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O SELVAGEM CEREBRAL: SOBRE A OBRA DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS1

CLIFFORD GEERTZ
TRADUÇÃO: ANTONIO MAURÍCIO DIAS DA COSTA*
REVISÃO DA TRADUÇÃO: JOHN C. DAWSEY**

“Hoje, às vezes me pergunto se não fui atraído pela antropologia, de forma


inconsciente, pela afinidade estrutural entre as civilizações que são seu objeto e os meus
próprios processos mentais. Minha inteligência é neolítica.”

Claude Lévi-Strauss, Tristes Tropiques

I se os selvagens estão presos e nós estamos


livres ou se nós estamos presos e eles estão
O que dizer, enfim, sobre os selvagens? livres – no final de tudo isso, ainda não
Mesmo agora, depois de três séculos de sabemos. Para o antropólogo, cuja
debate sobre a questão – se eles são profissão é estudar outras culturas, o
nobres, bestiais ou mesmo como você e quebra-cabeça está sempre consigo. Sua
eu; se raciocinam como nós, se estão relação pessoal com seu objeto de estudo
mergulhados num misticismo demente ou é, talvez mais do que para qualquer outro
se possuem as mais altas for mas de cientista, inevitavelmente problemática.
verdade que nós perdemos com nossa Saiba o que ele pensa que é um selvagem
avareza; se seus costumes, do canibalismo e você terá a chave de seu trabalho. Saiba
à matrilinearidade, são meras alternativas, o que ele pensa que é e você saberá que
nem melhores nem piores, aos que tipo de coisa ele vai dizer sobre qualquer
adotamos ou rudes precursores, agora tribo que ele esteja estudando. Toda
ultrapassados, ou, ainda, um ajuntamento etnografia é, em parte, filosofia, e grande
de coisas exóticas, passageiras, estranhas, parte do restante é confissão.
impenetráveis e divertidas para colecionar; No caso de Claude Lévi-Strauss,
Professor de Antropologia Social do Collège
1 GEERTZ, Clifford. The Cerebral Savage: on the work de France e atualmente o centro das
of Claude Lévi-Strauss In: The Interpretation of
Cultures. New York: Basic Books, 1973. p. 345-359. atenções – atenções que homens como ele,
que passam a vida estudando povos
* Doutorando em Antropologia Social da Universidade
de São Paulo e membro do Núcleo de Antropologia
distantes, não usufruem normalmente –,
Urbana/USP. separar os elementos espirituais dos
descritivos é particularmente difícil. Por
* * Professor Livre-Docente do Departamento de
Antropologia da Universidade de São Paulo e
outro lado, nenhum antropólogo foi mais
Coordenador do Núcleo de Antropologia da insistente no fato de que a prática de sua
Performance e do Drama (Napedra)/USP.

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profissão consistiu numa busca pessoal, constantes entre os fatos empíricos – são
direcionada por uma visão pessoal e dirigida colocadas frente a frente, para forçar um
a uma salvação pessoal: confronto direto entre as duas, em vez de
(como é mais comum entre os etnólogos)
Devo à humanidade tanto quanto ao apartadas, o que evita tal confronto e as
conhecimento. História, política, o universo tensões internas que isso acarreta. Isso
social e econômico, o mundo físico, explica tanto o poder quanto o encanto
mesmo o céu, tudo me rodeia em maior de sua obra. Há nela um
círculos concêntricos e posso somente atrevimento e uma espécie de franqueza
escapar desses círculos no pensamento se imprudente. Mas eis aqui, também, a razão
atribuo a cada um deles parte do meu da suspeita mais intra-profissional de que
ser. Como o seixo que marca a superfície o que é apresentado como Alta Ciência
da onda com círculos quando a atravessa, seja, na verdade, um esforço engenhoso,
devo me atirar na água se procuro sondar cheio de rodeios, para defender uma
as profundidades. posição metafísica, fazer avançar um
argumento ideológico e servir a uma causa
Por outro lado, nenhum antropólogo moral.
reivindicou mais para a etnologia como uma Talvez não haja aqui nada terrivelmente
ciência positiva: errado, mas, como no caso de Marx, é bom
se precaver para que uma atitude perante
O objetivo último das ciências humanas a vida não seja tomada como uma simples
não é constituir o homem, mas dissolvê- descrição dela. Todo homem tem o direito
lo. A importância crítica da etnologia é de criar seu próprio selvagem para seus
que ela representa o primeiro passo num propósitos particulares, o que talvez todo
processo que inclui outros. A análise homem faça. Mas demonstrar que tal
etnográfica tenta alcançar invariantes para selvagem construído corresponde aos
além da diversidade empírica das aborígenes australianos, aos povos tribais
sociedades... Este empreendimento inicial africanos ou aos indígenas brasileiros é
abre caminho para outros... que totalmente outra questão.
desembocam nas ciências naturais: a As dimensões espirituais do encontro
reintegração da cultura na natureza e, de Lévi-Strauss com seu objeto de estudo
amplamente, da vida na totalidade das e o que o tráfego com os selvagens
suas condições físico-químicas... Pode-se significou para ele pessoalmente são
compreender, portanto, porque encontro coisas particular mente fáceis de
na etnologia o princípio de toda a descobrir, já que ele as registrou, com
pesquisa. eloqüência figurada, numa obra que,
apesar de estar muito longe de ser um
No trabalho de Lévi-Strauss, as duas grande livro de antropologia, ou mesmo
faces da antropologia – como um modo um que seja especialmente bom, é
de dirigir-se ao mundo e como um método certamente um dos livros mais bem feitos
de descobrir relações cientificamente já escritos por um antropólogo: Tristes

