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2358-8586

1
Encontro Nacional da Associação Brasileira de
Estudos de Defesa (7. : 2013 : Belém)

E562a Anais do VII ENABED - Encontro Nacional da


Associação Brasileira de Estudos de Defesa [recurso
eletrônico]: defesa da Amazônia : 4 a 8 de agosto de
2013 / organizadores: Érica C. A. Winand, Lis
Barreto, Matheus de Oliveira Pereira. – Belém - PA:
UFPA, 2013.

Apoio: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada


(IPEA)

Acesso:

ISSN: 2358-8586

1. Segurança nacional. 2. Forças Armadas. 3.


Amazônia - Defesa I. Winand, Érica C. A. II. Barreto,
Lis. III. Pereira, Matheus de Oliveira. IV. Associação
Brasileira de Estudos de Defesa.

CDD 355.0330

2
Associação Brasileira de Estudos de Defesa

ANAIS DO VII ENABED

DEFESA DA
AMAZÔNIA
Belém, 04 a 08 de agosto de 2013

ARTIGOS COMPLETOS

3
Organizadores dos Anais:
Érica C. A. Winand
Lis Barreto
Matheus de Oliveira Pereira

Realização:
Núcleo de Altos Estudos Amazônicos - NAEA/Universidade Federal do Pará - UFPA

Patrocínio: PROEX/UFPA, PROPESP/UFPA, SIPAM, UNAMA, FAPESPA, FADESP,


FAPESP, CAPES, SPU, IPEA, Ministério da Defesa, SAE, FORCEONE, Prefeitura
de Belém e DCNS.

Diretoria da ABED
Presidente: Manuel Domingos Neto (UFF)
Vice-Presidente: Eliezer Rizzo de Oliveira (UNICAMP)
Secretaria Executiva: Adriana Marques (ECEME)
Secretaria Adjunta: Érica C. A. Winand (UFS)
Diretoria de Relações Institucionais: Héctor Saint-Pierre (UNESP)
Diretoria de Finanças: Marcio Rocha (UFF)
Diretoria Adjunta de Finanças: Sérgio Luiz Cruz Aguilar (UNESP)

Conselho Fiscal
Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann (UEPB)
Durbens Martins Nascimento (UFPA)

4
Comissão Científica
Contra-Almirante Antônio Ruy de Almeida Silva
Prof. Dr. Celso Corrêa Pinto de Castro - FGV
Prof. Dr. Eduardo Siqueira Brick - UFF
Prof. Dr. Eliézer Rizzo de Oliveira - UNICAMP
Prof. Dr. Eurico de Lima Figueiredo - UFF
Prof. Dr. Hector Luis de Saint-Pierre - UNESP
Prof. Dr. João Roberto Martins Filho - UFSCar
Prof. Dr. José Carlos Albano do Amarante - UFF
Prof. Dr. Luiz Pedone - UFF
Prof. Dr. Manuel Domingos Neto - UFF
Profa. Dra. Maria Celina d´Araujo - PUC
Prof. Dr. Samuel Alves Soares - UNESP
Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto - UNICAMP
Prof. Dr. Waldimir Pirró e Longo - UFF
Prof. Dr. Wanderley Messias da Costa - USP
Prof. Dr. Williams da Silva Gonçalves - UERJ

Coordenação Geral do VII ENABED

Prof. Dr. Sérgio Luiz Cruz Aguilar (UNESP)


Profa. Dra. Adriana Marques (ECEME)

Assessoria
Coronel Eduardo Migon (ECEME)
Prof. Dr. Luiz Rogério Franco Goldoni (UFF)
Msc. Camila Alves da Costa (Observatório das Nacionalidades – UECE)

5
Comissão Organizadora Local
Prof. Dr. Durbens Martins Nascimento (UFPA/NAEA)
MSc. Aurilene dos Santos Ferreira (NAEA/UFPA)
Augusto Cleybe Ribom (UFPA)
Bruna C. Castelo Branco Corrêa (NAEA/UFPA)
MSc. Bruna Brasil Santana (PPGCP/OBED/UFPA)
Ewerton Diego Bentes de Oliveira (UFPA)
Fabíola Soares Dias (UFPA)
Maria do Livramento Gomes (CEBN – UFPA)
Paulo Cruz (SIPAM) - Assessor de Comunicação
Rafaela Santos Carneiro (UFPA)
Silvana Silva do Nascimento (PROEX/UFPA)
MSc. Wando Dias Miranda (OBED/UFPA)
Wolf Endemann (ADESG-PA)

Apoio Técnico
Annelise Faustino da Costa (UNESP)
Rafaela Tamer Paladini (UNESP)
Cristiano Armando Diniz Guerra (UFS)
Flora Carvalho de Oliveira e Freitas Fonseca (UFS)
Matheus de Oliveira Pereira (UFS)

6
Sumário de artigos

St01 – ―Pensamento Militar e Geopolítica para a Amazônia‖


Alexandre Santana Moreira e Ândrei Clauhs
Dessecuritização da Amazônia e as fronteiras metafísicas ............................... 17

Ana Bárbara Moreira Tesche, Thiago de Oliveira Gonçalves e Luciana Wietchikoski


Vigilância nas fronteiras e muros virtuais: Um estudo analítico de políticas
públicas e sistemas operacionais de proteção às infraestruturas estratégicas
terrestres ................................................................................................................. 36

André Luiz Varella Neves


A geopolítica da Amazônia no século XXI: O pensamento de Mário Travassos
revisitado ................................................................................................................. 51

Antonio Henrique Lucena Silva


Integração da base industrial de Defesa Sul-Americana: Convergências
estratégicas, identidades de Defesa e interdependência ................................... 66

Marcelo de Paiva
A atividade de inteligência no combate aos delitos transnacionais na fronteira
Brasil-Colômbia ...................................................................................................... 83

Selma Lúcia de Moura Gonzales


Da geopolítica estatal à geopolítica acadêmica: Reflexões sobre um conceito
................................................................................................................................. 102

Sérgio Ricardo Reis Matos e Manuel Adalberto Carlos Montenegro-Lopes-da-Cruz


El proceso de securitización y las estratégias de la organización del Tratado de
Cooperación Amazônica ...................................................................................... 116

St02 – Visões de Segurança e de Defesa da Amazônia

Eugenio Corrêa de Souza Junior


A administração pública como agente relevante na defesa e securitização da
região amazônica ................................................................................................. 134

7
Fernando Velôzo Gomes Pedrosa
A defesa da Amazônia e a estratégia da resistência ........................................ 152

José Augusto Abreu de Moura


A visão brasileira de defesa da Amazônia ......................................................... 168

Rodrigo Augusto Lima de Medeiros


O estado de guerra permanente: O governo do território amazônico ...... 185

Túlio Endres da Silva Gomes


Segurança, Defesa e justa causa na Amazônia ................................................. 203

St03 – Gênero e Família nas Instituições Militares

Andréa Costa da Silva


Perspectivas das questões de gênero nos estudos de Defesa: Um olhar
retrospectivo dos encontros nacional ............................................................... 220

Francisco José da Luz Neto


A pós-modernidade e o exército brasileiro: Consequências e desafios ........ 234

Neyde Lúcia de Freitas Souza


Ação da psicologia nos desastres aéreos: Uma lição a ser aprendida com o
acidente ocorrido na Amazônia em 2006 ........................................................... 248

Tamya Rocha Rebelo


A agenda de gênero nas operações de paz: Aspectos normativos e
operacionais ......................................................................................................... 267

St04 – Vigilância nas Fronteiras e Muros Virtuais

Ana Zuleide Barroso da Silva


Fronteira roraimense e considerações sobre governança .............................. 284

8
Flávio Rocha de Oliveira
Os Estados Unidos da América e o desenvolvimento de uma estratégia para o
espaço cibernético ............................................................................................... 304

Gills Lopes
Espectro da securitização militar no ciberespaço (ESMC): Uma nova
perspectiva sobre a defesa cibernética ......................................................... 318

Ricardo Borges Gama Neto e Gills Lopes Macedo Souza


Segurança internacional e guerra cibernética .............................................. 336

St05 – Estudos de Defesa e Sociedade

Andréa Benetti Carvalho de Oliveira


América do Sul na Política de Defesa Nacional: Estudo comparativo das
políticas de 1996 e 2005 ....................................................................................... 345

Érico Esteves Duarte


“Research gap on war” ans its consequences for defense policymaking in
Brazil and Germany .............................................................................................. 358

Flavio Neri Hadmann Jasper


A articulação entre a Defesa e o orçamento: Uma moldura teórico-conceitual .. 369

Giovanni Hideki Chinaglia Okado


Segurança e Defesa nos BRICS: É possível uma agenda comum? ................ 386

Marco Túlio Delgobbo Freitas


A relação da doutrina e do poder aéreo contra o terrorismo: A guerra entre
Israel e o Hezbollah no Líbano em 2006 ............................................................. 407

Patrícia de Oliveira Matos


Atuação estatal e programas militares aeroespaciais: Um estudo de fatores
que afetaram a implementação de programas da aeronáutica ........................ 425

9
Sandra Aparecida Cardozo e Aureo de Toledo Gomes
A construção do modelo brasileiro para resolução de conflitos .................... 444

St06 – O Brasil e os Grandes Conflitos do Século XX

Dennison de Oliveira
A reintegração social dos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial numa
perspectiva comparada ....................................................................................... 458

João Marcos Macedo Louro


Os mecanismos da FEB: Experiências e transformações ............................... 470

João Rafael Gualberto de Souza Morais


O pensamento militar brasileiro em face da blitzkrieg ..................................... 476

Sandro Heleno Morais Zarpelão


As visões da imprensa escrita brasileira “O Estado de São Paulo” e a “Folha
de São Paulo” na cobertura do Golfo (1990-1991) ............................................ 494

St07 – Terras Indígenas e Defesa Nacional

João Nackle Urt e Tchella Maso


Securitização da presença indígena no Brasil: Uma análise crítica ............... 510

Lenir Gomes Ximenes


Índios Terena: Territorialidade e relações com o Estado brasileiro ............... 530

Simone Becker e Anderson José Rezende de Almeida


Diálogos (possíveis) entre a Antropologia do Direito e o Direito no Sul do Mato
Grosso do Sul ....................................................................................................... 542

10
St08 – Simulações e Métodos Prospectivos

Carlos Augusto de Fassio Morgero


Sistema de Simulação de Combate da Defesa: adequação às necessidades
impostas pelo preparo conjunto das Forças Armadas .................................... 558

Rudibert Kilian Júnior


Cenarização: A ferramenta essencial para uma estratégia efetiva .................. 577

St09 – Internacionalização, Defesa e Direito Internacional

Célio Virgínio Emerenciano e Rodrigo Fernandes Moore


Contribuição do Direito Internacional Para a Cooperação e Integração da
Amazônia ............................................................................................................... 604

Luiz Felipe Brandão Osório


A União Europeia e o Direito Comunitário: uma manifestação regional do
direito internacional ............................................................................................. 633

St10 – Base Logística de Defesa

Carlos Ribeiro Praia


Revisão da política de Defesa do governo brasileiro à luz do conceito de base
logística de Defesa ............................................................................................... 657

Eduardo Cesar Bohn


Análise da Aquisição dos Veículos Blindados Leopard 1A5 como Modelo para
Processos Futuros ............................................................................................... 671

Eduardo Siqueira Brick


A quarta força: Uma decorrência da estratégia nacional de Defesa? ............. 685

Wilson Soares Ferreira Nogueira


O desenvolvimento de BLD naval e a autonomia da marinha do Brasil ......... 706

11
Simpósio Temático 11: ―Defesa e Segurança Regional Comparada‖

Camila Maria Risso Sales


As percepções sobre o lugar do Brasil no sistema político internacional: A
importância da construção da imagem de um Estado para a Política de Defesa
Nacional ................................................................................................................. 724

Carlos José Crêspo Santos


Brasil, China e a indústria do nióbio sob a ótica de segurança nacional ....... 744

Flávia Carolina de Resende Fagundes


Lei do abate como meio dissuasório do SIVAM e as possibilidades de
cooperação amazônica ........................................................................................ 754

Gills Lopes
O que dizem os processos de integração sul-americanos sobre a cooperação em
matéria de cooperação em defesa regional: comparando MERCOSUL e CAN
................................................................................................................................. 770

Lucas Pereira Rezende


O desenvolvimento de uma teoria realista ofensiva para cooperação em Defesa .. 791

Rodrigo Fernandes More


Os limites da plataforma continental brasileira no cone do Amazonas: a
convenção de direito do mar e a definição do pé do talude ............................ 810

Sandro Heleno Morais Zarpelão


A longa Guerra do Golfo: uma análise comparativa sob a ótica das doutrinas
Powell e Bush (1991-2003) ................................................................................... 830

Simpósio Temático 12: ―História Militar‖

Anderson Matos Teixeira , Adelar Heinsfeld e Eduardo Munhoz Svartman


As relações da FAB com os EUA entre 1941 e 1948 ............................................. 841

12
Claudio Esteves Ferreira
A História Institucional e o Ensino de História no Sistema Colégio Militar: uma
adequação necessária ......................................................................................... 864

Fabiana de Oliveira Andrade


A gênese do ensino dos serviços de informações e inteligência no Brasil: a
Escola Nacional de Informações ........................................................................ 875

João Rafael Mallorca Natal


A escola de comando e Estado-Maior da Aeronáutica: Repositório do
pensamento do poder militar aeroespacial brasileiro ...................................... 892

Simpósio Temático 13: ―A Instituição Militar: Métodos e Práticas de Pesquisa‖

Jaqueline Santos Barradas


Periódicos científicos de Defesa: uma contribuição das instituições militares
para a constituição do campo acadêmico-científico ........................................ 908

Simpósio Temático 14: ―A Estratégia e o primado da Política‖

Adriano Lauro e Rudibert Kilian Junior


A sistemática de planejamento estratégico no Ministério da Defesa: uma
análise crítica ........................................................................................................ 922

Flávio Pedroso Mendes


Guerra, Guerrilha e Terrorismo: uma Proposta de Separação Analítica a partir
da Teoria da Guerra de Clausewitz ..................................................................... 943

Juliano da Silva Cortinhas


O orçamento de defesa dos EUA: racionalidade x pressões domésticas ..... 953

Valentina Gomes Haensel Schmitt e Adriana Marques


Práticas e proposições da carreira civil m Defesa ........................................... 978

13
Seminário Temático 15: ―Cooperação em Defesa na América do Sul: Desafios,
Avanços e Limites‖

Alexandre Fuccille
O Brasil e sua “liderança” na América do Sul: percepções a partir dos planos
nacional, regional e global ................................................................................ 1002

Aureliano da Ponte
Perspectivas y desafíos para la cooperación industrial en Defensa ............ 1020

Graciela De Conti Pagliari


Conformação e tratamento da questão das drogas ilícitas na região Sul -
americana ........................................................................................................... 1040

Heleno Moreira
O primeiro curso avançado de Defesa Sul-americano (CAD-SUL): Reflexões
sobre a defesa da Amazônia ............................................................................. 1057

José Manuel Ugarte


Trascendencia de la integración regional em Defensa y seguridade para la defense
de los países suramericanos.¿Más allá de la seguridade cooperativa?.......... 1073

José Augusto Zague


Cooperação para o desenvolvimento da indústria de material de defesa na
América do Sul: uma análise sobre o papel do Conselho de Defesa Sul-
americano ............................................................................................................ 1091

Michelly Sandy Geraldo


O processo de integração nuclear Brasil-Argentina: um caminho para o diálogo
............................................................................................................................... 1108

Simpósio Temático 16: ――Forças Armadas e Segurança Global‖

Sérgio Luiz Cruz Aguilar


Operações de construção da paz e reforma do setor de segurança: o caso do
Haiti ...................................................................................................................... 1126

14
Simpósio Temático 17: Geopolítica e Geoeconomia de Defesa.

Aureliano da Ponte
EMBRAER: posicionamiento global y nuevos desafíos …………….……….. 1138

Jorge C. C. Guerra
Nova cavalaria e indústria militar brasileira, na perspectiva da Estratégia
Nacional de Defesa (END) – brigadas aeromóveis …………………………..… 1155

Simpósio Temático 18: ―Segurança Internacional na Amazônia Contemporânea:


Temas, Agendas e Atores.‖

Alberto Teixeira e Gisely de Nazaré Freitas da Silva


Amazônia, fronteira e defesa: Estudo de caso do 3° Esquadrão / Esquadrão
Netuno do 7° Grupo de Aviação da Base Aérea de Belém ............................. 1170

Cláudio Tadeu Cardoso Fernandes


Segurança ambiental global: a importância da cooperação internacional para a
conservação dos recursos amazônicos .......................................................... 1179

Sheyla Rosana Oliveira Moraes


Governança climática: Um Estudo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo
como instrumento de política pública ........................................................... 1195

Simpósio Temático 19: ―Conflitos e Criminalidade na Pan-Amazônia‖

Leandro Fernandes Sampaio Santos


Militarização, “narcoterrorismo” e insurgência: o Sendero Luminoso, as forças
armadas peruanas e a guerra assimétrica na região do VRAE ..................... 1220

15
Simpósio Temático 20: Emprego de agentes QBRNE

José Roberto Pinho de Andrade Lima


Desenvolvimento de equipamento laboratorial portátil para emprego em
campanha na defesa QBRN, vigilância sanitária de alimentos e inspeções de
sanidade ambiental ............................................................................................ 1238

Telma Abdalla de Oliveira Cardoso


Ataque de anthrax e o manejo de cadáveres: sob a ótica da biossegurança
............................................................................................................................... 1249

16
Simpósio Temático 1

DESSECURITIZAÇÃO DA AMAZÔNIA E AS FRONTEIRAS METAFÍSICAS

Alexandre Santana Moreira1

Ândrei Clauhs2

1 Introdução

A Amazônia, com sua abundância de recursos de toda ordem, está


permanentemente no foco das discussões sobre a melhor forma de explorá-los e
preservá-los, recebendo ao longo do tempo diferentes doses de securitização.

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) promoveu um ressurgimento da importância


geopolítica da região amazônica, pois a borracha, que estava em desuso, voltou a
ser um recurso procurado pelas indústrias bélicas e automotivas nascentes.
Contudo, após o término do referido conflito, a borracha no Brasil perdeu novamente
sua importância, devido à sua plantação em outras regiões do mundo e à
sintetização deste produto pela indústria química e farmacêutica.

A Conferência das Nações Unida para o Meio Ambiente, em Estocolmo (1972),


colocou o tema meio ambiente na agenda internacional de forma definitiva,
provocando um retorno às questões de segurança e preservação da Amazônia,
sem, contudo, causar grandes discussões em torno da temática.

Destarte, a partir da década de 1980, o meio ambiente retornou à agenda


internacional, deslocando este assunto da discussão político-ambiental para a
discussão militar, tendo vista a questão ambiental ser utilizada como motivo de
intervenções militares por diversos organismos internacionais, como, por exemplo, a
OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
1
CAEM - ECEME
2
ECEME

17
Na Amazônia brasileira, as questões de fronteira foram resolvidas, no passado,
graças ao trabalho do Barão do Rio Branco, pacificando e consolidando as fronteiras
jurídicas. Apesar disso, existem problemas na fronteira, como os crimes
transfronteiriços, narcotráfico, descaminho, entre outros, provocando uma crescente
preocupação das questões de segurança naquela região, sempre subordinada à
compreensão das instituições acerca das percepções das ameaças latentes.

A seguir, será abordada a dessecuritização da Amazônia e as fronteiras metafísicas


em âmbito nacional.

2 Referencial Teórico

2.1Amazônia

A Amazônia, pelas dimensões colossais que apresenta, com cerca de 3/5 do Brasil e
4/10 da América do Sul, tem encantado o mundo e despertado a cobiça por suas
riquezas ao longo do tempo (MATTOS, 1980).

Os portugueses estabeleceram um sistema de fortificações ao longo dos grandes


eixos fluviais, a fim de estabelecerem o controle e a fiscalização das riquezas
circulantes, balizando o perímetro da fronteira brasileira já no século XVI. Contudo,
esta região permaneceu um grande anecúmeno até o século XX, quando recebeu
um grande aporte intelectual e de investimentos (MATTOS, 1980).

Nesse sentido, destacam-se as obras da coleção do General Meira Mattos como


arcabouço de um grupo de pensadores geopolíticos, como Therezinha de Castro e
Mário Travassos, dentre outros, ressaltando a necessidade de integração da região
amazônica entre todos os países possuidores desta floresta latifoliada, denominando
esta sub-região como Pan-Amazônia.

A Pan-Amazônia, para estes pensadores da Escola Geopolítica Brasileira, refletia


um ideal de integração e crescimento conjuntos (MATTOS, 1980, p. 174), de forma a
desenvolver a região, enfrentando projetos de internacionalização sob diversas
formas, como, por exemplo, o projeto do Instituto Internacional da Hileia Amazônica,
criado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

18
(UNESCO), que gerou o Acordo de Iquitos (1948) (MATTOS, 1980, p. 123), mas que
não se concretizou.

O desenvolvimento econômico desta região apresentava duas possibilidades, no


entender do General Meira Mattos: ―a do crescimento a qualquer custo, mesmo com
o sacrifício da própria liberdade do homem, ou crescer respeitando o primado da
liberdade e da dignidade‖ (MATTOS, 1980, p.115). Após vários projetos
governamentais, inclusive a transferência da Capital do País para Brasília,
incrementando a territorialidade brasileira e abrindo caminho para uma efetiva
integração nacional, a diplomacia brasileira capitaneou a concretização do Tratado
de Cooperação Amazônico (TCA), em 1978.

Este tratado estava assentado sobre o conceito geopolítico de áreas interiores de


intercâmbio fronteiriço, as quais podem ser resumidas na frente Atlântica, na frente
do Planalto Central Brasileiro e na frente Fronteiriça. A primeira, seguindo a rota do
Rio Amazonas, da foz para as nascentes (Rota de Pedro Teixeira); a segunda,
descendo as linhas secas da margem direita dos afluentes do Rio Amazonas (Rota
de Raposo Tavares); e, a terceira, descendo os Andes no rumo de seus formadores
(MATTOS, 1980).

Desta forma, ressalta-se a emergência de cidades-pólos dentro das áreas interiores,


como a cidades de Boa Vista (RR), Tabatinga (AM), Cruzeiro do Sul (AC) e Porto
Velho (RO), as quais formam áreas-pólos em torno de si, induzindo o
desenvolvimento na região por meio da polarização econômica. (MATTOS, 1980).

Por isso, em regiões de ausência estatal, escassez material do governo e baixa


densidade demográfica como na Amazônia Brasileira em muitas regiões fronteiriças
e interiores, foi estimulado pelo governo Federal, principalmente nas décadas de 70
e 80, uma política de humanização destas regiões, promovendo a ocupação
territorial e aumentando a coesão societária (NASCIMENTO, 2005).

Para analisar as três dimensões do Estado, segundo O´Donnell (1993, 124-144),


ficou estabelecido a adoção de três cores em um mapa de forma a expressar a
realidade sociopolítica vigente, sendo a cor AZUL representa alto grau de presença
do Estado em todas as dimensões do poder, a cor VERDE representa um alto grau

19
de penetração territorial, mas em menor capacidade em burocracia e leis. Na Cor
MARROM, representa um grau muito pequeno desta duas dimensões estatais.
Assim, O´Donnell cita a Amazônia como um caso da cor marrom, mostrando que
apesar do muito que já foi feito na região, muito ainda precisa ser implementado.

Assim, de acordo com a Política Nacional de Defesa (BRASIL, 2012), a Amazônia


continua sendo uma prioridade para a Defesa, sendo securitizado devido a diversos
fatores como a extensão e o valor das riquezas minerais existentes, associadas as
dimensões continentais de suas florestas, gerando interesses diversos e difusos, os
quais podem ser potencializados pelos problemas fronteiriços com a Guerrilha
(FARC) existente em solo colombiano, incrementando a ilegalidade de traficantes e
contrabandistas.

Além disso, a questão ambiental na Amazônia pelo potencial madeireiro, de


contribuição para o efeito estufa e no equilíbrio climático, e a questão da água, como
reserva estratégica, potencializa a região e seu entorno estratégico, reforçando uma
visão nacionalista para fazer face a possíveis interferências estrangeiras de
potências militares, rivalizando com ―inimigo interno‖, que antes eram os comunistas
e hoje são representados por instituições vistas como indutoras de problemas como
algumas ONG, por representarem uma ponta de lança da cobiça internacional,
conforme nos alerta Nascimento (2005).

2.2 Algumas questões amazônicas

Uma questão bastante controversa diz respeito à situação dos indígenas na região
amazônica, o qual, após a assinatura da Declaração dos Direitos dos Povos
Indígenas, passou a ter, além da população e terras, diversos direitos, pouco
faltando para terem sua nação reconhecida por algum órgão do sistema
internacional, podendo gerar intervenções humanitárias na região, a fim de preservar
a independência deste povo, criando, assim, um quisto em território nacional.

Contudo, Manuela Cunha (1994), em seu artigo ―O futuro da questão indígena‖,


argumenta que esta preocupação não é relevante, tendo em vista que a Convenção
169 da OIT, de 1989, e o Acordo Constitutivo do Fundo para o Desenvolvimento dos

20
Povos Indígenas na América Latina e Caribe, de 1991, rechaçam esta ideia,
conforme seu terceiro parágrafo: ―a utilização do termo povos nesta Convenção
(169) não deverá ser interpretada como tendo qualquer implicação com respeito
aos direitos que se possa conferir a esse termo no direito internacional‖
(CUNHA, 1994, p. 129-130).

Destarte, afirma Cunha (1994) que, embora a Carta das Nações Unidas, em seu
Art 1.2, reconhecer a autodeterminação dos povos, ela não vê perigo à
integridade territorial brasileira, pois os conceitos de povos e autodeterminação
possuem entendimentos diversos. Desse modo, tais conceituações dão margem
a interpretações diversas, acrescidas das problemáticas das explorações das
riquezas minerais, hídricas e da biodiversidade, dentre outras. Por essa razão,
talvez, países como Estados Unidos e China não tenham assinado a declaração
dos povos indígenas.

Outra questão importante está nas unidades de conservação e no desmatamento,


pois, apesar da existência de unidades de conservação dos níveis federal, estadual
e municipal, o desmatamento continua grande. Estas unidades são divididas em: de
uso sustentável ou de proteção integral. As de uso sustentável são as Áreas de
Proteção Ambiental, Áreas de Relevante Interesse Ecológico, Florestas Nacionais,
Reservas Extrativistas, Reservas de Fauna e Reservas de Desenvolvimento
Sustentável. Já, as de proteção integral são Estações Ecológicas, Reservas
Biológicas, Parques Nacionais, Monumentos Naturais e Refúgios de Vida Silvestre
(FERREIRA et al, 2005), criando extensas áreas reservadas, impactando no
desenvolvimento regional, apesar do desmatamento continuar mesmo assim.

Um dos motivos elencados para o aumento do desmatamento fora das áreas


protegidas ser maior do que nas áreas não protegidas, apesar de ambas terem
crescido, está ligado a atividades econômicas, tais como a extração de madeira, a
pecuária e a agroindústria, sempre nas redondezas das cidades e das estradas
(FERREIRA et al, 2005).

Contudo, apresenta-se uma sugestão denominada Zoneamento Ecológico-


Econômico (ZEE), sendo esta uma forma de ordenamento espacial, onde seria

21
possível unir o planejamento socioambiental ao desenvolvimento econômico.
(FERREIRA et al, 2005).

Além disso, a ―geopolítica da biodiversidade‖ advoga ―aplicação do manejo


sustentável como procedimento estratégico para a conservação da diversidade
biológica e dos ecossistemas na Amazônia‖, tendo como base de sustentação a
―rentabilidade financeira‖, sem que, tudo isto, seja uma verdade, devido a ―vários
estudos que mostram esta dificuldade de rentabilidade‖ (NASCIMENTO, 2005).

Nesta mesma linha, seguem os trabalhos de Filho et al (2005), os quais aplicaram a


técnica de modelagem de cenários prospectivos, tendo como áreas de partida os
desmatamentos nas cidades-pólos e nas estradas amazônicas.

Apesar da existência de áreas de proteção, pode-se concluir que o desmatamento


aumentaria na região, em detrimento das leis, ocasionando a perda de biodiversidade e
aumentando a emissão de gases do efeito estufa, sendo necessário investimento no
controle do desmatamento, na detecção de queimadas, no desenvolvimento de ZEE e
no aumento da fiscalização ambiental (FILHO et al, 2005).

2.3 Securitização da Amazônia

O conceito de securitização envolve a ideia de que não existe um conceito de


segurança internacional única, pois a ameaça varia dentro de cada sociedade,
conforme os discursos são construídos, passando a ser aceitos por seus integrantes
(BUZAN et al, 1998).

Por isso, a securitização de um assunto é ―o uso da retórica da ameaça existente


com o objetivo de levar um assunto para fora da política hodierna‖. Assim, na
abordagem do assunto Amazônia, existe uma dupla maneira de securitizar a
questão: a visão ambientalista e a política (URT e PINHO, 2010).

Os ambientalistas visualizam a destruição da floresta amazônica como o principal


mote de securitização, passível de eliminação da biodiversidade e de riquezas
diversas. Ressaltam Buzan et al (2003) que o Brasil preocupa-se com uma
possibilidade de intervencionismo norte-americano. Os políticos possuem forte

22
caráter nacionalista, apresentando a ameaça da internacionalização da Amazônia
por meio de ONG e outros grupos, além do perigo das ―novas ameaças‖
(biopirataria, narcotráfico e outros) (URT e PINHO, 2010).

Para Buzan et al (1998), um determinado assunto deve ficar no âmbito da


política normal, promovendo, de maneira geral, a dessecuritização dos
assuntos de preocupação nacional. No caso da Amazônia, evitaria a discussão
entre ambientalistas e políticos, reduzindo a gravidade da problemática em
foco (URT e PINHO, 2010).

Bertha Becker (2004) ressalta em sua publicação ―Geopolítica da Amazônia‖ a


existência de dois movimentos geopolíticos internacionais, sendo ―um de nível
financeiro, da informação, do domínio de poder das potências, e outro uma
tendência ao internacionalismo dos movimentos sociais‖, sendo a Amazônia um
exemplo desta dicotomia.

Becker enfatiza a necessidade de achar um novo significado geopolítico para a


Amazônia, propondo-a como a grande fronteira do capital natural, entendida
como uma área a ser preservada por um grupo de pensadores e de
ambientalistas, e uma área a ser explorada no futuro por outros grupos, como
reserva estratégica (BECKER, 2004).

Sob essa ótica, a integração sul-americana ocorre por meio da Organização do


Tratado de Cooperação Amazônico (OTCA), ressaltando a necessidade de
investimento e integração com base nos deslocamentos fluviais, além de valorizar as
cidades fronteiriças gêmeas como Letícia-Tabatinga no Amazonas, reforça a
necessidade de se realizar uma revolução técnico-científica na Amazônia, a fim de
aproveitar suas riquezas, sem depredá-las (BECKER, 2004).

Além disso, Nascimento (2005) lembra que o acesso às riquezas minerais já


acontecem e que estas explorações seguem as determinações comerciais
internacionais e acordos nacionais, como são os casos da Albras (Alumínio do Brasil
S.A.) e do Projeto Jari, entre outros, demonstrando que a exploração de recursos
minerais já acontecem sem o uso de forças militares e intervenções estrangeiras.

23
Contudo, as demais questões amazônicas continuam a ser motivo de
preocupações nacionais.

Neste contexto, crescem de importância as Operações Interagências (ECEME,


2012), onde o Estado congrega elementos militares e não-militares, por meio de
uma gestão integrada, conforme a recente abordagem norte-americana, dentro do
conceito ―Whole of Governement‖ (FRANKE; DORFF, 2012) e em consonância com
o ―comprehensive approach‖ (NATO, 2010) europeia, ambas enfatizando o trabalho
conjunto entre militares e demais setores, proporcionando maior eficiência na
resolução de desafios na área de defesa.

2.4 Fronteiras Metafísicas

Graças ao trabalho do Barão do Rio Branco, no passado, integrando o trabalho do


Itamaraty e das Forças Armadas, foram consolidadas as fronteiras jurídicas
brasileiras, e o Brasil não possui problemas de fronteira com seus países lindeiros,
em destaque os amazônicos.

Segundo o Embaixador Côrtes, uma fronteira jurídica ―é o limite legal entre as


jurisdições soberanas de dois Estados‖, sendo dividida em terrestre,
marítima/oceânica e aérea. Contudo, estabelece uma nova conceituação, chamada
de fronteira metafísica, podendo ser definida como ―a linha de defrontação entre
interesses de dois (ou mais) Estados‖ (CÔRTES, 2005).

Côrtes lembra a dificuldade de definir todas as categorias desta última, afirmando


ser interessante deixá-las em aberto, apesar de especificar alguns tipos de fronteira
metafísica: espacial, cibernética, institucional, dentre outras (CÔRTES, 2005).

Desta forma, ressalta Côrtes que as mais importantes são as fronteiras


institucionais, pois quando da ―confrontação entre dois Estados, um deles consegue
impor a aceitação de atos internacionais (adesão a tratados, celebração de acordos
etc.) ou a adoção de medidas executivas, legislativas ou jurídicas nocivas ao
interesse do Estado mais fraco‖, ressaltando também que esta questão pode ter

24
longo prazo de preparação ‖invisível‖ e emprego de ―agentes de influência‖ das mais
variadas formas (CÔRTES, 2005).

De forma didática, Côrtes (2005) divide os possíveis problemas na fronteira


brasileira, passíveis de acontecer, como sendo uma reivindicação jurídica,
implicações de reivindicações de terceiros, pressões para adoção de legislação
interna ou assinatura de acordos lesivos ao interesse nacional, ameaça militar,
ameaça armada de movimentos subversivos, atividades ilícitas, porosidade
decorrente de intensa atividade econômica e vazios demográficos.

Cada uma destas questões estão relacionadas com a fronteira metafísica institucional,
as quais não possuem uma linha nítida, mas são difíceis ou mesmo de impossível
detecção, sendo que o ‖agredido‖ só percebe a violação, após o fato estar consumado
(CÔRTES, 2005), levando as instituições nacionais, como Congresso Nacional,
Senado, FUNAI, IBAMA, entre outras, a tomarem decisões sem a percepção destas
ameaças silenciosas, pois ―ambientesculturais afetamnão só osincentivospara os
diferentestipos de comportamento estatais, mastambémo caráter básicodos Estados –
o que chamamos de identidade‖ (KATZENSTEIN, 1996, p. 9).

Côrtes (2005) cita, ainda, o caso da assinatura do Tratado de Não-Proliferação Nuclear


(TNP), por ―ordem direta do Presidente Fernando Henrique Cardoso, contrariando
décadas de resistência, amplamente fundamentada às pressões dos Estados Unidos. O
TNP contém dispositivos que o tornam uma verdadeira imposição da desigualdade
jurídica dos Estados e que violam de modo irretorquível a soberania nacional. Portanto,
essa adesão significou gravíssima perda na fronteira (metafísica) ―institucional‖,
mostrando a amplitude e a gravidade da referida conceituação, refletindo uma forma de
pensar das instituições no momento da escolha, uma identidade institucional baseada
apenas na vontade dos indivíduos presentes.

Neste mesmo contexto, ressalta-se as questões relativas ao ―dilema estratégico‖


(MANWARING, 2011), o qual lembra a necessidade das forças Armadas darem uma
resposta as novas demandas (fome, pobreza, entre outras) e de atores não-estatais
(terrorismo, crime organizado, entre outros), sendo conhecido como ―novas ameaças‖.

25
3 Referencial Metodológico

Este trabalho seguirá uma abordagem explicativa e descritiva, pois será possível
explicar as questões de dessecuritização da Amazônia e da fronteira metafísica,
descrevendo seus pontos essenciais.

Foi realizada uma pesquisa de campo, por meio de questionário estruturado com
catorze itens fechados, na primeira parte do questionário, sendo sete relacionados
com a dessecuritização da Amazônia e sete com a fronteira metafísica, com uma
pesquisa survey com cinco níveis de resposta na escala Likert. A amostra dessa
pesquisa foi de 216 (duzentos e dezesseis) respondentes habitantes de Manaus-
AM, composta por Oficiais e Sargentos do Exército de várias Organizações Militares.
Os questionários foram aplicados entre os meses de maio e junho de 2013 ao
término da Operação Ágata 7 do Ministério da Defesa.

Além disso, foi perguntado aos respondentes se a Amazônia Brasileira deveria ter sua
soberania compartilhada com outros países, na segunda parte do questionário, e que
os respondentes pudessem elencar quais, dentre esses sete quesitos, seriam um
problema para a soberania nacional, limitando-se a escolha de somente três itens.

O tratamento dos dados seguiu o método quantitativo, usando o SPSS 16.0 como
ferramenta de processamento, de forma a auxiliar uma Análise Fatorial e uma
Regressão Logística Binária, produzindo dados confiáveis.

As limitações do estudo estão na seleção da amostra, já que somente militares de


Manaus foram ouvidos, o que pode prejudicar os resultados, prejudicando
generalizações, sendo interessante a ampliação para outras cidades importantes
como Belém-PA, a fim de ampliar as referidas generalizações elencadas no
presente trabalho.

As hipóteses da presente investigação foram as seguintes:

H1 a teoria das fronteiras metafisicas podem ser aplicadas a Amazônia.

H2 existe uma relação entre os fatores das fronteiras metafísicas e a opção de


compartilhar a soberania sobre a Amazônia

26
4 Análise Dos Resultados

4.1 Apresentação dos resultados

O processamento das pesquisas foi realizado com o SPSS 16.0 por meio de 216
(duzentos e dezesseis) verificando-se, inicialmente, o Alfa de Cronbach, para
determinar se as variáveis levantadas no construto ―fronteira metafísica‖ eram
suficientes para explicá-la, conforme orienta Hair et. al. (2005), onde valores
desejáveis são os acima de 0,7 e os abaixo de 0,5 invalidam a pesquisa. Nesta
pesquisa, o valor encontrado foi de 0,832 e, portanto, acima do recomendado.

Após a verificação da confiabilidade interna do construto, foi realizada a análise


fatorial, surgindo apenas um fator englobando todas as variáveis propostas por
Côrtes (2005), confirmando, estatisticamente, a hipótese H1 da investigação.

Tabela 01 - Fator e variáveis

Factor

Prj ,628

Rtq ,664

Pal ,732

Eam ,558

Aam ,697

Aai ,606

Pft ,659

Fonte: Elaboração própria

27
No Fator 1 (fronteira metafísica) destacam-se três variáveis mais importantes:
pressão para assinatura de acordos lesivos ao interesse nacional (pal), ameaça
armada de movimentos subversivos (aam) e a reivindicações de terceiros sobre
questões nacionais internas (rtq) com valor de 0,732, 0,697 e 0,664,
respectivamente.

Em seguida, foi analisada a pergunta aos entrevistados se a soberania sobre a


Amazônia deveria ser compartilhada com outros países, obteve-se, de um total
de 216 (duzentos e dezesseis) respostas válidas, sendo que 35 (trinta e cinco)
respondentes disseram que sim, ou seja, que a soberania sobre a Amazônia
deveria ser compartilhada com outros países, enquanto que 175 (cento e setenta
e cinco) afirmaram que não.

Na regressão logística realizada, avalia-se a chance de um determinado fenômeno


ocorrer, ou seja, achar que a soberania da Amazônia deveria ser compartilhada com
outros países, por meio do OmnibusTests of Model Coefficients, sendo rejeitada
quando a significância é inferior a 0,01. Nesta pesquisa, a significância foi de 0,444,
pode-se afirmar que as variáveis utilizadas aumentam a capacidade de prever que a
priorização da opinião de um respondente seja de que a soberania da Amazônia
deveria ser compartilhada por outros países.

Além deste, foi realizado teste de Hosmer-Lemeshow, para verificar se o modelo


ajusta-se bem aos dados, ou seja, deve possuir significância estatística maior que
0,05, obtendo-se, neste trabalho, o valor de 0,800, indicando bom ajustamento a
pesquisa realizada.

28
Tabela 02 – variáveis logísticas

95,0% C.I.forEXP(B)

B S.E. Wald df Sig. Exp(B) Lower Upper

a
Step1 rj 23,309 4,018E4 ,000 1 1,000 1,328E10 ,000 .

rt 23,162 4,018E4 ,000 1 1,000 1,145E10 ,000 .

aa 23,182 4,018E4 ,000 1 1,000 1,169E10 ,000 .

pf 23,245 4,018E4 ,000 1 1,000 1,245E10 ,000 .

am 23,355 4,018E4 ,000 1 1,000 1,390E10 ,000 .

al 23,048 4,018E4 ,000 1 1,000 1,023E10 ,000 .

ai 23,073 4,018E4 ,000 1 1,000 1,048E10 ,000 .

Constant -140,742 2,411E5 ,000 1 1,000 ,000

Fonte: Elaboração própria

Pela análise da tabela 02, verifica-se que quem prioriza a escolha dos fatores
ameaça militar (23,355), reivindicação jurídica sobre os tratados de fronteira (23,309)
e porosidade das fronteiras (23,245), tende a achar, também, que a soberania sobre
a Amazônia dever ser compartilhada com outros países.

O modelo obtido foi capaz de prever corretamente 83,7% das respostas. Em termos
de totais, de 216 (duzentos e dezesseis) respostas válidas, o modelo apresentou
acerto em 175 (cento e setenta e cinco) vezes. Por esse motivo, pode-se dizer que o
modelo tem uma boa capacidade de previsão. Sendo assim, confirmou-se a
Hipótese H2 do estudo.

29
Em seguida, é possível estabelecer o grau de correlação entre as diversas variáveis,
conforme tabela 03, sendo evidente que o respondente que escolheu a variável
construção de estradas, também escolheu a demarcação de terras indígenas e a
atuação deficiente do Estado. Assim como, quem escolheu atuação deficiente do
Estado também escolheu a construção de estrada. Estas correlações mostram que
existe uma relação entre estas variáveis, há uma percepção entre os respondentes
que estes fatores possuem uma interligação entre si.

Tabela 03 - correlação de fatores

aam paa dti dta nra cea eci Adb


Sig. (1-tailed) prj ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000

rtq ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000

pal ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000

eam ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000

aam ,001 ,000 ,000 ,001 ,000 ,000 ,000

aai ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000

pft ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000

paa ,001 ,000 ,000 ,000 ,136 ,000 ,000

dti ,000 ,000 ,000 ,000 ,023 ,000 ,000

dta ,000 ,000 ,000 ,000 ,006 ,000 ,000

nra ,001 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,000

cea ,000 ,136 ,023 ,006 ,000 ,003 ,023

eci ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,003 ,000

adb ,000 ,000 ,000 ,000 ,000 ,023 ,000

Fonte: Elaboração própria

Por fim, foi estabelecido uma descrição estatística com a finalidade de verificar
os valores máximos e mínimos, a média e o desvio-padrão sobre as fronteiras
metafísicas, conforme tabela 04, e sobre a securitização da Amazônia,
conforme tabela 05:

30
Tabela 04 – descrição estatística
N Range Minimum Maximum Mean Std. Deviation Variance

Statistic Statistic Statistic Statistic Statistic Std. Error Statistic Statistic


prj 215 4 1 5 3,44 ,081 1,186 1,406
rtq 215 4 1 5 3,54 ,080 1,171 1,371
pal 215 4 1 5 3,60 ,072 1,062 1,128
eam 215 4 1 5 3,64 ,077 1,122 1,259
aam 215 4 1 5 3,43 ,079 1,166 1,359
aai 215 4 1 5 3,60 ,083 1,218 1,483
pft 215 4 1 5 3,65 ,075 1,104 1,219
Valid N (listwise) 215
Fonte: Elaboração própria

Tabela 05 – descrição estatística


N Range Minimum Maximum Mean Std. Deviation Variance

Statistic Statistic Statistic Statistic Statistic Std. Error Statistic Statistic


paa 215 4 1 5 3,45 ,103 1,506 2,267
dti 215 4 1 5 3,59 ,084 1,227 1,505
dta 215 4 1 5 3,97 ,068 ,990 ,981
nra 215 4 1 5 4,12 ,074 1,078 1,163
cea 215 4 1 5 3,35 ,086 1,266 1,603
eci 215 4 1 5 4,13 ,070 1,030 1,061
adb 215 4 1 5 4,06 ,066 ,962 ,926
Valid N (listwise) 215
Fonte: Elaboração própria

4.2 Discussão dos resultados

A estatística descritiva demonstra que em nenhum dos quesitos referentes à


fronteira metafísica é considerado um problema, pois nenhuma das médias obtidas
chegou a 4, valor que indicaria a concordância dos respondentes sobre a questão
em voga. Contudo, no quesito securitização da Amazônia, somente os fatores
narcotráfico, cobiça internacional e atuação deficiente do Estado obtiveram média
acima de 4, indicando concordância que estes itens são os principais problemas
para o País.

31
Ao analisar os dados estatísticos relativos a fronteira metafísica, os quesitos de
maiores importância são a pressão para assinatura de acordos lesivos ao interesse
nacional (pal) com 0,732, ameaça armada de movimentos subversivos (aam) com
0,697 e a reivindicações de terceiros sobre questões nacionais internas (rtq) com
0,664. Estes dados evidenciam uma coerência com o argumento de Côrtes (2005), o
qual destaca a fronteira metafísica institucional como uma das mais graves, pela sua
subrepticialidade de seus atos e pelos danos que causam após a assinatura de
acordos lesivos ao Estado Brasileiro.

Ao mesmo tempo, os menos importantes são a ameaça militar às fronteiras (eam)


com 0,558, atividades ilícitas (contrabando, descaminho, entre outros) (aai) com
0,606 e possíveis reivindicações jurídicas sobre os tratados de fronteira (prj) com
0,628, mostrando uma pequena preocupação dos respondentes com supostas
ameaças militares às fronteiras nacionais e atividades ilícitas que dificultam a
soberania brasileira na região amazônica.

De acordo com a tabela de correlações, foi possível identificar a relação entre


algumas variáveis, assim quem escolheu o quesito a ―construção de estradas na
Amazônia favorece a eclosão de conflitos na região‖ também escolheu a
demarcação de terras indígenas e a atuação deficiente do Estado como problemas.
Conforme argumenta Ferreira et al (2005), a construção de estradas favorece o
desmatamento, contudo a construção de estrada apresenta uma baixa prioridade
pelos respondentes na identificação de motivos para securitização.

Na análise da regressão logística é possível obter uma visão sobre as fronteiras


metafísicas e a Amazônia Brasileira, pois relaciona-se a percepção dos
respondentes sobre a necessidade de um compartilhamento da soberania sobre a
Amazônia Brasileira por outros países.

Neste contexto, mesmo não sendo interessante que haja uma relativização da
soberania brasileira sobre a região, verificou-se que a chance de quando os
respondentes escolhem como primeira prioridade a ameaça militar, a reivindicação
jurídica sobre os tratados de fronteira e a porosidade das fronteiras, amplia-se
consideravelmente as chances de que o respondente ache que a soberania sobre a
Amazônia Brasileira dever ser compartilhada com outros países.

32
Como resultado final, poderíamos ressaltar que para evitar que um respondente
acredite no compartilhamento da soberania sobre a Amazônia Brasileira, deve ser
priorizado, pelas autoridades, a adoção de políticas que evitem a ameaça militar nas
fronteiras amazônica, bem como a manutenção da regulação jurídica sobre os
tratados de fronteira e diminuir a porosidade das fronteiras amazônicas, conforme
Mattos (1980), Becker (2005) e Côrtes (2005).

5 Considerações Finais

As ideias da Escola Geopolítica Brasileira, representadas pelo General Meira Mattos


(1980), estabelecem a necessidade de vivificar a região como áreas interiores de
intercâmbio fronteiriço, assemelhando-se às cidades fronteiriças gêmeas, no dizer
de Bertha Becker (2005). Assim, o impulso vivificador da Amazônia, no século XX,
está sendo substituído pelo desenvolvimento regional, com base em uma revolução
científico-tecnológica, a fim de proporcionar um aproveitamento ambiental, sem
desgastá-la exageradamente, desenvolvendo a região, mas preservando a floresta,
mesmo que os respondentes tenham apontado a necessidade da diminuição da
porosidade da fronteira amazônica como assunto importante para a defesa.

Contudo, a abertura de estradas somadas às atividades econômicas relacionadas à


pecuária e à agroindústria, promovem a destruição da floresta, visando ao
desenvolvimento da Nação, a despeito das medidas adotadas, tais como as áreas
de proteção. Assim, são necessárias a adoção de leis mais rígidas e um efetivo
trabalho de campo, para melhor controlar as queimadas e o desmatamento, apesar
de que a construção de estradas é vista pelos respondentes, não isoladamente, mas
como interligados a demarcação de terras indígenas e a atuação deficiente do
Estado como causadores de conflitos na região amazônica.

As demarcações de diversas reservas indígenas em regiões fronteiriças e


justapostas umas às outras, somadas à assinatura da Declaração dos Direitos dos
Povos Indígenas, favorecem a eclosão de disputas por terras, por vários motivos, de
descontentes a aproveitadores das riquezas nestas áreas, deixando em aberto a
interpretações a questão de atribuir a autodeterminação a estes povos, deixando

33
aberto uma porta a ameaças militares no intuito de defender estas minorias, como
os indígenas, indo de encontro as regulações jurídicas sobre os tratados de
fronteira, aumentando, por conseguinte, a opinião que a soberania devesse ser
compartilhada com outros países.

Por isso, é preciso investir no entendimento das fronteiras metafísicas


―institucionais‖, pois são as responsáveis pela assinatura de acordos dos mais
variados matizes, a fim de clarificar conceitos sobre a securitização deste assunto e,
assim, evitar aventuras alienígenas no território brasileiro. Ademais, deve a Nação
direcionar as atitudes estratégicas que visam ao seu desenvolvimento, sem perder o
foco da preservação, lembrando que as instituições precisam estar cientes das
ameaças de diversas ordens à soberania nacional, já que a cultura dos indivíduos
presentes nas instituições influencia na compreensão do que é ameaça e nas
decisões em caráter nacional.

Este trabalho, por fim, advoga a necessidade de se manter a securitização do


assunto Amazônia, tendo em vista as constantes ameaças a soberania retratadas
neste trabalho, principalmente as fronteiras metafísicas institucionais, contrariando
alguns autores modernos que admitem a dessecuritização como um fato atual.

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34
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http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/viewArticle/483. Acesso em 20 nov.
2012.

35
VIGILÂNCIA NAS FRONTEIRAS E MUROS VIRTUAIS: UM ESTUDO ANALÍTICO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS E SISTEMAS OPERACIONAIS DE PROTEÇÃO ÀS
INFRAESTRUTURAS ESTRATÉGICAS TERRESTRES

Ana Bárbara Moreira Tesche3

Thiago de Oliveira Gonçalves4

Luciana Wietchikoski5

1 Introdução

O presente artigo é uma prévia do trabalho que se propõe a integrar o edital


―Vigilância nas Fronteiras e Muros Virtuais‖ dando ênfase na cooperação
transfronteiriça dos países amazônicos em matéria de defesa e segurança. A partir
de uma perspectiva comparada das atividades desenvolvidas conjuntamente pelo
Brasil e seus vizinhos para a manutenção de suas soberanias – tais como
prevenção ou combate ao terrorismo, tráfico de armas e drogas, migrações e
desrespeito ao meio ambiente e aos direitos humanos.

Recorrendo a documentos públicos disponíveis nos sítios dos Ministérios de Defesa de


Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Venezuela, intenta-se
entender quais os tipos de problemas em suas respectivas fronteiras amazônicas são
priorizados por cada país e se há convergência com a agenda proposta pelo Ministério da
Defesa brasileiro nestes temas. Paralelamente consideram-se os principais acordos
relacionados a este tipo de cooperação entre estes e o Brasil.

No que concerne a esta etapa inicial do trabalho, apresenta-se brevemente uma


base conceitual para o estudo da cooperação internacional e sua aplicação nesses
cases, algumas justificativas da importância destas iniciativas para a defesa do
território amazônico junto a um perfil dos problemas de segurança pautados pelos
países em questão. Finalmente, colocam-se algumas considerações finais com
alguns questionamentos que podem orientar uma reflexão mais aprofundada sobre a

3
Bacharel em Relações Internacionais (Centro Universitário La Salle), mestranda em Ciência Política (UFRGS).
4
Bacharel em Relações Internacionais (Centro Universitário Curitiba), mestrando em Ciência Política (UFRGS).
5
Licenciada em História (Universidade de Passo Fundo), mestranda em Ciência Política (UFRGS).

36
cooperação securitária na fronteira amazônica e quais são os custos e
oportunidades que se apresentam para o Brasil.

Assim, através dessa análise almeja-se entender se as diferentes iniciativas de


cooperação bilateral do Brasil com os países amazônicos em matéria de defesa
possuem uma finalidade comum. Neste sentido são eles uma etapa da
construção de um regime de cooperação mais consistente e interdependente na
América Sul ou meramente iniciativas isoladas, restritas à realização de
exercícios militares conjuntos.

2 Fronteiras no século XXI e a Amazônia

O período final da Guerra Fria e o contexto de incerteza em função de artifícios


retóricos utilizados por policy makers dos países centrais para legitimar a ingerência
em outros Estados pelo desrespeito aos Direitos Humanos, gestão irresponsável do
Meio Ambiente e a Guerra às Drogas, trouxe novo alento à proteção das fronteiras
amazônicas do Brasil por suas Forças Armadas (FFAA). Desde então o Estado
brasileiro viabilizou programas como Calha Norte e SIVAM além de aumentar o
número de Organizações Militares na região. Paralelamente a estas iniciativas os
documentos brasileiros de defesa, Política de Defesa Nacional (1996; 2005) e
Estratégia Nacional de Defesa (2008) reiteram a tradicional priorização da defesa da
região (MARQUES, 2005), objetivo nacional permanente das Forças Armadas.

Assim, a presente proposta de pesquisa visa analisar as perspectivas de Segurança


e Defesa dos países amazônicos, com o fim de encontrar pontos de convergência
e/ou discordância. Esta reflexão parte do nível ―macro‖ dos posicionamentos
estratégicos, alianças políticas e da participação em instituições e em regimes de
segurança regionais para o nível ―micro‖ das operações conjuntas e cooperação
entre Forças Armadas da fronteira amazônica com as FFAA brasileiras. Para tanto
se sugere como objeto da pesquisa os documentos recentes produzidos pelos
países em questão6, os quais apresentam o discurso de interpretação do ambiente

6
Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, e Venezuela. Suriname, Guiana Inglesa e Francesa serão abordados
através dos documentos de segurança dos demais países.

37
estratégico do país, o tipo de agenda de segurança estabelecida (ameaças
prioritárias) que determinam as hipóteses de emprego de suas respectivas FFAA.

Tal apreciação de orientações de políticas de defesa na fronteira amazônica é feita


com a intenção de prospectar possibilidades de incremento da cooperação militar na
América do Sul. Pretende-se identificar nas orientações gerais das políticas de
defesa e alinhamentos externos de cada país, a ―razão de ser‖ das operações
conjuntas e se estas se constituem como vetores de aprofundamento da cooperação
militar – integração de sistemas de vigilância, construção de um discurso/agenda
regional de segurança coeso, viabilização de uma indústria de defesa continental –
ou se as operações têm um fim em si mesmas.

A partir desta análise de documentos e da produção científica de especialistas de


cada um dos países fronteiriços, pretende-se efetuar uma análises da relação entre
diplomacia e cooperação militar, supondo que a identificação das alianças políticas
externas e o as perspectivas de inserção internacional ou perspectivas estratégicas
de cada país são fatores importantes para o entendimento desta relação dinâmica.
No entanto, nesta etapa do trabalho restringe-se à discriminação das iniciativas de
cooperação em matéria de defesa na Pan-Amazônia e explicitar como o Brasil tem
se posicionado nesta conjuntura.

É possível inferir que no estudo das relações internacionais os problemas incidentes


na faixa de fronteira de diferentes Estados podem ser abordados segundo uma
abordagem clássica/positivista/realista envolvendo os interesses dos Estados em
termos de seu poder e capacidades possuídas para alcançá-los. Sendo assim, há
incentivos e reveses que permeiam o fenômeno da cooperação internacional 7. Sem
procurar aprofundar-se em uma preferência por um conceito mais sofisticado ou
atual no que concerne à complexidade das interações fronteiriças na Pan-Amazônia,
busca-se entender quais orientações baseiam a alocação de recursos estatais para
a defesa de suas fronteiras a região. Acredita-se que estes são pontos interessantes

7
Como nos mostra CEPIK (2011, p. 1) (i) a maximização dos ganhos absolutos de desenvolvimento, (ii) a
minimização dos riscos relativos de segurança e (iii) o objetivo comum e solidário rumo à expansão da fronteira
do conhecimento humano. Constrangimentos sistêmicos, interações estratégicas repetidas com n participantes e
incompletude informacional endêmica tornam o balanceamento entre os três objetivos difíceis e os resultados de
cada esforço cooperativo sempre incerto.

38
para estudo, pois ainda há publicações de estudiosos estrangeiros criticando as
―porosas fronteiras da selva Amazônica do Brasil‖8 (NICOLL, 2011), cuja suposta
inaptidão de cuidar de seu território ocasiona os problemas mais variados que estão
ligados a uma agenda comum que se estabeleceu para os países Sul-Americanos
no pós-Guerra Fria9.

3 Perfis dos países amazônicos

Brasil

Em um relatório recente da Junta dos Chefes de Estado-Maior das Forças Armadas


dos Estados Unidos reconhece o Brasil como um país que exerce papel de liderança
nos arranjos de segurança na América do Sul. (JOINT OF CHIEFS OF STAFF,
2011). Pode-se interpretar que este reconhecimento por parte de um importante pólo
de poder no Sistema Internacional seja resultado de um processo de construção de
capacidades para a garantia de sua soberania sobre o território Amazônico, alvo de
grandes investimentos desde meados dos anos 7010.

Desde o Tratado de Cooperação Amazônica o Estado brasileiro vem reiterando sua


indisposição com a ingerência externa na gestão de seu território e mesmo no
contexto das dificuldades de financiamento em virtude da crise econômica dos anos
80 concebeu-se em 1985 o Projeto Segurança e Desenvolvimento ao Norte da
Calha dos Rios Solimões e Amazonas (MIYAMOTO, 2000). A partir de então, em
consonância com a estabilização das tensões na Bacia do Prata, a fronteira Norte e
o Atlântico Sul passam a ser priorizados em termos geopolíticos e de Defesa.

Paralelamente, com o fim do conflito bipolar uma nova agenda de Segurança passa
a se institucionalizar no Hemisfério Americano expressando uma concepção ampla
de segurança incluindo os mais variados tipos de ameaça como prioritários (SAINT
PIERRE, 2012). Assim, temas como danos à biodiversidade, contenção de ilícitos

8
Tradução livre de “Brazil‟s porous jungle borders” em nota do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.
9
A ampla agenda de Segurança Hemisférica desenvolvida no seio da Organização dos Estados Americanos, cuja
evolução e análise mais detalhada se pretende incluir no estudo expandido.
10
Programa de Integração Nacional, o projeto de ocupação por meio da rodovia Transamazônica, a criação do
Banco da Amazônia e da Zona Franca de Manaus, o Projeto Grande Carajás, Iniciativa Polamazônia, entre
outros.

39
transnacionais, sejam estes materializados na figura do narcotráfico ou do tráfico de
armas e pessoas, passam a ser internalizados em documentos importantes como as
Políticas de Defesa Nacional (1996; 2005).

Neste sentido, adequando-se a esta nova conjuntura conjugam-se esforços variados


no sentido de atender às novas prioridades para a defesa das fronteiras terrestres e
são criadas iniciativas como os Programas SIVAM/SIPAM, aumenta o número de
Pelotões Especiais de Fronteira, institui-se o Programa Calha Norte11, é reativado o
Projeto Rondon, as Forças Armadas realizam exercícios conjuntos na fronteira,
expressos nas Operações Ágata, institui-se a iniciativa interministerial de
manutenção da lei e da ordem nas fronteiras, materializados no Plano Estratégico de
Fronteiras e na Estratégia Nacional de Controle de Fronteiras e ainda há previsão de
implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras/SISFRON no
contexto da estratégia Braço Forte do Exército Brasileiro, a qual inclui o Plano
Amazônia Protegida. Há também iniciativas visando a manutenção da soberania
brasileira sobre o Atlântico Sul.12

No entanto, como apontado por Miyamoto (2012), ao incrementar suas capacidades


militares com o fim de afirmar-se soberanamente sobre suas longínquas fronteiras
aumenta o receio dos países vizinhos quanto à presença agressiva nas fronteiras,
pois a presença do Estado nestes rincões se dava majoritariamente por meio de
militares. Dessa maneira, busca-se incrementar a cooperação em matéria de
Defesa, havendo o desenvolvimento de operações conjuntas com Bolívia, Colômbia,
Peru e Venezuela13. Neste viés também podem ser identificadas a ênfase pela paz e
pelo fortalecimento da cooperação em matéria da segurança no âmbito do Conselho
de Defesa Sul-Americano, vinculado à UNASUL como exposto no Livro Branco de
Defesa Nacional (MD, Brasil, 2012).

Bolívia

Não diferente de seus vizinhos, o Estado boliviano reconhece em seu Livro Branco
de Defesa de 2004 que a política internacional é permeada por interesses e que não

11
Até então Projeto.
12
Como os planos de renovação da frota marítma, o programa do Submarino Nuclear e o Sistema de
Gerenciamento da Amazônia Azul SisGAAz, os quais não serão tão discutidos, uma vez que o foco deste
trabalho é o estudo da cooperação e matéria de segurança na fronteira terrestre.
13
Operações BRABO, COBRA, PEBRA e VEBRA, cujo enforque varia entre exercícios conjuntos de contenção
de ilícitos transnacionais por parte das forças e pela partilha de informações e intercâmbio de serviços de
inteligência. Destaque-se também a importância do Brasil na implementação do SIVAM peruano.

40
há como abrir mão da prevenção contra uma intervenção militar de outro Estado.
Mas também apresenta uma ampla gama de ameaças não-convencionais que inclui
―fenômenos e consequências do narcotráfico, terrorismo, narcoterrorismo, pobreza,
instabilidade institucional, deterioração do meio ambiente, desastres naturais e
outros, como ameaças reais à estabilidade‖14 (BOLIVIA, 2004, p. 45). Uma
dificuldade particular que interfere na prevenção quanto a este tipo de problema é a
escassez de recursos, o que acaba vulnerabilizando as zonas fronteiriças.

No que concerne à cooperação, o discurso do presidente Evo Morález enfatiza a


ALBA como via institucional para a realização dos interesses dos países latino-
americanos, os quais devem se unir em uma militância anti-colonial e contra o
imperialismo norte-americano, que, segundo nota do Ministério da Defesa do
Governo da Bolívia, visa cercear os povos dos recursos naturais estratégicos de que
dispõem. Ainda, há a menção ao alinhamento político entre os países europeus e os
Estados Unidos e quanto à política de privatização da Guerra. No mais, Morales
também preza pelo fortalecimento da diplomacia dos povos, rechaça o
estabelecimento de bases militares de outros países em seu território e insiste que
uma nova doutrina deve estar baseada na luta política e ideológica contra o
capitalismo, o imperialismo e o colonialismo, visando a defesa da Mãe Terra
(BOLÍVIA, 2013).

Colômbia

A análise dos documentos mais atuais disponibilizados no sítio do Ministério da


Defesa da República da Colômbia evidencia o enfoque do emprego das Forças
Armadas e Policiais no combate ao terrorismo e ao narcotráfico, como consta na
PISDP15. À parte destes objetivos estratégicos o discurso de escopo amplo
envolvendo temas como o desenvolvimento sustentado da nação, atração de
investimentos estrangeiros são também ligados à criação de capacidades de
manutenção da lei e da ordem.

14
Tradução livre do original em Espanhol.
15
Política Integral de Seguridad y Defensa para la Prosperidad (2013).

41
No contexto da Guerra Civil Colombiana a caracterização dos Grupos Armados à
Margem da Lei (GAML), é englobada no combate ao terrorismo e ao narcotráfico.
Segundo, as FARC tem intensificado o desenvolvimento de ações típicas da
guerrilha, fazendo alianças crescentes com os traficantes de drogas e fortalecendo
sua estrutura de milícias e redes de apoio, usando civis como ações terroristas de
camuflagem. O ELN se refugiou no narcotráfico e no terrorismo como fundamental
para criar enclaves de produção de drogas e exploração ilegal de recursos,
demonstrando esforços regionais diferenciados para garantir a sua sobrevivência
(COLÔMBIA, PISDP, 2013, p. 16).

Sendo assim a adaptação dos esquemas de segurança através do fortalecimento


dos dispositivos de inteligência visam aumentar a sinergia entre as missões militares
e policiais para cobrir todo o território nacional. Mencionam-se os objetivos destas
ações como sendo: (1) consolidação territorial/presença da força pública nas
fronteiras terrestres e marítimas, (2) consolidação da paz, (3) diminuição do cultivo
de narcóticos, (4) desarticulação dos GAML e (5) criar capacidades críveis de
dissuasão16 (PISDP, 2013, p. 28-29).

O que se pode tomar como brecha no discurso que permita a aproximação entre
Brasil e Colômbia nas fronteiras amazônicas é a disposição para a criação de um
sistema integral de administração, controle e segurança fronteiriça para bloquear os
GAML e tomar a frente na luta contra crimes transnacionais. Ainda no documento há
a disposição para implementar estratégias de cooperação com países aliados,
similares à operação COBRA.

Venezuela

Tendo a maior reserva petrolífera do continente e com o lugar em termos de


população e economia da América do Sul, a Venezuela faz fronteira com o
Brasil, onde destacam os seguintes problemas: tráfico humano, de armas,
drogas e mineração ilegal.

16
Atente-se para a ausência de detalhes no documento público sobre a especificidade do uso de forças terrestres
e marítimas e em relação a que ameaça esteja estruturada esta intenção de criar capacidades de dissuasão, se
Forças Armadas tradicionais ou grupos insurgentes.

42
Quanto a primeira questão, os dois países vêm desenvolvendo mecanismos de
cooperação bem como tem o aporte jurídico de instituições regionais, como o
MERCOSUL. Já no que se refere ao tráfico de drogas, a região de fronteira entre os
dois países, se tornou uma intensa rota de passagens desses ilícitos, que se
destinam na sua maioria aos mercados consumidores nos Estados Unidos países
europeus. Os dois países vêm realizando operações conjuntas para o combate dos
ilícitos como, por exemplo, as ações desenvolvidas na fronteira resultado das
Reuniões da Comissão mista de Drogas Brasil-Venezuela e reuniões de trocas de
informações o mesmo pode se dizer do tráfico de armas, o qual se destina a
compradores da região da Colômbia. O problema da mineração ilegal é identificado
como a exploração de minério venezuelano de forma ilícita por brasileiros. Nos
últimos anos os dois países vêm procurando desenvolver ações para a diminuição e
combate dessa prática, como aconteceu, por exemplo, nos grupos de trabalhos da
COBAN (CARDOSO, 2010).

Nesse contexto, observa-se que a possibilidade de cooperação bilateral entre Brasil


e Venezuela pode ser intensificada e ser mais eficiente quando se investirem em
áreas de desenvolvimento conjunto de um sistema de informação.

Guiana

A Guiana é um pequeno país o qual faz fronteira com o Brasil ao Norte. Embora
membro da UNASUL, sua inserção é mais voltada para a região caribenha
(CARICOM) e seus principais parceiros são o Reino Unido, Canadá e os Estados
Unidos (VIZENTINI, 2008).
Historicamente as relações entre o Brasil e a Guiana são tranquilas, não havendo
registros de conflitos ou desentendimentos de relevância. Contudo, isso não quer
dizer um relacionamento bem sucedido, pois na verdade se observa inexistência de
uma agenda substantiva entre os dois países, sendo que a política externa de cada
país nunca considerou a outra parte como prioritária na sua inserção internacional.
Esse perfil reflete na própria agenda de cooperação entre os dois países, a qual se
restringe a poucas cooperações técnicas, principalmente focadas na área

43
energética, com a construção de hidrelétricas por empresas brasileiras na Guiana
(CARDOSO, 2010)

Na questão da região de fronteira se acumulam alguns problemas, destacando-se o


tráfico de drogas, trafico internacional de seres humanos, mineração ilegal, ilícitos
transfronteiriços. Identifica-se a ausência de ações conjuntas efetivas para a solução
desses problemas, seja através de fóruns de debates, acordos bilaterais, operações
conjuntas ou o policiamento fronteiriço de ambos os países (CARDOSO, 2010;
VIZENTINI, 2008). Assim, concluiu-se que as premissas das diretrizes brasileiras
para a Amazônia encontradas no PDN (1996; 2005) e END (2008) são colocadas
em prática de maneira ainda muito incipiente na fronteira com a Guiana.
Analisando os poucos documentos encontrados da Guiana, a Amazônia não é
prioridade para a sua defesa e segurança. Os problemas de fronteira identificados
são os apontados acima. A possibilidade de cooperação do Brasil pode se dar
através de um processo de ajuda para a modernização das Forças Armadas
guianenses seja através de fornecimento de equipamentos,de treinamento militar,
bem como da presença na economia (GUIANA, 2009).

Equador

No seu livro Branco de Defesa17, o Equador se insere no contexto de país


democrático, pacífico que respeita a soberania dos países. Nessa perspectiva, na
área de segurança e defesa regional procura participar ativamente dos organismos
internacionais e regionais que tem por fim garantir a paz, a democracia,
desenvolvimento e confiança mútua, tais como a Comissão de Segurança
Hemisférica e Conferência dos ministros de defesa das Américas e Compromisso
Andino de Paz, por exemplo.

A inserção regional está voltada para os países andinos e em termos de defesa das
fronteiras, o Equador destaca a região Norte, divisa com a Colômbia, como a
principal situação de risco. Os problemas elencados são o deslocamento da
população, migração forçada, a destruição de áreas agrícolas e principalmente a

17
Libro Blanco del Ecuador (2013).

44
atividades ilegais, como o narcotráfico (LBE, 2006). Nessa ultima questão, destaca-
se o conflito colombiano e suas implicações, bem como a implementação do Plano
Colômbia com ativa presença dos Estados Unidos como o fator de instabilidade sub-
regional. Para combater esses problemas o Equador propõe uma estratégia para
melhorar a segurança de fronteira baseada na proteção se sua população,
ampliando a presença de instituições do Estado a fim de promover o
desenvolvimento sustentado da região bem como ter ações militares e estabelecer
diálogo cooperativo com o país vizinho (LBE, 2006).

Pela análise do documento, a possibilidade de cooperação na região


amazônica, colaborando para a estabilidade e defesa da região pode ser
intensificada entre Brasil e Equador nas áreas de desenvolvimento de
tecnologias e sistema militares de vigilância.

Guiana Francesa

A Guiana Francesa possui um alto grau de diversidade cultural, é politicamente


integrada com a França e a Europa sujeita, portanto, as mesmas ambigüidades na
aplicação das leis da República Francesa, geograficamente o país se encontra ao
norte da América do Sul, fazendo fronteira com o Brasil e o Suriname.

Dentre os problemas fronteiriços da Guiana Francesa está a questão dos


garimpeiros brasileiros ilegais, que ganhou força a partir do início da década de 90,
que desde então são uma grande preocupação para as autoridades francesas. O
governo francês acusa esses garimpeiros de causar danos ambientais, como
poluição dos rios com mercúrio, e também problemas de segurança e violência para
as populações da região. O problema ganhou maior repercussão quando, em junho
de 2012, garimpeiros brasileiros atacaram um helicóptero francês e mataram dois
soldados franceses em uma emboscada na Floresta Amazônica.
Em 2008, durante uma visita dos ex-presidentes Lula e Nicolas Sarkozy à Guiana
Francesa, foi firmado um acordo de cooperação entre o Brasil e a França para
prevenir e lutar contra a exploração ilegal de ouro em áreas protegidas da floresta. A
operação Harpie, como é chamada a cooperação entre autoridades judiciárias,

45
administrativas e militares francesas e brasileiras, utiliza entre 400 e 500 soldados
para lutar contra o garimpo ilegal de ouro na Guiana Francesa (SILVA; RÜCKERT,
2009; FERNANDES, 2012)

Peru

Em seu Livro Branco de Defesa (2005), o Peru elenca uma visão estratégica de
desenvolvimento e segurança, como um país de enorme potencial nas dimensões
marítima, Andina, Amazônica e uma projeção geoeconômica bi-oceânica, vinculados
a integração regional, bem como, ameaças que integram a região sul-americana
como um todo, sendo estes, a escassez de recursos naturais de grande valor
estratégico, o terrorismo, narcotráfico e crime internacional. Os países envolvidos
vêm realizando treinamento e operações combinadas, a fim de neutralizar estas
ameaças em comum, com base em acordos bilaterais e trilaterais.

Com relação à Colômbia, os países Criaram o Grupo de Trabalho Bilateral de


Defesa (GTBD), presidido pelos ministros da Defesa que assinaram os seguintes
instrumentos: o Grupo de Trabalho Bilateral para os Assuntos de Polícia (grupo
GTBP), e o Mecanismo de Alto Nível de Segurança e de Cooperação Judiciária
(MAN), instância de cooperação e coordenação política para examinar
exaustivamente as questões relacionadas com o terrorismo, o problema mundial das
drogas e delitos conexos, tráfico de armas, a corrupção , entre outras atividades
ilícitas, bem como propor e conduzir ao mais alto nível, medidas concretas de apoio
e cooperação. Os países criaram ainda o Acuerdo para Combatir el Tráfico de
Aeronaves Presuntamente Comprometidas en el Tráfico Ilícito de Estupefacientes y
Delitos Conexos e um acordo entre os Ministros da Defesa, para combater
atividades ilícitas nos rios fronteiriços.

Quanto à relação com o Brasil, foram desenvolvidas iniciativas conjuntas para a


participação em exercícios conjuntos de manutenção da paz da ONU e
operações, trocas de oficiais e de formação conjunta, entre outros, também foi
assinada uma Declaração Conjunta entre os ministros da Defesa, para a criação
de um Grupo de Trabalho Bilateral de Defesa e da implementação de medidas de
confiança mútua, cooperação científica e tecnológica de integração e
compartilhamento de informações.

46
Suriname

O Suriname faz fronteira terrestre com o Brasil, mas sempre teve uma inserção mais
voltada para a região do Caribe. Apesar de antigos laços históricos com a ex-
metrópole, estes são hoje menos intensos e contribuíram para que a antiga colônia
inglesa cultivasse referências mais européias do que junto ao entorno geográfico
sul-americano (VISENTINI, 2008).

O Brasil vem tentado estimular uma parceria bilateral com o Suriname, englobando
também um processo mais amplo de integração sul-americana através da UNASUL,
apoiando a modernização da estrutura de defesa, através de treinamento militar,
intercâmbio de conhecimentos, ação conjunta nas fronteiras e revitalização de
equipamentos militares (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2012a). Em 2008 os dois países
estabeleceram um grupo de trabalho bilateral em matéria de defesa, que pretendia
supervisionar e coordenar as atividades de cooperação de defesa entre os dois
países ao nível dos chefes de Estado, além de capacitar o Suriname para a análise
de imagens de satélite e mapeamento de seu território através do SIPAM
(MINISTÉRIO DA DEFESA, 2012b).

4 Considerações Finais

A partir desta breve exposição das principais ameaças que estão explicitadas em
documentos oficiais, acordos e pronunciamentos de autoridades dos países
estudados, é possível identificar uma agenda comum de combate às ameaças não-
tradicionais como um dos vetores que justificam a atuação nas áreas de fronteira,
seja por meio de estratégias de law-enforcement, Garantia da Lei e da Ordem ou por
meio da alocação de organizações militares. No entanto, é possível inferir apenas
com base nesta enumeração de ameaças similares como uma via de
aprofundamento da cooperação e transformação da América do Sul em um espaço
de interesses coesos?

Com base em uma série de memorandos de entendimento 18 do Brasil com seus


vizinhos prezando cooperação militar nas fronteiras, este tipo de cooperação,
manifesta em exercícios conjuntos Forças de cada país se constitui em uma medida
de construção de confiança mutua, mas cada país arca com seus respectivos custos

18
Enumerados em Donadio (2012, p. 78).

47
financeiros das operações. Assim, seria a progressiva institucionalização do CDS o
caminho para a viabilização de uma indústria de Defesa Sul-Americana?

Neste sentido, pretende-se seguir o estudo aprimorando o perfil de cada país exposto
nos parágrafos acima e identificando seus alinhamentos recentes em matéria de
Política Externa. Assim, pretende-se concluir a análise identificando vetores de
convergência ou de discordância entre a Política Externa e a maneira como se aloca
esforços estatais para defender as fronteiras terrestres na América do Sul.

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<http://confins.revues.org/6040#sthash.dm0Devrp.dpuf>. Acesso em: 11 jun. 2013.

VISENTINI, Paulo Fagundes. Guiana e Suriname: Uma Outra América do Sul.


Seminário América do Sul: América do Sul. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão,
2008. Disponível em: <http://www.funag.gov.br/biblioteca/dmdocuments/0440.pdf>.
Acesso em: 11 jun. 2013.

50
A GEOPOLÍTICA DA AMAZÔNIA NO SÉCULO XXI:
O PENSAMENTO DE MÁRIO TRAVASSOS REVISITADO

André Luiz Varella Neves19

1 Introdução

O Brasil foi um dos primeiros países a produzir estudos sobre geopolítica stricto
sensu, pois as teorias originárias de Ratzel e Kjéllen encontraram terreno fértil em
nosso país. Isto ficou evidenciado, devido à repercussão no Brasil, da célebre
Conferencia de Mackinder, intitulada The Geographical Pivot of History na Real
Sociedade Geográfica de Londres em 1904, complementado pelo artigo Democratic
Ideals and Reality, publicado no Foreign Affairs, em 1919. Assim, surgia no Brasil
um estudo preocupado com o papel da geografia na formulação da política nacional
através de Elyseo de Carvalho, denominado de Factor Geográfico na política
brasileira de 1921.

A gênese da produção geopolítica no nosso país ocorreu nas décadas de 20 e 30


dando o início a uma produção bibliográfica extremamente profunda, tanto
quantitativamente como qualitativamente. Ao contrário do que é corrente pensar-se,
estes trabalhos são praticamente desconhecidos no meio acadêmico, e que
segundo Miyamoto, nutre em relação a eles, um preconceito que perdura desde a
década de 1940, demonstrado pela ausência de cientistas políticos na elaboração e
análise geopolíticos (MIYAMOTO, 1981).

Além de Elyseo de Carvalho surgiram neste período outros autores como Everardo
Backheuser, Carlos Delgado de Carvalho, Mário Travassos e Francisco de Paula
Cidade, cujos trabalhos demonstraram a influência do pensamento de Ratzel.

Para a literatura especializada a grande figura da geopolítica nacional foi


Everardo Backheuser, pelo pioneirismo da sistematização de informações
desordenadas sobre o país. Foi com este autor que o estudo da geopolítica no
Brasil foi impulsionado, pois a sua profícua produção, inaugurada com a obra

19
UFF/INEST

51
Pela Unidade do Brasil , em 1925, iria continuar ao longo das três décadas que
se seguiram. Suas considerações versavam desde uma teoria sobre a possível
marcha da civilização e discussões teóricas sobre geopolítica e geografia política
até a mudança da Capital Federal.

Na década de 40 apresentou-se fértil e a que mais produziu estudos sobre


geopolítica, que embora tenha sido das maiores, a qualidade dos trabalhos não
superou as obras de Travassos e Backheuser. São desse período as obras de Lima
Figueiredo, Leopoldo Nery da Fonseca, Lysias Rodrigues, Djalma Poli Correa,
Carlos Delgado de Carvalho, Raja Gabaglia e Moisés Gikovate.

Nos anos 50, com o advento da Escola Superior de Guerra no final da Segunda
Guerra Mundial, marcou uma nova etapa nos estudos geopolíticos com o surgimento
de uma nova geração de estudiosos a saber: Therezinha de Castro, Meira Mattos,
Golbery do Couto e Silva, João B. Magalhães, Waldyr Godolphim e Lyra Tavares.

Nas décadas de 60 e 70 assinalaram um período em que as preocupações


estiveram voltadas para a segurança nacional e o fortalecimento do poder nacional.
Encontra-se neste período, a publicação da obra ―Projeção Mundial do Brasil‖ do
General Meira Matos, e em que logo na introdução, pede licença para sonhar não
mais como um país de projeção continental, fazendo alusão a obra de Mário
Travassos, mas antes com um país de projeção internacional. Buscou mostrar por
que o país deveria assumir um papel de relevo no concerto mundial de nações,
sendo esta a tônica que irá que guiará todos os seus ensaios posteriores
(MIYAMOTO, 1981).

Feito este sumaríssimo balanço da produção geopolítica brasileira desde os seus


primórdios, o foco deste artigo é apresentar a tese proposta por Mário Travassos20
no trabalho considerado de fundamental importância para a compreensão da

20
MARIO TRAVASSOS: O jovem Capitão Mário Travassos publicou em 1931 o livros intitulado “Aspectos
Geográficos Sul Americanos”, o qual foi reeditado em 1947 com o título de “Projeção Continental”. Na década
de 40 publicou “Introdução à Geografia das Comunicações Brasileiras”. O primeiro foi prefaciado por Pandiá
Calógeras e o segundo, por Gilberto Freyre. A “Projeção Continental”, de acordo com Ronald de Carvalho,
lançou os fundamentos da Geopolítica brasileira para a primeira metade do século XX. Suas análises e
formulações políticas dominaram a mente de intelectuais patriotas e dos Oficiais formados pelas Escolas de
Estado Maior do Exército, Marinha e Aeronáutica até a década de 50. Suas ideias coincidiram com os propósitos
políticos de fortalecimento do Estado brasileiro oriundas dos Revolucionários de 1930. Cf. Centro de Estudo em
Políticas Estratégias Nacionais General Meira Mattos (2000).

52
geopolítica brasileira publicado em 1931. Trata-se dos Aspectos Geográficos Sul
Americanos21, reeditado em 1947 com o título de Projeção Continental do Brasil.22

Estas ideias expostas há 82 anos propiciam o distanciamento e a perspectiva


necessária e suficiente para um imprescindível ajuste de contas com o autor.
Podemos considerá-lo como o pai fundador da Geopolítica brasileira, pois lançou
os fundamentos para a Geopolítica do Brasil na primeira metade do século XX.

Neste sentido o nosso interesse é verificar quais foram as instabilidades geográficas


percebidas por Travassos na região noroeste da América do Sul, compreendendo os
países como a Bolívia, a Colômbia e o Equador e as inquietações políticas que delas
derivaram.

O objetivo é resgatar a reflexão do autor àquelas contribuições teóricas no que tange


as influencias americanas advindas do Canal do Panamá, submetendo-as ao crivo
das mudanças da política internacional na América do Sul. Retiraremos tudo àquilo
que seja obsoleto, circunstancial e passageiro, na interpretação do papel do Brasil
no cenário regional de defesa e segurança no século XXI, dirigindo a nossa atenção
para Amazônia.

2 Aspectos capitais da Geografia Sul americana

Os postulados essenciais da teoria de Travassos para a compreensão do complexo


geopolítico da América do Sul estão no entendimento de que os Estados buscam
possuírem várias saídas para o mar, se possível, para mares diferentes e aspiram
também ao domínio da totalidade das bacias hidrográficas que estiverem ao seu
alcance. Para o autor, qualquer potência que disponha de seções navegáveis de um
grande rio tenderá a estender este domínio até sua foz, e do mesmo modo,

21
Esta obra surgiu no momento em que ser processava a substituição da República oligárquica pelo Estado
Compromisso varguista, cujo contexto histórico caracterizava-se pelo aumento do peso relativo dos militares na
vida política brasileira, aureolado pela visão retrospectiva da Revolução vitoriosa e pela mística dos levantes
tenentistas. Assim, como a Revolução de 30 foi um divisor de águas na História do Brasil, a obra de Travassos,
tornou-se o marco do pensamento geopolítico brasileiro, do qual é considerado pai fundador. Cf. Mello (1997).
22
Esta obra é frequentemente mencionada, não muito por nacionais, pois poucos destes a leram, sobretudo nos
países vizinhos, que a denunciavam como a tentativa do papel hegemônico que o Brasil procura assumir na
região apoiado nessa teoria. Cf. Miyamoto (1981).

53
inversamente, quando uma potência dominar a boca de um caudal tenderá expandir-
se até as cabeceiras.

Fazendo a alusão a América do Sul, e sob o crivo dos fatos históricos, geográficos e
estratégicos do Império alemão, da Rússia, da Inglaterra23, nota que estes exemplos
permitem-nos estimar consequências mediatas e imediatas pela presença do
antagonismo entre os oceanos Pacíficos e o Atlântico. Eles também nos ajudam
diagnosticar a complexidade dos problemas oriundos das múltiplas regiões
hidrográficas da região, revelados desde a colonização e mantidos em estado
latente após a formação dos Estados sul americanos (TRAVASSOS, 1947). A
gravidade destas questões está relacionada ao fato de que cada uma das regiões
hidrográficas abriga mais de uma soberania, suscitando a possibilidade do
surgimento de conflitos que poderiam alterar o mapa político na América do Sul24.

Sendo assim, a obra ―Aspectos Geográficos Sul Americanos‖ deve ser entendida a
luz dos postulados acima, num ensaio em que são analisados os aspectos
geográficos e o peso dos mesmos como fenômenos condicionantes dos processos
políticos e econômicos de profunda repercussão continental (TRAVASSOS, 1947).

Nesse trabalho o autor estudou a situação geopolítica do Brasil na América do Sul


apoiando-se em três ideias estruturantes, a saber: a) o enquadramento da massa
continental por dois oceanos diferentes, a leste, o Oceano Atlântico e a oeste, o
Oceano Pacífico; b) a oposição sistematizada entre duas bacias hidrográficas do
continente, ambas na vertente atlântica – a do Amazonas ao norte e a do Prata no
sul e; c) a existência de países mediterrâneos, o caso da Bolívia e do Paraguai, justo

23
O autor baseia-se na experiência histórica do Império Alemão que aspirava às saídas ao Mar Báltico, na época
de Frederico Guilherme, O Grande Eleitor (1640-1688) e de Frederico, O Grande (1740-1786), que buscou saída
para dois mares diferentes, o Báltico e o Mar do Norte, tentou buscar alianças com Estados que permitissem
acessar um mar fundamentalmente diferente daqueles dois, o Mediterrâneo. Outro exemplo importante é o
comportamento da Rússia, que impedida de navegar no Oceano Ártico, sempre aspirou por saídas livres no
Pacífico, nas proximidades do Mar da Noruega e do Oceano Índico. Sobre as atuações políticas dos Estados ao
domínio da bacia hidrográfica, o autor cita a preocupação da Rússia em estender sua influência ao alto do curso
do Rio Amur e incorporar sob seu domínio os seus afluentes. Ainda na rede hidrográfica da Ásia, o autor aponta
a influência britânica ao instalar-se na desembocadura do rio mais extenso da Ásia: Iang-Tse- Kiang. Cf.
Travassos (1947).
24
[...] São tais as circunstâncias, apresentam tal gravidade, que há quem faça o prognóstico de profundas
modificações, ainda no mapa político da América do Sul principalmente pelo fato de cada uma de suas grandes
bacias encontrar-se sob a bandeira de mais de um Estado – a do Orinoco, repartida entre a Venezuela e a
Colômbia; a do Amazonas, com sua prodigiosa rede de afluentes, entre o Brasil, a Colômbia, o Equador, o Peru
e a Bolívia; a do Uruguai, entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai; a do Paraguai, entre o Brasil, a Bolívia, o
Paraguai e a Argentina; a do Paraná entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina. Cf. Travassos (1947).

54
na região em que aqueles antagonismos se encontram. Em outras palavras,
quaisquer considerações sobre os processos políticos e econômicos que se
desenrolam na América do Sul deve ter como premissa a constatação que se
enquadram entre dois grandes antagonismos geográficos: Atlântico x Pacífico e a
Bacia Amazonas x a Bacia do Prata25.

3 Projeção Platina: O temor de Travassos

O motivo da sua preocupação naquele momento era o caráter expansionista da


política de comunicação platina que se projetava através da sua rede ferroviária
estabelecendo contato entre Buenos Aires e as capitais de três países limítrofes:
Assunção, Santiago e La Paz.

A sua atenção dirigia-se principalmente para a região em que o sistema de


comunicação platino estabelecia a ligação entre Buenos Aires e La Paz. Este fato
resultava em implicações geopolíticas importantes pois permitia que através de La
Paz, os trilhos argentinos alcançassem os portos do Chile, como Antofogasta,
Mejillones e Arica e também ao porto de Mollendo, no Peru.

Esta situação permitiria a Argentina alcançar uma preponderância geopolítica na


região, e por conta disso Travassos concluiu que era essencial para o Brasil, barrá-
los neste esforço de projeção continental.

25
O primeiro antagonismo geográfico é caracterizado pela oposição entre os dois oceanos que envolvem a massa
sul americana, cortada na direção longitudinal pela espinha dorsal da Cordilheira dos Andes, cujo cume divide
desigualmente as vertentes continentais. O Atlântico desempenhava o papel de pólo dominante como eixo da
civilização ocidental, sendo a via de comunicação por excelência entre o Novo e o Velho Mundo. O Pacífico,
com seu litoral inóspito, era o "mar solitário" situado à margem dos grandes feixes de comunicações marítimas e
via de contato intermitente com a Ásia oriental. O segundo antagonismo resultava da oposição entre esses dois
grandes sistemas fluviais – Amazonas e o Prata – e que dada a proximidade dos Andes da costa pacífica e o
divortium aquarium formado pelo altiplano boliviano, corriam ambos para o leste, mas em direções opostas,
desaguando um ao norte e outro ao sul da vertente atlântica. Esse antagonismo se expressava no conflito entre
ambas as bacias, cujas desembocaduras controladas pelo Brasil e pela Argentina, buscavam conquistar a posição
de principal via de comunicação da vertente pacifica com a vertente atlântica, obtendo através dessa o acesso a
“civilização mundial”. NOTA: Divortium aquarium; Expressão latina utilizada por Mário Travassos para
designar a divisão ou dispersão de águas que se processa no centro do continente, mais precisamente na região
do altiplano boliviano, entre as duas grandes bacias hidrográficas da América do Sul: a amazônica e a platina.
Cf. Travassos (1947) e Mello (1997).

55
Inspirado pelas concepções de Mackinder sobre a Eurásia, como a teoria do
heartland e a teoria do poder terrestre, Travassos formulou que a chave para a
resolução dos dois grandes antagonismos, Atlântico x Pacífico e a Bacia Amazonas
x a Bacia do Prata , encontrava-se no planalto boliviano. Por sua localização
geográfica e estratégica no centro do continente, era considerado o heartland sul
americano, sendo este o ponto central e que constitui o cerne da sua teoria
geopolítica

No interior deste espaço geográfico descobriu a existência de um triangulo


estratégico formado pelas cidades de Cochabamba, Santa Cruz de La Sierra e
Sucre como sendo o núcleo duro no interior do heartland sul americano.

Sendo assim, para conter o avanço da Argentina para o centro do continente, percebeu
que seria vital o controle do triangulo estratégico para a resolução dos antagonismos
entre a Bacia Amazônica e a Bacia do Prata a favor do Brasil.

Para enfrentar esta situação, Travassos encarava como imperativo geopolítico vital o
deslocamento do centro de gravidade do triangulo estratégico da cidade de
Cochabamba para a cidade de Santa Cruz de La Sierra. Como esta fazia divisa com
a fronteira com o Brasil, defendia a construção de uma ferrovia que ligasse a cidade
ao rios Madeira e Mamoré. Estes por sua vez, serviriam de conexão fluvial entre o
triangulo boliviano e a bacia amazônica.

O objetivo a ser atingido com a transferência do eixo gravitacional de


Cochabamba para Santa Cruz de La Sierra seria alcançar o controle do
triangulo estratégico, o que significaria a neutralização do sistema ferroviário
platino e a Bacia do Prata. Desta forma, colocaria o altiplano boliviano sobre a
influência carreadora da bacia Amazônica, assegurando ao Brasil a posição de
país geopoliticamente hegemônico no ―heartland‖ sul americano (MELLO, 1997).

Segundo Travassos (1947, p. 65),

[...] do exposto trata apenas de deslocar o centro de atração da região de Cochabamba para Santa
Cruz, porque atração exercida por Cochabamba é por assim dizer artificial, produto das facilidades de
comunicações de que tem desfrutado, ao passo que Santa Cruz representa realmente o verdadeiro
centro de gravidade da economia do planalto [...]

56
Uma vez assegurada as comunicações pelo Amazonas, o passo seguinte era
estabelecer a conexão da Bacia Amazônica com a Cordilheira dos Andes com o
objetivo de canalizar para o Atlântico a produção dos países andinos situados na
vertente oriental do continente sul americano. Esta conexão iria ocorrer pelos
nudos26, localizados em três países andinos: o de Pasto, na Colômbia; o de Loja, no
Equador e os de Pasco e Cusco, no Peru.

Em síntese, para Travassos era essencial contrapor ao eixo norte-sul da projeção


platina com o eixo leste-oeste do Brasil, através da reação da Amazônia e de ações
neutralizantes sobre a Bacia do Prata (MELLO, 1997).

4 Instabilidade Geográfica & Inquietação Política na América do Sul

Após a análise dos aspectos capitais da geografia sul-americana, o autor passa


examinar o que denominou os ―signos de inquietação política‖ existente no
continente da América do Sul e que são provenientes das instabilidades geográficas,
ou seja, da oscilação de certos territórios entre determinadas circunstancias.
Segundo Travassos os ―[…] territórios assim oscilantes são verdadeiros focos de
perturbações políticas, causas de dissensões ou, pelo menos, de preocupações
sérias para que se evitem possíveis conflitos internacionais [...]‖ (TRAVASSOS,
1947, p. 81).

O autor aborda os casos da Bolívia, da Colômbia e o Uruguai, entretanto o nosso


interesse é discutir os dois primeiros casos e as influências exteriores vindas do
Canal do Panamá.

Em relação a Bolívia, os fatores determinantes da sua instabilidade geográfica e que


repercute em suas preocupações políticas, está na sua condição de país
mediterrâneo resultante da amputação da sua costa pela Guerra do Pacífico. Aqui
para Travassos encontram-se as verdadeiras causas da sua instabilidade política
pois de um lado está ―[...] sua vinculação geológica à estrutura andina e de outro, a

26
NUDOS: Zona de menor resistência cuja plataforma serve de ponto de travessia da gigantesca barreira
formada pela Cordilheira dos Andes. Cf. Mello (1997, p. 293).

57
sua oscilação diante das bacias que lhe corroem os flancos – a amazônica e a
platina [...]‖ (TRAVASSOS, 1947, p. 82).

Em outras palavras, a Bolívia sofre diretamente os efeitos das discordâncias entre o


Chile e o Peru, e a oscilação pendular entre os dois polos de atração, a Bacia
Amazônica e a Bacia do Prata, ambas representadas respectivamente pelo Brasil e
Argentina. Sendo que este último país era, naquele momento o grande beneficiário
da instabilidade da Bolívia, uma vez que se encontrava dependente do porto de
Buenos Aires para escoar sua produção, cujo transporte se realizava via fluvial
através da Bacia do Prata ou, por via terrestre, através da via férrea argentina.

Para Travassos, o Brasil deveria intervir a fim pender a dependência da Bolívia em


favor de nosso país, criando para isso, alternativas de tráfego fluvial pela bacia
amazônica e de transporte terrestre até o Porto de Santos, cuja ligação com
Corumbá pela Ferrovia Noroeste, poderia ser prolongada até a cidade de Santa
Cruz de La Sierra (MELLO, 1997).

As instabilidades políticas da Bolívia poderiam ter importantes repercussões no


continente, conforme afirma o autor:

[...] E de todo este exame pode-se fixar de modo categórico o sentido


político da Bolívia como centro geográfico do continente e a causa eventual
de conflito armado, cujo vulto poderá mesmo assumir o caráter de
verdadeira conflagração [...]

[....] a oscilação entre as forças político econômicas que as bacias do


Amazonas e do Prata representam, essa sim pode traduzir verdadeiro
motivo de apreensões internacionais mais sérias. Essas bacias significam
interesses de toda sorte, ligados ás duas mais importantes nações do
continente, que, se tudo as une, nem por isso estão de todo livres de
possíveis estremecimentos provindos do planalto central do continente [...]
(TRAVASSOS, 1947, p. 84- 90)

5 Equador – Colômbia– Venezuela

No noroeste da América do Sul, na região compreendida pelos territórios do


Equador, da Colômbia e da Venezuela, que ―[...] no ponto de vista geológico, certos
autores designam por um triangulo cujos vértices se apoiam no Golfo de Guayaquil,

58
no de Darien e na Ilha da Trindade [...]‖ (TRAVASSOS, 1947, p. 84) detecta-se uma
segunda instabilidade geográfica.

Ela ocorre devido ao fato de que essa extremidade do continente estar refém das
influências políticas e econômicas vindas do Mar das Antilhas e, do grande polo de
atração que representa o Canal do Panamá.

Analisando o mapa da América do Sul, Travassos (1947, p. 86) verificou que ―[…] o
conjunto da região é trabalhada simultaneamente por duas influencias marítimas
diferentes, senão opostas – a do Pacífico e a do Atlântico [...]‖.

O Pacífico exercendo influência sobre o Golfo de Guayaquil no Equador encontra


toda a força da dinâmica fluvial da vertente atlântica expressa pelos Rios Atrato, a
extensão penetrante dos Rio Madalena e do Cauca, na Colômbia. A repercussão
destes caudais é ―[...] expressa pela navegabilidade do Orinoco e a concordância do
Putumayo com o Solimões e o Amazonas, das mais extensas vias fluviais
navegáveis […]‖ (TRAVASSOS, 1947, p. 87).

Diante desta análise geográfica, Travassos percebe a seguinte instabilidade geográfica:


da mesma maneira que o território boliviano, que estando preso a estrutura andina,
oscila entre as atrações da Amazônia e do Prata, o território colombiano, preso à
Cordilheira dos Andes pela nudo de Pasco, oscila entre as atrações de dois oceanos.
Do lado do Pacífico encontra-se a Baía do Panamá, em que deságua o Canal; do lado
do Atlântico, estão três polos de atração formados pelos rios Madalena, Orinoco e o
Amazonas (TRAVASSOS, 1947, p. 88).

A questão que o preocupava era a seguinte: se a instabilidade geográfica do


território boliviano apresenta consequências políticas de aspectos continentais, o
mesmo não ocorre na região noroeste do continente sul americano. Isto se dá pelo
fato de que esta área estar localizada numa das extremidades da massa continental
mostrando-se por conta disso, presa fácil de influencias extra continentais.

Em síntese, a inquietação política que repercute nesta região ocorre por que está na
extremidade contígua a um dos mais intensos focos de influencias sobre o
continente sul americano: o Canal do Panamá.

59
Para Travassos (1947, p. 91):

[...] O Canal do Panamá – verdadeiro carrefour internacional – e o Mar das


Antilhas – incubadora da influência ianque – exprimem bem o caráter das
pressões que se exercem nessa extremidade do continente sul americano.
As linhas naturais de penetração que os vales do Madelena e do Orinoco
representam, dizem o resto [...].

6 Mar das Antilhas & Canal do Panamá: a influência Norte Americana

Como afirmava Travassos (1947, p. 106), a ―[...] influencia mundial dos Estados
Unidos é realidade que não se discute [...]‖ e esta era o resultado da sua importância
no campo das relações financeiras e econômicas nas relações internacionais. E
afirmava (ou lamentava?) que ―[...] é servidão contra a qual inutilmente se debatem
os que contra ela se revoltam [...]‖.

Além desta constatação, o autor nota outro tipo de influência, até certo ponto
secundária, em que entende que há razões puramente geográficas, que por si só,
são capazes de explicar as manobras diplomáticas e as ações militares.

Em outras palavras, ele identifica no Mar das Antilhas, o mediterrâneo americano,


focalizando nele o papel funcional de incubadora do extravasamento do potencial
econômico e político americano.

Para Travassos (1947, p. 112),

[…] as atrações desse singular mediterrâneo, [...] fizeram resvalar para o sul
as forças desencadeadas pelo progresso norte americano. Saltando a
península de Yucatan, amputaram a Colômbia, perfuraram o Canal do
Panamá e mantem o controle de todas as entidades fracionadas da América
Central e das Antilhas [...].

Em relação ao Canal do Panamá, este vem representar o centro de toda a política


expansionista dos Estados Unidos, ou seja:

60
[…] De um lado está o ponto de vista fisiográfico, quer dizer as próprias
linhas de penetração, naturais à infiltração dos interesses econômicos. De
outro, determinadas circunstancias políticas que desaconselham algumas
direções ou regiões. Finalmente, o imperativo de certas contingências
industriais que exigem ir-se ao encontro de certos produtos onde quer que
eles se encontrem [...] (TRAVASSOS, 1947, p.114).

Sendo assim, o Canal do Panamá é o epicentro de todas as atuações desta política


atendendo aos imperativos industriais americanos os quais dirigem os seus
interesses para a América do Sul.

As linhas de penetração para os interesses americanos vindo do Mar das Antilhas,


tinha como portas de entrada na América do Sul as bacias do Orinoco e do
Madalena. Funcionando como verdadeiros portais que permitiam que houvesse o
contato direto com o vale do Amazonas, e indiretamente, com os nudos e as abertas
andinas, facilitando assim o contato com a Bacia do Prata.27

Os imperativos industriais referidos acima estavam relacionadas as indústrias


automobilísticas e aeronáutica em que buscavam na região dois produtos
importantes: a borracha e o petróleo. Ou seja, estas ações correspondiam ao
controle exercido pelos Estados Unidos sobre o petróleo da Venezuela, da Colômbia
e do Peru e a atuação da Companhia Ford Industrial do Brasil na Amazônia.

Travassos (1947, p. 116, grifos nossos) faz o seguinte prognóstico:

[...] embora não seja fácil prognosticar, tudo faz crer que os maiores
progressos da infiltração dos interesses norte-americanos em nosso
continente se farão pelas vias andinas e ao longo da costa do Pacífico.
Corroboram com o nosso prognóstico, além das facilidades fisiográficas, o
fracionamento político do território. Além disso é o meio mais seguro e o
caminho mais direto para ir das Antilhas ao planalto boliviano, verdadeiro
centro geográfico do continente do sul [...].

Ao fim e ao cabo, o autor adverte que ao Brasil caberá o papel de coordenador por
sua posição e características geográficas sobre tão complexas circunstancias
econômicas e políticas.

27
Os esforços de penetração dos Estados Unidos na América do Sul ignoraram as Guianas. Apesar de notarem
nela uma forma de trampolim para saltar na Amazônia, uma ação naquele espaço territorial acarretaria
difíceis questões políticas com a Europa e ademais, elas não apresentam as vantagens daqueles dois outros
eixos de penetração. Cf. Travassos (1947).

61
7 Século XXI - América do Sul: novo cenário & mesmas inquietações

Os conflitos presentes na América do Sul são na maioria das vezes, frutos das disputas
fronteiriças originárias do processo de descolonização oriundos das rivalidades
históricas, o que ajuda a compor um quadro de instabilidade nesta região.

Este cenário é apresentado por Hector Saint Pierre, segundo Medeiros, através do
que ele denominou de ―Arco de Estabilidade‖ e o ―Arco de Instabilidade‖. No primeiro
destacam-se os países do Cone Sul, os quais estão viabilizando o processo de
integração através do Mercosul. No segundo, encontram-se as zonas com maior
propensão aos conflitos situados na região noroeste da América do Sul, a saber: a
região do Maracaibo, entre a Colômbia e a Venezuela; a região do Essequibo, entre
a Venezuela e Guiana, e as fronteiras entre Chile, Peru e Bolívia (MEDEIROS
FILHO. 1998, p. 2, 3).

A instabilidade nesta região também é provocada por pressões externas que desde
a época da colonização, sob a gerencia de Portugal e Espanha, mantiveram-se
presentes até hoje. É o caso da Inglaterra, Holanda e França que lograram êxito ao
comporem os territórios da Guiana, Suriname e Guiana Francesa, localizadas ao
norte do subcontinente.

Nos dias atuais a influência externa de maior envergadura advém da presença militar
dos Estados Unidos que exerceu pressão sobre o Brasil, ―[...] para a livre navegação do
Rio Amazonas, [...] para permitir o acesso às riquezas da região e ao interior de outros
países da América do Sul [....]‖ (ANSELMO; TEIXEIRA, 2010 p. 65-66).

Esta postura intervencionista dos Estados Unidos é orientada por uma estratégia
geopolítica em que busca dominar a massa de recursos do hemisfério ocidental.
Desta forma, atuam na sua área de influência através do controle direto e indireto,
além do estabelecimento de bases militares e alianças (PADULA, 2011).

Neste aspecto, a presença dos Estados Unidos na Colômbia, torna-se o fato político-
estratégico mais importante a segurança regional sul americana o qual foi
estabelecido há mais de uma década quando da celebração do acordo militar entre
os dois países e o lançamento do Plano Colômbia. Este plano consiste em
investimentos maciços na aquisição de equipamento militar sofisticado,

62
treinamentos, atividades de inteligência, operações conjuntas a partir de instalações
militares ou núcleos de apoio (COSTA, 2011).

A ampliação da presença militar norte americana na América do Sul é um


desdobramento da rede logística das Forças Armadas americanas que abrange
bases militares ou núcleos de apoio sob o comando do U.S. Southern Command
(South Com)28

A área de sua responsabilidade corresponde a América Central, o Caribe e a


América do Sul as quais suas bases estão posicionadas em: Guantánamo (Cuba);
Soto Cano (Honduras); Aruba, Curaçao (Ilhas Holandesas); Comalapa (El
Salvados); Colômbia e Peru. Nestes dois últimos, estando instalados 17 centros e
núcleos de apoio para operações militares. A despeito do fechamento da base militar
em Manta (Equador) no Equador, os Estados Unidos lograram êxito em estabelecer no
Paraguai uma base logístico militar com a justificativa de que se destinaria ao
monitoramento direto da Tríplice Fronteira (COSTA, 2011).

8 Considerações Finais

Isto posto, diante dos cenários geopolíticos atuais é possível afirmar, em princípio, que
as percepções de Travassos não estejam totalmente ultrapassadas pelas complexas
realidades que emergiram no mundo do século XXI.

Em relação a área escolhida, a região do noroeste sul americano, em que o autor


identificou as inquietações políticas causadas pelas instabilidades geográficas,
verificou-se que alguns aspectos das suas ideias parecem confirmar, pelo menos
parcialmente, os prognósticos da sua visão estratégica.

Não temos a pretensão de esgotarmos o assunto, mas antes, recuperarmos as


ideias de Travassos, que teve a tarefa de pensar o Brasil, na construção de um
projeto de desenvolvimento nacional, pautada numa ousada política de
comunicações.

28
SOUTH COM: Dentre suas tarefas incluem o combate ao narcotráfico; o relacionamento com as forças
armadas dos diversos países; o controle e a não- proliferação de armas; operações antiterrorismo; a assistência
humanitária; e operações de busca e salvamento. Cf. THE U.S. SOUTHERN COMMAND, s.d.

63
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65
INTEGRAÇÃO DA BASE INDUSTRIAL DE DEFESA SUL-AMERICANA:
CONVERGÊNCIAS ESTRATÉGICAS, IDENTIDADES DE DEFESA E
INTERDEPENDÊNCIA

Antonio Henrique Lucena Silva

1 Introdução

A Estratégia Nacional de Defesa (2008) faz referência à integração da base


industrial de defesa sul-americana. No mesmo ano é concertada a Unasul, que
possui como precedente a Comunidade Sul-Americana de Nações, possuindo,
institucionalmente, Conselhos para os temas de: Desenvolvimento Social,
Educação, Ciência, Cultura, Tecnologia, Inovação, Saúde, Infra-estrutura e
Planejamento, Luta contra o Narcotráfico, Energético e de Defesa. A dimensão
regional de segurança pode ser interpretada como uma forma de promover relações
pacíficas e preditivas entre os seus membros, construindo segurança e comunidade
através da cooperação (ADLER; BARNETT, 1998).

O último tema de Conselhos da UNASUL, o de Defesa, têm despertado atenções


sobre o seu conselho – O Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). O estatuto do
órgão, firmado em 11 de dezembro de 2008, coloca que um dos objetivos
específicos do CDS é promover o intercâmbio e a cooperação no âmbito da indústria
de defesa (UNASUR, 2008). O foco analítico desse artigo na integração da indústria
de defesa sul-americana visa responder às seguintes questões: 1) Como a
operacionalização da integração das indústrias pode ocorrer? 2) Em um contexto de
forte assimetria entre países desenvolvidos e em desenvolvimento na produção de
material militar, como as características regionais podem contribuir para o
desenvolvimento de sistemas de armas comuns? O objetivo desse artigo reside
numa análise das possibilidades e perspectivas da integração da base industrial de
defesa sul-americana, em um contexto de globalização da indústria de defesa.
Argumentamos que, na atual configuração do sistema internacional da indústria de
defesa, em que prevalece uma forte assimetria entre países desenvolvidos e em

66
desenvolvimento na produção de material bélico, a integração das bases industriais
de defesa sul-americana é uma necessidade para a construção de uma maior
autonomia estratégica na região.

O artigo está organizado da seguinte forma: na primeira seção tratamos de questões


relativas às indústrias de defesa nos tempos hodiernos e elementos teóricos
relativos à matéria. Na segunda seção, tratamos da Estratégia Nacional de Defesa,
do Conselho de Defesa Sul-Americano e da relação do Brasil com os países
adjacentes. Na terceira e última seção, tecemos as considerações finais acerca da
importância da integração dos países em matéria de defesa.

2 Indústria de Defesa: Globalização, Integração e Questões Teóricas

Geralmente, se divide a indústria de defesa em três ou quatro camadas. Keith


Krause (1995) define o primeiro tier de fornecedores de armas como os inovadores
críticos que estão na fronteira tecnológica da produção de armas. Nesse grupo ele
coloca os Estados Unidos e a antiga União Soviética. No segundo tier estão os
adaptadores e modificadores. A maioria são os países europeus. O terceiro tier é
composto pelos copiadores e os reprodutores das tecnologias existentes (nessa
categoria está a maioria dos outros produtores de armas). Andrew Ross (apud
Bitzinger, 2009, p.2) aceita a definição de Krause de primeiro tier, mas ele coloca a
China como um grande produtor de armas do mundo industrializado (junto com a
França, Alemanha, Itália, Japão, Suécia e o Reino Unido) na categoria de produtores
de segundo tier. Ross (apud Bitzinger, 2009, p.2)coloca ainda que o terceiro tier é
formado por novos países industrializados e nações pequenas (Brasil, Israel, Índia,
Coreia do Sul e Taiwan). Por último, há uma quarta categoria de países que
possuem capacidades limitadas de produção de armas (México e Nigéria). Por outro
lado, Bitzinger (2009) define o primeiro tier como sendo os Estados Unidos e os
quatro grandes europeus (Grã-Bretanha, França, Alemanha e Itália). O segundo tier
de seria um grupo de países que: 1) Industrializados que possuem indústrias de
defesas pequenas sofisticadas como Austrália, Canadá, a República Tcheca,
Noruega, Japão e Suécia; 2) Países em desenvolvimento que possuem complexos
militares industriais modestos como Argentina, Brasil, Indonésia, Irã, Israel,

67
Cingapura, África do Sul, Coreia do Sul, Taiwan e Turquia; 3) Estados em
desenvolvimento com grandes indústrias, cuja base industrial é ampla, mas
possuem uma falta de pesquisa e desenvolvimento (P&D) independente, e com
capacidades de produção de armas convencionais sofisticadas (China e Índia). O
terceiro tier seria formado por aqueles estados que possuem uma capacidade
industrial muito limitada e uma produção de armas de baixa tecnologia, grupo de
países que incluiria o Egito, o México e a Nigéria.

A problemática em torno da integração das indústrias de defesa é uma questão


recorrente na literatura. Bitzinger (2003) argumenta que os países que integram o 2º
tier (como o Brasil) passaram por racionalizações e globalização da sua indústria de
material bélico. Estados Unidos e Europa ainda continuam sendo os maiores
fabricantes de grandes sistemas de armas (major weapons systems). A indústria de
defesa global apresenta algumas características distintas do imediato pós-guerra fria
e dos anos 1990 como: 1) menor: com o número declinante de fornecedores; 2)
mais concentrada, poucas companhias detêm o fornecimento de produtos e; 3) mais
integrada, devido ao processo de globalização a produção de armamentos tem se
dado de forma transnacional. As características refletem os domínios europeu e
americano (e em menor medida, russo) nas transferências internacionais de armas.
Portanto, Bitzinger (2003) agrega que para países do 2º tier buscam reativar a sua
indústria de defesa, enfrentam um desafio: devido às crescentes demandas
econômicas e tecnológicas para a produção de armas avançadas é improvável que
esses países consigam expandir quantitativamente ou qualitativamente a base
industrial de defesa.

O sistema industrial de defesa apresenta modificações da tradicional pirâmide


hierárquica (KRAUSE, 1995) da produção de armas. O grau de interconexão e
complexidade tem sido crescente. De acordo com Neuman (2009) as distinções em
1º, 2º, 3º e 4º tier estão erodindo devido a dependência, cada vez maior, de
componente fabricados nos Estados Unidos. O sistema hub-and-spoke descrito por
Bitzinger (2003) seria da seguinte forma: os EUA são o hub (centro) e a indústrias de
defesa ao redor do mundo seriam spokes que buscam se adaptar e criar estratégias
de sobrevivência em um sistema dominado pelos americanos (NEUMAN, 2009).
Seguindo essa linha, Neuman (2009) argumenta que os EUA estão adquirindo

68
preponderância na fabricação de sistemas convencionais avançados de armas.
Portanto, a quase dominância dos americanos no setor é um elemento que impõe
grandes constrangimentos a outros Estados. O aumento da dependência de
componentes29 americanos, vendas, mercados, inovação tecnológica para
modernização das indústrias, entre outros fatores, limitam a autonomia que outros
países possam ter no desenvolvimento de material de emprego militar.

Nos Estados Unidos e outros países desenvolvidos, o contexto da indústria de


defesa é diferente de outros países industrializados. Países em desenvolvimento
possuem indústrias de defesa e setores relacionados à produção de material militar
ainda imaturas e muitas permanecem ligadas ao setor público (MATTHEWS;
MAHARANI, 2009). Duas grandes razões ajudam a entender porque os países em
desenvolvimento preferem manter empresas públicas ou incentivar o setor: 1)
Imperativos estratégicos e 2) Status político-diplomático.

Triângulo de Ferro da Soberania

29
Componentes são materiais importantes para a produção de determinado sistema de arma. Dentro dessa
categoria, podemos ilustrar esse tipo de material como motores, aviônica, antenas para radares, sistemas de
detecção para mísseis entre outros.

69
O principal imperativo estratégico para países em desenvolvimento reside na
importância de manter uma relativa soberania das indústrias e,
consequentemente, uma maior independência política nas suas ações. O ciclo
virtuoso de autoconfiança, segurança e sustentabilidade levam a uma maior
estabilidade e o reforço desse ciclo que acarreta uma maior soberania (ver
triângulo de ferro da soberania, acima). A soberania continua sendo uma meta a
ser atingida pelos países emergentes, principalmente devido à minimização de
possíveis embargos às transferências de armas que possam ocorrer 30.

Nos países em desenvolvimento, o investimento no setor de defesa é visto como


uma manifestação importante do poder nacional, assim como eleva a percepção
internacional do Estado. Países que integram operações de paz das Nações Unidas
estão envolvidas em atividades de peacekeeping e peace-support ganham um maior
destaque na cena internacional. Nesse contexto, países em desenvolvimento
buscam fazer incentivos para as suas indústrias de defesa que apóiem os
programas e compromissos estabelecidos.

Os argumentos que defendem a industrialização militar residem na concepção que a


promoção de uma indústria de defesa local possui uma relação positiva com o
crescimento econômico. Essa tese possui como principal defensor o economista
Emile Benoit na década de 1970 (BALL, 1983). De acordo com Benoit (apud BALL,
1983), o aumento dos gastos militares traz benefícios tangíveis para economia
oriunda da economia de defesa que seriam:

1) Empregos: uma economia de defesa expansiva gera emprego tanto na indústria como
nas Forças Armadas sendo ambos setores trabalho-intensivas. Embora esse argumento
apresente algumas falhas (DAGNINO, 2010) devido ao caráter transformativo que a
guerra possui recentemente, a ideia que o setor de defesa emprega um alto número de
indivíduos encontra ressonância nos países emergentes;

2) Capacitação: a produção de armas está associada com atividades de alta


tecnologia dentre as quais a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), engenharia e
sistemas. Essas áreas requerem trabalhadores altamente capacitados em funções

30
Vários países como África do Sul, Israel, Suécia entre outros, construíram as suas indústrias de defesa após
terem sofrido embargos de armas de fornecedores. Para maiores detalhes ver: Bitzinger (2003).

70
que produzam bens de alto valor agregado. No entanto, esses tipos de produção
apenas beneficiam se o bem é produzido domesticamente (BLANTON, 1999).

3) Integração civil-militar: paradigmas convencionais colocam que o setor de defesa


atua de forma distinta da economia comercial (DIFILIPPO, 1990). Por outro lado,
caso essa barreira possa ser removida, a economia pode se beneficiar da integração
entre os setores militar e civil. Devido às tecnologias de informação e a
transformação da natureza da guerra, a ênfase para aquisição de meios nos setores
de comerciais de alta tecnologia é maior. Nesse sentido, há um ganho de escala
para as duas áreas beneficiando subcontratantes do setor civil, para que haja menor
custo dos produtos (dual-use tecnologies). Em uma economia civil e militar integrada
pode haver ganhos inovadores tanto do setor civil para o militar (spin-ons) como do
militar para o civil (spin-offs).

4) Desenvolvimento de infra-estruturas: alguns países como Índia, Paquistão, China


tiveram ressonâncias positivas devido à indução de infra-estruturas relacionadas à
defesa. Nesses países, as fábricas de material militar ficam distantes das áreas
urbanas. O isolamento de fábricas de defesa das grandes populações obrigou os
governos a edificarem uma estrutura que atendesse às demandas do setor como
estradas, trilhos, aeroportos, hospitais, escolas, assim como unidades de teste dos
produtos.

A integração dos setores acima mencionados da economia de defesa pode atuar de


forma relevante para gerar sinergias da indústria de defesa na América do Sul.
Essas medidas também atuam como ponto fundamental na construção de medidas
de confiança (confidence-building measures) com o intuito de fortalecer a
estabilidade na América do Sul.

3 Estratégia Nacional de Defesa e a Integração Sul-americana

A Estratégia Nacional de Defesa é publicada pelo Brasil no ano de 2008. Eliézer


Rizzo de Oliveira (2009) coloca que a END é um documento que estabelece novas
orientações para a Defesa Nacional. O texto, ainda de acordo com o autor
(OLIVEIRA, 2009), constitui uma virada política que o Presidente da República

71
operou em um contexto difícil para as Forças Armadas31. O documento estabelece
diretrizes (Oliveira, 2009) para a Defesa Nacional: 1) Estruturar o potencial
estratégico em torno de capacidades; 2) A (re)organização das Forças Armadas; 3)
Distribuição territorial dos contingentes militares; 4) Capacidades e habilidades
militares; 5) Missão do Brasil; 6) Hipótese de emprego das Forças Armadas e, por
último, 7) Cooperação militar e integração na América do Sul. O 7º tópico é que será
objeto da nossa análise a seguir.

No documento, há um especial destaque para a integração da base industrial de defesa


sul-americana. Defesa e desenvolvimento caminham de forma conjunta na END
(BRASIL, 2008) quando o documento coloca que: ―Como consequência de sua situação
geopolítica, é importante para o Brasil que se aprofunde se aprofunde o processo de
desenvolvimento integrado e harmônico da América do Sul, o que se estende,
naturalmente, à área de defesa e segurança regionais‖ (BRASIL, 2008, p.9).

Outra parte importante do texto propugna a integração da indústria de defesa no


nível regional: ―A integração regional da indústria de defesa, a exemplo do Mercosul,
deve ser objeto de medidas que propiciem o desenvolvimento mútuo, a ampliação
dos mercados e a obtenção de autonomia estratégica‖ (BRASIL, 2008, p. 17). Em
outras palavras, uma das diretrizes estratégicas da Política de Defesa Nacional 32
consistia em ―contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a
consolidação da integração regional com ênfase no desenvolvimento de base
industrial de defesa‖ (BRASIL, 2008, p. 9).

O antigo Ministro da Defesa, José Viegas, destaca que o Brasil busca convergências
no setor da indústria de defesa. Nesse sentido ele argumenta que:

Neste caso, parto da premissa de que, quando se trata de modernizar


material de emprego militar, é claramente salutar que os governos da
América do Sul atuem em conjunto, tanto como compradores e
importadores quanto como produtores e exportadores. Agindo dessa forma,
os países do subcontinente – com suas respectivas indústrias – serão
capazes de alcançar coerência e escala econômicas propícias a um
aproveitamento mais racional dos recursos disponíveis. Ademais, há que se

31
O momento difícil a que Oliveira (2009) se refere é a interferência do Presidente na crise dos controladores de
voo, em que houve um enfraquecimento do Ministro da Defesa Waldir Pires e ficou desacreditado entre os
militares.
32
A Política de Defesa Nacional foi publicada em 2005, no entanto, a Estratégia de Nacional de Defesa não faz
menção direta ao documento anterior.

72
ter presente o fato de que a integração de indústrias de defesa constitui
uma medida adicional de reforço de confiança mútua (OLIVEIRA, 2009).

A indústria de defesa contribuirá para a integração regional, que comporta com


destaque uma instituição recentemente criada que é o Conselho de Defesa Sul-
americano: ―Essa integração não somente contribuirá para a defesa do Brasil, como
possibilitará fomentar a cooperação militar regional e a integração das bases
industriais de defesa. Afastará a sombra de conflitos dentro da região. Com todos os
países avançasse rumo à construção da unidade sul-americana. O Conselho de
Defesa Sul-Americano, em debate na região, criará mecanismo consultivo que
permitirá prevenir conflitos e fomentar a cooperação militar regional e a integração
das bases industriais de defesa, sem que dele participe país alheio à região‖
(BRASIL, 2008, p. 9). A proposta do CDS é lançada pelo Presidente Luiz Inácio Lula
da Silva em março, em plena crise diplomática entre Equador e Colômbia. O conflito
mostrou a necessidade de se criar um órgão comum de defesa sul-americano. O
CDS que vinha sendo discutido é implementado em 2009.

A criação da instituição para abordar os assuntos de segurança da região


motivou a desconfiança entre os vizinhos, sobre das reais intenções do Brasil
(SOARES, 2008). A desconfiança surge a partir da inferência de quede
segurança regional seria uma estratégia para ocupar o espaço vazio, pela
ausência de um mecanismo de segurança interamericana eficaz, dado que o
TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca), firmado em 1948, ainda
remanescente da Guerra Fria, não atende plenamente às novas dimensões de
segurança da região. O Conselho viria a suplantar essa lacuna transformando -se
em uma OTAN regional com estrutura e capacidade militar própria. Como o Brasil
possui o maior gasto militar da região (SIPRI, 2012), o peso geopolítico do País
influenciaria as decisões da organização ao seu favor.

Outro aspecto no que concerne à criação do Conselho é que os países da sub-


região encararam a posição brasileira como uma manifestação do lobby da indústria
de defesa brasileira (SOARES, 2008). Nessa linha de raciocínio, o Conselho
buscaria privilegiar o desenvolvimento tecnológico da produção de armamentos de
ultima geração e, para outros, ele visaria dar ganhos de escala ao mercado regional

73
da indústria bélica do Brasil. A reativação da indústria de armas com a importação
de tecnologias de ponta para a industrialização de helicópteros EC -725 (FIESP,
2011) e submarinos do tipo Scorpénne33 teria levado o Brasil a assinar uma aliança
estratégica com a França. Segundo o Governo do Brasil (Nelson Jobim), o Conselho
de Defesa Sul-Americano, cuja criação ocorreu no dia 9 de março de 2009, não será
uma Otan do Sul, mas sim um fórum conjunto para discutir as questões regionais e
sub-regionais no campo da defesa. Também promoverá a integração das bases
industriais de defesa, traçando políticas regionais na região sobre a indústria de
defesa, com integração até de empresas ou fazendo espécies de joint ventures,
evitando a concorrência predatória na região (CARMO, 2008). Daniel Flemes (2010)
coloca que o argumento mais convincente para a criação do CDS é, como principal
foco, excluir os Estados Unidos (e o México) dos assuntos de segurança da América
do Sul, substituindo os mecanismos de resolução de conflitos da Organização dos
Estados Americanos (OEA).

Iniciativas para a integração da BID estão em curso. O COMDEFESA (2012) ressalta


que alguns movimentos, sejam de caráter público ou privado, estão em curso. A
organização destaca (idem) o programa da Embraer e seu avião
cargueiro/reabastecedorKC-390 que envolve parcerias da Argentina, Colômbia e
Chile. Em contrapartida, esses países encomendaram, respectivamente, 6 (Fábrica
Argentina de Aviones), 12 (Companhia Aeronautica Estatal Colombiana) e 6 (Enaer)
aeronaves. A Fuerza Aerea Colombiana é operadora das aeronaves EMB-312 Super
Tucano desde 2005 (ibidem). A modernização das aeronaves está sendo realizada
pelos próprios colombianos devido ao contrato inicial ter englobado ações de offset 34
como transferência de tecnologia e know-how capacitando a indústria aeronáutica
colombiana e certificando-a a realizar a tarefa dos EMB-312.

Além do setor aeroespacial, outros segmentos de defesa podem ser beneficiados.


Fernando Vilela (2009) expõe que alguns países sul-americanos possuem indústrias
com nível histórico e tecnologia respeitável. Na indústria naval os estaleiros
argentinos Domecq García, Talleres Navales Dársena Norte, Astilleros Río
Santiago, o chileno Astilleros y Maestranzas da Armada e o peruano Servicios

33
Para maiores detalhes ver Defesanet.
34
Contrapartidas.

74
Industriales de la Marina e em armas leves a FAMAE (Fábricas y Maestranzas del
Ejército) chilena podem ser incorporadas em projetos futuros. Brasil e Colômbia
também estudam o desenvolvimento de navios de patrulha e lanchas fluviais.
Essa última categoria de embarcação foi adquirida pelo Brasil (lote inicial de 4) da
empresa colombiana Cotecmar 35.

Com relação à Argentina, as relações políticas adquiriram um novo contexto. Para


Resende-Santos (2002) as relações entre a Argentina e o Brasil passaram por um
período de substancial modificação. Na década de 1970 a cooperação em
segurança, restrita a questão militar-organizacional e estratégica, vai adquirindo a
um estabelecimento pacífico da conjuntura no Cone Sul. Na década de 1980 os
acordos de Itaipu-Corpus e o nuclear não foram importantes apenas para por fim à
disputa militarizada dos dois países, mas, também, para estabelecer as primeiras
bases de um arranjo institucional que se transformou em um dos regimes de
segurança mais duráveis do mundo (idem). Apesar dos avanços e recuos na relação
entre Brasil e Argentina, o Brasil necessita de um sócio estratégico forte com quem
possa construir poder internacional num contexto de integração (CANDEAS, 2005).
Nesse sentido, instituições como o Mercosul adquiriram um caráter de organismo
regional de segurança (FAWCETT, 2008). Durante a década 1980, 1990 até o ano
2000, a integração do Brasil com a Argentina ocorria através de exercícios conjuntos
entre as Forças Armadas (LUCENA SILVA; FLOR, 2011). No ano de 2007, os
países celebraram o Mecanismo de Cooperação e Coordenação Bilateral Brasil-
Argentina36 em que coloca, em seu 3º artigo, a área de Defesa e Segurança como
prioritária. A cooperação científica e tecnológica entre Brasil e Argentina rende frutos
como o veículo aerotransportável Gaúcho 4x4.

O Conselho de Defesa Sul-Americano aprovou o Plano de Ação 201237 cujo


programa destaca-se pelo comprometimento com a indústria regional de defesa e o
desenvolvimento de tecnologias próprias para a região. No último Plano de Ação
aprovado pelo CDS, o de 2013, foram aprovados 4 Eixos cujo Eixo 3 trata da

35
Para maiores detalhes ver a nota do Ministério da Defesa do Brasil(BRASIL..., 2012).
36
A íntegra do texto está disponível em: www.iadb.org/intal/intalcdi/PE/2008/01284.pdf. Acesso em 1 de
dezembro de 2012.
37
O documento foi aprovado em 11 de novembro de 2011.

75
indústria e tecnologia de defesa. De acordo com o Ministério da Defesa do Brasil 38,
todas as sugestões brasileiras foram aprovadas pela instituição consistem em:

Entre as propostas brasileiras aprovadas pelo Conselho figuram iniciativas


relevantes, como a criação de um grupo de especialistas, ao qual caberá a
elaboração de um projeto de fabricação de um sistema de veículos aéreos
não tripulados. A partir de requisitos comuns definidos pelos países
39
participantes, a ideia é produzir um vant regional.Outra iniciativa aprovada
deverá ter impacto direto no objetivo de fortalecer a indústria sul-americana
de defesa. Trata-se da instituição de um fórum com o intuito de estabelecer
mecanismos e normas especiais para compras e desenvolvimento de
produtos e sistemas militares na região. Um seminário sobre o tema foi
marcado para o terceiro trimestre de 2013. Na ocasião, deverá ser discutido
o estabelecimento de um regime preferencial para aquisição de material
militar entre as nações da Unasul (PLANO..., 2012).

Apesar dessas iniciativas, países na região sul-americana têm optado, com


frequência, pela aquisição de caças, carros de combate, fragatas entre outros
veículos de Estados tradicionalmente produtores de armas. Exemplos nesse sentido
vão do Chile, pela opção por caças F-16 americanos e tanques Leopard da
Alemanha, a Venezuela por aviões Sukhoi russos. Ainda nesse sentido, o recente
acordo do Peru com a Coreia do Sul para a fabricação de partes do treinador KT-140
em território, desbancando da concorrência o Super Tucano, oferecido pelo Brasil,
colocam em evidência as possíveis deficiências da integração de políticas para o
setor de defesa na América do Sul por um país alheio à região ter sido escolhido
como parceiro estratégico para o programa.

Para que a integração das indústrias de defesa sul-americana tenha êxito, é crucial
levar em contauma abordagem de multiníveispara entender comoas redes
detecnologia eprodução de defesasão organizadas (SMIT, 2006.Esses tipos
deredessão necessárias paratraçar apolicy network (DAGNINO & FILHO, 2007,
p.32).Os atores envolvidos no processo (ou seja, os atores corporativosou coletivos,
em vez de indivíduos) são interdependentes sendo essesatores estão
ligadoslateralmente (ou horizontal) ao invés de verticalmente
(MARIN;MAYNTZapudSMIT, 2006). Estas redes, portanto, lidam comarranjosinter-
organizacionais e interações.As interaçõesnormalmente têmas características

38
Para maiores detalhes ver: PLANO..., 2012.
39
Veículo Aéreo não Tripulado, nota do autor.
40
Para maiores detalhes ver: MINISTÉRIO...,2012.

76
denegociação,dessa formanão existe um centrode decisão ou depoder central,mas
vários desses centros.Interações entre os atoressão caracterizadaspela troca
queCallon(apudSMIT,2006)tem caracterizado comintermediários, que incluem
dinheiro (recursos), artefatos, know-how,matérias-primas, informações,
questõesestratégicas militares,entre outros aspectos. Esses intermediáriossão
"recombinados" por atores da rede (policynetwork) de maneiras diferentesque são
típicas de, ou que realmente tipificaum ator.A principal característicade redessão:a
existência deum padrão relativamenteestável deinteraçõesentreatores-redes que
mostram resiliência (SMIT,2006).

Portanto, a formação de redes sócio-técnicas na América do Sul para o


desenvolvimento de tecnologia militar, como colocado no Plano de Ação do
CDS/UNASUL para 2013, precisa considerar a perspectiva acima mencionada. A
inclusão de diversos atores interdependentes na rede, coloca a coordenação entre
os Estados para da governança do setor de defesa em torno de um projeto comum
de interesse dos países. O projeto do VANT regional pode ser um ponto de partida
interessante. Convém ressaltar que a integração da base industrial europeia obteve
um salto qualitativo importante através de um projeto comum: o desenvolvimento do
caça Eurofighter Typhoon envolvendo empresas como BAE Systems, EADS, Alenia
Aeronautica e países do Reino Unido, Alemanha, Itália e Espanha (EADS, 2011).

4 Considerações Finais

A indústria de defesa no pós Guerra Fria vivenciou um período de racionalizações,


reajustamentos e globalização (BUZAN; HERRING, 1998). Países emergentes
possuem em comum deficiência em muitos níveis, incluindo o sistema nacional de
ciência e tecnologia, produção avançada de armamentos, colocando muitas
barreiras para o desenvolvimento, absorção e exploração da tecnologia para o uso
militar. A América do Sul está em via de pavimentar um caminho para a construção
de um regime de segurança na região, como afirmou Buzan e Herring (1998), sendo
esse movimento importante para se controlar a dinâmica armamentista na região.
Além de atuar como controle de armamentos, a UNASUL, especialmente o
Conselho de Defesa Sul-Americano, devido ao seu caráter de acomodar as

77
divergências entre os vizinhos, o órgão atua como um elemento catalisador para a
integração da indústria de defesa na região.

Cooperação em matéria de defesa, como no desenvolvimento do Eurofighter


Typhoon, tem sido uma solução para enfrentar problemas de elevação de custos,
déficits em P&D, assim como maximizar a integração de setor de defesa com
esferas da área civil, como Universidades.

Não menos importante, a construção de ―identidades de defesa‖ nas vertentes


platina, andina e, principalmente, a amazônica é um elemento fulcral para a
integração da base industrial de defesa sul-americana. O estabelecimento de
identidades de defesa comuns é um mecanismo eficiente para se desenvolver e
produzir equipamentos, aviões, carros de combate entre outros materiais para
finalidades militares que atendem às nossas realidades.

Essa identificação requer que os países sejam integrados no ciclo CADMID


(Concept, Assessment, Manufacture, Demonstration, In-Service, Disposal)41 para
que haja ganhos mútuos pela integração das bases industriais. Portanto, a
organização de redes sócio-técnicas que envolvam o processo supracitado é
necessária, no que concerne o desenvolvimento de tecnologias, para o setor militar,
devido à criação de interdependências aos países participantes e gera ganhos reais
e perceptíveis, facilitando, dessa forma, a integração do setor de defesa. O
estabelecimento de policy networks via diplomacia militar para a integração das
redes é necessária para dar maior celeridade na associação das bases industriais
do Brasil com os vizinhos. A consolidação da integração de defesa na América do
Sul, além de trazer maior estabilidade à sub-região, visa atender a uma maior
autonomia estratégica preconizada pela Estratégia Nacional de Defesa.

Recentes projetos que visam o desenvolvimento conjunto como o veículo Gaúcho


(Brasil-Argentina), lanchas fluviais (Brasil-Colômbia), manutenção e modernização
do avião de ataque leve Super Tucano (Brasil-Colômbia) e o desenvolvimento de um
VANT regional, como estabelecido pelo Plano de Ação 2013 do CDS, contribuem
para a formação de redes de integração entre as indústrias. É ilustrativo que projetos

41
Ciclo de desenvolvimento de produtos para o setor de defesa que envolve desde a concepção até sua entrada
em serviço nas Forças Armadas.

78
de cooperação multinacionais como o Eurofighter Typhoon, Joint Striker Fighter
(JSF), para mencionar apenas o setor aeroespacial, foram acompanhadas da
formação de grandes conglomerados de defesa como a EADS europeia para o caso
do primeiro e a consolidação da Lockheed Martin como principal ator no segundo42.
A realidade sul-americana é que apenas o Brasil possui uma base industrial, civil e
de defesa, consolidada em diversos segmentos como aeroespacial, automotiva e
naval (ABIMDE, 2012). O desafio é integrar os vizinhos criando interdependências,
ou seja, todos os atores do processo são igualmente importantes para o ciclo
CADMID do desenvolvimento militar. Os ganhos oriundos da cooperação precisam
ser perceptíveis a todos e a comunidade de material bélico pode ser um fator
relevante para ganhos em escalas no nível regional, quiçá internacional. A
cooperação tecnológica em matéria de defesa através de assistência oficial de
desenvolvimento é um passo notável para transferência de tecnologia que pode ser
dado por uma cooperação multinacional ou binacional (como no caso de Brasil e
Argentina). A assistência governamental para o desenvolvimento de tecnologias
adquire diversas formas, como a construção de centros de treinamento, provendo
assistência financeira e oferecendo serviços que lidam com tecnologia. Nessa última
questão o peso brasileiro para que a integração avance é fundamental.

A elevação das capacidades, habilidades e conhecimentos dos países sul-


americanos para aplicação no setor militar pode ser a resultante do fortalecimento
da base industrial de defesa regional. A integração da base industrial de defesa-sul
americana é um mecanismo importante para assegurar a paz e prosperidade na
região, articulando seus próprios interesses e promovendo maior autonomia
estratégica para os Estados dela participantes.

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42
O projeto é capitaneado pela Lockheed Martin dos Estados Unidos, mas inclui a britânica BAE Systems, e as
americanas NorthropGrumman, Pratt& Whitney e a General Eletric/RollsRoyce (britânica).

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82
A ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA INTERAGÊNCIAS NO COMBATE AOS
DELITOS TRANSNACIONAIS NA FRONTEIRA BRASIL-COLÔMBIA

Marcelo de Paiva43

1 Introdução

O presente artigo analisa o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN) sob a ótica


da teoria interagências, apontando as necessidades e dificuldades de integração na
tentativa de combater os ilícitos transnacionais.

Como recorte do trabalho científico, analisa-se a faixa de fronteira Brasil-Colômbia,


uma vez que a pouca cooperação entre os dois países e mesmo as limitações de
cooperação entre as agências nacionais brasileiras têm favorecido atores armados
não estatais, contrabandistas e traficantes de drogas, que se aproveitam das
vulnerabilidades locais.

O narcotráfico é um condicionante destacado e constitui grave ameaça à


democracia e ao Estado de direito de toda a América do Sul, pelo fato de articular-se
por redes transnacionais. Nesse caso, para um país com fronteiras tão extensas
como o Brasil, qualquer esforço de combate a esse ilícito será limitado sem a
cooperação interagencial.

Para se compreender como a fronteira com a Colômbia sofreu agravação do fator de


risco, retoma-se a política de segurança adotada pelo presidente Álvaro Uribe. Em
uma fase anterior, criminosos dominavam as localidades vitais ao desenvolvimento
daquele país, provocando uma sensação de insegurança social. A Política de
Seguridad Democrática proporcionou considerável tranquilidade nos grandes
centros, porém acabou incitando a migração de atores ilegais para as regiões
periféricas do país, causando apreensão por parte das autoridades brasileiras face à
imprevisibilidade da região fronteiriça.

43
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

83
A consequência das medidas de Uribe foi a intensificação de diversos crimes
transnacionais na faixa de fronteira Brasil-Colômbia. No que se refere ao tráfico de
drogas, segundo o relatório mundial sobre drogas do United Nations Officer on
Drugs and Crimes (2010, p. 234), a maior parte da cocaína originária da Colômbia
sai do país para o Golfo do México e para o oceano Pacífico. O Brasil, contudo, atua
como país de trânsito e as mudanças na demanda do mercado indicam que os
riscos tendem a aumentar.

Além da intensificação do crime na periferia colombiana, o Brasil apresenta como


agravante a longa distância entre a linha de fronteira e os centros administrativos, o
que impossibilita o controle pleno dos órgãos de segurança pública. A geografia
também dificulta pela sua densa vegetação e por numerosos rios navegáveis, que
inviabilizam a vigilância completa da região.

Isso atinge diretamente a segurança societal, já que a sensação de insegurança e


abandono da área desestimula empreendimentos locais, ao mesmo tempo em que
viabiliza a cooptação da população, ainda mais suscetível devido ao baixo nível de
educação. Muitos acabam encontrando na ilegalidade a forma de sobrevivência
numa região tão inóspita.

Além disso, a insuficiência de recursos orçamentários, particularmente dos destinados


ao aprimoramento militar, permite que organizações criminosas estrangeiras atuem no
interior do território nacional, colaborando para a expansão da ilegalidade.

Diante desses obstáculos, reflete-se se a atividade de inteligência das instituições


que compõem o SISBIN deve ser aprimorada por meio da teoria interagências. Para
tanto, este artigo apresentará uma abordagem teórica sobre interagências, bem
como uma avaliação das vantagens e dos desafios da efetivação desse sistema a
partir de entrevistas realizadas com agentes que atuam nas fronteiras do Brasil e da
observação de algumas operações, as quais não serão nomeadas por questões
sigilosas. A seguir, discorrer-se-á sobre a atividade de inteligência, analisando-a na
faixa de fronteira com a Colômbia, no intuito de visualizar a aplicabilidade da teoria
interagências nesse trabalho.

84
2 Sistema Interagências

2.1 Cooperação Interagências - o que é e por que integrar?

O conceito ―interagências‖ será discutido a partir de autores que realizaram estudos em


organizações públicas dos Estados Unidos e do Reino Unido, ligadas às áreas política,
social, ambiental e de segurança e defesa. Esta discussão conceitual facilitará a análise
acerca da estrutura e do funcionamento do SISBIN, no que diz respeito ao processo de
cooperação entre as instituições responsáveis pela segurança na fronteira.

Primeiramente, Marcella (2008, p. 16), afirma que ―interagência‖ é um processo


que envolve pessoas e organizações complexas, o que, por si só, aponta para a
existência de culturas e perspectivas diferentes a respeito da melhor forma de
se realizar uma atividade. O processo é político, pois existe um ―jogo de poder‖
entre indivíduos ou instituições.

Warmington (2004, p. 16) ao abordar o tema na área social, refere-se ao trabalho


interagência quando essa envolve mais de uma agência no planejamento, que deverá ser
feito de modo formal, ao invés da simples troca informal de informações (networking).

O cientista político Bardach (1998, p. 8), a respeito da gestão pública norte-


americana, define interagências como uma atividade integrada de duas ou mais
agências que visa a aumentar a importância de seus valores públicos, priorizando o
trabalho conjunto. Para isso, é necessário cooperação entre as partes, diferenciação
e especialização, sendo que esta última é o motor principal da criação de valor.
Ressalta-se que, como as entidades em questão são constituídas por instituições
não lucrativas, o valor público se baseia no incremento dos resultados que serão
obtidos por meio da desejada cooperação.

Bardach discorda de Warmington e menciona que a comunicação formal é menos


efetiva e eficiente do que os canais informais para o propósito de trabalho integrado.
Para ele, a cooperação informal é um sinal de saúde organizacional, e não uma
patologia. Além disso, o sucesso da combinação entre especialização e integração
depende de uma diferenciação estrutural inteligente dividida em subunidades,
coordenação hierárquica formal e relacionamento de trabalho informal. Em outras

85
palavras, a tentativa de um trabalho conjunto, baseada somente em razões técnicas,
provou ser pouco efetiva e contraproducente.

Na faixa de fronteira Brasil-Colômbia, as características do meio aumentaram a


necessidade de integração entre as instituições, tanto nacionais como estrangeiras.
Isso ocorre em virtude da dependência que existe entre esses atores para
cumprirem suas missões constitucionais. Em várias oportunidades, são
estabelecidas redes informais e temporárias a fim de agilizar a produção do
conhecimento de inteligência, primordialmente no nível tático e operacional.

Raza ressalta a complexidade das estruturas nacionais e internacionais e as


consequências para o processo decisório:

As decisões públicas se tornaram mais complicadas, com as fronteiras entre


estruturas nacionais e internacionais de decisões cada vez mais porosas. O
aumento exponencial das partes inter-relacionadas na estrutura de
causalidade dos problemas, o aumento da densidade, qualidade e
disponibilidade de informações com a aceleração dos ciclos de decisões, e
o aumento do número de atores simultaneamente envolvidos nos processos
de decisão e ação, com escopos de competências complementares,
redundantes e competitivos, tem levado a gastos públicos desnecessários
ou excessivos, sem resultados adequados (RAZA, 2012, p. 6).

A complexidade das questões relativas às fronteiras, como exposto por Raza, leva a
ressaltar que existem missões similares correspondentes às Forças Armadas e à
Polícia Federal brasileira para o combate ao crime transnacional. O diálogo entre as
agências, portanto, é essencial para a realização dos trabalhos, além de diminuir o
custo operacional, caso haja coordenação de esforços.

2.2 Interagências: quais são os princípios norteadores?

Davis Júnior (2011, p. 8-10) cita seis princípios (seis Cs) baseados na
experiência norte-americana em operações complexas em todo o Globo: 1.
compreender, 2. coordenar, 3. cooperar, 4. fazer concessões, 5. buscar o
consenso e 6. comunicar-se.

A compreensão diz respeito a conhecer as capacidades e limitações de cada


participante do trabalho interagências. Ele aponta que há a necessidade de
compartilhar um mesmo espaço físico para favorecer o diálogo entre os vários órgãos.

86
Quanto à coordenação, é importante o trabalho em conjunto e com harmonia. Isso
não significa que os órgãos devam ficar fora do caminho dos demais, mas que todos
devem planejar suas ações de forma a maximizar o efeito de todas as outras ações
em andamento.

Já a cooperação é um valor militar que se manifesta por toda a cadeia de comando,


ocorrendo _déias_temente dentro de uma Força Singular. Seria agir junto ou em
conformidade com outros.

Fazer concessões pode ter uma conotação negativa na cultura militar. Mas o autor
menciona que se faz necessário ceder em alguns pontos para se chegar a uma
solução de compromisso, embora isso não signifique renunciar valores individuais
ou organizacionais.

Buscar o consenso é fundamental para alcançar os objetivos nacionais. Ele está


relacionado a uma opinião coletiva e qualquer solução que seja imposta aos demais
pode acarretar a desistência de participar de determinada atividade.

Por fim, comunicar-se é importante para convencer que o que está sendo proposto
irá contribuir para a resolução de problemas. O autor ressalta que a posição militar
não é suficiente para convencer os representantes dos outros órgãos, havendo a
necessidade de estabelecer uma comunicação efetiva para persuadir um indivíduo.

Esses princípios apontam que a liderança no ambiente de operações


interagências requer uma mudança de paradigmas. Deve-se adotar uma
predisposição para aceitar sugestões e não ferir suscetibilidades. A capacidade
de argumentação de todos os membros do grupo é importante para que as _déias
possam ser compartilhadas.

2.3 As agências: com quem integrar?

A localidade extensa minimiza a sensação de presença das agências estatais,


cujo cenário de atuação se perde diante de milhares de quilômetros de terreno.
Mas ainda que timidamente, lá estão elas, a lidar com limitações das mais
variadas espécies.

87
A mais representativa delas é o Exército, a qual está ampliando seu dispositivo pela
instalação de diversas unidades de fronteira. É no Amazonas que está localizado o
Comando Militar da Amazônia (CMA), com um efetivo de aproximadamente 25 mil
homens. O CMA possui cinco Brigadas de Infantaria de Selva (Bda Inf Sv): a 1ª Bda
Inf Sv em Boa Vista-RR, a 2ª em São Gabriel da Cachoeira-AM, a 16ª em Tefé-AM,
a 17ª em Porto Velho-RO e a 23ª em Marabá-PA.

Por sua vez, a Força Aérea Brasileira (FAB) é representada pelo VII Comando Aéreo
Regional (COMAR), sediado em Manaus-AM, que é o órgão responsável pelas
atividades administrativas e logísticas. A fim de otimizar a atuação do espaço aéreo,
foram criadas três bases em Manaus-AM, Boa Vista-RR e Porto Velho-RO e três
Destacamentos de Aeronáutica em São Gabriel da Cachoeira-AM, Eirunepé-AM e
Vilhena-RO. Frisa-se que a FAB dispõe de tecnologia de ponta para a detecção de
alvos potenciais a grandes distâncias na faixa de fronteira Brasil-Colômbia.

Já a Marinha do Brasil (MB) está representada pelo 4º Distrito Naval (DN) em


Belém-PA, tendo três países como limite: Guiana Francesa, Suriname e Guiana. A
MB tem papel fundamental no controle e monitoramento das numerosas vias fluviais
navegáveis na Amazônia.

Quanto à Polícia Federal, conforme o Relatório Anual da Operação Cobra (2008),


sua atuação corresponde a identificar e obstruir os sistemas produtivos de
entorpecentes, desarticular organizações criminosas transnacionais, reforçar a
presença do poder público para impedir o narcotráfico, impedir o contrabando de
produtos químicos destinados à produção de entorpecentes, resguardar a fronteira
de imigrações clandestinas, evitar confrontos com a população indígena e a violação
de suas áreas protegidas e precaver danos ao meio ambiente.

A essas forças, somam-se outras que não serão tratadas neste artigo, além das
entidades da Colômbia. Essas, contudo, segundo o Ministro Clemente, possuem
resistência para mudar seu rumo no combate aos ilícitos, fortemente apoiada
pelo governo norte-americano. A Colômbia demonstrou desinteresse pela
experiência adquirida pelo Brasil com a implantação do Sistema de Vigilância da
Amazônia (SIVAM).

88
2.4 Interagências – o que deve ser superado para haver integração?

Se, por um lado, existe a necessidade de cooperação para melhorar o desempenho


dos órgãos de segurança, por outro, reconhece-se os desafios que devem ser
enfretados em prol da integração.

Marcella (2008, p. 36) menciona que as tensões existentes no processo são


geradas pela existência de culturas diferentes dos profissionais, espaço (área de
trabalho) e disputa por recursos limitados.

Para Atkinson (2002, p. 6), os fatores impactantes são as diferenças entre as


agências; hierarquia estrutural; arranjos administrativos e organização do tempo;
prioridade e expectativa do indivíduo e da agência; objetivos; planejamento e
finanças; protocolos compartilhados de informação e confidencialidade; linguagem e
treinamento comuns.

Tomlinson (2003, p. 8) complementa citando as boas práticas para alcançar o êxito:


cometimento operacional e estratégico; consciência dos diferentes valores das
agências e suas práticas, com um comprometimento em direção ao objetivo comum;
envolvimento de todas as pessoas relevantes; papéis claros dos indivíduos;
gerenciamento conjunto para dar suporte aos parceiros; mecanismos inovadores e
flexíveis; sistema coletivo de análise, coleta e compartilhamento de dados;
treinamento conjunto; comunicação apropriada entre os profissionais e local
adequado e flexível para distribuição dos serviços.

Ressalta-se que uma pré-condição é o diálogo em que as partes trocam


informações, sendo que o ideal é que essa comunicação ocorra em tempo real.
Conforme os autores, a interpretação, negociação e sintetização de informações
exige domínio de ferramentas do conhecimento, bem como a constituição de novas
regras funcionais e infraestruturais.

Por fim, o que se enfatiza é o objetivo comum a ser atingido, uma vez que conflitos
poderão surgir no âmbito interagências. Então, será necessário conviver com
desacordos e rupturas, reavaliando a metodologia tradicional. Nesse ponto, é
indispensável a liderança em todos os níveis, devendo desenvolver competências
necessárias ao trabalho interagências.

89
2.5 Integração: mecanismos que proporcionam o intercâmbio de informação

Entre os principais mecanismos que facilitarão o trabalho integrado, serão


abordados o SISFRON e o SIPAM, de grande relevância para a fronteira brasileira.

Conforme a Portaria nº 193 do Estado-Maior do Exército, de 22/12/2010, o


SISFRON faz parte do Sistema de Comando e Controle da Força Terrestre
(SC2FTer) e objetiva dotar o Exército de meios que lhe proporcionem presença
efetiva em áreas de interesse, particularmente na faixa de fronteira,
contribuindo com outros órgãos responsáveis no combate aos crimes e outras
ameaças transnacionais.

Figura 1 – Organização do EB e da rede de comunicação

Fonte: Estratégia Braço Forte (2009)

O SISFRON deverá integrar-se com o Sistema de C2 da Força Terrestre e com


sistemas congêneres das demais Forças Armadas e das Instituições
Governamentais. Além disso, deverá estar ligado às seguintes capacidades: C 2,
Manobra, Inteligência, Apoio de Fogo, Defesa Antiaérea, Logística e Mobilidade,
Contramobilidade e Proteção.

90
Em síntese, o SISFRON é um sistema de Comando, Controle, Comunicações,
Computação, Inteligência, Vigilância, Busca de Alvos e Reconhecimento que
possibilitará que o Exército monitore a faixa de fronteira. Esse sistema dispõe de
tecnologia capaz de realizar o compartilhamento de dados, de forma eficiente e
segura, com as demais Forças Armadas e outros organismos governamentais.

Desse modo, o sistema poderá contribuir para o desenvolvimento da cooperação, à


medida que houver aceitação dos organismos de segurança federais, estaduais e
municipais de compartilharem dados com a Força Terrestre empregando tal ferramenta.

Outro mecanismo importante é o SIPAM, vinculado ao Ministério da Defesa e


gerenciado pelo Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia
(CENSIPAM). O SIPAM é uma organização de produção e veiculação de informações
técnicas, formado por uma complexa base tecnológica e uma rede institucional,
encarregado de integrar e gerar informações atualizadas para articulação e
planejamento e a coordenação de ações globais de governo na Amazônia Legal,
visando à proteção, inclusão e desenvolvimento sustentável da região 44.

Para Lourenção (2003, p. 63), a operacionalização do Sistema criará um novo


paradigma para a administração pública, em que as organizações trabalharão com
um conjunto compartilhado de informações, além de passar a agir de forma
integrada. Objetiva-se que o SIPAM crie condições para estabelecer e conduzir
políticas públicas na Amazônia com compartilhamento de informações. Segundo o
autor, o processo há de ser permanentemente exercitado até que a nova matriz de
convivência institucional se consolide e produza os efeitos desejados.

3 Atividade de Inteligência Interagências

Neste tópico serão abordados os conceitos relativos à inteligência e analisar-se-ão a


estrutura e o funcionamento do SISBIN.

Cepik (2001, p. 25) faz uma diferenciação entre o conceito amplo de inteligência e o
restrito. Quanto ao primeiro, o estudioso afirma que inteligência é o mesmo que

44
Disponível em: <http://www.sipam.gov.br/content/view/13/43/>. Acesso em 13/02/2013.

91
informação analisada a fim de atender a demanda de um tomador de decisões.
Quanto ao segundo, acrescenta que inteligência possui duas dimensões: uma
operacional, que corresponde à coleta de informações sem consentimento,
cooperação ou conhecimento dos alvos, sendo sinônimo de informação secreta; e
outra analítica, em que a inteligência se diferencia da informação por sua
capacidade explicativa/ preditiva.

De acordo com a Lei nº 9.883 de 07/12/1999, que instituiu o SISBIN, a inteligência é


definida como:

A atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de


conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de
imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação
governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do
Estado (BRASIL, Presidência da República, 1999).

Já no que corresponde ao papel a ser desempenhado pela inteligência militar, na


Estratégia Nacional de Defesa (END), Decreto nº 6.703, de 18/12/2008, descreve-se
o seguinte:

A inteligência deve ser desenvolvida desde o tempo de paz, pois ela que
possibilita superar as incertezas. É da sua vertente prospectiva que
procedem os melhores resultados, permitindo o delineamento dos cursos de
ação possíveis e os seus desdobramentos. A identificação das ameaças é o
primeiro resultado da atividade da inteligência militar (BRASIL, Presidência
da República, 2008).

Entretanto, Cepik menciona que há dificuldades no processamento de informações


pelos sistemas de inteligência:

[...] os fluxos de inteligência são parcialmente estruturados e se prestam a


um assessoramento bastante incerto. Além disso, a complexidade técnica e
os grandes volumes de informações processados dificultam a integração
das etapas do ciclo de inteligência e o atendimento ágil das necessidades
dos usuários (CEPIK, 2001, p. 83).

Em síntese, a inteligência é uma atividade complexa, portanto desenvolvida por


especialistas (grifo nosso), que permite a identificação de ameaças internas e

92
externas ao Estado e à sociedade, sendo um importante instrumento para a
preservação das instituições e dos interesses nacionais.

Os usuários, em todos os níveis, devem conhecer perfeitamente as possibilidades e


limitações dos organismos de inteligência para que possam empregá-los
corretamente. Isto é importante considerando a existência de recursos humanos e
materiais escassos para contrapor as ameaças à segurança do Estado. Assim
sendo, quanto maior for o entendimento do usuário em relação aos produtores de
inteligência, melhor será o resultado a ser atingido na produção da inteligência.

3.1 Sistemas Brasileiros de Inteligência

Os sistemas de inteligência que ora vigoram no Brasil são o SISBIN, o Sistema de


Inteligência Nacional de Defesa (SINDE) e o Sistema de Inteligência de Segurança
Pública (SISP).

O SISBIN integra, conforme a Lei nº 9.883, de 07/12/1999, as ações de


planejamento e execução das atividades de inteligência do país e têm a
finalidade de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de
interesse nacional.

O órgão central desse sistema é a ABIN, que possui, de acordo com a legislação
supracitada, as atribuições de: 1. planejar, executar, coordenar, supervisionar e
controlar as atividades de inteligência do país, 2. planejar e executar ações, inclusive
sigilosas, relativas à obtenção e análise de dados para a produção de
conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República, 3. planejar e
executar a proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à
segurança do Estado e da sociedade, 4. avaliar as ameaças, internas e externas, à
ordem constitucional e 5. promover o desenvolvimento de recursos humanos e da
doutrina de inteligência, e realizar estudos e pesquisas para o exercício e
aprimoramento da atividade de inteligência.

O controle externo é realizado pelo Legislativo. Nesse sentido, conforme as palavras


do Senador Fernando Collor de Mello (2011), o Congresso deveria exercer um papel

93
mais efetivo no aperfeiçoamento da legislação e na fiscalização da atividade de
inteligência no Brasil. Para isso, haveria a necessidade de retomar a participação na
regulamentação e no controle das atividades de inteligência, resgatando-se o projeto
que insere o tema da inteligência na Constituição, bem como retomar a análise do
Projeto de Resolução do Congresso 2/08, que institui o regimento interno e
estabelece o funcionamento da Comissão Mista de Controle das Atividades de
Inteligência. A Política Nacional de Inteligência, documento que tem por finalidade
orientar as atividades de inteligência estratégica do país, está para ser aprovado
pela Presidenta Dilma Rousseff.

Já o SISP é um subsistema do SISBIN. Instituído pelo Decreto nº 3.695, de


21/12/2000, coordena e integra as atividades de inteligência de segurança pública
em todo o país, bem como supre os governos federal e estaduais de informações
que subsidiem a tomada de decisões.

Por sua vez, o SINDE foi criado para aperfeiçoar a capacidade de C 2I dos órgãos
envolvidos na Defesa Nacional, constante na Política Nacional de Defesa (PND) e
otimizar os fluxos de dados e conhecimentos em matéria de defesa para a ABIN.

De acordo com a Portaria Normativa nº 295-MD, de 03/06/2002, esse sistema busca


estabelecer uma estrutura compatível com as necessidades de integração dos
órgãos de inteligência militar no Ministério da Defesa (MD), conforme as medidas de
implementação constantes na END (2008). O Órgão Central do SINDE é o
Departamento de Inteligência Estratégica (DIE), sendo responsável por representá-
lo junto ao SISBIN e ao Congresso Nacional.

Quanto à sistemática de planejamento de emprego conjunto das Forças Armadas,


seu ciclo contempla os seguintes níveis, conforme trata a ―Doutrina de Operações
Conjuntas – MD 30-M-01/Vol 1 (2011)‖: 1. político, em que são emanadas as
diretrizes, de responsabilidade do Comandante Supremo (CS); 2. estratégico, em
que surgem as diretrizes e planos de responsabilidade do MD; 3. operacional, no
qual são elaborados os planos operacionais, de responsabilidade dos Comandos
Operacionais ativados e 4. tático, em que surgem os planos táticos e ordens de
operações, de responsabilidade das Forças Componentes.

94
O planejamento de inteligência militar no nível estratégico é realizado pela Subchefia
de Inteligência Operacional (SC2), em coordenação com a Subchefia de Inteligência
Estratégica (SCIE).

A atividade de inteligência militar é intensificada no nível operacional, por meio da


45
integração dos conhecimentos disponíveis no Sistema de Inteligência Operacional
(SIOP), no Sistema de Inteligência de Defesa e nos demais órgãos que compõem o
SISBIN, a fim de suprir as necessidades de inteligência para a formulação da
Estratégia Militar de Defesa.

No nível tático, espera-se que a inteligência disponha de dados atualizados e


confiáveis, em um esforço de busca continuado para o preenchimento das lacunas
de conhecimentos indispensáveis à conclusão dos planos táticos.

3.2 Integração dos Sistemas de Inteligência

É ressaltado que todas as instâncias do Estado deverão contribuir para o incremento


do nível de segurança nacional, dando maior importância à integração de todos os
órgãos do SISBIN.

Milano (2006, p. 17) aponta que o surgimento de outros atores, como o terrorismo, o
narcotráfico e o crime organizado, originou estudos em todos os níveis da estrutura
de governo. Determinados fatores ou atores de interesse motivam que esses
organismos ampliem o seu campo de ação na identificação de riscos para o Estado
para suportar integralmente o seu processo decisório.

No caso do Brasil, a inteligência militar ampliou o seu emprego para o atendimento


de novas necessidades dos usuários, tais como o combate aos crimes
transnacionais na faixa de fronteira e a segurança ambiental, promovendo a
cooperação da atividade de inteligência com outros organismos integrantes da
estrutura do SISBIN.

45
Conforme o manual MD 30-M-01/Vol 3 (2011), como um subsistema do SINDE, o SIOP integra as ações de
planejamento e execução da atividade de inteligência operacional, com a finalidade de assessorar o processo
decisório no âmbito das Operações Conjuntas, desde o tempo de paz, bem como manter um banco de dados que
sirva de base para os Planejamentos Operacionais e para os Comandos Operacionais, quando ativados.

95
Um passo importante para a integração foi a autorização dada à ABIN para manter
representantes dos órgãos componentes do SISBIN permanentemente no
46
Departamento de Integração do Sistema Brasileiro de Inteligência , de acordo com
o Decreto nº 6.540, de 19/08/2008 (que altera e acresce dispositivos ao Decreto nº
4.376, de 13/09/2002). Esses representantes podem acessar, por meio eletrônico,
as bases de dados de seus órgãos de origem, respeitadas as normas e limites de
cada instituição e as normas legais pertinentes à segurança, ao sigilo profissional e
à salvaguarda de assuntos sigilosos.

Segundo Cepik (2001, p. 283), um organismo que permitiria uma maior


coordenação, integração e compartilhamento de informações nas áreas da
47
inteligência de segurança , contrainteligência e inteligência policial é o SISP.
Contudo, ele afirma que a intensa rivalidade entre a ABIN e a Polícia Federal e a
pouca agilidade e transparência por parte das unidades de inteligência das polícias
militar e civil são fatores que dificultam a conexão entre essas instituições.

Verifica-se que há um receio de compartilhar informações no âmbito da comunidade


de inteligência, que, muitas vezes, está relacionado à falta de confiança entre os
indivíduos/ unidades. Este fato é citado por Kiorsak ao abordar o tema relativo à
cooperação/ interação dos serviços de inteligência da seguinte forma:

Parceiros entre os quais inexiste a devida confiança não podem


compartilhar informações confidenciais fidedignas, atuais e necessárias
para a realização de medidas eficazes em determinadas situações pela
outra parte. Manifesta-se outra vez o estereótipo do temor de divulgação de
informações ou a ―queima‖ da fonte (KIORSAK, 2006, p. 80).

Por sua vez, Lefebvre (2003, p. 535) considera que existe um temor de que a
inteligência trocada ou conhecimento adquirido, por relações de confiança, seja
passada para um terceiro sem o consentimento da fonte, sendo esse aspecto um
fator que limita qualquer acordo de ligação.

46
O Departamento de Integração do Sistema Brasileiro de Inteligência tem por atribuição coordenar a
articulação do fluxo de dados e informações oportunas e de interesse da atividade de Inteligência de Estado, com
a finalidade de subsidiar o Presidente da República em seu processo decisório.
47
De acordo com Cepik (2001, p. 104), a inteligência de segurança é aquela voltada às ameaças internas à ordem
existente, sendo conhecida também por inteligência interna ou doméstica.

96
Por outra parte, o sociólogo Sennett (2012, p. 24), ao abordar a questão da
confiança, destaca que ela pode se dar tanto de modo formal como informal.
Segundo ele, as experiências mais profundas de confiança são mais informais,
sendo que as pessoas aprendem em quem podem confiar ou com quem podem
contar ao receberem uma tarefa complexa. Para que esses laços sociais possam se
consolidar é necessário um longo tempo de relacionamento entre os indivíduos e
uma disposição de estabelecer compromisso mútuo. O senso de objetivo e a
obrigação formal são outras virtudes ressaltadas pelo autor como de longo prazo.

4 Conclusão

A complexidade geográfica e a presença deficitária do Estado na fronteira Brasil-


Colômbia, as atribuições comuns dos órgãos de defesa e a pluralidade dos crimes
transnacionais indicam a necessidade de integração dos sistemas de inteligência
para um trabalho mais efetivo.

Além disso, diversos fatores facilitam essa integração, entre os quais serão
explicitados três, constatados a partir das entrevistas com os agentes. O primeiro é a
consciência acerca da necessidade de integração. Não se visualizam operações
sem que sejam precedidas de um trabalho de inteligência integrado. Contudo, a
integração entre agências civil e militar ainda carece de aperfeiçoamentos.

O segundo são as iniciativas de determinadas instituições em buscar uma maior


cooperação com outras agências de inteligência para o cumprimento de tarefas
específicas, tendo em vista as suas limitações referentes a material e pessoal.

Esses laços de cooperação, estabelecidos bilateralmente, facilitam a coordenação e o


controle das ações, contribuindo para uma maior efetividade do trabalho interagências.

O último é o SISFRON, que permitirá que dados de rotina sejam compartilhados


em tempo real e de modo seguro. Esse Sistema funcionará de modo complementar ao
SIVAM, permitindo que aeronaves de menor porte utilizadas para a prática de ilícitos
possam ser identificadas. O SISFRON também atuará no âmbito do SISBIN e do

97
Sistema de Inteligência do Exército (SIEx), já que agências internas e externas ao SIEx
serão envolvidas na reunião e produção dos conhecimentos de inteligência.

Por outro lado, os agentes entrevistados relataram vários desafios a serem


transpassados para que a integração fosse efetivada.

Existe o problema das disputas pelo controle entre as agências, partindo do


pressuposto de que quem está mais bem preparado em termos de recursos humanos
e equipamentos técnicos tende a reclamar pelo controle. Isso foi apontado como um
fator negativo à integração das agências, prejudicando o espírito de equipe.

É importante também o comprometimento em direção ao objetivo comum e o


envolvimento de todas as pessoas no processo. Determinadas estratégias deverão
ser estabelecidas para encorajar o comprometimento das equipes a ir além dos
interesses pessoais.

Ademais, a desconfiança foi mencionada como um aspecto que dificulta o


compartilhamento de dados, prejudicando a tomada de decisões por parte dos
usuários. Por vezes, essa desconfiança ocorre pelo temor de que o conhecimento
transmitido exponha a fonte a riscos.

Verifica-se também um conhecimento incipiente das possibilidades das agências do


SISBIN. Por exemplo, alguns agentes afirmaram desconhecer as capacidades das
aeronaves da FAB de realizar o sensoriamento remoto. Além disso, a ausência de
uma cultura de Operações Conjuntas prejudica o conhecimento mútuo entre as
Forças Armadas e, consequentemente, de suas capacidades para a integração das
fontes de dados.

Outro contraponto é que a atividade de inteligência deve ser desenvolvida por


especialistas, por ser de grande complexidade e exigir o domínio de técnicas/
procedimentos peculiares por parte dos profissionais. A pouca capacitação profissional
é danosa à integração e foi uma das queixas dos entrevistados. No Brasil, existem
somente duas escolas de inteligência: a Escola de Inteligência Militar do Exército e a
Escola de Inteligência da ABIN, contudo são voltadas a atender demandas internas. Por
vezes, essas escolas oferecem às demais agências vagas para estágios, entretanto, há
dificuldade de enviar funcionários devido à falta de recursos.

98
Ademais, a cooperação depende da pré-disposição na troca de informações. Procura-
se atender às necessidades de determinada agência - partindo do princípio de que
certa informação seja de grande relevância - e, talvez, o órgão esteja encontrando
dificuldades para obter o dado empregando os próprios meios. O que impera, contudo,
é a falta de agilidade no compartilhamento dos dados, causando prejuízos para a
produção do conhecimento de inteligência. A ausência de um banco de dados comum a
todas as agências federais apresenta-se como outra deficiência do SISBIN.

As necessidades e vantagens de integração, portanto, confrontam-se com os


obstáculos aqui brevemente citados, indicando que para haver progresso no sistema
interagências será necessário mais que um esforço informal por parte dos agentes e
das agências. Trabalhar interagências exige não só uma mudança na metodologia
do trabalho, exige também uma mudança na tradição das agências, e as raízes
dessa questão escondem a complexidade com a qual se deverá lidar.

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99
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4o, 8o e 9o do Decreto no 4.376, de 13 de setembro de 2002, instituído pela Lei nº
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101
DA GEOPOLÍTICA ESTATAL À GEOPOLÍTICA ACADÊMICA:
REFLEXÕES SOBRE UM CONCEITO

Selma Lúcia de Moura Gonzales48

1 Introdução

Nas últimas décadas, têm voltado à tona nos meios acadêmicos, resgatado por
estudiosos de diversas áreas, reflexões e pesquisas sobre temas que, no Brasil,
estavam centrados quase que exclusivamente nos ‗pensadores e estrategistas‘ a
serviço do poder estatal. Tratava-se de uma ‗geopolítica estatal‘, conforme assinala
Costa (1992, p.185).

Essa geopolítica que floresceu no Brasil, segundo Costa, foi ‗sustentada‘ utilizando-
se as ‗bases científicas‘ oriundas de autores clássicos como Ratzel e Mackinder,
ajustadas às fórmulas dos círculos conservadores do poder político nacional.
Diferente do que aconteceu na Alemanha e EUA, onde a geopolítica, com raras
exceções, desenvolveu-se em ambientes acadêmicos, no Brasil os estudos
geopolíticos tiveram a hegemonia do pensamento e instituições militares, o que
gerou uma carência de um pensamento geopolítico ou mesmo geográfico-político
engendrado num ambiente de reflexão acadêmico-universitária. Aliado a isso, ―[...]
boa parte da geopolítica brasileira, enquanto reflexo de suas congêneres
estrangeiras, destinou-se abertamente à promoção do que muitos analistas
denominaram de ―guerra interna‖, que não é em absoluto um exagero de linguagem,
a considerar a nossa particular história política, desde a colônia e especialmente
neste século [Século XX] de período republicano.‖ (COSTA, 1992, p.188).

Apesar da proximidade da Geografia com a Geopolítica, como destaca Costa, os


geógrafos não apenas não produziram geopolítica brasileira (salvo algumas
exceções), como também não foram, posteriormente, os principais comentaristas,
ficando a cargo da Ciência Política e outras áreas das Ciências Sociais as

48
ECEME/IMM/PPGCM

102
primeiras análises críticas sobre essa vertente do pensamento político brasileiro.
Dentre esses estudiosos, um destaque é dado a Shiguenoli Miyamoto e Leonel
Itaussu A. Mello. Na Geografia, de acordo com Costa (1992), algumas tentativas
de se recuperar uma geopolítica, agora acadêmico-universitária, têm sido feitas,
tendo em Bertha Becker uma proposta inovadora, quando convida a um resgate
da geopolítica. Para Bertha Becker (1988, p.100)

[...] repensar a Geografia envolve necessariamente o desvendar da


Geopolítica, sua avaliação crítica e seu resgate, e o trazer esse
conhecimento para o debate na sociedade. Em outras palavras, nesse
campo de preocupação, à Geografia caberia a teorização sobre a prática
estratégica desenvolvida pela Geopolítica.

Nesse sentido, este artigo tem por objetivo tecer algumas considerações acerca
do que tem sido produzido/publicado na última década sob o rótulo de
geopolítica, se no sentido de ―manipulação de alguns conhecimentos ditos
‗geográficos‘ para a formulação de esquemas que interessam às políticas de
poder‖ (COSTA, 1992, p.185) ou se estão surgindo novas abordagens de
análise dos fenômenos geográficos e políticos, em ruptura com a geopolítica
clássica/militar.

No contexto dessa proposta, apresentaremos, inicialmente, um preâmbulo sobre o


conceito de geopolítica/geografia política e a roupagem que esse se revestiu no Brasil,
assim como algumas categorizações propostas sobre períodos/eras geopolíticas.

Para a elaboração de apontamentos do que foi publicado na última década sob


o nome de geopolítica, realizamos uma pesquisa nos principais endereços
eletrônicos que disponibilizam teses e dissertações produzidas no Brasil a fim
de situar o crescente interesse por essa temática e identificar quais os
principais focos ou objetos de estudos que estão se revestindo com o rótulo
‗geopolítica‘.

103
2 Da geopolítica à geografia política ou dois lados da mesma moeda?

Conforme Moraes (apud GONZALES, 2003, p.26), ―O mundo é mais complexo que
as teorias‖. Inevitavelmente, qualquer categorização teórica circunscreve a realidade
sob um ou vários olhares, ângulos ou lados e traz, em seu âmago, ainda que
inconsciente, a visão daquele cenário focalizado, em detrimento do conjunto do
palco, acarretando um inevitável reducionismo na interpretação da complexidade do
mundo, um ―pecado original das ciências‖.

Nesse sentido, não pretendemos esgotar a temática neste pequeno artigo, mas
apresentar algumas definições auferidas à geopolítica que, conforme destaca Costa
(1992), sofre interferência, em seu desenvolvimento, das conjunturas e contextos
políticos e territoriais, o que expõe uma de suas contradições, além das dificuldades
de estabelecer um ―pensamento universal‖ ou ―leis gerais‖ em geografia política.

Outro aspecto mencionado por Costa (1992, p.16) é sobre as ―eventuais e


complicadas distinções entre a geografia política e a geopolítica‖, que não deixam de
ser, ―de certo modo, estéril ou até mesmo inútil‖.

