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Adam Smith e a felicidade do ser humano

EDUARDO GIANNETTI

A ciência destrói o seu passado. Os clássicos da literatura científica, como os tratados


hipocráticos, o “Le Monde” de Descartes ou a “Philosophia Botanica” de Lineu, foram
obras que marcaram época, mas que a passagem do tempo reduziu à condição de peças
de antiquário e objeto de interesse restrito a especialistas em história da ciência.
Nenhum cientista que se preze aprende o seu ofício destrinchando os clássicos de sua
disciplina.

Com a filosofia é diferente. Os clássicos da literatura filosófica, como os diálogos


platônicos, as “Meditações” de Descartes ou o “Leviatã” de Hobbes, são obras que
parecem dotadas do dom da eterna juventude. Embora também se prestem à lupa
antiquária do historiador de idéias, elas conseguem de algum modo driblar o tempo e
falar diretamente aos espíritos vivos das novas gerações. A filosofia, como a arte, não
enterra o seu passado.

A diferença, é certo, resulta em parte da ausência de um critério bem definido de


progresso na história da filosofia. Mas não é só. A consciência da nossa ignorância
cresce de mãos dadas com o avanço do saber científico. Como observa com certa
malícia Adam Smith na “Teoria dos Sentimentos Morais”, ao comentar a dificuldade de
refutar conclusivamente teorias no campo da ética, a progressividade das ciências
naturais também reflete a sua maior vulnerabilidade e propensão ao erro.

“Quando um viajante descreve um país distante”, argumenta Smith, “ele pode fazer
nossa credulidade aceitar as ficções mais infundadas e absurdas como se fossem os fatos
mais seguros”. Mas, quando se trata de compreender algo que cada um pode verificar
por si mesmo, “somos incapazes de dar crédito a qualquer explicação que não conserve
um mínimo de verdade... e mesmo os mais exagerados precisariam ter algum
fundamento, do contrário até a inspeção descuidada que nos dispomos a fazer
descobriria a fraude”.

Da mesma forma, prossegue, “um sistema de filosofia natural pode parecer muito
plausível e encontrar aceitação generalizada no mundo por muito tempo, e mesmo assim
não ter fundamento na natureza nem guardar nenhuma espécie de semelhança com a
verdade... O mesmo não se dá, porém, com os sistemas de filosofia moral, pois um autor
que pretenda explicar a origem de nossos sentimentos morais não pode nos enganar de
modo tão grosseiro, nem afastar-se tanto de toda a semelhança com a verdade”.

O contraste delineado por Adam Smith se ajusta como uma luva à sua própria filosofia
moral e ajuda a desvendar o segredo de sua permanência e atualidade. Publicada
originalmente em 1759 e amplamente revisada pelo autor no ano de sua morte, em
1790, a “Teoria dos Sentimentos Morais” que agora chega ao público brasileiro é uma
obra cuja perspicácia, clareza e elegância a passagem do tempo só faz revelar. Ao
contrário dos clássicos da ciência, que o tempo devora e sepulta – e apesar de datada em
aspectos secundários –, ela não perdeu a capacidade de nos falar diretamente do
essencial.

De que trata a “Teoria dos Sentimentos Morais”? O argumento central do livro procura
responder a duas questões básicas. A primeira é de ordem cognitiva e pertence ao

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campo do que chamaríamos hoje de psicologia moral: de que modo se formam as
nossas crenças morais? O que nos leva a aprovar ou condenar determinadas condutas?
Como julgamos o mérito ou demérito das ações?

A segunda questão é normativa e se aloja no centro da reflexão ética: em que consistem


a virtude e a justiça? O que define a felicidade e a plenitude do ser humano –
considerado não só como indivíduo, mas também como membro de uma sociedade
complexa – e de sua espécie?

A origem de nossas crenças morais, segundo Adam Smith, reside na operação


espontânea de um hábito mental socialmente adquirido e que ele denomina simpatia: a
faculdade humana de se transportar na imaginação para o lugar e a situação dos outros –
a começar por aqueles que estão mais próximas de nós afetivamente – e, desse modo,
procurar ver e sentir as coisas como supomos que eles estão vendo e sentindo.

Isso nos permite julgar a propriedade e o mérito de suas ações e, mais importante, isso
nos permite olhar para nós mesmos de fora. Ao ocupar o ponto de vista externo e neutro
dos demais (“espectador imparcial”), o indivíduo aprende a moderar a parcialidade que
naturalmente nutre por si mesmo. “Nós nos supomos espectadores de nosso próprio
comportamento e procuramos imaginar, sob essa luz, que efeito isso produziria em nós.
Esse é o único espelho com o qual, em certa medida, conseguimos esquadrinhar, por
meio dos olhos alheios, a propriedade de nossa conduta”.