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Tropiques2. Seu formato segue o modelo agitações da ‘história’ por dez ou vinte
da lenda exemplar da Busca Heróica: a milênios”. Ele estava viajando em direção
partida precipitada de terras ancestrais, que a um mundo corrompido, o qual esses
se tornam familiares, estupidificantes e, de navegadores (e os colonizadores que os
alguma forma imprecisa, ameaçadoras seguiram) destruíram com sua cobiça, sua
(uma cadeira de filosofia num lycée de arrogância cultural e sua fúria pelo
província na França de Le Brun); a viagem progresso. Nada ficou do Jardim terrestre,
para outro mundo, mais obscuro, um reino além dos restos. Sua natureza foi
mágico, cheio de surpresas, provas e transformada e tornou-se “histórica onde
revelações (as selvas brasileiras dos ela havia sido eterna e social onde havia
Caduveo, Bororo, Nambikwara e Tupi- sido metafísica”. Antes, o viajante
Kawahib); o retorno, resignado e exausto, encontrava civilizações radicalmente
à existência ordinária (“adeus aos diferentes da sua esperando por ele no final
selvagens, então, adeus às viagens”) com de sua jornada. Agora ele se depara com
um conhecimento aprofundado da imitações empobrecidas do seu mundo,
realidade e uma obrigação de comunicar o dispostas aqui e ali pelas ruínas de um
que aprendeu para aqueles que, menos passado descartado. Não é de surpreender
aventureiros, permaneceram em casa. O que ele ache o Rio decepcionante. As
livro é uma combinação de autobiografia, proporções estão todas erradas. A
crônica de viajante, tratado filosófico, montanha do Pão de Açúcar é muito
relato etnográfico, história colonial e mito pequena, a baía está disposta de forma
profético. equívoca, a lua tropical parece
descaracterizada ao fundo de barracos e
O quê, afinal, aprendi dos mestres que bangalôs. Ele desembarcou como um
escutei, dos filósofos que li, das Colombo tardio para fazer uma descoberta
sociedades que investiguei e da própria acachapante: “Os trópicos não são tão
Ciência da qual o Ocidente se orgulha? exóticos quanto são anacrônicos”.
Simplesmente uma ou duas lições Em terra dá-se início à descida às
fragmentárias que, se agrupadas do início profundezas. O roteiro torna-se denso,
ao fim, reconstituiriam as meditações de fantasmagórico, e chega a um desenlace
[Buda] ao pé de sua árvore. totalmente imprevisto. Não há índios nas
periferias de São Paulo, como lhe havia sido
A viagem marítima foi rotineira, um prometido em Paris, justamente pelo chefe
prelúdio. Refletindo sobre ela vinte anos da École Normale. Se em 1918 dois terços
mais tarde, Lévi-Strauss compara sua do Estado era descrito no mapa como
posição àquela dos navegadores clássicos. “território inexplorado, habitado somente
Eles viajavam em direção a um mundo por índios”, nem um único nativo indígena
desconhecido, quase intocado pela restava em 1935, quando, em busca de
humanidade, um Jardim do Éden “livre das “uma sociedade humana reduzida à sua
expressão básica”, ele assumiu seu cargo
2 Tristes Tropiques (Paris, 1955), traduzido com a ausência
de vários capítulos para o inglês por John Russel (New
como professor de sociologia na nova
York, 1964).

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universidade local. Os mais próximos interior, a simplicidade dos Nambikwara,


estavam a várias centenas de milhas evocativa da infância, permitiu que ele
distantes, numa reserva, mas não eram encontrasse em sua organização política
muito satisfatórios. Nem índios – de pequenos bandos nômades,
verdadeiros, nem selvagens verdadeiros, constantemente reorganizados, dirigidos
“eles eram um exemplo perfeito daquela por chefes temporários –, a sustentação
condição social que está se tornando mais para a teoria do contrato social de
difundida na segunda metade do século 20: Rousseau. E finalmente, próximo à
eles eram ‘ex-selvagens’, quer dizer, fronteira boliviana, em “território de
[aqueles] sobre os quais a civilização havia Crusoé”, a gnose pareceria estar enfim
sido abruptamente imposta, e logo que ao alcance na forma dos Tupi-Kawahib,
deixaram de ser ‘um perigo para a que não só eram intocados, mas, o sonho
sociedade’; a civilização não lhes devotou do cientista, não haviam sido estudados:
mais nenhum interesse”. Não obstante, o
encontro foi instrutivo, como são todas as Nada é mais excitante para um
iniciações, já que eles o desabusaram da antropólogo do que a perspectiva de
“noção ingênua e poética a respeito do que ser o primeiro homem branco a
está reservado para nós, que é comum a adentrar em uma comunidade nativa...
todos os iniciantes em antropologia”, e Em minha viagem eu iria reviver a
assim o prepararam para se confrontar, mais experiência dos viajantes do passado;
objetivamente, com os indígenas menos ao mesmo tempo eu deveria ser
“contaminados” com os quais ele se confrontado com aquele momento, tão
encontraria mais tarde. crucial para o pensamento moderno,
Havia quatro grupos destes, cada um no qual uma comunidade, que se
deles um pouco mais distante na floresta, pensava completa, aperfeiçoada e auto-
um pouco mais intocado, um pouco mais suficiente é levada a descobrir que não
promissor quanto às possibilidades de é nada disso... A contra-revelação, em
uma iluminação final. Os Caduveo, no suma: a evidência de que ela não está
interior do Paraguai, o intrigaram por suas sozinha no mundo, de que ela nada mais
tatuagens corporais em cujos desenhos é do que parte de um vasto conjunto
elaborados ele acreditou poder ver uma humano, e que para conhecer-se a si
representação formal de sua organização mesma, ela deve primeiramente olhar
social aborígine, já na época bem para a imagem irreconhecível de si
decadente. Os Bororo, mais no interior naquele espelho do qual uma lasca há
da floresta, estavam um tanto mais muito esquecida deveria emitir para
intactos. Os seus números haviam sido mim somente, o seu primeiro e último
radicalmente reduzidos por doença e reflexo.
exploração, mas eles ainda viviam
segundo o antigo padrão de aldeia e Com tão grandes expectativas foi um
empenhavam-se em manter seu sistema distinto desapontamento dar-se conta de que
clânico e sua religião. Mais ainda para o estes últimos selvagens, ao invés de