[...] parte da tradição no setor identifica como geografia política o conjunto


de estudos sistemáticos mais afetos à geografia e restritos às relações entre
espaço e o Estado, questões relacionadas à posição, situação,
características das fronteiras etc., enquanto à geopolítica caberia a
formulação das teorias e projetos de ação voltados às relações de poder
entre os Estados e às estratégias de caráter geral para os territórios
nacionais e estrangeiros, de modo que esta última estaria mais próxima das
ciências políticas aplicadas, sendo assim mais interdisciplinar e utilitarista
que a primeira.

Costa (1992, p.17) considera que uma possível distinção seria pelo critério ―nível de
engajamento‖. Todavia, uma análise mais acurada poderia gerar dúvidas entre os
dois conceitos. Acrescenta o autor:

[...] tudo leva a crer [...] que, à exceção do problema do engajamento, as


indistinções sejam predominantes, principalmente se consideradas as bases
conceituais e teóricas que no essencial são comuns a ambas, de modo que
para examinar a evolução do pensamento nessa área é fundamental o

104
resgate principal das contribuições no que está auto-rotulado tanto de
geografia política como de geopolítica.

Para Vesentini (2003), existe uma geografia política independente da geopolítica,


embora haja uma relação de imbricação profunda, de superposição parcial entre elas.

O geógrafo, em especial o especialista em geografia política, tem na


geopolítica uma de suas temáticas essenciais, mas ele tem outras temáticas
ou objetos (geografia eleitoral, por exemplo, ou mesmo a análise da política
do corpo, algo comum nos dias de hoje na geografia anglo-saxônica) e ao
mesmo tempo outros especialistas também compartilham com ele essa
preocupação em entender essa rica problemática designada geopolítica.
(VESENTINI, 2003, p.5).

Ainda no sentido de proximidade entre os dois conceitos, Albuquerque (2010,


p.69) afirma que ―a geopolítica é indissociável das estratégias do Estado
nacional no controle do território e/ou projeção de poder para o exterior‖ e a
geografia política ―traz a ruptura com a ‗visão centralista e unitária‘ do Estado
nacional em nome do desvelamento das diversas estratégias espaciais de
poder de uma plêiade quase infinita de atores e instituições‖.

Diferente do que argumentam os autores acima, sobre a tênue linha que separa
a geopolítica da geografia política, alguns pensadores são mais incisivos na
pretensa diferenciação entre um conceito e outro. Miyamoto (1981, p.76) não
expõe a sua construção conceitual, mas terceiriza a definição do conceito ao
afirmar que ―a maior parte dos autores costuma fazer distinção entre geografia
política e geopolítica‖. Prossegue a descrição, listando as particularidades de
cada uma, de um ponto de vista estático e binário, alinhado com o contexto
histórico-político no qual foi engendrado:

Pela primeira [geografia política] entendem uma disciplina do ramo da


geografia, que apresenta características estáticas e estuda os aspectos
geográficos de um determinado território, preocupando-se mais com a parte
descritiva do que analítica destes fatores. A geografia política teria a seu cargo
descrever as fronteiras, os rios, as serras e as planícies, contentando-se em
realizar uma representação meramente estática desses elementos. A
geopolítica, pelo contrário, não se satisfaz apenas com a descrição física dos

105
acidentes geográficos. A geopolítica se preocupa com a aplicação desses
fatores na formulação de uma política visando principalmente fins estratégicos.
Concebida sob este prisma a geopolítica é uma teoria do poder e visa,
sobretudo, o preparo para a guerra. Nestas condições a geopolítica é
essencialmente dinâmica, fazendo parte não da geografia, mas sim da
ciência política (MIYAMOTO, 1981, p.76, grifos nossos).

Esse entendimento, de uma geografia política estática e uma geopolítica


dinâmica, permeia ainda hoje diversas publicações, particularmente, no
âmbito das instituições militares e, por vezes, em pesquisas no âmbito das
ciências políticas e sociais. Na esfera da geografia, como bem afirma Costa
(1992, p.16), ―não são poucos os autores que preferem passar ao largo
dessa discussão‖. Tal fato pode ser comprovado, especialmente, nesta
última década, com o surgimento de eventos organizados por geógrafos e
auto intitulados de geopolíticos 49.

Ainda que a obra primordial e que funda o conceito de geografia política foi
escrita por Ratzel, na Alemanha, em 1897 e a palavra geopolítica apresentada
em 1899 na Suécia, por Kjellén, muitos geopolíticos consideram a obra de Ratzel a
que funda, também, a geopolítica (COSTA, 1992, p.16).Isso posto, optamos por
discorrer somente acerca do conceito ‗geopolítica‘.

3 Da geopolítica

O neologismo geopolítica foi apresentado pela primeira vez em 1899, na Suécia,


cunhado pelo sueco Rudolf Johan Kjellén, professor das Universidades de
Gotemburgo e Uppsala. Conforme argumenta Fernandes(2002) foi um produto
direto do contexto histórico-político vivido por Kjellén. Na transição do século XIX
para o século XX a Suécia estava dividida pelo debate em torno da dissolução
da união de Estados Suécia-Noruega, originada em 1814, fato que se
concretizou em 1905. Kjellén discordava da independência da Noruega e

49
Vide o I Simpósio Internacional Geopolítica e Diplomacia, realizado no Departamento de Geografia da
Universidade de São Paulo, em abril de 2011 e o II Simpósio Internacional Geopolítica e Diplomacia, ocorrido
em Natal, RN, assim como a Associação Brasileira de Geopolítica, proposta por geógrafos acadêmicos.

106
apregoava a sua insatisfação em publicações de manuscritos, inclusive o que
aparece a palavra geopolítica, intitulado Inledningtill Sveriges Geografi.

Para Brzezinski (apud MELLO, 1999, p.12), a geopolítica é a ―combinação de fatores


geográficos e políticos que determinam a condição de um Estado ou região,
enfatizando o impacto da geografia sobre a política‖.

John Agnew (2003) faz uma subdivisão da geopolítica, contextualizando-a em


períodos distintos, o que o autor chama de eras geopolíticas: a geopolítica
civilizacional (1815-1875), a geopolítica naturalista (1875-1945) e a geopolítica
ideológica (1945-1990). Estaríamos vivendo hoje uma nova era da geopolítica ou
ordem da globalização militarizada, conforme discorre Cairo (2008, p.221-222),
com o ―discurso homogeneizador da geopolítica, cujo conteúdo seria estender as
formas econômicas de mercado de acesso livre e as formas políticas de
democracia representativa a todo o planeta‖.

Em uma analogia climática, Khanna (2008, p.22), afirma que geopolítica representa
a climatologia, a ciência profunda da evolução do mundo, e relações internacionais,
o sinônimo da meteorologia da atualidade. Nesse sentido, as análises geopolíticas
se assentariam em elementos mais concretos e estáveis e as relações
internacionais, em oscilações diárias e com menor previsibilidade. Considerando
que, tradicionalmente, a geopolítica se sustentou em análises dos ―[...] componentes
tangíveis do poder nacional, como é o caso dos aspectos econômicos, militares,
demográficos e culturais‖ (MELLO, 1999, p.143), quais seriam, então, os atuais
―elementos climáticos‖ no atual contexto mundial: complexo, global e interligado,
onde a velocidade e quantidade de informações, a fluidez e a instantaneidade das
comunicações, onde a agilidade das mudanças nos processos e acontecimentos
são marcas de um mundo menos estático que o do século XX, período onde
floresceu, no ocidente, as clássicas teorias geopolíticas.

Para alguns autores (Ó Tuathail, Dalby, Agnew, Santos etc.50), estamos na era da
geopolítica crítica, onde esta é vista como um ―conjunto complexo de discursos,
representações e práticas, em vez de uma ciência coerente, neutral e objectivista‖

50
Para um estudo mais completo sobre geopolítica crítica ou novas geopolíticas, vide: Ó Tuathail (1996,
1998),AGNEW (2003) e SANTOS (2007).

107
(SANTOS, 2007, p.1). Nesse sentido, ―desmonta os modos como as elites políticas
descreviam e representavam os locais no seu exercício do poder [além de que] os
Estados-Nação não são as únicas unidades legítimas de análise geopolítica‖.
(SANTOS, 2007).

Vesentini (2003, p 5), não nomina de nova geopolítica ou geopolítica crítica, mas
afirma que a partir dos anos 1980, essa ―configura-se cada vez mais como um
campo de estudos interdisciplinares, como um conjunto de temas estudados
isoladamente ou em equipe por geógrafos, cientistas políticos e sociólogos,
historiadores, juristas, economistas, militares e alguns poucos outros‖.

Após esse rápido preâmbulo conceitual, analisaremos como o rótulo ‗geopolítica‘ vem
sendo abordado no Brasil nos meios acadêmicos, na última década. Constata-se de
antemão um interesse crescente pela geopolítica, não somente na Ciência Política e
Geografia, mas em diversas áreas, tais como na História, Literatura, Psicologia etc.

4 A produção acadêmica brasileira sobre geopolítica na última década

Em levantamento realizado na biblioteca de teses e dissertações da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal Nível Superior (CAPES) foram encontradas 53751
pesquisas (mestrado e doutorado) onde consta a palavra ―geopolítica‖ no ‗assunto‘
das teses ou dissertações. São pesquisas dos mais diversos matizes: geopolítica das
igrejas, da economia, ambiental, tecnológica e da psicologia, dentre outros temas.

O quadro abaixo ilustra a diversidade de temas de pesquisas circunscrita, de alguma


maneira, ao conceito de geopolítica. Foi elaborado a partir de uma pesquisa mais
sucinta na biblioteca digital ―Domínio Público‖52 e Biblioteca Digital de Teses da
USP53, para detectarmos somente as teses e dissertações que carregam o cognato
geopolítica em seu título.

É importante destacar que, com raríssimas exceções, as pesquisas foram


elaboradas na última década até o ano de 2013, o que demonstra cada vez mais o
crescente interesse acadêmico sobre a temática.
51
Para acessar os títulos e as teses: http://capesdw.capes.gov.br/capesdw
52
Disponível no site
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaPeriodicoForm.do;jsessionid=0F36CAC9AAF0E5DE90C4
FDAA864BFE18
53
Disponível no site http://www.teses.usp.br/

108
Quadro 1

Dissertações e teses com a palavra geopolítica no título

AUTOR IES ANO/NÍVEL


TÍTULO

A estratégia naval brasileira na geopolítica


UFRJ/História
comparada do atlântico sul no início do Século XX José Carlos De Araujo Neto 2008
Comparada
(1902-1914)
ME

A geopolítica do ambientalismoongueiro na Amazônia


Nazira Correia Camely UFF/Geografia 2009
brasileira: um estudo sobre o estado do Acre

DO

A geopolítica e a formação territorial do sul do Brasil Jones Muradás UFRGS/Geografia 2008

DO

A projeção geopolítica do Brasil na África Lusófona:


Ronaldo Wilken UERJ/GEOGRAFIA 2009
ações e omissões nas relações com Angola

ME

Geopolítica da cultura e interdisciplinaridade: um UPM/Educação, Arte e


Joaquim Chagas Neto 2009
estudo da Convenção da UNESCO sobre a proteção História da Cultura
e a promoção da Diversidade das Expressões ME
Culturais

Aguinaldo Alemar UFU/Geografia 2008 DO


Geopolítica das águas - o Brasil e o direito
internacional fluvial

Matrizes teóricas da geopolítica brasileira: as


Friederick Brum Vieira UERJ/Geografia
contribuições de Travassos, Golbery e Meira Mattos
2005 ME

2008
Movimentos partidos: geopolíticas da ―revolução‖
Sandra Rodrigues Braga UFU/Geografia
brasileira (1964-1985) DO

109
O fim da Guerra Fria e as perspectivas geopolíticas e
UFRJ/História
geoestratégicas para o Brasil frente à crise da Ricardo Pereira Cabral 2005
Comparada
segurança hemisférica (1991-2001)
ME

Transformações socioespaciais na cidade-região em


Felipe Nunes Coelho
formação: a economia geopolítica do novo arranjo UFMG/Geografia 2008
Magalhães
espacial metropolitano
ME

"Urubici": a formação geopolítica de uma heterotopia


Marcela Montalvão Teti UFSC/Psicologia 2010
turística

ME

USP/Geografia
Geopolítica na fronteira norte do Brasil: o papel das 2007
Humana
forças armadas nas transformações sócio-espaciais Altiva Barbosa da Silva
do estado de Roraima DO

A geopolítica da rede e a governança global de


Michele Tancman Candido USP/Geografia
internet a partir da cúpula mundial sobre a sociedade 2008
da Silva Humana
da informação
DO

USP/Geografia
A geopolítica da economia mafiocontemporânea Moacir Nunes e Silva 2009
Humana

DO

A ostentação estatística (um projeto geopolítico para 2007


Paulo Roberto de
o território nacional: estado e planejamento no
Albuquerque Bomfim USP/Geografia
período pós-64) . DO
Humana

USP/Geografia
O grande cerrado do Brasil central: geopolítica e Bernardo Palhares Humana
2006
economia Campolina Diniz

DO

USP/Geografia
Geopolítica e Inovação Tecnológica: uma análise da
Humana
Subvenção Econômica e das Políticas de Inovação Pablo Ibañez 2012
para a saúde
DO

110
Governo George Walker Bush (2001-2004): uma USP/Ciência Política
análise geopolítica das guerras do Afeganistão e do André Luiz Varella Neves 2010
Iraque
DO

USP/Geografia
A Guerra da Água em Cochabamba, Bolívia:
Humana
desmistificando os conflitos por água à luz da Matheus Hoffmann Pfrimer 2010
geopolítica
DO

2012
Nova ordem sul-americana: reorganização geopolítica USP/Geografia
Antonio Marcos Roseira
do espaço mundial e projeção internacional do Brasil Humana
DO

2011
Geopolítica das igrejas e anarquia religiosa no Brasil. USP/Geografia
Alberto Pereira dos Santos
Por uma geoética de apoio mútuo. Humana
DO

USP/História
Martinho Camargo Milani 2011
Estado Livre do Congo: imperialismo, a roedura Econômica
geopolítica (1885-1908)
ME

2011
Marcos Antonio Favaro USP/Integração da
Mario Travassos e Carlos BadiaMalagrida: dois Martins América Latina
ME
modelos geopolíticos sobre a América do Sul

2013
Geopolítica clássica e geopolítica brasileira USP/Geografia
Ronaldo Gomes Carmona
contemporânea: Mahan, Mackinder e a "grande Humana
ME

estratégia" do Brasil para o século XXI

USP/Geografia
Geopolítica brasileira na África subsaariana: Herbert Schutzer 2009
Humana
assertivas cooperativas e ou conflitivas dos governos
ME
de Geisel (1974-1979) e Lula (2003-2006). Um
estudo de geopolítica comparada

Fonte: elaborado pela autora

Sobre o interesse acerca de temas da geopolítica/geografia política, como


constatado no quadro acima, observa-se uma redução nos estudos da geopolítica
clássica, com exceção dos trabalhos de cunho mais histórico, que, em grande parte,
retomam os clássicos, numa releitura ou análise à luz do atual contexto histórico-

111
político nacional. Fato instigante é a busca cada vez mais significativa por temas
que, até pouco tempo (duas últimas décadas), foram quase expurgados das
pesquisas no meio acadêmico, particularmente na Geografia e História.

Ainda que algumas pesquisas sejam rotuladas de ―geopolítica crítica‖, são válidas e de
salutar importância para ampliar e compreensão das ―geopolíticas‖, extrapolando as
análises que contemplam apenas as relações entre estado, poder e território, já que,
conforme sinaliza Costa (1992, p.23) essas pesquisas ―apontam, em geral, para uma
evidente ‗desestatização‘ do objeto da geografia política, com as análises muito mais
centradas nos problemas relativos ao poder em geral e às suas formas de manifestação
e exercício do que exclusivamente no poder estatal, como no passado‖.

Tal cenário não é exclusividade do meio acadêmico brasileiro. Fernandes (2002,


p.185), de Portugal expressa a sua preocupação ao interrogar se esse interesse

radica nas virtudes descritivas, explicativas, analíticas ou críticas deste


campo de conhecimento, face aos acontecimentos do mundo real [...] no
pós-Guerra Fria ou estaríamos perante mais um fenômeno de moda,
alimentado pelos meios acadêmicos, políticos e jornalísticos.

O autor conclui que, muitas vezes, o aumento de interesse se deu pelo alargamento
―bastante discutível‖ do seu objeto de estudo, mais do que pela
―descrição/interpretação/análise dos fenômenos geográficos-políticos com relevância
internacional‖.

Todavia, constata-se, pelo que vem sendo publicado no Brasil no meio acadêmico na
última década, que não houve uma completa ruptura com a geopolítica clássica, mas
concomitante ao surgimento de diversos novos temas, uma releitura das teorias clássicas.

5 Considerações finais

Em seu livro ―Como governar o mundo‖, ParagKhanna (2011) aponta que a


diplomacia do Século XXI está ficando parecida com a Idade Média: potências
emergentes, corporações multinacionais, famílias poderosas, humanistas,

112
extremistas religiosos, universidades e mercenários compõem a paisagem
diplomática. Tecnologia e dinheiro, e não soberania, determinam quem tem
autoridade e dá ordens. Afirma o autor que o segredo do êxito, neste novo mundo de
megadiplomacia, está em juntar todos os protagonistas – governos, empresas e
organizações, em coalizões que mobilizem rapidamente recursos globais para
resolver problemas locais. Nesse sentido, torna-se cada vez mais necessário, além
de hard power, o soft power ou, resgatando o que propõe Brzezinski, poder militar,
poder econômico, tecnológico, político e cultural.

As chamadas ―novas ideologias‖ que por ventura, estariam permeando a geopolítica


crítica (questão ambiental, étnica etc.), consideradas por alguns analistas como
elementos restritivos à concepção de novas teorias geopolíticas na
contemporaneidade, não podem ser descartadas nas atuais formulações e análises
sobre o espaço e a política. É preciso buscar a compreensão da atual dinâmica
global e pensar em mecanismos e estratégias conceituais e categorizações, à luz
das perspectivas nacionais de inserção no mundo.

Não se trata, evidentemente, de uma utilização proteiforme do conceito Geopolítica,


com ausência absoluta de utilidade técnica e rigor, assim como um alargamento
indiscriminado do seu objeto de estudo, que poderia acarretar, como consequência,
a perda de coerência da própria Geopolítica, enquanto disciplina acadêmica
(FERNANDES, 2002, p. 186).

Todavia, nas complexas relações contemporâneas, de imposição dos fluxos


sobre os fixos (MILTON SANTOS, 1988), de intenso desenvolvimento
tecnológico, fluidez nas relações internacionais e frágil equilíbrio de poder
político e econômico, sustentado em trocas comerciais globais e novos arranjos
interestatais, é necessário o regate da geopolítica, como lembra Becker (1988),
não da velha ‗geopolítica estatal‘, do tipo determinista, esquemática e
instrumental, mas a acadêmica, em sintonia com a ‗estatal‘, na busca de
desvendar os complexos mecanismos de poder que envolvem o espaço e por
consequência, o território, a política e o estado.

113
Referências bibliográficas

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Routledge, 2003.
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KHANNA, Parag. Como governar o mundo? Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.

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Ó TUATHAIL, Geraóid. Critical geopolitics: the politics of writing global space.


Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996

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and beyond. In: Ó TUATHAIL, G. e DALBY, S. Rethinking Geopolitics. London:
Routledge, 1998

114
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<http://www.jornaldefesa.pt/1/arquivo_de_ensaios_427940.html>. Acesso em: 12
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e metodológicos da Geografia. São Paulo: HUCITEC, 1988.

VESENTINI, José William. Geografia Política e Geopolítica: Determinismo e


Possibilismo? Geocrítica – Geopolítica. Ensino da Geografia. 2003. Disponível em:
<http://www.geocritica.com.br/geopolitica.htm>. Acesso em: 22 mar. 2013.

115
EL PROCESO DE SECURITIZACIÓN Y LAS ESTRATEGIAS DE LA
ORGANIZACIÓN DEL TRATADO DE COOPERACIÓN AMAZÓNICA54

Sérgio Ricardo Reis Matos55

Manuel Adalberto Carlos Montenegro-Lopes-da-Cruz56

1 Introdución

La Amazonía está en el centro de las atenciones mundiales debido a temas como


abastecimiento de agua potable, explotación versus conservación de recursos
naturales, terrorismo, narcotráfico, desarrollo sostenible, cambios climáticos
(ARAÚJO, 2006).

No obstante, esos temas en la Amazonía pueden afectar la seguridad de los


Estados y de sus instituciones, alcanzando el grado de amenazas. Aquí, se entiende
el concepto de amenaza conforme Saint-Pierre (2010), como una representación,
una cierta disposición o manifestación de algo no deseado o de riesgo para la
seguridad de quién la percibe.

Para temas de esa naturaleza, Buzan et al. (1998) plantean la teoría de la


securitización, que debe ser entendida como el estudio de amenazas subjetivas, en
que una cuestión es tratada por la política fuera de sus usos y costumbres,
tratándola como una política particular, en si misma o inclusive como una temática
aparte, que la trasciende. Define, por tanto, una taxonomía teórica en su
planteamiento: cualquier cuestión pública puede ser ubicada en el espectro que
varía del "no politizado", pasando por "politizado", alcanzando el "securitizado".

54
Este trabajo es parte de la tesis de Maestría “El proceso de securitización y las políticas de defensa de países de
la Organización del Tratado de Cooperación Amazónica” (MATOS, 2013), defendida en 2013 por el autor,
teniendo al coautor como cotutor.
55
Magister en Relaciones Internacionales e Integración. Ejército de Brasil.
56
Doctorante en Ciencias Sociales. Magíster en Relaciones Internacionales. Ministerio de Relaciones Exteriores
de Brasil.

116
En esa región sudamericana, se sabe que las poblaciones amazónicas necesitan de
mejores condiciones de vida, lo que demanda acciones de sus Estados en estimular
el desarrollo. Con base en el institucionalismo como forma de buscar soluciones
para problemas de ese tipo, los países amazónicos se coadunaron en firmar un
marco multilateral en 1978, que se transformó en la Organización del Tratado de
Cooperación Amazónica (OTCA) en 2002.

Actualmente, la OTCA tiene como visión ser una organización reconocida a nivel
mundial y sudamericano en la cooperación regional, en la discusión y
posicionamiento en temas de la agenda internacional relativas a la Amazonía y en el
intercambio de experiencias, actuando en base a los principios de pleno ejercicio de
la soberanía de cada espacio amazónico, el respeto y armonía con la naturaleza, el
desarrollo sostenible y la reducción de asimetrías de los Estados de la Región.
¿Existe relación de influencia entre las estrategias de esa institución y la defensa de
sus países miembros?

En este contexto, el presente trabajo se propuso a analizar la influencia de


dinámicas de securitización de los países miembros, especialmente Bolivia y Brasil,
sobre estrategias de la Organización del Tratado de Cooperación Amazónica.

2 Metodología

El punto de partida de la investigación fue el cuestionamiento: ¿cómo las estrategias


de la Organización del Tratado de Cooperación Amazónica se ven influenciadas por
las dinámicas de securitización de las políticas de defensa de sus países?
Relaciona, pues, dos fenómenos distintos: dinámicas de securitización y estrategias
de la Organización, suponiendo que las dinámicas influencian las estrategias.

En relación con el espacio, la investigación busca limitar su problemática a partir


de dos países: Bolivia y Brasil. Las categorías de estudio fueron tres: (1)
vigilancia y combate de crímenes transfronterizos, (2) identidad y (3) preservación
de recursos naturales. En relación con la temporalidad, el estudio enfoca más la
fase en que se institucionalizaron las estrategias de la Organización del Tratado,
es decir, a partir de 2004.

117
El trabajo tuvo cuatro fases: la construcción del marco teórico, la recopilación de
datos, el análisis de los datos, y la síntesis. En las fases de construcción del marco
teórico y de la recopilación de datos, las investigaciones bibliográficas y
documentales posibilitaron la reflexión sobre el conocimiento asociado a la temática.

El análisis documental se realizó en textos macro de Defensa de los dos países, así
como en discursos, actas, planes y agendas oficiales de la OTCA (ARTEAGA, 2006;
BOLIVIA, 2004; 2010; BRASIL, 2005; 2008; 2012; OTCA, 2004; 2006; 2010).

El estudio de los datos fue realizado por medio de análisis de contenido. Basado en
Bardin (1977), de forma cualitativa, el análisis de contenido buscó obtener
descripción de los documentos que fueron investigados, por medio de indicadores
que permitieron la inferencia de conocimientos relativos a las condiciones de
producción / recepción de los mensajes existentes.

Ese análisis se desarrolló en tres fases: la descripción del texto, o sea, los mensajes
de los ordenamientos, discursos y entrevistas; la inferencia, comprendida por las
primeras comparaciones con los aportes teóricos, ordenándose unidades de
contextos (citas), a partir de los indicadores; y las interpretaciones de los hechos.

La síntesis fue hecha por triangulación, conforme Adorno et al. (citados por SOUZA;
ZIONI, 2003), al buscar establecer interrelaciones entre los hechos y la teoría.

3 Aportes Teóricos

La conjugación entre temas de Seguridad y Defensa en las teorías de relaciones


internacionales es un eje para que se obtenga respuesta a diversos fenómenos
mundiales de guerra y paz (OROZCO, 2011).

Las teorías racionalistas, aquí comprendidas como realistas, neorrealistas,


institucionales y neoinstitucionales (SÁNCHEZ, 2011), permiten la comprensión de
esos fenómenos a partir de una visión más materialista, en una carrera de búsqueda
por el poder, enfocando prioritariamente aspectos políticos y militares (realistas y
neorrealistas), o económicos (institucionalistas y neoinstitucionalistas).

118
Sin embargo, esas teorías tuvieron que ser revisadas cuando el mundo pasó por puntos
históricos significativos, como el fin de la Guerra Fría y los Atentados del 11 de
septiembre de 2001 (DUQUE, 2009; RUDZIT, 2005). Además, esas teorías no son muy
bien aplicables para la Seguridad y Defensa de los países del Sur. ¿Por qué?

En Sudamérica, particularmente en la subregión amazónica, las condiciones de


poder no se aproximan a las grandes potencias (RUDZIT, 2005). En consecuencia, a
pesar de las teorías racionalistas ser importantes para el entendimiento del sistema
internacional y sus amenazas, ellas se tornan intangibles en términos materiales.

Así, los estudios de Seguridad y Defensa en la subregión amazónica deben tener un


planteamiento más comprensivo y multidimensional, considerando variables
domésticas y del sistema internacional.

Por su parte, la teoría de seguridad formulada por la Escuela de Copenhague,


contiene aspectos que van al encuentro de las necesidades amazónicas. Tal teoría
se basa en el estudio de amenazas subjetivas, por medio de proceso intersubjetivo
de entendimiento de la realidad (BUZAN et al., 1998). Sus contribuciones más
importantes son: el concepto de securitización, las nuevas unidades de análisis de
seguridad y el abordaje multisectorial de la seguridad (DUQUE, 2009).

El concepto de securitización puede ser definido como el proceso por el cual una
cuestión recibe status de seguridad a partir del acto del discurso, lo que implica
tratamiento de acuerdo con las normas específicas y extrañas a un cuadro
institucional normal (ARAÚJO, 2006). Hay, por lo tanto, según Buzan et al. (1998),
una taxonomía teórica en su planteamiento: cualquier cuestión pública puede ser
ubicada en el espectro que varía del "no politizado", pasando por "politizado",
alcanzando el "securitizado".

Las unidades de análisis son objetos, agentes y actores funcionales. Los objetos son
las unidades que se encuentran amenazadas, demandando medidas para
protegerlas. Los agentes son los autores de las iniciativas de securitización, mientras
que los actores funcionales son aquellos que afectan la dinámica del sector,
influenciando las decisiones (BUZAN et al., 1998).

119
Para el análisis multisectorial, las Escuela de Copenhague definió cinco sectores:
militar, político, económico, societal57 y ambiental. Se valorizan, conforme Buzan
(1997), las enseñanzas de la escuela racionalista en los sectores político, militar y
económico, mientras se incorporan de hecho los sectores societal y ambiental.

Estudiando la Amazonía a partir de la conjugación de esos sectores, se verificó que


los principales obstáculos para el desarrollo económico y ambiental son:

- Falta de presencia efectiva del Estado (ARAVENA; ALTMANN, 2006);

- Problemas sociales (VISACRO, 2009a; GAMBOA, 2011);

- Deforestación, pérdida de biodiversidad, emisión de gases invernaderos,


deterioro de la capa de ozono, degradación de los suelos, sedimentación de los
ríos (GRUENBERGER, 2007);

- Bajas condiciones de infraestructura (ARAÚJO, 2006; MEIRA MATTOS,


2011);

- Inseguridad alimentaria (GRUENBERGER, 2007);

- Baja seguridad jurídica (O HOMEM…, 2009).

Esos obstáculos son vulnerabilidades y pueden representar amenazas para la


seguridad amazónica, demandando acciones de defensa por parte del Estado.

En los sectores político y militar, se observaron, como vulnerabilidades y amenazas:

- La codicia internacional a los recursos de la región (ARAÚJO, 2007);

- Los crímenes transfronterizos (WINTER, 2012);

- El narcotráfico y su efecto globo (GAMBOA, 2011);

57
Palabra de origen inglesa, que aparece en textos científicos en lengua española, a pesar de no ser aceptada por
la Real Academia Española. En inglés, Buzan et al. (1998) hace distinción entre la seguridad social y la societal.
Ellos afirman que “(…) societal security is not the same as social security. Social security is about individuals
and is largely economic. Societal security is about collectives and their identity (…) we use societal for
communities with which one identifies” (p. 120).Es, por lo tanto, una palabra eslabonada al concepto de
identidad. En un sentido común, seguridad social en Brasil, por ejemplo, significa un conjunto de políticas
sociales que buscan asistir al ciudadano en temas como empleo, salud o tercera edad. Es decir, configura un
sentido distinto al que Buzan et al. (1998) buscaron plantear.Por creer que lo mejor sentido al concepto que se
quiera discutir en este trabajo es dado por la palabra societal, término acepto en el medio académico, este texto la
adopta.

120
- El (narco)terrorismo (WINTER, 2012);

- Las guerrillas (VISACRO, 2009a);

- El vacío ecuménico regional (ARAÚJO, 2006);

- Los riesgos de injerencia o tutela (ALVES, 2009; MEIRA MATTOS, 2011);

- La presencia militar extranjera en la subregión (BUSTAMANTE, 2011;


GAMBOA, 2011);

- La incertidumbre sobre la propiedad de la tierra (O HOMEM…, 2009);

- Las migraciones de refugiados (BUSTAMANTE, 2011);

- Las invasiones territoriales para el combate a guerrilleros (ALVES, 2009);

- Las zonas de reclamación territorial (MENDONÇA, 1986);

- La ausencia del Estado (ARAVENA; ALTMANN, 2006; VISACRO, 2009a).

Como muchas de esas vulnerabilidades y amenazas son transnacionales, la


cooperación en esos temas se tornó imperativa para que ellas sean mitigadas.

En el sector societal, se infiere que los principales problemas a la seguridad son:

- Prominencia de ideas de homogenización de las culturas indígenas


(VISACRO, 2009b);

- Conflictos de origen étnico (GAMBOA, 2011; GUIMARÃES, 2009);

- Exacerbación de la polarización entre etnias (GUIMARÃES, 2009);

- Fragmentación territorial (ALVES, 2009; BARRETO, 1995);

- Intereses geoestratégicos de grandes potencias mascarados por el tema de la


valorización de la identidad (BARRETO, 1995; VISACRO, 2009b).

En esos temas, se corrobora la idea de que los conflictos que involucran la


diversidad cultural en un país no pueden ser solucionados con políticas orientadas
para la solución de crisis del tipo ―aliado versus enemigo‖ (BRANCANTE; REIS,
2009). Tampoco se debe potencializar una visión revolucionaria entre las partes.

121
Los Estados de Bolivia y Brasil también consideran esos asuntos como
vulnerabilidades y amenazas a la seguridad en la región amazónica. Por tanto,
siguiendo los supuestos de la Escuela de Copenhague, se infiere que los dos países
priorizaron acciones para reducir los riesgos, en dinámicas internas convergentes al
concepto de securitización.

4 Análisis de los Resultados

Analizando los documentos-macro de la Defensa de Bolivia (Libro Blanco de


Defensa, de 2004, y las Bases para la discusión de la doctrina de seguridad y
defensa del Estado Plurinacional de Bolivia, de 201058), a partir de las categorías
elegidas en resumen, se verificó lo siguiente:

Cuadro 1

Dinámicas internas de securitización a partir de la Defensa Boliviana

Amenazas y vulnerabilidades Acciones mitigadoras emergentes verificadas por la


Categoría
reconocidas Defensa

Libro Blanco de Defensa de 2004

Amplias fronteras Acercamiento de políticas entre países.


despobladas, con
configuración geográfica Promoción de erradicaciones y apoyo logístico a las
peculiar. operaciones contra el narcotráfico.

Poca presencia de las FF. AA. Conformar mecanismos ante Organismos Internacionales.
Vigilancia y
en zonas fronterizas.
combate a
Llenar vacíos institucionales bolivianos por medio de las
crímenes
Corrupción, delincuencia, FF. AA.
transfronte- crimen organizado, tráfico de
rizos armas, narcotráfico, Ubicar unidades militares en la región fronteriza.
(narco)terrorismo.
Promover el desarrollo y la salud en regiones fronterizas
Desmembramiento territorial con actuación de las FF.AA.
por invasión pacífica de
Construcción y mantenimiento de carreteras, aeropuertos
extranjeros.
y otras obras de infraestructura en las zonas fronterizas,
con notable actuación de la Ingeniería Militar.

58
La reforma estructural de la República de Bolivia para el Estado Plurinacional de Bolivia, ocurrida con la
promulgación de la nueva Constitución en 2009, también marcó nuevos paradigmas para el sector de Defensa.
Así, se publicó el libro de 2010. El análisis de esos dos documentos son relevantes debido al recorte temporal
elegido.

122
Bases para la Doctrina de Seguridad y Defensa de
2010

Definir un nuevo papel a las FF. AA.

Combatir las nuevas amenazas buscando soluciones de


forma multilateral.

Firmar acuerdos bilaterales con Brasil y Perú para


combatir las amenazas emergentes.

Establecer políticas con Brasil que eviten el ingreso de


ciudadanos a la actividad ilícita del narcotráfico.

Garantizar, con todos los recursos de poder disponibles,


59
las prácticas del Vivir Bien en complementariedad con el
territorio.

Promover el asentamiento de grupos humanos y la


creación de polos de desarrollo en base al despliegue de
unidades militares de ingeniería en regiones fronterizas.

Generar un sistema de producción sostenible en las


fronteras, sentando la soberanía y reduciendo los riesgos
de desmembramiento territorial.

Adquisición de lanchas patrulleras, equipadas y artilladas


para la lucha contra el narcotráfico y contrabando.

Capacitación de los Recursos Humanos en las zonas


fronterizas para la realización de obras de estructura
social y productiva.

Planificación del uso de Unidades Aéreas de Vigilancia


para combatir el tráfico de narcóticos y contrabando.

Designación del Ejército para apoyar el desarrollo de las


zonas de seguridad fronteriza.

Ejecución de obras sociales para el desarrollo local,


particularmente por la Ingeniería del Ejército.

Implementación del Plan Seguridad Alimentaria, para


mejorar la calidad de vida de comunidades pobres y
unidades militares de frontera.

59
El Vivir Bien es un principio ancestral que “emerge de lo más profundo de la cultura y es un ideal referente que
denota el equilibrio que debe existir entre el hombre y la naturaleza […] en un proceso armónico a través del
cual se construye la felicidad desde una perspectiva integral. […] También significa vivir bien contigo y
conmigo, es un ámbito donde se garantiza el ejercicio libre de todos sus derechos y garantías individuales y
colectivos, donde uno se sienta orgulloso de su identidad que es diferente del vivir mejor, pues este es individual,
separado de los demás e inclusive a expensas de los otros y de igual forma separado de la naturaleza”
(BOLIVIA, 2010, p. 16-21). Actualmente, es visto como una forma de desarrollo alternativo.

123
Establecimiento de una Comisión Mixta con Perú para
combatir el narcotráfico y el crimen organizado en la
frontera.

Libro Blanco de Defensa de 2004

Las FF. AA. deben cimentar la cohesión, a partir de la


yuxtaposición de culturas.

Dar importancia a los valores culturales en la Defensa.


Dicotomía de los términos de Empleo de la estructura ofrecida por las empresas
la población. públicas de defensa ante conflictos sociales.
Insatisfacciones económicas y Bases para la Doctrina de Seguridad y Defensa de
sociales por grupos 2010
descontentos.
Utilizar las FF. AA. como medio de mantener unidos los
Acción de individuos y pueblos bolivianos.
movimientos sociales, ONG´s
y la opinión pública. Implementar políticas económicas y sociales para
garantizar el Vivir Bien, empleando todos los recursos de
Pobreza, la exclusión social y poder disponibles.
el racismo.
Generar material de cohesión de la población en el
Resentimientos entre grupos respeto a la pluriculturalidad.
Identidad
étnicos.
Implementar políticas de Estado que actúen sin
Conflictos sociales. asimetrías ni explotación, de manera que consoliden las
identidades plurinacionales.
Desmembramiento del Estado.
Definir y divulgar que las FF. AA. son la sociedad
Obstáculos a la integración
plurinacional, multiculturalmente y militarmente
regional debido a factores
organizada.
étnicos.
Estimular un diálogo diplomático entre los pueblos para la
Existencia de grupos
unidad boliviana.
separatistas.
Promover el desarrollo de la cultura plurinacional para
Efecto homogeneizador de la
fortalecer y enriquecer la identidad histórico-cultural,
globalización.
como modo de profundizar la cohesión.

Fomentar la cultura de respeto de los derechos humanos


en los cuarteles.

Utilizar el servicio militar obligatorio para promover la


interculturalidad.

Libro Blanco de Defensa de 2004


Deterioro del medio ambiente.
Preserva-
Apropiación ilegal y Designar las FF. AA. como garantes de la preservación
ción de
contrabando de los recursos de los recursos naturales.
recursos
naturales naturales. Establecer la preservación del medio ambiente como uno
de los marcos para el Ministerio de Defensa.
Asentamiento desordenado de

124
industrias en reservas Bases para la Doctrina de Seguridad y Defensa de
naturales. 2010

Explotación indiscriminada de Rediseñar la presencia geoestratégica de las Fuerzas


recursos no renovables. Armadas para el control de los recursos naturales.

Garantizar, con todos los recursos disponibles, el Vivir


Bien, con pleno respeto a los costumbres de todas las
identidades culturales.

Definir el tema ―Medio ambiental y recursos naturales‖


como tema permanente en las dimensiones de estudios
sobre Seguridad y Defensa.

Emplear las FF. AA., en tres líneas de acción: la


concientización para la prevención; la protección y
conservación de recursos renovables y no renovables; y
el estudio de alternativas para el aprovechamiento
racional de los recursos naturales.

Designación del Ejército para proteger los recursos


naturales y colaborar con la preservación ecológica.

Control de la deforestación por medio de la labor


fotográfica realizada por el Servicio Nacional de
Aerofotogrametría.

Preservación del medio ambiente y de la fauna en los ríos


y lagos, a través de las Capitanías de Puertos.

Establecimiento de una Comisión Mixta con Perú para


combatir la depredación ambiental.

Fuente: elaboración propia, basada en Bolivia (2004; 2010).

De la misma forma, se buscó analizar documentos macro de la Defensa de Brasil


(Política de Defensa Nacional, de 2005; Estrategia Nacional de Defensa, de 2008; y Libro
Blanco de Defensa Nacional, de 2012)60, llegándose a las siguientes inferencias, en
resumen:

Cuadro 2

Dinámicas internas de securitización a partir de la Defensa Brasileña:

Amenazas y vulnerabilidades Acciones mitigadoras emergentes verificadas por la


Categoría
reconocidas Defensa

60
Cabe resaltar que la Política y la Estrategia Nacional de Defensa fueron revisadas en 2012. Empero, se
utilizaron los textos de 2005 y 2008, respectivamente, para dar una comprensión histórica a la investigación,
dentro del tiempo estudiado.

125
Búsqueda del consenso, armonía política y convergencia
de acciones multilaterales.

Relacionamiento estrecho por medio de la OTCA.

Fortalecimiento de la presencia del Estado.

Vivificación de las fronteras, implementando acciones para


desarrollar e integrar la región amazónica, con apoyo de la
sociedad, procurando, en especial, al avance del proyecto
de desarrollo sostenible.

Visión conjugada entre desarrollo y defensa, participando


de la concepción y del desarrollo de la infraestructura del
País.

Construcción de carreteras, puertos, puentes, escuelas,


guarderías, hospitales, evacuación aeromédica,
aeródromos, pozos de agua potable, pequeñas centrales y
redes de energía eléctrica.

Delitos transnacionales. Promover el apoyo a las comunidades de la región por


medio de asistencia, salud y educación a las poblaciones
Migraciones ilegales. carentes e indígenas.
Vigilancia y
Transnacionalización de Fortalecimiento e incremento de la presencia de las FF.AA.
combate a
conflictos.
crímenes
Destruir aeronaves que sean clasificadas como hostiles.
transfronte-
Baja densidad demográfica.
rizos Fortalecimiento del sentido de defensa del Programa
Largas distancias. ―Calha Norte‖.

Infraestructura precaria. Disponer y desarrollar medios y capacidades para ejercer y


mejorar la vigilancia, el control y la defensa de su espacio
aéreo, territorio y aguas jurisdiccionales.

Implementación e integración del SISFRON.

Integración del SIPAM.

Asegurar la franca navegabilidad en las vías fluviales a


partir del paradigma de transporte multimodal.

Disuadir la concentración de fuerzas hostiles en las


fronteras terrestres y en los límites de las aguas
jurisdiccionales brasileñas.

Desarrollar la capacidad de responder prontamente a


cualquier amenaza o agresión, por medio de la capacidad
logística y fortalecimiento de la movilidad.

Apoyar las resoluciones de la ONU en cuanto al trabajo


conjunto para evitar y combatir amenazas (narco)
terroristas.

126
Implementar una política indigenista adecuada.
Conflictos de carácter étnico.
Divulgar para la sociedad que la idea de desarrollo es
Exacerbación del inseparable de la Defensa, para fines de identificación
nacionalismo. nacional.

Exclusión de personas del Mantener y perfeccionar el Servicio Militar Obligatorio, con


proceso productivo. vistas a contribuir para preservación de la cohesión y
unidad nacional.
Diferencias entre las capas
Identidad sociales. Regularizar la propiedad de tierras y ampliar la seguridad
jurídica, evitando conflictos entre colonos, indígenas y
Poca seguridad jurídica. empresarios.

El servicio militar necesita Ampliar la representación de las capas sociales en las


identificarse más con la academias militares y en el Servicio Militar Obligatorio.
sociedad brasileña.
Promover la interacción entre culturas y respeto a la
ONG´s fomentando pluralidad de ideologías y sistemas políticos.
separatismos.
Optimizar el control sobre actores no gubernamentales.

Preserva- Promover relaciones estrechas, multilaterales y de


ción de cooperación por medio de la OTCA.
recursos
naturales Implementar la Nueva Agenda Estratégica de Cooperación
Amazónica de 2010 (OTCA).
Codicia internacional a los
Definir la Amazonía como área prioritaria de Defensa.
recursos naturales.
Institucionalizar la defensa de los recursos por las FF. AA.
Deterioro ambiental.
Realizar acciones de patrullaje, control de personas, de
Tentativa de tutela fomentada
vehículos terrestres, de embarcaciones y de aeronaves.
por organizaciones o
individuos. Ejecutar una serie de acciones estratégicas volcadas para
el fortalecimiento de la presencia militar, efectiva acción del
Acción no controlada de
Estado en el desarrollo socio-económico y ampliación de la
ONG´s con vinculación
cooperación con los países vecinos.
extranjera.
Desarrollar avances de proyecto de desarrollo sostenible.
Tensiones originadas de la
escasez de recursos. Optimizar el control sobre actores no gubernamentales en
la región amazónica.

Incrementar medios para vigilancia y control.


61
Fortalecer, integrar y reorganizar el SIPAM .

Fuente: elaboración propia, basada en Brasil (2005, 2008, 2012).

61
El gobierno brasileño articuló un programa con colaboración de civiles y militares para encadenar una red de
protección a la Amazonía, englobando la cuestión ambiental e ilícitos transnacionales – el SIPAM (Sistema de
Protección Amazónica). Es una organización sistémica de producción y trámite de informaciones técnicas,
formada por una compleja base tecnológica y una red institucional, encargada de integrar y generar
informaciones actualizadas para articulación, planeamiento y coordinación de acciones globales de gobierno en

127
En relación con el cuestionamiento central de este trabajo: ¿cómo las estrategias de
la Organización del Tratado de Cooperación Amazónica se ven influenciadas por las
dinámicas de securitización de las políticas de defensa de sus países?, se notan
eslabones muy significativos.

La OTCA, y consecuentemente sus estrategias, actúan de forma subsidiaria y


complementaria a las acciones nacionales (ANTIQUERA, 2006). En el campo de la
seguridad y defensa, ello es muy importante para asegurar la soberanía de cada
Estado.

De acuerdo con la historia, las distintas acciones nacionales en la Amazonía


involucran un modo operacional en lo que la actuación del instrumento militar es
clave. Los militares, por ejemplo, tienen como misión garantizar el desarrollo
sostenible (BRASIL, 2008) y garantizar las prácticas del Vivir Bien (BOLIVIA, 2010).
Así, las dinámicas internas de securitización influencian las demandas por
cooperación de los países amazónicos.

Esas demandas son llevadas a las diversas instancias de la OTCA, que, a través de
la definición de sus estrategias, conforma varias dinámicas de securitización al
marco multilateral.

Considerando que en un proceso de securitización, Buzan et al. (1998) ennumeran


tres unidades de análisis: objetos, agentes y actores funcionales, se puede sintetizar
que, cada Estado miembro de la OTCA, como agente de securitización, posee,
como demandas, dinámicas de securitización, las cuales pasan a cumplir un papel
de actores funcionales en las rondas de negociaciones de la Organización,
influenciando las etrategias, aquí vistas como aquéllas que protegen objetos de
securitización. Ello es corroborado en las categorías estudiadas a partir del análisis
de contenido de cuatro documentos: el Plan Estratégico de la OTCA (2004-2012)
(OTCA, 2004); el discurso de la Secretaria-General (ARTEAGA, 2006) y el acta de la
I Reunión Ministerial de Defensa y Seguridad Integral de la Amazonía de los países
miembros de la OTCA (OTCA, 2006); así como la Nueva Agenda Estratégica de la
Cooperación Amazónica (OTCA, 2010).

la Amazonía. En 2004, el SIPAM acogió en su estructura al SIVAM (Sistema de Vigilancia Amazónica)


(ALVES, 2009; BRASIL, 2012).

128
En la categoría ―Vigilancia y combate a crímenes transfronterizos‖, por ejemplo,
los documentos de defensa de los dos países apuntan a acciones como: ―Instalar
sistemas de vigilancia y control de carácter permanente‖, ―Modernizar los
sistemas tecnológicos de vigilancia y comunicaciones‖, ―Disponer y desarrollar
medios y capacidades de ejercer y mejorar la vigilancia, el control y la defensa‖,
―Integrar el SIPAM‖. Las unidades de contextos a continuación permiten inferir
influencias de esos indicadores:

A fin de disponer de las mejores herramientas para la planificación, así


como para fortalecer la capacidad de análisis de los procesos de cambio
que ocurren en la región que sirvan a la toma de decisiones de los
gobiernos de los países amazónicos y de la propia Secretaría Permanente,
la OTCA gestionará el apoyo con agencias nacionales o regionales, tales
como el SIVAM, IIRSA, y otros, para aprovechar los Sistemas de
Información Geo-referenciada, de Monitoreo y Evaluación ya desarrollados
(OTCA, 2004, p. 68).

Entre esas alianzas se puede mencionar la propuesta de un convenio con el


Gobierno brasileño, por intermedio de la Agencia Brasileña de Cooperación
(ABC), para transferencia de la tecnología y metodología utilizada por el
Sistema de Vigilancia de la Amazonía (SIVAM / SIPAM), para los demás
Países Amazónicos, ejemplo concreto de las amplísimas posibilidades que
pueden ser desarrollada en el marco del privilegiado espacio técnico-político y
de la positiva agenda que caracterizan a la OTCA. (ARTEAGA, 2006, p. 3-4).

El Señor Ministro de la Defensa de Colombia resaltó que con el objetivo de


mejorar las capacidades de interdicción en las zonas de frontera es
recomendable que los países de la región trabajen para diseñar planes
conjuntos de interdicción fluvial y aérea y promuevan la creación de
mecanismos intergubernamentales para el acceso al sistema SIVAM -
SIPAM, determinando la cobertura mínima útil para la información satelital
en zonas de frontera (OTCA, 2006, n. p.).

Desarrollo de un sistema de información integrado con acceso de los Países


Miembros […]. Acceso abierto a la información de la Amazonía generada
por los países (OTCA, 2010, p. 39-40).

Se verifica aquí, clara influencia del actor securitizante brasileño ―Sistema de


Protección Amazónica (SIPAM)‖ en las estrategias de la OTCA. Además, como se

129
puede ver en Matos (2013), se ven conformadas en la OTCA: la idea de vivificación
de fronteras y del incremento de las condiciones de vida; la búsqueda y promoción
del desarrollo sostenible, en sus diversas dimensiones; y la mejora de las
condiciones de infraestructura para sentar la soberanía.

En la categoría ―Identidad‖, algunas estrategias de la OTCA colaboran para el


fortalecimiento de la cohesión nacional de sus países miembros. Al divulgar e
intercambiar experiencias pluriculturales nacionales en el exterior, las diferentes
etnias, capas sociales y pueblos de un país tienden a identificarlas como suyas,
colaborando para la cohesión. Entre ellas, estarían: la prioridad dada a la
participación efectiva de las poblaciones indígenas; la promoción y diseminación de
la cultura de los pueblos; formulación de programas de apoyo a poblaciones
indígenas para enfrentar impactos del cambio climático; generación de material de
cohesión de la población en el respeto a la pluriculturalidad; e intercambio de
actividades para gestión de tierras indígenas (MATOS, 2013).

Sobre la categoría ―Preservación de Recursos Naturales‖, las estrategias influyentes


de las dinámicas de securitización tienden a favorecer las acciones preventivas y
represivas de las Fuerzas Armadas. Serían ellas, en resumen: la construcción de
alianzas; el financiamiento de proyectos de desarrollo sostenible; el fomento a la
investigación científica que incremente métodos alternativos de producción
sustentable; la instalación y modernización de los medios de vigilancia; el incentivo a
la educación ambiental (MATOS, 2013).

5 Conclusión

El análisis de la influencia del proceso de securitización de los países sobre la


estrategia de la Organización del Tratado de Cooperación Amazónica (OTCA) fue el
objetivo general de este trabajo.

En síntesis, cada Estado miembro de la OTCA, como agente de securitización, posee,


como demandas, dinámicas de securitización, las cuales pasan a cumplir un papel de
actores funcionales en las rondas de negociaciones de la Organización, influenciando las
estrategias, aquí vistas como aquéllas que protegen objetos de securitización.

130
En una visión optimista, una vez que la estrategia que contiene elementos de
dinámicas de securitización sea exitosa en el marco multilateral, se crea un ciclo
virtuoso, pues las acciones de la OTCA tienden a optimizar la protección del objeto
securitizado, facilitando la acción del Estado miembro en su tarea nacional de mitigar
vulnerabilidades y amenazas a la seguridad.

En una visión realista, la OTCA debe implementar metodologías más efectivas para
llevar a cabo sus planes y agendas estratégicas, pues poco se nota de beneficio real
en el desarrollo sostenible amazónico. Por ende, los reflejos para las sociedades y
economías locales son parcos. ¿Cuánto a la seguridad y defensa? Permanece la
visión de que ello es un tema sólo para militares.

Por oportuno, cabe destacar que, en su proceso evolutivo, la OTCA casi se tornó un foro
para la defensa propiamente dicha (ver ARTEAGA, 2006; OTCA, 2006). Los problemas
provocados por las vulnerabilidades y amenazas transnacionales se agravaron,
favoreciendo que la ubicación de ese foro para la defensa fuera transferido para la
UNASUR, por medio de su Consejo de Defensa. No obstante, en la OTCA, hay claras
influencias de las políticas y estrategias de defensa de sus países miembros.

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133
Simpósio Temático 2

A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO AGENTE RELEVANTE NA DEFESA E


SECURITIZAÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA

Eugenio Corrêa de Souza Junior62

1 Introdução

A Região Amazônica Brasileira é uma herança da colonização portuguesa que


conseguiu agregar ao Brasil cerca de 61% do seu território. Para tal, foi aplicado, à
época, o princípio internacional do Utti Possidetis que atesta a posse de um território
a quem de fato o ocupa. Um dos fatos históricos dessa ocupação é a expedição de
Pedro Teixeira entre 1636 e 1637 que, segundo Tavares (2011), inseriu-se no
contexto da estratégia portuguesa de criar fortes e unidades político-administrativas,
a fim de exercer a soberania sobre essa região.

Em diferentes momentos da ocupação da Região Amazônica Brasileira, sempre


esteve presente o lado militar, por meio da edificação de fortes, conforme bem
observam Costa e Sudério (2009) e Tavares (2011). Por outro lado, fica evidenciado
que o êxito na manutenção do território foi garantido também pela presença não
militar do Estado, que se traduziu, inicialmente, pela ação política e religiosa dos
jesuítas e, mais tarde, pela ação da administração do Marquês de Pombal.

Costa e Sudério (2009) ressaltam que grande parte do sucesso da ocupação


portuguesa ocorreu devido à capacidade de integrar o índio nas atividades
econômicas da Amazônia. Por sua vez, Tavares (2011) ressalta a habilidade
portuguesa de estabelecer fortes e unidades administrativas em pontos estratégicos
na Região Amazônica. Dessa forma, pode-se dizer que o Estado no passado teve
papel fundamental na ocupação amazônica e que isso ocorreu, também, por meio
da administração pública.

62
CAEM-ECEME

134
Diante do cenário atual, dadasas riquezas que existem na porção brasileira da Amazônia,
qual seria o atual papel da administração pública na defesa e segurança dessa região?

Este trabalho enfoca essa problemática, considerando a percepção dos moradores


das cidades situadas na Região Amazônica, abrangendo, contudo, na pesquisa de
campo apenas os moradores de Marabá-PA.

O objetivo geral deste trabalho é analisar qual o papel da administração pública na


defesa e segurança da Região Amazônica. Ao passo que os objetivos específicos
são: identificar a atual situação da administração pública na região, descreveros
fatores da administração pública na Amazônia e caracterizar a relação entre a
administração pública e a segurança/defesa da Amazônia.

A metodologia empregada é a pesquisa descritiva, utilizando-se da pesquisa


bibliográfica, da pesquisa documental e de uma breve pesquisa de campo.

2 Referencial Teórico

2.1 A ocupação da Amazônia

O Estado teve importante papel na ocupação brasileira do território da Amazônia,


conforme observado por Moura e Moreira (2001). Segundo esses autores, a ação
pública foi mais direta até a crise da década de 1980, consistindo em ações como: a
implantação da Zona Franca de Manaus, a criação do polo de Carajás (interligando,
São Luís, Marabá e Belém) e o fomento da agropecuária (abrangendo o sul do Pará,
o Sul do Maranhão e partes de Rondônia). Cabe ressaltar, inclusive, que com
respeito a agropecuária, houve a tentativa estatal de favorecer a migração de
profissionais oriundos da Região Sul, sendo essas experiências coroadas de êxito
parcial em Rondônia (agricultura) e no Acre (pecuária).

Moura e Moreira (2001) defendem a visão de que a partir de 1980, esse processo de
ocupação não foi conduzido pelo Estado, mas seguiu a chamada ―lógica de
mercado‖. Por esse motivo, o aumento populacional que ocorreu não promovia mais
a integração entre as federações e cidades da Região Amazônica. Dessa forma, o
intercâmbio entre as localidades amazônicas ocorreu em menor grau, sendo
patrocinada por iniciativas dos governadores dos estados locais. Em consequência

135
disso, houve um isolamento da população rural, fazendo com que esta migrasse
para as cidades da região.

O aumento urbano citado por Moura e Moreira (2001) provocou problemas sociais,
envolvendo entre outros grupos, crianças e adolescentes, fenômeno registrado pela
investigação de Simões (1997). O referido autor menciona, entre outros males, a
prostituição infantil, a desnutrição, a gestação prematura, o baixo índice de escolaridade
e o uso quase que escravo da mão de obra infantil. Simões (1997) atribuiu a
responsabilidade desse cenário à falta de presença do Estado Brasileiro, que deixou de
proporcionar a infraestrutura de serviços sociais necessárias na região.

É importante observar que tanto Moura e Moreira (2001), como Simões (1997),
concordaram que é a ação coordenada e deliberada do Estado brasileiro, o caminho
para desenvolvimento e integração da região amazônica. Moura e Moreira (2001)
sustentam seus argumentos no crescimento significativo dos adensamentos
populacionais urbanos, ao mesmo tempo em que as localidades rurais decrescem.
Por sua vez, Simões (1997) apresenta que os pequenos avanços sociais existentes
na região, na área da educação, são frutos da iniciativa governamental que é,
segundo o autor, quem detém a capacidade de intervir com eficácia, na melhoria da
condição de vida da população.

Sobre a ótica da Defesa, é interessante observar que Moura e Moreira (2001) alerta
que o processo de desenvolvimento e ocupação da Amazônia deve ser realizado
sob o princípio do desenvolvimento sustentável, considerando as pressões
internacionais. Além da questão da sustentabilidade, segundo Moura e Moreira
(2001) é preciso vencer as pressões externas para que a Amazônia Brasileira
permaneça como a reserva intocável do mundo.

2.2 A Região Amazônica, problemas e Políticas Públicas

Segundo Silva e Mesquita (2010), a questão agrária na Região Amazônica é um


problema oriundo da visão reducionista do desenvolvimento do país, que não foi
capaz de entender as particularidades das regiões distantes dos grandes centros.
Para os autores, a agricultura familiar, a pesca artesanal e o extrativismo foram

136
prejudicados na Amazônia, com a adoção do Brasil ao modelo da descentralização e
da não intervenção do Estado, a partir da abertura comercial proposta pelo
Consenso de Washington. Para Silva e Mesquita (2010) sem o amparo do governo,
o pequeno produtor teve dificuldades em manter sua produção, gerando tensões
regionais, advindas da redução do emprego e da segurança alimentar.

É interessante observar que Silva e Mesquita (2010) não negam que houve um maior
desenvolvimento econômico da Amazônia a partir do avanço da fronteira agrícola do
país que chegou na Região. A maior crítica dos autores está relacionada com o uso da
terra por grandes produtores em detrimento do pequeno produtor, fato esse que causou
diversas tensões sociais. A produção de soja e pecuária nos estados amazônicos,
segundo Silva e Mesquita (2010) não melhorou a condição de vida de pequenas
comunidades, prejudicando o adensamento populacional nos vazios demográficos.

Silva e Mesquita (2010) chamam atenção para o passivo ambiental e os problemas


sociais na Amazônia, oriundos da falta de ação da administração pública na
regulação e condução da atividade agrícola na Região. Silva e Possui (2012)
compartilham esse entendimento, criticando a atuação do Estado, mesmo quando
há a ação direta deste em políticas de crédito rural, como é o caso do Programa de
Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA) e o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).

Cabe ressaltar, que Silva e Possui (2012) consideram que durante o regime militar
houve uma forte centralização das políticas públicas para a Amazônia. Por outro
lado, Silva e Possui (2012) admitem que após esse período, houve a participação de
mais atores na formulação das políticas mas que isso não gerou avanços mais
concretos. A falta de consenso, o uso político de créditos e a incapacidade de se
efetuar planejamentos são apresentados como causas desse insucesso pelos
autores. Como consequência disso, segundo Silva e Possui (2012) há os problemas
de ―grilagem‖ de terra, principalmente no sul do Pará e as tensões sociais já
mencionados por Silva e Mesquita (2010).

O insucesso do PRONAF, segundo Silva e Possui (2012) reside, entre outros


fatores, a incapacidade do Estado compreender as necessidades do agricultor rural.
Para os autores, não basta simplesmente executar o assentamento e financiamento

137
de pequenos agricultores de forma pouco coordenada. É necessário haver uma
ação descentralizada do governo, viabilizando a inserção desse pequeno agricultor
no mercado. Dessa forma, segundo Silva e Possui (2012) a administração pública
local tem um papel relevante na solução eficaz para o desenvolvimento da
agricultura familiar na região.

Ao observar as políticas contemporâneas para a Amazônia, é interessante


considerar o trabalho de Quintlr, Bohrer e Irving (2011). Na investigação desses
autores, ficou demonstrado que as políticas públicas contemporâneas são o
resultado da disputa de quatro correntes acerca da exploração da região. Esses
grupos, segundo os autores, influenciam as ações do Estado, sendo caracterizados
como: a tendência desenvolvimentista, a tendência mercantilista da natureza, a
tendência preservacionista e a tendência socioambiental.

Quintlr, Bohrer e Irving (2011) alertam para a relevância da ação governamental na


região Amazônica, pois segundo os autores, trata-se de um local de fronteira, em
que as relações sociais não estão completamente estabelecidas. Esse cenário
propicia tensões sociais constantes, que acabam gerando dificuldades para que haja
um consenso em torno de temas como a exploração de recursos naturais, por
exemplo. Em consequência disso, as políticas públicas contemporâneas apresentam
propostas contraditórias com pouca efetividade.

No estudo de Quintlr, Bohrer e Irving (2011) foram analisados três políticas públicas
do governo federal na Amazônia, o Programa Áreas Protegidas da Amazônia
(ARPA), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Plano Amazônia
Sustentável (PAS). A análise dessas políticas públicas, segundo os autores,
demonstra a presença e as contradições das quatro correntes, já mencionadas,
anteriormente, acerca da forma de exploração da Amazônia.

Na ARPA, verifica-se a tendência para a corrente preservacionista. Quintlr, Bohrer e


Irving (2011) demonstram essa realidade por meio da ênfase dada na ARPA a
manutenção e ampliação das Unidades de Conservação (UC) na região Amazônica.
É importante verificar, nesse caso, que embora a ARPA, contemple a hipótese dos
habitantes locais serem ouvidos, acerca da demarcação das UC, por outro lado, há
a previsão dessa ―opinião‖ não ser considerada, mesmo que seja oriunda de

138
instrumentos como o plebiscito. Quintlr, Bohrer e Irving (2011) também enfatizam
que há expressivo financiamento, envolvendo além do Estado, diversas
Organizações Não Governamentais (ONG).

Por outro lado, o PAC na Amazônia, como o próprio nome sugere, relaciona-se com
a corrente desenvolvimentista. Segundo Quintlr, Bohrer e Irving (2011), o PAC na
região pretende aprimorar três áreas, a logística (voltada principalmente para a
pavimentação de estradas com vista ao escoamento de commodities), a energética
(com a criação de usinas hidrelétricas e linhas de transmissão, incluindo gasodutos)
e a social/urbana (relacionadas com a melhoria do saneamento básico e a solução
do problema habitacional).

Há críticas, segundo esses autores, à intervenção do PAC na área logística, devido


ao desmatamento e as tensões pela posse de terra, na construção das rodovias. De
forma semelhante, na área energética há problemas ambientais envolvidos e
comunidades insatisfeitas, cenário que é agravado pela circunstância de que a
energia gerada na Amazônia não seria aproveitada na região rural e sim, nos
grandes centros, como São Paulo. Sendo assim, na intervenção do PAC, apenas a
área social/urbana alcançaria o consenso como política federal inteiramente
benéfica para a região amazônica.

Por fim, Quintlr, Bohrer e Irving (2011) afirmam que o PAS se configura numa
política pública que tenta conciliar as correntes conflitantes. Essa conciliação, no
entanto, não buscou um ponto de equilíbrio, nas vertentes do PAS, mas privilegia
uma ou outra corrente, em determinada área. Como resultado disso, segundo os
autores, há posições contraditórias no escopo geral do PAS, além de poucas ações
efetivas descritas no documento. Dessa forma, o PAS foi relegado a uma política
secundária, tornando-se não uma política de consenso, mas apenas uma forma de
minimizar os impactos das ações públicas ligadas a corrente desenvolvimentista na
Amazônia.

Dentre as políticas públicas para a Amazônia, Superti (2011) afirma que o Sistema
de Proteção a Amazônia (SIPAM) e o Programa Calha Norte (PCN) transformaram-
se de uma perspectiva que abrangia apenas a segurança e a defesa para englobar,
também, a área de infraestrutura regional. Segundo a autora, graças a essa

139
mudança é que algumas localidades podem ser atendidas no financiamento de seus
projetos de desenvolvimento, haja vista que ocorre a complementação do Fundo de
Participação dos Municípios (FPM), que, em alguns casos, era a principal fonte de
recursos na unidade administrativa.

Superti (2011) chama atenção para o fato de que o papel do SIPAM e do PCN tem
se mostrado mais relevante na Amazônia. Isto não ocorre, em maior parte, devido a
melhoria direta na defesa, mas principalmente devido a viabilização da melhoria na
área de transporte, comunicações e energia que são uma carência da região. Dessa
forma, o SIPAM e o PCN, segundo a autora, contribuem para a fixação do brasileiro
no espaço amazônico.

2.3 Defesa e segurança na Região Amazônica

Na Amazônia Brasileira, a maior presença do Estado é do Exército, segundo o que


defende Monte (2009) em sua investigação. Para esse autor, essa característica
reacende o debate entre a visão de defesa e securitização. É importante observar
que, segundo Monte (2009), a presença do Estado sendo feita prioritariamente pelo
Exército, pode ensejar o risco de enxergar a militarização como sendo a solução
para a Região Amazônica.

Franklin (2012) afirma que a ausência do Estado na Região Amazônica tem raízes
históricas, que remontam a época de formação dos países sul-americanos. Segundo
o autor, as coroas espanhola e portuguesa não deram maior importância a
Amazônia, devido a falta de uma atividade econômica que fosse suficientemente
rentável para os colonizadores. A única exceção seria o interesse, de Portugal e
Espanha, pelo controle da Foz do Rio Amazonas.

Junior e Nobre (2012) destacam que o Brasil passou recentemente a dar maior
importância a Região Amazônica. Nesse sentido, convergem para a visão de Monte
(2009), apontando o protagonismo do Exército Brasileiro (EB) tanto no tocante aos
aspectos de defesa, como aos relacionados à segurança. Como fator motivador para
essa postura, Junior e Nobre (2012) destacam que embora a América do Sul seja
considerada uma área pacífica, os últimos conflitos da região estão quase sempre

140
em áreas da Região Amazônica. Como exemplo disso, há o caso do combate as
Forças Armadas Revolucionárias Colombiana (FARC), na Colômbia e a ação do
Grupo Sendero Luminoso, no Peru.

Franklin (2012) afirma que a maior importância a Região Amazônica, defendida por
Junior e Nobre (2012) teria ocorrido a partir do Governo do Presidente Sarney.
Segundo Franklin (2012) é a partir desse período que há uma mudança da
importância estratégica para o Brasil, da Bacia do Prata para a Bacia Amazônica.
Isso teria ocorrido, entre outros fatores, devido a maior aproximação do Brasil com a
Argentina, diminuindo as tensões na Região do Prata.

A preocupação com a ingerência externa é outro motivo para que o Brasil passe a se
importar mais com a Região Amazônica. Segundo Franklin (2012), as intervenções de
atores externos, como os Estados Unidos da América (EUA) na Região, em ações
como o Plano Colômbia, trouxeram preocupações extras, no tocante à manutenção da
soberania brasileira na Amazônia. É importante nesse caso verificar, que o pretexto
para as ações externas foram às instabilidades ligadas a problemas de securitização,
tais como a insegurança da população, o narcotráfico e a guerrilha.

Franklin (2012) destaca que essa preocupação com a soberania brasileira é


reforçada por problemas de segurança interna. Entre eles, avultam de importância, o
desmatamento e o garimpo ilegal. A ausência de capacidade do Estado em resolver
essas questões serve de pretexto na comunidade internacional, para que o Brasil
relativize a posse de sua porção Amazônica.

Segundo Monte (2009), o Exército Brasileiro (EB) na Região Amazônica acaba por
fazer a interface entre Defesa e Segurança. Isso ocorre porque, a missão principal
do EB está relacionada à Defesa, mas há a previsão constitucional de atuação em
missões subsidiárias. As missões subsidiárias são por sua natureza, ligadas a
questões de segurança, dessa forma tem-se o fenômeno na Amazônia de um
agente de Defesa que participa ativamente, como representante do Estado, em
ações de segurança. Entre as missões subsidiárias está, por exemplo, o apoio a
órgãos como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA).

141
Cabe ressaltar que Monte (2009) afirma que a própria visão do EB sobre Defesa na
Amazônia por si só favorece essa interface entre Defesa e Segurança na Amazônia.
Além das já mencionadas missões subsidiárias executadas pelos pelotões de
fronteira, o EB, segundo Monte (2009), na sua visão de Defesa, tem interesse na
preservação das florestas e na manutenção das formas de vida tradicionais.
Segundo o autor, a preservação favorece o combate em ambiente de selva, por
parte do EB. Em consequência disso, sob a ótica de Monte (2009), a Amazônia
Brasileira pode representar o fenômeno de interligação entre a alta e a baixa política,
nas relações internacionais, que é atinente, respectivamente, aos assuntos externos
e aos assuntos internos.

3 Referencial Metodológico

Este trabalho desenvolveu-se por meio de pesquisa descritiva e explicativa. Para tal,
além da fundamentação teórica utilizou-se de uma pesquisa de campo. Essa
pesquisa de campo foi executada por meio de questionário estruturado. A primeira
parte do questionário continha dez quesitos fechados, (cada um desses itens
relacionado com uma área de atuação da administração pública), com cinco níveis
de resposta na escala Likert. Na segunda parte do questionário, foi solicitado que os
respondentes pudessem elencar quais, dentre esses dez itens de atuação da
administração pública, seriam as maiores necessidades locais, limitando-se a
escolha a apenas três. Finalmente, foi perguntado aos respondentes se a Amazônia
seria ou não mais bem administrada pelos estrangeiros.

A amostra dessa pesquisa foi de 202 (duzentos e dois) respondentes, todos


moradores de Marabá-PA. A seleção dos sujeitos foi por conveniência, abrangendo
os seguintes Bairros: Nova Marabá, Cidade Nova e São Félix. Os questionários
foram aplicados somente em pessoas maiores de 18 (dezoito) anos, entre os meses
de março e abril de 2013.

142
O tratamento dos dados seguiu o método quantitativo, com pesquisa survey. Dessa
forma, procedeu-se, inicialmente, a uma Análise Fatorial, seguindo-se adiante com
uma Regressão Logística Binária. Como ferramenta de processamento, utilizou-se o
programa SPSS 14.0.

As limitações do estudo ocorrem, principalmente, no tocante a seleção da amostra.


A seleção não probabilística pode prejudicar os resultados. De forma semelhante,
em se tratando de Amazônia, seria necessário estender a coleta em outras cidades,
como Manaus-AM e Santarém-PA, a fim de que fosse permitido fazer
generalizações mais confiáveis. Contudo, os resultados da pesquisa servem de
parâmetro para avaliação na região considerada, dado os testes estatísticos que
foram realizados. Ou seja, os resultados são confiáveis, ainda que não possam ser
generalizados.

As hipóteses da presente investigação foram as seguintes:

H1 Existem fatores que representam a atuação da administração pública na Região


Amazônica.

H2 É possível estabelecer um modelo que preveja a receptividade da população


local a uma administração estrangeira na Região Amazônica, com base na
percepção das carências da atuação do Estado.

4 Análise dos Resultados

4.1 Apresentação dos resultados

A coleta de dados proporcionou 202 (duzentos) e dois questionários válidos.


Inicialmente, procedeu-se a estatística descritiva das respostas, considerando
apenas os quesitos que compunham o construto administração pública.

143
Tabela 1- Estatística descritiva

Desvio
Variáveis N Mínimo Máximo Média
padrão
Sal 202 1 5 2,005 0,93307
Seg 202 1 5 2,1436 1,02902
Fir 202 1 4 2,3317 0,89991
Edu 201 1 4 1,806 0,85858
Sab 202 1 3 1,4505 0,65413
Trp 202 1 5 2,3663 1,03878
Mor 202 1 5 2,2277 0,98123
Tlc 202 1 5 2,0396 1,05492
Emp 202 1 5 2,8267 0,99485
Laz 202 1 5 2,4505 1,05568
Fonte: Elaboração própria

Em seguida, verificou-se a confiabilidade interna do construto, usando o Alfa de


Cronbach, a fim de se verificar se as variáveis eram suficientes para avaliar a
administração pública, segundo o recomendado por Hair et. al. (2005). Valores
abaixo de 0,5 invalidam a pesquisa, segundo Hair et. al. (2005), sendo desejáveis
valores acima de 0,7. Na pesquisa, em questão o valor inicial encontrado foi de
0,855, estando bem acima do recomendado.

Prosseguindo-se no tratamento dos dados, foi procedida a análise fatorial, surgindo


três fatores que explicaram 64,789% da variância total, contudo, havia variáveis
pertencentes a dois fatores. Dessa forma, procedeu-se a redução de fatores e a
eliminação das variáveis, saúde (sau), educação (edu) e moradia (mor), pois elas
pertenciam a dois fatores. Com esse procedimento, obteve-se um Alfa de Cronbach
de 0,787, explicando-se 42,980% da variância total do construto administração
pública. Dessa forma, confirmou-se estatisticamente a hipótese H1 da investigação.

Tabela 2- Fatores e variáveis

Factor
1 2
fir 0,727
laz 0,667
trp 0,65
emp 0,543
seg 0,478
sab 0,836
tlc 0,439
Fonte: Elaboração própria

144
O Fator 1 foi o mais relevante, explicando 28,372% da variância total, sendo
denominado Necessidades Pessoais. Por sua vez, o Fator 2, explicou 14,608% da
variância total, sendo denominado, Infraestrutura. Destacam-se nesse contexto, as
variáveis mais importantes de cada fator, sendo elas, o apoio ao produtor rural (fir) e
o saneamento básico (sab) com carga de, respectivamente, 0,727 e 0,836.

Ao indagar aos entrevistados acerca de quais as maiores necessidades locais na


área da administração pública, obteve-se o resultado abaixo:

Tabela 3- Fatores e variáveis

1º prioridade 2ª prioridade 3ª prioridade Totais


Saúde 37,62376 21,78218 19,80198 26,40264
Segurança 5,445545 14,85149 13,36634 11,22112
Apoio ao Produtor Rural 0 0 0 0
Educação 18,31683 25,24752 25,24752 22,93729
Saneamento Básico 20,79208 20,29703 16,83168 19,30693
Transporte 0 1,485149 2,475248 1,320132
Moradia 6,930693 5,940594 7,425743 6,765677
Telecomunicações 3,465347 3,960396 3,465347 3,630363
Emprego 6,435644 5,940594 7,920792 6,765677
Lazer 0,990099 0,49505 3,465347 1,650165
Fonte: Elaboração Própria

A última parte do tratamento dos dados teve como objetivo verificar qual a
relação existente entre as respostas sobre as prioridades das necessidades locais
de atuação da administração pública com a resposta ao quesito, que indagava se a
Amazônia seria mais bem administrada pelos estrangeiros. De um total de 202
(duzentos e duas) respostas válidas, 10 (dez) respondentes disseram que sim, a
Amazônia seria mais bem administrada pelos estrangeiros, enquanto 192 (cento e
noventa e dois) afirmaram que não. Dessa forma, foi executada uma regressão
logística, que avalia a chance de um determinado fenômeno ocorrer, no caso
específico, achar que a Amazônia seria mais bem administrada por estrangeiros.

O Omnibus Tests of Model Coefficients é usado para testar a hipótese nula de que a
inclusão das variáveis no modelo não aumenta a capacidade de predição, sendo
rejeitada quando a significância é superior a 0,01. Como, no modelo em questão, a

145
significância foi de 0,14, pode-se afirmar que as variáveis utilizadas aumentam a
capacidade de prever que a opinião de alguém seja de que a Amazônia seria mais
bem administrada por estrangeiros.

Outro teste que foi executado no modelo foi o Hosmer-Lemeshowque testa a


hipótese nula de que o modelo se ajusta bem aos dados. Dessa forma, quando há
significância estatística (p<0,05), tem-se que o ajustamento é ruim. No caso em
questão, foi obtido 0,945 para o Hosner-Lemeshow, indicando bom ajustamento.

O modelo obtido foi capaz de prever corretamente 97% das respostas. Em termos
de totais, de 202(duzentas e duas) respostas válidas, o modelo apresentou acerto
em 196 (cento e noventa e seis) vezes. Por esse motivo, pode-se dizer que o
modelo tem uma boa capacidade de previsão. Sendo assim, confirmou-se a
Hipótese H2 do estudo.

Tabela 4 Variáveis no modelo

Prioridade Escolha Coeficiente


Saneamento Básico 20,408
Educação 21,915
Saúde 18,197
Telecomunicações 2,405

Moradia 19,288
Segurança 1,695
Emprego 2,163
Lazer Irrelevante
Saúde - 0,702
Educação 2,101
Saneamento Básico -18,995
Moradia -15,224
2ª Telecomunicações -20,602
Emprego 1,066
Segurança 1,090
Lazer -17,192
Transporte Irrelevante
Educação 18,481
Saneamento Básico 17,798
Lazer 22,192
Segurança 0,187
3ª Transporte 20,786
Moradia 19,242
Emprego 18,601
Saúde -0,535
Telecomunicações Irrelevante
Constante Valor -41,450
Fonte: Elaboração Própria

146
4.2 Discussão dos Resultados

Ao observar a situação da eficiência da administração pública, segundo o resultado


desta pesquisa, verifica-se que, há uma lacuna significativa em cidades como
Marabá, que estão na Região Amazônia. A estatística descritiva demonstra que em
nenhum dos quesitos referentes a administração pública é considerada eficiente.
Isso pode ser verificado pelo fato de que nenhuma das médias obtidas chegaram a
4, valor que indicaria a concordância da população sobre a eficiência da
administração pública.

Em se tratando da realidade mais crítica, pode-se observar que o Saneamento


Básico, a Educação e a Saúde são as maiores carências na amostra considerada,
apresentado, respectivamente, 1,450; 1,806 e 2,005 de média. É interessante
observar que esses são os quesitos em que o desvio padrão é menor, indicando que
a maioria das opiniões está centrada nessas médias. Por isso, pode-se dizer, a
primeira vista, que estas questões são potenciais focos de instabilidade regional,
contribuindo para aumentar as tensões sociais, o que é prejudicial tanto para a
segurança como para a defesa.

Por outro lado, o Emprego, o Lazer e o Transporte soam como carências menos
urgentes, com as maiores médias, que são respectivamente, 2,826; 2,450 e 2,366.
Isso não quer dizer que há uma satisfação com a administração pública nessas
áreas, sendo inegável, contudo, que representa os itens mais bem avaliados pela
população. Em se tratando da Amazônia, pode-se inclusive justificar essa visão,
quando se verifica que há a migração de outras regiões do Brasil, como o Nordeste,
por exemplo, devido às oportunidades de emprego existentes na Região Norte.

Considerando-se a estatística inferencial, pode-se verificar que existem dois fatores


na percepção da administração pública que devem ser considerados, o Fator
Necessidades Pessoais e o Fator Infraestrutura. As Necessidades Pessoais são
mais relevantes do que a Infraestrutura, conforme demonstrou a Análise Fatorial.
Por esse motivo, as políticas públicas devem considerar a opinião e os anseios dos
moradores das cidades situadas na Região Amazônica, antes de buscar prover a
infraestrutura local.

147
O Fator Necessidades Pessoais é composto, em ordem de prioridade pelo Apoio ao
Produtor Rural, pelo Lazer, pelo Transporte e pelo Emprego. Pode-se verificar nesse
contexto, que a área mais relevante envolve a problemática agrária, que é uma das
grandes questões de segurança e defesa da Amazônia, conforme já observado por
Silva e Mesquita (2010) e Silva e Possui (2012). Também avulta de importância o
Lazer, que, por vezes, é tido como sendo uma necessidade menor da população.
Por outro lado, o emprego é a variável menos significativa no fator, sinalizando, por
exemplo, que se deve conferir maior atenção ao transporte, ao invés de se tentar
novos postos de trabalho.

Ao se analisar o Fator Infraestrutura deve-se considerar que ele é composto apenas


por duas variáveis, o saneamento básico e as telecomunicações. Por isso, mesmo a
Infraestrutura sendo menos relevante do que as Necessidades Pessoais como um
todo, cresce de importância o valor da variável saneamento básico, afinal ela é a
que possui maior carga (0,836) nos fatores. Dessa forma, a importância do
Saneamento Básico que já tinha sido demonstrada na Estatística Descritiva pode ser
novamente comprovada pela Estatística Inferencial.

As três prioridades dos moradores de Marabá-PA que foram elencadas refletem a


preocupação da região com a Saúde, com a Educação e com o Saneamento Básico,
nesta ordem. Este é um bom indicativo das necessidades locais, refletindo os
anseios de parte da população acerca da atuação do Estado.

A regressão logística fornece uma visão específica sobre a segurança e a defesa na


Amazônia Brasileira. Isso ocorre quando se relaciona a percepção dos habitantes
locais sobre a eficiência da administração pública em alguns itens com a visão de
que uma administração estrangeira sobre a Amazônia seria algo desejável. É certo
de que, principalmente para a defesa, não é desejável que os moradores
vislumbrem que estrangeiros seriam capazes de administrar a Amazônia de forma
mais eficiente.

Dentro dessa ótica, verifica-se que a chance de quando os respondentes escolhem


como primeira prioridade a Educação, o Saneamento Básico e a Moradia,
aumentam-se substancialmente as chances de que ocorra a visão de que os
estrangeiros administrariam melhor a Amazônia. De forma semelhante, o fenômeno

148
ocorre quando na segunda prioridade figuram a Educação, a Segurança e o
Emprego. Finalmente, na terceira opção, isto se verifica quando se seleciona o
Lazer, o Transporte e a Moradia.

Fruto dessa análise surge a visão de que se a administração pública tivesse que
priorizar apenas duas áreas, a fim de evitar a ingerência externa na Região
Amazônica, ela deveria ser a Educação e a Moradia. Isso se justifica pelo alto
coeficiente que elas apresentam na chance considerada. É lógico que isso não quer
dizer que devem ser desconsideradas as demais áreas. Aliás, a prioridade da
população, advinda da Estatística Descritiva elenca a Saúde, a Educação e o
Saneamento Básico, nessa ordem, como sendo as ações mais necessárias.

5 Considerações Finais

A presente pesquisa demonstra a importância da administração pública na


segurança e defesa da Região Amazônica. É relevante reconhecer esse aspecto,
pois atualmente, segundo Monte (2009), o Exército Brasileiro (EB) é a maior
presença do Estado na Amazônia. Dito isto, não é razoável, crer que o EB é capaz
de suprir todas as necessidades da população, ou que a segurança e a defesa é um
papel exclusivo das Forças Armadas.

Os dados coletados na investigação demonstram que há uma necessidade de se


melhorar diversos aspectos da administração pública na Amazônica. É interessante
observar que foi possível constatar a relação direta entre a carência de atuação do
Estado com a receptividade local de uma intervenção estrangeira na ―administração‖
da Amazônia. Por esse motivo, embora possa se questionar o tamanho da amostra,
que deveria, por exemplo, englobar outras cidades amazônicas, não se pode
desprezar a constatação inegável da relação entre as carências da administração
pública, e o risco que se tem da população ser simpática a uma administração que
fere a soberania brasileira.

É importante ressaltar, que ações voltadas para a melhoria da administração pública


podem representar o almejado consenso nas políticas públicas para Amazônia,
mencionado por Silva e Possui (2012). Isso pode ser verdade porque a melhoria do

149
serviço público traz ganhos ambientais, sobretudo quando se pensa em questões
como o saneamento básico, por exemplo, ao mesmo tempo em que desenvolve a
região. É bem verdade que para tal, deve se ouvir a população, por meio de
pesquisas que levem em conta as necessidades locais que são peculiares.

Há a necessidade de se ampliar estes estudos, estendendo a pesquisa a outras


cidades. Por esse motivo, o presente trabalho serve apenas como alerta da importância
da administração pública que na Região Amazônica vai além do seu escopo natural,
causando influências diretas na segurança e defesa dessa área tão rica e vasta. Talvez
este seja o momento oportuno de se trazer mais Organizações Governamentais para a
Amazônica, a fim de que ela continue sendo governada pelo Brasil.

Referências Bibliográficas

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151
A DEFESA DA AMAZÔNIA E A ESTRATÉGIA DA RESISTÊNCIA

Fernando Velôzo Gomes Pedrosa63

1 Percepção de Ameaça

O fim da Guerra Fria marcou a década de 1990 com o encerramento do conflito


ideológico leste-oeste e o surgimento de uma nova agenda mundial. Dentre os
temas mais importantes dessa nova agenda estavam os direitos das minorias
étnicas e a questão da preservação ambiental. O desaparecimento do sistema de
esferas de influência (FINNEMORE, 2004) sob a hegemonia das duas
superpotências durante a Guerra Fria trouxe à tona diversos conflitos regionais,
anteriormente ocultos ou contidos pelo enfrentamento ideológico, e deu causa a
lutas entre facções pelo controle de nações ou para imposição do poder central em
países plurinacionais. A ferocidade dessas lutas assustou o mundo, fazendo surgir
teses sobre o dever de ingerência que teriam os países desenvolvidos, quando se
tratasse de preservar os direitos humanos de minorias ameaçadas ou submetidas a
agressões internas e atos de genocídio promovidos pelos governos de seus países
ou por maiorias nacionais (COELHO, 2003).

Durante a década de 1990, surgiram novas interpretações para o conceito de


soberania. Em setembro de 1999, o Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, em um
artigo publicado na revista The Economist, propôs uma nova interpretação para o
conceito de soberania. Para ele: ―um conceito de soberania é orientado em torno do
Estado e o outro em torno das pessoas‖. Isso não significava que a soberania se
tornava menos relevante. ―Ela continuava como o princípio ordenador dos assuntos
internacionais. Entretanto, a soberania do povo tinha precedência sobre a soberania
do soberano‖ (ANNAN, 1999, p. 49-50). Essa mudança de interpretação da
soberania estava associada à emergência do conceito de segurança humana,
decorrente do ―crescente reconhecimento mundial de que os conceitos de

63
Instituto Meira Mattos, Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

152
segurança devem incluir não só os Estados, mas também as pessoas‖ (ICISS, 2001,
p. 15).

Novas interpretações de conceitos tradicionais como soberania e segurança


produziram uma tendência a intervenções humanitárias e levaram a ONU a autorizar
o emprego de forças militares internacionais na Somália (1992), no Haiti (1994), na
Bósnia-Herzegovina (1995) e em diversos outros países.

Paralelamente a esses desenvolvimentos da política internacional, o mundo passou


a dedicar maior atenção às questões ambientais e particularmente à preservação da
região amazônica, por ser a maior floresta equatorial do mundo e seu maior banco
genético. Entre o final dos anos 80 e o início da década de 1990, diversas
autoridades dos países mais ricos e desenvolvidos expressaram opiniões que
punham em dúvida a capacidade de o Brasil e outros países condôminos da Região
Amazônica conterem a devastação ambiental na região. As por eles propostas
apresentadas incluíam soluções que iam da gestão compartilhada da Amazônia ao
questionamento da soberania dos países amazônicos sobre tal patrimônio
(BARRIONUEVO, 2008; LÓPEZ, 1999).

Em 2001, o escritor francês Pascal Boniface publicou um livro intitulado Les Guerres
de Demain, no qual afirmava que:

O governo brasileiro decidiu, no início dos anos noventa, subvencionar o


desmatamento das florestas amazônicas, ameaçando sua integridade. A
Amazônia certamente pertence ao Brasil. Mas, se as potencias ocidentais
fizeram uma exceção ao sacrossanto princípio da soberania dos estados
para fazer a guerra na Iugoslávia e ajudar os kossovares (quando o
Kossovo pertencia a Iugoslávia), por que razão não se faria o mesmo contra
o Brasil para se apropriar da Amazônia? O pretexto não seria mais a
proteção de uma população, mas agora de toda a espécie humana. A
Amazônia sendo o pulmão da terra, se o Brasil não a protege corretamente,
isto torna-se um dever de outros estados: proteger a Amazônia (BONIFACE
apud SILVA, 2005).

Por essa época, crescia no Brasil um movimento indígena fortemente promovido ou


apoiado por organizações religiosas e não-governamentais, nacionais e,
principalmente, estrangeiras. Esse movimento lutava pelo reconhecimento do direito

153
das populações indígenas às suas terras ancestrais e à preservação de suas
culturas.

Todos esses fatores despertaram a atenção de parte dos órgãos de imprensa, de


lideranças políticas e das Forças Armadas brasileiras, particularmente o Exército. Do
ponto de vista brasileiro, estava-se criando, na opinião pública mundial, um ambiente
que considerava a preservação do meio ambiente na região amazônica e a
autonomia de comunidades indígenas questões de interesse internacional que
ultrapassavam os limites da soberania dos países amazônicos. Para muitos
brasileiros, as posturas e afirmações de autoridades estrangeiras em relação à
Amazônia eram vistas como uma declaração de guerra (BITENCOURT, 2002).

Para o Exército Brasileiro parecia evidente que se configurava uma nova ameaça à
soberania nacional sobre importante parcela do território nacional – parcela essa
que durante séculos fora mantida quase exclusivamente pela presença militar
(LÓPEZ, 1999; BITENCOURT, 2002). Se havia uma ameaça, mesmo que remota ou
improvável, a instituição sentia-se obrigada a propor uma resposta capaz de se
contrapor a ela. Estava lançado o desafio: o de como reagir a uma intervenção
militar na região amazônica por uma potência ou coalizão de potências cujo poder
militar fosse incontestavelmente superior a tudo que as Forças Armadas brasileiras
pudessem desdobrar em campanha.

Baseando-se em exemplos históricos de lutas de nações pobres e fracas contra


grandes potências militares, o Exército Brasileiro vislumbrou o emprego daquilo que
o general Beaufre (1998) chamou de manobra pela lassidão, dentro de uma
estratégia indireta. O próprio Brasil já havia experimentado essa forma de guerra
durante as lutas contra os holandeses no Nordeste durante o século XVII. Em 1993,
a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército incluiu entre seus temas para
pesquisa a Estratégia da Lassidão. A partir daí, verificou-se grande mobilização em
torno do tema, resultando em inúmeros seminários, debates e exercícios táticos de
diversos níveis promovidos pelo Comando Militar da Amazônia. A expressão
lassidão64, pouco comum na língua portuguesa, foi substituída por resistência, que
além de ser mais compreensível, é de uso corrente e expressa com maior clareza a

64
De acordo com os principais dicionários brasileiros da língua Portuguesa, tem o sentido de prostração de
forças, cansaço, esgotamento, fadiga.

154
estratégia proposta. O desenvolvimento da doutrina, entretanto, iniciou-se no nível
tático, e jamais chegou a oferecer uma completa integração com os níveis
estratégico e político.

O presente trabalho explora a literatura sobre o tema e, a partir do exame de casos


históricos de guerras de resistência, esclarece sua aplicabilidade como uma
estratégia proposta pelo Exército Brasileiro.

2 Concepção da Estratégia da Resistência

Convém, de início, que seja examinado o conceito de guerra de resistência. Essa é


uma questão fundamental porque condiciona o entendimento da natureza do
conflito, que será, por sua vez, o ponto de partida para a definição dos objetivos
políticos e da estratégia a serem adotados.

A guerra de resistência pode ser entendida como uma guerra de libertação nacional.
De acordo com João Carlos Gonçalves Caminha, o termo resistência, no seu sentido
amplo,significa a contestação ao controle político, exercido por um Poder em dada
região (CAMINHA, 1980). Segundo este entendimento, a resistência é o movimento
que surge naturalmente nas nações sob a ocupação de um inimigo vitorioso ou
sob regime colonial (CAMINHA, 1980, grifo nosso). Esse entendimento faz da
expressão guerra de resistência um sinônimo para guerra de libertação nacional.

A Doutrina Militar de Defesa brasileira entende a guerra de resistência como uma


das formas de guerra irregular, e a define como um conflito armado em que
nacionais de um país ocupado por outro país ou coligação de países, total ou
parcialmente, lutam contra o poder de ocupação para restabelecer a soberania e a
independência preexistentes (BRASIL, 2007, grifo nosso). Esse documento oficial
distingue claramente a guerra de resistência de duas outras categorias de guerras
irregulares, a saber: guerra insurrecional e guerra revolucionária. Essa classificação
comete o equívoco frequente nas tentativas de estabelecer tipificações em um
campo tão complexo da atividade humana como a guerra. Não se dá conta de que
as guerras de resistência frequentemente assumem a feição de guerras
revolucionárias ou de insurreições.

155
A 3ª edição do Manual de Campanha C 124-1 Estratégia, publicado pelo Estado-
Maior do Exército em 2001, define guerra de resistência como

a forma de guerra na qual as Forças Armadas de um país militarmente fraco


emprega táticas de guerrilha, ou forças irregulares, para resistir e expulsar
um invasor militarmente mais poderoso, contando com o apoio da totalidade
ou de parcela ponderável da população (BRASIL, 2001, p. 3).

Percebe-se aqui uma clara incongruência entre o conceito descrito na Doutrina


Militar de Defesa e o adotado pelo Exército em seu manual de Estratégia: enquanto
o primeiro fala na luta de nacionais de um país ocupado para restabelecer sua
soberania e independência, o segundo fala em uma guerra conduzida por forças
armadas de um país fraco para resistir ou expulsar os invasores com o apoio da
população.

3 Fragilidades Conceituais e Históricas

A proposta de uma estratégia da resistência prescrita no manual de Estratégia do


Exército Brasileiro parte de um equívoco fundamental, ao considerar que a guerra de
resistência seria travada pelo Estado Brasileiro contra um agressor estrangeiro. Na
verdade, a resistência é a luta das nações sob a ocupação de um inimigo vitorioso
ou sob um regime colonial. Em tais circunstâncias, está claro que o país agredido foi
militarmente derrotado e subjugado politicamente, sendo compelido a aceitar um
compromisso com o agressor ou a ser administrado pelas forças invasoras. Em
ambos os casos, o estado de beligerância foi encerrado pela vitória do agressor. É a
partir desse ponto que surge a resistência, por meio de um movimento não-estatal e
ilegal, que não aceita o compromisso assumido com o agressor, nem a legitimidade
de um governo que aceitou a submissão.

O segundo equívoco da proposta Estratégia da Resistência é considerar o uso, pelo


Exército Brasileiro, de ações não convencionais e inovadoras e que essas ações
poderão ser conduzidas por forças regulares, atuando fora dos padrões operacionais
da guerra convencional (BRASIL, 2001). Este raciocínio inverte a lógica da guerra,
pois condiciona a natureza da guerra ao uso de um determinado método de ação. O
uso de táticas de guerrilha não transforma uma guerra entre Estados em guerra

156
irregular. A guerra continuará sendo travada sob as limitações morais e legais de
uma guerra interestatal. Sintomaticamente, o próprio Manual C 124-1 Estratégia
recomenda uma postura ética e humanitária no trato com o oponente, e estabelece
como premissa que as ações devem ser conduzidas em território nacional (BRASIL,
2001), posturas típicas de um Estado que reconhece e submete-se às convenções
internacionais de guerra.

A proposta do manual de Estratégia do Exército também falha ao não reconhecer


que a vantagem do insurgente reside na assimetria entre os beligerantes. Como
David Galula já havia percebido no início da década de 1960, após tomar parte nas
operações de contra-insurreição na Argélia, essa assimetria deriva da própria
natureza da guerra, da desproporção de poder entre os oponentes e da diferença
essencial entre seus trunfos e responsabilidades. Se, por um lado, o contra-
insurgente tem uma enorme vantagem no campo material, por outro, a vantagem
dos insurgentes repousa nas vantagens ideológicas de sua causa. Ao mesmo
tempo, as forças da contra-insurreição têm a pesada responsabilidade de manter a
ordem e apegar-se estritamente às leis que elas têm o dever de defender, enquanto
os insurgentes têm total liberdade para atacar o status quo em todos os campos,
pois, não estando ligado a qualquer Estado, não tem o dever de ater-se a leis ou a
compromissos (GALULA, 1964).

Além dessas, podem-se identificar uma série de fragilidades conceituais e de


perspectiva histórica nas formulações expressas nos documentos militares
brasileiros, como se verá a seguir.

 Dilema entre Poupar forças ou submeter-se à destruição – Diante da


hipótese de o Brasil ter que fazer frente a uma agressão advinda de potências ou
coligações de potências dotadas de incontestável superioridade militar, surge a
indagação acerca da postura a ser adotada quando da invasão. Enfrentamento,
arriscando-se ao aniquilamento, ou economia de forças a fim de empregá-las em
uma futura guerra de resistência?

A Estratégia Militar de Defesa (1ª Ed.), publicada em 2002, preconizava o


enfrentamento astuto, voltado para o desgaste máximo das forças invasoras
(BRASIL. 2002a). Tal atitude, que provavelmente cooptaria o apoio popular para as
futuras ações da guerra de resistência, embora adequada, merece ser bastante

157
avaliada quanto a sua amplitude e duração. O seu Cap III prescrevia que o esforço
reativo inicia-se com a adoção de medidas de defesa contra as forças agressoras
antes de efetivarem a agressão militar ao território ou a bens nacionais (BRASIL.
2002a). Entretanto, opor-se a forças militares dotadas de modernas tecnologias e
apoiadas por considerável arcabouço logístico não é tarefa simples, como ficou
evidente na Guerra do Golfo Pérsico, em 1991, na Guerra do Iraque, em 2003, e na
Guerra do Kosovo, em 1999. Nos dois primeiros casos, as forças militares
iraquianas sequer tiveram como opor resistência às forças das coalizões
internacionais lideradas pelos EUA, desintegrando-se praticamente sem luta. No
caso do Kosovo, a campanha aérea movida pela OTAN forçou a Iugoslávia a
atender integralmente as exigências daquele organismo de segurança, sem que
fosse necessária sequer a intervenção de forças terrestres.

Assim sendo, a lógica puramente utilitarista recomendaria evitar a confrontação


desde o início da intervenção estrangeira, poupando forças para a futura guerra de
resistência. Entretanto, que autoridade moral perante a sociedade brasileira teriam
Forças Armadas que se pouparam no enfrentamento de uma agressão? Como
poderiam essas forças liderar um futuro movimento de resistência?

Deve-se enfatizar o quão importante será uma atitude ofensiva diante do agressor –
a despeito das perdas que possam resultar para as Forças Armadas brasileiras –, no
intuito de elevar o moral nacional e catalisar o sentimento de repulsa à agressão e o
desejo de resistir a qualquer custo, alicerces do esforço de resistência. As
consequências materiais dessa atitude serão a virtual destruição das forças militares
e suas estruturas de apoio.

 Dilema de lealdade – Duas situações poderão advir na hipótese da derrota num


conflito inicial contra forças invasoras de uma potência ou coalizão dotada de
incontestável superioridade militar. Em consequência dos graves reveses militares
sofridos, e privado de suas forças militares, o governo brasileiro poderia seria
obrigado a submeter-se à vontade do agressor e, mediante armistício, a aceitar
regras de convivência com o poder de ocupação, havendo, neste caso, a
possibilidade de continuarem exercendo soberania em todo o restante do País (zona
livre), exceto na área invadida; ou seria destituído do poder, sendo substituído por

158
um governo de ocupação ou um colaboracionista. Ainda que se encontrem
vantagens no primeiro dos casos, em ambos, a consequência para o esforço de
resistência será a mesma: havendo sido derrotado militarmente e aceitado um
compromisso com o agressor, o governo brasileiro estaria legalmente impedido de
agir em força contra o invasor. Tal compromisso implicaria na perda do respaldo do
Estado – ao menos de forma ostensiva – para que as Forças Armadas conduzam a
guerra de resistência.

A hipótese acima não é contemplada na doutrina de resistência proposta pelo


Exército Brasileiro. A ideia de que um governo brasileiro possa submeter-se a um
agressor externo e aceitar suas imposições agride os sentimentos de patriotismo e
de honra, profundamente arraigados nas Forças Armadas e pilares sobre os quais
se assentam os valores militares. No entanto, ela parece ser mais bem ajustada à
realidade histórica do que aquela que atualmente norteia as concepções doutrinárias
referentes à guerra de resistência. Ou seja, a hipótese de que o governo brasileiro
conduziria uma guerra de resistência na área invadida, empregando suas Forças
Armadas, localizadas fora de uma hipotética área de exclusão imposta pelas
potências agressoras. Não parece crível considerar que Governo brasileiro teria tal
liberdade de ação após um sério revés militar. É mais provável que, inconformados
com a subserviência de um governo submetido pelas potências agressoras, líderes
políticos e militares iniciem um movimento de resistência nacional à revelia do
governo.

A partir deste ponto, surge um dilema de lealdade que precisa ser resolvido por cada
soldado: havendo o Estado se submetido ou estando as novas lideranças políticas –
patrocinadas ou impostas pelo invasor – comprometidas com o ―status quo pós-
bellum‖, caberiam ações de resistência conduzidas, ainda que clandestinamente, por
suas instituições militares?

Este trabalho não se propõe a solucionar esse dilema. A qual Estado deve-se
fidelidade? Ao que se submeteu e assumiu compromissos com o agressor? Ou ao
que, em certo sentido, desapareceu com a ocupação, mas procura alternativas de
resistência? Poderão existir razões convincentes para uma boa defesa de ambas as
posições. A atitude a ser assumida pelos cidadãos e soldados parece ser decisão de

159
foro íntimo, subordinada ao juízo individual do conceito de lealdade ao Estado e,
principalmente, condicionada às circunstâncias do momento.

Como será mostrado a seguir, os antecedentes de inúmeros casos históricos de


países ocupados por forças agressoras após uma grave derrota militar apontam
para a tendência de colaboração das autoridades locais, e de suas forças de
segurança, com as forças invasoras.

 Preparo para o emprego da estratégia da resistência – Indiscutivelmente, o


preparo para a guerra é uma tarefa fundamental para a estrutura de defesa de um
país, e uma obrigação do Estado. Esse preparo busca a criação, em tempo de paz,
das melhores condições para a condução de uma eventual guerra. Entretanto, no
caso de uma ocupação estrangeira, toda a infraestrutura e as instituições do país
seriam apropriadas pelas forças invasoras, que as colocariam a seu serviço.
Conclui-se daí que a ideia de preparo do país para a guerra de resistência conduz a
um raciocínio absurdo, pois para que o país tivesse as melhores condições para a
guerra de resistência deveria, desde o tempo de paz, impedir que essa infraestrutura
e instituições fossem criadas e consolidadas. Para que a guerra de resistência
pudesse ser conduzida nas melhores condições seria necessária a destruição das
instituições e da infraestrutura, o incentivo ao crime e à corrupção, e a regressão das
forças armadas ao estágio de bando armado ou de guerrilheiros, o que é um
evidente contrassenso.
 Expectativa de envolvimento pleno da nação – O manual do Exército Brasileiro
IP 72-2 Combate de Resistência estabelece que o envolvimento pleno do Estado e
da Nação Brasileira em todos os campos de Poder Nacional é uma condição
imprescindível para à condução eficiente e eficaz da guerra de resistência (BRASIL.
2002b: 2 e 3). Entretanto, com base na História, tal condição é uma quimera. Não
importa o sentimento da maioria da população, nem quão patriótico seja um povo,
pois a verdade é que apenas uma pequena parcela estará disposta, inicialmente, a
assumir os riscos de apoiar um movimento de resistência. A tendência natural não é
a ação, mas a inércia, a acomodação, conformando-se com a situação de fato. Esse
comportamento ficou comprovado nas lutas da Resistência Francesa, na qual se
estima que apenas 2% da população se envolveram diretamente ou apoiaram as
ações dos resistentes. A grande maioria dos franceses estava claramente

160
conformada em aceitar a servidão. Uma parcela menor dos franceses, porém
bastante significativa, foi ainda mais além, tornou-se cúmplice de seus algozes e
dispôs-se a colaborar ativamente com os alemães no esforço para debelar a
resistência.

Ainda a respeito do envolvimento da nação, vale observar o que argumenta Richard


Clutterbuck, em sua obra Guerrilheiros e Terroristas.

Em média, apenas 1% da população se encontra entre aqueles que estão


realmente decididos a arriscar suas vidas, apoiando a guerrilha. 10% estão
entre aqueles que poderão apresentar preferência por seguir os ativistas de
um lado ou de outro, enquanto 80% procuram por todos os meios e modos
conservar-se e a sua família fora de qualquer envolvimento [...]
(CLUTTERBUCK, 1980, p. 26).

Nada indica que no Brasil a reação venha a incorporar parâmetros diferentes


dos históricos. Insurreições dessa natureza apresentam constantes
insofismáveis que não podem ser ignoradas. Sempre haverá uma maioria de
indiferentes que tenderá a não se envolver, desde que tenha sua rotina,
segurança e interesses mais ou menos preservados. Haverá também
colaboracionistas e aproveitadores, dispostos a qualquer tipo de acordo ou
traição, buscando o atendimento de ambições pessoais dentro da nova ordem
que se venha a instaurar. Haverá apenas uma pequena minoria de resistentes
de primeira hora, abnegados, que insistirão em não se submeter ao invasor,
mesmo na incerteza de que possa vir a colher os frutos de seu sacrifício.

 Luta fratricida – Outro ponto com o qual as Forças Armadas têm dificuldade de
lidar, mas que precisa ser considerado, diz respeito à luta fratricida. Entre outras
motivações, será consequência do dilema de lealdade acima descrito, e pode-se
esperar que o invasor procure explorá-lo inteligentemente. Ao ocupar um país, as
forças invasoras absorvem as forças de segurança locais e suas estruturas de
defesa, inclusive as forças armadas. E, certamente, fará uso dessas forças para
combater a insurgência, com o beneplácito do governo local, seja ele um governo de
compromisso, seja ele um governo de ocupação. Esse fato verificou-se em todas as
lutas coloniais e de libertação ao longo do século XX e neste início do século XXI.
Nas lutas da Indochina, o governo colonial usou grande número de tropas locais

161
contra as forças da resistência vietminh de Ho Chi Minh (KEEGAN, 1979). A guerra
do Vietnã, por sua vez foi uma guerra civil travada entre facções políticas locais,
sendo uma delas apoiada pelos Estados Unidos. A guerra soviética no Afeganistão
foi, em grande parte, travada entre afegãos comunistas, apoiados por forças
soviéticas, e grupos rebeldes mujaheddins, defensores da cultura tradicional afegã,
que recebiam apoio financeiro e armas dos governos dos EUA, China, Egito, Israel e
Arábia Saudita (HAMMOND, 1987). As guerras de resistência mais recentes no
Iraque e no Afeganistão, contra as intervenções dos EUA e da OTAN, apresentam o
mesmo caráter de guerras fratricidas, nas quais as forças de ocupação, aliadas aos
governos locais, lançam mão de tropas autóctones para enfrentar os grupos
resistentes (RICKS, 2006).

Em todos os casos de guerras de resistência, as forças de ocupação criam as


condições para sua permanência na área ocupada aprofundando diferenças entre
resistentes e colaboracionistas, e neutralizando ou atraindo os indiferentes. Uma
proposta de guerra de resistência deve, obrigatoriamente, tratar da desagradável
probabilidade de que as forças da resistência venham a ser caçadas pelas tropas do
próprio Exército Brasileiro que se tiverem mantido leais ao governo comprometido
com o invasor.

4 Conclusões

Quando, em 1996, o Prof. Samuel Huntington publicou seu livro O Choque de


Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial, o meio intelectual brasileiro e
latino-americano em geral sentiu-se ofendido pelo fato de que, em sua descrição das
civilizações existentes no mundo atual, o autor havia considerado que a América
Latina não fazia parte da civilização ocidental, mas de uma civilização latino-
americana, que, embora fosse um produto da civilização europeia, havia evoluído
por um caminho bastante diferente, incorporando, em graus variados, elementos das
civilizações indígenas (HUNTINGTON, 1997).

Como apontava Huntington, entretanto, essa classificação de uma civilização latino-


americana fora da civilização ocidental não era apenas uma questão de traços
culturais específicos, mas também de auto-identificação, destacando que os próprios

162
latino-americanos encontravam-se divididos no que se refere ao pertencimento ao
Ocidente. No seu artigo original, cita o caso de um assessor de alto nível do
presidente mexicano Carlos Salinas de Gotari, que, ao ser perguntado se o que eles
pretendiam era transformar o México de um país latino-americano em um país norte-
americano, respondeu entusiasmado que era exatamente isto, mas que ele nunca
poderia dizer isso publicamente, deixando claro que o desejo de integrar-se ao norte
desenvolvido não era uma causa popular em seu país (HUNTINGTON, 1993).

De fato, essa auto-identificação da América Latina como algo diferente do mundo


euro-americano é real e se expressa por inúmeras iniciativas políticas de integração
regional, como é o caso do Mercosul, do Caricom, da União de Nações Sul-
Americanas (UNASUL), do Pacto Andino, bem como pela forte rejeição a iniciativas
como a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), passando pelo arraigado
sentimento antiamericano encontrado nos países da América Latina.

A percepção de ameaça à soberania brasileira sobre a Amazônia é, em grande


parte, fruto desse sentimento de não pertencimento e de exclusão. Há um forte
ressentimento pelos êxitos econômicos e socioculturais dos países desenvolvidos do
hemisfério norte, mesclado com um deprimente sentimento de inferioridade pela
incapacidade brasileira de romper com os vícios políticos e culturais que nos
impedem de avançar em direção a um futuro de país desenvolvido. É também fruto
da constatação do enorme desafio que é administrar e desenvolver racionalmente a
Amazônia, quando não temos nos mostrado capazes de fazer valer as leis e as
instituições nas periferias de nossas grandes cidades.

Esse sentimento de impotência diante de um destino controlado pelas grandes


potências tem abalado de tal forma a autoestima brasileira que nos leva a ver-nos
como um país insignificante, que pode sofrer – a qualquer momento e sob qualquer
pretexto – uma intervenção das grandes potências mundiais. É surpreendente
constatar que esse sentimento nem sempre foi tão agudo. Embora a assimetria
econômica e militar entre o Brasil e as grandes potências ao longo do século XX não
tenha sofrido grande mudança – na verdade até diminuiu, em virtude da
industrialização e do grande desenvolvimento brasileiro até a década de 1980 – o
sentimento de inferioridade e a baixa autoestima nunca haviam levado o país a

163
sentir-se ameaçado pelas grandes potências mundiais. A existência de tensões
regionais na bacia da Prata, as duas guerras mundiais e a guerra fria fizeram com
que o Brasil se visse lado a lado com essas potências, participando de ambas as
guerras ao lado dos aliados ocidentais e colocando-se do lado do mundo livre
durante a Guerra Fria.

O arrefecimento das tensões no Cone Sul e o fim da Guerra Fria deixaram o País
sem uma ameaça visível. Havia que se buscar uma. O contínuo adiamento do
sonho de transformação em um país desenvolvido, que tem feito do Brasil o
eterno país de um futuro que nunca chega, nos levou a alimentar ressentimento
contra o mundo que faz seu caminho, sem esperar soluções de fora. As
intervenções promovidas pela ONU, ou por coalizões de países desenvolvidos,
em países que viviam graves crises humanitárias nos fizeram encontrar a ameaça
procurada: ela viria do mundo desenvolvido. Imediatamente nos colocamos no
lugar de países como a Somália, o Haiti, o Afeganistão, a Sérvia de Milosevic ou
o Iraque de Saddan Hussein, casos típicos de Estados fracassados ou cujos
governos se mantinham em aberta confrontação com a comunidade e o direito
internacionais. Evidentemente isso não é racional. O Brasil não é um pária
internacional. O Brasil é um país inquestionavelmente democrático, signatário de
todos os principais tratados internacionais, além de respeitado por suas posições
nas questões de política externa.

Escolhida a ameaça, foi-se em busca da resposta militar. É claro que ela não
existia, afinal nunca nos preparamos para enfrentar o mundo, nem seremos
capazes de fazê-lo, em face de nossas limitações econômicas. A escolha
equivocada da ameaça conduziu a uma solução absurda. Ela f oi encontrada na
forma da guerra de resistência. Ora, resistência não é apenas a guerra dos
fracos contra os fortes, é a guerra dos derrotados. Implica inicialmente na
derrota. Preparar-se para a guerra de resistência significa preparar-se para ser
derrotado. Isso é militarmente absurdo. É a opção pelo caos, pela luta
fratricida, pelo crime, pelo terrorismo, pela corrupção. Basta ver o histórico de
sofrimento e destruição no Iraque e no Afeganistão nos anos recentes, em
termos de destruição de infraestrutura, perdas econômicas, crime organizado

164
em ascensão e destruição do tecido social e das tentativas de organização
política. Por mais equivocada que tenha sido a decisão norte-americana de
invadir o Afeganistão e o Iraque, as consequências dessa guerra recai rão
sobre o povo iraquiano, na forma de pobreza, subdesenvolvimento, divisões
internas e dissolução política.

A guerra de resistência é, em sua essência, uma guerra irregular, e, como tal,


uma forma de guerra assimétrica, na qual grupos ilegais e não -estatais
enfrentam as forças de ocupação e o governo local com elas comprometido ou
a elas subordinado. Disso se conclui que a guerra de resistência não é tarefa
do Estado agredido. É, ao contrário, o resultado da falência desse Estado e
representa a tentativa de grupos políticos para apossar-se de seus atributos de
poder e de suas estruturas. Um organismo estatal não está capacitado a
promover guerras irregulares ou assimétricas. A natureza estruturante dos
Estados é contrária à lógica desestruturante da guerra assimétrica.

Por outro lado, considerar que o Brasil está ameaçado pelos países do mundo
ocidental desenvolvido não é razoável. Quando nos sentimos discriminados ao
sermos considerados excluídos da civilização ocidental, o fazemos por
reconhecer nos países e instituições que a constituem virtudes que admiramos
e são os fundamentos de nossas leis e instituições. Os países ocidentais
seguem políticas razoáveis e racionais. Seus êxitos econômicos e militares
têm sido resultado desse racionalismo e dos valores que compartilhamos e
admiramos: democracia, liberdade individual, respeito à dignidade humana,
livre iniciativa, império da lei.

A maior ameaça que pesa sobre a soberania brasileira na Amazônia é o risco


de que as instituições do País não sejam capazes de administrá-la
adequadamente e de que, em consequência, essa soberania venha a ser
questionada pela comunidade internacional. E a melhor defesa contra essa
ameaça é a cabal demonstração ao mundo e à própria sociedade brasileira de
que nossas instituições são confiáveis para a tarefa da gestão amazônica. E

165
ao nos empenharmos na gestão do patrimônio amazônico, tenhamos a
convicção de que não o fazemos para atender demandas alheias ou por
pressões internacionais. Fazemo-lo sim, acima de tudo, porque a Amazônia
nos pertence e somos os maiores interessados em sua preservação.

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167
A VISÃO BRASILEIRA DE DEFESA DA AMAZÔNIA

José Augusto Abreu de Moura

1 Introdução.

A Região Amazônica é vastíssima e já foi considerada um vazio demográfico que se


devia ―integrar para não entregar‖, o inferno verde e o pulmão do mundo. Atualmente
tais conceitos estão algo fora de moda e sua população, ainda que continue rarefeita,
é predominantemente urbana e se ressente dos problemas sociais típicos dos países
em desenvolvimento (ARAGÓN, 2006, p. 13-14). Esta visão, diferente da de meio
século atrás, não mudou no fato de a região dispor de diversos e importantes recursos
naturais, abranger diversos países e ter se tornado tão conhecida que já foi
considerada a terceira marca mais famosa do planeta, ficando atrás apenas da Coca
Cola e de Jesus Cristo(MENDESapud ARAGÓN, 2006).

Com essas características, a Amazônia desperta recorrentemente interesses intra e


extrarregionais, provocando sentimentos de ameaça, não raro sobre as soberanias
nacionais, e as correspondentes medidas de oposição por parte dos Estados que a
compartilham, as quais dependem de suas visões de segurança e defesa. No caso
do Brasil, longe de terem surgido no século XX, estes aspectos sempre estiveram
presentes ao longo da História do País.

Este artigo procura mostrar alguns dos fatores que condicionaram as visões e
medidas de defesa da Amazônia brasileira até os dias atuais.

2 A Defesa da Amazônia no Período Colonial.

A necessidade de defender a Amazônia se fez sentir pela primeira vez no século


XVII, quando foi iniciada a conquista do Norte por determinação real, com as
operações que culminaram na vitória em 1615 sobre a ―França Equinocial‖, a atual
São Luis do Maranhão, fundada em 1612. Esse fato foi imediatamente sucedido por
uma expedição para conquistar o Pará, que resultou na fundação de Belém em

168
1616. Além dessa expedição, foram realizadas operações para submeter os
indígenas do Maranhão, impedindo-os de continuar apoiando os franceses
(CASTRO, 2009).

Nessa época, a ―União Ibérica‖- exercício da monarquia portuguesa pelo rei da


Espanha - iniciada em 1580 e que duraria até 1640, fez com que divisão do
continente pelo meridiano de Tordesilhas fosse ignorada, ensejando que os luso-
brasileiros, agora estabelecidos desde a costa leste até o Maranhão, penetrassem
profundamente para Oeste, muito além de Belém.

A região da foz do Amazonas, desde o atual Amapá até os rios Paru e Xingu, já era
explorada, desde fins do século XVI, por holandeses, ingleses e irlandeses, que ali
mantinham várias feitorias e fortes contando com a colaboração de diversas tribos
indígenas. Sua motivação consistia nas ―drogas do sertão‖ – especiarias e plantas
alimentícias, medicinais e aromáticas – que, com tabaco, algodão e madeiras,
alcançavam alto preço no mercado europeu e eram intensamente contrabandeadas.

Tais instalações foram atacadas pelos luso-brasileiros entre 1623 e 1646, período
em que, apesar da fundação de novos entrepostos por aqueles estrangeiros, todos
foram eliminados. Anos mais tarde, em 1697, por divergências sobre as extensões
dos domínios de Portugal e França, os franceses estabelecidos em Caiena atacaram
os fortes portugueses construídos em Macapá e na foz do Paru, ocupando o
primeiro, mas também sendo prontamente expulsos (VIANNA, 1980). Esses fortes
fizeram parte do processo luso-brasileiro de ocupação da região, que incluiu a
construção de vários outros em pontos estratégicos, a fim de evitar novas
penetrações e estabelecimentos de estrangeiros, e deram origem a várias cidades.

Extremamente importante foi a afirmação luso-brasileira na Amazônia Ocidental,


materializada com a expedição de Pedro Teixeira que, entre outubro de 1637 e
dezembro de 1639, saiu de Cametá, no rio Tocantins, atingiu Quito, nos Andes, e
regressou a Belém. Cabe notar que esse desbravador, em agosto de 1639, na
viagem de volta, realizou uma solenidade na foz do rio Napo, tomando posse do
local como fronteira entre os domínios espanhol e português, dando assim a
Portugal a maior parte da Amazônia, o que destaca o fato de esse país ter razoável
autonomia em relação à Espanha, embora estivessem ambos sob o mesmo rei,

169
circunstância que terminaria no ano seguinte, com a restauração portuguesa
(CALMON, 1961).

Além e talvez mais relevantes que as iniciativas militares foram as ações dos
religiosos – jesuítas e mercedários entre eles, que a partir de 1617 fundaram
diversasmissões nos rios Amazonas, Negro, Tocantins e outros, catequizando os
índios e consolidando, nas mentes, os domínios da língua e da coroa portuguesa na
região.

Após a conquista da região, no século XVII, o domínio luso foi posto em cheque
algumas vezes na parte norte-central de, pelo menos, duas formas básicas, sempre
resultando em sangrentos conflitos. Uma forma consistiu na disputa de áreas de
influência entre portugueses e os holandeses estabelecidos na Guiana (atual
Suriname), em que indígenas de diversas nações eram empregados pelos dois
lados na busca da expansão das fronteiras ainda inexistentes, por meio de
cooptação religiosa ou política, valendo a afirmação de eram ―as muralhas dos
sertões‖. A outra forma consistiu nas revoltas promovidas por lideranças indígenas
por motivações próprias, contra os colonizadores.

Um caso emblemático foi a grande revolta dos manaós chefiados por Ajuricaba, que
durou de 1723 a 1727 e fez perigar a soberania portuguesa em vasta área,
ameaçando abrir caminho para uma invasão dos holandeses, de quem esse chefe
era aliado, ao vale do Rio Negro. Outro episódio notável foi o ―formidável motim de
1757‖, provocado por lideranças indígenas de vários povoados que, coordenadas,
quase reduziram ―a cinzas todas as colônias portuguesas do Rio Negro‖ (FARAGE,
1986 p. 95-98; SAMPAIO, 2011, p. 10-12).

A visão de defesa da Amazônia no período colonial foi, assim, formada por aspectos
bastante diretos, em que o poder militar era preponderante, consistindo em
conquistar e consolidar a soberania na região da foz do Amazonas; assegurar o
domínio da maior porção possível para Portugal em detrimento da Espanha; e
assegurar o controle político dos indígenas, inclusive como forma de impedir a o
posterior estabelecimento de estrangeiros.

170
3 A Defesa da Amazônia no Período do Império

O aumento do comércio mundial consequente da Revolução Industrial resultou em


pressões para a integração da bacia amazônica ao transporte marítimo internacional e,
no século XIX, duas décadas presenciaram um duelo entre os serviços diplomáticos
dos EUA e do Brasil tendo por objeto a abertura do Rio Amazonas à navegação dos
navios norte-americanos. Aquele país buscava expandir seu comércio, mas no lado
brasileiro havia o temor de uma onda de imigração estrangeira em uma região
subpovoada, e o Império mantinha o rio fechado.

As iniciativas de estabelecimento por estadunidenses começaram nos anos


1820, e elas aumentaram nos anos 1840 formando-se, nos EUA, diversas
companhias de navegação, comércio e colonização focadas na região, mas foi a
partir dos anos 1850, com a campanha de Mathew Fontaine Maury, tenente da
marinha dos EUA, geógrafo, oceanógrafo e escritor, que a questão tomou vulto
(PAZZINATTOetal, 2013) .

Esse oficial de origem sulista, diretor do Observatório Naval entre 1844 e 1861,
acreditava, já em 1849, que as correntes marítimas tornavam o Rio Amazonas a
continuação natural do Mississipi, que os regimes de ventos faziam com que sua foz
estivesse mais à feição de ser controlado a partir dos EUA que do Rio de Janeiro
(STERNBERG, 1987), e que sua região continha não só grandes oportunidades
comerciais a ser exploradas com a abertura do rio, como também uma possibilidade de
dar melhores condições de desenvolvimento aos estados do Sul – subdesenvolvidos e
com elevada proporção de negros nas populações – colonizando o vasto e desabitado
vale amazônico com os brancos sulistas e seus escravos, que para lá poderiam ser
transferidos em grande número (HARRISON, 1955).

Usando sua influência, obteve adeptos importantes e conseguiu a realização de


uma expedição oficial na região em 1851-1852, com o propósito de coletar dados
sobre a navegação e possibilidades de colonização, embora a alegação contida
no pedido de autorização ao governo brasileiro fosse centrada no aumento da
―esfera do conhecimento humano‖ (HARRISON, 1955, p. 191). O subterfúgio
tinha razão de ser, pois o Império temia que a presença de norte-americanos
pudesse estimular tendências separatistas e provocar revoltas regionais, como a

171
então recente Cabanagem, numa região vasta e difícil de controlar (PAZZINATTO et
al, 2013).

Mesmo antes da expedição, em 1851, o governo norte-americano deu a partida nas


ações práticas instruindo seu embaixador no Brasil para negociar a abertura do rio e
assinando, com o Peru, acordos de navegação que implicavam o trânsito de vapores
dos EUA por suas águas (HARRISON, 1955; PAZZINATTO et al, 2013).

O governo brasileiro reagiu nesse mesmo ano firmando, também com o Peru, um
tratado de limites que também lhe abria a navegação do Amazonas, mas não
aosnorte-americanos, com base num princípio do Direito Internacional
(PAZZINATTO et al, 2013; PALM, 2009). Além disso, enviou missões diplomáticas
ao Equador, Nova Granada (Colômbia) e Venezuela com o propósito de convencer
governos e opinião pública do perigo da penetração imperialista, enquanto o
embaixador brasileiro em Washington rebatia os argumentos de Maury e instava
junto ao governo dos EUA que não se envolvesse em atentados à soberania do
Brasil (PAZZINATO etal, 2013).

Nesse contexto, a fim de melhor se opor as críticas de abandono da região, o


governo brasileiro deu ao Barão de Mauá uma concessão que resultou na criação,
em 1852, da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, a qual, a cada
dois meses, passou a fazer a rota Belém – Tabatinga, como parte importante de um
projeto nacional de colonização (CALDEIRA, 1995; PAZZINATO et al, 2013).

Os temores brasileiros não eram infundados. Os norte-americanos haviam vencido o


México em 1848, numa guerra que resultara das tensões provocadas pelo
estabelecimento de colonos estadunidenses no norte desse país, e sob a ideologia
messiânica então vigente do ―destino manifesto‖ – pela qual os EUA tinham a
missão de se expandir pelo continente. Após essa vitória, imensa parte do território
mexicano fora anexada e a opinião pública estava fortemente excitada com a
expectativa de novas conquistas. Além disso, pelos escritos de Maury, a abertura do
Amazonas teria o mesmo impacto da compra da Luisiana, trazendo grande
progresso para o Sul do país e, consequentemente, para todo ele.

172
Cabe ressaltar que a publicação em 1853 do relatório da expedição, de quatrocentas
páginas – submetido ao Congresso pelo próprio Presidente dos EUA – provocou um
súbito aumento de quase 100% no comércio Brasil-EUA pelo porto de Belém (ROSI,
2011), e que a campanha de Maury tinha grande penetração principalmente no Sul,
garantindo-lhe apoio no Congresso, para onde enviou, em 1854, um outro relatório,
onde imaginava a bacia amazônica ocupada por seiscentos milhões de pessoas
(PAZZINATTO et al, 2013).

O governo norte-americano ainda fez vigorosos movimentos em 1853, tanto


instruindo especificamente seu novo embaixador no Rio de Janeiro sobre os
argumentos a serem usados na negociação, como censurando veementemente o
Brasil em uma mensagem presidencial, por obstruir o comércio das repúblicas
ribeirinhas. Com o tempo, porém, como o Brasil não cedia, a pressão foi-se
reduzindo, enquanto outras preocupações cresciam nos EUA, com a progressão da
crise interna que levou à Guerra Civil (1861-1865), e Maury se desinteressava da
questão a partir de 1856 (CALMON, 1961; ROSI, 2011).

Dez anos depois, em dezembro de 1866, quando a retórica norte-americana já


havia mudado e se acreditava no Brasil que, face ao vigor das instituições, a
abertura não mais abalaria a integridade nacional, mas seria benéfica ao
desenvolvimento do País, atendendo aos reclamos das províncias do Pará e
Amazonas e às ideias liberais que então vicejavam no Congresso e na opinião
pública, o Império franqueou o rio à navegação de todas as nações, exceto para
navios de guerra (CALMON, 1961; ROSI, 2011; PAZZINATTO et al, 2013), criando
logo depois, em 1868, um grupamento fluvial da Marinha com sede em Manaus – a
Flotilha do Amazonas – para assegurar a presença militar nacional na bacia
(COMANDO, 2013).

O governo dos EUA nunca admitiu oficialmente a ideia da conquista da Amazônia


(PAZZINATTO et al, 2013), mas é fato que a expedição de 1851 foi realizada pela
Marinha dos EUA por determinação do Secretário de Estado, com base num plano
de abertura do Amazonas baseado nas teses de Maury, como sugerido por dois
Secretários da Marinha que as apoiavam, marcando, para o estudioso norte-

173
americano John P. Harrison, ―provavelmente a mais extrema versão do Destino
Manifesto sugerido por uma autoridade pública‖(HARRISON, 1955).

Vê-se, assim, que a visão brasileira, na época, contemplou aspectos bastante


diretos como no período colonial, mas com preponderância das manobras
diplomáticas e políticas sobre as militares, já que estes esforços não priorizavam
aquela região, em face dos problemas enfrentados com as várias revoltas internas
entre 1824 e 1848 e, posteriormente, com as tensões e guerras no Prata, entre 1850
e 1870. Com a abertura, porém, a visão de defesa incluiu uma componente militar
face à presença da navegação internacional, resultando na criação da força naval
para o controle dos rios.

4 A Defesa da Amazônia no Período Republicano

O período republicano não conheceu tão fortes sensações de ameaça como durante o
Império, quando a integração nacional ainda exibia algumas vulnerabilidades políticas.
A questão mais importante foi a do Acre, iniciada em 1895 e fruto de uma situação
iniciada no período imperial – a fixação na área, então pertencente à Bolívia e grande
produtora de borracha, de grande contingente de nordestinos, emigrados em
consequência da terrível seca de 1877-1879 (SCHILLING, 2013; CALMÓN, 1961).

O Tratado de Aiacucho, firmado entre o Brasil e a Bolívia em 1867, definia mal os


limites desses países; e a região, vinte anos depois da seca, estava povoada por
seringueiros brasileiros. Sentindo o problema, em abril de 1899, as autoridades
bolivianas estabeleceram, com o apoio do governo brasileiro, um posto aduaneiro às
margens do rio Acre, próximo à suposta fronteira com o Brasil. Os seringueiros,
porém, não aceitando tal afirmação de autoridade, ocuparam o prédio e expulsaram
os bolivianos, marcando o primeiro incidente do que viria a ser conhecido como
Guerra do Acre.

Em março de 1900, o governo do Rio de Janeiro, respeitando o Tratado de


Aiacucho, enviou uma força-tarefa da Flotilha do Amazonas que restaurou a
soberania boliviana, embora a revolta dos seringueiros continuasse (SCHILLING,
2013; CALMÓN, 1961).

174
Esse era o status quo até que se tomou conhecimento no Rio de Janeiro, da
iniciativa do governo de La Paz que, pensando em solucionar o problema, havia
firmado contrato, em junho de 1901, com um consórcio anglo-americano, o
BolivianSindicateof New York, dando-lhe o monopólio sobre a zona acreana.
Tratava-se de um tipo de contrato de exploração de recursos muito praticado na
África nessa época (―CharteredCompanies‖), pelo qual a empresa contratada
assumiria os poderes fiscal e de polícia na área a ser explorada (CALMÓN, 1961).

Na realidade, havia informações, desde meados de 1899, da intenção boliviana de


negociar a intervenção norte- americana no território em troca de 50% de abatimento
na borracha exportada. Assim, com o contrato firmado, o governo brasileiro avaliou
que a operação do consórcio, que venderia toda a produção a outra empresa norte-
americana, a U.S. Rubber Co., provocaria, com os previsíveis choques com os
seringueiros brasileiros, as ações dos EUA em defesa dos interesses de suas
empresas, o que levaria esse país à colisão com o Brasil na região amazônica
(SCHILLING, 2013; CALMÓN, 1961).

O governo do Rio de Janeiro considerou o contrato uma ―monstruosidade legal‖,


―semelhante às concessões da África e indigna do nosso continente‖ e o Barão do
Rio Branco, que assumira a chancelaria em dezembro de 1902, acionou contatos
nas praças de Londres e Nova Iorque, tomando providências que resultaram, entre
fevereiro e junho de 1903, na desistência do principal capitalista do consórcio
mediante uma módica indenização (110 mil libras) e na renúncia formal do sindicato
à empreitada, isolando a questão aos governos brasileiro e boliviano, em uma
negociação direta (CALMÓN, 1961).

Enquanto isso, os revoltosos do Acre, comandados desde meados de 1901 por


Plácido de Castro, venciam, em janeiro de 1903, a última resistência boliviana e
assumiam o controle do território, passado logo depois para forças do Exército
Brasileiro e da Flotilha do Amazonas, enquanto se desenrolavam as negociações
que resultaram em sua aquisição pelo Brasil por meio do Tratado de Petrópolis
de 17/11/1903, neutralizando-se, assim, mais uma ameaça à Amazônia
(CALMÓN, 1961).

175
Ocorreram posteriormente iniciativas pontuais de empresários dos EUA, mas sem o
potencial de ameaça das questões anteriores, embora despertassem preocupação
em parcelas da opinião pública.

Aí se enquadram os empreendimentos de Fordlândia e Belterra, no rio Tapajós, entre


os anos 1928 e 1945, onde o fundador do grupo Ford (Henry Ford) pretendia cultivar
seringueiras e produzir borracha para suas indústrias – ambos os projetos fracassados
devido às dificuldades impostas pela região inóspita (MINIFORD, 2013).

Também se enquadra nesse caso o Projeto Jari, implantado a partir de 1967 pelo
empresário estadunidense Daniel K. Ludwig, com foco principal na fabricação de
celulose, que também fracassou economicamente, além de provocar grande dano
ambiental e despertar preocupações em Brasília por sua envergadura, se situar na
Amazônia e em região considerada próxima à fronteira. O governo articulou sua
aquisição por um grupo industrial brasileiro em 1982 (TEIXEIRA, 2002).

Outro tipo de problema ocorreu em 1947, quando a recém criada UNESCO criou o
―Instituto Internacional da Hileia Amazônica‖, com sede em Manaus e idealizado
como um grande projeto focado em ciência pura e baseado em um convênio firmado
entre aquele órgão e o Brasil, mas que, visto por grupos nacionalistas como uma
cunha para a penetração estrangeira, desnacionalizando a Amazônia e entregando-
a a grupos internacionais, foi objeto de forte campanha e desativado (PINTO, 2001).

5 Aspectos Atuais

As ameaças recrudesceram nas últimas décadas com alguns temas que mobilizam a
opinião pública de importantes atores internacionais.

O mais importante é o da internacionalização da Amazônia; ideia que reaparece


periodicamente e que tomou maior vulto a partir dos anos 1980, com a proliferação
das ONG, a ênfase ao ambientalismo e à atenção aos povos indígenas. Essa tese
prega que, face aos benefícios para a humanidade antevistos com a preservação
das florestas tropicais e a proteção devida a seus habitantes primitivos, elas

176
deveriam ser gerenciadas por órgãos internacionais, e não pelos Estados em cujos
territórios se situam.

Tal ideia tem sido propagada por importantes órgãos estatais e não-estatais,
inclusive organizações religiosas e governos de países do primeiro mundo, já tendo
constado de pronunciamentos de diversas autoridades e formadores de opinião.

Tais afirmações podem ser associadas a interesses econômicos, estratégicos ou


políticos, considerados os recursos naturais existentes na região – notadamente
minerais, biodiversidade e água potável – cuja importância cresceu nas últimas
décadas pela perspectiva de rarefação, o que enseja pressões por parte de atores
relevantes, justificadas por pretensos benefícios à humanidade, seguindo a doutrina
da harmonia de interesses de Carr (1981) e traduzindo uma ameaça potencial à
soberania dos países amazônicos.

Outra ameaça é a causada pelo tráfico de drogas, considerado grande problema


para os EUA a partir dos anos 1980, que também implica ameaça potencial à região
porque, em sua repressão, aquele país identifica a necessidade de combater os
produtores e organizações guerrilheiras que os protegem na origem – as áreas
florestadas do noroeste da América do Sul.

A implementação de tal conceito contempla ações que vão desde vigorosas


iniciativas para reorientar as políticas de defesa dos países focando o combate ao
narcotráfico, até o fornecimento de ajuda militar e o envio de assessores, resultando
em considerável presença militar norte-americana observada em alguns Estados. O
―Plano Colômbia‖ (2000) é o maior exemplo dessas ações (JÚNIOR, 2005), que
encerram, ainda que veladamente, a possibilidade de intervenção, o que está em
linha com a prática recente dos países desenvolvidos em outras regiões do mundo.

Cabe notar que foram os indícios de possível intervenção dos EUA na América do
Sul, em virtude do narcotráfico, da guerrilha colombiana e do conflito Equador Peru
em 1995, que provocaram a reorientação brasileira no campo da defesa, resultando
na emissão da Política de Defesa Nacional de 1996 (PDN-1996) (CERVO, 2008).

Em relação aos períodos históricos anteriores, verifica-se que as ameaças atuais


são mais difíceis de enfrentar por serem indiretas e mais sutis, não envolvendo

177
possíveis ações políticas ou militares de um ator específico, mas sim,
possibilidades difusas colocadas pela governança global, como atualmente
concebida (SANTOS, 2006), que é comandada pelos países que ocupam o
extrato superior do sistema internacional.

A exemplo de outras partes do mundo, tais ameaças podem se materializar no


contexto de crises político-estratégicas sob a forma de coalizões militares contra
um país militar e politicamente inferiorizado – normalmente, um país em
desenvolvimento – previamente demonizado pela mídia ante a opinião pública
mundial.

6 A Visão Brasileira - Cooperação e Dissuasão

O tratamento dos interesses nacionais atualmente envolve muito mais as relações


multilaterais que as bilaterais. Esse aspecto exige grande habilidade no concerto dos
blocos regionais para que atendam realmente aos objetivos do Estado, o que pode
ser favorecido pela compatibilidade de interesses e pelo valor relativo do Poder
Nacional com respeito aos demais membros. Além disso, em termos mais amplos,
cabe notar que a governança global é mais rigorosa contra os mais fracos, o que
recomenda um bom poder dissuasório.

Esses parecem ser os aspectos norteadores da política de defesa do Brasil, que


segue dois vetores, a cooperação e a dissuasão.

Na América do Sul o ambiente é propício à cooperação, o que é reforçado pela


existência e ações da União das Nações do Sul (UNASUL), e de seu Conselho de
Defesa do Sul (CDS), tendendo a tornar o bloco uma ―comunidade de segurança‖,
onde a guerra deve ser impensável (LIVRO, 2012).

No subconjunto amazônico, o vetor cooperativo é reforçado pela Organização do


Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), integrado pelos países da região com
exceção da França (Guiana Francesa), que implementa permanentemente as
disposições do tratado. O governo de Paris, por sua vez, vive intenso processo de
cooperação em Defesa com o Brasil – provavelmente o mais importante de nossa

178
História recente – havendo, inclusive, reflexos envolvendo seu departamento
sulamericano, como a recém construída ponte sobre o Rio Oiapoque, ligando-o ao
estado do Amapá (AMAZONASTUR, 2013).

A capacidade dissuasória do Brasil, porém, considera o nível global (LIVRO, 2012),


por ser o compatível com sua estatura econômica, política e estratégica, mas ela
ainda se encontra em nível bem abaixo dessa compatibilidade.

O mundo atual presencia um considerável esvaziamento da autoridade da


Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os países desenvolvidos, verificando-
se que os mandatos de seu Conselho de Segurança (CS) têm sido dispensados,
como na guerra de Kosovo (1999) (MONTAZ, 2000); ignorados, considerando esse
órgão irrelevante, como na invasão do Iraque (2003) (KRIEGER, 2005, §2); ou
extrapolados, como nas ações contra a Líbia em 2011, por parte da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN), sem que o CS houvesse ―reconsiderado o
mandato original e censurado a OTAN por expandir unilateralmente a natureza de
seu papel militar‖ (TRANCHES. 2011).

Tal circunstância, como ressaltado na aula magna proferida pelo Ministro da Defesa
no INEST-UFF em 27/05/2013, faz com que a possibilidade de conflitos interestatais
não esteja, de modo algum, riscada do mapa das relações internacionais.

Em coerência, os documentos pertinentes mais recentes – a Política de Defesa


Nacional, de 2005, a Estratégia de Defesa Nacional (END), de 2008, o Plano de
Articulação e Equipamento da Defesa, bem como os documentos que os sucederão,
ora em vias de aprovação no Congresso Nacional – a Política Nacional de Defesa, a
nova END e o Livro Branco da Defesa Nacional - consagram a dissuasão como a
vertente preventiva de defesa do País, e suas orientações e diretrizes se voltam
para o aumento do Poder Militar.

Este autor acrescenta que, além dos conflitos interestatais ainda estarem em pauta,
o fato de o Brasil ser tradicionalmente bom cumpridor das decisões da ONU pode
trazer problemas no atual momento histórico em face de essa Organização ser
sensível a atores poderosos da governança global onde, no caso específico da
Amazônia, vicejam correntes que agridem a soberania dos Estados.

179
A resposta a tal situação abrange as duas vertentes do relacionamento entre
Estados. A primeira é a da política externa e consiste em, tirando partido da recente
elevação do status político do País, atuar no nível mais alto do sistema internacional
em proveito dos interesses nacionais, como já vem sendo feito. A outra vertente
consiste no vetor dissuasório da política de defesa, mas esta ainda tem um longo
caminho a percorrer.

A relação entre as políticas externa e de defesa remete ao fato de o País se


ressentir da falta de uma ―Grande Estratégia‖, ou Estratégia de Segurança
Nacional‖, para os norte-americanos ou ainda ―Concepção Estratégica Espanhola‖,
para os espanhóis.

Trata-se de um documento que estabeleça as aspirações nacionais, o entendimento


geral do papel do País no mundo, como se considera como nação no contexto
internacional e como define sua vocação, baseado em fatores geográficos,
históricos, políticos e pretensões para o futuro, servindo de moldura para conectar e
coordenar as Políticas Externa e de Defesa como a ―Ação Externa do Estado‖ na
área de segurança nacional, usando um termo Espanhol (ESPANHA, 2000, p. 56).

Este conceito está acima do previsto pela Lei 136/2010, que criou o ―Livro Branco‖ e
a revisão quadrienal da Defesa, que só prevê assuntos do nível de Política de
Defesa para baixo.

As orientações e diretrizes da END e demais documentos acima citados – algumas


já objeto de medidas iniciais de implementação – denotam o grande atraso em que o
Brasil se encontra (a falta de aviação de combate atualizada é um exemplo),
resultante de se haver investido infimamente no setor nas últimas décadas,
mantendo-se o conceito de suficiência regional da defesa, enquanto o País ascendia
de nível político-estratégico e a tecnologia avançava a passos largos, beneficiando
os países desenvolvidos.

Este aspecto é agravado pelo impedimento legal de dispor de armas nucleares, o


que, no entender de Bernal-Meza, cria uma grande dificuldade à aspiração da
necessária condição de potência média, pelo maior custo e complexidade de

180
construir osfundamentos para ser uma potência crível em termos de armas
convencionais, sem dispor da necessária capacidade tecnológica própria (BERNAL-
MEZA,2002).

Um estudo de 2010 previa que a implementação de toda a END aumentaria os


gastos em defesa do Brasil em 0,7% do PIB anual por duas décadas. Como a
média desses gastos foi 1,59% no período considerado (entre 1995 e 2008),
estimava-se que o valor adequado deveria ficar em torno de 2,29%, uma
elevação considerada improvável no estudo devido à pequena variação
observada desses gastos ao longo do tempo – a ―dependência da trajetória‖
(―path dependency‖) (BROUSTOLIN, 2009, p. 83-84).

A percentagem do PIB em 2012 foi de 1,38% (SIPRI, 2013), o que representa uma
melhora em relação à de 2010 (1,34%), mas ainda não caracteriza uma tendência e
é um valor bem abaixo da média acima, o que traz preocupações e parece indicar
que o Governo, ainda que tenha conhecimento da elevação do status do País no
plano internacional, não está dando a ênfase adequada a suas implicações no
campo da defesa.

Assim, é necessário um grande esforço nacional para vencer o atraso, sendo que
um dos principais campos é o das mentes, pois, como sabemos, o Brasil é um país
pacífico e a importância da defesa nacional não é percebida pela maior parte das
lideranças políticas, predominantemente paroquiais, pois não é assunto que motive
campanhas eleitorais. Felizmente, vive-se uma época em que a sociedade – e a
Academia - está começando a voltar seus olhos para o tema, e o presente encontro
nacional da Associação Nacional de Estudos de Defesa é um exemplo.

7 Conclusão

Na visão brasileira, o País enfrenta ameaças à Amazônia desde que iniciou sua
ocupação, no século XVII. Como colônia de Portugal, teve posição de força sobre os
invasores estrangeiros derrotando-os militarmente, arrasando seus entrepostos que
poderiam criar raízes e originar colônias de outras potências, e consolidando suas

181
posições na região. No século XIX, como Estado independente, enfrentou as
pressões dos EUA usando os artifícios defensivos da Diplomacia e a capacidade
empresarial do Barão de Mauá para neutralizar as possíveis ameaças à integridade
territorial. No século XX não viveu ameaças importantes até as grandes mudanças
globais que se sucederam a partir dos anos 1980, e que continuam presentes.

As ameaças atuais requerem um enfrentamento diferente, pois se baseiam em


razões pretensamente éticas – os benefícios para a humanidade – colocadas pela
governança global, o que lhes dá forte potencial para emprego da doutrina da
harmonia de interesses. Para contra-arrestá-las, o Brasil implementa ações em duas
vertentes – a política: aumentando sua expressão internacional a fim de se tornar
participante, ou próximo, da diretoria do clube; e a militar: para tornar
inaceitavelmente cara uma possível ação armada.

O recente crescimento político e econômico tem favorecido a primeira vertente, mas


o gap tecnológico e a insuficiência de recursos têm dificultado a segunda. Na última
década, porém, com a progressiva conscientização da sociedade quanto à
necessidade de dispor de um poder militar compatível com a estatura do País no
sistema internacional, está-se levando a cabo a reestruturação da Defesa, mais
voltada para a cooperação no contexto sulamericano, onde é maior a comunhão de
interesses, e para a dissuasão no contexto global, de onde podem provir as
principais ações de força – veladas ou diretas.

Mas ainda estamos no início do percurso nesse segundo aspecto. Falta muito até
atingirmos o nível de dissuasão necessário, e a marcha exigirá o entendimento
nacional da importância dos investimentos – materiais e pessoais – na Defesa
Nacional, o que ainda é considerado supérfluo por grande parte da sociedade.

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184
O ESTADO DE GUERRA PERMANENTE:

O GOVERNO DO TERRITÓRIO AMAZÔNICO

Rodrigo Augusto Lima de Medeiros65

1 Introdução

O objetivo deste artigo é analisar de que modo concepções geopolíticas


fundamentam práticas territoriais para a Amazônia brasileira. Há uma forte matriz
militar nas reflexões/ações das burocracias especializadas que projetam um modelo
hegemônico de desenvolvimento. Cada vez mais, burocracias estatais de países
fora da América do Sul se interessam pelo destino da maior floresta tropical do
mundo. Delimitamos nossa análise à burocracia especializada brasileira e à norte-
americana (EUA). Grosso modo, no Brasil, observamos que a intelligentsia
administrativa procura integrar territorialmente a região amazônica ao centro
dinâmico da economia nacional, subordinando essa integração a concepções de
segurança nacional. Por sua vez, nos EUA, em princípio, a burocracia especializada
procuram conceber a Amazônica como um armazém de matérias-primas
potencialmente acessíveis aos interesses comerciais, industriais e estratégicos da
grande potencia econômico-militar.

Especificamente neste artigo, a intenção não é elaborar questionamentos de uma


geopolítica amazônica em si, mas, principalmente, procurar conceber de que modo
podemos pensar em uma geopolítica ambiental para a Amazônia, na medida em que
burocracias especializadas elaboram construtos técnico-burocráticos para lidar com
o território amazônico. Ou seja, este artigo se ocupa em compreender os
pressupostos que constroem projetos políticos-territoriais para a Amazônia.
Portanto, não cabe aqui fazer um levantamento histórico da elaboração teórica dos
conceitos geopolíticos, tampouco uma discussão crítica sobre a vertente
―determinista‖ da geopolítica de Ratzel (Geografia Política, 1897) ou sobre a vertente
―possibilista‖ vinculada a Paul Vidal de La Blache (Princípios da Geografia Humana,

65
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília.

185
1898) ou mesmo de outros teóricos da geopolítica, tais como: Rudolf Kjellén (As
grandes potências, 1905); Golbery do Couto e Silva (Geopolítica e Poder, 1967)
et al. As preocupações deste comunicado não são os questionamentos da
geopolítica em si, mas, principalmente, de que modo a geopolítica é utilizada na
elaboração de construtos técnico-burocráticos, ou melhor, quais são os
pressupostos que constroem os projetos políticos-territoriais para a Amazônia. O
foco são as narrativas geopolíticas em torno de práticas burocráticas que servem
ao propósito de um governo estratégico da natureza. Assim, podemos indicar que
são as relações entre política – processos enunciados de governo (FOUCAULT
[1973] 2003; 2005) – e território – simbolização do espaço – que definem as
políticas estratégicas para a Amazônia.

Resumidamente, podemos definir geopolítica como sendo, nas palavras de Bertha


Becker, o ―campo de conhecimento que analisa relações entre poder e espaço‖
(BECKER, 2005, p. 71). Grosso modo, o Estado é o principal ator geopolítico na
medida em que possui o legítimo monopólio da violência física (WEBER, 1979),
além do monopólio de dizer o direito (BOBBIO, 2006). O Estado procurar impor a
soberania de seu ordenamento jurídico-institucional dentro de seu território, podendo
negociar em condições assimétricas com outros Estados nacionais a expansão de
seus interesses. O Estado não é o único ator no jogo geopolítico. Para uma
compreensão adequada da geopolítica, da ordem narrativa e do governo do
território, esse monopólio precisa ser detalhado (destrinchado ao patamar das
elaborações burocráticas). A formulação do processo decisório assume feições
múltiplas e não só estatais. São variados os atores-sociais que se associam (ou
competem) para efetivar um governo territorial. As discussões dos
neoinstitucionalistas sobre governança, governabilidade e custo de transações dão
conta de uma das instâncias dessa realidade de instituições formais e informações
na configuração do processo de formulações políticas (NORTH, 1990). Porém, essa
abordagem neoinstitucionalista, de inspiração neoclássica, deixa muitas outras
instâncias fora de suas análises. A intenção desta pesquisa é dar um passo mais
adiante no intuito de compreender como operam os sistemas classificatórios nas
formulações de políticas estratégicas. É dentro das dinâmicas burocráticas e

186
políticas que podemos encontrar o engajamento teórico-prático de burocracias
especializadas em políticas estratégicas territoriais para a Amazônia.

2 Antecedentes Históricos de Práticas Territoriais para a Amazônia.

No Brasil, as associações, ao longo da história do Brasil, entre políticos e militares,


para a realização de projetos de poder político, sempre levaram, inevitavelmente, à
quebra de disciplina e a fissão das Forças Armadas, como constata Nelson Werneck
Sodré (1979). A geopolítica é uma teoria do poder, apoiada fundamentalmente no
território, e só tem valor, diz Oliveira S. Ferreira, se utilizar os fatores geográficos na
formulação de uma política (MIYAMOTO, 1981). A dinâmica de uma geopolítica
militar que fundamenta um pensamento político-administrativo para o governo do
território, da natureza e da nação se institui em práticas e categorias historicamente
fabricadas para lidar com a complexidade territorial brasileira, em geral, e
amazônica, em particular, nitidamente de inspiração alemã e francesa durante a
primeira república. É nesse contexto que opera de modo explícito uma geopolítica
ambiental que se utiliza de todo o estoque prático-simbólico das categorias
anteriormente já instituídas na lógica da administração do território amazônico
(SPRANDEL, 2005; STEINBERGER, 1997).

Em que se pese a institucionalização de práticas e categorias expressas em um


ordenamento jurídico, o deslocamento do centro dinâmico de como governar o
território amazônico – anteriormente estabelecido por fortificações militares, por
fluxos migratórios e por tratados internacionais - intensifica-se na década de 1930,
quando o governo Vargas incorpora a Amazônia dentro de uma estratégica política
de Estado. Primeiro, o governo Vargas lança a marcha para o oeste, um plano de
integração e colonização (ocupação) dos vazios demográficos, obedecendo
diretrizes de um plano denominado ―Movimento de Reconstrução Nacional‖.
Segundo, dentro da demanda por borracha, no contexto da Segunda Guerra Mundial
e dos acordos estratégicos entre Washington e Rio de Janeiro, o governo executa
políticas de mobilização de trabalhadores para a extração de borracha, soldados da
borracha, o que leva à institucionalização do Serviço Especial de Mobilização de
Trabalhadores para a Amazônia (Decreto-Lei Nº 5.813 – 14/09/1943) (BAER, 2002;

187
CABREIRA, 1996). O processo de integração é intensificado na década de 1950,
quando o desenvolvimento constitui meta do governo federal. São emblemáticos os
governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck, que operando o aparato
estatal executam planos estratégicos de desenvolvimento como condição necessária
à segurança nacional em um ambiente institucional democrático (VERSIANI;
MENDONÇA DE BARROS, 1977). É fato que a preocupação em ocupar áreas
pouco povoadas para evitar a perda de território para nações estrangeiras não é
privilégio deste período específico, vimos que desde a Colônia e o Império já havia
uma preocupação com o progresso dos sertões brasileiros e em se efetivar uma
ocupação que daria direito ao uti-possidetis. Mas é nesse momento que as
preocupações se traduzem em institucionalização de ações mais efetivas. Por
exemplo, no ano de 1953 o presidente Getúlio Vargas sanciona a lei nº 1806 que
institui a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia
(SPVEA) e o Fundo de Valorização Econômica da Amazônia.

É, em 1957, durante o governo Juscelino Kubitschek, que as práticas de integração


se efetivam na mudança da capital para o centro geográfico do país, demanda
antiga de doutrinas geopolíticas (RIBEIRO, 1991). A construção da rodovia Belém-
Brasília, dando concretude a um plano de integração entre Norte e Centro-Oeste do
país, é um passo significativo nesse projeto. A rodovia concluída em 1960 favorece
fluxo migratório de trabalhadores, principalmente do Nordeste, em busca de terras
(IANNI, 1979). Esse processo continua e se intensifica com o governo militar pós-
golpe de 1964. Em síntese, esse é o contexto histórico em que se inserem as
práticas elaboradas pelos estrategistas militares. Por meio das obras dos generais
Mário Travassos, Carlos de Meira Mattos e Golbery do Couto e Silva, é possível
analisar as interfaces entre as doutrinas geopolíticas da escola geopolítica militar e
as práticas para a Amazônia brasileira, i.e., qual é a conotação geopolítica das
práticas governamentais direcionadas a Amazônia. Essa expertise nacional teve que
lidar com a expansão econômico-militar dos EUA e com o modus operanti de um
novo modo de planejar estrategicamente os interesses nacionais e concretizar os
objetivos nacionais permanentes.

188
Resumidamente, para os EUA a Amazônia esteve no foco das conquistas de novos
mercados durante a abertura da navegação (expansão norte-americana), passando
pelos esforços de guerra e as alianças estratégicas para o progresso (Segunda
Guerra e início da guerra fria), seguindo empreendimentos privados de bilionários
cidadãos norte-americanos (Ford e Ludwig). Mais recentemente se destacam as
convicções ambientalistas (KARNAL, 2007). Evidentemente que essas definições
temporais não fecham em si mesmas determinadas proposições político-
administrativas. Na verdade, há um constante ir e vir de convicções políticas que
fundamentam os projetos para a Amazônia desde os EUA.

3 A Epistemologia do Segredo: a Caracterização de uma Burocracia


Especializada

As burocracias estatais especializadas em lidar com estratégias políticas para a


Amazônia possuem em suas constituições funcionais a áurea do segredo. Tornam-
se recorrentes expressões como: dados sensíveis; confidencial; dado negado; dado
ostensivo; corre em segredo administrativo; entre outras. As práticas de informação
dessas burocracias especializadas são regulamentadas com um ordenamento
jurídico específico que disciplina a divulgação de dados e informações produzidos
por eles. No Brasil, o Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei 5.228/2009 (PL de
acesso à informação) que pretende sintetizar leis dispersas no ordenamento jurídico
brasileiro, por exemplo: Lei nº 8.159/1991 (Política Nacional de Arquivos); Decreto nº
3.505/2000 (Política de Segurança da Informação nos órgãos e entidades da
Administração Pública Federal); Decreto nº 4.553/2002 (dispõe sobre a salvaguarda
de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança
da sociedade e do Estado brasileiro); Decreto nº 5.301/2004 (regulamenta inciso
XXXIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988); Lei nº 11.111/2005 (também
regulamenta inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal). Nos EUA, a
regulamentação e a disponibilização de documentos estão mais consolidadas. Eles
têm o U.S. Department of State Freedom of Information Act que não só regulamenta
o acesso aos documentos produzidos pelo governo federal dos EUA, mas também
centraliza nos serviços do National Archives and Records Admnistration, em prédio

189
próprio, a maioria dos documentos já desclassificados, além de disponibilizar
serviços on-line de acesso.

De acordo com Eva Horn e Sara Ogger (2003), o que diferencia o tipo de inteligência
produzida por servidores públicos militares e civis, entocados em seus gabinetes,
arquivos e repartições, do conhecimento construído em universidades, é sua
epistemologia do segredo (2003, p. 66). Isso cria, ainda segundo essas autoras, um
peculiar efeito de hipnose e paranoia. O segredo e a natureza fechada do serviço de
inteligência obstaculizam qualquer competição, desde instrumentos de correção até
mensurar os ganhos com os esforços empregados (medidas de eficiência e
eficácia). Os serviços de inteligências em cooperação com o aparato de guerra
projetam inúmeros cenários hipotéticos de guerra, catástrofes naturas, tudo em
que coloque à prova a capacidade das agências governamentais manterem a
segurança nacional, i.e., ratificar a aptidão de reproduzir o poder dos Estados
nacionais e de proteger os interesses dos que se vinculem a ele. A sanha da
máquina de guerra (DELEUZE; GUATTARI, 1992) se transforma no furor das
ações estratégicas que se projetam na premissa de uma guerra permanente
(LEIRNER, 2009). O consenso na literatura especializada é que coletar e
interpretar são o que caracterizam o trabalho de inteligência (KENT, 1945;
HILSMAN, 1958; BETTS, 1983; HEYMANN, 1985; LAQUEUR, 1985; HAMILTON,
1987; HERMAN, 1996; SHULSKY, 1992; WARNER. 2002; SCOTT; JACKSON,
2004). Coleta de dados ostensivos (públicos), manejo de fontes e produção de
informações em investigações próprias com agentes de campo são um lado da
moeda. O outro lado contém processamento, avaliação, interpretação e, o mais
importante, repasse da informação para decisão dos formuladores de políticas
públicas, os quais decidem agir com base nos diagnósticos apresentados (HORN;
OGGER, 2003). Esses dois lados de uma mesma moeda compõem o que a
literatura especializada denomina de trabalho de inteligência, mesmo que desde os
atentados de 11 de setembro de 2011 aos EUA, essa concepção venha recebendo
pesadas críticas e se reformulando, ainda é a fórmula empregada.

Há uma extensa literatura especializada que procura codificar os trabalhos de


inteligências dentro dos Estados modernos contemporâneos. Geralmente, os
próprios operadores da máquina administrativa que executa os trabalhos de

190
inteligência também são seus maiores formuladores. Por exemplo, Mark M.
Lowenthal, presidente do Intelligence & Security Academy (LLC) dos EUA e ex
membro da CIA, define inteligência como sendo algo que se refere a dados
reconhecidamente ou declaradamente necessários para informar policymakers e
que tenham sido coletados, processados e especificados para suprir tais demandas.
Nas próprias palavras do autor:

Intelligence is a subset of the broader category of information. Intelligence


and the entire process by which it is identified, obtained, and analyzed
respond to the needs of policy makers. All intelligence is information; not all
information is intelligence […] Intelligence is the process by which specific
types of information important to national security are requested, collected,
analyzed, and provided to policy makers; the products of that process; the
safeguarding of these processes and this information by counterintelligence
activities; and the carrying out of operations as requested by lawful authorities
(LOWENTHAL, 2009, p. 1-8).

Essa definição estabelece a inteligência estatal como processo de informar


mediante uma demanda por informações específicas que orientem políticas
governamentais, significando requerer, coletar, disseminar e produzir certos tipos
de informações estratégicas para os interesses que alguns julguem como da
nação e do Estado. Assim, inteligência é todo o processo de coleta e análise de
informação que se formula em organizações estatais com a função de reproduzir
orientações nacionais estratégicos de defesa, proteção, projeção de poder
geopolítico, entre outros. Ainda de acordo com essa literatura específica, as
agências de inteligência existem por quatro razões principais: evitar surpresas
estratégicas; promover expertise de longo prazo; dar suporte ao processo
político; e manter o sigilo de informação. Para as questões acerca da Amazônia e
dos mecanismos político-administrativos e político-militares de uma suposta
internacionalização de práticas territoriais, creio que o primeiro item merece
66
maior destaque .

Na literatura norte-americana especializada, há certo consenso em relacionar


inteligência com segurança nacional, i. e., política de defesa e política externa, por

66
Em minha tese de doutorado, trato especificamente da categoria internacionalização da Amazônia (ver
Medeiros, 2012).

191
um lado, e segurança territorial e segurança interna, por outro. As instituições
brasileiras seguem a mesma doutrina, mas ainda com pouca publicação. No Brasil,
o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) tem promovido, por meio da Secretaria
de Acompanhamento e Estudos Institucionais, seminários, congressos e publicações
na área. Há também nas universidades centros e institutos voltados para as
questões estratégicas e de inteligência, geralmente vinculados às pesquisas de
departamentos de Relações Internacionais, Ciência Política e História. Outra
instituição que converge para promover discussões e publicações nessa temática no
Brasil é a Associação Brasileira de Estudo de Defesa (ABED). Mesmo havendo uma
distinção entre temáticas e objetos de inteligência e política estratégica quando
comparamos Brasil e EUA, percebemos que em termos conceituais as publicações
brasileiras ainda acompanham a doutrina da segurança nacional norte-americana.

Desde a aprovação do National Security Act (1947), em acréscimo com outros atos
administrativos do executivo, que instituíram a Agência de Segurança Nacional
(National Security Agency), o Conselho Nacional de Segurança (National Security
Council) e a Agência Central de Inteligência (Central Intelligence Agency), a
inteligência nos EUA mudou bastante com os ataques de 11 de Setembro de 2001 e
a aprovação da lei 108-458 (Intelligence Reform and Terrorism Prevention Act, de
2004). As práticas de inteligência norte-americanas precisaram se reinventar porque
a ameaça à segurança nacional não era mais uma questão de guerra convencional
contra exércitos instituídos, mas contra insurgentes contra seus próprios governos
pró-EUA e militantes com convicções político-religiosas profundas. No início do
século XXI, há uma aproximação da inteligência estatal com atores não-estatais na
formulação de novas estratégias de produção de informação (LOWENTHAL, 2009).
Por sua vez, a inteligência brasileira foi reformulada pela lei nº 9.883, de 7 de
dezembro de 1999 e pelo Decreto nº 4.376, de 13 de setembro de 2002, que institui
o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)
e estabelece a integração das ações de planejamento e execução da atividade de
inteligência no Brasil. No período militar, o SNI servia internamente ao aparelho de
repressão política. A redemocratização do país requereu um novo modelo de
inteligência. De acordo com a lei 9.883,

192
[...] entende-se como inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e
disseminação de conhecimento dentro e fora do território nacional sobre fatos e
situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação
governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado.

Nem todas as agências ou sistemas de inteligências no mundo são comparáveis.


Elas exercem funções e possuem objetivos distintos conforme as legislações de
cada Estado. Os principais modelos de inteligência são os da: Inglaterra (M15, M16
e Government Communications Headquarters), China (Central MilitaryCommission e
Communist Party); França (DGSE – Généreale de La Sécurité Extérieure, desde
1982); Rússia (antiga KGB – Soviet Socialist Republics‘ State Security Committee); e
de Israel (Mossad). O modelo brasileiro se aproxima mais do norte-americano, na
medida em que possuem várias agências estatais integradas em um sistema com
uma agência central, sendo os controles e as fiscalizações externas exercidos pelo
Congresso Nacional.

Não é novidade relacionar riscos de segurança nacional com as crescentes


questões ambientais. Johan Holst (1989), Alexander López (2009), Thomas Homer-
Dixon (1991; 1994; 1995; 1996), Andrew Hurrell (1992), AnsKolk (1996), entre
outros, realizaram pesquisa que vinculam a politização e a militarização dos desafios
ambientais no mundo e se aproximam do que denominamos geopolítica ambiental.
Em termos analíticos, a Amazônia enquanto região estratégica está cada vez mais
politizada e militarizada dentro de construções teórico-empírica da região o que
impacta diretamente nas formulações técnico-burocráticas de instituições estatais e
não-estatais. Não há uma limitação clara, as formulações das instituições estão
muito atreladas as análises acadêmicas, havendo muita porosidade nos enunciados.
Por exemplo, há preocupações com hipóteses de escassez de recursos ambientais
e o impacto disso em conflitos sociais. Algumas das análises tanto acadêmicas
quanto de instituições apontam para a deterioração das condições ambientais que
desfrutamos hoje o que causará consideráveis riscos de desestabilização social
(violência civil, conflitos étnicos, insurgências, desobediência civil, guerras por
recursos naturais). Muitas das previsões dizem que mudanças ambientais levarão a
profundas consequências sociais. Não é difícil, como temos analisados, perceber
que a Amazônia entra tanto na ordem das proposições de potenciais soluções às

193
ameaças de mudança climática quanto na ordem prática de estabelecimento de
ações territoriais efetivas para concretizar decisões políticas. Tudo isso edifica o
que este artigo denomina de geopolítica ambiental.

Grosso modo, os significados operacionais da geopolítica ambiental leva a uma


condição de guerra permanente que opõem os Estados nacionais: de um lado, o
aparato de inteligência norte-americano procura projetar para além de suas
fronteiras os objetivos nacionais, nesse sentido, cada vez mais, a Amazônia constitui
ponto relevante para a segurança interna dos EUA quando se fala em recursos
naturais, mudança climática, escassez de água, produção de alimento, entre outros;
do outro lado, o aparato de inteligência brasileiro desempenha o papel de
desarticular interesses estranhos aos objetivos nacionais brasileiros (contra-
inteligência), idealmente disposto a exercer a função de promover os interesses
internos. Esse é o jogo posto. Só que muitos outros jogadores estão em campo além
dos aparatos de inteligência e para além do que se julgue interesse nacional e
objetivos nacionais.

4 “Materiais Potencialmente Críticos”: o Caso da Mineração na Amazônia


Brasileira.

Esta seção procura analisar um caso específico, a fim de demonstrar a


operacionalidade da geopolítica ambiental. Grosso modo, instituições não-estatais
possuem convicções bastante diversas, porém, se assemelham em alguns aspectos
na medida em que procuram realizar suas convicções particulares ao mesmo tempo
em que instrumentalizam operações estatais a fim de concretizar missões e
interesses que se atribuem. Mesmo que no nível das proposições não haja fronteiras
rígidas entre práticas estatais e não-estatais, as instituições estatais elaboram
narrativas estratégicas e possuem competências de planejamento com execução
orçamentária pública e se servem de uma formalidade diferenciada em termos de
operacionalidade de agentes públicos investidos em cargos públicos. As não-
estatais combinam narrativas ativistas direcionadas a programas, obras e projetos
específicos, muitas vezes, vinculados a recursos e regulamentações estatais,
mesmo sendo uma ação privada.

194
O Environmental Defense Fund (EDF), ONG norte-americana que atua na defesa de
direitos indígenas e na preservação da floresta amazônica em cooperação com
ONGs brasileiras, elaborou, no fim da década de 1990, para contrapor argumentos
de que os interesses norte-americanos em questões indígenas e ambientais tinham,
antes de quaisquer convicções humanitárias e ecológicas, um viés geopolítico para
conservar minerais potencialmente estratégicos. O Fundo consultou os anuários
produzidos pelo Bureau of Mines, órgão vinculado ao U.S. Department of the
Interior. Os documentos analisados pelo EDF foram: Mineral Commodity Summaries,
1995; ―Potentially Critical Materials (Bureau of Mines, OFR-28-88, Division of Policy
Analysis, March 1988). O Bureau of Mines produzia anualmente relatórios de
acompanhamento de mineras estratégicos no mundo. Com base nesses
documentos o EDF afirma que

[...] pensar que a política internacional gira em torno de depósitos de matéria


prima é a geopolítica do século passado (séc. XIX), geopolítica jurássica.
Recursos naturais são menos ‗estratégicos‘ do que a tecnologia que os
transforma. E ainda, se não fosse assim, os norte-americanos estariam se
preocupando com o subsolo do Canadá, da África do Sul e da Rússia muito
antes do da Amazônia.

O EDF procura desconstruir a perspectiva de que haveria um ―complô planetário‖


para se apropriar ou para manter em reservas minerais estratégicas na Amazônia
brasileira. De acordo com o EDF, o argumento do ―complô planetário‖ pressupõe
dois fatos: primeiro que existem na Amazônia recursos em escassez nos mercados
internacionais; segundo que há reservas minerais excepcionais na Amazônia. Com
base nisso, imagina-se que a defesa de direitos indígenas está a serviço de um
controle do mercado de minérios, gerando um grande concerto estratégico para
controlar essas reservas. O documento do EDF procura desfazer esses dois
pressupostos. Primeiro, diz que o Brasil só tem 12% da reserva de ouro do mundo,
portanto, uma importância relativa com relação ao ouro. Com relação ao estanho
(feito da cassiterita), o Brasil possui a maior reserva mundial, mais do que o dobro
do segundo colocado (China), contudo, de acordo com o documento do EDF, os
EUA possuem uma enorme reserva interna, além isso o estanho ser produto
superabundante no mercado internacional. A Associação de Países Produtores de
Estanho (APPE) fazem esforços para diminuir a oferta para obter preços mais

195
vantajosos. Portanto, não é um mineral estratégico, na perspectiva do EDF.
Mesmo que fosse, a mudança tecnológica pode mudar esse quadro a qualquer
momento. O EDF diz:

[...] quando nos meados da década de 1980, o Paranapanema abriu a mina


de Pitinga, no Amazonas, virou as costas para a APPE e encheu o mercado
internacional com grandes quantidades de cassiterita de alto teor de estanho.
Resultado: o preço caiu pela metade e os mineiros bolivianos, cujos custos
de produção eram maiores, e cujo minério era de teor mais baixo de estanho,
foram para a rua. Ninguém, nos EUA, que importa estanho, se preocupou
nem um pouco.

Ainda segundo o documento do EDF, com relação a diamantes industriais, o


Departamento de Minas dos EUA avaliava que o Brasil possuiria 15 milhões de
quilates de reserva base, ―quase nada perto da Austrália, que tem 900 milhões, ou
do Zaire, com 350 milhões‖. O maior argumento é acerca dos minérios realmente
estratégicos que têm aplicabilidade na produção bélica e na indústria aeroespacial.
O documento do EDF analisa o documento ―Materiais Potencialmente Críticos‖,
publicado pelo Bureau of Mines, OFR 28-88, Division of Policy Analysis (1988). O
documento analisa 14 substâncias-chave de uso em alta tecnologia dos quais os
EUA dependem da importação e que não possuem estoques suficientes. Alguns
exemplos são: o germanium (Ge) ―usado nos instrumentos de ótica infravermelha,
sistema de direcionamento e mira de armas, sensoriamento remoto e outros‖;
hafnium (Hf) que é o ―único material admissível para varas de controle nos reatores
nucleares dos submarinos da marinha dos EUA‖; gallium (Ga) utilizado em
―instrumentos óticos-eletrônicos e lasers para fibras óticas dos mais avançados‖. O
relatório do EDF conclui que para esses 14 metais estratégicos existiria um país com
reservas importantes, em oito casos.

O Brasil aparece, uma vez, como uma das cinco fontes principais de alumina (o
galium ocorre como subproduto da transformação da bauxita em alumina). O
Departamento de Minas fez essa listagem em 1988 e, depois, não fez mais. É difícil
acompanhar as mudanças tecnológicas, tanto em materiais novos para alta
tecnologia quanto em processos de produção.

196
Portanto, o relatório da EDF afirma que muito dos materiais estratégicos são
subprodutos do processamento de um ou mais metais comuns, demandando
processos mais qualificações de processamento. A Amazônia brasileira tem
reservas consideráveis de minerais ―não-estratégicos‖, como ferro, manganês e
bauxita, ―mas a oferta mundial é abundante e barata‖.

De acordo com o especialista do EDF, durante a preparação do artigo sobre metais


estratégicos, o levantamento anual e a publicação do boletim sobre os metais
estratégicos no mundo, sem explicação prévia, foram suspensos. O especialista
afirmou que ligou no os órgãos competentes para saber a razão do fim do
monitoramente, segundo ele, o responsável pelo levantamento afirmou que não
havia mais minerais estratégicos no mundo porque isso dependeria da tecnologia. O
estratégico é a tecnologia, portanto, o mineral pode mudar de prioridade com
facilidade. Também a extração é o mais complexo. Garantiu ainda que não adianta
ter o mineral na terra, é preciso ganho de escala para viabilizar economicamente a
extração. Em pesquisa na Library of Congress em Washington D.C., é de fácil
consulta o U.S. Geological Survey, vinculado ao Departamento do Interior, que ainda
mantém o monitoramento e a publicação desse material. Agora em bases muito
mais amplas. Eles monitoram 91 substâncias. Por exemplo, no último levantamento,
o Brasil possui 84% da reserva mundial de Nióbio (Nb), Canadá 9%, Alemanha 2%,
Estônia 2%, outros 3%. O Nióbio é considerado um metal extremamente estratégico
por ser um supercondutor com potencial uso em processadores mais sofisticados,
substituindo o uso de silício para a indústria aeroespacial. O Nióbio tem utilização na
indústria nuclear e na produção de jatos e foguetes. O Brasil produz 91% do minério
comercializado no mundo. O segundo maior produtor, o Canadá é responsável por
7% da produção mundial. A dependência norte-americana do Nióbio brasileiro é
ponto de preocupação deles, recentemente o site WikiLeaks publicou um relatório do
Homeland Security Department em que se expõe essa dependência classificando-a
de preocupante (REF: STATE 6461PLEASE PASS TO RSO, POLOFF, ECON, and
MANAGEMENT).

Em suma, é justamente esse tipo de codificação (mineração serviu aqui apenas


como exemplo, poderíamos ter trabalhado com biodiversidade, aquecimento global
ou reserva de água potável, entre outros) que procura estabelecer práticas

197
territoriais para a Amazônia, formulando o que denominamos neste artigo de
geopolítica ambiental.

