Documentos de Académico
Documentos de Profesional
Documentos de Cultura
Rejane Harder
rejane.harder@gmail.com
RESUMO: O presente texto aborda o sistema de Educação Musical através do Canto Orfeônico
implantado no Brasil por Heitor Villa-Lobos durante o governo Getúlio Vargas, que objetivou abranger
todas as escolas brasileiras de ensino regular, tendo vigorado por mais de uma década. Mostra também
que o ensino de música na atualidade, apesar de contemplado pela legislação educacional, não é efetivo
em grande parte das escolas de I e II graus. O texto aponta ainda para a necessidade do desenvolvimento
de programas de Artes/Música adequados à realidade do aluno brasileiro, sugerindo a formação de
Grupos Musicais, vocais e instrumentais, como uma alternativa.
KEYWORDS: Musical Education, Arts, Musical Groups, Orpheonic Singing and Villa-Lobos.
Introdução
Um breve olhar sobre a Educação Musical no Brasil neste ano de 2006, quando
a LDB 9394/96 completa dez anos de existência, permite-nos vislumbrar que, a despeito
de esforços e crescentes conquistas da área, o ensino de música nas escolas de I e II
graus não tem sido uma prioridade da educação geral e nem uma grande preocupação
das autoridades governamentais, apesar de contemplado pela legislação educacional
desde 1971 através da Lei 5692 que instituiu a obrigatoriedade do ensino de Artes nas
2
escolas, o que foi reafirmado no texto da nova LDB (9394/96) e delineado através da
redação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
Porém, ao contrário do revelado pelo quadro da Educação Musical atual, o
Brasil apresentou por mais de dez anos ininterruptos um sistema bem estruturado de
ensino de música nas escolas do ensino regular através de um sistema de Educação
Musical desenvolvido há mais de meio século, no governo Getúlio Vargas. Nesse
período o governo brasileiro incentivou o ensino de música no país, propiciando
condições e autonomia para que o compositor e educador musical Heitor Villa-Lobos,
que se tornaria conhecido, principalmente na Europa, desenvolvesse um sistema de
Educação Musical abrangente que utilizaria como um dos principais instrumentos de
ensino o Canto Orfeônico.
No presente texto, além da narrativa histórica da Educação Musical no período
de Getúlio Vargas serão apresentadas similaridades e diferenças entre o sistema
educacional de Villa-Lobos e alguns sistemas europeus da época, bem como possíveis
razões para a quase falência do sistema de Educação Musical brasileiro após a queda de
Vargas.
De volta ao século XXI, é apresentado um breve panorama da Educação Musical
nas escolas brasileiras, bem como a proposta e defesa da formação de Grupos Musicais
em ambientes escolares.
A título de conclusão, é apresentada uma breve análise do projeto educacional de
Villa-Lobos versus a situação da Educação Musical no início de um novo século, bem
como alguns questionamentos quanto à realidade do Educador Musical na atualidade.
3
De acordo com Chernãvsky na dissertação de mestrado intitulada “Um Maestro no Gabinete:
Música e Política no Tempo de Villa-Lobos” e ainda com Wassermann, ambos citados por Manuel Alves
Filho em artigo na Revista Isto é on-line, as grandes concentrações que reuniam milhares de alunos nos
estádios em gigantescos corais constituíam-se em “verdadeiras odes ao presidente”; Wassermann e
Chernãvsky são citadas ainda em artigo no site www. samba_choro.com.br
4
Quanto à questão da não abrangência da capacitação pedagógica, Goldemberg (2003) aponta
como uma das causas a impossibilidade de se enviar professores de todo o Brasil para estudar na Escola
Nacional de Canto Orfeônico no Rio de Janeiro. Como paliativo foram criados cursos de férias, entre
outros considerados equivalentes ao oficial a serem ministrados nos locais mais distantes do Rio de
Janeiro. Tais cursos porém apresentavam um nível pedagógico aquém daquele pretendido inicialmente
por Villa-Lobos.
7
5
Tais como o de Faria (2000), que apresenta uma seleção de textos a respeito do ensino de Artes
nas escolas do ensino regular.