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fornecerem uma visão purificada de empurradas a uma certa distância se


primitividade, provaram ser intelectualmente pretendemos torná-las inteligíveis, e no
inacessíveis, além do alcance. Lévi-Strauss, entanto, elas devem ser interrompidas ao
literalmente, não conseguia se comunicar meio, já que as pessoas às quais elas
com eles: causam espanto são muito parecidas com
aquelas para as quais os costumes em
Eu queria ir ao encalço do “Primitivo” questão são coisas do dia-a-dia. É o leitor
até o seu ponto mais distante. Certamente que se ilude por acreditar em nós? Ou os
meu desejo realizou-se no encontro com iludidos somos nós, que não temos o
essas pessoas encantadoras que nenhum direito de estar satisfeitos antes de termos
homem branco havia visto antes de mim completamente dissolvido aquele resíduo
e nenhum veria novamente? Minha que deu à nossa vaidade seu pretexto?
viagem havia sido arrebatadora e, ao seu
final, eu tinha chegado aos “meus” Ao final de sua Busca lá o esperava,
selvagens. Mas, para a minha infelicidade, portanto, não uma revelação, mas um
eles eram muito selvagens... Lá estavam enigma. O antropólogo parece condenado
eles, todos prontos para me ensinar seus a viajar ou entre homens que ele pode
costumes e crenças, e eu nada sabia de entender precisamente, porque sua própria
sua língua. Eles estavam tão próximos de cultura já os contaminou, cobrindo-os de
mim como uma imagem vista num “sujeira, nossa sujeira, que atiramos no rosto
espelho. Eu podia tocá-los, mas não da humanidade”, ou entre aqueles que, não
entendê-los. Eu tive ao mesmo tempo havendo sido assim contaminados, são por
meu prêmio e minha punição, pois meu essa razão em grande parte ininteligíveis para
erro e o da minha profissão não estavam ele. Ele é ou um andarilho entre verdadeiros
na crença de que os homens são sempre selvagens (dos quais, de todo modo,
homens? Que alguns são mais sobraram poucos e preciosos casos) cuja
merecedores de nosso interesse e nossa alteridade isola sua vida da vida deles, ou
atenção por que há algo espantoso para um turista nostálgico “apressando-se na
nós em seus modos... Assim que um povo busca de uma realidade desaparecida... um
desta espécie é conhecido ou adivinhado, arqueólogo do espaço, tentando em vão
sua estranheza se esvai, e, aí, poder-se-ia reconstituir a idéia do exótico com a ajuda
ter ficado em casa. Ou, como no presente de uma partícula aqui, de um fragmento de
caso, se a sua estranheza permanecia ruínas ali”. Confrontado com homens-
intacta, isso em nada me ajudava, já que espelhos que se pode tocar, mas não
não tinha nem como começar a estudá- apreender, e com homens meio arruinados,
la. Entre esses dois extremos, quais são “pulverizados pelo desenvolvimento da
os casos equívocos que fornecem a nós civilização ocidental”, Lévi-Strauss se
[antropólogos] os pretextos por quais compara ao indígena lendário que esteve na
vivemos? Quem é, afinal, mais enganado beira do mundo e lá fez perguntas sobre
pela inquietude que provocamos no leitor? povos e coisas e se desapontou com o que
Nossas considerações devem ser ouviu. “Eu sou a vítima de uma dupla