5 Conclusão

Podemos tirar algumas conclusões de uma geopolítica ambiental que envolve o


Estado brasileiro e o Estado norte-americano, todos atuando na lógica do governo
do território. Primeiro, é fato que exista um aparato político-institucional nos EUA
interessado em práticas de gestão ambiental e governança global que se traduzem
em monitoramentos da Amazônia: acompanhar a oferta de minerais classificados
como ―materiais potencialmente críticos‖; compreender o aquecimento global e suas
consequências; patentear e explorar as vantagens de dominar a biodiversidade;
entre outros tópicos. Segundo, o monitoramente e o conhecimento não significa
necessariamente que haja um complô por trás para destituir a soberania brasileira
sob seu território. Terceiro, não há dúvidas, dentro dos atuais pressupostos do
direito internacional público (REZEK, 2000) que a regulamentação e do governo
territorial da Amazônia brasileira cabe ao poder público brasileiro. Portanto, é no
espaço de manobra da burocracia especializada em lidar com inteligência que se
configura a realidade de uma geopolítica ambiental ampla. Os Estados se colocam
em um estado de vigilância permanente, precisando se instrumentalizar para lidar
com uma realidade de governo da natureza cada vez mais complexa.

Resumidamente, constatamos que o Estado norte-americano planeja suas ações,


procurando formar uma burocracia capaz de lidar com diferentes contextos, países e
situações, a fim de manter sobre controle oportunidades comerciais e de segurança
nacional. Todo esse aparato burocrático focado em monitorar os países, em geral, e
a Amazônia brasileira, em particular, está baseado na premissa de que eles estejam
permanentemente em um estado de guerra, procurando garantir constante
mobilização de recursos materiais e de um imaginário político. Segundo, cabe ao
Brasil mostrar os limites e capacitar sua gestão territorial. Portanto, falta ao Estado
brasileiro um planejamento estratégico econômico de agregação de valor que
substitua as atividades primário-exportadoras que legitimam os atuais estados de
misérias, explorações, barbáries, falta de segurança jurídica e de um estado

198
democrático de direito plenamente operando. O fato é que o Estado brasileiro
precisa retomar o controle da região em todos os níveis, desmontando práticas
arcaicas e objetivando, antes de tudo, contemplar a regulamentação fundiária,
apoiar financeira e logisticamente arranjos econômicos locais em comunidades
extrativistas e ribeirinhas, entre outras ações dinamizadoras de uma economia local.
Os crimes ambientais de madeireiras, assassinatos de ativistas ambientais e
religiosos, poluição, grilagem de terra pública, desmatamentos não autorizados,
ocupações impróprias, miséria, descumprimento de direitos sociais, são produtos de
um Estado não equipado estrategicamente para enfrentar os desafios territoriais da
Amazônia. A geopolítica ambiental para a Amazônia é um desafio de gestão
territorial que implica no controle dos recursos, a fim de dinamizar novas tecnologias
que irão realizar as potencialidades socioeconômicas da floresta.

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202
SEGURANÇA, DEFESA E JUSTA CAUSA NA AMAZÔNIA

Túlio Endres da Silva Gomes67

1 Introdução

A justiça da causa, como legitimadora do emprego da força pelo Estado, é uma das
questões fundamentais e mais antigas do direito internacional público. Com a
evolução dos estudos de segurança e defesa 68, particularmente após a Segunda
Guerra Mundial, esse tema não perdeu sua importância e atualidade; pelo contrário,
teve seu escopo ampliado, uma vez que a legitimidade do uso da força deve ser
considerada tento no âmbito externo quanto no interno, em operações de guerra e
em ações em tempo de paz. O tema é vasto e possui inúmeros campos a serem
analisados, a partir de múltiplos problemas que podem ser propostos.

A inserção das forças armadas brasileiras dentro dos novos conceitos de segurança
e defesa ocorreu por intermédio da aprovação de dois marcos fundamentais: a
Estratégia Nacional de Defesa (END) e a Política Nacional de Defesa (PND). Diante
dos seculares conceitos da justiça da causa e dos modernos preceitos de segurança
e defesa, quando voltadas as atenções para a Amazônia brasileira, surge o
problema: qual seria a importância da justiça da causa para o sucesso das
operações militares de guerra e não guerra na segurança e na defesa da Amazônia
brasileira? Levanta-se, como hipótese inicial, que a causa justa é primordial para
esse sucesso, em função de diversos fatores, dentre os quais os direitos
internacional e nacional e a opinião pública, tanto dentro quanto fora da Amazônia e
do Brasil. Essa justiça não se relaciona apenas com o aspecto legal do emprego de
tropas federais; ela é ampla e abrange diversos outros fatores, como os políticos e
psicossociais, compreendendo tanto a legitimidade quanto a legalidade da causa.

A pesquisa histórica e documental e a hermenêutica jurídica são os métodos


utilizados para o desenvolvimento da pesquisa. Para aquelas, seguem-se os passos
67
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército/Instituto Meira Mattos
68
BUZAN e HANSEN (2012) analisam essa evolução, mencionando que os estudos de segurança internacional
teriam surgido dos debates acerca da proteção dos Estados contra as ameaças internas e externas, após a
mencionada guerra.

203
propostos por Marc Bloch – observação, crítica e análise, e seus pressupostos
metodológicos. Para esta, utilizam-se os preceitos dos métodos de interpretação
doutrinária, literal, sistemática, histórica e teleológica. Quanto aos meios, a pesquisa
é documental, baseada em obras e artigos relacionados com o direito internacional,
constitucional e militar, com a teoria da guerra e com os relatos e análises do
emprego de forças armadas em situações diversas em que a justiça da causa
impactou o resultado das operações militares. Além disso, os mencionados marcos
regulatórios dos assuntos de defesa brasileiros apoiam a análise da justa causa
segundo os modernos preceitos de segurança e defesa.

A fim de solucionar o problema proposto, foi formulado o seguinte objetivo geral:


analisar a aplicabilidade da justiça da causa como pressuposto para o sucesso da
atuação das forças armadas brasileiras na segurança e defesa da Amazônia,
concluindo sobre alguns dos aspectos a serem observados no estudo das hipóteses
e no planejamento desse emprego. A análise será desenvolvida a seguir.

2 A Justiça da Causa Aplicada aos Modernos Preceitos de Segurança e


Defesa: Antecedentes Históricos

O conceito de justa causa aplicada ao uso da força pelo Estado tem suas origens
nos princípios do direito internacional público. Os direitos grego e romano
estabeleciam a declaração formal de guerra como um dos pressupostos para a
legalidade da guerra, como ensina Cinelli (2011)69. Segundo esse autor:

Uma contribuição relevante dos romanos foi o jus fetiale, de caráter


religioso, o qual requeria uma declaração formal de guerra para o início das
hostilidades , bem como alguns preceitos relativos à sua conclusão. Em
parte, essa tradição refletiu a percepção da guerra como uma condição
legal formal em oposição a uma condição fática, percepção essa que
somente diminuiu de importância no século XX (CINELLI, 2011, p. 32-33).

A exigência da declaração de guerra era um dos primeiros preceitos da guerra justa.


Ela se fundamentava na lealdade e no formalismo das relações internacionais.

69
O autor realizou ampla pesquisa documental, abordando o Direito Internacional dos Conflitos Armados, suas
relações com outras ciências sociais e com doutrina militar terrestre ae a problemática de sua aplicação pelos
comandantes militares.

204
Embora essa exigência não seja mais um pressuposto do estado de beligerância
entre as nações, o instituto ainda está presente na Constituição Brasileira de 1988
(artigo 84, inciso XIX), que estabelece que compete privativamente ao Presidente da
República, autorizado pelo Congresso Nacional, declarar guerra em caso de
agressão estrangeira.

No final da antiguidade, no século V d.C., em reação à invasões bárbaras ocorridas


nesses anos, que deram fim ao Império Romano do Ocidente e início ao período da
história conhecido como Idade Média, a teoria da Guerra Justa, de Santo
Agostinho, legitimou os atos de guerra cometidos pelo soberano, que era o
―legítimo detentor da ordem divina e responsável por sua manutenção.‖ Ao direito de
mover a guerra por parte do soberano acompanhavam os princípios cristãos de
humanidade, que deveriam disciplinar a condução dos combates. Desses preceitos,
surgiram regras para normatizar a guerra entre cavaleiros e o código geral da
cavalaria (CINELLI, 2011, p. 35-36). Ainda durante a Idade Média, no século XIII,
São Tomás de Aquino ratificou os critérios para a guerra justa, concebidos por
Santo Agostinho, legitimando, mais uma vez, as ações armadas levadas a efeito
naquele continente, por intermédio de elementos como a justa causa, a intenção
legítima e a autoridade legal (CINELLI, 2011, p. 52).

Em 1625, foi publicada sua obra De Iuri Belli acPacis – ―Das leis da Paz e da
Guerra‖, que estruturou o direito da guerra em duas vertentes: o jus ad bellum, ou
direito preventivo da guerra, e o jus in bello, a regulação jurídica do estado de
guerra (CINELLI, 2011, p. 38-40) O jus ad bellum passou, então, a regular o
direito de mover a guerra, que pode ser ampliado, para fins de atender à presente
análise, para regular o direito de mover as forças militares ou as forças armadas
de um Estado.

Seguiram-se, nos séculos XVIII e XIX, a profissionalização dos exércitos e a


evolução das leis da guerra, sob a forma de direito consuetudinário. Na segunda
metade do século XIX, o direito e o sistema internacional evoluíram o suficiente para
permitir que fossem assinados os primeiros tratados internacionais, que
consolidaram as regras do jus in bello e do jus ad bellum, desenvolvidas ao longo
dos séculos (CINELLI, 2011, p. 43).

205
No Brasil, Clovis Bevilaqua (1911, p. 260-261) tratou das duas vertentes do direito
de guerra nos seguintes termos:

[...] as nações procuram justificar-se perante a opinião internacional,


por terem necessidade de romper o estado normal da existência dos povos
culto, que é o estado da paz; e a guerra tem que ser feita segundo
rigorosos preceitos de direito internacional, que lhe diminuem as
crueldades inevitáveis e transformam os ímpetos da violência sanguinária
em uma complexa relação de direito, em que se sentem ligados os
beligerantes entre si e em face dos neutros, para os quais a guerra também
cria direitos e deveres (grifos nossos).

Portanto, a guerra, ou o uso da força de um Estado contra o outro, se justificava


não somente pela causa que determinou o uso desse recurso extremo, como
também pelo respeito aos preceitos do direito.

Como parâmetro fundamental para a utilização do recurso da guerra, a necessidade


seria o exaurimento de todos os demais meios de se atingir os objetivos pretendidos
pelas nações. Essa necessidade deve ser bem entendida como um preceito do jus
ad bellum, sobre a qual já havia discorrido Gentili (2006), em 1612, distinto da
necessidade militar, ou princípio da necessidade, do jus in bello, que recomenda que
as ações militares sejam limitadas ao que que for estritamente necessário à
consecução dos objetivos militares.

Também Paiva (1850, p. 25) discorreu sobre a necessidade como fundamento


da guerra justa, ou pressuposto de sua legitimidade. É interessante ressaltar a
ressalva que o autor faz a respeito das indesejáveis baixas em combate que as
nações necessariamente têm ao recorrer ao recurso da guerra:

Na presença, pois, dos horrores e calamidades da guerra, só a poderá


justificar a necessidade*). E esta só pode verificar-se depois de exauridos
todos os meios, que a razão e a prudência aconselham para terminar
qualquer questão acerca de direitos e obrigações. O mesmo vencedor tem
sempre que chorar, além de outros desastres, a perda de seus
soldados**).

206
*) Tais são as conferências amigáveis, tratados, transações, árbitros,
medianeiros etc.

**) Não podem justificar a guerra a glória militar, nem a conquista, nem
muito menos o nutrir caprichos e o orgulho dos governos. Só merece o
amor e a admiração de seus súditos o príncipe que, com talento e
prudência, dirige uma guerra justa e legitimada pela necessidade. (grifos
nossos)

O fundamento do jus ad bellum está diretamente relacionado à justiça de sua causa,


ou ao conceito de guerra justa, também amplamente explorado pelo direito de
guerra desde seus primórdios, com destaque para a obra de Santo Agostinho.
Nesse sentido, Alves Junior (1866, p. 94) discorreu sobre esse conceito: a guerra
seria ―justa ao lado do Estado que é obrigado a fazê-la, para defender seus direitos,
quer a lesão já exista, quer esteja no futuro, pela ameaça constante do mal que
pode sobrevir.‖70
A falta de declaração de guerra não lhe tira o caráter de justa. Hoje, está
abolido o uso da declaração solene. O rompimento das negociações se faz
pelo ultimatum e retirada da legação, e logo podem começar os atos de
hostilidade.‖ (ALVES JUNIOR,1866, p. 94)

O incidente que fundamentou as ações militares brasileiras contra o Paraguai, na


Guerra entre a Tríplice Aliança e este país – o aprisionamento do navio mercante
Marquês de Olinda, no Rio Paraguai, ao cruzar o território paraguaio – foi
relacionado diretamente ao direito internacional como disciplinador do direito das
nações à navegação fluvial. Sobre esse assunto, dispôs o autor (ALVES JÚNIOR,
1866, p. 73-74):
[...] sérias controvérsias se levantam pelo embate da soberania dessas
nações ribeirinhas, que são coproprietárias, e, portanto, mais difícil, senão
impossível, é contestar o direito de livre navegação, desde que isso está no
interesse, no futuro e no próprio desenvolvimento dessas nações.

Reconhecida essa copropriedade de duas ou mais nações que são


ribeirinhas ao território fluvial, que as banha, além de ser lógico o
reconhecimento do direito à livre navegação, é claro que também não se
pode admitir fortificações como essa de Humaitá, com que, atualmente, o
Paraguai sustenta seu bárbaro, selvagem e despótico poder nas margens
do Paraguai.

70
Nessa citação, o autor faz referência a Klueber, § 237.

207
Bevilaqua (1911, p. 284) discorreu sobre o ―direito de mover a guerra‖, também
tratando especificamente do caso do aprisionamento do navio Marquês de Olinda:

Francisco Solano Lopez, num movimento de irritação, filha do despeito,


mandou capturar o navio mercante brasileiro marquês de Olinda, que, à
sobra da paz reinante entre o Brasil e o Paraguai, atravessava esse último
país, em direção a Mato Grosso. Mais do que isso, considerou os
passageiros do vapor prisioneiros de uma guerra não declarada.

No Brasil, como em outras partes do mundo, os comandantes militares dirigiam-se à


tropa por intermédio de ordens do dia e proclamações, que continham orientações e
determinações de como proceder. A proclamação do então Conde de Caxias por
ocasião do início dos combates no Uruguai, em 1851, na Guerra contra Oribe e
Rosas, é repleta de preceitos do direito de mover a guerra, como decorrência da
incapacidade de a diplomacia brasileira haver atingido seu objetivo de cessar as
hostilidades contra os súditos do Império no território daquele país. A proclamação
evidencia a importância do direito de guerra e da busca da justiça da causa como
respaldos para a ação militar e motivadores para o combate. 71 Eis o texto da
proclamação:
Rio-Grandenses! O Governo de Sua Majestade o Imperador, cansado
de reclamar em vão do General Oribe, pelos meios diplomáticos, uma
inteira e cabal satisfação pelas violências, pelas extorsões, pelos cruéis
assassinatos praticados súditos brasileiros estabelecidos no Estado
72
Oriental; tendo sempre procedido como nimiamente respeitador dos
direitos internacionais; inimigo da efusão de sangue, mas, ao mesmo
tempo, cônscio de sua dignidade; profundamente ferido na sua
nacionalidade; forte pelo inquestionável direito que lhe assiste, de
proteger os seus súditos, de acordo com os distintos generais, que se
acham à frente das briosas forças das limítrofes províncias de Entre-Rios
e Corrientes, e com o governo legal de Montevideo; têm resolvido lançar
mão das armas e entrar com eles na gloriosa empresa de libertar-se do
pesado jugo de um intruso e omisso poder, que oprime os seus e insulta
os vizinhos, postergando todos os princípios de humanidade e dos
direitos das gentes.

Rio-grandenses! O Exército do Brasil já pisa o território da República


Oriental, mas com o único fim de por um paradeiro à série de injúrias, de
opróbios, e de crimes que o Império tem sofrido, concorrendo ao mesmo

71
A proclamação encontra-se dentro de sequência de Ordens do Dia do Comandante em Chefe do Exército, em
Santa Anna do Livramento, entre a Ordem do Dia 15, de 28 de agosto de 1851, e a Ordem do Dia 16, do dia 29
dos mesmos mês e ano. O documento encontra-se disponível no acervo do Arquivo Nacional, no Campo de
Santana, Rio de Janeiro (Coleção Caxias, código de fundo OP, caixa 811, pacote 2)
72
Demasiadamente, excessivamente.

208
tempo para que a ordem se restabeleça naquela República, a fim de que,
sob a égide de um governo justo, sejam ali religiosamente respeitados os
direitos, as propriedades e as vidas dos seus súditos.

Cidadãos brasileiros e orientais! Homens amigos da civilização e da


ordem! A causa é vossa: vinde vingar as injúrias da pátria; vinde esmagar
a hidra da anarquia e acabar com o canibal vandalismo, que tem devastado
73
e flagelado o vosso país; correi pressurosos às armas, que a mais
completa vitória coroará nossos esforços em tão nobre empresa, levando
vossos nomes à mais remota posteridade.

Conde de Caxias (grifos nossos)

Na primeira ordem do dia emitida pelo Barão de Porto Alegre, após deixar o
território brasileiro, em Corrientes, Argentina, quando se dirigia com sua o
Segundo Corpo de Exército para o teatro de guerra no Paraguai, em 20 de março
de 1866, este comandante se dirigiu aos soldados por intermédio da ordem do dia
no 73 (BRASIL. 1877, p. 171-172), motivando-os para o combate, lembrando e
reforçando a justiça da causa, do ponto de vista dos aliados, e recomendando o
―respeito aos direitos individuais e aos de propriedade‖ e a ―compaixão para com
a desgraça do inimigo vencido‖:

Camaradas! O General comandante em chefe, ao deixardes o solo sagrado


da Pátria para encetardes, no território de uma Nação amiga, as operações
que estão destinadas a esse Exercito, felicita-se por acha-se à vossa frente
e vos saúda pela cruzada santa que vamos empreender.[...]O respeito aos
direitos individuais, e aos de propriedade, é um culto para o soldado
civilizado do mesmo modo que a violência àqueles é o rastro que, após
si, deixam as legiões não civilizadas.[...]O General, reconhecendo em
quase todos vós os companheiros da gloriosa jornada da Uruguaiana,
confia que, na hora solene em que o clarim da guerra assinalar o momento
do combate, graduareis o vosso valor na peleja pela compaixão que estais
acostumados a dispensar à desgraça do inimigo vencido.

A justiça da causa defendida pelo Brasil na Guerra entre a Tríplice Aliança e o


Paraguai foi relatada por diversos autores, nas manifestações de perplexidade e
injúria das autoridades e imprensa brasileiras diante do apresamento do Marquês de
Olinda e da invasão do Mato Grosso e Rio Grande do Sul. A mobilização nacional foi
marcante. De todas as partes do país, voluntários da pátria atendiam às
necessidade do esforço de guerra e se apresentavam para compor as fileiras do

73
Com pressa, rapidamente.

209
Exército. Esse grande movimento de voluntários, que preencheu as lacunas
decorrentes do falho sistema de recrutamento brasileiro, foi descrito pelo então
Ministro da Guerra, Visconde de Caramurú, no relatório apresentado à Assembleia
Geral Legislativa, em 1865 (BRASIL, 1865):

A nossa lei de recrutamento defeituosa, como todos reconhecem, subsiste,


e a sua revogação depende de estudo e conhecimentos práticos para ser
ela devidamente substituída. [...]Achareis apenso o mapa dos recrutas e dos
reengajados [no] Exército: o seu número não corresponde às necessidades
do serviço.Lisonjeia-nos, porém, a afluência que tem havido de
voluntários da Pátria, a fim de marcharem para nossas fronteiras,
donde cumpre expelir o inimigo, que invadiu o nosso território.De
todas as classes da sociedade apresentam-se, diariamente, cidadãos
pedindo a honra de alistarem-se nos corpos que seguem para o sul e Mato
Grosso.Pais de família, empregados públicos, todos procuram concorrer
para [a] desafronta do país, sem olhar para os trabalhos de viagem e
comodidades que abandonam. Enche-nos de ufania tão nobre espetáculo: e
quando a Nação em peso ergue-se, como um só homem, no momento da
agressão externa, comprova que sabe devidamente apreciar os dons da
independência e liberdade, mantendo, com o próprio sangue, a integridade
do Império e instituições de que gozamos.Pode-se calcular em dez mil o
número de cidadãos que tem concorrido para formar batalhões que
[engrossam] o nosso Exército em operações; e a mais se elevará esse
número de voluntários, porque o patriotismo não arrefece em peitos
brasileiros, antes se estima cada vez que nos chegam notícias dos
atentados cometidos pelos inimigos [nas] povoações onde entram, e
onde nada respeitam. E, à vista de semelhante entusiasmo, suspendeu-se
o recrutamento na corte e em muitos lugares, e, ultimamente, expediu-se
ordem dispensando os recrutadores em todas as províncias, porque o
governo julga desnecessário coagir pessoa alguma para tomar parte na
defesa do Império, quando milhares de cidadãos correm espontaneamente
a oferecer-lhe os seus serviços; e com esta medida de supressão alguma
economia se faz em benefício dos cofres populares.

A mobilização nacional brasileira que fez parte do esforço de guerra não se limitou à
grande apresentação de voluntários. O relatório do Ministro da Guerra de 1865
contém um documento - oferecimentos feitos ao governo – que descreve, em treze
páginas, as ofertas de cidadãos de vários estados: serviços diversos, partes do
soldo, transporte gratuito em vapores e trens e dinheiro, dentre muitas outras.
Segue, abaixo, foto da primeira página do documento.

210
Figura 1: Relação de oferecimentos feitos ao governo para as urgências da guerra.

Fonte: BRASIL. Relatório do Ministro da Guerra, 1865 (Página 1 de 13)

A justiça da causa também foi o fundamento para o envio da Divisão Expedicionária


brasileira para a Itália, na Segunda Guerra Mundial. Nesse caso, dentre outros
fatores econômicos e políticos que fizeram com que o Brasil se alinhasse com os
Estados Unidos, houve uma grande mobilização nacional em função da reação
contra o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães. Segundo
Fausto (2009, p. 382),

a indefinição [acerca do apoio brasileiro aos Aliados, contra os países do


Eixo] foi superada quando, entre 5 e 17 de agosto de 1942, cinco navios
mercantes brasileiros foram afundados por submarinos alemães. Sob
pressão de grandes manifestações populares, o Brasil entrou na
guerra ainda naquele mês. O alinhamento brasileiro ao lado da frente
antifascista se completou com o envio de uma força expedicionária – a FEB
– para lutar na Europa, a partir de 30 de junho de 1944. A FEB não foi uma
iniciativa imposta pelos Aliados. Pelo contrário, consistiu em uma decisão
do governo brasileiro, que teve que superar as restrições dos americanos
e a franca oposição dos ingleses. [...] Mais de 20 mil homens lutaram na
Itália, sob o comando do general Mascarenhas de Morais, até o fim do
conflito naquele país, a dois de maio de 1945, poucos dias antes do término
da guerra (grifos nossos, destacando a mobilização popular e a decisão do
Poder Político).

211
Do exposto nesta seção, pode-se inferir, que o conceito da justiça da causa para o
emprego da força pelo Estado foi desenvolvido ao longo de séculos pelos
doutrinadores do direito internacional público. No Brasil, particularmente no século
XIX, esse fundamento foi estudado por doutrinadores e constantemente utilizado para
respaldar as ações militares do Império, inclusive pelos comandantes militares
brasileiros. A justa causa serviu, também, como motivador para a mobilização
nacional, no Brasil, para a Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai e para o envio
da Divisão Expedicionária Brasileira para a Itália, na Segunda Guerra Mundial.

3 A Justiça da Causa Aplicada, no Brasil, aos Modernos Conceitos de


Segurança e Defesa

Para analisar a aplicabilidade da justiça da causa aos modernos conceitos de


segurança e defesa que regulam a atuação das forças armadas brasileiras, é preciso,
inicialmente, conhecer sua missão constitucional e suas destinações legais. Esse
conhecimento permite situar o Brasil perante os compromissos internacionais que
assumiu e interpretar corretamente diretrizes políticas e estratégicas atuais – PND e
END, com o objetivo de inferir sobre essa aplicabilidade.

A destinação constitucional das forças armadas brasileiras é a defesa da Pátria e a


garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (Constituição Federal, artigo
142). Além disso, por força da lei complementar 97/99, cabe também às forças
armadas, dentre outras missões,participar de missões de paz e atuar
subsidiariamente com ações para cooperar com o desenvolvimento nacional e
defesa civil; atuar com ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira, contra
ilícitos transfronteiriços e ambientais e cooperar na repressão de delitos de
repercussão nacional e internacional, em todo o território nacional, com inteligência,
logística, comunicações e instrução, sendo a atuação de cada força dentro do seu
ambiente operacional.

Pode-se verificar o vasto campo de atuação das forças armadas brasileiras, com
uma agenda muito mais voltada à segurança e defesa em sentido amplo do que
especificamente à defesa externa. Esse amplo campo de missões e destinações
está em conformidade com os conceitos de segurança e defesa, que prescrevem a

212
preservação da soberania e integridade territorial, com a promoção dos interesses
nacionais, livres de pressões ou ameaças, e com a garantia aos cidadãos brasileiros
do exercício dos seus direitos e deveres constitucionais (segurança); e a adoção de
medidas e ações para a defesa do território, da soberania e dos interesses
nacionais, contra as ameaças externas (defesa) (BRASIL, 2012b, p. 2).

Como fonte complementar para a análise das missões constitucionais e legais das
forças armadas brasileiras na atualidade, pode ser utilizada a Política Nacional de
Defesa, que é ―o documento condicionante de mais alto nível do planejamento de
ações destinadas à defesa nacional coordenadas pelo Ministério da Defesa.‖
(BRASIL, 2012b p. 1) sendo voltado para a atuação contra ameaças externas. Para
implementar as ações decorrentes da PND, a Estratégia Nacional de Defesa
estabelece medidas de reorganização e reorientação, da organização da base
industrial e da composição dos efetivos das forças singulares (BRASIL. 2012a, p. 1).

Acontece que as medidas que poderão ser implementadas pelas forças armadas
para afastar ameaças, promover o desenvolvimento, garantir a lei e a ordem,
defender a soberania ou mesmo promover o desenvolvimento são inúmeras, e a lei
não será capaz de estabelecer exatamente quais são essas ações.

Nesse ponto, é preciso considerar o que é legal, o que é legítimo, o que é justo. É
preciso analisar a justiça da causa a ser defendida pelas forças armadas brasileiras
a cada missão que lhes é conferida.

Cite-se, como exemplo, a atuação da Marinha do Brasil no apoio às operações de


investimento no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, em 13 de novembro de 2011.
Embora as viaturas blindadas, tecnicamente, terem servido à manobra de investimento
dentro daquela comunidade antes tomada por traficantes, o fundamento legal,
amplamente difundido na imprensa à época, foi que os blindados atuaram em apoio
logístico às operações, buscando, assim, o respaldo da lei complementar 97/99. Mas o
questionamento a esse emprego foi mínimo: a causa era justa.

Citem-se, também, as inúmeras atuações do Exército Brasileiro em comunidades do


Rio de Janeiro, baseadas em convênios dos governos federal e estadual, à revelia
do que prescreve a LC 97/99 – reconhecimento oficial de incapacidade do estado da

213
federação seguido de decreto federal de intervenção para garantia da lei e da
ordem. Acreditamos que um dos pontos que determinou o sucesso dessas ações foi
que a causa defendida pelo governo brasileiro, por intermédio de suas forças
armadas, era justa, embora não fosse estritamente legal.

Em compensação, se ocorrem violações, a justiça da causa pode ficar


comprometida, como ocorreu no episódio em que integrantes de facções rivais
teriam sido entregues a criminosos por militares do Exército, no Morro da
Providência, no Rio de Janeiro, em 2008.

Fora do Brasil, no século XX, ocorreram exemplos em que houve a atuação fracassada
de forças armadas que, embora amparadas pelas normas e leis interna de seus países,
e com imensa superioridade de meios, não contavam com o respaldo internacional ou
passaram a carecer da causa justa em determinado momento, que se constituiu em
ponto de inflexão para a derrocada dessas campanhas. Assim aconteceu com as
Forças Armadas dos Estados Unidos no Vietnã, na década de 1960, que perdeu a
legitimidade, dentre outros fatores, pela violação aos seculares direitos dos não
combatentes, protegidos pelo direito internacional.

Assim ocorreu, também, com as tropas americanas e suas aliadas, no início


deste século, que, apesar de campanhas militares incialmente bem sucedidas no
Oriente Médio, não conseguiram manter a justiça da sua causa legitimando as
ocupações do Iraque e do Afeganistão, e foram duramente hostilizados pe las
populações locais. Acerca da justiça da guerra no Afeganistão, escreveu Tracey
O‘Rourke (2011):

Existe, sem dúvida, um grande conflito e debate acerca da natureza da


Guerra do Afeganistão; entretanto, existe um consenso relativamente
grande de que, apesar de esta ter sido uma guerra justa, os erros
cometidos pela governo Bush e a troca da atenção dos problemas do
Afeganistão para os problemas do Iraque se somaram para levar essa
a se tornar uma guerra injusta (tradução nossa, grifos nossos,
demonstrando uma causa inicial supostamente justa, viciada por
acontecimentos no decorrer da campanha)

Pode-se concluir, parcialmente, que a justiça da causa, em seu amplo sentido, como
a qualidade do que é legal, legítimo, justo e atendedor dos anseios da Nação

214
brasileira, deve ser analisada como pressuposto para a ação do Estado e das forças
armadas. Na Amazônia brasileira, tanto as ações de defesa da soberania contra
ameaças externas e internas quanto as ações complementares e subsidiárias
devem ser pautadas por esse pressuposto. É o que passaremos a analisar.

4 A Justiça da Causa Aplicada à Segurança e Defesa na Amazônia

A segurança e a defesa da Amazônia envolvem uma série de atividades, de âmbito


interno e externo. Com base nas destinações constitucionais e legais das forças
armadas, na PND e na END, podem ser destacadas algumas das atividades de
maior vulto, dentro desses campos:

- a defesa da integridade territorial brasileira, incluindo o patrulhamento de


extensas linhas secas de fronteira e de inúmeros cursos de água que têm origem em
países vizinhos;

- a garantia da lei e da ordem, quando demandadas pela incapacidade dos


estados da federação, na Amazônia, em fazer frente aos inúmeros problemas de
segurança pública, como segurança de grandes instalações e obras de
infraestrutura, tráfico de entorpecentes, crimes ambientais e biopirataria;

- a atuação, com patrulhas terrestres e fluviais, e pelo ar, reprimindo e prevenindo


a ocorrência de delitos transfronteiriços e ambientais em toda a faixa de fronteira
amazônica;

- a fiscalização de produtos controlados, como os explosivos utilizados em


pedreiras e garimpos existentes na região;

- a cooperação com a segurança pública e defesa civil;

- as ações de apoio à repressão de crimes de repercussão nacional e


internacional na Amazônia, em terra, nos rios e mar e no ar;

- a coordenação e fiscalização da navegação nos rios da Amazônia;

- o controle do espaço aéreo amazônico; dentre outras.

215
Todas essas ações, em última análise, visam à manutenção da soberania e
integridade nacionais, à promoção dos interesses nacionais, livres de pressões ou
ameaças, e à garantia, aos cidadãos brasileiros, do exercício dos seus direitos e
deveres constitucionais, tudo em conformidade com a PND.

Portanto, para atingir a essas finalidades, no cumprimento das missões atribuídas às


forças armadas, é preciso que elas defendam a causa justa da lei e da Constituição,
que são bem definidas, e ―dos interesses nacionais, livres de pressão ou ameaças‖, o
que nem sempre é bem definido. É preciso que a justa causa seja manifestada na
decisão de usar o poder militar, a cargo do Poder Político, mas também é
imprescindível que as ações militares prossigam cumprindo a finalidade maior a que
foram destinadas, mantendo a causa do emprego das forças armadas justa.

A justiça da causa no emprego das forças armadas, na Amazônia, tem sido


contemplada, e o maior reflexo disso é o alto grau de aprovação que as ações das
Forças Armadas têm nessa parte do território Nacional. Ela se manifesta na
legalidade das ações na fronteira, como a recente Operação Ágata 7, em âmbito
nacional, e também na Amazônia; nas ações cívico-sociais que são desenvolvidas
concomitantemente a essa e a outras operações militares, atendendo aos interesses
e aos anseios da população mais desassistida, e garantindo o gozo de direitos
fundamentais dos cidadãos brasileiros; na integridade de nossas fronteiras,
mantidas livre de ameaças pela atuação das forças singulares; na atitudes e na
postura dos militares envolvidos, que podem reforçar ou enfraquecer a justiça da
atuação da tropa.

É importante destacar que, muitas vezes, o ―interesse nacional‖ e as ―garantias do


exercício dos direitos‖ aos cidadãos nem sempre poderá estar muito clara, quando
se decidir pelo emprego das forças armadas. Na Amazônia, como no oeste do
Brasil, isso poderá ocorrer quando do emprego dessas tropas para apoiar ações de
desintrusão de áreas indígenas e de repressão a atividades ilícitas ou irregulares de
exploração ambiental. A questão da justiça da causa deve ser baseada na
legalidade, e atuação da força deve ser muito bem definida em procedimentos,
regras e condutas. Essas atividades podem gerar insatisfação de setores produtivos
e de cidadãos de bem, e a atuação das forças armadas, destacadas para essas

216
missões subsidiárias mas equipadas e preparadas para a guerra, podem trazer
consequências desastrosas para a justiça da causa para a qual foram empregadas e
para a imagem das forças.

Além disso, a ―guerra de resistência‖ a que faz referencia a END (BRASIL. 2012a, p
16) repousa essencialmente da necessidade de identificar toda a nação com justiça
da causa da defesa da Amazônia. Não será possível conduzir essa estratégia se
não houver essa identificação, de que a causa de resistir é justa, mesmo que haja
mortes, destruição, mesmo que os interesses individuais tenham que ser
suplantados pelos interesses da Nação como um todo.

Pode-se concluir, parcialmente, que as peculiaridades da Amazônia e a complexidade


desse ambiente fazem com que a importância da avaliação da justiça da causa ao
empregar as tropas e a manutenção da legalidade das ações seja mais crítica do que
em outras partes do território. Isso faz com que seja primordial o estudo da legitimidade
antes de se empregar as forças armadas. Ademais, a orientação dos procedimentos
dos militares envolvidos deve ser a mais cuidadosa possível.

5 Conclusão

A agenda de segurança e defesa da Amazônia é das mais importantes e extensas,


dentre as inúmeras questões semelhantes com que se deparam as forças armadas
brasileiras em todo o território nacional. A existência de incontáveis recursos
hídricos, vegetais, minerais, de uma biodiversidade ainda não totalmente conhecida
e explorada, bem como a permeabilidade da extensa fronteira com outros países,
incidência de crimes transnacionais, problemas decorrentes de crimes ambientais,
terras indígenas, tudo isso faz com que sejam extremamente demandadas as forças
armadas naquela parte do território brasileiro, em questões de segurança e defesa
que muito extrapolam a defesa externa.

Em síntese, a justiça das causas defendidas pelas forças armadas, como no


passado, em seu sentido mais amplo, deve ser o guia para a decisão do Poder
Político de empregar essas forças bem como do procedimento de militares e civis
envolvidos nessas ações. Na Amazônia brasileira, essas causas justas – legais,

217
legítimas, dentro dos interesses da Nação e de seus cidadãos – devem ser
primordiais condicionantes dessa atuação.

Assim, essa justa causa poderá ser atendida com o estudo dos pressupostos legais
de atuação das forças armadas; com a conscientização da população para a
necessidade de defender as riquezas, integridade e soberania brasileiras na
Amazônia; com o atendimento das formalidades legais para o emprego das forças
armadas em tempo de paz; com a ação integrada de outros órgãos e agências,
dentro das competências constitucionais e legais de cada um; com a atuação
legítima e correta de todos os integrantes das forças militares envolvidas, dentro
daquilo que a Nação espera dos militares de suas forças armadas – correção de
atitudes, honestidade, educação, patriotismo, desprendimento, rusticidade e espírito
do dever, dentre outros predicados.

Finalmente, o conceito da justa causa poderá servir como mais um guia da atuação
das forças armadas, na Amazônia e em todo o território nacional, na guerra e nas
missões complementares e subsidiárias da paz.

Referências Bibliográficas

BUZAN, Barry; HANSEN, Lene. A evolução dos estudos de segurança


internacional. Tradução: Flávio Lira. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.

ALVES JUNIOR, Thomaz. Curso de Direito Militar. Tomo I. Rio de Janeiro:


Tipografia do Correio Mercantil, 1866.

BEVILAQUA, Clovis. Direito Publico Internacional: a synthese dos principios e a


contribuição do Brazil. Tomo II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1911.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


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219
Simpósio Temático 3

PERSPECTIVAS DAS QUESTÕES DE GÊNERO NOS ESTUDOS DE DEFESA:


UM OLHAR RETROSPECTIVO DOS ENCONTROS NACIONAIS DA ABED

Andréa Costa da Silva74

1 Introdução

O ENABED, evento promovido anualmente pela Associação Brasileira de Estudos de


Defesa (ABED), apresenta-se como um espaço importante para a discussão de questões
pertinentes às questões de gênero, em sua interface com vários campos do
conhecimento. Na amplitude dos temas relativos aos Estudos de Defesa, a ABED tem
procurado potencializar o espaço de intercâmbio entre o meio acadêmico e a área de
estudos relativos à Defesa Nacional, segurança nacional e internacional, estratégia,
guerra e paz, relações entre Forças Armadas, sociedade e ciência e tecnologia no âmbito
da Defesa Nacional. Nesta perspectiva o ENABED, oferece um importante panorama da
realidade da esfera acadêmica e docente nesta interface do conhecimento.

Nas últimas décadas as temáticas relativas às questões de gênero são


crescentemente contempladas nas políticas públicas, em projetos educativos e em
trabalhos acadêmicos, aparecendo nos últimos com diferentes ênfases e sob
enfoques variados. A perspectiva que adotaremos para observar as questões de
gênero ao qual vamos nos referir é oriunda de um diálogo entre o movimento
feminista e a produção teórica de diversas disciplinas – história, sociologia,
antropologia, ciência política entre outras, pois se trata de um tema que suscita uma
abordagem trans/interdisciplinar, tendo em vista que as conceituações oriundas das
questões de gênero estabelecem interface com vários campos do conhecimento.

74
Docente da Universidade da Força Aérea - UNIFA

220
Teorizando sobre este aspecto, sabemos que em 1949, Beauvoir escreveu o livro ―O
Segundo Sexo‖, e com ela surge a famosa frase ―não se nasce mulher, torna-se
mulher‖, destacando que qualquer determinação ―natural‖ da conduta feminina
refere-se à construção social do sexo anatômico, ou seja, há machos e fêmeas na
espécie humana, mas a maneira de ser homem e de ser mulher é mediada pela
cultura, não é uma contingência da anatomia de seus corpos. As maneiras como
homens e mulheres vivem em sociedade relaciona-se a um aprendizado
sociocultural que nos ensina a agir conforme as orientações de cada gênero e
segundo cada contexto social.

Assim também se constituem as relações de trabalho, pois longe de ser uma dimensão
isenta, nesta esfera se percebe a incisiva influência do gênero no ingresso no mercado
de trabalho ou a escolha da carreira profissional. A construção de uma carreira
profissional e a oferta de postos de trabalho e de profissões leva em conta aptidões
entendidas como ―naturais‖ aos homens e às mulheres independentemente da
escolaridade. Nas Forças Armadas, por exemplo, embora atualmente as fileiras estejam
se engrossando com a presença feminina, somente há poucas décadas vemos tal
inserção e mais ainda, somente há poucos anos pode-se admitir mulheres concorrendo a
posições antes destinadas somente aos homens. Deste modo, se quisermos contribuir
para uma sociedade mais justa em que haja equidade de gênero, que se possa visualizar
o fim da assimetria de gênero, precisamos estar atentos para as posições
desempenhadas por homens e mulheres em vários setores do tecido social.

Com tais pressupostos pretendemos apresentar uma contribuição sobre a


produção neste campo de conhecimento e oferecer visibilidade para as
formas como tal vem se desenvolvendo em sua interface com os Estudos de
Defesa e com isso, possivelmente indicar aspectos que a nosso ver vão ao
encontro da complexidade que marca as questões de gênero e seus
desdobramentos no contexto contemporâneo.

Com esta perspectiva empreendemos nossa análise buscando relacionar os


discursos que apareciam nos trabalhos sobre a temática em questão com algumas
de suas condições de produção, principalmente a perspectiva adotada para abordar
o tema. Nesse entendimento, os discursos não apenas representam, mas

221
constroem a realidade e são relacionados ao poder.Os discursos, sua circulação e a
maneira em que eles aparecem nos interessam, pois os entendemos como
construções pertencentes a determinada historicidade; nas palavras de Veyne
(2008, p.34): ―longe de serem ideologias enganadoras, os discursos cartografam
aquilo que as pessoas fazem e pensam realmente, e sem o saberem. Foucault
nunca estabeleceu uma relação de causa e efeito num sentido ou no outro entre os
discursos e o resto da realidade [...]‖. Com esta perspectiva consideramos a
linguagem em sua historicidade, ou melhor, na percepção da linguagem, em seu
uso, seu funcionamento histórico. No percurso da obra foucaultiana, o autor se
interessa pela linguagem e a percebe para além da distinção significante e
significado, e no desdobramento do conceito que envolve o plano discursivo, não é o
―ser da linguagem‖ que tem o foco.

Assim, tendo em vista a discussão sobre as questões de gênero nas instituições da


sociedade moderna, encontramos em Foucault, na obra ―A ordem do discurso‖ (2006),
a ideia de que o discurso sempre se produziria em relações de poder, havendo duplo e
mútuo condicionamento entre práticas discursivas e não-discursivas: ―Tabu do objeto,
ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala; temos aí o
jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam,
formando uma grade complexa que não cessa de se modificar.‖ (FOUCAULT, 2006,
p.9). Será nessa ―grade complexa‖ descrita por Foucault, ou malha discursiva, que
passaremos a observar os trabalhos dos Eventos.

A partir do corpus composto pelo levantamento de artigos encontrados no site do


evento, relacionados ao tema, estabelecemos os aspectos a serem discutidos na
análise por sua aderência ao tema pesquisado. A análise empreendida deteve-se
sob as atas dos 6 (seis) últimos ENABED como fonte primária de coleta de dados.

2 Percurso da pesquisa

1ª etapa: Constituição e delineamento do corpus

Para a seleção dos artigos, inicialmente optamos por empreender a busca a


partir dos títulos e ementas - quando possuíam - das sessões temáticas ou

222
grupos de trabalho do evento, tendo em vista que não existe sistema de
busca por palavra-chave.

Essa busca não pode ocorrer em relação à totalidade de trabalhos, pois


encontramos dificuldades de acesso aos trabalhos dos IV e VI ENABED.

Assim foi possível identificar 28 (vinte e oito)75 trabalhos relacionados à temática,


mas somente realizamos análise sobre 17 (dezessete) artigos, pois no IV ENABED,
o GT: ―Gênero, Paz e Forças Armadas‖, com os painéis ―Minorias nas Forças
Armadas‖, ―Mulheres como agente e sujeito de segurança e defesa‖ e ―Gênero,
segurança e conflito na política internacional‖ apresentou ementa e listagem com
autores(as) e títulos das comunicações, perfazendo 11 (onze) trabalhos, mas os
mesmos não estavam disponíveis no site.

No VI ENABED, os trabalhos, de todos os GTs, ainda não foram disponibilizados no


site, impossibilitando a busca.

Em seguida refinamos a busca através da leitura dos resumos individualmente,


principalmente quando inexistia separação temática no site, e depois
empreendemos a análise.

A incidência de trabalhos aponta a ocorrência do tema ―gênero‖ já no I ENABED,


com o GT ―Mulheres e Forças Armadas no Brasil‖ com 5 trabalhos. Nos anos
seguintes o número de trabalhos foi aumentando significativamente sendo o IV
ENABED o evento com mais trabalhos, totalizando 11 (onze). No III ENABED houve
um declínio do tema nos trabalhos apresentados.

A especificidade dos trabalhos se mostrou em relação a vários contextos e ênfases,


em que 21(vinte e um) trabalhos estavam relacionados ao contexto militar e destes,
16(dezesseis) mais especificamente ao contexto das Forças Armadas.

Deste modo, artigos sobre o papel feminino nas Forças Armadas foram recorrentes,
ampliando e reafirmando a preocupação com a inserção feminina nos quartéis
Poucos artigos contemplaram as questões de gênero relacionadas ao contexto
masculino, embora este aspecto fosse frequentemente citado nos artigos.

75
Dados obtidos nos sites dos eventos.

223
Nos últimos ENABED notamos a presença de temas oriundos do campo das
Relações Internacionais, com a menção da presença feminina em ações de
guerra e paz, por exemplo.

Quadro 1 - Frequência em que a temática aparece nos Eventos.

Gênero no ENABED

12

10

0
2007 2008 2009 2010 2011 2012
Anos do Evento

Qtde de artigos com a temática Gênero no ENABED

2ª etapa: Estabelecimento de questões para análise

Conforme já explicitado, tivemos como objetivos deste artigo:

a) Observar sob que perspectivas a temática ―gênero‖ vem sendo abordada nos
trabalhos apresentados nos últimos ENABED. Para em seguida, perceber:

b) De que forma os discursos sobre esta temática se articulam com os Estudos de Defesa

Assim dividimos nossa análise e consequentemente nosso olhar a duas categorias


de análise: o primeiro recorte se refere às abordagens existentes nos artigos, ao
tratamento oferecido ao conceito de gênero; a segunda categoria se refere a
interlocução do mesmo com os Estudos de Defesa. Devido às contingências de
espaço e recorte inerentes a um artigo, escolhemos trechos de artigos que
oferecessem representação às categorias apresentadas.

224
3 Gênero no contexto da ENABED: abordagens diferenciadas?

Nos trabalhos observados foi possível notar que as formações dos/as autores/as
bem como as abordagens efetuadas sobre a temática gênero recebiam perfis
diferenciados, pois em quase todos os trabalhos as conceituações acerca das
questões de gênero não apareciam de forma contundente, mas de maneira
pulverizada, quase como uma inferência ao contexto de pesquisa apresentado.
Os/as autores/as eram oriundos de campos variados como: Psicologia, História,
Sociologia, Educação, Antropologia, Psicologia Social, Relações Internacionais,
Política Social, História, Estudos de Gênero, Ciências Sociais, entre outros; tal
diversidade com certeza repercutiu nas abordagens oferecidas.

Levando-se em conta este cenário, devemos considerar o conceito de gênero, que


na acepção de Joan Scott (1995) é entendido como ―elemento constitutivo das
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e um
primeiro modo de dar significado às relações de poder.‖ (SCOTT, 1995, p. 77). Ao
discorrer sobre o conceito, Scott diz que:

[...] o gênero implica quatro elementos, a saber: a) símbolos culturalmente


disponíveis, que evocam representações simbólicas, mesmo contraditórias,
como Eva e Maria na tradição cristã; b)conceitos normativos que limitam os
sentidos metafóricos atribuíveis aos símbolos. Estes se expressam nas
doutrinas que regem os diversos campos institucionais - religião, educação,
ciência, política - afirmando de forma categórica e sem equívocos o sentido
do masculino e do feminino; c)a aparência de consenso e de fixidez pela
qual são veiculadas essas posições normativas; d) a identidade subjetiva.
O gênero se constrói para além da família e das relações de parentesco.
(SCOTT, 1995, p. 86)

Com a perspectiva de Scott, podemos pensar que enquanto homens e mulheres,


seres sexuados, estamos incorporados a processos de naturalização de atribuições
sociais, vivenciados no quotidiano. A introjeção dessa estrutura pela nossa
subjetividade marca atuação social própria e em relação ao outro, pois define
nossos modos de perceber o mundo, interpretar a cultura e estabelecer parâmetros
de relacionamento. A importância de perceber a dinâmica dos elementos descritos
por Scott incide em despolarizar construções estáticas e reconhecer a participação
do processo de produção simbólica como elemento dinâmico. As relações sociais
vão colaborar para o processo de subjetivação e construção de identidade em cada

225
indivíduo. Assim, devemos sempre levar em conta instâncias como a família, o
trabalho, os meios de comunicação e o contexto cultural como lugares de circulação
e produção simbólica.

Neste sentido, utilizamos o conceito de gênero em seu caráter relacional, referindo-


se ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas,
visando ―rejeitar um determinismo biológico implícito no uso dos termos como sexo
ou da diferença sexual‖ (SCOTT, 1995, p.72); levando em conta tais aspectos e
reforçando o que já foi dito, é que investimos na teorização foucaultiana e na contribuição
dos Estudos Culturais a partir de um olhar pós-estruturalista; em que cultura e relações
de poder possuem uma relação indissociável e ―[...] derivam dessas relações de poder a
significação do que é relevante culturalmente para cada grupo.‖ (VEIGA-NETO, 2000,
p.40); complementando esse pensamento o autor afirma: ―[...] para os Estudos Culturais,
não há sentido dizer que a espécie humana é uma espécie cultural sem dizer que a
cultura e o próprio processo de significá-la é um artefato social submetido a permanentes
tensões e conflitos de poder.‖ (VEIGA-NETO, 2000, p.40)

Neste contexto destacamos alguns trabalhos que trazem à baila a questão da


inserção feminina nas Forças Armadas. Ao tratar da entrada das primeiras cadetes
na AFA, Adão (2007)76, sinaliza sobre as tensões oriundas dos estereótipos de
gênero e da percepção masculina sobre as cadetes, resultando, por vezes na
depreciação feminina e nos diz:

[...] Neste sentido, no que se refere à instituição, é importante destacar que


quando incorporadas, as mulheres passaram a integrar os quadros
administrativos e mesmo quando se tornaram parte dos quadros
permanentes, ficaram limitadas ao exercício de atividades não ligadas
diretamente ao combate – por isso, de menor prestígio – o que não lhes
permitia acesso aos postos de comando. Ficavam impedidas de alcançar
os níveis mais altos da carreira militar e dessa maneira, permaneciam
limitadas a postos nos quais detinham uma condição de dependência em
relação aos seus superiores (ADÃO, 2007, p.6, grifo nosso).

Enquanto Almeida (2008)77 se detém em tratar do processo decisório no contexto


político institucional da entrada da mulher na Marinha do Brasil evidenciando que:

76
“A formação militar e a incorporação feminina: as dificuldades na ocupação de novos espaços” de Maria
Cecília de Oliveira Adão.
77
“Contexto político-institucional do processo decisório sobre a admissão da mulher militar”, de Mariza Ribas
d'Ávila de Almeida

226
[...]às mulheres militares foi negado o lugar e a formação em funções
de combate, justificando-se o seu lugar em funções auxiliares sob o
enfoque da construção cultural da diferença sexual e da interpretação
biológica socialmente construída do seu corpo. (ALMEIDA, 2008, p.5, grifo
nosso)

Ambos os artigos se propõem a avaliar a inserção feminina em espaços


majoritariamente masculinos, como as Forças Armadas, em que os papéis
desempenhados e as suas possíveis ressignificações e tensões estabelecidas pelo
lugar considerado ―natural‖ à mulher acabam por ficar circunscritas às expectativas
deste perfil feminino. O contexto que esta inserção se estabelece é trazido pelas
autoras relativizando a percepção de que a entrada feminina nos quadros das
Forças Armadas foi um processo ameno e sem conflitos.

Outro artigo analisa a influência das relações de gênero na formação militar


envolvendo grupos mistos (homens e mulheres), em de uma turma de alunos no
Curso de Formação de Oficiais do Quadro Complementar (CFO/QC) da Escola de
Administração do Exército (EsAEx). Procurando saber a opinião dos/as alunos/as
sobre a presença do sexo posto, Passos et al.78(2009), nos diz:

O fato que nos chama atenção foi que enquanto 12,5% das mulheres
consideraram a presença do sexo oposto como interferência negativa,
28,6% dos homens, ou seja, um número maior apresenta a mesma
consideração. As respostas mais listadas entre homens foram: a cobrança
tenderia a ficar amenizada pela presença das mulheres, haveria a
propensão dos instrutores homens em favorecer as alunas, o entendimento
de que as mulheres não teriam as mesmas capacidades/habilidades
que um homem e de que não mantém reservas sobre alguns assuntos. Já,
para as mulheres, a interferência negativa é com relação ao preconceito
que sofrem nas funções de comando, e que são subestimadas em sua
capacidade física e intelectual. (PASSOS et al., 2009, p.9, grifo nosso)

Diante dos enunciados observados anteriormente, pequenos recortes de análises


maiores com material empírico muito rico, pensamos no caráter relacional do
conceito de gênero, em que as questões invariavelmente aparecem imbricadas nas
práticas e ações que o fazem elemento chave para entender as relações de poder,
pois seria no modo como as características sexuais são compreendidas e

78
“Relações de gênero e a formação de grupos mistos na Escola de Administração do Exército(EsAEx)”, de
Carla Christina Passos, Ana Vera Falcão de Nantua e Selma Lúcia de Moura Gonzáles.

227
representadas. Assim, nos artigos analisados podemos perceber que mesmo em
contextos diferentes, evidencia-se o modo em que os estereótipos de gênero
interferem nas percepções dos sujeitos, possivelmente gerando desdobramentos
para a vida profissional dos/as mesmos/as.

4 Espaços militares: a busca pela legitimação?

Com a pretensão de trazer um panorama sobre os últimos ENABEDs no que tange a


abordagem das questões de gênero nos debruçamos sobre os artigos que
desenvolviam a temática. Logo de início ficou evidente que a interlocução do tema
com o campo dos Estudos de Defesa foi realizada pelo contexto, ou seja, mais uma
vez, como foi observado no tocante ao conceito de gênero, o contexto falou por si,
assim a grande maioria dos artigos tratava sobre a inserção feminina em espaços
militares e não problematizava diretamente esta inserção com as questões de
Defesa. Um dos artigos que apresenta este diálogo de forma mais contundente é o
artigo Almeida (2008), que trata do processo decisório da mulher militar, já citado
anteriormente que nos diz:

[..] já no final dos anos 80 estas [mudanças] começaram a apontar para a


direção da subordinação das Forças Armadas ao poder civil (Ministério
da Defesa), para a impropriedade do uso destas como recurso político e
para a centralidade da questão da Defesa Nacional como sua missão
(Brigagão, 2004). O que culminou no desenho de um perfil institucional que,
tendo passado pela formulação da Política de Defesa Nacional (1996) e
pela criação do Ministério da Defesa (1998), atualmente apresenta uma
atuação voltada para o exercício do poder militar em conformidade com as
prerrogativas constitucionais de defesa da ordem interna e
externa(ALMEIDA, 2008, p.9/10, grifo nosso).

Com esta análise, a autora enfatiza a mudança do cenário político-institucional


brasileiro e pontua que a inserção feminina nos quartéis advém também de
demandas político- institucionais estabelecendo outros perfis que acabam por ecoar
no espaço da caserna. De forma similar, Lannes (2008)79 analisa o pioneirismo da
Marinha diante da inserção feminina e nos aponta respostas a antigas questões:

79
“A inserção da mulher no moderno Exército Brasileiro” de Suellen Borges de Lannes

228
Mas o que levou ao ingresso das mulheres, o que fez com que o Almirante
Maximiano da Fonseca criasse, em 1981, o Corpo Auxiliar Feminino da
Reserva da Marinha (CAFRM), garantindo o pioneirismo dessa armada na
entrada da mulher nas instituições militares? O trabalho em questão levanta
três hipóteses que influenciaram nesse movimento: a atuação dos
movimentos feministas; a influência do exército norte-americano e o
baixo número do efetivo militar. (LANNES, 2008, p.8, grifo nosso)

Outros trabalhos corroboram a argumentação da autora, reiterando que variados


movimentos ofereceram as condições de possibilidade para que a inserção feminina
nos quartéis fosse finalmente implementada, como no artigo de Santos (2009) 80 que
analisa produções teóricas sobre a participação das mulheres no contexto militar
brasileiro a partir da década de 80, e aponta o pioneirismo da Aeronáutica:

Assim, pode-se dizer que a Aeronáutica foi pioneira entre as três forças,
em termos de formação acadêmica militar de mulheres em relação à
formação dos homens, ou seja, as mulheres passaram a receber uma
formação acadêmico-militar idêntica a dos homens em um curso de
formação de oficial de carreira e a possibilidade de atingir ao generalato.
(SANTOS, 2009, p.6/7, grifo nosso)

Hoje a inserção feminina nos quartéis brasileiros é um fato e novos contextos se


apresentam. Perspectiva logo identificada em documento fundamental para estruturação
das políticas de Defesa no Brasil: o Livro Branco de Defesa Nacional (MD, 2012).

Esse documento sinaliza esta mudança em relação às três forças e evidencia


―Particularmente, nos Corpos de Saúde e de Engenheiros Navais, as mulheres
na Marinha podem ascender ao posto de Oficial--General (Almirante),
concorrendo, para tal, em condições idênticas aos oficiais do sexo
masculino pertencentes aos mesmos Corpos.‖ (MD, 2012, p.110, grifo nosso),
nos diz no item ―Mulheres na Marinha‖.

Em relação ao Exército o documento pontua: ―A ECEME diplomou, no ano de 2011,


pela primeira vez desde sua criação, três oficiais do segmento feminino. As oficiais
médicas concluíram o Curso de Chefia e Estado-Maior para oficiais do Quadro de
Saúde, tendo a possibilidade de concorrer, no futuro, à promoção ao posto de oficial-
general.‖ (MD, 2012, p. 132, grifo nosso), ainda no item ―Mulheres na Força Aérea‖

80
“A participação das mulheres nas Forças Armadas Brasileira”: um debate contemporâneo de Lauciana
Rodrigues dos Santos.

229
assinala que: ―Nos quadros de aviadores, intendentes, infantaria de aeronáutica, saúde
e engenheiros aeronáuticos, as mulheres na Força Aérea podem ascender ao posto
de oficial-general (Brigadeiro), concorrendo, para tal, em condições idênticas aos
oficiais do sexo masculino.‖ (MD, 2012, p. 152, grifo nosso)

Com certeza o documento constata uma preocupação em evidenciar a equidade de


gênero nas Forças Armadas do Brasil; sem querer estabelecer uma perspectiva causal
entre este documento e os trabalhos analisados ou a produção acadêmica neste campo
do conhecimento, podemos pensar que tal avanço advém de um campo de eterna
tensão que repercute nos quartéis e na sociedade em geral. Deste modo, seria
simplista perceber este movimento de maneira polarizada; muito mais interessante será
pensar a natureza relacional do poder e em como tais pressupostos são oriundos de um
modo de pensar também o campo dos Estudos de Defesa.

Com o aporte de Foucault descobrimos que certos enunciados possuem mais


―força‖ que outros, não de uma maneira casual e despreocupada, mas devido a
contingências de seu surgimento e circulação; tais contingências indicam como
nossos objetos são construídos, e assim, ao nos preocuparmos em como a
temática gênero é veiculada nos Encontros da ENABED e consequentemente no
campo dos Estudos de Defesa, percebemos as condições de possibilidade de
existência de determinado discurso em relação a outro, como também sobre as
lacunas existentes no plano discursivo. Ao discorrer sobre o regime de formação
dos objetos, Foucault assinala que o discurso jamais se desvincula de questões
e jogos de poder, e com isto devemos: ―[...] não mais tratar os discursos como
conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos e
representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos
de que falam. [...]‖ (FOUCAULT, 2007, p. 55).

Com tal observação, voltamos à questão de considerarmos a evidente inter-relação


entre discursos e práticas, mas com a ressalva de que ao referi-los: ―O termo
discurso é um convite a ir mais fundo e descobrir a singularidade do acontecimento,
até delimitar essa singularidade, em última análise.‖ (VEYNE, 2008, p.34). Deste
modo são evidenciados os processos de inclusão e exclusão discursiva, onde os
interditos são produtos de um sistema de relações de poder/saber na sociedade.

230
Assim, se a inclusão/aceitação feminina nas Forças Armadas se fez possível
somente nos anos 1980, tal fato se deve a um terreno fértil de práticas, ações e
novamente discursos que oportunizaram o acontecimento.

5 Conclusão

A temática ―gênero‖ está contemplada em um total de 28 trabalhos apresentados


nos ENABEDs. Como discorremos no percurso de pesquisa, os 17 trabalhos
analisados apontaram diferentes abordagens de discussão do tema, em que campos
de investimento diferenciados foram perceptíveis. A interlocução entre os temas
Gênero e Defesa, surgiu, invariavelmente, pelo contexto de pesquisa das
investigações, sinalizando possíveis naturalizações.

O campo dos Estudos de Defesa tem recebido investimento crescente em trabalhos


sobre o tema, de modo que as questões de gênero surgem também fora dos limites
dos quartéis, oferecendo novos perfis para discussões e dando lugar a abordagens
que contemplam as perspectivas culturais, em que homens e mulheres possam ser
inseridos em papeis mais dinâmicos.

Estes embates falam de um espaço de efetivo reconhecimento e foi possível


visualizar a crescente demanda por um espaço de legitimação feminina; luta que por
vezes não configurasse a militância, mas que oferecesse visibilidade a discursos
anteriormente silenciados. Neste sentido não podemos ter um olhar ingênuo ou
simplista, mas, como bem sabemos, o respeito à diferença e o reconhecimento da
alteridade, só se constrói em cima de um constante e duro trabalho.

Não nos cabe aqui, pelo recorte apresentado e diversidade de material pesquisado
oferecer prognósticos determinantes. A perspectiva adotada foi como já dito, foi a de
oferecer visibilidade a uma produção e desta forma mostrar um panorama do
assunto em suas muitas interfaces. No contexto dos Estudos de Defesa, buscamos
oferecer outras argumentações, trazendo um pouco da complexidade e das
demandas dos campos em questão.

231
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233
A PÓS-MODERNIDADE E O EXÉRCITO BRASILEIRO: CONSEQUÊNCIAS E
DESAFIOS

Francisco José da Luz Neto81

1 Introdução

Em palestras há referências de que os dias de hoje vive-se ―uma Era de incerteza‖,


ou quais são os ―desafios do novo milênio?‖ e etc... . O que significa tudo isso?

Encontramos em FAUS (2005, p. 27) que: ―O mundo atual anda confuso. A verdade
e os valores estão ocultos aos olhos de muitos. Tudo parece difuso, impreciso,
discutível, sem contornos claros, [...] há valores morais transtornados que não
definem a fronteira entre o bem e o mal.‖. O Comando do Exército em sua diretriz
(BRASIL, 2011) afirma que ―o sistema internacional experimenta transformações
profundas e aceleradas. Há incertezas no horizonte imediato de uma nova ordem
que o Brasil almeja multipolar.‖. Assim sendo este artigo pretende esclarecer o leitor
o momento que vivemos, as transformações sociais e culturais, as desconstruções
de conceitos e a adoção de novos.

Para que haja uma pós-modernidade, parte-se do pressuposto de que houve uma
modernidade. Indagação surge: que reflexos essa realidade trouxe para a Força
Terrestre? Diante desse questionamento formulou-se o seguinte problema: Que
consequências podem advir e que desafios tem o Exército Brasileiro (EB) com o
fenômeno da pós-modernidade? Assim sendo levantou-se a seguinte hipótese de estudo:
O fenômeno sociocultural da pós-modernidade gerou no EB consequências e desafios.

Esse estudo tem como base, pesquisas bibliográficas e documentais que


permitiram uma revisão literária e histórica. Considerando a limitação da
extensão deste artigo, o tema fica em aberto na esperança de uma
complementação posterior, com uma metodologia de campo. A análise do
assunto verificou o papel da família na sociedade, na relação com o EB e como

81
IMM / ECEME

234
a família enfrenta as inserções de novos modelos de comportamento dos filhos
os quais em algum momento poderão ser incorporados (as) à Força e como irão
reagir à disciplina, hierarquia, ordens e deveres.

2 A Era da Modernidade

Ao aperfeiçoar o motor no século XVIII, James Watt, não imaginou a velocidade que
a humanidade alcançaria. Fabricar em série substituiu o artesanato e os critérios da
eficiência eram a qualidade e a quantidade da produção, sem respeito a satisfação
do trabalhador, citando McDavid e Harari (1980). A relação do capital/trabalho,
exigindo dos operários mais produção e mais ganho para os capitalistas, fez surgir
defensores dos primeiros, os pensadores iluministas, como Gournay, D'Alembert,
Rousseau, Diderot, Marx e outros, que desenvolveram conceitos e críticas às
relações trabalhistas, às instituições religiosas, à monarquia e a exploração do
homem pelo homem. Reivindicaram a individualidade do ser humano, que se
levantou contra Deus, proclamando a sua vontade de domínio e de transformação
das coisas (AYLLÓN 2013). Esta sociedade, diz Petrini (2003a, p.22), entusiasmada
pelos iluministas, na qual ―a razão iria dominar a natureza, em resolver problemas
práticos, […] passando pela negação de Deus e pelo ateísmo de alguns filósofos do
século XIX, até a proclamação da morte de Deus‖, fez com que o esforço em
dominar tudo ―conduzisse a razão a servir ao poder: econômico, militar, político e
ideológico‖(p.24).

O iluminismo retirou o homem da menoridade e, segundo Petrini (2003ª, p. 26),


―com autonomia ante as Igrejas e tradições culturais, que constituíam, durante
mais de um milênio e meio, o ponto de referência para os homens e mulheres
da Europa e dos povos que viveram sob a sua influência religiosa, política e
cultural‖. Esse fato histórico se alastrou no tempo, influenciou sociedades, deu
vazão aos desejos humanos, e, derrubou não só a Bastilha mas, tudo que
representava o cerceamento da plenitude de expressão do ser humano,
representado pela monarquia e pela religião.

235
Essa Era, ao aglutinar a política, a religião e o militarismo, gerou conflitos ao redor
do mundo nesses três últimos séculos, o que levou a grandes mobilizações das
Forças Armadas dos estados-nação. No Brasil, ocorreu a difícil mobilização para a
guerra da Tríplice Aliança, no século XIX, e para a II Guerra Mundial, no século XX.
Na interpretação de Bauman (2001), esse era o papel do estado-nação que, além da
face do Estado, era também a arma mais importante na luta pela soberania do
território e da sua população. Por esse conceito entende-se a presença do EB em
todo o território nacional.

A Era Moderna ocorria aqui como caixa de ressonância dos fatos europeus e dois
deles são emblemáticos: a Inconfidência Mineira e logo a seguir a transmigração da
família real Portuguesa para o Brasil, escapando das tropas francesas.

O Brasil, no século XIX e XX viveu a modernidade caracterizada pelo poder do


Estado-nação e tínhamos, no conceito de Bauman (2001, p. 233) ―unicidade na lei,
no idioma, na visão de mundo, na história e o pensamento de futuro‖. O mesmo
autor diz que esta nova Era, transmitia a ideia de ―um Estado de perfeição, a ser
atingido amanhã, algum tipo de sociedade boa e justa, sem conflitos […] da ordem
perfeita‖(p.37) e onde a fidelidade e a confiança eram a ―característica mais
importante, e mesmo constitutiva dessa sociedade (capitalista moderna)‖ (p.189). A
Era moderna acreditava nos valores existentes e a crença em valores intocáveis e o
EB atravessou essa Era apoiado nas colunas básicas da hierarquia e a disciplina,
nos valores militares específicos e atitudes éticas e morais que fizeram da Força
uma referência de profissionalismo, constatado em diversos conflitos internos e
externos, e, mais recente, a serviço da Organização das Nações Unidas (ONU), em
diversas missões e internamente é a mão amiga que apoia o povo e Costa (1957, p.
228) diz que ―todo aquele que estuda a história do Brasil, confrontando-a com a de
outros países, se surpreenderá com a missão revolucionária [...], sempre ao lado do
povo. Suas tradições democráticas fazem dele um exército raro no mundo.‖

Os valores morais e éticos como o respeito, a responsabilidade, o caráter e o


exemplo são trabalhados, na Força, desde o ingresso de homens e mulheres para
cumprirem seu tempo de serviço ou seguindo uma carreira por vários anos.
Hildebrand (1995, p. 12) considera que o respeito é ―a base de todo o

236
comportamento reto do homem para consigo mesmo, para com o próximo [...] e
sobretudo para com Deus‖. A responsabilidade ele afirma ser ―a base indispensável
da verdadeira vida moral, e, o caráter como o jeito de ser trazido de berço‖ (p.30).
Desses valores é o exemplo, aquele que espelha os demais, pois apresenta reflexo
imediato na conduta do militar, homem ou mulher, recruta ou de carreira, oficial ou
praça. Para entender o exemplo, Escrivá (1995, p. 227) contextualiza, ―és entre os
teus, a pedra caída no lago. Provoca com teu exemplo e com tua palavra, um
primeiro círculo; e este, outro... e outro, e outro... Cada vez mais largo.
Compreendes agora a grandeza da tua missão?‖. O marcante exemplo vem do lar,
dos pais que levam a sério a missão e que procuram formar os filhos com os valores
humanos essenciais e confirma-se a assertiva do historiador romano Vegècio (2006,
p. 34), ―os jovens a quem está confiada a defesa […], devem ter um comportamento
excelente e […] elevada moralidade‖.

A formação dos quadros militares está fundamentada na Instrução Militar, que é


padronizada, contextualizada e a expectativa do Exército, conforme o publicado na
Revista Verde Oliva, número 215 de junho de 2012 do Centro de Comunicação
Social do Exército, é ―constituir uma nova Força, que possa bem formar e preparar
seus recursos humanos, tornando-os altamente qualificados, treinados e motivados,
moral e intelectualmente‖. Em BRASIL (2011) lê-se que esta Força esteja ―alicerçada
nos princípios e valores que continuarão a nos identificar, bem como pela excelência
dos nossos recursos humanos, maior insumo e patrimônio da Instituição que,
continuamente educados e treinados serão competentes para lidar com o
inesperado.‖

A instrução militar transmite ensinamentos por meio da pedagogia da repetição e


Bouchacourt (s.d., p. 24) esclarece que ―aumentar o valor moral da tropa e dar-lhe o
reflexo da obediência se consegue pela execução repetida e frequente de pequenas
coisas simples, pela obediência imediata a exigências minuciosas.‖ Ele conclui que
―quando se exige do soldado o asseio corporal, [...] e a correção na maneira de
andar e de se vestir, [...] é a correção moral que se procura obter.‖ A Instrução Militar
é voltada para o princípio educacional do ―aprender a aprender‖ ou ―aprender
fazendo‖. Alguns pedagogos contestam esse processo por não valorizar a ciência
pelo conhecimento teórico/cientifico e acadêmico (MORAES, 2004).

237
3 A pós-modernidade

Citamos no início essa Era como fenômeno e entende-se que ela seja tudo que está
no mundo e como reagimos ou experimentamos. Ela é aceita por alguns e
contestada por outros como Moraes (2004, p.340), que diz em seu artigo que ―as
teorias que a compõem jamais expressaram um corpo conceitual coerente e
unificado‖. E, concordando, Petrini (2003, p. 31) afirma que os conceitos ―apontam
para uma realidade bastante clara: a falência das promessas ―modernas‖ de
liberdade e igualdade e de progresso acessíveis a todos‖. Lipovetsky (1983, p. 10)
afirma que nessa sociedade ―o individualismo hedonista e personalizado se tornou
legítimo; é a maneira de dizer que a era da esperança futurista, inseparável do
modernismo, terminou...‖, e diz ainda que nesta Era ―reina a indiferença de massa,
em que domina o sentimento de saciedade e de estagnação‖ e citando Faus (2005):
―esta é uma sociedade cada vez mais massificada, […] nos costumes, nos gostos e
vícios, até quase anular-lhes a personalidade, criando jovens consumistas […]
robotizando a juventude‖ (LIPOVETSKY, 1983, p.16). Após essa leitura cabe
questionar: como as famílias estão reagindo a tudo isso? Ressalta-se que dessa
mesma sociedade e famílias sairão os jovens que irão compor a Força Terrestre.

Alguns aspectos dessa nova Era sobressaem: inicialmente a individualização e Bauman


(2001, p. 47) diz que ela chegou para ficar, ―trazendo para um número sempre
crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de experimentar‖ que traz em
apenso a falta de respeito e pudor; o mesmo autor fala em seguida da mentalidade de
curto prazo que substitui a de longo prazo, porque, ―num mundo em que o futuro é, [...]
sombrio e nebuloso, […] colocar objetivos distantes […] e sacrificar o presente em nome
de uma felicidade futura não parecem uma proposição atraente, ou mesmo
razoável‖(p.186); e quanto a assumir responsabilidades e a frivolidade nas relações ele
diz que ―como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de
amanhã, quanto mais forem leves e superficiais, menor o risco de prejuízos‖(p.186), e
dai entender, segundo o mesmo autor, o ―porque dos casamentos até que a morte nos
separe‖ (p.169) estão decididamente fora de moda.

Essas são algumas das novas realidades em que a sociedade, a família e o


indivíduo estão inseridos e consequentemente, esses jovens, frutos da sociedade,

238
poderão se destinar a carreira das armas, procurando um serviço estável e salário
garantido. A realidade demonstrará que sem vocação será difícil a permanência
desses indivíduos na Instituição. Cabe ao Exército, incentivar a responsabilidade, a
lealdade, o companheirismo por meio de ativa instrução militar e o exemplo dos
comandantes em todos os níveis. Essas questões poderão impactar a formação
militar, mas o EB possui uma boa estrutura de ensino para a formação de seus
efetivos. O ingresso para o militar de carreira, de homens e mulheres, é por meio de
concurso público, avaliação física e psicológica. Para os efetivos temporários de
oficiais e praças a seleção é por meio de prova de títulos e especialidades, avaliação
física e psicológica. Os jovens alistados para o serviço militar inicial são
selecionados por uma Comissão de Seleção que segue parâmetros consagrados. O
serviço militar do Exército brasileiro procura adequar, o homem certo para o lugar
certo, e, é um trabalho sistematizado, informatizado e com metodologia própria há
mais de quarenta anos.

Para asociedade surge novos hábitos e costumes e sabemos que elas são
sistemas dinâmicos que se alteram com o passar do tempo, em um movimento
cíclico e que para atuar neste complexo mundo, a Força Terrestre tem de estar
preparada, pois sua finalidade é o combate. Missões subsidiárias, são anexas,
esporádicas, necessárias por vezes, mas não são um fim por si só. Iludem -se os
que pensam ser a missão do Exército só de paz, pois Vegécio (2006, p. 100) já
dizia: ―a guerra é doce para quem não a conhece‖. Por isso é tão necessário o
treinamento difícil, para que no combate o soldado tenha confiança em si mesmo,
nos seus companheiros, no seu equipamento e no seu armamento e em tudo o
que aprendeu.

4 A Família e o Exército na Pós-Modernidade

Na pós-modernidade deve-se compreender que os novos arranjos familiares não


são capazes, segundo Petrini (2003, p. 61), de dar uma resposta ―positiva e
adequada às exigências da vida e, [...] as novas gerações encontram mais
dificuldades para alcançar a estabilidade psicológica e afetiva, necessárias para
enfrentar o desafio da existência na sociedade pós-moderna‖. O mesmo autor

239
complementa que conforme a ―família encontra dificuldades para cumprir
satisfatoriamente suas tarefas básicas de socialização primária e de amparo aos
seus membros, esta se criando situações de vulnerabilidade, fatores de risco que
podem tender a marginalização‖ (p.81).

A família em um caminho nebuloso é literalmente bombardeada pela mídia que


homogeniza a sociedade, nivelando costumes, reduzindo diferenças de classes
sociais e McDavid e Harari (1980, p.364) completam ―que a mídia superou pais e
educadores como modelos de autoridade e de transmissores da cultura aos jovens‖.
Lipovetsky (1983, p. 37) acredita que a apatia e a indiferença gerada pela velocidade
e quantidade de informações disponíveis nas diversas mídias, fez com que o
―prestígio e a autoridade dos docentes desaparecessem quase que por completo‖. O
mesmo autor questiona: ―o que é que se mostra ainda capaz de espantar ou
escandalizar? A apatia corresponde à pletora de informações, à sua velocidade de
rotação; logo que é registrado, o acontecimento é esquecido, varrido de cena por
outro mais espetacular.‖ (p.38).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU proclamou que a família


merece proteção da sociedade e do Estado entretanto, Petrini (2003a, p. 73)
adverte que ―no final do século passado, a ONU, através de suas agências
especializadas aliadas a poderosos grupos de interesse ideológico, considerou a
família como um obstáculo à livre realização dos indivíduos‖. Percebe-se o viés
ideológico ao considerar a família como local de reprodução de uma mentalidade
conservadora. Na área da espiritualidade, Petrini (2003a, p. 26-27) diz que a
figura de Jesus Cristo foi modificada, sendo agora aceito ―como o maior mestre
moral […] e a religião é esvaziada de seus conteúdos próprios, sendo-lhe
reservada a função de agência moralizadora‖ e, nessa dinâmica a família
desorientou-se, pois Faus (2005, p. 73) conclui: ―hoje também os espíritos críticos
sentem com uma clareza sempre maior que a crise do nosso tempo consiste no
desaparecimento de Deus do horizonte da história humana‖. Essas questões
certamente irão impactar na formação do jovem, na estrutura familiar, no destino
da sociedade e, objeto deste artigo, na Força Terrestre.

240
O trabalho de seleção para ingresso na Força qualquer que seja a destinação e o
seu preparo por meio da instrução militar é fundamental. Receber jovens, que vivem
a pós-modernidade, para uma atividade nova e desafiante, requer dos quadros
permanentes dedicação, sensibilidade de observação e a força do exemplo. Em
Brasil (2001) encontramos que ―a palavra e a vida dos comandantes, em todos os
níveis, devem marchar de passo certo. A autoridade provém exatamente da
coerência entre uma e outra.‖

5 Rumos para o Exército Brasileiro na Pós-Modernidade

―Os rumos que o EB tomará estão pautados na elaboração, execução e controle de um


criterioso e coerente Planejamento Estratégico e para tanto tem-se que ousar nas
ideias, gerando energia criativa em soluções inovadoras e factíveis‖ (BRASIL 2011).

A Força Terrestre é empregada de acordo com sua doutrina militar, que dimensiona
e organiza a Força, tem seus valores e tradições e deve possuir também a
capacidade de enfrentar questões que emergem nesta Era. Na doutrina deve-se
perceber que neste cenário globalizado, o emprego do EB no jogo da dominação
não é mais jogado entre o maior e o menor mas, como diz Bauman (2001, p. 214),
―entre o mais rápido e o mais lento e dominam os que são capazes de acelerar além
da velocidade de seus opositores‖. Esse é o quadro que se configura perante a
Força e Bauman (2001, p. 19) resume que ―espertos mísseis auto dirigidos capazes
de seguir seus alvos, substituíram os avanços territoriais das tropas de infantaria‖.
Depreende-se que o terreno e as armas bases (Infantaria e Cavalaria),
desaparecem de importância no combate mas, não é bem assim, pois o mesmo
Bauman (2001, p.17-18) admite que ―não se pode prever o engajamento entre
exércitos em uma guerra, porém considera que as lutas irão continuar mais com
outra forma‖ de emprego pois, a conquista de um território em uma guerra é assumir
responsabilidade com tarefas complexas, custos financeiros elevados e limitação da
liberdade de ação.

Nesta perspectiva o Brasil assumiu a missão de manutenção da paz (Cap VI da


Carta da ONU) no Haiti, em 2004, e essa forma de emprego, para o EB, denomina-

241
se de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) (operação militar para imposição do
cumprimento e acatamento das disposições legais, assegurando a paz, tranquilidade
e normalidade na sociedade), assumindo os encargos e custos dessa empreitada.

Aumentado o leque de opções de emprego global para o EB, Zacarias (2008, p.


13) em sua visão, fala de ―restos‖, que compreendem atores que não são nações,
e sim ―grupos e indivíduos que ganharam poder e hierarquia, fazendo escorrer
entre os dedos a centralização e o controle das grandes potências‖. É o que
assistimos hoje, com as lutas de grupos étnicos, religiosos e intercomunais,
dentro de um próprio país, e Serrano (2012, p. 81) confirma esse quadro nesta
última década, ao dizer que ―os conflitos ativos envolvendo o governo superaram
os motivados por questões territoriais e, de vinte e nove conflitos ao todo,
somente dois se deram entre estados‖.

Nesses novos rumos, o EB necessita de quadros, homens e mulheres, que operem


em situações de crise e com compreensão deste novo cenário. É uma questão de
percepção, de uso imediato, pois estamos envolvido no jogo das regras globais. Não
apoiar a nova ordem mundial, significa retaliações de ordem econômica e financeira.
Fechar-se em si mesmo não será boa escolha.

Em síntese, essas assertivas devem ser levadas em consideração no estudo


para a obtenção da capacidade operacional e para a adoção de uma novo
emprego da Força Terrestre e, mesmo porque, não se pode considerar a
extinção de guerra entre estados-nações. Sobre isso acordamos com Serrano
(2012, p. 86) pois ―não há base consistente em supostas novas naturezas da
guerra, nem […] que a guerra entre estados tenha sido eliminada‖. Nossa
capacidade de emprego, qualquer que seja o tipo de combate, está limitada pois
nos falta capital e tecnologia porém, como acontece com outras potências, a
nossa capacidade militar aumenta junto com o crescimento econômico e
necessidades políticas. O mesmo autor conclui: ―Não há como não dotar o
Exército da capacidade de operar em toda a amplitude do espectro dos
conflitos, porque não sabemos de antemão em que grau de gravidade os nossos
interesses essenciais poderão ser ameaçados‖ (SERRANO, 2012, p.86).

242
6 Consequências e Desafios para a Força Terrestre.

Para chegarmos às consequências e desafios para o EB, é necessário traçarmos


uma possibilidade de perfil desses jovens pós-moderno, que vem para a caserna,
baseando-se nas referências bibliográficas e listou-se as seguintes tendências:

-jovens apolíticos, indiferentes, apáticos - Petrini (2003) e Lipovetsky (1983);


-desconhecedor de fatos históricos e heróis nacionais - MacDavid e Harari (1980);
-desrespeitoso para consigo mesmo e para com os outros - Faus (2005);
-sem compromisso com o país e não preza a fidelidade - Bauman (2001);
-família desestruturada - Petrini (2003); e
-falta de bons hábitos e responsável só quando lhe interessa - Bauman (2001)

Cabe então questionar: Hoje a formação de oficiais e graduados de carreira e a


capacitação do jovem pela Instrução Militar são coerentes, com os desafios que a
nova Era impõe? Desenvolvendo a pesquisa, alinhou-se possibilidades de soluções
para esta nova Era, que requer militares capazes de decidir, motivados, aptos para
emprego descentralizado, operativos com efetivos menores e compreensivos da
diversidade cultural.

De início valorizar a tradição, o culto aos heróis e a força dos valores éticos e morais
fundamentais da Força. Isso vai requerer instrutores (as) hábeis, criativos (as) e com
boa formação profissional e familiar para que, pelo exemplo, sejam um espelho para
os subordinados, moldando jovens em militares responsáveis, bem treinados,
instruídos na sua atuação específica para cumprir suas missões constitucionais. Em
seguida, o aperfeiçoamento dos quadros pela educação multicultural, modernização
de equipamentos, adoção de simuladores de vários tipos, a fim de que a Instrução
militar seja atraente e funcional. Finalmente, na seleção para o serviço militar inicial
e para os de carreira, é um desafio pesquisar novos processos seletivos e buscar
novas competências de interesse do EB.

Dentre os desafios que se apresentam, temos que a Força Terrestre, apoia a ONU,
desde 2004, como Força de manutenção de paz no Haiti e, caso tivesse meios
necessários, poderia ser empregado na modalidade de imposição da paz em outra
região do mundo (Capítulo VII da carta da ONU). A modalidade de emprego dita o

243
material e a tropa a ser utilizada, pois para o primeiro caso, tropas leves com
preponderância de armamento não letal e no segundo, tropas mais eficazes e pesadas
para impor a paz. Citando Serrano (2012, p. 82), ―O próprio EB demonstra ter
consciência desta constatação, tanto por ter equipado as tropas enviadas ao Haiti com
blindados leves, como pelo esforço de desenvolver uma nova família de blindados
sobre rodas‖, caracterizando esta configuração mais pesada para emprego em
ambiente mais belicoso. O dito acima se confirma nas Diretrizes para as atividades do
EB na área Internacional de 2013: ―a Força Terrestre deverá estar preparada para atuar
em todo o espectro das relações internacionais – de situação de paz até o extremo da
guerra – de Missões de Paz ou como Força Expedicionária‖.

Na área internacional o EB projeta o país pelo profissionalismo e o emprego de


tropa, requer no contexto atual, uma preparação especializada que envolve, de
acordo com Costa (2012, p. 64) ―uma educação/capacitação multicultural‖, a fim de
que inserida na instrução militar forneça ferramentas para que nossos militares
cumpram, com sucesso a sua missão. Há o preconceito de que nossos militares são
alegres, receptivos e conciliadores. Esse quadro não é tão real como se imagina,
pois, baseada nas pesquisas em entrevistas com militares que já participaram de
missões de paz, Costa (2012, p. 63) concluiu que: ―a crença na capacidade de
adaptabilidade do militar brasileiro para lidar com a diversidade cultural deve ser
repensada, questionada e sistematizada, com base em conceitos teórico-
metodológicos cientificamente consolidados‖. A autora afirma isso baseada, ―a partir
das experiências operacionais militares, na qual os planejamentos e processos
tradicionais estão inadequados para dar conta das complexidades e da fluidez dos
cenários contemporâneos‖ (p.64).

7 Conclusão

Este artigo procurando responder ao problema inicial, baseou -se nas


referências bibliográficas constantes ao final deste artigo e procurou esclarecer
o que ocorre e o que pode ser esperado pela Força Terrestre nos anos
vindouros desse século XXI.

244
Ao iniciar com a Era da Modernidade e as implicações sociais, viu-se em Petrini
(2003b, p. 35) que ―a razão de matriz iluminista empenhou-se, nestes últimos
séculos, em combater a religião, a metafísica, os valores da tradição‖.

A Pós-modernidade, com novos hábitos, fez com que Bauman (2001) denominasse
essa nova Era de ―modernidade líquida‖, entendida pela volatilidade nas relações
humanas, na inconsistência dos laços familiares, nas relações que se desmancham
ou que se formam por interesse, a apatia e a indiferença, notável principalmente nos
jovens. Ele considera que, nesta Era, tudo se torna espetaculoso, fantástico,
apolítico e nos jovens – fato visível em qualquer ambiente -, a insistente digitação
nos ―andróides‖ (qualquer plataforma de transmissão de dados), que relega a um
segundo plano, o essencial, o necessário e a convivência, priorizando o periférico, o
supérfluo e o egocentrismo. É esse jovem que vem para o EB.

Ao abordarmos a família, mantenedora das tradições, viu-se as plurais situações à


qual a mesma está submetida e a dificuldade para levar adiante um projeto de vida
na construção de seus filhos. Eles serão os chamados a compor os efetivos da
Força Terrestre e cabe aos profissionais de carreira, orientar e reafirmar valores
aprendido dos pais como ética, moral, caráter, religião e da família, pois como cita
McDavid e Harari (1980, p. 116), ―a maior parte da aprendizagem se evidencia no
comportamento‖.

Nesta nova Era deve-se repensar conceitos e ―praxis‖ no EB, sem descurarmos de
valores e crenças. Cabe à Força desenvolver estudos para introduzir nas escolas de
formação e de aperfeiçoamento novos currículos e disciplinas compatíveis com
estas novas exigências. Visualizar possíveis áreas de atuação e prospectar novas
hipóteses de emprego factíveis para os meios operacionais de que dispomos
mesmo sabendo que, em nossa posição de país emergente, restará ao EB missões
secundárias em apoio a ONU. Mesmo assim, devemos aproveitar as janelas de
oportunidades que se abrem no cenário globalizado, para a afirmação de nosso
Exército, e o Comandante da Força sinaliza o caminho a seguir: ―Ao Exército, nesse
contexto de mudanças, cabe transformar-se […] é urgente […] para isso, temos que
ousar nas ideias, gerando energia criativa em soluções inovadoras e factíveis
(BRASIL, 2011).

245
Finalizando, considera-se confirmada a hipótese formulada, de que o fenômeno da
pós-modernidade, gera no Exército Brasileiro consequências e desafios, aos quais
devemos estar atentos e perceber os sinais dos tempos. Para isso cabe à Força
terrestre, diante de um mundo de incertezas ter discernimento e diante de um
mundo dividido, em constante discórdia, levar o entendimento.

Referências Bibliográficas

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Gama. São Paulo: Quadrante, 2013.

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247
AÇÃO DA PSICOLOGIA NOS DESASTRES AÉREOS: UMA LIÇÃO A SER
APRENDIDA COM O ACIDENTE OCORRIDO NA AMAZÔNIA EM 2006

Neyde Lúcia de Freitas Souza82

1 Introdução

Todos nós brasileiros ainda guardamos na memória as imagens do trágico


acidente aéreo ocorrido na região amazônica com o Boeing 737-800 da Gol
Transportes Aéreos no dia 29 de setembro de 2006, o Gol 1907 saído de Manaus
com destino ao Rio de Janeiro, que faria escala em Brasília. Tinha a bordo 154
pessoas, dentre passageiros e tripulantes, e todos morreram após a colisão com
o avião da Embraer Legacy.

A demora na localização do avião, a dificuldade de acesso ao local por parte das


equipes de resgate e a angústia pela falta de informações por parte dos familiares
das vítimas estão também ainda vivos em nossas recordações.

Muitas foram as ações de assistência aos familiares das vítimas neste acidente,
atendendo ao que prevê a legislação brasileira, e o Plano de Assistência às Vítimas
e Apoio aos Familiares da empresa aérea foi acionado.

Ações voltadas para a assistência às vítimas e familiares das vítimas de


acidentes aeronáuticos estão previstas na legislação brasileira, desde 2000,
contemplando a assistência psicológica, que cada vez mais se apresenta como
relevante e necessária.

Constata-se que a legislação precisa ser ampliada e incluir, na assistência já


prevista, o apoio, sobretudo, às equipes de resgate. Os cuidadores também
precisam de cuidados – e neste grupo estão inseridos os psicólogos – pois estão
expostos a cenários por vezes devastadores e a situações de estresse que mexem
com suas próprias perdas e com sua saúde mental.

82
Mestre em Educação pela UFRJ.

248
Ainda, é preciso competência e treinamento para lidar com situações tão singulares,
e é imperioso que o psicólogo, ainda que muitas vezes se voluntarie para colaborar
em situações de desastres e emergências, tenha consciência de que há um saber
específico e que este será requerido em situações de desastres aéreos. Boa
vontade, neste caso, não é o suficiente para associar o acolhimento da dor alheia ao
auxílio psicológico adequado.

2 Relembrando o Acidente com o Avião da GOL, em 200683

No dia 29 de setembro de 2006 ocorreu um trágico acidente aéreo: o jato particular


BEM-135BJLegacy, vindo de São José dos Campos para Manaus, colidiu com o
Boeing 737-800 da Gol Linhas Aéreas, que havia decolado de Manaus às 13h35min,
hora local, com destino ao Rio de Janeiro, com escala em Brasília. A colisão ocorreu
às 15h56min. O Gol caiu em uma selva de difícil acesso, ao norte do Mato
Grosso,na vertical do território do município Mato-Grossense de Peixoto Azevedo, a
88 quilômetros ao sul da divisa com o Pará.

Todas as 154 pessoas que estavam a bordo – 148 passageiros e seis tripulantes
– morreram no, até então, maior acidente da história da aviação brasileira.
Naquele instante, o Gol saía do espaço aéreo do Centro Amazônico e entrava no
do Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo 1 (CINDACTA
1), localizado em Brasília.

Quando as aeronaves colidiram, nenhum dos pilotos percebeu a aproximação do


outro avião. O que houve foi um esbarrão, no qual o avião maior levou a pior. O Gol
despencou em parafuso, depois se desintegrou no ar, caindo em pedaços na
floresta amazônica. A queda do Gol durou 63 segundos.

Pouco antes, às 15h, a tela do radar do CINDACTA 1 deixou de ―enxergar‖ o


Legacy, pois o avião deixara de exibir sua altitude real, informando apenas uma
estimativa e não um dado preciso. Simultaneamente, no painel do Legacy a

83
O relato apresentado neste artigo tomou por base essencialmente as informações obtidas na obra de Sant‟Anna
(2011b), que trata o acidente de forma responsável, fundamentado em: laudos do Centro de Investigação e
Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), inquéritos policiais, processos judiciais, sentenças, contatos
com parentes das vítimas, e consultas a peritos em desastres e a pilotos comerciais.

249
mensagem disponível anunciava transporder desligado. Às 15h:15min, quando o
plantão do controlador terminou, ele foi substituído por outro controlador, e nada
informou a respeito do Legacy. Com o transponder desligado, não só o
CINDACTA deixou de receber sinais do Legacy, mas também as aeronaves que
voavam nas proximidades.

Na cabine do Legacy, ao invés de se preocuparem com o voo em curso, os


pilotos estavam concentrados no estudo do software do laptop, calculando os
dados da decolagem do dia seguinte, em Manaus, quando deixariam o país em
direção aos Estados Unidos.

Às 15h39min, quando um dos pilotos do Legacy levantou-se para ir ao banheiro, o


outro tentou contato com o CINDACTA 1, mas a transmissão estava muito ruim. O
controlador também tentou contato, mas sem sucesso.

No momento da queda, índios da reserva indígena dos caiapós, residentes na


região, ouviram um barulho, como se fosse um trovão. Empregados de uma fazenda
do município de Peixoto Azevedo, no entanto, assistiram à queda do avião da Gol:
viram o avião despencar das alturas e desintegrar-se em pedaços, e ouviram o
barulho da queda do Boeing 737 na selva.

Em Brasília e em Manaus, os controladores de voo ficaram apreensivos ao


perceberem que o bloco de dados emitido pelo transponder do Gol 1907 havia
sumido das telas do radar. Quando o voo 1907 não aterrissou em Brasília, o Plano
de Gerenciamento de Crise da Gol foi acionado e diretores da empresa foram
imediatamente informados.

Neste momento, começava a difícil missão de avisar aos parentes das pessoas a
bordo do Gol 1907 – passageiros e tripulantes – que o avião desaparecera. No
início da noite do dia 29 de setembro, uma sexta-feira, as emissoras começaram
a informar que um Boeing da Gol, na rota de Manaus para Brasília,
desaparecera. Os telefonemas – para a companhia, para o hotel onde a
tripulação costumava se hospedar, para os celulares dos passageiros –
começaram a ocorrer. No painel de chegada e no balcão da Gol em Brasília, a
informação disponível era que o voo se atrasara.

250
A passagem de sexta-feira para sábado seria uma longa noite para todos,
funcionários, parentes e amigos dos passageiros e tripulantes do Gol 1907. A
verdade vinha em conta-gotas, e só começaria a ser descoberta e revelada no dia
seguinte. Familiares das vítimas foram reunidos em um hotel em Brasília, onde
médicos e psicólogos contratados pela Gol atendiam as pessoas. Mas ainda não
havia nenhuma notícia concreta.

À ocasião, declarações desastrosas, por parte da diretora da ANAC e do presidente


da Infraero, foram feitas, desagradando aos familiares das vítimas e aumentando o
estresse e o sofrimento destes.

No sábado, dia 30 de setembro, um dia após o sumiço do avião, equipes de busca e


salvamento da Força Aérea Brasileira (FAB) encontraram o Boeing na floresta. Um
avião Hércules da FAB localizou, às nove horas da manhã do dia 30, sinais do
Boeing, na região dos índios caiapós. Localizado o avião, helicópteros da FAB se
dirigiram ao local do desastre. Militares da equipe de resgate desceram por cordas e
encontraram um cenário pavoroso. Uma clareira foi aberta na selva para o pouso
das aeronaves.

Nos dias seguintes, toda a região ao redor da clareira foi verificada, pois corpos das
vítimas e pedaços do Boeing estavam espalhados ao longo de uma área de cerca
de 20 quilômetros quadrados.

Vinte e três índios caiapós também foram ajudar no resgate dos corpos. A fazenda
Jarinã transformou-se em local de apoio para a equipe de resgate e pilotos dos
helicópteros. Os corpos eram enviados à Base Aérea de Cachimbo, e de lá ao
Instituto Médico Legal (IML) de Brasília. A identificação dos cadáveres era feita por
impressões digitais, exames de arcadas dentárias e testes de DNA.

A localização da última das vítimas da queda do Gol ocorreu somente várias


semanas após o acidente. Oitenta e cinco dias depois da colisão, no dia 22 de
novembro de 2006, o último corpo foi reconhecido pelo IML de Brasília. A família da
vítima conviveu, nesse período, com a perda e com a angústia da incerteza até que
pode fazer o enterro de seu ente querido.

251
O acidente foi considerado a pior tragédia da aviação comercial, superando em 17 o
número de vítimas fatais do choque de um Boeing 727 da Varig contra a Serra da
Aratanha, nas proximidades de Fortaleza, Ceará, ocorrido no dia 8 de junho de
1982. Posteriormente, o acidente da Gol seria superado pela tragédia com o avião
da TAM, ocorrido no dia 17 de julho de 2007, com 187 vítimas fatais.

A apuração do acidente pelo CENIPA confirmou que o Gol 1907 se chocou contra o
Legacy da Embraer, e apontou como causas: imperícia e negligência dos pilotos do
Legacy, imperícia e negligência dos controladores de voo e afobação do fabricante e
do operador da Embraer na hora de entregar o avião. Tais fatores combinados foram
responsáveis pela morte das 154 pessoas que viajavam no Boeing.

De acordo com Sant‘Anna (2011b), alguns pilotos comerciais, quando se referem ao


que ocorreu com o avião da Gol, dizem que ele não caiu, mas sim foi abatido.

No site da Gol, em Memória Gol 2006 (2013), é possível ler a seguinte mensagem:

Lamentavelmente, em 29 de setembro, um acidente vitimou o voo 1907 da


GOL. A aeronave de matrícula PR-GTD, um Boeing 737-800NG com
apenas 200 horas de operação, sofreu uma colisão no ar com um Embraer
Legacy de propriedade da empresa de táxi-aéreo americana ExcelAire [...]

O acidente desencadeou uma crise que veio a atingir toda a aviação brasileira. Com
a investigação vieram à tona diversos pontos cegos no mapeamento das aeronaves
feito por intermédio dos radares das torres de controle, bem como o precário preparo
dos controladores de voo brasileiros.

3 Recordando outros Acidentes Aéreos Brasileiros

No desastre ocorrido no dia 31 de outubro de 1996 com o voo 402 da ponte aérea
São Paulo – Rio de Janeiro, cuja aeronave caiu em um conjunto de casas da Vila
Santa Catarina, no bairro do Jabaquara, São Paulo, deixando um total de 99 mortos,
as famílias souberam quando ligaram a televisão ou o rádio – que divulgava o
número do voo, o nome do comandante e a lista de passageiros.

252
Aqueles que, após ouvirem nos meios de comunicação telefonaram para o gerente
local da TAM, escutaram dele que desconhecia o fato. Os jornais estamparam, no
dia seguinte ao acidente, fotos dos destroços do Fokker-100 e dos corpos
enfileirados na calçada. (SANT‘ANNA, 2011a)

Funcionários da empresa entraram em contato com as famílias dos passageiros e


dos tripulantes e os familiares que quiseram foram levados para um hotel próximo ao
Aeroporto de Congonhas, onde receberam cuidados de uma equipe de assistência,
incluindo psicólogos. Alguns dos familiares precisaram ser acompanhados por
psicólogos no voo para São Paulo.

Sant‘anna (2011a) conclui, ao referir-se ao acidente da TAM ocorrido em 1996, que


os familiares das vítimas agem de maneira diferente ao serem indagados sobre o
desastre ocorrido. Enquanto uns não gostam de falar porque lhe trazem más
recordações e sofrimentos, outros, ao contrário, se sentem bem em relembrar seus
entes queridos, em conversar sobre quedas de avião e estudar suas causas. Os
familiares deste acidente se reúnem em associações que juntam pessoas ligadas a
outros desastres aéreos que aconteceram no Brasil. Uma das familiares de vítimas
do acidente é presidente da ABRAPAVAA – Associação Brasileira dos Parentes e
Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos (2013). Outra vítima do acidente, Jorge
Tadeu da Silva, cuja casa e a dos pais foram atingidas pelo avião da TAM, tem um
site na internet que trata de desastres de aviões (2013). O referido site, inclusive,
contém muitas informações relativas ao voo 1907 da Gol.

Em outro desastre, ocorrido em 17 de julho de 2007 com o avião Airbus A 320 da


TAM, voo 3954, que decolou de Porto Alegre em direção ao aeroporto de
Congonhas, em São Paulo, foram 199 mortos, pois aos 187 do avião se somaram
12 pessoas em terra.

O avião estava lotado, com 163 passageiros, seis tripulantes e 18 funcionários da


TAM – entre pilotos, comissários e pessoal de terra, e logo no início da noite de 17
de julho as notícias sobre um desastre aéreo ocorrido em São Paulo começaram a
circular, as primeiras delas dando conta de ser um avião de carga que caíra no
Aeroporto de Congonhas.

253
Em Porto Alegre, muitos parentes das pessoas que tinham embarcado para São
Paulo em voos da TAM foram para o Aeroporto Salgado Filho. Somente na
madrugada de quarta-feira, dia 18 de julho, a TAM divulgou, por intermédio de uma
emissora de rádio, a primeira lista de passageiros e tripulantes do voo acidentado,
após familiares terem sido informados, por telefone ou pessoalmente.

O presidente da TAM, que estava fora do país, voltou imediatamente de Miami para
São Paulo. Os parentes dos mortos foram reunidos em um hotel em São Paulo e
foram montados postos de atendimento no próprio hotel e no IML. Foi contratado
pela empresa aérea um grupo especializado em atendimento psicológico em
emergência.

De acordo com Sant‘Anna (2011b), há familiares que até a data da elaboração do


livro não haviam se recuperado da morte de seu familiar, e outros que continuavam
em tratamento psicológico.

4 A Legislação Brasileira Referente ao Pós-Acidente Aeronáutico

Entre a documentação que dá amparo às ações da empresa aérea posteriores a um


desastre aeronáutico, destaca-se a Portaria DAC n° 18/DGAC, de 12 de janeiro de
2000. Elaborada na época do Departamento de Aviação Civil (DAC) mas ainda em
vigor pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), a referida portaria determina
que as empresas aéreas que exploram transporte aéreo público no Brasil devem
obter, nos voos domésticos e internacionais de e para o território brasileiro, o nome
completo de cada passageiro embarcado e o nome de uma pessoa com telefone
para contato, preferencialmente de um membro da família (2000). Tal informação
tem por finalidade assegurar que a empresa aérea tenha informações confiáveis
sobre os passageiros embarcados, para que possa iniciar a notificação aos
familiares imediatamente em caso de desastre aéreo.

A Portaria DAC n° 19/DGAC, também de 12 de janeiro de 2000, diz respeito a


procedimentos para a elaboração do Plano de Assistência aos Familiares das
Vítimas de Desastre Aéreo, determinando que as companhias aéreas que exploram

254
transporte aéreo público no Brasil elaborem o referido plano, nele estabelecendo
ações e responsabilidades para prover assistência, serviços e informações
imediatas aos familiares (BRASIL, 2000).

O plano em questão estabelece procedimentos mínimos a serem adotados pela


companhia aérea em caso de acidente, quais sejam: disponibilizar um número de
telefone exclusivo para chamadas gratuitas e pessoal habilitado a responder aos
telefonemas; elaborar de imediato a lista de vítimas do desastre, com base na
confirmação de embarque, incluindo os passageiros de conexão; notificar, se
possível pessoalmente, as famílias das vítimas do desastre, antes da divulgação
pública da lista de nomes; divulgar a lista de vítimas do desastre logo que possível,
após a confirmação do embarque e da notificação aos familiares; auxiliar a família
no desembaraço legal junto aos órgãos públicos competentes de qualquer despojos
e pertences embarcados da vítima; auxiliar a família no serviço funerário da vítima;
auxiliar a família da vítima a viajar para o local do desastre aéreo e para prover no
local hospedagem, alimentação, transporte e assistência médica e psicológica
inerentes à situação; e mobilizar e deslocar a equipe de assistência aos familiares
das vítimas para o local do desastre aéreo.

A mesma Portaria 19 estabelece que o Plano deverá prever as ações necessárias


para a ativação do Setor de Coordenação de Crise – local, pessoas responsáveis
pelo gerenciamento da crise, equipamentos.

A Portaria 19 determina que a lista de passageiros a ser divulgada só poderá conter


os nomes das vítimas cujos familiares já tenham sido notificados. Determina também
que a empresa aérea deverá possuir equipe treinada e equipada, a ser mobilizada e
deslocada para o local do desastre aéreo, com a finalidade de dar assistência às
vítimas e aos familiares enquanto permanecerem no local. A administração do
aeroporto deverá disponibilizar, nos aeroportos de saída e de chegada do voo do
desastre, um ambiente a ser usado exclusivamente para o atendimento imediato aos
familiares das vítimas.

A ANAC possui ainda, dentre a documentação relacionada ao atendimento às


vítimas e aos familiares em caso de acidente aeronáutico, a Instrução de Aviação
Civil IAC 200-1001, de 2005, aprovada pela Portaria N° 706/DGAC, de 22 de julho

255
de 2005, intitulada Plano de Assistência às Vítimas de Acidente Aeronáutico e Apoio
a seus Familiares, herdada do DAC e ainda em vigor (BRASIL, 2005). Este
documento estabelece as ações básicas sob a responsabilidade das Empresas
Aéreas nacionais e estrangeiras para prover assistência às vítimas e apoio aos
familiares e gerenciar os serviços que devem se tornar imediatamente disponíveis às
vítimas e as medidas de apoio a seus familiares. A Instrução apresenta as ideias
básicas que deverão nortear o Plano de ação a ser elaborado pelas empresas
aéreas, e informa que tomou como base as orientações da Circular ICAO n° 285-
NA/66, Guidance on Assistance to Aircraft Accident Victims and Their Families,de
2001, visando padronizar os procedimentos a serem adotados no caso de acidente
aeronáutico (ICAO, 2001).

Dentre as ideias básicas contidas na Instrução, a primeira diz respeito à solicitação,


a cada passageiro embarcado – nos voos domésticos e internacionais, de e para o
território brasileiro – do nome e telefone para contato de uma pessoa que não esteja
a bordo, preferencialmente um membro da família, conforme estabelece a Portaria
DAC n°18, de 2000, já citada anteriormente. Tal informação, confidencial, somente
deve ser usada em caso de acidente aeronáutico ou em benefício do passageiro no
caso de uma emergência pessoal, e caso o passageiro se recuse a prestar a
informação, a recusa deverá constar em documento escrito.

Havendo um acidente aéreo, a empresa deverá confeccionar em três horas a lista


de passageiros e tripulantes a bordo. Cabe a empresa aérea elaborar um Plano
Corporativo de Assistência às Vítimas de Acidente Aeronáutico e Apoio a seus
Familiares, estabelecendo as ações para prover assistência, serviços e informações
às vítimas e as medidas de apoio a seus familiares. O Plano Corporativo deverá ser
desmembrado em um Plano Local de Assistência às Vítimas de Acidente
Aeronáutico e Apoio a seus Familiares, devendo nele constar, dentre outros: nome e
telefone de contato da equipe de resposta à emergência da base; e relação com
nome, endereço e telefone de hospitais locais, hotéis de referência, médicos,
psicólogos, representantes religiosos, Polícia Civil, Defesa Civil e agências
funerárias (BRASIL, 2005).

256
Constam ainda da Instrução a determinação de que a lista dos passageiros a bordo
somente poderá ser divulgada após a notificação aos familiares, podendo ser feita a
divulgação parcial, mediante o andamento das notificações. A empresa aérea
deverá acionar os Centros: de Gerenciamento de Crise, de Assistência Especial, de
Atendimento Telefônico, e de Assistência Familiar – esse último na cidade do
acidente ou mais próxima desta. Estabelece ainda a Instrução que as famílias
devem, preferencialmente, ser notificadas por equipe treinada, pessoalmente, e que
deve viabilizar o trabalho das equipes envolvidas com a assistência, providenciando
comunicação, transporte, acomodação e alimentação, bem como provisão de
acomodação, alimentação, segurança, assistência médica, psicológica e religiosa
aos familiares das vítimas e sobreviventes enquanto no Centro de Assistência
Familiar. A empresa também deve organizar visita ao local do acidente, caso
solicitado pelos familiares e desde que possível, preservando a segurança dos
interessados e mediante a coordenação com a autoridade local. As assistências se
encerram após a efetivação de todos os trâmites de atendimento às vítimas, fatais
ou não, do apoio aos seus familiares e a realização das cerimônias fúnebres
(BRASIL, 2005).

5 A Assistência aos Familiares no Pós-Acidente da Gol

À ocasião do acidente com o voo 1907 da Gol, em 2006, a Gol Linhas Aéreas tinha
acabado de realizar, há poucos meses – assessorada pelo Instituto 4 Estações
(2013) – treinamento de seu pessoal envolvido com gerenciamento de crise e
revisado documentos relativos ao Plano de Assistência aos Familiares das Vítimas
de Desastre Aéreo. O treinamento envolveu inclusive as equipes de atendimento do
serviço de call center. O Instituto 4 Estações havia participado ativamente da
elaboração e revisão do Plano de Assistência a Vítimas de Acidentes Aéreos da
GOL Linhas Aéreas desde 2003.

Psicólogos do referido Instituto foram acionados e se revezaram em plantões de


assistência psicológica no hotel em Brasília, onde estava concentrado grande
número de familiares dos passageiros e tripulantes. Psicólogos também

257
acompanharam os oito familiares que estiveram na fazenda Jarinã, que desejaram
ver, in loco, o andamento do resgate dos corpos.

O atendimento psicológico pós-desastre ocorreu desde o momento da informação


aos familiares até o enterro da última vítima. Posteriormente, aqueles enlutados que,
em avaliação psicológica efetuada, necessitaram dar continuidade por meio de
terapia, foram encaminhados, e o tratamento foi pago pela empresa aérea.

6 A Assistência Psicológica no Pós-Desastre Aeronáutico

Conforme pudemos verificar, a assistência psicológica a familiares das vítimas de


acidente aéreo está prevista na legislação brasileira desde 2000. Pioneiro nessa
assistência, o Instituto 4 Estações (2013), localizado em São Paulo, por intermédio
do Grupo IPÊ – Intervenções Psicológicas em Emergências, criado em 2001, tem
como proposta oferecer cuidados psicológicos especializados a pessoas e
comunidades vítimas de desastres, acidentes e incidentes críticos geradores de
estresse, trauma e luto. A intenção é ―envolver e apoiar as organizações e
comunidades atingidas por emergências e desastres, na sua capacidade de
responder com prontidão e eficiência a essas situações‖.

O Grupo IPÊ estende o conceito de vítimas aos colaboradores e à população em geral


e não só aos familiares das vítimas fatais, entendendo que merecem cuidados
psicológicos especializados aqueles que, em consequência de seu trabalho ou não, são
expostos a tragédias e situações traumáticas, e são afetados grandemente por elas.

Formado por um grupo de psicólogos, que, na descrição de Franco (2012) é


heterogêneo em sua caracterização, os integrantes do Grupo IPÊ têm em comum o
interesse em trabalhar com pessoas e comunidades em sofrimento decorrente de
crises e desastres.

O 4 Estações foi seguido pelo Instituto Entrelaços (2013), localizado no Rio de


Janeiro, e que conta com supervisão da Dra Maria Helena Franco, uma das sócias
idealizadoras e criadoras do 4 Estações.

258
Franco (2013) identificou que 75% das pessoas expostas a situações traumáticas
precisam ser adequadamente avaliadas quanto a possibilidade de apresentar
distúrbios psíquicos e complicações associadas a ansiedade, depressão, fobia,
abuso de drogas e álcool, dentre outros. Acrescenta Franco (2013, p.1): ―a pessoa
enlutada em condições traumáticas está fragilizada e precisa de acolhimento‖.

Mazorra (2009) destaca a importância dos aspectos da assistência ligados às


necessidades globais, tais como as necessidades físicas, práticas e legais, em
complemento ao suporte psicológico. Ressalta o quanto é fundamental a escuta sem
julgamento, o suporte e a atenção ao enlutado, bem como compreende que a
demora na concretização do fato acrescenta muita angústia nos familiares. Para ela,
o oferecimento do suporte psicológico caracteriza um trabalho de intervenção em
emergência. Entende que os cuidadores – equipe de resgate, médicos, psicólogos -
também são afetados pelo ocorrido, tendo em vista que a tragédia nos coloca diante
de nossa própria mortalidade e de nossa compaixão.

Franco (2005) enfatiza a necessidade de haver flexibilidade na assistência


psicológica em emergência, ainda que exista um protocolo de atuação, e que é
preciso treinamento específico para atuar nessa área. Além de treinamento
específico para as situações de crise, o psicólogo que trabalha com intervenção em
emergência precisa ter disponibilidade, mobilidade e ser ético.

Ressalta Franco (2005, p. 178) que o espectro de pessoas atingidas por um


desastre aéreo é amplo, ―ainda que a regulamentação restrinja a prestação de
assistência exclusivamente às famílias‖. Deveriam também obter assistência:
membros da equipe de resgate e de outros serviços de apoio, equipe de assistência
emergencial, membros da mídia que cobriram o fato, e as vítimas secundárias.

A intervenção psicológica em emergência procura reduzir o estresse agudo causado


pelo impacto do trauma e prioriza: a restauração do funcionamento cognitivo em
dominância sobre as reações emocionais; a facilitação do funcionamento das
instituições sociais e da comunidade; a facilitação do reconhecimento cognitivo do
evento traumático (Franco, 2005).

259
O psicólogo que atua em intervenção psicológica em emergência precisa, além de
profundo conhecimento das técnicas a empregar, ter consciência de sua condição
pessoal para atuar, identificando necessidades de descanso e até mesmo de
afastamento da atividade. Segundo Franco (2005), este profissional é um ―indivíduo
em risco‖.

Franco (2012) destaca que quando o psicólogo efetua intervenção em crise, busca
resolver os problemas que exercem maior pressão, em um período reduzido e com
uso de intervenção direta e focalizada, para que o indivíduo desenvolva novas
estratégias adaptativas.

Muitas vezes a intervenção no caso de enfrentamento do luto desencadeado por


desastres precisa ocorrer não apenas nos momentos iniciais, mas estender-se por
mais tempo. Não raro o enfrentamento de situações de desastre aéreo acarreta a
necessidade de localizar e identificar o corpo, efetuar um luto que é ao mesmo
tempo público e privado, ao mesmo tempo que se está vivenciando uma experiência
com forte impacto psíquico (FRANCO, 2012).

Ações como visitar o local do desastre (em condições de segurança), receber


informações corretas e participar de celebrações são terapêuticas para a maior parte
dos enlutados que perderam seus entes em desastres. O luto desencadeado por
desastres tem consequências específicas a partir de sua natureza, por exemplo, a
dificuldade em localizar, identificar corpos para que os rituais da cultura sejam
realizados e permitam uma finalização – não do processo de luto, mas da
ambiguidade da perda.

A ausência de suporte imediato também pode ser considerada como fator


complicador do luto, assim como estar sem perspectiva de voltar a uma situação
com alguma previsibilidade, como o lar, lugar que garante identidade e acolhimento
(FRANCO, 2012). Thomé (2013)corrobora com a necessidade de assistência ao
considerar que acontribuição dos cuidadores em período crítico pode ser
determinante para reforçar a identidade da pessoa.

260
7 Os Familiares Diante da Morte Inesperada

A perda de um ente familiar é, por si só, geradora de estresse e desestruturação.


Quando a morte ocorre de maneira inesperada, repentina, a vulnerabilidade do
enlutado aumenta e requer compreensão e intervenção especiais. De um modo
geral, as mortes por acidente são mais difíceis de lidar do que aquelas que, de
alguma forma, ocorrem com algum aviso prévio.

A reação a uma perda envolve manifestações variadas, muitas vezes classificadas


erradamente como sintomas, tais como: choque, torpor, medo, raiva, ansiedade,
somatização, insônia, falta de concentração, falta de apetite, tristeza profunda,
pensamentos intrusivos, e sensação de presença da pessoa morta. A vivência do
luto por parte daquele que perdeu um ente querido é um processo normal – e
necessário, frente ao rompimento de um vínculo (PARKES, 1998).

Benyakar, citado por Thomé (2013), assinala que a perda de forma traumática, como
no caso dos desastres aeronáuticos, é um evento da realidade que surge com tal
violência que rompe as formas previsíveis de funcionamento mental da pessoa
enlutada. Refere-se a tal fenômeno introduzindo o conceito de fato disruptivo: trata-
se de um evento externo capaz de romper a estabilidade psíquica de uma pessoa de
forma avassaladora, desencadear reações emocionais negativas e até mesmo
adoecimento em uma pessoa saudável, sem histórico de doença mental.

Parkes (1998) reforça a opinião de Benyakar com seu conceito de mundo


presumido, ou seja, o mundo que o indivíduo efetivamente conhece, que inclui tudo
o que sabe ou pensa saber – sua interpretação do passado, suas expectativas do
futuro, planos e preconceitos, diante de uma mudança significativa forçosamente
terá que mudar. Frente a morte de um ente querido, portanto, a segurança da
pessoa e a estabilidade do mundo estão sob risco. Não há mais regularidade, houve
uma quebra no mundo presumido, ao mesmo tempo que permanece uma forçosa
necessidade de responder às demandas do cotidiano.

O complicador introduzido com a morte inesperada é o elemento surpresa: não há


sinais, doença prévia, sintomas. De acordo com Parkes (1998), mortes repentinas e

261
inesperadas representam um risco especial para a saúde mental do enlutado,
mesmo na ausência de vulnerabilidade.

Nas mortes inesperadas e acidentais o enlutado tenta entender as circunstâncias, o


local, os detalhes relativos à morte. Para Oaten, citado por Moura (2006), a busca do
enlutado em tentar entender a morte é para saber os porquês da causa da morte.
Por isso é comum o familiar, no caso de acidente aéreo, querer ver o avião, ir ao
local do acidente, querer conversar com alguém que presenciou o acidente. Tal
comportamento ajuda a compreensão racional de como a morte ocorreu e diminui a
confusão e a ansiedade.

A pessoa enlutada geralmente está desorganizada, incoerente, assustada,


paralisada. Benyakar, citado por Thomé(2013), considera que assistir várias vezes a
uma mesma imagem catastrófica – a de um acidente aéreo, por exemplo – pode ser
uma tentativa de elaborar esse conteúdo tão denso. Thomé (2013) reforça que uma
situação como a de um desastre nos põe em contato com a morte e com a nossa
vulnerabilidade.

Hodgkinson e Stuart, citados por Torlai (2010), ressaltam que as perdas repentinas,
inesperadas ou fora de hora, acrescidas de muito sofrimento ou que ocorreram de
forma aterrorizante são as que representam maiores riscos para uma má resolução.
Distinguem, dentre elas: as perdas prematuras – de crianças e de jovens, por
provocarem uma inversão no ciclo vital, contrárias à natureza do que é esperado; as
mortes inesperadas, que ocorrem de forma repentina e imprevista; e as mortes
calamitosas, que acontecem de forma imprevisível, violenta, destrutiva e sem sentido.

Na situação de desastre aéreo, portanto, o enlutado pode reunir todos os três


elementos. Experimentar perdas múltiplas ou testemunhar a morte tem sido
correlacionado a níveis altos de intensidade do luto.

Para Worden (2013), a morte repentina deixa nos familiares uma sensação de
irrealidade acerca da perda. Pesadelos e imagens intrusivas podem ocorrer, ainda
que a pessoa não estivesse presente na hora da morte. É possível ocorrer, também,
sentimento de culpa, expresso em frases que apresentam a construção: ―se pelo

262
menos ...‖. Por outro lado, pode aparecer também a necessidade de responsabilizar
alguém, como ocorre nos casos de acidentes aéreos.

Outra característica apontada por Worden (2013) nas mortes inesperadas é o


sentimento de desamparo no sobrevivente, por vezes acompanhado de sentimento
de ira – nos casos de acidentes de avião, a ira pode voltar-se para os pilotos ou para
a companhia aérea. O desejo de vingança pode, na verdade, ser uma defesa contra
a realidade e a dor da morte.

Uma forma de ajuda aos familiares das vítimas é colaborar para que efetivem a
perda – nesse aspecto, ver o corpo pode facilitar o luto e a concretização da morte.
Thomé (2013, p. 2) complementa que ―quando não se pode enterrar o ente querido,
de alguma forma ele não morre‖, destacando a importância dos rituais de passagem.

Worden (2013) acrescenta que a intervenção psicológica nos casos de morte


inesperada é recomendada, pois de fato o cenário é de crise.

8 Considerações Finais

Os meios de comunicação nos aproximaram de tal modo das catástrofes e dos


desastres que, no caso de um acidente aéreo, convivemos com a dor e com a
história pessoal de grande parte dos parentes daqueles que estavam presente no
avião e que não sobreviveram.

A assistência aos familiares das vítimas de acidente aéreo é uma realidade no


Brasil, e exige competência e estrutura psicológica dos envolvidos com a tarefa. Os
profissionais que atuam em um acidente aéreo, em especial os membros da equipe
de resgate, necessitam de suporte psicológico para enfrentar a – muitas vezes
trágica – situação.

Os psicólogos que atuam em emergência, tanto quanto as equipes de resgate e os


demais envolvidos na assistência aos familiares das vítimas, são profissionais que
estão expostos às mesmas consequências emocionais que afetam as vítimas diretas
de perdas. Devem escutar e respeitar os seus limites.

263
Ainda que exista um consenso, corroborado pelos dispositivos legais, de que se faz
necessário assistir psicologicamente aos familiares das vítimas de acidentes aéreos,
não se deve considerar que qualquer ajuda voluntária seja bem-vinda. A situação é
delicada, envolve muitas vezes mortes coletivas e violentas e a existência de corpos
não identificados ou não localizados.

O contexto exige profissionais envolvidos com o sofrimento alheio e, no caso dos


psicólogos, conhecedores das especificidades de uma atuação psicológica em
crises e emergências, bem como conhecedores do suporte teórico relacionado a luto
e perdas, em especial às perdas por morte inesperada. Desse modo, atitudes dos
familiares que poderiam estar associadas a distúrbios psicológicos podem ser
reconhecidas – e acolhidas – no cenário que se apresenta.

Com a finalidade de abranger os acidentes aeronáuticos ocorridos no âmbito da


Força Aérea, o Instituto de Psicologia da Aeronáutica (IPA) encontra-se atualmente
capacitando seus psicólogos para elaborar uma legislação específica referente a
assistência psicológica pós-acidente.

Ainda no contexto da Força Aérea, representantes do CENIPA vem participando de


reuniões para revisão da documentação da ICAO que trata da assistência às vítimas
e aos familiares de acidentes aéreos. O resultado será a edição de uma nova
circular, em substituição à existente.

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264
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266
A AGENDA DE GÊNERO NAS OPERAÇÕES DE PAZ: ASPECTOS NORMATIVOS
E OPERACIONAIS

Tamya Rocha Rebelo84

1 Introdução

A partir dos anos 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) passou a
requisitar – de forma enfática – a presença de mulheres nas atividades de campo,
bem como a inserir o termo ―gênero‖ nos mandatos das Operações de Paz (OpPaz)
e nos módulos de treinamento oferecidos aos soldados. De fato, o divisor de águas
para o tratamento destinado às questões de gênero nas missões de paz foi a
Resolução 1325 sobre Mulheres, Paz e Segurança, publicada em 2000 pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Dentre os pontos do
documento, destaca-se o fomento à participação feminina nas OpPaz e nos
processos de tomada de decisão; a proteção de mulheres em situação de conflito
armado e a inclusão de perspectivas de gênero nos treinamentos realizados pelos
países que contribuem com tropas.

A convergência de agendas outrora consideradas aparentemente irreconciliáveis


(mulher/gênero versus segurança/guerra) abriu espaço para a elaboração de outros
documentos sobre a temática, que passam a influenciar políticas, diretrizes e
campanhas no âmbito da ONU. Por exemplo: em 2010, o Departamento de
Operações de Manutenção da Paz (DPKO) publicou dois livretos – Integrando
Perspectivas de Gênero no Trabalho dos Militares das Nações Unidas e Integrando
Perspectivas de Gênero no Trabalho dos Policiais das Nações Unidas – para serem
divulgados nos Estados.

Ainda que seja possível identificar avanços no tocante à quantidade de textos


publicados por órgãos do sistema ONU (Conselho de Segurança, Secretariado e

84
Doutoranda em Relações Internacionais - Universidade de São Paulo (USP)

267
agências especializadas), o conteúdo ainda é marcado por passagens que
enfatizam a importância de mulheres nos espaços que os homens não podem ou
não querem ocupar. As OpPaz são historicamente o universo social de homens
fortes e viris, qualidades consideradas indispensáveis para enfrentar os desafios
relacionados a ambientes inóspitos e marcados por disputas internas. Essa
percepção tradicional, de que força física e agressividade são representativas do
soldado da ONU, tem sido contraposta pelas associações recentes entre a figura
feminina e a ideia de sucesso na promoção da paz. Conquanto os esforços para a
ampliação da presença de mulheres em campo sejam notáveis, a participação das
soldadas ainda é muito baixa.

Tendo em mente o supracitado, o trabalho propõe uma análise das iniciativas


normativas e operacionais no contexto das Nações Unidas para avançar a agenda
―Gênero nas Operações de Paz‖. Para o aspecto normativo, toma-se um conjunto de
documentos datados de 2000 a 2010 que tratam, ainda que de maneira conjunta
com outros temas, da participação feminina e da inclusão de perspectivas de gênero
nas OpPaz. Para a dimensão prática, o estudo sistematizou algumas atividades de
publicidade e propaganda, e ações operacionais para implementar as diretrizes da
Res. 1325 nas missões de paz. Ao dividir o texto em duas partes, pretende-se
apontar os avanços e desafios da evolução e aceitação da agenda à luz de dois
aspectos: discursivo e funcional.

2 Marco Normativo: resoluções, relatórios e diretrizes

A igualdade entre homens e mulheres se apresenta como preocupação legítima da


ONU desde sua criação, em 1945, ao reafirmar no seu preâmbulo ―a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade
de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e
pequenas‖ (ONU, 1945, preâmbulo). Apesar deste compromisso moral, a inclusão
de ideias de gênero nas atividades da ONU aconteceu lentamente, sendo
necessárias várias décadas para surgir um quadro normativo que permitisse a
elaboração de políticas e procedimentos operacionais específicos sobre o assunto.

268
Durante os primeiros anos de atuação da Comissão Sobre o Status da Mulher
(CSW)85, criada em 1946, alguns tópicos relativos à temática ―mulher e paz‖ foram
incluídos na pauta das reuniões. À época, contudo, assuntos como participação
política e desenvolvimento social recebiam mais projeção nos debates, ganhando
status de prioridade nas atividades da CSW (GIERCZ, 2001, p. 14). Quando o tema
finalmente entrava na ordem do dia, a discussão centrava na proteção especial para
a mulher durante situações de conflitos armados e de emergência, sem um
entendimento mais profundo acerca dos outros papéis desempenhados por elas
(combatentes, líderes, mediadoras e negociadoras, por exemplo).

Foi somente na década de 1990, diante de pressões de Organizações Não-


Governamentais de direitos humanos, governos nacionais e agências especializadas
da ONU, que surgiu uma preocupação específica com questões de gênero nas
resoluções e políticas da Organização (CAREY, 2000, p. 50; MAZURANA, 2002, p.
41). Destacam-se, então, alguns documentos publicados nessa década que
lançaram as bases para o entrelaçamento entre questões de gênero, paz e
segurança, sendo eles: a Plataforma de Ação de Pequim (1995) e o Plano de Ação
de Namíbia (2000).

A Plataforma de Ação de Pequim, resultante da Quarta Conferência das Nações


Unidas sobre os Direitos da Mulher, realizada em Pequim, em 1995, estabeleceu
que os efeitos dos conflitos armados sobre as mulheres constituíam uma esfera de
preocupação especial que requeria ser atendida, tanto pelos Estados como pela
comunidade internacional. Ainda, atentou-se para a necessidade de promover a
participação equitativa da mulher na solução dos conflitos, em todos os níveis de
adoção de decisões (ONU, 1995, p. 7). As ideias apresentadas nessa conferência
são reforçadas e aprimoradas, cinco anos depois, em Windhoek, Namíbia. O DPKO
realizou o seminário Integração de Perspectivas de Gênero nas Operações de Paz
Multidimensionais com o intuito de reavaliar as atividades levadas a cabo nas
operações de paz complexas, bem como propor medidas práticas para sanar os

85
A Comissão Sobre o Status da Mulher foi criada pelo Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC) em
1946. Trata-se de um organismo funcional destinado ao preparo de relatórios com sugestões para o progresso na
igualdade de gênero e a eliminação de obstáculos à participação das mulheres nas áreas política, econômica,
civil, social e educacional. contendo sugestões para o ECOSOC sobre a situação das mulheres. Mais informações
disponível no site da CSW: http://www.un.org/womenwatch/daw/csw/index.html#about. Acesso em 01 jul.
2014.

269
problemas identificados (ONU, 2000a). Em decorrência do evento, publicou-se o
Painel das Nações Unidas para Operações de Paz, que enfatizou a necessidade de
representação equitativa entre homens e mulheres para os cargos de liderança nas
atividades da ONU.

O ápice deste processo foi a publicação da Resolução 1325 (Res. 1325), em 2000,
posteriormente intitulada Resolução sobre ―Mulheres, Paz e Segurança‖ (Women,
Peace and Security, em inglês). O documento, aprovado pelo principal órgão no
campo da paz e segurança internacionais, tornou-se referência ao reconhecer, pela
primeira vez, os impactos diferenciados que conflitos violentos têm nas mulheres e
meninas, e ao reafirmar o papel importante desse grupo na prevenção e solução de
disputas. Ainda, o texto sustenta que a participação feminina deve ser plena, ou
seja, em um plano de igualdade com os homens e em todas as medidas
encaminhadas à manutenção e ao fomento da paz (ONU, 2000b). De forma inédita,
o CSNU discutiu e aprovou uma resolução que aborda de maneira conjunta as
consequências negativas dos conflitos armados, as dimensões de gênero e a
construção da paz, e realça a responsabilidade estatal na implementação das
diretrizes expostas no texto (TRYGGESTAD, 2009, p. 538).

Oito anos depois, o CSNU reafirmou a preocupação com a vulnerabilidade de


mulheres e meninas em situações de conflito violento por meio da aprovação
Resolução 1820 (2008). O texto apresentado à comunidade internacional identifica a
violência sexual como arma de guerra, considerando-a uma ameaça à restauração
da paz e segurança internacionais (BARROW, 2010, p. 221-222). Em 2009, outro
impulso é dado com a publicação da Resolução 1888, que concretiza os
compromissos assumidos na resolução anterior e renova o interesse do CSNU sobre
o assunto. A Resolução 1889 (2009), por sua vez, foi adotada no mesmo ano com o
propósito de fortalecer a implementação e o monitoramento da Res. 1325.
Complementando o conteúdo das demais, em 2010, foi aprovada a Resolução 1960,
que reitera a preocupação com a recorrência dos atos de violência sexual e requisita
medidas rápidas e apropriadas para contê-los.

Com o intuito de avançar no processo de implementação da Res. 1325, duas


importantes iniciativas foram tomadas a nível institucional: o Plano de Ação da ONU

270
e os Relatórios do Secretário-Geral. Os Planos de Ação têm como objetivo viabilizar
maior coerência e coordenação dos esforços dispendidos pelas entidades da
Organização, sendo uma ferramenta aos atores envolvidos no cumprimento das
metas da Res. 1325. Os Relatórios do Secretário-Geral, por sua vez, são estudos
detalhados acerca dos temas expostos superficialmente na Res. 1325. Tornou-se
prática costumeira a publicação de relatórios anuais pelo Secretário Geral em
serviço. Usualmente, o informe é apresentado em conformidade com uma
declaração anterior, emitida pela Presidência do Conselho de Segurança, na qual
constam os objetivos de investigação a serem cumpridos em período pré-
determinado.

Para incentivar os Estados-membros a aprofundarem as disposições da Res. 1325,


o CSNU também sugeriu o desenvolvimento de uma ferramenta a nível estatal, os
Planos Nacionais de Ação (PNAs). Os PNAs são instrumentos normativos que
estipulam os objetivos, orçamento e instruções para coordenação, avaliação e
monitoramento das atividades dos representantes de órgãos governamentais e da
sociedade civil envolvidos na implementação da Res. 1325 (GUMRU; FRITZ, 2009).
Os Estados podem adotar várias estratégias para promover as diretrizes contidas
neste documento, sem precisar elaborar um PNA específico86. Sendo assim, cada
Estado estipula os requisitos para a elaboração de sua estratégia nacional,
dependendo do contexto doméstico político e socioeconômico.87

Especificamente para as atividades desempenhadas pelos integrantes das missões


de paz, algumas diretrizes e doutrinas foram elaboradas pelo DPKO de modo a

86
Alguns Estados defendem que um plano nacional de ação específico é desnecessário e, assim, optam por
integrar os elementos da Res. 1325 em estruturas domésticas existentes. Por exemplo, nas Ilhas Fiji, as
obrigações governamentais em relação à implementação da Res. 1325 foram incorporadas ao existente Plano de
Ação para as Mulheres (Women‟s Plan of Action, em inglês). Em Israel, as diretrizes também foram integradas
às existentes leis nacionais. Em geral, os Estados-membros da ONU, com o apoio de organizações não-
governamentais, concordam que PNAs específicos são essenciais para a implementação das diretrizes da Res.
1325. Um estudo desenvolvido pelos governos do Canadá, Reino Unido e Holanda apresenta a conclusão de que
um plano nacional sobre o assunto aumenta as chances de a Res. 1325 ser implementada. A tendência crescente
tem sido no sentido de desenvolver PNAs específicos (FRITZ et al., 2011, p.12).
87
Durante o período de 2000 a agosto de 2012, trinta e sete países responderam ao CSNU com a adoção de
PNAs, sendo eles: Austrália, Áustria, Bélgica, Bósnia-Herzegovina, Burundi, Canadá, Chile, Costa do Marfim,
Croácia, Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Filipinas, Finlândia, França, Geórgia, Guiné,
Guiné Bissau, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Libéria, Nepal, Noruega, Portugal, Reino Unido, República
Democrática do Congo, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Sérvia, Suécia, Suíça e Uganda. Disponível em:
http://www.peacewomen.org/pages/about-1325/national-action-plans-naps. Acesso em: 13 ago. 2012.

271
orientar equipes de campo – policiais e militares – em relação às questões de
gênero e como integrá-las nas atividades práticas. Em outubro de 2004, o
departamento publicou um material de treinamento intitulado Material sobre
Recursos de Gênero (Gender Resource Package, em inglês). Trata-se, em linhas
gerais, de um manual que explica terminologias complexas – Gênero, Integração de
Perspectivas de Gênero, Equilíbrio de Gênero – e associa tais expressões com
tópicos variados – Planejamento; Monitoramento; Código de Conduta; Treinamento;
Informação Pública e Mídia; AIDS; Segurança; Direitos Humanos; Assuntos Políticos
e Civis; Proteção de Crianças; Componentes Civil, Policial e Militar; DDR –
Desarmamento, Desmobilização e Reintegração; Observação Eleitoral; Assistência
Humanitária; e Reconstrução e Recuperação.

Em 2006, o DPKO publicou a Diretriz Política (Policy Directive, em inglês) com o


propósito de apontar requisitos fundamentais para a participação igualitária de
mulheres e homens em todos os aspectos das missões de paz. Similarmente a
outros documentos oficiais, recomenda-se o aumento progressivo do número de
mulheres e a inserção de módulos de gênero nos treinamentos oferecidos aos
militares e policiais. Ainda sobre o tema, o Escritório para Assuntos Militares (OMA,
em inglês) e a Unidade de Gênero da Divisão de Treinamento, Avaliação e Política
(DPET, em inglês) do DPKO uniram esforços para elaborar um material informativo
sobre questões de gênero e o trabalho de policiais e militares. Tratam-se
basicamente de dois livretos com uma compilação de informações referentes à
temática Mulheres, Paz e Segurança e como aplicá-las nas atividades em campo:
Integrando Perspectivas de Gênero no Trabalho de Militares das Nações Unidas e
Integrando Perspectivas de Gênero no Trabalho de Policiais das Nações Unidas. De
outro modo, pode-se dizer que essas publicações são tentativas de traduzir a
linguagem de gênero, presente nas resoluções e relatórios discutidos, em termos
mais acessíveis ao modus operandi de policiais e militares.

Os documentos elaborados no âmbito do DPKO são iniciativas voltadas para facilitar


a aplicação das disposições da Res. 1325 no cotidiano dos soldados da paz. Apesar
disso, vale reiterar que as diretrizes são guias para o estabelecimento de condutas,
não sendo regras absolutas. No caso dos componentes militares e policiais, os

272
textos só serão cumpridos se o país contribuinte tomar medidas para que isso
ocorra. Caso contrário, elas serão apenas recomendações.

Quanto ao aspecto discursivo dos citados documentos, nota-se que a incorporação


da mulher e as justificativas para sua participação nos instrumentos de solução de
conflito são abordadas de duas maneiras: (i) viés instrumental e (ii) igualdade de
direitos. De um lado, as mulheres são valorizadas pelos atributos e recursos que
adicionam ao sistema das Nações Unidas, tais como: cuidados especiais com
crianças e meninas, propensão à mediação e ao diálogo, contato próximo com
vítimas de violência sexual, etc (JENNINGS, 2011). Essas características, elementos
que sustentam a imagem da ―mulher-pacífica‖, são apresentadas como
indispensáveis para o bom funcionamento das missões de paz, principalmente nos
cenários marcados por atos sistemáticos de violência sexual. Trata-se de uma
perspectiva instrumentalizada, com alto poder de persuasão por ser condizente com
as concepções tradicionalmente aceitas em domínios masculinizados e
militarizados: a inclusão da mulher (ator/agente da segurança) se justifica pela
necessidade de abordar questões relativas à mulher (vítima/passiva).

Entretanto, essa visão marginaliza do discurso os espaços que são ocupados por
elas e superestima suas habilidades para solucionar questões complexas das
OpPaz (abuso e exploração sexual cometidas por locais e soldados da paz, por
exemplo). A literatura feminista, predominantemente, aponta a recorrência de
argumentos estereotipados, que supervalorizam a inclusão feminina como solução
imediata e eficaz para a situação de vulnerabilidade das mulheres em situações de
conflito (COHN; KINSELLA; GIBBINGS, 2004; PRATT; RICHTER-DEVROE, 2011).
Os trabalhos realçam a necessidade de questionar a mera inclusão de mais
mulheres e de elaborar perguntas como: quem são essas mulheres? Que funções
desempenham? O que explica a presença majoritariamente de homens nos
processos de paz? E os homens que também são vítimas de violência sexual? Ao
silenciar essas questões, a abordagem instrumental dificulta o rompimento com
entendimentos tradicionais e enraizados sobre os papéis que devem ser
desempenhados por homens e mulheres nas operações de paz.

273
Tais desafios estão vinculados aos processos de formulação e articulação da
agenda ―Gênero nas Operações de Paz‖, etapas dependentes do aval dos Estados-
membros da Organização. Os citados textos possuem uma força produtiva para
moldar concepções de ―mulher‖ e ―gênero‖. As ideias difundidas de que a mulher
pode ocupar um espaço de relevância nos processos de paz e que sua participação
é elemento essencial para o sucesso das missões são avanços se comparados ao
momento anterior à aprovação da Res. 1325, no qual a ênfase dos debates políticos
era essencialmente na vitimização deste grupo.

A segunda abordagem identificada nos textos, a igualdade de direitos, toma como


base os princípios da Carta da ONU. A referência são os direitos, as
responsabilidades e as oportunidades iguais para homens e mulheres, meninos e
meninas, pautados na ideia de justiça e na luta contra a discriminação, com foco no
indivíduo. ―Trata-se de uma questão de direitos humanos e requisito central para o
desenvolvimento sustentável‖ (OSAGI, 2001, p. 1-2). Com essa definição, os
interesses, as necessidades e as prioridades de mulheres e homens são o cerne da
percepção pautada nos direitos dos indivíduos.

Enquanto conceito social, Joan Scott (2005, p. 16) sugere que a igualdade se refere
a possuir atributos similares – porém, não necessariamente idênticos –, gozar dos
mesmos privilégios e direitos, e ―estar no mesmo nível em termos de posição,
dignidade, poder, habilidade, realização ou excelência‖. A documentação da ONU
está centrada em um parâmetro que privilegia a referência à igualdade em relação
aos indivíduos. Nesse sentido, parte-se do entendimento que os indivíduos devem
ser apreciados por eles mesmos, não por características atribuídas a membros de
um agrupamento homogêneo e polarizado – nesse caso, homens e mulheres. Trata-
se de um enfoque apresentado nos documentos de forma inquestionável e
legitimado, principalmente, pela Carta das Nações Unidas (1945).

As hierarquias de gênero são socialmente construídas e historicamente este grupo


foi destituído das escolhas para o desempenho ou não de tarefas consideradas ―de
porte feminino‖. A premissa, encampada pela concepção de igualdade de direitos, é
que as mulheres podem trabalhar em um plano de igualdade, com as mesmas

274
condições, – nem melhores ou piores que seus semelhantes masculinos – porque
são indivíduos, seres humanos.

Quanto à forma como os textos são apresentados, nota-se que os argumentos


(oscilando entre a abordagem instrumental e a igualdade de direitos) se repetem com
certa frequência (JENNINGS, 2011) e podem ser divididos em dois eixos: (i) proteção e
violência sexual e (ii) representatividade e características favoráveis. De um lado, a
ênfase excessiva na vulnerabilidade a que mulheres estão submetidas em situações de
conflito armado e, de outro, o enfoque nas qualidades únicas (conciliadora, cuidadora,
passiva), com base nas quais são definidas as tarefas melhor executadas por elas, por
exemplo: auxílio às vítimas de violência sexual, inspeção de mulheres, interação com
organizações de mulheres locais, patrulhas, entre outras. Esses pontos são
apresentados em detrimento de considerações acerca do aspecto relacional entre
masculinidades e feminilidades (a referência à mulher deve ser necessariamente
acompanhada pela contemplação do homem e vice-versa).

Pode-se inferir, portanto, que a linguagem é instrumentalizada, conferindo ênfase à


urgência da presença feminina como meio eficaz para lidar com a vulnerabilidade das
mulheres em situações de conflito e omitindo momentos importantes em que elas
―pegam em armas‖ e eles são vítimas de exploração e abuso sexual. Em consonância
com os ideais de criação da ONU, a perspectiva de igualdade de direitos também está
presente como parte do quadro maior de direitos humanos que orienta um padrão de
comportamento adequado a Estados na condução desta agenda.

Nesta seção, buscou-se discutir os progressos e desafios relacionados à publicação


e adequação de documentos-chave que tratam de questões de ―Gênero nas
Operações de Paz‖. Conclui-se que a agenda evoluiu gradativamente, culminando
com a aprovação da Res. 1325 (2000). Desde então, os documentos são utilizados
como fonte de informação para tomadores de decisão e estrategistas encarregados
de definir as tarefas a serem desempenhadas em campo pelos soldados paz. As
limitações decorrentes da complexidade de se produzir textos que contemplem
diferentes opiniões e abordagens são notáveis, entretanto cabe enfatizar a
importância da criação de espaços de discussão e mobilização (CSNU,

275
Secretariado, Estados, comunidade internacional) para avançar a agenda, ainda que
em processo de construção.

3 Dimensão funcional: medidas de operacionalização do discurso de gênero


nas missões de paz

Um dos efeitos da publicação de resoluções, relatórios, diretrizes e planos nacionais


de ação é a disseminação de informações que relacionam questões de gênero com
a promoção da paz duradoura. Como parte de iniciativas para operacionalizar a
linguagem de gênero, notam-se diversas atividades de publicidade e propaganda no
contexto das Nações Unidas. Entende-se que espaço significativo é dedicado a este
segmento em função das dificuldades encontradas para se discutir e apresentar
textos que abordem as relações de gênero de forma compreensível para audiências
distintas, principalmente entre indivíduos que valorizam pensamentos e costumes
tradicionais.

Sabe-se que em toda sociedade existem atitudes e valores que diferenciam o que é
ser ―homem‖ do que é ser ―mulher‖. Essas diferenças são construídas socialmente e
variam de acordo com fatores como idade, religião, classe social, entre outros.
Sendo assim, os indivíduos de diferentes nacionalidades – que compõem as
missões de paz ou que recebem no seu país uma força internacional da ONU –
pensam e agem de acordo com papéis, responsabilidades e privilégios previamente
definidos nos espaços (público e privado) de convivência social. As concepções
sobre as características adequadas a mulheres (mão, cuidadora e pacífica) e
homens (provedor, figura dominante e agressiva) geram relações de poder desiguais
e, geralmente, as mulheres ficam em situações de desvantagem se comparadas a
homens do mesmo nível econômico e social, e no que diz respeito ao acesso a
recursos materiais e a direitos individuais e sociais.

Para um melhor entendimento sobre papeis e responsabilidades atribuídos a ambos


os grupos, percebe-se a publicação de boletins com uma linguagem informal e a
utilização de números, gráficos e fotos que sinalizam a preocupação da Organização
com a temática. Uma das estratégias tem sido o estímulo ao incremento de

276
mulheres nos instrumentos de resolução de conflito. Especificamente sobre a
participação de policiais e militares femininas nas OpPaz, é possível encontrar
arquivos com relatos das experiências de mulheres88 em campo e imagens aludindo
positivamente às atividades realizadas – imagens nas quais elas aparecem
interagindo com a população local, principalmente mulheres e crianças89. Outra
medida é a divulgação de vídeos de curta duração com títulos chamativos, como:
―Por que gênero é importante para as missões de paz?‖ e ―Mulher nas Operações de
Paz: poder para emponderar‖.

Em agosto de 2009, a Polícia das Nações Unidas (UNPOL, em inglês) lançou a


iniciativa Global Effort90, com o objetivo de duplicar até 2014 a presença mulheres
nas OpPaz, elevando-a para 20% nos contingentes policiais. A campanha é
frequentemente mencionada nos comunicados oficiais da ONU, datas
comemorativas e, recentemente, tornou-se foco da discussão de membros do grupo
da rede social Facebook por meio da página United Nations Police Division Female
Global Effort.

Além do acesso à informação, outro aspecto importante é o aumento da


transparência por meio da disponibilização de números desagregados por sexo.
Desde 2005, o DPKO divulga os números referentes a homens e mulheres que
participam das missões de paz. No primeiro ano em que o DPKO tornou o acesso
público a esses dados, as mulheres correspondiam a 1,5% do pessoal em campo.
Após cinco anos, houve um incremento e as mulheres uniformizadas passaram a
representar 3,3% dos soldados da paz. Muito embora o estudo indique um aumento
no total de mulheres uniformizadas, as soldadas continuam sub-representadas em
relação a seus pares masculinos. Por exemplo: em 2012, de aproximadamente
125.000 soldados as mulheres constituíam apenas 3% do pessoal militar e 10% do
componente policial.91

88
Algumas entrevistas podem ser encontradas no site da UNPOL. Mais informações em:
<http://www.un.org/en/peacekeeping/sites/police/field/story_003.shtml>. Acesso em: 07 jan. 2013.
89
Imagens no site do DPKO. Disponível em:
<http://www.un.org/en/peacekeeping/issues/women/wps.shtml.>.Acesso em 07 jan. 2013.
90
Mais informações sobre a iniciativa Global Effort no site:
<http://www.un.org/en/peacekeeping/sites/police/recruitment.shtml>. Acesso em: 13 nov. 2012.
91
Dados sistematizados pelo Departamento das Nações Unidas para operações de Manutenção da Paz (DPKO)

277
O DPKO não disponibiliza detalhes sobre os cargos ocupados pelas mulheres nas
missões de paz. É de responsabilidade das instituições nacionais designar as
tarefas que a soldada desempenhará, de acordo com sua experiência prévia nas
forças armadas nacionais. Os esforços do DPKO são no sentido de fomentar junto a
Estados-membros o aumento no número de mulheres enviadas para implementar o
mandato estipulado pelo CSNU. Há o reconhecimento de que essa iniciativa é
limitada, visto que em última instância os países que contribuem com tropas são os
responsáveis por esta decisão. A ONU recomenda que a alocação das soldadas não
deve ser pautada por concepções estereotipadas, porém alguns estudos mostram
que as soldadas geralmente ocupam as posições que tradicionalmente encaixam
com o perfil de cuidadora e pacífica, como enfermeira, médica e intérprete
(BEILSTEIN, 1995; JENNINGS, 2008).

Outra frente de ação são os pontos focais de gênero nas missões de paz. Tratam-se
de unidades compostas por assessores de gênero92 enviados para auxiliar no
processo implementação das diretrizes da Res. 1325, principalmente por meio do
contato com mulheres locais e a difusão de informações sobre direitos e
procedimentos judiciais contra abusos e violência sexual. Uma crítica recorrente à
presença de assessores de gênero é a falta de comunicação com os demais
integrantes das operações de paz, ocasionando duplicidade de tarefas e reduzindo a
eficácia das atividades.

No âmbito da ONU, destaque também é conferido às Unidades Formadas por


Polícias (Formed Police Units, em inglês). Esses grupos de polícia móveis,
compostos por aproximadamente 140 a 160 membros, são enviados para oferecer
apoio na gestão da ordem pública, garantir a segurança do pessoal e facilidades da
ONU e auxiliar as ações da UNPOL. As UFPs ocupam espaço importante nas
atividades das operações de paz, principalmente quando se trata das questões de
gênero. Por exemplo, foram criadas três UFPs compostas apenas por mulheres da
Índia (OpPaz na Libéria) e de Bangladesh (OpPaz no Haiti e na República
Democrática do Congo). Tais unidades buscam implementar as diretrizes expostas
na Res. 1325 por meio da proteção física (preventiva, durante e pós-conflito) de

92
De acordo com o site do DPKO, oito assessores de gênero sênior estão em ação no momento de finalização do
artigo.

278
grupos vulneráveis e segurança do abrigo humanitário contra agressões externas
(milícias, rebeldes) e ameaças internas (atos de violência cometidos por soldados da
paz ou locais dentro destes espaços).

Pode-se notar que o tamanho reduzido e o caráter multidimensional das atividades


desempenhadas pelas UFPs facilitam o acesso das policiais à população local. Para
que a Res.1325 tenha impacto na vida de mulheres e homens em zonas de conflito
é necessário que os locais conheçam seus enunciados e tenham recursos e espaço
político para se organizar e influenciar o processo de tomada de decisão (BELL;
CHRISTINE; O‘ROURKE, 2010, p. 945). As policiais das UFPs conseguem interagir
com vítimas de violência sexual e associações de mulheres locais com mais
facilidade devido ao caráter das tarefas desempenhadas. Por exemplo, dentre as
atividades da UFP de Bangladesh no Haiti estão: troca de informações com os locais
e sensibilização sobre questões de violência sexual, coordenação com associações
de mulheres, aconselhamento sobre questões sensíveis ao gênero junto a líderes
nos campos de pessoas deslocadas internamente, condução de programas
motivacionais e informativos, patrulhas conjuntas com a UNPOL e incentivos para
que mulheres haitianas participem da Polícia Nacional de seu país. 93

A utilização de ferramentas criativas e informacionais na rede virtual e as iniciativas


operacionais para traduzir a Res. 1325 são instrumentos em prol das discussões
sobre a necessidade de incluir perspectivas de gênero em todas as atividades
desempenhas pelas Nações Unidas. Não obstante as iniciativas apresentadas, a
falta de vontade política é entendida como o principal motivo para não colocar em
prática a linguagem de gênero, uma vez que os Estados colhem os efeitos positivos
do discurso sem precisar modificar suas ações (CAREY, 2000).

Tendo em vista que as instituições nacionais são responsáveis pela escolha e


alocação de pessoal nas unidades enviadas para as missões de paz, as medidas
tomadas sob a chancela da Organização ficam geralmente restritas a atividades de
difusão de informações, recomendações para treinamentos dos componentes,

93
Informações obtidas com a palestra proferida pela chefe da UFP de Bangladesh no Haiti no seminário
Desafios Transversais nas Operações de Paz Complexas Contemporâneas, organizado pela Pearson
Peacekeeping Centre, Escola Nacional de Operações de Paz do Uruguai (ENOPU) e Rede de Segurança e Defesa
da América Latina (RESDAL) em Montevidéu, 2010.

279
estímulo para formação de unidades de polícia predominantemente femininas e
criação de pontos focais de gênero.

4 Considerações Finais

A aprovação da Res. 1325 representou um momento de inflexão, conferindo caráter


de urgência a um assunto tradicionalmente separado da agenda do CSNU e
relegado ao domínio de foros sociais (ECOSOC, por exemplo). Não há como negar
que, nos dias atuais, a agenda ―Gênero nas Operações de Paz‖ ganhou
notoriedade, sendo discutida em órgãos políticos e fóruns globais. Diretrizes,
manuais, grupos de trabalhos interagenciais, agências específicas sobre mulheres,
dentre outras iniciativas, estão sendo levados a cabo nos âmbitos local, regional e
internacional com o intuito de difundir informações referentes ao tema.

Passados treze anos da publicação da Res. 1325, é possível identificar alguns


obstáculos à implementação dos objetivos expostos nesse documento. Críticos mais
severos argumentam que o problema para a operacionalização dos enunciados é a
falta de uma metodologia destinada a orientar os atores envolvidos (WILLET, 2010).
Outros estudiosos, por sua vez, sustentam que homens e mulheres, imbuídos de
pensamentos tradicionais e discriminatórios em relação ao espaço ocupado pela
mulher, resistem à aplicação de estratégias desenvolvidas para galgar a igualdade
de gênero (TRYGGESTAD, 2009).

Em meio aos argumentos sobre a lentidão no processo de implementação de


perspectivas de gênero nas missões de paz, é consenso que um dos entraves para
a incorporação dos enunciados da Res. 1325 são as instituições estatais, que ainda
retêm uma visão militarizada dos aspectos de promoção da segurança em cenários
complexos. Os esforços da ONU, portanto, ficam limitados às campanhas com
ênfase nos ganhos operacionais da integração de mulheres nos instrumentos de paz
e à promoção de uma agenda que aborda, principalmente, a violência contra a
mulher em situação de conflito armado.

Conclui-se que a agenda ―Gênero nas Operações de Paz‖ ganha cada vez mais
atenção no campo da paz e segurança internacionais. A publicação de uma série de

280
resoluções, relatórios e diretrizes sobre o tema é reflexo disto. Em contrapartida, o
aumento no número de mulheres em campo não evolui conforme o esperado, e
questões como os espaços que elas ocupam nos instrumentos de paz continuam
sem a devida abordagem oficial, abrindo espaço para a reincidência de textos que
tenham outros propósitos que não o de contribuir para um pleno entendimento das
questões de gênero.

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283
Simpósio Temático 4

FRONTEIRA RORAIMENSE E CONSIDERAÇÕES SOBREGOVERNANÇA

Ana Zuleide Barroso da Silva94

1 Introdução

Os espaços transfronteiriços são hoje, cenários do complexo entrelaçamento de


circunstâncias e processos cujas origens, manifestações e consequências
expressam vínculos entre realidades locais e injunções nacional e
internacionalmente definidas e que suscitam, por sua vez, desafios de distintas
naturezas no campo das áreas ambiental, indígena e de segurança. Às carências
econômicas e sociais que afligem normalmente tais espaços se somam as pressões
migratórias, a ocupação desordenada do território e o surgimento de atividades
produtivas formais e informais, que desafiam os ditames da sustentabilidade
ambiental e os direitos de populações autóctones. O presente trabalho passa em
revista às experiências internacionais de gestão de espaços protegidos
transfronteiriços e analisa as políticas de Brasil, Venezuela e Guiana voltadas para
os respectivos espaços em suas fronteiras comuns, para, em seguida, caracterizar e
analisar ações cooperativas empreendidas localmente, assumindo-as como
substratos de formas nascentes de governança.

2 Governança e Relações Internacionais

Observa-se nas relações internacionais nos últimos anos, o aumento da cooperação


entre os países sob diversas formas. Os pesquisadores chegaram a alguns

94
Doutora em Relações Internacionais e Desenvolvimento Regional,Professora da Universidade Federal de
Roraima-UFRR

284
entendimentos comuns sobre a definição de cooperação e algumas hipóteses para
explicar quando esta ocorre. Para Keohane (1984), a cooperação ocorre ―when
actors adjust their behavior to the actual or anticipated preferences of others, through
a process of policy coordination‖95. Essa definição pressupõe que o comportamento
dos atores esteja direcionado por um objetivo, o que permite o ajustamento das
políticas dos atores. Sendo assim, os Estados, ao cooperarem, teriam melhores
resultados do que o contrário. A cooperação é, portanto, oposta ao conflito e à
competição, configurando um jogo de soma positiva e de ganhos absolutos.

No entanto, a maioria dos autores discorda em relação ao que causa a cooperação.


Para o Realismo a cooperação era vista através do direito internacional que buscava
assegurar a ordem do sistema de Estados, fundados sobre os princípios da
soberania e da igualdade. Nessa visão, os Estados emitiam, paulatinamente, as
regras destinadas a assegurar sua autopreservação na separação. Os neorrealistas
também partilham a visão de que o Estado é o centro do sistema internacional e que
este ―resulta da interação de unidades semelhantes, os Estados, incitados pelas
mesmas ambições e preenchendo as mesmas funções‖ (SMOUTS, 2004, p. 131). A
cooperação serviria então para manter a ordem internacional, em um sistema
internacional anárquico e com suas unidades em competição.

Visão contraposta a esta é a de autores inspirados no Idealismo, para os quais a


cooperação cumpre o papel de institucionalizar a vida internacional, mediante a
instauração do direito internacional em prol das necessidades humanas. O Idealismo
foi a abordagem que inspirou a criação da Liga das Nações e depois a Organização
das Nações Unidas. Para Smouts (2004), a cooperação favoreceria a ação dos
Estados em prol da realização de objetivos comuns.

Nas décadas de 1950 e 1960, o Funcionalismo e o Neofuncionalismo procuraram


também explicar a cooperação, mas a partir das instituições. A cooperação em certo
domínio poderia se espalhar para outros (spill over), o que traria a necessidade de
instrumentos de coordenação que passariam a ser instrumentos de coordenação
política. Neofuncionalistas, como Ernest Haas (SMOUTS, 2004), ampliaram a teoria
de Mitrany introduzindo o papel das elites e das burocracias nos fenômenos de ―spill
95
“Quando atores ajustam seu comportamento às preferências reais ou esperadas dos outros, através de um
processo de coordenação política” (Tradução nossa).

285
over‖. As pesquisas dentro desse corpo teórico se concentraram no estudo da
cooperação europeia. Outros estudos se concentraram no funcionamento das
organizações internacionais e, em especial, sobre a forma da tomada de decisões
em seu interior.

Nos anos 1970, a teoria da interdependência complexa examinaria também, além da


cooperação, o fenômeno do Transnacionalismo, isto é, o surgimento de novos
atores atuando para além das fronteiras estatais. Para Nye e Keohane (1984), a
interdependência entre os atores no sistema internacional aumentaria a necessidade
da cooperação. Todavia, essa interdependência não é simétrica. Pelo contrário, as
diferenças de poder entre os atores repercutem na cooperação. Também o
Neoinstitucionalismo Liberal, principalmente com a teoria dos regimes, que passa a
ser a principal teoria para explicar a cooperação internacional desde então, trata da
questão da cooperação que leva à criação de instituições internacionais. O
Neoinstitucionalismo tem sua origem na teoria das organizações. Para esta, as
organizações reduzem os custos das trocas ligadas às imperfeições do mercado.
Nas relações internacionais se tornou clássica a definição de Krasner (1999) de
regime internacional como ―um conjunto de princípios, de normas, de regras e de
procedimentos de decisão, implícitos ou explícitos, em torno dos quais as
expectativas dos atores convergem em um domínio específico‖.

Os estudos neoinstitucionalistas se concentraram em buscar os critérios para a


existência de um regime, a sua efetividade, a sua robustez e a sua implementação.
Para Roman (1998, p. 105), a análise dos regimes se concentra nos aspectos
institucionais. Este autoros define como ―social institutions composed of agreed-upon
principles, norms, rules, and decision-making procedures that are intended to
govern, or govern, the interaction of actors in specific issue areas.‖96

A teoria dos regimes abordou a cooperação como fenômeno interestatal, abrindo


pouco espaço para a participação de atores não estatais em diferentes planos,
afastando-se, cada vez mais, da realidade internacional que se pautara pela
diversificação dos atores. Esse aspecto é ressaltado por Inoue (2004).

96
Instituições sociais compostas por princípios acordados, normas, regras e procedimentos decisórios que se
destinam a governar, ou governar, a interação de atores em áreas de questão específicas. (Tradução nossa)

286
O conceito de regime internacional de biodiversidade é conhecido pelos
estudiosos dos temas ambientais globais. Geralmente o foco é nas relações
interestatais e no processo em torno da implementação das convenções
ambientais. Alguns estudos sobre a Convenção sobre Diversidade Biológica
(CDB) ressaltam seu potencial e avanços como um acordo amplo entre
países com interesses diversos (ALENCAR, 1995; SWANSON, 1997;
PRESTRE, 2001), mas não tratam os resultados concretos nacionais-locais.
Por outro lado, a literatura da área de biologia da conservação e
publicações de ONGs (IIED, Conservation Biology) fazem
avaliações/análises de projetos implementados localmente, restringindo o
foco da análise a iniciativas espalhadas pelo mundo. Contudo, poucos
esforços têm sido feitos para integrar os níveis global e local.

Frente à necessidade de considerar a importância dos atores não estatais no âmbito


da cooperação internacional para o tratamento de questões colocadas em distintos
planos e áreas temáticas despontou o conceito de governança. Na obra organizada
por Rosenau e Czempiel (2000, p. 13), Governança sem governo, os autores
procuraram analisar conceitos como ordem, governança, instituições e poliarquia no
novo contexto internacional:

Compartilhamos um único ponto de vista a respeito dos temas fundamentais


confrontados pelos analistas que buscam compreender as estruturas
emergentes da política mundial. Notadamente, concordamos em que num
mundo onde a autoridade sobre deslocamento contínuo, tanto
exteriormente, no sentido das entidades supranacionais, como
internamente, no sentido dos grupos federados fronteiriços, é cada vez mais
necessário verificar como pode existir governança na ausência de um
governo. (ROSENAU, 2000, p. 13)

Segundo Vogler (1996), o problema fundamental a que essa abordagem buscava


responder era como governar a interdependência em um sistema de Estados
soberanos e na ausência de uma autoridade central supranacional que promovesse
a ordem e a regulação das ações dos Estados, como supostamente ocorre no
interior dos Estados.

3 Governança Local

Segundo Diniz (1995, p. 400), a preocupação vinculada à definição geral de


governança surge a partir de reflexões conduzidas principalmente pelo Banco
Mundial, tendo em vista aprofundar o conhecimento das condições que garantem

287
um Estado eficiente, deslocando-se do foco das implicações estritamente
econômicas da ação estatal para uma visão mais abrangente, envolvendo as
dimensões sociais e políticas da gestão pública. Num segundo momento, com o
fenômeno da globalização97 e considerando que o conceito não se restringe aos
aspectos meramente administrativos e operacionais, na gestão e na busca do
Estado eficiente, impulsionou a discussão sobre os novos meios e padrões de
articulação entre indivíduos, organizações, empresas e o próprio Estado, deixando
clara a importância da governança em todos os níveis 98.

Contudo, o termo governança, explorado tanto sob o viés econômico como da


governança global deixa o vácuo a ser preenchido pela governança local. Tendo
como base a presença crescente dos diversos atores sociais, favorecendo, em tese,
uma gestão democrática e pluralista, que permite compatibilizar interesses diversos,
focando na ideia de que, mesmo sendo desejável tal inclusão, ela deve ser feita de
acordo com cada contexto local.

Em que pese o fato de o conceito internacional de governança estar arraigado a


ideais associados à globalização, ele acaba por ser apropriado por inúmeros órgãos
governamentais e não governamentais no Brasil e na Venezuela e pontualmente na
Guiana, como uma forma compartilhada de fazer política, capaz de influenciar
governantes e políticas locais. A governança local associada à esfera pública implica
ir além do governo na regulação e incluir diversos setores e grupos na elaboração e
implementação de ações direcionadas ao interesse coletivo, no caso específico
deste artigo em espaços fronteiriços e transfronteiriços.

Busatto e Zalewski (2004) enfatizam que devem ser trabalhadas e adequadas à


realidade local algumas categorias, entre as quais se destacam a territorialidade, o
desenvolvimento local, capital social e capital humano, parcerias, empoderamento,
além dos valores da cooperação, pluralidade, diálogo, consenso e vizinhança.
97
Entendido como um processo não exclusivamente econômico, mas também que envolve aspectos sociais,
culturais, políticos e pessoais, recolocou, as relações entre sociedade e Estado. Trazendo como consequência
uma mudança no papel do Estado Nacional e suas relações no cenário internacional.
98
Governança é um termo de amplas acepções e de aplicabilidade em diversos campos do saber: governança
corporativa (GRÜN, 2003); governança organizacional (FONTES FILHO, 2003); governança global (PIERIK,
2003); governança sem governo (ROSENAU, 2000); governança eletrônica (RUEDIGER, 2002); governança
operacional (BRESSER-PEREIRA, 2004).

288
A governança local surge com sua capacidade de gerenciamento e participação,
trazendo novas diretrizes e incorporando novas temáticas ao desenvolvimento. A
preocupação com o meio ambiente e com o bem-estar da sociedade é o ponto de
chegada destas iniciativas. Ao se inserir novas dinâmicas dentro da gestão pública,
amparados pela governança, criam-se oportunidades para melhoria da qualidade de
vida. A governança deve perceber as potencialidades, dificuldades e necessidades
dos locais, buscando recursos para solucionar seus problemas. E deve agir de modo
transparente, igualitário, com responsabilidade e prestação de contas para
conquistar novos integrantes.

A noção de governança localtem sido orientada no âmbito da prática dos atores


sociais comprometidos com sociedades mais democráticas e menos desiguais,
como o processo de desenvolvimento de arenas públicas que estimulem a
capacidade política de gestão, articulando eficácia política com a ―produção de
justiça social‖. O desafio é transformar a ação governamental em ação pública e o
espaço estatal em espaço público. Isso supõe uma nova institucionalidade que
articule as ações de governo, os setores privados e o poder social dos atores
organizados em torno da construção de projetos políticos e sociais. Os espaços
protegidos transfronteiriços têm sido cenários desses desafios, pois contêm os
atores e as problemáticas inerentes à governança local. A seguir apresentar-se-á
referência para a criação de unidades de conservação como parques ou reservas a
fim de formarem zonas ou áreas protegidas transfronteiriças, ou seja, trata-se de
criar condições para a circulação da fauna e assegurar a integridade dos
ecossistemas para sua reprodução e das populações tradicionais.

4 Espaços Protegidos Transfronteiriços

O encontro ITTO/IUCN99 resultou em propostas para uma tipologia de iniciativas de


conservação transfronteiriça, que foram depois debatidas em encontro realizado em
La Maddalena, Sardenha, e que foram incorporadas numa nova publicação da IUCN

99
Conferência ITTO/IUCN na Tailândia, em 2003. Mohamed Bakarr, o orador de abertura na conferência
ITTO/IUCN, sugeriu que poderia valer a pena adotar formalmente o termo “Área de Conservação
Transfronteiriça” (ACTF) para evitar restringir “iniciativas de conservação à apenas aquelas áreas onde áreas
protegidas são contíguas através de fronteiras internacionais”.

289
(2009). Essencialmente, a tipologia inclui quatro tipos que são propostos como um
quadro organizador para conservação transfronteiriça e iniciativas de
desenvolvimento. Esses quatro tipos principais são descritos a seguir.

4.1 Áreas de Conservação Transfronteiriça (Transfrontier Conservation


Áreas – TFCAs)

Nos últimos 25 anos emergiram novos padrões de governança e tomada de decisão em


áreas protegidas, nessa perspectiva, Áreas de Conservação Transfronteiriças –
TFCAs100, e outros tipos de esforços de gestão de recursos naturais que cruzam
fronteiras estão a proliferar. Os objetivos das TFCAs se ancoram no pressuposto de
criação e gestão sustentável dos ecossistemas, promovendo a colaboração e
cooperação regional e a conservação da biodiversidade; concomitantemente, essas
áreas reforçam e facilitam o crescimento econômico, por meio das alianças entre o
setor público, privado e as comunidades locais.

Em 1988, 59 lugares foram identificados nos quais duas ou mais áreas protegidas
(incluindo todas as categorias de áreas protegidas da União Mundial de
Conservação [IUCN]101) se uniam através de fronteiras internacionais; até 1997,
segundo Zbicz (2001) e Green (1997), esse número tinha mais do que dobrado para
136 complexos de áreas protegidas internacionalmente contíguas, incluindo 488
áreas protegidas individuais. Zbicz (2001) afirma que, em 2001, o número de
complexos tinha aumentado para 169, com 666 áreas protegidas individuais, das
quais, 31 envolviam três países e uma envolvia quatro países. Análise mais recente
realizada pela IUCN, em 2005, indica um total de 188 complexos envolvendo 818
áreas protegidas em 112 países. Embora o aumento mais recente seja em parte
devido à inclusão de sítios menores que não foram incluídos nas versões anteriores,
o crescimento ainda é real e a tendência inequívoca. É evidente que o número de

100
De acordo com o Protocolo de Conservação da Vida Selvagem, Southern African Development Community –
SADC e a Lei de Execução, são definidas como “área ou componente de uma vasta região ecológica que
atravessa as fronteiras de dois ou mais países, englobando uma ou mais áreas protegidas bem como áreas de uso
múltiplos dos recursos”.
101
IUCN é na verdade acrônimo de International Union for Conservation of Nature (União Internacional para
Conservação da Natureza).

290
complexos de áreas protegidas transfronteiriças continua a crescer, e que há muitos
sítios em fase de planejamento.

Os novos padrões de governança e tomada de decisão em áreas protegidas


introduziram modelos inovadores de uso direto e indireto da biodiversidade e
reordenamento de um modo formal dos padrões de gestão dos recursos naturais.
Por exemplo, o conceito de TFCA evoluiu do que, inicialmente, tinha como objetivo
restrito de conservação da biodiversidade para o de criar modelos integrados de
conservação de ecossistemas e desenvolvimento sócio-econômico. Esse
pensamento é vital para determinar as melhores formas de gerar benefícios
palpáveis para as comunidades que dependem dos recursos naturais.

Num contexto de gestão florestal mais amplo, a Declaração de Yaoundé, emitida em


Yaoundé, Camarões, em Conferência Ministerial sobre Aplicação da Lei Florestal da
África e Governança, em 2003, destacou a importância central da conservação
transfronteiriça e gestão de recursos florestais em vários lugares. Como com
qualquer outro novo desenvolvimento, há razão para celebrar progresso inovador.
Mas há também uma necessidade de se examinar de forma crítica e de se refletir
sobre a contribuição que essas iniciativas podem dar para o alcance de objetivos de
conservação global e desenvolvimento, bem como na participação e meios de vida
de comunidades que vivem dentro e em torno dessas áreas.

4.2 Benefícios das TFCAs

Uma TFCA pode criar oportunidades sociais únicas, por exemplo, reunindo
comunidades dividas por fronteiras ou permitindo que populações móveis
atravessem seus territórios tradicionais de maneira mais fácil, como no caso
específico das populações que vivem na fronteira. TFCAs também acrescentam uma
dimensão política atraente à conservação, que é a capacidade de reduzir tensões ou
mesmo ajudar a resolver conflitos entre países, em particular aqueles que se
originam de disputas transfronteiriças. Também dá poderosa evidência para uma
das máximas centrais da conservação – que áreas protegidas não são necessárias
apenas para assegurar a integridade ecológica do planeta, mas, de forma mais

291
ampla, que elas são um componente essencial de qualquer sociedade sadia,
pacífica e produtiva. As subseções abaixo analisam em mais detalhes os muitos
benefícios que TFCAs podem proporcionar, além de benefícios biológicos óbvios
inerentes a qualquer área protegida bem gerenciada.

Benefícios Políticos

A atração das TFCAs se origina em grande parte de seus benefícios políticos regionais.
TFCAs podem ajudar a reduzir tensões entre países, podem ajudar a resolver disputas
de fronteira, ou podem ser usadas para construir ou reconstruir cooperação pacífica, na
resolução de disputas de fronteiras internacionais, trazendo paz e reconciliação para
regiões que têm vivenciado conflito violento. Um exemplo é o TFCA Kaza, que se
destacou por trazer reconciliação e renovação econômica ao sul de Angola, e na
construção de novos laços entre Angola e seus vizinhos.

Benefícios Sociais

Áreas de fronteira são, frequentemente, importantes desde uma perspectiva da


biodiversidade porque sua distância de grandes centros urbanos funciona para
assegurar sua integridade. Entretanto, áreas de fronteira são lugares de grande
complexidade social por várias razões. Primeiro, elas são, comumente, o lar de
culturas únicas que se desenvolveram em graus variáveis de isolamento; essa
realidade das comunidades indígenas que vivem na fronteira do Brasil e Venezuela
objeto de estudo desta tese. Segundo, fronteiras coloniais eram frequentemente
marcadas por não dar importância a padrões culturais e etnias, de modo que grupos
étnicos, e, às vezes, até mesmo famílias, encontram-se separados por fronteiras
políticas. O que representa um grande problema para comunidades móveis que
seguem migrações de animais selvagens para caçar, ou espelham a migração de
animais selvagens enquanto buscam áreas de pastagem para animais, ou as duas
coisas. Terceiro, áreas de fronteira podem ser particularmente voláteis em regiões
com tendência a conflito e podem, de repente, se tornar bases de preparação para
exércitos e grupos rebeldes com refugiados fugindo de uma zona de guerra e

292
buscando porto seguro onde possam acessar recursos de subsistência. No caso da
fronteira Brasil, Venezuela e Guiana o que nos chama a atenção é o recorrente
problema dos garimpos ilegais.