6
Lembrando que os PCNs deixam a cargo de cada escola a definição dos conteúdos curriculares
dentro do leque de opções que abrange a Música, as Artes Visuais, o Teatro e a Dança.
8
7
Tradução nossa.
8
Tradução nossa
9
de Educação Musical vigente nos EUA desde o início do Século XX e que prioriza a
Execução Musical, Swanwick (2003) propõe o modelo britânico que contempla a
integração entre as atividades de Execução, Composição/Improvisação e Apreciação
Musical.
Uma Educação Musical que envolva, além da Execução Musical, as atividades
de Apreciação e Contextualização Histórica faz parte também do pressuposto
pedagógico de Ana Mae Barbosa difundido no Brasil sob o nome de Proposta
Triangular para o Ensino da Arte.
Swanwick (2003) aponta ainda para a necessidade de se aliar a vivência do
aluno nas bandas, corais ou orquestras com um conhecimento mais profundo do valor,
da forma, da expressão e dos materiais, em música, o que conduziria o estudante a um
“discurso musical” fluente. 9
Tais propostas, em suma, objetivam levar os cantores ou instrumentistas,
integrantes dos grupos musicais a, desde o início, receber de seus professores
informações quanto a história de cada música a ser executada, proporcionando assim
subsídios para que o mesmo construa sua interpretação das obras com maior
compreensão do estilo e caráter da mesma, sendo ainda incentivado a buscar na voz ou
instrumento sonoridades mais agradáveis e características. Através de exercícios
apresentados a cada aula pelo professor, o aluno aprenderia também a trabalhar os
‘materiais’ no sentido de distinguir e executar diferentes níveis de dinâmica,
andamento, altura e ritmo com precisão. Na realidade, o aluno deixaria de ser um mero
executante ou repetidor de sons passando a condição de um verdadeiro intérprete
musical. Esse mesmo aluno aprenderia também a criar e improvisar, a medida em que
entrasse em contato com novos sons e novas possibilidades musicais nas atividades
propostas e estimuladas pelo professor ou diretor do grupo musical do qual faz parte.
Uma das condições para se atingir um estágio ideal de ensino-aprendizagem em música,
seria que a escola, a priori, contasse com um corpo de professores capacitados,
conscientes e devidamente orientados.
Alguns Educadores Musicais brasileiros, além da procura por sintonizar o
trabalho que desenvolvem com os novos rumos propostos pela Educação Musical
9
Em resumo, para Swanwick, o processo de Educação Musical obedeceria a seguinte seqüência:
• Sons são ouvidos como formas expressivas, gestos. - ‘Notas’ tornam-se ‘melodias’.
• “Formas expressivas resultam em novas relações.” - “Música tem ‘vida própria’.”
• “A nova forma incorpora experiências anteriores.” - “Música informa a ‘vida do
sentimento’.
10
(como o modelo CLASP ou (T)EC(L)A apresentado por Keith Swanwick (2003, p.70)10
vêem buscando ainda conectar o ensino de Música nas escolas com a realidade
cultural e social do aluno e com o momento em que vive o país. A esse respeito,
Lüdke e André (1995) afirmam que “Um dos desafios atualmente lançados à pesquisa
educacional é exatamente o de tentar captar essa realidade dinâmica e complexa do seu
objeto de estudo, em sua realização histórica” (1995, p.5). Arroyo (2001), por sua vez,
propõe a pesquisa etnográfica como um meio de se estudar o que seriam as
‘representações sociais do aluno’ visando levantar dados que fundamentem a
construção de políticas em Educação Musical. Arroyo sugere ainda que os professores
sejam incentivados a desenvolver seus próprios programas e atividades em música a
partir das experiências musicais extraídas do cotidiano escolar do aluno. Nesse mesmo
sentido, Brito (2001), coloca sua proposta educacional, que denomina de “intercultural”
ou “multi-cultural”, e que contempla a fusão das muitas raças e culturas que convivem
no Brasil. Em sua proposta, Brito prioriza a conscientização e o respeito pelas
diferentes formas de expressão, considerando toda manifestação musical e artística
como igualmente válidas, em contraste com a idéia de Villa-Lobos, que ainda
influenciado pelo pensamento nacionalista, considerava que a “boa música” a ser
utilizada em sala de aula deveria unicamente fazer parte de uma seleção do cancioneiro
brasileiro.
