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Assim, todos instituímos planos de imanência pois têm a ver com as nossas
práticas, e vivências. As vivências, por seu turno, nos colocam problemas. A prática
Sociopoética permite elucidar problemas que fazem parte da experiência vivida ou
implícita/herdada no inconsciente coletivo de um povo/grupo/categoria.
Pretendemos, pois, problematizar a vida com o grupo-pesquisador, o que supõe
descobrir rachaduras, divergências, diferenças que mobilizam este grupo mediante
postura (auto)crítica.
Para tanto, ajudamos o grupo pesquisador a transferir-se do plano de
imanência para o plano de consistência – o da criação de conceitos. O plano de
consistência
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Jacques Gauthier (2004) identifica outras dimensões, mas escolhemos apresentar neste texto apenas as que identificamos nas
nossas próprias investigações.
A dimensão diagramática
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A técnica A invenção do corpo coletivo do educador de rua desenvolveu-se, inicialmente, com um relaxamento, onde cada
participante era levado a imaginar um parte do seu corpo que tivesse a ver com o tema gerador os desejos na convivência do
grupo. Em seguida, cada educador modelou sua parte do corpo com folhas jornais, grude, pincéis e tintas coloridas. Posteriormente,
juntaram as partes de cada um formando o corpo coletivo que denominaram Reimundis.
na convivência do grupo
apresentam-se de muitos jeitos
ora retraídos ora dispostos
ora ambíguos ora desequilibrados
No corpo cabeças-boca-nariz-olhos-coração-pernas-pé
Os desejos de convivência são de multiplicidade
de possibilidades, desafios, disposição
e de muita criação
são desejos sensíveis, vivazes, alegres, dispostos
cheios de energia e prontidão
E o corpo cabeça-olhos-coração-braço-mão?
O pensamento do grupo
é de estranhamento e ambigüidade
pensamentos claros-escuros
de difícil entendimento pois
a totalidade é aberta mas
a abertura e a invasão das cores
são parciais e restritas
abertura com proteção
limites de uma mão-luva
desejos no convívio do grupo
No corpo coração-braço-perna-pé
Os desejos são fraturados
doídos
desequilibrados
na corda bamba
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Quando necessário, uso o recurso dos colchetes para acrescentar expressões que possam complementar as idéias do grupo para
determinado pensamento.
Ou seja, tal dimensão da análise, evidenciou que o mesmo conhecimento
que treina e faz as pessoas crescerem, pode fazer com que “as coisas não se
transformem, a partir do momento em que a gente se fecha e deseja um
conhecimento dominante, ponderou um co-pesquisador.” (ADAD, 2004, p. 167).
Por exemplo, numa oficina Sociopoética (ano) com o tema gerador A ética
na ciência, recorremos ao Teatro Imagem de Boal. Uma das imagens corporais foi:
“uma pessoa em pé com um braço dobrado e a mão espalmada, com a outra mão
tirando os óculos como se fosse ver melhor ao longe.” Para essa imagem corporal
os participantes que a observaram formularam as seguintes análises:
• As teorias não são o reflexo do real, o que a ciência aponta, ela não está
vendo
• A ciência está com a mão na cara (tenha vergonha na cara!) e apontando,
assim parece que quer tocar em alguma coisa, quer apalpar por uma via
empírica
• A observação tem a ver com a visão, aqui a visão está impossibilitada, então
vai ter que desenvolver outros sentidos
• Esse braço estendido evoca o mistério
• Os olhos fechados: se ela é a ciência, mas segue em frente vedada, então
isso coloca uma questão ética, a saber, qual é a ética da ciência?
Como o escultor foi embora, aqui faltou o registro de qual tinha sido a sua
intenção.
Nessa imagem retorna o mote do olhar, mas com outras acepções –
cegueira ética, enquanto rechaço da ética por parte da ciência, mas também, numa
outra direção de pensamento, a limitação da observação como fonte de
conhecimento, exigindo a empiria com o aguçar de outros sentidos, como “apalpar
por uma via empírica”. Por fim, uma nuança mais diferente, a noção de ciência
como mistério.