O caráter único de fronteira, portanto, cria condições especiais nas quais uma TFCA
pode se tornar uma oportunidade única – uma força estabilizadora possibilitando
restaurar a integridade social e ecológica da paisagem – ou um fator potencialmente
complicado, criando novas barreiras para comunidades locais. Qual destes é o caso
depende, em grande parte, da disposição daqueles que projetam a TFCA de
entender e abordar as complicações sociais da região na qual estão trabalhando.

Até hoje, o planejamento de TFCA não integrou de modo satisfatório considerações


sociais e, consequentemente, a provisão de benefícios sociais não alcançou seu
inteiro potencial. Isto é ruim, pois TFCAs poderiam se tornar muito úteis, ajudando a
retificar problemas causados por fronteiras políticas estabelecidas sem observância
das fronteiras sociais e ecológicas. As TFCAs podem envolver comunidades locais
na gestão de uma área que se assemelha mais à área tradicionalmente sob sua
gestão e, com os acordos adequados entre governos, podem permitir às
comunidades circularem mais livremente entre países, possibilitando reunir famílias
divididas por fronteiras.

Há evidências de que TFCAs facilitam intercâmbios culturais entre grupos étnicos


separados por fronteiras, mesmo onde a dimensão cultural não é um objetivo
explicitamente articulado.

TFCAs podem também proporcionar um efeito econômico positivo por meio do


turismo, para comunidades locais, e para o país como um todo. O turismo é hoje a
indústria com mais rápido crescimento do mundo. A Organização Mundial do
Turismo – UNWTO (2011) estima que, em 1999, mais de 663 milhões de pessoas
passaram tempo como turistas, gastando mais de $ 453 bilhões. A UNWTO espera
mais de um bilhão de viajantes por ano até 2010, e 1,6 bilhão até 2020. Além disso,
segundo a Organização Mundial do Turismo (2004), a indústria turística é a que
mais emprega no mundo, gerando aproximadamente 200 milhões de empregos, ou
cerca de 10% dos empregos ao redor do mundo. Na tríplice fronteira Brasil,

293
Venezuela e Guiana, apenas do lado venezuelano a população indígena pode
explorar a atividade do turismo ecológico.

Ainda segundo Organização Mundial do Turismo – UNWTO (2011) o mercado do


turismo com base na natureza representa grosso modo 7% dos gastos com turismo
e 20% de todas as viagens internacionais. Além disso, o turismo com base na
natureza está crescendo em ritmo muito maior do que o setor de turismo geral – 10
a 30% contra aproximadamente 4%. Em algumas áreas, tais como a região da
Comunidade de Desenvolvimento Sul-Africano (SADC), o turismo é o maior gerador
de empregos e uma fonte essencial de intercâmbio estrangeiro.

O potencial econômico do turismo com base na natureza é, portanto, enorme, e


espaços protegidos que têm agregado o selo internacional de serem designadas
TFCAs estão bem posicionadas para capitalizar nesse potencial. Isto se confirma
particularmente se o espaço protegido se beneficia de outras designações
internacionais, por exemplo, como um Sítio do Patrimônio Mundial da UNESCO. No
entanto, há também observações importantes. Os níveis atuais de infraestrutura em
muitos países em desenvolvimento são inadequados para atender à crescente
demanda turística. Além disso, há sérios riscos associados com a dependência
excessiva de uma economia turística que desencoraja investimento na infraestrutura
necessária. Choques políticos resultantes de ataques terroristas ou conflito civil
podem ter impactos imediatos e radicais no turismo, com efeitos desastrosos sobre
economias locais.

O turismo requer, portanto, planejamento cuidadoso e integração em planos de


desenvolvimento nacionais e regionais. Outra realidade da indústria do turismo
natural (e do turismo de modo geral) é que muitos dos empregos gerados não são
qualificados e têm salários baixos, e grande parte dos lucros tende a não ficar em
comunidades locais; em vez disso, concentram-se em cidades ou são exportados
para países desenvolvidos. É, portanto, essencial implementar mecanismos para
assegurar que alguns desses lucros permaneçam nas comunidades locais onde o
ecoturismo realmente acontece. Os benefícios do turismo podem ser distribuídos de
forma desigual entre países que compartilham TFCAs se um dos países tem

294
infraestrutura inferior. Todas essas questões devem ser levadas em consideração
em planejamentos de TFCAs.

Benefícios da Gestão

Um terceiro fator explicativo para o aumento das TFCAs tem a ver com as muitas
vantagens de gestão que se somam aos países com áreas protegidas adjacentes.
Incluem a maior eficiência – tanto financeira como em termos de recursos humanos
– de combinar esforços numa gama de desafios de gestão, desde espécies
invasoras e controle de pestes, a prevenção de incêndios, para pesquisar e resgatar
operações. Gestão coordenada também pode evitar duplicação dispendiosa de
esforços, tais como: programas de treinamento para funcionários de parques, e
materiais educacionais e de interpretação para visitantes – por exemplo, na fronteira
do Brasil com a Venezuela, mesmo não sendo ainda uma TFCA, existe um
programa bilateral de vacinação para os índios isolados na referida fronteira. E, é
claro, a coordenação cria mais um ambiente dinâmico de resolução de problemas,
aumentando a reserva de competências que pode ser aplicada a qualquer situação.

Um pouco desse entusiasmo deve ser moderado pelo fato de que enquanto projetos
de conservação transfronteiriça podem simplificar certos aspectos de gestão de
espaços protegidos, eles podem também acrescentar complexidade. Exigir consenso
de dois governos, quando antes a aprovação de apenas um era suficiente, pode frear
a tomada de decisão. Onde os dois espaços protegidos são de diferentes
classificações, geridos por diferentes agências administrativas – tais como um parque
nacional de um lado da fronteira e um refúgio da fauna de outro – ou ainda como na
fronteira do Brasil e Venezuela, ou seja, um parque nacional de um lado e Terra
Indígena do outro - com mandatos divergentes, podem complicar as tentativas de
cooperação. Diferenças no idioma através da fronteira pode também ser um fator
limitador, e recursos financeiros desproporcionais de um lado de uma fronteira podem
causar um desequilíbrio na distribuição de benefícios. E, como destacado acima,
áreas de fronteira são caracterizadas por própria série de desafios especiais – desde
crises de refugiados, a contrabando e militarização como resultado de tensões

295
políticas e conflito direto. Assim, pelo menos no curto prazo, espaços protegidos
transfronteiriças não podem simplificar gestão de forma notável.

No entanto, o potencial de TFCAs é real, apesar de tudo, e é este enorme potencial


que as torna interessantes. TFCAs não são um mecanismo livre de falhas – e nem
todas as TFCAs proporcionam toda a gama de benefícios descrita acima. Mas
TFCAs criam sim oportunidades. Que elas se desenvolvam lentamente com o
tempo, como resultado de contatos informais entre áreas protegidas, quer desfrutem
de esforços diplomáticos nos níveis mais elevados, TFCAs são atrativas porque
estabelecem cooperação e criam canais de comunicação que antes não existiam.
Em virtude desses mecanismos, cooperação pacífica não só sobre conservação da
biodiversidade, mas de uma ampla gama de direitos humanos diversos, preservação
cultural e desenvolvimento econômico. É o potencial para esta reação em cadeia na
paisagem – uma cascata de benefícios que necessariamente começa com um
ecossistema gerenciado de forma mais efetiva – que faz das TFCAs uma
perspectiva tão empolgante.

Percebe-se das experiências encontradas nos Parques Transnacionais na África do


Sul, América do Sul, Asia, América Central que a conservação transfronteiriça tem
sido destacada em iniciativas socioeconômicas regionais (por exemplo, a União
Europeia e a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral) como
mecanismo para integração de metas de desenvolvimento e conservação regionais.
Mas é inegável que o surgimento dos atores não estatais é central para o
desenvolvimento da ideia e da prática da governança. Segundo Tomassini (2001),
para lograr tais objetivos nas democracias, é preciso que haja a concorrência dos
governantes (Estado) e dos cidadãos e de suas organizações (sociedade civil
organizada) para construir consensos que tornem possível formular políticas que
permitam responder equilibradamente ao que a sociedade espera do governo.

5 Considerações Finais

O Brasil e a Venezuela vêm buscando implementar políticas de gestão territorial de


suas respectivas fronteiras nacionais, tendo como importante componente a criação

296
de espaços protegidos, contemplando a institucionalização e a demarcação de
territórios com destinações e usos específicos, como a conservação e preservação
ambientais e as terras de usufruto indígena, a Guiana nesse sentido ainda não tem
ações consolidadas

De fato, Brasil, Venezuela e Guiana possuem dificuldades de efetivar as políticas e


ações de cooperação definidas pelos estados nacionais no nível local. A título de
exemplos, têm-se a questão dos passaportes ainda exigidos para os venezuelanos e
brasileiros na zona de fronteira dos municípios de Pacaraima (BR) e Santa Elena de
Uairén (VE) e pontualmente nas cidades de Bonfim e Lethen; o garimpo ilegal tem
sido recorrente nesses espaços protegidos fronteriços; assim como também a
presença dos ilícitos e precariedade no atendimento às comunidades indígenas nas
áreas de educação e saúde. Por conseguinte, o quadro que emergiu nos últimos
aponta que cada vez mais os municípios fronteiriços Pacaraima (BR), Santa Elena
de Uairén (VE) e Lethen (GY), as comunidades indígenas, e as organizações não
governamentais têm encontrado soluções conjuntas para responderem às suas
necessidades e peculiaridades no âmbito local, algumas vezes com total
desconhecimento dos estados nacionais.

O amplo quadro de informações empíricas sobre os espaços protegidos na fronteira


do Estado de Roraima (BR) com a Guiana e Venezuela, observou-se também que,
no âmbito local, e do lado brasileiro, os atores que representam o governo federal
brasileiro, como o Comando Militar da Amazônia - CMA, a Fundação Nacional do
Índio – FUNAI e a Fundação Nacional Saúde Indígena – FUNASA e mais
recentemente a Secretaria Especial de Saúde Indígena possuem visões
completamente diferentes e estão em desacordo com outras organizações
governamentais e não governamentais. Mesmo existindo um diálogo formal, na
prática, quando se está no nível das ações locais, tais órgãos não se concatenam ou
quando se articulam o fazem de forma esporádica. A FUNAI deveria ser o órgão
articulador das ações conjuntas, pois supervisiona o território indígena e está em
área de fronteira, tendo o controle do fluxo de informações. Além do mais, domina os
idiomas e dialetos indígenas.

297
Já do lado da Venezuela e Guiana, apenas o Exército está presente fisicamente em
grande parte dessa zona de fronteira. Contudo, na Venezuela existem alguns
projetos para a região no âmbito Primeiro Plano Socialista do Desenvolvimento
Econômico e Social da Nação - PPS (2007- 2013). O PPS propõe-se organizar o
território venezuelano em eixos de desenvolvimento e integração, dentre os quais o
―PlanCaura‖ que tem por área-programa o cinturão da franja direita do Orinoco,
destinado ao fortalecimento dos mecanismos e instrumentos de defesa nacional na
região sul e orientados a eliminar e controlar o garimpo ilegal nos espaços
protegidos da fronteira com o Brasil. Todavia, em relação aos direitos reivindicados
pelas populações indígenas dessa região, a saber, saúde, educação e cidadania
têm-se, ainda, investido pouco. Por isso há apenas a expectativa de que os
princípios até agora formulados no PPS sejam realmente efetivados.

Essa perspectiva exige ir além da discordância entre divisão natural e divisão


política. No caso de áreas protegidas nas zonas de fronteira internacional da
Amazônia brasileira, especificamente entre o Brasil, Venezuela e Guiana, não
foram observadas a formação de áreas de conservação ou proteção
transfronteiriça, ainda que tenha sido detectada, na pesquisa de campo,
sincronia na criação de espaços protegidos e um embrião de ações e de gestão
conjuntas, mas que são implementadas apenas pelos atores governamentais e
não governamentais na esfera local.

Em termos gerais, mesmo diante dos desafios enfrentados pelos estados nacionais,
brasileiro, venezuelano e guianense, para consolidar a presença estatal na zona de
fronteira, somados aos problemas transfronteiriços decorrentes da demarcação de
espaços protegidos naquele espaço, as referidas faixas contíguas apresentam
vantagens comparativas para efetivar o fortalecimento regional, se tomadas em
conta as características políticas e seus propósitos comuns. No entanto, requer-se
de ambos os Estados Nacionais coordenação e formulação específica de políticas e
ações efetivas para os espaços protegidos fronteiriços.

O espaço fronteiriço entre Brasil, Venezuela e Guiana apresenta interesses


multifacetados e, em boa parte, contraditórios. Enfeixa questões de segurança
ambiental, de segurança energética, de salvaguarda de direitos humanos dos

298
indígenas e de segurança alimentar. Além disso, apresenta-se a questão da disputa
por territórios, tanto no sentido do estudo, quanto no sentido do território como
espaço socioeconômico, politicamente construído. Trata-se, portanto, de relações de
poder, onde os Estados nacionais da Venezuela, Guiana e Brasil exercem a
mediação dos conflitos existentes. Para tanto, criaram imenso arcabouço legal, que
tem demonstrado baixa eficácia, pois, exceto pela presença dos Exércitos, há um
claro vazio de poder estatal em termos de prestação de serviços públicos, seja de
segurança, na forma da presença de forças policiais e de fiscalização, de saúde e
educação, de logística e de promoção do desenvolvimento dessas comunidades.

Existem demandas concretas de cooperação que emanaram das relações


fronteiriças, e, mais especificamente, dentro dos espaços protegidos. Nesse sentido,
os Estados Nacionais brasileiro, guianense e venezuelano têm se mostrado
reticentes na direção do aprofundamento desse processo. Parece que o conceito de
soberania nacional, no seu significado clássico, ainda é suficientemente forte para
ceder à evidência da vasta possibilidade oferecida pela cooperação internacional
construída a partir das convergências dos interesses nacionais, locais e regionais.
Nessa direção ainda há muito a se fazer. É um caminho longo e árduo,
principalmente à luz dos fatos que insistem em manter ambos os países
distanciados, apesar de a geografia os manter como vizinhos.

Os espaços transfronteiriços são arenas de construção de territorialidades a partir


das identidades nacionais e, talvez, daí decorram as dificuldades. Há problemas
comuns, mas enfrentados isoladamente pelos Estados Nacionais. No entanto, os
atores locais sabem que o caminho é o da cooperação e pleiteiam e trabalham
nesse sentido, mesmo na maioria das vezes, não tendo disso consciência plena,
como é o caso das comunidades indígenas. Ao mesmo tempo demonstram, com
essas iniciativas, aos Estados Nacionais a possibilidade de desenvolver um
sistema de governança que derrube barreiras e que construa relações vantajosas
para os dois lados.

Em suma, os espaços protegidos estudados, onde habitam os povos indígenas


Yanomami,Ye‘kuana, Macuxi, Taurepang, Ingarikó e Pemón, são compostos por
regiões de fronteira inóspitas, sem nenhum tipo de relação, mas propícia ao

299
garimpo ilegal, e por regiões onde as comunidades indígenas realizam assembleias
com lideranças indígenas brasileira, venezuelana e guianense, mas ainda com
pouca estruturação dos referidos estados nacionais para fortalecer essa relação
entre e com atores locais. Já o corredor entre as cidades de Pacaraima (BR) e Santa
Elena de Uairén (VE) e Bonfim (BR) e Lethen (GY) é o trecho da fronteira, ora
estudada, no qual se tem a relação comercial e social mais intensa e também com
maior incidência de casos de ilícitos. Outrossim, a proximidade dos indígenas
Yanomami,Ye‘kuana na fronteira Brasil e Venezuela e o distanciamento das cidades
demandam ações governamentais diferentes das demandadas pelos indígenas
Macuxi, Taurepang, e Pemón os quais estão mais distantes da referida fronteira e
mais próximos às cidades, a exceção dos Ingarikó. Essas diferentes realidades
demandam respostas políticas e formas de governança distintas.

Com isso, finalmente, conclui-se que essa fronteira é formada como que por um
grande mosaico, tanto pela geografia física como política, pois são espaços
protegidos com diferentes finalidades como Terras Indígenas, Parques Nacionais
entre outros. Adicionada a esse contexto, há a busca, pelas entidades
governamentais e não governamentais, de equilíbrio nas políticas nacionais para
tratar a questão da população indígena. Espera-se que estudos como este possam
contribuir, efetivamente, para que os governos brasileiro, guianense e venezuelano
desencadeiem um processo de ação-reflexão sobre o fazer nos planos federal,
estadual e local referente aos espaços protegidos fronteiriços nas áreas ambientais,
de segurança e indígena.

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303
OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E O DESENVOLVIMENTO DE UMA
ESTRATÉGIA PARA O ESPAÇO CIBERNÉTICO

Flávio Rocha de Oliveira102

1 Introdução

Após a Guerra Fria, o fenômeno conhecido como Globalização aconteceu ao


mesmo tempo em que se consolidava a hegemonia dos Estados Unidos da América.
De fato, a liderança desse país terminou por configurar várias das estruturas que
sustentam o sistema internacional contemporâneo: o controle geopolítico dos mares,
a aliança militar com os países europeus (OTAN), o estabelecimento de parâmetros
de trocas comerciais e financeiras e o estabelecimento da moderna estrutura de
comunicações (hardware e software) que terminou sendo utilizadas por estados,
nações e etnias: a internet.

Junto com esse avanço no campo das Tecnologicas de Informação e Comunicação


(TIC), observou-se que os países mais avançados passaram a depender da rede de
computadores para a execução da vida cotidiana, em suas mais diferentes
manifestações. Das comunicações telefônicas até o desenvolvimento de produtos
industriais, passando pelas mensagens políticas e pela consolidação do mercado
global de capitais na sua forma mais dinâmica e incontrolável, o fato é que a
intensidade dos contatos entre grupos sociais só chegou a escala atual por conta do
desenvolvimento das ciências da computação.

Tal desenvolvimento não ficou restrito apenas aos EUA. Ainda que os
estadunidenses estejam na dianteira global nesse campo, o fato é que um
subproduto do próprio desenvolvimento tecnológico foi o barateamento e o acesso a
equipamentos, serviços e mão-de-obra especializada, o que permitiu que outros
países – em especial na Ásia e na Europa, mas não exclusivamente nesses

102
UNIFESP – Curso de Relações Internacionais.

304
continentes – terminassem desenvolvendo capacidades no campo das TIC. Com
esse avanço, vários estados desenvolveram capacidades relevantes na área, e
passaram a competir e cooperar entre si – e a competir e a cooperar com os
próprios norte-americanos.

O barateamento e a facilidade de acesso não ficaram restritos, ―apenas‖, aos


Estados. Vários grupos passaram a se beneficiar de computadores mais rápidos e
de baixo custo e, nos últimos cinco anos, viram sua capacidade de acesso aumentar
com a chegada dos Tablets e dos Smartphones. ONGs, grupos econômicos dos
mais variados tamanhos, organizações religiosas de diferentes matizes,
organizações políticas e indivíduos que estabelecem contatos entre si de maneira
rápida, estão entre os que souberam se aproveitar desse boom tecnológico. Ocorre
que outras ―associações‖ também mergulharam nessa expansão da rede mundial de
computadores: organizações criminosas (―máfias‖) e grupos terroristas (GLENNY,
2008, 2012). Do tráfico de armas e seres humanos até o uso da internet com o
objetivo de divulgar mensagens políticas violentas e extremistas, o que se observou
foi uma proliferação de atores não-estatais com capacidade de enfrentar governos e
de constituírem uma ameaça real a diferentes setores sociais. Como exemplo,
podemos citar os diferentes casos envolvendo o roubo de cartões de créditos (ou
melhor, de seus códigos de funcionamento).

Como a maior força geopolítica e econômica, os Estados Unidos tiveram que


desenvolver uma série de medidas de modo a se proteger no ciberespaço. Ao
mesmo tempo, procuraram levar adiante a construção de capacidades ofensivas,
devidamente institucionalizadas. Finalmente, ao compreender a natureza global e
fluída do espaço cibernético, começaram a se preparar para influenciar o sistema
internacional no sentido da adoção de normas de comportamento que tornassem
facilitassem a governança da internet – sempre, é claro, no benefício de sua
liderança hegemônica103.

Nas páginas seguintes, serão analisadas algumas ações do governo Obama no


âmbito do ciberespaço. O objetivo é discutir, ainda que brevemente, a política que
esse governo procurou -e procura – implementar para assegurar os interesses dos
103
Nesse trabalho, parte-se da ideia de que a liderança hegemônica leva em conta, na medida do possível, os
interesses de países e grupos aliados no sistema internacional.

305
EUA. Além da discussão de uma literatura específica, haverá uma análise de alguns
documentos oficiais. Ainda que se leve em consideração a questão mais ampla da
internet, o foco recairá sobre a segurança e defesa cibernética.

2 Visão dos EUA: o ciberespaço como problema de Segurança Nacional

Segundo Joyner, os EUA tem uma concepção do espaço cibernético como um


problema de segurança nacional, e que nesse sentido deve ser defendido e
controlado principalmente pelos militares104 (JOYNER, 2012 posição 3544). Esses,
por seu turno, concebem a internet como um quinto domínio da guerra, e, como tal,
deve ser objeto de uma ação estratégica que possibilite o seu domínio em caso de
conflito. Para tornar mais clara essa visão, os outros domínios seriam a terra, o mar,
o ar e o espaço. Classicamente, a maioria das guerras ocorreu nos dois primeiros
ambientes, sendo que o os dois últimos foram agregados ao escopo das operações
militares com os avanços científicos e tecnológicos do século XX.

O que é importante na questão dos domínios da guerra é a divisão que existe entre
os quatro primeiros e o espaço cibernético: no primeiro caso, temos ambientes que
existem independentemente da ação humana, ainda que sejam fortemente
manipulados/aproveitados para as ações bélicas. Já no segundo caso, o
ciberespaço é uma criação inteiramente humana.

Obviamente, essa visão não é consensual105, o que pode ser explicado, em parte,
justamente pelo contraste com as outras dimensões. Alguns autores acham
exagerada a ideia de que o ciberespaço seja, por si só, uma dimensão análoga ao
mar, por exemplo. Ainda que possua uma capacidade multiplicadora quando
aplicados na utilização de carros de combate, caças e mísseis cruzadores
disparados de navios, os computadores operando em rede terminam por alavancar
(ou multiplicar) a destruição desejada pelos soldados nos domínios já existentes.
(RID, 2012; SINGER, 2012).

104
O autor aponta que o Reino Unido tem uma posição semelhante a americana, e, juntos, possuem uma visão
distinta da Europa Continental, que vê a internet como um meio majoritariamente civil.
105
No decorrer das pesquisas para a realização desse texto, fica-se com uma forte impressão de que os consensos
na questão terminológica são fortemente teorizados, mas que a parte empírica só recentemente começou a ser
operacionalizada de modo a tornar as definições mais claras.

306
Um outro problema em relação a questão dos domínios diz respeito a defesa setorial
por parte dos diferentes ramos das forças armadas estadunidenses. Joyner relata,
citando a revista The Economist, que o presidente Barack Obama declarou que a
infraestrutura digital estadunidense era um ativo de valor estratégico. Isso ocorreu
em 2010, quando ele indicou Howard Schmidt, antigo executivo do setor da
Microsoft, como o ―Czar‖ da cibersegurança governamental. Todavia, em 2005 a
Força Aérea declarou que o ciberespaço era o quinto domínio da guerra, e que
doravante a missão da USAF era ―tofly and fight in air, space, and cyberspace‖
(JOYNER, 2012, pos. 3649).

Segundo alguns autores, a Força Aérea acalentava a ideia de que ela seria a grande
responsável pela segurança cibernética norte-americana. A Marinha e o Exército
trataram de estruturar suas unidades especializadas de defesa cibernética, e o
mesmo fez o corpo de fuzileiros navais. (CLARKE; KNAKE, 2011).

Com o aumento da percepção de que a internet abria uma nova frente de


oportunidades e de perigos, o governo americano redesenhou a estrutura de comando
para lidar com esse problema e criou o USCybercommand, cuja responsabilidade é a
coordenação das diferentes unidades cibernéticas das Forças Armadas americanas,
com o objetivo principal de garantir a melhor defesa possível das estruturas militares
que dependem da internet. Do ponto de vista institucional, a competição burocrática
entre os vários setores militares é minimizada com esse arranjo, ainda que as
rivalidades persistam. (LYNN III, 2011; DOD-STRATEGY..., 2011).

Apesar das discordâncias conceituais, o fato é que governos e militares em vários


países estão, cada vez mais, adotando a ideia de que o espaço cibernético é
realmente o quinto domínio da guerra. Nesse sentido, pode-se notar que a posição
inicial estadunidense contribuiu para que essa concepção fosse sendo adotada no
cenário internacional.

3 Governo Obama – Ciberestratégia em Construção

Quando um exame mais detido de alguns dos principais documentos norte-


americanos em relação ao ciberespaço é feito, percebe-se que a própria velocidade
de implantação um processo de adaptação contínua. Ao mesmo tempo que a
mudança tecnológica barateia o acesso a software e hardware, a dispersão do

307
conhecimento torna vários atores estatais e não-estatais como possíveis
concorrentes do governo estadunidense e dos interesses estatais e econômicos
desse país. Conforme discutido na seção anterior, isso aguça a percepção de que o
espaço cibernético é parte da segurança nacional, e que a adoção de salvaguardas
militares deve ser garantida – e implementada rapidamente.

No governo Obama, observa-se a criação de um discurso político que vai sendo


encampado por vários veículos de comunicação e que tem por objetivo criar a
consciência de que as redes de computadores públicas e privadas são vulneráveis.
Ao mesmo tempo, trabalha-se com a ideia de urgência e de perigo imediato, o que,
em certa literatura de Segurança Internacional, pode ser entendido como um
processo de Securitização.(EMMERS 2007; BUZAN; WAEVER; De WILDE, 1997).
Em 2012, o então Secretário de Defesa Leon Panetta, num discurso em Nova
Iorque, afirmou que os EUA estariam ameaçados pela possibilidade de um ―Pearl
Harbour cibernético‖, estando vulneráveis a ação crescente de Hackers estrangeiros
que poderiam prejudicar seriamente a infra-estrutura energética, os sistemas de
transportes e as redes de computadores que faziam funcionar o sistema financeiro e
todo o governo americano (BUMMILLER; SHANKE, 2012)

Segundo Betz e Stevens, tal discurso tem uma função política do ponto de vista do
decisor, que é estimular um ―chamado a ação‖ e adicionar uma urgência através do
uso de metáforas. (BETZ; STEVENS, 2013) Analisando os diferentes discursos
usados no âmbito da cibersegurança, e a falta de consensus quanto ao conceito,
esses autores chamam a atenção para que o recurso discursivo em parte da
literatura especializada e dentro dos governos faz um constante uso de metáforas e
analogias espaciais/geopolíticas e biológicas. No primeiro caso, expressões como
Cyber Pearl Harbour, o ciberespaço como um domínio exclusivo (e separado dos
tradicionais terra, mar, ar e espaço) ou como uma esfera separada da sociedade
(mundo virtual x mundo real) são utilizadas para defender dispositivos de segurança
operados por governos e agentes especializados (públicos e privados). No segundo
caso, a situação fica ainda mais carregada de dramaticidade, pois termos como
―vírus‖, ―vermes‖, ―zumbis‖ e ―higiene digital‖ trazem a mente do público perigos
reais, como o de doenças, ou imaginários e amplificados pela literatura de ficção
científica e pelo cinema e pelas minisséries televisivas (zumbis). Um esforço gigante

308
por parte dos governos no sentido de eliminar vírus é colocado como uma
necessidade inescapável (LYNN JR III, 2008)106.

Não obstante o processo de securitização em questão, o fato é que alguns


eventos contribuíram para a percepção de ameaça crescente por parte de
pesquisadores, do próprio governo americano e de empresas que, de alguma
maneira, estariam interessadas, atentas ou vulneráveis aos perigos que
realmente rondam o ciberespaço (OLIVEIRA, 2012). Um desses eventos
aconteceu em 2007, quando o governo da Estônia sofreu um forte ataque
cibernético, e que atribuiu aos Russos. Alguns pesquisadores estadunidenses
chegaram a chamar esse ataque de a Primeira Guerra Virtual da Web (SOUZA,
2011). Um outro evento ocorreu em 2008, e novamente envolveu a Rússia, que
entrou em guerra com a Geórgia. Durante o conflito, que durou aproximadamente
uma semana, uma série de ciberataques degradaram quase quecompletamente
as comunicações da Geórgia com o exterior.

O que chamou a atenção foi a negativa do governo russo de que tenha empreendido
oficialmente os ataques cibernéticos. Nos dois casos, houve a ação de atores não
estatais que, pelo menos oficialmente, não eram ligados ao governo. Já ficava
explicitado algo que apareceria constantemente na literatura e em vários
documentos estadunidenses sobre o problema da segurança na internet: a
dificuldade de se localizar com precisão as fontes dos ataques, algo bem diferente
do que ocorre no âmbito das outras dimensões da guerra.

No ano de 2009, o governo Obama lança o Cyberspace Policy Review (CPR 2009).
Nesse documento, há a seguinte afirmação:

The architecture of the Nation‘s digital infrastructure, based largely upon the
Internet, is not secure or resilient. Without major advances in the security of
these systems or significant change in how they are constructed or
operated, it is doubtful that the United States can protect itself from the
growing threat of cybercrime and state-sponsored intrusions and operations
[…] (CPR 2009, i)

106
Ver, a esse respeito, o artigo de Lynn III, então subsecretário de Defesa, e que falava sobre a Operação
Buckshot Yankee, que demandou uma operação de erradicação a rede de computadores do Departamento de
Defesa e que durou meses.

309
Igualmente forte é a ênfase do documento no fato de que o governo deve assumir
um papel de liderança na construção de uma infraestrutura cibernética resiliente, de
modo a coordenar os esforços das diferentes agências públicas, militares e civis, e
do setor privado – que é o principal produtor de equipamentos e softwares que
fazem com que a internet efetivamente funcione.

Em 2010, o governo publica o National Security Strategy (NSS, 2010) que


estabelece , em linhas gerais, as prioridades americanas sobre a segurança
nacional. Esse documento é construído tendo, como um dos princípios norteadores,
uma avaliação do cenário internacional e das oportunidades e perigos que ele pode
apresentar para os Estados Unidos Em relação ao ciberespaço, afirma-se que

The threats we face range from individual criminal hackers to organized


criminal groups, from terrorist networks to advanced nation states.
Defending against these threats to our security, prosperity, and personal
privacy requires networks that are secure, trustworthy, and resilient. Our
digital infrastructure, therefore, is a strategic national asset, and protecting
it—while safeguarding privacy and civil liberties—is a national security
priority. We will deter, prevent, detect, defend against, and quickly recover
from cyber intrusions and attacks […] (NSS, 2010, p. 27-28, grifo nosso).

Uma ênfase forte é colocada sobre a necessidade de cooperação internacional, não


só no sentido de construir um sistema de alerta robusto que leve em conta as
necessidades estadunidense e de países aliados, mas também num esforço de
construção de normas de comportamento e convivência na rede mundial de
computadores. Essa é apresentada como um bem público global, que beneficia
diferentes grupos, sejam eles estados ricos, pobres, sociedades e indivíduos.

O The National Military Strategy of the United States of America, também publicado
em 2011 (NMS, 2011), trabalha com essa ideia de bem público global. Ele cita como
exemplo a liberdade de uso do mar, que beneficia países com diferentes
capacidades econômicas e militares, ainda que a potência hegemônica do nosso
século, os próprios EUA, mantenham um poder naval não equiparado por outras
potências. Mesmo sendo a nação mais forte em termos marítimos, os Estados
Unidos não criam obstáculos ao comércio internacional ou ao uso das riquezas
oceânicas, ainda segundo o documento.

310
Com toda a capacidade naval, não é impossível que outros países empreendam ações
marítimas para negar aos EUA, ainda que temporariamente, o acesso a algumas
regiões. A mesma lógica é aplicada ao ciberespaço. Vários atores, estatais e não
estatais, estão desenvolvendo tecnologia e recursos humanos que podem atacar os
interesses estadunidenses e, ao mesmo tempo, negar o acesso a internet por parte do
governo e de vários grupos dos EUA que dependem da rede mundial de computadores.

Um ponto interessante do documento é a analogia que é criada com a Guerra Fria. É


defendida a ideia de que o conceito de deterrence deve ser adaptado para a realidade do
século XXI, alcançando o domínio do ciberespaço. A deterrence deveria ser garantida
através do desenvolvimento de uma capacidade bélica de luta em ambientes degradados
por ataques cibernéticos, assim como pela construção de uma habilidade de identificar os
atacantes e derrota-los no próprio ambiente virtual (NSS 2011, p. 8-12). O domínio militar
do ciberespaço torna-se prioridade das Forças Armadas norte-americanas, pois ele
potencializa o uso das outras dimensões da guerra (CPR, 2009, p. 9).

No documento emitido pelo Departamento de Defesa, o Department of Defense


Strategy for Operating in Cyberspace, (2011), cinco iniciativas estratégicas são
colocadas. Dessas, duas chamam a atenção: a primeira, ―treat cyberspace as an
operational domain to organize, train, and equip so that DoD can take full advantage of
cyberspace‘s potential‖ (2011, p. 5). Enfatiza-se o conceito dedomínio operacional da
Guerra, já referido em outra seção desse trabalho, mas coloca que o potencial das
diferentes agências e forças militares americanas deve ser maximizado através da
coordenação institucional. Para isso, no documento é atribuída a responsabilidade de
assegurar o ciberespaço ao United Strategic Command (USSTRATCOM), aos
comandos combatentes e aos departamentos militares. Ao mesmo tempo, estabelece o
USCybercommand (USCUBERCOM) como um subcomando unificado do
USSTRATCOM. A Terceira iniciativa, ―partner with other US government departments
and agencies and the private sector to enable a whole-of-government cybersecurity
strategy‖ (2011, p. 9). É defendida a necessidade de parceria com o Department of
Homeland Security, dentro de um esforço de trabalho interagências. O DHS tem como
missão garantir a cibersegurança do governo federal, em âmbito civil. Mas o DoD
coloca que os efetivos militares estarão a disposição para partilhar conhecimento e
treinar os membros do DHS quando for necessário, operando dentro de regulamentos

311
civis, algo semelhante ao que os militares fazem quando, durante desastres naturais,
auxiliam as equipes civis do governo a resgatar/ajudar a população.

No documento International Strategy for Cyberspace (ISC, 2011), são apresentadas


várias prioridades em termos de políticas públicas. Além da necessidade de esforços
diplomáticos para minimizar as ameaças aos interesses americanos, estão declarados
duas possibilidades de resposta a ações hostis. Num primeiro caso, cibercrimes, o
documento defende que os EUA agirão de acordo com a Convenção de Budapeste
sobre o Cibercrime (ISS, 2011, p. 13). Isso implica numa ação marcada por
investigações e pela aplicação da lei. Num outro caso, o de atos hostis que
compromentam a segurança estadunidense, o documento estabelece que

We reserve the right to use all necessary means – diplomatic, informational,


military and economic – as appropriate and consistent with applicable
international law, in order to defend out Nation, our allies, our partners, and
our interests. In so doing, we will exhaust all options before military force
whenever we can […]

Dito de outro modo, a opção do uso de armas convencionais para afastar uma
ciberameaça está colocada na mesa – o que alguns autores irão chamar de
opção pelas armas cinéticas, em oposição, ou complementação, as armas
virtuais do ciberespaço.

4 Cibersegurança ou Ciberguerra

Os termos cibersegurança e ciberguerra aparecem em diferentes contextos na


literatura. A única coisa que é comum a todos os pesquisadores do campo é a
existência do espaço cibernético, com sua rede de computadores, seu potencial
para o progresso e prejuízos econômicos e políticos dada aubiquidade de hardware
e software na sociedade internacional.

Para Samaan, o governo estadunidense tem feito um esforço para institucionalizar o


tema da ciberdefesa. Exemplos disso são a indicação de Howard Schmidt como
coordenador de cibersegurança do governo Obama, em 2009, a implementação de
uma parceria formal entre o DHS e o DoD, com as responsabilidades de cada
departamento devidamente estabelecida, e a criação do US Cybercommand em

312
2010, e que inclui os componentes de todos os serviços militares que lidam com a
segurança cibernética. Não obstante,

despite these bureaucratic efforts in the White House and in the interagency
process, […] remains a lack of consensus in Washington, particularly within
the Department of Defense, on threat assessment in cyberspace and its
military implications. A stark intellectual rift between ―alarmists‖ and
―skeptics‖ still prevails. As a result, this elementary battle has led to
dysfunction in the institutional response to cyber-threats and jeopardizes the
implementation of an effective military posture in cyberspace. Consequently,
we need to reassess the relevance of cyberspace as a distinct military
domain (SAMAAN, 2011, p. 4).

Segundo esse autor, há uma rivalidade de atuação e de concepções entre o DHS e


os militares do DoD. Para o primeiro departamento, faz sentido que se fale em
cibersegurança, e em especial no tocante ao número de ações ameaçadoras do
ciberespaço e que se concentram em atividades criminosas, motivadas por
indivíduos, pequenos grupos tecnicamente capacitados ou máfias. A concepção
majoritária, aqui, é que a internet é um espaço civil. No Departamento de Defesa, a
concepção é outra, e que já foi indicada em outra parte desse trabalho: o
ciberespaço é essencial para a segurança nacional, e uma visão militarizada, que
empregue recursos bélicos virtuais e reais, é necessária para garantir que os
interesses norte-americanos sejam preservados e defendidos. Ao mesmo tempo,
também nessa visão dos militares (em princípio), os mecanismos testados da
deterrence devem ser combinados com a diplomacia no sentido de assegurar a
defesa de países e grupos amigos que sejam vitais para os Estados Unidos.

Para Valeriano e Maness (2012), o termo ciberguerra carece, ainda, de um estudo


mais empírico para que sua validade seja estabelecida. Não obstante, ele aponta
que há todo um jargão que é usado por documentos oficiais e pela literatura
especializada, e que provém da ficção científica e do cinema. Assim, o conceito de
ciberguerra parece indicar uma batalha puramente tecnológica, fora de um contexto
de política externa mais amplo.

Segundo os autores, o termo ciberguerra termina sendo usado para designar as


capacidades ofensivas de um Estado no ciberespaço. Na definição deles, ―cyberwar
as the use of computational technologies on the military or diplomatic battlefield of
international affairs and interactions […]. Cibersegurança teria o significado oposto:

313
[…] cybersecurity is the term used for a state‘s defensive (and sometimes offensive)
capabilities in cyberspace‖(VALERIANO; MANESS, 2012, posição 3177).

O fato relevante é que a literatura e os documentos refletem posições que derivam


das pesquisas (caso dos cientistas sociais e dos estudiosos do tema, em sua
diversidade teórica e ideológica) e das diversas agências governamentais que tem
que operacionalizar a ciberestratégia num contexto em que as mudanças são
rápidas e fluídas.

5 Conclusão: Problemas de pesquisa, definição e políticas públicas

Algumas conclusões, provisórias, vão se impondo no final desse texto. A ideia é


estabelecer algumas possibilidades de discussão e pesquisa, que possam constituir
boas questões de investigação em trabalhos futuros.

Primeiramente, os termos ciberguerra e cibersegurançasão usados de maneira


equivalente, o que pode confundir os pesquisadores e o público em geral.
Autores como Rid simplesmente rejeitam que o termo ciberguerra tenha uma
validade em si, e que o ciberespaço seja um domínio separado e em pé de
igualdade com os outros quatro domínios da guerra. O fato de que o primeiro
conceito tem uma forte carga de militarização, enquanto o segundo é mais
amplo e maleável é inegável. Todavia, pesquisas baseadas em observação
empírica e na evolução futura dos conflitos internacionais são necessárias para o
esclarecimento maior dessa questão.

Betz, Samaan e Singer e chaman a atenção para o fato de que a inflação do


termo ciberguerra pode confundir o público na medida em que é um termo que
embute os mais diversos interesses, como o de grupos, empresas e indivíduos
que possam ter ganhos com a percepção de que o ciberespaço é uma fonte
permanente de perigos. Por outro lado, é inegável que o uso de computadores e
softwares constituem uma fonte de ameaças, e que a evolução futura pode
indicar que eles tem realmente capacidades disruptivas (como parece ser o caso
do vírus Stuxnet, ainda que seja classificado por Rid e Samaan como uma arma
de um único tiro uma vez que é descoberto).

314
Uma segunda conclusão está presente no campo do uso do ciberespaço como meio
de guerra, mas associado as operações militares em tempo real. Boa parte da
literatura, e praticamente todos os documentos emitidos pelo DoD, apontam para
essa possibilidade. O Pentágono, inclusive, estabeleceu ambientes virtuais para o
treinamento de conflitos cibernéticos (LYNN, III, 2012). Mas pouco tem sido escrito,
por exemplo, sobre a utilização do ciberespaço em conjunto, por exemplo, com os
ataques efetuados pelos drones. A programação dessas armas, a operação a
distância e o seu projeto são, todos, permeados pelo espaço cibernético, e não é
raro que brote na imprensa especulações de que hackers podem invadir, em algum
momento, os sistemas de guiagem e operação dos VANTs.

Finalmente, a tecnologia do ciberespaço, em conjunto com outras tecnologias


aplicadas ao setor bélico, tem feito com que a discussão em torno da própria guerra
tenha sofrido modificações até então impensáveis. No caso norte-americano, Singer
observa que o avanço tecnológico tem sido tão intenso que ataques e intervenções
com possibilidades de destruir instalações e países inteiros tem sido possíveis com
o pouco emprego de soldados de carne e osso.

Isso impacta no relacionamento político entre os poderes. O WPR, War Powers


Resolutions, estabelece que o Congresso americano tem a última palavra na hora
de declarar a guerra. O presidente americano pode ordenar uma intervenção militar
durante, aproximadamente, noventa dias, mas depois disso deve obter o
consentimento político e legal dos congressistas. Com o uso dos drones, o poder
executivo tem se valido de brechas na legislação americana para não consultar o
Congresso. O mesmo tem sido feito pelo Departamento de Defesa, e especialmente
no tocante a cibersegurança: a lógica, aqui, é terrivelmente simples – nos
ciberataques, vidas americanas não são colocadas em risco. Portanto, não há a
necessidade de uma aprovação do congresso por parte de várias operações
militares que se apoiam na tecnologia.

Resta agora a pesquisa e a observação constante do avanço da tecnologia do


espaço cibernético e, no caso dos EUA, a avaliação das respostas que eles estarão
dando nesse processo. Considerando-se que ainda serão a potência hegemônica do

315
sistema internacional, não é demais considerarmos que as políticas adotadas pelos
Estados Unidos afetarão outros países , que deverão segui-las ou enfrenta-las.

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317
ESPECTRO DA SECURITIZAÇÃO MILITAR DO CIBERESPAÇO (ESMC): UMA
NOVA PERSPECTIVA SOBRE A DEFESA CIBERNÉTICA107

Gills Lopes108

1 Introdução

Assumindo-se que o poder militar deriva do político (BRASIL, 2012a, p. 260;


FUCCILLE, 2007, p. 104, 127; PROENÇA JR; DINIZ, 1998, p. 42-46), o tema
principal deste trabalho versa sobre a defesa cibernética, entendida como o
―conjunto de ações defensivas, exploratórias e ofensivas, no contexto de um
planejamento militar, realizadas no espaço cibernético‖ (CARVALHO, 2011, p. 8).

Objetiva-se demonstrar a operacionalização de um framework específico para


auxiliar na análise sobre a securitização das ameaças cibernéticas existenciais
(ciberexistenciais) num dado tempo (século XXI) e espaço (Estado) 109. A tal
ferramenta analítica se cunha o nome de Espectro da Securitização Militar do
Ciberespaço (ESMC), o qual é formado por três indicadores: os Índices de
Politização da Defesa Cibernética110 (IPDC), sendo o primeiro quantitativo (aspecto
objetivo) e os outros dois qualitativos (aspecto subjetivo), a saber: o Virtual (IPvDC),
o Documental (IPdDC) e o Institucional (IPiDC)111.

107
Este paper é uma versão resumida e adaptada de Lopes (2013), ao qual se incorporam quatro cases à análise
original e se atualiza o framework proposto. O autor agradece às observações dos professores: Elia Cia
(Economia-UFPE), Marcelo Medeiros (PPGCP-UFPE), Ricardo Borges (PPGCP-UFPE) e Eugenio Diniz (RI-
PUC Minas) – este último quando da apresentação deste trabalho no Workshop Doutoral do ENABRI 2013.
108
Doutorando em Ciência Política – UFPE. Graduando em Redes de Computadores, IFPB.
109
Pode-se ir mais além do que simplesmente analisar a politização de uma dada ameaça existencial num dado
setor (militar), contexto (ciberespaço), tempo (século XXI) e espaço (Estado). Por exemplo, com a ferramenta
aqui proposta, pode-se analisar – e, consequentemente, mensurar/classificar, questões “de segurança” – nos
outros quatro setores (ambiental, societário, político e econômico) e em diferentes contexto, corte temporal e
objeto securitizador. Deve-se esta observação a Rodrigo Albuquerque (UFPE).
110
Utiliza-se “defesa cibernética”, ao invés de “ciberespaço”, por este abranger áreas não ligadas ao setor militar.
111
Um esboço de quarto índice – quantitativo/orçamental – encontra-se em Lopes (2013, p. 118-119).

318
Como marco teórico, utiliza-se o processo de securitização, da Escola de
Copenhague, que consiste num espectro, constituído por três níveis de politização.
Grosso modo, uma questão pública – que se diz – de segurança é: (i) não politizada,
quando nem sequer está na pauta do Estado ou não se encontra nas esferas
públicas de discussão e decisão; (ii) politizada, quando é parte de política pública
(policy), requerendo decisão e alocação de recursos do governo – quando não há a
aprovação dessas medidas por parte de uma audiência relevante, diz-se que há
uma politização do tipo movimento securitizador –; e (iii) securitizada, quando a
questão é apresentada como uma ameaça existencial, exigindo, assim, medidas
emergenciais e justificando ações fora do escopo normal do processo político
(BUZAN et al., 1998, p. 23-24). O Esquema 1 demonstra graficamente os níveis
desse processo político.

Quanto à revisão da literatura, autores de Ciência Política e de Relações


Internacionais figuram majoritariamente no corpo deste trabalho, que, amiúde, sede
espaço a tecnicistas.

Ademais, parte-se de premissas metodológicas ancoradas nos estilos qualitativo e


quantitativo de análise. As ferramentas de análise também são diversas: entrevistas,
estudo de caso, análise de discursos e documentos, bem como o auxílio de
softwares e metodologistas, como Barbetta (1994), Brady et al. (2004), Eco (1996),
Flick (2009) e King et al. (1994).

Para testar a ferramenta proposta, utilizam-se sete casos (n = 7), representados por
sete Estados: Alemanha, Brasil, Canadá, Estados Unidos da América (EUA), França,
Países Baixos e Reino Unido. Dada a limitação textual deste trabalho, aprofunda-se
mais no case brasileiro, demonstrando, por meio dele, como os Índices são
operacionalizados e a posição dos Estados no ESMC112.

112
Para uma análise mais profunda acerca dos casos canadiano e estadunidense, vide Lopes (2013, p. 63-69, 78-
85); e, para análise documental e institucional de Alemanha, Países Baixos e França, cf. Lopes (2011).

319
Esquema 1 – Espectro da securitização, segundo a Escola de Copenhague

Fonte: LOPES, 2013, p. 40.

2 Sobre a Análise Exploratória da Securitização Militar do Ciberespaço

Buzan et al. (1998, p. 30) advogam que mensurar objetivamente a securitização de


uma dada questão é praticamente impossível, haja vista que cada Estado possui
seus próprios limites para definir o que é uma ameaça existencial. Entrementes,
King et al. (1996, p. 5, tradução nossa), por sua vez, asseveram que ―se quisermos
entender o mundo social em rápida transformação, temos de incluir informações que
não podem ser facilmente quantificadas, bem como as que podem‖.

Munindo-se de tais recomendações, este trabalho busca uma alternativa de


superação ao desafio copenhagueano, que dialogue com análises e dados
qualitativos e quantitativos.

Propõe-se, então, o ESMC, que leva em conta tanto aspectos subjetivos quanto
objetivos, a fim de esboçar um panorama o mais imparcial possível sobre os
processos nacionais de securitização militar das ameaças ciberexistenciais.

Com isso, também não se perde de vista o fato de que a parte mais importante
numa análise sobre securitização consiste em explicar como ela ocorre, i.e., de que
forma um ator securitizador securitiza uma questão para uma audiência relevante.
Por outro lado, o simples fato de se coletar os dados, per se, não satisfaz aos

320
objetivos deste trabalho; é preciso assimilar também como e sob quais
circunstâncias eles foram parar lá.

Ademais, como observado por Buzan et al. (1998, p. 25, 30), a forma mais eficaz –
logo, não é a única – de se estudar securitização é por meio do discurso e de
abordagens não objetivas. Esse discurso se traduz, aqui, por meio de argumentos
de policymakers e de documentos oficiais.

Ao final da análise, busca-se enquadrar, no período compreendido entre janeiro de


2001 e dezembro de 2012 (século XXI), os sete casos nesse framework específico.

a) O Índice de Politização Virtual da Defesa Cibernética (IPvDC)

Este índice – o único do ESMC que é quantitativo – possui o seguinte problema de


pesquisa: no século XXI, constata-se um aumento na média de interesse militar
pelas ameaças ciberexistenciais, tendo como plataforma o próprio ciberespaço?

Portanto, a amostra se compõe dos sítios virtuais (sites) oficiais militares – Forças
Armadas e Ministério da Defesa – dos cases, agrupados por ano e observadas suas
idiossincrasias113.

O método deste índice consiste em medir quantas vezes determinados termos 114
sobre defesa cibernética aparecem na amostra, no que pese os 12 primeiros anos
do séulo XXI.

Para a extração dos dados, escolhe-se a pesquisa avançada do Google


Search115 e identificam-se osUniform Resource Locators (URLs) militares oficiais de
cada um dos Estados, conforme a Tabela 1.

113
Não se levam em conta sítios oficiais militares de recrutamento, nem de corpos de tropas de elite, guarda
costeira, gendarmaria e de logística, mesmo que sejam reconhecidos como força singular em seu respectivo país.
Para padronizar a análise, assume-se que cada Estado possui três Forças singulares básicas – Exército, Marinha e
Aeronáutica –, a quem, por exemplo, um Corpo de Fuzileiros Navais está ligado, em última instância, à Marinha.
Assim, acredita-se, não se duplicam dados.
114
Evitaram-se termos genéricos, como “ataques cibernéticos” e “ciberespaço”, que dizem respeito também à
segurança cibernética e que, portanto, poderiam prejudicar uma análise exclusiva sobre a defesa cibernética.
115
http://google.com/advanced_search.

321
Tabela 1 – URLs dos sítios virtuais militares dos sete cases

Estado URL Ministério URL Exército URL Marinha URL Aeronáutica

Alemanha bundeswehr.de deutschesheer.de marine.de luftwaffe.de

exercito.gov.br -- --
Brasil defesa.gov.br
mil.br

Canadá forces.gc.ca forces.ca

EUA defense.gov .mil

França defense.gouv.fr

Países Baixos defensie.nl

Reino Unido mod.uk

Fonte: Elaboração própria.

A etapa seguinte faz com que todos esses requisitos se transformem em linhas de
comando SQL e resultem em dados quantitativos para alimentar o banco de dados.

Realiza-se a análise dos dados através do chamado teste t para dados pareados, o
qual busca falsear a seguinte hipótese nula ou de trabalho (H0): em média, os sítios
virtuais oficiais militares tendem a não alterar seu interesse pelas questões
cibernéticas, no século XXI. Por conseguinte, a hipótese alternativa (H1) é a de que:
com o passar do século XXI, a média do interesse da população em estudo
aumenta. Em termos estatísticos, tem-se que:

 H0: µAnoPosterior = µAnoAnterior; e


 H1: µAnoPosterior> µAnoAnterior,

onde:

 µAnoAnterior: interesse médio nos sítios virtuais, no ano anterior; e


 µAnoPosterior: interesse médio nos sítios virtuais, no ano posterior.

Tendo em vista que os dados a serem obtidos são agrupados em 11 intervalos que
correspondem aos 12 primeiros anos do século XXI, tem-se que a amostra

322
observada é: n = 12. Nesse sentido, é possível comparar se a média do interesse se
modifica a cada ano ou não, por Estado.

Com a diferença (D), é possível realizar a estatística do teste t para dados pareados
(Equação 1), que verifica se uma tendência pode ou não ser explicada apenas pela
casualidade (BARBETTA, 1994, p. 205).

̅ √
(1)

Assim, para que H0 se confirme, os valores da média ( ̅ ) das diferenças observadas


(D) devem se aproximar de zero pela esquerda. Para se chegar a isso, é preciso
obter ̅ e o desvio padrão (SD) entre elas, ou seja, as Equações 2 e 3,
respectivamente.


̅ (2)

∑ ̅
√ (3)

Para a composição deste índice, utiliza-se o resultado do teste t de cada Estado, se


e somente se ele for aprovado quanto à sua probabilidade de significância (P), que,
para este índice é de 0,10. Caso ele não passe nessa prova, seu escore para o
presente índice é 0 (zero).

Com a informação do teste t, parte-se para o último passo que é auferir P. Como n =
11, o grau de liberdade (gl) da amostra é 10 (pois ―gl = n – 1‖).

323
Utilizando-se a Tabela 2, projeta-se uma coordenada cartesiana, onde X representa
o valor do gl (10) e Y leva em conta o valor mais próximo do t encontrado. Como P,
para a presente amostra, é de aproximadamente 0,10, tem-se que ―α = 0,10 = 10%‖,
ou seja, o t tem que se aproximar de 1,372 pela esquerda. Portanto, 1,372 está na
coluna 0,10 da variável Área na cauda superior, que, em outras palavras,
corresponde ao P.

Portanto, pode-se concluir, com 90% de certeza, que, a partir dos dados analisados,
há evidências suficientes de que a hipótese nula (H0) é falsa, caso o Estado passe
neste teste. Em outras palavras, validando-se neste teste, assume-se a hipótese
alternativa (H1) como verdadeira, i.e., há, de facto, um aumento real na média do
interesse militar virtual detectado entre as duas mensurações (D) referentes aos 12
primeiros anos do século XXI.

Tabela 2 – Distribuição t de Student

Fonte: UFSC, 2011 (com adaptações).

a) O Índice de Politização Documental da Defesa Cibernética (IPdDC)

O presente índice leva em conta documentos oficiais emanados pelo setor


militar ou governamentais a ele endereçados e que, necessariament e, refiram-
se à defesa cibernética. Aqui, três critérios são assegurados: possuir

324
documento oficial nacional de defesa que abarque, ainda que de maneira
geral, o tema em tela (2 pontos); possuir documento oficial nacional de defesa
cibernética que inclua medidas extraordinárias, como criação de instituições e
delegação de poder nessa área (3 pontos); e conter, no corpo textual de tal(is)
documento(s), referência a armas cibernéticas – como o Stuxnet – e a ataques
cibernéticos por parte de países estrangeiros, com o fito de potencializar a
dramatização (1 ponto).

Os possíveis status das ameaças ciberexistenciais são: movimento securitizador (3,


5 e 6 pontos), politizada (2 pontos) e não politizada (0 ponto).

b) O Índice de Politização Institucional da Defesa Cibernética (IPiDC)

Este índice contabiliza as instituições militares de defesa cibernética em


funcionamento, baseando-se nos processos políticos que as engendraram. Assim,
excluem-se, por exemplo, instituições militares de guerra eletrônica e de telemática.

O presente índice busca auferir uma resposta categórica binária – sim ou não – para
cada Ministério da Defesa ou órgão centralizador (0 ou 3 pontos) e força singular (0
ou 1 ponto). Nesse sentido, um Estado que tenha apenas um órgão centralizador
equivale a ter três singulares.

A pontuação vai de 0 a 6 pontos, sendo que a partir de 1 é possível apontar que há uma
securitização militar do ciberespaço do tipo institucionalizada, conforme Tabela 3.

As respostas são obtidas através de documentos oficiais militares.

Tabela 3 – Valores do IPiDC

Órgão
Exército Marinha Aeronáutica Total possível
centralizador

Não = 0 Não = 0 Não = 0 Não = 0 0: não politizada

Sim = 3 Sim = 1 Sim = 1 Sim = 1 1 |-- 6: mov. securitizador

Fonte: Elaboração própria.

325
3 Aplicando-se os Índices de Politização da Defesa Cibernética no Caso
Brasileiro

Como já posto, analisa-se o caso brasileiro de maneira pormenorizada, a fim de


exemplificar como o Espectro de Securitização Militar do Ciberespaço (ESMC) funciona.
Os dados dos outros Estados são apresentados diretamente na quarta seção.

a) IPvDC brasileiro

A Tabela 4 apresenta os resultados das buscas virtuais brasileiras para este índice.

Tabela 4 – Cálculo da diferença de interesse virtual militar do Brasil na defesa


cibernética (2001-2012)

Resultados das buscas dos termos (interesse = µ)

Período Anterior Posterior Diferença

(Xano1) (Xano2) (D = Xano2 – Xano1)

2001-2002 2 1 -1

2002-2003 1 1 -

2003-2004 1 1 -

2004-2005 1 - -1

2005-2006 - 2 2

2006-2007 2 3 1

2007-2008 3 10 7

2008-2009 10 22 12

2009-2010 22 42 20

2010-2011 42 123 81

2011-2012 123 353 230

Total 207 558 351

Fonte: Elaboração própria.

Com isso, é possível ter uma visão geral da variação do interesse militar brasileiro,
expressada em seus sítios virtuais, através do Gráfico 1.

326
Gráfico 1 – Variação do interesse virtual militar do Brasil (2001-2012)

400
350
300
250
200
150 BRA

100
50
0
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
Fonte: Elaboração própria.

Essas informações são suficientes para auferir o escore provisório brasileiro


para o presente índice: 1,514 pontos, que se confirma somente após verificar que o
seu P = 0,10 (Tabela 5).

Tabela 5 – Estatísticas referentes ao IPvDC do Brasil

Fonte: Elaboração própria.

327
b) IPdDC brasileiro

Para este índice, dois documentos são levados em conta: a Estratégia Nacional de
Defesa (END) e a Política Cibernética de Defesa (PCD), de 2008 e 2012,
respectivamente.

Antemão, frisa-se que o próprio Ministério da Defesa (MD) já trata especificamente


do termo ―guerra cibernética‖ desde 2008, quando incorpora oficialmente a
abreviação ―G Ciber‖ ao jargão militar tupiniquim (BRASIL, 2008b, p. 71, 181).

O principal objetivo da END é modernizar a estrutura de defesa nacional, alçando


três setores à categoria de estratégicos: o nuclear, o espacial e o cibernético.

Cada força singular se responsabiliza, então, pelo desenvolvimento de um setor


estratégico. Nesse sentido, o Exército Brasileiro é o detentor do setor cibernético.

Além disso, a END projeta a criação de uma ―organização encarregada de


desenvolver a capacitação cibernética nos campos industrial e militar‖ (BRASIL,
2008a), a qual é criada em 2010 e analisada na próxima subseção.

Em dezembro de 2012, o MD publica a PCD, que, em linhas gerais, ―[...]tem a finalidade


de orientar, no âmbito do Ministério da Defesa[...], as atividades de Defesa Cibernética,
no nível estratégico, e de Guerra Cibernética, nos níveis operacional e tático, visando à
consecução dos seus objetivos‖ (BRASIL, 2012b, p. 11, grifo nosso).

Pela primeira vez, um documento oficial brasileiro afirma que o País pode não só se
defender no ciberespaço, mas também contra-atacar (BRASIL, 2012b, p. 11). Ele
cita, ainda, que o País pode trabalhar na construção de suas próprias armas
cibernéticas, ao ―atuar no reconhecimento de artefatos e desenvolvimento de
ferramentas cibernéticas, em conjunto com a Presidência da República, contribuindo
para a proteção dos ativos de informação‖ da administração pública federal
(BRASIL, 2012b, p. 12, grifo nosso).

Assim, é possível preencher o IPdDC para o caso brasileiro, conforme a Tabela 6, infra.

328
Tabela 6 – IPdDC do Brasil (2001-2012)

DOC_stux DOC_geral DOC_espec DOC_total Status

0 2 3 5 Movimento securitizador

Fonte: Elaboração própria.

c) IPiDCbrasileiro

Lupion (2011), ao entrevistar o Coordenador do Núcleo de Defesa Cibernética (Nu


CD Ciber), Coronel Luis Cláudio G. Gonçalves, lembra que, embora subordinado ao
Exército Brasileiro, o Centro de Defesa Cibernética do Exército (CDCiber) ―irá
coordenar as ações de defesa cibernética das Forças Armadas‖. Portanto, o
CDCiber tem, pelo menos até o final de 2012, o papel de órgão centralizador da
defesa cibernética brasileira.

A fim de ―[...]assegurar, de forma conjunta, o uso efetivo do espaço cibernético –


preparo e emprego operacional – pelas Forças Armadas (FA) e impedir ou dificultar
sua utilização contra interesses da Defesa Nacional‖ (BRASIL, 2012b, p. 12), a PCD
visa, dentre outros, criar o Sistema Militar de Defesa Cibernética (SMDC) e um órgão
centralizador para coordenar as ações das três armas no ciberespaço.

Essas implementações demandam não só recursos materiais, como também


humanos, e a PCD atina para isso, ao mencionar a criação de ―cargos e funções
específicos e mobilizá-los com pessoal especializado para atender às necessidades
do setor cibernético‖.

Tal órgão ainda não possui nome, mas sabe-se que será o órgão central do
SMDC, mantendo, assim, permanente diálogo com os órgãos centralizadores de
inteligência das Forças Armadas e ―responsável por propor as inovações e
atualizações de doutrina para o [...] [setor cibernético] no âmbito da Defesa‖
(BRASIL, 2012b, p. 12).

329
A partir dessas informações, é possível, portanto, preencher a Tabela 7.

Tabela 7 – Resultado do IPiDC do Brasil (2001-2012)

Órgão centralizador Exército Marinha Aeronáutica Total

Não Sim Não Não


1 ponto
(0 ponto) (1 ponto) (0 ponto) (0 ponto)

Fonte: Elaboração própria.

4 Os Casos Alemão, Canadense, Estadunidense, Francês, Holandês e Britânico

a) IPvDC

Tabela 8 – IPvDC de Alemanha, Canadá, EUA, França, Países Baixos e UK (2001-


2012)

Estado t Situação Pontuação

Alemanha 0,544 Rejeitado 0

Canadá 1,111 Rejeitado 0

EUA 2,645 Aprovado 2,645

França 1,766 Aprovado 1,766

Países Baixos 1,352 Rejeitado 0

Reino Unido 1,736 Aprovado 1,736

Fonte: Elaboração própria.

330
b) IPdDC

Tabela 9 – IPdDC de Alemanha, Canadá, EUA, França, Países Baixos e UK

Estado Documento(s) Ano Pontuação Status

Cyber Security
2011 2+1=3 movimentosecuritizador
Strategy for Germany
Alemanha

Canada‘s Cyber
Canadá 2010 2+1=3 movimentosecuritizador
Security Strategy

National Security
Strategy 2010
EUA 2+1+3=6 movimentosecuritizador
Strategy for Operating 2011
in Cyberspace

Information systems
França defence and security 2011 2 Politizado
France‘s strategy

Países The National Cyber


2011 2+1=3 movimentosecuritizador
Baixos Security Strategy

The National Security


2010
Strategy
Reino Unido 2+1+3=6 movimentosecuritizador
The UK Cyber Security
2011
Strategy

Fonte: Elaboração própria, a partir de Carr (2012), França (2011) e Lopes (2011, 2013).

331
c) IPiDC

Tabela 10 – IPiDC de Alemanha, Canadá, EUA, França, Países Baixos e UK

Estado Órgão(s) Pontuação Status


Alemanha Cyber Defence Centre 3 movimentosecuritizador
Canadá -- 0 Não Politizado
US Cyber Command
U.S. Army Cyber Command
EUA 3+1+1+1=6 movimentosecuritizador
U.S. Fleet Cyber Command
Twenty-Fourth Air Force
França -- 0 Não Politizado
Países Baixos -- 0 Não Politizado
Defence Cyber movimentosecuritizador
Reino Unido 3
OperationsGroup
Fonte: Elaboração própria, a partir de Carr (2012) e Lopes (2011, 2013).

5 Considerações Finais: o ESMC

Com todos esses dados e informações, possível vislumbrar o Espectro da Securitização


Militar do Ciberespaço (ESMC), conforme a Tabela 11 e o Esquema 2.

Tabela 11 – ESMC de Alemanha, Brasil, Canadá, EUA, França, Países Baixos e UK


(2001-2012)

Estado IPvDC IPdDC IPiDC TOTAL/ESMC

Alemanha 0 3 3 6
Brasil 1,514 5 1 7,514
Canadá 0 3 0 3
EUA 2,645 6 6 14,645
França 1,766 2 0 3,766
Países Baixos 0 3 0 3
Reino Unido 1,736 6 3 10,736

Fonte: Elaboração própria, a partir de Carr (2012) e Lopes (2011, 2013).

332
Esquema 2 – Espectro da Securitização Militar do Ciberespaço (ESMC)

Fonte: Elaboração própria.

Como se vê, o ESMC não é um framework que avalia a capacidade bélica,


estratégica e/ou operacional de um Estado116, mas, sim, o modus operandi com que
um ator securitizador – neste caso, o Estado – dramatiza uma ameaça
ciberexistencial para uma plateia relevante. Todavia, as idiossincrasias dessa
análise fazem com que suas variáveis – sítios virtuais, documentos e instituições –
sejam levados em conta não só como inputs, mas também como outputs117 do
processo político da securitização.

O ESMC é projetado, primeiro, para servir de alternativa ao desafio metodológico da


Escola de Copenhague e, segundo, para suprir um vácuo epistemológico sobre política
comparada em matéria de defesa cibernética, principalmente, na América Latina.
Entende-se que ainda há ajustes a serem realizados118 e questões outras a serem
incluídas, como a orçamental e o número de eventos intersetores/interagências ou, ainda,
ponderar a pontuação de um órgão centralizador subordinado a agências civis etc.

Todavia, para qualquer assunto que abranja defesa nacional e ciberespaço, deve-se
ter sempre em mente as palavras do Vice-Secretário de Defesa dos EUA, William

116
Para uma análise objetiva da defesa cibernética, cf. o Cyber War Strenght, de Clarke e Knake (2012, 148-
149).
117
Daí que, para alguns, se se descartar o IPvDC, o ESMC pode tornar-se uma ferramenta de análise da
capacidade estratégico-operacional de uma nação, no ciberespaço.
118
Por exemplo, para o IPvDC, vislumbra-se a utilização de modelos econométricos acerca de séries temporais.

333
Lynn, de que no século XXI, bits e bytes são tão ameaçadores quanto balas e
bombas (LYNNIII, 2011,).

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335
SEGURANÇA INTERNACIONAL E GUERRA CIBERNÉTICA119

Ricardo Borges Gama Neto120

Gills Vilar Lopes121

1 Introdução

Este texto discute, de forma descritiva e exploratória, a questão da defesa


cibernética e da segurança internacional no contexto contemporâneo, buscando
demonstrar parte das dimensões políticas envolvidas nelas e desenvolver ilações
sobre os desafios que países e organismos multilaterais enfrentam atualmente.

A guerra, como um conflito bélico entre dois ou mais Estados, é um fenômeno


histórico político que é impactado constantemente pelo desenvolvimento tecnológico
(KEEGAN, 2006). Dois fatos são singulares dessa realidade, durante o século XX. O
primeiro diz respeito ao emprego cada vez mais intenso da tecnologia industrial no
campo militar, e o segundo se refere ao desenvolvimento de novos
ambientes/dimensões/topologias de conflito.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) vê nascer o chamado dogfight122 entre


aviões biplanos e o bombardeio aéreo contra tropas e cidades. Já durante a Guerra
Fria (1945-1991), o espaço sideral passou a ser um dos locais do conflito bipolar
entre capitalistas e socialistas. Mas ambos, o ar e o espaço, são locais naturais
conquistados pelo uso intensivo da tecnologia baseada em circuitos elétricos. A
partir dos anos 1990, um novo ambiente – o único que é completamente artificial –
surge: o ciberespaço.

119
Em diversos aspectos, este trabalho é uma abordagem derivada de: GAMA NETO, R. B. VILAR LOPES,
Gills. Armas cibernéticas e segurança internacional. In: MEDEIROS FILHO, Oscar et al. (Org.). Segurança e
Defesa Cibernética: da fronteira física aos muros virtuais. Recife: Ed. UFPE, 2014. (Coleção Defesa & Muros
Virtuais). No prelo.
120
Professor adjunto III e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade
Federal de Pernambuco (PPGCP-UFPE).
121
Doutorando em Ciência Política pelo PPGCP-UFPE e Bolsista de Doutorado do Pró-Estratégia
(CAPES/SAE/UFPE).
122
Em combates aéreos, o dogfight é um conjunto de manobras em que um avião busca se aproximar
demasiadamente de outro para atingir ou escapar do enquadramento do seu oponente.

336
Aparentemente, aprecia-se uma espécie de pequena Guerra Fria cibernética, que
envolve os principais países do mundo (MCAFEE, 2009, p. 13). De acordo com a
literatura especializada de cyber warfare, Estados Unidos da América (EUA), China,
Rússia, Coreia do Norte, União Europeia e Israel são as nações ou grupos de países
mais ativos na guerra cibernética e nas diversas expressões correlatas como a
espionagem cibernética.

Nesse sentido, a fim de apresentar tal tema aos Estudos de Defesa, o presente
texto está divido da seguinte maneira: primeiramente, o conceito de guerra
cibernética é apresentado; logo em seguida, a questão da espionagem cibernética é
discutida, exemplificando-a com alguns cases.

2 Guerra cibernética e segurança internacional

O conceito político de guerra cibernética – cyber war ou, ainda, ciberguerra – surge
no início dos anos 1990, mas só é amplamente difundido na imprensa internacional
mais de uma década depois. Suas novidade e complexidade tornam tal definição de
difícil operacionalização, pois é quase sempre utilizada de forma confusa, indicando
qualquer ato de invasão ou ataque a redes de computadores, independente da
motivação. Além disso, outros conceitos – tais como ciberterrorismo, crime
cibernético (cybercrime)123 e hacktivismo – podem também ser confundidos com o
de guerra cibernética. Essa afirmação reside no fato de que esses conceitos não
apenas utilizam a mesma dimensão – o ciberespaço – e algumas técnicas
parecidas, mas também por que aqueles podem ser utilizados como instrumentos
governamentais para desviar responsabilidades e consequências de atos contra
outras entidades governamentais ou não.

Por outro lado, Segurança Internacional é um conceito clássico, que, grosso modo,
invoca a ideia da defesa dos territórios nacionais e está necessariamente atrelado
ao uso da força militar como instrumento de dissuasão. Com o fim da Guerra Fria, o
conceito perde sua centralidade no debate acadêmico, passando a disputar cada
vez mais espaço com as questões ambientais e econômicas de um mundo muito

123
Para um estudo sobre a aplicabilidade das leis brasileiras e da Convenção de Budapeste aos crimes
cibernéticos, ver Lopes e Pereira (2009).

337
mais imprevisível, conectado e multipolar. Havia-se a percepção crescente de que a
guerra interestatal estava desaparecendo. De certa forma, a perda da importância
desse valor conceitual está essencialmente vinculada à discussão da perda da
centralidade do conceito de Estado como ator internacional. Após o 11 de setembro
de 2001, e o uso da força militar pelos EUA e seus aliados, o conceito de segurança
internacional retoma sua importância124. Contudo, esee conceito já não pode ser
mais visto do prisma dicotômico clássico ―guerra vs paz‖ entre Estados. Tanto para
adeptos da corrente realista de Relações Internacionais como para a construtivistas,
o conceito guarda-chuva de segurança internacional retorna com novos desafios.
Por exemplo, no âmbito da Guerra ao Terror, o desafio-mor era o de lidar com o
terrorismo islâmico. Hodiernamente, o tema da segurança internacional passa por
novas provocações, que perpassam os conceitos clássicos político-militar de guerra
e paz e de disputas entre Estados, a saber: guerra cibernética, ciberespionagem,
ciberterrorismo etc.

3 Sociedade hiperconectada e a guerra cibernética

Em 1996, o sociólogo espanhol Manuel Castells cunha o termo ‗Sociedade em


Rede‘ para demonstrar o impacto da tecnologia digital sobre o mundo moderno, que
possuía, naquela época, 40 milhões de pessoas conectadas. Hoje, não é mais
possível falar em sociedade em rede, mas em sociedade hiperconectada.

Em 2012, dois bilhões e meio de usuários, ou seja, 34% da população mundial,


utiliza a Internet (INTERNET WORLD STATS, 2013). Em termos percentuais, a
América do Norte possui o maior número de nacionais conectadas à rede mundial
de computadores, 76%, seguida pela Oceania/Austrália com 67,6% e a Europa com
63,2% (Ibid.). Por exemplo, a contribuição da Internet para a economia, em
porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB), é de 5% para a União Europeia e 3,2%
para o Brasil (CEPAL, 2013). O aumento da importância da Internet para pessoas,
economias nacionais e governos é acompanhado de preocupação crescente com a
segurança, especificamente com a Segurança da Informação125.

124
Para uma crítica da perspectiva que vê o fim da Guerra Fria e o pós-11 de setembro de 2001 como marcos
epistemológicos reais, vide Saint-Pierre (2011).
125
Resumidamente, Segurança da Informação diz respeito a planejamento e execuções de políticas que visem
salvaguardar a autenticidade, confidencialidade, disponibilidade e integridade da informação.

338
No início dos anos 1980, a segurança das redes de computadores já era uma
preocupação, e pesquisadores demostravam experimentalmente a possibilidade de
softwares maliciosos – malwares – autorreplicantes. Do vírus de computador
Brian126, de 1983, ao verme de computador – worm – Stunext, descoberto em 2009,
estima-se que hoje existam mais de 1,5 milhão de malwares já identificados.

O arsenal de ataques cibernéticos é bastante vasto: servidores e redes zumbis


(botnets), scan127, fraude, worm/vírus/Trojan/spyware, invasão a computadores –
força bruta –, man-in-the-middle, engenharia social (MITNICK; SIMON, 2002), e-mail
spoofing, negação de serviço – ou Denial of Service (DoS) – etc.

Não obstante, a modalidade do ataque depende basicamente do objetivo do


atacante e pode deixar diferentes tipos de rastros identificáveis. Por exemplo, um
ataque que utiliza a técnica de invasão do tipo força bruta ou engenharia social
busca coletar informações no computador invadido, e necessariamente demora mais
tempo para ser executada (ULBRICH; DELLA VALLE, 2004, p. 124-125), deixando,
assim, mais rastros de como e por quem o ataque foi realizado. Outro exemplo: um
ataque do tipo negação de serviço ou DoS128 que objetiva impedir o funcionamento
de um servidor web, por meio de uma sobrecarga do sistema, pode utilizar-se de
redes de computadores zumbis – cujos utilizadores atacados não têm conhecimento
sequer de que estão sendo utilizados para tal fim –, deixando menos rastros de sua
atuação. Um exemplo de uso desta última tática é o conflito diplomático envolvendo
Rússia e Estônia, em 2007, quando o governo deste acusou o daquele de patrocinar
um dos maiores ataques cibernéticos da história, deixado o país báltico totalmente
desconectado do mundo (LOPES, 2011, p. 7-8; OPPERMANN, 2009); o motivo: a
remoção de uma estátua do Soldado Soviético Morto da capital estoniana.

Portanto, a motivação e o contexto em que ocorre e de onde parte o ataque, bem


como o tipo de técnicas utilizadas, são variáveis importantes na análise política
desse fenômeno técnico. Por exemplo, no caso da primeira guerra do Iraque, entre
1990 e 1991, o vírus de computador que infectou o sistema de defesa iraquiano

126
O primeiro do gênero, que danificava o setor de boot de discos de inicialização.
127
Busca de informações em redes de computadores, com o objetivo de identificar vulnerabilidades.
128
Há três técnicas de DoS: inundação, amplificação e exploração de protocolos.

339
tinha o objetivo de inutilizar a defesa antiaérea daquele país, tendo como cenário a
guerra declarada entre o governo de Sadam Hussein e o dos EUA e seus aliados.

Mais recentemente, no caso do Irã, o objetivo do Stuxnet era o de inutilizar


determinado tipo de centrífuga de enriquecimento de urânio em um ambiente de
―guerra fria‖ entre EUA e Israel, de um lado, e o governo iraniano do outro
(SANGER, 2012a; 2012b).

Já no que se refere ao caso da Estônia, o ataque de DoS ocorrido em 2007 tinha


como fito levar o caos ao país, com a motivação clara de puni-lo pela retirada de um
símbolo russo estabelecido durante o período soviético. Porém, a maioria dos
autores sobre guerra cibernética não enquadra o caso Estônia-Rússia como uma
guerra cibernética, tendo em vista a falta de provas que a Estônia insiste em imputar
ao Estado russo (LOPES, 2011).

Já na guerra da Geórgia contra a Rússia, em 2008, causada pela independência


da Ossétia do Sul, sites governamentais georgianos também sofreram ataques
cibernéticos do tipo DoS (OPPERMANN, 2009), os mesmos utilizados um ano
antes, na Estônia.

Como se vê, as técnicas de ataques cibernéticos que estão à disposição de


crackers, hacktivistas, militares, especialistas em segurança da informação e
criminosos são as mesmas. Porém, é a análise dos motivos da ação e do contexto
em que os ataques ocorrem, bem como as ferramentas utilizadas em cada caso que
permitem delimitar o atacante e sua razão final.

Portanto, técnicas de guerras cibernéticas são instrumentos dentro de um contexto


maior de conflito. Elas, per se, não ganham guerras convencionais, mas tornam a
vitória mais provável para o lado que as emprega. Em tempos de paz, estas técnicas
são os principais instrumentos de ciberespionagem. Hamadoun Touré, Secretário-
Geral da União Internacional de Telecomunicações (UIT), é categórico ao afirmar
que ―o mundo já vive uma guerra cibernética e a prática de espionagem na rede é
algo generalizado entre os governos‖ (CHADE, 2013).

340
4 Espionagem cibernética e tecnologia de defesa

Desde o final da Guerra Fria, a coleta de informações estratégicas dos governos, por
meio de seus serviços de inteligência, deixa de ser feita prioritariamente por pessoas
e passou a ser feita por interceptação de sinais de comunicações entre indivíduos
e/ou computadores129. Ao longo de muito tempo, a espionagem digital esteve
envolvida por uma lenda chamada Echelon, que já foi alvo até mesmo de uma
investigação no Parlamento Europeu. Trata-se de um sistema de coleta de
informações que intercepta sinais de telecomunicações em todo o mundo, liderado
pela National Security Agency (NSA) dos EUA e por serviços de informação de
Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido – os chamados Five Eyes –,
operando com centenas de satélites.

De ficção a fatos reais, é que as denúncias de Edward Snowden – ex-funcionário


terceirizado da NSA – giram em torno do que há muito se especulava: o governo
estadunidense monitora as trocas de informações entre pessoas, empresas e governos
ao redor do mundo, por meio de softwares espiões e da utilização de servidores de
empresas como Microsoft, Google, Yahoo!, Facebook e Amazon, dentro do programa
de vigilância chamado PRISM. Essas denúncias, apesar de terem sido alçadas à
categoria de escândalo mundial, não revela nenhuma novidade.

Em 2001, o Parlamento Europeu (PE) emitiu um relatório onde acusa formalmente


os EUA de utilizarem o sistema Echelon para executar espionagem industrial contra
empresas europeias, especialmente a Airbus e a Thomson-CSF (PARLAMENTO
EUROPEU, 2001). De acordo com o PE, durante a concorrência para a compra dos
radares e equipamentos de comunicação para o projeto do Sistema de Vigilância da
Amazônia (Sivam), a NSA utilizou o Echelon para interceptar ligações telefônicas
entre funcionários da empresa de radares Thomson e o governo brasileiro, entre
1994 e 1995, cujo conteúdo posteriormente seria comunicado à Raytheon. De posse
dessas informações, a empresa estadunidense conseguiu uma vantagem indevida
na disputa comercial internacional, permitindo-lhe vencer o grupo Thompson.

129
Respectivamente, Human Intelligence (HUMINT) e Signals intelligence (SIGINT). Sistemas SIGINT podem
ser subdivididos em Communications Intelligence (COMINT), Eletronic Intelligence (ELINT), Foreign
Instrumentation Intelligence (FISINT) e Images Intelligence (IMINT).

341
O principal objetivo da atividade de espionagem governamental ainda é a de
recolhimento de informações estratégicas sobre outros governos ou organizações,
que possam auxiliar na tomada de decisões. Contudo, a coleta de informações
econômicas por governos ou a troca desse tipo de informação com empresas
privadas é um ato ilícito. Governos estão cada vez mais preocupados com a
segurança não apenas das suas informações estratégicas, mas também com as de
empresas estratégicas. O diretor-chefe do Government Communications
Headquarter (GCHQ) da Grã-Bretanha, Sir Iain Lobban, em entrevista à BBC, foi
categórico ao observar que os segredos industriais ingleses estão sendo roubados
pela ação de crackers privados e governamentais estrangeiros.

We started a couple of years ago thinking this was going to be very much
about the defence sector but really it's any intellectual property that can be
harvested. Foreign intelligence services are behind many of these attacks.
[…] There are hostile foreign states out there who are interested in a
company's mergers and acquisitions activity, their joint venture intentions,
their strategic direction over the next few years and that information would
be valuable to that country's state owned enterprises. (Sir Iain Lobban apud
CORERA, 2013).

Para os pesquisadores do Center for Strategic and International Studies (CSIS), o


crime cibernético e a espionagem cibernética podem estar gerando prejuízos a
países e empresas entre 70 a 400 bilhões de dólares ao ano. Para eles, EUA, Israel,
China e Rússia são considerados os países mais ativos na espionagem digital. Cada
um teria uma motivação específica, por exemplo, os estadunidenses e os
israelenses estariam mais preocupados com a segurança e os últimos roubos de
segredos industriais, principalmente na área de defesa. Nesse sentido, o Office of
the National Counterintelligence Executive (ONCIX), em relatório de 2011, afirma
que os países que mais espionam os EUA são Rússia e China (ONCIX, 2011, p. 5).

Já a PLA 61398 é a unidade do Exército Popular da China responsável pelas ações


de espionagem digital e está localizada na cidade de Xangai, em um edifício de
130.000 m2. Conhecido pelas empresas de segurança como a Advanced Persistent
Threat (APT), organismos como o 61398 tem como missão principal o roubo de
propriedade intelectual como projetos de engenharia, planos de negócios, testes de
produtos etc. De acordo com a empresa de segurança Mandiant, 97% das ações de

342
invasão realizadas pelas APT tinham como alvo setores de infraestruturas, e se
utilizavam de endereços IP (Internet Protocol) sediados em Xangai (MADIANT,
2013). De acordo com o relatório, a unidade especial do Exército Chinês espionou
141 empresas distribuídas por 20 áreas industriais – setores identificados como
estratégicos para a China –, sendo que 87% das companhias são sediadas em
países anglófonos.

Raytheon, Lockheed Martin, Boeing Company e Northrop Grumman são algumas


das empresas estadunidenses mais importantes na área de tecnologia e defesa.
Fabricantes de armas como os caças F-35 JSF e F-22 Raptor, mísseis terra-ar
Patriot, sistema naval AegisCombat, helicópteros MH-60 Black Hawk, dentre outros,
normalmente são vistos como as principais vítimas da espionagem chinesa.
Certamente, o maior exemplo do sucesso da ação de órgãos como a unidade PLA
61398 é o caça furtivo J-31, bastante parecido com o F-35B. Mas os EUA talvez não
sejam os únicos alvos da espionagem militar chinesa. O helicóptero de ataque Z-19
tem desenho do rotor de cauda bem semelhante ao sistema Fenestrom, de patente
da Eurocopter.

5 Considerações finais

Como mencionado no início deste texto, a guerra como fenômeno histórico reflete
diretamente o impacto da evolução na tecnologia. Nos últimos 40 anos, o
desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) e
toda a transformação que surgiu e evoluiu em torno delas tornaram o mundo
―menor‖, mais rápido, dinâmico, e, em diversos aspectos, melhor. Todavia, a
mesma tecnologia que melhora a qualidade de vida das sociedades é a mesma
que produz novas formas de intrusão, espionagem e destruição – e.g. vírus,
worms, cavalos de Tróia, invasão de sites etc). Porém, a utilização de técnicas de
guerra cibernética num contexto de conflito militar declarado entre dois ou mais
Estados nunca ocorreu.

343
Em termos acadêmicos, toda essa transformação traz novos questionamentos não
apenas sobre o conceito de segurança internacional, mas também quanto a sua
dinâmica e desenvolvimento.

A utilização da nova tecnologia atrelada a redes de computadores como instrumento


de guerra o surgimento de novas formas de invasão e roubo de segredos industriais
trazem novos desafios a países e a organismos internacionais. Sem sombra de
dúvidas, a segurança cibernética deixa de ser um campo de especialistas em
computadores e se torna um novo campo de estudos para a Ciência Política e as
Relações Internacionais.

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345
Simpósio Temático 5

AMÉRICA DO SUL NA POLÍTICA DE DEFESA NACIONAL: ESTUDO COMPARATIVO


DAS POLÍTICAS DE 1996 E 2005

Andréa Benetti Carvalho de Oliveira

1 Introdução

A Política de Defesa Nacional brasileira de 1996, elaborada durante o governo


Fernando Henrique Cardoso, foi reformulada em 2005, durante o governo Luis Inácio
Lula da Silva, e atualmente tem sua terceira reformulação em debate (já discutida pela
Comissão Interministerial competente, e entregue no dia 17 de julho de 2012 à
Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal). Em ambos
os documentos busca-se a conformação de pensamento único brasileiro sobre defesa
nacional, tendo, dentre outros objetos abrangidos, a América do Sul especial atenção.
Esses documentos têm por finalidade a formação e a compreensão de conceitos
nacionais na área de segurança estratégica, bem como tendem a ser condicionantes de
atuação do Estado em ambiente nacional e internacional.

Sendo o tema de pesquisa, a defesa nacional e a América do Sul, tendo como


objeto as duas Políticas de Defesa Nacional, o presente artigo tem como hipótese de
trabalho que, embora sejam ambas as Políticas de Defesa Nacional produzidas
durante o mandato de diferentes Chefes de Estado, com características pessoais e
político-partidárias distintas, em diferentes momentos históricos, a América do Sul é
compreendida de modo similar: faz-se necessária a cooperação e a integração
regional não por ideais pacifistas, mas pela necessidade de manter um entorno
regional seguro para o Estado brasileiro, sendo a segurança regional indispensável
à manutenção da segurança nacional. A fim de testar a hipótese apresentada,
utiliza-se da análise de discurso para compreender as relações de poder

346
simbolizadas não apenas no texto produzido pelas duas políticas públicas, como
também na realidade do significado.

2 Método Comparativo na Análise das Políticas de Defesa Nacional

Para a epistemologia do conhecimento nas Ciências Sociais, a dificuldade de


aplicabilidade do método experimental conduz à adoção de métodos alternativos de
pesquisa, dentre os quais o método comparativo ora utilizado. A comparação,
portanto, é utilizada como forma de construção de conhecimento científico no qual
se propõe a identificar regularidades ou rupturas, semelhanças ou diferenças,
continuidades ou descontinuidades no objeto analisado.

O método comparativo, conforme Lijphart (1971, p. 682), é apenas um dos métodos


básicos disponíveis para proposições de generalizações empíricas. Isto quer dizer
que não deve ser utilizado para medir intensidade ou grau de relação entre
variáveis, mas sim para se identificar padrões de relacionamento entre essas
variáveis. Sua utilização ideal é justamente nas pesquisas nas quais o número de
casos a serem considerados é tão pequeno, que sequer torna viável a tabulação de
dados (LIJPHART, 1971).

No caso das Políticas de Defesa Nacional (PDNs), optou-se pela comparação das
Políticas de 1996 e 2005, o que é compatível com o método e a metodologia
propostos. Isto porque a perspectiva histórica e contextual decorrente da opção pela
metodologia de Análise de Discurso se adequa ao método comparativo de N
pequeno (apenas dois casos analisados). A variável comparativa, no caso, é a
América do Sul e a sua realidade percebida na estrutura do discurso brasileiro
presente nas duas políticas públicas referidas.

3 Análise de Discurso para Compreensão das Políticas de Defesa Nacional

O discurso como objeto sócio-histórico é compreendido a partir da linguística pela


Análise de Discurso (AD). Sujeito e sistema, portanto, se confrontam, em
decorrência da determinação histórica dos processos de significação. O externo à
linguagem, as condições de produção, condiciona certas regularidades na

347
linguagem verbal, e a AD tem por intuito justamente explicitar este seu caráter
ideológico. E é neste ponto que se diferencia substancialmente da clássica Análise
de Conteúdo, para a qual o texto é o pretexto para demonstrar a realidade, ou seja,
o texto ilustra uma situação previamente constituída (ORLANDI, 2011).

A relação entre sujeito e ideologia é, então, analisada em seu contexto social e


histórico, por meio da Análise de Discurso. Ou seja, por meio da análise das
Políticas de Defesa Nacional de 1996 e de 2005 busca-se compreender não apenas
o que está escrito nos documentos, mas como o Brasil formula sua compreensão da
América do Sul, o que vai refletir nas ações a serem adotadas com base nessa
política de Estado na área da defesa nacional.

O contexto no qual foram criadas as Políticas de Defesa Nacional de 1996 e de 2005


é distinto, tanto internamente ao país, quanto internacionalmente. Apesar de
somente nove anos separarem as datas de suas publicações, a sociedade brasileira
sofreu mudanças políticas e a sociedade internacional está mais adaptada à nova
realidade de desconcentração do poder político-militar do pós-Guerra Fria.

Política de Estado nada mais é do que objetivo político de satisfação de interesses


nacionais. Quando se fala em Política de Defesa Nacional, fala-se em objetivo de
Estado na consecução da sua defesa, em acordo aos seus interesses (MATTOS,
2009). A Política de Defesa Nacional, portanto, é documento oficial do Estado
Brasileiro, no qual são nele delineados quais os objetivos do Brasil em termos de
defesa do país.

Desde a redemocratização, o Brasil deixou de lado o planejamento estratégico na na


área de defesa, por entendê-lo como vinculado à Doutrina de Segurança Nacional
dos governos militares anteriores (PAGLIARI, 2009). No entanto, em 1996, com a
publicação da Política de Defesa Nacional houve uma primeira definição de quais
seriam os objetivos nacionais na área de defesa. O documento é bastante vago em
impreciso em alguns pontos, como quando menciona a ―paulatina modernização da
capacidade de auto-proteção‖ (BRASIL, 1996), mas inova por ser um documento
produzido na tentativa de aproximar civis da formulação de política nacional na área
de defesa e por tentar definir os objetivos nacionais.

348
Em contrapartida, a segunda Política de Defesa Nacional, elaborada no ano de
2005, utiliza-se do documento de 1996 como base para a sua redação, procurando
adaptá-lo melhor à realidade nacional, assim como à internacional, e também deixar
mais precisos alguns objetivos não tão claramente delineados na PDN anterior.
Avançou também a PDN 2005 ao ser disponibilizada publicamente à população
nacional via Decreto, publicado em Diário Oficial da União (Decreto 5.484, de 30 de
junho de 2005130) – a PDN 1996 foi disponibilizada pela Secretaria de Comunicação
Social da Presidência República, a qual fornecia cópias sempre que solicitado.

A apresentação das duas Políticas de Defesa Nacional é bastante parecida, mas


distinta em pontos substanciais ao tema do presente artigo, qual seja, a percepção
da América do Sul e de sua importância estratégica para a segurança e a defesa
nacionais. Logo na parte introdutória do texto, no primeiro parágrafo, PDN 2005 já
expõe qual a sua função, qual seja, se voltar para ameaças preponderantemente
externas, e ser documento condicionante do planejamento de defesa e do preparo,
da capacitação e do emprego das Forças Nacionais, com envolvimento dos setores
militar e civil, sob coordenação do Ministério da Defesa

A Política de Defesa Nacional voltada, preponderantemente, para ameaças


externas, é o documento condicionante de mais alto nível do planejamento de
defesa e tem por finalidade estabelecer objetivos e diretrizes para o preparo e o
emprego da capacitação nacional, com o envolvimento dos setores militar e
civil, em todas as esferas do Poder Nacional. O Ministério da Defesa coordena
as ações necessárias à Defesa Nacional. (BRASIL, 2005)

Na PDN 1996 estavam tais informações apenas no terceiro parágrafo, após breve
menção sobre as ―modalidades criativas‖ do pensamento estratégico, e sobre as
transformações internas, regionais e globais – demonstrando aqui uma constante da
Política Externa do governo Fernando Henrique Cardoso sobre a necessidade de
inserção regional do Brasil como etapa para a inserção internacional.

A Política de Defesa Nacional, voltada para ameaças externas, tem por


finalidade fixar os objetivos para a defesa da Nação, bem como orientar o
preparo e o emprego da capacitação nacional, em todos níveis e esferas de
poder, e com o envolvimento dos setores civil e militar. (BRASIL, 1996)

130
O Decreto encontra-se ainda vigente quando da elaboração deste artigo, pois a Política de Nacional de Defesa
de 2012 já foi aprovada no Senado Federal, no mesmo ano, em conjunto com a Estratégia Nacional de Defesa e
o Livro Branco de Defesa Nacional, mas ainda não foi votada em Plenário pela Câmara dos Deputados.

349
A diferença topográfica não é a única diferença no conteúdo e no discurso presente
nos documentos. Note-se que a PDN 1996 é voltada às ameaças externas, sequer
cogitando a possibilidade de ameaças internas ao Estado nacional – o que remonta
a uma visão estrita de segurança, no sentido de considerar ameaças ao Estado
apenas as ameaças provenientes de outros atores internacionais, mais
especificamente apenas o Estado como ator internacional por excelência. A PDN
2005, por sua vez, é voltada às ameaças preponderantemente externas, ou seja,
não necessariamente atores estatais externos, como demais atores, estatais ou não,
externos ou não, podendo ser considerados como ameaças ao Estado nacional.

Em relação à participação na tarefa da defesa e do pensar a defesa nacional,


enquanto a PDN 1996 conta com o envolvimento civil e militar, a PDN 2005 conta
com o envolvimento militar e civil (sob a coordenação do Ministério da Defesa, que
ainda não havia sido criado em 1996). A inversão da ordem nos setores ―civil‖ e
―militar‖, da PDN 1996 para a PDN 2005 não é gratuita: durante o discurso de posse
do primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, este se
comprometera com a criação do Ministério da Defesa, de forma a concentrar a
condução das políticas de segurança e defesa nacionais em uma única pasta
ministerial. No entanto, encontrou resistência, tanto de parcelas civis e militares
nacionais, tendo o almejado Ministério se tornado realidade apenas no seu segundo
mandato presidencial. Quando da elaboração e da publicação da PDN 2005, o
Ministério da Defesa já havia sido criado, constituído por servidores civis e militares.
Desta forma, já se vislumbrara, na prática política, a formação militar como a mais
especializada em questões referentes à defesa nacional, porém, necessitando da
participação civil como necessária por refletir a realidade da maioria da população
nacional, assim como para não deixar ao encargo exclusivamente militar a condução
de assunto de interesse nacional.

Por fim, a PDN 2005 deixa clara a função da Política como o mais alto nível
condicionando do planejamento de defesa, abrindo espaço para mais tarde ser
desenvolvida e publicada a Estratégia Nacional de Defesa. Esta, criada apenas em
2008, tem por finalidade estabelecer os ―caminhos‖ a serem percorridos a fim de se
atingir os objetivos dispostos na Política.

350
A PDN 2005 avança, também, em relação à anterior, ao definir o que são
―segurança‖ e ―defesa nacional‖. ―Segurança‖, portanto, é a percepção de não
exposição a riscos ou ameaças que comprometam a existência do Estado; ―defesa
nacional‖ remete a conjunto de ações efetivas para a defesa do Estado, com ênfase
no emprego militar, contra ameaças reais ou potenciais. Sobre esses conceitos
essenciais, a PDN 1996 silencia, deixando apenas subentendida a defesa como
necessária em casos de ameaças reais externas, o que não seria necessariamente
utilizável pelo Brasil, em decorrência do ―verdadeiro anel de paz em torno do País‖
(BRASIL, 1996).

Aqui nota-se a forma como o entorno regional brasileiro é compreendido pela PDN
1996, como um local pacífico por excelência. Isto porque o Brasil teria conquistado tal
pacificidade em razão do não envolvimento em conflitos com vizinhos, e da maior
integração e aproximação regionais, o que, resultou, na maior credibilidade
internacional do país (BRASIL, 1996). Ademais, a PDN 1996 entende como região na
qual o Brasil está inserida não apenas a América do Sul, mas também o Atlântico Sul.

Para o Brasil, país de diferentes regiões internas e de diversificado perfil, ao


mesmo tempo amazônico, atlântico, platino e do Cone Sul, a concepção do
espaço regional extrapola a massa continental sul-americana e inclui
também, o Atlântico Sul. (BRASIL, 1996)

Diferentemente, a Política de Defesa Nacional de 2005 disponibiliza no documento um


tópico específico para o ―Ambiente Regional e o Entorno Estratégico‖ (na PDN 1996 as
informações estão inseridas no item referente ao ―Quadro Internacional‖), segundo o qual a
América do Sul é a região na qual o Brasil se insere, sendo o Atlântico Sul o seu entorno.
Ou seja, enquanto a PDN 1996 entende como região espaço bem mais amplo, e dá
tratamento similar à América do Sul e ao Atlântico Sul, a PDN 2005 deixa claro que a região
brasileira é a América do Sul apenas; desta forma, o Atlântico Sul tem sim importância
estratégica, mas não igual ou maior que a América do Sul.

O subcontinente da América do Sul é o ambiente regional no qual o Brasil


se insere. Buscando aprofundar seus laços de cooperação, o País visualiza
um entorno estratégico que extrapola a massa do subcontinente e incluiu a
projeção pela fronteira do Atlântico Sul e os países lindeiros da África.
(BRASIL, 2005)

351
A PDN 2005 reconhece que a América do Sul possui relativa pacificidade – ao passo
que a PDN 1996 considera o local como pacífico, apesar de zonas de instabilidade
decorrentes de ação de ―bandos armados‖ e do ―crime organizado internacional‖.

A América do Sul, distante dos principais focos mundiais de tensão e livre


de armas nucleares, é considerada uma região relativamente pacífica.
(BRASIL, 2005)

No âmbito regional, persistem zonas de instabilidade que podem contrariar


interesses brasileiros. A ação de bandos armados que atuam em países
vizinhos, nos lindes da Amazónia brasileira, e o crime organizado
internacional são alguns dos pontos a provocar preocupação. (BRASIL,
1996)

Essa relativa pacificidade da PDN 2005 decorre do reconhecimento de que a


instabilidade regional compromete a segurança regional, em razão da possibilidade
de ocorrência de transbordamento dos efeitos das ações da criminalidade
transnacional. A forma de diminuição de riscos e de eliminação da ameaça
reconhecida seria, portanto, por meio da convergência de ações entre vizinhos.

A segurança de um país é afetada pelo grau de instabilidade da região onde


está inserido. Assim, é desejável que ocorram: o consenso; a harmonia
política; e a convergência de ações entre os países vizinhos, visando lograr
a redução da criminalidade transnacional, na busca de melhores condições
para o desenvolvimento econômico e social que tornarão a região mais
coesa e mais forte.

A existência de zonas de instabilidade e de ilícitos transnacionais pode


provocar o transbordamento de conflitos para outros países da América do
Sul. A persistência desses focos de incertezas impõe que a defesa do
Estado seja vista com prioridade, para preservar os interesses nacionais, a
soberania e a independência. (BRASIL, 2005)

Ou seja, a PDN 2005 dispõe sobre a necessidade de cooperação com os Estados


vizinhos por perceber ameaças regionais que podem comprometer a segurança
nacional. Visão mais realista e menos idealista se comparada à PDN 1996, a qual
não percebe efetivamente ameaças, apenas preocupa-se com a possibilidade de
algumas ações na região se tornarem ameaças. Desta forma, a cooperação com os
Estados vizinhos merece atenção, mas em razão da necessidade de consolidação e
fortalecimento dos processos de integração já existentes, como forma de o Brasil se
inserir com certo protagonismo no cenário internacional mais amplo.

352
Na parte referente aos objetivos da defesa nacional, a Política de Defesa Nacional
de 1996 relata que a conjuntura do entorno imediato brasileiro lhe é favorável, e
depois enumera sete objetivos específicos, todos com caráter preponderantemente
interno, salvo pelo item que menciona a ―projeção do Brasil no concerto das
nações‖, não havendo qualquer menção ou referência à América do Sul. Na Política
de 2005 houve diminuição de sete para seis objetivos, mas o quarto elencado faz
referência expressa à ―promoção da estabilidade regional‖, sendo que os interesses
nacionais devem ser compatibilizados com os interesses regionais. Nota-se,
portanto, na PDN 2005 a preocupação clara com a América do Sul, e reconhece-se
que os interesses nacionais nem sempre são os interesses regionais, mas que
ambos devem ser compatíveis entre si, a fim de garantir estabilidade regional.

A parte dos documentos que elenca as orientações estratégicas, pressupostos para


a busca dos objetivos almejados na defesa nacional, é bastante mais extenso na
PDN 2005 do que na PDN 1996. Na primeira Política a diplomacia possui destaque,
pois deve a Defesa Nacional ser centrada na atividade diplomática, sendo que a
postura nacional deve ser ―dissuasória de caráter defensivo‖. ―Para tanto, a presente
politica é centrada em uma ativa diplomacia voltada para a paz, e em uma postura
estratégica dissuasória de caráter defensivo [...]‖ (BRASIL, 1996).

Ou seja, a diplomacia é principal forma de defesa do país, segundo o discurso


contido no documento, e a ação brasileira somente deve ser levada a cabo mediante
necessidade de real defesa. Evidencia-se, portanto, aqui, a reatividade do país no
que diz respeito à segurança e à defesa nacionais. Bastante diversa é a Política de
2005, a qual explica a vertente preventiva da defesa, mas com valorização da ação
diplomática, e não mais com centralidade da ação diplomática como na de 1996.

A vertente preventiva da Defesa Nacional reside na valorização da ação


diplomática como instrumento primeiro de solução de conflitos e em postura
estratégica baseada na existência de capacidade militar com credibilidade,
apta a gerar efeito dissuasório. (BRASIL, 2005)

Ademais, enquanto a PDN 1996 já elenca a estratégia dissuasória defensiva, na


qual há necessidade de desenvolvida capacidade de mobilização nacional para
conter e revidar golpe inicial de Estado estrangeiro (BRASIL, 2001), a PDN 2005 é

353
mais condizente com a realidade nacional, ao fazer referência apenas ao efeito
dissuasório, ou seja, à manutenção de forças nacionais aptas e preparadas para o
emprego imediato (BRASIL, 2001). Percebe-se, aqui, a centralidade das potenciais
ameaças focada em Estados estrangeiros na PDN 1996, e o reconhecimento de que
as ameaças ao Brasil não são necessariamente estatais na PDN 2005.

Ambos os documentos deixam implícita a América do Sul nas premissas das


orientações estratégicas, ao assumir como premissa da ação brasileira o respeito às
fronteiras nacionais e a necessidade de estreitamente de relações com os países
vizinhos. Porém, a Política de Defesa Nacional de 2005 menciona novamente a
natureza difusa das atuais ameaças, provenientes de atores internacionais outros
além dos estatais, e acresce a necessidade de investimento em atividades de
inteligência, sobretudo para prevenir possíveis ações terroristas, destacando a
prioridade estratégica das Amazônias Verde e Azul. Ganha relevo expresso,
também, a necessidade de integração regional das indústrias de defesa.

O último tópico presente na estrutura dos documentos é o referente às Diretrizes a


serem adotadas pelo Brasil na consecução dos objetivos da PDN. A América do Sul
encontra-se presente na PDN 1996 logo no primeiro item, não de forma expressa,
mas subentendida, ao citar que o Brasil deve contribuir ativamente para a paz
mundial e também regional. Note-se, aqui, que em primeiro lugar a paz mundial
deve ser buscada, e a regional logo em seguida. Isto porque o Brasil percebe, em
1996, o ―clima de paz e cooperação ao longo das fronteiras‖, cabendo ao país
apenas a sua manutenção.

contribuir ativamente para a construção de uma ordem internacional,


baseada no estado de direito, que propicie a paz universal e regional e o
desenvolvimento sustentável da humanidade; [...]

contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a solidificação da


integração regional;

atuar para a manutenção de um clima de paz e cooperação ao longo das


fronteiras nacionais [...] (BRASIL, 1996).

Quanto às diretrizes da Política de Defesa Nacional de 2005, no documento a


América do Sul está implícita em diversos tópicos, tais quais nas necessidades de
aprimoramento da vigilância e do controle das fronteiras nacionais, de aumento da
presença militar na Amazônia, de desenvolvimento e de integração da região

354
amazônica, de cooperação na região fronteiriça, e de integração regional com
ênfase nas indústrias de defesa. Mas aqui o subcontinente aparece expresso uma
vez, no que se refere à necessidade de intensificação de intercambio com as Forças
Armadas das nações amigas, especialmente com as da América do Sul.

4 Conclusão

As Políticas de Defesa Nacional elaboradas nos anos de 1996 e de 2005 refletem o


pensamento oficial brasileiro sobre quais as metas do país na área de defesa.
Embora frutos de realidades políticas distintas, os documentos devem (ou ao menos,
deveriam) refletir uma linearidade de ação de Estado, e não as aspirações de
governos que eventualmente representam o Estado. Desta forma, propôs-se no
presente artigo a verificação da hipótese de que a América do Sul, apenas uma
parte do documento, é uma região na qual o Brasil está inserido e, portanto, merece
especial atenção como palco no qual a cooperação se faz necessária a fim de
garantir a estabilidade regional e, por consequência, a segurança nacional.

No entanto, a partir da leitura e da análise dos documentos, a hipótese não pode ser
confirmada, uma vez que a América do Sul é percebida de modo bastante diverso
nos dois documentos. Em que pese haja similitudes, as diferenças extrapolam as
semelhanças. Na PDN 1996 a América do Sul é pressuposta como área pacífica, e o
entorno regional brasileiro é compreendido de forma bastante mais ampla,
congregando América do Sul e Atlântico Sul. Desta forma, o aprofundamento e a
intensificação da relação do Brasil com os seus vizinhos seria importante apenas
como uma espécie de ponto de partida para a inserção brasileira no plano
internacional. Ademais, não se percebem ameaças regionais, apenas denota-se a
possibilidade de algumas situações se tornarem eventualmente ameaças. A postura
reativa brasileira é bastante clara e permeia todo o documento.

Na PDN 2005, por outro lado, a América do Sul é vista como o entorno regional
brasileiro. E tão somente a América do Sul. O Atlântico Sul tem importância na
busca de inserção afirmativa do Brasil, como forma de projeção de poder nacional. A
percepção e identificação de ameaças ao Estado brasileiro na América do Sul exige
que o Brasil aja de forma mais pró-ativa no subcontinente, e não apenas defensiva.

355
A valorização, mas não exclusividade, da ação diplomática na região é outro
diferencial do segundo documento.

Ou seja, a diferença de compreensão da América do Sul pelo Brasil é diversa nos


dois documentos, o que pode ensejar uma série de possibilidades de hipóteses a
serem eventualmente testadas: há nas duas políticas públicas reflexo sim da
diferença de posicionamento político dos dois Chefes de Estado no momento de sua
elaboração e redação; a mudança da composição dos agentes que elaboraram os
dois documentos, reflete na mudança de compreensão do objeto ―América do Sul‖; a
criação do Ministério da Defesa após a elaboração da primeira política vai impactar
na mudança da definição da importância estratégica da América do Sul para o
Brasil; dentre outras.

Referências Bibliográficas

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nacional, e dá outras providências. Brasília, 2005.
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pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 19ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
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MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola
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MATTOS, Carlos de Meira. O Brasil e sua Estratégia. Rio de Janeiro, 2009.
Disponível em <www.esg.br/uploads/2009/03/meiramattos4.pdf>. Acesso em 21 de
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discurso. 6ª ed.. Campinas: Pontes Editores, 2011.

356
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em (Dis)curso, Tubarão, v. 3, n. 1 , p. 187-210, jul./dez. 2002.

357
“RESEARCH GAP ON WAR” AND ITS CONSEQUENCES FOR

DEFENSE POLICYMAKING IN BRAZIL AND GERMANY

Érico Esteves Duarte

1 Introduction

This short essay has as topic the civilian disregard to the study of war in
contemporary democracies and its pervasive consequences for defense
policymaking. It intends to approach the problem by comparing two cases.

On one hand, the German case, where after an intensive institutional reform era
during 1960‘s and 1970‘s according to commitments to United States, NATO and
European Union, it registers a current constrained community of defense studies
imperiling the qualification of national defense issues. Although Germany presents a
more matured democracy, the ―research gap on war‖ is a raising concern (SCHMID,
2013). The actual German Ministry of Defense, Thomas de Maizière, publicly stated
that German universities provide no relevant contribution to German new role and
leadership in regional and international securities.

On another hand, an opposite case is Brazil, where the research on war never
existed until very recently, but expands continually, however not in the necessary
path to provide defense policymakers in the quantity and quality the country
demands. Although Brazilian political leadership and military personnel have
advanced in professionalism, there is a relevant barrier in the provision of defense
analysts, managers and economists by Brazilian universities to attend governmental
branches and demands.

Both countries, in spite of their political histories and strategic conditions, present
similar symptoms because the ―research gap on war‖. It happens because in
democracies a sustainable defense policymaking depends on a permanent
selection, education and training of specialized personnel by the governmental

358
agencies, as well as on progressive research programs by the academe on security
and defense studies. As important as the existence of these two sets of activities, it is
that they need to follow articulated between them. Otherwise, they both risk to loose
substance and adherence with society and, consequently, public utility.

That ‗gap‘ is a continuous problem of contemporary democracies, therefore, fairly


documented. Considering Brazil and Germany‘s relevant roles to their respective
regions and to international economy, organizations and agenda, it is unacceptable
the state of civil society disregard to defense policy on both of them. The paper
argues in favor the collaboration between Brazilian and German academes, so they
be able to attend their mandates of qualification of public debate on defense and of
provision of specialized personnel in the necessary quantities and qualities for
sustainable defense policymaking.

2 The Trembling Relationship between War and Society in Democracies

If the contemporary history testified the spread of democracy in terms of universal


suffrage, rule of law and individual liberties; it has to wait before the relationship
between military establishments, civil societies and political leaderships achieve
continuous and satisfying synergy.

Gordon Craig (1986) provides a compelling review of the literature that unfolds the
history of Great War from the perspective of the failure of European civilian political
leaderships on the conduct of war. He presents and compares the inability or
unwillingness of German, French and British political leaderships to exercise control
and reasonability upon the operational planning and decision-making processes of
their military establishments. As consequences, they watched the nearly or total
national debacles of their respective societies; which they held the ultimate
responsibility (CRAIG, 1986, p. 482).

In the case of Germany in Great War, the chancellor Theobald von Bethmann
Hollweg had to deal with a very active civil society ―desirous of the most ambitious
kind of territorial expansion and were sure that the war would make this possible‖,
and a military establishment of an unparallel public veneration. He had no share in

359
the planning of operations of war and did not question openly its basic assumptions,
though they seemed unrealistic and dangerous, such as: the massive enveloping
punch in France in six weeks, followed by an eastward turning against Russia, the
unlimited submarine warfare, and the disdain of any peace by negotiation. Despite of
his shortcomings and weakness, Craig recognizes:

The striking about his fall is not the way in which it was accomplished but
rather the fact no voice was raised in his behalf. It was not only the soldiers
and the business interests that brought Bethmann down. Such future leaders
of Weimar democracy as Matthias Erzberger and Gustav Stresemann
actively participated in the dirty maneuvers that effected his dismissal; the
Reichstag majority gave its approval, the Socialists were mute, and public
opinion in general greeted the event with satisfaction, apparently convinced
that Hindenburg and Ludendorff would bring them the total victory that they
craved.

[…]

The combination of military self-confidence and public heedlessness nullified


all attempts to coordinate Germany‘s political and military strategies
rationally and to direct its operational planning to achievable ends. The result
was a stubborn prolongation of the war that caused millions of needless
casualties, an ill-conceived offensive in 1918 that the country did not have
the resources to support, and, in the end, defeat and revolution (CRAIG,
1986, p. 484–485).

In the case of United Kingdom, the assumptions of higher political sophistication and
stronger hand upon military authority were vain. The prime-minister H.H. Asquith was
a parliamentarian and party leader without any understanding of conduct of war,
therefore he was diffident to military decisions, which he followed without logic and
responsibility. Even after the defeat in the Dardanelles, he and the British Ministry
were not able to avoid the imperious military leadership of Douglas Haig and William
Robertson, which set strategic concepts ―that were very nearly fatal as in their results
as those of their German counterpart‖. The civil part resumed to the role of provider
of financial and human resources ruining millions of lives and the British Empire. His
successor, David Lloyd George, tried to bring reason to the direction of war effort, but
―suffered from the same fear of public disapproval or disavowal if he were to be
outspoken […]. With these thoughts in mind, and that of his own political future, Lloyd
George did not insist too much, and the killing went on‖ (CRAIG, 1986, p. 485–488).

360
Finally, France had historical issues that made greater the regular problems of
democracies at war. The military enjoyed centuries of prestige and the ‗sacred union‘
of the Republic could not be preemptively contested.

[T] he experience of French political leaders came close in the first years of
the Great War to duplicating that of their counterparts in Germany and
Britain, and in the critical year of 1917 France provided a quintessential
illustration of civilian diffidence and capitulation before military expert
opinion. In the last year of the war, however, the political leadership
reasserted its authority, and, as a result, France enjoyed a degree of
political-military collaboration in the direction of the war that was achieved in
neither Britain and Germany (CRAIG, 1986, p. 488).

―But France also had a revolutionary tradition and an expectation its generals would
be successful or would be replaced‖. And when none new Bonaparte raised that
made the difference. The bloodshed of Nivelle offensive in 1917 was more than
enough to move the public opinion against the military establishment and to give
room to Georges Clemenceau. His higher military expertise and French military
establishment‘s lower performance turned possible to put down the Supreme War
Council‘s insulation, to advance important reforms to extend French war effort, to
appoint Foch as Supreme Commander and to push the, inaugural, coordinated Allied
operations of July-November 1918.

Besides the lack of a charismatic military leader, the French distinction was grounded
on a more self-confident political leader because his better qualification on strategy
and tactics. That resulted in conviction and argumentation to defend his points of
view beyond just political wit, which is rarely sufficient in war decision-making.
Different from his pairs, Clemenceau ―acquired (largely from his military aide General
Mordaq) the kind of expertise necessary to enable him to speak with authority on
questions of strategical and tactical choice‖ (CRAIG, 1986, p. 490).

Clemenceau‘s success was the important exception to be rarely repeated. The Great
War introduced throughout the 20th century the permanent problem of the interplay
between civil and military leadership made by the efficiency and prestige if the
military establishment and the character and personality of the political leader than
the nature of political system and institutions. That means that the contemporary

361
democracies barely solved the matter of stable and effective institutions to provide
the maximum security with the maximum liberty.

In the United States, more than other democracies, it is well identified and addressed
the cyclic movements of civilian commitment to national defense issues, and their
negative consequences to United States defense policymaking and conduct of war
(PROENÇA JÚNIOR; DUARTE, 2007). The whole scholarship can be summarized
by its founding father: Edward Mead Earle (EARLE, 1940a, 1940b, 1943, see also
EKBLADH, 2011). He questioned it as a fundamental democratic question, part of
the preamble of the Constitution, which listed the "common defense", as one of the
basic functions of a government. The necessary subordination of the military to the
civilians went beyond the understanding that the war was too important to be left to
generals, the separation between military and civilians was not only artificial, it
contradicted the principles of democracy.

The public debate on strategy and the use of force was not just a matter of times of
war, but inherent to the government. The possibility of decision makers to have clear
alternatives of action depends on the University, the only body capable of collecting,
weighing and criticizing facts and alternatives, through research, education, and
advance of knowledge able to situate the military affairs as governmental.
Furthermore, he was the first one to identify the condemned omission of the
academy because the University has been the responsible for quality of content and
for the opportunity of its contribution in the public debate. The low quality of public
debate, the limited number of personnel, and unsatisfying solutions to the challenges
of defense policymaking became routine only because the study of war in the
University had become marginal, incidental and marked by military officers writing for
military officers instead of being a matter of citizens writing for citizens.

Thus, to think the problem of the civilian avoidance to the study of war is so important
as to think about how to solve it because the University‘s omission to it has been
repeated again and again, independently its negative consequences. For instance on
current times, in spite of their distinct political backgrounds and strategic conditions,
Germany and Brazil currently suffer from the malady of the ‗research gap on war‘.

362
3 German Case

On February 27th of 2012, it was published a German Ministry of Defense‘s interview


of large impact. In the context of European Security Conference in Munich, Thomas
de Maizière pointed out Germany was ascending to a new leadership role on
regional and international securities. He sadly recognized it may be in imperil since
he could count on no relevant contribution of German universities on the question of
war and peace (BIGALKE, 2012; MARISCHKA, 2012).

That statement was striking if we take in glance the critical reforms German Ministry
of Defense has passed throughout 1990s. Germany struggled to review the Cold
War‘s legated structure which the Bundeswehr had no ―capability to exercise
operational command and control over joint national military operations of any size or
of any significant duration. This unusual condition was due to the anxieties of a
country suspicious of past militaristic cultural proclivities in German armies, combined
with the ‗influentional‘ presence of a very apprehensive group of new allies‖(YOUNG,
1996, p. 379). By ‗influentional‘, it means:

[I]t long has been assumed that wartime operational command and control of
most of the Bundeswehr would be exercised though the NATO integrated
command structure […]. Consequently, there is currently no pressing military
requirement to create a German wartime national operational command and
control structure (Young, 1996, p. 380).

In a first moment, the immediate need was to attend the other-than-war tasks, such
as humanitarian relief operations carried out it in Iran, Iraq and Turkey‖, which fell
outside NATO jurisdiction. Considering the sensitivities related to German civil-
military relations and the reunification, to review German Ministry of Defense‘s
apparatus has been a legal, political and organizational challenge.

That challenge got harder as the number of that kind of peace support operations
has grown substantially. Germany deployed soldiers in the Balkans and Somali, and
its involvement in Afghanistan cannot be addressed in that label and structure
anymore. Furthermore, since 2011, Germany approved a plan of structural reduction
of its armed forces: from 250,000 to 185,000 soldiers, 31 of the country's 328 largest
garrisons will be closed, while another 90 will be significantly reduced, the number of

363
command authorities has been reduced from 42 to 25, and most of weapon systems
are suffering cuts from 30 to 50%. Finally, the Ministry of Defense has to face with
the goal to support a 10,000 soldiers contingent in high readiness to respond quickly,
flexibly and for lengthy periods in multiple areas of crisis and conflict131.

Therefore, Maziére‘s statement was not soft. The immediate reaction by German
scholars was that the study of war in Germany would be very unpopular and
unfunded, resulting in no more than five professors or research groups on the
subject. The reactions to that statement were so relevant they were scrutinized.
Schimd (2013) identified three types of scientific community with regard to the
minister‘s statement: a) contradiction to content; b) normative rejection; and c)
resignative confirmation. The identified reactions stand to a certain degree in sharp
opposition to each other. Two out of three identified types of reaction indicate a
deficit in German scientific research on war and peace – indirectly (b.) and directly
(c.). The identified deficits are to be confirmed to a higher degree the more one
focuses not only on general peace- and security-related questions but on the
essence of war as a central object of scientific research and observation, particularly
with a profound theory of war in mind.

He concluded that Germany misses required research capacity with regard to a


comprehensive scientific research on war, based on a profound theory of war,
despite the national pride around Carl von Clausewitz. The resulting lack of
understanding, regarding the dynamics, ractices, sequences and semantics of war
has to be considered as a risk to German Peace

4 Brazilian Case

Brazil is a relevant case of lack of a civilian qualified authority on defense issues


because it has restricted defense studies until very recently. It has one of its great
challenges as a candidate as a global player to overcome the historical and
institutional constrains to the development of research on defense in universities,
131
See: “More time needed for German military” http://www.dw.de/more-time-needed-for-german-military-
reform/a-16324603, '”Bitter' Military Reform: Defense Ministry Releases Base Closure List”
http://www.spiegel.de/international/germany/bitter-military-reform-defense-ministry-releases-base-closure-list-
a-794211.html

364
even several years after the end of military regime. Brazil struggles to escape this
heritage and its overall apparatus for defense - conceptual and institutional – need
deep reforms.

The wicked conceptual heritage is the perpetuation of National Security Doctrine,


elaborated by the Escola Superior de Guerra in 1950 and kept as a holy scripture
since the military regime.
The centre of the doctrine can be found in the binomial of security and
development. The proper harmonization of priorities and the balance of their
mutual influences is the recipe of national power, providing both
development and security. Development is defined as the increase of
national power. Security is the ability to make use of national power without
facing hindrance.

National power is defined as the panoply of all means available to


mobilization by the national will in order to achieve internal or external
objectives. Power would be composed of five co-equals, autonomous and
interdependent, expressions: the political, economic, military, psychosocial
and, later, the scientific-technological. And that is all the conceptualization of
defense provided.

In part because of its association with the military regime of 1964-1988; in


part because of its constant drive towards a de facto doctrinal monopoly over
Brazilian thinking on defense, in part because of its relentless bureaucratic
militancy against alternative approaches; that doctrine, even deprived of its
anticommunist justification after 1991, ended as the sole conceptual
framework that can claim longevity or breadth comparable to that of Brazilian
diplomatic traditions. Some of its terms and concepts recur throughout
Brazil‘s legislation, official documents, and statements on defense issues by
political parties, academics, and journalists from the whole political
spectrum. The seeming pervasiveness of the National Security Doctrine can
be misleading: as it claims and seeks to hold the authoritative definition of all
the vocabulary of government, power, security, and defense, any mention of
any term can be perceived as echoing the doctrine (PROENÇA JÚNIOR;
DINIZ, 2008, p. 318).

An institutional expression of inconsistent conceptual background is the current


National Defense Policy. It has been published in 2005 and kept as official policy for
eighth years without revision132. Indeed, it is neither a defense white paper nor a
national security policy. It is a broad statement of understanding that declines to be,
despite its name, a policy. Rather, it expresses a compromise of the agencies
involved in its formulation, a letter of authority outlining what belongs to Brazilian
defense concerns. It brings together those items that one or more agencies would

132
See: http://www.defesa.gov.br/index.php/publicacoes/politica-de-defesa-nacional.

365
like to have in such a high level statement, and that are not vetoed by another
agency. The whole of the document and each of its passages is written cooperatively
and it offers no prioritization or trade-offs among them. It offers statements of
principle, topics of concern, and lists of definitions, guidelines, and directives that are
general enough to allow each agency to find its own interpretation. Nonetheless, in
fact, it offers little and practical orientation on the use of force itself (PROENÇA
JÚNIOR; DINIZ, 2008, p. 319).

One consequence is the inconsistencies and gaps in defense planning as present in


the National Strategy of Defense of 2008 (DUARTE, 2011; FLORES, 2012). Another
even more critical consequence is the Brazilian inability in taking decisions on high-
level defense and security issues. In some cases, there is the reluctance to deal with
enforcement or coercion, as in the case of UN Peace Mission in Haiti. In others
cases, the use of force was beyond reasonable proportion, as the use of armed
forces in Rio Janeiro in 2010 for the pacification of a complex of favelas, called
Complexo do Alemão, or German Complex. Finally, there are several tradeoffs
among Brazilian agencies and armed forces which the political leadership is absent
of its role as the ultimate decision-maker. For instance, the program for the
acquisition of new air fighters takes more than 15 years and it is never concluded. As
consequence, Brazil barely posses an Air Force, and the others singular forces
cannot take in account other air support than their own, worsening the split among
Brazilian armed forces (PERON, 2011).

5 Comparative and Final Remarks

The first common ground of both cases is the great American influence as security
provider. Due to different reasons, Brazil and German have had a permanent
constrained on defense policymaking due to the lack the sense of insecurity by both
Brazilian and German societies since the Second World War. They also share, in
different degree, the weight of their military establishments on their political histories.
Finally, both countries have been pushed, and more recently induce as regional
leaders the commitments they took part. German in European Union and Brazil in
UNASUR are naturally evolving to the roles of provider of last resort of their

366
respective regional political architectures. Finally, they also have been asked to joint
peace and humanitarian operations in higher numbers and deeper involvement.

All those aspects are demanding and shall not fade away in the near future. Although
their armed forces may vary in size and structure, the quality of their defence policy
makings will have to improve. Returning to Craig‘s lucid exposition:

‗the art of strategist is to determine the aim, which is or should be political: to


derive from that aim a series of military objectives to be achieved: to assess
these objectives as to the military requirements they create, and the
preconditions which the achievement of each is likely to necessitate: to
measure available and potential resources against the requirements and
chart from this process a coherent pattern of priorities and a rational course
of action,‘ the difficult is how much of the deriving and assessing and
measuring and charting falls within the political leader‘s purview and how
much of it becomes a military function. It is clear that this cannot be
answered by any categorical formulation, even one that is invested with the
authority of Clausewitz‘s name (CRAIG, 1986, p. 481).

The situations when Brazil and Germany will have to take difficult decisions regarding
the use of force shall get larger in number and complexity. Indepedently the
expectations of a near multipolar future be or not accomplished, the relevance of
regional and inter-regional dinamycs tend to rise as well as the role of regional
leaders and the relationships among them. Therefore, one can propose that Brazil
and Germany should consider as a necessary contribution the technical cooperation
in defense studies. Both of them are federal republics and hold a substantital share
of their scholarship on public universities. German and Brazilian exchanges in
expertise, education and training of civilian defense analysts, managers and
economists is not just a cheap and relevant contribution in itself, but their fruits shall
enlarge the pool of experts to think and propose instances of cooperation between
their two regions, expanding the possibilities even beyond technical defense issues.

Bibliographical References

BIGALKE. Ungeliebt Militärforschung. Süddeutsche Zeitung, 27 fev. 2012.

CRAIG, G. The Political Leader as Strategist. Makers of Modern Strategy.


Princeton: Princeton University Press, 1986. p. 481–509.

367
DUARTE, É. Uma Análise Logística da Estratégia Nacional de Defesa. V Encontro
Nacional da ABED. Fortaleza, 2011

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University Press, 1943.

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4, p. 481, dez. 1940b.

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Military Institute, v. 4, n. 4, p. 199–208, 1940a.

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Cidadania, v. 3, n. 12, 2012.

MARISCHKA. Die Offensive der Kriegsforscher. IMI-Standpunkt, 29 fev 2012.

PERON, A. O programa F-X2 da FAB: um estudo acerca da possibilidade de


ocorrência dos eventos visados. Campinas: Universidade Estadual de Campinas,
2011.

PROENÇA JÚNIOR, D.; DINIZ, E. The Brazilian Conceptualization of Security. In:


BRAUCH, H. (Ed.). Globalization and Environmental Challenges:
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PROENÇA JÚNIOR, D. DUARTE, É. Os Estudos Estratégicos como Base Reflexiva


da Defesa Nacional. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 50, n. 1, p. 29–
46, 2007.

SCHMID, J. Forschungslücke Krieg – Risiko für den Frieden? Über die friedens- und
sicherheitspolitische Notwendigkeit einer wissenschaftlichen Befassung mit Krieg.
Zeitschrift für Außen- und Sicherheitspolitik, v. 6, n. 2, p. 227–248, 2013.

YOUNG, T. D. German national command structures after unification: A new German


general staff? Armed Forces and Society, v. 22, n. 3, p. 379, Spring 1996.

368
A ARTICULAÇÃO ENTRE A DEFESA E O ORÇAMENTO:

UMA MOLDURA TEÓRICO-CONCEITUAL

Flavio Neri Hadmann Jasper

1 Introdução

O princípio da escassez é o fundamento da ciência econômica. Somente


porque os recursos são escassos, face às amplas e variadas necessidades
a que devem atender, é que se justifica a preocupação de utilizá-los de
forma racional e eficiente. (HOLANDA, 1975, p. 35).

A Escola Superior de Guerra (ESG) destaca que a Segurança é uma ―[...]


necessidade, uma aspiração e um direito inalienável [...], bem como o Estado é que
é o grande responsável pela Segurança de todos [...]‖ (BRASIL, 2009 (b), p. 59-69).

Nilson Holanda aponta que as necessidades de uma Nação são amplas e variadas,
enquanto os recursos que ela produz, usualmente, são escassos e insuficientes para
atender a todas as demandas (HOLANDA, 1975, p. 35).

A Segurança é uma necessidade que está sempre presente sendo a proteção de um


povo da ambição e das necessidades de recursos de outros povos e nações.

Alsina Jr.(2009) destaca que, na atualidade, o conceito de Segurança teria outras


dimensões como a social e a ecológica além das tradicionais dimensões como a
econômica, a política e a militar. Na visão de Alsina Jr., os conceitos de Segurança e
Defesa se interpenetram, pois não seriam construtos estanques.

Portanto, enquanto que, no conceito tradicional de Defesa, a visão se concentra na


expressão militar (as Forças Armadas), o conceito atual caminha para uma
extensão, como dito acima, de outras expressões do país, dentre estas também, a
cibernética, energia e, mais recentemente, a preocupação com o narcotráfico.

369
Para que o Estado tenha capacidade de prover Segurança é necessário que haja
articulação em nível de Estado, a qual deve ocorrer entre os três Poderes:
Executivo, Legislativo e Judiciário.

Komesar (1994) destaca que, em termos de Política Pública, as alternativas devem


ser visualizadas como opções institucionais, nas quais se deve evitar visões
restritivas que enfoquem apenas um campo, seja ele o do Legislativo (elaboração
das leis), Econômico (eficiência da aplicação de recursos, função do Executivo) ou
obrigatoriedade do cumprimento das leis (Judiciário).

O artigo irá explorar essa vertente, os conceitos relativos à Teoria do Estado e os


conceitos referentes à Segurança, não só no âmbito das teorias sobre Traditional
Security Studies(TSS) e Critical Security Studies(CSS), mas também sobre os
Non Traditional Security Studies (Non TSS) para demonstrar que a ideia de
Segurança não se resume mais às Forças Armadas, cuja amplitude perpassa
outros setores do Estado Nacional, cuja articulação deve se dar em nível da
Política e Estratégia de Defesa, incluindo-se nesta os atores representativos das
demais dimensões já citadas.

Finalmente, o artigo procurará demonstrar a necessidade de que essa articulação se


estenda para o orçamento, uma vez que os recursos de um Estado, no mundo
ocidental, são representados pelo orçamento de um governo (budget) e divididos em
várias ―ações‖ que representam as parcelas destinadas ao custeio das despesas do
Estado com: Pessoal, Saúde, Educação, Transportes, Ciência e Tecnologia e
Segurança (Defesa).

2 O Estado como Responsável pela Defesa

O artigo dará ênfase à visão tradicionalista de Segurança (Traditional Security


Studies - TSS), onde a primazia da Segurança Nacional e da Defesa é do Estado.

Por que a importância de se dar ênfase ao papel do Estado como ator relevante no
contexto da Defesa?

370
Segundo a teoria contratualista, de Hobbes e Rousseau, o Estado passou a existir
porque os homens, ancorados em pressupostos racionais, deixaram de impor
autonomamente sua própria vontade sobre os demais, repassando essa autoridade
para um terceiro ente, o Estado, capaz de impor juridicamente (Direito Positivo) a
sanção sobre aqueles que se recusassem a seguir as regras definidas por uma
determinada sociedade (REALE, 2002).

Todavia, o papel do Estado soberano tem sido bastante discutido, uma vez que outros
atores, mormente no mundo globalizado atual, tem-se inserido no cenário, interferindo na
capacidade de o Estado Nacional dar efetividade às Políticas Públicas.

Nesse contexto, Dupas (2002, p. 83) descreve que as grandes empresas


transnacionais geraram um sistema global de produção, intercâmbio e acumulação
cada vez menos sujeito à autoridade central e com possibilidade de subverter os
mecanismos estatais aos próprios interesses, gerando crescente perda da
capacidade reguladora dos Estados Nacionais.

Acresça-se a influência marcante das Organizações não Governamentais (ONG),


muitas com matrizes fora do território nacional e movidas por interesses próprios,
como por exemplo, ecologia e preservação ambiental e verificar-se-á que o conceito
de Estado Soberano (soberania), de fato, torna-se, relativizado.

Porém, mesmo com essa visão, por que o Estado continua a ser importante?

Porque o Estado soberano continua sendo a entidade detentora, por excelência, da


sanção organizada e garantida, sendo a organização da Nação em uma unidade de
poder, onde as sanções serão impostas segundo uma proporção objetiva e
transpessoal (REALE, 2009).

Alsina Jr. (2009, p. 34) enfatiza que ―Sem o controle sobre os meios de coerção
passíveis de serem utilizados para a imposição da autoridade legítima e a
manutenção da soberania sobre um determinado território, o Estado tende a
fragmentar-se‖.

371
Clausewitz identificou que as sanções de um Estado, aí incluídas as ações bélicas,
poderiam ser apenas os reflexos de sua política externa, ou seja, ―[...] a guerra é a
continuação da política por outros meios‖ (apud PARET, 2001, p. 271).

Portanto, o general prussiano já caracterizava a necessidade de uma articulação


entre a Política de Defesa e a Política Externa. Por isso, Paret (2001, p. 288)
esclarece que o trabalho de Clausewitz não está focado na substância da política,
mas ―[...] na efetividade com que o governo direciona seus recursos militares para
atingir seu propósito político‖.

E como o Estado brasileiro trata, normativamente,o problema da Política de Defesa


e aonde dever-se-ia procurar o delineamento dessas políticas públicas?

Seria esperado que as Políticas Externa e de Defesa estivessem com suas linhas
gerais estabelecidas na Constituição da República Federativa do Brasil, pois, nos
artigos 183 a 191, o documento trata das Políticas Urbana, Agrícola, Fundiária e da
Reforma Agrária.

Apesar de a Carta Magna tratar das Forças Armadas, de sua constituição e de seus
deveres (arts. 142 e 143), não tem a preocupação, em nenhum momento, com uma
Política Nacional de Defesa (BRASIL, 1988). O termo Segurança e seu conceito
estão relacionados somente com a preservação da ordem pública e para a
incolumidade das pessoas e do patrimônio público, cuja atuação é feita por
intermédio das polícias (federal, rodoviária federal, civil e militar) e corpo de
bombeiros (BRASIL, 1988).

Visto a norma mater , é possível verificar se existe compatibilidade entre o conceito


de Segurança estipulado na Constituição da República Federativa do Brasil e o
conceito de Segurança e Defesa que o Executivo estipulou na Política Nacional de
Defesa (PND).

A PND foca a Segurança como sendo condição em que o Estado, a sociedade ou os


indivíduos se sentem livres de pressões, riscos ou ameaças, inclusive de
necessidades extremas, e a Defesa, por sua vez, sendo a ação efetiva para se obter
ou manter o grau de segurança desejado (BRASIL, 2005).

372
Os dois termos são assim conceituados no documento:

I – Segurança é a condição que permite ao país preservar sua soberania e


integridade territorial, promover seus interesses nacionais, livre de pressões
e ameaças e garantir aos cidadãos o exercício de seus direitos e deveres
constitucionais;

II – Defesa Nacional é o conjunto de medidas e ações do Estado, com


ênfase no campo militar, para a defesa do território, da soberania e dos
interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas,
potenciais ou manifestas (BRASIL, 2005).

Observa-se, desta forma, uma dicotomia conceitual entre o previsto na Constituição


e o que está estipulado na Política Nacional de Defesa.

E qual seria a causa desse paradoxo?

A resposta está no posicionamento conceitual e político da Assembleia Constituinte


que elaborou os termos da atual Constituição brasileira. O Deputado Federal Raul
Jungmann apontou como causa os efeitos decorrentes do ciclo de intervenção
militar na política, fazendo com que os parlamentares relacionassem a questão da
Defesa com repressão e autoritarismo (BRASIL, 2009a, p. 17).

Em 2008, o então Ministro da Defesa Nelson Jobim confirmou a versão do Deputado


Raul Jungmann ao afirmar que a Assembleia Constituinte da época tinha uma clara
dificuldade de tratar do tema Segurança e Defesa porque, no imaginário dos
constituintes, Segurança estava relacionada com a repressão política da época do
regime militar. Esse fato fez com que o tema não fosse tratado politicamente nos
anos subsequentes (BRASIL, 2009a, p. 8).

Porém, Nelson Jobim destacou que ―os países precisam ter a capacidade de
dizer não, no contexto internacional, e ter a capacidade inclusive de defender
seus interesses econômicos, políticos e sociais com absoluta transparência‖.
Reforçou a ideia dizendo que ―[...] no mundo, só se faz se, e somente se,
tivermos a força da Defesa. É, portanto, a Defesa o escudo do Desenvolvimento
Nacional‖ (BRASIL, 2009a, p. 17).

Esse conceito, também o lema positivista inscrito na Bandeira nacional: ―Ordem e


Progresso‖, é o fundamento da Estratégia Nacional de Defesa (END) insculpido no

373
decreto de aprovação quando declara que ―A estratégia nacional de defesa é
inseparável da estratégia nacional de desenvolvimento‖ (BRASIL, 2008, p. 2).

Clausewitz, em seu livro On War, enfatizou que ―[...] em sentido algum, a arte da
guerra pode ser considerada como preceptora da política, a qual só deve ser aqui
tratada como representante de todos os interesses da comunidade‖ (Livro 8,
Capítulo 6B, p. 606-607, apud PARET, 2001, p. 288).

Alsina Jr. (2009, p. 36) destaca esse aspecto ao realçar a importância entre a
política declaratória de um Estado e sua prática, cuja compatibilidade se revelaria
pela convergência entre o que o Estado expõe como sendo seus objetivos e a
postura no relacionamento com os demais Estados soberanos.

Infelizmente, essa contradição se revela no caso do Brasil, quando declara em sua


Política Nacional de Defesa que um de seus objetivos é ―defender os interesses
nacionais e as pessoas, os bens e os recursos brasileiros no exterior‖ (BRASIL,
2005) e deixa de agir, seja pelos meios diplomáticos ou outras ações, como no caso
da invasão e estatização de instalações de gás pertencentes a estatal brasileira
(Petrobrás) na Bolívia e, mais recente, na estatização da empresa privada nacional
América Latina Logística (ALL) pelo governo de Cristina Kirchner da Argentina
(ARGENTINA..., 2013).

Postura que o Barão do Rio Branco possuía, pois para esse estadista era possível
conceber um projeto de política externa e de defesa que fossem capazes de
conciliar, de forma harmoniosa, direitos e poder. Na questão do Acre, por exemplo, o
Barão do Rio Branco foi capaz de manejar, com moderação, eficiência e
legitimidade, o poder que o Brasil, à época, possuía. Era conhecido, também, pelos
seus esforços para reequipar as Forças Armadas brasileiras desse período, o
Exército e a Marinha. (RICUPERO, 2002, p. 167).

A END estabelece orientações e diretrizes específicas para cada Força Armada. Ao


Exército coube, dentre outras, a responsabilidade pela Guerra Cibernética (BRASIL,
2008) e, conforme a Diretriz Ministerial 014, de 9 de nov. de 2009, a integração e a
coordenação dos setores estratégicos da Defesa. (DA CRUZ, 2012, p. 1).

374
Essa orientação, aliada à necessidade de proteger comunicações e dados durante
os dois eventos internacionais de 2013 e 2014, obrigou o Exército a ativar, em 2010,
o Núcleo do Centro de Defesa Cibernética (CDCiber). O Centro também trabalha em
cooperação com outros órgãos como a Presidência, o Serviço Federal de
Processamento de Dados (SERPRO), Ministérios, Polícia Federal, Agências
Reguladoras e até com empresas privadas.

O nível político da Segurança Cibernética está a cargo do Gabinete de Segurança


Institucional da Presidência da República.

À Marinha, por sua vez, coube proteger o mar territorial brasileiro e para assegurar o
objetivo de negação do mar, a Força deveria possuir ―[...] força naval de
envergadura, contando com submarinos de propulsão convencional e nuclear‖
(BRASIL, 2008, p. 13).

À Aeronáutica coube a proteção do espaço aéreo brasileiro, cujo núcleo, o Comando


de Defesa Aeroespacial (COMDABRA) deveria ser fortalecido e capaz de integrar
todos os meios de monitoramento aeroespacial do país (BRASIL, 2008, p. 20).

No caso da Aeronáutica, existe uma dicotomia conceitual e de definição do detentor


(ou coordenador) dos meiosde monitoramento. O Livro Branco de Defesa destaca
que o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA) é quem realiza a
coordenação do Sistema de Controle do Espaço Aéreo (SISCEAB), do qual o
Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro faz parte. (BRASIL, 2012, p. 73).
Todavia, a END é enfática nesse aspecto e define que o Comando de Defesa
Aeroespacial Brasileiro (COMDABRA) ―[...] será fortalecido como núcleo de defesa
aeroespacial, incumbido de liderar e integrar todos os meios de monitoramento,
incluindo [...] os aparatos de visualização e comunicações‖ (BRASIL, 2008, p. 20),
sendo oSistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro (SISDABRA) uma das camadas
de monitoramento.

Enquanto a END dá importância ao COMDABRA e ao SISDABRA como


coordenadores e detentores dos meios, o Livro Branco os coloca na competência do
DECEA, por meio do SISCEAB. A dicotomia se traduz não apenas no campo
normativo, pois a END é um decreto e precede o Livro Branco, mas também no

375
campo conceitual ao colocar como centro o DECEA, cuja competência está na
missão subsidiária da Aeronáutica (segurança da navegação aérea), ao invés do
COMDABRA, como define a END, detentor da missão constitucional (soberania no
espaço aéreo nacional).

Contudo, essas questões envolvem o campo das ameaças tradicionais, campo de


atuação das Forças Armadas na defesa do Estado.

Questões que envolvem ameaças não tradicionais, as quais, inclusive, são


denominadas de ameaças não militares podem, por vezes, envolver questões
internas de um país.

O Professor GuoXuetang, da Universidade de Shangai, esclarece que as questões


das ameaças tradicionais são relativamente simples comparadas com as questões
das ameaças não tradicionais. O professor GuoXuetang inclui, além das já clássicas
ameaças relativas à economia, meio ambiente, financeira, as que tratam sobre crime
transnacional como o contrabando e narcotráfico, epidemias, imigração ilegal,
pirataria, lavagem de dinheiro, inclusive problemas internos de um país (apud
CRAIG, 2007, p. 102).

De certa forma, esta é a perspectiva da Política Nacional de Defesa que define que
a segurança requer medidas de largo espectro, envolvendo não só a defesa externa,
como também questões da defesa civil, política econômica, segurança pública,
científico-tecnológica, ambiental, de saúde e industrial. Ou seja, áreas que implicam
ações que, em princípio, não estão ligadas com as Forças Armadas (BRASIL, 2005).

Consoante com esta visão, a Estratégica Nacional de Defesa estabelece que a


estratégia de defesa é inseparável da estratégia de desenvolvimento, porque se
o Brasil quiser ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, ―[...] precisará estar
preparado para defender-se não somente das agressões, mas também das
ameaças‖(BRASIL, 2008).

As orientações contidas na PND procuram abranger esse espectro, uma vez que
estabelecem que o ―[...] o Governo poderá determinar o emprego de todas as
Expressões do Poder Nacional, de diferentes formas, visando a preservar os
interesses nacionais‖ (BRASIL, 2005). Nesse contexto, a PND estabelece que a

376
ação diplomática soma-se à estratégia militar da dissuasão, demonstrando que a
ação diplomática deveria ser atuante no sentido de preservar os interesses
nacionais em outros países.

As ameaças de caráter econômico e comercial estão presentes. O cenário atual


demonstrou conflitos econômicos e comerciais, como os evidenciados com o
Equador, Argentina e Bolívia, além de, no contexto atual, termos a situação instável
da Venezuela após a morte de Hugo Chaves.

Enquanto o Brasil deixa de agir segundo sua política de defesa declarada, países
como os Estados Unidos (EUA) e a França agiram de acordo com suas políticas
declaratórias, atuando militarmente para defender seus interesses econômicos e
geopolíticos no Iraque e Mali. Os EUA, por exemplo, foram além, ao deixarem de
atender Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU), quando
confrontados com o dilema de atender aos seus interesses ou pautar-se pelo
interesse coletivo.

Os Estados Unidos, quando ameaçados pelo perigo do terrorismo representado pela


organização Al Qaeda, decidiram abandonar o multilateralismo, devido à
dependência da anuência de terceiras potências e de organismos internacionais,
como a ONU. Sua postura de tomar decisões unilaterais pautou-se na sua condição
de superpotência que possui poder para impor-se. Além disso, considera-se
moralmente justificada porque, em sua visão, seus interesses nacionais
correspondem aos interesses dos povos civilizados em geral, mormente, do
Ocidente (JAGUARIBE, 2002).

Mas não é apenas na política externa que falta ao Estado brasileiro conciliar a prática
com sua política declaratória. Eventos internos também marcam esse divórcio.

3 A Importância do Orçamento para a Defesa

Faz sentido reforçar os investimentos em defesa num país que não é


assombrado pelo fantasma da guerra e no qual falta dinheiro para a saúde,
educação, saneamento e infraestrutura? (FERRAÇO, 2013).

377
A primeira questão que se apresenta é: o que é o orçamento?

Juridicamente, o orçamento público é consubstanciado em uma lei ordinária, de


validade anual, que exprime, em termos financeiros e técnicos, as decisões políticas
na alocação dos recursos da Nação, no qual são estabelecidas as ações e
programas considerados prioritários para atender às demandas da sociedade.
(CONORF, 2002). A Constituição Federal prevê, no artigo nº 165, que o
planejamento do Estado brasileiro se consolide por meio de três leis de iniciativa do
Poder Executivo: (a) o Plano Plurianual (PPA); (b) a Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO); e (c) a Lei Orçamentária Anual (LOA) (BRASIL, 1988).
Esses documentos devem guardar relação entre si, uma vez que o PPA estabelece
objetivos e metas quadrienais, enquanto a LDO os estabelece para o ano fiscal
subsequente, traduzidos na LOA. Portanto, o orçamento de um país é a
consolidação não apenas do seu planejamento, mas a possibilidade de que as
políticas públicas sejam implantadas.

A PND destaca que o Brasil deve ter Forças Armadas modernas e com crescente
profissionalização, devendo estar dotadas de pessoal e material compatíveis com os
planejamentos estratégicos e operacionais (BRASIL, 2005).

Porém, Da Silva (2000, p. 14) destaca que os objetivos da política econômica e


a contenção de gastos e investimentos públicos influenciaram sobremaneira a
Política Externa e de Defesa, fazendo com que fossem relegadas a segundo
plano, principalmente nos primeiros governos da Nova República que visaram
consolidar a estabilização financeira e realizar o ajuste macroeconômico. Em
sua análise, Da Silva (2008, p. 14) antecipa a visão de Ferraço (2013) de que as
carências do povo brasileiro, aliadas ao ambiente de estabilidade política da
América do Sul contribuíram para que os documentos que trataram sobre
política de defesa fossem mera retórica.

O Deputado Federal Raul Jungmann, no Prefácio da Separata de Discursos,


Pareceres e Projetos da Frente Parlamentar de Defesa, destacou que existiria um
paradoxo envolvendo a Defesa Nacional, uma vez que as Forças Armadas gozavam
de elevado prestígio junto à sociedade brasileira, mas não possuíam a atenção
adequada por parte do Executivo e do Legislativo (BRASIL, 2009a).

378
Dentre as causas da desatenção com a Defesa Nacional estariam: (a) a ausência de
benefícios político-eleitorais para os parlamentares (não dá voto); (b) inexistência de
riscos reais à defesa e a soberania nacional; (c) baixo perfil decisório e
complementar do Legislativo que teria função coadjuvante em face do Executivo; (d)
efeitos decorrentes do ciclo de intervenção militar na política, fazendo com a atual
elite no poder (e a própria oposição) relacione a questão da Defesa com repressão e
autoritarismo; e (e) o próprio despreparo da classe política com o tema, também
resultante das causas citadas anteriormente.

O Senador Jayme Campos (relator da matéria), na sua conclusão do Parecer nº


51, de 2012-CN, destacou exatamente o baixo perfil decisório e complementar do
Legislativo na questão da Defesa afirmando que ―[...] uma maior participação do
Congresso Nacional deve ocorrer, tanto em sua elaboração, quanto na
fiscalização do Poder Executivo no que concerne às medidas adotadas para
garantir a Segurança e Desenvolvimento, essenciais à nossa Defesa Nacional‖
(BRASIL, 2012).

A Orientação Estratégica do Governo no PPA 2004-2007, estabeleceu que ―[...] não


é possível conceber um sistema de defesa do país sem contar com a existência de
uma estrutura militar voltada para essa destinação específica [..]‖. O documento
enfatizou, ainda que [...] a criação e a manutenção de uma estrutura com tais
objetivos exigem política determinada, investimentos significativos e planejamentos
de longo prazo‖ (BRASIL, 2004, p. 64).

Contudo, as Forças Armadas, além de não receberem os recursos necessários são,


usualmente, contingenciadas naqueles que lhe são destinadas no orçamento da
União. A exceção atual fica por conta da área cibernética que deve receber, até
2015, R$ 400 milhões (MÜLLER, 2013) para fazer frente às necessidades de
proteger as redes públicas durante os eventos esportivos de 2013 (Copa das
Confederações) e 2014 (Copa Mundial de Futebol).

Ferraço (2013) destacou o Sistema de Monitoramento de Fronteiras , um dos


projetos estratégicos do Exército e que estaria orçado em R$ 12 bilhões. Todavia,
enfatizou que, em função do contingenciamento de recursos, foram liberados
somente R$ 172 milhões em 2012 e que, dos R$ 876,1 milhões previstos para 2013,

379
foram disponibilizados, na LOA de 2013, somente R$ 240 milhões. De acordo com
seus cálculos, no ritmo de liberação de recursos atual, o projeto pode levar mais de
50 anos para ser concluído (FERRAÇO, 2013). O SISFRON tem como um de
seusobjetivos o combate ao narcotráfico, justamente um dos elementos citados pelo
Professor GuoXuetang como elencado na vertente não tradicional da Defesa.

Borges (2013), destaca que o Exército (EB) pretenderia incluir seus projetos no
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) por acreditar que lá inclusos não
estariam sujeitos a contingenciamento. Todavia, Borges (2013) também destaca que
projetos do EB inseridos no ano anterior (2012), não teriam recebido os recursos
necessários e que, em 2013, não estariam mais constando do PAC. Demonstra a
falta de integração entreos vários documentos de planejamento, o abandono da
estrutura prevista na Constituição e das diretrizes e conceitos estipulados nas
Orientações Estratégicas delineadas para a Defesa no PPA 2004-2007.

Outro exemplo é o da Aeronáutica com o programa para a aquisição de novos


vetores para a Defesa Aeroespacial, o Programa de Reaparelhamento da Força
Aérea Brasileira (PROFAB). O programa se arrasta desde o governo de Fernando
Henrique Cardoso. O contingenciamento de recursos para as Forças Armadas foi
objeto de Tomada de Contas (TC) do Tribunal de Contas da União (TCU), TC nº
009.958/2003-5, e de Parecer do Congresso Nacional, Parecer nº 31, de 2011-CN,
de 19 de maio de 2010.

O TCU, no Acórdão da Tomada de Contas de 2003, analisou ―[...] as


consequências do contingenciamento de recursos, a situação atual dos projetos e
o impacto gerado pelo atraso da execução do Programa F-X para a Força Aérea‖
(BRASIL, 2003). Em sua conclusão, o TCU frisou que o atraso na execução do
Projeto F-X era deletério para a missão da Força Aérea Brasileira (FAB) e que
comprometia o centro de poder da Nação (BRASIL, 2003). O Tribunal ressaltou,
ainda, em sua Conclusão (item 152), que gastos militares podem ter reflexos
sociais positivos, tendo permitido a EMBRAER tornar-se a quarta empresa de
aviação comercial no mundo, contribuindo para que o país gerasse empregos e
superávits na Balança Comercial (BRASIL, 2003).

380
A Marinha (MB) sofre os mesmos problemas das demais Forças Armadas,
principalmente com o projeto do submarino nuclear.

No Parecer nº 31, o Relator, Deputado Federal Rômulo Gouveia, destacou que ―[...]
dada a gravidade dos fatos e a cogência em estabelecer um futuro [...] em favor dos
projetos [...] estratégicos ao País, [...] tendo por pano de fundo resguardar tanto a
Defesa nacional, quanto a Soberania do Estado [...] que tais programas deveriam
estar protegidos por dispositivos legais que possam garantir-lhes sua sustentação
[...]‖ (BRASIL, 2010, p. 4).

Ora, o Congresso é o responsável pela elaboração das leis do PPA e da LOA e


fiscal, por meio do TCU, do Executivo. Portanto, essa desarticulação demonstra,
como apontou o Deputado Raul Jungmann, que a Defesa não é um tema de
interesse dos parlamentares. É evidenciado, inclusive, pela demora com que os
problemas são analisados. A Auditoria do TCU ocorreu em 2002, o Parecer nº 31
teve sua conclusão em 10 de maio de 2010, publicado em 2 de agosto de 2011 e
sem efeito prático até a data atual, uma vez que, neste ano (2013), o orçamento foi,
mais uma vez, contingenciado.

Esses aspectos evidenciam a dicotomia, no que tange aos aspectos internos do


Estado Brasileiro, com respeito a política declaratória da PND, da END, das
orientações contidas nos Planos Plurianuais e a prática demonstrada no aporte de
recursos no Orçamento Geral da União (OGU).

Todavia, o embaixador Samuel P. Guimarães (2004, p. 47), em suas reflexões sobre


Defesa e Segurança, já alertava que:

[...] à medida que empresas brasileiras se internacionalizam,os


interesses políticos do Brasil em outras regiões se tornam cada vez mais
complexos e reais, e menosretóricos, e a eficiência na defesa desses
interesses têm uma faceta de natureza militar;

[...]

[...]as despesas com segurança não têm, na maior parte dos países,
nenhuma relação com inimigos ou ameaças próximas, mas sim com
seus interesses de natureza política e econômica global. As despesas
militares dos Estados Unidos nada têm a ver com ameaças mexicanas ou
canadenses e as despesas da França nada têm a ver com a Espanha ou
com a Alemanha (grifo nosso).

381
Portanto, despesas com a Defesa não só atendem às necessidades de proteção dos
interesses nacionais, inclusive no exterior, como são investimentos que geram
emprego, renda e superávit comercial, fator que, nos dias atuais, o país tanto
necessita.

4 Conclusão

O presente artigo teve como objetivo demonstrar a necessidade de que o Estado


brasileiro tenha suas ações no campo da Defesa e Segurança Nacional coerentes e
articuladasde forma que essas políticas públicas possam ter os recursos
necessários para que sejam implantadas.

O primeiro aspecto evidenciado pelo artigo é a dicotomia existente entre a política


declaratória estipulada nos vários documentos do Estado Brasileiro e a sua prática,
seja no campo externo, quanto no campo interno.

No campo externo, o país não age com a firmeza necessária para assegurar
proteção aos seus interesses no exterior, quando não se articula para proteger bens
e empresas nacionais estatizadas por países como a Bolívia e a Argentina.

No campo interno, a política declaratória evidenciada na PDN, END e nas


Orientações Estratégicas dos Planos Plurianuais não se concretiza nos recursos
necessários que deveriam ser destinados às Forças Armadas para que pudessem
estar preparadas para cumprir sua missão constitucional.

A desarticulação principal está entre o Legislativo e o Executivo que não cumprem o


previsto na Constituição na elaboração das leis que aprovam o PPA, a LDO e a
LOA, principalmente no que se refere à integração entre os objetivos e metas
quadrienais definidos nos PPA e suas respectivas contrapartes estipuladas na LOA,
bem como na alocação dos recursos propriamente ditos. O Legislativo, por exemplo,
aprova um quantitativo de recursos na LOA e, logo em seguida, o Executivo
contingencia o orçamento estabelecendo novas regras e prioridades de gastos.

382
A falta de integração incorpora, ainda, objetivos que transcendem as Forças
Armadas, quando, no campo interno, contingencia recursos destinados ao SISFRON
do Exército que contribui para o combate ao narcotráfico.

Finalmente, essa desarticulação incorpora a Política Econômica, Comercial e


geração de emprego e renda, quando deixa de atribuir recursos para as compras
governamentais no campo da Defesa em empresas nacionais como a EMBRAER,
AVIBRÁS e outras.

Como o TCU enfatizou em seu Acórdão (item 152)―[...] gastos militares podem ter
reflexos sociais positivos‖ (BRASIL, 2003).

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383
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385
SEGURANÇA E DEFESA NOS BRICS: É POSSÍVEL UMA AGENDA COMUM? 133

Giovanni Hideki Chinaglia Okado134

1 Introdução135

Estou certa de que o século XXI será de afirmação do mundo em


desenvolvimento. [...] Seremos, BRICS, África e América do Sul,
protagonistas decisivos deste novo cenário histórico de uma cultura de paz,
de solidariedade, de justiça social e de cooperação fraterna (BRASIL,
online).

Estas foram as palavras de encerramento do discurso da presidenta Dilma Rousseff


durante sessão de trabalho da V Cúpula dos BRICS, em Durban, África do Sul, e tão
logo acarretam algumas indagações importantes: como será o século XXI? Que
papel desempenharão os BRICS nas relações internacionais? E que importância e
função o grupo terá nas agendas de cada país membro?

Respostas para estas perguntas são condicionantes para a reflexão que ora se
propõe: analisar o possível estabelecimento de uma agenda comum em segurança e
defesa136 nos BRICS. Em seu discurso na ocasião, a suprema mandatária brasileira
também destacou que os países desse arranjo político-diplomático, mesmo em sua
diversidade, estão unidos pela capacidade de enfrentar grandes problemas
mundiais. Ao comentário da presidenta, acrescenta-se a ponderação do presidente
Jacob Zuma, anfitrião desta cúpula, de que os BRICS constituem um grupo crível e
construtivo que devem forjar um novo paradigma de relações globais e cooperação.
Fato é que um dos grandes problemas mundiais advém justamente das dinâmicas
conflituosas e/ou desestabilizadoras no campo da segurança internacional e do
133
Este artigo apresenta argumentos e opiniões pessoais do autor, que não devem ser interpretados como posições
da instituição à qual ele está vinculado.
134
Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.Secretaria de Assuntos Estratégicos da
Presidência da República.
135
O autor agradece ao Primeiro-Secretário Henri Yves Pinal Carrières, que atualmente está servindo na Seção de
Política da Embaixada do Brasil em Nova Déli, por esclarecimentos e informações a respeito da Índia e da
China. Sua ajuda foi fundamental para escrever este artigo.
136
Adota-se, neste artigo, a definição de “segurança” e “defesa” presente na Política de Defesa Nacional de 2005,
que, em essência, é consonante com as definições presentes nos documentos dos outros BRICS.

386
esgotamento do paradigma intervencionista dos Estados Unidos e da Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) nesse campo, em vigência desde o término da
Segunda Guerra Mundial.

O argumento central deste artigo é que uma aproximação em matéria de segurança


e defesa nos BRICS serve, simultaneamente, a dois propósitos. O primeiro deles, de
ordem interna ao grupo, é que essa aproximação poderia, se não eliminar, atenuar
as rivalidades e desconfianças – algumas delas com perspectivas de resolução pela
utilização da força – entre os países membros, sobretudo entre China e Índia, e
avançar no grau de institucionalização do agrupamento. O segundo, de ordem
externa, é que uma agenda comum nessa matéria permite a proposição de um novo
paradigma de segurança internacional, em contraposição ao vigente, o que contribui
para a solução de problemas globais e fortalece o próprio papel dos BRICS na
política mundial. Fortalecendo o grupo, cada país, individualmente, também se
fortaleceria e passaria a concebê-lo não apenas como um instrumento para a
realização de interesses nacionais, mas também como uma instância para a
promoção de interesses coletivos, quiçá globais. Para iniciar a análise e apresentar
esse argumento, é fundamental pensar nas tendências futuras, compreender o
ambiente estratégico internacional e prospectar como os BRICS se projetam nele, o
que será realizado na sequência.

2 O ambiente estratégico no século XII: dinâmicas de segurança e os BRICS

O mundo está em transformação. Estudos prospectivos, como os do National


Intelligence Council (NIC), do European Union‘s Institute for Security Studies
(EUISS) e do Institute of World Economy and International Relations (IMEMO),
sugerem uma ―transformação radical‖ (NIC, 2012), um ―sistema internacional
irreconhecível‖ (NIC, 2008) ou uma ―governança global em conjuntura crítica‖ (NIC;
EUISS, 2010) no horizonte temporal compreendido entre 2025 e 2030. Um pouco
mais cautelosa é a análise do IMEMO, que considera a ocorrência de mudanças e
choques menos radicais nas próximas duas décadas quando comparados com os
vinte anos anteriores (DYNKIN, 2011). Em comum, todos eles apresentam a
tendência a um mundo multipolar, marcada pela difusão global do poder tanto entre

387
países – especificamente daqueles já consolidados para os que estão em ascensão
– quanto entre eles e atores não estatais.

Diante dessa multipolaridade, ―assimétrica‖ – como definiu o ministro da Defesa do


Brasil em um de seus discursos – e talvez ―sem multilateralismo‖ – expressão
empregada no Global Trends 2025 –, questões como a influência e o papel dos
Estados Unidos no sistema internacional, a eficiência e eficácia da governança
global, a escassez de recursos alimentares, hídricos e energéticos, o aumento da
pressão demográfica, entre outras, tornam-se sintomáticas. Elas despertam a
inquietação quanto à ocorrência de conflitos futuros e, ao mesmo tempo, reforçam a
necessidade da cooperação para enfrentar grandes desafios globais. Esse é o
ambiente estratégico em que os cinco países estarão imersos.

Em verdade, até o momento, os BRICS não detêm um grau de institucionalização


que permita considerá-los como um bloco estruturado e coeso137. Como recordaria
Almeida (2010, p. 132), trata-se do primeiro grupo político ―constituído a partir de
uma sugestão teórica de um economista corporativo, e não por iniciativa original dos
próprios Estados envolvidos‖. Sem o que esse autor denominou ―appeal geopolítico‖,
isto é, o surgimento desse acrônimo inovador, dificilmente os países teriam se
aproximado. Ainda, para Almeida (2010, p. 134), os BRICS são ―uma realidade a ser
construída na prática, o que depende, em primeiro lugar, dos próprios interessados,
tanto quanto do contexto internacional em mutação na atualidade‖. Não por acaso,
percebem-se ceticismos com relação ao agrupamento, a exemplo do que se verifica
em Rocha (2012, p. 96):

Eis que isso sintetiza o que os BRICS lograram construir ao longo dos
últimos anos, um fórum de que se valem os governos para se informar
acerca de seus respectivos interesses e posições, a fim de que, quando
lhes convier, possam seguir na mesma direção. Equivoca-se quem espera
desse agrupamento uma ação estratégica de longo prazo, na qual a
unidade de um possível bloco esteja acima dos interesses de suas partes.
Trata-se apenas de um espaço que convém a governos pragmáticos, os
quais habilmente permitem que outros lhe atribuam mais articulação interna
do que ele de fato possui no ambiente internacional.

137
Como exemplos, citam-se a ausência de um secretariado e de um fundo que financie as atividades do grupo.

388
Só ao final da década passada é que os BRICS passaram a se organizar política e
diplomaticamente, com a realização de cúpulas, reuniões ministeriais e demais
fóruns. Caso a vontade política das lideranças de cada país seja construir a
realidade na prática, aprofundando a cooperação no agrupamento e superando o
pragmatismo de seguir a mesma direção apenas por conveniência, então, torna-se
necessário olhar para frente. É preciso que os tomadores de decisão identifiquem
pontos convergentes, reflitam sobre como os BRICS responderão aos grandes
desafios globais – muitos deles desagregadores do próprio arranjo – e estabeleçam
uma agenda comum. A título de ilustração, um dos cenários futuros esboçados pelo
Global Trends 2025, intitulado ―BRICs‘ Bust-Up‖, versa sobre o acirramento das
disputas por recursos, com perspectivas de se desdobrarem em conflitos,
principalmente entre China e Índia (NIC, 2008).

A propósito, em se tratando da segurança internacional, visualiza-se uma importante


área que incrementaria a cooperação nos BRICS e que deveria ser sopesada no
cálculo estratégico dos governos dos cinco países. Ao término da Guerra Fria,
Buzan e Wæver (2003) argumentaram que passou a existir uma arquitetura de
segurança internacional ―1 + 4‖, com uma superpotência, os Estados Unidos, e
quatro grandes potências, União Europeia, Japão, Rússia e China. O que as diferem
é o alcance de atuação: enquanto a primeira atua globalmente, as outras
conseguem interferir nas regiões que lhes são adjacentes. Ambos os autores são
céticos quanto à emergência de uma nova arquitetura no século XXI, como um
possível ―2 + 3‖, conferindo à China o status de superpotência. Ora, entre vários
questionamentos acerca dessa arquitetura, sua continuidade parece pouco provável,
dada as limitações do paradigma intervencionista EUA-OTAN, que, não só está em
vigência, como também foi reforçado por esses países, porém, está longe de
oferecer soluções às crises atuais.

Dois anos após a OTAN publicar seu novo Conceito Estratégico, prevendo atuar
globalmente à medida que os interesses de qualquer país da aliança estivessem
ameaçados, o governo norte-americano lançou o documento ―Sustaining U.S. global
leadership: priorities for 21st century defense‖. Nele, definiu que interesses
econômicos e de segurança do país estão ligados a desenvolvimentos que se
estendem do Pacífico Ocidental ao Leste da Ásia e do Oceano Índico ao Sul da

389
Ásia. Além disso, afirmou-se que, com o propósito de contribuir para a segurança
global, seria preciso um novo balanço na região Ásia-Pacífico. Isso traz implicações
para China, vista com suspicácias pelos Estados Unidos, e para Índia, com quem a
superpotência espera reforçar a cooperação. Mantendo a postura intervencionista,
no que se refere à contenção do terrorismo e da guerra irregular, previu-se esforços
que conjugassem ação direta e assistência a forças de segurança (USA, 2012, p. 2-
3). Novamente, essa postura pode se contrapor ao posicionamento e interesses dos
BRICS, individual e coletivamente.

Os Estados Unidos e OTAN tentam projetar seu velho paradigma em mundo


altamente cambiante, o que é reconhecido em suas estratégias. Não só as ameaças
se tornaram mais complexas, obscuras, difusas e, concomitantemente,
interconectadas, como também as respostas a elas parecem menos eficazes. Além
do terrorismo, pirataria, ataques cibernéticos, tráfico de drogas e de armas, entre
outros, problemas antigos permanecem irresolutos. É caso de conflitos intra-estatais.
Um estudo do Banco Mundial demonstrou que diversos países e áreas subnacionais
sofrem com ciclos repetidos de violência, governança deficiente e instabilidade: 90%
das guerras civis da última década ocorreram em países que, nos últimos 30 anos,
já haviam passado por essa situação (BANCO MUNDIAL, 2011). Exemplo recente
dessa complexidade, e no intento de se buscar uma solução, foi a adoção da
Resolução 2098, que aprovou a criação de uma inédita ―brigada de intervenção‖ no
âmbito da MONUSCO, na República Democrática do Congo (RDC).

Em meio a esse ambiente de incertezas no campo da segurança internacional, fatos


importantes estão em curso. Hoje, são os países em desenvolvimento que
aumentam rapidamente seus gastos militares, enquanto os países desenvolvidos os
elevam timidamente, quando não os diminuem. Já se questiona sobre o início de
uma mudança no balanço dos gastos militares mundiais, deixando de se concentrar
no Ocidente. Se, por um lado, França, Alemanha e Itália, no período de 2003-2012,
diminuíram, respectivamente, em 3,3%, 1,5% e 19% de seus gastos militares – o
Reino Unido os elevou em 4,9% –, por outro, nesse mesmo recorte temporal, China,
Rússia, Índia e Brasil, aumentaram esses gastos, respectivamente, em 175%, 113%,

390
65% e 56% (PERLO-FREEMAN et al., 2013). Em 2012, a soma dos gastos militares
dos países dos BRICS alcançou o montante de 340,4 bilhões de dólares, o que
correspondeu a 19,4% dos gastos militares mundiais, ao passo que essa soma entre
os países da OTAN – excetuando os EUA – atingiu 308,2 bilhões de dólares, o que
equivaleu a 17,6% dos gastos militares mundiais138.

À semelhança do que ocorrem com os gastos militares globais, novos padrões


podem surgir em matéria das transferências internacionais de armas. Comparando
os períodos 2003-2007 e 2008-2012, a China aumentou suas exportações de armas
convencionais em 162% e ultrapassou o Reino Unido, tornando-se a quinta do
ranking nesse quesito – a Rússia é a segunda –, ao aumentar sua participação
global de 2% para 5%. Esta é a primeira vez que um país de fora da Europa ou da
América do Norte aparece nas cinco primeiras posições. Também é inédita a
mudança nos cinco principais supridores desde o término da Guerra Fria (BROMLEY
etal., 2013). Quando se observa o ranking global das cem maiores empresas de
defesa em 2011, percebe-se que quase 75% delas são norte-americanas ou
europeias. Onze dessas empresas são de países dos BRICS: sete da Rússia, três
da Índia e uma do Brasil – por falta de dados precisos, o levantamento não inclui as
empresas chinesas, que certamente elevariam esses números.

Os fatos apresentados requerem, todavia, cautela analítica. Gastos militares, por


exemplo, não representam necessariamente poder militar. Isso não exime a
provocação que a questão acarreta. Ao refletir sobre as capacidades de defesa que
a União Europeia deverá desenvolver entre 2013 e 2025, estudiosos do EUISS
lançaram a seguinte pergunta: ―how dangerous is it when Europe‘s combined military
spending keeps falling while almost all other continents‘ defence expenditure keeps
rising?‖ (MISSIROLI, 2013, p. 13). Em um contexto de crise e contenção dos gastos
militares, esses estudiosos defendem que, para manter sua autonomia estratégica, a
Europa trabalhe de maneira conjunta, seja para desenvolver capacidades, seja para
conter riscos.

Essa reflexão a respeito do futuro, em particular sobre segurança e defesa, é


absolutamente incipiente nos BRICS. Pouco claro é o papel que o grupo

138
Os dados foram coletados no SIPRI Military Expenditure Database.

391
desempenhará no mundo multipolar assimétrico e não necessariamente multilateral
do século XXI, se lidarão conjuntamente ou não com grandes desafios globais e que
contribuições darão à segurança internacional. As dinâmicas contemporâneas neste
campo demonstram que a arquitetura ―1 + 4‖ está caduca, mas uma nova ainda é
desconhecida. Fica a dúvida sobre como os BRICS atuarão à medida que as
estratégias norte-americana e da OTAN chocarem-se com interesses individuais ou
coletivos do grupo. É possível que se concretize uma das visões do estudo do
IMEMO (DYNKIN, 2011, p. 11), em que as relações entre grandes potências se
caracterizem pela cooperação na resolução de problemas de segurança globais,
mas pela rivalidade quanto aos modos de resolvê-los. Uma aproximação inicial, para
se pensar a respeito das posições que o agrupamento assumirá no futuro com
relação aos desafios da segurança internacional, é analisar a evolução de temas de
segurança e defesa em sua cúpulas e reuniões ministeriais sobre segurança
nacional, objetivo da próxima seção.

3 Das Cúpulas às reuniões ministeriais sobre segurança nacional:


preocupações comuns e lacunas

Em uma palavra, poderiam ser resumidas as declarações das Cúpulas dos BRICS e
as três reuniões ministeriais sobre segurança nacional: repetição. Uma repetição
que, ao mesmo tempo, parece cumprir dois propósitos. O primeiro deles, de
natureza objetiva, é demonstrar as preocupações comuns dos cinco países e deixar
claro qual a posição do agrupamento acerca de determinados temas de segurança
internacional. O segundo, subjetivo, é estabelecer os limites dessa coordenação de
posições. E isso, por sua vez, deixa lacunas que precisam ser superadas para
fortalecer a cooperação intra-grupo em matéria de segurança e defesa.

As declarações decorrentes das cinco cúpulas dos BRICS afiguram-se, na verdade,


mais uma carta de intenções do que um documento condicionante da atuação do
agrupamento. Apenas as declarações das últimas cúpulas, Nova Déli e Durban,
respectivamente, geraram planos de ação, que, na prática, apresentaram as
reuniões que seriam realizadas até o próximo encontro. Em geral, os documentos
declaratórios são marcados, sobretudo, pela preocupação com a economia mundial

392
em contexto de crise e pela necessidade de reforma das principais instituições
financeiras internacionais – o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial (BM). Outros temas, como desenvolvimento, combate à pobreza,
mudança climática, energia, etc., embora presentes na agenda, aparentam
catalisar poucos esforços dos cinco países – com exceção de agricultura e
saúde. Já questões de segurança internacional, por sua vez, parecem ter
adquirido maior relevância na pauta das cúpulas, porém, sem um tratamento
setorial no grupo à altura desse movimento.

