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José Murilo de Carvalho

CAPiruLO, Elites políticas e construção do Estado

Uma das vantagens das abordagens clássicas do fenômeno das elites políticas
é a vinculação que fazem entre elite e dinâmica social. Tanto a classe política

A construção da
de Mosca corno a elite dirigente de Pareto surgem e desaparecem em função
de processos sociais mais amplos. Para Mosca, a classe política constrói e

ordem
mantém o domínio na medida em que suas habilidades possuam algum sen­
tido social, na medida em que controle alguma "força social" (dinheiro, ter­
ra, conhecimento, religião) que seja predominante. Modificada a distribuição
A elite política imperial de forças, a classe política desaparece para ceder lugar a outra que controle
a nova força social dominante. A elite dirigente de Pareto também está em
perpétuo fluxo, dependente da distribuição dos resíduos, e de sua incapaci­

Teatro de sombras dade de manipular ao mesmo tempo a força e a persuasão. A distribuição


dos dois resíduos principais - força e persuasão - está por sua vez vincula­
da a ciclos econômicos e intelectuais, embora não à maneira de causa-efeito 1•
A política imperial Essa visão ampla do problema das elites políticas é mais rica do que gran­
de parte dos estudos mais recentes que se prendem excessivamente a ques­
tões do tipo "quem governa?", deixando de lado a natureza do próprio
governo e o sentido da ação da elite. A literatura do "quem governa?" surgiu
em um contexto histórico distinto no qual a própria existência de urna elite
do poder, um suposto básico dos clássicos, se tornava o ponto fundamental
do debate. Passou-se a discutir não corno as elites surgem e desaparecem,
mas se existe ou não uma elite de poder e, se existe, corno detectá-la. Boa
parte do debate desviava-se, então, para questões de métodos de identificação
da elite2•
Em termos substantivos, no entanto, nem Pareto nem Mosca conseguem
fazer afirmações precisas sobre o surgimento das elites. Pareto prende-se ao
psicologismo dos resíduos que se alternam num ciclo fechado de coerção­

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persuasão. O máximo que pode dizer é que a uma elite que se baseie mais na

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA 2 5

Rio de Janeiro
2008
JOSt MURILO DE CARVALHO A CONSTRUÇÃO DA ORDEM

coerção eventualmente sucederá outra que prefira a persuasão, ou seja, em à composição da elite, à formação de instituições políticas e à natureza mes­
suas palavras, uma alternância constante de leões e raposas. A vinculação que ma do poder do Estado. Embora nos interesse aqui principalmente o aspec­
tenta fazer entre esse ciclo e ciclos econômicos e intelectuais também fica em to relacionado com a elite, é inevitável manter a visão global do quadro a
t erreno vago. O pêndulo força-persuasão mov er-se-ia em paralelo à dicotomia fim de não se perder o sentido das partes.
rentistas-especuladores, sem vinculação de causalidade em qualquer direção. O Estado moderno europeu cresceu a partir do século XIII num movi­
Esse paralelismo, além de excluir da análise os países socialistas (inexistentes mento de implosão política sobre cujas características gerais há concordân­
à época da publicação do Trattato di Sociologia Generale), é de pouca aplica­ cia entre autores de distintas persuasões. Assim, para Weber, no resumo de
ção prática, pois em qualquer economia capitalista mod erna será difícil di­ Bendix,
zer s e predominam pessoas empreendedoras (especuladores) ou p essoas "A ordem legal, a burocracia, a jurisdição compulsória sobre um territó­
acomodadas (rentistas). Haverá se mpre uma distribuição mais ou m enos alea­ rio e a monopolização do uso legítimo da força são as características essen­
tória de ambos os tipos. Igualmente, a classificação dos regimes políticos de ciais do Estado moderno"•.
acordo com o menor ou maior uso de força e persuasão é de pouca utilidade Não muito distinta é a caracterização feita por Immanuel Wallerstein:
por deixar de lado outras dimensões importantes e impedir a distinção d en­ "Como se fortaleceram os reis, que eram os administradores da máquina
tro dos dois grupos, além de deixar de lado grande categoria r esidual em estatal no século XVI? Usaram quatro mecanismos principais: burocratização,
que tanto a força como a persuasão são usadas simultaneamente. a monopolização da força, a criação de legitimidade e a homogeneização da
Também Mosca, embora elabore mais o tema, não chega a formulação pop ulação dos súditos"5•
mais precisa das relações entre elites e m u danças sociais. O perfil das forças Substantivamente, o processo exigiu a concentração do poder nas mãos
sociais parece produzir mais ou menos automaticament e, pelo menos a mé­ dos monarcas em detrimento da Igreja e da nobreza. O imperium impôs-se
dio prazo, perfil semelhante na classe política. Assim, o predomínio social lentamente ao sacerdotium, o absolutismo à dispersão do poder nas mãos
da força levaria a um governo de guerreiros, de riqueza, a um gov erno de dos barões feudais. Particularizando, a transformação envolveu sobretudo o
plutocratas, da religião, a um gov er no de sacerdotes e assim por diante. Os progressivo controle pelos monarcas da aplicação da justiça, tirando-a das
possíveis descompassos dar-se-iam apenas por períodos curtos devido à re­ mãos da Igreja e dos senhores feudais; a ampliação do poder de taxação e a
lutância das elites no pod er em ce der lugar a novas elites. Trata-se, como se monopolização do recrutamento militar. Os três processos estavam, aliás, es­
vê, de um sociologismo, apesar da conhecida preocupação de Mosca com treitamente vinculados, pois o controle do aparato judiciário era importante
aspectos políticos do problema. Não entra em sua análise da classe política a para a arrecadação das burocracias civil e militar, que por sua vez reforça­
influência que poderiam ter em sua formação e manutenção as próprias es­ vam o poder de controle e de taxação.
truturas políticas, sobretudo o Estado. Em termos institucionais, pode-se dizer que a formação da burocracia
Estudos históricos mais recentes de elites políticas européias indicam central, tanto civil como militar, e a criação dos parlamentos onde se repre­
causação recíproca entre sua constituição e o processo de formação dos Es­ sentavam os interesses dos estamentos, posteriormente das classes, foram as
tados modernos. Em outras palavras, as elites políticas européias formaram­ principais inovações na estrutura de organização do poder que surgia. A ten­
se ao longo de um processo de tensão polar, tendo de um lado a expansão são entre estes dois pólos e as várias formas de ajustamento que se desenvol­
do poder dos funcionários reais e de outro a pressão de grupos sociais por veram iriam caracterizar a natureza dos novos Estados. A maior força e
repr esentação política. O processo foi longo e assumiu feições diversas nos capacidade de organização das classes fariam pender a balança para o lado
vários países de acordo com o maior ou menor predomínio de um dos pólos do parlamento e do governo parlamentar-representativo, como no caso da
sobre o outro3 • Nele estão inextricavelmente vinculados aspectos referentes Inglaterra, e mais ainda dos Estados Unidos. Onde essa força e capacidade