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enfermidade: o que eu vejo é um tormento O que uma viagem ao coração das trevas
para mim; o que eu não vejo, uma censura.” não poderia produzir, uma imersão na
Deve o antropólogo se desesperar, lingüística estrutural, na teoria da
portanto? Não haveremos nunca de comunicação, na cibernética e na lógica
conhecer os selvagens, afinal? Não, porque matemática pode fazer. Da desilusão do
há outro caminho para acercar-se de seu romantismo de Tristes Tropiques, irrompeu o
mundo além do envolvimento pessoal com cientificismo exultante de outra grande obra
ele, qual seja: a construção através das de Lévi-Strauss, La Pensée Sauvage (1962)3.
partículas e fragmentos de ruínas que ainda
podem ser (ou já foram) coletados de um II
modelo teórico de sociedade que, embora
não correspondendo a nenhuma que possa La Pensée Sauvage, em efeito, parte de uma
ser observada na realidade, nos ajudará, idéia inicialmente apresentada em Tristes
todavia, a compreender os fundamentos Tropiques a respeito dos Caduveo e suas
básicos da existência humana. E isso é tatuagens sociológicas, qual seja: que a
possível porque, a despeito da estranheza totalidade dos costumes de um povo sempre
superficial dos homens primitivos e de forma um todo ordenado, um sistema. O
suas sociedades, eles não são, num nível número desses sistemas é limitado.
mais profundo, psicológico, nada Sociedades humanas, como os seres
estranhos. A mente do homem é, no fundo, humanos individualmente, jamais criam a
a mesma em todo lugar: sendo que o que partir de um tecido inteiro, mas
não pode ser alcançado através de uma simplesmente escolhem certas combinações
aproximação, de uma tentativa de entrar de um repertório de idéias anteriormente
corporalmente no mundo de tribos disponíveis para elas. Temas em estoque são
selvagens específicas, pode ser obtido, por infinitamente arranjados e rearranjados em
outra via, permanecendo-se à distância, padrões diferentes: expressões variantes de
pelo desenvolvimento de uma ciência do uma estrutura ideacional subjacente, que
pensamento geral, fechada, abstrata, e deveria ser possível, com uma dose
formalista, uma gramática universal do adequada de engenhosidade, reconstituir.
intelecto. Não é pelo assalto direto às O trabalho do etnólogo é descrever os
fortalezas da vida selvagem, procurando padrões de superfície o melhor que puder,
uma penetração fenomenológica de sua vida para reconstituir as estruturas mais
mental (totalmente impossível) que uma
antropologia válida pode ser escrita. Isso 3 Uma tradução (também não integral) apareceu como
The Savage Mind (London, 1966). No entanto, a
poder ser feito pela reconstituição tradução (piedosamente não atribuída) é diferente da
intelectual do contorno daquela vida, sensível interpretação de Russell de Tristes Tropiques,
execrável, e eu tenho, de minha parte, feito minhas
abstraindo-a de seus restos “arqueológicos” próprias versões em inglês, ao invés de citar a partir
contaminados, reconstruindo os sistemas daquelas. A coleção de ensaios de Lévi-Strauss,
Anthropologie Structurale, na qual muitos dos temas
conceituais que, nas profundezas abaixo de de seu mais recente trabalho apareceram em primeiro
sua superfície, animavam-na e davam-na lugar, foi traduzida como Structural Anthropology (New
York, 1963); o seu Le Totémisme Aujourd’hui (Paris,
forma. 1962), um tipo de guia prático para La Pensée Sauvage,
como Totemism (Boston, 1963).

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profundas das quais eles são oriundos e que se tramam modos de assemelhar-se ao
classificar aquelas estruturas, uma vez mesmo”.
reconstituídas, num esquema analítico – Essa ciência não canônica (“que
semelhante à tabela periódica dos preferimos chamar de ‘primária’ em lugar
elementos de Mendeleev. Tendo feito isso, de ‘primitiva’”) estabelece uma filosofia
“tudo o que resta fazer seria reconhecer da finitude na prática. Os elementos do
aquelas [estruturas] que sociedades mundo conceitual estão dados, pré-
[específicas] adotaram realmente”. A fabricados, poder-se-ia dizer, e o pensar
Antropologia é só aparentemente o estudo consiste em brincar com esses elementos.
de costumes, crenças ou instituições. A lógica selvagem trabalha como um
Fundamentalmente ela é o estudo do caleidoscópio cujos fragmentos podem se
pensamento. arranjar numa variedade de padrões, ao
Em La Pensée Sauvage essa noção chave mesmo tempo em que per manecem
– de que o selvagem dispõe de um universo inalterados em quantidade, forma ou cor.
fechado de ferramentas conceituais com o O número de padrões produzíveis desse
qual precisa se virar para construir modo pode ser grande se os fragmentos
quaisquer de suas formas culturais – são numerosos e variados o suficiente, mas
reaparece na roupagem do que Lévi-Strauss não infinito. Os padrões consistem na
chama de “a ciência do concreto”. Os disposição dos fragmentos vis-à-vis uns
selvagens constroem modelos de realidade aos outros (quer dizer, eles são uma
– do mundo natural, do eu, da sociedade. função das relações entre fragmentos, e
Mas eles o fazem não como os modernos não suas propriedades individuais
cientistas, que integram proposições abstratas consideradas separadamente). A extensão
numa moldura da teoria formal, sacrificando de transformações possíveis é estritamente
a vivacidade das particularidades percebidas determinada pela construção do
pelo poder explicativo de sistemas caleidoscópio, as leis internas que regem a
conceituais generalizantes, mas sim pela sua operação. O mesmo também ocorre
ordenação de particularidades percebidas com o pensamento selvagem. Tanto
em totalidades imediatamente inteligíveis. anedótico como geométrico, ele constrói
A ciência do concreto arranja realidades estruturas coerentes dos “cacos
diretamente sentidas – as diferenças remanescentes do processo histórico ou
inequívocas entre cangurus e avestruzes, psicológico”.
o avanço e o recuo sazonal das águas das Esses cacos, os fragmentos do
marés, o movimento progressivo do sol e caleidoscópio, são imagens originadas do
as fases da lua. Assim se produzem mito, do ritual, da magia e do conhecimento
modelos estruturais que representam a empírico. (Como, precisamente, eles vieram
ordem subjacente da realidade de modo a ser é um dos pontos sobre os quais Lévi-
analógico. “O pensamento selvagem Strauss não é muito explícito, referindo-se
estende seu alcance por meio de imagines aos mesmos vagamente como o “resíduo
mundi. Ele produz construções mentais que de eventos... vestígios fósseis da história
tornam o mundo inteligível na medida em de um indivíduo ou de uma sociedade.”)