A reforma das Nações Unidas, inclusive de seu Conselho de Segurança, e o


terrorismo foram os dois temas recorrentes de segurança internacional. Com relação
ao primeiro, os BRICS expressaram um forte comprometimento com a diplomacia
multilateral da ONU e a consideraram como o ator central para lidar com desafios e
ameaças globais. Eles defenderam, também, uma reforma abrangente para torná-la
mais eficiente em sua atuação, contudo, Rússia e China limitaram-se a afirmar a
importância do status de Brasil, Índia e África do Sul em assuntos internacionais e
apoiar suas aspirações para exercer um papel maior na ONU. Até agora, esse apoio
não se estendeu, por exemplo, ao pleito de inclusão desses três últimos países
como membros permanentes do Conselho de Segurança. No que se refere ao
segundo tema, a posição do agrupamento, além de condenar atos terroristas em
todas as suas formas e manifestações, foi pela adoção urgente de uma convenção
abrangente contra o terrorismo internacional, que está sob apreciação da
Assembleia Geral da ONU.

Resta claro, nas declarações, que os BRICS primam pelos esforços políticos e
diplomáticos para resolução pacífica de controvérsias e refutam o uso da força e a
intervenção em assuntos internos. Essa é a postura assumida pelo agrupamento
acerca das tensões políticas e estratégicas que se avultam no Oriente Médio e no
Norte e Oeste da África. Na Declaração de Sanya, fruto da terceira cúpula, os
BRICS conclamaram o envolvimento das partes para solução pacífica da crise na
Líbia, com o apoio da ONU e das organizações regionais. As Declarações de Déli e
de eThekwini, que resultaram, respectivamente, da quarta e da quinta cúpulas,
concentraram-se na crise síria, no conflito árabe-israelense e no imbróglio nuclear
iraniano. Consonante à posição assumida no caso da Líbia, os BRICS defenderam a

393
condução do processo político pelos próprios sírios, claramente se opondo a
qualquer manobra intervencionista. Para por termo ao histórico litígio entre Israel e
Palestina, o grupo advogou em benefício da solução de dois Estados, do maior
envolvimento do Conselho de Segurança e das negociações diretas entre as partes.
E, finalmente, quanto ao Irã, os cinco países reiteraram o direito ao uso pacífico da
energia nuclear e condenaram ameaças de intervenção militar e sanções unilaterais.

Entre outras preocupações também externadas pelos BRICS nesses documentos,


como o tráfico de drogas e o terrorismo no Afeganistão e as violações humanitárias
no Mali, na República Centro-Africana e na República Democrática do Congo, o
destaque recai na segurança cibernética. Na Declaração de Sanya, o grupo
expressou seu comprometimento com a cooperação para fortalecer a segurança da
informação internacional, em particular o combate ao crime cibernético. Essa
postura foi incrementada no item 34 da Declaração de eThekwini, que enfatizou a
importância de se adotar normas, padrões e práticas universalmente aceitas para a
segurança no uso de tecnologias da informação e comunicação.

Além das cúpulas, os BRICS organizaram três reuniões setoriais para tratar de
questões de segurança e defesa. A primeira delas foi realizada em Moscou, no dia
29 de maio de 2009; a segunda, em Brasília, no dia 15 de abril de 2010; e,
finalmente, a terceira, em Nova Déli, em 10 de janeiro de 2013. É interessante notar
que os representantes da Rússia e da China, respectivamente, general Nikolai
Patrushev, Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional, e embaixador Dai
Binggo, Conselheiro de Estado, estiveram nas três reuniões. O Assessor de
Segurança Nacional do Primeiro-Ministro da Índia, embaixador Shivshankar Menon,
esteve presente nas duas últimas reuniões e, em todas elas, o Brasil foi
representado pelo Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos
da Presidência da República (SAE/PR)139. A África do Sul participou apenas da
reunião de 2013, representada por seu Ministro de Segurança Estatal, Siyabonga
Cyprian Cwele.

139
O Brasil teve um representante diferente em cada reunião. Na primeira, quem representou foi o ministro
Mangabeira Unger; na segunda, o ministro Samuel Pinheiro Guimarães Neto; e, na terceira, o ministro Moreira
Franco designou o Secretário de Ações Estratégicas da SAE/PR, Ricardo Paes de Barros, para representá-lo.

394
A primeira observação sobre essas reuniões é que os representantes dos BRICS
debateram muito mais questões estruturais das relações internacionais – crise
econômica internacional, reforma das instituições da governança global, etc. – do
que propriamentequestões de segurança e defesa, obliterando a destinação
precípua desses encontros. A segunda observação é que, diferente das reuniões,
por exemplo, dos ministros das Finanças e dos ministros da Agricultura, esta envolve
altos funcionários responsáveis por temas de segurança nacional e não produz um
documento final, seja uma declaração, seja um plano de ação. Trata-se de uma
oportunidade para cada país conhecer, mutuamente, os respectivos
posicionamentos dos demais membros quanto a determinados temas, que
transcendem segurança e defesa, e, minimamente, alinhar perspectivas de
cooperação para o futuro.

Em se tratando do conteúdo dessas reuniões acerca de segurança e defesa, em um


relato da primeira reunião ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro
Mangabeira Unger considerou a revisão do sistema de segurança do mundo, um
dos temas debatidos, como ―o mais importante e talvez o mais delicado‖ 140. Para o
representante brasileiro, configurava-se um sistema parecido com um ―balão‖, que
ora se enchia, ora se esvaziava, à medida que os Estados Unidos e seus aliados,
quando julgavam que algum interesse vital estava ameaçado e consideravam não
ter recebido o tratamento adequado pelo Conselho de Segurança, abandonavam
esse sistema oficial e constituíam, por fora, uma ―coalition of the willing‖. Discutiu-se,
nessa ocasião, dois conjuntos de iniciativas para superar esse abandono frequente.

O primeiro desse conjunto de iniciativas seria reforçar a eficácia do sistema das


Nações Unidas, tanto para resguardar os interesses de segurança das grandes
potências quanto para assegurar a soberania e a independência de todos os países.
Uma das condições necessárias para isso, mas não suficiente, seria ampliar a
representatividade do próprio Conselho de Segurança. O segundo seria aumentar o
custo político da insistência em sair do sistema de segurança do mundo e agir por
fora, visando atenuar, sobretudo, o intervencionismo das grandes potências.

140
O autor teve acesso a documentos internos da SAE/PR e participou, como membro da delegação brasileira, da
III Reunião de Altos Representantes Responsáveis pela Segurança Nacional dos BRICS, em 2013.

395
Outra questão tão delicada quanto a anterior é a nuclear. Na primeira reunião, o
ministro Mangabeira Unger insistiu em colocar o tema do desarmamento nuclear
progressivo dos BRICS; os representantes de Rússia, China e Índia silenciaram. As
opiniões permaneceram divergentes no assunto na segunda reunião. O Assessor de
Segurança Nacional da Índia, embaixador Shivshankar Menon, ao invés do
desarmamento, tratou da não-proliferação e afirmou que o único propósito das
armas nucleares, na atualidade, é o seu caráter dissuasivo. A propósito, quanto a
essa reunião de Brasília, pouco se discutiu sobre temas de segurança e defesa, ao
passo que a terceira, em Nova Déli, seria mais específica, focada no seguinte
temário: a) segurança cibernética; b) terrorismo e pirataria; e c) a situação no Norte
da África e na Ásia Ocidental (esta apenas recebeu alguns comentários).

A segurança cibernética e a pirataria demonstraram – aquela mais do que esta – ser


duas áreas promissoras para o fortalecimento da cooperação dos BRICS em temas
de segurança e defesa. Focando na primeira delas, destaca-se que, com exceção
da África do Sul141, nenhum país do grupo assinou a Convenção de Budapeste, do
Conselho Europeu, que lida com o combate aos crimes cibernéticos, principalmente
por não considerá-la como resultado de um entendimento universal. Em
contraposição, o secretário Paes de Barros, na terceira reunião, propôs, por
exemplo, que o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC, na
sigla em inglês), elaborasse um protocolo internacional para a definição,
investigação e prevenção de crimes cibernéticos. O general Patrushev, na mesma
ocasião, além de solicitar o apoio dos demais países dos BRICS ao esboço de uma
resolução sobre segurança cibernética que o governo russo submeteu à Assembleia
Geral da ONU, sugeriu o estabelecimento de um plano de ação no âmbito do
agrupamento, por meio do qual se constituísse, inclusive, um grupo de peritos para
examinar melhor o assunto.

Após tratar da evolução do temário de segurança e defesa no âmbito dos BRICS, o


próximo passo é analisá-lo nos documentos condicionantes para essas áreas de
cada país do agrupamento, o que será feito adiante.

141
O país assinou este documento em 2001, porém, até agora, não procedeu com a sua ratificação.

396
4 Refletindo sobre segurança e defesa à luz dos documentos nacionais dos
BRICS142

De início, apresentam-se ressalvas metodológicas importantes acerca desta seção.


Em primeiro lugar, a estrutura organizacional e administrativa de defesa, em cada
país do grupo, é diferente e possui suas peculiaridades, porém, por se tratar de um
estudo documental, não se leva em consideração as características dos atores. Em
segundo, há conotações diferentes quanto ao entendimento de política, estratégia,
doutrina e livro branco de defesa, mas, neste artigo, preserva-se o nome conferido a
determinado documento e se atenta para o conteúdo dele. A última ressalva é que,
por razões práticas, os documentos dos países dos BRICS serão analisados,
primeiro, de modo panorâmico e individual e, na próxima seção, de maneira
comparativa, recortando temas comuns que neles são tratados e contrastando-os
com os documentos do agrupamento que tratam de segurança e defesa.

Seguindo a ordem das letras do acrônimo, o Brasil avançou no campo da defesa nos
últimos anos e um dos traços característicos desse avanço é a proposição, revisão e
atualização de documentos estruturantes nessa matéria143. Em 2008, o país lançou
sua Estratégia Nacional de Defesa (END) e deixou claro quais as suas intenções na
área, partindo do mote de que a estratégia de defesa consistia na estratégia da
dissuasão. O documento se tornou o grande marco, quando comparado com a
Política de Defesa de 2005. Entre outros pontos, ele vincula a defesa ao
desenvolvimento, considera a indústria nacional de defesa como um de seus eixos
estruturantes, define os setores espacial, cibernético e nuclear como estratégicos,
trata da estruturação da defesa em torno de capacidades e se compromete com o
estímulo à integração sul-americana e o preparo das Forças Armadas para
desempenharem responsabilidades crescentes em missões de paz. Na END, o
governo brasileiro ainda reforça sua postura pacífica e renuncia a pretensões
hegemônicas – sobretudo, com a finalidade de superar desconfianças na América
do Sul (BRASIL, 2008).

142
Deu-se preferência às políticas, às estratégias e aos livros brancos de defesa, que são documentos
esclarecedores e orientadores da condução do tema por cada país. Na ausência deles, buscou-se um equivalente,
como no caso da Índia, que publica um relatório bienal sobre as principais atividades realizadas na área.
143
Trabalha-se, aqui, com a Estratégia Nacional de Defesa de 2008, uma vez que sua nova versão, assim como a
Política Nacional de Defesa, encontra-se em fase de aprovação na Câmara dos Deputados, após a aquiescência
do Senado Federal.

397
A Rússia, em comparação com os demais BRICS, é o país que apresenta uma
postura mais ofensiva em matéria de defesa. A Doutrina Militar da Federação Russa
de 2010 é o documento que apresenta visões oficiais do Estado no preparo da
defesa armada. Logo em seu início, na definição de conceitos fundamentais, nota-se
a diferenciação entre ―perigo militar‖ e ―ameaça militar‖: enquanto o primeiro é
caracterizado por fatores que, sob certas condições, podem incorrer em uma
ameaça militar, esta é caracterizada pela situação em que há a possibilidade de um
conflito militar. O governo russo é o único do agrupamento que explicita,
abertamente, quais são esses perigos – aqui, uma nova diferenciação entre
―externos‖ e ―internos‖ – e as ameaças que incidem contra o país. Entre os principais
perigos externos, chama a atenção o primeiro deles, qual seja o desejo da OTAN de
dotar suas forças de funções globais, à revelia de normas do direito internacional, e
de movimentar a infraestrutura militar para países próximos da Rússia. Um tema
sensível do documento é reiterar o caráter dissuasivo das armas nucleares, mas,
simultaneamente, prever a utilização de armas nucleares até mesmo em resposta a
um ataque convencional, mediante decisão presidencial. O maior envolvimento em
missões de paz e a melhoria qualitativa do complexo industrial de defesa também
foram tratados na doutrina (RUSSIAN FEDERATION, 2010).

De todos os BRICS, a Índia é o único que não detém nenhum documento


condicionante para a defesa nacional144. Em grande medida, isso decorre da falta de
consenso nacional para sua elaboração. Para proceder com esta análise, procurou-
se coletar dados no Relatório Anual 2011-2012 do Ministério da Defesa do país. Na
publicação, fica visível que o entorno regional acarreta grandes inquietações ao
governo indiano e em direção a ele se concentram quase exclusivamente as ações
em matéria de segurança e defesa. O Oceano Índico é a região prioritária, onde
estão as principais rotas comerciais e de suprimento de energia e do qual advém
ameaças como pirataria, tráfico de armas e terrorismo. Aliás, o combate à pirataria é
um dos principais enfoques estratégicos da Índia, bem como o envolvimento com
missões de paz. Dois pontos que, adicionalmente, chamam a atenção são a

144
Após consultar, por e-mail, um brigadeiro indiano da reserva, que atualmente está à frente de uma
consultoria, obteve-se a seguinte informação: “Unfortunately the Indian government does not issue any White
Papers on defence laying down the priorities and objectives. Thus one has to scan a number of documents to get
information about the same.”

398
suspicácia indiana com relação à China e a defesa da adoção de iniciativas de
construção da confiança para a Ásia-Pacífico. Os desafios de segurança interna
também preocupam o governo indiano, como o terrorismo, a guerra por procuração
em Kashmir e as atividades de milícia em alguns estados do nordeste
(GOVERNMENT OF INDIA, 2012).

A China, por sua vez, apresenta perspectivas em segurança e defesa muito


similares às brasileiras. Conforme consta em seu documento, Defesa Nacional da
China em 2010, o país busca uma política externa pacífica e uma política de defesa
que, em sua natureza, é defensiva, integrando desenvolvimento econômico e defesa
nacional, de modo que construa um país próspero e militarmente forte. Além disso, à
semelhança do Brasil, o governo chinês deixa claro que renuncia a qualquer
pretensão hegemônica e/ou expansão militar e considera estratégicos, do ponto de
vista científico, tecnológico e industrial, o uso pacífico e o desenvolvimento da
energia nuclear e da tecnologia espacial. O fortalecimento da indústria de defesa
chinesa como um todo, por meio de leis e de estímulos, também é previsto no
documento. Entre os objetivos e tarefas de defesa nacional da China, destaca-se a
manutenção da harmonia e estabilidade social – a exemplo da Índia, há desafios
internos complexos – e o emprego das forças armadas em ―outras operação
militares além da guerra‖ (MOOTW, na sigla em inglês), com ênfase nas ações
cívico-sociais, recuperação de desastres e obras de infraestrutura (CHINESE
GOVERNMENT, 2011).

Por último, os documentos estruturantes da defesa sul-africana foram elaborados a


partir de meados dos anos 1990. Em 1996, foi lançado seu livro branco e, em 1998,
a Revisão de Defesa. A exemplo de outras políticas lançadas após o término do
apartheid, logo no início do livro branco, afirma-se que ele reflete um consenso
nacional sobre a política de defesa. A África do Sul, assim como Brasil e China,
reitera que suas forças armadas detêm, primordialmente, uma orientação e postura
defensiva. O governo sul-africano reconhece, nesses documentos, que a defesa não
é necessariamente prioridade, e sim os programas de desenvolvimento
socioeconômico – afinal, as principais ameaças são internas, como pobreza,
desemprego, alta criminalidade e violência, etc. –, permanecendo aquela está
condicionada a estes. Outros aspectos preconizados pelos documentos é o maior

399
engajamento em missões de paz no continente, o desenvolvimento de uma
abordagem comum de segurança no Sul da África e a adoção de medidas de
construção da confiança e da segurança – principalmente em nível regional. Um
ponto curioso é a indústria nacional de defesa, ao se prever a conversão de sua
produção para a indústria civil, sem perder, no entanto, o conhecimento tecno-
científico necessário à produção militar (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 1996).

Em suma, os cinco países do agrupamento definem um entorno estratégico para


o qual se voltam suas preocupações imediatas de segurança e defesa e, ao
mesmo tempo, incorporam preocupações globais – no caso da África do Sul, em
nível mais abrangente, elas seriam continentais. Geralmente, eles também
deixam claro a natureza defensiva de suas respectivas políticas de defesa,
renunciam pretensões hegemônicas e atrelam a defesa nacional ao
desenvolvimento socioeconômico. Há pontos comuns entre os documentos que
permitem uma aproximação maior dos BRICS em matéria de segurança e defesa,
da mesma forma como há questões que limitam essa aproximação, mas que não
são absolutamente insuperáveis, como se verá a seguir.

5 À procura de uma agenda comum em segurança e defesa nos BRICS

Se o traço característico dos BRICS, até o momento, é sua coordenação de


posições e o pragmatismo, quando convém, de seguir na mesma direção, o primeiro
passo, portanto, para analisar a possibilidade de uma agenda comum em segurança
e defesa é separar os temas controversos, que, em princípio, dificultariam a
cooperação. Quando se comparam as visões de mundo de cada país nessas áreas,
visualiza-se, também, questões que poderão, futuramente, implicar na cooperação,
pois, uma vez que se aproxima do parceiro, demandas e expectativas são criadas. O
segundo passo dessa análise é refletir sobre os temas em que há concordância,
aqueles que tanto facilitam quanto podem aprimorar a cooperação entre os cinco
países. É exatamente nesta ordem que esta seção se estrutura.

O tema mais controverso dos BRICS é a questão nuclear. Nenhum dos países do
agrupamento discordaria de seu uso pacífico, notadamente explorando seu potencial

400
energético, todavia, eles se dividem com relação ao propósito dissuasório das armas
nucleares, repercutindo em questões de desarmamento e não-proliferação. De um
lado, Rússia, China e Índia, detentores de armas nucleares, enfatizam a não-
proliferação, enquanto, de outro, Brasil e África do Sul – esta renunciou ao seu
programa de desenvolvimento de armas nucleares no começo dos anos 1990 –
focam no desarmamento.

No campo da segurança da informação e da segurança cibernética, não obstante


sua inclusão nos documentos declaratórios e nas reuniões ministeriais dos BRICS,
eles são objeto de controvérsias entre os cinco países. Em comum, todos
questionam a proposição de normas internacionais ou a formação de regimes que
não envolvam a participação de toda a comunidade internacional e tampouco
confiram um tratamento multissetorial a esses assuntos, como é o caso da
Convenção de Budapeste. Quanto ao tratamento e governança, contudo, a tônica é
a divergência. O Brasil, por um lado, defende que a segurança cibernética seja
orientada à segurança do cidadão e respeite plenamente direitos e garantias
fundamentais – privacidade, liberdade de expressão, direito de acesso à informação
pública, etc.; por outro, Rússia e China são favoráveis a uma regulamentação maior.
Pensando no futuro, é de se notar a importância de já se discutir esse tema nos
BRICS, mesmo que a concordância, por enquanto, pareça pouco provável.

Cooperar em segurança e defesa requer também avaliar as visões de mundo do


outro e vislumbrar possíveis demandas e expectativas. Brasil, Índia, China e África
do Sul, por exemplo, precisam permanecer atentos quanto ao entendimento russo
de considerar a atuação global da OTAN como um perigo externo. Os quatro países
podem ser cobrados pela Rússia para adotarem uma postura mais assertiva. Da
mesma forma, Índia e China, diante das ações norte-americanas para promover um
novo equilíbrio na Ásia-Pacífico, podem solicitar o apoio dos demais BRICS para
lidar com essas ações. Eventualmente, ao ser demandado, é possível que
determinado país do agrupamento não concorde com a posição que é suposta
assumir em benefício do parceiro. Por essa razão, é importante e necessário
conhecer, com profundidade analítica, os documentos de segurança e defesa dos
BRICS, evitando que as expectativas se tornem ilusões e prejudiquem o
aprofundamento da cooperação nessa área.

401
Ora, contrapor-se ao paradigma intervencionista EUA-OTAN no campo da
segurança internacional, ao tempo em que se propõe a reforma das instituições
multilaterais, no sentido de torná-las mais democráticas e representativas, é a
força motriz dos BRICS. Nos documentos declaratórios e nas reuniões
ministeriais sobre segurança e defesa, essa postura do grupo, não só ficou clara,
como foi insistentemente reiterada. Contrariamente, o grupo contribui, no campo
da segurança internacional, com o engajamento crescente em missões de paz,
tema comum a todos os documentos nacionais de seus países. De acordo com
os dados mais recentes do Departamento de Operações de Paz da ONU (online),
o contingente militar e policial dos cinco países nessas operações é de 13.275, o
que corresponde a 14,8% do contingente global, e a estimativa é que respondam
por 10,59% do financiamento delas em 2013. Todos os BRICS estão presentes
em duas missões: na UNMISS, no Sudão do Sul, e na MONUSCO, na República
Democrática do Congo 145. Na primeira, o contingente do grupo é de 2.451
militares e policiais – aproximadamente 18,5% do contingente total do grupo –; na
segunda, 5.524 (cerca de 41,6% do total).

Se persistir o crescimento econômico superior ao das grandes potências e,


consequentemente, isso conduzir ao aumento dos gastos militares em
proporções superiores a elas, novas responsabilidades poderão surgir. O
agrupamento deverá ser instado a aumentar suas contribuições financeiras e de
pessoal para essas missões. Outra questão que merece ser apurada é uma
eventual mudança paradigmática no caráter das missões de paz, na esteira do
que ocorreu na RDC, com a Resolução 2098,e tendo em vista o alerta do
Relatório de Desenvolvimento Mundial de 2011, do Banco Mundial. Os cinco
países, que estão presentes na MONUSCO, podem ser considerados – aliás,
injustamente – como intervencionistas, algo a que eles tanto se contrapõem. Por
isso, é preciso alinhar coerentemente os discursos e demonstrar claramente qual
a posição e a atitude dos BRICS quando participam de missões com essas
características. Um bom ponto de partida é debater, por exemplo, sobre a
incorporação do conceito de ―responsabilidade ao proteger‖, proposto pela
diplomacia brasileira à ONU em 2011, na linha de atuação do grupo.
145
O Brasil possui apenas o Force Commander da missão, general Santos Cruz, o que decorreu de um convite
pessoal, e não de um pleito governamental, da própria ONU.

402
Uma integração – ou pelo menos uma aproximação – das cadeias produtivas da
indústria de defesa é outro tema que não parece gerar controvérsias, porém, não
apareceu em nenhum momento nos documentos declaratórios nem foi debatido nas
reuniões de segurança e defesa. O fortalecimento desse setor produtivo é
preconizado nos documentos afetos à área de cada país do BRICS e pode se tornar
uma potencialidade a ser explorada. Por sinal, quando se pensa na aplicação dual
dos produtos e se vincula defesa ao desenvolvimento socioeconômico, tecnológico e
científico dos cinco países – tal como orientam seus documentos de defesa –, faz
sentido debater o assunto e considerá-lo diante da possibilidade de se estabelecer
uma agenda comum.

O contexto internacional de crise financeira, a exemplo do que está ocorrendo na


Europa, tende a impactar nos gastos de defesa dos BRICS – ainda que,
comparativamente, permaneçam maiores que os das grandes potências. Com
efeito, é possível que uma eventual contenção de recursos desperte uma
reflexão, nos e entre os thinktanks do grupo, semelhante àquela do EUISS: que
capacidades estratégicas os países, individual e (talvez) conjuntamente, deverão
desenvolver para enfrentar os já complexos desafios no campo da segurança
internacional? Ainda que os cinco países não tratem da contenção conjunta de
riscos – exceto no caso de grandes problemas globais, afetando todos eles –, já
que cada qual detém um entorno estratégico específico, o desenvolvimento de
capacidades estratégicas é um aspecto transversal que contribui para o
aprofundamento da cooperação nos BRICS. Além disso, está alinhado com as
orientações nacionais desses países, no sentido de impulsionar as respectivas
indústrias de defesa e de aplicar essas capacidades, por exemplo, em missões
de paz. Todas essas possibilidades para cooperação em segurança e defesa –
missões de paz, indústria de defesa e desenvolvimento de capacidades conjuntas
– seriam facilitadas com a adoção gradual de medidas de construção da
confiança e da segurança. Em seu entorno estratégico, os países vêm
implementando essas medidas com seus respectivos vizinhos.

Enfim, à guisa de uma conclusão, se há uma resposta categórica para o título deste
artigo, ela seria sim. É possível uma agenda comum em segurança e defesa nos
BRICS. Fato é que isso depende de vários fatores, mas, sobretudo, de vontade

403
política e de visão de futuro. Por isso, este texto começou explorando cenários
prospectivos, o ambiente estratégico do século XXI e a projeção do grupo nele. Mas
a vontade política não basta. É preciso avaliar o quanto se avançou nesse temário
intra-grupo para se prospectar as possibilidades futuras, motivo que justifica a
segunda seção. Só que documentos declaratórios e reuniões ministeriais indicam
que em que temas, minimamente, há posições comuns e induzem ao
questionamento, se identificado outros nos quais poderiam haver concordância, da
ausência deles. Daí a necessidade de avaliar os documentos de segurança e defesa
de cada um desses países, o que se fez na terceira seção. Tudo isso abre caminhos
para discutir a elaboração de uma agenda comum nessas áreas, fortalecendo a
cooperação dos BRICS, tanto para superar as desconfianças internas, quanto para
lidar com grandes desafios da segurança internacional nesse século. Existem
oportunidades, resta fazer escolhas e tomar decisões.

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406
A RELAÇÃO DA DOUTRINA E DO PODER AÉREO CONTRA O TERRORISMO: A
GUERRA ENTRE ISRAEL E HEZBOLLAH NO LÍBANO EM 2006

Marco Túlio Delgobbo Freitas146

1 Introdução

Ao analisar a complexidade da Operação Change of Direction, ocorre uma


possibilidade, advertida por Foucault, de que a história é sempre contada a partir do
presente. O motivo pelo qual essa história deve ser analisada hoje é que algumas
questões continuam sem respostas mesmo após a publicação do relatório final da
Comissão de Winograd147.

As palavras de Creveld (2008) em um artigo nos mostra que os resultados da


Operação Change of Direction são controversos e cercados por polêmicas que vão
além da análise das questões militares.

[...] for this Prime Minister Ehud Olmert was to blame, Defense Minister Amir
Peretz was to blame, the Israeli military was to blame, everybody was to
blame — and since the commission‘s members declined to name names,
nobody was to blame (...) Much of this criticism is well taken. The war was
indeed marked by a long series of failures. Failures in planning, failures in
intelligence and counterintelligence, failures in command, failures in
mobilization, failures in execution, failures in logistics, failures in properly
protecting the rear, and perhaps a failure to terminate hostilities earlier and
at the cost of fewer Israeli casualties.

O presente artigo tem por objetivo analisar a aplicação do conceito da dissimetria no


combate ao terrorismo. Para tanto, analisaremos a utilização do poder aéreo durante
a Operação Change of Direction, a influência da lógica da dissuasão como
norteadora do padrão de resposta israelense, a ação do Hezbollah no Sul do Líbano
e as dificuldades do nível estratégico ocorridas durante a resposta israelense aos

146
Universidade Federal Fluminense
147
Comissão criada para investigar os problemas ocorridos durante a Operação Change of Direction.
(CREVELD, 2008)

407
desafios apresentados pela iniciativa do Hezbollah em transformar o confronto em
uma guerra assimétrica.

A hipótese defendida é que a falha da análise e da capacidade de julgamento


dos tomadores de decisão criaram obstáculos ao desempenho do poder aéreo
durante a campanha.

Inicialmente, estavam previstas duas fases para a campanha: A primeira,


notadamente aérea, foi a operação Mishkal Sguh; em seguida, foi desdobrada a
Operação Mei Maron, composta por uma contraofensiva terrestre formada pela IDF.

Os objetivos políticos da operação estavam difusos. Neste momento havia duas


listas de objetivos. Uma do primeiro ministro Erud Olmert e outra do chefe do
Estado-Maior israelense, Dan Halutz (LAMBETH,2011). Essencialmente, ambos
os documentos eram convergentes em dois pontos: cessar os ataques de
foguetes do Hezbollah contra o território israelense e respondê-la
desproporcionalmente e o meio para atingir esta finalidade, foi a aplicação do
poder aéreo, a fim de reduzir os recursos dos terroristas, sua capacidade de
ataque e o prejuízo causado pelos mesmos.

Percebe-se que a aplicação da estratégia dissimétrica, neste caso, foi eficaz ao


impedir o surgimento de uma guerra assimétrica. Esta conclusão é apoiada pelo
desempenho do poder aéreo israelense diante desse desafio. Não obstante, cabe
ressaltar que, em nenhum momento da narrativa histórica desse confronto, foi
colocada pelos seus líderes como escolha estratégica a utilização do poder aéreo
como a única forma de responder o inimigo.

Este papel de proeminência da IAF durante os 34 dias de conflito contra o Hezbollah


foi conquistado por meio de sua eficácia no combate e na superação de obstáculos,
como por exemplo a ausência de um levantamento anterior da inteligência militar
sobre as capacidades militares do Hezbollah, o que obrigou a IAF a necessidade de
atacar em tempo crítico arsenais ocultos de inimigos e foguetes de médio alcance.

Visto em retrospecto, mesmo diante da dificuldade de compreensão das lideranças


militares e civis do confronto em caracterizar este como uma guerra, a Operação
Change of Direction, para a IAF sempre foi guiada como uma, desde seus

408
momentos iniciais, operação de guerra. À medida que a campanha se desenrolou,
as tarefas da IAF foram baseadas na seguinte ordem de importância:

a) Neutralizar e interditar os foguetes de médio e longo alcance disparados pelo Hezbollah;

b) Impedir os movimentos militares do Hezbollah dentro do Líbano e na fronteira entre a


Síria e o Líbano;

c) Na medida do possível, localizar e eliminar os líderes do Hezbollah.

O terceiro objetivo, com certeza, foi o mais evasivo, pois, ao longo de 34 dias de
intensos combates e uma grande ofensiva terrestre que só se realizou apenas 72
horas antes do cessar-fogo, ficou impossível atendê-lo (EILAND,2009).

Destacam-se também a integração dos veículos remotamente pilotados com


helicópteros de ataque e a entrega de suprimentos, visto que as tropas da IDF do
Comando Norte foram incapazes de manter uma linha logística que cobrisse
satisfatoriamente as posições da IDF após o Rio Litani e por último, a realização de
resgates médicos de urgência.

Polêmica desde o início, a Operação Change of Direction será analisada, devido a


seu grau de complexidade, a partir da relação de três conceitos: guerra dissimétrica,
guerra assimétrica e medidas contraforça (ALOAN,1980).

2 Novas Guerras, Guerra Assimétrica e Hezbollah

O primeiro conceito a ser discutido será o de guerra assimétrica, que neste casoé a
opção estratégica de um dos integrantes do conflito. Porém, inicialmente
analisaremos o surgimento do ambiente de batalha atual e seus desdobramentos e,
a seguir, discutiremos o papel do Hezbollah nesse conflito.

As lutas pelas independências que marcaram a segunda metade do século XX,


ocorridas na África e Ásia, moldaram um novo tipo de luta, em que grupos políticos
dentro de um território estatal buscariam o rompimento com um governo
considerado ilegítimo.

409
A partir do final da Guerra Fria, as minorias étnicas passaram a questionar os
governos estabelecidos por não considerá-los legítimos e, aproveitando a fragilidade
de alguns Estados, os conflitos intraestatais voltaram a se proliferar.

As novas guerras seriam choques entre identidades políticas anteriores à


formação do Estado e estas remeteriam a características culturais e políticas
referentes à formação dos grupos que comporiam o Estado e não mais às
questões de política estatal.

Diferente da guerra tradicional, interestatal, em que forças militarizadas e


institucionais tinham o objetivo bem delineado, segundo Kaldor (2001) – fazer o
inimigo se render, seguindo as análises de Clausewitz do que seria o objetivo de
uma guerra –, as novas guerras seriam caracterizadas como interestatais e
extraestatais, distantes do modelo de guerra tradicional, em que a luta só se dava
por agentes estatais e que, no caso das novas guerras, a luta pode dar-se entre
grupos privados dentro de um território ou de um grupo estatal e um grupo nacional
ou internacional.

Por meio de estratégia de guerrilha e contra insurgência, esses grupos


procuravam o controle político de uma região e buscavam além de suas
fronteiras, a partir dos avanços tecnológicos e da globalização, transmitir seus
valores e mobilizar apoio à causa.

Segundo Creveld (1991), a forma de como fazer a guerra na obra de Clausewitz


está sendo incapaz de explicar o dinamismo dos conflitos pós-1945, pois os
objetivos das novas guerras não seriam somente a segurança ou geopolítica, como
também governança, identidades políticas pré-estatais e a busca por um status quo
no interior deste Estado.

Um dos meios de alguns grupos obterem o poder ou atingir suas metas é realizar
uma guerra assimétrica neste cenário ou contra um poder superior, que neste
estudo, é o conflito entre o Hezbollah e o Estado de Israel. Para analisar o conceito
de guerra assimétrica, é imperativo dizer que esta contém diversas ideias prévias e
específicas de (FRANÇA, 2007):

410
a) Guerra de guerrilha;

b) Espionagem;

c) Resistência violenta;

d) Resistência não violenta;

e) Sabotagem;

f) Guerra eletrônica e de informação, e

g) Terrorismo.

Assim sendo, a guerra assimétrica é um conceito amplo e inclusivo que demonstra


que dois lados em um conflito, podem ter forças e fraquezas tão drasticamente
diferentes, que recorrem a táticas profundamente diferentes – portanto assimétricas
– para alcançar uma vantagem relativa.

Em 2006, o Hezbollah tinha conseguido alcançar uma ampla influência no Líbano. O


aumento do poder xiita neste país alcançou 15% das vagas do Parlamento libanês.
Entretanto, esse índice não demonstra a realidade sobre a presença xiita no quadro
político, embora seja consequência dos limites determinados pelo Acordo de Taif
(ZISSER, 2009).

Diante desse quadro, um líder xiita que procurava questionar a sua participação no
governo libanês e procurava a criação do ―Mar Mediterrâneo islâmico‖, que cobriria a
partir do Teerã ao Mediterrâneo endossado pela parceria histórica do Hezbollah e o
Irã, Hassan Nasrallah, optou por criar situações-força contra seu principal inimigo:
Israel (ZISSER, 2009).

A presença do Hezbollah como organização política no Líbano teve início quando


esta começou a exercer um papel social perante a comunidade xiita deste país, o
que é uma postura semelhante a boa parte das organizações fundamentalistas
islâmicas. Por meio de uma estrutura que relaciona bem-estar social e educação, o
Hezbollah foi garantindo dois elementos essenciais para o aumento de sua
influência: apoio – financeiro e político – e adeptos.

411
Uma das características levantadas por Roy (1995) ao tratar sobre o
fundamentalismo islâmico é que esta necessariamente seria uma construção
intelectual abstrata, limitada pela formação superficial religiosa de seus líderes, e
que se opõe a séculos de tradições e culturas locais em que, por meio da aplicação
da Sunna, da Sharia e do Corão como princípios normativos, tenta restaurar a
Umma, o que seria uma comunidade muçulmana que vai para além das diferenças
culturais e da tradição, e até mesmo, do nacionalismo.

A partir deste ponto, fica claro que a tentativa do Hezbollah de aumentar a sua
participação política do Líbano é uma tentativa de reislamizar a sociedade libanesa,
e isso só poderia ser alcançado por meio da democracia.

No entanto, os planos para criar uma situação-força com Israel não estavam
surtindo efeitos, até porque o governo israelense estava preocupado com as
ações da Al Aqsa na Palestina e os assuntos que mereciam atenção quando o
assunto era o Hezbollah estavam restritos a seu arsenal de foguetes de médio
alcance oriundos do Irã. Entretanto, o dia 12 de julho marcaria o que, segundo o
primeiro ministro de Israel, Ehud Olmert, afirmava ser o dia que Israel não seria
mais refém do Hezbollah (LAMBETH, 2011).

Neste dia, o Hezbollah continuou sua campanha de lançamento de foguetes de


médio alcance em direção a Israel, o que apareceu como uma oportunidade foi o
motivo para a ação desproporcional israelense contra o Hezbollah: o sequestro e
morte de soldados israelenses que patrulhavam a fronteira.

Nas palavras de Nasrallah, a liderança política do Hezbollah não acreditava que


Israel responderia à abdução destes soldados com uma guerra. Mesmo no final do
confronto, quando Nasrallah dizia ser o vitorioso e no qual acreditava ser uma
interferência divina a sua sobrevivência, os resultados após o confronto com Israel
não se traduziram em ganhos políticos para a organização. Apesar da guerra de
informação liderada pela organização, o Hezbollah foi incapaz de ter maior
participação política no governo libanês (LAMBETH, 2011).

Este, com certeza, foi um efeito da campanha aérea israelense. Ao bombardear


Beirute e provocar danos ao inimigo, mantendo distância de algumas estruturas do

412
governo libanês o povo libanês repudiou as ações do Hezbollah durante o confronto
e atribuiu o doloroso processo de reconstrução como culpa da organização. E, por
último, a parceria Hezbollah e Irã também sofreu efeitos da guerra, pois o governo
iraniano passou a responsabilizar a redução dos arsenais e a perda de recursos
como consequências de uma ação precipitada.

Assim sendo, a consequência da oportunidade para provocar a troca de alguns


prisioneiros do Hezbollah mantidos em Israel foi uma guerra que levou ao
recrudescimento da organização em sua região; e, com a resposta israelense,
tornou-se impossível para o Hezbollah travar uma guerra assimétrica que resultaria
em maiores baixas ao inimigo e em melhores termos de negociação do cessar-fogo.

3 A Guerra Dissimétrica, as Medidas Contraforça e as Incertezas do Governo


Israelense

O primeiro passo de nossa análise será guiado por meio de algumas observações
em relação ao comportamento do governo israelense diante de suas opções
políticas e militares durante o confronto.

O século XXI é cercado por transformações profundas no ambiente de onde as


guerras são travadas. Ao colocar em termos militares, é importante que a liderança
política saiba das capacidades de seu exército e principalmente, conhecer as
relações de força, que seria em síntese, o que podemos fazer e o que o inimigo
pode fazer (EILAND, 2009).

Um dos problemas deste cenário é que as lideranças, civil ou militar, devem


gerenciar a distância entre as capacidades e as expectativas. A expectativa,
normalmente, são atribuídas por meio da mídia, do público e do escalão político e a
capacidade é descrita como a habilidade de promover arranjos operacionais que
possam atender essas expectativas.

As expectativas israelenses são influenciadas a partir de um processo nomeado por


―excepcionalismo israelense‖, que é formado por meio da relação entre o conceito

413
de sobrevivência, o cenário doméstico do campo de batalha e a profundidade
estratégica provocada pela extensão do país (RID; HECKER, 2009).

O excepcionalismo israelense é também responsável pela forma que Israel direciona


as suas capacidades militares. Inicialmente, suas as ações são alvo da maior
cobertura de mídia internacional, o que resulta que suas ações sejam alvo de
propaganda da mídia árabe. O público israelense, em nome da sobrevivência, tolera
uma assimetria ao usar a força contra atores não estatais; além disto, também há
uma tolerância quanto ao uso de assassinatos seletivos e bombas de fragmentação.

Além disto, o excepcionalismo israelense é responsável por guiar algumas ações no


âmbito político. Para a liderança civil, o resultado da longa duração de conflitos
contra seus vizinhos árabes impossibilita qualquer direção que tenha o objetivo de
apelar para as emoções dos adversários, tal como o ―corações e mentes‖ é buscado
nas forças armadas dos Estados Unidos e Reino Unido no Iraque. A imagem
internacional de Israel já é negativa, é inútil buscar alguma mudança. Por isso, o
objetivo militar e político de Israel é a relação entre dois fenômenos: a dissuasão e
as ―regras do jogo‖ (FRANÇA, 2011).

Para Israel, as organizações terroristas são dotadas de uma racionalidade. Isso


mostra que a sua política externa e de defesa é realista, ou seja, todos os atores
envolvidos são racionais e operam por meio da tentativa de expandir seu poder para
manter sua sobrevivência. Para os israelenses, os líderes destas organizações
terroristas baseiam suas ações na lógica da Teoria da Escolha Racional, em que
seus atos devem render mais benefícios, que neste caso são o medo na população
israelense e a publicidade internacional, sobretudo, no mundo islâmico, maiores que
os custos (IBAÑEZ, 2006).

A dissuasão, por meio da aplicação da doutrina Dahiya, serve para Israel como
modo de ―educar‖ seus oponentes todas as vezes que estes tentam alterar a ―regra
do jogo‖, isto é, um dos objetivos militares de Israel é mostrar que o preço por
desviar-se destas regras é muito alto e, caso seja feito, estes devem entender sobre
as consequências. Portanto, os acontecimentos de julho de 2006 são um modo de
mostrar a seus oponentes que as ―regras do jogo‖ foram modificadas e que o ataque
a Israel e a abdução de seus soldados não ficariam impunes (LAMBETH, 2011).

414
A partir deste raciocínio, podemos estabelecer os critérios da resposta israelense
aos desafios provocados pelo Hezbollah após o ataque de foguetes de médio e
curto alcance em direção ao Norte de Israel.

Inicialmente, a diferença que devemos observar é entre os conceitos de


antiterrorismo e de contraterrorismo. O primeiro diz respeito à medidas defensivas
realizadas de modo a reduzir a vulnerabilidade quanto à ações terroristas; já o
segundo se refere a medidas ofensivas, tomadas em respostas à ações terroristas a
fim de prevenir, deter e responder ao terrorismo, dividindo-se em dois outros
conceitos: o de impedimento, consistindo em contramedidas designadas a
interceptar um ataque antes de sua execução, e o das medidas contraforça, em que
contramedidas são tomadas de maneira a reduzir os recursos dos terroristas e
consequentemente sua capacidade de ataque (ALOAN, 1980).

É baseado neste conceito de contramedidas que a postura da IDF norteou o


emprego de suas forças e, deste modo, seguirá a análise da relação entre a guerra
dissimétrica e a guerra assimétrica.

O conceito da guerra dissimétrica significa que em conflitos assimétricos adversários


possuem capacidade militares desiguais, no entanto, a maior chance de sucesso
será para o beligerante mais poderoso. Contudo, a maioria dos conflitos que não
terminarem de forma rápida através de uma vitória decisiva aceita por todas as
partes, muda para assimétrico, que é a única esperança de vitória contra um
adversário mais forte. (FRANÇA, 2007)

As medidas que devem ser empregadas pelo poder superior são inspiradas nas
que foram adotadas pelo teórico britânico Hart (1954) e aplicadas ao teatro de
guerra europeu.

Durante as operações militares, Hart propôs os meios de surpresa e ilusão – no


sentido de ludibriar – como forma de paralisar o inimigo e, como consequência,
reduzir sua resistência. O objetivo final é influenciar o processo dos tomadores de
decisão, de forma crucial.

415
Em uma guerra assimétrica, a parte inferior precisa evitar contato com a parte
superior, realizando ataques no lugar certo e na hora certa, preferencialmente nos
centros de gravidade vulneráveis do inimigo.

Em uma guerra como essa, o poder superior será confrontado com o fato de:

a) Bombardear o poder inferior de volta para a idade da pedra e com isso


causa dano colateral;

b) Sofrer as consequências de ter suas próprias perdas.

Percebe-se que, com todos os meios, o poder superior deve tentar transformar a
guerra assimétrica em uma guerra simétrica. Como anteriormente mencionado a IDF
enfrentou um dilema em toda guerra assimétrica: ou tomam o risco de sofrer baixas,
com o objetivo de evitá-las, ou utiliza-se de métodos que causam danos colaterais,
e, portanto, morte de civis inocentes. Resumindo, quanto menor suas perdas, maior
o dano colateral.

4 A Opção pelo Poder Aéreo

A participação do poder aéreo foi decisiva na Operação Change of Direction. O


emprego desta arma se deu devido às suas vantagens, apresentadas por Gray em
sua análise da Operação Desert Storm (GRAY, 2003). As características principais
do poder aéreo são divididas em suas forças e limitações, que são agrupadas como:

a) Forças: flexibilidade, velocidade, ubiquidade, alcance, surpresa e atração


política;

b) Limitações: alto custo financeiro, vulnerabilidade e transitoriedade.

A aplicação do poder aéreo no caso israelense foi apoiada a partir de uma doutrina
voltada para impor maior dano às capacidades militares do oponente, que neste
caso seriam instalações de armazenamento de munição e treinamento, assim como

416
o complexo Dahiya de Comando e Controle do Hezbollah. O que de fato elevou a
condição da arma aérea para emprego estratégico foi a doutrina Dahiya148.

Por doutrina, entende-se o conceito desenvolvido por Poirier e Laurent (1987), que
será adotado nesta pesquisa. Os autores descrevem que

[...] a doutrina procede de uma escolha calculada dentro da pluralidade de


teorias existentes [...] extrai dessas uma representação e uma concepção
privilegiadas da ação [...] exige ser local e não global, adaptada a um dado
quadro nacional ou técnico [...] tem uma finalidade prática: os princípios
dirigentes, uma vez formulados, servem de guia na elaboração das
decisões práticas a tomar [...] em de certa forma, verificável no terreno: o
dizer das armas deve confirmá-la ou invalidá-la, ou seja, a doutrina não
deve mais definir somente o emprego das armas, deve primeiro dizer que
armas escolher[...].

Em relação às dimensões de sua abrangência, Posen (1984) admite que ―a doutrina


contemporânea deixa de ser unilateral, centrada em uma só dimensão operacional,
para abranger todas as dimensões da estratégia‖.

Sobre o nível operacional, entendemos que o conceito elaborado pelo general


Poirier é o que deverá ser seguido pelo estudo apresentado como:

[...] o nível operacional é aquele no qual uma operação é planejada,


conduzida e apoiada, para atingir um objetivo estratégico em um teatro de
operações. É o nível de combinação das ações interforças neste teatro sob
a responsabilidade do comandante de teatro [...].

Por fim, uma doutrina operacional estabelece um parâmetro, dentro do qual há um


militar que planeja a missão e outro que executa a operação, e que irá definir onde e
como será utilizado o emprego da força. Para a literatura militar, a doutrina é
responsável pela forma de conduzir uma operação.

Como forma de responder aos desafios impostos pelo Hezbollah, a IDF decidiu
empregar nesta operação uma projeção de fogo nunca utilizada antes pelas forças
israelenses em áreas urbanas, com o objetivo de causar maior dano ao inimigo,

148
A Doutrina Dahiya foi criada pelo general Gadi Eizenkot a partir da observação da guerra assimétrica no
ambiente urbano. Para obter vantagens neste cenário, as forças armadas israelenses escolhem alvos do oponente
a fim de impor maior danos a estes por meio de um poder de fogo desproporcional para atingir este objetivo
(ELIAND, 2009).

417
seguindo um dos pressupostos de Hart descrito neste trabalho, e diminuir as baixas
de seus soldados. O esforço israelense foi ainda direcionado para dois objetivos:
dissuadir os terroristas por meio da aplicação do poder aéreo segundo as direções
das medidas contraforças e desencorajar o Hezbollah causando grandes prejuízos
às áreas de onde normalmente são disparados foguetes contra Israel.

Quando a IDF recebeu a incumbência de avançarem sobre o Rio Latanicom o


objetivo de fazer cessar os ataques de foguetes empreendidos pelo grupo
Hezbollah, a IAF teria que ampliar suas tarefas permitindo a coleta de inteligência
quanto aos ataques para interdição do campo de batalha e ao apoio aéreo
aproximado para tropas israelenses de terra.

A ação da IAF pode ser separada em três fases que sofrem interseções entre si e se
complementam, mas são distintas.

A primeira fase é a intensificação da coleta de inteligência referente às atividades do


Hezbollah. Com isso, as forças israelenses conseguiram atualizar a inteligência já
existente, bem como expandi-la conforme novas informações forem coletadas.

Para tanto, houve o emprego de aeronaves remotamente tripuladas capazes de


coletar inteligência eletrônica e de sinais que, por sua vez, permitiram aos
israelenses acesso às comunicações do Hezbollah e monitoração visual/sensorial do
campo de batalha.

O Hezbollah, inspirado em um novo modelo operacional, deixou de operar em


células. Portanto, perdeua sua característica irregular ao adotar formações clássicas
de batalha, com comando unificado e determinado grau de padronização de
treinamento e consequentemente as suas ações, o que tornou possível a Israel
coligir uma lista de alvos iniciais.

O monitoramento pode ser bastante acurado devido ao pequeno espaço geográfico


da área de operações, tornando mais fácil a vigilância das atividades inimigas. Com
aeronaves remotamente tripuladas do tipo MALE – Média Altitude, Longa Duração –
que conseguem permanecer no ar entre 12 a 16 horas, a IAF conseguiu manter um
regime de monitoramento em tempo real da região do Sul do Líbano de forma

418
constante, uma capacidade de suma importância para o sucesso militar da
Operação Change of Direction (LAMBETH, 2011).

A segunda fase é caracterizada pelo início das atividades ofensivas das forças
israelenses, em que a IAF atacou diversos alvos dentro da Sul do Líbano. Os alvos
foram previamente selecionados e incluíam centros de comando, treinamento,
concentrações de forças, infraestrutura e até instituições do Hezbollah.

Todos os alvos foram atacados de forma intensa, continuada, mas todos com
bastante precisão. A partir da leitura de que o Hezbollah operava de forma mais
convencional, tornou-se previsível a destruição ou, ou pelo menos a obstrução de
sua cadeia de comando e linhas de suprimentos.

Ao mesmo tempo, os alvos pré-selecionados atacados pela IAF nos permitem


traçar uma analogia com o conceito dos ―Anéis de Warden‖, que preconizam o
ataque, de preferência simultâneo, porém hierarquizado aos seguintes itens:
liderança, elementos essenciais do sistema, infraestrutura, população, e militares
em campo (METS, 2008).

Para atingir seus alvos, a IAF tinha à disposição variada gama de aeronaves táticas
capazes de infringirem pesados danos a quaisquer tipo de instalações, inclusive
depósitos subterrâneos utilizados pelo Hezbollah. Suas principais aeronaves de
ataque foramas versões disponíveis de F-15 e F-16, operando quase sempre sob
monitoramento de aeronaves remotamente tripuladas, com seus alvos selecionados
e designados, por meio do laser, por estas mesmas aeronaves não tripuladas.

A terceira fase, embora distinta, teve início ao mesmo tempo que a segunda fase.
Devido a seus recursos aéreos, Israel tem uma ampla opção de poder aéreo
suficiente para atingir um nível de flexibilidade que os permite não apenas atacar e
destruir alvos pré-selecionados como também prover apoio aéreo aproximado e
interdição do campo de batalha de modo simultâneo.

A terceira fase se caracterizou pela utilização da flexibilidade do poder aéreo, ora em


missões de apoio aéreo aproximado por intermédio de solicitação das forças
terrestres israelenses em avanço, ora em missões de interdição do campo de
batalha, com o intuito de impedir que suprimentos de guerra fossem entregues às

419
forças do Hezbollah. Entretanto, algumas vezes, o apoio aéreo aproximado fora
negado devido à grande concentração de tropa. Talvez esta ação tenha sido
realizada para evitar fogo amigo.

Dentro dessa fase, a IDF obteve liberdade total para concentração de poder de fogo,
efetuando ataques a áreas inteiras de onde partiram ataques contra suas tropas,
pela simples suspeita de que ataques poderiam ser desfechados a partir daquela
área, ou de onde foram observados lançamentos de foguetes.

Devido ao alto número de armadilhas para tentar conter a IDF e à crescente utilização
de instalações subterrâneas, seja para armazenamento de foguetes, munições e outros
materiais de guerra, seja para facilitar dispersão de forças e até mesmo a captura de
soldados israelenses, o uso maciço de poder de fogo foi autorizado por autoridades
israelenses para alcançarem o máximo de eficácia militar, com o mínimo de baixas
israelenses possível, utilizando quaisquer meios disponíveis, tendo como ênfase o
poder aéreo devido à sua própria natureza operativa.

Tal concentração de fogo se encaixa com os preceitos da Doutrina Dahiya, que


preconiza o uso de força desproporcional contra qualquer área urbana que possa
ser considerada hostil às forças israelenses, destruindo não apenas diretamente o
inimigo, como toda a infraestrutura civil que possa servir de apoio ao inimigo,
causando destruição e sofrimento a todos os ocupantes da área como forma de
dissuadir a atividade hostil naquela área. A utilização dessa doutrina aparentemente
surpreendeu a liderança do Hezbollah, já que estavam acostumados com a política
de ataques cirúrgicos por parte de Israel (LAMBETH, 2011).

O tempo de reação das aeronaves atacantes, mediante o alarme dado por uma
aeronave não tripulada ao localizar um grupo do Hezbollah dando início à
preparação de foguetes para seu lançamento sobre território israelense, é
geralmente muito curto, possibilitando na maioria dos casos que esses grupos
fossem atacados antes que pudessem lançar seus foguetes149.

Desta forma, é bem razoável supor que um sistema de rodízio para as aeronaves
táticas fosse utilizado pela IAF, durante a terceira fase aérea, no qual as aeronaves

149
Cerca de 1 minuto (LAMBETH, 2011).

420
devidamente armadas teriam um determinado tempo de patrulha sobre um ponto pré-
selecionado no teatro de operações, a partir de onde cumpririam tarefas de apoio aéreo
aproximado ou de interdição conforme solicitada pelas tropas ou identificado via
monitoramento remoto e repassado ao piloto com seu alvo já assinalado.

Uma vez que uma aeronave atende a um chamado, outra decola e ocupa seu lugar,
enquanto a primeira retorna à base para reabastecimento e remuniciamento. O
indicativo em relação à maior intensidade e poder de fogo desta operação se dá no
número de aeronaves em patrulha a qualquer momento sobre os pontos pré-
selecionados de patrulha sobre Gaza.

Esse tipo de atividade aérea não é uma novidade israelense. Variações deste tipo
de rodízio são utilizadas em combate desde os estágios finais da Segunda Guerra
Mundial, quando aeronaves decolavam com plena carga de bombas à procura de
alvos de oportunidade ou em regiões onde poderiam ser contatadas por um
controlador aéreo avançado em terra ou aeronaves de observação, que tinha a
tarefa de assinalar alvos terrestres que pudessem ser atacados.

A grande diferença em relação à sua utilização e eficácia no contexto israelense foi


justamente o alto nível de tecnologia empregado na coleta de inteligência em tempo
real, que era previamente feito pelo uso de helicópteros de ataque – AH-1 Cobras e
AH-64 Apaches –, combinados com as aeronaves remotamente pilotadas Hermes
450, agora livres para apoiarem o avanço das tropas, pela grande disponibilidade de
recursos aerotáticos operando em ambiente de baixa intensidade, ou seja, com pouca
ou nenhuma ameaça antiaérea, e pela área de atuação geograficamente restrita,
permitindo a maximização de recursos e a flexibilidade inerente aos mesmos,
diminuindo drasticamente o tempo de reação quando da solicitação de um ataque.

Devido a esses fatores, a IAF conseguiu manter a intensidade de suas atividades de


maneira ininterrupta durante toda a duração da Operação Change of Direction,
possivelmente alcançando elevadíssimo nível de disponibilidade de meios sempre
que estes foram requisitados.

421
5 Conclusão

A partir da análise do contexto histórico e dos conceitos abordados no texto, conclui-


se que as ações de Israel para combater os ataques terroristas traduzem
exatamente os subconceitos do contraterrorismo. Em suma, essas contramedidas
visam reduzir os recursos dos terroristas, sua capacidade de ataque e o prejuízo
causado pelos mesmos150. No entanto, a Operação Change of Direction mostrou
que o dilema da assimetria de forças estava correto e que a hipótese foi validada,
pois, usar a força desproporcional contra os pontos fracos do inimigo, deixou claro
que a resposta deve ser rápida, para evitar baixas em suas forças, e com qualidade,
com o objetivo de criar uma memória duradoura.

Paradoxalmente, a disponibilidade da IAF para levar a cabo estas tarefas foi para
compensar a grave insuficiência da força terrestre nesta área. De acordo com
Creveld (1991), os conflitos de baixa intensidade poderão substituir as bases
analíticas do modelo de guerra interestatal nas quais os exércitos do Ocidente
tradicionalmente treinaram para lutar. Talvez seja nesta ―nova forma de violência‖,
com a qual IDF se habituou a lutar, que reside o principal obstáculo que determinou
o seu desempenho na Operação Change of Direction. Desde setembro de 2000, a
IDF estava voltada para operações de menor intensidade contra a intifada palestina,
sob liderança da Al Aqsa; devido à redução de custos, seu treinamento ficou
comprometido. E, com isso, cerca de toda parte norte de Israel ficou sob ameaça do
lançamento dos Katyushas do Hezbollah, que eram prioritariamente alvos da IDF.
Segundo Luttwak (2009), o poder aéreo é situacional, ou seja, há uma dependência
muito grande do contexto que se desenvolve durante o conflito. Com a
transformação da estratégia do Hezbollah em passar gradualmente da guerrilha à
guerra de movimento e de posições, foi possível para a IAF identificar alvos e obter
sucesso na diminuição da vontade de lutar de seu inimigo.

O resultado da campanha aérea foi visto como positivo durante o confronto. É nas
palavras de Creveld (2008), retiradas do artigo citado no inicio desta análise, que
podemos avaliar os resultados atingidos por Israel:

150
Importante notar que o governo israelense tratou o episódio comparando-o com a Crise de Mísseis de Cuba,
em 1962, sendo que neste caso, o perigo vinha das armas adquiridas pelo Hezbollah e posicionadas no Sul
(RAMM: rocket, artillery, mortar, andmissile) (LAMBETH, 2009).

422
[...] by the time the guns fell silent, hundreds of Hezbollah fighters had been
killed. The organization had been thrown out of southern Lebanon, and to
make sure it would not return, a fairly robust United Nations peacekeeping
force was put into place. At least for the time being, Hezbollah appears to
have had the fight knocked out of it. For well over a year now, Israel‘s border
with Lebanon has been almost totally quiet — by far the longest period of
peace in four decades. This was something that neither Golda Meir, nor
Yitzhak Rabin in his two terms as prime minister, nor Menahem Begin, nor
Shimon Peres, nor Yitzhak Shamir, nor Benjamin Netanyahu, nor Ehud
Barak, nor even the formidable Ariel Sharon.

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analysis of countermeansures. Santa Monica: Rand Corporation, 1980.

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423
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ZISSER, Eyal. Hizbullah: the battle over Libanon. Military and Strategic Studies,
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424
ATUAÇÃO ESTATAL E PROGRAMAS MILITARES AEROESPACIAIS: UM
ESTUDO DE FATORES QUE AFETARAM A IMPLEMENTAÇÃO DE
PROGRAMAS DA AERONÁUTICA

Patrícia de Oliveira Matos151

1 Introdução

A segurança e a defesa nacional são consideradas atribuições exclusivas do Estado e,


para realizá-las, os governos fazem uso do orçamento público, o que o torna um meio
fundamental para a concretização de ações de cunho estratégico e, consequentemente,
instrumento para a compreensão de prioridades e políticas públicas. Sendo assim,
estudos que envolvam questões relacionadas ao papel político e estratégico do
orçamento, sobretudo o de defesa, contribuem para subsidiar a condução de políticas
para o setor, bem como para aprofundar e ampliar a discussão sobre a defesa nacional,
utilizando ferramentas analíticas do campo da Economia.

Este estudo procura elucidar como determinadas questões econômicas envolvendo


cortes, oscilações orçamentárias e mudanças com relação às previsões originais do
orçamento federal afetam o setor de defesa, em particular, o setor aeroespacial.
Para tanto, o trabalho é realizado por meio de uma pesquisa bibliográfica e
documental, com análises de cunho quantitativo e qualitativo, apresentando o
seguinte objetivo geral: analisar fatores determinantes da implementação de
programas militares aeroespaciais, utilizando como parâmetro o grau de execução
de programas da Aeronáutica.

Esse objetivo geral desdobra-se em dois objetivos específicos: verificar a influência


de variações no fluxo de recursos destinados ao Ministério da Defesa (MD) sobre o
grau de implementação de programas da Aeronáutica, no período de 2000 a 2009,
por meio de análises de regressão linear; e levantar outras variáveis intervenientes,
omitidas do modelo econométrico, por meio do estudo de caso do Projeto AMX.

151
Professora da Universidade da Força Aérea (UNIFA), Doutora em Ciências Aeroespaciais pela UNIFA,
Mestre em Economia Aplicada pela Universidade de São Paulo (USP/ESALQ).

425
2 Atuação Estatal no Setor Aeroespacial Brasileiro

O desenvolvimento do setor aeroespacial está intimamente relacionado ao Estado,


uma vez que este atua tanto como fonte de financiamento para pesquisa e
desenvolvimento, como o principal consumidor das tecnologias desenvolvidas no
setor. No Brasil, essa atuação do Estado é especialmente verificada nos efeitos
gerados sobre a indústria aeroespacial da região de São José dos Campos, a partir
de programas militares, como o Programa Espacial, e de encomendas
governamentais que estiveram na origem da Embraer.

Para Pereira (1991), não apenas o setor aeroespacial, mas o setor de defesa como um
todo está estreitamente relacionado à atuação estatal. Segundo o autor, as três principais
empresas brasileiras de armamentos a Engesa, a Avibrás e a Embraer se desenvolveram
a partir de programas que contaram com a participação do Estado, ao criar incentivos,
conceder linhas de financiamento, participar em uma parte significativa da P&D e criar
uma política de exportações para a viabilização econômica do setor.

Com relação ao segmento aeroespacial, Costa Filho (2000) observa que o papel do
Estado nos programas é, em um primeiro momento, planejar, financiar e
desenvolver as atividades e, em um segundo momento, incentivar a transferência
dos resultados obtidos nessa área para outros segmentos da economia e da
sociedade. Segundo o autor, no caso do setor aeroespacial, o Estado torna-se a
figura central para estimular a capacitação tecnológica do país devido à natureza
dos programas aeroespaciais que, geralmente, são de extrema complexidade,
dispendiosos e de lenta maturação.

Esses recursos aplicados na P&D do setor aeroespacial são justificados, no


planejamento orçamentário, pela aplicação em tecnologias que geram retorno à
sociedade. No entanto, o retorno de investimentos do setor aeroespacial não pode
ser medido considerando-se apenas os benefícios diretamente relacionados à
geração de tecnologias, mas também, levando-se em conta os benefícios indiretos,
como o aumento da capacitação de recursos humanos.

Segundo Meira Filho et. al. (1999), existe uma relação direta entre o orçamento
governamental e o nível de produção da indústria espacial de um país, sendo que,
no caso do Brasil, essa relação é ainda mais forte, pois o Estado brasileiro assume o
papel de principal usuário das aplicações espaciais de interesse para o país.

426
Considerando o segmento a aeronáutico, Miranda (2007) comenta que,
historicamente, esse setor conta com o apoio governamental e que, no Brasil, esse
apoio foi justificado pelos interesses militares, pois, no pós-guerra, o controle da
indústria aeronáutica representava mais autonomia quanto à segurança nacional.
Para a autora, na atualidade, ainda que essa preocupação possa influenciar
decisões políticas, leva-se em consideração o fato de que a indústria aeronáutica,
como fabricante de produtos de alto conteúdo e valor agregado, viabiliza a geração
de empregos qualificados, as exportações e dinamiza outros setores.

Miranda (2007) comenta ainda que no setor aeroespacial, por se tratar de empresas
cujas atividades envolvem elevados custos e riscos financeiros, os governos estão
mais dispostos a promover estímulos e compensações, chegando a assumir parte
desses custos e incertezas, por exemplo, quando financiam a P&D para projetos do
setor. Para a autora, o estreito vínculo com o governo é uma das características
marcantes desse segmento, especialmente via projetos para a aviação militar.

Neste mesmo sentido, Silva (2009) aponta que as compras realizadas pelo poder
público na área militar podem impulsionar o desenvolvimento tecnológico e interferir
positivamente no setor. Segundo o autor, para atender à demanda das Forças
Armadas de se manterem equipadas, os governos contratam pesquisas e atividades
de desenvolvimento, permitindo uma cadeia tecnológica com equipes
especializadas, capazes de produzir novos conhecimentos e de criar as condições
para a competição das empresas no setor privado.

O caso da Embraer representa o exemplo mais ilustrativo desse aspecto. A empresa


entrou em atividade com uma encomenda do então Ministério da Aeronáutica de 80
aviões Bandeirante, que se somou, posteriormente, a outros projetos militares, como
o Tucano, demonstrando que o mercado inicial da empresa foi o doméstico,
garantido pela política governamental (BERNARDES, 2000).

Esses exemplos de projetos desenvolvidos para a FAB, ou que contaram com um


volume elevado de recursos públicos, refletem o apoio que o Estado brasileiro
concedeu à indústria aeronáutica. Esse apoio, do ponto de vista comercial, com
encomendas governamentais, ou com a formação de recursos humanos e a
transferência de tecnologia, foi definitivo para que a Embraer obtivesse sucesso no
mercado externo.

427
Porém, a atuação estatal tanto pode alavancar como gerar o retraimento do setor, o
que pode ser visualizado nos resultados da Embraer ao final dos anos 80. A
empresa apresentou um quadro desfavorável, no qual uma das razões apontadas foi
o desenvolvimento de grandes projetos sem condições adequadas de
financiamento, associadas ao fim do regime militar e ao esgotamento do modelo de
substituição de importações. Segundo Miranda (2007), nessa época, as empresas
públicas que haviam sido criadas sob os moldes desenvolvimentistas sofreram a
redução do repasse de recursos, de acesso ao crédito, de financiamentos, de
compras governamentais e a suspensão de programas de isenção fiscal.

Ainda com relação aos projetos militares da Embraer, Drouvot (1994) e Miranda
(2007) citam o projeto AMX como um típico exemplo da atuação estatal, na
continuidade de uma política de reserva de mercado e de compras públicas para a
FAB. Outros projetos citados são: o avião Tucano, que passou por um processo de
modernização e voltou a ser comercializado na versão Super Tucano/ALX, a partir
de 1995; e o jato regional ERJ 145, adaptado para operar como uma aeronave de
vigilância e sensoriamento remoto no projeto SIVAM.

Na atualidade, encontra-se em desenvolvimento o Projeto KC-390, aeronave de


transporte militar, que poderá vir a substituir a frota do C-130, utilizado na FAB para,
entre outras missões, o transporte de tropa e reabastecimento em voo.

3 Metodologia

Para a análise da influência de variações no fluxo de recursos destinados ao MD


sobre o grau de implementação de programas da Aeronáutica, no período de 2000 a
2009, foram utilizados dados de programas constantes nos Relatórios de Avaliação
dos Planos Plurianuais (PPA) 2000-2003, 2004-2007 e 2008-2011, bem como dados
do SIPRI, deflacionados com base no IGP–DI de 2009. Com esses dados, foram
definidas as variáveis e realizadas regressões lineares mantendo o grau de
execução física de programas como a variável dependente e o fluxo de recursos
destinados ao MD como a variável independente.

A seleção dos programas dos PPA´s a serem utilizados para a coleta de dados foi
realizada mediante a observação dos programas do Comando da Aeronáutica

428
(COMAER) que se mantiveram no período considerado, bem como da exclusão
daqueles que apresentaram ações não estrita ou tipicamente militares. Foram então
selecionados três programas: Reaparelhamento e Adequação da FAB, Preparo e
Emprego da Força Aérea e Tecnologia de Uso Aeroespacial, que representaram
54% do total investido em programas do COMAER, segundo os dados do PPA
2004-2007.

A partir da análise da execução física e financeira anual para cada programa


selecionado foi realizado o cálculo da média aritmética para o percentual anual de
execução dos três programas, de modo a se definir a variável grau de
implementação de programas da Aeronáutica. Desse cálculo, foram gerados os
dados utilizados nas análises de regressão linear.

Tabela 1: Dados da pesquisa utilizados nas análises de regressão linear

Médias % de
execução dos Despesas (em R$ milhões)**
ANO programas Aer Var. %

Física Financeira MD* Total MD (X1) Discricionárias COMAER


MD

2000 13,87 13,57 1,92 44.790,20 9.210,14 9.103,95

2001 167,71 89,18 11,59 49.979,99 9.802,85 9.855,34

2002 188,28 97,16 - 2,70 48.628,62 7.580,87 9.463,08

2003 52,44 63,78 -25,48 36.240,30 5.241,91 7.561,63

2004 89,92 99,79 1,24 36.689,93 6.625,58 7.731,32

2005 85,23 96,75 9,12 40.036,90 7.494,63 8.092,86

2006 64,75 77,43 6,05 42.458,52 7.258,73 9.378,39

2007 73,30 97,71 6,37 45.161,80 9.089,00 9.770,79

2008 57,32 93,20 1,07 45.644,27 9.262,73 8.508,06

2009 97,18 46,86 12,57 51.382,00 3.827,36 11.037,09

Média 89,00 77,54 2,17 44.101,25 7.539,38 9.050,25

Fontes: Relatórios anuais de avaliação dos PPA‘s; SIPRI; SIAFI/Portal SOF, IPEADATA.
Obs.: *Var. % MD corresponde à variação anual do total de recursos destinados ao MD;
**Valores deflacionados com base no IGP-DI, ano base 2009.

429
Após a análise econométrica, foi realizado o estudo de caso do Projeto AMX, com o
objetivo de se levantar outras variáveis intervenientes na implementação de
programas da Aeronáutica, possivelmente omitidas do modelo econométrico.

4 Análise e Interpretação dos Resultados das Regressões

O resultado da análise de regressão linear para o grau de execução física como a


variável dependente (Y1) e o volume de gastos do MD (X1) como a variável
independente, gerou os seguintes parâmetros: β 1 (constante da equação) igual a -
122,56 e β2 (coeficiente da variável independente) igual a 0,005. Tais parâmetros
permitiram a estimativa da equação: (Y1) = -122,65 + 0,005X1.

A equação indica que se o volume de gastos do MD for cerca de 40 bilhões de


Reais, espera-se um grau médio de execução física anual para os programas de
77,35%. Dessa forma, o sinal encontrado para o parâmetro β 2 corresponde ao
esperado (influência positiva da variável explicativa).

No entanto, ao se verificar o grau de ajustamento da equação pela análise do


coeficiente de determinação (R2) observa-se um valor baixo para o mesmo (0,229),
indicando que apenas 22,9% das variações no grau de execução dos programas
seriam explicadas pelo modelo proposto. Além disso, a análise do teste t indicou um
valor pouco significativo para a constante da equação, com a probabilidade de erro
de 40,1% e um valor baixo também para a significância do coeficiente β 2 (16,2% de
margem de erro). Também o teste F, pela tabela de análise de variância, mostrou
elevada margem de erro.

A baixa significância encontrada para o coeficiente da constante indicou a


possibilidade de se aceitar tal valor como zero e se passar a realizar a estimativa da
equação de regressão pela origem. Na análise de regressão pela origem,
consideradas as mesmas variáveis, obteve-se um parâmetro β2 de 0,002, gerando a
seguinte estimativa de equação: (Y1) = 0,002X1.

Desta forma, manteve-se o sinal esperado e obteve-se uma elevação no valor do R2


(0,797). Com relação aos resultados dos testes t e F, a nova regressão também
gerou melhores resultados, com a elevação da significância dos parâmetros.

430
Em termos teóricos, a regressão pela origem da relação entre execução física de
programas e gastos do MD também pode ser aceita, na medida em que é possível se
considerar que sem gastos não há execução, ou que, para que haja um mínimo de
execução física de programas, certo volume de recursos deva ser destinado ao MD.

Para a análise da consistência das regressões foram realizados os testes de Durbin-


Watson (para a detecção da correlação entre os resíduos) e o Dickey-Fuller (para a
verificação da estacionariedade das séries temporais). O valor da estatística d (de
Durbin-Watson) calculado pelo SPSS foi de 1,372, indicando a ausência de
correlação serial nos resíduos. O teste da estacionariedade das séries temporais
mostrou que as séries são estacionárias, fortalecendo os resultados da regressão.

No entanto, embora os testes de consistência apresentem resultados favoráveis ao


modelo, a baixa significância dos parâmetros estimados na regressão com o
intercepto, bem como as limitações da análise de regressão pela origem
(impossibilidade de se interpretar o R2 da maneira convencional) revelam que,
possivelmente, o tamanho da amostra (n=10), que incorpora o período de 2000 a
2009, seja insuficiente para a obtenção de resultados mais consistentes. Além disso,
as diferenças encontradas nas metodologias de divulgação dos resultados dos
programas nos três PPA´s contemplados no período também podem ter gerado
distorções no cálculo das taxas de execução física e financeira, comprometendo a
exatidão das estimativas realizadas.

Esses resultados indicaram, ainda, a possibilidade de que variáveis importantes


tenham sido omitidas da análise, ou que a variável explicativa gastos com o MD
pudesse ser redefinida. Foram então realizadas outras análises de regressão, nas
quais se passou a considerar a variável explicativa como:

- a variação anual dos gastos com o MD (X2);

- o volume de despesas discricionárias do MD (X3);

- o volume de recursos destinados apenas ao COMAER (X4).

Para as três modificações na variável explicativa, foram realizadas análises de


regressão com e sem o intercepto, considerando como variável dependente a

431
execução física. Os resultados iniciais das análises ficaram aquém do esperado,
principalmente nas regressões em que foi considerada a presença de uma constante
na equação. As regressões pela origem apresentaram melhor ajustamento, com
coeficientes mais significativos.

Tabela 2: Síntese dos resultados das análises de regressão linear pela origem
tendo como variável dependente o grau de implementação de programas da
Aeronáutica.

Sig. Presença de Variável


Variável independente R2 coeficiente autocorrelação independente
β2 estacionária
Gastos MD (X1) 0,79 0,000* não Sim
7
Variação (%) dos gastos MD 0,08 0,382 não Não
(X2) 6
Despesas Discricionárias MD 0,72 0,001 não Sim
(X3) 6
Gastos COMAER (X4) 0,78 0,000* não Sim
3
Fonte: Dados da pesquisa (resultados SPSS).
Obs.: * Indica valores muito pequenos.

Com exceção para a variável independente X2, cuja regressão foi descartada pela
baixa significância, as análises de regressão pela origem geraram resultados
semelhantes para as outras três variáveis independentes.

5 Considerações Sobre os Resultados da Análise Econométrica

Inicialmente, a observação sobre a execução física e financeira dos programas


selecionados superou as expectativas, pois contrastou com as colocações de
estudos que abordam a implementação de programas no âmbito das Forças
Armadas. Diversos autores argumentam que a falta de recursos vem gerando o
adiamento de diversos projetos militares, ou, até mesmo, impedido a manutenção de
obrigações já assumidas, comprometendo a operacionalidade das Forças. O que

432
explicaria essa distorção entre os dados coletados e as posições assinaladas pelos
autores?

No período de 2000 a 2009, o programa Reaparelhamento e Adequação da FAB


apresentou um elevado percentual de execução física, indicando que o governo
federal atingiu as metas propostas no PPA para as diversas ações e projetos de
reaparelhamento e adequação, apesar das oscilações no grau de execução.
Observa-se, contudo, que o ano de 2002 eleva sobremaneira a média do período, o
que pode estar relacionado às diferenças encontradas na metodologia de avaliação
do PPA 2000. Além disso, o ano de 2002 reflete o período final de um mandato,
onde, normalmente, se busca garantir as realizações propostas no PPA diante das
incertezas de um novo governo.

O programa Preparo e Emprego da Força Aérea também apresenta elevados


percentuais de execução física e financeira no período, indicando que, no mínimo, as
previsões dos planos plurianuais foram realistas quanto às metas estipuladas para o
período. Nesse aspecto, há que se considerar que esse programa é vital para a FAB, pois
atinge diretamente as atividades fim, ações de manutenção da Força, não possibilitando
cortes ou adiamentos sem comprometer seriamente o seu funcionamento.

Já o grau de execução física e financeira do programa Tecnologia de Uso


Aeroespacial oscilou bastante ao longo da década, atingindo, contudo, média
elevada no período devido, principalmente, aos anos de 2001 e 2002, de forma
semelhante ao ocorrido nos demais programas.

No entanto, ao se considerar os graus de execução física e financeira dos


programas, deve-se levar em conta que a definição dos objetivos a serem atingidos
no plano envolve não apenas questões técnicas, mas também políticas, acarretando
que as metas do PPA não necessariamente refletem as reais necessidades das
Forças, mas representam as prioridades da gestão administrativa (e política) do
plano. Este fator implica na possibilidade de que ainda que haja elevado grau de
implementação, medido pela relação entre o previsto e o executado, não há
garantias de que esse percentual represente o pleno atendimento das necessidades
das Forças, mas tão somente que o governo federal conseguiu cumprir as metas
fixadas quando da elaboração do PPA.

433
Conforme Mindlin (2003), a implementação de um plano é um fenômeno político,
refletindo a relação num dado sistema entre política e administração. Também
Cardoso (2003) faz essa relação entre o planejamento e a política, pois, para o
autor, a definição de planos (com seus objetivos e metas) envolve não apenas a
alocação de recursos, mas também de valores, na medida em que se definem como
esses objetivos são propostos e os recursos são distribuídos.

Com relação ao modelo adotado, observa-se que as oscilações nos percentuais de


execução física e financeira, principalmente nos quatro primeiros anos da década,
com fortes elevações em 2001 e 2002, seguidas de uma queda em 2003, podem
estar associadas às variações no fluxo de recursos destinados ao MD, o que foi
demonstrado pelas análises de regressão. Observou-se, como o esperado, que o
fluxo de recursos destinados ao MD de fato afeta a implementação dos programas,
embora a tentativa de se redefinir esse fluxo, especificando-o como despesas
discricionárias ou do COMAER não tenha gerado resultados mais satisfatórios para
as análises de regressão com o intercepto, ocasionando a desvantagem de não se
poder interpretar o R2 da maneira convencional.

Assim, os resultados encontrados apontam para a possibilidade de que o grau


de implementação de programas da Aeronáutica envolva não apenas fluxos de
recursos, mas também outras variáveis omitidas do modelo e de maior
dificuldade de mensuração como a política e a gestão. Como forma de se
levantar essas outras variáveis, de cunho mais qualitativo, e ainda para
verificar, mais profundamente, questões abordadas na análise quantitativa, foi
realizado o estudo de caso do Projeto AMX.

6 O Projeto AMX

O projeto AMX surgiu na década de 70, a partir um acordo conjunto assinado pelo
Brasil e pela Itália para o desenvolvimento de uma aeronave de ataque. O projeto foi
conduzido por um consórcio entre as companhias italianas Alenia Aerospazio,
Aermachi e a brasileira Embraer. Atualmente, o projeto faz parte do programa
Tecnologia de Uso Aeroespacial que prevê a modernização das aeronaves.

434
A partir de 1981, teve início o desenvolvimento do AMX. Sua apresentação oficial
ocorreu na Itália em 1985 e o primeiro protótipo construído no Brasil realizou seu voo
inicial em outubro desse mesmo ano. Com o cronograma atrasado, somente em
1988 as entregas começaram, com o primeiro exemplar entregue à Força Aérea
Italiana (CAVAGANARI FILHO, 1993). Em 1989 foi realizada a primeira entrega à
FAB, quando o AMX A-1 tornou-se operacional. Sua versão de treinamento, o AMX-
T, passaria a ser entregue em 1990, quando foi também declarada operacional.

Cavagnari Filho (1993) aponta que ocorreram recorrentes alterações no cronograma


de entregas do AMX, enquanto socorros orçamentários eram destinados à Embraer,
tendo como consequência, uma redução na previsão da distribuição de aeronaves
para a FAB. Segundo o autor, em 1991, o então Ministério da Economia liberou
US$110 milhões para o programa, visando cumprir seu cronograma de
fornecimento. Porém, com o agravamento da crise da Embraer, houve a redução de
50% do seu pessoal, queda das exportações e aumento de suas dívidas de curto
prazo, encerrando o primeiro semestre de 1993 com um elevado nível de
endividamento.

Para o autor, o AMX teve um considerável peso nesse endividamento, uma vez que
a média dos investimentos em P&D, de 1983 a 1989, foi de 63% do total dos
investimentos da empresa, sendo que o AMX consumiu a maior parte. A justificativa
para esses investimentos seria a sua aceitação no mercado internacional, pois, de
acordo com uma pesquisa realizada pela coordenação do programa, o mercado
externo poderia absorver em torno de 2500 aeronaves desse tipo e, como o preço
do AMX era considerado bastante competitivo, haveria a possibilidade de se vender
cerca de 600 aeronaves em médio prazo (CAVAGNARI FILHO, 1993).

Já para Torres Filho (2007), um dos problemas enfrentados para a exportação do


AMX refere-se à elevação no preço unitário do avião, que acabou se tornando o
dobro do valor inicialmente previsto, muito superior ao custo de uma aeronave
similar ―de prateleira‖ na época.

Frischtak (1992) aponta que embora as forças aéreas brasileira e italiana tenham
sido as clientes iniciais, o AMX foi projetado, desde seu início, com um custo
relativamente baixo, para atender aos mercados de exportação fora dos grandes

435
países desenvolvidos. Para o autor, o AMX provou ser uma aeronave eficiente,
confiável e de fácil manutenção. O principal problema enfrentado pelo projeto seria,
entretanto, as baixas taxas de produção ocasionadas pelas quedas nas
encomendas da Itália e do Brasil, devido à diminuição dos orçamentos de defesa.

Segundo Drouvot (1994), em 1988, após o governo brasileiro ter gasto US$ 170
milhões, reduziu os financiamentos ao projeto devido à sua política de redução do
déficit público. Taveira e Silva (1992) também mostram que o país enfrentou uma
série de dificuldades orçamentárias no desenvolvimento do projeto, reduzindo de 79
para 56 as aeronaves adquiridas no Brasil. Ainda devido aos diversos adiamentos
por questões orçamentárias e à falta de capacidade interna instalada, ―a parte de
competência brasileira na fabricação do motor foi introduzida gradualmente, sendo
que, somente a partir do final de 1991, é que foram criadas as condições para
produção no Brasil de todas as peças da parte que lhe coube‖ (TAVEIRA; SILVA,
1992, p. 21).

Na década de 90, na Itália, o AMX estaria sendo montado à taxa de dois por mês e,
no Brasil, em menos de um por mês. Para Frischtak (1992), ambos os países seriam
capazes de duplicar as suas taxas de produção. Em meados de 1991, os dois
primeiros lotes do AMX foram entregues à Força Aérea Italiana e, do primeiro lote de
30 aviões previsto para a FAB, apenas 10 haviam sido entregues.

Torres Filho (2007) comenta que os investimentos realizados no programa não


surtiram os efeitos de longo prazo desejados, devido à falta de encomenda no
mercado externo. Cavagnari Filho (1993) também aponta que o avião não alcançou,
nem de longe, o sucesso comercial esperado. Para o autor, a demora de 10 anos
entre a concepção do produto e as primeiras entregas, revelava o grau de
dificuldades que o avião enfrentaria nesse exigente mercado internacional. Além
disso, o autor ressalta que, na década de 90, a situação econômica do país era
completamente diferente daquela existente ―à época da formalização do Acordo
Brasil-Itália, entre 1979 e 1980, quando ainda se faziam projetos de futuro baseados
nos índices de crescimento obtidos na década de 70‖, o que tornava difícil para a
FAB manter as aquisições previstas, estreitando o mercado interno do AMX.

436
Concorreu ainda para o insucesso comercial do AMX a retração no mercado bélico
na década de 90, marcada por modificações advindas do pós Guerra Fria. Segundo
Dagnino (2008), nos anos 90, o gasto militar mundial reduziu-se a um terço em
termos reais (entre 1989 e 1996), pois já não se demandavam grandes arsenais de
armas tradicionais e novas práticas comerciais passaram a ser utilizadas no
segmento militar.

Segundo Torres Filho (2007), o Brasil também enfrentou dificuldades para a exportação
do AMX a outro possível mercado consumidor: a Venezuela. Para o autor, parte destas
dificuldades ocorreu devido à interferência do governo norte americano, alegando-se a
existência, no AMX, de diversos componentes fabricados nos EUA.

Verifica-se assim, que a exportação de produtos militares, além de condicionada por


fatores internos, como as limitações orçamentárias, está também vinculada à política
externa de determinados países.

O insucesso comercial do AMX gerou muitas críticas na imprensa devido à sua


associação à crise enfrentada pela Embraer, bem como ao volume elevado de
recursos públicos destinados ao programa. Segundo Miranda (2007), uma das
razões para essas críticas é que muitas das empresas envolvidas no projeto não
prosperaram depois do seu término. Com a interrupção do projeto, produziu-se
menos do que o previsto, o que agravou as dificuldades que atravessavam algumas
dessas empresas, que sofriam com a baixa escala de produção, os altos custos, a
falta de recursos próprios, a desatualização tecnológica e o difícil acesso ao crédito.

No entanto, diversos autores apontam resultados positivos do projeto AMX, como a


melhora na capacidade operacional da FAB. Ao se considerar esses resultados,
ressalta-se também outro aspecto: a capacitação gerada para a indústria
aeronáutica nacional. Nesse aspecto, Miranda (2007) comenta que todas as fases
de desenvolvimento do AMX foram marcadas por pesquisas intensivas nas
empresas propiciando que, ao final do projeto, o conjunto de engenheiros e técnicos
envolvidos na construção do AMX tivesse ampliado o conhecimento em diversas
áreas, o que pôde ser incorporado aos projetos da aviação civil.

437
Forjaz (2004) e Bernardes (2000) também apontam que alguns dos progressos
técnicos conseguidos com o AMX foram posteriormente empregados no projeto
ERJ-145, caracterizando a tendência permanente da Embraer de acumular o
aprendizado tecnológico empregado em diferentes e sucessivas ―famílias‖ de
aeronaves.

Esse mesmo aspecto é mencionado por Funari e Manduca (2007) e Frischtak


(1992). Para os primeiros, embora o projeto AMX tenha sido prejudicado pela
incapacidade do governo brasileiro de manter a renovação de sua frota prevista no
programa inicial, além da falta de encomendas internacionais que alavancassem a
produção, o projeto gerou investimentos determinantes para que a Embraer
atingisse o atual grau de competitividade no segmento de jatos comerciais médios e
de aeronaves de treinamento como o Tucano e o Supertucano.

Para Frischtak (1992), o AMX teve grande significado para a Embraer, pois, com o
projeto, a empresa deixou o seu nicho de mercado tradicional, na tentativa, tanto de
desempenhar um papel importante no fornecimento para a FAB, como para competir
com americanos, franceses e russos. O autor considera que estes não são objetivos
triviais, dadas as descontinuidades tecnológicas envolvidas no projeto e a
diminuição dos orçamentos militares durante o período no qual o AMX foi lançado.

Segundo Silva (apud MIRANDA, 2007), ao final do projeto AMX, as equipes


brasileiras, tanto da Embraer como da FAB, conseguiram as qualificações
necessárias, estando capacitadas a projetar ou modificar qualquer item das
complexas instalações eletrônicas da aeronave. Para Miranda (2007), esse conjunto
de conhecimentos e tecnologias viabilizado pelo AMX é que levou Maurício Botelho,
quando então presidente da Embraer, a afirmar que ―se não fosse o AMX, a
Embraer não seria o que é hoje.‖ (MIRANDA, 2007, nota de rodapé, p.44).

Segundo Cavagnari Filho (1993), como consequência do projeto, a Embraer teve


que duplicar o seu parque de usinagem e realizar um intenso treinamento de
pessoal para operá-lo, se capacitando para o desenvolvimento da "inteligência" do
avião (o software), o que gerou a necessidade de conhecer a totalidade do
processo.

438
Com relação à participação do Estado no setor, Miranda (2007) considera que,
depois do AMX, não surgiu nenhum outro programa de vulto que se voltasse para
um planejamento estratégico com o objetivo de fortalecer as indústrias do setor, mas
apenas alguns mecanismos isolados de diferentes instâncias do governo.

A partir de 2003, o programa AMX evoluiu para a fase de modernização e


incorporação de melhorias, no entanto, desde então, a continuidade desse programa
enfrenta o problema das restrições orçamentárias vivido pela FAB. O Projeto de
Modernização das aeronaves AMX, iniciado em 2003, com a contratação da
Embraer como empresa principal, foi o responsável pela execução de todas as
atividades de modernização, tendo por objetivo manter ativa por mais 20 anos a
frota dos 53 aviões de combate em atuação no país (BRASIL, 2009).

No PPA 2000-2003, visualiza-se a incorporação das propostas envolvendo o AMX


no Projeto de Modernização do AMX. Segundo o documento, essa modernização
tem como objetivo resolver os problemas de obsolescência de alguns equipamentos
da configuração das aeronaves AMX, buscando a integração com os projetos AL-X e
F-5BR (BRASIL, 2003). Já nos relatórios de avaliação do PPA 2004-2007 e do PPA
2008-2011 o projeto se situa no contexto do programa Tecnologia de Uso
Aeroespacial. Nesses relatórios, percebem-se as dificuldades encontradas para a
sua viabilização, como exemplo:

Os recursos disponibilizados em 2007 para o caça AMX foram insuficientes


para permitirem honrar os compromissos contratuais assumidos, forçando o
replanejamento da entrega das aeronaves modernizadas para o período de
2011 a 2014. (BRASIL, 2008, p.133).

Conforme os dados da figura 1 observa-se que a execução orçamentária do Projeto


AMX acompanhou as oscilações do fluxo orçamentário do Ministério da Defesa, que
sofreu um corte profundo no ano de 2003. Posteriormente, verifica-se uma
recuperação no nível de recursos destinado ao projeto, para uma nova queda a
partir de 2007.

Figura 1: Execução orçamentária do Projeto AMX (2001-2008).

439
120.000.000,00

100.000.000,00

R$ correntes
80.000.000,00

60.000.000,00

40.000.000,00
20.000.000,00

-
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Ano

Previsto Realizado

Fonte: Relatórios anuais de avaliação do PPA – Ministério do Planejamento.

No início do ano de 2009, o COMAER anunciou que o contingenciamento de verbas


não iria afetar os programas prioritários, como o AMX. Ainda em 2009, foi divulgado
no Diário Oficial da União um contrato acessório do Programa de Modernização,
firmado entre o Comando da Aeronáutica e a Embraer para a aquisição de
equipamentos inexistentes no mercado nacional. No entanto, no relatório de
Avaliação do PPA 2008-2011, não constam valores relativos à execução da ação
Desenvolvimento do AMX para o ano de 2009, apenas uma previsão de recursos
alocados para 2011. A partir desse período, não foram encontrados dados relativos
aos resultados dessa ação, que foi incorporada à ação 3128 Modernização e
Revitalização de Aeronaves.

7 Conclusões

A atuação do Estado no setor aeroespacial envolve uma série de investimentos que


surgem sob a forma de programas, inseridos no processo de planejamento estatal.
Nesse processo, o Estado determina quais serão os programas do setor a
receberem o aporte público, a partir de uma definição de prioridades nacionais que
envolvem questões de ordem político estratégica, bem como de ordem econômica,
dada a limitação dos recursos públicos.

Neste estudo, buscou-se analisar fatores determinantes da implementação de


programas militares aeroespaciais, utilizando como parâmetro o grau de execução
de programas da Aeronáutica. Observou-se que as variações no fluxo de recursos
destinados ao MD de fato afetaram a implementação dos programas selecionados
no período de 2000 a 2009. Contudo, os resultados da pesquisa apontaram ainda

440
para a presença de outras variáveis intervenientes e de maior dificuldade de
mensuração como fatores políticos relacionados à definição de prioridades e de
metas do PPA e a própria gestão interna dos recursos e dos programas.

Nesse sentido, verifica-se que além da garantia de um fluxo previsível e regular de


recursos, não sujeito a oscilações bruscas, mecanismos que assegurem a
consistência dos planos e a otimização dos processos administrativos são
fundamentais para que se alcance níveis elevados de implementação de programas.

A observação de outras variáveis, não quantitativas, levou à opção de se realizar o


estudo de caso do Projeto AMX. O estudo expôs e exemplificou as dificuldades
relacionadas às variações nas prioridades políticas, bem como às questões de
gestão, como a delimitação de mercados consumidores (interno e externo) dos
projetos e, ainda, os problemas oriundos da política externa que condiciona o
segmento de produtos bélicos.

Dessa forma, observa-se a permanência, na atualidade, das oscilações na execução


dos recursos destinados aos programas aeroespaciais, revelando que o projeto
analisado no estudo de caso, assim como outros considerados prioritários no país
continuam tendo como característica básica os atrasos em seus cronogramas,
decorrentes dos contingenciamentos e das restrições orçamentárias vivenciadas ao
longo do desenvolvimento, com todos os custos tecnológicos, econômicos e
estratégicos decorrentes.

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443
A CONSTRUÇÃO DO MODELO BRASILEIRO PARA RESOLUÇÃO DE
CONFLITOS

Sandra Aparecida Cardozo152


Aureo de Toledo Gomes153

1 Introdução

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de pesquisa cuja
meta é analisar as características principais do que vem sendo designado
modelo brasileiro para atuação em operações de paz e resolução de conflitos. A
opção feita neste trabalho é de averiguar como a ideia de um modelo brasileiro
para operações de paz cria uma nova identidade para o país no cenário
internacional, mas demanda igualmente uma atuação mais ativa do país em
questões de segurança e desenvolvimento, assim como uma reestruturação das
instituições governamentais para execução de tais tarefas. Nesse sentido, o
presente trabalho é dividido em duas seções: primeiro, o debate sobre as
operações de paz, com ênfase específica sobre como tais missões se propõem
resolver conflitos civis e o que a literatura de cunho crítico afirma ser alguma de
suas consequências; segundo, destacaremos o posicionamento e o papel
brasileiro frente ao papel das operações, enfatizando o que analistas afirmam ser
o modelo brasileiro de resolução de conflitos civis

2 Operações de Paz e Resolução de Conflitos.

É fato consolidado na literatura sobre operações de paz que após o final da


Guerra Fria (1989) as missões passaram por transformações significativas. Se
durante a vigência do ordenamento bipolar no sistema internacional as
operações foram pensadas como expedientes para a resolução de conflitos
interestatais e, mesmo assim, foram poucos os momentos em que foram
autorizadas pelo Conselho de Segurança, num mundo não mais caracterizado
152
IE/UFU
153
IE/UFU

444
pelas disputas estratégico-militares entre EUA e URSS, o grande teatro de
atuação das missões passaram a ser guerras civis, principalmente nos
continentes africano e asiático. Logo, dado o novo ordenamento internacional e
o caráter dos conflitos aos quais as missões eram enviadas, teríamos, segundo
Bellamy, Williams e Griffin (2004), uma tripla transformação na natureza das
operações de paz.

A primeira transformação é de natureza quantitativa. Se durante o período


compreendido entre 1945 e 1987 foram aprovadas apenas 14 missões pelo
Conselho de Segurança, entre 1988 e 1993 20 novas missões foram
autorizadas. A segunda mudança é de natureza qualitativa, ou seja, as tarefas a
serem realizadas não mais se restringiam ao patrulhamento de fronteiras,
supervisão do cumprimento de acordos de paz, dentre outros: agora, as missões
tinham caráter multidimensional, agregando às tarefas já comumente realizadas
empreitadas como entrega da ajuda humanitária e programas técnicos, como,
por exemplo, treinamento e supervisão para realização de eleições. Por fim, a
última mudança é de natureza normativa: boa parte das tarefas executadas por
uma missão teria como objetivo fundamental e final a transformação de
sociedades saídas de conflitos em democracias liberais. A primeira
transformação é compreendida à luz da proatividade da ONU em questões de
segurança internacional no mundo pós-Guerra Fria; porém, as duas seguintes
demandam algumas palavras sobre como analistas e policymakers avaliavam a
causa dos conflitos civis num mundo em que a emergência destes eventos não
poderiam ser simplesmente reduzida ao desengajamento de EUA e URSS dos
países do Terceiro Mundo.

Tomando como referência o debate preenchido por categorias como Novas


Guerras (KALDOR, 1999), Quase-Estados (JACKSON, 1989) e, mais
recentemente, Estados Falidos (HELMAN; RATNER, 1993; FUKUYAMA, 2005,
dentre outros), as principais análises produzidas a partir da década de 1990
apontavam para problemas de ordem doméstica como ponto de origem para a
eclosão das guerras civis: em outras palavras, ora as questões são postas em
termos de disputas étnicas, ora em questões relativas à artificialidade dos
Estados saídos do processo de descolonização e a manutenção dos mesmos

445
no sistema internacional devido majoritariamente ao beneplácito da
comunidade internacional, e ora na ausência de instituições políticas e
econômicas consideradas mais adequadas para o desenvolvimento político e
econômico154. Estas últimas explicações, proeminentessobretudo após os
atentados de 11 de setembro de 2001 enquadram as causas dos conflitos civis
em análises de cunho institucional: o argumento de fundo é a ideia de que boas
instituições incentivam bons comportamentos; más instituições promovem
maus comportamentos.

Assim, no que tange ao questionamento sobre quais instituições transplantar, a


resposta mostrou-se teoricamente informada, ou ao menos justificada, pelo que
se convencionou chamar ao longo da década de 1990 de paz democrática, isto
é, analistas passaram a argumentar que a natureza dos regimes políticos tem
implicações diretas para o comportamento dos Estados no sistema internacional e
que democracias em geral tendem a ser mais tolerantes e pacíficas que regimes
autoritários. Tal fenômeno seria explicado, de acordo com Owen (2000) a partir de
dois prismas: de um lado, argumentos de cunho estrutural afirmam que os arranjos
legais e constitucionais das democracias impõem constrangimentos às ações
unilaterais do executivo para declarações de guerra; de outro lado, questões como
cultura e normas democráticas impediriam as democracias de optarem por usar a
força para resolverem suas divergências. Se o raciocínio funcionava para conflitos
interestatais, com as devidas adaptações também se prestaria para conflitos
intraestatais: democracias liberais e economias orientadas ao mercado deveriam ser
fomentadas em países saídos de conflitos civis, dado que possibilitam maior
participação da população local e incentivando a resolução de conflitos nas urnas
em detrimento de recursos à violência.

Logo, se, em última instância, a emergência de guerras civis e de Estados Falidos


deve-se a ausência de arcabouços institucionais que ao premiarem a moderação
política e ao incentivarem economias orientadas ao mercado impediriam que a
população fizesse uso da violência para avançar suas demandas, a consequência

154
Para uma revisão do debate envolvendo Novas Guerras, Quase-Estados e Estados Falidos, sugerimos
Monteiro (2006). Por outro lado, uma boa revisão da literatura específica sobre guerras civis, em especial as
análises quantitativas, pode ser encontrada em Freire (2011), especialmente os capítulos 01 e 02.

446
lógica e operacional do argumento seria a instrumentalização das missões como
mecanismos para reforma e/ou reconstrução de países. Não à toa, já em 1992, o
então secretário-geral da ONU, Boutros-Boutros Ghali apresentou a seguinte
tipologia para as missões, pensada a partir de quais tarefas as missões deveriam
realizar em campo:

Preventive diplomacy: é a ação levada a cabo para impedir a erupção de conflitos


entre as partes além de evitar que se espalhe para os países vizinhos 155;

Peacemaking: tentativa de se resolver um conflito em andamento, trazendo as


partes envolvidas para a negociação principalmente fazendo uso de meios pacíficos,
principalmente os descritos no Capítulo VI da Carta da ONU;

Peacekeeping: envio de tropas da ONU com o consentimento das partes envolvidas


para se findar com um conflito em andamento;

Post-conflict Peace-Building: ação desenvolvida com o objetivo de identificar e


apoiar estruturas que irão fortalecer e solidificar a paz para evitar um retorno aos
conflitos. Segundo Ghali (1992), enquanto Preventive Diplomacy são as tentativas
de se evitar a eclosão de uma crise, Post-conflict Peace-Building são as ações
empreendidas para se evitar recorrências156.

De acordo com Paris (2002), quatro seriam as maneiras privilegiadas por meio das
quais as operações de paz contribuiriam para a promoção de democracias liberais.
Primeiramente, ao formatarem os termos dos acordos de paz, e assim possibilitarem
a incorporação ao processo de elementos que conduziriam a democracia no país.
Em segundo lugar, mediante cooperação técnica, uma vez que em determinadas

155
São as ações empreendidas antes da erupção conflito armado e se caracterizam, na maioria das vezes, em
tentativas de se trazerem os contendores para a mesa de negociações.
156
Posteriormente, em 2000, Lakhdar Brahimi, ao avaliar a experiência das operações de paz durante a década
de 1990 irá apresentar uma nova tipologia. Peacemaking lida com conflitos em andamento, procurando criar
uma trégua por meio da diplomacia e mediação; Peacekeeping é a missão tradicional da ONU, envolvendo
meios militares para o monitoramento de cessar-fogos, mas que no decorrer de sua história incorporou outros
elementos, militares ou não, para criar paz após os conflitos civis; Peacebuilding são as estratégias
implementadas para construir uma paz que seja mais do que a mera ausência do conflito armado, envolvendo a
reintegração de ex-combatentes, treinamento de polícia local e até a construção de estruturas democráticas de
governo. Por fim, em 2008, a ONU publica o documento United Nations Peacekeeping Operations: Principles
and Guidelines, mais conhecido como Doutrina Capstone, cujo objetivo principal é fazer um balanço dos 60
anos da organização e de sua experiência com a construção da paz. Apesar de algumas mudanças, é possível
afirmar com algum segurança que a tipologia das missões mantém-se a mesma.

447
ocasiões as missões acabam por desempenhar papeis de destaque em questões
relativas ao processo de liberalização política e econômica, influenciando desde a
elaboração de políticas públicas, até o funcionamento da economia nacional e a
própria constituição dos países. Uma terceira maneira seria a imposição de
condicionalidades, em associação com organizações como o Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial, exigindo que os Estados realizem reformas
políticas e econômicas em troca de ajuda econômica. Por fim, em dados momentos,
muitas das missões acabam por desempenhar tarefas governamentais,
principalmente durante o período em que os países em questão não tivessem
condições para tanto.

Há de se agregar ainda ao presente quadro a ênfase na reconstrução de Estados


como solução aos problemas de segurança internacional após os atentados de 11
de setembro de 2001. Em consonância com analistas como Rotberg (2004) e
Fukuyama (2005), a proposta desenvolvida após os atentados era que a ineficácia
ou relutância de governos locais em conter seus problemas domésticos e impedir
que os efeitos dos mesmos ultrapassassem suas fronteiras só seria resolvida com
Mudanças de Regime (Regime Change), conforme apresentada pelo discurso e
prática da política externa norte-americana: o comportamento desviante de Estados e
os perigos advindos do interior deles só seriam superados com a deposição e
transformação de ditaduras em democracias liberais. Ao fim e ao cabo, a despeito das
inúmeras controvérsias envolvendo o tema, o recado que analistas alinhados a tais
perspectivas procuram passar é que se trata de uma tarefa de natureza técnica, dado
que o foco das intervenções é a reconstrução das instâncias burocráticas dos países.

São muitas as críticas direcionadas à paz liberal, isto é, o nome dado à forma e ao
conteúdo das operações de paz que almejam construir Estados liberais
democráticos. De particular interesse para a compreensão do papel brasileiro junto
às missões de paz são aquelas que envidam esforços para questionar o conteúdo e
as consequências das missões; logo, num esforço de síntese, podemos dividi-las
entre as que avaliam o papel das operações de paz enquanto reprodutoras da
ordem internacional contemporânea e uma segunda linha que problematiza os
resultados dessas reconstruções.

448
Na primeira linha, estudos como os de Roland Paris (2002) argumentam que as
operações de paz no mundo pós-Guerra Fria podem ser compreendidas como
missões civilizatórias, tais como aquelas realizadas durante a época do imperialismo
europeu dos séculos XVIII e XIX, na medida em que teríamos a globalização de um
modelo de governança doméstica do centro para a periferia, criando assim mais
uma segmentação no sistema internacional: além das divisões entre países oriundas
de diferenças entre poderio bélico e econômico, teríamos também a criação de
divisões relativas à virtude política, dado que alguns países alcançaram o zênite em
termos de desenvolvimento político e econômico, enquanto outros ainda patinam
nessa mesma senda157.

Por sua vez, Michael Pugh (2005) destaca que as propostas de reforma propagadas
pelas missões são na maioria das vezes guiadas por ideias como redução do papel
do Estado, promoção de privatizações e outras recomendações liberais, que na
maioria das vezes perpetuariam uma situação de desigualdade entre centro e
periferia. Ainda segundo este autor, a implementação de políticas desse porte seria
muito facilitada pela representação das sociedades saídas de conflito como
congenitamente incapazes de se autogovernarem, o que proporcionaria as
condições para a criação de novas formas de tutela que inevitavelmente tenderiam a
refletir mais os interesses dos interventores do que da população local. Em suma, a
orientação geral desse tipo de abordagem seria problematizar o conteúdo liberal
embutido nas missões, além de questionar, por exemplo, se as causas dos conflitos
em questão não seriam intrínsecas ao funcionamento do sistema interestatal e do
capitalismo global, e de que forma as operações de paz contribuem para a
globalização de um estado de coisas que longe de encerrar uma situação de
desigualdade, apenas impediria que os problemas da periferia alcançassem as
principais potências do sistema internacional.

157
Apesar dos apontamentos pertinentes, Paris apresentou ao longo dos anos um posicionamento reformador
frente às operações de paz. Em outras palavras, a despeito de críticas relativas à atenção inadequada às condições
institucionais domésticas para o sucesso da democratização e das reformas pró-mercado, a falta de coordenação
entre os diversos atores internacionais envolvidos, a pouca vontade política dos interventores para completar as
tarefas, assim como os recursos exíguos para as missões e a baixa participação da população local nas principais
decisões relativas às reconstruções, dentre outras, Paris (2010) afirma que parece não haver alternativa ao
peacebuilding liberal e que tais missões podem e devem ser reformadas, mas dizer que as mesmas fizeram mais
mal do que bem seria uma acusação no mínimo exagerada.

449
A seguinte linha de crítica refere-se aos resultados da construção de Estados liberais
democráticos. De acordo com Mark Duffield (2009) a paz criada em situações pós-
conflito redundaria na figura do governancestate: um regime de financiamento ou
mecanismo para países dependentes crônicos de ajuda externa que proporcionaria
estabilidade na relação país doador-país receptor, dado que envolve o último na
formatação e distribuição dos recursos, mas dá ao primeiro o controle formal. Avaliação
semelhante é realizada por David Chandler (2006): segundo este autor, ao privilegiar a
construção de instituições políticas pela via externa, e guiadas pelas normas da boa
governança, as atuais operações deixariam pouco espaço para que estas mesmas
instituições desenvolvessem laços com as forças sociais dos países. Dito de outra
forma,fundamentada em práticas de boa governança, direitos humanos e eleições
democráticas, o formato das atuais reconstruções não deixaria espaço para a
autonomia e autodeterminação daqueles para os quais a democracia está sendo
exportada. Em última instância, estaríamos presenciando a constituição de Estados
Fantasmas (Phantom States), cujas instituições possuem financiamento externo, mas
carecem de legitimidade social e política.

Em síntese, segundo as críticas expostas, o corrente formato das operações


privilegia a implantação de um regime democrático liberal, com uma economia
orientada ao mercado, independente das contingências locais de países tão distintos
como Camboja e Timor Leste, por exemplo. É importante frisar que tais estudos não
procuram advogar contra a democracia e direitos humanos; a proposta é mostrar
que da forma como vem sendo realizadas, sem a mediação necessária da
população local e de maneira acrítica, as missões contribuem para criar o que
muitos afirmam ser mais uma paz virtual do que real.

3 O Brasil e as Operações de Paz

É dentro dessa conjuntura de dita crise do modelo liberal para operações de paz e
resolução de conflitos que podemos situar o papel brasileiro. Assim, a pergunta que
merece reflexão é de que maneira o Brasil contribui - ou almeja contribuir - na
discussão sobre o engajamento em missões de paz e resolução de conflitos?

450
Ainda que o estudo tenha um recorte temporal que vai apenas até o começo da
década de 1990, Laura Neack (1995) argumentava que a tendência era que os
principais contribuidores com tropas para operações de paz são países que se
beneficiam do status quo internacional ou potências emergentes que almejam
ampliar sua influência regional e global. Ademais, segundo a autora, a participação
em operações de paz é interessante dado que tais missões apresentam menores
riscos para as Forças Armadas dos países do que guerras em grande escala,
possibilitam treinamento específico e incentivam a modernização do exército, além
de promover a cooperação militar entre os Estados participantes. Os resultados
encontrados por Neack, ao menos num primeiro momento, parecem se encaixar
com o perfil brasileiro de participação em operações de paz, sobretudo até o
governo Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002). De acordo com o banco de
dados produzido por Rezende (2010), a participação brasileira em operações de paz
da ONU é comparativamente baixa, com exceção da MINUSTAH, que representaria
uma inflexão no comportamento brasileiro, devido ao grande contingente enviado ao
país da América Central.

Tal inflexão é muito vezes analisada por meio das diretrizes da política externa
brasileira. A participação ativa na liderança do contingente militar da MINUSTAH é
tratada a partir dos interesses brasileiros em uma maior participação e efetividade
nas instituições multilaterais como membro rotativo e a aspiração a membro
permanente do Conselho de Segurança da ONU. O empenho dado a este último
elemento provém da interpretação de uma ordem internacional não mais como uma
―nova ordem mundial‖, como disseminada logo após o fim da Guerra Fria, mas do
reconhecimento das estruturas de poder pouco modificadas, aliada à dimensão de
um unilateralismo norte-americano. Este fator acionou no Governo Lula (2003-2010)
elementos tais como o universalismo, o multilateralismo e a autonomia na condução
da política internacional, elementos presentes em outros contextos de atuação
internacional do país e retomados como princípios. Em termos gerais, a perspectiva
de atuação engendrada pelo Governo Lula residiria na forma de atuação
diplomática, uma vez que muitos temas de política externa já faziam parte dos eixos
de atuação do governo anterior Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, os temas
prioritários foram os mesmos que do governo anterior: ampliação do Mercosul,

451
fortalecimento da América do Sul, relações com potências regionais, defesa da
reforma do Conselho de Segurança da ONU, manutenção de relações com Estados
Unidos e Europa e atuação econômica multilateral (LIMA, 2005).

Esta atuação diplomática diferenciada a partir do Governo Lula refletiu-se em


determinadas diretrizes da política externa brasileira, enfatizando o aprofundamento
do processo de integração sul-americana, a intensificação do intercâmbio com os
países emergentes, além da retomada do estreitamento das relações com os países
africanos. Especificamente, a campanha para o Brasil ter um assento permanente
no Conselho de Segurança da ONU tornou-se prioridade. A importância dada a este
tema levou à intensa articulação com países que dividem as mesmas aspirações,
além de potências e nações em desenvolvimento que podem auxiliar na conquista
de tal objetivo. O arsenal universalista do Brasil foi redimensionado e a capacidade
de articulação nos foros internacionais restabelecida.

Nesse sentido, o reforço para ativar o multilateralismo e a mediação de conflitos


demonstrou-se pela participação e liderança do Brasil MINUSTAH, aprovada em
2004. Na avaliação de Diniz (2007), num processo de aproximação da região e de
atuação mais ativa na ONU, consoante com as reivindicações por mudanças
estruturais na organização, a participação do Brasil na MINUSTAH pode estar
relacionada com os demais interesses políticos brasileiros nas relações
internacionais e romperia, assim, com uma tradição que resistia às Operações de
Imposição da Paz ao aceitar ações baseadas no capítulo VII da ONU, que autoriza o
emprego da força armada se necessário. Somados os pontos, uma primeira e
importante forma para compreendermos o engajamento brasileiro em operações de
paz e a contribuição brasileira para resolução de conflitos advêm das diretrizes da
política externa do país.

Inobstante a importância dos interesses políticos e econômicos do país, outra seara


investigativa – e que nos interessa mais detidamente – é mediante a análise de uma
possível contraproposta brasileira à paz liberal. Trocando em miúdos, o Brasil teria
um modelo próprio para resolução de conflitos, culminando no que Nasser (2012)
chama de Pax Brasiliensis, cujas características são assim descritas:

452
(...) i) do ponto de vista da estratégia político-diplomática, a coexistência
entre, por um lado, a disposição de oferecer um apoio de natureza
humanista e, por outro, a busca pelos objetivos maiores de política externa -
elementos que, intuitivamente, parecem ser contraditórios, mas que
demonstram sua compatibilidade discursiva e prática; ii) do ponto de vista
da tática político-diplomática, o compartilhamento de passado comum e/ou
a proximidade geográfica têm sido os critérios de seleção das operações
em que o Brasil deseja ter um envolvimento mais ativo; e iii) do ponto de
vista do padrão de ação dos capacetes azuis brasileiros no terreno, a
transcendência das tarefas puramente militares para atuar sobre as causas
profundas do conflito, por meio da prestação de assistência humanitária,
promoção de direitos humanos, assistência à criação das condições para a
promoção do desenvolvimento e o apoio à construção de instituições
estatais democráticas.

A originalidade brasileira para a construção da paz em situações pós-conflito


repousaria, portanto, na forma como o país encara as causas dos conflitos e nas
ações engendradas para tal. De acordo com a avaliação de Kenkel (2010), os
projetos de desenvolvimento avançados pelo país, oriundos da experiência com as
nossas próprias áreas rurais, incluem variáveis subestimadas pelo modelo liberal de
operações de paz, tais como adaptação de sementes para determinados tipos de
solo, ou mesmo educação agrária para comunidades rurais, o que podem ser
elementos interessantes para a construção de uma paz que leve em consideração
as especificidades locais. Assim, o modelo brasileiro, ao trazer à campo elementos
que ao menos em teoria contribuiriam para dirimir as causas mais profundas dos
conflitos, poderia ser compreendido como uma contribuição original para a
formatação das operações de paz da ONU.

Tamanha ambição, reconhecida inclusive pelas autoridades do país, não está isenta de
problemas e contradições. Hamann (2012) argumenta que, a despeito da disseminação
de uma modelo de atuação próprio que mesclaria iniciativas militares com programas
de desenvolvimento econômico e social, ainda há falta de diálogo entre a comunidade
de profissionais que trabalham com cooperação técnica para o desenvolvimento
internacional e aqueles empenhados com manutenção e consolidação da paz. À guisa
de exemplificação, a autora afirma que apesar do discurso oficial destacar a
operacionalização do modelo brasileiro que congrega segurança e desenvolvimento em
missões como as do Haiti e na Guiné-Bissau, na prática, contudo, encontramos apenas
10 civis brasileiros envolvidos nessas missões.

453
Ademais, a cooperação técnica prestada pelo país ainda é na maioria de iniciativa
bilateral, isto é, a originalidade brasileira que seria justamente o aporte da visão
desenvolvimentista para a resolução de conflitos depende mais de acordos bilaterais
entre Brasil e o país receptor, e menos do que uma estratégia política
paraconstrução da paz que traz consigo a necessidade da conexão entre segurança
e desenvolvimento. Não menos importante, há de se destacar que, a despeito das
afirmações celebrando o êxito do modelo brasileiro para a estabilização do Haiti,
trata-se de uma missão brasileira em campo, levando a questionamentos sobre a
possibilidade de aplicação dessa visão em circunstâncias distintas daquelas
encontradas até o presente momento. Assim sendo, inobstante as divergências
sobre a falência do modelo liberal e o potencial sobre um possível modelo brasileiro
de resolução de conflitos e construção da paz, salvo melhor juízo, as justificativas
até aqui arroladas são elementos nada desprezíveis para um estudo sobre o
engajamento brasileiro em operações de paz.

É com base na conjuntura até aqui reconstruída, que leva em consideração as


deficiências do modelo liberal de construção da paz, a possibilidade de
originalidade do modelo brasileiro, mas não dissociado de problemas e
contradições que optamos por tratar o modelo brasileiro enquanto um projeto
político, uma determinada ideia sobre a atuação brasileira em operações de paz,
mas que também traz consigo uma determinada identidade sobre o Brasil e sobre
a natureza da ordem internacional contemporânea. Com tal premissa, inspirada
nas abordagens construtivistas de Relações Internacionais, sobretudo nos
trabalhos de Wendt (1999), que compreendemos os efeitos dessa ideia nas
práticas da política externa brasileira, especialmente no que se refere ao
engajamento brasileiro em operações de paz. Em nosso entendimento, esta
identidade brasileira não pode ser dissociada daquela construída ao longo dos
últimos anos que assevera uma posição brasileira enquanto potência emergente
e que, portanto, poderia galgar maiores espaços no sistema internacional.

454
4 Conclusão

A exposição deve ser entendida como um preâmbulo, isto é, um esboço de um


projeto de pesquisa maior que procura averiguar como a ideia de um modelo
brasileiro para operações de paz e resolução de conflitos a um só tempo cria uma
identidade para o país como construtor da paz em situações pós-conflito e que
tarefas devem ser cumpridas para a execução de tal tarefa, mas também se conecta
com os interesses estratégicos da política externa brasileira de galgar maior espaço
no cenário internacional, reforçando assim a visão de uma nova ordem internacional
na qual o país tem um importante papel a cumprir.

À luz de um debate sobre as operações de paz, sobre como tais missões se


propõem resolver conflitos civis e o que a literatura de cunho crítico afirma ser
alguma de suas consequências, tratou-se de começar a analisar as ações
empreendidas pelo governo brasileiro com vistas a institucionalizar um projeto
político, sobretudo em assuntos relativos à segurança e ao desenvolvimento, com
especial ênfase no emprego das forças armadas brasileiras em operações de paz, e
a cooperação técnica brasileira prestada para países saídos de conflitos. Sobre este
aspecto, tomamos a atuação brasileira junto a Missão das Nações Unidas para
Estabilização do Haiti (MINUSTAH), como caso a ser futuramente analisado, uma
vez que é a operação em que o Brasil estaria desempenhando seu modelo brasileiro
para resolução de conflitos.

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457
Simpósio Temático 06

A REINTEGRAÇÃO SOCIAL DOS EX-COMBATENTES DA SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL NUMA PERSPECTIVA COMPARADA

Dennison de Oliveira158

O surgimento dos primeiros estudos acadêmicos sobre a história dos processos de


reintegração social de ex-combatentes foi decisivamente favorecido pelo impacto das
duas guerras mundiais que assolaram o planeta no século passado. A continuidade
quase ininterrupta de conflitos de menores proporções, mas igualmente letais,
associados à conjuntura da descolonização, Guerra Fria e Guerra ao ―terror‖
contribuíram para manter aceso o interesse dos pesquisadores de nível universitário
sobre o assunto. Em particular nos EUA, a prolongada Guerra do Vietnã (1961-73) e
seu fluxo constante de ex-combatentes, teve enorme importância para estes estudos.

O caso dos ex-combatentes das duas guerras mundiais foi objeto de extensa
produção e legou e tem legado vasta bibliografia. Neles o foco é no impacto da
reintegração dos ex-combatentes na cultura e na política do contexto pós-guerra,
com referência a diferentes cenários nacionais. Os casos da Primeira Guerra
Mundial, Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial e Guerra do Vietnã são
os que tem recebido dos pesquisadores maiores atenções.

O impacto da Primeira Guerra Mundial – originalmente conhecida como ―Grande


Guerra‖ – nos estudos acadêmicos é fácil de entender. Além de ter sido a maior de
todas guerras na História da Humanidade até então, em diversos casos nacionais
(Grã-Bretanha, França, Itália) foi também a que causou o maior número de baixas,
não perdendo em importância nesse quesito nem para a posterior Segunda Guerra
Mundial, sendo que esta soma um total de mortos e feridos muito maior. O número
de ex-combatentes está, naturalmente, na proporção direta do maciço recrutamento
empregado por todos lados em luta. Para além da importância demográfica, os ex-

158
História- UFPR

458
combatentes da Primeira Guerra Mundial também atraíram interesse pelo seu
impacto político, absolutamente sem paralelo. Seja em organizações de direita na
Itália, Alemanha, etc. ou de esquerda como na Rússia, os ex-combatentes estavam
no centro mesmo das transformações políticas de seu tempo, tanto como causa
quanto como consequência destas. Sobre esse último aspecto da questão a
literatura disponível é volumosíssima e parece crescer ainda mais a cada ano.

A Segunda Guerra Mundial encontrou a maioria das nações que participou da


Grande Guerra preparadas, pelo menos em algum grau,para uma nova e gigantesca
leva de ex-combatentes ao fim do conflito. Naturalmente, as providências
necessárias para acolher o veterano de guerra eram muito mais fáceis de serem
implementadas nos países que venceram a guerra (novamente, os ―Aliados‖) do que
naqueles que a perderam (conhecidos como o ―Eixo‖). Isso não exclui a ocorrência
de uma série de tensões e conflitos, mesmo em processos de reintegração social de
ex-combatentes tidos como amplamente exitosos, como foi o caso dos EUA.

Uma das preocupações centrais dos pesquisadores tem sido compreender a relação
entre o contexto institucional interno a cada nação, o estatuto de cidadania vigente e
a relação que cada cultura nacional mantém com a história e a memória das
guerras. Este trabalho se dedica a examinar essas questões com referência a
literatura que se dedica a estudos de casos nacionais numa base comparativa,
englobando a experiência brasileira e a norte-americana.

Um ponto de partida para essa comparação é o trabalho já clássico desenvolvido


por Francisco Ferraz em diferentes textos. Em recente trabalho esse autor elenca os
principais pontos de contato da experiência norte-americana coma brasileira,
destacando quatro pontos:

a) os cidadãos-soldados dos dois países atuaram, literalmente, lado a lado


na Campanha da Itália, tendo compartilhado experiências semelhantes no
front; b) o Exército brasileiro adotou, durante as ações da Força
Expedicionária Brasileira (FEB) e após o final do conflito, a estrutura
organizacional do Exército dos Estados Unidos; c) a desmobilização dos
combatentes estadunidenses da Segunda Guerra Mundial serviu de
exemplo, em todos os países capitalistas, para estruturação da reinserção
dos cidadãos-soldados combatentes ao mundo civil pós-guerra; d) as
diferentes formas como os cidadãos-soldados foram desmobilizados e re-
encaminhados à sociedade revelam concepções e práticas de cidadania
dos dois países (FERRAZ, 2011, p. 42)

459
Será enfatizado nesse texto esse último ponto. O autor nota a diferença na relação
de direitos e deveres que os cidadãos mantém com o Estado, base de toda
cidadania. No Brasil é enfatizada a experiência coletiva com a Guerra do Paraguai
contra a Tríplice Aliança de Brasil, Argentina e Uruguai. O processo de reintegração
social dos ex-combatentes foi em boa medida negligenciado pelo Estado, ocorrendo
simultaneamente uma intensa mobilização política e partidária dos quadros que
permaneceram no Exército, geralmente oficiais de carreira. Com a crescente
insatisfação dos militares com o regime o resultado foi o golpe militar de 15 de
novembro de 1889 que extinguiu a Monarquia e proclamou a República. Como
resultado, segundo o autor ―ficaram mais sublinhados o receio das autoridades pelo
protagonismo político dos combatentes do que o reconhecimento dos deveres da
sociedade e do Estado para com os veteranos de guerra‖ (FERRAZ, 2011, p. 42).

Já no caso norte-americano o autor enfatiza a importância da experiência


acumulada em sucessivas guerras de diferentes escalas travadas por aquele país
desde a sua independência da Grã-Bretanha. No que diz respeito ao contexto
imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, são destacados dois aspectos:
as diferentes concepções sobre os deveres e direitos dos ex-combatentes e o
cenário de intensa crise econômica e social do período entre-guerras.

No que se refere ao primeiro aspecto é destacado o conflito entre duas concepções.


A primeira entendia que os ex-combatentes apenas e tão somente cumpriram para
com seus deveres com a pátria, em nada se distinguindo dos demais cidadãos, não
merecendo por isso quaisquer vantagens ou privilégios por terem lutado na guerra.
A segunda entendia que era dever do Estado propiciar os meios materiais e
financeiros que favorecessem a reintegração social dos ex-combatentes, tanto no
interesse de minimizar os conflitos sociais e políticos dessa reintegração, quanto
como reconhecimento pelo papel singular e de importância decisiva que
desempenharam nos campos de batalha.

Para o autor a crise econômica e social do período entre-guerras teria reforçado


essa segunda abordagem. A Crise de 1929 teve dimensões e duração sem
precedentes na história econômica mundial, levando os conflitos sociais e a luta de
classe a um novo e perigoso patamar. Segundo o autor isso levou

460
[...] a constatação de que a melhor forma de evitar a contaminação do país
pelo conflito social seria reconhecer que o Estado federal tinha o dever de
indenizar aqueles que fizeram o sacrifício de sangue pela pátria, mas de
forma a torná-los cidadãos produtivos, e não uma casta privilegiada ou
dependente das finanças públicas (FERRAZ, 2011, p. 44).

Teria sido essa, então, uma das principais bases de formulação do Servicemen‘s
Readjustment Act de 1944, também conhecido como GI Bill.

O GI Bill é largamente reconhecido como uma das mais importantes e bem


sucedidas políticas públicas dos EUA na contemporaneidade. Em sua origem ele
previa seguro desemprego para os veteranos; empréstimos subsidiados para
aquisição de casa própria, negócios e terras; e, o mais importante, amplos e
generosos subsídios para financiamento à educação. O fomento à educação era, de
fato, o ponto mais importante dessa política, na qual estavam previstos o
financiamento do acesso dos ex-combatentes a cursos tanto de nível superior
quanto secundária, incluindo tanto os de perfil profissionalizante quanto o
treinamento em serviço.

Foram escolhidas algumas obras publicadas no século XXI que sintetizam o atual
estagio dos debates entre os pesquisadores e acadêmicos norte-americanos que
estudam o processo de reintegração social dos veteranos de guerra. O foco desses
autores tem sido o estudo das origens e efeitos do GI Bill, como é conhecido o
Servicemen‘s Readjustment Act de 1944. O GI Bill é largamente reconhecido como
uma das mais importantes e bem sucedidas políticas públicas dos EUA na
contemporaneidade. Em sua origem ele previa seguro desemprego para os
veteranos; empréstimos subsidiados para aquisição de casa própria, negócios e
terras; e, o mais importante, amplos e generosos subsídios para financiamento à
educação. O fomento à educação era, de fato, o ponto mais importante dessa
política, na qual estavam previstos o financiamento do acesso dos ex-combatentes a
cursos tanto de nível superior quanto secundária, incluindo tanto os de perfil
profissionalizante quanto o treinamento em serviço. Os autores aqui examinados
discutem as origens do GI Bill, seus impactos e apontam perspectivas futuras de
estudos que podem ser úteis aos pesquisadores brasileiros.

461
Um primeiro grupo de obras examinadas se caracterizam por uma visão
extremamente positiva tanto dos efeitos GI Bill quanto do processo político que o
originou. Estas obras tendem a enfatizar o caráter de ―terra de oportunidades‖ que
tradicionalmente é associado aos EUA, insistindo na abrangência do efetivo
populacional atingido pela lei e no efeito positivo que legou na vida na grande
maioria das pessoas por elas atingida. Os números mais impressionantes são
aqueles das estatísticas educacionais, em particular as que se referem ao pessoal
de nível superior. Os números são de fato impressivos e fica fácil perceber como
essa política se transformou num autêntico ícone político norte-americano:

A educação se tornou possível para catorze futuros ganhadores do Prêmio


Nobel, três juízes da Suprema Corte, três presidentes da república, uma
dúzia de senadores, duas dúzias de ganhadores do Prêmio Pulitzer,
238.000 professores, 91.000 cientistas, 67.000 médicos, 450.000
engenheiros, 17.000 contabilistas, 22.000 dentistas, bem como de um
milhão de profissionais como advogados, enfermeiras, homens de negócio,
artistas, atores, escritores, pilotos, etc. Todos deviam suas carreiras não à
alguma grande visão de Franklin Delano Roosevelt, mas àquela modesta
proposta que se supunha poder colocar o país de volta onde estava antes
da guerra. Nunca tinha havido nada assim antes (HUMES, 2006, p. 6).

Em outra obra do final dos anos 1990 a abrangência do financiamento educacional


também era realçada, mas desta vez para enfatizar o impacto sobre a vida de
pessoas comuns que, sem necessariamente se destacar em suas respectivas
carreiras, conseguiram fazer dela pontos de inflexão em suas vidas pessoais. Uma
vez mais o recurso à estatística é persuasivo e convincente:

Os 88.000 veteranos entre os 1.676.095 estudantes em 1945 haviam se


multiplicado para 1.013.000 pelo outono de 1946, quase o dobro do número
de veteranos que havia sido previsto. Em 1947 o efetivo total de estudantes
era de 2.338.226 com 1.150.000 veteranos somando 49,2% do total. A
queda não veio até 1948 quando o efetivo total era de 2.403.396 com os
veteranos compondo 975.000 estudantes, ou 40,5% do total. Em 1949, o
efetivo dos veteranos era de 34,3% do total; 25,2% em 1959; 18,7% em
1951; 10,8% em 1952; e 6,1% em 1953. Depois disso os números refletem
tanto o número relativamente baixo de homens e mulheres no serviço militar
quanto a redução de benefícios disponíveis sob a Lei de Direitos da Guerra
da Coréia (Korean War Bill of Rights) (BENNETT, 1996, p. 18).

Uma característica comum a estas obras, bem como outras lançadas a partir daí
(GREENBERG, 1997) é o amplo recurso à fontes de história oral, seja sob a forma
de entrevistas, seja de questionários. Ouvir os ex-combatentes propiciou aos
pesquisadores formar um amplo painel das mudanças sociais e culturais que a

462
democratização do acesso à educação propiciou. Se tornaram frequentes nessas
obras a menção a pessoas que se tornaram as primeiras em suas famílias e
comunidades a ingressarem em uma Universidade. Destas, a maioria logrou
ascender socialmente, marcando uma enorme revolução no que diz respeito às
expectativas de vida da geração de seus genitores.

Na primeira década do século XXI o foco dos autores se voltou tanto para a
pesquisa das origens do GI Bill quanto de seus efeitos posteriores. Uma obra
recente (METTLER, 2005) discute o papel da administração Roosevelt na
criação dessa política, apontando suas ambiguidades. Embora tido usualmente
como assumindo um papel oposto ao de seu antecessor, Roosevelt também se
opôs à extensão dos benefícios para os ex-combatentes, fazendo o foco da
Política do New Deal os trabalhadores industriais urbanos, e não os veteranos
de guerras passadas. Para os veteranos da Segunda Guerra Mundial a
administração federal previa políticas muito mais restritas de fomento à
reintegração social do que a versão final do GI Bill previa. Foi no Congresso
Americano que o GI Bill ganhou afinal sua versão mais generosa, resultado de
uma estranha coalizão de liberais e conservadores.

Além da presidência da república e do congresso nacional, outras entidades e


instituições também tem chamado a atenção dos pesquisadores preocupados em
entender as forças que presidiram a criação do GI Bill (ORTIZ, 2010). O foco tem
recaído sobre a ação política dos veteranos de guerra, seja na política partidária
propriamente dita, seja na política burocrática no interior do aparelho de Estado. Em
ambos os casos assume um papel de protagonismo as diferentes entidades
representativas dos veteranos de guerra, tidas como forças propulsoras importantes
no processo decisório do GI Bill.

Finalmente, uma obra recente propõe um distanciamento do caráter celebrativo e


elogioso que os estudiosos geralmente lançam mão ao se referir a esse conjunto de
políticas. Tem surgido dúvidas se as avaliações positivas sobre a eficácia das
políticas relativas ao GI Bill não teriam sido objeto de exagero ou excesso de
entusiasmo por parte dos pesquisadores. É certo que mais de dois milhões de
veteranos cursaram faculdades e outros quatro milhões cursos profissionalizantes

463
graças ao GI Bill. Mas esses autores (ALTSCHULER; BLUMIN, 2009) chamam a
atenção para o fato de que uma parte substancial dos veteranos de Guerra jamais
demandaram qualquer auxílio por parte do Estado a que fariam jus segundo o GI
Bill: são três milhões de ex-combatentes. Notam também que cerca de outros seis
milhões de veteranos teriam apelado apenas duas ou três vezes aos benefícios a
que tinham direito conforme a lei.

O que se pode deduzir do exame dessa literatura mais recente que se dedica ao
estudo do processo de reintegração social dos ex-combatentes nos EUA após a
Segunda Guerra Mundial? Tratam-se de reavaliações importantes, que servem
para chamar a atenção dos pesquisadores para o conjunto mais amplo de fatores
que estão a influenciar todo processo e, portanto, são úteis a todos que se
dedicam a esses estudos.

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469
OS MECÂNICOS DA FEB: EXPERIÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES

João Marcos Macedo Louro159

Essa pesquisa se iniciou com a intenção de entender as origens da formação do


Quadro de Material Bélico (QMB) do Exército Brasileiro. De acordo com a descrição
oferecida pela própria organização militar, a origem do QMB pode ser considerada
com a participação brasileira nas operações na Itália durante a Segunda Guerra
Mundial. Utilizou-se primariamente o relatório do comandante da Companhia de
Manutenção Leve como fonte, e algumas matérias publicadas posteriormente na
revista A Defesa Nacional.

O Exército passava por um lento processo de modernização durante a década de


1930, recebendo ainda auxilio da Missão Militar Francesa na formação técnica e
doutrinária enquanto buscava modernizar seu equipamento bélico conforme as
oportunidades apareciam. O apoio aos EUA no conflito mundial surgiu como
oportunidade para o Brasil modernizar sua força militar, e o envio de um contingente
para combater na Europa facilitava a desejada modernização.

Organizada a partir de 1943, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) partiu para a


Itália sem equipamento, recebendo-o ao desembarcar. Ao mesmo tempo eram
recebidos no Brasil os equipamentos modernos que passariam a ser utilizados pelo
EB, via o acordo de Lend Lease. A quantidade em que esse equipamento chegava,
entretanto, estava acima da capacidade da organização em especialistas para
operar na guerra mecanizada que ocorria.

No caso da FEB, essa deficiência podia ser visível na formação de sua unidade que
seria responsável pela manutenção do equipamento utilizado: a Companhia de
Manutenção Leve (CMtL). Composta através da convocação de reservistas
previamente classificados por suas especialidades profissionais (civis), a unidade
teve, no entanto, problema devido a esse processo de registro dos reservistas, como
relata seu comandante, o capitão (cavalaria) Gilberto Pessanha:

159
Mestre em Estudos Estratégicos pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos, Segurança e
Defesa (PPGEST-UFF). Pesquisador no INEST – Universidade Federal Fluminense.

470
É interessante notar, no entanto, que os reservistas convocados como
mecânicos, visto assim estarem qualificados pelo serviço de recrutamento,
exerciam de fato, na vida civil, as funções mais diversas desde a de
empregado em casas de bicicleta de aluguel, montadores de fechaduras,
torneiros, repetidores de subestações telefônicas, técnicos de radio às de
mecânico de automóveis, propriamente, que era a capacidade que se
necessitava. (Pessanha, 1945, p. 1).

Ele ainda detalha mais o problema surgido com os reservistas,

A anomalia acima citada provém da maneira pela qual são classificados os


reservistas, principalmente os de 2ª categoria, como foi o nosso caso. [...]
Desta maneira, um empregado de casa de bicicleta ou um manobrador de
guindaste eram classificados como mecânicos. Tal fato, em caso de
mobilização, ocasiona uma situação grave pois, se no papel existe uma
determinada reserva, a realidade se apresenta de maneira muito diferente.
(Pessanha, 1945, p. 1).

A unidade, portanto, viu-se com seu efetivo na mais básica capacitação para sua
tarefa (em alguns casos, nem mesmo o básico), no melhor caso. A necessidade em
levar esse efetivo para o teatro de operações com capacidade de cumprir suas
funções – reparo e manutenção de equipamentos, veículos e armas - com pelo
menos a mínima eficiência obrigou à busca de uma solução rápida.

Coube então à Companhia, com o auxílio da Escola de Instrução Especializada, resolver


os problemas associados à falta de capacidade dos reservistas. Realizaram-se cursos
para transformar os reservistas em praças especializados, capazes de realizar funções
em nível acima da que exerciam em suas profissões civis.

Exceto poucos homens [...], todos os demais foram aproveitados quer por
meio de instrução e treinamento ministrado na própria companhia, quer por
meio de cursos realizados no Centro de Instrução Especializada. [...] Outra
parte difícil na organização da companhia foram a formação de mecânicos
de artilharia e de instrumentos. [...] transformou-se ferreiros e torneiros em
mecânicos de artilharia e relojoeiros em reparadores de instrumentos de
observação e de tiro. [...] Para formar os especialistas em instrumentos
óticos e de tiro, foram conseguidos 2 relojoeiros que, após um estagio no
arsenal do Rio e no Serviço Geográfico, ficaram em condições de
desempenhar tais funções (Pessanha, 1945, p. 2).

Esse problema se fazia presente também em relação aos sargentos da Companhia,


poucos deles com experiência advinda do Centro de Instrução de Motomecanização,
―dos 22 sargentos que embarcaram com a unidade para a Itália, apenas 8 possuiam

471
curso da Escola de Motomecanização, sendo destes somente 4 o curso de
mecânico.‖ (Pessanha, 1945, p. 3).

O Capitão Pessanha cita, ainda, que esse problema não era apenas devido à
formação da unidade para a FEB, mas uma questão da formação dos arsenais do
EB e suas localizações, que dificultavam já em tempo de paz o trabalho
especializado de reparo e manutenção dos equipamentos, realizado por equipes
civis a serviço de militares nessas localidades (Pessanha, 1945).

A situação provocou ainda mais dificuldades na formação da CMtL, a ponto de


torná-la uma unidade que iria funcionar de modo diferencial em relação ao restante
da organização militar no que tangia a sua especialização. A unidade estava sendo
formada sob uma cultura diferente da que vigorava nas áreas de serviço do Exército:

Não existindo, na nossa atual organização, um escalonamento de serviços


dada a inexistência de elementos especializados organizados entre os
arsenais e as unidades, grande foi o nosso trabalho quando tivemos de
organizar a companhia. A falta quase absoluta de elementos especializados
na tropa e a má orientação dada à organização da nossa reserva
retardaram a mobilização da nova unidade especializada, a primeira a se
organizar no nosso exército (Pessanha, 1945, p. 2).

Assim organizada, a companhia foi enviada ao teatro de operações italiano, com a


FEB, sob o comando do V Exército estadunidense. Durante a campanha, seus
trabalhos foram constantemente acompanhados e apoiados por unidades dos EUA
ligadas ao serviço às tropas combatentes, em escala hierárquica: 109th Ordnance
Medium Maintenance Company (auxilio na reparação), 67th Ordnance Batallion
(auxilio administrativo) e 5th Army Ordnance Depot (auxilio material).

A manutenção das viaturas funcionava em três escalões: o primeiro escalão,


composto pelos motoristas de todas as unidades da FEB, deveria ser responsável
por pequenas manutenções preventivas, como troca de lâmpadas, fusíveis e outros
pequenos reparos. No segundo e terceiro escalões era realizado o reparo mais
pesado das viaturas, exigindo os homens que foram treinados no Brasil pela
Companhia e pelo Centro de Instrução Especializado.

O relatório apresentado pelo comandante da CMtL, Capitão Gilberto Pessanha,


relata que as funções originais da unidade – manutenção de armas e viaturas nos

472
dois últimos escalões – foi realizada com sucesso. Entretanto, as funções
relacionadas ao primeiro escalão, formado pelos motoristas da FEB, não eram
cumpridas pelas unidades. Esse problema, segundo Pessanha, era devido
principalmente à precária formação dos motoristas brasileiros, e aumentou
consideravelmente o trabalho da CMtL durante a campanha.

O primeiro escalão de manutenção foi o ponto fraco da nossa organização


e, pela sua importância, de péssimas conseqüências. A falta de
conhecimento e de disciplina técnica dos nossos motoristas ocasionou a
maior parte, senão a totalidade, das manutenções efetuadas pelo segundo
e terceiro escalões (Pessanha, 1945, p. 8).

A sobrecarga de serviço na Companhia fez que seu comandante opinasse pela


melhor formação dos motoristas brasileiros, alguns dos quais aprenderam a dirigir
ao chegar à Itália. As causas dos danos eram, em sua maioria, devido ao excesso
de velocidade na condução, somados à falta de habilidade dos condutores. A
exceção a essa situação vinhas das unidades de artilharia, que prestavam mais
atenção ao estado em que estavam suas viaturas, talvez por causa do costume em
manter suas peças em bom estado, como pensou o capitão Pessanha (1945).

O capitão ainda destaca alguns pontos interessantes a respeito dos danos nas
viaturas: as viaturas que mais quebravam ou ficavam em pior estado de
funcionamento eram as relacionadas aos comandos das unidades da FEB, devido
tanto ao seu constante uso quanto ao terreno extremamente difícil e tortuoso da
região Italiana, por onde elas circulavam.

Outro ponto interessante é a quantidade de viaturas que davam entrada para


manutenção ser maior nos períodos mais tranquilos da campanha, e não durante as
operações da FEB. O capitão Pessanha supôs que o motivo fossem as fugas
constantes de praças e soldados para curtirem suas folgas em vilarejos e aldeias
próximas, sem terem permissão para isso (Pessanha, 1945). Dessas viaturas, a
maioria eram os conhecidos ‗Jeeps‘.

Para acelerar o processo de manutenção e reduzir a sobrecarga da unidade, a CMtL


formou equipes de visita às unidades da FEB. Essas equipes eram compostas de
um sargento mecânico e um especialista mecânico (de armamentos e viaturas), e
tinham a função primaria de educar os usuários das viaturas e equipamentos nas

473
normas básicas de conservação dos mesmos. Além dessa função, eles podiam
realizar pequenos reparos necessários e acelerar os processos de requisição de
peças e de conserto mais pesados, o que reduzia o trabalho no parque da CMtL.

Essa proposta também ajudava a equilibrar o problema da unidade eem relação ao


seu efetivo reduzido. As manutenções realizadas pelos grupos de visita acabavam
contando com o auxilio dos próprios usuários dos veículos, diferente do que ocorria
dentro da Companhia (onde apenas se deixava o veículo no parque e se buscava
depois de pronto). Sobre os resultados das equipes de visita, comenta o capitão:

Mantendo o contato diário com as unidades, procurando controlar o


movimento de reparações e substituições com o auxilio dos próprios
interessados, conseguimos, apesar do efetivo reduzido, conseguimos
realizar um serviço que poucas vezes deu lugar a equívocos e reclamações
[...] (Pessanha, 1945, p. 12).

Ao final da campanha, que durou 307 dias, a CMtL havia realizado 2781 reparos de
viaturas (excluindo dessa conta reparo em reboques e manutenção de
equipamentos fora da sua alçada, como fogões de campanha, geradores e outros
utensílios), e também de 3310 reparos de armamentos. Considerando o trabalho de
sua companhia um sucesso apesar dos problemas técnicos e de efetivo, o capitão
Pessanha ressaltou brevemente, ao final de seu relatório, o contato constante com
as unidades do exército estadunidense que os auxiliavam, além dos ensinamentos
obtidos com a experiência nos onze meses de campanha (Pessanha, 1945).

Nos anos seguintes, pôde-se perceber que a atuação da FEB trouxe ao Exército
uma nova necessidade: preparar sua força para a guerra mecanizada e
especializada que predomina até os dias atuais. A organização do EB sofreu nesse
período mudanças doutrinárias, saindo da influência da MMF e recebendo as
doutrinas militares estadunidenses, além de seu equipamento bélico.

Ao consultar as edições da revista A Defesa Nacional da década de 1950, percebe-


se que havia a discussão a respeito da formação de pessoal especializado para lidar
com a quantidade grande de equipamento que chegava ao país. Parte desse debate
envolveu a formação de novas carreiras dentro da organização militar, a partir da
década de 1960.

474
Entre essas carreiras, o Quadro de Material Bélico, em especial, pode ser
considerado uma resposta às necessidades passadas pela CMtL durante a
campanha da FEB. Comparando com o exército dos EUA, temos o Ordnance
Corps160(cujas unidades atuaram estreitamente com a CMtL durante a campanha),
que cumpre funções nos EUA similares às que o QMB passou a exercer no Brasil.
Buscar a relação entre a formação dessa nova carreira no EB com a influência dos
EUA será o passo seguinte da pesquisa.

Referências Bibliográficas

MOTTA, Aricildes de Moraes (Coord.). História oral do exército na segunda


guerra mundial,tomo 8. Rio de Janeiro: Bibliex, 2001.

HISTORY of US Army Ordnance Corps. Disponível em:


http://www.goordnance.army.mil/history/ORDhistory.html. Acesso em 30 jul. 2013.

PESSANHA, Gilberto. Relatório da Companhia de Manutenção Leve. F.E.B. 1ª


D.I.E. Arquivo Histórico do Exército (AHEx). Rio de Janeiro.

160
O Ordnance Corps é um dos quadros de carreira mais antigo e tradicional do exército dos EUA, originado em
1812. Foi formado pela necessidade de se ter um corpo de oficiais especializados em pesquisa, aquisição e
manutenção de armas e demais equipamentos para o exército. Tornou-se um núcleo de incentivo a inovação
militar e à busca de tecnologias para o campo de batalha. Cresceu em importância e recursos durante a II Guerra
Mundial, e ainda é um dos grupos de oficiais mais técnicos das forças armadas dos EUA.

475
O PENSAMENTO MILITAR BRASILEIRO EM FACE DA BLITZKRIEG

João Rafael Gualberto de Souza Morais161

1 Introdução

O presente trabalho se debruçará nas impressões sobre a Blitzkriege o debate


referente à Motomecanização, correspondentes ao período inicial da guerra na
Europa, destacando as impressões dos oficiais responsáveis pela reflexão e
discussão dos problemas táticos e operacionais.

A análise se concentrará na influência das experiências alemãs sobre as


reflexões dos oficiais brasileiros destacando artigos em um quadro comparativo
entre os períodos pré-1939, de 1939 a 1941 e pós-1941, procurando focar e
mapear as reflexões e osdebates sobre a catarse doutrinária desencadeada
com as Blitzkriegsalemãs.

2 O Surgimento e o Debate em Torno do Emprego do Blindado

A literatura sobre o tema da Motomecanização é farta no exterior, concentrada,


sobretudo, nos debates sobre o papel a ser desempenhado pelo Blindado enquanto
nova arma à disposição dos exércitos após a Primeira Guerra Mundial.

As principais obras sobre o tema são os trabalhos pioneiros de De Gaulle, Fuller e


Guderian, além de análises mais recentes e completas do fenômeno da Blitzkrieg
(CITINO, 2004) ou da combinação das armas (HOUSE, 2008), tema igualmente
central ao problema enfrentado pelos exércitos na época abordada pelo trabalho.

O Carro de Combate surgiu durante a Primeira Guerra Mundial, lançado aos campos
de batalha pelos britânicos em 1916 (Batalha do Somme), e as duas décadas

161
Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança – UFF-INEST

476
seguintes seriam marcadas por um intenso debate entre militares de diversos países
a respeito do verdadeiro papel desta nova arma.

Embora as experiências de 1916 tenham sido insatisfatórias – principalmente pelo fato


destes engenhos terem sido usados de forma dispersa em pequenas unidades em
apoio à infantaria e serem, nesse primeiro momento, muito vulneráveis a problemas
mecânicos –, a partir do ano seguinte seu uso alcançou relativo sucesso. Empregados
de forma mais concentrada do que no Somme, os blindados romperam as defesas
alemães em Cambrai e noutras batalhas de 1917 e 1918 (LOURO, 2011).

A despeito de alguns poucos oficiais terem vislumbrado o emprego em massa


dos blindados já durante a Primeira Guerra Mundial, com a missão de
penetração e exploração 162, na prática, os carros de combate acabaram
limitados a ajudar a infantaria a penetrar as defesas inimigas, em vez de
atravessá-las e explorar o êxito, alcançando a retaguarda inimiga. Os carros de
combate eram, portanto, apenas mais uma peça do arsenal ofensivo, e não uma
arma per se, em 1916-18 (HOUSE, 2008, p. 64).

Não obstante, seu uso durante a Primeira Guerra deixou um legado de


interpretações sobre qual poderia ser a real importância deste novo advento no
exercício da ―ruptura‖, tema que durante quatro anos foi motivo de imensa
consternação de generais de ambos os lados no Front Ocidental, e que seria motivo
de intensos debates após a guerra.

Como a tendência das instituições, sobretudo as militares (fundamentadas,


principalmente, sobre o binômio hierarquia/disciplina), é a conservação e não a
mudança, no período entre-guerras acabou prevalecendo, quase absolutamente, as
concepções doutrinárias de 1914-18. A infantaria, a cavalaria e a artilharia
conservaram o papel determinante na batalha, e aos Blindados ficou reservada a
função de apoio à infantaria (MACKSEY, 1970).

162
Caso de Ernest Swinton, um dos organizadores da força de carros de combate britânica, que imaginou
empregá-los ao longo de toda a frente alemã, logo em abril de 1916, de forma independente da infantaria. No
entanto, apesar de inovadora para aquele momento, sua ideia pressupunha um problema que dificultaria o avanço
dos carros: ele não abria mão de uma poderosa barragem de artilharia, o que dificultaria o avanço dos carros
(muito frágeis nesse primeiro estágio de emprego) pelos destroços resultantes do poderio destruidor das baterias
da Artilharia britânica.

477
No entanto, apesar da resistência da maioria dos oficiais das armas tradicionais a
esta nova ferramenta (sobretudo ofensiva), muitos entendiam que o Blindado
mudara para sempre a face da guerra, e que seu impacto seria irresistível. Havia
uma reflexão intensa entre os militares sobre o problema, e as mudanças
introduzidas por esta nova arma causariam tremendo impacto nas forças armadas,
por alterarem as doutrinas e a configuração dessas instituições.

A discussão principal do entre-guerras girou em torno de como transformar a infantaria


em um instrumento de penetração capaz de sobrepujar o devastador poder de fogo das
defesas, problema central para os pensadores militares e preocupação oriunda da
carnificina das trincheiras. Nesse sentido, a maioria dos oficiais diante do problema
considerou o Carro de Combate como a solução para a questão, sem, no entanto,
compreender plenamente a revolução que isso significaria para os exércitos. Isso levou
a maioria das formulações táticas e operacionais da época a legarem ao Blindado o
papel de instrumentalizar as divisões de infantaria na ação ofensiva, limitando o seu
avanço à velocidade das tropas infantes (COELHO, 1936).

Havia oficiais, no entanto, que defenderam, no mesmo período, a formação de


unidades blindadas maciçamente organizadas, para assumirem o papel principal na
batalha. Os Generais Triandafillov e Tukhatchevski, na URSS; o Capitão Liddle Hart,
bem como os generais Fuller, Hobard, Broad e Pile, na Inglaterra; o General De
Gaulle na França; e os Generais Von Reichenau, Von Thoma, Von Kleist, Von
Manstein, Hoth, Lutz, Guderian, dentre muitos outros, na Alemanha, foram os
principais arautos da arma blindada (BARNETT, 1990;MACKSEY, 1974). Destes,
somente os alemães obtiveram sucesso junto aos tomadores de decisão,
principalmente após 1933 (BARNETT, 1990).

Assim, a preocupação com o problema das forças mecanizadas levou, em muitos


países, à criação de unidades de carros de combate durante os anos 30. No entanto,
por diversas razões, pouco foi feito quanto à formulação de doutrinas especialmente
concebidas para dar a estas formações o papel dianteiro e necessário.

478
3 Grã-Bretanha

No caso britânico, a extrema segmentação do exército – segundo o historiador


Williamson Murray, uma ―coleção de regimentos‖ –, dificultava a incorporação de
uma doutrina de emprego geral para a nova arma (MURRAY, 1996, p. 9). Além
disso, não sendo a força militar principal do Império – cujo orçamento militar estava
voltado primordialmente para a Marinha, a construção de uma força aérea
estratégica, de inspiração na doutrina de Douhet, e a manutenção das colônias –, o
Exército britânico era doutrinado e treinado sobre valores que comprometiam o
profissionalismo da força. O ethos do oficial britânico, fundamentado na bravura, na
idéia da guerra como, sobretudo, um confronto de vontades, sobrepujava a
formação técnica e intelectual, gerando uma afinidade entre os homens e seus
regimentos que tornava difícil a especialização nos cursos oferecidos pelo Estado-
Maior, visto que o ―abandono‖ do regimento era encarado como ofensa grave dentro
da corporação (MURRAY, 1996, p. 9, 10).

Ademais, a Inglaterra, após a Primeira Guerra, estava novamente inclinada a não


comprometer grandes efetivos em outra guerra no continente europeu, direção
estratégica que só mudaria muito perto da guerra, após o fracasso da diplomacia
britânica no caso da Tchecoslováquia (MURRAY,1996)

4 França

Na França, o então Coronel Charles De Gaulle lutou internamente contra a velha


aristocracia militar francesa em defesa da criação de unidades blindadas. Em seu
livro Vers l ‗ArméepourMétier, De Gaulle argumenta que as defesas francesas não
eram adequadas às ameaças que estavam sendo desenvolvidas a passos largos do
outro lado da fronteira. Ele defendeu a criação de um ―exército de choque‖,
profissional e mecanizado, em sua maioria composto por divisões blindadas,
amparado por doutrinas focadas na mobilidade (GAULLE, 1979, p. 26-29).

O livro de De Gaulle foi amplamente lido pelos alemães, chegando a ser indicado por
Hitler para seus oficiais. ―Está fora de dúvida a influência exercida pelo livro de De
Gaulle sobre a organização do Panzerkorpsgermânico. Bem expressiva é, a esse

479
respeito, a extraordinária semelhança entre a ‗divisão blindada‘ proposta em 1933 por
De Gaulle e a ‗Panzerdivisionen‘ modelo 1935‖ (BERQUO, inGAULLE, 1996, p. 18).

O Alto-Comando francês, apesar da urgente necessidade estratégica de


desenvolver uma defesa capaz de conter sua poderosa vizinha, apostou em um
ideal estratégico equivocado, dando demasiado valor à postura defensiva norteada
pela crença no poder de fogo em detrimento da mobilidade, a partir das impressões
deixadas pela ação da artilharia na Grande Guerra.

Desta feita, a Linha Maginot consumiu o orçamento militar do país, e a rígida


hierarquia, muito sentida na inflexibilidade do comando, tornava o processo de
tomada de decisões lento, uma vez que a iniciativa dos oficiais no campo não era
incentivada como no Exército alemão (MURRAY, 1996).

A luta de De Gaulle por uma doutrina que entregasse aos blindados o papel de
―punho‖ na batalha foi infrutífera e a França pereceu em seis semanas diante da
invasão alemã de maio de 1940, mesmo detendo superioridade em número de
blindados (WILLIAMS 1974, p. 16-17).

A derrota francesa convenceu observadores no mundo todo da importância da


revolução doutrinária desenvolvida pelos alemães com suas forças mecanizadas,
ancoradas no conceito de mobilidade e esforço coordenado entre o poder aéreo e
oterrestre, um novo e ousado capítulo da história da combinação de armas (House,
2008: 140).

5 Alemanha

Heinz Guderian ganhou notoriedade ao liderar, na Alemanha, as etapas finais do


processo que deu nascimento às Divisões Panzer. Os alemães seriam os primeiros
a colocar em prática a concepção doutrinária mais inovadora sobre o esforço
conjunto entre as armas (Poder Aéreo, poder terrestre e, em casos específicos,
poder naval), com a devida ênfase nas grandes unidades mecanizadas.

Em face de tantos problemas após a derrota, como a limitação de efetivo imposta


pelo Tratado de Versalhes, o Chefe do Estado-Maior do Reichswehr, General Hans

480
Von Seeckt, apostou nos oficiais oriundos do Estado-Maior, instituição tradicional e
modelo de suas análogas pelo resto da Europa, em detrimento dos oficiais
veteranos de linha de frente – os ―heróis de guerra‖ –, e dos oficiais com conexões
às altas esferas do poder e da sociedade alemã. Essa orientação visava o preparo
intelectual dos oficiais que seriam os futuros líderes do Exército alemão. Estes
oficiais, capacitados para decidir em meio à ação, dentro da velha tradição do
Estado-Maior datada dos tempos de Möltke, estavam inseridos em um projeto cujo
objetivo era compor um quadro de oficiais capazes não apenas de cumprirem
ordens, mas de adaptá-las às condições legadas pela fricção inerente à batalha,
conforme expôs Clausewitz (2010). Ou, ainda, capazes de agir independente delas,
a fim de não perder oportunidades preciosas.

Desta forma, as ordens enviadas pelo comando superior deveriam ser cumpridas,
mas a forma de execução era de escolha pessoal do oficial que as recebia. Além
disso, havia abertura para discussão das ordens em qualquer esfera do comando, o
que estimulava a reflexão sobre as questões táticas, operacionais e até estratégicas
na mentalidade dos oficiais de todas as patentes.

Tais princípios desenvolveram a estrutura de comando alemã de forma


especialmente dinâmica e profissional, e deram às tropas mais agilidade no campo
de batalha, livres das amarras hierárquicas que antagonizam com a necessidade de
velocidade das decisões e ações da guerra mecanizada (LEACH, 1974).

Assim, o Estado-Maior alemão iniciou seus trabalhos no período entre-guerras


focado em estudar e analisar com profundidade a guerra de 1914-18, com a
finalidade de compreender as razões do incômodo impasse materializado tão
brutalmente nas trincheiras, bem como as condições necessárias para superá-lo.

Durante todo esse período, essa instituição conseguiu produzir muitas reflexões
profundas e técnicas sobre esses problemas, e desse cenário emergiram as
concepções que viriam a formatar a doutrina sobre guerra mecanizada forjadora das
Divisões Panzer, inspirada, também, em reflexões de observadores estrangeiros,
principalmente Liddell Hart, Fuller e De Gaulle. Tais reflexões, praticamente
ignoradas em seus respectivos países, foram muito lidas entre os alemães, e foi,
ironicamente, no processo de rearmamento alemão que suas idéias alcançaram a

481
práxis. Foram instituídos vários comitês para o estudo dessas questões, e os
resultados foram a assimilação de um entendimento aprofundado sobre os
problemas deixados pela Primeira Guerra Mundial e suas possíveis soluções.

Mais de uma década antes da ascensão nazista ao poder (que em muito favoreceria
o processo de desenvolvimento das Divisões Panzer), sob a vigência do Tratado de
Rapallo (1922), os alemães desenvolveram em cooperação com os russos tudo que
lhes era vetado pelo Tratado de Versalhes (1919), inclusive suas divisões blindadas
(LEACH, 1974). Como lhes era proibida a construção de armas pesadas, tais como
blindados e aviões de guerra, o treinamento das Divisões Panzer foi realizado com
veículos improvisados, como tratores. Apesar de não terem as armas, os alemães
desenvolveram nessas experiências asdoutrinas que lhes proporcionariam enormes
vantagens em 1939.

Assim, o Estado-Maior alemão desenvolveu as doutrinas de ataque que até hoje norteiam
as operações terrestres das forças militares convencionais. A ação conjunta entre as
forças em terra, lideradas pelas formações blindadas, e o poder aéreo, funcionando como
artilharia móvel avançada, em contato íntimo, via rádio, com os oficiais em terra,
caracteriza a essência da Blitzkrieg, e, quando a guerra começou, os alemães estavam
bastante adiantados no domínio desse novo modelo (CITINO, 2004).

6 União Soviética

Sob a cooperação com o Estado-Maior alemão e as idéias de Tukhachevsky, por


volta do começo da década de 1930 o Exército Vermelho já era um dos mais
modernos do mundo. Ele começara a fazer experiências com desembarques aéreos
de grandes unidades, tanto por aviões como por meio de pára-quedas, e a manobrar
grandes formações de Blindados163(KEEGAN, 1974; Alves, 1964).

Dessas experiências o Estado-Maior soviético concluiu a favor da concentração dos


blindados em grandes unidades, a fim de evitar a dispersão e a consequente perda
do poder de choque. Em artigo na Revista A Defesa Nacional, de fevereiro de 1938,
C. de Souza Reis, Tenente-Coronel do Exército brasileiro, elenca o processo de

163
As primeiras manobras desde o armistício de 1918.

482
mecanização na URSS em paridade com o que estava então sendo realizado na
Alemanha. O artigo se fundamenta em análises produzidas por observadores
franceses.

No entanto, o Marechal Tukhachevsky, oficial que liderava o processo de


mecanização na URSS, como milhares de outros oficiais, pereceu nos expurgos de
Stálin. Em 1938, como resultado dos expurgos, o Exército Vermelho perdera muitos
dos seus oficiais: três dos seus cinco marechais (incluindo Tukhachevsky); 13 dos
15 comandantes de exército; 57 dos 85 comandantes de corpo; 110 dos 195
comandantes de divisão e 220 dos 406 comandantes de brigada. Onze
Subcomissários da Defesa foram fuzilados, bem como 75 dos 80 membros do
Soviete Militar, criado em 1934, além de todos os Comandantes Militares de Distrito
e a maioria dos seus Chefes de Administração Política (KEEGAN, 1974, p. 13).

Uma das conseqüências dessa brutalidade foi a desmobilização dos Corpos


Mecanizados, ainda no final da década de 30, uma vez que os oficiais que
trabalharam nesse processo, ou que tinham alguma afinidade às idéias de
Tukhachevsky, se calaram por medo de Stálin (GLANTZ; HOUSE, 2009).

A partir daí, o General Kulik, Chefe do Departamento de Material Bélico (sucessor de


Tukhachevsky), intercedeu pelo fim das grandes unidades blindadas. Ele,
juntamente com outros oficiais do Estado-Maior, interpretara mal as observações
realizadas durante a Guerra Civil espanhola sobre o uso de blindados – na qual
grande parte do equipamento russo fora experimentado e os blindados foram
empregados em pequenas unidades –, decidindo, então, dissolver as grandes
formações blindadas que Tukhachevsky estivera organizando, e redistribuir os
carros em pequenas unidades, entre a infantaria, de forma similar às ideias
hegemônicas da Primeira Guerra.

Nesta época, segundo Alves (1964: 205), a URSS possuía cerca de dez mil carros
de combate, que passaram a ser organizados em um grupamento por cada Divisão.
Muitos desses modelos eram mais pesados e bem armados que os seus
equivalentes alemães, destacando-se o T-34, que em 1941 já estaria à disposição
das unidades mecanizadas soviéticas e teria grande destaque na guerra, sendo, por
muitos, considerado o melhor Carro de Combate da Segunda Guerra Mundial.

483
As conseqüências da decisão de acabar com os Corpos Mecanizados só seriam
percebidas em 1940, durante o conflito com a Finlândia, que impôs ao Exército
Vermelho enorme humilhação diante do mundo, somente superada por meio do
emprego maciço de reforços contra o pequeno país. Só a partir daí, os Corpos
Mecanizados seriam novamente desenvolvidos, e encontrar-se-iam ainda em
estágio incipiente de desenvolvimento em 1941, quando o Exército Vermelho teve
de lutar para sobreviver diante da invasão alemã.

7 A Blitzkrieg

A Alemanha surpreendeu o mundo com uma revolucionária concepção da guerra.


Os ataques realizados nos três primeiros anos do conflito permitiram ao Exército
alemão demonstrar a inquestionável superioridade das forças mecanizadas sobre as
velhas concepções doutrinárias, empregando os blindados em combinação com
outras armas segundo uma doutrina que tinha em seu cerne o princípio da
mobilidade.

As Divisões Panzer, apoiadas de perto pela Luftwaffe, envolveram facilmente as


unidades inimigas, que estavam usualmente apoiadas por blindados segundo
princípios que se revelaram muito equivocadas. A resistência tenaz dos
combatentes poloneses, franceses, gregos, russos e tantos outros, pouco podia
contra uma doutrina tão superior e tão bem operada.

A essência da Blitzkrieg visa, em primeiro lugar, não o choque e a destruição das


forças físicas do inimigo, mas o seu moral. Essa, talvez, seja a característica mais
proeminente dessa doutrina, e remonta a concepções antigas, baseadas nas
manobras de envolvimento anteriores às guerras de atrito ocorridas no período
compreendido entre a segunda metade do século XIX e a Primeira Guerra Mundial.
É uma forma de travar a guerra que visa atacar o psicológico do adversário, levando
sua defesa ao caos, evitando ao máximo o atrito.

Taticamente, a Blitzkrieg caracteriza-se por uma série de incursões de


reconhecimento, cujo objetivo essencial é identificar os pontos fortes e fracos da
frente inimiga. Quando tais pontos estão claros, é iniciada a investida principal,

484
realizada com todos os meios disponíveis contra as posições de maior
vulnerabilidade do dispositivo inimigo, liderada por forças poderosas, como uma
unidade blindada. Por isso, se umataque lançado é rechaçado, as forças alemãs não
insistem e recuam, e não procuram forçar a passagem, para então se reagruparem e
atacarem onde for mais conveniente.

Essa doutrina de ataque repousa na idéia do fogo concentrado e pontual, dentro de


uma concepção de mobilidade dinâmica e inerente à operação como um todo.O
ataque deve ser lançado com grande apoio da aviação, em detrimento de apoio
maciço de artilharia, visto que aquela detém incomparável mobilidade e precisão
quando em comparação com os canhões. Estes devem oferecer apoio
complementar, e tanto o apoio da artilharia quanto o da força aérea devem visar
alvos diretamente materiais, mas também psicológicos.

Na última fase, as divisões que não tomaram parte no rompimento (infantaria


motorizada) atacam e ocupam as posições abertas pela vanguarda do ataque,
aproveitando a confusão do inimigo para cercá-lo, permitindo, desta feita, que as
unidades avançadas mantenham o ímpeto ofensivo (GIBELLI, 1966, vol. I, p. 4).

8 A Blitzkrieg e o Pensamento do Exército brasileiro

O processo de Motomecanização brasileiro foi norteado pela doutrina francesa, a


partir da Missão Militar de 1922. Essa orientação doutrinária foi motivo de
preocupação quando dos primeiros sucessos alemães na guerra. Após a queda da
França, em 1940, é notável a consternação e o interesse de veículos de informação
do Exército (A Defesa Nacional, principalmente) com relação ao problema do uso da
força blindada e das doutrinas de armas combinadas. As ações alemãs na Europa
são apresentadas em vários artigos como exemplares, e observa-se uma enorme
preocupação, a priori, com a capacidade defensiva do Exército brasileiro diante do
poder ofensivo apresentado pelos alemães. Em alguns artigos há grande
preocupação com o poder anti-carro do Exército brasileiro, pontuada, por exemplo,
em artigo de Moacyr Potiguar (POTIGUARA 1941).

485
No entanto, apesar dessas constatações e reflexões sobre o despreparo militar
brasileiro frente às novações introduzidas pelas forças alemãs nos níveis tático e
operacional, há posicionamentos conservadores, defendendo as armas tradicionais
como líderes na ação segundo a ortodoxia legada pela guerra de trincheiras. É
particularmente esse o debate que nos é relevante aqui. Como em qualquer
instituição militar mundo afora, o Exército brasileiro também sediou um debate a
respeito dessas inovações.

As instituições militares têm como característica uma rigidez ainda maior que outras
instituições, visto que são baseadas primordialmente na hierarquia e disciplina.
Qualquer mudança que altere significativamente o aparato, a doutrina, em suma, o
seu funcionamento, deve passar por um caminho árduo até sua implantação. Como
mostrado anteriormente, somente na Alemanha a chefia política mostrou-se
especialmente interessada em alavancar o processo de inovação, caso raro e de
grande especificidade. Nos demais países somente a experiência foi capaz de
produzir a mudança.

A despeito de nossa modernização militar ter sido orientada pelos EUA a partir dos
anos 40 (notadamente, a partir de 1942), é preciso entender como pensavam
nossos militares nesse momento imediatamente anterior, quando as vitórias alemãs
agridem tudo que nos era caro em termos de doutrina tática e operacional. Entre o
primeiro ano da Segunda Guerra Mundial e a aliança com os EUA, há um período de
três anos que corresponde justamente ao auge das operações alemãs, e cujodebate
é o objetivo deste trabalho analisar.

9 O Debate em torno da Blitzkrieg no Exército brasileiro

A literatura sobre o processo de motomecanização brasileiro inclui o trabalho Os


blindados através dos séculos (ALVES, 1964), o trabalho de Louro (2011), e as
obras de Banha (1984) e Bastos (2011), além de artigos da revista A Defesa
Nacional referentes ao tema.

O processo de motomecanização do Exército brasileiro teve início logo após a


Primeira Guerra Mundial, através da influência direta do então Capitão José Pessoa.

486
Pessoa, que havia servido junto aos franceses durante o conflito, ficara bastante
impressionado com o advento do engenho blindado, que entrou em ação na
segunda metade da Guerra, e advogou pela compra de 23 carros Renault, de
fabricação francesa, para a formação da Primeira Companhia de Carros de Combate
do Exército brasileiro (ALVES, 1964, p. 392).

Entretanto, a compra dos blindados não foi acompanhada da devida instrução,


logística, nem de um projeto de manutenção de longo prazo, e no início da década
de 1930 os blindados Renault haviam virado sucata. Vale lembrar que, nessa época,
a França era um dos principais modelos, não apenas para o Brasil, mas para a
maioria dos exércitos do mundo.

Nos anos 1935/36 teve início um debate nos meios políticos e militares brasileiros
sobre a modernização das Forças Armadas, cujo resultado, para o Exército, foi a
compra de alguns carros de combate italianos que haviam sido observados por
adidos militares brasileiros na campanha da Abissínia, em 1936 (1964: 393).

Assim, a situação do Brasil, bem como de grande parte do mundo, era, nos anos
imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial, a seguinte: havia uma
preocupação incipiente com a aquisição de blindados sem, no entanto, maiores
esforços no sentido de dar preferência a eles, e tampouco havia reflexões
aprofundadas e novidadeiras acerca do uso operacional desta arma.

Em artigos de A Defesa Nacional analisados, fica evidente a absoluta influência


francesa durante toda a década de trina. Grande parte dos artigos sobre questões
de doutrina e emprego se inspiram em experiências francesas na Grande Guerra e
nos regimentos internos das armas francesas. Uma quantidade ainda maior é
diretamente traduzida de periódicos internos das Forças Armadas francesas.

No artigo Curso de Tiro, de julho de 1936, de autoria do então Capitão Almerio de


Castro Neves, o texto inicia com uma citação do Regimento Interno do Exército
francês, e discorre sobre o problema do ataque na Grande Guerra, com reflexões
centradas no papel da Infantaria e da Cavalaria semelhantes às de 1914-1918.

Um segundo artigo da mesma edição (nº 266, de Julho de 1936) traduz um trabalho
publicado em uma publicação do Exército francês sobre o problema da contra-

487
bateria (CAMARA, 1936), enfatizando o papel da artilharia ainda sob a vigência de
idéias forjadas na Grande Guerra, quando esta arma teve, provavelmente, o seu
auge no campo de batalha.

São muitos os exemplos similares, e todos apontam para a obsolescência das


reflexões táticas e operacionais brasileiras, que buscavam suas referências
constantemente no que os franceses estavam fazendo.

Os artigos abordando o tema da motomecanização apontam sempre no sentido de


como resolver o problema da imobilidade da Infantaria frente ao poder de fogo que
pendeu a balança entre ataque e defesa em favor da última. Os engenhos blindados
são tratados como recursos à disposição da Infantaria (que, remanesce nessas
reflexões como a arma de ataque por excelência) para reintroduzir ao campo de
batalha o poder de ruptura que praticamente inexistiu na Primeira Guerra Mundial.
No artigo A Propósito da Motorização, de Durval Magalhães Coelho, o autor pontua
claramente:

A tarefa da Infantaria, tornada ainda mais particularmente árdua devido ao


aumento de potência obtido pela defesa, deve ser aliado – sem que ela
perca o lugar de destaque que lhe cabe – com a aparição dos engenhos
que podem tomar a seu cargo uma parcela do papel formidável que lhe
compete (COELHO, 1936, p. 125-126).

Em outro texto, do Capitão Augusto Maggessi, aparecem esquemas e estruturas de


emprego dos blindados segundo a doutrina francesa. Na seção ―Missão e Objetivo
dos Carros‖ o artigo é bem enfático:

Os carros têm como objetivo normal o acompanhamento da Infantaria [...]


Portanto, sua missão é praticamente a da Infantaria apoiada, e, salvo
situações particulares, não se deve encontrar numa ordem um parágrafo
especial para a missão dos carros (MAGGESSI, 1937, p. 660).

Apesar de haver notável diferença entre tais concepções do emprego de carros de


combate em relação ao manejo dessas armas pelo Exército alemão a partir de 1939,
tais artigos pensam a necessidade de uma infantaria motorizada para acompanhar
os blindados, sem, no entanto, conceberem a ideia destes organizados segundo
uma força singular, uma nova arma, trabalhando em esforço coordenado com a

488
Infantaria ao invésdesubordinados a esta tradicional arma. O texto menciona o
emprego dos carros de combate pelos italianos na Abissínia e cita o General Fuller,
segundo o qual ―o aparecimento do carro de combate traduziu a mais segura reação
à guerra de trincheiras‖ (COELHO, 1936, p. 128).

Por fim, o artigo analisa o emprego da motorização pelo Exército brasileiro no


combate à revolta no Paraná, em 1924. ―Estes exemplos colhidos ao acaso nos
mostram que a motorização já é, desde algum tempo, conhecida entre nós. O que
falta é perfilhá-la.‖ (COELHO, 1936, p. 128).

Ao longo dos anos finais da década de 30 a orientação dos artigos corresponde,


grosso modo, ao exposto acima: muita influência francesa e obsolescência
doutrinária com relação ao papel do blindado na batalha (e nisto o resto do mundo
não ficava muito a frente).

Essa orientação começa a sofrer alguma alteração, no entanto, já em 1938, quando


aparece um artigo intitulado Carros de assalto e doutrina de combate na Alemanha e
URSS, na seção de Tática Geral (primeira vez que o elemento blindado aparece fora do
escopo da seção de Infantaria da revista), de autoria do Tenente-Coronel C. de Souza
Reis. Como explicitado no título, o texto aborda a formação das unidades mecanizadas
alemãs, com enfoque no problema pertinente ao momento: se cabe aos carros serem
empregados em função da Infantaria ou vice-versa. Apesar de não ser uma tradução, o
artigo se fundamenta em observações de militares franceses em visitas aos dois
países, e elenca a formação dos Corpos Mecanizados soviéticos em patamar de
equivalência com as Divisões Panzer alemãs (REIS, 1938, p. 161-174).