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JOSt MURILO oe CARVALHO A CONSTRUÇÃO OA ORDEM

eram menores, como no caso de Portugal, o poder da burocracia central se administração se tornaram quase que um hobby da nobreza enriquecida com
faria sentir com mais peso e o absolutismo teria maiores condições de vigên­ a transformação capitalista do campo. A eleição para a House of Commons
cia. Em outros casos, deu-se uma combinação original entre os dois pólos, e a escolha para a House of Lords e para o Ministério eram parte das aspira­
fundindo-se a nobreza com a burocracia civil e militar em arranjo que, se ções dos proprietários de terra até em pleno século XIX. Na verdade, os
não era isento de tensões, provou ter surpreendente capacidade de sobre ­ proprietários monopolizavam os cargos públicos, mesmo no nível local, pois
vivência. o "serviço público" era tido como obrigação. Até pelo menos o segundo
Em termos de formação de elites políticas, as várias combinações deram Reform Act de 1867, os proprietários, nobres ou não, dominavam as duas
origem a elites também distintas. Onde se deu a predominância da burocra­ Casas do Parlamento e os postos ministeriais. Mais ainda, o ingresso na po­
cia, suas capas mais altas tendiam a confundir- se em parte ou totalmente com lítica fora vetado a quem não fosse proprietário pelo Desqualification Act de
a elite política, dominando os postos ministeriais e fazendo-se representar 1710, somente revogado em 1838. Em 1868, 59 dos 115 proprietários de
nos parlamentos, como em Portugal. Nos casos de predomínio dos parla­ mais de 50.000 acres eram membros da House of Commons. As franquias
mentos e partidos, a elite política tirava seu poder de outra fonte que não o eleitorais iniciadas em 1832 e reforçadas em 1867 permitiram aos poucos a
Estado. Na Inglaterra, ela foi por muito tempo recrutada predominantemente entrada na elite de membros da burguesia comercial e industrial e posterior­
na nobreza territorial que também controlava boa parte do serviço público. mente da classe operária. Mas entre 1886 e 1916 a metade dos ministros
Nos Estados Unidos, onde tal nobreza inexistia, ou existia apenas ainda era de origem aristocrática8•
embrionariamente no Sul, já na Constitutional Convention de 1787 predo­ Esses aristocratas, sobretudo os que chegavam a postos de gabinete, eram
m inavam fazendeiros, industriais, comerciantes e sobretudo advogados6• na maioria pessoas que viviam de rendas, da terra, ou de investimentos. Isso
Nesse último caso, não só o funcionário público não tinha força própria como lhes proporcionava o ócio necessário para se dedicarem a lazeres diversos,
era visto com suspeição pelo fato de ser representante do governo. entre os quais as atividades políticas. A política para eles não era vocação
Tudo isso teve naturalmente a ver com o movimento mais amplo do de­ nem profissão, pois raramente dela dependiam para sua subsistência material.
senvolvimento da economia capitalista e da concomitante sociedade burguesa. Como diz Guttsman,
A literatura a respeito é rica, embora resvale muitas vezes para debates pou­ "Para a classe governante tradicional da era vitoriana, a política não devia
co frutíferos como o que se trava sobre a natureza do Estado absolutista, se interferir com as atividades sociais e literárias, ou com o esporte e as viagens"9•
feudal ou burguesa7• Interessam-nos apenas os aspectos que afetaram a for­ Com a progressiva queda da renda da terra, muitos aristocratas passa­
mação das elites ou foram por ela afetados. Esses aspectos são basicamente ram a investir em outros setores, formando-se aos poucos uma aristocracia
os referentes à formação de classes e ao tipo de Estado que se criava. E aqui capitalista. A convivência pacífica e fusão parcial entre proprietários rurais,
adotamos a tese já clássica de que quanto maior o êxito e a nitidez da revo­ financistas e industriais tornou factível uma divisão de trabalho em que a
lução burguesa, tanto menor o peso do Estado como regulador da vida social aristocracia se encarregava do governo, sem que se criassem grandes obstá­
e, portanto, tanto menor o peso do funcionalismo civil e militar e tanto mais culos aos interesses dos grupos industriais1°.
representativa a elite política. Nos Estados Unidos não havia a tradição de serviço público por uma classe
Mas, no que se refere à elite, houve variações importantes, bem de rentistas. Devido à situação colonial, a administração pública era mesmo
exemplificadas pelos casos da Inglaterra e dos Estados Unidos. Esses dois vista com suspeita e, depois da independência, com desapreço. Já no início
países representam revoluções burguesas de êxito, o primeiro na verdade o da organização do poder nacional se faziam presentes na política os comer­
exemplo clássico desse tipo de revolução. No encanto, o passado feudal da ciantes e industriais. Tendo em vista, no entanto, as dificuldades que empre­
Inglaterra levou a um arranjo distinto na medida em que a política e a sários em geral encontram em desviar parte de seu tempo para atividades

