa
• Ordem, desordem e organização
• O olhar que olha o olhar que olha os questionamentos da ciência.

Fica manifesto nesse exemplo como, a partir de apenas 3 imagens


corporais, o fenômeno de supercontextualização termina gerando grande
diversidade de “afinições”. É o que chamamos a dimensão generativa dos
conceitos – sua polissemia. No mesmo grupo fica claro que o tema gerador produz
uma afinição de sentidos e não definições, pois não existe uma única verdade, e
sim significados heterogêneos para uma palavra ou expressão dada. É uma
particularidade da pesquisa Sociopoética raramente repetir um único significado
para um tema dado.

A dimensão maquínica

Essa vem à tona quando os agenciamentos corporais – maquínicos - e


incorporais – de enunciação - passam a interferirem uns nos outros. Nesse
momento, parece que a própria produção de conceitos gera uma transformação
micropolítica do desejo com efeitos de mudança nos membros do grupo
pesquisador (inclusive o/a facilitador/a), mudanças essas que afetam as práticas
sociais nos contextos de inserção de cada um@. Consideramos isso um processo de
auto-conscientização que acontece geralmente pela auto-análise e análise coletiva
das implicações que se dão nas oficinas, pelo fato de construirmos
pensamento/conhecimento juntos e assim descobrirmos as nossas próprias costas,
ou como diz Gauthier (2005, p. 269), graças às “intuições repentinas, que só
podem acontecer na proximidade física das energias mobilizadas pelo pensar-
juntos.” É uma dimensão muito sócio-analítica não raramente trazida por
analisadores que fazem emergir o inconsciente institucional que nos perpassa. É
muito interessante quando o grupo – inclusive o/a facilitador/a - lê seu próprio
invisível. Concordamos com Gauthier (2005, p. 268), que nesse momento, a
Sociopoética demonstra ser, não somente, mas também, “uma ampliação da
análise institucional, por favorecer o surgimento de conhecimentos críticos das
instituições e a invenção de alternativas instituintes.”
Assim, estamos interessad@s em desconstruções do óbvio e em trazer à
tona algo que nos permita sair de nossos quadros filosóficos e eventualmente,
também, evadir-nos da prisão de nossa cultura nativa. Por isso tentamos realizar
análises disjuntivas e não conjuntivas, pois preferimos enfatizar a heterogeneidade
antes que o homogêneo. Sabendo que os grupos tendem a resistir muito,
amarrando-se à ilusão grupal, procuramos produzir dispositivos que intensifiquem
as linhas de fratura e de antagonismo do grupo. Nesse sentido, à Sociopoética cabe
a invenção de novas forças ou novas armas que escapem à simples discussão e
análise crítica verbalizada. Com isso, queremos trazer à tona o resíduo do
implícito/abafado, pois trata-se de tocar algo do invisível daquilo que dificilmente se
imagina acerca da prática social do grupo.
Com relação ao fato de trazer à tona o implícito ou abafado, a referida
pesquisa sobre o preconceito na escola, torna-se também referência. Antes de
iniciar a pesquisa Sociopoética, tínhamos realizado, na mesma escola, um
diagnóstico que levantava mediante aplicação de perguntas abertas em
questionários, o que alunos gostam e não gostam na escola e os temas que
gostariam que fossem discutidos. Nesse diagnóstico, que atingiu 600 dos 800 alunos
de 2a à 8a série, um dos principais problemas apontados foi o da convivência entre os
pares na escola. As reclamações eram relativas a xingamentos, agressões físicas e
humilhações nas relações entre os alunos. Mas esses fatos não eram relacionados ao
preconceito racial (PR). Esse foi mencionado apenas duas vezes num total de 200
respostas referentes a problemas de convivência. Já na pesquisa Sociopoética,
apesar do tema gerador ter sido preconceito na escola, isto é, bastante genérico, a
imensa maioria dos confetos criados foram relacionados ao PR. Notamos então que
embora o PR praticamente não tivesse sido referido no diagnóstico, o fenômeno lá se
encontrava sob a forma velada de queixas de xingamentos, piadas, humilhações e
agressões físicas. Podemos então afirmar que a pesquisa Sociopoética permitiu trazer
à baila um implícito social muito forte, o da ocorrência corriqueira, porém
naturalizada do preconceito racial na escola cearense. O importante nessa descoberta
é perceber que isso só foi possível mediante a linguagem simbólica propiciada pela
Sociopoética. Foi essa linguagem simbólica e a vivência por vezes bastante
conflituosa nas oficinas, que produziram, sem que o induzíssemos, rachaduras no
tabu do preconceito racial.
@ facilitador@ pretende ajudar o grupo a desformar o mundo desfazendo-
se das referências e teorizações prontas, dos pré-conceitos que impedem formular
o novo (produzir linhas de fuga); evitar que se fique apenas na repetição das
naturalizações dadas pelo instituído. Ao ajudar o grupo, @ facilitador@ ajuda a si
mesmo pois os efeitos imprevisíveis dos dispositivos de estranhamento que criou
lhe fazem problematizar faces inesperadas do tema gerador. Na pesquisa acima
mencionada, a dimensão maquínica propiciou, inclusive às facilitadoras, maior
auto-consciência de seus preconceitos. Todos/as nós membros do grupo
pesquisador passamos a refletir sobre os mesmos, notadamente sobre o PR. Mães
de alunas do grupo pesquisador nos revelaram que as suas filhas tinham mudado
de atitude graças às nossas oficinas, tornando-se mais sensíveis às reações de seus
pares. Várias co-pesquisadoras também nos afirmaram terem “melhorado” seu
comportamento com os/as colegas, sobretudo no que se refere às relações
interétnicas, evitando determinadas práticas preconceituosas. Assim, um dos
principais méritos dessa investigação foi o de fazer o grupo quebrar o silenciamento
em torno do PR tornado possível pela sua forte naturalização. Foi um produto
paralelo3 importante da pesquisa o fato de todos os co-pesquisadores se