Não obstante o fato do artigo citado acima ser de visão realmente novidadeira sobre
o problema da mecanização quando comparado ao que se vinha pensando a
respeito desse problema no Brasil, não restam dúvidas de que se trata de uma
exceção à regra. Como as fontes deixam claro, a orientação só muda de forma
estrutural a partir do começo da guerra, quando os estados-maiores do mundo,
sobretudo das grandes potências, passaram a estudar, de forma apreensiva, as
campanhas alemãs.

489
Em junho de 1940, enquanto o mundo observava atônito o esfacelamento do
Exército francês diante do implacável ataque alemão, A Defesa Nacional publicou
uma tradução de um artigo originalmente publicado na Revue de Questions de
DefenseNacionale sobre as operações alemãs na Polônia, com ênfase nas
operações das Divisões Panzer, com elevado grau de detalhamento (Neto, 1940:
551-572). Em agosto do mesmo ano, no artigo A Motomecanização e o espírito
da cavalaria, o então Tenente Moacyr Ribeiro Coelho expõe sua estupefação
diante da Blitzkrieg:

A campanha da Polônia, onde em vinte e oito dias foi arrasada a então


quinta potência militar do mundo, demonstrou mais uma vez, o valor
inestimável da superioridade de material [...] A tática de um exército
motorizado contra outro, pobre em engenhos blindados, é simples e brutal:
o primeiro golpe das divisões mecanizadas rompe qualquer linha de defesa
cujo material defensivo não esteja a altura do poder ofensivo, e essa
primeira incursão de grande raio, em virtude da enorme velocidade
desenvolvida pelas colunas dessa natureza, se destina a desbaratar os
planos de mobilização inimigos e entravar-lhes o movimento de tropas: as
reservas não serão mais empregadas e, portanto, a frente jamais será
retificada (COELHO, 1940, p. 81-82).

Assim, com o início da guerra, uma verdadeira hecatombe doutrinária se estabelece


no seio da intelligentsia militar brasileira. Uma farta quantidade de artigos é
publicada, mês a mês no decorrer da guerra, discutindo as ações e concepções
doutrinárias alemãs.

Publicado em 1941, o artigo Blitzkrieg, do então Tenente-Coronel J. de Lima


Figueiredo, publicado em outubro de 1940, consiste em um poderoso ensaio sobre o
tema. ―A campanha polonesa consagra, então, o triunfo do carro, da
PANZERDIVISIONEM, que desde o primeiro dia forçaram a frente em todos os
pontos em que atacaram‖ (FIGUEIREDO, 1940, p. 582).

10 Conclusão

A história da Motomecanização brasileira apresenta uma lacuna. O importante


debate sobre o Carro de Combate, fartamente documentado no caso das potências
européias, então na dianteira do processo de inovação militar, tem recebido pouca

490
ou nenhuma atenção no Brasil. Não obstante, houve intensa reflexão sobre o
problema por parte da elite intelectual do Exército brasileiro.

A influência marcante das doutrinas francesas no exército, até a Segunda Guerra


Mundial, sofreu, a partir da rápida vitória das divisões panzer na Polônia, um forte
golpe, que condicionou as reflexões dos militares brasileiros no sentido de
concepções completamente distintas em relação às anteriormente hegemônicas. O
uso do Carro de Combate passou a ser pensado mais ofensivamente, seguindo a
orientação determinada pelos eventos na guerra da Europa.

A queda da Polônia, uma das potências militares européias, foi motivo de catarse
entre a inteligência militar mundial. Um ano depois, a queda da França marca um
episódio ainda mais decisivo para uma guinada nas concepções sobre Carros de
Combate então adotadas pelo Exército brasileiro, emuladas dos manuais franceses.

Até esses eventos, o Blindado havia sido introduzido no Exército brasileiro pensado
como instrumentação necessária à reanimação da Infantaria como força atacante.
Carros foram adquiridos em basicamente dois momentos, um imediatamente após a
Primeira Guerra e outro em 1936, após a campanha italiana na Abissínia. No
entanto, não foram adquiridos nem o suporte logístico necessário ao pleno
funcionamento e emprego dessas armas, tampouco foram pensadas ou assimiladas
as idéias mais ousadas e novidadeiras a respeito dessa inovação.

Somente a Segunda Guerra Mundial foi capaz de alterar essa situação,


proporcionando reflexões importantes e que necessitam de mapeamento e análise.
Entre o fim da influência da doutrina francesa (precipitado pelas vitórias alemãs na
guerra) e o início da influência norte-americana, cujo processo de assimilação
começa com a Aliança Militar firmada em 1942, há um período de três anos marcado
pela necessidade de se repensar os fundamentos operacionais e táticos do Exército
brasileiro, com a conseqüente inserção do Carro de Combate segundo as doutrinas
mais avançadas. Assim, conhecer melhor o que se pensou e debateu nesse período
contribui para a história de nossa instituição militar e, em última instância, para a
história de nosso país.

491
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493
AS VISÕES DA IMPRENSA ESCRITA BRASILEIRA: “O ESTADO DE SÃO PAULO” E A
“FOLHA DE SÃO PAULO” NA COBERTURA DA GUERRA DO GOLFO (1990-1991)

Sandro Heleno Morais Zarpelão164.


Francisco Assis de Queiroz.165

1 Introdução

A Guerra do Golfo, para melhor ser compreendida, pode também ser analisada sob
a ótica da imprensa. Nos capítulos anteriores, estudou-se como a CNN, canal de
notícias televisivas, cobriu o aludido conflito. Foi a CNN como canal de notícias de
televisão que noticiou, ao vivo, as principais notícias e fatos da guerra.

Assim, tornou-se imperativo também compreender como parcela da imprensa escrita


brasileira cobriu a Guerra do Golfo. Então, nesse capítulo, o objetivo é demonstrar
brevemente, através dos editoriais, qual foi a posição e a imagem construída pelos
jornais ―O Estado de São Paulo‖ e ―Folha de São Paulo‖, acerca do conflito.

Para tanto, ressalta-se que o jornal ―O Estado de São Paulo‖ possui uma posição
ideológica e política assumidamente de defesa dos princípios liberais. Já a ―Folha de
São Paulo‖, apesar de aparentar ora ser um jornal ligado mais às idéias da
esquerda, não tem uma posição oficialmente definida, mas os seus editoriais deixam
claro que talvez seja mais liberal do que ela possa querer demonstrar. Então, os
princípios liberais voltados para as relações internacionais, acabaram verificando-se
nos editoriais dos mencionados periódicos.

Desse modo, o presente artigo tratará, de forma geral como os editoriais dos jornais
―O Estado de São Paulo‖ e ―Folha de São Paulo‖, observaram e verificaram a Crise
e a Guerra do Golfo, entre os meses de julho de 1990 e março de 1991. Tal temática
é oriunda da dissertação de mestrado, que foi realizada, na Universidade Estadual
de Maringá (UEM), sobre a Guerra do Golfo cujo tema foi ―Tempestade no Iraque: a
Guerra do Golfo, a Política Externa dos Estados Unidos, a Historiografia Militar e a

164
Doutorando em História Social, Universidade de São Paulo - USP
165
Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo - USP

494
Imprensa Escrita Brasileira (1991)‖, defendida em 2008. Ressalta-se que a cobertura
realizada pelos jornais ―Folha de São Paulo‖ e ―O Estado de São Paulo‖ na Guerra
do Iraque, em 2003, ainda não será abordada nesse trabalho, pois a pesquisa ainda
está sendo feita no âmbito do desenvolvimento do Curso de Doutorado em História
Social, da Universidade de São Paulo (USP), desde o ano de 2012.

2 A Guerra do Golfo nos jornais “O Estado de São Paulo” e na “Folha de São


Paulo”

Dia 2 de agosto de 1990, era ainda madrugada nas areias do deserto onde se
localizava a fronteira entre Iraque e Kuwait, quando as tropas iraquianas cruzaram-
na e invadiram o pequeno território do Kuwait.

Mais de cinco meses depois, no dia 17 de janeiro de 1991, já era noite em Bagdá,
quando os primeiros mísseis estadunidenses cruzaram os céus da cidade das mil e
uma noites. Começava, então, a Guerra do Golfo, com o bombardeio maciço dos
aviões aliados sobre as principais cidades iraquianas e sobre o Kuwait ocupado
pelas tropas do Iraque.

O mundo todo através da CNN (canal exclusivo de notícias dos Estados Unidos) viu
em tempo real, instantaneamente, a guerra, as bombas ―inteligentes‖, os
bombardeios cirúrgicos e todo o incrível aparato tecnológico estadunidense e seus
aliados. Uma guerra que ficou conhecida muito mais pelas imagens que pareciam
ser de computador, do que pelas vítimas, destruição e mortes.

Assim, foram analisadas as reportagens, artigos e principalmente editoriais dos


jornais ―O Estado de São Paulo‖ e ―Folha de São Paulo‖, entre o período de julho de
1990 e março de 1991. Como o foco principal foram os editoriais, então, cabe
ressaltar que no caso do jornal ―O Estado de São Paulo‖, foram consultados 17
editoriais relativos à crise e à Guerra do Golfo, entre os dias 8 de janeiro de 1991 e 8
de março de 1991. Também foi consultado um editorial do jornal Folha da Tarde, do
mesmo grupo empresarial que o jornal ―O Estado de São Paulo pertence, do dia 15
de janeiro de 1991. Já com relação à ―Folha de São Paulo‖ foram consultados ao

495
todo 20 editoriais relativos à crise e à Guerra do Golfo, entre os dias 9 de agosto de
1990 e 10 de março de 1991.

Notou-se, em linhas gerais que ao todo seis temáticas que perpassam os editoriais
dos jornais ―O Estado de São Paulo‖ e ―Folha de São Paulo‖: o petróleo, as armas
sofisticadas, a guerra como irracionalidade e a sua necessidade, os interesses dos
Estados Unidos e a visão sobre Saddam Hussein, a atuação das Nações Unidas e a
censura à imprensa.

O primeiro aspecto se refere ao uso de tecnologia, de armas sofisticadas, a crença


de que se tratava de uma guerra high tech, com pouco derramamento de sangue. A
imprensa, televisiva e também escrita, transformou as armas e a alta tecnologia
bélica nos principais protagonistas da guerra, numa incrível inversão de papéis, em
que o homem, o horror, a destruição e a ferocidade da guerra foram deixadas em
segundo plano. Nesse sentido, o editorial do ―Jornal da Tarde‖, de 15 de janeiro de
1991, pertencente à família Mesquita, que também controla o jornal ―O Estado de
São Paulo‖ informou:

[...] Hoje, terça-feira, 15 de janeiro de 1991, às 24 horas (hora da ONU,


duas horas da manhã de quarta-feira no Brasil), estará se iniciando
oficialmente a ofensiva do mais poderoso e tecnologicamente mais
sofisticado dispositivo militar jamais conhecido pelos homens contra um
exército que, sendo o mais poderoso do mundo árabe, já demonstrou, em
oito anos de guerra com os desorganizados exércitos do ayatolah Khomeini,
que não tem a menor condição de oferecer às tropas aliadas uma
resistência maior do que a oferecida pelas tropas dos general Galtieri ao
pequeno exército de Margaret Tachter na Guerra das Malvinas.
(EDITORIAL, 15 jan. 1991).

Essa informação é confirmada em artigo publicado por Roberto Godoy, no jornal ―O


Estado de São Paulo‖, de 15 de janeiro de 1991:

No ar, entretanto, nada supera os fascínio do avião invisível F-117ª,


provavelmente o protagonista da primeira hora de luta. Pequeno, com uma
aparência incomum, marcada pelos ângulos exóticos que o tornam
indetectável nas telas dos radares, ele está pronto para decolar esta noite,
ao abrigo da escuridão. (GODOY, 1991).

496
Percebe-se que as armas foram alçadas à condição de protagonistas da guerra,
desconsiderando, de certa forma, a dimensão humana que a guerra possui. O
Editorial da ―Folha de São Paulo‖ segue essa linha de pensamento:

Mesmo descontando o triunfalismo sinistro dos briefings do Pentágono, a


colossal investida aérea norte-americana, o poder mortífero dos
bombardeios e a fantástica precisão da parafernália posta em marcha
parecem ir dissipando até os temores quando a um choque excessivamente
prolongado. (EDITORIAL, 18 jan. 1991, p. A-2).

Não se pode esquecer de que, nesse momento, o mundo estava presenciando o


emergir de uma era de incertezas, com a crise da Guerra Fria, do socialismo real e
da União Soviética, com o advento de inúmeros conflitos étnicos, religiosos e
nacionalistas e a formação e expansão de muitos blocos econômicos.

Dos escombros da Antiga Ordem Mundial (Guerra Fria), nasceu uma profunda
insegurança nas relações internacionais, em que o dançar histórico era muito mais
rápido do que as pessoas, nações e intelectuais podiam acompanhar e entender.

A Guerra do Golfo, em 1991, foi o conflito que ocorreu dentro de grandes


transformações verificadas nas relações internacionais no ano de 1991, no caso a
crise do socialismo real, o fim da Guerra Fria e o consenso, nunca dantes existido,
na atuação da ONU, durante o citado conflito. Aqui surge a segunda temática
relativa ao conflito, a atuação das Nações Unidas antes e durante a guerra.

O jornal ―Folha de São Paulo‖, de 1º de dezembro de 1990:

[...] De todo o modo, a decisão da ONU parece indicar que finalmente a


entidade resolveu assumir uma posição de árbitro internacional. Já não era
sem tempo. Resta esperar esse papel seja reforçado e ampliado, seja quais
forem os conflitos, os interesses em jogo e o peso específico dos países
cujas dissenções as Nações Unidas venham futuramente a examinar.
(EDITORIAL, 1 dez. 1990, p. A-2).

Percebe-se, uma valorosa crença do grupo Folhas na atuação das Nações Unidas e
no comportamento, por consequência, dos Estados Unidos no conflito. Contudo, tal
percepção foi se diluindo com o tempo devido ao desenrolar da guerra:

497
Conforme Cuéllar, o Conselho é informado das ações militares apenas
depois de realizadas; não há envolvimento algum da ONU, nem por meio da
coordenação das forças anti-Iraque, nem pela intervenção direta. Inexistem,
portanto, garantias de que certos requisitos estejam sendo efetivamente
respeitados; há dúvidas se os ataques maciços a cidades iraquianas são
mesmo para libertar o Kuwait – objetivo teórico da guerra. (EDITORIAL, 13
fev. 1990, p. A-2).

O que se viu no conflito foi que a Organização das Nações Unidas não teve o
comando das ações militares, controladas pelos Estados Unidos. Nesse sentido, o
jornal ―O Estado de São Paulo‖ apontou as deficiências da ONU:

O fiasco de Perez de Cuéllar revela as deficiências mais graves da estrutura e


da praxe da Organização das Nações Unidas. [...] Sem um secretário-geral que
se conduza acima de tudo pelos ditames e espírito da Carta de São Francisco,
a ONU corre o risco de transoformar-se ora num certame de retórica estéril, ora
num jogo de forças que se anulam na projeção de interesses nacionais
soberanos e contrários.[...]. (EDITORIAL, 15 fev. 1991, p. 3).

O que se verificou na Guerra do Golfo é que mais uma vez as Nações Unidas foram
utilizadas, de certa forma, para atender aos interesses das grandes potências,
principalmente os Estados Unidos. O jornal ―O Estado de São Paulo‖ esboçou uma
análise mais crítica e mais aprofundada das razões da ineficiência das Nações
Unidas do que a ―Folha de São Paulo‖, em seu editorial.

A terceira temática foi a questão do petróleo e o possível choque que a guerra


poderia causar nos preços a guerra, além da dependência do mundo com relação ao
Petróleo. O ―Jornal da Tarde‖ em seu editorial de 15 de janeiro de 1991 defendeu:

Insensatez maior ainda foi a ausência de qualquer esforço sério para livrar o
mundo da dependência energética – 70% das reservas conhecidas do
petróleo consumido na Terra estão situadas lá – do Oriente Médio, uma
região explosiva e instável politicamente [...]. (EDITORIAL, 15 jan. 1991).

O Jornal da Tarde critica duramente a dependência do mundo com relação ao


petróleo do Oriente Médio e a letargia do Ocidente em buscar resolver seus
problemas de fontes de energia.

498
Já a ―Folha de São Paulo‖, insistiu várias vezes com a questão do petróleo. No
entanto, diferentemente do ―Jornal da Tarde‖, dedicou alguns editoriais para
expressar sua preocupação com um eventual novo choque do petróleo e o seu
impacto sobre o Brasil. Porém, em nenhum momento procurou analisar a real
dimensão do petróleo para o Iraque e para os Estados Unidos. O Editorial de nove
de agosto de 1990 noticia:

A eclosão da crise Iraque-Kuwait repercutiu imediatamente sobre o preço


do petróleo causando um aumento de 40% na cotação do produto no
mercado internacional. A despeito da dificuldade natural em avaliar, na
sua plenitude, as consequências do conflito, urge adotar medidas
preventivas e advertir a sociedade para os custos daí decorrentes.
(EDITORIAL, 9 ago. 1990, p. A-2).

Como se sabe o tão temido choque do petróleo acabou não ocorrendo. Os preços
do barril permaneceram ligeiramente estáveis durante a Guerra do Golfo.

A quarta temática foi a censura à imprensa. Ocorre que a Guerra do Golfo é


colocada pela imprensa como sendo uma guerra sem grande importância histórica,
apenas conhecida pelas armas inteligentes, bombardeios cirúrgicos de alta
tecnologia, desconhecendo talvez a sua real dimensão. A própria historiografia
também não trata a Guerra do Golfo como um fato histórico de grande relevância no
cenário internacional. É bem verdade que não se deve superdimensioná-la,
carregando-a de um peso histórico que não possui, mas também não se pode
relegá-la ao esquecimento.

As agências de notícias internacionais que cobriram a guerra, além da própria CNN,


são em sua maioria de origem estadunidense e assim, os jornais brasileiros como
―Folha de São Paulo‖ e ―O Estado de São Paulo‖, adquiriram notícias da Guerra do
Golfo, principalmente da imprensa estadunidense (SILVA, 2003).

Desse modo, o jornal ―O Estado de São Paulo‖ em editorial de 23 de janeiro de 1991


criticou o monopólio da notícia exercido pela CNN, durante a guerra, que
caracterizava, de certa forma uma censura e colocava em risco o acesso às notícias:

499
Não é de hoje que os mais atentos observadores da guerra sustentam a
idéia de que a primeira vítima de um conflito bélico é sempre a verdade.
Especialmente nestes nossos tempos em que a tecnologia e a eletrônica
passaram a ser o oxigênio vital dos exércitos e construir a ‗nossa‘ verdade,
ou pelo menos a que mais nos interessa, no coração e nas mentes do
inimigo é essencial para a vitória. A exclusividade de transmissão ao vivo,
docemente oferecida pelos iraquianos a um tipo específico de rede de
televisão norte-americana, a CNN, merece atenção. Durante toda a
primeira madrugada a guerra foi transformada em um fantástico espetáculo
de um dono só. A novidade foi outorgada por Bagdá a um único
privilegiado.[...] (EDITORIAL, 23 fev. 1991, p. 3).

O periódico ―Folha de São Paulo‖ preferiu criticar a censura à imprensa imposta


pelas partes beligerantes do conflito:

O véu de censura que encobre a guerra no golfo Pérsico como que tornou a
opinião pública mundial refém das conveniências fardadas de Washington,
Bagdá e dos demais países envolvidos no conflito. O único front cujos
canais seguem abertos é o dos porta-vozes militares, que despejam
informes de conteúdo sempre mais contraditório e inexpressivo.
Destaca-se o paradoxo: embora a imprensa hoje disponha de instrumentos
avançadíssimos, malgrado a televisão realize uma cobertura intermitente,
sabe-se menos sobre esta guerra do que acerca das anteriores; o imenso
aparato tecnológico da comunicação, com censura, acaba servindo para
generalizar a desinformação. (EDITORIAL, 30 jan. 1991, p. A-2).

A questão da censura e do acesso às informações durante a Guerra do Golfo foi


bastante importante para criar uma imagem de guerra limpa, com o uso de armas
inteligentes e bombardeios cirúrgicos. Contudo, ao final da guerra isso foi
desmentido pelos fatos, pois ocorreram vários bombardeios em alvos errados, como
em locais habitados por civis. Como por exemplo: ―Bombardeios dos Estados Unidos
e seus aliados mataram centenas de pessoas em um abrigo antiaéreo no bairro Al
Amriya, na periferia de Bagdá. [...].‖166

A quinta temática se relaciona com a defesa pelos jornais de negociações e a crítica


à necessidade de guerra. Ambos os jornais, como já foi discutido anteriormente,
tratam a guerra como uma solução irracional. Então se critica que a diplomacia foi
preterida pela opção da guerra:

166
Reportagem das agências internacionais republicada pela Folha de São Paulo com o título “Bombardeio mata
centenas em abrigo de Bagdá", São Paulo, 14 fev. 1991, p. A-10.

500
Hoje, é a vontade política de Bush e de Saddam que se impõe ao desejo de
retardar a ação de parte do Estado-Maior Combinado norte-americano.
Como a guerra fundamentalmente, é um fato político com um objetivo
político, é de temer que a opinião dos profissionais, que sabem o que
significa a guerra, não seja acatada.[...] (EDITORIAL, 15 jan. 1991, p. 3).

O jornal ―Folha de São Paulo‖ defendeu, por sua vez, o embargo econômico ao
invés da solução da guerra:

Todas essa evidência convergem inevitavelmente para tornar mais


desconcertante a indagação: por que não se insistiu no embargo econômico
em vez de se apresentar como exclusiva nesta altura a saída militar?
Pressionado por um bloqueio verdadeiro, parece óbvio que cedo ou tarde
não restaria alternativa a Saddam se não a do recuo; sequer poderia contar
com o espantalho de uma crise de fornecimento do petróleo – a ausência
dos estoques do Iraque e do Kuwait não impediu a normalização da oferta
do produto. (EDITORIAL, 17 jan. 1991, p. A-2).

O que o editorial acima não depreendeu é que os Estados Unidos e o Iraque


desejavam a guerra e não poderiam recuar de suas posições.

A sexta e última temática é a relativa aos interesses dos Estados Unidos na guerra e
a imagem de Saddam Hussein. Enquanto a imprensa e o próprio governo
estadunidense representavam o líder iraquiano como sendo um déspota, guiado por
uma lógica alucinada e até mesmo ―louco‖ e a reencarnação do ―mal‖, pouco se
discutia nos editoriais as implícitas razões que levaram os Estados Unidos a
participarem da guerra. Como se sabe o petróleo e a retirada de Saddam do poder
eram alguns dos objetivos. Saddam Hussein e o Iraque foram integralmente
responsabilizados pela ocorrência da guerra. Já os Estados Unidos de George Bush
aparecem como baluartes do sistema internacional, defensores do direito
internacional e das Nações Unidas. O Iraque, não se pode esquecer, foi armado
pelo próprio Ocidente. O editorial da ―Folha de São Paulo‖:

De toda maneira, a ação contra Israel não deixa de confirmar – de modo


dramático, ignominioso e estarrecedor – o caráter repulsivo da investida de
Saddam Hussein. Não há qualquer chance de vitória; mas o ditador insiste
em sacrificar a população de seu país. É praticamente inevitável que
ocorram pesadas baixas civis, diante das maciças incursões aéreas norte-
americanas. Nos cálculos sinistros do tirano; pouco importa – sua
arrogância retórica se intensifica. (EDITORIAL, 19 jan. 1991, p. A-2).

501
O jornal ―O Estado de São Paulo‖ compara de certa forma, Bush a Franklin Delano
Roosevelt e a Winston Churchill, e condena o Iraque como o grande causador da
guerra em seu editorial do dia18 de janeiro de 1991:

O discurso com que o presidente George Bush informou os Estados Unidos


de que as hostilidades haviam sido iniciadas no Golfo Pérsico não tem a
grandeza literária e a dramaticidade de algumas peças de F. D. Roosevelt
ou então, de Winston Churchill. Marca no entanto, apesar disso, momento
seguramente tão importante para a história das relações internacionais
quanto qualquer das orações com que os dois grandes estadistas deste
século fixaram os pontos de inflexão da Segunda Guerra Mundial e da
História Contemporânea. [...] Irredutível em sua posição, buscando unir os
povos árabes em torno da bandeira da ―Guerra Santa‖, Saddam Hussein
conduziu a ONU a adotar a resolução autorizando os estados-membros a
usar todos os meios para levar o Iraque a retirar-se do Kuwait. Todos os
meios – o derradeiro deles, a guerra. (EDITORIAL, 18 jan. 1991, p. 3).

Então, de acordo com os editoriais citados, a imagem que ficou da guerra foi o
governo dos Estados Unidos, na época presidido pelo presidente George Bush, do
Partido Republicano, que passou e defendeu que a Guerra do Golfo foi um conflito
com bombardeios cirúrgicos, feitos com armas inteligentes, em que as mortes
seriam em quantidade mínima. Como se sabe, não foi bem assim que aconteceu.
Nesse sentido, a pesquisa do mestrado em questão objetiva mostrar como a
imprensa escrita brasileira, no caso os jornais ―Folha de São Paulo‖ e ―O Estado de
São Paulo‖, seguiram tal discurso, sem discuti-lo de forma profunda.

Nesse sentido, de que a imprensa teve uma grande participação na guerra, pois de
acordo com José Arbex Júnior, em sua obra Showrnalismo: a notícia como
espetáculo, a Guerra do Golfo pode ser considerada como um grande divisor de
águas, porque a imprensa enfatizou muito mais as armas, o show de imagens, as
batalhas noturnas que pareciam de vídeo game, os bombardeios cirúrgicos, as
armas inteligentes e a tecnologia do que o horror, o homem, a vida, as vítimas e a
destruição. Arbex afirma:

A Guerra do Golfo serviu como um divisor de águas nessa longa história.


Pela primeira vez, uma guerra era transmitida ‗ao vivo‘, em tempo real, por
uma rede de alcance planetário (a Cable News Network, CNN) [...]. E –
outro fato inédito – a grande personagem da guerra, ao contrário daquilo
que, apenas em certa medida, havia caracterizado a cobertura da Guerra do
Vietnã, nos anos 60, não foi o homem, os horrores, ódios e esperanças

502
provocadas pela destruição, mas a tecnologia, as armas ‗inteligentes‘, as
operações ‗cirúrgicas‘ [...] (ARBEX JÚNIOR, 2001, p. 30-31).

Vale lembrar que para Arbex, a Guerra do Golfo chegou a ser vista como um
―choque civilizatório‖. Na verdade, ocorreu uma construção de uma retórica e uma
metáfora interpretativa entre os Estados Unidos da América, representante da
civilização ocidental – detentor de valores cristãos, democráticos, capitalistas, do
livre mercado e pluralista – e o Iraque, representante da civilização muçulmana –
portador de intolerância, atraso, avesso à democracia e ao livre mercado.

Obviamente não se devem desprezar as diferenças culturais e históricas entre o


Ocidente Cristão e o Islã, para se entender a Guerra do Golfo. Nesse sentido, há
uma discordância com relação ao jornalista José Arbex Júnior, pois tal conflito não
pode ser entendido apenas pelas diferenças culturais. Não é segredo que o
Ocidente compreende com os seus ―olhos‖ as estruturas culturais e o pensamento
da civilização muçulmana. Dessa maneira, há uma concordância parcial com os
argumentos do autor Samuel Huntington (HUNTINGTON, 1997). Não que o mundo
deva ser entendido como um mero choque de linhas culturais civilizatórias. Contudo,
as ações dos países dentro do âmbito das relações internacionais devem ser
entendidas também pelo viés das questões políticas, geopolíticas, econômicas e das
relações internacionais.

Por outro lado, o jornalista José Arbex tem razão quando fala que houve uma
construção metafórica, retórica teórica por parte da imprensa ao apresentar o Iraque
e o mundo árabe-muçulmano como sendo um conceito ameaçador e ruim ao
Ocidente, por parte da imprensa e dos países envolvidos, principalmente pelos
governos dos Estados Unidos e do Reino Unido. Vale ressaltar que o próprio José
Arbex Junior foi correspondente na Guerra do Golfo, tendo permanecido no Kuwait
para cobrir a guerra para o jornal ―Folha de São Paulo‖.

A imprensa escrita, televisiva e de rádio construiu a imagem de que a Guerra do


Golfo seria uma luta do ―bem‖ contra o ―mal‖, isto é, dos Estados Unidos e o
Ocidente, contra o Iraque o Islã. Isso foi reproduzido reiteradas vezes pelos
noticiários escritos em escala internacional e nacional.

503
Assim, pode-se refletir sobre a validade de Armand Mattelart ao afirmar:

O Século XIX inventa a news e, com ela, o ideal da informação instantânea.


Entre 1830 e 1850 criam-se as grandes agências. A partir de 1875,
começam a formar-se os grupos de imprensa. Surgem os primeiros gêneros
escritos da produção cultural de massa. (MATTELART, 2000, p. 47).

O próprio Arbex também corrobora esse pensamento ao mostrar como a informação


está cada vez mais rápida quando escreve Do início do século XIX até os nossos
dias, a história tecnológica da mídia pode ser resumida como a história da
fabricação e instalação de meios cada vez mais rápidos de propagar a informação
(ARBEX JÚNIOR, 2001, p. 59).

Dessa forma, para atender os seus anseios de lucros e interesses de corporações


privadas e até públicas, a imprensa atua como uma empresa que aparentemente é
guardiã da verdade e da imparcialidade, como afirma o jornalista Carlos Dorneles:

A imprensa somente revela fatos, não toma partido; não é responsável


por acontecimentos, apenas os registra. Esse dogma jornalístico jamais
soou tão irreal como depois do 11 de setembro. Muitos episódios, como
a própria guerra no Afeganistão, tiveram participação ativa da imprensa.
É impossível, hoje, separar o que foi apenas a intenção pura e simples
do governo Bush e o que foi facilitado, possibilitado pela influência da
mídia. [...] O trabalho da mídia só reforçou a sua capacidade de ditar
rumos. Por cumplicidade ou por omissão, mas sem inocência.
(DORNELES, 2003, p. 270-271).

Seguindo essa linha de raciocínio, a Guerra do Golfo foi um marco importante na


cobertura da imprensa e o seu tratamento para com as notícias. A cobertura ao vivo
transformou veículos como a CNN, fazendo-a uma grande potência nos meios de
comunicação jornalísticos, um referencial para o jornalismo 24 (vinte e quatro) horas
e para a cobertura de guerras.

A obra de Arbex vai ao encontro com essa linha de pensamento, pois esteve no
aludido conflito, a serviço do jornal ―Folha de São Paulo‖, no qual trabalhou no
período de 1990-1991.

504
3 Considerações Finais

Percebe-se, pelo que foi discutido, que a imprensa escrita brasileira, leiam-se os
jornais ―Folha de São Paulo‖ e ―O Estado de São Paulo‖, fizeram algumas críticas e
análises em seus editoriais, mas reproduziram na sua maior parte a versão de que
Saddam Hussein era um sanguinário, os Estados Unidos estavam lutando em prol
do cumprimento do direito internacional, a guerra foi tecnológica e com armas
inteligentes, e a imprensa foi censurada e comprometida em sua cobertura.

Não se pode esquecer que a imprensa estadunidense, fonte das informações


internacionais para os mencionados jornais brasileiros, seguia a Doutrina Powell do
governo dos Estados Unidos. Tal doutrina é baseada na ideia de uma guerra segura,
sem mortes, com o uso de armas inteligentes e bombardeios cirúrgicos. Daí nasceu
a imagem sobre a Guerra do Golfo de ser uma guerra limpa, quase sem mortes.

Obviamente, o mundo muçulmano e os islâmicos continuam sendo apresentados


pela imprensa como o grande ―mal‖ que deve ser corrigido para a manutenção da
paz mundial e da civilização Ocidental. É bem verdade que a mídia
estadunidense admitiu algum tempo depois que a cobertura realizada durante a
Guerra do Golfo foi tendenciosa em favor dos Estados Unidos. Sem dúvida, tal
operação foi construída pela mídia estadunidense juntamente com o Estado
estadunidense mais a elaboração de documentários e filmes de imparcialidade e
cientificidade bastante duvidosos.

Desse modo, nota-se que a cobertura da imprensa escrita brasileira, no caso, os


jornais ―O Estado de São Paulo‖ e ―Folha de São Paulo‖, através de uma análise dos
seus editoriais sobre a crise e a Guerra do Golfo, reproduziu várias ―verdades‖ e
visões sobre tal conflito, defendidas por agências de notícias internacionais e pela
CNN. Pouco se preocuparam em aprofundar e discutir os interesses infiltrados e
escondidos dos Estados Unidos e do Iraque na guerra, bem como a real dimensão
que ela teve para o Oriente Médio e para o mundo em termos geopolíticos, militares
e econômicos.

Pensar a cobertura de uma guerra, como a do Golfo, de 1991, pela imprensa


escrita brasileira, é fundamental para compreender como ela foi vista no Brasil e

505
como nossa imprensa depende e reproduz muitas notícias e visões sobre
questões internacionais, por depender de agências como a Reuters, Associated
Press e France Press. Seriam interessante países como o Brasil, por meio de
sua imprensa, construir mecanismos que possam garantir também a produção
de notícias e de material sobre questões internacionais.

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509
Simpósio Temático 07

SECURITIZAÇÃO DA PRESENÇA INDÍGENA NO BRASIL:


UMA ANÁLISE CRÍTICA

João Nackle Urt167


Tchella Maso168

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho parte do marco teórico da Escola de Copenhagen, a fim de analisar


criticamente o tratamento da questão indígena no Brasil dentro do campo da Segurança e
da Defesa. No primeiro tópico, será apresentada uma introdução às ideias da Escola de
Copenhagen. No segundo tópico, serão levantados alguns dos principais discursos (ou
movimentos securitizadores) que retratam os povos indígenas como ameaças à
soberania brasileira, e os principais agentes desses discursos, principalmente aqueles
identificados na Doutrina militar brasileira. O principal receio identificado é que a presença
indígena no Brasil possa servir como fundamento para intervenções estrangeiras na
Amazônia.No terceiro tópico, será apresentada uma introdução sobre a doutrina da
intervenção humanitária no Direito Internacional. Vai-se destacar também a noção de
autonomia indígena - decorrente da Constituição Federal de 1988 e da Convenção n.
169/OIT, ratificada pelo Brasil em 2002 - e a compatibilidade dessa instituição com a
manutenção da soberania brasileira,a partir de conceitos como "o terceiro espaço da
soberania" e do "multiculturalismo liberal".Por fim, no quarto tópico, vai-se argumentar em
prol da dessecuritização desse tema, porque se entende que o discurso securitário não é
o mais adequado para enfrentar os desafios relacionados com a gestão das relações
interétnicas entre povos indígenas e sociedade envolvente.

167
Relações Internacionais/UFGD
168
Relações Internacionais/UFGD

510
2 MARCO TEÓRICO: IDEIAS CENTRAIS DA "ESCOLA DE COPENHAGEN"

[...] há neste mundo mais medo de coisas más

do que coisas más, propriamente ditas (couto, 2011).

Segurança é um tema caro às Relações Internacionais (RI). Tradicionalmente, essa


agenda foi situada no campo da alta política (high politics), o que lhe assegurou
status preferencial entre as variáveis analíticas da política de poder. Os temas de
segurança estatal tiveram primazia a partir da vertente realista, com seus eixos
estruturados na percepção racionalista, positivista e naturalista do conhecimento. De
tais horizontes emergiram as análises centradas no Estado, sua sobrevivência e
suas capacidades materiais, com ênfase no setor militar e na aquisição de
armamentos como mecanismo de defesa.

Na década de 1970, o contexto de distensão da Guerra-Fria, associado às


especificidades do contexto europeu e a subsequente virada sociológica, linguística e
interpretativa no campo das RI, culminaram na ampliação da noção de segurança, seus
agentes e perspectivas. Em tal movimento, merecem destaque as formulações da
Escola de Copenhagen – Copenhagen Peace Research Institute (COPRI), que iniciou
suas atividades em 1985. Seu foco foram os estudos para a paz, e seus expoentes são
Barry Buzan, Ole Weaver, Morten Kelstrup, Pierre Lemaitre, entre outros.

A Escola possui uma definição abrangente de segurança, incorporando em sua


concepção de ameaças e agentes, além do tradicional recorte militar, os setores
político, societal, ambiental e econômico (TANNO, 2003). Vale mencionar que ao
longo de quase três décadas de existência, os conceitos desenhados por tal
perspectiva sofreram mutações169. Nesse sentido, a base argumentativa utilizada
aqui deriva das percepções apresentadas por Buzan, Waever & De Wilde (1998). A
partir de um olhar interpretativista acerca da formulação do conhecimento, tais
autores partem de uma ontologia que combina fatores materiais e ideacionais,

169
O compilado apresentado pela pesquisadora Grace Tanno (2003) elucida que é somente em 1998 que Ole
Weaver demarca sua oposição diante da abordagem positivista das duas obras referenciais de Barry Buzan:
“People, States and Fear: the National Security Problem in International Relations”, 1983; “People, States and
Fear: An Agenda for International Security Studies in the Post-Cold War Era”, 1991.

511
globais e regionais170 da segurança internacional. Tal ponderação se expressa na
definição de segurança como ausência de ameaças existenciais objetivamente
consideradas, formuladas a partir de seu caráter intersubjetivo. Ou seja, é o discurso
formulado (speech-act) em torno do objeto referente que constitui as ameaças. Nessa
perspectiva admite-se que a realidade é construída socialmente. Portanto, o dado
bruto (empírico) pouco diz sobre si mesmo se descolado de suas mediações espaço-
temporais (ADLER, 1999). O desafio analítico está na compreensão das práticas
sociais, nas redes de interação que se materializam a partir do campo ideacional
(instituições, processos, interesses e identidades) compartilhado entre os agentes.

Essa constituição discursiva das ameaças é o que a Escola de Copenhagen chama


de securitização. Este conceito representa a mutabilidade e a contingência do
processo em que agentes interessados, envoltos por relações de poder,
transformam um tema de relevância política em uma agenda de segurança. Ao
realizar tal movimento securitizador, que envolve a construção de valores
compartilhados intersubjetivamente pelo tecido social, os agentes securitizadores
retiram do âmbito da política normal a resolução de determinado tema/problema.
Uma vez securitizado, um dado assunto passa a ser caracterizado como ameaça
existencial a um dado objeto referente (que pode ser o Estado, a Soberania, a
Humanidade, etc.), o que justifica a tomada de medidas extraordinárias, isto é,
exteriores às regras institucionalizadas para a normalidade democrática.

De tal arquitetura argumentativa decorrem algumas consequências: 1) A segurança


é uma prática auto referencial: nem sempre que uma ameaça é construída, ela
encontra correspondência na realidade (WAEVER et alli, 1998, p. 24); 2) A
segurança deixa de ser entendida como um algo universalmente positivo/bom; o
ideal é aspirar à dessecuritização, isto é, o reposicionamento dos assuntos para fora
do campo da emergência e de volta para dentro dos processos normais de
negociação da esfera política (p. 4).

Feita essa breve introdução sobre a Escola de Copenhagen, passamos ao


desenvolvimento de nosso argumento que incide sobre a securitização da presença

170
Nossa categorização parte de uma extensão dos argumentos apresentados por WENDT acerca das quatro
sociologias do meio internacional (1999), e da leitura dessa sistematização realizada pelo analista Sodupe
(2003).

512
indígena no Brasil, com ênfase na Amazônia. Isso, pois, de acordo com o referencial
teórico adotado, ―cabe ao pesquisador [...] identificar quando uma questão está
sendo apresentada como pertencente à área de segurança [e] posicionar-se
politicamente de forma mais explícita, denunciando tentativas de securitização
consideradas ilegítimas‖ (TANNO, 2003, p.58).

A fim de mapear os agentes e interesses que orquestram a securitização da questão


indígena tomamos por base o discurso do setor militar brasileiro, a partir do texto de
Humberto Lourenção (2009). De forma complementar, recorremos aos discursos
oficiais apresentados pelo Ministério da Defesa e sua ênfase na proteção da
soberania do país e na aparente oposição desta à autonomia dos povos indígenas.
Cabe mencionar que a escolha desses materiais deu-se em consonância com as
diretrizes expressas pelo historiador Koselleck, para o qual a análise de uma ideia
parte do recorte de textos que expressem contextos e articulem-se com estes
(1992apud TANNO, 2003).

3 APRECIAÇÃO CRÍTICA DOS MOVIMENTOS SECURITIZADORES:

Povos Indígenas e Defesa Nacional brasileira

O trabalho de Lourenção (2009) representa bem o discurso tradicional do setor


militar no Brasil. Seu texto é principalmente uma suma da literatura produzida por
autores considerados patronos da Geopolítica no País, como Carlos de Meira Mattos
e Terezinha de Castro, ou dos chamados "oficiais superiores", como o Vice-
Almirante (reformado) Armando Vidigal, o General Luiz Gonzaga Schröeder Lessa,
ex-comandante militar da Amazônia, o Coronel de Infantaria do Exército, Walter
Romero Castelo Branco, e o Almirante de esquadra (reformado), Hernani Goulart
Fortuna. Para além desses figurões, são citados majoritariamente artigos publicados
nos periódicos das Forças Armadas, tais como a Revista Marítima Brasileira, a
Revista da Escola Superior de Guerra, a Revista do Clube Militar e monografias da
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, da Escola de Guerra Naval e da
Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica. Como crítica inicial, observa-se
que se trata de um discurso autorreferenciado, isto é, cujas fontes não representam

513
a diversidade bibliográfica que seria recomendável como parte das formulações
estratégicas que pautam o pensamento de Defesa no País.

Para além da autoridade dos nomes e instituições acima mencionados, nenhuma


fonte documental é citada, reproduzindo juízos que se fazem válidos apenas
genericamente, em afirmações que seriam difíceis de desmentir, como "a Amazônia
têm riquezas minerais" ou "há ONGs mal intencionadas". Segundo Lourenção, o
tema da defesa é tradicionalmente ―pouco debatido pela sociedade civil, em geral, e
pelo poder político, em particular‖ (2009, p. 249), de modo que continua restando às
―Forças Armadas, representadas por seus oficiais superiores,‖ o protagonismo ―na
definição e proposição de políticas de defesa para o país e para a Amazônia‖ (p.
250). Contraditoriamente, o mesmo autor reconhece que há ―forte antagonismo entre
o pensamento militar e posicionamento de outras instituições, que abordam [o tema
da relação entre povos indígenas e Defesa Nacional], como ONGs, Universidades e
Igrejas‖ (p. 255). Assim, o texto deixa entrever que há sim pensamento sobre defesa
entre a sociedade civil, mas que tais ideias não são reconhecidas pelas Forças
Armadas quando não obedecem as formulações tradicionais do pensamento
gestado nas próprias Forças Armadas171.

A Amazônia tornou-se ―símbolo mobilizador das Forças Armadas no Brasil‖, diante


do fim das ameaças representadas pela a Argentina, após a aproximação bilateral
dos anos 1980, e pela União Soviética e a subversão comunista, após 1991. No
contexto da nova ordem internacional proposta pelo triunfalismo norte-americano no
pós-Guerra Fria, a ameaça à Amazônia advém da ―pressão internacional, diante das
questões humanitárias e ambientais‖ (p. 251), sendo que as ameaças humanitárias
referem-se prioritariamente aos indígenas.

O risco à soberania brasileira na Amazônia vem da formulação do ―direito de


ingerência‖ na política internacional, notadamente, pelos norte-americanos. A
ameaça maior ―reside na projeção dos interesses estratégicos das grandes
potências‖ sobre esse território, que apresenta baixa densidade demográfica (4
hab./km2), enorme extensão de fronteiras (11 mil km terrestres e 1,6 mil km

171
Há que mencionar que a Estratégia Nacional de Defesa, aprovada no Decreto Nº 6.703, de 18 de dezembro
de 2008, menciona que “Nada substitui o envolvimento do povo brasileiro no debate e na construção de sua
própria defesa”. O que demonstra um hiato entre norma e prática de diálogo e conduta.

514
marítimos), bacia hidrográfica navegável e próxima ao Atlântico norte. Além disso, a
Amazônia possui, segundo o autor, bens atuais e potenciais suficientes para
qualquer potência ―sustentar-se como potência hegemônica absoluta do século XXI‖.
O autor afirma categoricamente que ―a Amazônia corre um risco concreto de ser
internacionalizada, em razão do forte interesse estratégico que desperta nos países
desenvolvidos e por se encontrar numa zona geopolítica de forte influência norte-
americana‖ (LOURENÇÃO, 2009, p. 251-253).

A conspiração internacional contra a soberania brasileira na Amazônia teria como


estratégia a difusão de discursos para manipular a opinião pública em favor da
internacionalização da Amazônia. A tese das pressões internacionais foi revigorada,
segundo o autor, com a Conferência Rio92 e a demarcação da terra ianomâmi.
Várias entidades estariam orquestrando uma trama com o objetivo de tomar a
Amazônia do domínio brasileiro. A causa ecológica e a causa dos direitos humanos
dos povos indígenas ―seriam os pretextos para a prática de ingerência estrangeira‖.
Haveria uma ―campanha internacional de convencimento da opinião pública mundial
de que as questões existentes na Amazônia são do interesse da Humanidade‖. A
conspiração contra o domínio brasileiro sobre a Amazônia vêm de organizações
científicas e religiosas do Norte, ambientalistas, antropólogos, ―estranhos aos
interesses do Estado brasileiro‖. ―Uma grande mobilização da opinião pública
nacional e internacional poderia pressionar o governo brasileiro a tornar cada vez
mais inacessíveis grandes áreas florestais, declaradas reservas indígenas [...]
restringindo sua exploração econômica por parte do Estado‖. ―Preservação
ambiental‖ mais ―soberania limitada ou restrita‖ resultaria em usurpação da
Amazônia (LOURENÇÃO, 2009, p. 254).

Soma-se ao pensamento militar a opinião de Aldo Rebelo, que é representativa de


setores nacionalistas do Congresso brasileiro. Para Rebelo, ―a questão do índio é
aquela em que [...] vão se construindo as bases para o crescimento progressivo da
perda da soberania do Brasil em seu território‖. A partir do reconhecimento do direito
dos povos autóctones à livre determinação, surgiria a possibilidade de tribos
situadas em áreas de fronteira ―reivindicarem o reconhecimento de sua condição de
minorias nacionais em atrito com a sociedade nacional, seu governo e Estado‖.
Bastaria, na opinião do Parlamentar, que reivindicassem o status de nações

515
independentes para serem imediatamente apoiadas (2010, p. 201). Também nesse
caso, lamentavelmente, o autor serve-se de escassas fontes bibliográficas e
nenhuma fonte documental.

No pensamento das Forças Armadas, entende-se que é mal intencionada a


―mentalidade predominante de que os índios brasileiros devem permanecer
intocados e isolados em sua cultura, ‗como exemplares de um zoológico humano,
sem direito a integrar-se à sociedade contemporânea‖. Sobre a terra yanomami,
Lourenção afirma que o surgimento de tal território autônomo ―limita os
investimentos públicos e privados na região, tornando-a mais isolada e vulnerável,
situação ainda agravada pelo vazio demográfico, particularmente nas áreas
fronteiriças à Guiana e Suriname‖172. Tal território indígena representaria
insuportável vulnerabilidade estratégica, notadamente porque a comunidade
internacional insistiria em denominá-la ‗Nação Ianomâmi‘ [sic], como início de um
processo que visaria "ao reconhecimento da autonomia da região sob mandato das
Nações Unidas‖ (LOURENÇÃO, 2009, p. 253, 255-256).

O autor afirma que muitas ONGs na Amazônia têm objetivos espúrios, diferentes dos
declarados, ou trabalham a serviço de governos estrangeiros ou sob sua manipulação.
O objetivo seria manter o governo brasileiro ausente da região amazônica. A atuação
das ONGs criaria uma ―‗artificial e extremada necessidade de preservação‘ da cultura
de minorias indígenas, que se sobrepõe às carências de
desenvolvimentosocioeconômico da maioria da população‖. As ONGs preconizam ―a
criação de ‗Nações Indígenas‘, principalmente na faixa de fronteira e a desmilitarização
das terras indígenas‖. Outras pretendem que seja ―exigida a autonomia de nações
tribais dentro do próprio território nacional‖. Por fim, Lourenção declara que, ―sob a
perspectiva militar, a demarcação de imensas áreas junto à fronteira traz claras
ameaças à soberania nacional‖ (LOURENÇÃO, 2009, p. 255-257).

A similitude dos textos recortados, como exemplo da crença do setor militar


brasileiro de que a Amazônia é uma zona de instabilidade à soberania do País, pode
ser visualizada com referência ao seminário ―Novas geopolíticas e a Pan-Amazônia‖

172
Na realidade, a terra yanomami está situada na fronteira com a Venezuela, entre o noroeste de Roraima e o
norte do Amazonas.

516
organizado pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx) 173 em julho de
2013. No material para debate, ―Amazônia – Desafios e Soluções‖, apresentado pelo
General Div.Eduardo Dias da Costa Villas Boas,Subchefe de Estratégia do Estado
Maior do Exército, o texto emprega a retórica da percepção de novos problemas e
agendas da Segurança Internacional. No entanto, adota um olhar tradicional sobre
eles, centrado em uma ontologia materialista e individualizante. Mecanismos antes
empregados para tratar questões clássicas, como a sobrevivência estatal, são os
mesmos empregados para a resolução dos novos problemas, que envolvem a
intersecção dos setores econômico, societal, cultural e ambiental.

Ao delimitar a Amazônia como um espaço de vácuo de poder, o general Villas Boas


destaca a preocupação das Forças Armadas com ―a criação de extensas e
contíguas áreas demarcadas como terras indígenas ou como unidades de
conservação ambiental‖. Segundo o autor, há que se formular uma estratégia
nacional de presença supostamente despida do ―fundamentalismo ambiental‖ e que
crie condições para que a população local não seja ―escrava da natureza‖.
Especificamente sobre os índios na Amazônia, escreve que ―os indivíduos são
sacrificados em prol da preservação da intocabilidade cultural, como se essa
condição pudesse ser assegurada pela colocação de uma redoma sobre as
comunidades a que pertencem‖. Infere-se dessa declaração uma severa crítica ao
relativismo cultural e um apelo pela assimilação do indígena – com ―um nível mínimo
de hábitos‖ – como homo economicusno desenvolvimento regional (VILLAS BOAS,
2013, p. 5, 11-13).

O caráter utilitário da análise empreendida pelo estrategista explicita-se também ao


demarcar o Brasil como uma potência ecológica e agrícola que ―não pode admitir ser
colocado no banco dos réus pela opinião pública internacional‖ (VILLAS BOAS,
2013, p. 16). Tal percepção sinaliza que o Estado deve investir em ciência e
tecnologia a fim de gerar desenvolvimento econômico, diminuição da pobreza e, por
consequência, preservação da biodiversidade. De tal movimento depreende-se a

173
O Centro de Estudos Estratégicos do Exército, responsável pelo diálogo entre esse braço das Forças Armadas
e a sociedade civil, tem por objetivo: avaliar conjunturas; realizar prospecções, aconselhamentos e iniciativas em
momentos de crise; além de formular políticas que extrapolem o âmbito instrumental. Informações Disponíveis
em: <http://www.eme.eb.mil.br/ceeex/missao-ceeex>. Acesso em julho de 2013.

517
inevitabilidade da inserção dos indígenas na cadeia produtiva. Eis a saída para
manter a sobrevivência do Estado. Não se discutem os modelos de desenvolvimento
em disputa ou as cosmovisões envolvidas. A defesa da soberania nacional estaria
nas antípodas da autonomia indígena. Esse não é o nosso entendimento, como
passamos a demonstrar no item abaixo.

5 AUTONOMIA INDÍGENA E SOBERANIA NACIONAL: conceitos conciliáveis

As principais ameaças à soberania brasileira na Amazônia são, nos termos do


discurso sintetizado acima, os povos indígenas insuficientemente integrados à
comunidade nacional, supostamente reconhecidos pela opinião pública global como
nações com direito à autodeterminação/autonomia que, em última análise, poderiam
fundamentar uma intervenção estrangeira com fins humanitários. Outras ameaças
seriam a presença de terras indígenas em áreas de fronteira e a presença de ONGs
estrangeiras e nacionais cujo objetivo seria manter os povos indígenas afastados do
governo brasileiro.

Entendemos que tais discursos encontram pouca correspondência na realidade, o


que se vai demonstrar adiante.

Em primeiro lugar, vale anotar que a intervenção humanitária é justificável perante o


Direito Internacional somente em caso de iminentes assassinatos em massa. A
doutrina sobre o direito de intervir, atualmente abrigada sob o debate em torno da
Responsabilidade de Proteger, entende que qualquer intervenção militar traz baixas
humanas, de modo que essa opção deve ser adotada somente quando o número de
vidas sendo protegidas for claramente maior que o número de vidas sendo ceifadas
pela ação direta da intervenção estrangeira. ―O que existe hoje‖, afirma Gelson
Fonseca Jr. (2010, p. 187), ―é simplesmente uma plataforma legítima para agir em
casos definidos por violações maciças de direitos humanos. O espaço entre as
configurações da legitimidade e a ação é preenchido pela política, que obedecerá a
lógica própria‖.

Não obstante, pode ocorrer que uma intervenção militar com justificativas
humanitárias seja levada adiante mesmo sem a plena legalidade que lhe outorgaria

518
a autorização do Conselho de Segurança da ONU ou de outro órgão multilateral
regularmente constituído. Admite-se também o risco de que sejam implementadas
operações mascaradas de intervenções humanitárias, mas que avançam ambições
imperiais ou motivos exteriores ao fim declarado (JONES, 2006). Ou, como
acrescenta Fonseca Jr. (2010, p. 191-192):

[A Responsabilidade de Proteger] não é simplesmente mais uma capa


ideológica para ser usada nas intervenções, unilaterais ou multilaterais, de
interesse das potências. Isso poderá ocorrer, mas não necessariamente. Na
perspectiva cínica (ou, no jargão teórico, realista), com ou sem coberturas
doutrinárias, as potências, quando estiverem em jogo interesses reais,
poderiam recorrer a instrumentos militares e a intervenções. Foi assim no
passado e será assim no futuro. A RdP não ajuda as potências, mas
também não as atrapalha.

Esse risco é inevitável se admitimos a premissa realista do caráter anárquico do


sistema internacional – ou a consideração construtivista de Wendt (1999), de que a
anarquia é o que os Estados fazem dela –, e nenhum país, com ou sem povos
indígenas, está a salvo de sofrer um ataque estrangeiro, sejam quais forem os
fundamentos alegados.

Agressões a direitos dos povos indígenas no Brasil dificilmente poderiam justificar


uma agressão militar com motivações humanitárias. A despeito da sua gravidade, as
inúmeras agressões a indivíduos e comunidades indígenas estão espalhadas em um
território imenso, que se confunde com o próprio território nacional, e as eventuais
mortes são esparsas, ainda que contínuas. A quantidade de índios assassinados no
Brasil nos últimos anos chega à casa dos 500, sendo que em torno de 300 das
mortes ocorrem no estado do Mato Grosso do Sul. Dificilmente, tal processo de
colonização violenta poderia ser invocado como justificativa para uma operação
militar dessa natureza, porque não há indício de ―assassinatos em massa‖. Os casos
históricos que têm fornecido os parâmetros da Responsabilidade de Proteger
envolveram genocídio aberto dos Estados contra minorias étnicas, com mortes
chegando aos milhões de pessoas, tais como: o Iraque contra os curdos, em 1991; a

519
Somália contra diversas etnias em 1992; Ruanda contra os tutsi, em 1993; entre
outros (FONSECA Jr., 2010, p. 181-186).

Também é improvável que qualquer país independente apoiasse um movimento


separatista no Brasil, sobretudo um que fosse oriundo de uma minoria étnica, porque
praticamente todos os grandes países do mundo têm em seu território grupos
étnicos minoritários. Apoiar a secessão por critério étnico no Brasil implicaria abrir
um flanco jurídico-argumentativo para a fragilização de suas próprias soberanias.
Isso vale para os Estados Unidos, Canadá, Austrália, México e outros, nas suas
relações com povos indígenas; para a Grã-Bretanha, na sua relação com os
irlandeses; para a Rússia, na sua relação com chechenos e outras minorias; para a
China, na sua relação com tibetanos e outras minorias étnicas e religiosas; para a
França e a Espanha, nas suas relações com os bascos; etc.

Além disso, o poderio militar e não-militar do Brasil, que o coloca entre as grandes
potências do mundo contemporâneo (VIOLA et alli, 2013, indica que qualquer
operação militar não consentida em solo brasileiro provocaria uma resistência armada
e um conflito de dimensões superiores ao atual conflito entre povos indígenas e
sociedade envolvente, de maneira que os custos da operação seriam imensos e
injustificáveis. Além disso, a violação da soberania territorial do Brasil por potências
extra-hemisféricas provavelmente provocaria reação de apoio da maioria dos países
latino-americanos, que possuem situações étnicas semelhantes e um histórico coeso
de alianças defensivas (TIAR) e organizações interestatais fundadas no princípio da
não-intervenção (OEA, OTCA, etc.). Provavelmente, reação semelhante ocorreria em
caso de uma intervenção norte-americana, o que implicaria para os agressores aceitar
o risco de se envolverem numa guerra de grandes proporções no subcontinente sul-
americano e um arranjo de paz extremamente difícil.

O risco de o Brasil sofrer uma ofensiva militar com fins humanitários é semelhante
ao risco de sofrer uma agressão militar por qualquer outra motivação. Se existe
cobiça pelos recursos presentes na Amazônia, evidentemente o país deve estar
preparado para rechaçar agressões à sua soberania. É o que promete a estratégia
nacional, com as hipóteses de guerra assimétrica, contra eventual agressão dos
Estados Unidos ou de uma coalizão de grandes potências e a previsão da estratégia

520
de resistência dissuasória, que deve ser fortalecida. Mas nada leva a crer que, caso
tal hipótese venha a se concretizar, a questão indígena possa ser invocada como
fundamento de legitimidade. À medida que o Brasil logra evitar a continuação das
violações aos direitos dos povos indígenas em seu território, o risco de agressão
estrangeira com fundamentos humanitários torna-se cada vez menos provável.

Quanto à autonomia indígena, entende-se que tal norma é perfeitamente compatível


com as soberanias nacionais. Diversos outros países contemplam regiões
autônomas onde existem minorias étnicas. Um país tão tradicional como a Espanha
contempla, em sua constituição, a autonomia da Catalunha; o Canadá contempla a
autonomia dos Inuit na região do ártico; Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia
contemplam a autonomia Sami no círculo ártico, em um território transnacional
contíguo; e outros exemplos poderiam ser mencionados.

Além disso, os povos indígenas no Brasil não se constituem historicamente como


nações, a despeito do uso que se possa fazer desse termo. O trabalho de Eric
Hobsbawm é esclarecedor sobre esse tema. O historiador britânico resume sua
posição sobre o conceito de nação em quatro pontos: 1) nacionalismo é o princípio
de que a unidade política e a unidade nacional devem ser congruentes; 2) a nação
refere-se a um período historicamente recente e constitui uma unidade social
apenas no que se relaciona com uma certa forma de estado territorial moderno, o
"estado-nação"; 3) nações são fenômenos tanto políticos, quanto tecnológicos e
econômicos, ligados à capacidade de projetar "em escala nacional" as expressões
culturais da unidade política; e 4) a nação é principalmente um projeto construído de
cima para baixo; existe também como uma realidade social, dita "de baixo para
cima"; mas ambas não são idênticas (HOBSBAWM, 1990, p. 9-10).

Conforme se observou em outra ocasião (URT, 2012), os povos indígenas usam a


linguagem e a simbologia da nação não para reclamar uma estatalidade
independente, mas para deixar clara a continuidade de seus protestos por
autodeterminação (NIEZEN, 2003). Dessa forma, a menos que se aceite o paradoxo
de "nações sem Estado", o uso da expressão "nações indígenas" deve ser entendido
como um indicador de opção ideológica pró-indígena, sempre que a adequação
técnica vocabular for menos importante que a expressão do protesto político.

521
Segundo Niezen (2003), a preocupação de que os povos indígenas empreguem a
palavra "nação" como meio de fundamentar processos separatistas tem se
esvanecido no meio internacional. Segundo esse autor, tem aumentado o número de
Estados que reconhecem os direitos indígenas à autodeterminação, ao mesmo
tempo em que tem diminuído a resistência a compartilhar o poder político com os
povos indígenas, "especialmente quando [esse compartilhamento] é desenvolvido
por meio de arranjos construtivos com os estados-nação" (NIEZEN, 2003, p. 219).

O sentido contemporâneo da autodeterminação indígena é consequência de


transformações no campo do Direito e da Antropologia. Juridicamente, tem -se
consolidado um regime internacional sobre povos indígenas que garante status
político diferenciado, sem prejuízo da supremacia das Constituições nacionais. O
Brasil assinou e ratificou a Convenção nº. 169 da OIT, que assume assim plena
força de Direito interno no País. Além disso, a Constituição Federal garante o
direito de autodeterminação dentro das terras indígenas, sem prejuízo da
soberania nacional, por meio do seu artigo 231. E antropologicamente, renovou -
se o significado das relações entre povos indígenas e Estados nacionais. As
práticas de integração forçada foram plenamente reconhecidas como violências
colonizadoras, cujo único resultado prático é destruir a diversidade sociocultural,
sem correspondente melhoria no bem estar dos povos afetados. Assim, o
paradigma da integração foi cientificamente substituído pelo paradigma da
interação: os povos indígenas não podem ser submetidos a ações estatais de
integração forçada, mas podem e devem ser parceiros na construção de uma
ordem pluricultural democrática, onde se fazem centrais os princípios da consulta
prévia e da inviolabilidade das terras indígenas. Tais inovações buscam superar a
dualidade público-privado, que se mostrou insuficiente para gerir sociedades
baseadas na propriedade coletiva (ver SOUZA FILHO, 2009). Para fazer um
paralelo com instituições de direito privado ocidental: o princípio da consulta
prévia equivale ao princípio do livre consentimento; o princípio da inviolabilidade
das terras indígenas equivale ao princípio da inviolabilidade do domicílio (ver
CARVALHO-WAPIXANA, 2006).

Desde meados do século XX, importantes setores da Antropologia reconheceram a


violência e o autoritarismo presentes nos processos supostamente integrativos

522
realizados na colonização. A resistência indígena envolve, então, a percepção de
que o assimilacionismo significou em regra a relegação a uma posição desvantajosa
dentro do Estado (PERRY, 1996, p. 244). Não se pretende de forma alguma manter
os índios em um "estado primitivo"; primeiro, porque não se entende que sejam em
nenhum sentido primitivos, essa é uma concepção superada; segundo, porque não
se admite a possibilidade de manter qualquer povo protegido contra a mudança
cultural, as culturas são todas dinâmicas e se processam por intermináveis trocas e
seleções sociais; terceiro, porque se entende que os índios são os protagonistas de
suas próprias histórias, e a escolha por maior ou menor envolvimento com as
sociedades ditas modernas cabe exclusivamente a eles.

Perry destaca que a resistência indígena não tem necessariamente o objetivo de


preservar os modos antigos, mas sim obter acessoaos sistemas políticos e
econômicos dentro dos seus respectivos Estados (1996, p. 244). Se os Estados
apresentarem projetos democraticamente gestados, em contínuo diálogo e
parceria com as lideranças indígenas, não é possível imaginar que tais povos
pudessem recusar os bons préstimos estatais. Infelizmente, cabe reconhecer, o
histórico da atuação estatal é de violência, autoritarismo, paternalismo,
unilateralismo, abandono ou mesmo de aberto genocídio, o que deve causar nos
índios um forte sentimento de reserva e suspeição contra qualquer projeto
estatal. Quando o Estado tiver um plano de interação democrática, o diálogo será
indispensável para transportais suspeições.

Ainda quanto ao risco da autonomia ser confundida com demandas de secessão,


pensamos que tal receio não encontra correspondência no pensamento indígena ou
na filosofia política atuais. Bruyneel (2007) entende que as demandas indígenas
contemporâneas por autodeterminação não têm o objetivo de estabelecer Estados
soberanos. Influenciados pela conjuntura que combinava o movimento pelos direitos
civis nos Estados Unidos e os nacionalismos da descolonização afro-asiática, os
povos indígenas norte-americanos apresentaram a proposta de ocupar um ―terceiro
espaço da soberania‖. Surgiu assim um nacionalismo pós-colonial, que se
caracteriza pela recusa de ―acomodar-se às escolhas políticas enquadradas pelos
binários imperiais: assimilação ou secessão, dentro ou fora, moderno ou tradicional, e
assim sucessivamente‖ (BRUYNEEL, 2007, p. 217). Tal proposta indígena é uma

523
versão própria de ―patriotismo constitucional‖, tal como o que anima as ideias pós-
nacionais na União Europeia (DIECKHOFF; JAFFRELOT, 1998, p. 71), uma proposta
que desvincula as noções de cidadania e de nacionalidade. Reclamam assim a
possibilidade de estar ao mesmo tempo culturalmente fora da Nação e politicamente
dentro do Estado, proposta essa que é compatível com o que Kymlicka chama de
multiculturalismo liberal. Tal corrente entende que "reconhecer e acomodar minorias
etnoculturais é consistente com os princípios básicos da teoria liberal-democrática, e
talvez até seu requisito obrigatório" (KYMLICKA, 2010, p. 378).

5 PARA DESSECURITIZAR A RELAÇÃO ENTRE O ESTADO BRASILEIRO E OS


POVOS INDÍGENAS.

A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou,


inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e,
por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios
de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que
era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O
que era religião passou a ser estratégia de pode (COUTO, 2011).

Como exposto acima, a Amazônia desde os anos 1970 tem lugar cativo no debate
geopolítico brasileiro acerca da soberania do país. Transpostos os muros da
bipolaridade, novas ameaças foram construídas mantendo o objeto referente
tradicional do setor militar: a integridade territorial (WAEVER et alli, 1998). Em tal
movimento, as Forças Armadas brasileiras situaram os povos indígenas como uma
ameaça à integração nacional e à soberania. Seja por questões internas (debilidade
do Estado e vácuo de poder nas zonas de fronteira) ou pressões externas (opinião
pública internacional, interesses das potências e instrumentalidade das ONGs),
operou-se a disseminação de atos de fala que sinalizam a necessidade urgente de
violar os direitos desses povos para garantir a Defesa Nacional.

Apesar da intensidade dos distintos movimentos que organizam a construção da


ideia dos povos indígenas como ameaça existencial, que encontra eco entre
parlamentares e grande parte da sociedade civil (alimentada pelo monopólio
midiático, que também é um agente securitizador nesse assunto, ainda que não
analisado aqui), esse não é um processo acabado. Portanto, ainda há espaço para

524
se configure uma plataforma de dessecuritização do tema. Como apresentado
anteriormente, a soberania estatal não é ameaçada pela autonomia indígena.

Causa estranheza que as terras indígenas em área de fronteira sejam consideradas


ameaças. É até difícil contestar tal argumento, haja vista que tal afirmação é feita
com status de verdade absoluta, como se fosse autoevidente. Não vemos que as
terras indígenas em área de fronteira possam causar mais fragilidades estratégicas
do que podem causar as terras em mãos de outros grupos sociais, tais como
grandes latifundiários. Longe de serem ameaças, os índios são historicamente os
garantidores das fronteiras nacionais (ver FARAGE, 1990) e, antes disso, são
cidadãos brasileiros detentores de uma dívida histórica. O que se tem visto
contemporaneamente é que os índios são atores sociais competentes na defesa de
suas terras (veja-se, p. ex., a luta dos Yanomami contra os garimpeiros ilegais; ou a
efetividade da defesa contra o desmatamento em terras indígenas, conforme se
observa em Nelson & Chomitz (2009), o que poderia ser aproveitado como um ativo
estratégico para o País, desde que realizado a partir de um diálogo democrático
entre Forças Armadas e as lideranças indígenas.

A presença de forças armadas em terras indígenas (que por si só é assunto para


outro trabalho) e outras formas de cooperação em assuntos de Defesa Nacional é
aceitável, bastando para isso respeitar a inviolabilidade do domicílio dos índios e o
direito à prévia consulta. Importante também que os oficiais envolvidos passem por
um processo de adaptação e aprendizagem, que deve incluir noções de língua e
cultura dos povos afetados, para que a presença militar, quando necessária, se faça
sem violência física ou psicológica.O estamento militar deve entender que está
submetido, tanto quanto os índios, à supremacia da Constituição Federal. Não lhe
cabe divergir do Direito à autodeterminação dos povos.

Transformar os povos indígenas em bodes expiatórios, cuja presença


representaria uma fragilidade estratégica, é absolutamente irracional. É notável
o exercício das Forças Armadas brasileiras em admitirem a fluidez das
Relações Internacionais contemporâneas. No entanto, a visão de mundo
desselocusde poder continua embebida em um positivismo comteano há muito
superado nas Ciências Sociais. Há que se observar que as metamorfoses da

525
conflitualidade do mundo pós-Guerra Fria podem ser interpretadas, em um
sentido mais abrangente, como modificaçõesmicrossociológocas ligadas à crise
do modelo Westphaliano – dos padrões modernos de solidariedade, exclusão e
identidade (BIGO, 2004).

O legado de Rondon, patrono do Exército Brasileiro, está também nas origens do


indigenismo brasileiro. Sua promessa de encetar o contato pacífico e de boa fé com
comunidades do sertão amazônico é uma grande contribuição para a sociedade
brasileira, fruto de um entendimento de que esses povos não são inimigos, mas sim
concidadãos. Com ele dialogaram as tradições acadêmicas da Antropologia (Darcy
Ribeiro, etc.). Todavia, a Antropologia continuou avançando em suas pesquisas. O
paradigma da integração tornou-se obsoleto e foi substituído pelo paradigma da
interação, que realiza com mais eficiência e menores custos o ideal imaginado por
Rondon. As Forças Armadas se beneficiariam enormemente de uma atualização nas
ideias científicas que abordam os povos indígenas.

Quando o general Villas Boas (2013, p. 13, grifos nossos) interpela a academia -
―não teriam as ciências sociais desenvolvido alguma metodologiacapaz de
proporcionar àquelas populações [indígenas] um nível mínimo de hábitos, que lhes
permitam evoluir[sic] em sua qualidade de vida sem que necessariamente ocorra a
perda da identidade cultural?‖ - não se dá conta do caráter enviesado, monolítico e
nada dialógico de seu questionamento. O excesso de determinismo, evolucionismo,
apego ao progresso e crença no desenvolvimento econômico universal são
características de um discurso moderno centrado na violência e no apagamento do
Outro. Não contribuem para uma tessitura cooperativa da segurança do povo
brasileiro e das relações interétnicas que o constituem.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou trazer a contribuição da Escola de Copenhagen para


dialogar sobre a relação entre a presença indígena e a Defesa Nacional no Brasil. A
partir de conceitos como securitização, que se faz por discursos/movimentos
securitizadores, foram identificados alguns dos argumentos que buscam construir os

526
povos indígenas como potencial ameaça à soberania brasileira. O principal
argumento identificado foi aquele que caracteriza a presença indígena como ameaça
porque abriria margem para intervenções estrangeiras na Amazônia. Com o estudo
da doutrina internacional sobre a Responsabilidade de Proteger, argumentou-se que
tal ameaça não é real. Ainda que interesses estrangeiros possam motivar aventuras
militares contra o território brasileiro na Amazônia, é improvável que as justificativas
humanitárias – especificamente da defesa dos direitos humanos dos povos
indígenas – fossem invocadas nesse caso. Argumentou-se também que a
autonomia indígena, prevista em normas constitucionais e infraconstitucionais
brasileiras, é compatível com a soberania nacional, além de ser uma imposição
estruturante do regime democrático no país. Por fim, argumentou-se que seria útil
resgatar o debate sobre as relações entre índios e sociedade envolvente do modo
securitário e trazê-lo de volta para o modo normal da política democrática, a fim de
que se evite a tomada de medidas excepcionais que caracterizam a política de
segurança e defesa. Com a dessecuritização, tais questões poderão retornar ao
debate político normal, para que a soberania nacional prevaleça em harmonia com o
Estado Democrático de Direito.

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529
ÍNDIOS TERENA: TERRITORIALIDADE E RELAÇÕES COM O ESTADO
BRASILEIRO

Lenir Gomes Ximenes174

1 Introdução

A temática do território indígena no Brasil gera grandes discussões, em um cenário


onde o pensamento neoliberal está presente em vários setores da sociedade. ―o
liberalismo foi compreendido e praticado como o regime que garantia a liberdade
inalienável de o indivíduo possuir propriedade privada. [...] O neoliberalismo é a
reafirmação dos valores liberais originados do liberalismo econômico do século XIX‖
(SILVA; SILVA, 2009, p. 260-261). Nesse sentido, a defesa da propriedade privada é
a principal bandeira neoliberal e sobrepõe-se, muitas vezes, aos direitos originários
(anteriores ao Estado) dos povos indígenas.

O Estado brasileiro está no centro do impasse referente à demarcação das terras


indígenas. Por um lado, tem o dever de garantir aos índios a posse das terras
consideradas de sua ocupação tradicional. Por outro, muitas dessas terras foram
tituladas em favor de particulares com o aval do Estado. O governo (em suas
instâncias federal e estadual) vendeu, doou ou negligenciou a posse ilegal dos não
índios sobre essas áreas.

O estado do Mato Grosso do Sul tem inúmeros conflitos fundiários resultantes dessa
situação. É a segunda unidade da federação com maior população indígena. E os
índios Terena formam a segunda etnia mais numerosa do estado. Estão divididos
em 13 Terras Indígenas em diversos municípios e também dispersos em vários
bairros de cidades do interior e da capital. Algumas das áreas ocupadas (ou
reivindicadas) pelos Terena estão em processo litigioso com proprietários rurais e
encontram-se em diferentes fases de regularização e/ou ampliação.

174
Doutoranda em História – UFGD, docente da UCDB

530
Os índios Terena estão em áreas superlotadas nas quais não há condições
econômicas de sobrevivência para todas as famílias, obrigando muitas delas a
migrarem para as áreas urbanas. As disputas por escassos recursos da fauna, da
flora, espaço para plantio e criação de animais também torna a situação sociopolítica
bastante tensa nas aldeias. O reduzido espaço disponível para cada tronco175
familiar, além de insuficiente do ponto de vista econômico, prejudica a autonomia
das famílias e seu modo de vida tradicional.

Entretanto é necessário entender o processo histórico que resultou nos impasses


territoriais. Faremos um recuo temporal ao século XIX. Desde esse período é
possível verificar as relações de colaboração dos Terena com o Estado brasileiro.
Por outro lado, ficam evidentes as ações do poder público no sentido de efetivar a
expropriação das terras indígenas.

2 As relações entre o Estado e os índios Terena no século XIX

Em 1845 foi instituído o Regulamento 426, também chamado Regulamento das


Missões ou Regulamento da Catequese e Civilização dos Índios, com o qual a
delineava-se uma nova política indigenista. Foram criadas as Diretorias Gerais dos
Índios (DGI) em todas as províncias.

Com o novo regulamento, as terras habitadas pelos índios passaram a pertencer ao


Império, logo, poderiam ser vendidas pelo mesmo. As comunidades indígenas
(mesmo que de etnias diferentes) deveriam ser aglomeradas em pequenos
aldeamentos nas terras doadas pelo Estado para seu usufruto. Assim, sob a
aparente regulamentação das aldeias estava o claro o objetivo de legalizar a
expropriação dos territórios indígenas.

Em 1846 foi criada a DGI no Mato Grosso176. No entanto, as disposições do


Regulamento das Missões não foram cumpridas integralmente. O principal obstáculo

175
“Um grupo de parentes está articulado em torno da figura de um líder, geralmente um velho, um ancião
identificado como um tronco. O mais comum, entretanto, é que a referência seja não apenas o homem, mas o
casal de velhos.” (EREMITES DE OLIVEIRA; PEREIRA, 2003, p. 135). Cada tronco reúne em torno de si um
número de famílias, que ocupa determinado espaço para habitação, prática da agricultura, etc.; e tem total
autonomia na condução das demandas políticas internas.
176
O Mato Grosso foi dividido em 1977, dando origem ao estado do Mato Grosso do Sul.

531
foi a dificuldade de estabelecer um padrão para culturas indígenas diferentes entre
si, com formas diversas de recepção desse novo modelo imposto pelo Império.

As informações relativas aos índios eram de difícil acesso para os funcionários do


Estado, uma vez que o território era vasto e com poucos habitantes não indígenas.
O então Presidente de Província do Mato Grosso, Gomes Jardim (em ofício de
1846), expôs suas dificuldades para obtenção de tais informações, evidenciando o
desconhecimento dos administradores em relação à população indígena.

Os relatórios dos Presidentes de Província seguem o mesmo padrão, com pouca ou


nenhuma mudança a cada ano. No item ―Catechese e Civilisação‖ são apresentados
os empecilhos para a efetivação do Regulamento 426, e os poucos sucessos
segundo a visão das autoridades.

Muitos Terena prestavam serviços aos regionais. Esse também era um dos objetivos
do Império: empregar a mão de obra indígena de forma a beneficiar os não índios.
O intento era justificado pelo discurso paternalista que previa proteção aos indígenas
e por meio da catequese retirá-los da ―vida vagabunda e depredadora a que estão
acostumados‖, segundo as palavras de Leverger (1853).

Ainda que parcas, as iniciativas indigenistas no período imperial, possibilitaram o


acesso de ocupantes não índios à terra e ao trabalho indígena. Dessa forma, fica
claro que houve uma territorialização dos índios induzida pelo Estado. Vargas (2003)
traz contribuições relevantes para esta discussão. Segundo a autora a política
indigenista era na verdade uma política das terras indígenas. O aldeamento e a
catequese eram os instrumentos usados para tentar controlar essas sociedades e ao
mesmo tempo apoderar-se de suas terras.

A Lei de Terras (lei n. 601 de 18/09/1850), também contribuiu com o espólio das terras
dos índios. Com a nova lei a posse passou a ser legalizada somente por meio da compra.
Passaram a existir as terras de domínio privado e as terras devolutas (de domínio
público). O regulamento não era claro no tocante às terras indígenas, mas delegava ao
Estado a obrigação de reservar parte das terras devolutas para o aldeamento dos índios.
Na prática, a parte reservada era muito pequena e liberava grande parte do território
ocupado pelos índios para as novas propriedades (MOREIRA, 2002).

532
Conforme relatório de Almeida Serra (1803), nos arredores de presídios, fortes e
vilas, os Terena (assim como outras etnias do grupo Guaná), forneciam para os não
índios diversos itens indispensáveis à sua manutenção: produtos agrícolas, porcos,
galinhas, além detecerem panos e redes.

Estas relações amistosas ilustram que os Terena, em alguns momentos, souberam


apropriar-se da política indigenista e embora não aceitando plenamente o regime
dos aldeamentos, ―permitiram-se aprender a ler e a escrever, para depois
permitirem-se também contribuir com a política indigenista (...) com o objetivo de
colocar em prática suas antigas pautas culturais de convívio‖ (VARGAS, 2003, p.
62). Um exemplo disso é evidenciado por Taunay (1931), quando de sua passagem
pela aldeia terena Pirainha, em 1866. O autor observa que o capitão, José Pedro,
aprendera a ler e escrever no aldeamento quiniquinau do Bom Conselho, com Frei
Mariano de Bagnaia. Em sua aldeia montou uma escola, e dentre outros feitos,
conheceu o Imperador. Seu bom relacionamento com os não índios favorecia em
parte os interesses indígenas.

Outro objetivo do estabelecimento de aldeias sob o controle imperial era o


guarnecimento das fronteiras. A província do Mato Grosso tinha poucos funcionários
do Império e o controle sobre o vasto território era difícil. Nesse sentido, os índios de
algumas etnias eram tidos como aliados. O litígio na região fronteiriça entre Brasil e
Paraguai no século XIX, envolvia diretamente os índios estabelecidos no sul do
antigo Mato Grosso (LEOTTI, 2001).

Em 1860, os indígenas eram utilizados em missões de risco. Tanto o Brasil quanto o


Paraguai aliaram-se a grupos indígenas para patrulhamentos e reconhecimento da
área litigiosa entre os dois países. A tensão culminou com a Guerra do Tríplice
Aliança, ou Guerra do Paraguai (1864-1870), que envolveu as populações
autóctones das duas nações. Convém ressaltar que s consequências foram tanto
físicas quanto psicológicas para os povos indígenas, uma vez que se viam
envolvidos numa guerra cujas causas desconheciam (LEOTTI, 2001).

O engajamento indígena na Guerra da Tríplice Aliança, não se restringiu, no caso


brasileiro, aos povos da fronteira. Também foram recrutados índios em outras
províncias do Império. O maior envolvimento das etnias da região fronteiriça deve-se

533
ao fato de que as terras ocupadas por estas estavam em território litigioso, como é o
caso dos Terena.

As obras de Visconde de Taunay, militar participante e cronista do conflito platino,


constituem-se como importante fonte para a temática. Seus textos evidenciam a
cooperação dos Terena com o exército brasileiro. Segundo ele, estes e outros índios
foram incorporados à Guarda Nacional. A particularidade, no entanto, é que os
Terena dispuseram-se a lutar na guerra como uma forma de resolver os problemas
que tinham com fazendeiros da região, pois já existiam dissidências entre eles
referentes aos limites das propriedades. E, além disso, lutar contra a invasão
paraguaia significava defender suas próprias terras (VARGAS, 2003).

A postura destes indígenas não foi passiva. Eles não aguardaram simplesmente as
determinações das autoridades militares. De acordo com Taunay (1948) no final de
1864, ocorreu a invasão paraguaia do Mato Grosso sob o comando do coronel
Resquin. Na vila de Miranda, a agitação era geral, inclusive militares fugiam.
Todavia, os indígenas propuseram a defesa do território, mas não possuíam armas,
por isso pediram às autoridades de Miranda o arsenal do depósito da vila, no que
não foram atendidos:

Pela madrugada chegaram os restos desordenados do primeiro corpo de


caçadores e tudo quanto morava nos arredores para lá afluíra [vila de
Miranda]. A quantidade de índios de raça chané (terenas, laianos, kinikinaus
e chooronósou guanás) guaicurus e até cadiuéuse beakiéusque são,
contudo, pérfidos aliados, mal vistos dos brancos, era considerável, todos a
pedirem em altos brados, armas e munições de que estava repleto o
depósito de artigos bélicos, para correrem a preparar tocaias (sic.)
(TAUNAY, 1948, p. 263).

A despeito da má vontade ou do temor das autoridades, em armar os índios,


esses,esperaram a população abandonar a vila e pegaram as armas do depósito.
Atitude esta que garantiu a proteção dos brasileiros, uma vez que tal armamento foi
utilizado ao lado das forças imperiais e não fosse isso, teria caído nas mãos
inimigas. ―Os paraguaios, porém,vinham marchando muito vagarosamente, tanto
assim que só a 12 de janeiro [1865] entraram na vila entregue pelos índios a
completo saque, principalmente no que dizia respeito ao armamento e cartuchame.
E fizeram muito bem, não há contestar‖ (TAUNAY, 1948, p. 264).

534
Leverger expressou sua opinião a respeito da resistência organizada pelos índios,
em relatório de 1865:

Os Índios moradores das aldeias da vizinhança, depois da evacuação da


nossa tropa e antes da entrada dos Paraguayos apoderarão se da porção
de armamento que existia nos armazéns militares, e com elles hostilizarão o
inimigo; mas este não tardou a domar esta resistência, que não era de
esperar fosse efficaz, attendendo à inferioridade de numero dos mesmos
Índios e à sua falta de disciplina. (Augusto Leverger, Cuiabá, 17 de outubro
de 1865, relatório).

É conveniente compreender o momento em que este relatório foi produzido, pois,


Chauveau e Tétart (1999, p. 33), a respeito dos fatos históricos, salientam que sua
interpretação está condicionada às ―condições históricas nas e pelas quais eles são
percebidos‖. Na visão das autoridades da época ainda estava presente a
perspectiva etnocêntrica, ou seja, atribuía-se aos índios o rótulo de menos capazes,
bárbaros, inferiores à sociedade envolvente. Essa noção pode ser percebida no
documento citado acima, quando se atribui o insucesso da defesa organizada pelos
indígenas, além de outros fatores, a uma suposta falta de disciplina dos mesmos.

Taunay (2005) também menciona os Terena ao referir-se ao episódio conhecido


como Retirada da Laguna, em de 1867. O plano das forças aliadas (Argentina,
Uruguai e Brasil) era atacar com duas frentes simultâneas: uma ao sul, subindo o
Rio Paraguai pelo lado da Argentina até o coração da república paraguaia; e outra
pelo norte, descendo as águas do referido rio a partir de Cuiabá. Poderia ter dado
certo não fossem as imensas distâncias a transpor. A maior parte dos recursos
bélicos foi destinada às forças que atuavam pelo sul e apequena coluna que ia pelo
norte ficou à mercê das mais duras provações. A citação abaixo é sobre uma
passagem em que essa coluna estava próximo à colônia de Miranda e já contava
com ajuda dos indígenas:

Recebeu logo o 17º. batalhão ordem de ir, além do ponto atingido pelo 21º.
Realizar um reconhecimento, sob a direção do guia Lopes e em companhia
de um grupo de índios Terenas e Guaicurus, que desde algum tempo se
apresentara ao Coronel. A 10 de abril, realizou-se a partida, bandeiras
desfraldadas e música à testa, espetáculo sempre imponente em vésperas
de combate. Graças ao comandante apresentava-se o grupo em pé de
disciplina, que em qualquer ponto o tornaria notado (TAUNAY, 2005. p. 64).

535
A participação na Guerra ficou presente na memória coletiva da etnia Terena, como
demonstra esta fala sobre o conflito:

É, a nossa geração, os nossos tronco, tem uma história pra nós que... Tinha
um perparo na frecha, paraguaio tava do lado de lá da aroeira, então... faz
de conta que isso aí é uma aroeira. Então, paraguaio escondeu de lá. Ele
mete uma frechada daqui, ele parte essa aroeira e pega o paraguaio. É uma
coisa que... eles falaram isso aí, pode ser que acontece. [trecho no idioma].
A gente fica pensando... (Armando Gabriel, índio Terena, 85 anos, 2003).

São exaustivos os exemplos do engajamento Terena ao lado das forças imperiais,


porém sua contribuição não se restringe a isso e pode ser atestada com os serviços
que prestaram: tornaram-se guias por serem bons conhecedores da região;
produziram víveres, visto serem excelentes agricultores; e abrigaram não índios em
suas aldeias.

Durante o evento bélico, muitos habitantes da região, refugiaram-se na Serra de


Maracaju. A maior parte da população precisou abandonar suas casas, inclusive os
indígenas viram-se forçados a deixar algumas aldeias. Ao subirem a referida serra,
os índios encontraram a população de Miranda, que já havia se refugiado lá, numa
situação delicada.

Nem todos possuíam o hábito da agricultura e estavam passando fome. Os


indígenas então começaram a plantar e dividir entre todos sua colheita. De acordo
com Taunay, logo se regularizou a vida na serra:

Não tardou também que toda a população alli estabelecida, brancos e


índios, encarasse, com paciência, a situação, esperando o desfecho da
intermina guerra dos cinco annos, pelos paraguayos tão deslealmente
encelada quanto ferazmente conduzida. Nos diversos acampamentos da
serra construíram ranchos vastos e commodos, e, pouco a pouco,
regularizou-se o modo de viver daquellas colônias hybridas, de brasileiros
civilisados e índios, sobretudo kinikináus, a que se haviam
aggregadoguanás, terenas e laianos(sic.) (TAUNAY, 1931, p. 34).

Em sua obra Memórias (TAUNAY, 1948), menciona que os índios, em número


superior ao dos brancos, entretinham com estes boas convivência e grande
cooperação. Passavam entre as rondas paraguaias à noite e desciam a serra de
Maracaju para laçar reses na planície e tangê-las para o alto dos acampamentos,

536
abastecendo de carne as moradias dos Morros. Certos indígenas especializaram-se
nesta tarefa, angariando por vez, até oito ou dez cabeças de gado bravio, sem,
contudo, esquecer de apagar as pegadas. Apesar das precauções, ocorreram
embates entre os índios e os paraguaios em 1866 nas imediações da Serra de
Maracaju, quando as forças imperiais ainda estavam distantes, no Coxim.

A guerra acabou, mas a luta dos Terena estava apenas começando. O conflito alterou a
configuração territorial dos índios no sul de Mato Grosso, pois com o seu término, novos
ocupantes chegaram à região. A despeito das contribuições indígenas, o Império julgou
necessário incentivar a colonização não indígena na região sul do Mato Grosso. Mais
propriedades particulares avançaram sobre as terras dos índios, apesar das
reivindicações dos Terena para tentarem manter seu espaço.

3 As relações entre o Estado e os índios Terena no século XX.

A transição do século XIX para o século XX, não teve mudanças significativas na
postura do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas. A nova república
manteve o incentivo às ondas migratórias que tinham o objetivo de ocupar supostos
―espaços vazios‖, negligenciando a presença das populações nativas.

Importante mencionar que na primeira metade do século do século XX, o Estado, a


academia e os regionais não acreditavam que houvesse densidade populacional
crescente e nem preservação da identidade étnica terena, imbuídos que estavam do
paradigma assimilacionista. Nesse contexto foi criado o Serviço de Proteção aos
Índios (SPI), em 1910. Uma de suas atribuições era demarcar as Reservas
indígenas. No entanto, a criação das Reservas foi um processo ambíguo, uma vez
que reservava pequenos espaços para os índios e liberava grandes extensões de
terra para os novos (e cada vez mais numerosos) empreendimentos rurais. A política
indigenista continuava sendo uma política de apropriação das terras indígenas.

A constituição das atuais Terras Indígenas terena ocorreu nessa conjuntura, entre as
décadas de 1920 e 1940, deixando de fora grande parte das terras tradicionalmente
ocupadas por eles. O Estado também negligenciou as expulsões que os Terena
sofreram de diversas áreas, posteriormente convertidas em fazendas.

537
Esses indígenas continuaram contribuindo com diversos serviços para os regionais,
auxiliando na abertura de estradas, na construção da Estrada de Ferro Noroeste do
Brasil, na instalação das linhas telegráficas e no fornecimento de produtos
alimentícios. Foram mão de obra explorada nas fazendas, onde permaneciam
muitas vezes de forma compulsória, como apontam diversas obras (OLIVEIRA,
1976; EREMITES DE OLIVEIRA; PEREIRA, 2003; VARGAS, 2003; dentre outros).

Diante disso, os Terena colocavam em prática suas antigas estratégias, ou seja,


formavam comissão para cobrar do governo os serviços prestados,além de
pressionar as autoridades para efetuarem a demarcação de seus territórios, já que
aformação de fazendas não se fazia esperar (VARGAS, 2003). Ao longo da história
deste povo,o Estado e a sociedade envolvente, não pouparam esforços na
espoliação do seu território e na tentativa de apagar sua distintividade étnica.
Entretanto, esses indígenas mesmo, mantendo relações amistosas, nem sempre
aceitaram as determinações dos não índios.

Em 1967 o SPI foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Porém as
mudanças mais significativas vieram com as alterações na legislação. A Lei
6.001/1973 em seu artigo 65° estabeleceu: ―o Poder Executivo fará, no prazo de
cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas‖.

A Constituição de 1988 também representou um avanço na questão indígena, pois


reconheceu os direitos originários dos índios às suas terras, e abandonou o
paradigma assimilacionista (CUNHA, 1992).

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles


habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua


posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais


energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas

538
só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas
as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os


direitos sobre elas, imprescritíveis (BRASIL, 1988).

Apesar da garantia desses direitos na Constituição, na prática, eles não são


respeitados. O prazo estabelecido em 1973 não foi cumprido, e segundo Cavalcante
(2012) há 450 reivindicações registradas na Coordenação Geral de Identificação e
Delimitação – CGID da Funai.

A partir da década de 1990, com campo mais propício para suas reivindicações, os
Terena passaram a protagonizar um movimento denominado por eles de Retomada,
com objetivo de cobrar do Estado brasileiro a demarcação de suas terras tradicionais.
Resultado disso, em 1999 a FUNAI, por meio da Portaria 533/99, estabelece o GT –
Grupo Técnico – para os estudos preliminares de identificação e revisão de três terras
terena Cachoeirinha, Taunay-Ipegue e Buriti. A partir disso, diversas áreas entraram em
processo de regularização e ampliação, ainda inconclusos.

Mato Grosso do Sul está entre os campeões de concentração de terras no Brasil,


segundo Alcântara Filho (2009). Isso se reflete na influência política e econômica do
setor ligado ao agronegócio, e na dificuldade de regularizar as terras de ocupação
tradicional dos índios.

A questão territorial gera polêmica, principalmente devido à forma como a disputa


territorial entre índios e fazendeiros é apresentada pelos veículos de maior
circulação e audiência na mídia nacional e local, muitas vezes reforçando visões
estereotipadas e negativas sobre os povos indígenas. Atrelado a isso estão
interesses de segmentos sociais que observam somente a lógica neoliberal, sem
levar em conta os direitos originários das populações nativas.

4 Considerações finais

Os índios Terena emergem na história brasileira, não como mero coadjuvantes, ou


espectadores passivos. São sujeitos históricos plenos, colaborando com o Estado

539
brasileiro em diversas situações. Mas também reivindicando, questionando e
resistindo às imposições e arbitrariedades.

O Estado, por sua, vez legitimou a expropriação do território terena. A legislação do


século XIX e de parte do século XX corroborou com o esbulho. Somente com o
Estatuto do Índio (1973) e com a Constituição de 1988, a questão indígena passou a
ser tratada de outra forma, ao menos no campo teórico.

No entanto, a regularização das terras indígenas, inclusive terena, é ainda, a


principal pauta do movimento indígena no século XXI. O desafio do Estado é
resolver os graves conflitos fundiários que envolvem indígenas e proprietários rurais,
respeitando os direitos dos povos nativos, garantidos pela Constituição de 1988.

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uma sociedade entre a imposição e a opção. Dissertação. Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Dourados, 2003.

VASCONCELOS, Cláudio Alves de. A questão indígena na Província de Mato


Grosso: conflito, trama e continuidade. Campo Grande: Ed. UFMS, 1995.

XIMENES, Lenir Gomes. Terra Indígena Buriti: estratégias e performances terena


na luta pela terra. Dissertação. (Mestrado em História). Universidade Federal da
Grande Dourados. Dourados, 2011.

Documentos oficiais

PARECER sobre o aldeamento dos índios Uiacurus e Guanás, com a descripção de


seus uzos, religião e costumes do Tenente Coronel Ricardo Franco de Almeida
Serra ao Capitão General e Governador da Capitania do Mato Grosso – Caetano
Pinto de Miranda Montenegro, Vila de Cuiabá, 5 de abril de 1803. Arquivo Histórico
Ultramarino, caixa 41, doc. n. 2035.

RELATORIO do presidente da provincia de Mato Grosso, o capitão de mar e guerra,


Augusto Leverger, na abertura da sessão ordinaria da Assembléa Legislativa
Provincial em 3 de maio de 1853. Cuiabá, Typ. Do Echo Cuiabano, 1853.

541
DIÁLOGOS (POSSÍVEIS) ENTRE A ANTROPOLOGIA DO DIREITO E O
DIREITO NO SUL DO MATO GROSSO DO SUL

Simone Becker177

Anderson José Rezende de Almeida178

1 Introdução

Este trabalho é parte de quatro projetos, dois de extensão e dois de pesquisa. São
eles: ―Educando para os Direitos Humanos‖ desenvolvido em 2008, com fomento da
PROEX/UFGD; Convênio com a Defensoria Pública Federal (DPU) e a FADIR –
Faculdade de Direito e Relações Internacionais desenvolvido de 2008 a 2010;
―Mapeamento e análise quanto ao acesso à justiça de indígenas da região da
grande dourados‖ desenvolvido de 2009 a 2011; ―Maiorias que são minorias,
invisíveis que (não) são dizíveis: análise etnográfica sobre os sujeitos à margem dos
discursos dominantes‖ de 2011 a 2015 e ―NPAJ/FADIR/UFGD: Centro de Excelência
em Direitos Humanos‖, com fomento do Ministério da Educação (MEC) junto ao
PROEXT, ao longo de 2013179.

A Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), nascida em 2006, surge em


meio à imensa demanda de questões relativas aos direitos humanos, visto que
inserida em um contexto de comunidades formadas por minorias no que diz respeito
ao acesso à justiça (quilombolas, indígenas, dentre outras). Assim, destas
comunidades presentes na região do Mato Grosso do Sul e da Grande Dourados,
são os indígenas os mais numerosos (e/ou mais ―visíveis‖ em meio às invisibilidades
que incluem os quilombolas), em especial, aqueles das etnias Guarani, Kaiowá e
Terena. Não sem esquecer que a população indígena do Mato Grosso do Sul é a

177
FADIR/PPGAnt/UFGD
178
FADIR/UFGD
179
Todas estas ações de pesquisa e de extensão foram desenvolvidas a partir da Universidade Federal da Grande
Dourados, e quatro deles, excetuando o primeiro acima mencionado, foram e são coordenados por uma das
autoras do presente trabalho – Simone Becker.

542
segunda maior em solos brasileiros, (sobre)vivendo em espaços reservados e
diminutos sob um processo histórico social que atualmente se equipara a uma
―panela de pressão‖ (BECKER et al, 2013).

Compreende-se nesse contexto, que um Núcleo de Prática e Assistência Jurídica


(NPAJ) de um curso de Direito em uma Instituição de Ensino Superior Pública tem
um sério compromisso com as questões sociais mais profundas, além da obrigação
de conceder treinamentos práticos aos seus acadêmicos que perpassam pela teoria
apreendida em meio à graduação. Portanto, sendo o NPAJ da Faculdade de Direito
e de Relações Internacionais (FADIR) da UFGD localizado no MS, não há como nos
eximir dos atendimentos à população indígena, nem tampouco de apreender a
perspectiva interdisciplinar do Direito, com a Antropologia, por exemplo, nas mais
diversas ―disciplinas‖ (Foucault, 2001) que compõem a ―grade curricular‖ (Idem) do
curso de Direito da UFGD.

À luz destas considerações, destaca(ra)m-se como objetivos dos projetos nos quais
estivemos e estamos envolvidos: (1) o levantamento de demandas indígenas; (2) o
desenvolvimento de ―capacitação‖ junto aos discentes do NPAJ em relação aos
direitos indígenas e às especificidades que cercam a diversidade cultural e étnica,
(3) a compreensão de outras formas de resolução de conflitos entre os indígenas da
Grande Dourados que não necessariamente a busca pelo Poder Judiciário e, (4) o
convênio da Faculdade de Direito com a Defensoria Pública Geral da União, através
do qual coube à primeira dar assistência e continuidade aos processos ajuizados
pela DPU de indígenas que pleiteiam do Judiciário, benefícios voltados à previdência
social, quando em Dourados ainda não havia a DPU.

Assim, tais ações levam em consideração o contexto social e histórico sul


matogrossense onde se situa a população indígena da Grande Dourados. Um
contexto recheado de expropriações de terras e de empobrecimentos compulsórios
sofridos pelos indígenas de diferentes etnias.

Neste sentido, a efetivação dos direitos dos povos indígenas passa também pelo
obstáculo da falta de preparo advinda tanto dos magistrados como de outros
profissionais do direito, frente à diversidade. Em outras palavras, há uma dificuldade
dos operadores do direito quanto ao tratamento da diferença cultural face ao

543
princípio da igualdade, pois no final das contas o que ainda impera é a visão restrita
de cultura e dos valores ocidentais europeus, ou ainda, um dado etnocentrismo.
Muito embora, a Constituição Federal, promulgada e vigente desde 1988 traga em
seu texto uma série de dispositivos que reconheçam tais diferenças. Como bem
coloca Oscar Vilhena Vieira sobre a ―ciência do Direito‖, suas ―doutrinas‖ e o
envolvimento de seus profissionais junto à pesquisa:

A Ciência do Direito se volta quase que exclusivamente para esse tipo de


prática acadêmica, chamada opinativa. Acho que realmente é uma boa
definição, porque são opiniões sem o menor fundamento, seja em análise
sociológica ou em filosófica. [...] a meu ver, a nossa Ciência do Direito é
absolutamente idiossincrática e focada em norma e inimizades pessoais. [...]
Hoje recomendo aos meus alunos que querem aprender Direito que não
leiam livros da disciplina, mas leiam livros que estejam sendo produzidos
fora. Se você quiser compreender o Congresso Nacional, leia um trabalho
de Ciência Política sobre o Congresso (VIEIRA, 2005, p. 121-122).

À luz destas considerações, o presente trabalho pretende explorar dois aspectos


referentes à formação do graduando em direito. O primeiro diz respeito à trajetória
tradicionalmente repassada e construída junto ao aluno de Direito, e a outra, na
implicação que esta tradicional formação apresenta na não efetivação do acesso à
justiça de maneira ampla e não restrita às demandas do Judiciário.

2 A FORMAÇÃO TRADICIONAL DO ACADÊMICO EM DIREITO

A formação do aluno de direito segue padrões anacrônicos e desligados dos


problemas fundamentais da sociedade. A transmissão do conhecimento jurídico nas
Faculdades de Direito é realizada de forma a inculcar no aluno a ideia de que a
realidade do direito se contém na tríade legislação, doutrina e jurisprudência.
Quando a discussão se volta à resolução de conflitos envolvendo sujeitos indígenas,
isto se torna ainda mais latente e patente.

Como exemplo desse anacronismo, pode-se reproduzir a citação do Procurador

544
Federal Marcelo Beckhausen de uma decisão do Supremo Tribunal Federal:

No Hábeas Corpus n° 79.530-7, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, o


famoso caso de BênkarotyKayapó (Paulinho Payakan) foi decidido por
unanimidade pela Segunda Turma que era desnecessária qualquer perícia
antropológica, eis que o Juiz Monocrático já havia verificado ser o indígena
em questão ―integrado à civilização‖, ―integrado à comunhão nacional‖.
Porquê? Porque o Índio em questão era funcionário da FUNAI. Residia na
cidade em imóvel por ele adquirido, falava português, possuía conta
corrente bancária, habilitação para dirigir veículos automotores e ainda,
possuía empresa de comércio de exportação de óleo de castanha para a
Inglaterra. Sendo assim não era índio.

Um discurso parecido pode ser visto no voto do Ministro Carlos Madeira, em


processo no qual o réu também é indígena:

A só origem silvícola não exclui a imputabilidade. Se provado que o índio já


é aculturado e tem desenvolvimento mental que lhe permite compreender a
ilicitude de sua ação, é plenamente imputável.

No caso, o paciente, nascido índio, já trabalhou na indústria paulista, é


eleitor e tem atividade social no meio civilizado.

Convém explicar que a última citação diz respeito a um caso de recurso de


Habeas Corpus e que foi feito em 1986. Já a primeira citação traz caso recente e
bastante divulgado nos meios de comunicação. É válido, portanto, em análise
mesmo que superficial, dizer que ambas as citações trazem semelhanças que
saltam aos olhos. O que prepondera nelas é a visão do Estatuto do Índio ou Lei
6001/73 em seu artigo 4°, que classifica os indígenas em ―isolados, em vias de
integração e integrados‖, sendo que a última classificação cria a figura do ―ex-
índio‖, que na ótica do Estatuto seria aquele já assimilado pela ―civilização‖ ou
que não mais pertenceria a qualquer sociedade indígena. É patente a
discrepância entre esses argumentos alicerçados na Lei 6001/73 e os existentes
no texto da Constituição Federal de 1988 em seus artigos 231, caput, e artigos
232, em que há um rompimento com o paradigma da ―integração à sociedade
nacional‖. É interessante que reproduzamos o texto dos artigos supracitados:

545
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas


para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo
o Ministério Público em todos os atos do processo.

Esses artigos da Constituição Federal recepcionam a Convenção 169 da


Organização Internacional do Trabalho (OIT)180 que em seu corpo afirma terem os
indígenas o direito de manutenção das suas próprias tradições, bem como e,
sobretudo, invalida a tríade classificatória dos indígenas como silvícolas isolados, em
vias de integração e integrados, pois traz à tona as contribuições antropológicas
postas no princípio identitário da autodeterminação. O que fica claro é que dos
textos das duas decisões, o segundo é relativamente escusável, uma vez que foi
feito antes da Constituição Federal, já a decisão no caso de Paulinho Payakan se
encaixa perfeitamente na qualidade de anacrônica.

O Sociólogo Luiz Wernneck Vianna (1997) e demais pesquisadores publicaram o


livro Corpo e Alma da Magistratura Brasileira, resultante de uma pesquisa realizada
em 1997 com 3.927 magistrados em todo o país com o intuito de traçar/entender o
perfil desses profissionais. Por meio dessa pesquisa, Vianna chega à conclusão de
que a idade dos aprovados em concursos para juiz diminuiu em comparação aos
outros anos, e que o tempo entre a formatura e a aprovação no concurso sugere
pouca experiência profissional e pouca visão crítica. Outra conclusão é a de que
esses juízes, pela pouca experiência somada à característica de um sistema de Civil
Law como o existente no Brasil, tenderiam a julgar de acordo com o ideário
positivista, ou seja, reduzindo as soluções à aplicação da lei ao caso concreto, e não
há compreensão do contexto social em meio ao qual se produziu discursivamente os
fatos postos nos autos de um processo. E mais: quiçá para não dizer que ousamos
grafar que há uma disciplinar formação dos futuros egressos bacharéis em Direito 181.

180
O Decreto 5051 de 19 de abril de 2004 promulga a Convenção 169 da OIT em solos brasileiros, embora,
Flavia Piovesan repute que o mesmo já era autoaplicável face ao disposto na Constituição Federal Brasileira.
181
A título de informação, no projeto PROEXT coordenado pela autora Simone Becker, na parte da pesquisa que
se desenvolve dentro do NPAJ/FADIR/UFGD – lócus onde a mesma já foi docente orientadora, mais
precisamente com as fichas de triagem dos “assistidos”, isto é, sujeitos que procuram o Núcleo, observa-se em
um primeiro momento como quiçá não há a escuta dos graduandos formandos de Direito, nem talvez a apreensão

546
Como novamente remarca Oscar Vilhena Vieira (2005, p.124):

A questão das normas é continuar com a doutrina, que é importantíssima; a


visão das normas deve estar, no entanto, acoplada àquilo que também é
Direito e à jurisprudência. Acredito que o modo que se trata da
Jurisprudência no Brasil é totalmente relapso e negligente, servindo para
legitimar posições. Deveríamos saber como decidem os nossos tribunais, o
que eles decidem e quais as consequências.

Neste debate concretizado na obra, cujos excertos de dizeres de Oscar V Vieira


foram retirados, Ana Lucia Pastore assim arremata:

Como incorporar esses olhares externos ao Direito a um curso de Direito?


[...] deve se investir muito no pensar metodologia de pesquisa – seja ela
voltada à pesquisa doutrinária, empírica ou jurisprudencial -, que
acompanhará o aluno nos vários anos de graduação. Não vejo outra
maneira de se fazer isto senão colocando o conhecimento das Ciências
Sociais como instrumental do Direito, e vice-versa. E aí tem de haver uma
humildade recíproca, porque ninguém é dono da verdade nesse assunto
(PASTORE, 2005, p.131).

Sob tal perspectiva, este tipo de formação cria profissionais insensíveis para atuar
da forma que se exige em uma sociedade com grandes problemas sociais como a
brasileira, em especial quando se leva em consideração que contamos com uma
população indígena que extrapola às oitocentas e noventa mil pessoas, segundo o
Censo Demográfico do IBGE do ano de 2010. Pontua José Renato Nalini que:

Sensibilidade é palavra banida do ensino jurídico. Prefere-se invocar a


racionalidade, como se a razão fora suficiente para resolver todos os
problemas humanos. O egresso do curso jurídico é treinado para ser um
técnico apto a detectar, no sistema normativo, a resposta apropriada a
solucionar qualquer questão (2008, p.239).

de que esta escuta quando se trata de um assistido indígena mais aguçada ainda. Isto porque, a lógica que
permeia o cotidiano de um Kaiowá, por exemplo, não é a mesma que permeia aquele pretenso bacharel. A
começar pela noção de tempo, de propriedade privada, dentre outros. Assim, esta percepção se dá inicialmente
na própria forma como é preenchida a ficha de triagem, com, por exemplo, uma ou duas linhas do que o
estagiário anotou em vários minutos de escuta, que pode ou não ter existido. Portanto, se cabe ao estagiário que
atende pela primeira vez um assistido no NPAJ anotar com letra legível e da forma mais detalhada possível o que
o assistido falou, e isto não necessariamente ocorre, como o outro estagiário ou ele próprio pode produzir o
documento chamado de “petição inicial” para demandar o que angustia aquele sujeito que nos procurou no
NPAJ?

547
Nesta mesma linhade raciocínio, a cientista política Maria Tereza Sadek em
seu artigo ―Poder Judiciário: Perspectivas de Reforma‖ aponta que à tenra idade
dos bacharéis ingressantes na magistratura soma-se à proliferação de tais cursos na
década de 1970, sem que suas qualidades tenham acompanhado o mesmo
movimento. Quanto à juventude e inexperiência dos recém-ingressos na carreira da
magistratura, acrescidas à qualidade do curso de Direito, pode-se dizer que as
pontuações de Sadek convergem para àquelas de Nalini, uma vez que a visão
acrítica dos graduados em Direito em relação a problemas sociais, nos dão pistas
para a falta de sensibilidade desenvolvida no futuro profissional ao longo de seu
curso. Mas o que podemos entender por sensibilidade?

Ausência de diálogo entre o curso de direito e suas disciplinas específicas com


outros conhecimentos das ciências humanas e/ou sociais. Assim, quando no início
deste item citamos Marcelo Beckhausen em um trecho a respeito de um julgamento
proferido pelo STF a respeito da ―aculturação‖ de um indígena, vê-se que em se
tratando de ―educação voltada aos direitos humanos‖, neste caso específico o
diálogo com a Antropologia torna-se inexistente.

Pode-se perguntar então o porquê de se citar uma ciência como a Antropologia


neste caso, ao que se responde com o que está em sua própria definição enquanto
ciência: a Antropologia tenta compreender o outro a partir da sua lógica, ou seja,
compreender modos de vida outros que não os ―nossos‖, sem que para tanto os
nossos valores não sejam impostos a esses outros. E mais: apreender a partir das
diferenças o que há de fluidez e de semelhanças entre os supostos ―nós‖ e os
―outros‖. Quando ocorre a imposição desses valores incorremos no que se chama de
―etnocentrismo‖, que é justamente o problema do julgamento dado pelo STF no caso
Paulinho Payakan. Sendo assim, um diálogo com a Antropologia daria suporte a
essa sensibilidade mencionada por Nalini.

Ainda quanto ao supracitado etnocentrismo evidenciado no julgamento retro, há que


se observar que é passível de ser historicizado no campo do direito, uma vez que o
magistrado não pode julgar um processo sem antes (no mínimo) interpretar a norma
reguladora cabível, e historicamente essas normas reguladoras têm seu papel de
comprometimento com o pensamento hegemônico das elites que produzem e

548
interpretam as leis em um dado momento do tempo. Tais formas, não prescindiram
das ciências sociais e humanas em seu início, pois o direito moderno também travou
contato com a germinal antropologia e sociologia de finais do século XIX, tecendo
verdadeiras ―trocas interdisciplinares‖. Porém, ocorre que aquele aparato teórico
servia muito bem às várias manifestações de dominação colonial próprias da época,
o que já não mais se apresenta com tamanha visibilidade.

Nesta clave, o antropólogo André Gondim do Rego, citando Laura Nader (p.33),
observa que a história dessas ―trocas interdisciplinares‖

(...) teria se iniciado a partir da expansão colonial e a industrialização do


séc. XIX que, com sua gana por dominar recursos dos mais variados tipos
em nome do ―progresso‖, desde então promoveu um crescente interesse em
conhecer e controlar os ―outros‖, sejam estes os ―primitivos‖ do
evolucionismo, os ―selvagens para a ―civilização‖, ou os ―pobres‖ em relação
ao ―mundo desenvolvido‖. Em todos estes casos trata-se do interesse por
um conhecimento que ―inspired options for social engineering through law
that continue to the present. People could be regulated and administered
through law, and law was and is often a means of inventing culture (Nader,
2002:9).

Convém notar que à época mencionada, digladiavam-se na academia, duas


correntes antropológicas fundacionais da moderna base desta ciência, quais sejam,
a monogenista e a poligenista. A primeira, mais fiel às observações etnológicas
extraídas de autores iluministas como Rousseau, que, para além da perfectibilidade,
enxergavam uma unicidade na origem da humanidade, porém, há que se ressaltar,
muitos não se eximiam também em reconhecer diferenças fundamentais entre as
sociedades humanas, a ponto de alguns de seus pensadores mais notáveis criarem
teorias sobre a degeneração da espécie humana nos continentes mais ―atrasados‖.

Os poligenistas, em posição antagônica, ancorados nas variadas origens dos seres


humanos, diferenciam as raças, hierarquizando-as em mais capazes ou menos
capazes, segundo critérios fenotípicos, e métodos próprios das ciências biológicas,
em seu sentido mais determinista biológico. Assim, importa notar que ambas as
correntes convergiram no posterior evolucionismo, que grassou nas universidades
em fins do Séc. XIX e início do XIX, em todas as áreas do saber, estabelecendo-se
de forma bastante notória nas ciências sociais, formando toda uma geração social-
darwinista (SCHWARCZ, 1993, p. 53 -55).

549
Seguindo os padrões deterministas próprios daquele momento histórico, a
criminologia e, por conseguinte as normas de direito penal, influenciaram-se
fortemente pelo trabalho do cientista Cesare Lombroso, que ―argumentava ser a
criminalidade um fenômeno físico e hereditário‖ (Idem, p.49), o que
consequentemente relegava a certas características fenotípicas comuns em dadas
etnias, o condão de serem causas necessárias de uma suposta incapacidade
mental, ou mesmo de uma propensão para certas condutas criminosas. Eis a
produção de uma sociedade atual, cujo imaginário se pauta na segregação
camuflada para não se caracterizar como racista.

Schwarcz pontua que a questão racial advinda do evolucionismo e do darwinismo


social encontrou bastante aceitabilidade na academia brasileira, influenciando na
formação das nossas elites ilustradas, ocupando papel central na discussão
científica da época, também ―nos museus etnológicos, institutos históricos, escolas
de direito e de medicina‖ (SCHWARCZ, 1993, p. 66).

Faz-se necessário frisar, que em termos de importância científica, a carga


colonialista e racista própria dos primórdios da antropologia foi superada ou, se não,
bastante mitigada já no início do Séc. XX, com o advento do rigor etnográfico, que
passou a ser peça central para a compreensão das diferentes sociedades, a partir
de categorias próprias, em sentido convergente com o conceito de alteridade. Neste
sentido, François Laplantine (2000, p. 75 – 86) traz à baila as contribuições de Franz
Boas e Malinowski, pioneiros em um pensar e fazer antropológico, em que o
pesquisador se coloca de outra forma no campo, atuante, que, ipsislitteris,

(...) deve deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade


dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem
questionados, e sim como hóspedes que o recebem e mestres que o
ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a viver entre
eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e pensar nessa língua, a
sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo.

Destarte, importa recapitular o que pontua Gondim do Rego (2007, p. 30) sobre as
reflexões de Nader acerca da interação das duas ciências. Neste sentido, se é
verdade que, em um dado momento, as ditas ―trocas interdisciplinares‖ serviram
para instruir uma engenharia social feita pelo direito, meio coercitivo por excelência,

550
de subjugação de sociedades inteiras pelas elites brancas; também é verdade,
observa Rego, que ―o direito como um mecanismo de mudança seguiu e pode seguir
várias orientações‖, e continua o autor:

[...] assim o demonstra a invenção de um direito de propriedade que


sustentou a autoridade pela posse (satisfazendo interesses imperialistas e
colonizadores); a estruturação dos direitos das mulheres que realçaram a
dominação de gênero; a arguição de que o direito responde efetivamente a
condições de mudança (REGO, 2007, p. 30).

O direito enquanto ―instrumento de mudança‖, em perspectiva diversa da apontada


anteriormente, pôde ser notado especificamente na América Latina, quando após a
queda de regimes autoritários, irromperam-se em alguns países, movimentos que
partiram das lutas sociais de organizações indígenas e indigenistas conseguiram fazer
ecoar nas legislações internas dessas nações, o direito às etnias terem reconhecidas
sua cultura e o acesso às suas terras tradicionais (REGO, 2007, p. 60-68).

E, no caso do Brasil, a mudança fez-se notar em primeiro momento, e de forma mais


veemente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que nos moldes
mencionados anteriormente, dispôs sobre as terras das sociedades tradicionais
indígenas e sobre seu modo de (re)produção cultural. Figurando como marco legal
de reconhecimento da dignidade desses povos, considerados em seu modo de viver
e sua língua materna. Como se nota na citação aos dispositivos constitucionais
atinentes a esta matéria no início deste título.

Levando-se em consideração esse diálogo com a Antropologia, voltamos a um dos


objetivos que permeou alguns dos projetos anunciados no início deste trabalho.
Trata-se do levantamento das demandas advindas dos diferentes sujeitos indígenas
de Dourados, ou mais precisamente da aplicação do método etnográfico, que
singulariza a Antropologia no entendimento destas demandas. Para além de
compreendermos quais são essas demandas, a etnografia – e o escutar, ver e
escrever182 que dela advém – auxiliará/auxiliou na sensibilização de docentes e de
alunos da FADIR em relação ao entendimento da realidade desses sujeitos, suas

182
Aqui cabe fazermos remissão ao analisado por Roberto Cardoso de Oliveira (2006), em sua obra clássica, O
trabalho do antropólogo, em meio ao qual explorará o ouvir, o ver e o escrever, inspirado em Claude Lévi-
Strauss.

551
instituições, enfim seu modo de vida e, não apenas aqueles impostos pelas
legislações nacionais.

Para além das legislações nacionais e dos ordenamentos sociais por elas incitadas,
as comunidades étnicas produzem formas próprias de regulação e ordenamento. No
que diz respeito às instituições próprias dos povos indígenas, o magistrado
Fernando da Costa Tourinho Neto faz referência à antropóloga Alcida Rita Ramos,
que analisa instituições penais específicas desses povos em exemplos claros de
situações em que os indígenas resolvem seus conflitos sem procurar o Judiciário.
Pontua ela que:

A vida comunitária de uma aldeia indígena não está isenta de gerar


conflitos, disputas, comportamentos anti-sociais diversos, em diferentes
graus de gravidade e desaprovação. (...) A definição do que é uma infração
social varia de sociedade para sociedade. Enquanto em algumas
(sociedades) o assassinato é severamente punido, em outras ele é
considerado assunto particular das pessoas envolvidas; (...) quebra do tabu
do incesto pode levar os infratores a penas mais ou menos pesadas; a
prática da feitiçaria pode ser apenas desaprovada verbalmente ou pode
resultar na execução sumária do alegado feiticeiro. Porém cada sociedade
tem seu elenco de „crimes‟ que são da alçada do grupo e não apenas
assuntos domésticos, e tem também um elenco de punições
correspondentes a esses crimes (TOURINHO NETO, 2002, p.207-208).

A citação acima traz um exemplo claro do que é uma visão ampla de acesso à
justiça, isto é, não restrita à procura do judiciário como única forma de resolução de
conflitos, pois parte do pressuposto de que os indígenas apresentam maneiras de
dar cabo às suas pendengas que não passam pelo Poder Judiciário à la
Montesquieu.

3 BREVES REFLEXÕES SOBRE O ACESSO À JUSTIÇA

Ainda quanto ao acesso à justiça, convém abordar a questão do acesso à justiça aos
indígenas fazendo uma conexão com a experiência que tivemos, por exemplo, com
relação ao projeto ―Educando para os Direitos Humanos‖. A citada referência é fruto
do convênio estabelecido entre a faculdade de direito da UFGD e a DPU. Neste
convênio coube à Defensoria Pública da União iniciar os pedidos de benefícios

552
previdenciários de alguns indígenas da região da Grande Dourados, que se
transformaram em processos judiciais. Assim, a continuidade de todos os outros
atos nesses processos coube de 2008 a 2010 à Faculdade de Direito, isto é, a
princípio alguns professores e discentes que participavam dos projetos de extensão
e pesquisa (MÜLLER et al, 2012). Dentre os docentes, mencionamos Simone
Becker e Cíntia B Muller, e dentre os discentes, Luiza G O Meyer e Anderson
Rezende de Almeida. Mencionamos abaixo, resguardado o anonimato das partes
envolvidas, uma das decisões proferidas por um dos atores jurídicos atuantes em
um dos processos.

Pelo fato de ser a parte autora indígena, a norma a ser aplicada do bem da
vida pleiteado não é a norma protetiva estabelecida no Estatuto do Índio,
mas sim a norma que regula o Regime Geral da Previdência Social, a qual
isonomicamente trata os seus segurados e dependentes do sistema.

Sendo assim, penso que deve o (a) autor(a) indígena pleitear


administrativamente o benefício guerreado, o qual se passado 45 (quarenta
e cinco) dias da resposta ou mesmo indeferido haverá a pretensão resistida
passível de conhecimento daí então pelo Estado-juiz.

O citado trecho pode ser interpretado como contrário ao entendimento do princípio


constitucional de respeito à diversidade cultural, bem como contrário ao
entendimento do que vem a ser acesso à justiça. Para além do princípio da
economia e celeridade processuais. Senão, vejamos.

No caso em discussão, trata-se de uma mulher indígena residente em


Panambizinho/MS que demanda aposentadoria por invalidez e benefício de
assistência social. É apropriado nos perguntarmos se poderia o judiciário negar a
apreciação de sua demanda, pelo fato dela não ter ido ao INSS, ou ainda se o INSS
não seria uma forma alternativa de buscar a aposentadoria sem a intermediação de
um advogado. Poderíamos indagar se, caso ela não tenha optado por esta
alternativa, não caberia ao Judiciário julgar seu pedido.

Essas questões suscitam o problema do acesso à justiça, por se tratarem da


imposição de obstáculos ao acesso a um benefício pleiteado por pessoa carente e
indígena, que sente dificuldade em lidar com as instituições oficiais, especialmente
se pensarmos que o atendimento no INSS requer minimamente o domínio de uma

553
língua que originalmente não é a dela. Desta forma, não se estende ao indígena
apenas, mas a uma gama de outros sujeitos.

Voltando à ilustração da indígena antes explicitada, soma-se o fato dela morar em TI


(Território Indígena) que dista mais de 20 Km da cidade de Dourados/MS, e que há
apenas um ônibus que faz o trajeto Panambizinho/Dourados, em dois únicos horários:
pelo início manhã no sentido Panambizinho/Dourados e no início da tarde o retorno.

O autor da decisão despreza ainda que pelo fato da demandante ser indígena, sua
condição é diversa culturalmente, socialmente e historicamente da pessoa não-
indígena, portanto não há que se falar em isonomia, pois assim incorre-se em
situação que perpetua injustiças. As posições não são as mesmas, a começar pela
história dos povos indígenas na região de Dourados/MS, que vinham de uma
situação de exploração do trabalho pela Cia Mate Laranjeiras há mais de 100 anos,
passaram por expropriação de territórios tradicionais e consequente confinamento
em áreas exíguas, como estudado por Antônio Brand (1997).

Percebe-se que o ator jurídico comete outro equívoco em seu texto ao citar
dispositivo do Estatuto do Índio de 1973, em parte, a nosso ver, não recepcionada
pela Constituição Federal de 1988, responsável por desfazer a perspectiva legal do
indígena como sujeito incapaz (ou tutelado). Além de contrário ao texto
constitucional, o Estatuto também colide com a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho. Interessa reproduzirmos o art. 3, Parte 1 da citada
Convenção

Os povos indígenas e tribais deverão ter o direito de escolher suas próprias


prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida
em que afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem
como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na
medida do possível, seu próprio desenvolvimento econômico, social e
cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação,
execução e avaliação de planos e programas de desenvolvimento nacional
capazes de afeta-los diretamente.

Portanto, há que se notar uma figuração do indígena um tanto diferente da existente


no Estatuto do Índio, sendo que a mesma depõe contra a decisão proferida pelo
profissional do Direito e a favor de uma das ideias defendidas neste artigo: a de que

554
boa parte dos operadores do Direito tende a fazer julgamentos baseados na lógica
da aplicação da lei ao caso concreto, produzindo-se equívocos quanto às normas a
serem aplicadas, e isso se deve a não percepção da realidade do outro. Acerca do
acesso à justiça e da importância da criação de uma sensibilidade pelo diálogo do
Direito com outros saberes científicos, o sociólogo e jurista italiano, Mauro
Cappelletti pontua que:

Eles [juristas] precisam, consequentemente, ampliar sua pesquisa para mais


além dos tribunais e utilizar os métodos de análise da sociologia, da política,
da psicologia e da economia, e ademais, aprender através de outras
culturas. O acesso não é apenas um direito social fundamental,
crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto
central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um
alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência
jurídica.(CAPPELLETTI, 188, p. 148)

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, importa que se faça uma reflexão sobre a atuação dos profissionais do
Direito e o tipo de sociedade almejada pelos brasileiros. Faz-se necessário
perguntar se continuaremos a reproduzir um modelo excludente que despreza o
respeito à diversidade em favor de uma visão etnocêntrica e desligada dos reais
problemas sociais brasileiros. Como visto ao longo deste trabalho, o que se pratica
no judiciário tem conexão com esse modelo e com implicação, em especial, dos
egressos das faculdades de direito. As negligências pautadas por uma lógica jurídica
positivista são cometidas reiteradas vezes pelos atores jurídicos em processos
envolvendo integrantes de grupos, que por condições históricas, se encontram
vulneráveis frente às instituições da sociedade envolvente. Um dos argumentos
utilizados neste artigo foi que grande parte dos problemas do acesso à justiça está
ligado intrinsecamente ao tipo de formação a que está submetido o aluno do curso
de Direito. Afinal, um curso com disciplinas herméticas, pois geralmente não
dialogam com outros saberes que se primam pela compreensão do outro, como a
Antropologia, só pode formar profissionais insensíveis frente às realidades que não
compreendem, ou que propositadamente perpetuam a lógica foucaultiana do ―vigiar
e punir‖ sobre àqueles que conscientemente devem ser os excluídos.

555
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557
Simpósio Temático 08

INTEGRAÇÃO DO SISTEMA DE SIMULAÇÃO DE COMBATE DA DEFESA

Carlos Augusto de Fassio Morgero183

1 Introdução

O Brasil iniciou o novo milênio como importante ator global, despontando como forte
liderança na agenda multilateral. Esse protagonismo reflete em maiores
responsabilidades a serem assumidas pelo país. A fim de respaldar o atual status
nacional, o país precisa de Forças Armadas que estejam em condições de enfrentar
os desafios que a globalização e a complexidade exigem.

Nesse contexto, o preparo das Forças Armadas está cada vez mais especializado,
na busca de um maior nível de adestramento de seus quadros. Após a Guerra das
Malvinas, uma das lições aprendidas incluídas no relatório do Estado-Maior do
Exército foi a necessidade de maior integração entre as Forças Armadas e
adestramento em operações conjuntas (BRASIL, 1982). No entanto, em virtudeda
cultura autonomista das três Forças Armadas, pouco foi feito neste período
(CAMPOS, 2011).

A partir da criação do Ministério da Defesa (MD), a integração das Forças Armadas


se intensificou e as operações conjuntas passaram a ser priorizadas (Campos
2011). Alinhada com essa ideia, a Política Nacional de Defesa184 (2012, grifo nosso)
determina que o país deve manter ―Forças Armadas modernas, integradas e

183 Doutorando em Ciências Militares (Programa de Pós-graduação em Ciências Militares). Instituto


Meira Mattos / Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (IMM/ECEME).

184 Política Nacional de Defesa é o documento condicionante de mais alto nível do planejamento de
defesa e tem por finalidade estabelecer objetivos e diretrizes para o preparo e o emprego da
capacitação nacional, com o envolvimento dos setores militar e civil, em todas as esferas do Poder
Nacional. O Ministério da Defesa coordena as ações necessárias à Defesa Nacional.

558
balanceadas, operando de forma conjunta e adequadamente desdobradas no
território nacional, em condições de pronto emprego‖.

Entretanto, para que o emprego conjunto seja bem sucedido, torna-se necessário
maior interdisciplinaridade na fase do preparo, sob risco de ocorrerem graves
deficiências na execução real por falta de integração. A busca constante por esse
objetivo tem como aliada a evolução científica e tecnológica. Uma das maneiras
mais eficientes de realizar o preparo adequado e de alta qualidade é a utilização de
simuladores de combate (Tolks 2012), objeto de estudo do presente trabalho.

2 O preparo e emprego das Forças Armadas

O preparo para sua atividade-fim sempre foi o maior desafio para as Forças Armadas
de um país, tanto em tempo de paz como na guerra (NEYLAND, 1997). Uma vez
definidos os meios com os quais vão atuar, é necessário que as forças recebam um
treinamento adequado para fazer frente às ameaças definidas pelo Estado.

Com relação ao preparo das Forças Armadas, a Lei Complementar número 97, de 9
de junho de 1999, alterada pela Lei Complementar número 117, de 2 de setembro de 2004,
no seu artigo 13, regula que:

§1ºO preparo compreende, entre outras, as atividades permanentes de


planejamento, organização e articulação, instrução e adestramento,
desenvolvimento de doutrina e pesquisas específicas, inteligência e
estruturação das Forças Armadas, de sua logística e mobilização.

Essa mesma Lei orienta que as atividades de preparo devem ser focadas na
permanente eficiência operacional singular e nas diferentes modalidades de
emprego interdependentes, além de buscar de forma contínua a nacionalização de
seus meios, a fim de fortalecer a indústria nacional.

Dentre outras definições, o termo ―emprego‖ é definido pelo dicionário Michaelis


(2009) como: ―1. ato ou efeito de empregar ou 6. uso‖. No contexto militar, o preparo
relaciona-se mais ao treinamento, enquanto o emprego das Forças Armadas refere-
se ao uso, ou ao efeito de serem empregadas para cumprirem alguma de suas
atribuições constitucionais. Portanto, os exercícios militares, treinamentos e

559
adestramentos são realizados na fase do preparo, enquanto as operações militares
reais caracterizam o emprego. Assim, o principal objetivo do preparo é condicionar a
tropa para o emprego eficiente e eficaz.

Atualmente, as atividades de preparo e emprego das Forças Armadas são


conduzidas pelo Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, no nível conjunto, e
pelos Comandos Operacionais de cada uma das Forças, no nível singular. Nos
últimos anos, o MD185 identificou um aumento significativo da aquisição de
simuladores de combate pelas três Forças Armadas, em especial para a utilização
em atividades cuja finalidade é o adestramento individual ou coletivo dos recursos
humanos, ou seja, atividades de preparo das Forças.

3 Modelagem e simulação

Com a grande evolução científica e tecnológica da arte da guerra pós Segunda


Guerra Mundial, a modelagem e simulação também encontrou campo na área da
defesa. Diversos países passaram a empregar as ferramentas da simulação em
suas atividades de preparo, de modo a aumentar o grau de realismo dos
treinamentos das tropas, a fim de empregá-las com maior eficiência, quando
necessário (TOLKS, 2012).

Modelagem e Simulação é a disciplina que estuda o emprego de modelos (emuladores,


protótipos, simuladores e estimuladores) para a produção de dados a serem utilizados
como fundamento de decisões técnicas ou gerenciais (TOLKS, 2012).

Modelo pode ser definido como representação de um sistema, fenômeno ou


processo (NEYLAND, 1997), ou como a abstração da realidade, que se aproxima do
verdadeiro comportamento do sistema, mas sempre mais simples que o sistema real
(CHWIF; MEDINA, 2010). Entretanto, alguns autores preferem empregar a definição
do Glossário do Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América: a

185 Conforme dados do Relatório de Progresso do Projeto de Integração de Simuladores da Força


Terrestre 2013, do Comando de Operações Terrestres.

560
representação de toda ou parte das propriedades de um sistema, equipamento, ou
objeto (SOKOLOWSKI; BANKS, 2009).

O termo simulação possui diversos significados, mas no contexto deste trabalho o


que melhor se aplica é o ―método de executar um modelo ao longo do tempo‖
(NEYLAND, 1997; SOKOLOWSKI; BANKS, 2009; TOLKS, 2012). Complementando
esta ideia, Gomes186 (2002) afirma que simulação é um ―termo normalmente
empregado conjuntamente com modelagem. Assim, a simulação é a prática de um
modelo, sendo, portanto, apenas o exercício de abstração da realidade‖.

Nas últimas décadas do século XX, ocorreu uma revolução na tecnologia da


informação a qual impactou diretamente a conduta das operações militares no contexto
mundial (SOKOLOWOSKI; BANKS, 2009). Nesse período, surgiram sofisticados
sistemas de informática, protocolos de comunicação e os programas de computador,
que permitiram o desenvolvimento da simulação. Diversos setores da sociedade
aproveitaram essa revolução tecnológica para evoluírem suas capacidades. No setor
da Defesa, não foi diferente. Nesse sentido, a atividade de simulação empregada para
simular a guerra, ou qualquer outro evento em que as Forças Armadas podem estar
envolvidas num conflito, é chamada de simulação de combate.

O manual norte-americano Training With Simulations187(1998) realiza a divisão da


simulação de combate em três tipos ou modalidades: a viva; a virtual; e a construtiva.

A simulação viva é aquela executada nas condições de campanha, com participação


de pessoas reais, operando sistemas reais (PAGE; SMITH, 1998), tais como

186 O Coronel Mauro Guedes Ferreira Mosqueira Gomes pertence ao quadro de Engenheiros
Militares. Durante muito tempo aplicou-se aos estudos de modelagem e simulação. Foi o oficial de
ligação do Exército Brasileiro no (TRADOC) nos anos de 2010 e 2011. Atualmente, é o Instrutor Chefe
do Curso de Política e Altos Estudos Estratégicos do Exército.

187 Este manual foi um importante marco na sistematização, padronização e difusão dos
conhecimentos sobre simulação de combate. Antes de sua difusão, os assuntos pertinentes só eram
encontrados em fontes especializadas e com abordagens diversas. No documento são esclarecidas
finalidades, objetivos, classificações, procedimentos, métodos de treinamento, entre outras
informações e suas padronizações são seguidas por diversos autores.

561
armamentos, equipamentos, aeronaves, viaturas, dentre outros. Essa modalidade
faz intenso uso de simuladores para avaliar os resultados dos combates
(SOKOLOWSKI; BANKS, 2009).

Esta atividade deve ser realizada no terreno, e conta com apoio de sensores,
dispositivos apontadores laser e outros instrumentos que possibilitem acompanhar o
militar e simular os efeitos dos engajamentos (NEYLAND, 1997). Para facilitar o
entendimento, um exercício de combate entre aeronaves reais, mas que utilizam
algum sistema de simulação para avaliar os engajamentos e danos ao oponente é
um exemplo de simulação viva. Assim, esse é o tipo de simulação que mais se
aproxima da realidade do combate. Por outro lado, também é a que consome maior
quantidade de recursos (SOKOLOWOSKI; BANKS, 2009) e a que possui maiores
riscos (TOLKS, 2012).

A Simulação virtual acontece ―quando tropas ou guarnições reais operam


equipamentos simuladores imitando os sistemas reais‖ (BANKS, 1998). Esta
modalidade substitui sistemas de armas, veículos, aeronaves, e outros equipamentos
cuja operação exija elevado grau de adestramento, ou que envolva riscos e custos
elevados para operar. Sua principal aplicação é no desenvolvimento de técnicas e
habilidades individuais e, em alguns casos, de equipes (NEYLAND, 1997). Como
exemplo, um piloto de helicóptero que realiza um voo num simulador, em um cenário
virtual, está empregando essa modalidade de simulação. Dessa maneira, o piloto
pode treinar sua habilidade individual, antes de operar a máquina real.

Portanto, a simulação virtual tem como objetivo a proficiência técnica, sem a


exposição aos riscos reais. Há grande economia de recursos, pois não ocorrem
desgastes de equipamentos reais, nem consumo de munições e combustíveis. No
Brasil, esse tipo de simulação é o mais empregado em centros de instrução
especializados como o Centro de Instrução de Blindados, em Santa Maria, e o
Centro de Instrução de Aviação do Exército, em Taubaté (ROCHA, 2011).

As simulações construtivas são aquelas que ocorrem integralmente no ambiente de


computadores (TOLKS, 2012). São modelados desde as tropas, incluindo aí a sua

562
aptidão para o combate; o terreno; os efeitos dos armamentos sobre os diversos
tipos de alvos; os movimentos conforme a mobilidade das viaturas e a sua
integração com o terreno; as condições meteorológicas; e a vegetação; chegando-se
mesmo à representação do campo visual de cada elemento.

Após a Primeira Guerra do Golfo, no início da década de 1990, algumas batalhas


foram recriadas em computadores (NEYLAND, 1997; TOLKS, 2012), a fim de serem
combatidas outras vezes, de forma virtual. Assim, lições foram aprendidas, sem os
custos materiais humanos da guerra. Nesse período surgiu o conceito de Distributed
Interactive Simulation (DIS). A DIS é ―qualquer combinação de ambiente de
simulação que são distribuídos por uma rede de computadores e interagem por meio
de protocolos padronizados‖ (NEYLAND, 1997). Esta tecnologia é capaz de
estabelecer enlaces entre carros de combate, aviões, navios e outros simuladores
baseados em diferentes locais, permitindo que um operador combatente interaja
com outro, alvejando e sendo alvejado, tudo com recriações do mundo real.

Em meados da década de 1990, o Departamento de Defesa dos EUA desenvolveu a


188
High Level Architecture (HLA) (TOLKS, 2012; SOKOLOWSKI; BANKS, 2009). Essas
novas tecnologias permitiram a integração entre diferentes simuladores, de forma a
permitir a criação de um campo de batalha sintético ou virtual com um grau suficiente de
realismo para permitir a replicação detalhada do combate, refinando suas técnicas em
um ambiente com muitos estímulos de um combate real (TOLKS, 2012).

O emprego dessas tecnologias foi um dos fatores contribuintes para a significativa


vitória norte-americana em combates recentes por permitir uma melhor visualização
do campo de batalha, redução do tempo de tomada de decisão e otimização dos
modernos sistemas de combate nas operações (SOKOLOWSKI; BANKS, 2009).

188 A Arquitetura de Alto Nível (High Level Architecture) para simulações é uma abrangente
iniciativa do Departamento de Defesa dos Estados Unidos para prover uma arquitetura de programas
de computador para apoiar a interoperabilidade e reutilização de simulações. Permite que
simuladores mais modernos reutilizem modelos de cenários e dados de simulações de outros
simuladores.

563
4 Evolução histórica dos jogos de guerra

A arte de imitar a guerra é tão antiga quanto a própria guerra. Tão logo líderes tribais
concluíram que poderiam ter melhor desempenho nas guerras se tivessem uma
classe de guerreiros treinados, o sistema de preparo adotou o combate simulado
como forma de treinamento.

Os primeiros registros escritos de guerras datam de 3200 A.C na região da


Mesopotâmia. Desde essa época remota já existiam os jogos de estratégia. O jogo
Wei Hai era jogado no Vale do rio Yang-Tsé por volta do ano 3000 A.C e existe até os
dias atuais na versão que se tornou popular em 2300 A.C, como o jogo japonês ―Go‖
(TOLKS, 2012). Na Roma antiga, o Exército romano simulava o combate realizando
treinamentos entre duas forças oponentes em um terreno que procurava ser o mais
parecido possível com o campo de batalha (SOKOLOWSKI; BANKS, 2009).

Um dos mais conhecidos jogos estratégicos, o xadrez foi um aperfeiçoamento árabe


do jogo indiano Chaturanga, que representava o combate da época (século VII) em
um tabuleiro de quatro lados e peças representando soldados a pé, carruagens,
elefantes e cavalaria (TOLKS, 2012). Entretanto, foi na Prússia que surgiram os
primeiros jogos criados com o intuito principal de desenvolverem a capacidade de
raciocínio dos líderes militares. O Konigspiel, criado em 1664, possuía um tabuleiro
no qual as unidades se comportavam de acordo com o terreno considerado (TOLKS,
2012; SOKOLOWOSKI; BANKS, 2009).

Quase um século emeio depois, surgiu o jogo considerado precursor dos jogos de
guerras modernos: o Kriegsspiel, inventado pelo Barão Von Reisswitz em 1811, e
posteriormente, aperfeiçoado pelo seu filho (TOLKS, 2012). O jogo consistia de um
tabuleiro de madeira com a representação de um campo de batalha em miniatura,
numa escala de 1:2373. Peças de madeira representavam as unidades militares. Os
jogadores tomavam as decisões que eram informadas ao juiz, que atualizava o
tabuleiro. Um dado era empregado com a finalidade de representar a
imprevisibilidade do combate. Alguns anos depois, o jogo foi aperfeiçoado para ser
jogado em cartas militares, na escala 1:8000, e foi introduzido como ferramenta de
treinamento do exército prussiano.

564
O grande sucesso da Prússia nas guerras travadas na segunda metade do século
XIX é, em parte, atribuído ao emprego do Kriegsspiel pelos militares prussianos
(SOKOLOWSKI; BANKS, 2009). Além disso, na virada do século, com um grande
número de adaptações, o Kriegsspiel, frequentemente referido como ―xadrez de
guerra‖, foi empregado por alguns dos exércitos da Europa como um método formal
de preparação para a guerra (PERLA, 1996).

Em 1929, foi desenvolvido o Link Trainer, primeiro simulador de voo, com tecnologia
ainda não computadorizada. Esse simulador contribuiu de forma significativa para o
desenvolvimento da aviação ao criar meios de treinar os pilotos, ainda em solo, em
condições bem realísticas e com maior segurança. O Link Trainer trouxe grande
redução de custos além de diminuir o tempo de formação dos pilotos e os acidentes
durante os treinamentos (SOKOLOWSKI; BANKS, 2009).

No entanto, estes jogos não tinham a capacidade e a complexidade de modelar um


evento com a precisão agora observada na modelagem militar, uma mudança que
só ocorreu com a revolução tecnológica. Dessa forma, a grande evolução da
simulação de combate ocorreu a partir do fim da 2ª Guerra Mundial com a criação e
evolução dos computadores (TOLKS, 2012). Assim, simuladores computadorizados
passaram a ser empregados em apoio aos treinamentos militares.

Desde a década de 1950, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da


América passou a alocar recursos e propor sistemas de simulação de combate com
uso de computadores (NEYLAND, 1997). Assim, o desenvolvimento da modelagem
e simulação, bem como dos computadores ganhou grande impulso com o interesse
dos militares.

Em 1956 e 1957 a Marinha norte-americana realizou jogos de guerra na sua escola


e formação com o apoio da Universidade George Washington. No ano seguinte, foi
apresentado o Navy Eletronic Warfare Simulator, considerado o primeiro simulador
eletrônico de guerra. Em 1961, um estudante do MIT criou o jogo Spacewar, no qual
os jogadores pilotavam espaçonaves adversárias utilizando diferentes
computadores. Foi o primeiro jogo interativo da história e o precursor da integração
dos sistemas de simulação de combate (TOLKS, 2012).

565
Mas foi a partir da década de 1970 que a simulação passou a ter forte impacto no
treinamento, desenvolvimento e planejamento de operações militares. A primeira
percepção concreta do valor da simulação de combate ocorreu na guerra do Vietnã.
O desempenho significativamente superior dos pilotos da Marinha norte-americana
em relação aos pilotos da Força Aérea, operando por vezes o mesmo equipamento,
chamou a atenção. A causa era um melhor treinamento pré-combate dos pilotos da
aviação naval da Top Gun Figther Weapons School, baseado em simulação viva
(NEYLAND, 1997).

As lições aprendidas pela Escola Top Gun foram logo aplicadas pelas outras forças,
com a criação de Combat Training Center (Centros de Treinamento de Combate).
Além do adestramento de forças militares, esses centros passaram a realizar
experimentos doutrinários, e a fornecerem dados estatísticos de emprego de tropa
para o desenvolvimento de modelos para simulação construtiva.

Na preparação para a Operação Tempestade no Deserto no Iraque, em 1991, o


Exército norte-americano fez uso das três modalidades de simulação, como
ferramenta de adestramento. A simulação virtual para o adestramento de tripulações
de carros de combate e de aeronaves de ataque, a simulação viva para o
adestramento de tropas no terreno, e a simulação construtiva para refinar o
treinamento de comandantes e estados-maiores em vários níveis (NEYLAND, 1997;
TOLKS, 2012).

A partir do início da década de 1990, o Departamento de Defesa dos Estados


Unidos da América escolheu a modelagem e simulação como uma das tecnologias
críticas para assegurar a superioridade qualitativa de sua Defesa (AMARANTE,
2003). Nesse contexto, foram realizados investimentos em tecnologias de
integração de simuladores, com o objetivo de permitir um adestramento conjunto
mais eficiente. Atualmente, a evolução e o desenvolvimento de tecnologias de
integração de simuladores é uma das principais frentes de pesquisa, na área militar,
das grandes potências (ALLEN, 2011).

566
5 Sistema de simulação de combate da Defesa

À primeira vista, o Brasil carece de um sistema de simulação de combate na área da


Defesa. Entretanto, este trabalho parte do pressuposto que simulação de combate
da Defesa é toda e qualquer atividade que empregue simuladores de combate pelas
Forças Armadas, de forma conjunta ou singular, e com qualquer finalidade.

Da análise de relatórios do MD e da Divisão de Simulação do Comando de


Operações Terrestres (COTER), produzidos entre janeiro de 2010 e abril de 2013,
este trabalho levantou a existência de sessenta e oito simuladores no sistema de
simulação de combate da Defesa, distribuído pelas três Forças. Para que o
entendimento do mapeamento fique facilitado, os simuladores foram divididos de
acordo com as modalidades de simulação: virtual, viva e construtiva.

Os principais simuladores virtuais em utilização pelas Forças Armadas possuem


as seguintes finalidades: treinamento de tiro com diferentes armamentos;
treinamento de pilotos de helicóptero em manobras de voo de combate;
adestramento técnico e tático das guarnições de carro de combate; treinamento
dos motoristas de viaturas leves e pesadas; treinamento e avaliação da defesa
cibernética; adestramento de militares de artilharia desde a observação do alvo
até o desencadeamento do tiro; adestramento de tripulações de unidades navais
e aéreas, no comando e controle de navios, aeronaves e submarinos; formação
de controladores de tráfego aéreo; adestramento dos pilotos das mais diversas
aeronaves de asa fixa; e treinamento de guerra eletrônica.

Na modalidade viva, os principais simuladores empregados são os dispositivos de


simulação de engajamento tático. Estes são emissores laser acoplados nos
armamentos e receptores espalhados nos militares e nos carros de combate, a fim
de permitir os engajamentos. A simulação viva é bastante empregada no Centro de
Avaliação de Adestramento do Exército, no Centro de Instrução de Blindados do
Exército e pelos Fuzileiros Navais da Marinha. Esse tipo de simulação também pode
ser identificada na Força Aérea, nos combates simulados ar-ar, sendo a ferramenta
que permite identificar, durante um treinamento que emprega aeronaves reais, os
engajamentos e danos que ocorreriam numa situação de combate.

567
Na modalidade construtiva, os principais simuladores são: O sistema Tático de
Brigada, o Sistema de Adestramento de Batalhões e Regimentos, o Sistema
Simulador de Guerra Naval e o Marte (Sistema de Jogos de Guerra da Força Aérea).
Esses simuladores realizam o adestramento de estados-maiores nos níveis Unidade
e Grande Unidade das três Forças Armadas, ou seja, no nível tático.

6 Sistema de simulação de combate da Marinha do Brasil (MB

A MB utiliza os Jogos de Guerra desde 1914. Inicialmente, os jogos eram conduzidos


em tabuleiros representativos de uma área marítima restrita e simulavam ações
táticas da Esquadra. A partir de 1964, os "Jogos na Carta" foram introduzidos no
currículo do Curso de Comando e Estado-Maior da Escola de Guerra Naval (EGN),
substituindo-se o tabuleiro por Cartas de Plotagem Estratégica (CORRÊA, 2011).

O Centro de Análise de Sistemas Navais (CASNAV) foi criado em 1975 e uma de


suas principais atribuições é o desenvolvimento de Jogos de Guerra da MB, que
permitem o treinamento dos oficiais da Armada em Operações Navais
convencionais. Desde então, vem formando recursos humanos no Brasil e no
exterior em áreas importantes para a atividade de modelagem e simulação. A
existência de um órgão desse porte permite que a MB possua uma massa crítica de
pesquisadores e especialistas em simulação de combate, com reflexos positivos na
qualidade das atividades de preparo desta força.

Um dos principais simuladores empregados pela MB é o Sistema Simulador de


Guerra Naval (SSGN), utilizado pelo Centro de Jogos de Guerra da EGN. Esse
sistema é resultante de um projeto concebido e desenvolvido pelo CASNAV a partir
de tecnologia autóctone. O objetivo deste sistema é simular os diferentes tipos de
ações de Guerra Naval, envolvendo Forças Navais ou Aeronavais.

Na área tática, a simulação de combate se faz presente no Sistema de Avaliação de


Exercícios. Este sistema é empregado para avaliar e validar o adestramento das
Organizações Militares da Força de Fuzileiros da Esquadra, subordinada ao
Comando de Operações Navais. Nesse sistema, existem partidos oponentes em
simulação viva, entretanto os dados das interações entre as tropas são lançados no

568
computador que emprega um sistema de simulação construtiva para dar os
resultados. Assim, os efeitos dos sistemas de armas são calculados e gerados para
aplicação sobre essas tropas.

Dessa forma, pode-se identificar uma interação entre as modalidades de simulação


de combate viva e construtiva. Embora os simuladores não possuam a mesma
plataforma e não se comuniquem entre si, o lançamento de dados de forma manual,
permite que resultados dos embates entre tropas reais no terreno interfiram
diretamente no planejamento do estado-maior e vice-versa, tornando o exercício
muito mais dinâmico para todos os participantes.

Outra unidade de referência na Marinha é o Centro de Instrução Almirante Sylvio de


Camargo. Este centro é uma instituição de ensino, com o propósito de capacitar
oficiais e praças do Corpo de Fuzileiros Navais para o exercício, na paz e na guerra,
das funções previstas nas Organizações Militares da Marinha, o comando de
pessoal. Com a finalidade de atender esse objetivo, o centro vem investindo em
simulação de combate. Uma das mais importantes ferramentas deste centro é o
Sistema de Jogos Didáticos (SJD).

O SJD foi concebido e projetado pela Marinha no início da década de 90, e


desenvolvido em parceria com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
a fim de ser empregado na simulação de operações dos Fuzileiros Navais. É
constituído por um conjunto integrado de recursos computacionais que substituem
parcialmente a existência de tropas no terreno em um campo de batalha virtual.
Portanto, é uma simulação construtiva educativa com aplicação de modelagem por
efeitos. O programa é empregado em diversos cursos e escolas, com destaque para
o Curso de Aperfeiçoamento de Oficias, o Curso Especial de Guerra anfíbia, a EGN
e o Curso de Especialização de Sargentos.

7 Sistema de simulação de combate do Exército Brasileiro (EB

As missões relacionadas à simulação de Combate, no EB, são gerenciadas pela Divisão


de Simulação de Combate. Esta Divisão está subordinada à 1ª Subchefia do COTER
setor responsável pelo preparo operacional da Força Terrestre. O primeiro exercício de

569
Simulação de Combate computadorizado realizado no EB foi denominado Jogo de
Guerra, aplicado em 1990 na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME),
sendo que somente um número reduzido de alunos teve acesso ao programa. Ainda na
década de 1990, este exercício de simulação de combate passou a ser chamado de
AZUVER, e é aplicado até os dias atuais nos oficiais-alunos da ECEME, da EGN e da
Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR) (ROCHA, 2011).

No início da década de 1990 o EB criou a Seção de Jogos de Guerra, que passou a


centralizar as atividades relacionadas à simulação dentro da instituição. Em 1996, foi
criado o Centro de Avaliação e Adestramento do Exército, organização militar
responsável por avaliar o adestramento para o combate das principais tropas do EB,
até o nível subunidade (GOMES, 2002). Para efetuar esta avaliação de forma
precisa, esta unidade emprega a simulação do tipo viva.

No novo milênio, as atividades de simulação de combate passaram a ser cada vez


mais empregadas, e o sistema do EB passou por importantes transformações. Em
2001, foi criado o Sistema Integrado de Simulação de Combate do Exército, com a
tarefa de acompanhar, gerenciar, aperfeiçoar, padronizar, coordenar, orientar, apoiar
e capacitar todos os ramos de atividades ligadas à Simulação de Combate.

A partir de 2005, os investimentos na área da simulação de combate foram


ampliados. O próprio COTER desenvolveu o Sistema de Adestramento de Batalhões
e Regimentos (SABRE) para o nível unidade. Este sistema é tridimensional, com
modelo mais realista de engajamento, sem custos de licenças, com banco de dados
fácil de ser acessado e comandos simples (ROCHA, 2011).

Recentemente foi adquirido o sistema COMBATER. Este sistema tem por finalidade
realizar o adestramento desde o nível Força Terrestre Componente até o nível
unidade. Para isso, emprega cartas em terceira dimensão, banco de dados
baseados nos quadros de dotação de material e no quadro de cargos, possibilitando
a integração com outros simuladores e o que é mais importante, permitindo a
integração com o Sistema de Comando e Controle utilizado pela Força Terrestre
(MONTEIRO, 2013).

570
Atualmente, o EB realiza transformações importantes na estrutura do sistema de
simulação de combate. Em Brasília, será construído o Centro de Adestramento
Simulado e Pesquisa Operacional, que coordenará as simulações construtivas
executadas pelas grandes unidades da Força Terrestre. Em Santa Maria, Campinas,
Manaus e Rio de Janeiro existe a previsão da criação de Centros de Adestramentos
Simulados de Posto de Comando. Assim, os Centros de Adestramento têm como
principais objetivos fornecer, de forma permanente, a estrutura necessária para a
aplicação da simulação construtiva; permitir constante treinamento e aprimoramento
aos participantes dessa atividade; e, racionalizar o emprego dos meios disponíveis
para a realização dos Exercícios de Simulação de Combate (MONTEIRO, 2013).

8 Sistema de simulação de combate da Força Aérea Brasileira (FAB

Em virtude da forte dependência das aeronaves para cumprir suas atribuições, os


meios de simulação de combate mais empregados pela FAB são os simuladores de
aeronaves, ou simuladores de voo. Esta ferramenta tem por objetivo recriar o voo de
aeronaves de maneira mais realística possível. Destacam-se os simuladores para os
mais diversos tipos de aeronaves empregados pela FAB e o simulador do míssil Igla,
lançado contra alvos aéreos de interesse, na modalidade da simulação virtual.

O Simulador de Operações Militares é utilizado pelo Instituto de Controle do Espaço


Aéreo e seu objetivo é simular o funcionamento de um Centro de Operações
Militares, a fim de viabilizar a formação e adestramento de toda equipe que o
guarnece. A FAB possui também um simulador empregado pelas unidades da
aviação de patrulha, a fim de treinar a operação dos equipamentos de Guerra
Eletrônica e do radar P-95 para emprego eambientes táticos.

A ECEMAR utiliza o Sistema Marte, que tem por objetivo simular os diferentes
tipos de ações da Guerra aérea para seus alunos, no nível de Força Aérea
Componente. Esta escola também participa de exercícios de simulação de
combate construtiva em conjunto com militares das outras Forças Armadas, como
é o caso do exercício AZUVER, realizado anualmente na ECEME, e do exercício
ARARIBÓIA, realizado na EGN.

571
A FAB também tem procurado participar de exercícios que envolvam diversas
nações. O exercício CRUZEX tem como grande objetivo criar um ambiente de
coalizão, no qual várias Forças Aéreas atuam em conjunto. Os países que
participaram da edição 2010 foram: Argentina, Chile, Estados Unidos, França e
Uruguai, além das unidades da FAB. Nessa atividade, a direção do exercício
coordena ataques inimigos, planeja missões inesperadas e ainda introduz no cenário
simulado variáveis de crises reais, como bombas que atingiram alvos civis, protestos
de moradores e até propaganda política inimiga, entre outras ações possíveis.

A simulação de combate também pode ser identificada nos combates simulados ar-
ar, sendo a ferramenta que permite identificar, durante um treinamento que emprega
aeronaves reais, os engajamentos e danos que ocorreriam numa situação de
combate real. De acordo com o Tenente-Brigadeiro do Ar Gilberto Antonio Saboya
Burnier (2010), o então Comandante do Comando Geral de Operações Aéreas, na
entrevista concedida para a revista Aerovisão, ao falar sobre o exercício Red Flag
realizado pela Força Aérea dos EUA:

Todas as missões aéreas são virtuais e servem apenas para gerar os


eventos necessários para o andamento do exercício. Na FAB nós já
praticamos isso em exercícios singulares de menor porte, pois já adquirimos
e possuímos conhecimento e meios computacionais para os voos virtuais
(BURNIER, 2010).

9 Integração do Sistema de simulação de combate da Defesa

Da análise dos relatórios analisados e da bibliografia pesquisada, verifica-se que


cada uma das três Forças Armadas vem realizando investimentos na área de
simulação de combate, procurando otimizar os recursos e aperfeiçoar a qualidade
de seu preparo.

A MB possui simuladores de combate de todas as modalidades e tem iniciado


pesquisas no intuito de procurar integrar parcialmente seus simuladores. Todavia,
até a presente data, na literatura pesquisada, não se identificam tendências de
buscar a integração de seus simuladores com outras Forças Armadas, em prol de
um sistema de simulação de combate conjunto.

572
Da mesma forma, as atividades que empregam simulação de combate passam por
grande evolução na FAB. A instituição já possui a simulação de combate em suas
três vertentes, com prioridade para a modalidade virtual. No entanto, na literatura
pesquisada, não foram identificadas iniciativas da FAB em integrar seus simuladores
de combate com o de outras Forças Armadas, a fim de se buscar um campo de
batalha sintético, onde os diversos vetores da guerra estejam presentes.

Com relação a integração entre simuladores, o EB vem conduzindo o ―Projeto de


Integração de Simuladores da Força Terrestre 2013‖, com o objetivo de buscar a
integração de simuladores virtuais existentes no Centro de Instrução de Aviação do
Exército com os simuladores virtuais do Centro de Instrução de Blindados e com um
simulador da modalidade construtiva. O Projeto vem atingindo seus objetivos,
inclusive com algumas integrações já realizadas em 2013. Além disso, a Diretriz do
Comandante do Exército (BRASIL, 2011) preconiza que a Força Terrestre deve
ampliar o uso de atividades de simulação de combate e fortalecer a
interoperabilidade com as demais Forças Singulares, principalmente em ações
conjuntas coordenadas pelo MD.

Entretanto, conforme se observou na pesquisa realizada, as atividades de preparo


conjunto das Forças Armadas praticamente não fazem uso das ferramentas da
simulação de combate. A única exceção de um exercício apoiado em simulação de
combate, que envolva as três Forças Armadas, é o AZUVER, realizado na ECEME.

Nos últimos anos, o MD criou grupos de trabalhos, com participação de militares de


todas as Forças, a fimde realizar levantamento de possibilidades de integração,
cooperação, interoperabilidade, desenvolvimento e aquisição de simuladores. Uma
das principais recomendações levantadas é a análise de viabilidade de integração
de simuladores entre os diferentes centros de adestramento das Forças.

Nesse sentido, a portaria do Ministro da Defesa, publicada no Diário Oficial da União


em 24 de junho de 2013 determina que: o uso de simuladores deve ser ampliado e
integrado no preparo das Forças Armadas para aumentar as suas capacidades

573
operacionais, de adestramento e o incremento da interoperabilidade; e os
simuladores que venham a ser obtidos (desenvolvidos ou comprados) deverão
utilizar arquitetura High Level Architecturee atender às normas do Institute of
Electrical and Electronic Engineers 1516.X. Assim, a adoção desta tecnologia como
padrão é um passo fundamental no processo de integração dos simuladores do
Sistema de simulação de combate da Defesa.

10 Conclusão

A guerra é um esforço de equipe. Emprego conjunto exige adestramento conjunto


nos níveis operacional e tático. É óbvio que cada força singular deve manter suas
qualificações por meio de planejamento, adestramento e modernização. Nem todo
adestramento precisa ser conjunto, principalmente nas fases iniciais. Entretanto, o
emprego conjunto determina maiores qualificações para a realização das operações,
e a não realização de um preparo conjunto adequado se refletirá em dificuldades
diversas no momento da execução.

A concepção do emprego conjunto exige grande integração entre as Forças


Armadas, para que as missões possam ser cumpridas com sucesso. No entanto, o
que se verifica é que o atual sistema de simulação de combate da Defesa é
descentralizado nos subsistemas de simulação de combate das Forças Armadas, as
quais vêm priorizando o adestramento de suas capacidades singulares, em
detrimento da capacidade conjunta.

A não existência de uma política de aplicação centralizada da simulação de


combate, no âmbito da Defesa, resulta na realização dos treinamentos conjuntos
apenasem ocasiões pontuais, da mesma forma que cada Força singular emprega
seus órgãos específicos de pesquisa para desenvolver e operacionalizar os seus
próprios subsistemas de simulação, ou realiza as aquisições para uso próprio, sem
necessariamente um planejamento de interoperabilidade entre as forças.

Finalmente, a criação de grupos de trabalho do MD para o estudo do assunto reflete


o aumento da prioridade da simulação de combate como ferramenta de preparo na
área da Defesa. Nesse sentido, é de fundamental importância aidentificação de
necessidades semelhantes entre a MB, o EB e a FAB, a fim de que tanto o

574
estabelecimento dos requisitos operacionais, quanto as aquisições, sejam realizadas
de forma conjunta, com reflexos significativos nos menores custos e maior
interoperabilidade entre os subsistemas.

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576
CENARIZAÇÃO: A FERRAMENTA ESSENCIAL PARA UMA ESTRATÉGIA
EFETIVA

Rudibert Kilian Júnior189

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo evidencia a instrumentalidade da ferramenta de construção de


cenários na geração de uma estratégia efetiva, isto é, que na interrelação meios-fins
seja eficaz e eficiente. O planejamento estratégico tradicional trabalha com uma
imagem de futuro estática no tempo, pois trabalha com um só cenário: o padrão,
podendo ser um que apenas extrapola as tendências ou aquele que envolve o futuro
desejado pela organização, sem considerar os aspectos da trajetória temporal futura
e as incertezas nela contidas. Logo, na dialética das inteligências, a qual permeia
qualquer estratégia, aresultante é totalmente reativa e a diferença entre a estratégia
deliberada e a estratégia realizada constitui um grande hiato.

O planejamento estratégico baseado em cenários surge para diminuir essa lacuna, pois
lida bem com problemas não estruturados onde a incerteza, a decorrente complexidade
e as mudanças são fatores constantes e, cada vez mais, intensos e acelerados.

Os cenários nada mais são do que futuros alternativos possíveis derivados de


combinações de hipóteses plausíveis e consistentes baseadas nas configurações
que podem ser apresentadas pelas incertezas críticas no tempo do porvir.

Sua construção requer o compartilhamento simultâneo da razão e a intuição, tal qual


o funcionamento dos dois hemisférios do cérebro.

A ―cenarização‖ responde à pergunta ―O que pode acontecer no futuro?‖. A


estratégia deve oferecer respostas as seguintes indagações: ―Que posso fazer?‖,
―Que vou fazer?‖, ―Como vou fazê-lo?‖.

Em tempos de incerteza e mudanças constantes, ―ver‖ antes permite maior


competitividade e favorece um comportamento ―pró-ativo‖ do ente considerado pela

189
Escola de Guerra Naval

577
capacidade de antecipação dos eventos futuros. Além disso, oferece a possibilidade
de moldá-los a seu favor.

Inicialmente será balizado o construto teórico maior, onde são estabelecidos os


principais conceitos adotados que circunscrevem e delimitam o objeto de estudo. A
tessitura conceitual resultante intenta esclarecer como a política e a estratégia se
relacionam, definindo se há uma hierarquia entre tais categorias.

Em seguida, buscar-se-á evidenciar o construto teórico atinente propriamente


aos cenários.

Por fim, estabeleceu-se uma síntese do marco teórico da construção de cenários,


cujo intento é evidenciar que para construção de um bom conhecimento sobre o
futuro deve-se aliar a razão e a intuição, esta última valorizada pela criatividade.

Na conclusão serão enfatizadas as idéias principais do trabalho; enumeradas as


conclusões propriamente ditas; e apresentadas sugestões para serem examinadas.

2 ESTRUTURAÇÃO DO CONSTRUTO TEÓRICO MAIOR

Nesta parte buscou-se estabelecer a organização da estrutura informacional sobre o


assunto de modo a construir o arcabouço dos conceitos adotados. Tais conceitos
circunscrevem o construto teórico necessário para a ―cenarização‖.

3 POLÍTICA

O termo é derivado do adjetivo originado de pólis (politikós), que significa tudo o que
se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo
sociável e social (BOBBIO, 1998).

O conceito de Política, entendida como forma de atividade ou de práxis humana,


está estreitamente ligado ao de poder. Logo, pode-se dizer que o poder é
instrumento da política para alcançar um fim. Os fins que se pretendem alcançar
pela ação dos políticos são aqueles que, em cada situação, são considerados
prioritários para o(s) grupo(s) (ou para a classe nele dominante). Isto quer dizer que

578
a Política não tem fins perpetuamente estabelecidos e, muito menos, um que
englobe a todos e que possa ser considerado como o seu verdadeiro objetivo: os
fins da Política são tantos quantos forem as metas que um grupo organizado se
propuser, de acordo com os tempos e circunstâncias. O fim na Política tende a ser o
bem comum (BOBBIO, 1998).

O conceito teórico de política, que orienta o presente trabalho, ajusta-se ao conceito


de um sistema no qual todos os grupos ativos e legítimos da população podem se
fazer ouvir em algum estágio crucial do processo de tomada de decisões como
explicitado por Robert Dahl ao conceituar ―poliarquia‖:

[...] as poliarquias podem ser pensadas então como regimes relativamente


(mas incompletamente) democratizados, ou em outros termos, as
poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e
liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à
contestação pública. (DAHL, 1988, p. 31)

Assim, adotou-se a premissa que cabe à política estabelecer ou a reajustar os ―fins‖


da estratégia. Neste comportamento está implícito que a política deve agir como
procuradora de todos os grupos que integram a sociedade.

A formulação de uma estratégia institucional demanda o reconhecimento e


sistematização das aspirações da ordem coletiva para se chegar a um ou mais
resultados (fim e objetivo político) determinado pela política.

A estratégia ao vincular-se à política adquire lógica e coerência e obtém


legitimidade. Apartada dos fins selecionados pela política, a estratégia não existe.

4 ESTRATÉGIA

A etimologia do termo estratégia tem sua origem na palavra grega stratos, cujo
significado é ―o exército que acampa‖. Stratos associado aagein, cuja acepção é
―conduzir adiante, avançar‖ sugere que estratégia é a arte de movimentar os
exércitos, o que permite inferir que a estratégia não é estática, mas dinâmica, ligada
ao movimento (COUTAU-BÉGARIE, 2006, p. 43).

579
Stratos associado aago (comandar)gerastrategos que significa o general, aquele que
comanda o exército que acampa ou, em uma interpretação mais holística, aquele
que inspira.

Na obra ―A Arte da Guerra‖ de Sun Tzu (2004) é explicitado que as manobras


estratégicas significam escolher os caminhos mais vantajosos.

Desde os tempos de Maquiavel até o século XVIII, os escritos utilizaram o termo


relacionado à "estratagema", que significa um ardil para conseguir uma vantagem
através da surpresa (OWENS apudCOUTAU-BÉGARIE, 2006).

Foram os grandes intérpretes da arte da guerra napoleônica, o Barão Antoine Henri


Jomini e Carl von Clausewitz, que estabeleceram as bases para os estudos da
estratégia ao dividir a arte da guerra na teoria do "uso dos engajamentos 190 para o
fim da guerra" (estratégia) e do "uso das forças armadas no engajamento"
(tática)(CLAUSEWITZ. 1976, p. 128).

Estratégia é o uso dos engajamentos para o propósito da guerra. O estrategista,


portanto, deve definir um fim (objetivo) para toda a parte operacional da guerra que
estará em sintonia com seu propósito. Em outras palavras, o estrategista elaborará o
plano da guerra, e o fim determinará a série de ações dirigidas a consegui-lo
(CLAUSEWITZ. 1976, p.77).

Enquanto Clausewitz, Jomini e seus sucessores limitaram o uso do termo


"estratégia" à aplicação das forças militares para cumprir os fins da política, o
vocábulo começou a ser utilizado cada vez mais em um sentido mais amplo a partir
da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Na Primeira Guerra Mundial as esperanças de que seria uma guerra breve foram
frustradas por operações militares que se eternizaram. A mobilização econômica 191
tornou-se uma das preocupações primordiais dos beligerantes, assim como a
propaganda, as quais foram organizadas de maneira sistemática. Esta evolução

190
O engajamento é uma subdivisão do combate e consiste em um único ato isolado, completo em si mesmo,
podendo ser entendido como equivalente a uma batalha.
191
Na I Guerra Mundial, as principais nações chegaram a gastar quase 50% de seus PIB no conflito (BLAINEY,
2008).

580
favoreceu o reconhecimento das dimensões não-militares da estratégia no período
entre as duas guerras (COUTAU-BÉGARIE, 2006, p. 51-52).

Depois da Segunda Guerra Mundial, assiste-se a uma última evolução que vai fazer
com que a estratégia saia da esfera estatal e bélica, passando a ser aplicada a
qualquer atividade social.

Na busca da essência da atividade estratégica, Coutau-Bégarie, utilizando-se da


definição de estratégia de Beaufre, em sua obra Introdução à Estratégia (1963),
apregoa que ―Estratégia é a dialética das inteligências, em um meio conflituoso,
baseada na utilização ou na ameaça da força para fins políticos‖ (BEAUFRE apud
COTAU_BÉRGARIE, 2006, p. 54). Reis (2007, p. 3) concorda com a assertiva e
reforça o argumento ao afirmar ―[...] a estratégia está ligada à dinâmica do mundo
real e, portanto, pressupõe a ação da inteligência‖.

4.1 A estratégia militar

A política cria e dirige a guerra. A atividade que se esforça diretamente para atingir
as metas políticas, seja na paz ou na guerra, é a estratégia (LIDDEL HART, 1967).

No mais alto nível, o domínio da estratégia nacional envolve a aplicação e a


coordenação de todos os integrantes do Poder Nacional - econômico, diplomático,
psicológico, tecnológico e militar. A estratégia militar é a aplicação ou a ameaça do
uso da força militar para impor o que a política prescreve. A estratégia militar deve
ser subordinada à estratégia nacional e coordenada com o uso dos demais
elementos do Poder Nacional (USA, 1997).

Primeiramente, a estratégia traduz os propósitos políticos em termos militares pelo


estabelecimento de metas ou objetivos militares-estratégicos. Em segundo lugar, a
estratégia provê os recursos, tanto tangíveis, como material e pessoal, quanto
intangíveis como apoio político e popular para as operações militares. Por último a
estratégia sendo influenciada pelas preocupações políticas e sociais, estabelece
condições para a conduta nas operações militares192 (USA, 1997, p. 10-12).

4.2 A estratégia nas organizações

192
Nada mais são do que as “Regras de Engajamento” (ROE), as quais preconizam o que pode e o que não pode
ser feito por meio das atividades militares.

581
Diferentemente da vitória apregoada como fim na estratégia militar, a estratégia
empresarial tem como objetivo/fim o lucro, a sobrevivência ou uma fatia do mercado.
O conflito no ambiente empresarial traduz-se em competição ou concorrência, sem a
manifestação da força ou violência.

No entanto, as empresas se apropriaram de vários termos militares, fruto da


configuração altamente competitiva em uma parcela do ambiente empresarial –
―aliar-se‖, ―causar danos‖, ―ocupar espaços‖ e ―conquistar posições inimigas‖
(MOTTA, 1997).

O conceito de estratégia não possui, na literatura gerencial e empresarial, nenhuma


definição universalmente aceita. Logo, o termo pode ser considerado polissêmico.

Da análise dos conceitos emergem três aspectos importantes. Primeiro, a ambiência


da estratégia pressupõe a dialética das inteligências. A busca do conhecimento de si
e do ambiente é fundamental para estabelecer os caminhos e formas mais efetivas
para priorizar e apropriar os meios na busca dos fins. Segundo, a estratégia diz
respeito ao tempo futuro e, portanto, tem que lidar com incertezas. Por último, a
estratégia é um conjunto de processos integrados e coerentes que tratam da
definição dos objetivos, dos meios e das formas de atingi-los.

5 PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO

A sabedoria é a habilidade de ver as conseqüências de longo prazo das ações


presentes, a disposição de sacrificar ganhos imediatos por benefícios de longo
prazo, e controlar o que for passível de tal ação. Logo, a essência da sabedoria é a
preocupação com o futuro; o homem sábio tenta controlá-lo. O planejamento,
instrumento utilizado pelos sábios, é a concepção de um futuro desejado e as
formas para torná-lo real (ACKOFF, 1970).

A estratégia é animada pelo processo denominado de planejamento estratégico, o


qual possui três fases. Em uma primeira fase, exploratória, identificada como
―pensamento‖ ou “reflexão estratégica”, deve prevalecer o pensamento divergente,

582
a intuição e a criatividade de modo a permitir uma perspectiva integrada e maior
amplitude de opções ao processo decisório.

O produto desta fase é o verdadeiro conteúdo da estratégia decorrente do


contexto da descoberta como um resultado de um sub-processo que reúne a
heurística e a ―axiologia‖, somando descoberta com valores. Além do estudo do
presente e do passado, é nesta fase que a ferramenta de cenários se enquadra,
agregando valor pela ampliação do leque de opções em relação aos futuros
alternativos plausíveis e facilitando a emergência de uma visão aderente à
realidade, sem que se enverede pela utopia.

Nesta fase também acontece a apreensão e a aprendizagem, sejapelo nascedouro e


debate de idéias e pela expansão da base de conhecimentos. Nela tende a emergir
o conteúdo da estratégia.

Em uma segunda fase, intitulada de “formulação estratégica”, desenvolve-se o


processo decisório e o conjunto de decisões estratégicas decorrente é
operacionalizadosob a forma de planos, programas e ações. Os planos nada
mais representam que o ponto culminante do processo decisório, a
operacionalização das decisões, servindo como um referencial para a ação. Os
programas e ações envolvem o detalhamento da apropriação e priorização dos
recursos na busca dos objetivos.