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,ost MURILO DE CARVALHO A CONSTRUÇÃO DA ORDEM

políticas, a tendência seria no sentido de predominar entre a elite os profis­ aquisição da terra fez com que a propriedade rural em si e não mais o status
sionais liberais, sobretudo os advogados. Os advogados, em contraste com de nobre proprietário se tornasse a base para os privilégios legais. Tinha havido
os juristas, são típicos produtos da revolução burguesa e da política liberal, enfim a "revolução de cima para baixo", como a chamou Hardenberg, um
pois são profissionais da representação de interesses. Atribuir a eles a repre­ dos líderes dos reformadores burocráticos, ou a "revolução de dentro para
sentação política era apenas ampliar uma atividade que já exerciam nas rela­ fora", na expressão de outro reformador, Altensen14•
ções sociais e econômicas11• O predomínio da burocracia foi ainda mais acentuado em países de re­
Em casos de revolução burguesa retardada, como o da Prússia, a situação volução burguesa abortada, como Portugal. Pode-se dizer que após a batalha
foi distinta. O maior peso do Estado na promoção da unidade nacional e do de Aljubarrota, em 1385, esse país já constituía um Estado moderno sob o
próprio desenvolvimento capitalista resultou em impacto muito mais forte governo de D. João I, o filho bastardo de Pedro 1. Oliveira Martins conside­
da burocracia na política. Como diz Rosenberg, "Falar da emergência do ra a vitória de D. João I como o fim da Idade Média em Portugal, o golpe
moderno Estado prussiano, portanto, é quase a mesma coisa que estudar sua decisivo nos barões feudais já enfraquecidos nas lutas contra os mouros15• O
burocracia que formou um corpo social e funcional da maior importância" 12• enfraquecimento da nobreza rural acentuou-se com o despovoamento dos
A necessidade de maior iniciativa do Estado colocava a prêmio a capaci­ campos produzido pelas aventuras marítimas em que embarcou a nova di­
dade da elite burocrática e era lógico que se dese nvolvessem mecanismos nastia. Restaram aos nobres empobrecidos o serviço do rei ou a empresa co­
destinados a treinar essa elite para as tarefas que dela se esperavam. A Prússia lonial, freqüentemente combinados.
foi o primeiro país europeu a introduzir o sistema do mérito no serviço pú­ Mas a situação dos nobres portugueses a serviço do rei era distinta da
blico, acompanhado de regras precisas sobre o recrutamento de funcionários que se verificou na Inglaterra. A aristocracia inglesa não dependia do empre­
e de elaborado sistema de treinamento para os que pretendessem atingir os go público para sustento material. O que ela prestava era quase um serviço
escalões mais altos da carreira. O treinamento abrangia até mesmo aspectos litúrgico, para usar a expressão weberiana, de vez que podia viver das gordas
ideol ógicos: exigia-se dos funcionários o estudo do cameralismo, isto é, da rendas de suas terras. A de Portugal dependia cada vez mais do emprego para
ciência do governo por departamentos administrativos. Na mesma época, a sobrevivência, donde sua dependência do Estado e seu crescente caráter
discutiam-se na Inglaterra as liberdades e a natureza da obrigação política, parasitário. Além disso, no serviço público, ela teve que dividir empregos e
em contraste revelador das diferenças na formação política dos dois países 13. influência com a nobreza de toga composta principalmente de legistas. A
A dinâmica política na Prússia girava em torno da disputa entre a buro­ presença marcante dos legistas na formação de quase todos os Estados mo­
cracia, a nobreza territorial e o imperador. A luta culminou após a derrota dernos foi ainda mais acentuada em Portugal, onde as Cortes de Coimbra já
prussiana em Jena, quando setores reformistas da burocracia civil e militar tinham proposto em 1385 que eles fossem representados junto com a no­
se imp useram ao rei e fizeram passar várias leis contra os privilé gios da no­ breza, o clero e o povo16• Nesse mesmo século tornou-se obrigatória a nomea­
breza agrária, sobretudo a lei da abolição da servidão. A reação dos Junkers, ção de legistas para os postos mais altos da burocracia. Como uma das
na chamada "contra-revolução do primeiro Estado", fez com que a burocra­ conseqüências, entrou em vigor em 1446 o Código Afonsino, o primeiro
cia aceitasse compromissos com a aristocracia rural, do mesmo modo que os código legal a ser redigido na Europa.
Hohenzollerns ánham feito. Mas a nobreza que sobreviveu às reformas era Os juristas e magistrados exerceram um papel de grande importância na
distinta da anterior, era uma moderna classe de proprietários rurais. "A política e na administração portuguesa e posteriormente na brasileira. Trata­
Junkerdom modernizada era uma classe peculiar de homens de negócio, va-se de uma elite sistematicamente treinada, sobretudo graças ao ensino do
composta de todos os grandes donos de terra legalmente privile giados, fos­ direito na Universidade de Coimbra, fundada em 1290. O direito ensinado
sem eles nobres ou não-nobres." A introdução dos princípios do mercado na em Coimbra era profundamente influenciado pela tradição romanista trazida

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A CONSTRUÇÃO DA ORDEM
Jost MURILO DE CARVALHO