Tourinho (2002), que vem trabalhando também no sentido de respeitar as
vivências do aluno no processo ensino-aprendizagem em música, insere um elemento
importante para a eficácia do mesmo: o respeito pelo gosto musical pessoal. Em sua
Tese de Doutorado, Tourinho afirma que “estimulando-se os alunos a estudar o material
que lhes interesse e apraze, é possível obter-se um melhor resultado...”. E acrescenta: “o
estímulo ao repertório que o aluno aprecia e valora pode se constituir em uma poderosa
arma de interesse e motivação para o aprendizado de novos conhecimentos...”
(Tourinho, 2002, p. 236 e 237).
Ainda partindo da vivência do aluno com vistas à aprendizagem em música,
pesquisas de Oliveira, Hentschke e Souza 11 , entre outras, estão em andamento visando
detectar as articulações entre os processos pedagógicos da escola com a aprendizagem
10
O modelo CLASP, traduzido para o português como (T)EC(L)A contempla atividades
principalmente de composição/improvisação e apreciação musical aliadas a performance/execução, além
de incentivar o conhecimento da literatura musical e o desenvolvimento da técnica, em um segundo
plano.
11
Mais informações a respeito do referido grupo de pesquisa em www.memuba.ufba.br
11
Alguns Questionamentos
12
Considerando a não existência um curso de Licenciatura em Artes ou Educação Artística em
Roraima.
14
sistemático, estando certo de que cada indivíduo está engajado num currículo de
música integrado, em um nível desafiante. Além desse compromisso ‘normal’ e
dessa pastoral ‘corriqueira’, mais os deveres organizacionais de um professor de
escola, existe o gerenciamento dos esquemas instrumentais de ensino correndo
em paralelo, lideranças de vários grupos extracurriculares e a produção de
eventos musicais durante todo o ano. Essas atividades geralmente são
planejadas e preparadas fora do horário das aulas e raramente incorporadas à
carga normal de ensino. Naturalmente, os professores de, por exemplo,
matemática, dirão que eles também tem trabalho extra-classe. Mas corrigir
trabalhos escritos não é o mesmo que envolver-se numa atividade que demanda
e exaure como o cara-a-cara dos ensaios exigentes, quando os professores de
música lutam por encontrar prazos para os concertos de final de semestre,
shows e outros eventos públicos. Fazer ambos os trabalhos – de professor de
música e de diretor musical – reunidos em um só é árduo, principalmente
quando as pessoas só são pagas para realizar um deles.” (Swannwick, 2003,
p.110)
comunicadas, no sentido de fornecer subsídios para os que estão hoje ensinando música
nas escolas do país (já que as iniciativas de formação continuada e capacitação não tem
ainda a abrangência desejada). Tais leituras poderiam ser aproveitadas também pelos
alunos e alunas que integram os cursos de Licenciatura em Música, bem como por
aqueles que cursam a disciplina Arte e Educação nos cursos de Pedagogia resultando
em professores mais conscientes e bem preparados.
Com novas pesquisas e com a maior divulgação dos resultados das pesquisas
já existentes, as vivências e conquistas não ficarão cristalizadas, uma vez que os novos
conhecimentos obtidos passarão gradativamente por um processo de sistematização que
resultará cada vez mais em conteúdos e propostas destinados a fundamentar o trabalho
dos Educadores Musicais.
A detecção dos problemas que ainda tem obstruído o avanço da Educação
Musical, aliada a uma busca conjunta por soluções poderá finalmente levar o Brasil a
dispor de um ensino de música sólido, integrado e acessível a todos os alunos das
escolas brasileiras, como já propusera Villa-Lobos na primeira metade do Século XX.