A tensão básica da qual surge a experiência moral é o conflito entre os desejos, valores
e ambições de cada um (ética pessoal) e as exigências da vida em sociedade – o ponto
de vista neutro e imparcial da ética cívica. Embora cada indivíduo possa se achar o
centro do universo para si mesmo (o que, de certa forma, ele é!), ele também se dá conta
de que, para o resto da humanidade, ele não passa de uma parte insignificante dele.

Ao buscar se ver como os outros nos vêem, o espectador imparcial atenua e modula os
nossos excessos, ainda que muitas vezes falhe em sua missão moderadora. “Se
pudéssemos nos ver sob a luz em que os outros nos vêem”, sugere Smith, “ou como nos
veriam se soubessem de tudo, uma completa reforma seria inevitável – nós não
suportaríamos, de outro modo, a visão.”

As regras impessoais da moral e da lei, assim como as regras gramaticais que ordenam a
interação linguística, não são decretos divinos, mas construções sociais gradual e
penosamente moldadas na convivência humana. Ao conferirem maior objetividade aos
juízos do espectador imparcial, elas reforçam o nosso grau de adesão às exigências da
vida em sociedade.

Um ponto crucial – e que revela a íntima ligação entre o Smith esotérico da “Teoria dos
Sentimentos Morais” e o Smith exotérico da “Riqueza das Nações” – é que ele jamais
subestimou a importância de um arcabouço ético-jurídico bem constituído para que o
sistema de mercado pudesse funcionar a contento. Na ausência de “leis da justiça”
amplamente acatadas, canalizando o egoísmo privado para a criação de valores
publicamente reconhecidos, o mercado degenera numa selva predatória de
aproveitadores, piratas de renda e trombadinhas. A esperteza das partes conduz, não à
opulência, mas à miséria e ao vexame do todo.

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Ao contrário do que fariam Marx e Spencer no século 19, Smith jamais flertou com a
idéia de um possível (ou desejável) desaparecimento do Estado. Enquanto responsável,
entre outras coisas, pela “administração da justiça”, caberia ao Estado “garantir a
proteção de cada membro da comunidade contra a violência e opressão de cada outro
membro”. O que está em jogo aqui, contudo, é bem mais do que o mercado como regra
de convivência definida pela divisão do trabalho e a generalização das trocas. Da
manutenção da justiça dependeria, para Smith, a própria ordem social:

“A justiça é a viga mestra que mantém de pé todo o edifício. Se ela for removida, o
grande, o imenso tecido da sociedade humana irá num momento se esfacelar em
átomos. As regras da justiça podem ser comparadas às regras da gramática; e as regras
das outras virtudes, às regras que os críticos literários dispõem para a consecução
daquilo que é sublime e elegante numa composição. As da justiça são precisas, exatas e
indispensáveis. As da virtude são inexatas, vagas e indeterminadas, e nos sugerem mais
uma idéia geral de perfeição a que devemos almejar do que direções certas e infalíveis
para atingi-la”.

Sem estilo não há elegância, mas sem gramática não há texto. Sem amor, generosidade
e benevolência não há grandeza: a convivência entre os homens se torna aquilo que o
próprio Smith descreveria como “um sistema de trocas mercenárias de bons ofícios
segundo uma avaliação comum”. Mas, se a falta de virtude leva ao frio, a falta de justiça
leva ao fogo hobbesiano. Embora cético quanto à importância da riqueza para a
felicidade dos homens, Smith soube reconhecer a força do seu apelo na psicologia moral
do animal humano. Os pobres não riem da ostentação dos ricos: miram o luxo de
“Caras”. A garota de Ipanema é a que vem e que passa, não a que fica. Sonhamos com o
que nos falta.

Quem se dispuser a percorrer pelo menos algumas páginas da “Teoria dos Sentimentos
Morais” poderá verificar por si mesmo a pertinência do comentário de Alfred Marshall:
“Adam Smith seria a última pessoa no mundo a pensar que a riqueza é o objetivo da
vida humana, a última pessoa a supor que os ideais de uma vida elevada devessem ser
subordinados ao crescimento da riqueza material por qualquer indivíduo ou nação que
se auto-respeita”.

Eduardo Giannetti é economista, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo


e autor, entre outros, de “Auto-Engano” (Cia. das Letras).

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