mente nas famosas escolas públicas de Eton e Harrow e nas Universidades


de Bolonha. O direito romano era particularmente adequado para jus tificar
de Oxford e Cambridge, procurava desenvolver um etos e um estilo de vida
as pretensões de supremacia dos reis. Tratava-se de um direito positivo cuja
comum antes que um treinamento para atividades de governo propriamente
fonte era a vontade do príncipe e não o poder da Igreja ou o consentimento
ditas. Não se exigia competência administrativa. O mesmo não se dava na
dos barões. Os monarcas que se salientaram na luta pela criação de E stados
Prússia e em Portugal, onde havia nítido processo de treinamento e um iní­
modernos quase sempre se cercavam de juristas, como foi o caso de Frederico
cio de profissionalização dos empregados públicos, ou seja, a formação de
li da Suábia e de Felipe, o Belo. Em Portugal, ficou famoso o jurist:a João das
uma burocracia no sentido moderno do termo. Nesses casos, a homogenei­
Regras, conselheiro de D. João I. O Código Afonsino teve in fI uência do
dade social tendia a perder parte de sua relevância. Embora existisse ainda
Corpus ]uris Civilis
em boa medida, na Prússia, sobretudo na burocracia militar, quase toda re­
Dessa sumaríssima exposição de algumas e,cperiências de formação de
crutada na nobreza, em Portugal já era menor, pois a magistratura portugue­
Estados modernos e suas conseqüências para a c omposição da s elites políti­
sa, o principal setor da elite, era recrutada em boa parte em camadas
cas podem os extrair algumas conclusões de caráter amplo. Nos primeiros
não-nobres. A homogeneidade nesse caso tendia a ser de natureza ideológi­
países de revolução burguesa, como Inglaterra e Estados Unidos, o papel do
ca, gerada pelo treinamento e pela socialização antes que pela origem social.
Estado tendeu a ser menos relevante e, portanto, predominararn na elite
A idéia da maior importância das elites políticas na formação dos Esta­
política elementos oriundos dos mecanismos de representação parlamentar.
dos não oriundos das primeiras revoluções burguesas é reforçada quando nos
Nos países de revolução burguesa retardada, corno a P rússia, houve um mis ­
voltamos para a experiência dos países que surgiram a partir de ex-colônias,
to de elites burocráticas e representativas; e nos de revolução burguesa abor­
tanto os da América Latina no século XIX como os da Ásia e África no sécu­
tada, como Portugal, predominou na elite o elem ento burocrátic o. No
lo XX. A literatura política reflete o fenômeno: há grande número de estu­
primeiro caso não se colocava de modo especial o problema do treinamento
dos das elites desses países, em confronto com a relativa ausência de estudos
da elite, de vez que sua tarefa era mais simples. Embora de modo algum se
semelhantes para os países europeus. A literatura política sobre os novos Es­
pautasse pelo ideal do laissez-faire, o Estado nesses países se formou, por assim
tados raramente deixa de mencionar grupos de elites, sobretudo intelectuais
dizer, de maneira mais espontânea, evoluiu mais naturalmente da fábrica
e militares, ao passo que um livro como o de Barrington Moore, por exem­
social' 7• Colocava-se, no entanto, o problema da homogeneidade da elite:
plo, só menciona o papel de elites, ou melhor, de alguns líderes políticos im­
quanto mais homogênea, mais estável o processo de formação do Estado. A
portantes, nos casos de desenvolvimento capitalista retardado e de
Inglaterra foi sem dúvida o exemplo mais típico de uma elite ho mogênea
modernização conservadora, como os da Alemanha e do Japão18•
com fantástico poder de sobrevivência e flexibilidade, o mesmo não se dan ­
A formação do Estado em ex-colônias revestiu-se de complicações adicio­
do nos Estados Unidos, o que certamente teve a ver com a maior e stabilid a­
nais. Em primeiro lugar, um processo que, na Europa, levou séculos para
de política da primeira. A homogeneidade da elite inglesa era de natureza
evoluir nelas condensou-se em prazos muito mais curtos 19• Em segundo lu­
social, reforçada pelo sistema educacional, pelas rela ções familiares, pel os
gar, o arranjo político a ser estabelecido tinha que contar com elementos
círculos de amizade, pelo estilo de vida. A americana era muito mais repre­
externos de poder representados pelos países que controlavam os mercados
sentativa do país como um todo e portanto mais heterogênea e mais vulne­
dos produtos de exportação. Em terceiro lugar, a preexistência de vários
rável aos conflitos sociais.
modelos distintos de organização política introduzia um elemento adicional
Tarefas mais árduas colocavam-se nos dois últimos casos. E aí pesaria não
de instabilidade ao fornecer justificativas ideológicas e instrumentos de ação
somente a homogeneidade da elite como seu ueinamemo específico para 0
a grupos políticos rivais. Se isso era verdade para a América Latina do século
exercício do governo. Esse treinamento se deu de maneira explícita na Prússia
XIX, era-o mais ainda para a Ásia e África do século XX. Sobretudo no caso
e em Portugal. Note-se que a educação da elite inglesa, processada principa l.
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,ost MURllO DE CARVALHO A CONiTRUÇÃO DA ORDEM