Numa fase seguinte, a facilitadora pediu para os participantes evocarem qual
o título que dariam à cena que as três imagens corporais formavam juntas, de
maneira fortuita, uma vez que nenhum/a dos/as escultores/as tinha planjejado a
disposição dessas três esculturas na sala. Eis os diferentes títulos dados à cena
fortuita assim criada, mas relacionada ao tema gerador A ética na ciência:
• O indeterminismo na ciência
• A ciranda da pesquisa científica
• Diversos olhares sobre a pesquisa
• Ordem, desordem e organização
• O olhar que olha o olhar que olha os questionamentos da ciência.
A dimensão maquínica
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Chamamos assim os achados não previstos mas obtidos pelo próprio processo investigativo. São resultados que fogem
aparentemente ao tema pesquisado e por isso, considerados “paralelos” mas que trazem à tona aspectos do método e interferem nos
achados oficiais. Para saber mais, vide nosso artigo PETIT, Sandra H. Dos “produtos paralelos” de uma pesquisa. In: Revista do
Departamento de Psicologia- UFF, V.13. p. 125-144, 2001.
permitirem essa desnaturalização. As oficinas Sociopoéticas se configuraram nesse
espaço de desnaturalização, pelo fato de liberar um certo inconsciente institucional.
Diante de nossa reflexão, ponderamos que a Sociopoética com sua
proposta de tornar os co-pesquisadores de suas pesquisas filósofos percorre
itinerários de invenção e adquire propriedades criadoras, pois ao filosofar, criando
confetos, os membros do grupo pesquisador traçam planos repletos de afetos
advindos de conceitos desterritorializados e de confetos criados em sua
consistência. Tais confetos, portanto, são efeitos de um pensamento híbrido que
afirma a multiplicidade em fusão do grupo-pesquisador e a sua produção de
devires.
Desse modo, a Sociopoética, ao traçar o plano pré-filosófico em sua
imanência, inventa traços de personagens filosóficos e de confetos produzidos em
um plano de consistência capaz de possibilitar aos co-pesquisadores descobrir os
problemas que inconscientemente os mobilizam; criar novos problemas ou novas
maneiras de problematizar a vida; produzir confetos, contextualizados no afeto e
na razão, na sensualidade e na intuição, na gestualidade e na imaginação do grupo-
pesquisador e criar conceitos desterritorializados, que entram em diálogo com os
conceitos instituídos (GAUTHIER, 2005)
Poetizando, concluímos:
SOCIOPOÉTICA
Arquitetura conceitual
Foge do pensamento único
Prolifera a multiplicidade
Torna singularidades possíveis
Desterritorializa conceitos
Afetos e razão
Produzem confetos
Tornam co-pesquisadores filósofos
Transvêem e desformam
a ordem natural das coisas
Avessos e transversalidades do mundo.
Referências Bibliográficas:
ADAD, Shara Jane H. Costa. Jovens e educadores sociais de rua: itinerários
poiéticos que se cruzam pelas ruas de Teresina. Programa de Pós-graduação em
Educação Brasileira. 2004. 243f. Tese (Doutorado em Educação Brasileira).
Universidade Federal do Ceará – UFC, Fortaleza; 2004.
BOAL, Augusto. O arco-íris do desejo – Método Boal de Teatro e Terapia. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro:Ed. 34,
1992.
COSTA, Hercilene. Sociopoetizando a participação e a avaliação: os sentidos
produzidos por dois grupos de alunos de uma escola pública. Programa de Pós-
graduação em Educação Brasileira. 2002. 252f. Dissertação (Mestrado em Educação
Brasileira). Universidade Federal do Ceará – UFC, Fortaleza; 2002.
GAUTHIER, Jacques. Notícias do rodapé do nascimento da sociopoética.
Mimeografado, 2003.
GAUTHIER, Jacques. Trilhando a vertente filosófica da montanha: Sociopoética
- a criação coletiva de confetos. In: Iraci dos Santos; Jacques Gauthier; Sandra
Haydée Petit. (Org.). Prática da Pesquisa nas ciências humanas e sociais -
abordagem sociopoética. 1 ed. São Paulo: Atheneu, 2005, p. 257-286.
PETIT, Sandra & ALCÂNTARA, REBECA. Entre afetos e conceitos: tematizando o
preconceito racial numa escola cearense. In: Kelma Socorro Lopes de Matos.
(Org.). Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola: a favor da diversidade.
Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará, 2003, v. 10, p. 91-106.