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Tais imagens são inevitavelmente cultural. A ordem das diferenças entre os


incorporadas em estruturas maiores – nos termos de um lado do paralelo é isomórfica
mitos, cerimônias, taxonomias folk etc. – relativamente à ordem das diferenças entre
pois, assim como num caleidoscópio, os termos do outro lado. No caso mais
sempre se vê os fragmentos distribuídos de simples, as diferenças físicas aparentes
acordo com algum padrão, mesmo que mal entre espécies animais – urso, águia,
formado ou irregular. Mas, como num tartaruga, e assim por diante – são postas
caleidoscópio, elas são destacáveis dessas em correspondência com as diferenças
estruturas e arranjáveis em outras, sociológicas entre grupos sociais – clãs A,
alternativas, de natureza similar. Citando B, C etc. Não são as características
Franz Boas: “pareceria que os mundos específicas do urso, da águia e da tartaruga
mitológicos foram construídos somente como tais que são críticas – raposa, coelho,
para serem novamente despedaçados, e que e cor vo também serviriam –, mas o
novos mundos foram construídos dos contraste sensível entre qualquer um de
fragmentos”. Lévi-Strauss generaliza essa seus pares. É a partir disso que o selvagem
visão permutacional sobre processos de representa intelectualmente a si e aos
pensamento para tratar do pensamento outros a estrutura de seu sistema clânico.
selvagem em geral. Tudo consiste, tal como Quando ele diz que os membros de seu clã
num jogo de cartas, no embaralhamento de são descendentes do urso, enquanto os seus
imagens distintas (e concretas) – animais vizinhos são da águia, ele não está dando
totêmicos, cores sagradas, direções de vazão a um pouco de biologia rudimentar.
vento, deidades solares ou o que quer que Ele está dizendo, de uma maneira
seja – para fins de produzir estruturas metafórica e concreta, que a relação entre
simbólicas capazes de for mular e seu clã e o de seu vizinho é análoga à relação
comunicar análises objetivas (o que não obser vada entre essas espécies.
quer dizer acuradas) dos mundos social e Consideradas termo a termo, as crenças
físico. totêmicas são simplesmente arbitrárias. A
Consideremos o totemismo. Há muito “história” as suscitou e a “história” pode
considerado como uma instituição finalmente destruí-las, alterar seu papel ou
autônoma, unitária, uma espécie de culto substituí-las por outras. Mas, vistas como
primitivo da natureza a ser explicado por um conjunto ordenado, elas se tornam
meio de teorias mecânicas de um tipo ou coerentes, já que são capazes então de
de outro – evolucionista, funcionalista, representar simbolicamente outro tipo de
psicanalítica, utilitária – o totemismo é para conjunto similarmente ordenado: clãs
Lévi-Strauss somente um caso especial aliados, exógamos, patrilineares. A questão
dessa tendência abrangente de construir é geral. A relação entre uma estrutura
esquemas conceituais a partir de imagens simbólica e seu referente, a base de seu
particulares. significado, é fundamentalmente “lógica”,
No totemismo, uma lógica paralela é uma coincidência de forma – não afetiva,
(muito subconscientemente) postulada não histórica, não funcional. O pensamento
entre duas séries, uma natural e outra selvagem é razão congelada e a antropologia

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é, como a música e a matemática, “uma diferenças, quer dizer, contrastando-as em


das raras e verdadeiras vocações”. pares. A oposição binária – aquele abismo
Ou como a lingüística. Pois, na dialético entre mais e menos que a
linguagem, as unidades constituintes – tecnologia da computação transformou em
fonemas, morfemas, palavras – também língua franca da ciência moderna – compõe
são, de um ponto de vista semântico, a base do pensamento selvagem, bem como
arbitrárias. Por que os franceses chamam da linguagem. E, de fato, é ela que os torna
um certo animal de “chien” e os ingleses de formas essencialmente variantes da mesma
“dog”, ou por que os ingleses formam seus coisa: sistemas de comunicação.
plurais acrescentando “s” e os malaios os Abrindo-se essa porta, tudo é possível.
formam ao dobrar os radicais? Essas não Não somente a lógica das classificações
são questões que os lingüistas – lingüistas totêmicas, mas de qualquer esquema
estruturais, pelo menos – ainda consideram classificatório – taxonomias de plantas,
profícuas para fazer, exceto em termos nomes pessoais, geografias sagradas,
históricos. Somente quando a língua é cosmologias, estilos de corte de cabelo
ordenada, pelas regras da gramática e da entre os índios Omaha ou motivos
sintaxe, em locuções – seqüências de desenhados em roncadores australianos –
discurso corporificando proposições – que pode, en principe, ser exposta. Isso se dá
o significado surge e a comunicação é porque elas sempre se delineiam a partir
possível. Na linguagem, essa ordem, que de uma oposição subjacente de termos
serve como guia, esse ur-sistema de formas emparelhados – alto e baixo, direito e
em termos dos quais unidades distintas são esquerdo, paz e guerra, e assim por diante
agrupadas de tal modo a fazer o som virar – que se expressa por imagens concretas,
fala, também é subconsciente. Trata-se de conceitos palpáveis, “além dos quais, por
uma estrutura profunda que o lingüista razões intrínsecas, é inútil e impossível ir
reconstitui a partir das suas manifestações adiante”. Mais ainda, uma vez que alguns
de superfície. Alguém pode tomar desses esquemas ou estruturas são
consciência de suas categorias gramaticais identificados, eles podem ser relacionados
ao ler tratados de lingüística, assim como entre si – ou seja, reduzidos a uma estrutura
alguém pode tomar consciência de suas mais geral e “mais profunda”, que os
categorias culturais ao ler tratados de incorpore. Eles são apresentados como
etnologia. Mas, em se tratando de atos, mutuamente deriváveis entre si por
tanto falar como agir são performances operações lógicas – inversão, transposição,
espontâneas alimentadas por fontes substituição: todos os tipos de permutações
subterrâneas. Finalmente, e mais sistemáticas – tal como se transforma uma
importante, o estudo lingüístico sentença em inglês em pontos e hífens do
(juntamente com a teoria da informação e código Morse ou uma expressão
a lógica formal) também define suas matemática em seu complemento
unidades básicas, seus elementos mudando todos os sinais. É possível
constituintes, não em termos de suas mesmo mover-se entre diferentes níveis da
propriedades comuns, mas de suas realidade social – a troca de mulheres no