da África, as dificuldades se agravavam pela balcanização provocada pelo dominantes, mas a experiência mostrou que isso não era suficiente para mantê­
processo de colonização e pela atuação das forças centrífugas dos laços tribais las unidas. Conflitos entre setores dessas classes, interesses regionais, pressões
e étnicos20• externas, tudo levou à fragmentação da colônia espanhola, a despeito de certa
Observações semelhantes podem ser feitas a respeito das transformações homogeneidade social da elite. O único caso na América espanhola de uma
revolucionárias que se operaram no século XX, sobretudo das grandes revo­ elite socialmente homogênea, que foi capaz de construir com êxito um siste­
luções russa e chinesa. Também nesses casos foi crucial a presença de uma ma de dominação política, foi o chileno. A elite chilena contou, no entanto,
elite cuidadosamente treinada para as tarefas da revolução e para a recons­ com várias condições favorávei, como o tamanho e a localização do país e a
trução do poder em novas bases. A distinção está em que nas transformações distribuição dos recursos econômicos. No caso da África, as divisões étnicas,
de cima para baixo das revoluções burguesas retardadas as elites provinham tribais e religiosas tomavam quase impossível a homogeneidade social23.
geralmente de setores da burocracia civil e militar. Tais foram os casos da A homogeneidade era garantida por outros fatores, sobretudo pela socia­
Prússia, da Restauração Meiji no Japão e da revolução de Ataturk na Tur­ lização, treinamento e carreira24• Se unida à homogeneidade social, como no
quia21 . Nos casos de ex-colônias, a revolução foi em geral promovida por caso inglês, essa homogeneidaie que poderíamos chamar de ideológica ti­
exércitos libertadores ou por grupos de intelectuais. Esses últimos raramen­ nha naturalmente sua maior eficácia. Mas mesmo na ausência da
te sobreviviam à vitória, e a consolidação pós-revolucionária, se conseguida, homogeneidade social, ou em sua insuficiência, a homogeneidade ideológi­
iria depender de setores burocráticos, sobretudo militares. No caso do Bra­ ca podia ter os efeitos coesivos de que falamos. Foi o caso das elites burocrá­
sil, foi principalmente a herança burocrática portuguesa que forneceu a base ticas que, mesmo se não recrutadas em setores homogêneos da população,
para a manutenção da unidade e estabilidade da ex-colônia. Nas revoluções desenvolviam pela educação, treinamento e carreira características que as
socialistas foram sobretudo elites organizadas formadas fora do poder que levavam a agir coesamente. As�im, por exemplo, a magistratura portuguesa
conduziram a luta e construíram o novo Estado, tornando-se aos poucos cada recrutava seus elementos na nobreza e na pequena burguesia, o que não a
vez mais burocratizadas 22• impedia de ser ideologicamente homogênea após passar pela formação
Podem-se apontar alguns traços comuns às elites que tiveram êxito na coimbrã e submeter-se à disciplina da carreira. Naturalmente, os efeitos
tarefa de formação do Estado em circunstâncias históricas desfavoráveis. Em homogeneizadores da socializ2ção têm seus limites. Seria pouco provável a
primeiro lugar, uma condição fundamental é a homogeneidade. Pelo menos existência de uma elite recrutada exclusivamente em setores não-dominan­
a curto e médio prazos, quanto mais homogênea uma elite, maior sua capa­ tes da sociedade a dirigir o Estado contra os interesses dominantes. Daí que,
cidade de agir politicamente. As razões são óbvias. Uma elite homogênea em geral, a homogeneidade ideológica funciona como superadora de confli­
possui um projeto comum e age de modo coeso, o que lhe dá enormes van­ tos intraclasses dominantes e leva a regimes de compromisso ao estilo da
tagens sobre as elites rivais. Na ausência de claro domínio de classe, como modernização conservadora. A exceção são as elites revolucionárias moder­
em geral se dá nos casos em foco, a fragmentação da elite torna quase inevi­ nas, cuja homogeneidade ideológica é garantida pelo treinamento e pela dis­
tável a afloração de conflitos políticos e a instauração da instabilidade crôni­ ciplina partidária, de vez que raramente são homogêneas do ponto de vista
ca, retardando a consolidação do poder. social25•
A homogeneidade, no entanto, pode provir de várias fontes. Ela pode ser Exemplo claro da importância da homogeneidade das elites é dado pela
de natureza social, como no caso inglês. Mas esse tipo de homogeneidade, Argélia. Segundo estudo de William B. Quandt, a instabilidade do sistema
mesmo quando existiu - o que raramente se deu-, em geral não foi sufi­ político argelino era devida principalmente à incapacidade de comunicação
ciente para dar coesão às elites dos novos Estados surgidos das ex-colônias. entre os vários grupos da elite política. E o que separava esses grupos, antes
Na América Latina, as elites do século XIX eram recrutadas nas classes que diferenças sociais, étnicas e culturais, eram experiências políticas distintas.

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J OS t M U RI LO D E CARVALHO A CONSTRUÇÃO DA ORDEM

Os vários grupos tinham ingressado na política na seqüência do fracasso de ji:ristas foi substituída por uma aliança entre militares e tecnocratas civis. Foi
seus antecessores e cada qual tinha desenvolvido sua própria concepção de esse o arranjo que afinal permitiu estabelecer um governo mais sólido na
ação política e dos objetivos a serem alcançados, tornando impossível o Argélia, segundo Quandt.
diálogo26• Parte da elite política do império brasileiro foi também marcada A necessidade de treinamento especial das elites aparece com mais força
fortemente pela experiência das rebeliões da Regência e, embora sua substi­ ainda no que poderíamos chamar de processo de formação revolucionária
tuição pela geração subseqüente não tivesse gerado traumas políticos, foi d) Estado. O exemplo clássico aqui é naturalmente o de Lênin com sua van­
nítida a mudança na visão dos problemas políticos e das soluções a serem guarda de revolucionários profissionais. Polemizando com os economistas e
aplicadas. terroristas, Lênin lembra o exemplo dos socialistas alemães que já tinham
Além da homogeneidade, as elites dos Estados que vimos discutindo se compreendido que sem os "doze" líderes experientes e capazes (e homens
salientam também por possuir um treinamento próprio para as tarefas de de t alento não nascem às centenas), treinados profissionalmente, educados
governo. O fenômeno é mais nítido entre as elites burocráricas27• Já vimos os p)r longa experiência, e trabalhando em perfeita harmonia, nenhuma classe
casos da Prússia e de Portugal, aos quais se poderiam acrescentar os do Ja­ na sociedade moderna pode sustentar uma luta firme29 .
pão, do Brasil e da Turquia. Na Europa, os especialistas por excelência em E continua dizendo que o agitador e organizador profissional deve
formação do Estado pode-se dizer que foram os juristas, os formada, na tra­ ser cuidadosamente treinado, e para isso deve ser liberado, pelo menos
dição do direito romano, embora muitas vezes agissem individualmente e não pucialmente, do trabalho na fábrica e ser mantido pelo Partido. O pro­
como grupo de elite. Sua influência foi assim avaliada por Weber: fissional da revolução deve ampliar sua atividade para outras fábricas e
"O tremendo impacto do direito romano, na forma que lhe deu o Esta­ depois para todo o país; deve expandir sua visão e aumentar seu conhe­
do burocrático romano em sua última fase, revela-se claramente no fat o de cimento; deve observar os líderes políticos de outros partidos e procurar
que por toda parte a revolução da administração política na direção do emer­ igualar-se a eles; deve combinar seus conhecimentos te6ricos com o co­
gente Estado racional foi levada adiante por juristas"28• nhecimento da situação operária e com sua capacidade profissional. Fo­
Weber parece não distinguir entre o papel dos juristas e o dos advoga­ ram esses quadros que n ão só levaram a efeito o trabalho de mobilizar as
dos A distinção, no entanto, é esclarecedora. Os juristas estavam para os
. rr.assas para a revolução mas que também garantiram depois a organiza­
Estados absolutos como os advogados estavam para os Estados liberais. Não ção do novo Estado. Como os juristas de antigamente, tinham um proje­
foi por acaso que advogados estiveram desde cedo presentes na política in­ to de construção política e a capacidade para produzir o poder necessário
glesa e sobretudo na americana, ao passo que pouco se distinguiram na Fran­ pua implementá-lo.
ça, e ainda menos na Prússia e em Portugal. Os advogados eram fruto da A homogeneidade ideológica e o treinamento foram características
sociedade liberal e quanto mais forte esta, tanto maior sua influência e mais rr.arcantes da elite política portuguesa, criatura e criadora do Estado absolu­
generalizada sua presença. Os juristas, no entanto, sobretudo os de tradição tista. Uma das políticas dessa elite foi reproduzir na colônia uma outra elite
romana , preocupavam-se mais com a justifi:ação do poder real e com a feita à sua imagem e semelhança. A elite brasileira, sobretudo na primeira
montagem do arcabouço legal dos novos Estados. Daí também terem sido os rr.etade do século XIX, teve treinamento em Coimbra, concentrado na for-
países menos liberais os que se caracterizaram pelos grandes códigos legais , 1r.ação jurídica, e tornou-se, em sua grande maioria, parte do funcionalismo
ao passo que Inglaterra e Estados Unidos ficaram conhecidos pelo maior peso público, sobretudo da magistratura e do Exército. Essa transposição de um
do direito consuetudinário, a common law. grupo dirigente teve talvez maior importância que a transposição da própria
Nos novos países, o treinamento provinha da própria ca rreira burocráti­ Corte portuguesa e foi fenômeno único na América. Cabe aqui a discussão
ca Em alguns países da África, pode-se dizer q·Je a antiga aliança entre reis e
. d: algumas de suas características.