Nesta segunda fase, as idéias e conhecimentos que surgiram na primeira fase


devem ser compilados, ordenados e checados por listas de verificação de modo a
sistematizar o conhecimento adquirido. O conteúdo é processado e são articuladas
as ações derivadas da tomada de decisão.

Na terceira fase, denominada de “controle estratégico”, trabalha-se com o controle


da ação planejada, de modo a se adaptar às condições cambiantes do meio
ambiente, por meio de indicadores de futuro ou ―signposts‖. Aqui a emergência de
novas ações estratégicas pode acontecer decorrente da mudança de situação. Só
há mudança de estratégia se as descontinuidades caracterizarem uma ruptura, uma
quebra de paradigmas.

583
5.1 Inconsistência do Planejamento Estratégico tradicional

O planejamento estratégico tradicional utilizou a ferramenta de extrapolação do


passado e, mais recentemente, tem utilizado, na maioria dos métodos, a matriz
SWOT193 para a análise do ambiente. Esta matriz é uma técnica de análise do
ambiente baseada na situação corrente e em projeções de futuro, onde as
capacidades e recursos críticos da empresa (fatores críticos de sucesso) são
identificados, por meio de suas forças e fraquezas, no ambiente interno, e as
ameaças e oportunidades relativas ao ambiente externo.

No planejamento estratégico tradicional, anteriormente descrito, as decisões,


embora focadas no futuro, são tomadas na análise do passado e do presente.
Como não há fatos futuros – somente fatos podem ser reduzidos a dados – a
autoridade do passado é dominante. Idéias sobre o futuro derivadas do passado e
presente não levam em consideração o que pode acontecer, mas somente o que
aconteceu e o que está acontecendo, caracterizando a extrapolação linear do
passado e presente.

A estratégia resultante dos processos tradicionais mostra-se vulnerável às


mudanças rápidas e imprevisíveis do meio-ambiente, com as organizações
simplesmente despreparadas para lidar com a mudança.

6 CENÁRIOS

Dois acontecimentos mudaram a possibilidade do homem perante o futuro:

- o comentário de Leibnitz ao cientista e matemático suíço Jacob Bernouilli


de que a natureza estabeleceu padrões que se originam da repetição de eventos em
sua trajetória temporal; e

- a teoria das probabilidades de Pascal e Fermat.

Ambas as idéias conjugadas transformaram, o que era considerado uma aposta no


acaso, em um poderoso instrumento de organização, interpretação e aplicação de

193
O acróstico da língua inglesa: Strenght (Força) – Weakness (Fraqueza) – Opportunity (Oportunidade) –
Threat (Ameaça).

584
informações. Assim, emergiram as técnicas quantitativas de gerenciamento de risco
(BERNSTEIN, 1997).

De acordo com Bernstein, o domínio do risco foi uma idéia revolucionária que
permitiu aos homens pensar de forma diferente sobre o futuro. Até os homens
descobrirem este marco divisório, o futuro era um espelho do passado, ou o domínio
obscuro dos oráculos e adivinhos que detinham o monopólio sobre o conhecimento
dos eventos a ocorrer. A partir de então, os homens deixam de ter uma postura
passiva em relação ao futuro.

Por conta disso, o futuro se constituiu na própria essência do planejamento e das


escolhas coletivas da sociedade ou das organizações (BUARQUE, 2003).

Godet afirma que, em relação ao futuro, os homens e as organizações podem


escolher entre quatro atitudes: o ―passivo‖, que sofre a mudança (o avestruz); o ―que
reage‖, que aguarda os acontecimentos para tomar alguma ação (o bombeiro); o
―pré-ativo‖, que se prepara para as mudanças previsíveis porque sabe que a
reparação é mais cara que a prevenção (o segurador); e, enfim, o ―pró-ativo‖, que
atua no sentido de provocar as mudanças desejadas (o conspirador) (GODET,
1993). Ao utilizar-se os cenários, as duas últimas posturas são privilegiadas.

7 O FUTURO

A única certeza sobre o futuro é que ele é desconhecido. O tempo do porvir pode ser
imaginado, mas não conhecido com certeza (VALDÉS apud ÓRTEGON, 2006).

No entanto, o futuro emerge do presente e do passado e há informações fragmentadas


e ruídos de informação que permitem uma dedicada investigação para estreitar o cone
de incertezas (SPIES; RATCLIFFE apud VAN DER LAAN, 2008, p. 22).

Os fundamentos para indicar os futuros vêm dos rastros do passado e dos dados
oriundos do comportamento do presente, assim como da consulta das imagens
mentais ou representações dos atores sociais acerca do que pode acontecer. O

585
futuro surge do movimento permanente, da interação de continuidades (tendências e
fatos portadores de futuro) e descontinuidades (fatores de ruptura e crises) na
História (ÓRTEGON, 2006, p. 152).

O futuro entendido como processo histórico encadeado (passado + presente +


futuro) é considerado uma construção social. Logo, é válida a crença de que é
factível conhecer futuros alternativos para selecionar o melhor e construí -lo
estrategicamente.

8 A INCERTEZA

A incerteza é um estado de dúvida. Ela descreve uma relação indeterminada entre o


ente considerado e o seu entorno. Existe incerteza quando não existe uma idéia
definida da linha de ação a ser adotada em uma situação que parece obscura, não
familiar, conflitante ou confusa. A mera existência da incerteza pressupõe a
necessidade de formular julgamentos e um processo decisório para solucionar este
estado (CHOI, 1993).

A teoria da decisão racional supõe que para analisar situações é necessário


simplificar a realidade, isto é, visualizá-la e representá-la por meio de um modelo.
Entretanto, um problema real possui muitas variáveis, restrições, atores; e os
comportamentos dessas variáveis, atores ou restrições são imprevisíveis, muitas
vezes impossíveis de modelar ou medir. Sem dúvida, as conseqüências futuras de
uma decisão são raramente determinísticas, isto é, previsíveis com total certeza
(VELEZ apud ÓRTEGON, 2006).

Nas condições dinâmicas, influenciar o futuro não é somente tomar decisões mais
rápidas. O que se busca é a habilidade de reduzir a incerteza e minimizar os
impactos sobre o futuro (CHOI, 1993).

A incerteza se manifesta pelas mudanças que ocorrem no ambiente, pois os


acontecimentos, os eventos do dia a dia, nada mais são do que manifestações do
que está variando no ambiente.

586
9 A MUDANÇA

Em uma escala global, parece haver um acordo compartilhado por todos que a
sociedade está experimentando um período de mudanças sem precedentes. Há
maior simultaneidade de ocorrências, interpenetração mais acelerada e
realimentação incrementada de uma série de mudanças sobre as outras (MCHALE,
1974, p. 13).

A mudança pode ser caracterizada como algo que:

- altera alguma coisa ao longo do tempo;

- tem uma direção, ritmo de alteração e trajetória;

- é causada por alguma coisa;

- pode gerar deslocamentos e resultar no desenvolvimento de algo novo;

- pode ter impactos positivos e negativos no curto prazo;

- possui conseqüências no longo prazo;

- apresenta problemas, ameaças e oportunidades;

- é frequentemente progressiva;

- a quantidade de mudanças acelera na medida em que a base de


conhecimentos da sociedade avança; e

- possui um caminho voltado para o futuro e pode ser identificada e


pesquisada (JOSEPH, 1994, p.1).

O comportamento ―reativo‖ pode não ser mais suficiente; a antecipação das


mudanças tornou-se crítica à sobrevivência humana. Isto não é verdade apenas
para os indivíduos, mas também para as instituições. Os modernos decisores e
gerentes devem preparar suas organizações para o trauma da mudança sem
precedentes (JOSEPH, 1994).

587
10 A ORIGEM DO TERMO “CENÁRIO” E SUAS DEFINIÇÕES

O termo cenário foi atribuído às estórias escritas por pessoas supostamente vivendo
no futuro, visando a técnica de ―pensamento do futuro‖ 194 desenvolvida por Hermann
Kahn, funcionário da RAND Corporation195, produzidas por meio de detalhada
análise e imaginação. Coube ao escritor Leo Rosten dar o nome de ―cenário‖ a
essas estórias, baseado na terminologia de Hollywood, tendo em vista que, à época,
o termo já estava em desuso, sendo substituído por ―roteiro‖. Hermann Kahn adotou
o termo porque ele gostou da ênfase dada à criação de uma estória ou mito e não
tanto na previsão de fatos (RINGLAND, 2006, p. 13-14).

Hermann Khan, assevera o seguinte sobre cenários:

[...] Cenários são seqüências hipotéticas de eventos construídas com o


propósito de focar a atenção nos processos causais e nos pontos de
decisão. Eles respondem a dois tipos de questão: (1) Precisamente como
uma situação hipotética pode evoluir passo a passo? e (2) Que alternativas
existem, para cada ator, a cada passo, para prevenir, desviar ou facilitar o
processo. Os cenários, com seus futuros alternativos, servem para o
estabelecimento e discussão de um critério para a comparação sistemática
das várias alternativas políticas ou para a análise e exame de problemas
correntes. Eles também são de interesse ao revelar hipóteses e contextos
explícitos em qualquer análise de direções e destinos. Com uma série de
futuros alternativos e cenários, fica fácil visualizar o que pode ser facilitado
ou deve ser evitado, e também para se ter uma perspectiva útil nas
decisões a serem tomadas [...] (KHAN, 1967, p. 6).

Como afirma Buarque (2003), existe um grande consenso em torno dos conceitos e
das metodologias para a elaboração de cenários, o que pode ser constatado na
tabela a seguir.

194
Do inglês “future-now” thinking.
195
Primeira instituição norte-americana criada no pós-guerra para realizarpesquisas objetivas e de alta qualidade
sobre segurança nacionaldecorrente do desejo inicial dos líderes da recém-criada Força Aérea Norte-Americana
de elaborar programas e objetivos para o seu novo serviço militar. A fim de assegurar que a instituição de
pesquisa a ser criada não fosse apenas um reflexo do pensamento burocrático, ela foi estabelecida o mais longe
possível de Washington. Para maiores detalhes, ver <www.rand.org>.

588
Tabela 4 - Conceitos diversos de cenários

CENÁRIOS

decisório
processo
incerteza

hipótese

Futuro
Autores Conceito

s
Configurações de imagens futuras condicionadas e
GODET apud fundamentadas em jogos coerentes de hipóteses sobre os
x x
BUARQUE, 2003 prováveis comportamentos das variáveis determinantes do
x
objeto de planejamento.

Uma visão internamente consistente da realidade futura,


PORTER, 1989 baseada em um conjunto de suposições plausíveis sobre x x x
as incertezas importantes que podem influenciar o objeto.

Uma ferramenta para ordenamento das percepções de


SCHWARTZ, 1991 uma pessoa, organização ou instituição acerca dos futuros X x
alternativos nos quais se devem tomar as decisões certas.

SCHOEMAKER, Um método disciplinado para imaginar futuros possíveis,


x x
1995 nos quais decisões organizacionais devem ser tomadas

Aquela parte do planejamento estratégico que se relaciona


RINGLAND, 1998 com as ferramentas e técnicas de gerenciamento das x x
incertezas do futuro.

Constituem um conjunto de futuros razoavelmente


plausíveis, mas estruturalmente diferentes, concebidos por
HEIJDEN, 1996/ meio de um processo de reflexão mais causal do que
x x
2005 probabilístico, usado como meio para a reflexão e a
formulação de estratégias para atuar nos modelos de
futuros.

Fonte: Elaborada pelo autor

11 A INSTRUMENTALIDADE DOS CENÁRIOS

Se o futuro é imprevisível, logo a incerteza é a sua variável crítica. O ser humano


diante de tal estado de coisas busca conjecturar, opinar a fim de antecipar possíveis
realidades para decidir e agir, construindo um futuro melhor para si.

589
Para perscrutar os possíveis futuros, é necessário ampliar e estruturar o
conhecimento de modo a reduzir a incerteza e ter julgamentos bem embasados. Os
julgamentos, formas de pensamento onde se tenta reduzir a incerteza, são mais
bem expressos quando combinados, hipotetizados e encadeados no formato de
eventos futuros.

Esses eventos são, de forma lógica, consistente e plausível, explicitados na forma


de estória. Cada narrativa em forma de estória espaço-temporal expressa uma
lógica dominante, um enredo que a conduz. Cada estória representa um cenário.

Os cenários são um ferramental à disposição dos decisores que permite a expansão


da base de conhecimentos e que lida com a incerteza, instrumentalizando, da
melhor forma, o estado de opinião196 (decorrente do conhecimento) sobre o futuro
(hipóteses e combinações plausíveis e consistentes).

A heurística cognitiva e a teoria das probabilidades contribuem para aperfeiçoar o


julgamento, fortalecendo a razão (THIELE, 2006).

11.1 O rompimento com a concepção tradicional de tempo

Os sinais do mundo exterior são filtrados pelo sistema cognitivo. Os mais


elementares filtros são os sentidos, os quais permitem as pessoas perceberem
somente uma pequena parte da realidade. Mais ainda, os sinais são cognitivamente
filtrados por meio da atenção e senso de relevância. Somente eventos que chamem
à atenção e sejam considerados relevantes irão entrar no raio de vigilância da
consciência197, tornando-se a matéria bruta da qual são construídos os modelos
mentais e que constituem a base para a decisão e ação (HEIJDEN, 2003).

196
O valor da opinião depende da maior ou menor probabilidade das razões que fundamentam a
afirmação (JOLIVET, 2001, p. 63).
197
Neurocientistas afirmam que os nossos olhos absorvem e passam para o cérebro mais de dez
milhões de sinais a cada segundo. Os outros quatro sentidos também contribuem extensivamente.
Mas a nossa mente consciente pode processar tão somente quarenta peças de informação a cada
segundo..isto é uma pequena parte do que se torna disponível para nós. Realmente, é estimado que
para cada um milhão de “bites” percebido pelos sentidos, somente um “bite” de informação entra
no espectro da atenção consciente. (THIELE, 2006, p. 190).

590
Os filtros de relevância possuem várias dimensões198, sendo um deles o fator tempo.
O conceito de tempo cronológico (Kronos)199 medido em dias, horas e segundos –
entendido como algo linear, mensurável, irreversível e predizível – e o conceito
tradicional de espaço – entendido como contigüidade e continuidade – vêem-se
transformados pelas tecnologias que facilitam a comunicação em tempo real.

Assume vigência o tempo vivido (Kairós)200. Graças à tecnologia, a humanidade


pode fazer mais coisas na mesma unidade de tempo, fenômeno conhecido como
aceleração do mundo contemporâneo. O progresso tecnológico rompe com a visão
tradicional do tempo e traz a perspectiva de evolução e mudança para as
sociedades que implica em uma ruptura com a idéia anterior de futuro como mera
continuação do passado. Assume-se, assim, um ambiente turbulento, em mutação
constante, no qual o estudo do futuro é cada vez mais necessário.

11.2 A escolha racional e a racionalidade limitada

O conhecimento é a informação estruturada que tem valor para a organização


(CHIAVENATO, 2000). A informação baseia-se na lapidação de dados interpretados
e contextualizados que passam a ter significado e relevância. Assim, pode-se dizer
que quanto maior o conhecimento, maior a capacidade de decisão ou, por antítese,
quanto menor a incerteza, melhor o aporte para a decisão.

Na teoria da decisão baseada na escolha racional, supõe-se que o decisor age


intencionalmente na busca de seus objetivos, é capaz de eleger e ordenar todas as
alternativas possíveis, possui informações perfeitas sobre o ambiente externo e os

198
Van der Heijden (2003) enumera ainda outros dois filtros de relevância. Um primeiro sendo a
proximidade aos limites do sistema. Ele afirma que nós tendemos a nos interessar mais pelos
acontecimentos cujos impactos são importantes para o nosso bem-estar do que pelos eventos
distantes que parecem não nos dizer respeito. Enfim, um sentido mais imediatista. O segundo filtro
de relevância enumerado é a intensidade do sinal. Sinais fortes são retidos, sinais fracos tendem a
ser facilmente descartados, desconsiderados.
199
O tempo Kronos é o tempo do relógio, um tempo-coisa com delimitações estanques e escalas
numéricas. É o tempo medido, contado, estabelecido por regras estanques.
200
Essa palavra grega refere-se ao personagem mitológico que simboliza o movimento circular,
espiralado, não-linear. Kairós é um tempo não-consensual, vivido e oportuno. Esse tempo pertence
ao ser que se encontra na ação, no movimento de passagem, na mudança, no fluxo.

591
resultados de cada alternativa e realiza a escolha (decisão) baseado no critério da
máxima utilidade esperada e custos mínimos (SIMON, 1965, p. 99-104).

No entanto, o mundo real é distinto do modelo da racionalidade perfeita


(determinístico) apregoado pela escolha racional. No modelo de racionalidade
limitada de Simon (1965), o ―homem econômico‖ da teoria clássica acima
mencionada é substituído pelo ―homem administrativo‖, o qual é limitado no
conhecimento de todas as alternativas e incapaz de estabelecer critérios para
otimizar suas decisões; por isso, procura tomar decisões que atendem aos padrões
mínimos de satisfação e nunca de otimização.

11.3 Heurísticas e modelos mentais

A racionalidade limitada se aplica bem ao lidar com problemas estruturados e


decisões sob certeza. Nas decisões sob risco e incerteza, os seres humanos, dentro
do modelo de racionalidade limitada, tendem a recorrer ao uso de regras
empíricas201 ou de modelos mentais.

De acordo com Senge, modelos mentais são pressupostos profundamente


arraigados, generalizações ou mesmo imagens que influenciam nossa forma de ver
o mundo e agir (SENGE, 2005). Quando grandes grupos utilizam modelos mentais
vastamente compartilhados para definir sua realidade, eles se denominam
paradigmas (SCHOEMAKER; RUSSO, 2002).

Os modelos mentais202 são filtros de percepção que simplificam e guiam a


compreensão de uma realidade complexa. Desta forma, eles tendem a impedir que
as novas descobertas (insights) sejam colocadas em prática porque conflitam com
as imagens internas profundamente arraigadas (SENGE, 2005, p. 201).

201
Denominadas de heurísticas de decisão.
202
Modelos mentais são pressupostos profundamente arraigados, generalizações ou mesmo imagens que
influenciam nossa forma de ver o mundo (SENGE, 2005, p. 42). A essência do raciocínio estaria na habilidade
de testar as hipóteses a partir desses modelos. Logo, ao alargar os modelos, os raciocínios seriam mais bem
elaborados e, portanto, ter-se-iam melhores decisões.

592
Em suma, os modelos mentais utilizam princípios heurísticos para simplificar a
tomada de decisão. Estas heurísticas podem até fazer com que a tomada de
decisão seja mais rápida, mas elas podem incorrer em erros crassos.

11.4 Memórias do Futuro

Estudos de neurobiologia desenvolvidos por Calvin e Ingvar203 revelaram que o


cérebro humano está, a todo o momento, tentando retirar um significado do futuro.
Assim, os seres humanos possuem a habilidade de mentalmente explorar todos os
desdobramentos possíveis do futuro, uma habilidade inata para ensaiar futuros
possíveis. A isso se pode denominar de pré-planejamento, isto é, ensaiar várias
vezes, mentalmente, as seqüências de eventos e ações, a fim de realizar a atividade.

Essa capacidade relatada faz com que as imagens de futuro (virtuais) fiquem
armazenadas no cérebro na forma de planos e ações seqüenciais (memórias 204 do
futuro): se isso acontecer, faça isso; caso contrário faça aquilo outro. Caso uma das
imagens visualizadas aconteça realmente, será mais fácil ter a percepção de seus
sinais, reconhecer a situação e agir de acordo com o que foi então imaginado.
(SCHWARTZ, 2006).

A capacidade acima descrita revela uma forma de alargamento dos modelos mentais
em voga e significa uma aprendizagem. Os mecanismos de memórias (histórias) do
futuro disponíveis para a organização são os cenários. Memórias do futuro são, de certa
forma, casos históricos vistos sob a ótica de uma perspectiva futura. Elas explicam
como o mundo se desdobra em direção a uma situação futura imaginada, por uma trilha
causal de eventos, ligando esta imagem de futuro ao presente conhecido. Ao se colocar
203
Cf. De Geus (1999), o neurobiologista sueco David Ingvar, em artigo de 1985 intitulado“The Memoryofthe
Future” descreveu o trabalho que o cérebro realiza ao lidar com um meio-ambiente complexo para garantir um
melhor preparo individual para os acontecimentos futuros. De acordo com ele, uma parte do cérebro humano
está constantemente ocupada em fazer planos e programas voltados para o futuro, prevendo trilhas temporais
alternativas ou possíveis contingências para enfrentamento. Esta memória do futuro nos ajuda a estabelecer a
correspondência entre a informação recebida e um dos caminhos alternativos temporais armazenados,
percebendo o seu significado e impacto. Ela também permite filtrar qualquer informação irrelevante que não
tenha significado para quaisquer das opções de futuro resultantes (DE GEUS, 1999, p.77). Fica implícito que
uma pessoa ou organização não consegue perceber e discernir os sinais relevantes e ruídos no ambiente se não há
registro daquela experiência em sua memória.
204
Memória é a faculdade de conservar e de evocar os estados de consciência anteriormente experimentados.Esta
definição se aplica propriamente ao que se chama memória sensível, ou memória propriamente dita (JOLIVET,
2001, p. 113).

593
no futuro, as sombras do presente se iluminam; as narrativas futuras, em forma de
histórias, criam ordem no caos (HEIJDEN, 2005, p. 134).

11.7 Conhecimento codificado e conhecimento tácito

O conhecimento pode ser dividido em duas categorias: o codificado e o tácito. O


conhecimento codificado pode ser usado diretamente no processo decisório. Seus
elementos são bem conectados, integrados e compreendidos no contexto: eles
possuem significado.

Entretanto, também existe o conhecimento tácito, o qual não se consegue articular


bem. Esses elementos consistem de observações e experiências isoladas que não
foram devidamente integradas e conectadas com o conhecimento codificado. Elas
parecem intuitivamente importantes, mas são como um quebra-cabeça: não se
consegue ainda entender claramente seu significado.

Para articular o conhecimento tácito, é necessário um agente externo para


confrontar os sinais, ainda não conectados do conhecimento empírico, com a
estrutura de conhecimento existente no grupo mais amplo ou na sociedade.

O conhecimento tácito lida com os sinais fracos do ambiente, aqueles eventos


observáveis que atingem a consciência porque é possível intuir que eles possuem
alguma relevância para a situação enfrentada. A fraqueza dos sinais neste contexto
refere-se à inabilidade de dar significado a eles, em contraste com os sinais fortes,
cujas implicações potenciais são entendidas de forma clara. Quanto mais os
cenários integrarem este tipo de conhecimento de forma consistente e plausível,
maior a capacidade de entendimento holístico da situação (HEIJDEN, 1997).

O processo estratégico é essencialmente criativo. Ele precisa ir além do


conhecimento codificado e deve envolver as ligações das descobertas (insights)
desconexas que até então permaneceram tácitas.

594
11.8 A instrumentalidade dos cenários

Qualquer processo estratégico, seja qual for sua denominação, necessita antecipar
o(s) futuro(s) para tomar as decisões bem baseadas, isto é, geradas a partir de
razões práticas, que lidam com a indeterminação do futuro e que se baseiam na
busca apropriada de dados empíricos relevantes.

A organização deve pensar e estudar o futuro por três razões:

- Primeiramente, por uma razão tautológica, pois seus objetivos e metas são
futuros;

- Em segundo lugar, pelo rompimento entre passado (conhecido) e futuro


(porvir) causado pela aceleração das mudanças estruturais (políticas, econômicas,
sociais e tecnológicas); e

- Por último, pela necessidade de ver antes para aproveitar e induzir as


oportunidades e ocasiões, o que, via de regra, melhora a eficácia da decisão
(MARQUES, 2007).

O uso de cenários fornece o contexto para poder pensar com clareza a respeito da
complexa gama de fatores que afetam qualquer decisão. Fornece uma linguagem
comum para conversar sobre esses fatores, iniciando uma série de histórias do tipo
―e se isso acontecer...‖, com um nome diferente. Então, encorajam-se os
participantes a pensar sobre cada uma delas como se já tivesse acontecido
(SCHWARTZ, 2006, p. 12).

12 CENÁRIOS INESPERADOS OU CENÁRIOS-SURPRESA

Os cenários inesperados são cenários plausíveis com base em hipóteses que


combinam incertezas ou eventos de rara probabilidade de ocorrência e grande
impacto (eventos descontínuos, catalíticos). Podem ser compreendidas como
rupturas, descontinuidades ou incidentes únicos e repentinos que constituem
pontos de inflexão na evolução de uma tendência 205.

205
Uma tendência é válida até que surja uma descontinuidade e ela se rompa.

595
Quanto mais extraordinário ou atípico for o evento 206, mais ele se qualifica como um
cenário-surpresa207 porque ele perturba as expectativas. Este caráter de
inconformidade é bem ilustrado pelo escritor libanês radicado nos EUA,
NassimTaleb, por sua analogia ao ―cisne negro‖, em livro do mesmo nome (TALEB,
2007). Baseado na clássica percepção de que ―todos os cisnes são brancos‖, Taleb
sugere que as pessoas ficam obstruídas em sua visão periférica pelos ―cisnes
negros‖, precisamente porque tal evento vai contra a norma e seus modelos
mentais208. De certa forma, pode-se afirmar que os cenários-surpresas são
semelhantes aos ―cisnes negros‖.

Logo, é necessário trabalhar com o conceito de cenários-surpresa (cisne negro)


imaginando-os por meio do pensamento livre e da desconstrução da percepção da
realidade, empurrando e ampliando os limites do envelope cognitivo. Isto força a
mente a abandonar todas as racionalidades pré-empacotadas e expandir o processo
de modo a envolver todas as oportunidades e ameaças (BOON; PHUA, 2008).

13 SÍNTESE DA TEORIA DE CENÁRIOS

O propósito da construção de cenários é ―ampliar a compreensão sobre o sistema,


identificar os elementos predeterminados e descobrir as conexões entre as várias
forças e eventos que conduzem esse sistema‖ (WACK, 1985), o que
levaria,conseqüentemente, à melhor tomada de decisão.

13.1 A essência

Como os cenários são descrições do futuro com base em jogos coerentes de


hipóteses sobre comportamentos plausíveis e prováveis das incertezas, a
essência da metodologia reside na delimitação e no tratamento dos processos e
dos eventos incertos (BUARQUE, 2003).

206
Como foi o caso da queda do muro de Berlim ou o ataque terrorista às Torres Gêmeas nos EUA.
207
“Wild Card” em inglês.
208
O que aflige é a incerteza incalculável. Em verdade, não há uma ordem eterna, embora seja lícito aceitar
algumas regularidades da natureza e reconhecer que o mundo é cheio de surpresas. Para aprofundar a temática,
ver artigo intitulado “Índice do medo”, de autoria de Eliana Cardoso, no jornal “Valor Econômico”, publicado
em 30 de outubro de 2008.

596
13.2 O segredo

O segredo da metodologia de cenários consiste no reconhecimento e na


classificação dos eventos em graus diferentes de incerteza (HEIJDEN, 1996).

13.3 O ponto central

Seja qual for a abordagem ou o caminho escolhido para a elaboração de cenários, a


organização e o tratamento das incertezas são pontos centrais de todas as
metodologias (BUARQUE, 2003).

13.4 O poder

O poder da metodologia de cenários decorre da habilidade e da capacidade para a


organização lógica (causal) de um grande volume de informações e de dados
relevantes e diferenciados (HEIJDEN, 1996).

13.5 A força do modelo teórico sistematizado

O modelo teórico representa a forma elementar sistematizada e compartilhada pelos


idealizadores da ferramenta209, os quais podem ser caracterizados mais como
pragmáticos do que teóricos. A sistematização do processo é o fator de força no
conteúdo de cientificidade da ferramenta de cenários, apesar das limitações da
teoria para a interpretação dos movimentos futuros alternativos dos sistemas
complexos.

É importante ressaltar o que assinala Buarque:

A construção de cenários não é uma atividade científica. Entretanto, sua


aplicação para a interpretação dos movimentos do presente e do
desempenho futuro permite, assim como a ciência, uma explicação do
passado. Na verdade, o método de cenários é uma tecnologia – com vários
instrumentos e técnicas de organização e sistematização – que se utiliza do

209
Particularmente Michel Godet, Peter Schwartz, Kees Van Der Heijden e Michael Porter.

597
conhecimento científico para lidar com eventos e processos e para construir
tendências lógicas e consistentes (BUARQUE, 2003, p. 22).

No entanto, Kuhn ressalta ―que um bom problema de pesquisa, assim como um bom
quebra-cabeça não é aquele cujo resultado é intrinsecamente importante, mas
aquele dotado de uma solução possível‖ (KUHN, 2007, p. 59), e acrescenta, ―para
ser classificado como quebra-cabeça, não basta a um problema possuir uma
solução assegurada, deve obedecer a regras que limitam tanto a natureza das
soluções aceitáveis como os passos necessários para obtê-las‖ (KUHN, 2007, p.
61). Os cenários se enquadram perfeitamente nesta conformação e, portanto,
podem ser considerados uma atividade científica.

14 CONCLUSÕES E SUGESTÕES

O presente trabalho pautou-se na hipótese de que se a ―cenarização‖ expande a


base de conhecimentos sobre o ambiente, incrementando o aporte para a tomada
de decisões estratégicas, logo a ferramenta utilizada pode ser considerada essencial
para formação de estratégias efetivas.

Para tanto, foi necessária uma abordagem do construto teórico maior, aquele que
circunscreve o contexto dos cenários. Nesta incursão teórica foi possível depreender
as conexões e imbricações das categorias e conceitos de―política‖, ―estratégia‖ e
―planejamento estratégico‖ com o objeto do estudo, a ―cenarização‖.

Logo, chegou-se a uma tessitura conceitual maior, a qual ajudou a expandir e


clarificar o conhecimento sobre o assunto.

Em seguida procurou-se evidenciar alguns postulados básicos, onde ficaram


evidenciados os seguintes pontos:

- o futuro é uma construção social e está por ser feito pela vontade e ação
humana;

- pensar estrategicamente é pensar no futuro, que é permeado por várias


incertezas que se manifestam no ambiente pelas mudanças e tendências;

598
- os cenários lidam com as incertezas e mudanças;

- as incertezase as mudanças podem ser classificadas e estruturadas. O


futuro é função das incertezas mais críticas que se manifestam na forma de
tendências, fatos portadores de futuro (FPF) e rupturas, expressões das mudanças;

- a construção de várias trajetórias futuras consistentes propicia uma melhor


compreensão dos fatores envolvidos e suas correlações, bem como uma visão
antecipada das conseqüências;

- o processo de tomada de decisão do mundo real é sempre limitado em sua


racionalidade;

- nas decisões sob risco e incerteza, os seres humanos, dentro do modelo


de racionalidade limitada, tendem a recorrer ao uso de regras empíricas ou de
modelos mentais;

- os modelos mentais utilizam princípios heurísticos para simplificar a


tomada de decisão e podem ser alargados pela criação de ―memórias do futuro‖;

- os mecanismos de memórias (estórias) do futuro disponíveis para a


organização são os cenários;

- os cenários subvertem o tempo cronológico, permitindo antecipar e testar


realidades futuras (tempo vivido) virtuais distintas do tempo presente, agindo como
um simulador. Ao mesmo tempo, auxiliam na formação de trilhas memorizáveis no
córtex cerebral, que representam as ―memórias do futuro‖;

- a fim de aprender, uma pessoa deve relacionar novas experiências as


suas estruturas cognitivas existentes; e

- os cenários representam um ferramental, à disposição dos responsáveis


pela tomada de decisão, que permite a expansão da base de conhecimentos,
instrumentalizando, da melhor forma, o estado de opinião (decorrente do
conhecimento) sobre o futuro (hipóteses e combinações plausíveis e consistentes). A
heurística cognitiva e a teoria das probabilidades contribuem para aperfeiçoar o
julgamento, fortalecendo a razão.

599
Cabe agora estabelecer conclusões sintéticas e sugestões elaboradas a partir do
presente trabalho. Entre as principais conclusões, enumeram-se as seguintes:

- a ―cenarização‖ ajuda a aguçar o pensamento estratégico, a desenhar


planos para lidar com o inesperado e a manter uma visão maior nos problemas mais
importantes e na direção certa;

- a construção de cenários pode ser considerada uma arte que agrega a


dose de cientificidade possível para conjecturar, opinar com ampla base sobre
realidadesvirtuais contidas em diferentes futuros;e

- o processo de cenários trabalha com o pensamento criativo, sistêmico e


divergente para descrever uma lógica na sucessão de eventos a se desdobrarem no
futuro. Para tanto, se auxilia da causalidade e das probabilidades subjetivas e
condicionadas, para determinação de possíveis mudanças de tendências e eventos
possíveis. Estes, por sua vez, são submetidos, por meio da maiêutica, a peritos que
expressam suas opiniões, auxiliando na busca da verdade. As respostas vão compor
hipóteses plausíveis de trajetórias de futuro que são narradas sob a forma de estórias.

Em relação às sugestões, poder-se-ia apresentar uma síntese recomendando


aadoção do planejamento estratégico baseado em cenários em todos os escalões e
instituições que compõem o Estado brasileiro porque as estratégias decorrentes
seriam melhores. No entanto, de forma a destacar a sinergia que a construção de
cenários proporciona, resolveu-se enumerar as possibilidades abaixo:

- a ferramenta de cenários é uma ótima ferramenta de apoio à decisão em


todas as instâncias decisórias do Estado brasileiro;

- a adoção e sistematização da ferramenta de cenários, no âmbito das


instituições do Estado brasileiro, serviria para alinhar os planejamentos estratégicos das
instituições e organizações, contribuindo para a existência de um verdadeiro ―projeto
nacional‖ integrado, criterioso, coerente, sinérgico e legítimo, hoje inexistente;

- geração de um comportamento de antecipação às transformações em


curso no mundo e no país, diferentemente da reatividade predominante nos dias
atuais;

600
- geração de uma vultosa economia de recursos na apropriação dos meios
para gerar os objetivos e metas de cada instância decisória, além de significar uma
total redefinição das instituições e processos, atualmente em vigência;

- maior facilidade no desenvolvimento de uma rede de monitoramento do


ambiente e várias redes de especialistas interagindo entre si gerando um grande
fluxo de informações e conhecimentos compartilhados; e

- geração de novas percepções e novas descobertas com a decorrente


expansão de conhecimentos e melhores decisões em todas as instâncias,
permitindo a aprendizagem organizacional e uma melhor adaptação da organização
ao seu entorno.

Outros Estados já sistematizaram a ferramenta de cenários na formulação de


estratégias, assim como várias empresas privadas como a Shell, a Petrobrás, o
BNDES, a Vale do Rio Doce e estão tendo sucesso ao lidar com o ambiente
turbulento, complexo e incerto que caracteriza o mundo contemporâneo. O que as
instituições e organizações no âmbito do Estado brasileiro estão esperando para
sistematizar o planejamento por cenários?

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603
Simpósio Temático 09

CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PARA A COOPERAÇÃO E


INTEGRAÇÃO DA AMAZÔNIA

Célio Virgínio Emerenciano210

Rodrigo Fernandes Moore211

1 INTRODUÇÃO

A política externa brasileira tem entre seus objetivos o estreitamento das relações
cooperativas com os demais estados da América do Sul, não apenas em temas
tradicionais como comércio regional, imigração, defesa e segurança. A cooperação
internacional preconizada em termos políticos, por vezes emolduradas em tratados
internacionais, deve ser resultado da integração da mesma temática debatida à
agenda política e jurídica no âmbito interno, ou seja, não há como se avançar na
cooperação internacional sem integrar física, política e juridicamente a agenda
temática no plano interno, como se diz popularmente, sem cuidar da "lição de casa".

As lições demandadas pela Amazônia são múltiplas em todos os sentidos: em


poucas situações o termo "complexo" traduz tão bem um conjunto de elementos tão
interdependentes que não se encontra outro termo senão ..."complexo". Elementos
tão interdependentes quanto a tríade "ciência, tecnologia e inovação". Nesse
encontro de complexidades e interdependências entre rios, florestas e fronteiras,
sobreleva-se na Amazônia a temática da integração: como integrar e, mais
importante ainda, como manter integrado um espaço tão amplo quanto rico? Como
defendê-lo em suas riquezas? Como desenvolvê-lo de modo sustentável? E o que
significa sustentabilidade e defesa na Amazônia? Como se percebe, a importância

210Universidade Católica de Santos

211UNISANTOS

604
da Amazônia, sob qualquer ponto de vista (i.e. geopolítico, jurídico, econômico,
socioambiental) vai além de seus limites geográficos, das questões mais conhecidas
sobre clima e biodiversidade. É um espaço importante de exercício de poder.

Esse espaço é compartilhado por oito países - Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador,
Guiana, Peru, Suriname e Venezuela - tornando a cooperação um exercício político
e jurídico inafastável, como bem exemplificado pelo Tratado de Cooperação
Amazônica e sua Organização. E no plano interno brasileiro?

A Amazônia também é parte de um macrocenário político-estratégico entre os


oceanos Atlântico e Pacífico com o Caribe, justificando projetos de integração
rodoviária, ferroviária e dutoviária do Brasil com estados vizinhos, nomeadamente
Chile, Peru e Venezuela, com objetivo de integrar os modais de transporte e
incrementar o comércio e o desenvolvimento, além de alçar rotas mais curtas e, em
tese, economicamente mais atrativas para mercados no Pacífico e Ásia.
Dadas as características geográficas da Amazônia, a integração da Amazônia se
fará necessariamente a partir das vias aquáticas e hidrovias, tomando como "hubs"
(pontos de ligação e distribuição) cidades ribeirinhas brasileiras como Tabatinga-AM,
na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, a partir das quais a Amazônia se integrará
ao Atlântico (i.e. rios Negro, Branco, Solimões, Amazonas), ao Centro Oeste e
Nordeste do Brasil (i.e. rios Madeira, Purus, Teles Pires, Tapajós, Tocantins,
Araguaia) e ao Sul (i.e. rios Paraguai e Paraná). Esses projetos de
desenvolvimento, demandam, sem prejuízo da soberania e cooperação com os
estados vizinhos, esforços no âmbito interno como investimentos em defesa (nas
Forças Armadas) e segurança pública (policial estadual e federal) e fiscalização de
fronteira (aduana) mais eficiente, não apenas sobre bens e pessoas, mas no
combate ao tráfico de armas e drogas que acabam por afetar todo o país.

Para que o Direito Internacional cumpra uma de seus principais atributos que é a
tornar as ações dos atores que com ele se comprometem, previsíveis, é míster que
haja não somente a cooperação entre si, nas relações Estatais, mas que exista
normatização interna que torne o tratado eficaz a nível interno ou seja dentro de si.
Conflitos de interesses são comuns nas relações sociais e no caso da Amazônia, os
interesses existentes são tão diversos quanto o número de atores que vivem na

605
região ou dela, desde grupos locais a atores de direito internacional, e no caso da
Amazônia como centro de interesses estratégicos tanto locais quanto internacionais,
ao lado da Antártida já partilhada entre as potências, e dos fundos marinhos,
juridicamente ainda nao regulamentados é a única a estar sob soberanias nacionais.

A soberania é atributo inalienável e função do Estado, não devendo este aliená-la


sob a pena de perder um de suas características elementares, portanto
cadainstrumento de compromisso demanda uma série de estudos entre os
contratantes, dentro deste cénário um dos elementos básicos é a cooperação.

A Amazônia sendo a maior floresta tropical do planeta, possuindo um dos maiores


mananciais derecursos naturais existentes, além de possuir tais características que
por si a colocam num roll de maravilhas do mundo que devem ser preservados para
o bem da humanidade, entretanto existe outra característica que é a de ser o canal
de integração tanto interna quanto internacional.

Os países os quais compartilham esta imensa áera, deparam-se com grandes


problemas a respeito de como integrar a região de forma a desenvolver suas
economiaslocais e regionais de maneira com que não se esgotem os recursos para
as futuras gerações, de forma sustentável. Ante a voracidade do mercado
internacional e sua a demanda por insumos, fato recorrente desde os tempos
coloniais,a solução parece estar na estratégia de cooperação e desenvolvimento
feitos em conjunto entre os Estados que a compartilham.

Nesse sentido, a proposta desse artigo é identificar os projetos de integração da


Amazônia, suas principais características e oportunidades, associando-os às
políticas e textos jurídicos que emolduram a cooperação internacional e a integração
da região ao Brasil. O objetivo é identificar se essas últimas são suficientes para
apoiar o desenvolvimento dos primeiros, marcando o papel e a contribuição do
direito e do jurista para o desenvolvimento da Amazônia, especialmente no campo
do direito internacional da cooperação.

Este artigo está organizado primeiramente em torno da análise dos projetos


bilaterais identificados que estão sendo discutidos e colocados em prática pelos
países da região e suas propostas para aintegração territorial, analisaremos

606
brevemente questões culturais e ambientais e seus impactos, uma breve caminhada
pelos projetos nacionais que perifericamente focam o desenvolvimento em plano
interno será necessária.

Em seguida focalizaremos o olhar para uma breve análise no quadro legal para a
integração amazônica, quais os tratados internacionais que a deram base e quais os
regionais, qual foi a contribuição dos primeiros nos últimos.

O TCA devido a sua importância para a região e sendo o mesmo o principal


instrumento de cooperação entre os contratantes merece análise mais minuciosa.
Os temas abrangidos neste tratado em especial, não somente incidem em
desenvolvimento local, mas principalmente regional, além do fato que a
percepção acerca dos temas tratados desde o início dos diálogos tem mudado
desde a sua celebração, se no período inicial das negociações e entendimentos o
foco estava baseado no desenvolvimento, temas como sustentabilidade,
preservação tornaram-se cada vez mais presentes, a participação de grupos
sociais, projetos alternativos, movimentos sócio ambientais contribuiu de forma
positiva para a elaboração tratados bilaterais mais eficazes entre os Estados
amazônicos., incluindo políticas ambientais, econômicas, sociais e infraestruturais
em áreas de transporte rodoviário e hidroviário.

Por fim nas nossas observações conclusivas tentaremos levantar algumas


perspectivas a respeito da contribuição do Direito Internacional da Cooperação para
a Região e a importância do Direito e do jurista para as estratégiasdesenvolvimento
econômico acompanhado de desenvolvimento social.

2 INTEGRAÇÃO DA AMAZÔNIA

Desde os tempos pré-colombianos e pré-cabralinos as trocas comerciais na


região já faziam parte do cotidiano das populações existentes na região do
hemisfério sul da América, tornando possível a conectividade física serra litoral
(BID 2006), fato que permitiu a expansão e o intercâmbio de produtos
originários de áreas e climas diversos que complementavam as necessidades
daquelas civilizações. Passados, longos períodos de colonização extrativista,

607
seguidos por desenvolvimento de repúblicas frágeis perante os grandes centros
desenvolvidos do mundo, a integração do complexo estrutural regional da região
torna a ser o meio para o desenvolvimento mútuo.

As Estratégias de desenvolvimento e Integração da Amazônia, poderiam muito bem


serem consideradas a partir do pronunciamento de Getúlio Vargas em 1940:

As águas do Amazonas são continentais. Antes de chegarem ao oceano,


arrastam só seu leito degelos dos Andes, águas quentes da planície central
e correntes encachoeiradas das serranias do norte. É, portanto, um rio
tipicamente americano, pela extensão de sua bacia hidrográfica e pela
origem das suas nascentes e caudatários, provindos de várias nações
vizinhas. E, assim, obedecendo ao seu próprio signo de confraternização,
aqui poderemos reunir essas nações irmãs para deliberar e assentar as
bases de um convênio em que se ajustem os interesses comuns e se
mostre, mais uma vez como dignificante exemplo, o espírito de
solidariedade que preside a relação dos povos americanos sempre prontos
à cooperação e ao entendimento pacífico (I).

Vargas buscava tornar a política para a região um palco multilateral regional não
qual os Estados amazônicos pudessem dispor de entendimentos mútuos para o
desenvolvimento da região.

Durante o mandato do presidente Dutra em 1948, foi criada a Superintendência de


valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) com a finalidade de promover o
desenvolvimento da produção agropecuária e a integração da região à economia
nacional devido ao isolamento da região, para tanto linhas de crédito foram abertas
para determinados setores produtivos, a infra-estrutura viária viria a ser o principal
gargalo no plano. Durante o Governo de Castelo Branco, a SPVEA foi substituída
pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia ( SUDAM), para dinamizar
a economia amazônica através da supervisão, execução de programas, criação de
incentivos fiscais e financeiros para atrair investimentos nacionais e internacionais
para região. No ano seguinte foi criada a Zona Franca de Manaus, área de livre
comércio com isenção fiscal.

Já sob governo Médici em 1970, foi lançado o Plano de Integração Nacional (PIN),
no qual lançava a campanha para a construção de 15mil quilômetros de rodovias na
região amazônica, sendo que 3.300 pertenceriam a rodovia Transamazônica, com o
objetivo de deslocar a fronteira econômica e agrícola para as margens do rio
Amazonas, integrar a estratégia de ocupação econômica da Amazônia e a estratégia

608
de desenvolvimento do Nordeste, criar as condições para a incorporação à
economia de mercado de amplas faixas de população antes dissolvidas na
economia de subsistência.

O lema utilizado era "integrar para não entregar" e "uma terra sem homens para
homens sem terra".

Nesse planejamento foi definido o Sistema Rodoviário Federal, composto por 5 tipos
de rodovias radiais, longitudinais, transversais, diagonais e de ligação, que juntas
cortariam o Brasil de Norte a Sul, de Leste a Oeste, acessando as áreas mais
remotas e fronteiriças com os nossos vizinhos Amazônicos.

O PIN não chegou a ser consolidado da forma como previsto, condicionalidades,


técnicas geográficas, sociais , contingencionais e principalmente econômicas,
limitaram sua eficácia, os conflitos internos, reflexos de conflitos ideológicos políticos
relacionados à bipolaridade do poder internacional, a carência de estudos sobre os
impactos sociais e ambientais, a crise do petróleo que fez com que os custos de
captação de recursos internacionais se tornassem mais caros, foram alguns dos
ingredientes que limitaram sua eficácia, assim elementos importantíssimos foram
prejudicados ,como o meio ambiente e o social, entretanto o processo deixou frutos
que explorados de forma racional e positiva podem trazer benefícios para o
desenvolvimento da região.

Uma mudança importante foi a econômica, que passou da exclusividade do


extrativismo mineral à industrialização. A consolidação da Zona Franca de Manaus
foi a consolidação de um posto geopolítico de extrema importância,para a região ,
produzindo não só bens de consumo duráveis, mas também produtos com maior
grau de tecnologia como os de telefonia e biotecnologia, participando de forma ativa
na promoção do desenvolvimento econômico regional, também podemos
reconhecer avanços consideráveis em outros aspectos, como o das
telecomunicações pois permitiram articulações desde locais a internacionais.

No Governo Geisel entre 1974 e 1979, o Tratado de Cooperação Amazônica é então


articulado com a participação dos embaixadores do Brasil, Peru, Colômbia,
Suriname, Equador, Guiana e Venezuela, em 1976 a carta do Ministro Azeredo da
Silveira ao Embaixador da Bolívia General Oscar Valda, Com Título

609
―Institucionalização do processo político regional amazônico― com cópia a todos os
citados dizia :

a ação coordenada dos países amazônicos, empreendida no sentido


indicado, longe de acentuar desigualdades entre as diferentes áreas sub-
regionais, tenderá, ao contrário, a intensificação de correntes comerciais, a
complementação econômica, ao aprimoramento das estruturas sociais e,
consequentemente, ao enriquecimento geral (II)

Dizia ainda

entendemos que a solidariedade inerente a um movimento de cooperação


sub-regional sobrepõe as tentativas de ―internacionalização ―da Amazônia o
princípio de sua regionalização, com ênfase na segurança de que a ação
conjunta não signifique, de modo algum, abdicação de parcela da soberania
de cada Estado sobre seus respectivos territórios e recursos naturais, mas,
ao contrário, seja um instrumento para fortalecê-la contra eventuais
propósitos de ingerências externas ( III).

Passados quase 40 anos, verificamos que a Integração territorial da Amazônia


tratava-se de necessidade não somente nacional, mas principalmente regional,
portanto nesses vários processos nos quais as políticas de governo
buscavamdesenvolver infra-estrutura interna que possibilitasse a otimização
comercial e a complementaridade das economias, para o desenvolvimento mútuo.

Durante o Governo de Juscelino Kubitschek, as políticas de desenvolvimento e


integração as regiões do Brasil eram pautadas nas estradas e rodovias, sendo elas o
canal de acesso dos pequenos centros aos grandes centros, dos campos à cidade.

Passados governos, ajustes, crises,exaltações e frustrações, nota-se que a principal


forma de transporte, o caminho, por vocação entre os povos Amazônicos é a Hidrovia.

Segundo a Administração das Hidrovias da Amazônia Ocidental (AHIMOC), a


Amazônia, graças a sua vasta rede hidrográfica, presta-se naturalmente à
construção de hidrovias, em conexão com as demais vias de superfície (ferrovias e
rodovias), bem como o sistema de transporte aéreo. Portanto, novas tecnologias de
transporte devem ser objeto de pesquisa visando o desenvolvimento na região.

Portanto, política de transporte para a região deve ser embasada no eficiente


aproveitamento dessa potencialidade, fazendo da rede hidroviária a espinha dorsal
do sistema integrado de transportes.

610
Segue abaixo quadro do estudo feito pela da Antaq sobre a utilização econômica
das hidrovias brasileiras :

TABELA 1 - BRASIL: VIAS


ECONOMICAMENTE
NAVEGADAS

VIAS ECONOMICAMENTE NAVEGADAS –


Quilometragem %
TOTAL

PARAGUAI 592 3

PARANÁ-TIETÊ 1.495 7

SÃO FRANCISCO 576 3

SOLIMÕES-AMAZONAS 16.797 80

514 2
SUL

982 5
TOCANTINS

20.956 100
TOTAL

Nota-se que que o complexo Solimões-Amazonas possui uma malha navegável de


quase 80% do total das vias nas quais movimenta-se cargas e pessoas, é a
principal hidrovia e de fato o principal tronco viário da região norte-brasileira por
onde que são direcionados produtos aos grandes centros regionais - Belém e
Manaus. Esta hidrovia é dividida em dois ramos. O Solimões, que se estende de
Tabatinga a Manaus, tendo aproximadamente 1600 km e o Amazonas, que vai de
Manaus a Belém, com 1650 km.

Ao coletarmos dados da Administração das Hidrovias da Amazônia Ocidental


(AHIMOC), notamos a importância econômica e estratégica desses caminhos
principaispelos quais a região se integra.

Hidrovia do Rio Madeira, é fundamental via de escoamento para os mercados


consumidores do exterior da produção de soja do Centro Oeste, bem como da
própria região amazônica. A Hidrovia do Madeira com suas 570 milhas ( 1.056 km )

611
navegáveis é de vital importância para o desenvolvimento regional devido sua
posição estratégica.

Hidrovia do Tocantins-Araguaia, é a principal hidrovia e um dos principais troncos


viários do corredor Centro-Norte brasileiro. É uma hidrovia que transporta cargas por
uma região de planalto no sentido norte-sul,apresenta com um imenso potencial
para o escoamento da produção de grãos do Mato Grosso, Goiás, Pará e Tocantins.

Hidrovia do Capim ( Guara-Capim ) A hidrovia Guamá-Capim localizada


inteiramente no Estado do Pará, os principais acessos rodoviários que permitem a
integração da hidrovia com o sistema viário da região são constituídos pelas
rodovias federais BR316 e BR010 e pelas rodovias estaduais PA475, PA451,
PA127, PA252 e PA256.

Hidrovia do Xingu,apresenta condições favoráveis à navegação numa extensão de


298km , entre sua foz e Belo Monte, PA.

A Usina Hidroelétrica Belo Monte está sendo construída no rio Xingu, a altura do
município de Belo Monte próximo a Altamira, ela foi planejada para gerar no pico
cerca de 11 mil MW e como energia firme, média, cerca de 4mil MW. Este é o
arranjo de engenharia possível para Belo Monte gerar energia de forma constante
com baixo impacto socioambiental e com a menor área alagada possível.

Rio Purus, sua extensão navegável é de cerca de 2550 km, desde a sua Foz no
Solimões até a boca do Acre.

Rio Solimões, sua extensão navegável de 1.620km entre os municípios de Manaus e


Tabatinga, já na fronteira com o Perú.

Rio Negro, cuja extensão é de 310km, Principais portos, o Porto de Manaus e o


Terminal de Barcelos, as principais cargas são :Derivados de petróleo, carga geral e
gás (botija).

Rio Acre, com cerca de 200 km de extensão navegável desde a sua foz no rio Purus
até as cidades de Brasiléia, no Brasil e Cojiba, na Bolívia.

612
Hodiernamente,pós redemocratização, ajustados em políticas neoliberais de
comércio, ambientais e sociais, verificamos que o Projeto de Integração da
Amazônia não perdeu o seu foco principal durante essas quase quatro décadas, ao
contrário, os ajustes feitos ao longo deste tempos aos temas o tornaram mais
acessível às comunidades, pois, os projetos atuais são feitos em com estudos mais
acurados no sentido com a participação tanto dos municípios quanto da sociedade
civil em conjunto com as Agências do governo Federal.

Com aConferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,


a Rio-92, novas estratégias de desenvolvimento foram adotadas pautando-me em
novos projetos voltados para a promoção de experiências inovadoras entre
comunidades locais e os órgãos governamentais em áreas de conservação,
produção sustentável e educação ambiental através de técnicas de Manejo Florestal
Sustentável, Manejo dos Recursos Naturais da Várzea, Mobilização e Capacitação
em Prevenção de Incêndios.

A Sudam, remodelada em seus princípios, adequa ao seu objetivo principal que é o


desenvolvimento, a espinha dorsal da sustentabilidade. Assim o papel do
Desenvolvimento sustentável, não envolve somente o Estado, mas também a
sociedade como um todo, através da participação positiva na elaboração de políticas
para a região.

Dentre as iniciativas criadas para a Integração Amazônica na atualidade, podemos


citar ainda sobre a influência da Sudam, o Programa de Integração Intrarregional
(PIIR) promovido com vistas a aumentar as relações econômicas e os fluxos de
transporte, pessoas, capital e informação entre os estados, trabalhando na busca de
parcerias que viabilizem e revelem as potencialidades para a comercialização entre
os Estados da região, o Pro-Amazônia , um destes projetos, promovido pela
Federação das Indústrias da Amazônia em parceria com a Sudam, objetivou o
estudo sobre a logística de transporte intra-amazônia, investigando a necessidade
de rodovias, ferrovias, hidrovias, portos e transporte aéreo.

O Plano mais Brasil, dirigido pelo Ministério do Planejamento, sem seu Plano
Plurianual 2012-2015, dedicou à Sudam a execução de objetivos que visam
fortalecer as instituições científicas e tecnológicas da Amazônia para desconcentrar

613
a produção científica e tecnológica do país, no Macrodesafio de Consolidar a
Ciência, a Tecnologia e a Informação, formular e implementar os marcos legais das
Políticas Nacionais de Desenvolvimento Regional e de Ordenamento Territorial ,
contribuindo para a redução das desigualdades regionais e a ocupação racional do
território,através do fortalecimento da governança do processo de desenvolvimento
regional através da Implementação de infraestrutura logística voltada para inclusão
na cadeia produtiva .

Um dos principais planos para o desenvolvimento é o PAC, nele estão apontadas


diretrizes para os Transportes e Rodovias, tais como a expansão do Sistema
Rodoviário, através da duplicação e acesso aos portos e aeroportos, eliminação de
pontos de estrangulamento em eixos estratégicos, incorporação de novas regiões ao
processo de desenvolvimento e sobretudo a Ampliação do Integração Física e
Regional com os países vizinhos.A Iniciativa para a Integração da Estrutura Sul-
Americana (IIRSA),surge num contexto econômico e político especial, a
Globalização. Em época deste fenômeno universal de abrangência em todas as
formas de interação, desde econômicas, sociais, políticas, institucionais, e
principalmente comerciais, duas formas são possíveis de lidar com ele, resisti-lo
passivamente, ou adotá-lo de forma logística e racional, para lidar com os desafios
do mundo contemporâneo. A IIRSAorienta-se em princípios como o regionalismo
aberto, a Integração, o desenvolvimento econômico, social, ambiental sustentável,
politico-institucional, a convergência normativa, o aumento do valor agregado de
produção além da coordenação público privada.

Com a redução das barreiras e o estímulo entre os países a atividades


dinâmicas,busca romper o isolamento da América do Sul, ele é acima de tudo um
mecanismo de coordenação de ações intergovernamentais dos doze países
sulamericanos, com o objetivo de construir um agenda comum para impulsionar os
projetos de integração de infraestrutura de transportes, energia e comunicações
instituído como foro para o planejamento da infra-estrutura do território sulamericano
com uma visão regional e compartilhada das oportunidades e os obstáculos do sub-
continente (IIRSA 2000-2010).

614
A partir do ano de 2011, a Iniciativa IIRSA se incorporou ao Conselho Sul-americano
de Infraestrutura e Planejamento da Unasul como seu foro técnico para temas
relacionados à planificação da integração física regional sul-americana, inaugurando
uma nova etapa de trabalho.

O caminho para a Integração Física da Amazônia, percorrido até o momento, foi


marcado iniciativas desde as desenvolvimentistas, pautadas na construção de
rodovias, com impactos ambientais e sociais que se refletiram até o momento, até as
atuais nas quais vários foros e açõesque buscam interligar a região de forma
sustentável e coordenada, veremos logo mais como é a moldura legal da
Integração da Amazônia.

3 MOLDURA LEGAL DA INTEGRAÇÃO AMAZÔNICA

Moldura Internacional

Conforme disposição do MRE, atos internacionais, podem ser denominados em:

Tratados, expressão escolhida pela Convenção de Viena sobre o Direito dos


Tratados de 1969, para designar genericamente um acordo internacional, seja ela
bilateral ou multilateral ao qual se deseja atribuir especial relevância política, neste
caso os tratados de paz e amizade como o Tratado da bacia do Prata, o Tratado de
Cooperação Amazônica, o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul.

Convenções, são atos originados de conferências internacionais que versem sobre


assunto de interesse geral , é um tipo de instrumento internacional destinado a
estabelecer normas para o comportamento dos Estados em uma gama cada vez
mais ampla de setores, a convenção sobre as mudanças climáticas é um exemplo.

Acordos, Acordo é expressão de uso livre e de alta incidência na prática


internacional, embora alguns juristas entendam por acordo os atos internacionais
com reduzido número de participantes e importância relativa. No entanto, um dos
mais notórios e importantes tratados multilaterais foi assim denominado: Acordo
Geral de Tarifas e Comércio (GATT).

615
Segue abaixo portanto a base legal internacional que moldura a Integração da
Amazônia, devido à limitação de espaço nesse estudo nos reservamos a citar
apenas algumas as quais consideramos contribuir de forma mais relevante,
notaremos que no sistema Internacional a Onu parece ser a fonte de onde emana o
Direito Internacional. Na Carta doAtlântico – 14/08/1941, primeiro documento
precedente a Organização das Nações Unidas, resultado do encontro do Presidente
dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, com o Primeiro Ministro Britânico
Winston Churcill, em agosto de 1941, aprovada pelos Estadistas e aderida em seus
princípios pelo Brasil em 1943, julgaram conveniente tornar conhecidos certos
princípios comuns da política nacional dos seus respectivos países, nos quais se
baseiam as suas esperanças de conseguir um porvir mais auspicioso para o mundo,
sendo o quinto princípio do que deveria ser promovido, no campo da economia, a
mais ampla colaboração entre todas as nações, com o fim de conseguir, para todos,
melhores condições de trabalho, prosperidade econômica e segurança social.

Um dos principais princípiosda Onu é a manutenção da paz e da segurança


internacionais , porém onde exista seres humanos sofrendo, pela pobreza, pelas
mazelas tanto naturais quanto artificiais que afligem as populações mais carentes,
não há paz, portanto um dos eixos da Onu é a construção de um ambiente
internacional seguro ancorado na cooperação internacional para a manutenção da
paz e o desenvolvimento.

O Ecosoc (Economic and Social Concil) trabalha com a promoção da cooperação


internacional no terreno político e incentivar o desenvolvimento progressivo do
direito internacional e a sua codificação além de ações nos terrenos econômico,
social, cultural, educacional e sanitário e a fim de favorecer o pleno gozo dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção
de raça, sexo, língua ou religião.

A gama de desafios a serem combatidos na Amazônia e para o desenvolvimento da


Amazônia são muitos, entretanto, a construção de um ambiente desenvolvido e
seguro requer queprincípios e objetivos sejam refletidos em ações, portanto a
Integração Amazônica é uma forma de imprimir atitudes amparadas na busca do
desenvolvimento econômico, social e da paz.

616
A Declaração Universal dos direitos Humanos (DUDH) idealizada como norma
comum a ser alcançada por todos os povos e nações, estabelece, a proteção
universal dos direitos humanos, em conjunto com Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
formam a Carta Internacional dos Direitos Humanos, em seu artigo 22 diz, que Todo
o homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à
realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a
organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade,
assim os Estados devem cooperar para si e entre si para o bem estar em geral.

Temos ainda a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento – 1986, adotada


pela Resolução n.º 41/128, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 4 de
dezembro de 1986, que seguindo os propósitos de sua Carta Constitutiva onde
reconhece em seu caput , que o desenvolvimento é um processo econômico,
social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem -
estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação
ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos
benefícios daí resultantes.

Quando pensamos em Amazônia, devido ao imenso manancialde recursos


compartilhado entre oito nações de um lado, e a necessidade ao desenvolvimento
destas mesmas nações, principalmente no âmbito dos direitos dos seus povos a
gozar dos seus direitos fundamentais, como saúde, segurança , educação,
preservação do meio ambiente para as futuras gerações, dentre outros, percorremos
o mesmo caminho da resolução 41/128, que recorda o direito dos povos de exercer,
soberania plena e completa sobre todas as suas riquezas e recursos naturais em
harmonia com os tratados e os direitos humanos, devendo ser esse beneficiário do
desenvolvimento. Para que tal fato ocorra, é imprescindívelque os esforços em nível
internacional para promover e proteger os direitos humanos, portanto é
responsabilidade primária dos Estados a criação de condições nacionais e
internacionais favoráveis para a a realização do direito ao desenvolvimento.

617
Entendendo que o direito humano ao desenvolvimento é um direito inalienável, e
que a oportunidade para o desenvolvimento é prerrogativa tanto das nações quanto
dos indivíduos que as compõem a Assembleia , nessa mesma resolução, proclamou
em seu artigo 2, §2, que os Estados têm o direito e o dever de formular políticas
nacionais adequadas para o desenvolvimento, que visem ao constante
aprimoramento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos, com
base em sua participação ativa, livre e significativa, e no desenvolvimento e na
distribuição equitativa dos benefícios daí resultantes.

Para que este direito se realize é necessário que sejam dirigidos esforços para a
defesa dos seus interesses em comum, pois as relações entre Estados, conforme
notado, no caso da Amazônia possuem alto grau de interdependência partilhando
todos os povos envolvidos dos resultados dos esforços e benefícios da Integração
para o desenvolvimento.

A Declaração de Estocolmo sobre o ambiente humano - 1972 proclamou que, a


proteção e o melhoramento do meio ambiente humano é uma questão fundamental
que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro,
que é um desejo urgente dos povos de todo o mundo e um dever de todos os
governos, que a capacidade de transformar, inventar, descobrir e progredir, pode
levar benefícios de desenvolvimento a todos os povos, entretanto que se tais ações
forem aplicadas errônea e imprudentemente, o mesmo poder pode causar danos
incalculáveis ao ser humano e a seu meio ambiente.

A Convenção quadro das Nações Unidas Sobre o Mudança do Clima , Protocolo de


Quioto, Promulgado pelo Decreto nº 5445 de 12/05/2005, em seu artigo 2 indica a
necessidade de que o desenvolvimento seja sustentável de politicas tais como o
aumento da eficiência energética , o manejo florestal, florestamento e
reflorestamento a fim da redução de emissões de gases estufa.

Conforme o artigo 10, levando em conta as responsabilidades comuns mas


diferenciadas e suas prioridades de desenvolvimento, objetivos e circunstancias
específicos, nacionais e regionais, deve-se formular, quando apropriado e na
medida do possível, programas nacionais e, conforme o caso, regionais adequados,
eficazes em relação aos custos, para melhorar a qualidade dos fatores de emissão,

618
dados de atividade e/ou modelos locais que reflitam as condições socioeconômicas
de cada Estado, além da criação de programas nacionais e, conforme o caso,
regionais, que contenham medidas para mitigar a mudança do clima bem como
medidas para facilitar uma adaptação adequada a mudança do clima. Para a
Integração da Amazônia é importante que medidas sejam tomas de forma articulada,
pois a Integração da Infraestrutura, tem grau de interferência relevante no meio
ambiente.

Nesse sentido a Convenção da Onu sobre a diversidade Biológica em seu artigo 1.


coloca a ênfase no objetivo de as nações devem dirigir a ações para a conservação
da diversidade biológica, e a utilização sustentável de seus componentes e a
repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos
genéticos, sem esquecer da estreita e tradicional dependência de recursos
biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas, pois elas
compõem grande parte da população nas regiões amazônicas.

Regionalmente, a cooperação remonta a épocas mais distantes como a organização


do Congresso do Panamá de 1826 para uma união política americana ,orquestrado
por Simón Bolívar, entretanto foi na Primeira conferência Internacional Americana
realizada em Washington, D.C, de outubro de 1889 a abril de 1890, que resultou na
criação da União Internacional das Repúblicas Americanas, conhecida como
―Sistema Americano‖, o mais antigo sistema institucional internacional. Buscava-se
uma coordenação política para objetivos e interesses comerciais dirigidos no
sentido de obter maior integração, amparadas no Direito internacional, para o
fortalecimento dos vínculos entre o Estados e o setores privados num ambiente
pacífico de cooperação e segurança regional.

Oficialmente a Organização dos Estados Americanos (OEA), foi fundada em 1948,


em Bogotá na Colômbia, através da Carta da OEA, como estipula o Artigo 1º da
Carta, ―uma ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar
sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade territorial e sua
independência‖.

De 1948 até o momento, a gama de desafios existentes aumentou vertiginosamente,


o que necessitou a demanda por soluções adequadas a cada sub região necessita

619
que sejam debatidas e atendidas de forma mais fluida a ferramenta adequada para
tal feito é a do processo de integração sub-regional e regional. A Própria OEA
reconhece que esses processos contribuem para a estabilidade e a segurança no
Hemisfério.

Nesse sentido vamos perceber como os laços da Cooperação se estreitam conforme


são orquestrados de forma mais próxima, ou sub regional, o caso do Mercosul é um
desses clássicos, através do Tratado de Assunção, Argentina, Brasil e Paraguai em
1991, objetivaram a Integração por meio da livre circulação de bens, serviços e
fatores produtivos, além do estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum (TEC),
políticas macro econômicas e harmonização das legislações.

Com o ingresso definitivo da Venezuela e a adesão da Bolívia no Tratado, fará com


que a região amazônica se beneficie desta integração, e justamente objetivando
esse desenvolvimento o Fundo para a Convergência Estrutural do MERCOSUL
(FOCEM), busca financiar programas para promover a convergência estrutural,
desenvolver a competitividade e promover a coesão social, fortalecendo o processo
de integração.

Outro mecanismo de Integração que latino americano é a ALADI, composta por 12


membros : Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México,
Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela , seu instrumento jurídico é o Tratado de
Montevideo 1980, que estabeleceu entre os princípios gerais, o a criação de um
mercado comum latino-americano. Apesar de prever acordos de alcance regional, os
acordos de alcance parcial predominam, como o ACE-36 (Mercosul-Bolívia), o ACE-
58 (Mercosul-Peru), o ACE-59 (Mercosul-Colômbia/Equador/Venezuela) constituindo
esses três ACES a espinha dorsal do processo de integração Mercosul e
Comunidade Andina de Nações, pois neles é objetivado um desenvolvimento
harmônico da região e o estabelecimento de um marco jurídico e institucional de
cooperação e integração econômica e física.

A Unasul, União das Nações Sul-Americanas constituída com o objetivo de construir


um espaço de integração cultural, social, econômico, político e infra-estrutural,
entrou em vigor em 2011 com a ratificação de Argentina, Brasil, Bolívia, Chile,
Equador, Guiana, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.

620
A Unasul busca promover o desenvolvimento sustentável da região através da
integração sul-americana, unindo assim os avanços obtidos pelo Mercosul e pela
Can aliadas as experiências de Chile, Guina e Suriname.

Dentre as relações Bilaterais que mais aproximam os países amazônicos,


podemos destacar algumas de certa relevância para a construção de confiança
entre as partes de forma breve para melhor situar o leitor a proximidade de
ideais dos países amazônicos.

O Brasil e a Bolívia em seu histórico de relações bilaterais firmaram vários acordos.


Em 1867 com o tratado de la Paz de Ayacucho é estabelecida a linha Madeira-Javari
como fronteira comum, outro tratado relevante é o Tratado de Petrópolis (1903) no
qual o Acre é incorporado ao Brasil mediante pagamento de indenização e a
construção da ferrovia Madeira-Mamoré, o Acordo para a construção de gasoduto
entre Santa Cruz de lasiera e a refinaria de Paulínia/SP ( 1973), Acordo para a
compra de gás boliviano (1992) e construção de gasoduto de 3 mil km, a área de
livre comercio entre Mercosul-Bolívia.

Entre o Brasil e a Colômbia, em 1907, foi celebrado o Tratado de Limites entre Brasil
e a Colômbia, usando como base de demarcação a linha Tabatinga- Apapóris, em
1972 é assinado o Acordo Básico de cooperação Técnica Brasil e Colômbia, em
2008 são assinados Protocolos e ajustes de cooperação econômica e comercial
dentre projetos como o de ―Intercambio de Experiências Sobre Gestão
Ambiental Urbana‖

Entre Brasil e Equador é definida em 1904 através do Tratado de Limites a linha


Tabatinga- Arapópolis como área disputada com o Peru, em 1922 com o acordo de
limites entre Colômbia e Peru, o Equador fica sem fronteira com o Brasil, em 1942 é
assinado no Rio de Janeiro, em janeiro tratado de Paz, entre Peru e Equador em
2007, são firmados 14 atos bilaterais nas áreas de saúde, agricultura, programas
sociais, governo eletrônico, TV Digital e treinamento diplomático )

A Guiana envia o Chanceler Wills ao Brasil, e nessa oportunidade é criada a


Comissão conjunta Brasil-Guiana, já em 1978 é assinado o Tratado de Cooperação

621
amazônica do qual farão parte Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru,
Suriname e Venezuela.

Em 1982 é assinado o Acordo para a Construção de uma Ponte Internacional sobre o


Rio Tacutu que após paralizações e retomada de diálogos é enfim aberta em 2009.

Peru, em suas relações bilaterais com o Brasil tem já em 1826 , sob Governo de
Simon Bolívar o seu primeiro encarregado de Negócios no Rio de Janeiro, em 1841
são negociados em Lima por Duarte da Ponte Ribeiro os dois primeiros tratados
bilaterais: de paz, amizade, comercio e navegação; e de limites e extradição. ( não
ratificados pelo império ), entretanto em 1851 é assinada a Convenção Especial de
Comércio, Navegação e Limites com o Peru, que define a fronteira pelo rio Javari e
pela linha Tabatinga-Apapóris, com base no uti possidetis, concedendo ao Peru a
livre navegação pelo Amazonas. Em 2003 é assinado o acordo de complementação
econômica Mercosul-Peru.

Brasil e Suriname, celebram em 1976 o Tratado de Amizade, Cooperação e


Comércio, e a partir daí avançam com vários acordos de cooperação científica e
técnica nos campos da agricultura e da medicina, o Programa de Treinamento para
Técnicos e Produtores em Técnicas da Produção para o Desenvolvimento da
Indústria do caju no Suriname está em vigor desde 2006

Entre Brasil e Venezuela foram celebrados vários Tratados, sendo que o primeiro foi
o Tratado de Limites e navegação Fluvial de 1859 e desde então tem acumulado
uma série de acordos desde a regulação de transportes marítimos até o de sanidade
animal nas áreas fronteiriças.

4 O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA (TCA) NO CONTEXTO DA


INTEGRAÇÃO

A Assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA)em Julho de 1978 por


Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela é um Marco
Regional para o Direito da Integração, através dele reconhece-se a natureza
transfronteiriça da Amazônia é reafirmada a soberania dos países amazônicos sobre

622
ela além de orientar o processo de cooperação regional entre os mesmos. Nele é
buscado o desenvolvimento harmônico da Amazônia gerando benefícios entre as
partes contratantes e incorporar os seus territórios amazônicos às economias nacionais.

Entre os objetivos definidos pelos países participantes para os estudos de


cooperação fronteiriça, está o de preparar projetos específicos que possam criar
condições para o desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, servir de
modelo e de experiências para estender o planejamento do desenvolvimento e a
gestão ambiental a outras áreas amazônicas.

Dentre esses projetos, podemos destacar alguns como :

Monitoramento do Desflorestamento, Aproveitamento Florestal e Mudanças de Uso


do solo na Floresta Pan-Amazônica

O projeto financiado pela Organização Internacional de Madeiras Tropicais (OIMT)


apoiado pela Agência Brasileira de Cooperação para o Monitoramento do
Desflorestamento, tem por objetivo apoiar aos Países Membros da OTCA no
aprimoramento da governança dos temas florestais amazônicos por meio do
desenvolvimento de planos nacionais de monitoramento florestal e o
acompanhamento das mudanças no uso da terra.

Projeto GEF Amazonas

O Projeto Manejo Integrado e Sustentável dos Recursos Hídricos Transfronteiriços


da Bacia do Rio Amazonas Considerando a Viabilidade Climática e as Mudanças
Climáticas, denominado PROJETO GEF AMAZONAS (GEF: Agencia financiadora;
PNUMA: Agência implementação / OTCA: Agencia executora) pretende desenvolver
uma visão consensual de desenvolvimento sustentável da região.

Projeto Sistema de Vigilância em Saúde Ambiental na Região Amazônica

Esse projeto prevê a construção de um sistema consensual de indicadores e


estratégias para institucionalizar a vigilância sanitária em saúde ambiental na

623
Amazônia, esses indicadores poderão ser usados para a formulação depolíticas
públicas facilitando a prevenção, proteção, adaptação e mitigação em casos
provenientes das mudanças climáticas e outros que afetem a saúde humana, como
danos ambientais e contaminação. O projeto é realizado pela Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) com o apoio financeiro do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Cooperação Técnica da OPS-OMS,
FIOCRUZ, UNAMAZ, IEC e outros.

Programa Regional da Amazônia

O Programa Regional ―Uso sustentável e Conservação das Florestas e da


Biodiversidade na região Amazônica" denominado também Programa Regional
Amazônia - OTCA atua no âmbito de uma cooperação tripartite entre a
Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), a Cooperação
Internacional dos Países Baixos (DGIS) e a Cooperação para o
Desenvolvimento da Alemanha (BMZ y GTZ).

O Programa foi elaborado a partir do Plano Estratégico 2004 – 2012 da OTCA, que
representa o principal instrumento de orientação das ações da OTCA e que foi
aprovado na reunião dos Ministros de Relações Exteriores dos Estados Membros
da OTCA em Manaus em Setembro de 2004.

As atividades do Programa são executadas de acordo com o estabelecido nos


Planos de Ação da Organização e responde à necessidade de fortalecer a
cooperação para o manejo sustentável dos recursos naturais na região amazônica.

Várias temáticas fazem parte do programa, principalmente o mapeamento com


detalhamento em tempo real, o que auxiliará os oito países amazônicos para a
criação e ampliação de políticas florestais nacionais e a gestão do território, através
do monitoramento via satélite é permitido explorar os aspectos diversos dos
recursos da biodiversidade e a interação entre homem e meio ambiente.

O aproveitamento sustentável dos recursos naturais, tais como as frutas, a fauna


silvestre, fibras, óleos e resinas dentre outros produtos, parece ser a chave para a

624
melhoria da qualidade de vida de seus habitantes , portanto o biocomércio tem um
valor social, ecológico e econômico, ele engloba a coleta, a produção e comercialização de
bens e serviços da biodiversidade, de acordo com os critérios de sustentabilidade ambiental,
social e econômica.

O tema do Biocomércio é uma destas formas no qual o Programa Regional da


Amazônia, busca trabalhar, ele foi adotado pela convenção sobre diversidade
Biológica (CDB), como mecanismo para alcançar a conservação, o uso sustentável
e a distribuição equitativa dos benefícios derivados do aproveitamento da
biodiversidade.

Seguem projetos binacionais em execução :

Equador - Colômbia

Com base no Acordo de Cooperação Amazônica, assinado entre os Governos da


Colômbia e do Equador em março de 1979, e na Declaração de Rumichaca de
fevereiro de 1985, na qual ambos os governos confirmam a decisão de promover a
cooperação para executar atividades tendentes ao desenvolvimento integrado de
suas fronteiras, foram aprovados os termos de referência para elaborar o Plano de
Ordenamento e Gerenciamento das Bacias dos Rios San Miguel e Putumayo. Este
programa compreende uma proposta de ação para o desenvolvimento sustentável
da zona fronteiriça, que inclui parte do Departamento de Putumayo na Colômbia e a
Província de Sucumbíos e parte da Província do Napo no Equador

Colômbia – Peru

Em março de 1979, foi assinado o Tratado de Cooperação Amazônica Colômbia -


Peru, que em seu Artigo I estabelece: "Atribuir máxima prioridade e dinamismo à
política de cooperação amazônica orientada para o estabelecimento das formas e
mecanismos que melhor se ajustem às singulares necessidades do desenvolvimento
integral de seus respectivos territórios amazônicos, assegurando assim a plena
incorporação em suas economias nacionais". Em 26 de agosto de 1987, os Ministros

625
de Relações Exteriores de ambos os países assinaram um comunicado conjunto,
mediante o qual adotaram um programa de ação concentrado no tema da
cooperação amazônica. Seu primeiro passo consistiu na convocação da Comissão
Mista de Cooperação Amazônica, que foi encarregada de preparar o Plano para o
Desenvolvimento Integral da Bacia do Rio Putumayo. O plano cobre uma superfície
2
de 160.500 km , em partes praticamente iguais entre os dois países, com uma
população de 96.300 habitantes, que representa uma densidade demográfica de 0,6
2
habitante pôr km . A população indígena é de aproximadamente 22.600 habitantes.
A área colombiana corresponde às bacias hidrográficas dos rios Putumayo (margem
esquerda) e Caquetá (margem direita), além da zona do trapézio amazônico, e se
localiza nos Departamentos de Putumayo e Amazonas. No Peru, abrange a faixa
compreendida entre os rios Napo e Amazonas (margens esquerdas) e o rio
Putumayo (margem direita), até a localidade de Estirón no rio Javarf, localizando - se
ao extremo norte da região de Loreto (ex - Amazonas) e compreendendo parte das
províncias de Maynas e Ramón Castilia

Brasil – Colômbia

Em 12 de março de 1981, esses dois países assinaram o Acordo de Cooperação


Amazônica, estabelecendo que: "os países contratantes decidem empreender uma
cooperação dinâmica para a realização de açôes conjuntas e para o intercâmbio de
suas experiências nacionais em matéria de desenvolvimento regional e de pesquisa
científica e tecnológica adaptada à região amazônica,..." Na primeira reunião da
Comissão Mista do Acordo de Cooperação Amazônica Colômbia - Brasil (Leticia, 1987),
os países aprovaram a elaboração do Plano Modelo Colombiano - Brasíleiro para o
Desenvolvimento Integrado das Comunidades Vizinhas do Eixo Tabatinga - Apaporis.

2
2
A área abrangida pelo plano é de cerca de 28.285 km , dos quais 9.635 km
2
correspondem à parte colombiana e 18.650 km ao Brasil. A área colombiana está
situada no extremo sul oriental do país, no trapézio amazônico, e pertence aos
Departamentos de Amazónia e Vaupés. A área brasileira pertence ao Estado do
Amazonas.

626
A zona do plano tinha em 1990 uma população de 23.700 habitantes na parte
brasileira e 21.800 na parte colombiana. Leticia (Colômbia) e Tabatinga (Brasil)
compõem uma área urbana única e constituem o centro demográfico e económico
da região. A população indígena representa 40% do total, ou seja, 18.200
habitantes.

Peru – Brasil

Em 16 de outubro de 1979, esses dois países assinaram o Tratado de Amizade e


Cooperação, o qual estabelece, com referência à região amazônica, que "ambas as
partes atribuem a mais alta prioridade ao cumprimento de compromissos que a
vinculam a respeito dessa região" e manifestam o interesse em harmonizar açôes no
campo bilateral. Em julho de 1987, os Presidentes do Brasil e Peru assinaram a
Declaração de Rio Branco e o Programa de Ação de Puerto Maldonado, estabelecendo
a Comissão Mista Brasileiro - Peruana de Cooperação Amazônica para realizar estudos
de interesse comum. Na I Reunião da Comissão Mista (Rio Branco, Brasil, 1988),
decidiu - se realizar o Programa de Desenvolvimento Integrado para as Comunidades
Fronteiriças Peruano - Brasíleiras (Inapari e Assis Brasil).

2
O total da área compreendida neste programa é de 10.320 km , dos quais 3.900
2 2
km correspondem ao Brasil e 6.420 km ao Peru. A área brasileira corresponde
a toda a extensão do Município de Assis Brasil (Sudeste do Estado do Acre). A
área peruana está localizada na região Inka, Departamento de Madre de Dios,
Província de Tahuamanu (ver Mapa 5). A população totaliza 10.200 habitantes
(estimativa de 1990), com uma distribuição aproximadamente igual em ambos
os territórios. A população é predominantemente rural, com presença conspícua
das comunidades indígenas.

Bolívia – Brasil

Em 2 de agosto de 1988, os Presidente da Bolívia e do Brasil formularam uma


declaração na qual ressaltam a necessidade de dedicar atenção constante à

627
questão ambiental da região amazônica. Aprovou - se um Programa de Ação
Conjunta, mediante o qual se resolve iniciar a execução de planos modelos
binacionais de desenvolvimento integrado de comunidades vizinhas, no âmbito da
Subcomissão de Cooperação Fronteiriça da Comissão Mista Permanente de
Coordenação. Para tanto, determinaram o início desses planos nas seguintes
microrregiões: Brasiléia - Cobija; Guajaramirím - Guayaramerín; e Costa - Marques -
Triângulo San Joaquín, San Ramón e Magdalena, todas na Amazónia

Entre Brasil e Peru

Projeto Binacional Acre – Ucayali:

Visando o fortalecimento da Integração Fronteiriça Acre – Ucayali, que contribui na


implementação do Plano Estratégico 2003 – 2012 que reconhece as áreas
protegidas como principal mecanismo para a conservação da biodiversidade
biológica e instrumento para o desenvolvimento sustentável.

Este Projeto Binacional tem por objetivo contribuir com a gestão coordenada de
recursos de flora e fauna silvestre em zonas de alto interesse sociocultural e
ambiental na área fronteiriça Ucayali /Peru– Acre/Brasil através dos comitês
nacionais de coordenação e dos grupos técnicos de apoio, pelo qual será possível
melhora o manejo e a conservação dos recursos naturais. O projeto conta com a
participação ativa de Organizações Não Governamentais e de indígenas e prevê o
estabelecimento de comissões técnicas e de reuniões. O projeto conta com o apoio
financeiro do Programa Regional Amazônia – PRA, da Fundação Peruana para a
Conservação da Natureza ―ProNatureza‖ e da ONG SOS Amazônia. As duas
Chancelarias proporcionam o acompanhamento institucional deste projeto.

Entre Colômbia-Peru-Equador

Visando a conservação e Desenvolvimento Sustentável do Corredor de Gestão entre


as Áreas Protegidas La Paya (Colômbia), Güeppi (Peru) e Cuaybeno (Equador) –
Projeto Trinacional.

628
Este projeto foi implementado para contribuir com a consolidação do Corredor de
Gestão La Paya-Güeppi-Cuyabeno, como modelo de conservação e de
desenvolvimento sustentável regional de áreas protegidas, por meio da gerência
conjunta e do manejo coordenado entre Colômbia, Peru e Equador. O projeto
também prevê o desenvolvimento de processos de planejamento conjunto, que inclui
planos específicos de manejo de recursos e de ordenamento do uso das zonas de
amortecimento.

5 CONCLUSÃO

Mackinder cunhou a expressão ―heartland‖ para definir a eurásia central, devido a


importância estratégica da região perante a outras, num contexto de disputas a
heartland era área estratégica tanto para a autodefesa quanto para o ataque,
segundo ele quem dominasse a heartland dominaria a região, e o mundo, passados
conflitos e guerras as quais causaram grandes mazelas, o contexto atual com as
grandes mudanças originadas pelo processo de globalização, a Amazônia Sul-
Americana pode se considerada o heartland da região, pois corresponde a 20% da
superfície terrestre e a 2/5 da América do Sul, possui 17% das reservas de agua
doce do planeta e 1/3 das florestas mundiais, sua importância é estratégica também
perante aos blocos regionais sendo um caminho natural leste oeste no continente
Sul americano.

Ao longo deste artigo pudemos verificar as estratégias e os planos de ação para o


desenvolvimento e e integração tanto nacional quanto regional, os planos nacionais
buscavam a integração e o desenvolvimento rápido, através do desbravamento da
região e a rápida povoação.

As hidrovias ao contrário, por serem caminhos naturais mostraram que desde os


tempos remotos, continuam sendo os caminhos mais naturais e econômicos para o
transporte de mercadorias e pessoas, entretanto o grande fluxo e os
impactosambientais sociais que comunidades indígenas e populações ribeirinhas
podem sobrer são preocupantes.

629
Conforme verificado nos planos supra citados, e considerando o histórico de
cooperação e busca pela integração entre os estados Amazônicos, verificamos que
os interesses internacionais, regionais, e nacionais apesar de nem sempre estarem
em sintonia, parecem se convergir quando o assunto é meio ambiente, clima,
desenvolvimento e direitos humanos.

Entretanto na prática é necessário que haja muita atenção quanto a efetividade dos
planos principalmente quando existem impactos ambientais e sociais, devendo não
somente os Governos, Estados e Municípios se mobilizem, mas também a
sociedade civil.

Quando nos referimos a Amazônia, devido a magnitude de diversidade de assuntos


que são correlatos, fica quase impossível abranger todos, portanto esse estudo se
baseou nos tratados internacionais, regionais e bilaterais existentes e o os frutos dos
mesmos em programas de cooperação e desenvolvimento.

Devido a imensa potencialidade que a região tem, e para evitar um neocolonialismo


motivo por qual os Países americanos se uniram, os países amazônicos, devem
estar preparados para os novos desafios, o TCA ao longo de sua existência foi se
aprimorando com a elaboração de planos de trabalho estratégicos, visando
responder a demandas econômicas, sociais, ambientais e infraestruturais.

Nas ultimas décadas, testemunhamos a expansão da globalização, a imensa


revolução causada pelas tecnologias de informação e comunicação, queda de
barreiras financeiras, econômicas, e comerciais, em época deste fenômeno
universal , duas formas são possíveis de lidar com ele, resisti-lo passivamente, ou
adotá-lo de forma logística e racional, para lidar com os desafios do mundo
contemporâneo.

Os países Amazônicos adotaram a segunda forma, através de atitudes como


adequação do TCA às novas demandas e pautadas em programas binacionais e
nacionais juntos e em sintonia.

A IIRSAé um exemplo disto, pois orienta-se em princípios como o regionalismo


aberto, a Integração, o desenvolvimento econômico, social, ambiental sustentável,

630
politico-institucional, a convergência normativa, o aumento do valor agregado de
produção além da coordenação público privada.

Com a redução das barreiras e o estímulo entre os países e suas atividades


dinâmicas, criam-se meios para romper o isolamento do continente em relação ao
resto do mundo como através de um mecanismo de coordenação de ações
intergovernamentais dos países sul-americanos, com o objetivo de construir um
agenda comum para impulsionar os projetos de integração de infraestrutura de
transportes, energia e comunicações instituído como foro para o planejamento da
infraestrutura do território sul-americano com uma visão regional e compartilhada
das oportunidades e os obstáculos do subcontinente (IIRSA2000-2010).

Os Projetos identificados neste artigo e suas oportunidades para a Integração


Territorial da Amazônia à luz de suas bases legais internacionais e regionais
denotam o benefícios da exploração dos potenciais que a região tem, em conjunto.

Verificamos que o papel do Direito Internacional é de grande importância para que


políticas de cooperação materializem-se em tratados que obrigam de certa forma os
contratantes a seguir certas regras, assim aconteceu com a ONU, a DUDH, a OEA,
o Mercosul, e com o TCA dentre outras.

O Elemento Cooperação estava presente em todos esses Tratados, considerado um


Direito de todos os povos, desde a Cooperação Internacional até a Regional, ele é a
espinha dorsal de qualquer política internacional, sem ele os fins dos tratados não
são alcançados.

Entretanto a cooperação não deve ser somente externa, cabe ao Estado, ao poder
legislativo e ao jurista normatizar internamente essas políticas para que elas venham
a dar frutos, e venham a ser suficientes para amparar os desejos de todos.

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AHIMOR - Administração das Hidrovias da Amazônia Oriental. Disponível em
www.ahimor.gov.br/portal/hidrovias.

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OTCA. www.otca.info.portal

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632
A UNIÃO EUROPEIA E O DIREITO COMUNITÁRIO: UMA MANIFESTAÇÃO
REGIONAL DO DIREITO INTERNACIONAL

Luiz Felipe Brandão Osório212

1 Introdução

Os processos de integração não são novidades no mundo, principalmente na


Europa213 (TREIN, 2009). As iniciativas de integração regional liderada pelo vetor
econômico também não são pioneiras no cenário europeu; projetos relevantes foram
promovidos durante o século XIX214.O projeto europeu do pós-Segunda Guerra
conseguiu, entretanto, criar um arcabouço institucional e uma coesão monetária
entre os membros inéditos para uma organização internacional. Seus alardeados
êxitos no aprofundamento da cooperação interestatal serviram de inspiração a
iniciativas integradoras em outras regiões, sobretudo na América do Sul, no tocante
à teoria que justificou o projeto comunitário.

Influenciado por teorias liberais que emergiram no contexto do pós- Segunda Guerra
Mundial, o projeto europeu, capitaneado por Robert Schuman e Jean Monnet, tinha

212
Professor de Direito Internacional do Curso de Graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional da
UFRJ. Mestre e Doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ.
213
Assim descreve o processo histórico o Professor Franklin Trein: “Se a geografia da Europa não tem critérios
claramente definidos para estabelecer suas fronteiras, sua história é objeto de interpretações e argumentos
muitas vezes mais ricos e complexos. Contudo, isto não impediu, ao longo da História, que se tenha cogitado,
com frequência, a construção de uma unidade dos Estados europeus. Contrariando alguns estudiosos, os
séculos XVIII e XIX não foram o berço original dos ideais de uma Europa integrada, ainda que seja possível
encontrar naquele período alguns de seus mais entusiasmados defensores. Muito antes, ainda nos séculos XIII,
XIV e XV, poetas, filósofos e políticos já construíam argumentos em favor de uma Europa unida. O que nem
sempre era dito é que, desse modo, se sonhava recuperar a herança histórica e as grandezas do Império
Romano. Entre os muitos autores daquele período, alguns nomes merecem ser citados: Pierre Dubois (1250-
1312) da França, Tomasso Campanela (1568-1639), da Itália, Georg von Podiebrad (1420-1471), rei da
Boêmia. Mais tarde, no século XIX, dois homens ilustres merecem ser lembrados por suas idéias em favor de
uma união da Europa: Victor Hugo (1802-1885) e Conrad Friedrich von Schmidt-Phiseldek (1770-1832). Este
último elaborou, exaustivamente, a tese de uma “União Européia”, o que a tornou, talvez, a mais expressiva de
todas as contribuições recolhidas ao longo de séculos.” (TREIN, 2009, p. 136-137).
214
Unificação monetária alemã, bem-sucedida, atingida com a integração territorial e política, marcada pela
criação do Reichsbank, em 1876. União Monetária Latina, formada em 1866, por França, Suíça, Bélgica e
Grécia. União Monetária Escandinava, constituída em 1872, por Suécia, Dinamarca e Noruega.

633
forte inspiração no funcionalismo. Construto teórico, cujo maior expoente foi
David Mitrany 215, que enfatizava a via econômica como o cunho prioritário para
diminuição das discrepâncias comerciais entre os membros, harmonizando as
economias nacionais e expandindo a prosperidade local. Estas visões liberais
ou idealistas entediam que os grandes conflitos do século XX haviam ocorrido
em função das rivalidades e das desigualdades econômicas, da não cooperação
política e da intransigente postura soberana dos Estados na defesa de seus
interesses, sobretudo, comerciais. Estas percepções foram modificando -se até
se alcançar o neofuncionalismo 216, que advoga a cooperação econômica pela
via comercial pode espraiar seus efeitos positivos para outras áreas e pode
levar a integração a estágios considerados avançados, como no caminho para
se atingir a união política (federalismo), por meio da complexificação da
integração e da transferência de competências soberanas do Estado (que não
era confiável para gerar estabilidade isoladamente, tendo em vista sua política
interna e suas rivalidades históricas) à uma organização internacional. Uma
solução duradoura para o alcance da paz perpétua seria a interdependência
econômica, cujo êxito seria responsável por espalhar os benefícios a outras
áreas, expandindo e setorizando a cooperação, o que é chamado de efeito
spillover. Logo, a integração seria vista como um processo composto por etapas
evolutivas. A mais desenvolvida, após se iniciar com uma área de preferências
tarifárias, área de livre comércio, união aduaneira, mercado comum e união
econômica, seria uma união política.
215
O romeno naturalizado britânico nasceu em 1888 e faleceu em 1975. Sua obra, escrita no período entre-
guerras, foi pioneira dentro da tradição liberal idealista na construção e teorização sobre os modelos de
integração regional. Identificava que o sistema westfaliano de Estados gerava fortes tensões na defesa de cada
país por seu interesse nacional. A tentativa de reverter o contexto de rivalidades históricas que acirravam as
disputas durante os anos dourados do imperialismo europeu no século XIX e início do XX deveria ser
comandada pela inter-relação econômica dos países, transferindo as competências a órgãos neutros e
instrumentais, acima da política egoísta dos Estados. Em meio à interdependência econômica, ou seja, na
coletivização dos interesses econômicos seria possível estabelecer um panorama de estabilidade e paz, próximo à
paz perpétua kantiana pela federalização dos Estados. Para os autores desta matriz de pensamento, o período
entre-guerras ilustrava como as rivalidades e a defesa irrestrita do interesse nacional podem ser danosas à
humanidade. Para mais ver Mitrany, 1990.
216
Corrente que além da defesa da cooperação regional voltada ao institucionalismo supranacional e o
compartilhamento de competências soberanas, enfatizava a via comercial como principal responsável por irradiar
efeitos positivos para outras áreas.

634
Analistas, entusiastas desta dinâmica217,veriam na centralidade econômica,
irradiadora de efeitos prósperos para outras áreas, a razão do alegado estágio
avançado da União Europeia, o qual serviria de inspiração para as iniciativas de
cooperação menos desenvolvidas, ideia que ganhou ainda mais relevo após a
guinada europeia ao neoliberalismo, concretizada pelo Tratado de Maastricht.

Com as mudanças sistêmicas durante as décadas de 1970 e de 1980, a estratégia


comunitária sofreu forte guinada. Abandonou a concepção do bem-estar social e
direcionou-se pela ideologia neoliberal a seguir o caminho do privilégio aos capitais
privados. Neste momento, a relativa paz, a prosperidade econômica e o fortalecimento
institucional comunitário, alcançados pela Europa e alardeados por entusiastas
neoliberais, criaram uma sensação ilusória de um modelo exitoso a ser utilizado por
outras regiões. O funcionalismo deveria prevalecer, agora, todavia, capitaneado por
um modelo econômico que abandonava o regionalismo fechado218 para ingressar em
uma lógica de regionalismo aberto219, sem barreiras ao comércio mundial,
escancarado ao mercado internacional, pressupondo que todos os países teriam
condições iguais de competitividade e, se não o tivesse, poderiam se juntar aos
vizinhos com os mesmo níveis de desenvolvimento para aumentar seu poder de
barganha.

É neste panorama de relativização da soberania estatal, enfraquecimento do


Estado-nação e fortalecimento da cooperação mundial via organizações

217
Análises, como a de Elena Lazarou e dos autores que a inspiram, consideram esta peculiaridade como marca
do estágio avançado europeu, como se o processo de integração (e o que chama de compartilhamento de
competências) fosse evolutivo e gerasse efeitos positivos em todas as áreas (LAZAROU, 2013, p. 107): “O que
torna a União Europeia única é a fusão econômica, política, social e, possivelmente, ideacional da maioria das
políticas dos Estados-membros. É, certamente, o único caso de integração regional funcional envolvendo
governança supranacional, competências compartilhadas e uma partilha de soberania (Keohane e Hoffmann,
1991). Enquanto mercados comuns e uniões aduaneiras são menos incomuns, a UE evoluiu desse nível para
uma comunidade política com instituições próprias, um sistema legal, políticas, valores e princípios. O processo
de spillover, por meio do qual isso ocorreu, é, talvez, a chave para a singularidade do modelo.”
218
O regionalismo é fechado em relação ao comércio internacional. Nas iniciativas de integração pautadas pela
lógica cepalina, como a ALALC e a ALADI, no continente americano, por exemplo, antes de partir ao mercado
internacional é preciso que as indústrias locais se fortaleçam por meio de medidas protecionistas para que
possam obter melhores condições de competitividade.
219
O regionalismo aberto tenta reverter a lógica cepalina, incutindo as ideias neoliberais de abertura dos
mercados e economias nacionais, sem quaisquer medidas de transição, à competição internacional, a qual será,
em teoria, a responsável por obrigar as indústrias nacionais a se modernizarem, se fortalecerem e se tornarem
competitivas.

635
internacionais220 que o direito internacional alcançaria sua efetividade máxima e a
paz e a estabilidade internacionais seriam garantidas. O conceito de
supranacional221 emerge nesta época e ganha prestígio a partir do espraiamento do
ideário da globalização. Os defensores do direito cosmopolita222 viam no direito
comunitário sua maior expressão, dadas a operacionalidade e a dinamicidade
atribuídas ao direito secundário da União Europeia, o qual não precisa passar pelo
procedimento de incorporação interna dos Estados para vincular os destinatários da
norma nos territórios nacionais, ou seja, possui efeito direto, o que motivou doutrina
e jurisprudência comunitárias a desenvolver ainda mais teorizações sobre seu
direito. Seu elevado grau de desenvolvimento normativo e regulatório, quando
analisado pela via purista do Direito e liberal das Relações Internacionais, é
superestimado, chegando ao ponto de gerar confusões conceituais ao ser classificar
o direito comunitário como um direito supranacional, ou seja, funcionaria
independentemente da vontade soberana do Estado-nação, lógica que deveria servir
de exemplo para outras iniciativas de cooperação regional.

Esta particularidade pareceu inovadora ao direito internacional contemporâneo,


pensado e difundido pelos ditames da Paz de Westfália 223, constituídos sob o
postulado maior da soberania estatal. Inicialmente difundida na França (BODIN,
2011)224, para resolver o conflito interno em torno da centralização, o valor
fundamental da soberania veio a constituir o pilar das relações internacionais. Seria
a premissa maior da qual irradiariam dois princípios básicos, o da igualdade
(jurídica, formal) entre os Estados e o da inexistência de um poder central que

220
Foros neutros, em teoria, nos quais a vontade comum é derivada da transferência de competências estatais,
mas própria e não se coincide, necessariamente, com a de um Estado específico (TRINDADE, 2003).
221
Ana Paula Tostes comenta a crise do Estado nação e as novas mudanças acarretadas pela globalização,
caracterizando o conceito de supranacionalidade: “A União Europeia (UE) tem enfrentado dificuldades de
várias naturezas ao inaugurar um modelo de ação política que é fruto de uma nova engenharia institucional,
bem mais complexa do que a estatal. A ação política “comunitária” fundamenta-se em um princípio de interesse
supranacional: o “interesse comunitário” dos Estados europeus. Esta novidade política estruturada por
instituições que também não se comprometem a realizar os interesses intergovernamentais ou interestatais, mas
apenas o “interesse comunitário”, exige esforços teóricos e analíticos em favor de modos alternativos (ao
estatal) de constituição de legitimidade da ação política, de justificação do poder e de identidade coletiva.”
(TOSTES, 2001, p. 36-37).
222
O direito cosmopolita tem em Jürgen Habermas e Ulrich Beck seus defensores mais conhecidos.
223
A Guerra dos Trinta Anos envolveu conflitos de cunho político e religioso que devastaram os reinos
germânicos da parte central da Europa e que envolveram as grandes potências da época, ao final, foram
marcados pela vitória dos países protestantes e pelo enfraquecimento da Igreja Católica. Os tratados que
celebraram a paz, em 1648, firmados em Osnabrück e em Münster, duas cidades da região de Westfália,
expressaram os valores que passariam a nortear a ordem jurídica interestatal (PELLET, 2003).
224
Difundida pela publicação do livro Os Seis Livros da República, de Jean Bodin, em 1576.

636
detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia sistêmica. De acordo
com este sistema, os Estados seriam os principais detentores de direitos e de
deveres, cujas fontes seriam oriunda do direito positivo (tratados internacionais) e do
direito natural (costumes e princípios gerais de direito), devendo ter sua integridade
respeitada por seus pares (não intervenção), a não ser em caso de conflito, no qual
a guerra poderia ser considerada um meio legítimo de solução de controvérsias.

Em virtude da manutenção da vigência desta lógica hodiernamente, a visão


realista225 entende que as organizações internacionais e suas normas são, por
essência, intergovernamentais, não podendo estar acima da vontade do Estado, se
este assim não consentir. Logo, uma série de contradições será levantada sobre as
peculiaridades dainstitucionalidade comunitário, de sorte questionar a suposta
supranacionalidade do direito e da organização, afirmando que não há que se falar
em um direito supranacional, mas sim em um direito internacional regional, podendo
este ser efetivo ou não.

Desta forma, para a compreensão deste raciocínio, este trabalho será divido em
uma primeira parte que contextualizará histórica e politicamente a formação e
desenvolvimento da organização internacional europeia; em um segundo trecho que
abordará as peculiaridades e o desenvolvimento do direito comunitário, bem como
sua caracterização como supranacional; em uma terceira e última seção, que
discutirá a estrutura do direito internacional westfaliano e concluirá a pesquisa com
as observações sobre o direito comunitário enquanto um regional do direito
internacional westfaliano.

2 O Processo de Formação e Desenvolvimento da União Europeia

O atual estágio alcançado pela Europa em seu processo de integração regional pode
ser explicado a partir de uma análise crítica, que situa o processo como resultado, não
exclusivo, mas considerável, das transformações internas e do sistema internacional.
Construída pela interação de fatores internos (pacificação e recuperação econômica) e
externos (projeção autônoma e contenção da influência soviética), o projeto
225
A premissa central do pensamento realista é o sistema de Estados, no qual cada ente quer impor seu interesse
nacional, com o intuito de maximizar seu poder perante os outros (ZOLO, 1999; FIORI, 2007).

637
integracionista foi desenvolvido a partir dos vetores de prevalência do capital e do
desenvolvimento socioeconômico, com forte apoio e considerável complacência do
poder hegemônico (TAVARES; BELLUZZO, 2004)226. Hodiernamente, acumula mais de
60 anos de experiência e um grau considerável de interdependência entre seus
membros, além de uma vasta gama de instituições regionais, com foco em diversas
áreas, o que não significa que todos os envolvidos são beneficiados227.

Destruída materialmente, arrasada pelas perdas humanas e ocupada por tropas


estrangeiras, a região, que, por pelo menos desde o século XVI, foi o epicentro
mundial, viu-se uma posição ímpar dentro do sistema interestatal capitalista 228.
Como a oeste foi invadida pelos americanos e a leste, pelos soviéticos, a Europa
tornou-se o centro da disputa de poder entre as duas grandes potências vitoriosas
do conflito. Dividido o continente, as diferentes porções seguiram estratégias
alinhadas com interesses externos. Enquanto que a parte oriental adotou a lógica
soviética, a ocidental buscou enquadrar suas demandas à hegemonia
estadunidense. Esta, por fazer parte da constituição da União Europeia, será alvo de
maior aprofundamento deste estudo.

226
Apoiado na concepção difundida pelos autores é possível ilustrar a parte teórica com alguns exemplos
práticos. A chancela hegemônica ao projeto de integração europeu é manifestada desde o Plano Marshall, a
criação da OECE e da União Europeia de Pagamentos, passando pela criação da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), instituição responsável pela defesa militar na região, até na constituição da Alemanha
(desenvolvida a convite) como polo de liderança econômica regional. Sem este apoio fundamental, não teria esta
iniciativa certamente prosperado da forma como conhecemos. Para mais ver: TAVARES; BELLUZZO, 2004.
227
De acordo com José Manuel Pureza, crítico da integração europeia pela via dos capitais e que pontua a
celebrada e relativa paz e estabilidades por ela geradas: (PUREZA, 2012): “A simples existência da UE como
estrutura de integração econômica e política não é suficiente para explicar a paz prolongada na Europa. A paz
pela integração dos mercados e pela abdicação de soberania é uma tese frágil. Porque só funciona para
explicar a calmaria de quem ganha com a integração e de quem não é demasiado lesado com a perda de
soberania. Quem perde não quer essa paz que o esmaga. E é claro que esses são sempre processos com
ganhadores e perdedores. Mais ainda: os ganhadores de hoje podem rapidamente tornar-se os perdedores de
amanhã”.
228
Para este artigo o sistema interestatal capitalista emergiu no que Fernand Braudel cunhou ser o longo século
XVI e permanece até os dias atuais, intensificado, como ressalta Fiori ao destacar o papel dos Estados
protagonistas (FIORI, 2008, p. 31-32): “Desde o início do sistema mundial moderno, o expansionismo dos
Estados líderes teve um papel decisivo no desenvolvimento de suas economias nacionais, e vice-versa. O
impulso conquistador desses Estados impediu que seus mercados locais se fechassem sobre si mesmos e alargou
suas fronteiras, com a inclusão de outras economias no seu território econômico supranacional, ao mesmo
tempo, que foi criando oportunidades monopólicas para a realização dos lucros extraordinários que movem o
capitalismo. Neste novo sistema interestatal manteve-se- num patamar muito mais elevado- a mesma relação
virtuosa que já existia na Europa no século XIII e XIV, entre acumulação do poder, as guerras, o aumento
contínuo da produtividade e do excedente econômico; e entre as guerras, as dívidas públicas, os sistemas de
crédito e a multiplicação do capital financeiro”.

638
Desde a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, preparada pela
Carta do Atlântico229, em 1941, na qual a Grã-Bretanha reconheceu a hegemonia
americana, os Aliados já começaram a pensar na reorganização mundial após o final
do conflito230. A iminência da vitória aliada levou os países capitalistas a discutir o
gerenciamento econômico internacional sob a égide da hegemonia
estadunidense231. A ordem monetária foi instalada pelos Estados Unidos, como
forma de organizar a configuração mundial do pós-guerra, sempre de acordo com
seus interesses nacionais. O dólar foi alçado à condição de moeda internacional,
única a ser conversível em ouro, enquanto as outras somente tinham o recurso de
converterem-se em dólar. Ademais, criou-se o Banco Internacional para a
Reconstrução e Desenvolvimento, BIRD, conhecido posteriormente como Banco
Mundial, e o Fundo Monetário Internacional, o FMI, responsável pela correção do
desequilíbrio na balança de pagamentos dos países. Desta reorganização mundial
deriva ainda a Organização das Nações Unidas232, que ratificou a força política e
diplomática dos americanos, com o apoio dos europeus. A estes não cabiam uma
opção de enfrentamento, mas de consentimento com o poderio americano, devido
às condições internas de cada país.

Assim, à Europa Ocidental foi disponibilizada uma estratégia diferenciada, em


relação a outras regiões, dentro do sistema hegemônico de poder, a qual foi,
inevitavelmente consentida pelas elites locais ante a conjuntura internacional da
época. Fiori explica a benevolência hegemônica aos europeus233.

229
Carta do Atlântico é a denominação para o acordo de cavalheiros assinado por Winston Churchill e Franklin
Roosevelt, cada qual representando sua respectiva nação, Grã-Bretanha e Estados Unidos, no qual se estabelecia
os termos para o suporte estadunidense para os aliados na Guerra contra o Eixo. Esse documento foi assinado a
bordo de um navio no Oceano Atlântico e não tinha o caráter jurídico de tratado internacional, mas seria
legitimado pela moral do compromisso e duraria enquanto seus signatários ocupassem seus cargos de chefia do
Estado. Esse acordo proporcionou aos aliados um fôlego extra no combate, uma vez que incluía condições
facilitadas de empréstimo e de aquisição de material bélico, bem como suporte logístico.
230
Diversas conferências importantes foram realizadas de 1941 até 1945, com destaque para a ocorrida na
pequena cidade norte-americana de Bretton Woods, em julho de 1944.
231
Essa percepção de hegemonia passa pela noção difundida por Antônio Gramsci (MORTON, 2006, p.95): “It
has been established that the moment of hegemony involves both the consensual diffusion of a particular cultural
and moral view throughout society and its interconnection with coercive functions of power; or there is
corresponding equilibrium between ethico-political ideas and prevailing socio-economic conditions fortified by
coercion (…) To sum up, hegemony is marked by the decisive passage from the structure to the sphere of the
complex superstructures.”
232
Criada pela Conferência de São Francisco, em julho de 1945, como sucessora da combalida Sociedade das
Nações
233
Fiori (2004, p. 88) esclarece: “Na verdade, a posição ultraliberal dos financistas só foi quebrada
transitoriamente pela crise de escassez de dólares na Europa em 1947; pela ameaça de vitória política-eleitoral
dos comunistas na França e na Itália, nas eleições de 1948; e pelo colapso da economia japonesa. Suas ideias
predominaram de 1945 e 1947, mas acabaram sendo revertidas pelonovo quadro internacional e pela

639
A questão interna gravitava em torno da situação econômica catastrófica, sendo
necessário encontrar uma solução para sua reconstrução e pacificação, mantendo a
remuneração satisfatória das elites liberais e impedindo a ascensão dos partidos
socialistas internos. Os países europeus encontravam-se numa encruzilhada,
desgastados pelo conflito, com perdas humanas, deterioração social e grande parte
de sua cadeia produtiva e de sua infraestrutura comprometidas e, muitos, ainda,
ocupados por potências estrangeiras, no Ocidente, pelos Estados Unidos, e no
Oriente, pela União Soviética. O factível crescimento das ideias socialistas em meio
à crise e a escassez de divisas motivaram o pragmatismo das elites capitalistas dos
países ocidentais que aceitaram a ajuda financeira estadunidense e por meio dela
criar um ambiente seguro e estável para a reconstrução econômica e social pela
proliferação do capital, o qual foi obrigado a compor com os interesses do trabalho,
articulando o Estado de bem-estar social e promovendo a cooperação entre as
economias regionais, tanto no viés comercial quanto no aspecto socioeconômico.

A questão externa da integração foi determinada pelos rumos do embate entre


Estados Unidos e União Soviética, que culminou na Guerra Fria. Era necessário
retomar a proeminente projeção internacional e, ao mesmo tempo, às economias
europeias ocidentais criar uma barreira de contenção à influência e aos capitais
estatais soviéticos, os quais já haviam tomado a porção oriental do continente. A
ameaça vinda do modelo político e econômico adotado pelo Leste Europeu ao
capitalismo liberal estadunidense alterou a estratégia hegemônica quanto à situação
dos antigos inimigos de guerra, em meados de 1947, sobretudo em relação à
solução dada à questão alemã234. Cogitada para ser desindustrializada e tornar-se
uma grande colônia agrícola235, foi transformada na grande vitrine do capitalismo
ocidental, por meio do projeto americano de desenvolvimento a convite 236 dos

imposição de prioridades estratégicas da nova Doutrina da Guerra Fria. É neste contexto que se explica o
Plano Marshall, assim como todas demais concessões feitas pelos Estados Unidos, com relação ao
protecionismo dos europeus, em particular com a retomada dos velhos caminhos heterodoxos das economias
alemã e japonesa.”
234
Expressão consagrada pela literatura especializada que ganhou maior relevo após a unificação da Alemanha
como Estado nacional no final do século XIX, gerando grande desequilíbrio na balança europeia de poder.
235
Henry Morgenthau foi Secretário do Tesouro Americano à época que não se confunde com seu
contemporâneo, o realista acadêmico Hans Morgenthau, autor do clássico livro”A Política das Nações”.
236
Expressão consagrada pela literatura especializada em desenvolvimento comparado para explicar os
investimentos financeiros, intenso fluxo comercial e a tolerância monetária que os Estados Unidos tiveram em
relação a Alemanha e Japão.

640
outrora inimigos de guerra237. Assim, mesclando os motivos internos e externos, a
integração europeia passou a ser construída a partir da Alemanha Ocidental como o
polo irradiador do crescimento econômico regional, em uma estratégia hegemônica
de europeizar os interesses alemães238.

Este arranjo inicial, responsável por dimensionar o projeto integracionista em duas


vertentes: a de promoção dos capitais nacionais conjuntamente com a de fomento
ao desenvolvimento socioeconômico, passou a ser refeito a partir das
transformações na economia e na geopolítica mundiais. As transformações
sistêmicas ocorridas, principalmente nas décadas de 1970 e 1980 levaram o
processo europeu a ser repensado. Em um contexto de rompimento do padrão
monetário internacional, bem como de questionamentos à hegemonia americana, e
de desgaste e crescentes tensões na composição entre capital e trabalho, os
Estados Unidos, com o auxílio britânico, lideraram uma ofensiva política e ideológica
em favor do capital financeiro, livrando-o das amarras estatais, fortalecendo-o e, em
contrapartida, enfraquecendo os pleitos trabalhistas, representados pelos sindicatos.
Este movimento emergiu a crise mundial proporcionada pelo Choque de Juros
estadunidense239, o qual afirmou o padrão dólar flexível240 e elevou a contestação do

237
Problemática geopolítica acirrada com a unificação e formação da Alemanha enquanto Estado nação, que
esteve, direta ou indiretamente, presente nas causas das duas guerras mundiais.
238
Fiori (2004, p.89) sintetiza a estratégia estadunidense quanto aos países derrotados: “Esta mudança da
posição americana com relação à estratégia de desenvolvimento dos países derrotados, em particular o Japão,
a Alemanha e a Itália, se transformou na pedra angular da engenharia econômico-financeira do pós- II Guerra
Mundial, em particular depois da década de 1950, quando estes países se transformaram nos grandes
“milagres” econômicos da economia capitalista. (...) Em outras palavras, viraram “protetorados militares” e
“convidados econômicos” dos Estados Unidos, e no caso da Alemanha e do Japão, foram transformados em
“pivôs” regionais de uma máquina global de acumulação de capital e riqueza que funcionou de forma
absolutamente virtuosa entre as Grandes Potências e em algumas economias periféricas até a crise da década
de 1970.”.
239
Em meio a uma sequência de crises, interna e externa, acompanhada de questionamentos sobre o declínio da
hegemonia estadunidense, antes do fim do governo Carter, ainda em 1979, Paul Volker assume a cadeira do
Federal Reserve, dando nova guinada às pretensões imperiais estadunidenses, com o Choque de Juros. Na
manobra, as taxas de juros foram elevadas unilateralmente e atingiram níveis estratosféricos, acompanhadas por
um discurso de fomento às inovações financeiras e à desregulamentação, que predominaria na década de 1980. A
valorização inesperada do dólar, como manobra para sair do contexto de questionamentos, que suscitavam o
questionamento à hegemonia americana, conduziu a economia mundial à recessão. Os EUA, em sua estratégia
de restauração liberal-conservadora, retomam progressivamente o controle do sistema monetário-financeiro
internacional.
240
Conceito cunhado por Franklin Serrano para explicar o novo regime monetário internacional (SERRANO,
2004). A particularidade desse novo padrão reside no fim de duas limitações que tanto o padrão ouro-libra,
quanto o ouro-dólar impunham aos países que emitiam a moeda chave, a necessidade de manter o câmbio fixo,
para que se evitasse a fuga para o ouro e os consequentes déficits na conta corrente, e a possibilidade de incorrer
em déficits globais na balança de pagamentos e financiá-los com ativos denominados em sua própria moeda
como nos outros padrões anteriormente citados. Ademais, a ausência de conversibilidade em ouro garante ao

641
Estado de bem-estar social, propondo uma reforma neoliberal241 às funções estatais.
Este novo panorama arrefeceu o ímpeto comercial alemão e restringiu sua área de
influência ao continente europeu, além de minar as bases do Estado de bem-estar
social do pós-guerra, como bem sintetiza Carlos Medeiros242.

Sentindo a necessidade de sair da inércia e de adotar uma postura reativa às


transformações da época, os líderes europeus relançaram a integração, com o Ato
Único Europeu, articulado por Jacques Delors, em 1985. O ideário globalizante
impregnava o pensamento das elites, que romperam a acomodação do capital com
o trabalho pelo bem-estar social para impor seus interesses ao bloco. A pressão
pela abertura das economias ao capital financeiro era latente e considerada
retoricamente como inevitável. A reunificação da Alemanha e a dissolução da União
Soviética aceleram a remodelagem europeia, que culminou no Tratado de
Maastricht, de 1992. O tratado internacional estruturou a integração por meio da
formação da União Europeia, que abarcaria todas as iniciativas comunitárias
anteriores sob o mesmo teto, mas com uma lógica distinta, que priorizava somente o
viés do capital, abandonando o desenvolvimento socioeconômico 243. Além disso, no
documento, ficou expressa a intenção de transformação do mercado comum
europeu em mercado único por meio da previsão de uma moeda comum para a

dólar a liberdade de variar por sua iniciativa unilateral a paridade em relação às moedas dos outros países
conforme sua conveniência, por meio de mudanças nas taxas de juros americanas.
241
O ideário neoliberal inspirado nas ideias ultraliberais de economistas como Friedrich Hayek e Milton
Friedman atribuía à iniciativa privada o papel regulamentador e fomentador da economia, relegando ao Estado
funções meramente logística que proporcionassem à lógica mercadológica a máxima eficiência. Entre as
medidas desejáveis haveria a redução da intervenção estatal, restrita a fatos episódicos e excepcionais, por meio,
sobretudo, das privatizações dos serviços públicos, abertura do mercado interno ao capital estrangeiro e um
dracioniano corte de gastos públicos, tendo a economia nacional a preocupação primordial de garantir a
estabilidade de preços e os picos inflacionários.
242
O pensamento de Medeiros (2004, p.139-140) é resumido: “A retomada da política hegemônica do dólar no
início dos anos 80 interrompeu as possibilidades de se construir em colaboração com os principais países
industrializados, alternativas monetárias a um dólar enfraquecido. A estratégia de enquadramento dos aliados e
das moedas rivais se deu como reação ao extraordinário sucesso industrial e exportador da Alemanha e do
Japão e da contestação do dólar enquanto moeda internacional que caracterizaram a economia mundial no
final dos anos 70. A iniciativa norte-americana de retomada da hegemonia econômica e ideológica nas relações
internacionais afirmou-se, também, como uma ampla ofensiva interna liderada pelos EUA e Inglaterra contra
os sindicatos, o Estado de Bem-Estar, o excesso de democracia, interrompendo o crescimento compartilhado
típico do keynesianismo social que caracterizou o capitalismo industrial no pós-guerra.”
243
Pureza resume a guinada ao neoliberalismo, abandonando o viés do desenvolvimento socioeconômico e
priorizando exclusivamente o do fomento ao capital (PUREZA, 2012): “Sucede todavia que desde 1992 que a
Europa abandonou esse modo de ser um projeto de paz. Passou a dar primazia inequívoca à competitividade em
detrimento da coesão. Passou a dar primazia ao ser mercado em detrimento do ser união. A arquitetura da
União Económica e Monetária, expressão da hegemonia do pensamento neoliberal, repudia o modelo social e a
democracia inclusiva em escala europeia em que a paz se alicerçou.”

642
zona comunitária. A integração europeia mostrava adaptabilidade ante a conjuntura
internacional e, baseada na lógica neoliberal do regionalismo aberto, viria a servir de
parâmetro para outras iniciativas de integração econômica no sistema mundial.

3 O ordenamento jurídico e a pretensa supranacionalidade do Direito


Comunitário

Tendo em vista o processo que permitiu a constituição da União Europeia, cabe,


neste momento, especificar o tema, dando ênfase particular à arquitetura jurídica do
direito comunitário244. Criou-se a partir da jurisprudência do outrora Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias, um ordenamento jurídico internacional
autônomo em relação ao direito interno dos Estados e com uma lógica distinta
daquela que rege a interação entre o direito internacional público e o direito nacional.
Dentro desta construção, destacam-se os sujeitos (Estados e seus indivíduos são os
destinatários das normas) e as fontes do direito comunitário, oriundas da
jurisprudência (do Tribunal de Justiça da União Europeia e sua interação com os
tribunais internos dos Estados-membros), dos princípios consagrados (pela
jurisprudência, pela doutrina e por cartas) e do direito positivo, notadamente dos
tratados internacionais e das decisões orgânicas internas (que compõe o direito
primário e o secundário respectivamente).

Diferentemente do que acontece no Direito Internacional Público e de maneira


próxima a que ocorre no direito interno, a jurisprudência assume um papel central
nesta dinâmica. O Tribunal de Justiça da União Europeia foi criado pelo Tratado de
Roma, em 1957, como Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, cujo
objetivo é garantir o respeito ao direito na interpretação e aplicação dos tratados. Ao
longo dos anos sofreu modificações estruturais, passando a contar, após o Tratado
de Lisboa, de 2007, com três instâncias de julgamento, sendo a primeira referente a
tribunais especializados, a segunda, ao tribunal geral, e a terceira, ao Tribunal de
Justiça. O órgão como um todo exerce competência na verificação do cumprimento
do direito comunitário (primário e secundário), na garantia de efetividade e
construindo a hermenêutica das normas comunitárias. Suas decisões são
importantes para a consolidação e o desenvolvimento deste ramo jurídico. Logo, a
244
O direito da União Europeia ganhou por ilustrar as normas e valores do sistema criado pelas Comunidades
Europeias, criadas durante a década de 1950 e unificadas na década de 1960.

643
jurisprudência245 europeia exerce papel bem além daquele esclarecedor de
controvérsias dentro deste ordenamento, pois é conformador do ordenamento
jurídico, bem como consagrador de princípios246, os quais possuem, de acordo com
a doutrina (ESPADA et ali, 2012), precedência hierárquica, com status jurídico
semelhante ao do direito primário.

Atuando independentemente e harmonicamente com os tribunais europeus, estão os


tribunais internos de cada Estado-membro. Estes interagirão com aqueles quando
realizarem o controle de constitucionalidade do direito primário, após o procedimento
de incorporação ao direito interno, e, principalmente, na efetivação do direito
secundário e nos casos do reenvio prejudicial, instituto jurídico que permite o
julgador nacional remeter o processo ou consultar a corte comunitária, quando surgir
dúvidas em relação à lide julgada internamente quanto à aplicação e interpretação
do direito comunitário (primário e secundário).

As regras e valores aplicados pelos órgãos jurisdicionais originam-se em sua grande


maioria das manifestações do direito positivo, dos tratados internacionais247. O
direito primário é hierarquicamente superior ao secundário, estando no topo do
direito regional, como as normas constitucionais são no direito interno. Compõe-se
pelos tratados internacionais celebrados entre os Estados- membros248. Por
exemplo, engloba o Tratado de Paris, de 1951, que criou a Comunidade Europeia de
Carvão e do Aço249; os Tratados de Roma250, em 1957, que criaram a Comunidade

245
A jurisprudência, de acordo com o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, é um meio auxiliar
ou fonte secundária do direito internacional, logo, não tem valor jurídico em princípio, não obriga
necessariamente as partes, somente terá efeitos vinculantes na omissão de uma fonte primária que trate do
assunto.
246
O Caso Stauder (processo n° 29/69) confirmou a aplicação de princípios no direito comunitário, atribuindo
relevo aos princípios gerais de direito e os princípios e garantias fundamentais. Com os Protocolos aos Tratados
de Lisboa, foi incorporada a Carta de Direitos Fundamentais, positivando os direitos humanos no sistema
jurídico regional.
247
O Tratado Internacional é um exemplo, de acordo com o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de
Justiça, de fonte primária ou material do direito internacional público, é um instrumento legal que possui valor
jurídico, ou seja, os compromissos neles pactuados vinculam as partes a seu cumprimento, sob pena de sanções.
248
Neste artigo não foi feita, mas a doutrina especializada (ESPADA et alli, 2012) realiza uma distinção entre os
tratados internacionais, afirmando que há os tratados constitutivos (Tratados de Paris, de Roma e de Maastricht),
tratados de reforma (Ato Único Europeu, Tratado de Amsterdã, de Nice e de Lisboa) e os tratados de adesão de
novos membros.
249
Órgão que proporcionou a administração multilateral das matérias-primas básicas e estratégicas da indústria,
selando o acordo político para a estabilização do continente celebrado por França e Alemanha, iniciou-se a
constituição de um espaço comum a algumas economias europeias como forma de garantir a paz e a segurança
por meio do entrelaçamento econômico.

644
Econômica Europeia e a EURATOM; o Tratado de Maastricht251, de 1992; o Tratado
de Amsterdã252, de 1997; o Tratado de Nice253, de 2001; e os Tratados de Lisboa254,
de 2007. Para que as normas oriundas destes documentos vinculem os Estados
signatários é necessário que estes sejam incorporados pelo direito interno estatal,
no qual cada Estado determina seu procedimento (a maioria prescinde do crivo
parlamentar). O direito primário255 europeu é bem complexo em seu nível de
cooperação entre Estados, visto que, além de regras conjuntas, é responsável por
criar órgãos que regerão a institucionalidade comunitária. A estas instituições serão
atribuídas competências pelos Estados signatários, as quais poderão ser exclusivas,
compartilhadas e de coordenação. Em seu funcionamento emitirão documentos, os
quais poderão ter valor jurídico.

O direito primário ou fundamental determina quais gozam desta prerrogativa: o


Parlamento Europeu, o Banco Central Europeu (nos países que aderiram à moeda
única) o Conselho da União Europeia (ou de Ministros) e a Comissão Europeia. As
manifestações expressas dos três constituem o direito secundário ou derivado da
União Europeia, o qual obedece aos procedimentos e competências previstos pelo
direito primário, sendo composto por regulamento (que traz normas de caráter geral,
sendo obrigatório em todos seus elementos e diretamente aplicável aos Estados-
membros); diretiva (a qual vincula o Estado em relação ao resultado alcançar um
objetivo geral, relegando às instâncias nacionais a competência quanto à forma e
aos meios de efetivá-lo); decisão (específica e obrigatória às partes que envolver em
250
Estes tratados vieram consolidar, expandir e institucionalizar a iniciativa, por meio da formação de uma
comunidade econômica que visava ao fortalecimento do mercado interno entre os países membros, cujas
ambições se direcionavam para a constituição de um mercado comum europeu. O sentido geopolítico deste
processo de integração acompanhou, ainda que não no mesmo ritmo, os avanços econômicos, como a criação da
comunidade europeia de energia atômica, a EURATOM, de fins pacíficos. Ademais, foram responsáveis pela
criação da maior parte dos órgãos hodiernos da União Europeia.
251
Conhecido como Tratado da União Europeia estruturou a integração por meio da formação da União
Europeia, que abarcaria todas as iniciativas comunitárias anteriores sob o mesmo teto. Além disso, no
documento, ficou expressa a intenção de transformação do mercado comum europeu em mercado único por meio
da previsão de uma moeda comum para a zona comunitária. A integração europeia mostrava adaptabilidade ante
a conjuntura internacional e, baseada na lógica neoliberal do regionalismo aberto, viria a servir de parâmetro
para outras iniciativas de integração econômica no sistema mundial.
252
Responsável por modificações estruturais que preparavam a União para uma planejada expansão.
253
Este documento reformou a organização institucional de alguns órgãos comunitários.
254
Refletiram uma tentativa pragmática de resgatar alguns elementos da rechaçada constituição europeia e que
concederam à integração europeia uma nova lógica, que prioriza a operacionalidade, a partir da introdução de
mudanças que possibilitam acordos e soluções bilaterais entre Estados parte da União Europeia em detrimento
dos multilaterais sobre assuntos temáticos e pontuais da competência comunitária.
255
O direito primário é também conhecido como direito fundamental ou constitucional, em analogia às normas
constitucionais, fundadoras da ordem jurídica estatal interna.

645
todos seus elementos); e, por fim, pareceres e recomendações (manifestações
consultivas que não são vinculantes, que só terão valor jurídico para colmatar as
lacunas das normas obrigatórias).

No direito secundário da União Europeia reside uma particularidade que,


aparentemente, não é comum a outras organizações internacionais voltadas à
integração regional. A jurisprudência do Tribunal de Justiça Comunitário e a doutrina
especializada, com base nesta, foram responsáveis por pensar a relação do
ordenamento regional e das disposições nacionais de uma forma que viabilizasse e
dinamizasse o funcionamento das instituições europeias. Com fulcro nos julgados
Caso Van Gend em Loos256, Caso Walrave257, Caso Simmenthal258, Caso Ratti259,
Caso Francovich260 e Caso Costa/ENEL261 o tribunal europeu consolidou dois
princípios fundamentais: a primazia do direito secundário sobre o interno nas
competências que lhe forem exclusivas, podendo torná-las inaplicáveis ou anulá-las,
bem como afirmou o princípio do efeito direto, que possibilita a invocação das
normas comunitárias perante os tribunais internos, sem necessidade de
incorporação das normas estrangeiras (regulamentos, diretivas e decisões não
precisariam passar pelo procedimento de incorporação ao direito interno, surtindo
efeitos jurídicos a partir de sua publicação) nos ordenamentos nacionais.

Este direito derivado comunitário regido pelos princípios do efeito direto e da


primazia, e, por isto, diferente em relação ao direito internacional, e autônomo ao
direito interno, seria um novo gênero dentro do mundo jurídico. Este conjunto de
características serve para que se atribua o adjetivo de supranacional ao direito
comunitário. Logo, o direito comunitário seria supranacional, visto que seria aplicado
256
A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 26/62. Este caso foi o principal
responsável pelo reconhecimento do efeito direto vertical (particular poderia invocar as normas comunitárias em
litígio com o Estado dentro do país membro) do direito comunitário sobre o nacional.
257
A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 36/74. A partir desta sentença,
reconheceu-se também o efeito direto horizontal (particular invocar na relação com outro particular o direito
comunitário).
258
A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 106/77. Suscitou a primazia do
direito comunitário quando em conflito com o direito nacional.
259
A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 148/78. Este caso foi importante
por estabelecer aos Estados-membros o dever de cumprimento do direito comunitário, para que este não fosse
esvaziado pela prática da soberania intransigente.
260
A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 6/90. Consagrou a possibilidade
de punição ao Estado que não cumprir o direito comunitário, permitindo sua responsabilização civil por
eventuais danos causados pelo não cumprimento.
261
A transcrição literal do acórdão pode ser obtida pela análise do processo n° 6/64. Esta decisão paradigmática
consolidou a existência de um ordenamento jurídico comunitário.

646
à revelia da vontade dos governos nacionais. Seu funcionamento e operacionalidade
não poderiam ser afetados por questões políticas internas. Pelo mesmo raciocínio os
órgãos que elaboram as normas jurídicas secundárias seriam classificados como
supranacionais, com uma vontade própria que não se confunde com a dos Estados.
Este distanciamento das instâncias técnicas comunitárias em relação à política
interna de cada membro é vista pelas teorias liberais neofuncionalistas 262 como um
fator positivo e de elevado grau de desenvolvimento dentro das escalas evolutivas
de um processo de integração pela via comercial. Em contrapartida do avanço da
supranacionalidade, a intergovernabilidade é vista como um modelo atrasado e
pouco eficiente. O direito supranacional manifesta a cooperação estatal na área
jurídica, de maneira próxima à de um Estado federal, ou seja, é hierarquizado,
efetivo (com efeito e aplicação diretos, em princípio), mas não conta com um ente
central soberano, dotado, em última instância do monopólio do poder de coerção.

A semelhança do direito regional com a lógica jurídica interna dos Estados é


explicada por Daniel Sarmento quando aborda sua lógica estrutural, em analogia
com a relação entre normas federais e estaduais em uma federação 263. Em virtude
desta construção peculiar e da relativa independência de sua aplicação da soberania
estatal, autores liberais entusiastas do pensamento kantiano 264 afirmam ser o direito
comunitário o modelo mais próximo ao ideal jurídico do direito cosmopolita 265, um

262
Para Ernst Haas, maior exponente do neofuncionalismo, partindo do êxito do pilar econômico, articulado pela
interdependência das economias nacionais, seria possível multilateralizar sua administração para que não haja
interferência de questões políticas internas e, assim, com o fomento da parte comercial, conseguir espalhar os
efeitos positivos para outras áreas, como a política e a social. Este efeito aumentaria as transações comerciais,
atenuaria as rivalidades locais e proporcionaria acordos políticos para a transferência de competências soberanas
dos Estados a órgãos supranacionais, teoricamente neutros da política governamental, o que incrementaria a rede
institucional, viabilizando uma tecnocracia. O aprofundamento do processo alcançaria uma união federal
política, e, consequentemente, a paz. Para mais ver: Machado (2000), Hass (1964) e Calegari (2009).
263
Assim explica o professor Daniel Sarmento (SARMENTO, 2006, p. 53-54): “As relações entre direito
comunitário europeu e direito nacional se articularam sobre dois pilares que se assemelham àqueles que
presidem o funcionamento de um sistema jurídico federal: os princípios de primazia e efeito direto. O primeiro
estabelece a supremacia do direito comunitário europeu sobre o direito nacional em caso de conflito, tornando
inaplicável a norma do direito nacional. Por vezes, tal conflito pode chegar a resultar não apenas
inaplicabilidade, como também anulação da norma interna. Quanto ao princípio do efeito direto, através dele
garante-se que se possa recorrer a tribunais ordinários, isto é, nacionais, para tratar de normas do direito
comunitário europeu. Assim, quando as normas do direito comunitário europeu outorgarem direitos a
indivíduos, estes poderão esgrimir tais direitos na sede judiciária nacional, como se se tratasse de um direito de
criação garantido por lei nacional.”.
264
Dente os quais merece destaque Jürgen Habermas, o responsável por difundir, adaptar e radicalizar
pensamento kantiano ao longo da década de 1990.
265
Soraya Nour (2003, p. 21) sintetiza o pensamento kantiano sobre o direito: “O direito, até Kant, tinha duas
dimensões: o direito estatal, isto é, o direito interno de cada Estado, e o direito das gentes, isto é, o direito das
relações dos Estados entre si e dos indivíduos de um Estado com os do outro. Em uma nota de rodapé na Paz
Perpétua (Kant,1795:347-349), Kant acrescenta uma terceira dimensão: o direito cosmopolita, direito dos
cidadãos do mundo, que considera cada indivíduo não como membro de seu Estado, mas como membro, ao lado
de cada Estado, de uma sociedade cosmopolita. A relação deste direito com os dois anteriores segue a tabela

647
dos fatores principais para a promoção da paz perpétua entre os Estados, que
deixariam as prerrogativas soberanas para tornarem-se uma grande federação que
compartilhasse valores comuns266.

A situação idealizada por Kant parecia próxima após a emergência da globalização


financeira e seu ideário homogeneizador. O estreitamento das comunicações e das
relações comerciais proporcionados pelo avanço tecnológico gerou entre os
pensadores do direito267 uma euforia desmedida a ponto de sustentar um gradual
enfraquecimento do Estado-nação, com a consequente, extinção das fronteiras
nacionais. Com a remodelação e organização da União Europeia pós-Tratado de
Maastricht, nos moldes da ideologia neoliberal, autores, como Jürgen Habermas
entendiam ser o formato supranacional do direito comunitário a solução para os
impasses entre os interesses do indivíduo e a soberania estatal268.

Esta aparente decadência do Estado-nação, perdendo espaço para organizações


internacionais, de normas e funcionamento imunes à política das nações, não se
coaduna com a estrutura e a realidade do Direito Internacional Público, a qual ainda não
foi modificada substancialmente, mas, como envolve um conteúdo com forte influência
político, foi adaptada às novas condicionantes do sistema internacional.

4 Conclusão: o Direito Comunitário como um ramo regional do Direito


Internacional Westfaliano

O Direito Internacional Público contemporâneo veio sendo construído a partir da


transição entre Idade Média e Idade Moderna269, período marcado pelo fim da

das categorias da Crítica da Razão Pura: um único Estado corresponde à categoria da unidade;vários Estados,
no direito das gentes, à da pluralidade; todos osseres humanos e os Estados, no direito cosmopolita, à da
totalidadesistemática, que une os dois estados anteriores (Kant, 1781:93;Brandt, 1995:142).”
266
Rafael de Agapito Serrano (2009, p. 109) explica: “La paz, para Kant, es un estado de dominio de las
relaciones jurídicas entre los pueblos; o bien, es un estado de razón de los pueblos”.
267
Para Habermas (1995, p. 98): “Globalização significa transgressão, a remoção das fronteiras, e portanto
representa uma ameaça para aquele Estado-nação que vigia quase neuroticamente suas fronteiras. Anthony
Giddens definiu "globalização" como "a intensificação das relações mundiais que ligam localidades distantes,
de tal maneira que os acontecimentos locais são moldados por eventos que estão a muitos quilômetros de
distância, e vice-versa". A comunicação global ocorre tanto por meio de linguagens naturais (na maioria das
vezes através de meios eletrônicos) como por códigos especiais (são os casos, sobretudo, do dinheiro e do
direito).”
268
De acordo com Habermas (1995, p. 100): “Uma das maneiras de escapar ao impasse, tal como descrito
acima, é indicada pela emergência de regimes supranacionais com o formato da União Europeia. Precisamos
tentar salvar a herança republicana, mesmo que seja transcendendo os limites do Estado-nação.”.
269
É necessário recorrer a elementos históricos para compreender esta peculiaridade jurídica westfaliana. Alain
Pellet aponta a Reforma Protestante como movimento precursor destas ideias (PELLET e alli, 2003): “O vínculo

648
influência da Igreja nas monarquias. Em meio à lógica feudal, desenvolvia-se o
poder da burguesia, cujos interesses se contrapunham àqueles dos proprietários de
terras. A concepção católica de mundo, que embasava o modo de produção feudal,
já não atendia plenamente aos interesses comerciais da classe ascendente. Com
isso, os Estados modernos foram sendo constituídos a partir da visão jurídica de
mundo da burguesia, que secularizava a perspectiva teológica, libertando a
monarquia da tutela do Papa270.

O suporte jurídico deste movimento de enfraquecimento do direito divino e de


fortalecimento do poder político foi o postulado da soberania dos Estados, de
reflexos internos (dentro das fronteiras territoriais) e externos (sem questionamentos
por outros monarcas). Este veio a constituir o pilar das relações internacionais e,
consequentemente, do direito internacional após a Guerra dos Trinta Anos 271. No
sistema interestatal, seria a premissa maior da qual irradiariam dois princípios
básicos, o da igualdade (jurídica, formal) entre os Estados272 e o da inexistência de
um poder central que detivesse o monopólio do uso da força, a conhecida anarquia
sistêmica273. Internamente, legitimaria o poder de coerção do Estado, como um
poder exclusivo, uno, supremo e indivisível (BODIN, 2011).

O Estado, portanto, é colocado no centro das discussões, sempre atuando em favor


do interesse nacional, que imediatamente é o de sobreviver e impor sua vontade em
um ambiente descentralizado e horizontal por meio do acúmulo de poder. Não há
como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder,
que coordena o ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos

religioso quebrado pela Reforma é substituída por uma nova comunidade internacional alargada, fundada no
humanismo do Renascimento.”.
270
Engels e Kautsky (2012) explicam: “O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a
Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e
da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado.”.
271
Conflitos de cunho político e religioso que devastaram os reinos germânicos da parte central da Europa e que
envolveram as grandes potências da época, ao final, foram marcados pela vitória dos países protestantes e pelo
enfraquecimento da Igreja Católica. Os tratados que celebraram a paz, em 1648, firmados em Osnabrück e em
Münster, duas cidades da região de Westfália, expressaram os valores que passariam a nortear a ordem jurídica
interestatal.
272
Logo, os Estados deveriam ter sua integridade respeitada por seus pares (não intervenção), a não ser em caso
de conflito, no qual a guerra poderia ser considerada um meio legítimo de solução de controvérsias.
273
Não há como pensar a sociedade internacional fora de um sistema de equilíbrio de poder, que coordena o
ambiente anárquico (sem um poder hierarquicamente superior) dos Estados. Essa aparente “ordenação” não
segue a semântica convencional. Não há ordem na acepção clássica do termo, mas uma disposição dos Estados,
ao mesmo tempo rígida e precária, que necessita da desordem, para que continue se fortalecendo e se
perpetuando.

649
Estados (FIORI, 2007). Com o passar do tempo, as mudanças sistêmicas
determinaram uma maior complexidade da relação entre Estados, abrindo espaço para
o surgimento de organizações internacionais e para a relativização do conceito absoluto
de soberania, o qual foi adaptado às novas necessidades e aos novos temas da
agenda global, valorizando a cooperação interestatal (KOSKENIEMMI, 2004).

Neste panorama é que se encontra a integração regional europeia. Resultado de um


arranjo geopolítico do pós-Segunda Guerra Mundial, cujos rumos foram
determinados por condicionantes internas e externas, seguiu e adaptou-se às
transformações da sociedade internacional, sobretudo ao ideário neoliberal do final
do século XX. Com uma estrutura remodelada pelo Tratado de Maastricht, a
articulação peculiar do direito comunitário passou a ser defendida pelos pensadores
liberais como modelo de um direito livre de interferência da política dos Estados,
ante sua autonomia perante o direito interno e suas particularidades em relação ao
direito internacional. Apesar de gozar de características próprias, o direito
comunitário não está acima da vontade dos Estados e constitui uma manifestação
específica regional do direito internacional público por diversas razões, as quais
serão expostas a seguir.

A primeira e mais óbvia reside no fato da União Europeia não ser um Estado federal,
mas uma organização internacional, como todas as outras que existem no direito
internacional. Isto significa que pela definição doutrinária (TRINDADE, 2003;
PELLET et alli, 2003) a UE é composta por uma união de vontades dos Estados
(soberanos), a qual lhe garante uma personalidade jurídica derivada (originária é a
dos Estados) e própria (com a dos Estados não se confunde necessariamente),
constituída por tratado internacionais (constitutivos) e instrumentalizada a um fim
específico (econômico). Estas entidades são regidas pelos princípios da
especialidade e da subsidiariedade. Em outras palavras, suas competências serão
delegadas pelos Estados para que elas possam atingir seus objetivos. Ocorre que a
distribuição de competências na União Europeia é bem complexa, envolvendo
diversas áreas, ainda que, em sua maioria, voltadas a questões comerciais e
econômicas, sem tocar na maior parte das prerrogativas soberanas do Estado 274. O

274
Enquanto prerrogativas soberanas são as áreas que denotam explicitamente o poder estatal, como a atrofia das
iniciativas voltadas a uma comunidade política, a uma integração vinculada à defesa regional, a qual é praticada

650
argentino Félix Peña rechaça a ideia evolucionista do processo de integração, ainda
que dentro de uma visão funcionalista, situando-o como uma plataforma de
efetivação do interesse nacional por meio da potencialização do interesse regional,
em um sistema de ganhos recíprocos, o que o legitima teoricamente perante a
sociedade.

A segunda aborda a institucionalidade europeia, cuja sua composição difusa e


complexa, que reúne a mescla de pilares supranacionais e intergovernamentais,
como, respectivamente, o das Comunidades e o de Política e Segurança Externa
Comum, a PESC275. A coordenação destes vetores é feita por intermédio do
Conselho Europeu, o órgão executivo de cúpula, responsável por elaborar as
diretrizes políticas gerais, composto pelos Chefes de Estado e de Governo dos
países membros, pelo seu Presidente e pelo Presidente da Comissão Europeia
(estes dois últimos não têm direito de voto), ainda segue a lógica intergovernamental
e não supranacional, como outros da Comunidade276. Criado definitivamente na
Cúpula de Paris, em dezembro de 1974, não nasce como um órgão comunitário e
somente aparece pela primeira vez na arquitetura formal após a incorporação do Ato
Único Europeu, em 1986. Ainda assim, é competente para debater e tomar decisões
sobre o desenvolvimento e a coesão da União Europeia como um todo, sem,
contudo, exercer função legislativa. Com o Tratado de Lisboa foi incorporado
definitivamente no seio comunitário, tendo suas competências ampliadas e
modificadas277, sem perder a intergovernabilidade. Diante do exposto, parece um

por uma organização internacional que é liderada por países de outro continente, a OTAN, a uma política externa
comum e à questão tributária e à fiscal (apesar de a monetária ser o exemplo de prerrogativa soberana
compartilhada, ainda que por nem todos os membros). Maurizio Bach alarga a análise, sustentando que o avanço
normativo é referente à liberdade de bens, serviço e capital, não toca a questão da liberdade de trabalho e nem a
institucionalização do conflito entre capital e trabalho, deixando os assuntos a cargo das regulações nacionais
(BACH, 2006).
275
Este viés da cooperação não foi incorporado pela lógica comunitária nem deverá sê-lo. Procura-se apenas
elaborar diretrizes que podem ou não ser seguidas pelos Estados membros, caso estes estejam dispostas a praticar
uma política externa e de segurança comuns.
276
Órgãos como a Comissão Europeia, o Conselho da União Europeia, o Parlamento Europeu, o Tribunal de
Justiça da União Europeia, o Banco Central Europeu, o Tribunal de Contas Europeu, o Banco Europeu de
Investimento, dentre outros.
277
Dentro das reformas mais substanciais, destaca-se a criação do cargo de Presidente do Conselho Europeu,
competente para convocar as reuniões extraordinárias e administrar o funcionamento do órgão, cujo mandato é
de dois anos e meio prorrogável uma vez por igual período; sua inter-relação com o ocupante de outro cargo
recém-criado, o do Alto Representante para Assuntos Exteriores e de Segurança, que participa de suas reuniões;
seus atos compõem o direito comunitário e, por isso, são passíveis de controle de comunitariedade pelo Tribunal
de Justiça Europeu (ESPADA et ali, 2012); seu quórum de votação manteve-se no consenso, salvo para questões
pontuais determinadas pelo Tratado de Lisboa, nas quais poderá adotar a unanimidade ou a maioria qualificada

651
contrassenso celebrar a supranacionalidade da União Europeia, quando seu órgão
norteador de rumos políticos segue ainda a lógica intergovernamental, o que só
revela que a vontade dos governos influencia diretamente nas questões regionais.

A reserva de soberania do Estado é evidenciada também na terceira razão, atinente


ao direito comunitário. Em primeiro lugar, o direito originário segue a lógica ordinária
do direito internacional, ou seja, para ser aplicado internamente, precisa passar pela
aprovação no procedimento de incorporação dos tratados internacionais. Em
segundo lugar, o direito derivado, dele originado, ganha particularidade por não
precisar novamente submeter-se ao procedimento de incorporação, tendo efeito
direto nos tribunais nacionais. Isto garante operacionalidade e dinamicidade à
organização dentro dos assuntos para os quais os órgãos comunitários são
competentes. Estas competências foram transferidas pelos Estados e referem-se a
assuntos específicos, os quais envolvem em sua maioria questões comerciais e
econômicas. Logo, os Estados não perdem sua soberania ou são enfraquecidos, ao
contrário, transferem prerrogativas e poderes para efetivar seu interesse nacional ou
prioridades de suas elites, tornando por meio das normas as relações comerciais
mais dinâmicas e estáveis278. Além do efeito direto, o direito secundário possui uma
autoproclamada primazia sobre a legislação interna, feita pela jurisprudência do
Tribunal de Justiça Europeu. Ainda que louvável na teoria, na prática dependerá de
sua confirmação nos tribunais internos279, os quais somente renunciaram a este
controle, se o direito comunitário efetivar de forma satisfatória (conceito bastante
subjetivo e de fácil manipulação) os direitos fundamentais (SARMENTO, 2006).

Portanto, vistas as três razões acima, percebe-se que o conceito de


supranacionalidade exprime nada mais que duas particularidades do direito
comunitário, as quais não são suficientes para colocá-lo acima da vontade soberana

(como na eleição de seu Presidente); e reunir-se-á semestralmente, sendo pelo menos uma vez ao ano em
Bruxelas.
278
O alemão Maurizio Bach (2006, p. 161) assim também entende: “A União Europeia é, portanto, constituída,
fundamentalmente, através dos atos jurídicos que se baseiam na livre celebração de acordos pelos governos
soberanos participantes. Neste sentido, o sistema europeu de soberania supranacional constitui-se dentro dos
limites do espaço jurídico estipulado pelos membros associados.”.
279
O próprio Daniel Sarmento (2006, p. 61) admite: “Assim, o tribunal constitucional nacional estará
convocado a forçar, até o limite de suas possibilidades, a leitura da Constituição nacional com o objetivo de
torna-la compatível com o direito comunitário europeu. Quando esta interpretação se revelar impossível, o
conflito deverá ser resolvido favoravelmente à Constituição nacional.”.

652
do Estado. O que há é um direito internacional regional 280, o qual respeita os
ditames da soberania, ainda que se diferencie de outras manifestações jurídicas
regionais. A noção de que o direito comunitário supera a soberania do Estado é
datada e conveniente para suas elites controladoras e antidemocráticas 281, cujo
intuito é a imposição da ideologia neoliberal que foi institucionalizada na União
Europeia após o Tratado de Maastricht.

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BAUMANN, Zygmunt. Europa: uma aventura inacabada. Trad. De Carlos Alberto


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280
A professora Ana Cristina Paulo Pereira ratifica esta lógica: “Em geral, todo o direito comunitário encontra-se
permeado dos princípios de direitos humanos e das normas jus cogens do direito internacional, que servem,
portanto, de orientação para sua aplicação.” (PEREIRA, 2006, p. 204). Lógica esta que é aprofundada pela visão
intergovermentalista de Jacques Ziller: “The EU is based upon international agreements (i.e., treaties) that are
binding upon sovereign states; as long as the treaties do not specifylegal rules and principles applicable to the
functioning of the EU,the international law of treaties is applicable – a set of principles andrules which has been
to a large extent codified by the United NationsConvention on the Law of the Treaties of 1969. One of the
fundamentalprinciples of international law is the principle of specialty,according to which organizations or
bodies set up by a treaty have only the powers which they have been provided by the treaty; on thecontrary, a
state, in international law, has no limitation to its powers,other than the limitations they have voluntarily
accepted by agreeingto international treaties. The principle of specialty is also known asthe “principle of
conferral, and has always been applicable to the European Communities.” (ZILLER, 2012: p. 118).
281
Maurizio Bach (2006, p. 161) sustenta que: “A legitimidade da União Europeia baseia-se, em primeiro lugar,
na crença na legalidade do sistema normativo estatuído por elites funcionais pouco sujeitas a controles, e apoiado
por códigos correspondentes de procedimentos, que regulam a formação da opinião e a tomada de decisões por
parte dos órgãos da União Europeia.”

653
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656
Simpósio Temático 10

REVISÃO DA POLÍTICA DE DEFESA DO GOVERNO BRASILEIRO


À LUZ DO CONCEITO DA BASE LOGÍSTICA DE DEFESA

Carlos Ribeiro Praia282

1 Introdução

Nos dias de hoje, o Brasil apresenta um quadro bastante diferenciado de


circunstâncias e desafios que permite a sua integração no cenário global do século
XXI. Este novo quadro, aliado ao processo de globalização, condiciona o
estabelecimento de novas diretrizes estratégicas do governo nos campos da
estabilidade financeira, abertura do mercado nacional, tratamento prioritário das
questões sociais e desenvolvimento do regime democrático.

Além disso, o fato de, nos últimos anos, o Brasil desfrutar de uma posição de
destaque no plano internacional exige uma nova postura no campo da defesa, a qual
deve ser consolidada, avaliada e continuamente aperfeiçoada.

Frente a essa nova realidade, torna-se necessário o lançamento de alicerces que


permitirão o desenvolvimento de indústrias voltadas para o segmento de defesa,
considerado essencial para o sólido aparelhamento das Forças Armadas com os
meios necessários ao cumprimento da missão constitucional a elas atribuída.

Para um país de dimensões continentais como o Brasil, a importância estratégica da


Base Industrial de Defesa (BID) – compreendida como o conjunto de empresas
estatais e privadas, assim como de organizações civis e militares, que participam de
uma ou mais das etapas de pesquisa, desenvolvimento, produção, distribuição e
manutenção de produtos estratégicos de defesa (bens e serviços) – está ligada à
contribuição que ela oferece ao sistema de defesa e, por consequência, ao
desenvolvimento nacional.

282
Universidade Federal Fluminense

657
Tellis (2000) restringe a abrangência desta apenas ao segmento industrial ligado à
defesa, embora ele inclua as instituições de pesquisa e de apoio entre os recursos
estratégicos.

O setor produtivo de defesa possui como especificidades a necessidade de grande


escala produtiva e de altos dispêndios em pesquisa e desenvolvimento; o longo
prazo de maturação dos projetos e curto ciclo de vida de materiais; e a existência de
um mercado fortemente influenciado pelas compras governamentais e pelas
exportações, com a presença de setores altamente competitivos.

Portanto, a BID, isoladamente, não possui condições e capacidade para atender às


demandas de abastecimento de produtos e de serviços militares. A capacitação
nacional somente será atingidana sua plenitude se toda a infraestruturafor
devidamenteestabelecida, ativada e integrada.

A infraestrutura de ciência, tecnologia einovação dedicada à produção e


disponibilizaçãoda tecnologia militar que caracterizaa BID é muito maisampla que a
indústria de defesa. Seus componentesdevem atuar de maneira concatenadae
integrada nas atividades de ensino e pesquisa básica, pesquisa aplicada,
desenvolvimento e avaliação, projeto, fabricação de produtos, serviços e logística.

Assim, Brick (2011) apresenta uma abordagem de BLD voltada especificamente para o
processo de construção ou aparelhamento do poder e a define como o conjunto de
instituições, que tem como finalidade dotar as Forças Armadas dos meios necessários
para cumprir com as suas respectivas missões e para desenvolver e sustentar a
expressão militar do poder, profundamente envolvido no desenvolvimento da
capacidade e da competitividade industrial do país como um todo.

Uma vez que um sistema compreende um conjunto de elementos inter-relacionados


entre si, e com o ambiente no qual o mesmo está imerso, a BLD pode ser
considerada um sistema teleológico que se destina a fins específicos e cuja
relevânciaconsiste na sua capacidade em suprir as necessidades de defesa do país
(a sua eficácia); sem a ocorrência de desperdício de recursos (sua eficiência); de
modo a contribuir para o desenvolvimento econômico-tecnológico e para o bem-
estar social como um todo (os impactos decorrentes).

658
2 A Base Logística de Defesa

Segundo Brick (2011), a Logística de Defesa (LD) tem o propósito de dotar um país
dos meios necessários à defesa nacional. Uma parte importante desses meios,
definidos como produtos de defesa, é constituída por sistemas, equipamentos e
itens, tais como navios, aeronaves, armas, munições e sensores, com emprego
específico em operações militares.

A logística necessária para o provimento desses meios é proporcionada por um


amplo e diversificado conjunto de instituições que interagem entre si. Essas
instituições podem ser empresas públicas, privadas ou mistas, nacionais ou
internacionais, institutos de ciência e tecnologia e inovação, universidades e órgãos
de inteligência e militares.

Segundo o mesmo autor, esse conjunto é denominado BLD e está relacionado ao


agregado de capacitações tecnológicas, materiais e humanas, necessário para
desenvolver e sustentar a expressão militar do poder.

Dessa forma, esse termo se aplica ao amplo complexo de capacitações industriais,


de Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I), de inteligência, de financiamento, de
mobilização, de apoio logístico e de comercialização de produtos de defesa; bem
como, as necessárias regulações a serem providas pelo Estado.

Dada a importância do Estado para a consecução de interesses nacionais, a ele


compete viabilizar toda essa estrutura e atuar como força determinante dos níveis de
demanda de produtos e serviços específicos para defesa. O Estado deve ser fonte
de políticas e estratégias públicas específicas à LD, de modo a possibilitar ações de
indução e de proteção desse setor, criando regulações especiais para as
organizações integrantes da BLD.

Nesse sentido, uma estratégia de defesa é o instrumento adequado a este fim. Ela
define, em linhas gerais, um caminho para alcançar os objetivos definidos pela
política e representa um comprometimento com o mesmo. A sua formulação
depende de avaliações muito amplas sobre a situação atual do país como um todo,
e da mesma situação para os demais atores políticos no sistema. Essas avaliações

659
devem permitir identificar pontos fortes e fracos nas diversas expressões próprias do
poder e possíveis parceiros e ameaças no cenário internacional.

Para o mesmo autor, cada vez mais uma estratégia de defesa é influenciada pela
perspectiva da evolução futura das tecnologias com aplicação em defesa. Assim, a
infraestrutura de inteligência tecnológica da BLD desempenha um papel fundamental
na formulação da estratégia de defesa, ao identificar ameaças e oportunidades
tecnológicas.

3 A Defesa e o Desenvolvimento Industrial

A Estratégia Nacional de Defesa (END) estabelece o desenvolvimento da indústria


de defesa nacional e a independência tecnológica como diretrizes indispensáveis
para o adequado equipamento das Forças Armadas e para o próprio
desenvolvimento nacional.

O atendimento das necessidades de equipamento das Forças Armadas privilegia o


domínio nacional de tecnologias avançadas. A reestruturação da indústria brasileira
de produtos de defesa é o resultado direto dessa decisão. A diretriz nº 22 da END
institui a necessidade de capacitar a indústria nacional de produtos de defesa para
que conquiste autonomia em tecnologias indispensáveis à defesa.

Para isso, o Ministério da Defesa (MD), por meio da Secretaria de Produtos de


Defesa (SEPROD), tem incentivado medidas e participado de atividades voltadas
para o desenvolvimento da indústria nacional de produtos de defesa. Destacam-se,
a seguir, as principais iniciativas:

a) Criação do Núcleo de Promoção Comercial (NPC - MD)

O NPC-MD tem a finalidade de elaborar ações voltadas para o incentivo ao


desenvolvimento e a promoção comercial de produtos de defesa brasileiros e para a
atração de capital e tecnologias que possam ser empregados no desenvolvimento
de produtos de defesa ou de uso dual.

b) Levantamento da BID e Incentivo ao aumento das exportações

660
O MD e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) tem realizado um
levantamento completo da BID com o objetivo de diagnosticar as capacidades e
potencialidades deste importante setor da economia nacional. Este trabalho é de
fundamental importância para o estabelecimento de políticas de incentivo à indústria
nacional.

Além disso, o MD, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior


(MDIC) e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX)
tem buscado segmentos de mercado onde a indústria de defesa brasileira possa ser
competitiva, apoiando as empresas brasileiras em feiras e outros eventos
internacionais.

c) Marcos regulatórios para o fortalecimento da indústria de defesa

A diretriz nº 22 da END define a necessidade de estabelecimento de regimes


jurídico, regulatório e tributário especiais para proteger as empresas privadas
nacionais de produtos de defesa contra os riscos de imediatismo mercantil e para
assegurar a continuidade nas compras públicas.

Para alcançar esta meta, o MD tem elaborado marcos regulatórios consonantes com
o interesse público e as demandas de fomento da BID. A Política Nacional da
Indústria de Defesa (PNID), a Lei nº 12.598/2012 e a Política Nacional de
Exportações de Produtos de Defesa (PNEPRODE) são exemplos de iniciativa de
inclusão de um Programa de Apoio às Exportações.

d) Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia

O MD tem atuado em parceria com Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação


(MCTI) para maximizar e otimizar os esforços de pesquisa nas instituições científicas
e tecnológicas militares, visando ao desenvolvimento de tecnologias de ponta para o
sistema de defesa. Alguns projetos da defesa estão sendo apoiados pela
Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) do MCTI.

e) Interlocução com as empresas brasileiras voltadas para o setor de defesa

O MD tem estabelecido um profícuo relacionamento com as indústrias nacionais de


defesa, por meio de órgãos representativos como a Associação Brasileira das

661
Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE) e as Federações das
Indústrias.

O contato com os citados órgãos propicia ao MD ampla interação com as empresas


estrangeiras interessadas em realizar investimentos ou parcerias no Brasil, assim
como, interação com a cadeia produtiva nacional, o que proporciona um melhor
entendimento de sua potencialidade e a captação de subsídios essenciais para o
correto direcionamento das políticas de fomento do governo.

4 Infraestrutura Científico-Tecnológica da Defesa

A capacitação tecnológica militar acoplada à capacitação tecnológica de âmbito


nacional se constitui hoje no principal esforço para garantir um posicionamento mais
firme, competente e efetivo no cenário militar do século XXI. Para isso, diversos
objetivos devem estar relacionados às atividades de P&D e à capacidade de
fabricação de material de emprego militar, visando fortalecer as bases científico-
tecnológica e industrial de defesa.

Além disso, é notório que as tecnologias críticas militares possuem elevada


capacidade de aplicação em produtos e serviços civis, já que muitas são de uso
dual. Essa característica oferece ao país uma oportunidade única de orientar os
esforços de toda a comunidade científico-tecnológica nacional – civil e militar – na
perseguição do fortalecimento da base nacional científico-tecnológica e da base
nacional industrial, de modo a garantir a oferta de produtos de defesa.

Compartilhar ou cercear o conhecimento científico e tecnológico é uma decisão


política que interfere diretamente nas negociações comerciais entre países, incluindo
as negociações de produtos de defesa.

Para atender às orientações contidas na END, o MD, em coordenação com outros


ministérios e com representações dos setores empresarial e acadêmico, desenvolve
ações no sentido de integrar os sistemas de ciência e tecnologia existentes no Brasil.

Uma considerável economia de meios e de esforços pode ser alcançada se houver


maior integração dos órgãos de pesquisa e desenvolvimento das Forças Armadas,

662
não somente na execução de projetos integrados ou de interesse comum, mas
também na exploração de novas oportunidades na área de ciência e tecnologia.

Uma maior participação da comunidade científica civil nos projetos militares,


inclusive com a possibilidade de transferência de recursos orçamentários da defesa
para infraestrutura de ciência e tecnologia civis pode, também, racionalizar a
condução de projetos de interesse de defesa.

A interação entre instituições de pesquisa civis e militares, universidades e


empresas é fundamental para integrar os esforços empresariais na criação de polos
de alta tecnologia em variadas áreas.

Em vista das políticas existentes e das delimitações que o país se impõe à


construção de uma BLD nacional, seguem algumas medidas que estão sendo
tomadas na política relacionada à C,T&I.

5 Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 2012 – 2015

O comércio de produtos de defesa é restrito e altamente regulado, vários países


desenvolvem política tecnológica e industrial voltada para a sua BID e as compras
governamentais se pautam não apenas por questões técnicas e econômicas, mas
também por interesses geopolíticos. Esses aspectos geram cerceamento e restrição
de transferências dos países detentores aos que não os possuem para vários
produtos e tecnologias.

A recuperação do Complexo Industrial da Defesa é uma das metas definidas na


END, que além da finalidade de prover artigos e sistemas necessários ao emprego
das Forças Armadas pode servir em alguns setores da ciência como indutor de
inovações tecnológicas e estender o uso dos produtos gerados as aplicações civis,
pelo caráter dual dos desenvolvimentos.

Os investimentos em P&D na defesa visam à integração de sua política de C,T&I


para a Defesa Nacional ao sistema nacional gerido pelo MCTI, no sentido de articular

663
esforços e iniciativas nos trabalhos dos institutos de pesquisa militares, civis,
universidades e centros tecnológicos, resultando no fortalecimento de toda a BID.

As Forças Armadas oferecem, em matéria de C,T&I, aportes valiosos para a


elevação do nível de autonomia do país. Naturalmente, as atividades econômicas de
maior densidade tecnológica contribuem para uma inserção mais qualitativa da
economia brasileira nas trocas internacionais, produzindo efeitos sistêmicos sempre
positivos, bem como, a formação de recursos humanos especializados e a geração
de empregos de elevado padrão.

O objetivo principal deste programa é fortalecer a pesquisa e o desenvolvimento


para importantes áreas de pesquisa científica e tecnológica para as quais o país
apresenta fortes demandas, propiciando o crescimento da BID, ampliando as
exportações e elevando o fornecimento nacional nas compras de defesa até 2020.

Dentre as principais estratégias associadas estão:

 Desenvolvimento da fabricação e do emprego dos materiais resistentes ao


impacto balístico e sua aplicação em viaturas, navios e aeronaves militares,
bem como daqueles destinados a proteção individual;

 Contribuição para o desenvolvimento e a fabricação de propelentes e


explosivos de alto desempenho;

 Contribuição para o estabelecimento de um Centro de Computação de Alto


Desempenho para a Defesa, incluindo a BID;

 Criação do Centro de Defesa Cibernética, por meio de parceria do MCTI com


o MD;

 Fomento ao desenvolvimento de tecnologias de Sistemas de Armas e


aumento da capacidade de produção e emprego de armas não letais; e

 Incentivo a pesquisa, ao desenvolvimento e a inovação nos campos nuclear,


aeroespacial e de defesa cibernética, em sintonia com a END, propiciando a
integração de programas e buscando maior sinergia entre os institutos de
pesquisa militares e os institutos civis e universidades.

664
6 Plano Brasil Maior

O Plano Brasil Maior (PBM) apresenta um esboço de uma estratégia de apoio ao


setor produtivo que privilegia esforços tecnológicos e inclui mecanismos de indução
do dispêndio empresarial em pesquisa e desenvolvimento. Com o plano, o governo
estabelece a sua política industrial, tecnológica, de serviços e de comércio exterior
para o período de 2011 a 2014.

Além disso, através do uso de instrumentos financeiros, tributários e regulatórios de


promoção dos investimentos e das exportações, o governo brasileiro consegue
garantir empregos e assegurar importantes conquistas em diversos setores do país,
visto que estimula a indústria a avançar na busca de soluções e melhores práticas
tecnológicas e operacionais.

O plano apresenta propostas que integram as agendas estratégicas setoriais,


iniciando uma nova etapa na implementação da política industrial brasileira.

A construção coletiva de medidas, que viabilizam o cumprimento de diferentes


objetivos selecionados, assegura avanços mais rápidos e direcionados,
complementando os esforços de aperfeiçoamento do ambiente regulatório,
financeiro e tributário nacional.

Dessa forma, dentre os objetivos estratégicos estabelecidos no PBM, apresentam-se


aqueles relacionados ao setor de defesa, aeronáutico e espacial, e suas respectivas
medidas que estão sendo adotadas:

a) Fortalecimento da cadeia produtiva de defesa, aeronáutica e espacial:

 Implantação de um programa de financiamento para Empresas Estratégicas


de Defesa;

 Implementação do Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED) –


1ª fase;

 Viabilização da instalação do Centro de Tecnologia de Helicópteros;

 Instituição do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da


Indústria Espacial – Padie (Lei nº 7.526/2010);

665
 Revisão da Política Nacional da Indústria de Defesa (PNID);

 Alinhamento das compras de produtos de defesa com a END;

 Regulamentação da Lei nº 12.598/2012 (medida implementada);

 Criação da empresa privada ou mista de trading com controle institucional do


MD;

 Implantação da Política Nacional de Exportação de Produtos de Defesa


(PNEPROD), com a adoção de novo sistema informatizado e parametrizado
de produtos e países;

 Criação do núcleo de promoção comercial no MD;

 Implantação do Sistema Nacional de Homologação de Produtos de Defesa e


Credenciamento de Empresas de Defesa; e

 Implantação do Sistema de Auditagem de Conteúdo Nacional.

b) Implementação de programa de P&D pré-competitivo para o setor aeronáutico


baseado em projetos de desenvolvimento de tecnologias de fronteira.

 Elaboração de estudo de viabilidade técnica-operacional para a


implementação de programa de plataformas demonstradoras tecnológicas;

 Identificação das tecnologias duais que beneficiarão outras empresas, ICTIs e


setores industriais a partir dos transbordamentos do desenvolvimento de
programa de plataformas demonstradoras tecnológicas;

 Identificação de empresas nacionais e ICTIs com condições de compartilhar


os riscos tecnológicos de um projeto piloto;

 Negociação com órgãos governamentais de financiamento e apoio à inovação


recursos para criação de um programa de plataformas demonstradoras
tecnológicas; e

 Implementação de programa de plataformas demonstradoras tecnológicas a


partir da proposição dos três projetos pilotos.

666
c) Fomento à capacitação da indústria nacional no desenvolvimento e produção
de equipamentos e subsistemas de satélites geoestacionários:

 Instituição do Plano de Absorção e Transferência de Tecnologia e concepção


do programa de financiamento; e

 Desenvolvimento de estudos, com a participação da indústria nacional, e


elaboração de relatórios referentes às fases de análise de missão e de estudo
de viabilidade de satélite geoestacionário meteorológico nacional.

d) Consolidação do Sistema de Compensação Tecnológica, Industrial e


Comercial – CTIC (offset) para compras e vendas nos setores de defesa,
espacial e aeronáutico:

 Estabelecimento da Política Nacional de Compensação Tecnológica,


Industrial e Comercial - CTIC e desenvolvimento de metodologia para
identificação dos projetos e programas nacionais e internacionais, com
participação de empresas brasileiras, que possam ser objeto de recebimentos
e de ofertas de offset pelo governo brasileiro.

e) Fomento à capacitação da indústria nacional no desenvolvimento e produção


de equipamentos e subsistemas de satélites geoestacionários:

 Instituição do Plano de Absorção e Transferência de Tecnologia e concepção


do programa de financiamento; e

 Desenvolvimento de estudos, com a participação da indústria nacional, e


elaboração de relatórios referentes às fases de análise de missão e de estudo
de viabilidade de satélite geoestacionário meteorológico nacional.

f) Estímulo ao desenvolvimento de sistemas espaciais completos:

 Definição dos requisitos técnicos do Veículo Lançador de Microssatélites


(VLM) - medida implementada;

 Contratação do desenvolvimento e produção do VLM;

 Contratação do desenvolvimento da eletrônica de bordo;

667
 Contratação do desenvolvimento do novo propelente;

 Formulação e articulação programa de apoio a projetos de experimentos em


ambiente de microgravidade mais amplo; e

 Certificação de empresa nacional para produção do foguete de sondagem


VSB-30.

Cabe ressaltar que as medidas em curso devem ser aprofundadas, buscando maior
inserção em áreas tecnológicas avançadas, o que envolve estratégias de
diversificação de empresas domésticas e criação de novas. A Estratégia Nacional de
Ciência, Tecnologia e Inovação constituirá a base dos estímulos à inovação do
Plano Brasil Maior no setor da indústria de defesa.

7 Conclusão

Com relação ao desenvolvimento nacional, sabe-se que os produtos estratégicos de


defesa caracterizam-se pelo alto valor agregado de tecnologia, cada vez mais
sofisticada, neles empregada.

Uma indústria de defesa dinâmica gera empregos, eleva o nível dos trabalhadores e
tem a capacidade de desenvolver produtos de aplicação dual em diversos setores
da sociedade. Assim, a existência de uma BID tecnologicamente atualizada,
competitiva, inovadora e diversificada, além de atender à maior parte das
necessidades das Forças Armadas, permite o desenvolvimento de produtos de
defesa capazes de competir no mercado internacional, gerando divisas para o país.

O acesso à tecnologia e ao desenvolvimento de produtos estratégicos de defesa é


extremamente restrito, sendo inclusive um obstáculo a mais para a obtenção desses
produtos no exterior, especialmente daqueles que incorporam tecnologias
consideradas sensíveis.

Numa visão de ganho macroeconômico, é vantajoso para qualquer país estabelecer


uma indústria de defesa própria que incentive a pesquisa e o desenvolvimento de
novas tecnologias.

668
O fator essencial a ser perseguido é o estabelecimento de uma BLD sustentável,
economicamente viável e tecnologicamente atualizada, não só para a capacitação
da expressão militar nacional, mas também para o progresso e para a
independência estratégica do país.

Há muito a indústria de defesa brasileira tem contribuído para o


desenvolvimento do país; entretanto, seguindo os demais segmentos da
economia, ela depende de políticas governamentais que lhe assegurem um
ambiente favorável, facilitando os planejamentos de médio e de longo prazo
que permitam lhe assegurar um futuro próspero.

Assim, para a sustentabilidade da indústria de defesa brasileira, é imperiosa


uma demanda continuada das Forças Armadas, que mantenha a estrutura de
produção ativada.

Para alcançar esse objetivo, considera-se imprescindível assegurar ao setor de defesa


orçamentos adequados e continuados, que lhes permitam programar aquisições e
realizar encomendas à indústria nacional. Tal iniciativa contribuirá para a ampliação da
BLD e alavancagem do desenvolvimento científico e tecnológico no país.

Referências Bibliográficas

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Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 2012 – 2015, Balanço das Atividades
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_______. MINISTÉRIO DA DEFESA. Livro Branco de Defesa Nacional. Brasília,


2012.

669
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EXTERIOR. Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI. Estudos
Setoriais de Inovação, Base Industrial de Defesa. Brasília, 2010.

_______. Plano Brasil Maior. Agendas Estratégicas Setoriais. Brasília, abril 2013.

BRICK, E. S. Base Logística de Defesa. In: Anais do V Encontro Nacional da


Associação Brasileira de Estudos de Defesa. Fortaleza, ago.de 2011.

TELLIS, J.A., et al. Measuring National Power in the Postindustrial Age. RAND
MR-1110-A. Santa Monica, California: RAND, 2000.

670
ANÁLISE DA AQUISIÇÃO DOS VEÍCULOS BLINDADOS LEOPARD1A5 COMO
MODELO PARA PROCESSOS FUTUROS.

Eduardo Cesar Bohn

1 INTRODUÇÃO

O lançamento da Política de Defesa Nacional (PDN) em 2005, da Estratégia de


Defesa Nacional (END) em 2008 e do Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN)
em 2012 demonstram de forma clara o resurgimento da preocupação política
com a defesa nacional e com os diferentes elementos que a compõem. No
entanto, apesar da pertinência da capacitação das forças armadas e de toda a
estrutura que apoia este movimento, não é consenso entre os brasileiros que
investimentos do porte demandado pela situação das forças armadas do Brasil
sejam tidos como prioritários 283.