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casamento, a troca de presentes no III


comércio, a troca de símbolos no ritual –
ao demonstrar que as estruturas lógicas O que Lévi-Strauss produziu para si é
dessas várias instituições são isomórficas uma máquina infernal de cultura. Ela
quando consideradas como sistemas de anula a história, reduz o sentimento a uma
comunicação. sombra do intelecto e substitui as mentes
Alguns desses ensaios de “sócio-lógica” particulares de selvagens particulares em
são, como a análise do totemismo, selvas particulares pela Mente Selvagem
persuasivos e esclarecedores até onde imanente a todos nós. Ela fez com que
conseguem ir. (Visto que qualquer conteúdo fosse possível para ele escapar do impasse
metafísico ou aura afetiva que essas crenças ao qual sua expedição brasileira o
possam ter são vigorosamente retirados do conduziu – proximidade física e distância
foco de análise, na verdade não se consegue intelectual – levando-o ao que ele talvez
ir tão longe.) Outros, como a tentativa de sempre e verdadeiramente tenha querido
mostrar que totemismo e casta podem – proximidade intelectual e distância
(“por meio de uma transformação muito física. “Eu me mantive contra as novas
simples”) ser reduzidos a expressões tendências do pensamento metafísico que
variantes da mesma estrutura geral estavam então [i.e., em 1934] começando
subjacente, são ao menos intrigantes, se a tomar for ma”, escreveu em Tristes
não precisamente convincentes. Outros Tropiques, explicando sua insatisfação com
ainda, como as tentativas de mostrar que a filosofia acadêmica e sua virada para a
as formas diferentes pelas quais cavalos, antropologia.
cachorros, pássaros e o gado são nomeados
compõem um sistema coerente Eu achei a fenomenologia inaceitável, na
tridimensional de imagens complementares medida em que ela postulava uma
cruzadas por relações de simetria invertida, continuidade entre experiência e realidade.
são triunfos de auto-paródia. Eles são Que uma envolvia e explicava a outra, eu
exercícios de “interpretação profunda” estava bastante inclinado a concordar, mas
forçados o suficiente para fazer até mesmo eu havia aprendido... que não há
um psicanalista enrubescer. Tudo é continuidade na passagem entre as duas
terrivelmente engenhoso. Se um modelo de e que para alcançar a realidade devemos,
sociedade que seja “eterno e universal” primeiro, repudiar a experiência, mesmo
pode ser construído a partir dos vestígios que mais tarde a reintegremos numa
das sociedades mortas ou evanescentes – síntese objetiva na qual a sentimentalidade
um modelo que não reflete nem o tempo, não faz parte.
nem o espaço, nem a circunstância, mas Quanto à tendência de pensamento que
(isso do Totemismo) “uma direta expressão se realizaria no existencialismo, isso me
da estrutura da mente (e por detrás da parecia ser o exato oposto do
mente, provavelmente o cérebro)” – então pensamento verdadeiro, por conta de sua
esse pode ser exatamente o modo de atitude indulgente para com as ilusões da
construí-lo. subjetividade. Promover preocupações

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O SELVAGEM CEREBRAL: SOBRE A OBRA DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS 129