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,ost MURILO DE CARVALHO A CONSTRUÇÃO DA ORDEM

Mencionamos as particulares dificuldades de organização do poder em escravo, o centralismo e a descentralização. Tudo isto redundava em dificul­
circunstâncias de capitalismo retardado ou de ruptura revolucionária. Ex­ dade s adicionais para a formação dos novos Estados.
pandindo um pouco o que já foi dito sobre as colô nias americanas da O Brasil dispunha, ao tornar-se independente, de uma elite ideologica­
Espanha e de Portugal, pode-se dizer que, mesmo supondo a continuidade mente homogênea devido a sua formação jurídica em Portugal, a seu treina­
no tipo de elite governante, as tarefas de construção do poder seriam nelas mento no funcionalismo público e ao isolamento ideológico em relação a
distintas das do país colonizador. Embora não lhes coubesse com precisão doutrinas revolucionárias. Essa elite se reproduziu em condições muito se­
a expressão de sociedades-fragmento que Louis Hartz usou para as colônias melhantes após a Independência, ao concentrar a formação de seus futuros
inglesas da América do Norte e da Austrália, de vez que foram em boa membros em duas escolas de direito, ao fazê-los passar pela magistratura, ao
medida fruto de uma política oficial e não obra de parcela da população da circulá-los por vários cargos políticos e por várias províncias.
metrópole, não resta dúvida de que os parâmetros sociais e econômicos A despeito da falta de estudos mais aprofundados, pode-se afirmar que
para a formação do Estado eram distintos nas colônias americanas em rela­ tal elite não existia nas colônias espanholas à época da Independên cia, nem
ção a Espanha e Portugal. O Estado português, por exemplo, já reduzira há foi criada nos países recém-liberados. A política espanhola de criar universi­
muito o poder dos barões feudais e baseava-se numa coalizão entre a buro­ dades nas colônias permitiu a formação de elites locais e impediu o efeito
cracia e os grandes comerciantes. No Brasil, a terra voltoua ser a principal unificador produzido por Coimbra. Além disso, o conteúdo da fo rmação nas
f o nte de riqueza e poder e, conseqüentemente, os proprietários, às vezes universidades coloniais era fortemente religioso em contraste com a forma­
nobres portugueses empobrecidos, recuperaram o antigo prestígio. A cen­ ção mais jurídica de Coimbra. Finalmente, a exclusão de criollos dos cargos
tralização conseguida pelo Estado português viu-se aqui reduzida a modes­ públicos, sobretudo no período Bourbon, contribuiu também para impedir
tas proporções frente aos grandes latifúndios e à dispersio da população a co ntinuidade entre a administração colonial e a administração indepen­
por um território tão extenso. A construção do Estado noBrasil não pode­ dente. Após a Independência, a crônica instabilidade política dos vários pa­
ria ser feita sem levar em conta esses novos e importantes fatores. Algo íses e m que se fragmentou a colônia tornou difícil construir uma elite
semelhante se passou nos outros países da América Latina com variações homogênea, se não socialmente, pelo menos em termos de treiname nto, de
regionais que giravam sobretudo em torno da maior ou menor importân­ ideologia, de valores e mesmo de linguagem32•
cia da mineração e da posse da terra30• A única exceção foi o Chile. Após um período de instabilidade que du­
A diferença na época de formação do Estado já provocara problemáticas rou de 1810 a 1829, chegou-se nesse país a um arranjo político de grande
distintas na própria Europa. Como observou Gerschenkron, a implantação estabilidade, que durou até 1891. O Chile foi também caso único no sentido
do capitalismo e da sociedade política liberal na lnglaterrateve como conse­ de que sua aristocracia agrária conseguiu aliar-se ao Exército e manter um
qüência a adoção pelos retardatários de ideologias e formatos políticos que sistema de dominação talvez até mais sólido do que o brasileiro. Circunstân­
se afastavam do liberalismo, exatamente como mecan ismo de proteção31• A cias p eculiares favoreceram essa solução. Em primeiro lugar, o Chile era, no
América Latina estava em situação muito mais desfavorecida ainda d o que dizer de E dwards, "La [colonial de más compacta unidad geográfica y social".
os late-comers europeus. As teorias políticas e os modelos de organização do De seus 800.000 habitantes, excluídos os araucanos, 500.000 viviam na pro­
poder existentes na Europa não se adaptavam ou ada ptav1m-se apenas par­ víncia de Santiago, onde se concentrava também a riqueza agrícola. As duas
cialmente às circunstâncias em que se achavam os novos países. Periferia do forças políticas mais importantes eram a aristocracia agrária do Vale Central
sistema capitalista, com suas principais riquezas volta das para os mercados e o Exército de Concepción. Não havia conflitos regionais e os conflitos sociais
dos países centrais, esses países se viram prisioneiros de cruéis dilemas entre, ainda não tinham aflorado. As lutas caudilhescas que duraram de 1823 a 1829
por exemplo, o livre comércio e o protecionismo, o libedismo e o trabalho esgotaram o Exército e a oligarquia, permitindo o surgimento da liderança