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Chamamos assim os achados não previstos mas obtidos pelo próprio processo investigativo. São resultados que fogem
aparentemente ao tema pesquisado e por isso, considerados “paralelos” mas que trazem à tona aspectos do método e interferem nos
achados oficiais. Para saber mais, vide nosso artigo PETIT, Sandra H. Dos “produtos paralelos” de uma pesquisa. In: Revista do
Departamento de Psicologia- UFF, V.13. p. 125-144, 2001.
permitirem essa desnaturalização. As oficinas Sociopoéticas se configuraram nesse
espaço de desnaturalização, pelo fato de liberar um certo inconsciente institucional.
Diante de nossa reflexão, ponderamos que a Sociopoética com sua
proposta de tornar os co-pesquisadores de suas pesquisas filósofos percorre
itinerários de invenção e adquire propriedades criadoras, pois ao filosofar, criando
confetos, os membros do grupo pesquisador traçam planos repletos de afetos
advindos de conceitos desterritorializados e de confetos criados em sua
consistência. Tais confetos, portanto, são efeitos de um pensamento híbrido que
afirma a multiplicidade em fusão do grupo-pesquisador e a sua produção de
devires.
Desse modo, a Sociopoética, ao traçar o plano pré-filosófico em sua
imanência, inventa traços de personagens filosóficos e de confetos produzidos em
um plano de consistência capaz de possibilitar aos co-pesquisadores descobrir os
problemas que inconscientemente os mobilizam; criar novos problemas ou novas
maneiras de problematizar a vida; produzir confetos, contextualizados no afeto e
na razão, na sensualidade e na intuição, na gestualidade e na imaginação do grupo-
pesquisador e criar conceitos desterritorializados, que entram em diálogo com os
conceitos instituídos (GAUTHIER, 2005)
Poetizando, concluímos:
SOCIOPOÉTICA
Arquitetura conceitual
Foge do pensamento único
Prolifera a multiplicidade
Torna singularidades possíveis
Desterritorializa conceitos
Afetos e razão
Produzem confetos
Tornam co-pesquisadores filósofos
Transvêem e desformam
a ordem natural das coisas
Avessos e transversalidades do mundo.

Referências Bibliográficas:
ADAD, Shara Jane H. Costa. Jovens e educadores sociais de rua: itinerários
poiéticos que se cruzam pelas ruas de Teresina. Programa de Pós-graduação em
Educação Brasileira. 2004. 243f. Tese (Doutorado em Educação Brasileira).
Universidade Federal do Ceará – UFC, Fortaleza; 2004.
BOAL, Augusto. O arco-íris do desejo – Método Boal de Teatro e Terapia. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro:Ed. 34,
1992.
COSTA, Hercilene. Sociopoetizando a participação e a avaliação: os sentidos
produzidos por dois grupos de alunos de uma escola pública. Programa de Pós-
graduação em Educação Brasileira. 2002. 252f. Dissertação (Mestrado em Educação
Brasileira). Universidade Federal do Ceará – UFC, Fortaleza; 2002.
GAUTHIER, Jacques. Notícias do rodapé do nascimento da sociopoética.
Mimeografado, 2003.
GAUTHIER, Jacques. Trilhando a vertente filosófica da montanha: Sociopoética
- a criação coletiva de confetos. In: Iraci dos Santos; Jacques Gauthier; Sandra
Haydée Petit. (Org.). Prática da Pesquisa nas ciências humanas e sociais -
abordagem sociopoética. 1 ed. São Paulo: Atheneu, 2005, p. 257-286.
PETIT, Sandra & ALCÂNTARA, REBECA. Entre afetos e conceitos: tematizando o
preconceito racial numa escola cearense. In: Kelma Socorro Lopes de Matos.
(Org.). Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola: a favor da diversidade.
Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará, 2003, v. 10, p. 91-106.

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