FONTES CONSULTADAS
Fontes Bibliográficas
BRITO, Teca Alencar de. A Educação Musical e o diálogo entre culturas. In:
ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO
MUSICAL, IX., 2000, Belém. Disquete: Comunicações de Pesquisas e Relatos
de Experiências. Belém: ABEM, 2000.
CAMPOS, Denise Álvares. Um espaço para a percepção nos currículos de música. In:
ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO
MUSICAL, IX., 2000, Belém. Disquete: Comunicações de Pesquisas e Relatos
de Experiências. Belém: ABEM, 2000.
FARIA, Juliana da Rocha e Sônia Tereza da Silva Ribeiro. Textos elaborados a respeito
do ensino de artes e destinados às escolas. In: ENCONTRO ANUAL DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, IX., 2000,
Belém. Disquete: Comunicações de Pesquisas e Relatos de Experiências.
Belém: ABEM, 2000.
FREIRE, Ricardo Dourado. Como cantar para crianças: diretrizes e sugestões. In:
Educação Musical hoje: múltiplos espaços, novas demandas profissionais.
ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO
MUSICAL, X., 2001, Uberlândia. CD ROM: Comunicações de Pesquisas e
Relatos de Experiências. Uberlândia: ABEM, 2001.
HEDDEN, Steven K. and David G. Woods. Student outcomes of teaching systems for
general music, Grades K-8. In: COLWELL, Richard (Ed.). Handbook of
Research on Music Teaching and Learning. New York: Schirmer Books, 1992.
p. 669-671.
HUMPPREYS, Jere T., William V. May and David J. Nelson. Research on music
ensembles. In: COLWELL, Richard (Ed.). Handbook of Research on Music
Teaching and Learning. New York: Schirmer Books, 1992. p. 651-658.
18
MENA, Olga Aguirre de e Ana de Mena González. Educacion Musical: manual para el
professorado. Archidona: Ediciones Aljibe, 1992 (pp.13-25).
NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi, 1981.
SIMÕES, Regina Márcia, et all. Curso básico de música para professores. In:
ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO
MUSICAL, IX., 2000, Belém. Disquete: Comunicações de Pesquisas e Relatos
de Experiências. Belém: ABEM, 2000.
20
SOUZA, Jusamara. O cotidiano como perspectiva para a aula de música. In: SOUZA,
Jusamara (org.) Música, Cotidiano e Educação. Porto Alegre: Programa de
Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UFRGS, 2000. p.17-31.
SOUZA, Paulo Nathanael Pereira de, Eurides Brito da Silva. Como Entender e Aplicar
a Nova LDB: Lei nº 9.394/96. São Paulo: Pioneira, 1997.
VIEIRA, Lia Braga e Cincinato Ferreira. O cotidiano dos músicos de uma corporação
militar em Belém do Pará. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, IX., 2000, Belém. Disquete:
Comunicações de Pesquisas e Relatos de Experiências. Belém: ABEM,
2000.
VIEIRA, Maria Vitória Alvarez. Projeto ‘Formando Platéia’. In: ENCONTRO ANUAL
DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, IX., 2000,
Belém. Disquete: Comunicações de Pesquisas e Relatos de Experiências.
Belém: ABEM, 2000.
Internet
www.geometry.net/detail/composers/villa-lobos_heitor.html acessado em
05/12/2003.
______________________________________________________________________
Rejane Harder é Doutoranda em Educação Musical pela Universidade Federal da Bahia e pesquisadora
CAPES. Flautista da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo desde 1990, passa a ocupar a cadeira de
Flauta Transversal na Faculdade de Música do Espírito Santo a partir de 1992, tendo atuado por 4 anos
como Coordenadora Pedagógica da referida instituição. No anos de 2001 e 2002, bem como 2005 e 2006,
vem ocupando a posição de professora substituta de Percepção Musical na EMUS/UFBA, tendo no ano
de 2005 lecionado nas Faculdades de Educação e Teologia no IAENE –BA. Desde 1984 vem
desenvolvendo projetos com Grupos Musicais em escolas de I e II Graus em SP, PR. ES e BA.
_____________________________________________________________________________________