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JOSÉ MIIRILO DE CARVALHO

sua manutenção, do apoio e das rendas geradas pela grande agricultura


conservadora de Portales que conseguiu pôr fim ao conflito e estabelecer um escravista de exportação, mas, ao mesmo tempo, tornava-se refúgio para os
acordo político que por sua natureza foi chamado de reação colonial e mes­ elementos mais dinâmicos que não encontravam espaço de atuação dentro
mo de restauração monárquica. Ao ressurgirem os conflitos, no início da dessa agricultura. Instalava-se dentro do próprio Estado uma ambigüidade
década de 1850, já se consolidara uma dominação legítima capaz de sobrevi­ básica que dava à elite política certa margem de liberdade de ação.
ver a dose limitada de oposição 33• A ambigüidade agravava-se pelo fato de que entre os que buscavam o
Em quase todos os outros países, a incompatibilidade entre crio/los e pe­ serviço público como meio de vida não estavam apenas os marginais ascen­
ninsulares, a desunião entre os grupos dominant es regionais {sobretudo nos dentes do sistema escravista, isto é, os que nele não conseguiam entrar, mas
países maiores) e as guerras de independência, sem falar na interferência ex­ também os marginais descendentes, quer dizer, os que eram dele expulsos
terna, tornaram praticamente inviável o estabelecimento de governos civis devido a crises em setores exportadores. Foi o caso de muitos filhos da aris­
estáveis, depois de terem impedido a manutenção da unidade da colônia. Os tocracia agrária nordestina, em decadência durante a maior parte do século
corpos militares organizados durante as guerras de independência, uma vez XIX. Para muitas dessas pessoas o emprego público não era um hobby como
desaparecida a geração de chefes militares profissionais, tornaram-se instru­ para os aristocratas ingleses, de vez que dele realmente necessitavam para
mentos de caudilhos que, se em alguns casos, como o argentino, conseguira m sobreviver. Exemplo notório foi o de Nabuco de Araújo que, embora casado
unificar o país, na maioria dos outros apenas mantiveram uma situação de na aristocracia pernambucana, vivia em dificuldades financeiras constantes.
rebeliões permanentes. Para alguns países foram altís�mos os custos dessa si­ Os exemplos poderiam ser facilmente multiplicados.
t uação. O México perdeu parte substancial de seu território e calculou-se que A situação distinguia-se também muito da americana, na qual o emprego
a Venezuela perdeu 3% da população somente nas guerras de 1859 e 186434. público era em geral um mau negócio, além de ser mal visto pela população.
Mas o fato de a elite brasileira ter tido melhores condições de enfrentar As oportunidades do mercado eram mui to maiores e mais compensadoras
com êxito a tarefa de construir o novo Estado teve também conseqüências p ar a do que as da burocracia e, conseqüentemente, os elementos mais dinâmicos
o tipo de dominação que se instaurava. A maior continuidade com a situ ação e mais competentes tendiam a afastar-se do emprego público. Como conse­
pré-independência levou à manutenção de um aparato estatal mais organiz a­ qüência, havia menor competição pelos cargos públicos e o próprio Estado
do, mais coeso, e talvez mesmo mais poderoso. Além disso, a coesão da elite tinha muito menor visibilidade, embora de maneira alguma fosse ausente ou
ao reduzir os conflitos internos aos grupos dominantes, redu ziu também as não-intervencionista.
possibilidades ou a gravidade de conflitos mais amplos na sociedade. A ausên­ O que acontecia com a burocracia brasileira acontecia também com a elite
cia de conflitos políticos que levassem a mudanças dolentas de poder tinha política, mesmo porque a última em boa medida se confundia com os esca­
também como conseqüência a redução de um dos JX)Ucos canais düponíveis lões mais altos da primeira. Surgia, então, uma situação propícia à geração
de mobilidade social ascendente. Em vários outros países da América Latina, de interpretações contraditórias sobre a natureza da elite, da burocracia e do
os caudilhos eram freqüentemente recrutados em c.madas populares. A ma­ próprio Estado. Houve, assim, quem visse na elite imperial simples repre­
nutenção da escravidão, um compromisso da elite com a propriedade da ter­ sentante do poder dos proprietários rurais e no Estado simples executor dos
ra, reforçou mais ainda o aspecto de redução da mooilidade social. interesses dessa classe. Outros, ao contrário, veriam na burocracia e na elite
Paradoxalmente, o canal de mobilidade mais importante que r�tou para um estamento solidamente estabelecido que se tornava, por via do Estado,
os marginais do sistema econômico agrário-escravii:a foi a própria burocra­ árbitro da nação e proprietário da soberania nacionaP5•
cia. Os testemunhos da época são unânimes em saientar a imporrância do Nem uma coisa nem outra. A continuidade propiciada pelo processo de
emprego público como "vocação de todos", no dizer de Joaqui m Nabuco. independência, pela estrutura burocrática e pelo padrão de formação de eli-
Gerava-se, então, uma situação contraditória em qu: o Estado depeodia, para
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te herdados de Portugal certamente deu ao Estado imperial maior capacida­ do sistema imperial. Ela significava, de um lado, um conservadorismo básico
de de controle e aglutinação do que seria de esperar de simples porta-voz de na medida em que o preço da legitimidade era a garantia de interesses fun­
interesses agrários. Mas, em contrapartida, não havia na elite e na burocra­ damentais da grande propriedade e a redução do âmbito da participação
cia condições para constituírem um estamento nem podia o Estado ser tão política legítima. Mas, de outro lado, permitia urna dinâmica de coalizões
sobranceiro à nação. A burocracia era dividida em vários setores e a políticas capaz de realizar reformas que seriam inviáveis em situação de ple­
homogeneidade da elite provinha mais da socialização e do treinamento do no domínio de proprietários rurais.
que de status comum e de privilégios que a isolassem de outros grupos sociais. Seria tentador equiparar essa situação ao que se chamou de moderniza­
O Estado, por sua vez, dependia profundamente da produção agrícola de ção conservadora cujo padrão original foi o prussiano, depois repetido com
exportação e encontrava na necessidade da defesa dos interesses dessa pro­ variações importantes no Japão e na Turquia. Mas seria ir longe demais. Havia,
dução um sério limite a sua liberdade de ação. provavelmente, de parte da elite política e da burocracia, elementos suficientes
A homogeneidade da elite pela educação comum na tradição do absolu­ para permitir a configuração da modernização conservadora. Rio Branco
tismo português e pela participação na burocracia estatal fazia com que o poderia ser comparado a Hardenberg, por exemplo. Mas as condições sociais
fortalecimento do Estado constituísse para ela não só um valor político como estavam ausentes, na medida em que havia a cevada mas não o aço, para man­
também um interesse material muito concreto. Desse modo, o objetivo da ter o símile prussiano. Em outras palavras, a modernização conservadora exi­
manutenção da unidade da ex-colônia rarissimamente seria posto em dúvida giria a presença de interesses industriais capazes de impu lsionar a
por elementos da elite nacional, talvez até mesmo independentemente de estar transformação mais rápida e plena do campo na direção da economia indus­
essa unidade em acordo ou desacordo com os interesses dos grupos econô­ trial. A situação brasileira foi algo contraditória na medida em que os ele­
micos dominantes. José Bonifácio, por exemplo, voltou para o Brasil com a mentos mais reformistas da elite e da burocracia tiveram freqüentemente que
idéia formada de criar na América um grande império, coincidisse esse obje­ se aliar a elementos mais retrógrados da sociedade a fim de implementar as
tivo ou não com interesses básicos como a manutenção da escravidão. Ele reformas. Esses desencontros levaram à incapacidade final do sistema em
resistiu, aliás, às pressões inglesas em favor de medidas abolicionistas com
acompanhar as transformações políticas e à sua queda pela cisão entre os
receio de que viessem colocar em perigo a unidade nacionaP6•
setores civil e militar da burocracia.
Valores e linguagens comuns também tornaram possível um acordo básico A essa altura, no último quartel do século XIX, a elite já perdera também
sobre a forma de organização do poder. Houve tendências mais ou menos
parte de sua homogeneidade inicial, sobretudo pela grande redução do nú­
descentralizantes, mais ou menos democráticas, mais ou menos monárquicas,
mero de funcionários públicos e pelo aumento dos advogados. Em parte, a
mas as divergências não iam além dos limites estabelecidos pela manutenção
mudança se dera em função das pressões por maior representação de inte­
da unidade nacional, pelo controle civil do poder, pela democracia limitada
resses dentro do Estado. Uma das manifestações dessa demanda era a exi­
dos homens livres. O acordo básico permitiu o processamento não-traumático
gência do afastamento dos funcionários públicos, sobretudo magistrados, do
dos conflitos constitucionais relativos à organização do poder, e também dos
exercício de mandatos representativos. Mas, apesar das mudanças que des­
conflitos substantivos oriundos do choque de interesses materiais. Assim, por
pontavam na elite, esta se mostrou inadequada para a nova fase de constru­
exemplo, foi constante a manifestação, dentro da elite, de conflitos entre setores
da propriedade rural - como ficou patente nas discussões sobre a lei de terras ção do Estado, voltada menos para a acumulação de poder do que para sua
e sobre a abolição da escravatura -sem que isto colocasse em perigo o sistema. consolidação mediante a ampliação de suas bases sociais.
A capacidade de processar conflitos entre grupos dominantes dentro de A perda de capacidade da elite parece vir de encontro às proposições de
normas constitucionais aceitas por todos constituía o fulcro da estabilidade Mosca. Porém o mais importante aqui não é o declínio, mas o fato de que a