privadas à categoria dos problemas como, depois de termos destruído toda


filosóficos é perigoso... desculpável como a ordem existente, podemos ainda
um elemento no processo de ensino, mas descobrir os princípios que nos permitem
arriscado ao extremo se isso leva o erigir uma nova ordem em seu lugar.
filósofo a voltar as costas para sua missão.
Tal missão (que ele desempenha somente Enfim, como Rousseau, Lévi-Strauss
até que a ciência seja forte o suficiente procura não os homens, com os quais ele
para tomá-la da filosofia) é a de não se importa muito, mas o Homem, com
compreender o Ser em sua relação quem ele está encantado. Tanto em La
consigo e não em relação ao eu. Pensée Sauvage como em Tristes Tropiques, é
esta a jóia no lótus que ele procura. A “base
A Alta Ciência de La Pensée Sauvage inabalável da sociedade humana”, na
e a Busca Heróica de Tristes Tropiques verdade, não é nada social, mas psicológica
são, basicamente, “transfor mações – trata-se de uma mente racional, universal,
muito simples” uma da outra. Elas são eterna e, portanto (na grande tradição do
expressões variantes da mesma moralismo francês), virtuosa.
estr utura pr ofunda subjacente: o Rousseau (“dentre todos os philosophes,
racionalismo universal do Iluminismo o mais próximo de ser um antropólogo”)
francês. Apesar de todas as apóstrofes demonstra o método pelo qual o paradoxo
à lingüística estr utural, teoria da do viajante antropólogo – que chega ou
informação, lógica formal, cibernética, muito tarde para encontrar a selvageria ou
teoria do jogo e outras doutrinas muito cedo para apreciá-la – pode afinal
avançadas, não são as figuras de ser resolvido. Devemos, como ele,
Saussure, ou Shannon, ou Boole, ou desenvolver a habilidade de penetrar a
Weiner ou von Neumann os verdadeiros mente selvagem empregando (e, aqui,
gurus de Lévi-Strauss (tampouco são as munindo Lévi-Strauss com o que ele talvez
de Marx ou Buda, a despeito da menos precise, mais uma expressão) o que
invocação ritual de ambos para efeitos poder-se-ia chamar de empatia
dramáticos), mas sim Rousseau. epistemológica. A ponte entre nosso
mundo e aquele de nossos sujeitos
Rousseau é nosso mestre e nosso irmão... (extinto, opaco ou simplesmente em
Pois há somente uma maneira de frangalhos) não reside na confrontação
escaparmos da contradição inerente à pessoal – a qual, quando acontece,
noção da posição do antropólogo, e tal é corrompe tanto a nós quanto a eles. Ela
pela reformulação, por nossa conta, dos reside num tipo de leitura experimental da
procedimentos intelectuais que mente. Rousseau, “experimentando
permitiram a Rousseau avançar das ruínas (consigo mesmo) as formas de pensamento
deixadas pelo Discours sur l’origine de adquiridas alhures ou simplesmente
l’Inegalité para o amplo projeto do imaginadas” (para fins de demonstrar
Contrato Social, cujo segredo é revelado “que toda mente humana é um locus de
pelo Emile. É ele quem nos mostrou experiência virtual onde o que passa pelas

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mentes dos homens, por mais remoto que criado em torno de sua figura, não era um
seja, pode ser investigado”), foi o primeiro primitivista) chamou de société naissante.
a fazer isso. Não se compreende o Pois foi então que floresceu essa
pensamento dos selvagens nem pela mera mentalidade, produzindo, a partir de sua
introspecção, nem pela mera observação, “ciência do concreto”, aquelas artes da
mas sim procurando pensar como eles civilização – agricultura, domesticação de
pensam e com os seus materiais. O que se animais, cerâmica, tecelagem,
precisa, para além de uma etnografia conservação e preparação de alimentos
obsessivamente detalhada, é de uma etc. – que ainda fornecem os fundamentos
inteligência neolítica. de nossa existência.
As conclusões filosóficas que, para Lévi- Teria sido melhor para o homem que ele
Strauss, seguem esse postulado – que os tivesse se mantido nesta “região
selvagens somente podem ser compreendidos intermediária entre a indolência do estado
através da atuação restaurada de seus primitivo e a atividade buscante para a qual
processos de pensamento com os detritos de somos impelidos por nosso amour propre” –
suas culturas – redundam, por sua vez, numa em vez de a haver abandonado, por alguma
versão tecnicamente recondicionada do circunstância infeliz, pela ambição
moralismo rousseauniano. irrequieta, o orgulho e egoísmo da
As formas de pensamento selvagem civilização mecânica. Mas ele a abandonou.
(“inculto”, “não domesticado”) são A tarefa da reforma social consiste em fazer
primárias na mentalidade humana. Elas que nos voltemos novamente em direção
são o que todos nós temos em comum. àquele estado intermediário, não nos
Os padrões de pensamento civilizado lançando de volta ao neolítico, mas nos
(“domesticado”, “domado”) da ciência e apresentando com lembranças
er udição moderna são produções incontestáveis de suas realizações
especializadas de nossa própria sociedade. humanas, seu encanto sociológico, de modo
Eles são secundários, derivados, e, a nos conduzir para um futuro racional em
embora não sejam inúteis, são artificiais. que seus ideais – de equilíbrio entre auto-
Apesar dessas formas primárias de estima e simpatia geral – realizar-se-ão de
pensamento (e, portanto, os fundamentos forma ainda mais completa. Uma
da vida social humana) serem “indomadas” antropologia cientificamente enriquecida
como o “amor-perfeito selvagem” – o (“legitimando os princípios do pensamento
trocadilho espetacularmente intraduzível selvagem e restaurando-os aos seus devidos
que dá o título a La Pensée Sauvage –, elas lugares”) é o agente apropriado de tal
são essencialmente intelectuais, racionais, refor ma. O progresso em direção à
lógicas, não emocionais, instintivas ou humanness – aquele desdobramento gradual
místicas. O melhor período – mas de das mais altas faculdades intelectuais que
nenhum modo perfeito – para o homem Rousseau chamava de perfectibilité – foi
foi a era neolítica (i.e., pós-agrícola, pré- destruído por paroquialismo cultural,
urbana), aquilo que Rousseau (que, ao munido com uma ciência imatura. O
contrário do estereótipo usualmente universalismo cultural, provido de uma