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elite foi formada por desígnio político e foi em parte fruto da própria estrutu­
ra estatal por ela criada. E não surgiu simplesmente porque havia a demanda
social, como queria Mosca. Igualmente, ao cair a elite, não a substituiu outra
adequada às novas tarefas exigidas pelas transformações havidas na e conomia
e na sociedade. Pelo contrário, os anos iniciais do novo regime padeceram de
grande falta de elementos capacitados, tendo-se muitas vezes que recorrer aos
políticos da antiga escola. Na verdad e, os líderes republicanos que mais se sa­
lientaram na consolidação da República foram os remanescentes da elite im­
perial, como Prudente de Moraes, Campos Sales, Afonso Pena, Rodrigues Alves.
Esse eleme:ito de voluntarismo, de deliberada intervenção na formação
das elites, presente na história de vários Estados, de Portugal até a Turquia,
passando pela Prússia e pelo Japão, é que merece atenção especial. Ele em
geral escapa a análises de estilo macrossociológico, como as de Mosca e Pareto,
para não mencionar as que simplesmente não dão atenção ao fe11ômeno das
elites, como a� que se vinculam à tradição marxista não-leninista. Os capítu­
los que segue□ serão um esforço no sentido de examinar como se deu o fe­
nômeno no Império e quais suas implicações para a natureza d() Estado e
para o sistema político como um todo.

NOTAS

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