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ciência plenamente desenvolvida, irá interesses ocultos, emoções infantis ou um


colocá-lo novamente em movimento. caos de desejos animais, agora temos uma
que ali descobre a pura luz da sabedoria
Se a raça [humana] até agora se natural que brilha sobre todos igualmente.
concentrou em uma, e uma única tarefa Sem dúvida, ela será saudada, em alguns
– a de construir uma sociedade na qual o lugares, com um grau de acolhimento, para
Homem possa viver –, então as fontes não dizer de alívio. No entanto, surpreende
de vigor utilizadas pelos nossos ancestrais o fato de que essa investigação tenha sido
remotos estão presentes também em nós. lançada a partir de uma base antropológica.
Todas as apostas ainda estão na mesa, e Pois os antropólogos estão sempre sendo
podemos retirá-las quando quisermos. O tentados – como foi, um dia, o próprio Lévi-
que quer que tenha sido feito, e mal-feito, Strauss – a sair das bibliotecas e salas de
pode ser iniciado novamente: “A era de conferências, onde é difícil lembrar que a
ouro [escreveu Rousseau] que a mente do homem não é um nenhuma luz
superstição cega deitou às nossas costas seca, em direção “ao campo”, onde é
ou à nossa frente está em nós”. A impossível esquecer isso. Mesmo não mais
fraternidade humana adquire um havendo muitos “selvagens verdadeiros”
significado palpável quando encontramos no mundo, existe por aí um número
a imagem que temos dela confirmada na suficiente de indivíduos humanos
mais pobre das tribos, e quando essa tribo vividamente peculiares para fazer qualquer
nos oferece uma experiência que, quando doutrina do homem que o vê como um
acompanhada de muitas centenas de portador de verdades imutáveis da razão –
outras, tem uma lição a nos ensinar . uma “lógica original” procedendo da
“estrutura da mente” – parecer
IV simplesmente excêntrica, uma curiosidade
acadêmica.
Mas talvez mais interessante que essa Que Lévi-Strauss tenha sido capaz de
profissão modernizada de uma fé clássica transmutar a paixão romântica de Tristes
na “voz perpétua e geral dos homens” (para Tropiques no intelectualismo hiper-
usar uma frase de Hooker) é saber qual será moderno de La Pensée Sauvage é
o destino dessa tentativa de pôr a certamente uma façanha espantosa. Mas
Majestade Razão de volta em seu trono na permanecem as questões que não se pode
roupagem do Selvagem Cerebral no mundo deixar de colocar. Essa transmutação é
de hoje. A despeito do quanto a cercamos ciência ou alquimia? Essa “transformação
de lógica simbólica, álgebra matricial ou muito simples” que produziu uma teoria
lingüística estrutural, podemos – depois de geral a partir de uma decepção pessoal é
tudo o que aconteceu desde 1762 – ainda algo real ou um passe de mágica? É essa
acreditar na soberania do intelecto? uma demolição genuína dos muros que
Depois de um século e meio de parecem separar as mentes umas das
investigações nas profundezas da outras quando se mostra que os muros são
consciência humana, que revelaram apenas estruturas de superfície, ou uma

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evasão disfarçada com alto esmero, está ele, como qualquer inteligência neolítica
necessitada pelo fracasso da tentativa de desenraizada, desterrada numa reserva,
transpô-los quando foram diretamente rearranjando os cacos de velhas tradições
encontrados? Está Lévi-Strauss numa vã tentativa de revivificar uma fé
escrevendo, como parece pretender nas primitiva cuja beleza moral é ainda aparente,
páginas confiantes de La Pensée Sauvage, um mas da qual tanto a relevância quanto a
prolegômeno a toda antropologia futura? Ou credibilidade há muito se afastaram?

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1. A revista publicará artigos, traduções a fonte e, sempre que possível, com autorização
e resenhas, originais e inéditos, em Língua da entidade e/ou organização que produziu o
Portuguesa, assim como comunicações, documento.
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Artigos: Será dada prioridade à publicação publicar entrevistas com antropólogos ou
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Social da FFLCH-USP. Está aberta a participação Ensaio Fotográfico: Essa seção procura
de alunos de outros programas de Pós- divulgar ensaios fotográficos de pesquisadores
Graduação da USP ou de outras Universidades, desenvolvidos em seus campos de pesquisa.
assim como de outros profissionais em
concordância com as preocupações da 2. Os originais dos artigos serão submetidos
Antropologia. a uma avaliação prévia da Comissão Editorial,
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publicar uma tradução por número de revista, editorial de Cadernos de Campo. Se
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que não esteja disponível na Língua Consultoria Editorial (profissionais da área) que
Portuguesa. emitirão pareceres. A partir destes pareceres, a
Resenhas: Essa seção destina-se a Comissão Editorial julgará a viabilidade de sua
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seção será apresentar aos leitores resoluções, duas vias impressas, acompanhados de uma
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por organizações civis, políticas, religiosas, em páginas tamanho A4, com a extensão de no
universidades, associações, imprensa, grupos de máximo 20 páginas (fonte Times New Roman,
estudos, etc., que sejam de interesse do corpo 12, espaço 1,5). As resenhas críticas não
antropólogo enquanto profissional e cidadão. devem ultrapassar 6 páginas. É imprescindível
Devem ser enviados para publicação, indicando que os autores mandem o disquete com seu

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