Importa ter em vista que qualquer projeto de desenvolvimento nacional é expresso


por políticas, que, por sua vez, como diria o professor Clóvis Brigadão na introdução
da obra ―Política de Defesa no Brasil: uma Análise Crítica‖ de Proença Jr e Diniz,
refletem "acertos e acordos de caráter provisório, respeitando as relações de força e
interesses políticos predominantes no momento da tomada de decisão‖ (PROENÇA
JR; DINIZ, 1998). Da mesma forma, sabe-se que projetos deste perfil não tem
perspectiva de conclusão de curto prazo, demandando décadas de investimento
continuo e, considerando-se um regime democrático, que ultrapasse diferentes
administrações federais, potencialmente de partidos rivais.

Sendo assim, dado os volumes de recursos necessários para este, parece lógico
que se tente analisar casos recentes de processos de aquisição de defesa à luz de
uma abordagem teórica, visando identificar os caminhos que tragam os melhores
resultados, ou pelo menos os resultados esperados. Este tipo de revisão torna-se
283
Proença Jr apresenta uma análise sobre esta relativa indiferença da sociedade brasileira em relação às questões
de defesa, apontando esta tendência como consequência da dificuldade de se identificar as perspectivas de uso
das Forças Armadas, resultante de circunstâncias como o fato de que o Brasil seria mais “forte” que qualquer um
dos seus vizinhos (com os quais, aliás, nenhuma das fronteiras apresenta contencioso) e pela atuação constante
dos Estados Unidos no sentido de evitar incursões extra-regionais no continente (PROENÇA Jr., 2011).

671
ainda mais pertinente quando consideramos as demais urgentes demandas
evidenciadas pela sociedade brasileira, que, além disso, tende a identificar as
necessidades de defesa como de menor prioridade, ou mesmo com desconfiança.
Uma vez que ―do ponto de vista da Teoria da Guerra, é a sociedade, por meios de
suas instituições políticas, que determina qual, quanto e como dos recursos de uma
sociedade serão convertidos e empregados‖ (DUARTE, 2011, p. 5) (neste caso, em
―logística‖284) é necessário que a sociedade esteja bem informada e de acordo com
os objetivos e meios dos investimentos do dinheiro público.

Primeiramente se fará uma contextualização teórica sobre processos de aquisição


em defesa em geral e alguns de seus possíveis reflexos, seguido de uma
aproximação da realidade brasileira a partir do caso da obtenção dos veículos
blindados Leopard1A5. Espera-se assim contribuir para o debate que subsidie e
justifique o necessário reaparelhamento das forças armadas e bem como a
recapacitação da Base Industrial de Defesa (BID), porém da forma mais favorável
possível. A aquisição de produtos de defesa requer uma estrutura organizacional
adequada, o conhecimento militar, a perícia específica, programação cuidadosa e
metodologia apropriada, uma vez que tem lugar em um ambiente marcado por
incertezas. Destaca-se ainda o fato de que este tipo de avaliação dos processos de
aquisição pode ser extrapolado para todas as forças, o que a dota de ainda maior
pertinência frente à evidência e a aceleração das preocupações de defesa, derivada,
entre outras razões, da descoberta de petróleo na camada do pré-sal.

2 AQUISIÇÃO X COMPRA

O objetivo maior deste artigo é, dadas as circunstâncias previamente mencionadas,


argumentar que o reaparelhamento e recapacitação das forças armadas seja feito
com base no mais amplo conceito de ―aquisição‖ (―acquisition‖) e não apenas no de
―compra em si‖ (―procurement‖), no contexto da reorganização da Base Industrial de
Defesa. Para tanto utilizaremos as conceituações apontadas por David Sorenson.
Dentre estas, adotaremos a utilizada pelo Departamento de Defesa dos Estados
Unidos (DoD), por tratar-se da mais ampla, envolvendo, além da etapa da ―compra

284
O conceito aqui é utilizado de acordo com Proença e Duarte (2005) e será detalhado posteriormente.

672
em si‖, considerações quanto ao ―Custo de Ciclo de Vida‖ (―Life-CycleCosts‖ ou
LCC) docomponente em questão, ou seja, pesquisa, desenvolvimento, produção,
manutenção, melhorias e destinação final (SORENSON 2009, p. 1).

Esta conceituação abrangente parece mais adequada, embora extremamente mais


complexa do que se pensar apenas na compra em si, por três razões principais.
Primeiramente por fornecer um retrato mais real dos custos envolvidos na transação
em médio prazo e longo prazos (lembrando que determinados sistemas chegam a
manter-se em operação por décadas); em segundo lugar, por, a partir deste retrato,
permitir uma comparação mais justa entre diferentes sistemas concorrentes, e por
último, por facilitar o entendimento de todos possíveis desdobramentos logísticos
derivados de uma compra de materiais de defesa e de seus reflexos na sociedade
como um todo.

Apesar de utilizarmos um conceito norte-americano e de sermos influenciados por


uma profusão de bibliografias de mesma origem, temos de resistir a tentação de um
―copismo‖ sem análise. Neste caso a diferenciação recém feita é valiosa também
para o caso brasileiro, porém, como nos aponta William Moreira, os sistemas de
aquisição são próprios dos diferentes países, dependendo das especificidades de
cada nação, incluindo a natureza da expectativa de utilização das forças armadas e
as capacidades (e tradições) da Base Logística de Defesa285, e mesmo industrial
como um todo. Moreira ainda acrescenta que a experiência internacional é uma
importante fonte para fundamentar o desenvolvimento de nosso próprio sistema de
aquisição (Moreira 2012, p.5), porém não é demais lembrar que nenhuma
importação processual desprovida de adaptações para a realidade local tende a
promover os mesmos resultados apresentados no país de origem, gerando assim
expectativas irreais, desperdícios e frustrações.

3 “LOGÍSTICAS” ESTRATÉGIA E AQUISIÇÃO.

Dito isto, fica claro que a principal preocupação aqui é ressaltar a importância de
todos os elementos por trás da compra em si, e seus reflexos na sociedade

285
Conceito trabalhado a seguir ainda neste trabalho.

673
brasileira. Para melhor definir este universo, utiliza-se o conceito de Proença e
Duarte, em que, a partir da obra de Clausewitz, se entende ―logística‖ como sendo
―tudo aquilo necessário para que uma força combatente seja tida como dada‖
(PROENÇA; DUARTE, 2005).

Contudo, nada se perde se utilizarmos o conceito da Base Logística de Defesa


(BLD) exposta por Brick para percebermos os demais aspectos que circundam os
processos de aquisição de defesa, qual seja:

o agregado de capacitações, tecnológicas, materiais e humanas, que


compõe o meta-sistema de aparelhamento, necessário para desenvolver e
sustentar a expressão militar do poder, mas também profundamente
envolvido no desenvolvimento da competitividade industrial e da economia
do país como um todo (Brick, 2011).

Sendo assim, a precisão do conceito recai neste caso a segundo plano. Importa é
ter consciência de que os processos de aquisição de defesa não constituem fatos
isolados e que deles desdobram-se uma serie de cadeias que impactam na
sociedade como um todo, seja através da constituição/atividade da Base Industrial
de Defesa (BID), através da destinação de grandes quantias de dinheiro público,
seja, em última análise, através da obtenção ou não de sistemas que garantam a
segurança e a soberania nacional por parte das forças armadas.

Importa destacar, entretanto, que o maior interesse no caso brasileiro atual, tanto no
que tange as aquisições de defesaquanto no que tange a construção de uma BID
contundente, é o ganho de capacidade estratégica e de soberania, sendo os benefícios
econômicos e sociais controversos em termos de volume. Renato Dagnino faz uma
revisão bibliográfica bastante coerente quanto a este ponto relativizando inclusive as
questões pertinentes a ocorrência dos diferentes conceitos que tratam dos efeitos do
―spin-off‖, lembrando inclusive a obra de J. Alic e outros de 1992. Estes autores
destacam o chamado ―paradigma do spin-off‖,‖ como o fato de que

a difusão do conhecimento produzido no meio militar para o setor civil seria


fácil e quase automática; e que supõe que os receptores do conhecimento
podiam reconhecer e aplicar as tecnologias potencialmente úteis resultantes
da P&D financiada pelo governo e adaptá-la com um mínimo de esforço a
um grande número de aplicações na indústria civil (DAGNINO, 2010, p.156)

674
questionando a sua aplicabilidade de maneira generalizada. Embora Dagnino trate
mais especificamente sobre a questão dos reflexos da BID, a argumentação pode
ser extrapolada sem prejuízo para o caso específico do debate sobre aquisição,
objetivo final da BID.

Isto é dito aqui para indicar que, quando se defende a construção de uma Base
Logística de Defesa mais robusta, é primordialmente para garantir a autonomia e
soberania nacional em campos de caráter estratégico. Em outras palavras, esta
ressalva cabe aqui, pois os processos de aquisição de defesa são o que sustenta e
da razão a BLD e, de forma mais específica, a BID, descrita por Jacques Gansler
como um fator mor de ―deterrence‖ (GANSLER, 1982, p. 9).

A intenção aqui não é negar por completo os benefícios econômicos e sociais da


capacitação da BID, mas sim destacar que o fio condutor do pensamento da
capacitação de defesa no Brasil deve ser a aquisição de capacidades estratégicas e
de soberania, sendo os demais ganhos colaterais, mesmo que por vezes bastante
significativos e desta forma não desprezíveis. Parte da justificativa para tanto reside
no fato de que o ganho de autonomia parece de mais difícil contestação, ao passo
de que os ganhos econômicos e sociais são ainda controversos na literatura tanto
internacional quanto nacional.

Por conseguinte é necessária uma clara reflexão sobre quais as necessidades


estratégicas das forças armadas, bem como suas perspectivas de utilização.
Retomando Proença e Duarte, ―o propósito da logística é definido pelas
necessidades da tática e da estratégia, tendo, porém uma lógica
própria‖(PROENÇA; DUARTE 2005, p. 646), e, uma vez que se saiba o propósito da
força combatente, pode-se então elaborar a sua composição de forma efetiva, bem
como os demais elementos necessários para que uma ―força combatente seja tida
como dada‖.

Mais uma vez podemos aprender com a experiência norte americana, guardadas as
especificidades tanto locais quanto temporais. De certa forma, os dois principais
pontos aqui destacados, quais sejam, a prioridade do conceito de ―aquisição‖
(lembrar LCC) sobre o de ―compra‖, e a ―subordinação‖ da logística à estratégia; são
de alguma forma levados em conta (mesmo que com importantes alterações ao

675
longo do tempo) no processo de aquisição de defesa nos EUA desde a passagem
de Robert McNamara pelo DoD (1961-68). No entanto, algumas característica da
sociedade em que McNamara estava inserido que possibilitaram as contribuições
feitas por ele são radicalmente distintas da realidade brasileira. Uma das principais
diferenças era o fato de que o primeiro aspecto a ser considerado na disputa entre
diferentes sistemas concorrentes era o ganho de capacidades em detrimento do
preço, ainda que este jamais fosse desconsiderado. McNamara entendeu que a
escolha das armas começa com a estratégia (SORENSON, 2009, p. 18) e que a
compra dos produtos de defesa não podia ser tomada de forma isolada das demais
etapas envolvidas (desenvolvimento e produção, por exemplo)(SORENSON, 2009,
p. 18-20), porém pôde implantar as medidas que julgou necessárias a partir deste
entendimento em função da tradição e da expectativa do uso das forças armadas, e
de um custo de oportunidade possivelmente menor, pelo menos aparentemente, do
que o atual caso da sociedade brasileira e todas as suas carências.

Em suma, o acima exposto teve como objetivo fundamentar o argumento de que os


processos de compra de material de defesa têm de ser feitos a partir da perspectiva
da ―aquisição‖ e não simplesmente da ―compra em si‖, tendo como meio de ação a
BLD, e como objetivo suprir as necessidades impostas pela estratégia e pela
perspectiva de uso das forças. Quaisquer benefícios colaterais que advenham das
transações (tendencialmente bastante volumosas) daí decorrentes são muito bem
vindos e devem ser estimulados, contudo não devem nortear o planejamento da
estratégia de defesa do Brasil nem da construção da estrutura que a confere
substância e credibilidade. Em outras palavras, ―o planejamento do uso das Forças
Armadas deve ser o ponto fulcral das bases e atividades preparatórias que lhes
servem‖ (DUARTE, 2012, p. 81).

4 TÓPICOS SOBRE TRANSAÇÕES INTERNACIONAIS DE MATERIAIS DE


DEFESA

Interessa também abordar a questão das transações internacionais de


materiais de defesa, uma vez que o caso empírico a ser analisado a seguir trata-se
de uma importação. No que tange ao país exportador, podemos resumir as

676
principais razões que levam à exportação apontadas por Soreson em 4 pontos
capitais: a) influenciar na relação entre os países e no tratamento à ameaças
comuns; b) descarte de equipamentos sobressalentes ou desnecessários; c)
aumentar o lucro da empresa produtora e melhorar a situação da balança comercial
nacional e, d) reduzir o custo dos sistemas para a compra do próprio país produtor
através do ganho de escala (SORENSON, 2009, p. 127). A principal desvantagem
da exportação de materiais de defesa, ainda segundo este último autor, seria a
possível falta de domínio sobre sistemas tão contundentes após a venda, lembrando
que o país de análise de Sorenson são os Estados Unidos. No caso de um país
como o Brasil, com orçamento limitado para a defesa, torna-se quase imprescindível
para a Base Industrial de Defesa lançar mão das exportações em função do
aumento da competitividade oriunda do ganho de escala e da fonte extra de
recursos quando o governo do próprio país estiver contendo despesas. Contudo o
governo deve criar um ambiente, e por vezes investir diretamente em uma operação
economicamente menos vantajosa do que a compra internacional, para que as
empresas não saiam de atividade levando consigo uma importante capacidade
estratégica nacional (MORAES, 2012). As vantagens da exportação também são
apontadas por Patrice Franko como um elemento de convencimento do contribuinte
e mesmo de entidades como o congresso nacional, uma vez que tende a reduzir o
investimento público e atenuar o custo de oportunidade de não se sanar outras
urgências que poderiam ter impacto mais direto em grande parte da sociedade
(FRANKO JONES, 1986).

No entanto, para o país importador, parece haver quatro razões principais para tais
compras: a) obtenção de capacidades, cujo país não tem condições de produzir de
forma independente; b) obtenção de capacidades produtivas/tecnológicas ainda não
dominadas; c) influenciar no relacionamento entre os países, e d) possível
ocorrência de ―Offsets‖, ou seja, tipos de compensação comercial, industrial e/ou
tecnológica por parte do país vendedor, como, por exemplo, compra de outros tipos
de produtos286. As principais desvantagens parecem ser o desestímulo para a
produção local e a dependência de um país estrangeiro em um setor estratégico,

286
Uma descrição breve, porém elucidativa, a respeito dos “Offsets” pode ser encontrada em SORENSON, 2009
nas páginas 135 e 136.

677
além da suscetibilidade a manobras de cerceamento tecnológico, bem esclarecidas
por Longo e Moreira (2010)287. Retomaremos estas questões mais adiante.

Vale lembrar que em um passado não muito remoto a indústria de defesa brasileira
teve um elemento exportador bastante consolidado, sendo que o Brasil chegou a ser
o quinto maior exportador de armas convencionais no mundo (FRANKO JONES,
1986). De forma até mesmo irônica, o caso de importação visitado neste artigo trata
de veículos blindados, sendo que uma empresa brasileira chegou a ser a maior
produtora deste mesmo tipo de produto, a Engesa (FRANKO JONES, 1986), e que
até hoje se questiona qual o tamanho do impacto da dependência do mercado
internacional e de dinâmicas e peculiaridades no processo que findou com a
derrocada da empresa (MORAES, 2012).

Documentos como a Estratégia de Defesa Nacional e o Livro Branco de Defesa


nacional possibilitam o entendimento de que a construção de capacidades
produtivas locais de material de defesa será tratada de forma mais incisiva e ativa
pelo governo doravante, buscando reencontrar um vigor já demonstrado pelas
empresas brasileiras do setor. Isto não quer dizer um abandono dos recursos
(principalmente no que diz respeito aos tecnológicos) disponibilizados por
fornecedores internacionais, nem de parcerias internacionais entendidas como
adequadas, principalmente no contexto sul americano. Neste sentido o encontra-se
o Conselho de Defesa da Unasul, em cujo estatuto lê-se o objetivo o de ―promover o
intercâmbio e a cooperação no âmbito da indústria de defesa‖ (UNASUL, 2008). Da
mesma forma, em seu plano de ação lançado em 2009 consta a intenção de
―Promover ações bilaterais e multilaterais de cooperação e produção da indústria
para a defesa no marco das nações integrantes deste Conselho‖ (UNASUL, 2009).

Além disso, como demonstra a compra do Leopard junto à Alemanha ou a


colaboração com a França no âmbito do Programa de Desenvolvimento de
Submarinos (PROSUB), tradicionais parceiros aparentemente não serão
abandonados, ainda que os modelos de negócios alterem-se. Apesar da hipótese
defendida aqui, no que toca a importância capital em termos de ganho de soberania
287
Os autores descrevem o fenômeno como “[...] a prática de Estados, grupos de Estados, organismos
estrangeiros, empresas ou outros atores internacionais no sentido de bloquear, negar restringir ou dificultar o
acesso ou a posse de conhecimento, tecnologias e bens sensíveis, por parte de instituições, centros de pesquisa
ou empresas em outros países” (LONGO; MOREIRA, 2010, p.310).

678
e autonomia de uma BID consistente, não há como negar que ganhos pontuais
podem muito bem ter origem na produção estrangeira.

5 A COMPRA DO LEOPARD 1A5

O modelo de carro blindado de combate Leopard1A5 é um chamado MBT (Main


Battle Tank) de origem alemã e fabricado pela empresa Krauss-Maffei Wegmann. O
modelo 1A5 é resultado de consecutivas adaptações do modelo Leopard1, fabricado
a partir da década de 1960 e, segundo o sítio oficial da empresa já teve mais de
4500 unidades fabricadas. O veículo pesa aproximadamente 40 toneladas, tem um
motor de 830 hp e um armamento primário de 105mm. É considerado um
equipamento moderno e detentor de capacidades que nossas forças armadas
anteriormente não possuíam, além de estar tecnologicamente à frente das
capacidades produtivas da BID nacional atual.

A compra dos veículos se deu através de acordo entre os governos brasileiro e


alemão288 (―government to government‖), por intermédio do ministério da defesa e
envolveu além dos 220 Leopard‘s VBCC2891A5, 20 veículos da mesma família,
porém com outras finalidades (COMANDO..., 2013). As primeiras unidades
chegaram ao porto de Rio Grande em dezembro de 2009 sendo que cada unidade
de 1A5 teria custado cerca de US$ 900 mil (PRODUTORA..., 2013).

É propício aqui retomar os pontos apontados anteriormente como principais razões


para proceder com a importação de materiais de defesa, quais sejam: a) obtenção
de capacidades, cujo país não tem condições de produzir de forma independente; b)
obtenção de capacidades produtivas/tecnológicas ainda não dominadas; c)
influenciar no relacionamento entre os países, e d) possível ocorrência de ―Offsets‖.

Ao cruzarmos as informações disponíveis sobre o processo do Leopard com estes


pontos podemos fazer algumas observações290. Primeiramente o exército brasileiro
de fato obteve um ganho de qualidade em termos de suas capacidades, uma vez

288
Trata-se de um país a partir do qual o Brasil adquiriu diferentes equipamentos militares na última década. Para
uma lista detalhada consultar o Stockholm Peace Research Institute.
289
Viatura Blindada Carro de Combate.
290
Pontua-se aqui uma dificuldade em encontrar informações coerentes e concatenadas a este respeito.

679
que o veículo em questão é de fato superior ao seu predecessor. Além disso,
segundo entrevista com o Tenente-Coronel Ribeiro291, à época comandante do
Centro de Instrução de Blindados General Walter Pires292, localizado em Santa
Maria-RS, um ganho muito significativo foi em termos de know-how logístico, uma
vez que o exército teve que se adaptar ao manuseio de unidades de maior
complexidade operacional e gestão logística293. Este caso, por tanto, teve grande
feito em termos de adestramento, provendo experiências facilmente adaptáveis à
utilização de futuros modelos, como já está ocorrendo no caso do Guarani, e
mantendo o pessoal em boas condições de adestramento294.

No entanto, no que tange a capacidade produtiva e domínio da tecnologia os


avanços não se verificaram da mesma forma, sendo incertos os mecanismos de
transferência tecnológica295. Quanto ao terceiro fator, é difícil precisar em que
medida tal transação de fato influenciou na relação entre os dois países, da mesma
forma que nenhuma notícia foi identificada até o término deste capítulo que indique a
ocorrência de compensações ―Offset‖, o qual seria o quarto ponto.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando o exposto no primeiro tomo deste trabalho, identificamos a conveniência


de se tratar os processos de compra através da lente da ―aquisição‖ em detrimento
da perspectiva da ―compra em si‖. Entre os custos de não se ter essa percepção em
mente ao se levar a cabo este tipo de processo, figura uma potencial dependência
em relação ao fornecedor, desperdício de recursos e gastos não antecipados, sendo

291
Entrevista realizada em loco no Centro de Instrução de Blindados em Santa Maria no dia 11/09/2013.
Registra-se o agradecimento ao Tenente-Coronel Marcelo Ribeiro pela disponibilidade em contribuir para
pesquisa.
292
Cargo atualmente exercido pelo Tenente Coronel Alex Alexandre de Mesquita.
293
Este, contudo não veio sem custos, uma vez que, como mencionado anteriormente que poderia ocorrer,
aspectos onerosos relativos a manutenção foram identificados apenas quando do inicio do convívio com o
veículo.
294
Há também disponível artigo publicado pelo Ten-Cel Ribeiro sobre o assunto em no site especializado
Defesanet em: http://www.defesanet.com.br/leo/noticia/5981/Um-Projeto-de-Forca---Aquisicao-dos-CC-
Leopard-1A5Br.
295
Quanto a este ponto, não é incomum lembrar que pesou na decisão brasileira por este veículo o fato de que o
sistema logístico do Leopard é aberto, o que quer dizer que caso alguma empresa brasileira capacita-se para
produzir algum de seus componentes, poderia comercializá-lo com os demais países que também utilizam o
Leopard. Contudo não foram encontrados indícios que sugiram como a empresa detentora da tecnologia
auxiliaria neste processo, que não ao certificar os componentes produzidos por indústrias nacionais.

680
estes por vezes capazes de inviabilizar processos futuros. Tendencialmente, quando
se pensa estritamente sob o viés da ―compra em si‖ (―procurement‖), os reflexos em
termos de adestramento296, doutrina, infraestrutura e organização evidenciam-se
após a compra, dificultando a previsão de gastos. Já quando pensamos em termos
de ―aquisição‖ (―acquisition‖) há a possibilidade de um planejamento mais coerente e
realista. O fato de que as primeiras unidades do veículo em questão chegaram ao
Brasil em fins de 2009 e que a previsão da conclusão da fábrica que prestará
manutenção e que poderia prover futuras modernizações tem previsão de conclusão
apenas para fins de 2014 é um indicativo de que este processoestaria mais próximo
da primeira opção do que da segunda297. Ainda neste sentido o Exército Brasileiro
apenas entrou em contato com o produto a partir da etapa da compra, lembrando
ainda que, segundo entrevista realizada com outro oficial do exército sediado no Rio
Grande do Sul, não há até o momento previsão de modernização/atualização destes
equipamentos, assim como ainda não se sabe de planejamento de destinação final
destas unidades.

Em outras palavras, aparentemente, grande parte dos elementos necessários para


que esta força combatente seja tida como dada, não foram levados em
consideração, podendo isto inclusive levar a uma eventual frustração já que, em
realidade, não se alcançarão necessariamente os objetivos estratégicos que
deveriam ter orientado a compra, pelo menos no prazo inicialmente estimado.

Merece atenção também, o fato de que não há notícias de grandes envolvimentos


por parte de companhias locais em qualquer etapa da ―vida do produto‖,
demonstrando um afastamento de algumas das metas apontadas na END, por
exemplo. Essa realidade poderia vir a mudar na eventualidade de se levar a cabo
uma proposta de desenvolvimento local e conjunto de uma nova família de

296
Em um caso relativo a utilização de blindados este fator é particularmente importante uma vez que segundo
Richard E. Simpkin o tipo de soldado envolvido nestas operações demanda um treinamento capaz de prover uma
intimidade tão intensiva com o equipamento quanto a cooperação com seus companheiros (SIMPKIN, 1980,
p.53).
297
Importa ressaltar que o planejamento teve de ser atrasado em quase 1 ano em razão de dificuldades
burocráticas na liberação da licença ambiental por parte do governo estadual sendo que a fábrica apenas
começou a ser erguida de fato em 13/01/2014. Espera-se ainda que no mesmo local instale-se uma linha capaz de
fabricar novos veículos destinados prioritariamente a países sul americanos, constituindo uma segunda fase do
projeto da KMW no Brasil. Foi realizada entrevista em loco junto ao escritório da empresa em Santa Maria em
setembro de 2013, contudo, dadas as incertezas existentes a época em função de tais dificuldades, não se pôde
obter maiores detalhes quanto ao desenvolvimento dos projetos da empresa no Brasil.

681
blindados, ventilada pela própria Krauss-Maffei298. Contudo esta possibilidade ainda
parece estar em estágio seminal, sem detalhamento de sua operacionalização e
tendo, desta forma, sua concretude ainda bastante questionável. Não há indicações
de que instrumentos de estímulo pela busca pelo ganho de autonomia produtiva e
tecnológica tenham estado entre os objetivos decisivos deste acordo.

A identificação de elementos passíveis de replicação que venham a compor um


modelo/diretriz a ser tomado como referência para os processos de aquisição de
defesa ainda por vir no Brasil com certeza teria grande utilidade no que tange a
clareza dos objetivos dos processos, melhor aplicação de recursos e, por último,
na construção da Base Industrial de Defesa e no mais adequado
reaparelhamento das forças armadas. Este artigo,contudo, claramente não
ambiciona propor tal modelo. A intenção é apenas contribuir para este debate,
apontando características do caso da obtenção do veículo blindado Leopard1A5
que levam a crer que este não deveria ser tomado como modelo para as demais
etapas da modernização das forças armadas brasileiras.

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15 jul. 2013.

684
A QUARTA FORÇA: UMA DECORRÊNCIA DA

ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA?

Eduardo Siqueira Brick299

1 Introdução

Mesmo os mais leigos em assuntos de defesa não questionam que as Forças


Armadas (FFAA) são o instrumento por excelência, que qualquer país dispõe para
enfrentar ameaças externas à sua soberania e independência.

Entretanto, as elites civis brasileiras e os próprios militares, em sua grande maioria,


não têm uma noção clara sobre a indispensabilidade de se possuir um complexo
científico-tecnológico-industrial de ponta, nativo e autônomo, tanto para fins de
defesa quanto para o desenvolvimento econômico e social.

Pode-se argumentar que as FFAA e a indústria de defesa do Brasil não são


desprezíveis e que esta última tem capacidade para fornecer variados produtos e
sistemas de defesa fabricados no país, tais como aeronaves, carros de combate,
mísseis, submarinos, etc. Esquecem, entretanto, que esses produtos utilizam, em
grande proporção, componentes de alta tecnologia, que são importados e cujas
tecnologias de fabricação não são dominadas pelo país. Além do mais, defesa é
sinônimo de poder e este é relacional entre os estados, e não absoluto. Não se pode
falar em poder, senão em termos relativos. Ou seja, não basta ter FFAA e/ou
indústria de defesa. É essencial que elas sejam equivalentes, ou superiores, às dos
demais atores no Sistema Internacional.

No mundo contemporâneo, caracterizado pelo acelerado desenvolvimento


tecnológico, essa equivalência de poder é impossível de se conseguir sem que
exista uma forte capacidade de inovação autóctone, pois o poder não depende só

299
Pós Graduação em Engenharia de Produção, UFF

685
das capacidades militar e industrial. Outras dimensões, tais como a econômica, a
territorial, a populacional, a cultural e, principalmente, a tecnológica, são também
importantes componentes do poder.

As três primeiras definem o que se convencionou chamar de poder potencial.


Considerando-se os critérios de território superior a 1 milhão de km2, população
maior do que 50 milhões de habitantes e produto interno bruto superior a 1 trilhão de
dólares (dados de 2011), apenas 6 países aparecem em todas essas 3 listas: EUA,
Rússia, China, Brasil, Índia e México. Portanto, o Brasil possui um poder potencial
extraordinário e equivalente ao desses países.

Mas poder potencial não é suficiente para decidir questões conflituosas no Sistema
Internacional. É preciso possuir poder efetivo.

Existem muitos modelos propostos para mensurar poder efetivo. Um dos mais
recentes e abrangentes foi desenvolvido pela RAND Corporation dos EUA em 2000
(TELLYS et all, 2000). Essa metodologia utiliza informações quantitativas e
qualitativas e considera três grandes áreas de avaliação, denominadas recursos
nacionais, desempenho nacional e capacidade militar.

Os recursos nacionais correspondem, grosso modo, ao que se considera no


cômputo do poder potencial: abrange território, população e PIB. Entretanto, também
leva em consideração tecnologia de uso geral (base de conhecimento presente na
população) e empreendedorismo.

O desempenho nacional procura medir a capacidade de transformação do poder


potencial em capacidade militar: inclui vontade política, capacidade de definir
objetivos e planejar ações de longo prazo para alcançá-los, racionalidade nas
decisões e persistência nas ações, entre outras.

Mas o que constitui capacidade militar, segundo essa metodologia da RAND?

A capacidade militar depende de dois aspectos: recursos estratégicos e capacidade


de conversão desses recursos em proficiência de combate.

686
Três componentes distintos compõem os recursos estratégicos:

a) Orçamentos de defesa;
b) Instalações, efetivos militares (quantidade e qualidade), meios de combate e
de apoio logístico (ou seja, as FFAA);
c) Instituições de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e teste e avaliação (T&A)
de combate e a base industrial de defesa.

Portanto, como se pode verificar, a capacidade militar apóia-se em dois instrumentos


fundamentais e igualmente importantes: as Forças Armadas (FFAA) e o complexo
industrial, científico e tecnológico capaz de suprir as FFAA com os meios de que
necessitam para cumprir sua missão constitucional.

Assim, atualmente, não é suficiente dispor de FFAA para uma defesa efetiva. A
LOGÍSTICA DE DEFESA, que se refere ao provimento de meios para compor as
Forças Armadas e sustentar suas operações em quaisquer situações em que elas
tenham que ser empregadas é tão importante para a defesa quanto as FFAA
(BRICK, 2011). Essa função engloba praticamente tudo o que não se refere à
estratégia e tática (O combate propriamente dito).

O instrumento da Logística de Defesa é a Base Logística de Defesa300 (BLD).

2 A Base Logística de Defesa

A finalidade da BLD é, portanto, prover todos os meios que as FFAA necessitam


para cumprir suas missões e sustentar suas operações.

A BLD inclui todas as instituições do país envolvidas com atividades de


aparelhamento de meios de defesa e mobilização de ativos e recursos, de qualquer
natureza, disponíveis no país, para fins de defesa. Entretanto, este trabalho
considerará apenas o provimento e sustentação dos produtos (PRODE) e sistemas
de defesa utilizados nas atividades-fim (Combate).

300
BASE LOGÍSTICA DE DEFESA (BLD) é o agregado de capacitações, tecnológicas, materiais e humanas,
necessárias para desenvolver e sustentar a expressão militar do poder, mas também profundamente envolvidas no
desenvolvimento da capacidade e competitividade industrial do país como um todo (BRICK, 2011).

687
Há de se chamar atenção para oito componentes da BLD, que apresentam aspectos
distintos, mas que interagem com grande intensidade (BRICK, 2011):

a) a infraestrutura industrial da defesa: empresas e organizações envolvidas no


desenvolvimento e fabricação de produtos de defesa;

b) a infraestrutura científico-tecnológica da defesa: universidades, centros de


pesquisa e empresas envolvidos na criação de conhecimentos científicos e
tecnologias com aplicação em produtos de defesa;

c) a infraestrutura de inteligência tecnológica da defesa: instituições e pessoas


envolvidas na coleta e análise de informações existentes no exterior sobre
conhecimentos científicos e inovações tecnológicas com aplicação no
desenvolvimento de produtos de defesa e em prospecção tecnológica com impacto
em defesa;

d) a infraestrutura de financiamento da defesa: instituições e recursos financeiros


dedicados ao financiamento de pesquisa científica e tecnológica e ao
desenvolvimento de produtos com aplicação em defesa e ao financiamento de
vendas externas de produtos de defesa;

e) a infraestrutura de mobilização para a defesa: voltada para o planejamento da


mobilização de recursos nacionais de uso civil, mobilizáveis para fins de defesa;

f) a infraestrutura de apoio logístico: destinada a garantir o aprestamento dos meios


de defesa durante todo oseu ciclo de vida útil;

g) a infraestrutura de comercialização de produtos de defesa: que tem como


finalidade promover e apoiar as exportações desses produtos para finalidades
econômicas e políticas.

h) o arcabouço regulatório e legal da BLD: que ordena a BLD e dá ao Estado a


possibilidade de empreender ações para a sua sustentação e desenvolvimento.

Todos esses componentes da BLD são essenciais para que a sua finalidade seja
alcançada. Entretanto, os componentes industriais e de CT&I constituem o ―núcleo
duro‖ desse complexo. O funcionamento do todo depende muito da interação entre

688
esses dois componentes. Essa interação pode ser explicada com o uso de alguns
conceitos básicos que serão expostos a seguir: produto, insumo, ciência, tecnologia,
bem de capital e capacidade industrial.

Produto é qualquer artefato (bem tangível ou intangível) concebido e construído para


uma finalidade qualquer. No caso deste trabalho, aeronaves, navios, carros de
combate, munições, mísseis, armas inteligentes, veículos não tripulados e balísticos
e sistemas de comando e controle, entre outros, e seus insumos considerados
críticos, além dos bens de capital necessários para desenvolvê-los, produzi-los,
testá-los, mantê-los e/ou desativá-los.

Insumo é qualquer produto (bem tangível: subsistema, parte, módulo, componente,


matéria-prima; ou intangível: software, conhecimento, patente) usado para compor
um produto. No Sistema Internacional atual, insumos vitais para produtos dos
setores de defesa, aeroespacial e nuclear são rigidamente controlados pelos países
que os produzem. Isso é feito porque esses insumos proporcionam extraordinária
vantagem competitiva em produtos de alto valor agregado e, também, expressiva
superioridade militar. Ou seja, são vitais tanto para o poder efetivo quanto para o
desenvolvimento econômico e social. Portanto, qualquer país que almeje alcançar
patamares de poder efetivo e/ou competividade industrial equivalentes aos das
nações líderes, têm obrigatoriamente de desenvolver uma capacidade autóctone
para conceber e produzir esses insumos críticos, que são aqueles que atendem a
um ou mais dos seguintes critérios:

a) É efetivamente, ou potencialmente, controlado e negado, ou tem seu acesso


dificultado, ou seu uso, ou venda, restrito, por instituições públicas ou privadas de
outros países, por qualquer razão.

b) Tenha poucas fontes de fornecimento e, portanto, apresenta preços de aquisição


arbitrários (não proporcionais ao seu custo) e/ou alto risco para obtenção.

c) Além de uso militar, tem alto impacto para a competitividade industrial do país em
produtos de alto valor agregado para uso civil.

O Brasil já possui uma razoável capacidade de engenharia para conceber, projetar e


fabricar produtos e sistemas finalísticos de defesa (Aeronaves, embarcações,

689
viaturas, radares, transmissores e receptores, munições, etc..). A maior
vulnerabilidade do país reside na grande dependência externa para obtenção dos
insumos críticos usados na fabricação desses produtos.

Ciência pode ser definida, simplificadamente, como o conjunto de conhecimentos


que explicam o funcionamento do Universo. O cientista sabe ―por que‖ (knowwhy) as
coisas funcionam da maneira que pode ser observada.

Tecnologia, por outro lado, é conhecimento para realizar alguma coisa desejada
e/ou necessária (knowhow). Nesse sentido, saber realizar algo, seguindo uma
prescrição documentada, pode ser considerado tecnologia (Por exemplo, fazer
uma manutenção planejada seguindo instruções documentadas, fabricar um
objeto seguindo um plano de fabricação, ou executar uma manobra constante de
um manual de emprego de uma arma). Entretanto, a tecnologia que se deseja é
aquela que tem base científica. Ou seja, aquela que inclui o conhecimento das
razões pelas quais se deve fazer algo daquela maneira (knowwhy). Isso porque
só quem conhece o ―por que‖ (knowwhy) pode inovar e alterar a forma de fazer,
quando a situação assim o exige.

Tecnologia, quase sempre, não é suficiente para materializar um produto. A


fabricação de um produto (mesmo intangível, como software) requer o uso de outros
produtos, utilizados em processos produtivos: máquinas, ferramentas, softwares
e/ou instalações adequadas (bens de capital). Esses bens, por sua vez, podem
exigir outras tecnologias para que possam ser obtidos.

Capacidade Industrial é um conceito que engloba o conjunto das tecnologias e bens


de capital necessários para conceber, projetar, desenvolver, produzir, testar, avaliar,
manter e desativar/neutralizar um bem qualquer (tangível ou intangível).

A figura 1 ilustra a relação que existe entre ciência, tecnologia, produto de defesa,
insumo, bem de capital e capacidade industrial.

690
Figura 1: Capacidade Industrial

Uma característica fundamental do mercado de produtos de defesa é ser do tipo


monopsônico, tendo como cliente exclusivo o Governo Federal301.

Adicionalmente, excluindo-se o caso de uns poucos países que podem sustentar


uma BLD que possua várias empresas competindo para fornecer os mesmos
produtos, como é o caso dos EUA, a maioria dos países não tem condições
econômicas de sustentar mais de uma empresa para fornecer cada tipo de produto.
Ou seja, nesse conjunto de países, entre os quais o Brasil certamente se situa, a
existência de monopólios também será natural.

O fato de a BLD ser um instrumento da defesa tão importante quanto as próprias


FFAA, aliado a essas duas características acima, indicam que a responsabilidade
pela sua sustentação e, também, pelo seu controle é claramente do Estado. Como o

301
O recurso à exportação é importante para auxiliar na sustentação da BLD e aumentar os lucros das empresas,
mas não é condição necessária. Ver por exemplo o caso do Japão que possui forte BLD, mas não exporta por
decisão política.

691
Estado não pode fazer nada que não esteja previsto expressamente em leis, o
arcabouço regulatório é essencial para a sustentação da BLD.

Tendo em vista o valor estratégico e a complexidade da BLD é importante examinar


como outros países se organizaram para enfrentar esse tipo de problema, a fim de
extrair algum ensinamento que possa ser útil.

Na seção seguinte serão examinados os casos da França, que é um país com alto
desenvolvimento tecnológico e industrial, mas de porte econômico similar ao do
Brasil e dos países que constituem a IBAS, junto com o Brasil: Índia e África do Sul.
Esses últimos apresentam muitas características econômicas, sociais e tecnológicas
similares às do Brasil. Assim, espera-se que as soluções adotadas por esses países
para suas BLD possam trazer algum ensinamento útil para o caso brasileiro.

3 Experiências Internacionais de Organização e Gestão da BLD

Modelo Francês

A França tem um modelo de organização do Ministério da Defesa em que existe


uma clara separação entre os setores operacional, de logística de defesa e
administração (gestão e coordenação de políticas transversas - recursos humanos,
jurídico, financeiro, etc. – e missões dedicadas – compras, parcerias público
privadas, sistemas de informação, administração e gestão) (FRANÇA, 2013).

O setor operacional (Exército, Marinha e Aeronáutica) está subordinado ao Chefe de


Estado-Maior das Forças Armadas (CEMA). Este, sob a autoridade do Presidente da
República e do Governo é o responsável pelo emprego das Forças Armadas e
comanda as operações militares. É, também, o conselheiro militar do Governo.

O CEMA e responsável pela:

a) Organização entre Forças e organização geral das Forças;


b) Definição de necessidades em matéria de recursos humanos civis e militares
das Forças e organismos Inter Forças,
c) Condicionamento militar e moral das Forças e organismos Inter Forças;

692
d) Definição do formato do conjunto das Forças e sua coerência operacional;
e) Preparação e aprestamento das Forças. Define os objetivos paara sua
preparação e controla sua aptidão para realizar as missões;
f) Manutenção das Forças, fixando a organização geral e objetivos;
g) Inteligência de interesse militar;
h) Relações internacionais militares.

A gestão da Base Logística de Defesa ocupa uma posição hierárquica do mesmo


nível do CEMA e, portanto, acima das Forças Armadas. O órgão responsável por
essa gestão é a DGA – Délégué Général pour L‘Armement.

A DGA tem como missão:

a) Equipar as Forças Armadas (Gestora dos programas de aparelhamento, a


DGA é responsável pela concepção, aquisição e avaliação dos sistemas para s
FFAA. Sua ação cobre todo o ciclo de vida dos equipamentos). A DGA é o maior
investidor do estado Francês. Administra 80 programas de armamentos e gera
demandas de cerca de 6,4 bilhões de euros para a indústria de defesa francesa.
b) Preparar o futuro (Imaginar os futuros possíveis, antecipar ameaças e riscos e
preparar a capacitação industrial e tecnológica da BLD francesa). A DGA é a
principal investidora em P&D para defesa na Europa, gerando contratos anuais de
P&D da ordem de 700 milhões de euros para a BLD francesa.
c) Promover a exportação de armamentos (Promover ativamente a exportação
de produtos de defesa concebidos e produzidos pela BLD francesa). As exportações
representam cerca de 1/3 do faturamento da indústria de defesa francesa, Em 2012
as encomendas do exterior montaram a cerca de 5,2 bilhões de euros. Segundo o
SIPRI, em 2010 a França foi a quarta maior exportadora de produtos de defesa, com
um cerca de 8% do mercado.

O Conceito de Base Logística de Defesa é adotado quase que integralmente por


este modelo. De fato, as funções de indústria, CT&I, financiamento,
comercialização, manutenção e inteligência tecnológica estão todas
contempladas nas responsabilidades da DGA. Apenas a função mobilização não

693
está explicitamente considerada. Além disso, toda responsabilidade pela
concepção, aquisição e avaliação de produtos de defesa está com a DGA. As
FFAA se limitam às funções operacionais.

Do ponto de vista de recursos humanos, a DGA conta com um efetivo de 10.500


profissionais. Administra 14 centros especializados, sendo 3 de testes e ensaios
(voo, mísseis, propulsores) e 11 de técnicas especializadas (navais, terrestres,
aeronáuticas, hidrodinâmica, engenharia de projetos, tecnologia de informação,
proteção nuclear/biológica/química, mísseis e sistemas de navegação), distribuídos
em 16 localizações distintas.

Modelo Indiano

A organização do Ministério de Defesa da Índia também contempla a separação


entre as funções operacionais e de logística de defesa (ÍNDIA, 2013).

O MD Indiano está dividido em quatro grandes Departamentos: de Defesa (DOD), de


Produção para Defesa (DDP), de Pesquisa e Desenvolvimento para Defesa
(DDR&D) e de Bem Estar de Aposentados (DESW).

Entretanto, como se pode verificar, diferentemente do modelo francês, as funções


principais da BLD (indústria e inovação) estão distribuídas em dois departamentos
distintos. Não existe uma responsabilidade única sobre esses dois importantes
componentes da BLD.

Para tentar conciliar os conflitos de interesses e responsabilidades que possam ser


gerados por este tipo de organização, o Governo estabeleceu um Conselho para
Aquisições de Defesa, presidido pelo Ministro de Defesa, para fins de tomada de
decisão em relação ao processo de planejamento, que envolve aprovação de
investimentos de longo prazo em aquisição e aprovação de cada programa
individual de aquisição de bens de capital.

694
As decisões desse conselho são implementadas pelos seguintes ―boards‖:

(i) Aquisição para Defesa (Defence Procurement Board), presidido pelo Ministro da
Defesa (Defence Secretary);

(ii) Produção para Defesa (Defence Production Board), presidido pelo Secretário de
Produção para a Defesa (Defence Production);

(iii) P&D para Defesa (Defence Research & Development Board), presidido pelo
Secretário de Pesquisa e Desenvolvimento para a Defesa (Defence Research &
Development).

O Departamento de Produção para a Defesa (DDP) é o responsável pelo


componente industrial estatal da BLD indiana. Administra 9 grandes
Empreendimentos Industriais Estatais para Defesa (DPSU – Defense Public Sector
Undertakings) e cerca de 40 fábricas de armamentos (BEHERA, 2013).

Os nove DPSU são os seguintes:

a) Hindustan Aeronautics Ltd- Aircraft (36a maior indústria de defesa em 2012


segundo o SIPRI).

b) Bharat Electronics Ltd- Eletrônica para defesa (69ª maior indústria de defesa
em 2012 segundo o SIPRI).

c) Bharat Dynamics Ltd (BDL)- Missies.

d) BEML: equipamentos de terraplanagem.

e) MDL: navios de guerra (contratorpedeiros, fragatas, etc.).

f) GRSE: navios de guerra (corvetas antissubmarino).

g) GSL: navios de guerra (NOPV).

h) HSL: manutenção e reparo.

i) MIDHANI: aços especiais, superligas, titânio, ligas especiais para defesa e


programas nucleares.

695
Modelo Sul Africano

O Ministério da Defesa da África do Sul também separa as funções de


logística de defesa e operações. Diretamente ligado ao Ministro da Defesa e acima
do Departamento de Defesa encontra-se a ARMSCOR (The Armaments Corporation
of South Africa Ltd), criada em 2003.

O Departamento de Defesa é constituído pelo Secretariado da Defesa


(Defence Secretariat) e pela Força de Defesa Nacional da África do Sul (SA
NationalDefence Force – SANDF), à.qual se subordinam as Forças Armadas
(Marinha, Exército e Aeronáutica).

O Secretariado desempenha funções de planejamento, gestão financeira,


auditoria interna, relações internacionais, etc.

A missão definida para a ARMSCOR é:

Atender aos requisitos para materiais de defesa, tecnologia de


defesa, pesquisa, desenvolvimento, análise e teste e avaliação, do
Departamento, ou de qualquer outro órgão do governo, quando
solicitado, ou de qualquer outro Estado Nacional, quando houver
acordos, de uma maneira eficiente, eficaz e econômica, podendo
explorar oportunidades comerciais que possam surgir da atividade da
Corporação na aquisição de materiais de defesa ou de gestão de
projetos de desenvolvimento tecnológico (AFRICA DO SUL, 2013).

Praticamente todas as funções da Logística de Defesa são da responsabilidade da


ARMSCOR. Elas incluem:

a) Transformação de requisitos operacionais em especificações;


b) Aquisição de produtos e tecnologias de defesa;
c) Manutenção de ativos de defesa;
d) Desativação de ativos de defesa;
e) Pesquisa e Desenvolvimento;
f) Fabricação de produtos de defesa;
g) Teste e avaliação operacional;
h) Fomento de exportação de produtos de defesa;

696
Os programas de Reaparelhamento da SANDF constituem a maior parte do portfólio
de trabalhos da ARMSCOR. Cerca de 30 % do orçamento de defesa tem sido
dedicado à aquisição, garantindo a sobrevivência da BLD Sul Africana.

A gestão da ARMSCOR é da responsabilidade de um Board de Diretores que conta


com seis Comissões para auxiliá-lo: Recursos Humanos; Finanças,
Desenvolvimento de Negócios e Investimentos; Auditoria e Risco; Aquisição;
Pesquisa e Desenvolvimento e Marketing e Apoio à Indústria.

A reorganização da Base Logística de Defesa está sendo feita atendendo o que foi
estabelecido no Livro Branco das Indústrias Relacionadas à Defesa da África do Sul
(ÁFRICA DO SUL, 1999). Apesar de antigo, esse documento continua a ser a
referência para essa reorganização, juntamente com a Estratégia para a Indústria de
Defesa (ÁFRICA DO SUL, 2013).

Para apoiar a BLD Sul Africana, ARMSCOR abriga a SADESO (South African Defence
Export Support Organisation), para promover exportações, a DMDA (Defence Matériel
Disposal Agency), que tem como missão vender ativos desativados, uma divisão para
gerir acordos de compensação comercial (offsets) e uma unidade para facilitar a
introdução de pequenas empresas na Base Logística de Defesa.

A ARMSCOR possui uma subsidiária 100% controlada, Armscor Business, que


abriga instalações estratégicas (industriais, teste e avaliação e de CT&I):

a) Defence, Science & Technology Institute: realiza pesquisa e desenvolvimento


e possui divisões que cobrem áreas de conhecimento diferentes - Institute for
Maritime Technology (IMT), Protechnik, Hazmat Protective Systems, Defence
Institute, Ergonomics Technologies – Ergotech - Flamengro and Armour
Developmen;
b) Test & Evaluation Group: teste e avaliação de sistemas (Conta com as
seguintes instalações: Gerotek Test Facilities, que inclui Gerotek Training and
Gerotek Events, e o Alkantpan Test Range)
c) Defence Support Group: manutenção e apoio logístico em geral (Inclui:
Defence Matériel Disposal Agency, AB Logistics, Technology Exploitation Centre e o
Armscor Defence Asset Management Centre).

697
Modelo Brasileiro

O Ministério da Defesa do Brasil é muito novo e passou por uma reorganização


recente. Pode-se dizer que, formalmente, a nova estrutura é similar à dos demais
países analisados.

Subordinados ao Ministro da Defesa estão a Secretaria Geral – SG (Presidida por


um civil) e o Estado Maior Conjunto das Forças Armadas – EMCFA (Presidido por
um militar). Os assuntos relacionados à BLD estão principalmente afetos à
Secretaria de Produtos de Defesa (SEPROD), subordinada à SG.

Portanto, embora teoricamente se possa dizer que a BLD tem um tratamento


semelhante, essa já é uma primeira diferença significativa entre o modelo brasileiro e o
dos outros três países analisados. No caso do Brasil a BLD é tratada por um nível de
autoridade (terceiro nível) muito abaixo dos demais países (Primeiro ou segundo nível).

Essa não é a única diferença. No Brasil, a responsabilidade (e a consequente


autoridade e divisão de recursos orçamentários) pela BLD está diluída entre pelo
menos 3 ministérios: Defesa, Desenvolvimento Industria e Comércio Exterior e
Ciência Tecnologia e Inovação. Assim, em nível de primeiro escalão, a autoridade
também está diluída.

Ora, é sabido que nenhum sistema voltado para obter algum resultado pode funcionar
corretamente se não existe uma clara definição de responsabilidade, com as
consequentes atribuições de autoridade e imputabilidade pelas ações e resultados.
Essa estrutura atual para a gestão da BLD brasileira é claramente não funcional.

Mas esse não é o único problema. Apesar das FFAA estarem subordinadas ao
EMCFA e, portanto, sem autoridade sobre a SG e o SEPROD, grande parte dos
componentes da BLD brasileira está subordinada às FFAA. Todos os institutos de
CT&I militares e algumas empresas estão nesse caso. Diferentemente dos demais
países, o setor operativo tem autonomia e autoridade direta sobre significativa
parcela da BLD nacional. Ora, as atividades de operações militares e aparelhamento
são muito distintas, como também o são as qualificações exigidas das pessoas que
se dedicam a cada uma delas. Como resultado as culturas institucionais em

698
organizações que desenvolvem essas atividades também devem ser distintas. As
decisões são muito dependentes da cultura institucional, assim, em função dessa
característica da governança da BLD brasileira, tem havido um claro desequilíbrio
histórico entre as prioridades dadas ao fortalecimento e sustentação da BLD e o
provimento de meios para as FFAA.

Embora existam diferenças entre as abordagens das três FFAA302, o resultado final é
que a BLD brasileira tem sido negligenciada. A prática tem sido a importação de
produtos de defesa, o que é extremamente deletério para a construção da
capacidade industrial e tecnológica nacional. Como na era pós-industrial a BLD é um
instrumento de defesa, tão ao mais importante do que as próprias FFAA, essa
situação não favoreceu a construção do poder efetivo nacional.

Resumindo, pode-se dizer, sem nenhum exagero, que a responsabilidade sobre a


BLD brasileira está diluída entre pelo menos seis entes governamentais,
pertencentes a diferentes níveis de autoridade.

Essa complicação se refletiu na necessidade de criação da CMID – Comissão Mista


da Indústria de Defesa que tem por finalidade assessorar o Ministro de Estado da
Defesa em processos decisórios e em proposições de atos relacionados à indústria
nacional de defesa (BRASIL, 2013).

A CMID é constituída por representantes dosministérios da Defesa,


Desenvolvimento Industria e Comércio Exterior, Ciência Tecnologia e Inovação,
Fazenda, Planejamento Orçamento e Gestão, Exército, Marinha e Aeronáutica.

Uma das atribuições da CMID é emitir parecer e propor ao Ministro de Estado da


Defesa as classificações de bens, serviços, obras ou informações nos termos do
inciso I do caput do art. 2o da Lei n. 12.598 (BRASIL, 2012), como Produto de
Defesa – PRODE.

302
A Força Aérea parece que tem uma visão sobre a BLD mais alinhada com o conceito aqui utilizado, pois
investiu na construção do complexo DCTA e Embraer e as suas prioridades expressas no PAED (Plano de
Articulação e Equipamentos de Defesa), contemplam tanto a BLD quanto a renovação de meios, diferentemente
das abordagens da Marinha e do Exército, onde a ênfase do PAED é toda na aquisição de meios.

699
Quase cinco anos após a promulgação da Estratégia Nacional de Defesa (END)
ainda não existe nenhuma empresa que tenha sida classificada como fornecedora
de PRODE.

Isso diz tudo sobre a eficácia da estrutura atual responsável pela BLD brasileira.

4 A Estratégia Nacional de Defesa e a BLD

O Brasil dispõe de FFAA desde a sua fundação. Entretanto, sua BLD não tem sido
capaz de supri-las com suas necessidades mais básicas.

A END - Estratégia Nacional de Defesa (BRASIL, 2008) captou essa relevância da


dimensão científico-tecnológico-industrial da defesa e a deficiência brasileira e
definiu três eixos estruturantes, sendo que um deles é a ―reestruturação da indústria
brasileira de material de defesa‖. Essa tem como propósito ―assegurar que o
atendimento das necessidades de equipamento das Forças Armadas apoie-se em
tecnologias sob domínio nacional.‖

Adicionalmente, a END define que essa reestruturação deve ―dar prioridade ao


desenvolvimento de capacitações tecnológicas independentes‖ e, também,
―capacitar a indústria nacional de material de defesa para que conquiste autonomia
em tecnologias indispensáveis à defesa‖ (BRASIL, 2008).

Consta-se, pois, que a END estabeleceu metas muito ambiciosas e distantes da


realidade brasileira atual para a BLD brasileira, constituindo-se em um novo e
desafiador paradigma.

Para vencer esse desafio será preciso inovar na forma de atuação do Estado
brasileiro.

A primeira mudança é o Estado assumir, de fato, a responsabilidade pelo


desenvolvimento e sustentação da BLD, como ocorre em todos os países que
possuem poder relevante. Isso significa colocar a BLD em condições de igualdade
com as FFAA, como instrumentos de defesa fundamentais para o país. Como tal,
ambas têm que ser consideradas como de exclusiva responsabilidade do Estado.

700
Essa talvez seja a mudança mais difícil: dar ao desenvolvimento e sustentação da
BLD a mesma importância que tem sido dada, historicamente, ao aparelhamento
das FFAA. Na prática isso significa reduzir drasticamente a aquisição de meios no
exterior, priorizando seu fornecimento pela BLD. Para isso será necessário que o
Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED), que atualmente é apenas
uma lista de compras definidas pelas FFAA, se transforme em um Plano Integrado
de Aparelhamento e Capacitação Industrial e Tecnológica, condicionando o
aparelhamento das FFAA ao concomitante desenvolvimento da capacidade
industrial e tecnológica necessária ao fornecimento dos meios previstos.

Entretanto, além do problema crônico da inadequação do orçamento de defesa303,


existem pelo menos dois grandes entraves institucionais para que isso possa ser
conseguido:

a) A inexistência de recursos humanos com qualificação e em quantidade


suficientes para enfrentar esse desafio (Nos EUA existem mais de 150.000 pessoas,
sendo mais de 90 % civis, dedicados apenas à aquisição de sistemas de defesa. No
Reino Unido e França esse contingente é de cerca de 20.000 pessoas);

b) A inexistência de um ―dono‖ único para a BLD com responsabilidade,


autoridade e imputabilidade pelo seu desenvolvimento e sustentação. Como visto,
no Brasil, além do Ministério da Defesa, os ministérios de Desenvolvimento Indústria
e Comércio Exterior e de Ciência e Tecnologia e Inovação detêm responsabilidades
e administram recursos orçamentários usados no desenvolvimento e sustentação da
BLD. Adicionalmente, no próprio âmbito do MD, cada FFAA tem quase que total
autonomia para cuidar da ―sua‖ BLD.

Como os recursos são escassos e a BLD é única, essa divisão de responsabilidades


pode ser considerada um grande entrave institucional ao seu desenvolvimento. Um
verdadeiro nó górdio a ser defeito. Esse cenário indica que existe a necessidade de
restruturação do Ministério da Defesa de forma que possa enfrentar esses enormes
desafios.

303
Dados de 2011, extraídos do SIPRI e Banco Mundial, mostram que 63 % dos países que possuem um PIB -
Produto Interno Bruto superior a 200 bilhões de dólares investem em defesa um percentual do PIB superior ao
do Brasil.

701
5 A Quarta Força: uma Consequência Natural da END?

Nesta seção, procurando responder à questão título, são apresentadas as


conclusões finais.

A Base Logística de Defesa é instrumento fundamental não só para a defesa do


país, mas também para a capacitação industrial e competitividade em produtos de
alto valor agregado. Ela é um dos principais instrumentos de políticas industriais, não
só porque é eficaz, mas também porque é imune a regras restritivas implantadas
pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Um aspecto pouco comentado dessas políticas é o de que o custo para país é muito
inferior ao de outras políticas de reserva de mercado para conteúdo nacional. No
caso da defesa, além de não existir alternativa, em face da realidade internacional
de cerceamento ao acesso a produtos e tecnologias críticas, o custo para o país
está totalmente dimensionado e encapsulado no orçamento da defesa.

Para as demais políticas industriais, que envolvam reserva de mercado para


produtos não estratégicos e facilmente disponíveis no mercado internacional, em
condições muito mais vantajosas, o custo para a sociedade e para o próprio
desenvolvimento nacional é muito alto e o resultado tem sido pífio. Basta ver o
exemplo da lei da informática dos anos 80. Comparativamente, o investimento na
capacitação tecnológica e industrial no setor aeroespacial colocou o Brasil em um
patamar respeitável no cenário internacional.

O desafio colocado pela END cria um novo paradigma para a BLD. Os objetivos de
obtenção de autonomia tecnológica e capacidade para fornecer os meios que as
Forças necessitam não poderão ser alcançados fazendo ―mais do mesmo‖, pois a
estrutura de governança atual é claramente disfuncional, ineficiente e ineficaz.

Por todos esses motivos a BLD, como já ocorre com as FFAA, deve ter um comando
único.

702
É essa a forma adotada pela grande maioria dos países que possuem BLD relevante
e, também, grande capacidade industrial em produtos de alta tecnologia e valor
agregado. Essa também é a forma preconizada pelas boas práticas de gestão
voltadas à obtenção de resultados. Para cada problema é fundamental haver um
responsável único, dotado dos atributos de responsabilidade, autoridade e
imputabilidade (Accountability).

Assim, a criação de órgão com responsabilidade total pela BLD (SLD - Secretaria de
Logística de Defesa?), subordinado diretamente ao Ministro da Defesa, no mesmo
nível dos demais órgãos de segundo escalão (SG e EMCFA), é uma necessidade. A
esse órgão deveriam ser subordinados todas as empresas, Institutos de Ciência e
Tecnologia (ICT) e Institutos de Ensino Superior (IES) de engenharias, computação,
matemática e ciências básicas, atualmente subordinados às FFAA. A ele também
caberia a organização e sustentação do setor industrial de defesa, propondo um
marco regulatório que garanta um controle sobre as empresas privadas que atuem
no setor e as tecnologias estratégicas de interesse nacional.

Nesse contexto, a criação da ―Quarta Força‖ (Um verdadeiro novo ―exército‖ de


engenheiros, cientistas, pesquisadores, técnicos e gestores de programas de
aquisição, manutenção e P&D) para cuidar da carreira dos profissionais que irão
conduzir esse novo órgão surge, então, como uma decorrência natural, pois é
essencial que esses profissionais possuam independência em relação aos
Comandos das FFAA, para que possam atuar com desenvoltura visando à
sustentação e ao fortalecimento de uma BLD nacional e não mais setorial, como
hoje ocorre. Por uma questão de eficácia e eficiência, já que os recursos
orçamentários são escassos, é preciso haver uma política única para toda a
BLD. Os profissionais (militares e civis) que irão desenvolver essas atividades
devem possuir características muito distintas daqueles que cuidam das
operações militares, embora também devam conhecer muito bem como essas
se desenvolvem, para poder desempenhar com eficácia suas funções de
aparelhamento de meios. O ideal é que os componentes da Quarta Força
possam ser recrutados de várias fontes, inclusive das próprias FFAA. É, inclusive,
desejável que possam trocar de carreiras e subordinações, ao longo de suas vidas
profissionais, em função de vontades e aptidões pessoais e necessidades do

703
serviço. O fundamental é que os que atuem em logística de defesa, tanto os de
origem civil, quanto os de origem militar, tenham uma carreira própria.

Essa não seria uma experiência nova no Brasil. No século passado essa foi
exatamente a solução adotada com a criação da Força Aérea Brasileira. Seus
primeiros componentes foram todos oriundos dos quadros da Marinha e do Exército.

Referências Bibliográficas

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related industries. 1999. Disponível em: <http://www.dod.mil.za/documents/
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704
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TELLIS, A.J. BIALLY, J. MCPHERSON, M. SOLLINGER, J. M. Measuring National


Power in the Postindustrial Age. Santa Monica, California, USA: RAND
Corporation, 2000.

705
O DESENVOLVIMENTO DA BLD NAVAL E A AUTONOMIA
DA MARINHA DO BRASIL

Wilson Soares Ferreira Nogueira304

1 Introdução

Por que a Marinha do Brasil (MB), para a aquisição de navios e sistemas de


combate, ainda é tão dependente das compras no exterior? A resposta parece
simples: a MB é dependente das compras no exterior porque sua Base Logística de
Defesa305 (BLD) não tem condições de supri-la adequadamente. Então a pergunta
correta seria: por que a BLD que apóia a MB ainda não é capaz de supri-la
adequadamente de navios e sistemas de combate? Nesse caso, a resposta é mais
complexa e tem várias componentes, que, inclusive, se entrelaçam.

Na maior parte da história da MB seus meios de combate foram adquiridos no


exterior. Na Independência, na Guerra do Paraguai e até para as duas Guerras
Mundiais é compreensível que um país, eminentemente agrícola, para atender a
urgência das ações que se desenvolviam, não tivesse outra forma de aquisição. Mas
a partir da industrialização do país e da percepção da importância da tecnologia para
os meios militares, após a Segunda Guerra Mundial (SGM), isso não mais se
justificaria, principalmente, pelo longo período de paz que se seguiu à SGM.

Ao se imaginar que BLD a Força Naval precisa, é necessário estabelecer qual a


Força Naval que a política brasileira desejará ter. A concepção, o preparo e o
emprego das Forças Armadas é uma atribuição do Nível Político nacional, que
pesará as ameaças aos seus interesses políticos no dimensionamento da força
necessária para alcançar e mantê-los. São aspectos a considerar no processo: a
percepção da ameaça, a autonomia das Forças e a concepção de defesa, as
expressões econômica e científico-tecnológica do Poder Nacional e as pressões
304
PPGEST/UFF
305
Eduardo Brick (2011) conceitua Base Logística de Defesa (BLD) como o agregado de capacitações,
tecnológicas, materiais e humanas, que compõe o meta-sistema de aparelhamento, necessário para desenvolver e
sustentar a expressão militar do poder e, também, profundamente envolvido no desenvolvimento da
competitividade industrial do país como um todo.

706
internas e externas. Entretanto, o que se observou no Brasil foi que a grande
autonomia administrativa que a Marinha (as Forças Armadas, em geral) alcançou na
década de 1960 a tornou importante definidora de seus meios e de sua BLD.

Certamente, os orçamentos inferiores às necessidades da MB estão na raiz das


razões para o baixo desenvolvimento da BLD naval, mas acredita-se que outros
fatores, como os gerenciais e políticos, tiveram papel relevante na situação. Teria
sido a autonomia administrativa da MB, no período de 1960 a 2010, prejudicial ao
desenvolvimento da BLD naval? O presente trabalho pretende desenvolver esse
questionamento. Para isso, em primeiro lugar será feita uma reconstituição histórica
da evolução estratégica naval brasileira e em seguida, considerações a respeito da
autonomia administrativa da MB.

2 A concepção estratégica naval e o desenvolvimento da BLD

A influência do passado

Desde os tempos mais remotos, o homem interage com o mar. À proporção que
avançou em conhecimento, as ações relacionadas ao emprego do mar também
avançaram. São exemplos de atividades desenvolvidas pelo homem no mar: a
pesca; o transporte; mais recentemente, a exploração dos recursos minerais; e,
desde muito tempo, quando os governos perceberam o valor militar do uso do mar, a
aplicação das marinhas para o exercício de sua vontade política.

Na antiguidade, os gregos, ao derrotarem os persas na Batalha de Salamina (480


AC), demonstraram a importância das comunicações marítimas para o apoio aos
exércitos que operam longe de suas bases. Tempos mais tarde, após a Batalha
Naval de Abukir (1798), Napoleão, no Egito, provou do isolamento em situação
semelhante aos persas na península helênica. Após a primeira Guerra Púnica (264 a
241 a.C.), entre Roma e Cartago, foi a vez dos romanos expandirem seus domínios
pelo mar. Dominando todas as costas e bases do Mediterrâneo, ao qual
denominaram de Mare Nostrum, passaram a controlá-lo, consolidando o Império
romano. Expulsos os mouros da península ibérica, restou a Portugal, para expandir
seu comércio e seus domínios, construir suas esquadras e lançar-se ao mar. Sua

707
recompensa foi o grande império colonial. Seguiram-lhe os demais Estados
europeus. No Século XVII, a Inglaterra, ao estabelecer o Ato de Navegação de 1651,
restringiu os direitos dos outros países em favor da marinha mercante inglesa. Após
a sequência de guerras travadas com a Holanda, principal prejudicada, tornou-se a
maior potência marítima do mundo.

Politicamente, o uso do mar atendeu aos anseios imperialistas dos Estados, que
tinham comogrande estratégia de governo a expansão de seus domínios. Para
isso criaram suas esquadras, suas frotas mercantes e espalharam suas bases
nas terras conquistadas. Militarmente, a estratégia que se desenvolveu, desde a
antiguidade, foi a busca pelo Domínio do Mar, ou seja, o impedimento do uso do
mar pelo inimigo, ao mesmo tempo, que se garantia o uso em proveito próprio.
Para alcançar aquele intento, perseguia-se a aniquilação da força oponente por
uma batalha naval decisiva.

Diferentemente da Inglaterra, que na sua condição insular estava mais protegida


das invasões dos exércitos, a França de Luís XIV teve que sacrificar a custosa
marinha em favor da força terrestre. Ao incentivar a guerra de corso, para
desgastar o comércio marítimo inglês, tentava contrastar o domínio do mar
exercido pela Inglaterra. Daquela maneira, tencionava negar o uso do mar ao
mais forte. Mais uma vez, a grande estratégia vai moldar a construção do poder
naval e suas estratégias operacionais.

Conforme explica o Almirante Flores, Ministro da Marinha de 1990 a 1992, ―as


concepções estratégicas navais clássicas, que ainda hoje influenciam as operações
nacionais relacionadas com o preparo e o emprego do poder naval, assentam seus
alicerces nos quadros político-estratégico e tecnológico dos períodos que lhe
serviram de lastro histórico e da época em que foram efetivamente formalizadas‖
(FLORES, 1972, pág. 118). As obras de Alfred Thayer Mahan (1840 - 1914), sobre a
influência do poder marítimo, caracterizavam-se por um quadro histórico de
colonialismo e imperialismo ultramarinos. Naquela moldura, a obtenção do domínio
do mar pregava a busca da batalha decisiva, conferindo aos navios capitais
preponderância absoluta. Já na França, os teóricos da jovem escola (Jeune Ecole)
perceberam as consequências do avanço tecnológico do fim do século XIX e início

708
do século XX e reavaliaram as possibilidades de navios menores, em grande
número, rápidos e bem armados promoverem operações secundárias, o corso e o
desgaste e, assim, estabelecerem o domínio do mar em áreas restritas. Seja pelo
domínio do mar, ou pela negação de uso pelo oponente, estas estratégias serviram
como referências para a construção do poder naval dos Estados e estabeleceram
dois modelos de concepção de defesa: o modelo anglo-saxão, que busca a
supremacia; ou o francês, que volta-se para a dissuasão.

3 A estratégia brasileira do passado

No período imperial, a política brasileira buscava a afirmação de um país


independente de Portugal, coeso em torno do governo central, no Rio de Janeiro, e
livre das ameaças de reconstituição do antigo Vice-Reino do Prata. A formação da
Marinha Imperial, para emprego naquela política, contou com muitos oficiais e
praças contratados da Grã-Bretanha. A aquisição dos navios, a doutrina, as práticas
e as tradições também foram importadas de lá.

A Guerra do Paraguai (1864-1870) veio destacar a relevância do Poder Naval e da


capacidade de mobilização e construção militar naval. Antes do final do conflito, em
1868, propunha-se um plano de reequipamento da Força, refletindo a necessidade de
também se atender a capacidade de navegação oceânica, prejudicada pela
especialização dos navios construídos ao ambiente fluvial da campanha (VIDIGAL,
1985). Entretanto, a inexistência de um Poder Naval antagônico, além de outras
considerações tecnológicas e políticas, contribuiu para perpetuar o declínio que se
passou aobservar na Marinha, fosse no seu inventário de meios, ou na sua capacidade
de gerá-lo. Eventualmente, a percepção de ameaça criada por um equipamento no
poder naval argentino promovia algum investimento na Marinha, mas as consequências
da Revolta da Armada e as substanciais e rápidas mudanças tecnológicas trazidas pela
Revolução Industrial nos meios navais aprofundaram o declínio.

Dagnino (1979) interpreta que, com a perda de importância da Marinha em relação


ao Exército, a partir da revolta de 1893, a Força naval passou a se preocupar mais
com a capacitação dos seus oficiais. Dada a impossibilidade de produzir o
equipamento de que precisava, a capacitação tecnológica de seus oficiais

709
privilegiava a ―aquisição‖ e o ―como utilizar‖ em detrimento do ―como fazer‖,
determinando um perfil muito menos orientado à produção do que o encontrado nas
outras Forças. Isso não quer dizer que a Marinha não tivesse se preocupado com a
produção local, mas o fez menos intensamente que o Exército e a Força Aérea.

Do final do século XIX ao início do XX, Estados Unidos, Japão, Inglaterra, França,
Alemanha, Itália e Rússia passaram a compartilhar da política do neocolonialismo,
que baseava-se na conquista e expansão territorial. Para o exercício daquela
política, ampliou-se o investimento no poder naval. A estratégia naval redundou em
esquadras com navios cada vez mais poderosos, como o encouraçado inglês
Dreadnought, lançado ao mar em 1906. Aqueles navios representavam competente
instrumento de dissuasão, e por isso, cobiçados por qualquer Estado desejoso de
afirmar sua reputação internacional. Assim se passou ao Brasil.

No Brasil, o Barão do Rio Branco assumiu a pasta de Relações Exteriores como


chanceler do governo Rodrigues Alves e, inspirando-se no exemplo do Presidente
Theodore Roosevelt, que construiu uma poderosa Esquadra para implementar a
política norte-americana, defendeu o incremento do poder naval brasileiro.
Interpretava que o Atlântico Sul era a área de influência do Brasil e a ameaça
percebida às pretensões brasileiras era a Argentina, cuja esquadra havia sido
equipada para fazer frente à chilena. Nas palavras de Doratioto (2000, p. 138) ―Brasil
e Argentina, antes de representarem ameaças mútuas reais, viam-se como tais e, a
partir desse pressuposto, armavam-se contra a esperada agressão.‖

Nesse sentido, discussões acaloradas foram conduzidas no parlamento brasileiro,


sendo aprovado um plano de reaparelhamento em 1904, posteriormente substituído
por outro em 1906. Os planos previam a encomenda de navios e munição no
exterior. A opção pela compra de navios prontos na Inglaterra veio a contribuir para
o enfraquecimento do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro. Além de não privilegiar
a produção local, os custos dos reparos era elevada e feita apenas no estrangeiro.
Mesmo tendo recebido em 1910 os navios que formavam a Esquadra, estes foram
se deteriorando e ficando obsoletos, e a Marinha, fosse por falta de manutenção, ou
treinamento, não foi capaz de empregá-los adequadamente, em 1917, na Grande

710
Guerra. A ―Esquadra Branca 306‖ de 1910representava a consciência do valor do
poder naval para apoio à política do país, mas não priorizava a capacidade de
fazer, apenas a de possuir. Os conflitos mundiais logo demonstraram que a
estratégia de obter meios prontos constituía-se apenas numa ―aparência de
poder‖ (VIDIGAL, 1985).

4 A estratégia sob a influência norte-americana

A Guerra Hispano-Americana, de 1898, marcou a entrada dos Estados Unidos


como nova potência na arena mundial, de caráter imperialista e dotada de
importante marinha. Já em 1914 o Brasil contratou oficiais norte -americanos
como instrutores e, em 1922, teve início a Missão Naval Americana, que se
estendeu até 1977. Sob orientação estadunidense, uma nova fase da estratégia
brasileira começou a se formar. Mais que uma orientação, a ―influência‖ norte -
americana se tornaria ―dependência‖, pois as necessidades materiais da
Marinha passaram a ser supridas pelo Acordo Militar de 1952, que cedia, ou
oferecia a preços simbólicos, navios da frota de reserva dos EUA.

Na SGM e depois, com a nova configuração de poder mundial que se sucedeu,


a concepção estratégica brasileira passou a se sujeitar à visão político -
estratégica estadunidense, que admitia o único inimigo externo a ex-URSS e
seus aliados, exigindo do Brasil a subordinação a uma força continental sob a
hegemonia norte-americana (VIDIGAL, 1985, p. 116). A Marinha, cujo
suprimento bélico e doutrinário era recebido dos EUA, sofria mais
intensamente essa dependência, orientando-se como uma força
complementar, focada na defesa antissubmarino. Ainda que houvesse
tentativas de nacionalização do equipamento, predominou a concepção
alinhada aos EUA, com impacto negativo para a indústria de defesa e perda
dos esforços anteriores de nacionalização.

306
A esquadra brasileira recebida em 1910 recebeu essa alcunha por influência da “Great White Fleet”, da
Marinha dos Estados Unidos, que circunavegou o planeta em 1907, tendo visitado o porto do Rio de Janeiro.

711
5 A autonomia estratégica brasileira

O intervalo que vai de 1964 a 1985, compreendido pelo regime militar, representou
uma ainda maior intervenção da elite militar na política e na economia. O projeto
militar era a transformação do Brasil em potência bélica, contribuindo para a
industrialização do país de modo geral. Duas estratégias políticas reformistas
existiram. Inicialmente, aprofundou-se uma estratégia militar anticomunista, que
considerava a defesa dos valores do Ocidente a questão nacional mais importante
do ponto de vista de política interna e externa. A partir da percepção de que o perigo
do comunismo internacional e de rebelião interna tinham sido superestimados, e que
o eixo principal de confrontação não era o Leste-Oeste, mas o Norte-Sul, passou a
prevalecer a versão nacionalista da visão estratégico militar. Nesta versão, apesar
de manter-se a tradicional amizade com os EUA, julgava-se que esta solidariedade
não se traduzia no suprimento adequado de material bélico para o Brasil, de acordo
com os requisitos tecnológicos e as quantidades que as Forças Armadas brasileiras
requeriam.

A SGM pôs em evidência, muito mais que a Primeira, o poder da Ciência em


multiplicar o potencial destruidor dos exércitos e revelou aos Estados em conflito seu
caráter estratégico. Para os militares brasileiros o desenvolvimento industrial, em
especial nas áreas nuclear, espacial e de processamento de dados, com seus
efeitos sobre a capacitação militar, seria indispensável. Entretanto, o Acordo de
1952 supria a Marinha e as demais Forças de meios ultrapassados
tecnologicamente. Os EUA criavam dificuldades à aquisição de navios novos e
equipamentos modernos. A partir da década de 1970, respaldado por elevadas
taxas de crescimento econômico, o Brasil, para renovar sua Armada, se voltou para
o mercado europeu, onde encontrou países em que a consideração econômica para
vender armamentos superou as restrições políticas (VIDIGAL, 2002).

Segundo os Relatórios do Ministério da Marinha, de 1967 a 1969, duas posturas


estratégicas para a MB eram previstas307: ofensiva, quando a ameaça era
representada por opositores do regime; defensiva, ainda colocando-se
complementarmente em uma força aliada contra o bloco comunista, mas já sem a
307
Conforme consta nos Relatórios anuais do Ministério da Marinha de 1967, 1968, 1969. Fonte: Serviço
de Documentação da Marinha (SDM).

712
ênfase na guerra antissubmarino que predominou na fase anterior, buscando uma
concepção mais ampla nos outros ambientes de guerra. Observa-se que o preparo
do poder naval era moldado considerando mais provável uma guerra global, que um
conflito regional, que seria mais coerente com a condição de país periférico. É dessa
época o lançamento do ―Programa de Renovação e Ampliação de Meios Flutuantes
da Marinha‖ que permitiu à MB adquirir seis fragatas 308 na Inglaterra,das quais duas
foram construídas no AMRJ. É importante frisar que, antes de se tratar de uma
deliberada tentativa de se adquirir a tecnologia de construção daqueles navios, tal
circunstância ocorreu por motivações da VOSPER, estaleiro construtor, que não
desejava comprometer toda a sua capacidade industrial com um único cliente por
tanto tempo, uma vez que atendia compradores em todo o mundo (VIDIGAL, 2002,
p. 15). Todavia as fragatas aqui construídas ―romperam uma tradição de atraso e
despertaram a vontade de planejar, projetar, construir, operar e manter nossos
navios com crescente competência.‖ (FREITAS, 2006, p.74). Quando, em 1977, o
Presidente Geisel denunciou o Acordo militar de 1952, a MB já estava se orientando
por uma estratégia mais independente dos EUA.

O período também é marcado pelo Conflito das Malvinas, em 1982. Ocorrido em


plena Guerra Fria, envolvendo Argentina e Reino Unido, dois Estados ocidentais,
ressaltou as tensões ―Norte-Sul‖ e confirmou a importância de se buscar uma
estratégia própria, dado a inoperância dos mecanismos de defesa regional sob a
batuta norte-americana. Também sobressaiu a fragilidade de um país dependente
de tecnologia externa, no caso a Argentina, seja no momento do combate, quanto,
posteriormente, na manutenção dos equipamentos, principalmente os oriundos da
potência adversária e seus aliados.

Segundo o Almirante Élcio de Sá Freitas (2006, p.75) ―[...] o projeto de concepção é


o grande gerador e o de construção é a grande engrenagem de uma Marinha de
Guerra no seu país [...]‖, até 1980, no limiar do século XXI, a MB ainda não contava
com um gerador e uma engrenagem no Brasil. Foi na administração do Almirante
Maximiano da Fonseca (1979 a 1984) que se deu inicio ao projeto e construção das
corvetas da classe ―Inhaúma‖, com alto índice de nacionalização. Também na sua

308
Apesar de a Marinha iniciar uma estratégia mais independente da influência norte-americana, quatro
fragatas eram antissubmarino e apenas duas de emprego geral.

713
gestão se assinou o contrato de obtenção dos submarinos de origem alemã IKL
1400 que permitiu a construção de submarinos no país.

No campo econômico, os dois choques do petróleo (1973 e 1979) e a subida dos


juros internacionais interromperam o ciclo de elevado crescimento econômico
brasileiro, limitando os projetos de construção de navios no País. Durante os anos
finais dos governos militares, a subida da inflação, as crises econômicas e os
orçamentos inferiores às necessidades da Força Naval marcavam o início de uma
fase difícil aos projetos militares, que iria se aprofundar nos governos pós-regime.
De qualquer forma, o período se caracteriza por um alinhamento entre a estratégia
desenvolvimentista do governo militar, com a estratégia naval em busca de
independência doutrinária e material dos EUA, com benefícios para a BLD naval.

6 A estratégia pós governos militares, os anos 1985 até 2013

A partir de março de 1985 começava a engatinhar o processo de controle do poder


militar pelo civil no Brasil. Em 1991, na vitória da coalizão liderada pelos EUA contra
o Iraque, na Guerra do Golfo, assistiu-se aos extraordinários avançostecnológicos
dos armamentos e renovava-se o interesse na Revolução em Assuntos Militares
(RAM), em dezembro do mesmo ano, acabava a Guerra Fria. Tais circunstâncias
marcavam a necessidade de redefinições na orientação político-estratégica para o
preparo e emprego do Poder Militar.

Quanto ao fim da bipolaridade, a esperança de uma nova ordem mundial estável e


justa com os países menos favorecidos seduzia a mente dos formuladores da
política externa brasileira. O governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) priorizou a
economia em detrimento da política e aderiu a, praticamente, todos os regimes
internacionais de não-proliferação, acreditando em supostos benefícios de
transferência de tecnologia. Segundo Amado Cervo (2002, p.8), nos governos de
Fernando Henrique Cardoso ―completou-se com o desmonte da segurança nacional
e a adesão a todos os atos de renúncia à construção de potência dissuasória.‖ No
ambiente externo predominava: uma oferta elevada de equipamentos em razão da
disponibilidade dos arsenais acumulados; uma redução crescente nos gastos

714
militares, chegando à discussão quanto à mudança no papel das Forças Armadas nos
países periféricos para o combate ao narcotráfico; a ênfase na tecnologia dos
armamentos e; a percepção da inviabilidade de manter, individualmente, uma indústria
doméstica capaz de oferecer os requisitos tecnológicos e escalas de produção
requeridas. A política do governo rompia com a estratégia desenvolvimentista
construída desde os anos 1930 e, a autonomia administrativa que a Marinha detinha
ainda a permitia estabelecer como deveria ser seu preparo e emprego.

Quanto ao processo de controle do poder militar, mesmo após a criação do


Ministério da Defesa (MD), em 1999, as Forças Armadas brasileiras ainda
dispunham de bastante autonomia administrativa e operacional, uma vez que nos
seus primeiros anos o MD ainda não contava com todo o amparo legal 309 para
orientar o emprego das Forças. Assim, a Marinha empenhou-se em preservar a
capacidade operacional alcançada, privilegiando a aquisição no exterior de meios
navais usados, com prejuízo da capacidade industrial e de independência tecnológica
do material. Fato marcante, que antecedeu à criação do MD e gerou desgastes políticos
com a Força Aérea, foi a aquisição dos aviões A-4 (Skyhawk, norte-americano).
Posteriormente, ainda se comprou o Navio Aeródromo ―São Paulo‖. Estes meios
drenaram recursos310 que poderiam, talvez, ser investidos em projetos que
privilegiassem a indústria nacional. Além disso, há ainda os custos de manutenção, que
em muito superam o de aquisição daqueles meios e, normalmente, despendido com
sobressalentes adquiridos no exterior. A baixa disponibilidade dos aviões e do Navio
Aeródromo tem também levado à perda do capital investido na formação dos aviadores.

As Política de Defesa Nacional (PDN) de 1996 e 2005 e a Estratégia Nacional de


Defesa (END) de 2008, orientam a construção e o emprego do poder militar para ser
uma força de defesa dissuasória. Mas apenas em 2008, pouco antes do lançamento
da END, a construção do poder militar em bases nacionais recebeu algum estímulo,
a partir da Política de Desenvolvimento Produtivo, com o programa de
desenvolvimento do Complexo Industrial de Defesa. Somente em dezembro de 2008

309
A Estratégia Nacional de Defesa, de 2008, centralizou no MD a formulação e a execução da política de
compras de produtos de defesa. Mas foi apenas em 2010, com as publicações da Lei Complementar nº 136, de 25
de agosto de 2010 e do Decreto nº 7.276, de 25 de agosto de 2010 que foi estabelecido o arcabouço legal para
uma subordinação completa das Forças ao Ministro da Defesa, o que ficou conhecido como a “Nova Defesa”.
310
Seja para a aquisição, quanto para a manutenção do meio.

715
foi lançada a END, com uma intenção clara de recuperar a Base Industrial de
Defesa. Certamente, o momento tornou-se favorável às Forças e a sua base
logística, porque o tema entrou na pauta do debate político, econômico e acadêmico,
gerando a oportunidade de definições de metas e recursos continuados e o retorno a
uma estratégia positiva ao desenvolvimento da BLD naval.

Todavia, o produto que hoje se apresenta como Plano de Articulação e Equipamento


da Marinha do Brasil (PAEMB), envolve vultosas despesas na aquisição de meios
navais e praticamente nenhum recurso na capacitação em CT&I da Força. Marinha e
Aeronáutica são Forças onde o investimento em CT&I é fundamental. Entretanto,
comparando-se a distribuição organizada pela Força Aérea no seu Plano
equivalente, observa-se um equilíbrio muito maior em capacidade operacional e
científico-tecnológica. Percebe-se que a desproporção em favor da capacidade
operacional, observada no plano da Marinha, é própria da autonomia decisória ainda
existente na Força e da preferência em adquirir, detectada por Dagnino. Entretanto,
os elevados valores envolvidos e a importância de se construir uma BLD com forte
investimento emCT&I, reforçam a necessidade de maior discussão na formulação do
PAEMB (BRICK311).

7 Considerações sobre a autonomia administrativa da Força Naval

A memória repassada, geração após geração, nas ordens do dia dos Chefes navais,
durante as cerimônias alusivas aos envolvimentos da Marinha nas guerras do
Paraguai e Mundiais, sempre fazem referência a entrada despreparada da Força,
naqueles conflitos, em termos de meios adequados, treinamento e doutrina. A
expressão ―Esquadras não se improvisam312‖- é sempre lembrada. Todavia, a
lembrança daqueles fatos bem demonstra a preocupação reinante: estar sempre
preparado e para isso, é necessário contar com meios, desde já, pois a Marinha não
se improvisa. A velocidade dos conflitos atuais reforçam o mote.

311
Notas de aula proferidas pelo Prof. Eduardo Brick para o curso de Mestrado em Estudos Estratégico da
UFF.
312
A frase de Ruy Barbosa (1896, p.162) é “[…] esquadras de guerra não se evocam de improviso […]”.

716
Retorna-se à afirmativa do Almirante Flores, já mencionada anteriormente, as
―estratégias que influenciam o preparo e emprego do poder naval assentam seus
alicerces nos quadros políticos-estratégicos e tecnológicos dos períodos que lhes
serviram de lastro histórico e da época em que elas foram efetivamente
formalizadas‖. Os estrategistas atuais fazem suas formulações com base na
experiência passada. A atual aceleração tecnológica ainda impõe dificuldades de
projetar cenários prospectivos confiáveis, reforçando os Chefes navais a investirem
os vultosos recursos necessários à construção do poder naval de maneira
conservadora. Apesar do processo de controle do poder militar sobre o civil estar
bastante adiantado, é natural que muitas definições estratégicas de como deve ser a
Armada ainda permanecem nas mãos da Força, até porque não há um corpo de
civis na carreira de defesa para fazer esse papel.

Outra tendência observada nas burocracias, a Marinha inclusive, é a irresistível


necessidade de crescer, que não tem sido, infelizmente, exatamente na atividade que
seria a principal. Por mais natural que isso possa parecer, em razão da busca por
influência e recursos, é paradoxal, em face de orçamentos menores e de uma PDN que
afirma que as ameaças externas tornam-se difusas e a probabilidade de um conflito
generalizado entre Estados ser improvável. A partir dessa orientação estratégica,
lançada pelo poder político, e dos continuados orçamentos, abaixo das necessidades
da MB, as ações mais importantes deveriam ser: buscar redução das atribuições
subsidiárias, de meios com baixo valor militar e de pessoal e; incremento na CT&I e na
BLD.Não obstante, ainda são mantidos investimentos na aquisição por oportunidade e
manutenção de meios, mesmo que obsoletos para a guerra atual, bem como o
investimento de recursos em atividades que não são combatentes, mas que possuem
maior aceitação na sociedade, como as de assistência hospitalar nos rios amazônicos.

A seguir, são apresentados alguns fatores considerados relevantes, no presente


trabalho, para discussão:

8 O Pessoal

O ser humano é considerado pelos Chefes navais como o componente mais


importante da Força. O Almirante Maximiano afirmava que a Marinha era espelho de

717
seus homens e que o melhor parâmetro para se avaliar a eficiência de uma Força
Armada era a qualidade do adestramento313 de seus integrantes.

A afirmação comumente encontrada nas palavras das autoridades navais é que o


material é importante, mas homens mais bem adestrados podem obter rendimento
que os permita enfrentar adversários materialmente superiores.

A formação do homem do mar é também mais demorada que a de um combatente


terrestre, que em geral leva poucos meses. Já um marinheiro necessita contato
frequente com o mar. Um dia de mar corresponderia a alguns dias de treinamento
em Centros de Instrução em terra. Sem contar com os muitos problemas advindos à
motivação e à disciplina da tropa em razão da falta de movimentação. Daí a
importância e a preocupação sempre presente na cúpula da Marinha de possuir
meios navais, ainda que antiquados, para evitar que as tripulações permaneçam
ociosas. Além disso, os navios permitem que se façam adestramentos com outras
marinhas e, dessa maneira, contribuir para a dissuasão, ao mostrar o nível de
adestramento de nossa Força Naval.

O quantitativo de pessoal deve ser criteriosamente estudado e muito dependerá das


tarefas designadas à MB, que vem crescendo atualmente pelas atribuições
subsidiárias constantes da legislação complementar314, em que pese as ameaças se
apresentem mais difusas e o conflito generalizado entre Estados menos provável,
como apresentado na Política de Defesa Nacional.

9 As necessidades de uma Força Pronta

Em que pese o fato do inventário da Marinha possuir um número relativamente


elevado de navios, o nível de disponibilidade atual pode ser considerado baixo. A
MB trabalha com esse conceito de disponibilidade, significando que ao longo de sua
vida útil, um meio naval passa por períodos de reparo, teste de sistemas,
adestramento básico, adestramentos avançados até atingir a capacidade
operacional plena, que será mantida por algum tempo, até que se necessite voltar às
313
No sentido amplo, abrangendo os aspectos profissional, moral e físico.
314
Ver Lei Complementar 97/1999, que dispõem sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o
emprego das Forças Armadas, e suas alterações LC 117/2004 e 136/2010.

718
fases anteriores, devido a perdas no adestramento ou, por necessidade de
manutenção, na capacidade operacional. Além disso, o meio poderá ter que deixar
de compor a Força Pronta, caso esteja cumprindo alguma operação distante das
águas sob jurisdição brasileira. A idade avançada e as restrições orçamentárias
prejudicam o nível de disponibilidade atual.

Para fazer frente a uma gama de possíveis tarefas em tempo de paz, a MB atribui a
si mesma a necessidade de manter em condições operacionais uma fração de seus
meios vocacionados a cumprirem determinadas capacidades. Nesse sentido, deve-
se ter uma quantidade de meios com capacidade anfíbia, com capacidade de
operações aéreas, antissubmarinas, submarinas, etc, a fim de permitir ao país dar
uma pronta resposta às ameaças sob responsabilidade da MB que eventualmente
surjam. A esse conjunto de meios navais a MB chama de Força Pronta.

Na falta de uma orientação política que restrinja as tarefas da Marinha, a MB


assume para si o dever de estabelecer e manter uma Força Pronta de porte
compatível com a estatura político-estratégica do Brasil. Assim, faz-se necessário a
aquisição de meios que atendam aos requisitos operacionais listados na Força
Pronta, a exemplo, o Navio Aeródromo e sua ala aérea embarcada. É necessário
que o poder político estabeleça a estratégia que a MB deve adotar, restringindo a
Força Pronta ao tamanho do orçamento que é repassado e às suas aspirações
políticas.

10 A opção pelo combate e Guarda Costeira.

O aumento das atividades no mar, ou relacionadas ao seu uso, também fizeram


crescer a necessidade de controle do Estado. Entre essas atividades citam-se: a
entrada de estrangeiros nos portos, o combate ao contrabando, ao descaminho e ao
tráfico, a fiscalização e controle da pesca, do meio ambiente marinho, do turismo e
lazer litorâneo, da exploração mineral, econômica e arqueológica, da vigilância
sanitária dos portos, da fiscalização do trabalho e da segurança à vida humana. A
atribuição de controlar tais atividades cabe a diversas pastas ministeriais, como a
Justiça, o Trabalho, Meio Ambiente, Fazenda, Saúde etc. O exercício da fiscalização

719
efetiva nas suas áreas de atribuição sugere a necessidade daqueles órgãos
disporem de meios flutuantes e pessoal qualificado. Dotar cada Ministério com os
meios necessários à execução das diversas atividades fiscalizadoras representa,
não somente uma pulverização de recursos, como também uma superposição
indesejada do emprego, uma vez que uma embarcação fiscalizando uma infração
sanitária poderá autuar, simultaneamente, um ilícito fiscal. Na medida de suas
possibilidades, a MB cooperou e vem cooperando, por convênios ou acordos, com
os diversos órgãos responsáveis sem condições próprias de atuação.

O Almirante Maximiano escreveu suas memórias como Ministro da Marinha num


livro-relatório intitulado 5 anos na pasta da Marinha315(1979-1984). O Almirante
assistia à redução do orçamento da Força e a necessidade de dar continuidade aos
projetos iniciados na gestão anterior, do Almirante Henning. Maximiano teve a
percepção de que a execução de tais tarefas fiscalizadoras se constituía em um
desvio da missão constitucional e mandou o Estado-Maior da Armada (EMA), à
época, estudar o assunto e propor um projeto de Lei para a criação de uma Guarda
Costeira brasileira (GC). Após não ter conseguido uma resposta satisfatória do EMA,
mandou uma comissão composta de cinco oficiais apresentar-lhe o projeto em 90
dias. O projeto foi encaminhado, mas até a sua saída da pasta não chegou a ser
aprovado. A matéria encontrou forte oposição de seus sucessores e de forma geral
no âmbito naval. Na gestão do Almirante Sabóia (1985-1990), sob o pretexto de que
não havia previsão de recursos próprios para a implementação da guarda costeira e
que estes seriam providos pelo orçamento da MB, o projeto foi retirado do
Congresso para novos estudos e não mais retornou. Outros ex-ministros da MB,
como o Almirante Flores e o Almirante Serpa, pronunciaram-se contra a
implementação de uma guarda costeira (VIDIGAL, 2002).

Vidigal afirma que, em teoria, a guarda costeira faz todo o sentido, pois assumindo
atribuições que não são especificamente militares, como o combate ao contrabando
e descaminho no mar, o socorro marítimo na costa, a repressão à pirataria e à pesca
ilegal na ZEE, entre outras tantas, permitiria a MB focar-se em tarefa que somente
ela pode realizar, a defesa no mar. Atualmente, a MB mantém Forças Distritais, com
navios, aeronaves e forças de Fuzileiros Navais, inclusive em regiões onde não há

315
O livro não foi impresso por editora, mas é disponível para venda no SDM.

720
mar, seja na Amazônia, como no Pantanal, realizando atividades de patrulha,
fiscalização, socorro e salvamento, que são próprias de GC. Diversos Estados, de
marinhas maiores e menores que a brasileira, instituíram suas GC. Entretanto,
Vidigal preocupa-se ao estimar que os parcos recursos distribuídos à MB tivessem
que ser repartidos com a GC, cujos ―serviços prestados afetariam de forma imediata
e mais visível os interesses da sociedade e dos compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil‖, com desvantagem nítida para a Marinha.

Atualmente, a LC 97/1999 e suas alterações (LC 117/2004 e 136/2010)


estabelecem as atribuições subsidiárias da MB. Estas atribuições são típicas de GC.
Em que pesem as justificativas sobre a necessidade de compartilhamento dos
recursos com uma possível GC, a necessidade, desde sempre, de ter que realizar
atribuições subsidiárias concomitantemente à preparação para o combate pode ter
sido uma das motivações para que o investimento no poder combatente e na sua
correspondente BLD fossem menores que o ideal. A despeito de tais atribuições
estarem engessadas por Lei Complementar, identifica-se como necessário ampliar o
debate deste ponto, pois a opção pelo combate deve ser o foco.

11 Considerações finais

Para Brick (2012), a defesa nacional de países do porte do Brasil depende de dois
instrumentos principais e igualmente importantes: as suas Forças Armadas e a BLD.
As Forças,são sustentadas pelo Estado. A BLD, em razão do mercado onde atuam
ter característica monopsônica316 e o Estado ser muitas vezes o único comprador,
deve também receber deste o suporte para a sobrevivência. O investimento na BLD
é uma consideração estratégica.

No passado, artífices com ferramentas simples e habilidade conseguiam produzir


muitos dos meios navais que a Marinha necessitava. Atualmente, o acelerado
desenvolvimento da CT&I tende a tornar os meios militares obsoletos em tempos
cada vez mais reduzidos. Um vultoso investimento na capacitação operacional

316
Forma de mercado com apenas um comprador.

721
torna-se indesejável, sendo mais importante investir na capacitação científico-
tecnológica e inovativa da Força.

A herança estratégica do passado influenciou e continua a exercer influência na


preparação da Força Naval. A autonomia administrativa que os Chefes navais ainda
preservaram após 1985 priorizou a manutenção da capacidade operacional, ao invés
da capacidade industrial e de inovação. O PAEMB reflete a estratégia ainda vigente.

Para que o Brasil alcance a desejada altivez estabelecida na END, de se poder dizer
não, quando se tiver que dizer não, é fundamental que a grande estratégia política
do governo rompa com o ciclo de baixos investimentos nas Forças e,
particularmente, em CT&I. Só assim será possível atinjir a independência
tecnológica no suprimento militar. Também é preciso sopesar a autonomia
administrativa da Força naval, investir num corpo de civis para a carreira de defesa,
repensar a estratégia naval, de modo que se priorize as atividades diretamente
relacionadas ao combate e, finalmente, ofereça-se um orçamento e tarefas
adequados à conservação de uma balanceada Força Pronta a ser mantida pela
Marinha, para o conveniente adestramento e motivação da tropa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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da Associação Brasileira de Estudos de Defesa. Fortaleza, agosto 2011.

_______. Uma Estratégia para o desenvolvimento e a sustentação da Base


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2012. Disponível em: <http://www.inest.uff.br/index.php/noticias/401-a-base-
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CERVO, Amado Luiz. Relações internacionais do Brasil: um balanço da era


Cardoso. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 45, n. 1, p. 5-35, 2002.

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de avaliação. 1989. 504 f. - Tese (Doutorado em Ciência Econômica) – Instituto de
Economia da UNICAMP, Campinas, 1989.

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. A política platina do Barão do Rio


Branco. Revista Brasileira de Política Internacional. V. 43, n. 2, p. 130-149,
[2000]. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v43n2/v43n2a06.pdf >. Acesso
em: 11 jun. 2013.

722
FONSECA, Maximiano Eduardo da Silva. 5 Anos na Pasta da Marinha. 2 ed. . [S.l.:
s.n], [1988?].

FREITAS, Élcio de Sá. A Busca de Grandeza: Histórico do Arsenal de Marinha


do Rio de Janeiro (AMRJ). Revista Marítima Brasileira, 3º T, 2006. Disponível
em:<http://www.inest.uff.br/index.php/opinioes/3-opiniao/industria/355-a-busca-da-
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2013.

FLORES, Mario Cesar (Coord.). Panorama do Poder Marítimo Brasileiro.


Biblioteca do Exército e Serviço de Documentação Geral da Marinha. Rio de Janeiro,
1972.

BARBOSA, Ruy. Cartas de Inglaterra. Rio de Janeiro : Typ. Leuzinger, 1896. 410p.

VIDIGAL, Armando Amorim Ferreira. A evolução do pensamento estratégico


naval brasileiro. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.

_________. A evolução do pensamento estratégico naval brasileiro meados da


década de 70 até os dias atuais. Rio de Janeiro: Clube Naval, 2002.

723
Simpósio Temático 11

AS PERCEPÇÕES SOBRE O LUGAR DO BRASIL NO SISTEMA POLÍTICO


INTERNACIONAL: A IMPORTÂNCIA DA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE UM
ESTADO PARA A POLÍTICA DE DEFESA NACIONAL

Camila Maria Risso Sales317

1 INTRODUÇÃO

O sistema político internacional é marcado por uma hierarquização dos Estados, nas
Relações Internacionais busca-se entender o lugar que as unidades ocupam dentro
desse sistema e o relacionamento que há entre estas, além das implicações deste
posicionamento para as políticas externa e de defesa. A pergunta que norteia a
reflexão, ainda que inicial, proposta nesse artigo é: no século XXI, é possível
detectar mudanças na percepção sobre o lugar do Brasil no sistema internacional?
Para além das capacidades materiais, cuja importância não pode ser negada,
entende-se que o discurso sobre a ascensão e a construção da imagem do Brasil
como uma potência emergente também contam na determinação do posicionamento
do país no cenário internacional. No espaço que cabe a este artigo será tratada
principalmente a percepção de setores especializados em relações internacionais e
em política externa e de defesa, no entanto, é importante deixar claro que este é
apenas um dos muitos aspectos que podem ser analisados.

O conceito de potência é definido por Aron (2002) como a capacidade que as


unidades têm de impor sua vontade às demais. Buzan (2003, 2004) enfatiza que
além dos meios materiais, a definição de potência deve levar em conta o estatuto
que os outros Estados conferem a uma determinada unidade política e o lugar em
que os próprios Estados se colocam. Quanto ao conceito específico de potência

317
Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutoranda em Ciência
Política na Universidade Federal de São Carlos sendo membro do grupo de pesquisas Forças Armadas e Política
sob orientação do Prof. Dr. João Roberto Martins Filho.

724
emergente, é difícil precisar o momento de seu surgimento. Como referência ao
Brasil essa ideia começa a ser usada a partir dos anos 1970. Perry e Kern (1978)
atribuem a ideia de potência emergente àqueles países que passam a ser
competidores cada vez mais acreditados no ambiente internacional318, ou que
estejam emergindo para algum status de maior poder, como um ator internacional
significativo.

No que tange à política de defesa esse posicionamento no sistema internacional


pauta os rumos a serem tomados. A estruturação de uma política de defesa
depende do papel desempenhado pelo país no cenário internacional, mas também
contribui para que este papel seja definido, numa via de mão dupla.

Para Buzan e Wæver (2008) o sistema internacional só pode ser compreendido se,
além dos critérios objetivos de determinação do status de uma potência, sejam feitas
considerações acerca da identidade desta. A percepção, tanto dos demais atores
como do próprio Estado são elementos a serem considerados. Portanto, a
perspectiva teórica que nos ajudará a pensar a problemática deste artigo se alinha ao
debate proposto por Barry Buzan (2004a) de conciliação da Escola Inglesa com o
neorrealismo e o construtivismo wendtiano. Assim, para entender as mudanças no
sistema internacional e as consequências destas não se deve olhar apenas para a
distribuição internacional de poder, mas também para a estrutura normativa da
sociedade internacional e como esta estrutura influencia na construção dos papéis a
serem desempenhados pelos Estados. As análises que partem de critérios
mensuráveis de poder são importantes, mas têm limites, pois retiram da discussão dois
elementos relevantes. Primeiro o contexto, que nos leva a entender um quadro mais
complexo de atuação das unidades no sistema internacional e também os motivos e
valores que intervêm na discussão sobre poder e influência.

Desta maneira, a definição de categorias como potência média, potência emergente ou


em ascensão é feita não apenas por atributos objetivos, mas por uma identidade criada
interna ou internacionalmente. Buscamos compreender como entendimentos
intersubjetivos são construídos para que se formem as estruturas básicas pelas quais
os Estados se relacionam (BUZAN, 2002). Da mesma forma, é possível discutir como

318
“[…] increasingly credible power contender in the international environment” (p. 55).

725
o significado e o peso das ideias têm relevância na determinação da agenda
internacional (VIGEVANI et al., 2011).

One side of a constructivist approach to middle-powers would


therefore look to the historical emergence of particular foreign policy
ideologies or discourses. [...]So, even if it does not lead to hard
theory, one can develop an interesting way into the category of
intermediate powers, not by trying to identify some defining set of
material attributes but rather by getting at the ideas and ideologies
that motivate the states involved. (HURRELL, 2000, p. 2).

Este artigo se propõe a apresentar de forma bastante preliminar ainda, como, em


torno do Brasil tem sido construída a ideia de potência emergente. Lembrando que
esta construção é feita tanto interna quanto internacionalmente. Além disso,
pretende-se mostrar que essa ideia que já foi utilizada como referência ao Brasil nos
anos 1970 é resgatada nesse início do século XXI, no entanto, com uma base
diferente, não apenas assentada no crescimento econômico. Da mesma forma é
relevante notar como este tipo de posicionamento no cenário internacional pode
influenciar as políticas de defesa e de segurança.

2 O BRASIL POTÊNCIA NOS ANOS 70

A construção da imagem do Brasil como potência emergente ou em ascensão é um


fenômeno recente, com bases próprias, mas não se pode dizer que seja
completamente inédito. Nos anos 70, diversas análises tratavam da emergência do
Brasil com referências ao forte crescimento econômico. O artigo de Willian Perry e
Sheila Kern, ―The Brazilian nuclear program in a foreign policy context‖, publicado na
revista Comparative Strategy, em 1978 destacava a potencialidade brasileira como
nação em desenvolvimento. ―In addition, it must be clearly recognized that among all
the developing nations, Brazil is probably the most likely, over forthcoming decades, to
enter the ranks of the world's principal power centers‖ (p. 66). Para os autores, o Brasil
estaria avançando para se tornar um poder autônomo tendo um papel mais positivo e
influente no mundo e para isso, o programa nuclear brasileiro era fundamental uma vez
que a relação entre o lugar ocupado por um Estado no sistema internacional reflete-se
na política de defesa, ainda que existam outros fatores a influenciá-la.

726
Acredita-se que o status de potência emergente foi atribuído ao Brasil, pela primeira
vez, pelo próprio Perry, dois anos antes, em 1976, quando publica o livro
Contemporary brazilian foreign policy: the international strategy of an emerging
power, este é um marco fundamental da construção da percepção do Brasil como
potência emergente. No mesmo ano, Ronald Schneider publica Brazil: foreign
policy of a future world power. Análises que vinham reforçar outras, como a de
Riordan Roett ―Brazil ascendant: international relations and geopolitics in the late
20th century‖ que saiu no Journal of International Affairs em 1975 e a ainda
anterior, de 1973, do livro de Donald Emmet Worcester, Brazil, from colony to
world power que mesmo que não usassem tão claramente o termo potência
emergente para se referirem ao Brasil, esta ideia já estava presente. Não só em
língua inglesa é possível encontrar publicações que destacavam a potencialidade
brasileira, Demain Le Brésil? Militarisme et Technocratie, livro de Michel
Schooyans, que foi editado pela primeira vez em 1977 é um exemplo disso. Há
ainda documentos como o Memorandum of Understanding Concerning
Consultations on Matters of Mutual Interest assinado por Henry A. Kissinger e
Antonio F. Azeredo da Silveira em 1976, que demonstram o reconhecimento do
Brasil como ator significativo no cenário internacional.

Por outro lado, esse destaque dado a ascensão do Brasil, principalmente no campo
econômico vinha contrabalanceado por uma visão bastante negativa relativa ao
desrespeito aos direitos humanos, especialmente quanto ao emprego da tortura, à
ausência de democracia e à grave desigualdade social. Esses aspectos apareceram
em livros que tiveram grande repercussão internacionalmente como Estratégia do
terror: a face oculta e repressiva do Brasil, de Ettore Biocca publicado em Lisboa,
em 1974 e ―Pau de Arara‖ – La violence militaire au Brésil, nunca publicado em
português, escrito por Bernardo Kucinski e Italo Tronca, de 1971. No Chile, Rodrigo
Alarcon lança, também em 1971, Brasil: repressión y tortura.

727
Esses são exemplos de como o Brasil, nos anos 70, era internacionalmente
percebido a partir de dois marcos: a pujança econômica e o retrocesso político
representado pela ditadura militar.

3 SÉCULO XXI: BRASIL POTÊNCIA EMERGENTE

Diferentemente o que se via nos anos 70, o desenho atual é diverso. O Brasil tem
aparecido, com frequência, tanto na literatura de relações internacionais quanto na
mídia internacional como uma potência em ascensão, sendo reconhecido como um
ator global emergente. O discurso e a percepção sobre o Brasil se assentam, hoje,
em basicamente quatro fatores: o crescimento e a estabilidade econômica, o regime
democrático, a redução da desigualdade social e a autossuficiência energética. Além
disso, a potencialidade do Brasil como exportador, a forte presença nas instituições
multilaterais e as relações com outros países em desenvolvimento, são
frequentemente destacadas.

Acredita-se que é possível destacar o ano de 2001como um momento de inflexão na


mudança da percepção internacional sobre o Brasil, tanto na academia quanto na
imprensa. A ideia não é estabelecer esse momento de maneira absoluta, mas deve
ser destacado. É nesse ano que o conceito de potência emergente adquire nova
importância. O Brasil, juntamente com Rússia, Índia e China são alçados a esse
posto pelo banco de investimento Goldman Sachs que cunhou o termo BRICs e
parece ter influenciado a construção de uma nova percepção sobre o Brasil (O‘NEIL,
2001) ―This gigantic nation—be it in territorial, population, or economic terms—has
been categorized as an emergent power at least since 2001, when a Goldman Sachs
report defined it as a BRIC country‖ (MALAMUD, 2011, p. 4).

Além desse, outros momentos merecem relevo. Em 2003, a publicação de um


segundo relatório, ainda mais otimista, do Goldman Sachs (WILSON;
PURUSHOTHAMAN, 2003), a atuação do Brasil na Organização Mundial de
Comércio (OMC), com a criação do G-20 na Conferência de Cancun e o nascimento
da Aliança entre Índia, Brasil e África do Sul (IBAS) refletem a percepção sobre o
Brasil e sua disposição em colocar-se mais ativamente no cenário internacional

728
(OLIVEIRA, 2005). É marcante também todo o processo desencadeado pela crise
mundial de 2008, menos pela crise em si, mas principalmente pelo fato do Brasil ter
sofrido menos do que os analistas esperavam em comparação com outros países.
―In recent years, Brazil has generated a level of international interest and excitement
that was wholly unexpected and unpredictable as little as 10 years ago‖
(KINGSTONE, 2009).

A percepção sobre a ascensão do Brasil pode ser vista em um número grande de


artigos de cunho acadêmico e jornalístico que destacam a potencialidade de atuação
como liderança não só regional, mas dos países em desenvolvimento. Andrew
Hurrell, um dos pioneiros nos estudos sobre a emergência do Brasil no sistema
político internacional publicou na Current History, respectivamente em 2008 e 2010
―Lula‘s Brazil: a rising power but going where?‖ e ―Brazil and the new global order‖.
Os dois artigos destacam o papel proeminente da política externa brasileira nos
governos Lula, cujo tom foi de inserção do Brasil no mundo como uma potência. É
de 2010(a) também o capítulo de Hurrell ―Brazil: what kind of rising state in what kind
of institucional order‖, publicado no livro Rising states, rising institutions: challenges
for global governance (ALEXANDROFF; COOPER, 2010). Neste o autor também
enfatiza a proeminência global adquirida pelo Brasil. ―Building on President Lula‘s
extraordinary personal popularity, the country‘s continued economic stability, and the
success of its more assertive foreign policy, Brazil has undoubtedly acquired a new
global prominence‖ (p. 128). Nessa mesma linha, em 2008, na Foreign Affairs, uma
das mais importantes revistas de relações internacionais do mundo 319 é publicado o
artigo ―Brazil's Big Moment-A South American Giant Wakes Up‖ de Juan de Onis. A
referência a esses artigos longe de querer esgotar todo o rol de publicações sobre o
Brasil no período recente traz exemplos importantes da visibilidade adquirida pelo
Brasil na literatura especializada em Relações Internacionais.

Na imprensa também são diversas manifestações nesse sentido. Destacamos dois


artigos do The Wall Street Journal, ―Brazil Joins Front Rank of New Economic
Powers‖ (2008) e ―Economy Fuels Brazil‘s Ambitions Beyond South America‖ (2009).
Na mesma linha a revista The Economist, em novembro de 2009, dá a sua capa ao

319
De acordo com o Journal Citation Reports Social Sciences Edition, 2011, a Revista Foreign Affairs ocupa a
sexta colocação segundo o Impact Factor.

729
Brasil, e destaca que o B dos BRICs tem vantagens em relação aos outros Estados.
Diferentemente da China, o Brasil é uma democracia e diferentemente da Índia não
sofre com conflitos étnicos, religiosos ou com a hostilidade de seus vizinhos e ao
contrário da Rússia, tem uma pauta diversificada de exportações que vai além do
petróleo e das armas, conferindo ainda maior respeito aos investidores320. O artigo
―From poverty to power: how good governance made Brazil as a model nation‖ do
Spiegel Online em outubro de 2012 (FOLLATH; GLUESING, 2012) e ainda, em
fevereiro de 2013, a capa da Financial Times Magazine com Here comes Brazil e
artigos como: ―Brazil: the first big ‗soft‘power‖ e ―A place at the top of the tree‖ são
demonstrações de como a imprensa, mesmo em veículos considerados
conservadores estava atenta ao papel desempenhado pelo Brasil.

A percepção da academia e da imprensa internacional sobre a ascensão do Brasil é


reforçada por alguns organismos internacionais. É o caso da Comission of European
Communities, que no documento ―Communication from the Commission to the Council
and the European Parliament: Towards an EU-Brazil Strategic Partnership (COM 281)‖
publicado em maio de 2007 traz referências como: ―Over the last years, Brazil has
become an increasingly significant global player and emerged as a key interlocutor for
the EU‖ […] ―The time has come to look at Brazil as a strategic partner as well as a
major Latin American economic actor and regional leader‖ […] ―Over the last few years
Brazil has emerged as a champion of the developing world in the UN and at the WTO‖
(p. 2). ―In recent years Brazil has assumed a leading role on behalf of developing
countries in the WTO, notably in agricultural trade and through the G20 group‖ (p. 4).

O Brasil também ocupou a atenção do Council on Foreign Relations (Estados Unidos


da América). O conselho, que é um órgão independente do governo americano,
lança, periodicamente, uma publicação chamada Task Force. Em duas
oportunidades, o Brasil foi tema deste documento - em 2001, ―A Letter to the
President and a Memorandum on U.S. Policy Toward Brazil‖ e, em 2011, ―Global
Brazil and U.S .- Brazil Relations‖. A primeira dessas publicações tem 17 páginas e
não coloca, em momento algum, o Brasil na condição de potência emergente ou em

320
Além da reportagem de capa a revista dispensa 15 páginas para a publicação de artigos como “Condemned to
Prosperity” e “A better today”.

730
ascensão no sistema internacional. A segunda conta com 125 páginas e nela vemos
referências como: ―[...] a significant power and presence on the world stage‖ (p. 3);
―And Brazil must adjust to its new role as a global power‖ (p. 5); ‗[…] now be counted
among the world‘s pivotal powers. Brazil‖ (p. 7); ―[…] a new potential hegemon with
its sights set on global power‖ (p. 54); ―[...] Brazil‘s emerging role as a global power‖
(p. 80). Isso sinaliza que a posição dos Estados Unidos em relação ao Brasil
pode ter sido alterada, que pode haver uma mudança na percepção do lugar do
Brasil na política externa norte-americana.

O National Intelligence Council que é o órgão ao qual está submetida a política de


inteligência norte-americana publica, a cada 5 anos um documento chamado
Global Trends. Até hoje, foram publicadas 5 edições. Somente a comparação
desses documentos mereceria um estudo específico, no entanto, esta não é a
proposta desse artigo. O primeiro documento, de dezembro de 1997, o Global
Trends 2010 o Brasil é citado uma única vez numa referência a ideia de que,
junto com o México, seria uma voz dominante na cooperação e integração
econômica do continente. No Global Trends 2015, de dezembro de 2000, são 10
citações do Brasil, num documento que também cresceu bastante em
comparação ao primeiro. O Global Trends 2020 de dezembro de 2004, o Brasil
aparece em 15 momentos. Na publicação de novembro de 2008 são 22
inserções, com trechos do documento dedicados exclusivamente ao Brasil. E, no
último documento, o Global Trends 2030, de dezembro de 2012, há 31
referências ao Brasil, destacando-o diversas vezes como potência. Esse
crescente no número de vezes que o Brasil é citado num documento oficial da
inteligência norte-americana pode ser sintomático da importância que o Brasil
veio adquirindo nos últimos anos 321.

Há ainda, uma quantidade considerável de livros sendo publicados sobre a


emergência do Brasil no cenário internacional. Apesar de não apresentarmos

321
Com exceção apenas do primeiro documento com apenas 7 páginas, os outros têm entre 98 e 160 páginas, ou
seja, são relativamente extensos.

731
uma listagem exaustiva da produção internacional sobre o Brasil, algun s títulos
merecem ser destacados. O embaixador americano Lincoln Gordon publica em
2001 Brazil's Second Chance: En Route Toward the First World. Depois de 2008,
há um número significativo de publicações, o que se supõe seja um efeito
também do enfrentamento do Brasil à crise. Em 2009, é editado o livro Brazil
under Lula: Economy, Politics, and Society under the Worker-President dos
professores da Universidade de Illinois, Joseph L. Love e Werner Baer e também
Brazil as an Economic Superpower?: Understanding Brazil's Changing Role in the
Global Economy de Lael Brainard e Leonardo Martinez-Diaz ambos funcionários
do Departamento do Tesouro do governo Barack Obama. Riordan Roett que já
havia escrito sobre o Brasil nos anos 70 volta ao tema com The New Brazil, em
2011. Brazil on the Rise: The Story of a Country Transformed é lançado em 2012
por Larry Rohter que foi correspondente do New York Times no Brasil.

Especificamente em relação aos periódicos sobre relações internacionais é


possível perceber que o Brasil vem sendo objeto mais frequente dessas
publicações. A primeira parte da pesquisa consiste num levantamento, através da
plataforma Web of Knowledge dos periódicos estrangeiros que pontuaram no
Impact Fator, índice construído a partir do número de citações que a revista teve
em 2011, da ferramenta Journal Citation Reports – Social Sciences Edition
(2011). Estão listados 81 periódicos, desse total, 25 revistas nunca produziram
artigos que mencionassem o Brasil e 10 não possuem artigos com referência ao
Brasil no período proposto. Dessa forma, 46 periódicos puderam ser localizados
através da busca da palavra Brazil no período proposto para esta investigação
(janeiro de 2001 a janeiro de 2013). Isso faz com que o universo da pesquisa seja
de 46 revistas com um total de 259 artigos.

732
Tabela 1: Revistas acadêmicas sobre relações internacionais a serem pesquisadas ordenadas segundo o fator de impacto
Artigos:
Artigos
Colocação/ País/ termo de
Revista Ano de publicação dos artigos (número de artigos) (2001 a
impact factor idioma busca -
2013)
Brazil
1957, 1969, 1984, 1986(2), 1987, 1993, 1994,1995, 1996, 2000,
1/3,025 World Politics EUA/ing. 17 6
2003(2), 2007, 2010(2), 2012
1962, 963, 1965, 1971, 1975, 1978(2), 1982, 1986, 1989, 1992,
6/2,034 Foreign Affairs EUA/ing. 43 1994, 1995, 1996(2), 1997, 1999(8), 2000(5), 2003, 2004, 2006, 14
2007, 2008 (2), 2009, 2010(6), 2011
1982, 1995, 2002, 2004(2), 2007(2), 2008(2), 2010(2), 2011, 2012,
9/1,865 Marine Policy Ing./ing. 14 12
2013
11/1,352 European Journal of International Relations Ing./ing. 1 2010 1
12/1,314 European Journal of International Law EUA/ing. 1 2011 1
14/1,265 International Studies Quarterly EUA/ing. 2 1996, 2002 1
1958(2), 1962, 1964, 1965, 1968(2), 1969(3), 1970(5), 1971(4),
1972(2), 1977(2), 1978(2), 1979(2), 1980(4), 1982(2), 1983(2),
15/1,256 International Affairs Ing./ing. 73 1984, 1987(2), 1988, 1989(2), 1990, 1991, 1994, 1995, 1996, 1997, 21
1998(2), 1999(2), 2000(2), 2001, 2002(2), 2003(2), 2005, 2006(3),
2008(4), 2009, 2010(3), 2011(3), 2012
18/1,095 International Journal of Transitional Justice Ing./ing. 1 2010 1
19/1,079 World Trade Review Ing./ing. 4 2009(2), 2010, 2011 4
21/1,039 Review of International Political Economy Ing./ing. 5 2002, 2006(2), 2009, 2011 5
22/1,038 New Political Economy EUA/ing. 2 2006, 2012 2
23/1,034 Pacific Review Ing./ing. 2 2007, 2010 2
24/1,032 Security Dialogue Nor/ing. 2 1996, 2009 1
25/0,953 Emerging Markets Finance and Trade EUA/ing. 6 2005, 2006, 2009(2), 2011(2) 6
27/0,915 Terrorism and Political Violence Ing./ing. 1 2007 1
29/0,864 Security Studies Ing./ing. 2 2011, 2012 2
30/0,857 Stanford Journal of International Law EUA/ing. 1 2003 1
32/0,778 Review of World Economics Ale/ing. 3 2003, 2007, 2008 3
33/0,775 Wasington Quarterly EUA/ing. 3 1995, 1998, 2001 1
35/0,74 International Studies Review EUA/ing. 2 2008, 2010 2
37/0,691 Millennium - Journal of International Studies Ing./ing. 5 1986, 1987, 1991, 2001 (2) 2
38/0,688 World Economy Ing./ing. 9 1987, 1988, 2004, 2005, 2007, 2010, 2011(2), 2012 7
1975, 1976, 1979, 1981, 1982, 1983, 1986(5), 1989, 1991, 1992(2),
39/0,65 Studies in Comparative International Development EUA/ing. 45 1993(2), 1994(3), 1995, 1996(2), 1998, 1999, 2000(2), 2001(2), 18
2002(3), 2004(3), 2005, 2006, 2007, 2009, 2010, 2011(3), 2012(2)
41/0,613 Survival Ing./ing. 4 2004, 2009, 2010(2) 4
42/0,585 International Peacekeeping Ing./ing. 4 2009, 2010(3) 4
44/0,559 International Journal of Conflict and Violence Ale/ing. 3 2011(3) 3
48/0,533 International Relations Ing./ing. 3 2008(2), 2012 3
49/0,529 International Studies Perspectives EUA/ing. 1 2008 1
50/0,5 Space Policy Ing./ing. 13 1995(2), 1996, 1997, 1999, 2001, 2003, 2005(3), 2008, 2011, 2012 8
52/0,469 Cornell International Law Journal EUA/ing. 1 2008 1
53/0,435 Global Governance EUA/ing. 3 2000, 2011(2) 2
53/0,435 Bulletin of the Atomic Scientists EUA/ing. 9 1976, 1977, 1991, 1992, 1996, 2001, 2003, 2010(2) 4
2001(5), 2002(6), 2003(4), 2004(6), 2005(7), 2006(5), 2007(5),
57/0,417 Latin American Politics and Society EUA/ing. 75 75
2008(6), 2009(11), 2010(6), 2011(10), 2012(4)
59/0,404 Journal of the Japanese and International Economies EUA/ing. 3 2006, 2010, 2012 3
61/0,361 Journal of World Trade Hol/ing. 7 1990, 1999, 2009, 2010(4) 5
Coreia do
62/0,360 Korea Observer 1 2010 1
Sul/ing.
63/0,345 Cambridge Review of International Affairs Ing./ing. 2 2012(2) 2
64/0,343 International Relations of the Asia-Pacific Ing./ing. 1 2007 1
66/0,308 Journal of Human Rights Ing./ing. 1 2011 1
Noruega/vá
68/0,247 Internasjonal Politikk 10 1999, 2004, 2006, 2011(7) 9
rios
70/0,233 Columbia Journal of Transnational Law EUA/ing. 6 1984, 1995, 2000, 2001, 2006, 2007 3
1957, 1960, 1961, 1962, 1963, 1964(2), 1965(2), 1966(2), 1967,
1969, 1972(3), 1973(2), 1974(2), 1976, 1977, 1978, 1980, 1981(3),
76/0,151 Current History EUA/ing. 50 9
1982(2), 1985, 1986, 1987, 1989, 1990(3), 1991, 1992, 1993, 1998,
1999, 2003, 2006, 2007, 2008, 2010(3), 2011, 2012
Turquia/
78/0,128 Uluslararasi Iliskiler - International Relations 2 2009, 2010 2
turco ing.
79/0,106 World Policy Journal EUA/ing. 6 1987, 1988, 1991, 1994, 1999, 2010 1
80/0.053 Asia Europe Journal Ale/ing.. 1 2012 1
81/0,00* Internationale Politik Ale/ale ing 3 2000, 2005, 2012 2

Total de revistas a serem pesquisadas 46


Total de artigos no período determinado para a pesquisa (jan. 2001- jan. 2013) 259
*pontuou no conjunto de 5 anos (0,009)
Fonte: Web of Knowledge/Journal Citation Reports – Social Sciences Edition (2011) – Tabela elaborada pela autora.

Apenas a título de comparação preliminar foi feito um breve levantamento da


produção sobre o Brasil em periódicos internacionais especializados desde os anos
1980. O Journal of Citation Report – Social Sciences Edition 2011 foi o ponto de
partida. A partir dele os periódicos foram ordenados segundo o Impact Factor. Nos
30 primeiros colocados foi feita uma busca com o termo Brazil. Em 13 destes não foi
encontrada nenhuma referência. Das 17 revistas restantes 5 não existiam nos anos
1980 e/ou 1990. Assim, nos 12 periódicos que perfazem a amostra não foi
encontrada, nos títulos dos artigos e/ou resenhas nenhuma referência que conectasse
o Brasil a ideias como: power (entendido como potência e não poder), economic

733
superpower, rising power, emerging power e global player. No entanto, em 4 (Foreign
Affairs, Marine Policy, European Journal of International Relations e International
Affairs) existem 18 artigos com esse tipo de referência entre 2001 e 2013.

Essa percepção externa da ascensão do Brasil tem um correspondente interno, na


assunção do papel e, portanto na produção de um discurso de autopercepção como
potência emergente. O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no almoço
oferecido aos formando do Instituto Rio Branco em 19 de setembro 2003 é um
exemplo deste autoposicionamento do Brasil como potência emergente.

O Brasil é um país por demais importante e muitas vezes não fomos mais
importantes porque, muitas vezes, não nos demos importância. O governo tem
a decisão política de fazer com que o país utilize todo o seu potencial de
ousadia, todo o seu potencial de política externa, para inserir o Brasil no
mundo como um país grande, um país que gosta de respeitar e, ao mesmo
tempo, um país que quer ser respeitado (LULA DA SILVA, 2003, p. 3).

É possível perceber posicionamento semelhante em falas da Presidenta Dilma


Rousseff. No discurso durante a cerimônia de abertura do Debate Geral da 66ª
Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York nos Estados Unidos da
América pode-se visualizar:

É significativo que seja a presidenta de um país emergente – um país que


vive praticamente um ambiente de pleno emprego – que venha falar, aqui,
hoje, com cores tão vívidas, dessa tragédia que assola, em especial, os
países desenvolvidos.

Como outros países emergentes, o Brasil tem sido, até agora, menos
afetado pela crise mundial. Mas sabemos que nossa capacidade de
resistência não é ilimitada. Queremos – e podemos – ajudar, enquanto há
tempo, os países onde a crise já é aguda (ROUSSEFF, 2011).

A inserção altiva e ativa no sistema internacional, definida assim pelo Ministro


das Relações Exteriores do governo Lula, Celso Amorim, é reforçada pela eleição
recente de brasileiros como representantes e para a direção de algumas das mais
importantes organizações internacionais. É o caso de José Graziano na Food and
Agriculture Organization (FAO), do embaixador Roberto Carvalho de Azevêdo na
Organização Mundial de Comércio (OMC) e de Paulo de Tarso Vannuchi na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados

734
Americanos (OEA). A própria disponibilidade do Brasil de colocar candidatos
nesse tipo de disputa é significativa do tipo de inserção nos foros internacionais
pretendida pelo Brasil.

4 SEGURANÇA E DEFESA NACIONAL

Não se pode negar que há e deve haver uma forte articulação entre a política externa e
a política de defesa nacional. O lugar do Brasil no sistema político internacional é
fundamental para a definição de ambas as políticas, assim como elas são fatores de
determinação do posicionamento brasileiro nesse cenário, apesar disto depender de
diversos outros fatores, com destaque para a projeção econômica o país.

No entanto, é fundamental perceber como a Política de Defesa Nacional, aprovada


pelo Decreto 5.484, de 30 de junho de 2005 que pela primeira vez, em sua
formulação, contou com a participação de civis (MARTINS FILHO, 2010) trata a
questão do papel a ser desempenhado pelo Brasil no âmbito da segurança e da
defesa nacional.

O documento define segurança como ―condição que permite ao País a preservação


da soberania e da integridade territorial, a realização dos seus interesses nacionais,
livre de pressões e ameaças de qualquer natureza, e a garantia aos cidadãos do
exercício dos direitos e deveres constitucionais‖. A ideia de defesa está muito mais
conectada a uma definição prática e vinculada mais propriamente à ação militar. É
entendida como ―o conjunto de medidas e ações do Estado, com ênfase na
expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses
nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas‖
(BRASIL, 2005).

Interessa-nos entender também como o Brasil se autoposiciona nesse tipo de


documento, quais são as responsabilidades que o Brasil assume e quais são os
custos que o país estaria disposto a arcar para desfrutar do status de potência
emergente não só na seara econômica. A Política de Defesa Nacional define o Brasil
como um país em contínuo desenvolvimento e coloca entre os seus objetivos ―a
projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos

735
decisórios internacionais‖ e destaca que ―não é prudente conceber um país sem
capacidade de defesa compatível com sua estatura e aspirações políticas‖ (BRASIL,
2005). Desta forma, está entre as orientações estratégicas da Política de Defesa
Nacional, a ampliação da projeção do Brasil no sistema internacional, pela via das
ações humanitárias e das missões de paz, como podemos ver no item 6.17 da
política ―Para ampliar a projeção do País no concerto mundial e reafirmar seu
compromisso com a defesa da paz e com a cooperação entre os povos, o Brasil
deverá intensificar sua participação em ações humanitárias e em missões de paz
sob a égide de organismos multilaterais‖, o que é reforçado no item 7 que trata das
diretrizes da Política de Defesa Nacional que prevê que o Brasil deve ―participar
crescentemente dos processos internacionais relevantes de tomada de decisão,
aprimorando e aumentando a capacidade de negociação do Brasil‖ (BRASIL, 2005).

Segundo Martins Filho a participação do Brasil na Missão das Nações Unidas para a
Estabilização do Haiti (MINUSTAH) tinha como propósito ―fortalecer a imagem
externa dos militares brasileiros, no quadro da orientação mais geral da política
externa brasileira‖ (2010, p. 302). Correa (2012) faz constatações no mesmo sentido
ao destacar que ―no governo Lula intensificou-se a busca de um papel de destaque
nas relações internacionais regionais, na qual a participação militar e civil na
reconstrução do Haiti se inclui‖ (p. 37).

Apesar da Estratégia Nacional de Defesa, aprovada pelo Decreto 6.703 de 18 e


dezembro de 2008 (END) não citar a Política de Defesa Nacional (2005) que seria o
principal documento em matéria de defesa no Brasil, ambos, segundo Eliezér Rizzo
de Oliveira (2009), apresentam projeções para o futuro, futuro em que, acredita-se, o
Brasil ocuparia lugar de relevância no cenário internacional. Na END o Brasil é
definido como um ―País em desenvolvimento‖ [...] que ―ascenderá ao primeiro plano
no mundo sem exercer hegemonia ou dominação‖ (BRASIL, 2008). No mesmo
documento, a importância da defesa é destacada quando se trata da assunção de
um papel de protagonista no mundo ―se o Brasil quiser ocupar o lugar que lhe cabe
no mundo, precisará estar preparado para defender-se não somente das agressões,
mas também das ameaças‖. A aliança entre defesa e desenvolvimento também é
tema, admitindo-se que a ―Estratégia nacional de defesa é inseparável de estratégia
nacional de desenvolvimento‖ e que um ―Projeto forte de defesa favorece projeto

736
forte de desenvolvimento‖. As Forças Armadas desejam ter capacidade para a
―projeção de poder nas áreas de interesse estratégico‖ (2008). Esses elementos da
Estratégia Nacional de Defesa demonstram claramente que a inserção do Brasil no
mundo é relevante para o tema da defesa.

Nesse mesmo sentido, uma das hipóteses de emprego das Forças Armadas trazida
pela END é a de ―participação do Brasil em operações de paz e humanitárias,
regidas por organismos internacionais‖, além de ações para a manutenção da
estabilidade regional e para a cooperação nas áreas de fronteira a serem
desenvolvidas pelo Ministério da Defesa em conjunto com o Ministério das Relações
Exteriores. Além disso, os dois ministérios somar-se-iam às Forças Armadas para
―contribuir ativamente para o fortalecimento, a expansão e a consolidação da
integração regional, com ênfase na pesquisa e desenvolvimento de projetos comuns
de produtos de defesa‖ (2008).

Esse perfil é destacado por Eliezér Rizzo de Oliveira quando cita trecho da
Exposição de Motivos Interministerial redigida por Nelson Jobim então Ministro da
Defesa e Mangabeira Unger, ora Secretário de Assuntos Estratégicos:

Os ministros Jobim e Mangabeira Unger obtiveram a aprovação do


presidente da República para um documento orientador da Defesa
Nacional. Eles afirmam o seguinte no documento ‗EM Interministerial nº
00437/md/sae-pr‘, que dirigiram ao Presidente: ‗tendo o Brasil crescido
economicamente e ampliado seu perfil internacional, deve agora adotar
‗uma nova postura no campo da Defesa‘, implicando a reforma do ministério
da Defesa e a reorganização das Forças Armadas‘ (2009).

Vê-se, portanto, que a política de defesa vem a ser mais um elemento a somar-se à
percepção do Brasil como potência emergente que se constrói desde o início do
século XXI, percepção esta que não é inédita, mas que aparece bastante forte nos
últimos anos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve o intuito de apresentar um levantamento inicial sobre a percepção


acerca do lugar do Brasil no sistema político internacional tendo como orientação a

737
perspectiva teórica da Escola Inglesa que, aliada ao neorrealismo e ao
construtivismo norteia a pesquisa para elementos que vão além da capacidade
material dos Estados. Dessa forma, a proposta foi avaliar como o Brasil tem sido
percebido principalmente por setores especializados da academia e da imprensa
internacional.

No curso da pesquisa foi possível compreender que o tratamento do Brasil como


potência emergente ou em ascensão é um fenômeno que pode ser detectado ainda
nos anos 1970, ligado ao crescimento do país na fase do chamado Milagre
Econômico. Neste período, ao mesmo tempo em que o Brasil se destacava na
economia, o cenário político era considerado pelos observadores internacionais
como de desrespeito aos direitos humanos e às instituições democráticas. No
entanto, desde o início desse século, já que tomamos o relatório do Goldman Sachs
publicado em 2001 que cunha o termo BRICs como marco inicial, diversas
referência ao Brasil como potência emergente ou em ascensão têm sido feitas, mas
estas sustentadas em bases mais amplas que a economia, além da estabilidade
econômica, o contexto democrático, a redução das desigualdades sociais e os
avanços na área energética são citados com frequência.

A percepção que o país tem de si mesmo vai ao encontro da percepção


internacional, tanto na política externa quanto na política de defesa. Analisando o
Decreto 5.484 de 2005 que trata da Política de Defesa Nacional e o Decreto 6.703
de 2008 que estabelece a Estratégia Nacional de Defesa é possível verificar que
ambos os documentos dão destaque para o processo de emergência do Brasil no
cenário internacional. Desta forma, avalia-se que, em certa medida, há uma
aproximação do discurso internacional com o interno no que tange à construção de
uma ideia do Brasil como potência emergente.

Isto posto, sobram mais perguntas que respostas. Existem recursos disponíveis para
sustentar um posicionamento do Brasil no rol das potências? Estamos diante de um
cenário duradouro ou apenas de mais um ciclo de percepção positiva sobre o lugar
do Brasil no sistema internacional? A disposição do Brasil em assumira tal papel
realmente conta ou estamos diante de uma construção sistêmica?

738
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743
BRASIL, CHINA E A INDÚSTRIA DO NIÓBIO SOB A ÓTICA DE SEGURANÇA
NACIONAL

Carlos José Crêspo Santos322

1 Considerações Iniciais

A busca por metais raros e o domínio de reservas dos mesmos é ponto de disputa
entre Estados, Impérios e governos há séculos. Dominar recursos estratégicos
significa deter matéria-prima para a indústria, seja ela para consumo próprio ou
abastecimento de mercado consumidor.

Dessa forma, controlar reservas dá ao seu detentor cada vez mais poder de
barganha em negociações com não detentores de fontes de matéria-prima, por
exemplo. Seja o materiais, desde minérios, petróleo, ou até mesmo água, a lista de
reservas estratégicas que fizeram, fazem ou farão diferença em algum espaço
temporal e que podem levar a uma constante reconfiguração de poder global, a
depender do que está em disputa e de quem controla mais reservas.

Assim começamos a focar no ponto de pauta principal deste artigo, o Brasil e as


suas reservas de Terras Raras. Com um constante aumento na demanda global de
metais raros, as Terras Raras despontam como uma das principais matérias primas
frente à evolução tecnológica da atualidade. De chips a turbinas, de processadores a
mísseis, enfim, todo aparelho de alta tecnologia hoje tem componentes
fundamentais feitos com algum composto das Terras Raras.

Como sempre deve ser dito ao falar de Terras Raras, é importante frisar que tais
minerais não são terras nem são raros, porém a sua extração requer um domínio
tecnológico que poucos países no mundo detém, além de todo um processo de
manufaturamento que requer altos investimentos.

Apesar de a exploração em larga escala das terras raras ter sido iniciada
após a Segunda Guerra Mundial, a sua descoberta se deu no século XVIII,

322
Graduado em Relações Internacionais e Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE).

744
mais precisamente em 1787, quando Karl Axel Arrhenius (1757-1824), um
tenente do exército sueco, fez a extração dos primeiros minerais originários
de uma mina de feldspato e quartzo localizada em Ytterby, Suécia (ROCIO
et al., 2012 apud MELO; CRESPO; DIAS, 2012).

Em síntese, atualmente as Terras Raras são um grupo de 17 elementos constantes na


tabela periódica e são singulares perante os demais devido as suas propriedades
323
únicas. Estatísticas oficiais da United States Geological Survey (USGS) apontam,
para o ano de 2011, uma concentração de quase metade das reservas mundiais de
Terras Raras na China, com 48,3%, chegando próximo aos 100% em alguns minerais.
Ela é seguida, em escala decrescente, pela CEI, EUA, Índia, Austrália, Brasil e demais
países, nenhum destes ultrapassando uma taxa de 20% das reservas.

É importante frisar que estamos falando de taxas de reserva e não de produção final da
indústria, com a qual a China ultrapassa todos os demais, de igual forma e em uma taxa
bem superior bem como os ganhos com isso. A título de ilustração, em edição da Folha
de São Paulo de 24 de abril de 2011, foi noticiado que apenas em 2008 a variação do
preço foi de 4000%, rendendo ao maior produtor mundial, a China, ganhos de mais de 3
bilhões de dólares com a venda de 120 mil toneladas de Terras Raras, claramente um
recurso nacional estratégico. Os chamados recursos naturais estratégicos são os que
correspondem àqueles recursos naturais escassos que de fato ou potencialmente são
vitais para o desenvolvimento da atividade econômica e/ou para a manutenção da
qualidade de vida de um país (GERALDO, 2012).

2 O Brasil e as Terras Raras, continente e Atlântico Sul.

Em nível de Brasil, reservas de Terras Raras podem ser encontradas com


considerável concentração, na parte continental, em estados como Bahia,
Amazonas, Goiás, Minas Gerais e São Paulo. No mar, há mapeamentos sendo
feitos na região conhecida como Alto Rio Grande, no Atlântico Sul. O PNM 2030
indica, especificamente quanto ao Nióbio, as reservas do Brasil estão localizadas
nos estados de Minas Gerais, Amazonas e Goiás.

323
Estatal estadunidense responsável por serviços de mineralogia, mapeamento geológico, análises de risco,
dentre outros.

745
Além desse, destacam-se os principais resquícios de Mata Atlântica
preservados nas áreas em que estão vigentes manifestos de mina, em
Minas Gerais, a mineração de bauxita em Poços de Caldas (MG), a
mineração de nióbio em Araxá (MG), a mina de bauxita de Saraca-Taquera
(PA), entre outros exemplos de convivência de mineração em áreas
especialmente reservadas (BRASIL, 2010)

Em se falando do Alto Rio Grande, de acordo com artigo pela Agência para o
Desenvolvimento Tecnológico da Indústria brasileira, o Brasil enviou uma missão até
a plataforma profunda do Atlântico Sul, a mais que o dobro de distância da costa do
que os campos do pré-sal e foi chefiada pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM).

No fundo do Atlântico, onde o Brasil desenvolve pesquisas, já foram


encontrados nódulos de minerais cobaltíferos e carbonático, além das
chamadas terras raras. ―Ali pode haver muito dos minerais que são a maior
sensação atual e no futuro, como o lítio, usado em produtos de alta
tecnologia.‖ Também pode haver muito calcário, mineral usado como
fertilizante que é importado pelo Brasil atualmente.―São reservas
estratégicas‖, completa Barreto (ADIMB, 2011)

Assim, observa-se que o Brasil também visa exploração no âmbito do Atlântico Sul,
em se falando de minerais que incluem Terras Raras no grupo, em um processo
chamado por Manoel Barreto de a próxima fronteira, no que se refere a tentativa de
aumentar os direitos de exploração e soberania para regiões do Atlântico Sul.

3 O PNM 2030

O Plano Nacional de Mineração 2013, de acordo com o Portal do Ministério das


Minas e Energia, é uma ferramenta estratégica para nortear as políticas de médio e
longo prazo que possam contribuir para que o setor mineral seja um alicerce para o
desenvolvimento sustentável do País nos próximos 20 anos.

Ainda de acordo com o site, entre os principais objetivos do Plano destacam-se a


consolidação do Marco Regulatório da Mineração e a ampliação do conhecimento
geológico. Os objetivos estratégicos e as ações previstas no PNM-2030 são
propostas para a implementação das políticas do MME e serão devidamente

746
monitorados, ou seja, definir os nortes que serão tomados pelo Estado no que tange
os minerais nacionais.

O entendimento de mineral estratégico neste PNM-2030 compreende três


situações: i) minerais que o País importa em grande escala, como potássio,
fosfato e carvão mineral metalúrgico; ii) minerais cuja demanda é crescente
e que deverá se expandir ainda mais nas próximas décadas por causa do
uso em produtos de alta tecnologia, a exemplo das terras-raras, lítio,
tântalo, térbio e cobalto e iii) minerais que o Brasil apresenta vantagens
comparativas naturais e conquistou liderança internacional, tais como o
minério de ferro e nióbio. (BRASIL, 2010)

De acordo com dados do mesmo Ministério, a extração e industrialização de


minerais no Brasil hoje correspondem a uma fração de 4% de todo o PIB nacional e
25% de todas as exportações brasileiras, com estatísticas de 2010. Informações do
próprio Ministério declaram que até 2030, dentro das diretrizes do PNM, estão
previstos investimentos na faixa dos R$ 260 bilhões de reais no setor de minerais
brasileiro.
1. Realização de levantamento geológico, pela CPRM, de áreas potenciais
para minerais estratégicos carentes e portadores do futuro. 2. Apoio à
pesquisa mineral e ao fomento para abertura de novas minas em áreas
com presença de potássio, fosfato e minerais portadores de futuro. 3.
Promoção de estudos das cadeias produtivas desses minerais visando à
agregação de valor com competitividade nos seus diversos elos. 4.
Criação de Grupos de Trabalho para acompanhamento de bens minerais
estratégicos, com enfoque para as oportunidades e ameaças do mercado
internacional. 5. Articulação interministerial visando: i) estabelecimento de
políticas de incentivo às inovações tecnológicas em fertilizantes de maior
eficiência agronômica e mais adequados ao solo brasileiro, que elevem a
competitividade da fabricação nacional de fertilizantes; ii) promoção do uso
de calcário agrícola e outros agrominerais para correção de acidez do
solo; iii) aplicação da rochagem como fonte alternativa de nutrientes,
especialmente na agricultura familiar e iv) promoção da utilização do
fosfogesso. 6. Articulação interministerial com o setor produtivo para
elaboração de programas de longo prazo voltados aos minerais portadores
de futuro, objetivando a interação entre ICTs e empresas para a
identificação de nichos competitivos de atuação (BRASIL, 2010, p. 126).

Além disso, a transferência de tecnologia é, também, umas das intenções do PNM


2030, o qual, por intermédio de cooperação com empresas estrangeiras, em
especial as canadenses, pretendem desenvolver a qualidade do que é extraído e
manufaturado em território brasileiro.

747
Desenvolvendo-se uma análise documental do PNM 2030, pode-se observar que os
metais raros, em especial o Nióbio, visto que depois do Brasil, o Canadá é o maior
detentor de reservas consideráveis de Nióbio.

O total da produção no Brasil é utilizado integralmente pela Companhia


Brasileira de Metalurgia e Mineração - CBMM (MG), Mineração Catalão de
Goiás (GO) (Anglo American) e, em menor escala, a Mineração Taboca
(AM), que operam de forma integrada, utilizando o concentrado para a
produção da liga ferro-nióbio, outras ligas e o óxido de nióbio. Não há
comercialização do minério bruto ou concentrado (pirocloro) no mercado
interno ou externo. O Brasil é responsável por 98% da produção mundial.
As reservas de nióbio no Brasil estão localizadas nos estados de Minas
Gerais, Amazonas e Goiás. (BRASIL, 2010, p. 40)

4 O Nióbio

O nióbio é subfaturado no Brasil, vendido a preço inferior ao que realmente custo,


nosso maior importador é a China, a qual manufatura o produto em seu território. O
Nióbio tem aplicabilidade em um vasto ramo da tecnologia de ponta. De insumos
aeroespaciais, aeronáuticos, bélicos e nucleares, toda tecnologia de ponta hoje
contém Nióbio em sua composição.

Cerca de 98% das reservas da Terra estão no Brasil. Delas, pois, depende
o consumo mundial do nióbio. A produção, cresceu de 25,8 mil tons. em
1997 para 44,5 mil tons., em 2006. Chegou a quase 82 mil tons. em 2007,
caindo para 60,7 mil tons., em 2008, com a depressão econômica (dados do
Departamento Nacional de Produção Mineral). Estima-se atualmente 70 mil
toneladas/ano. Mas a estatística oficial das exportações brasileiras aponta
apenas 515 toneladas do minério bruto, incluindo "nióbio, tântalo ou vanádio
e seus concentrados"! (BENAYON, 2011)

O Brasil, apesar de ser detentor de 90% das reservas mundiais, só produz Nióbio
subfaturado, ou seja, mesmo detendo quase todas as reservas de um produto
fundamental para a indústria moderna, não valoriza a importância devida a tal.

Townes (2011) nos aponta que as Estatísticas do CPRM e o Departamento Nacional


de Produção Mineral (DNPM) datam que o Brasil seria o dono de um superdepósito

748
de nióbio, com 2,9 bilhões de toneladas de minérios, o que, por si só, corresponderia
a nada menos do que 14 vezes as atuais reservas existentes no planeta Terra,
incluindo aquelas já conhecidas no subsolo do país.

O nióbio é um metal bastante raro no mundo, mas abundante no Brasil, e de


extrema importância para muitas indústrias. Sua utilização varia, mas
a aplicação mais importante do nióbio é como elemento de liga para
melhorar propriedades em produtos de aço, especialmente nos aços de alta
resistência e baixa liga, além de superligas que operam a altas
temperaturas em turbinas das aeronaves a jato. Existem somente três
minas de nióbio em todo o mundo (JORNAL DO BRASIL, 20 de Janeiro de
2012)

Também é de vital importância para satélites, foguetes e fuselagem de aviões


apesar de sua extração e processo de manufaturamento ser altamente poluente,
configura uma riqueza negligenciada pelo Brasil. De acordo com Benayon (2011,p.1)
foi o Nióbio brasileiro que contribuiu muito para a China ser o que é. Só a mina de
Araxá detém 75% de toda reserva de Nióbio do mundo.

Em relação ao nióbio, a posição do Brasil no contexto internacional é


marcante, com o País respondendo pela quase totalidade da produção
mundial. A taxa média anual de crescimento da produção, entre 2000 e
2008, foi de 6% (Figura 1.25). O total da produção no Brasil é utilizado
integralmente pela Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração -
CBMM (MG), Mineração Catalão de Goiás (GO) (Anglo American) e, em
menor escala, a Mineração Taboca (AM), que operam de forma integrada,
utilizando o concentrado para a produção da liga ferro-nióbio, outras ligas e
o óxido de nióbio (BRASIL, 2010, p. 40).

O fato é que mesmo com todo esse controle de reservas, não é o Brasil que
determina o preço final do produto. Por incrível que pareça, o preço global é cotado
pela Bolsa de Metais de Londres, ainda que o Brasil pudesse usar esse poder para
fazer do Nióbio um objeto de barganha para transferência de tecnologia por parte
dos principais consumidores globais.

749
Em 2010, a receita com vendas externas de nióbio foi de US$ 1,5 bilhão.
Foi o terceiro item da pauta de exportações minerais, atrás de minério de
ferro e ouro. As duas empresas que atuam no setor no Brasil são a
Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração, do grupo Moreira Sales e
dona da mina de Araxá (MG), e a Anglo American, proprietária da mina de
Catalão (GO.) (TOWNES, 2011, p. 1).

De acordo com relatório da USGS, O Brasil tem reservas consideráveis de 48 dos 71


principais minérios do mundo, sendo o Nióbio quase 100% somente em território
brasileiro, mais precisamente em Goiás e Minas Gerais.

Ainda assim, considerando-se válidas as estimativas da CPRM, o Brasil


seria o dono de um superdepósito de nióbio, com 2,9 bilhões de toneladas
de minérios, a 2,81% de óxido de nióbio, o que representaria 81,4 milhões
de toneladas de óxido de nióbio contido, nada menos do que 14 vezes as
atuais reservas existentes no planeta Terra, incluindo aquelas já conhecidas
no subsolo do país (TOWNES, 2011, p. 1).

Uma questão curiosa a se destaca é que a cotação do preço do Nióbio é definida


pela London Metal Exchange – LME sem qualquer consulta ao Brasil, fato que é alvo
de críticas por diversas autoridades, inclusive militares, a exemplo de declaração do
contra-almirante reformado Roberto Gama e Silva, o qual sugeriu a criação da
Organização dos Produtores e Exportadores de Nióbio (OPEN).

5 A China e o mercado de Nióbio em território brasileiro como fator se


segurança nacional

Freitas (2011) diz que siderúrgicas chinesas que se uniram para adquirir a fatia na
CBMM são: Baosteel Group Corporation (a maior do país), Citic Group, Anshan Iron
& Steel Group Corporation, Shougang Corporation e Taiyuan Iron & Steel Group. A
China é a maior importadora de nióbio do mundo. A questão e hipótese abordada por
este artigo se sustenta no fato de ações do governo chinês terem apontado para um
direcionamento de suas políticas minerais na exploração no Nióbio brasileiro em se
falando do desenvolvimento de estratégias de compra e controle de áreas e empresas

750
da área. De acordo com Benayon (2011) o nióbio é tão indispensável quanto o petróleo
para as economias avançadas e provavelmente ainda mais do que ele.

Em setembro de 2011, um consórcio chinês formado pelo Taiyuan Iron and


Steel Group, o conglomerado financeiro do Citic Group e o BaosteelGroup
adquiriu, por US$ 1,95 bilhão, 15% da Companhia Brasileira de Metalurgia e
Mineração (CBMM), maior produtor mundial de nióbio, um metal abundante
no Brasil e utilizado em indústrias de automação, nuclear e defesa. A CBMM
fica localizada em Araxá, em Minas Gerais (JORNAL DO BRASIL,2012)

Além disso, do lado da oferta, é como se o Brasil pesasse mais do que todos os
países da OPEP juntos, pois alguns importantes produtores não fazem parte dela. O
diretor de assuntos minerários do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), Marcelo
Ribeiro Tunes, citado por Danielle Nogueira, disse que ―boa parte do potencial de
expansão de nossas exportações de nióbio está na China, nos diz Townes (2011).

Isso embasa a afirmação de que há o desenvolvimento de política chinesa junto ao


Nióbio brasileiro, o que pode lastrear a transformação dessa pauta em questão de
segurança nacional. Isso se considerarmos que passada a Guerra Fria, novas
preocupações dominaram a esfera econômica estratégica mundial e novos
fenômenos de segurança surgem em meio do processo de multipolarização, dentre
estes a concorrência em se falando de controle de reservas de metais estratégicos
para as economias nacionais.

Competição e o conflito por recursos naturais e, de forma geral, por fontes de


materiais valiosos e/ou essenciais, consistem num fenômeno recorrente na trajetória
da humanidade, desde os tempos pré-históricos até a atualidade (GERALDO, 2012).

6 Conclusão

Apesar de ser um projeto em processo de desenvolvimento inicial, mediante a breve


análise do apresentado, em especial as estatísticas existentes ao Nióbio no Brasil e
o orçamento previsto para Mineração no PNM 2030. Constata-se também uma

751
grande presença internacional em se falando do controle ou participação das
principais empresas mineradoras de Terras Raras, em especial do Nióbio, no Brasil.

A questão é que as Terras Raras podem ser usadas como mecanismo de barganha
junto aos Estados interessados em nossos minérios no sentido do interesse em
efetivar uma transferência de tecnologias e conhecimentos entre as partes.

Da mesma forma, as pesquisas no âmbito do Atlântico Sul podem servir como


espaço de expansão da soberania brasileira, o que garantiria que outros países ou
consórcios não venham a efetuar as mesmas estratégias em região tão próxima ao
litoral brasileiro além de suscitar questões sobre a exclusividade de uso dessas
regiões para pesquisa e atividade econômica.

Especificamente sobre o Nióbio, a China, maior produtora mundial de Terras Raras


manufaturadas, já está atenta a esse processo, tanto em nível marítimo, como no
terrestre, a partir do momento em que empresários chineses, juntamente com
japoneses e sul-coreanos adquirem participação em empresas mineradoras brasileiras
e o subfaturamento da exploração do Nióbio brasileiro por meio de um consórcio.

Todas essas observações iniciais da pesquisa nos leva a constatar uma real
necessidade de expansão e implementação dos investimentos previstos na área de
mineração no Brasil, considerando nesse caso os metais estratégicos visto que sua
aplicação envolve toda uma cadeia industrial de produção que vai de aço a mísseis,
ou seja, englobando um leque de utilidades que desperta o interesse de países por
todo globo, ainda mais quando se destaca a concentração quase que na totalidade
do Nióbio no Brasil.

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752
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http://www.inest.uff.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
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estrategico-e-raro-no-mundo&catid=99:prodestrategico&Itemid= 78.
Acesso em: 09 mar. 2013.

753
LEI DO ABATE COMO MEIO DISSUASÓRIO DO SIVAM E AS POSSIBILIDADES
DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA

Flávia Carolina de Resende Fagundes324

1 INTRODUÇÃO

O fim da Guerra Fria trouxe grandes mudanças para a estrutura da segurança


internacional, na ausência da confrontação bipolar, novas fontes de insegurança
passaram a ganhar relevância na agenda de segurança dos Estados. Essas novas
ameaças tinham como principal característica seu caráter não-militar, dentre essas,
podemos destacar o narcotráfico e o terrorismo.

Nesse sentido, o tráfico internacional de drogas ganhou destaque na agenda de


segurança dos Estados Unidos, embora tal processo de securitização325 já tivesse
se iniciado nos anos de 1970, na administração Nixon (1969-1974), traduzindo-se na
chamada Guerra às Drogas.

Contudo, ao longo da década de 1980 e exacerbando-se nos anos de 1990,


aumentou a pressão aos países produtores: Bolívia, Colômbia e Peru. Dessa forma,
o surgimento de uma doutrina mais repressiva a respeito das drogas ilegais nos
Estados Unidos foi o elemento central da incorporação do narcotráfico à agenda de
segurança sul-americana. A partir da política norte-americana, os países da região
passaram a securitizar o tráfico de drogas e criaram programas nacionais de
erradicação, interdição, apreensão e redução de demanda (CEPIK; ARTURI, 2011).

Não obstante, tais pressões levaram a uma maior preocupação com a fronteira norte
por parte do governo brasileiro, como argumenta Pagliari (2009), a despeito de o
Brasil ter procurado manter-se afastado da Guerra às Drogas na região andina não

324
Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos – UFRGS
325
Securitização neste trabalho se refere à teoria desenvolvida por Barry Buzan, OleWaever e Jaap de Wilde no
livro, Security: a new framework for analysis, em tal livro os autores descrevem securitização como o uso da
retórica da ameaça existencial com o objetivo de levar um assunto para fora das condições da política normal,
justificando assim a adoção de medidas de emergência, de procedimentos políticos extraordinários e
eventualmente o uso da força (BUZAN; WAEVER; WILDE, 1998, p. 24-25).

754
tem desconsiderado a implementação de ações de cunho militar, como aumento das
forças armadas na região amazônica, especialmente o exército, também promove
outras ações muitas vezes conjuntas com outros órgãos estatais, como o Programa
Calha Norte, o Sistema de Proteção e de Vigilância da Amazônia (SIPAM/SIVAM),
bem como a Lei do Abate.

Nesse sentido, o projeto do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) surge em


uma tentativa do governo brasileiro de responder a essas pressões, além do fato de
que tal projeto foi concebido em um período de maior instabilidade no entorno
andino, ao longo dos anos de 1990, desdobramentos da crise político-institucional
colombiana, coincidem com o avanço das crises nacionais dos países andinos em
geral e delas se alimentam, na medida em que diminuem a capacidade de resposta
dos Estados da região às diversas ameaças que enfrentam.

Contudo, apesar do SIVAM ser dotado de um braço armado, os aviões ALX, este
sistema não dispunha de uma ferramenta jurídica para a sua efetivação, lacuna esta
que veio a ser preenchida com a Lei do Abate.

Assim, este estudo tem como objetivo analisar como a Lei do Abate levou a um
incremento na efetividade do SIVAM, dotando este de meios coercitivos na vigilância
da Amazônia, convertendo-se em um elemento dissuasório para as atividades
ilícitas na Amazônia, bem como buscar entender, se concebido dessa forma, quais
seriam as possibilidades de articulação entre as políticas brasileiras para a
Amazônia e dos países amazônicos que possuem políticas similares de detecção e
interdição de aeronaves: Peru e Colômbia. Dessa forma, pretende-se desenvolver
uma análise comparada dos dispositivos de detecção e interdição desses países
com o sistema brasileiro, buscando avaliar os mecanismos já existentes de
cooperação e as demais possibilidades de interação entre estes.

Para tal, serão utilizadas fontes primárias como documentos e declarações oficiais
dos países analisados acerca de suas políticas de defesa e políticas para Amazônia,
bem como fontes secundárias, artigos, livros, teses de doutorado e dissertações de
mestrado versando sobre as políticas de defesa para a Amazônia e a segurança
regional, assim como literatura sobre aspectos conceituais e estruturais da
segurança internacional.

755
Este artigo se estrutura da seguinte forma, para seguir uma coerência cronológica,
primeiramente serão analisados os sistemas de detecção e interdição de aeronaves,
peruano e colombiano, em seguida se discutirá o SIVAM e a Lei do Abate, e com
base neste na análise destes sistemas serão avaliadas as ações já existentes e as
demais possibilidades de cooperação, e por fim serão auferidas algumas
considerações finais.

2 AIR BRIDGE DENIAL PROGRAM: PERU E COLÔMBIA

Ao longo das décadas de 1980 e 1990, com a crescente securitização do narcotráfico


na agenda de segurança norte-americana, a interferência deste nos países andinos se
tornou maior visando o combate à oferta de cocaína. Desta forma, iniciou-se na região
andina um amplo programa de combate às drogas, baseado em quatro pilares:
interdição, erradicação, desenvolvimento alternativo e redução da demanda.

Um dos principais programas de combate às drogas na região era o Air Bridge


Denail Program(ABDP), cujo significado é a negação da ponte aérea, consiste em
um programa antinarcóticos operado pela Agência Central de Inteligência norte-
americana, mais conhecida pela sigla CIA, no Peru e Colômbia, o nome do
programa se origina do fato do tráfico de drogas na América do Sul se dar
basicamente por meio de aviões a partir ou com destino a Colômbia, o que se refere
como ―air bridge‖ (ponte aérea), assim a principal função do programa era impedir o
trânsito de aeronaves carregadas de ilícitos.

Tal programa teve início em 1995, o objetivo do ABDP era interceptar aeronaves
suspeitas de envolvimento no tráfico de drogas, obrigando-lhes o pouso e se
necessário o uso de força letal. Durante os primeiros anos de operação o programa
era considerado pelas autoridades estadunidenses um grande sucesso na Guerra às
Drogas. Entretanto, o programa foi suspenso em 2001, após um incidente
envolvendo cidadãos norte-americanos.

É importante, também, ressaltar que a criação do ABDP tem um forte caráter


político, haja vista que este vincula-se diretamente ao reconhecimento das Forças

756
Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e do Sendero Luminoso como
ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos (FEITOSA; PINHEIRO, 2011).

Os critérios estabelecidos pelo programa ABDP para interdição aérea se baseavam


em regras internacionais normatizadas pela Organização Internacional de Aviação
Civil que requerem que enquanto voando à frente ou acima da aeronave alvo, o
avião interceptador deve balançar suas asas para baixo e para cima, piscar as luzes
de navegação e desligar em intervalos irregulares, em seguida voar para a
esquerda. Este sinal é reconhecido internacionalmente como ―siga-me‖. A aeronave
de interdição, também, pode abaixar o trem de pouso ou ligar as luzes de pouso, o
que indica que esta direcionando a aeronave alvo ao pouso. Entretanto, se o avião
suspeito não responder aos sinais visuais, o interceptador deve, então, disparar tiros
de advertência, e por fim, após o esgotamento destas opções seria efetuado o
disparo para a derrubada deste (CIA REPORT, 2008).

No Peru o ABDP operava no leste dos Andes em uma área designada pelo governo
peruano como uma zona especial de identificação para a defesa aérea.

Contudo, há que se observar que a Força Aérea Peruana (FAP) não dispunha dos
meios necessários para a execução do sistema de interdição. Os caças peruanos
não contavam com radares ou tecnologia infravermelho, dessa forma, só era
possível o posicionamento de alvos a partir da visualização destes. Ademais, a FAP
não possuía os equipamentos necessários para realizar a comunicação com os
comandos e bases apropriadas. Os elementos-chave da contribuição norte-
americana para o programa eram assistência de aviões de sensoriamento
equipados com radares apropriados e provisão de equipamentos que permitiam a
comunicação efetiva entre os aviões norte-americanos e os peruanos e seus
respectivos comandos. Além de recursos significativos para estabelecer e manter a
infraestrutura e operações da Força Aérea Peruana (CIA REPORT, 2008).

Dentro deste programa o Comando do Sul norte-americano operava radares


terrestres no Peru em auxílio à Força Aérea Peruana no monitoramento do espaço
aéreo e identificação de possíveis aeronaves suspeitas de atividades ilícitas, e vôos
de vigilância (U.S. SENATE, 2001).

757
De acordo com o relatório da CIA de 1997, o programa tinha alcançado grandes
avanços no combate às drogas, com uma ampla redução do cultivo de coca no
Peru e elemento central do rompimento da exportação de narcóticos (CIA
REPORT, 2008).

Contudo, apesar dos resultados positivos, o programa apresentava diversas falhas


em seus procedimentos. Segundo relatórios da CIA (2008), todos os 15 abates que
ocorreram durante vigência do programa nos quais agentes do órgão participaram
registraram irregularidades no cumprimento dos procedimentos estipulados para o
abatimento de aeronaves.

A rotina de desrespeito aos procedimentos necessários na realização de


intercepções aéreas no ABDP levava à destruição rápida de aeronaves alvo sem as
salvaguardas adequadas para proteção contra a perda de vidas inocentes. Em
muitos casos, o desempenho dos requeridos procedimentos podia levar a perda do
alvo. Além disso, a realização de todo o procedimento necessário era difícil e os
pilotos peruanos colocados na defesa do espaço aéreo primeiro derrubavam o
avião, o que muitas vezes era mais fácil do que forçá-lo a pousar. O resultado, em
muitos casos, era que as aeronaves suspeitas eram abatidas em poucos minutos,
após serem avistadas pelos caças da Força Aérea Peruana, sem serem
devidamente identificadas, sem ser dados os necessários avisos, e sem ser dado
tempo para responder ao aviso (CIA REPORT, 2008).

Um dos principais problemas no ABDP peruano eram as falhas de comunicação,


pois, militares peruanos não dominavam o inglês e militares e agentes norte-
americanos envolvidos nas operações em sua maior parte não eram bilíngues.

Esta série de irregularidades nas operações do ABDP peruano levou a tragédia que
levou ao seu fim, após seis anos de atividade. No dia 20 de abril de 2001, a Força
Aérea Peruana abateu uma aeronave tripulada por um grupo de missionários norte-
americanos, duas pessoas morreram Veronica Bowers e sua filha Charity e o piloto
Kevin Donaldson ficou ferido. O marido e o filho de Veronica não se feriram e
sobreviveram ao acidente. Após essa tragédia o programa foi finalizado (CIA
REPORT, 2008). Ademais, foi realizada uma ampla investigação sobre as causas do

758
incidente e apuração de todas as interdições ocorridas no decorrer do programa pelo
governo norte-americano.

O Programa foi suspenso não só no Peru, como também na Colômbia, voltando a


operar somente em 2003, apenas na Colômbia. Tendo em vista a trajetória do
programa no Peru, o arcabouço do programa foi revisto, com especial atenção para
a garantia das salvaguardas.

O programa colombiano Air Bridge Denialteve a retomada de suas operações em


agosto de 2003, na esteira do Acordo Bilateral EUA-Colômbia sobre o melhoramento
das salvaguardas. Enquanto, os programas anteriores de interdição de aeronaves
contavam com tripulações norte-americanas voando com radares de vôo operados
pela nação anfitriã em seus países, o novo programa ABD colombiano contava com
tripulação da Força Aérea Colombiana com um monitor de segurança bilíngüe do
governo estadunidense abordo do avião SR560 Citation alugado pelo governo norte-
americano. Esses aviões eram equipados com radares ar-ar e câmeras
infravermelho de longo alcance (PARRILLA, 2010).

Outra característica importante do ABDP colombiano é que todos os tripulantes de


um avião de operação eram obrigatoriamente bilíngües, para evitar problemas de
comunicação como os que contribuíram para a morte dos missionários norte-
americanos no Peru.

Assim como no Peru, o território colombiano no ABDP era dividido em Zonas


Especiais de Controle Aéreo, as quais estão desenhadas para o emprego da Força
Aérea contra aeronaves hostis.

Após cinco anos de atividades do programa na Colômbia e números positivos no


combate às drogas, houve a redução de 90% dos vôos ilegais no espaço aéreo
colombiano. O programa foi escolhido para ser o primeiro programa de auxílio norte-
americano a ser nacionalizado. Os aviões e os recursos do programa foram
transferidos para o governo colombiano. Ademais, foi desenvolvido um amplo
programa de treinamento para a manutenção das operações (PARRILLA, 2010).

Contudo, os sucessos do programa de interdição colombiano são questionáveis,


pois à medida que governo da Colômbia melhorou sua capacidade de empregar

759
forças terrestres por ar e terra no sudeste colombiano, operações aéreas ilegais a
partir da Cabeça do Cachorro diminuíram significativamente. Por outro lado,
operações aéreas ilegais no norte da Colômbia cresceram, com muitos aviões
cruzando a fronteira e pousando em pistas ilegais nos departamentos de Cesar e
Norte de Santander no nordeste da Colômbia.

3 O SISTEMA DE VIGILÂNCIA DA AMAZÔNIA E A LEI DO ABATE

O Sistema de Proteção e Vigilância da Amazônia (SIPAM/SIVAM) teve como sua


origem a Exposição de Motivos nº 194 do Ministério da Aeronáutica, da Secretária
de Assuntos Estratégicos (SAE) e do Ministério da Justiça, ao então presidente
Fernando Collor de Mello (1990-1992) no ano de 1990, sobre a necessidade de
haver um sistema eficiente de produção e processamento de informações
qualificadas sobre e para a região amazônica.

Tal projeto teve seu início de execução no governo Itamar Franco (1992-1994),
cercado de grandes controvérsias, a comunidade cientifica brasileira se opôs a
concepção do projeto, argumentando que a importação da tecnologia privaria o país
de uma oportunidade significativa para o desenvolvimento de tecnologia autóctone e
anos de investimento em pesquisa e desenvolvimento na Amazônia. Além de
escândalos que cercaram o processo de licitação e contratação da Raytheon para o
fornecimento da tecnologia do sistema.

A implantação do SIVAM foi concluída em julho de 2005, mas o sistema começou a


operar em 2002, parcialmente inaugurado.

Em relação às características do SIVAM, este é um projeto multidisciplinar que


possui uma estrutura comum e integrada de meios técnicos destinados à aquisição,
visualização, processamento, armazenamento e difusão de dados e imagens, sob a
forma de produtos personalizados, para utilização pelos órgãos da região. Essa
estrutura abrange o sensoriamento remoto por satélite, o sensoriamento aéreo, a
vigilância e controle do tráfego aéreo e de superfície, auxílio à navegação aérea,
monitoramento ambiental e meteorológico, a exploração e o monitoramento de
comunicações, redes de telecomunicações, tratamento e visualização de dados e

760
energia elétrica. Assim configura-se como uma grande base de dados, na qual é
possível o compartilhamento de dados e conhecimento entre todos os órgãos
envolvidos no Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM) (LOURENÇÃO, 2004).

No que tange às suas características operacionais, o SIVAM para atuar na


Amazônia Legal326 conta com dezenove antenas de radares de varredura, sendo
que cada antena teria alcance de trezentos quilômetros e contaria também com oito
aviões EMB- 145 com sensores e radares móveis; duzentos sistemas
radiolocalizadores; trezentas plataformas de coleta de dados e em permanente
contato com três centros regionais, com comando geral centralizado em Brasília.
Além de quatro aviões laboratório HS-800 e três esquadrões de aviões ALX,
também chamado de Super Tucano, constituindo o braço armado do SIVAM
(LOURENÇÃO, 2004).

Apesar de o sistema ser dotado de um braço armado, os aviões ALX (Super


Tucano), desenvolvido pela EMBRAER para o teatro de operações amazônico, tal
dispositivo não dispunha de um mecanismo jurídico para sua efetivação, levando
assim, a certa ineficácia do SIVAM, pois violações ao espaço aéreo brasileiro eram
detectadas, mas as autoridades brasileiras não podiam interceptá-las.

É importante esclarecermos que existem duas vertentes do SIPAM/SIVAM, uma


conhecida como a ―parte verde‖ (a civil) e a ―parte azul‖ (a militar). A parte verde é
subordinada a Casa Civil da Presidência da República e tem aplicações focadas em
informações meteorológicas, comunicações, com pequenas unidades do IBAMA,
FUNAI e apoio a Polícia Federal. A vertente militar do sistema é subordinada ao
Ministério da Defesa, e atua nas atividades relacionadas à vigilância das fronteiras,
ao controle e defesa do espaço aéreo e fluvial da região e apoio as unidades
militares, tendo como um de seus órgãos mais importantes o Centro de Vigilância
Aérea (CVA) 327, sediado em Manaus, operado pelo Comando da Aeronáutica, órgão
que opera o recebimento, tratamento e visualização de informações necessárias ao
controle dos movimentos aéreos, meteorologia aeronáutica e busca e salvamento
(SANTOS, 2007).
326
A Amazônia Legal corresponde à totalidade dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia,
Roraima e Tocantins e parte dos estados do Mato Grosso e Maranhão.
327
O Centro de Vigilância Aéreo é o próprio CINDACTAIV. No CINDACTAIV, as instalações voltadas para o
tráfego aéreo e as referentes à defesa aérea estão nas mesmas instalações do CVA, mas em salas diferentes.

761
Desde sua implantação, o SIVAM já rastreou uma série de pequenas aeronaves que
transportam ilícitos, em especial drogas provenientes da Bolívia, da Colômbia e do
Peru. Esse tipo de ilícito entra no Brasil e posteriormente é enviado para Estados
Unidos e Europa, seu destino final, somente uma pequena parte deste total
permanece em território nacional para consumo interno (SANTANA, 2010).

Tendo em vista a concepção do SIVAM e as funções que tal sistema


desempenharia, pode-se aferir que a Lei do Abate tem uma relação direta com o
SIVAM. Com a modernização do sistema de defesa aérea e controle de tráfego
aéreo, comprovou-se que os ilícitos entram em território brasileiro principalmente por
via aérea. Comprovou-se também que esses ilícitos são transportados em pequenas
aeronaves provenientes de nossos vizinhos amazônicos (MARQUES, 2007).

O Projeto da Lei do Abate respalda-se em normas internacionais e ―na legitimidade


do direito de exercer a soberania no espaço aéreo sobrejacente aos territórios dos
Estados, bem como das respectivas áreas marítimas‖. Na ordem interna, a
legislação forneceria o embasamento para impedir o uso de ―aeronaves e outros
engenhos aéreos para a prática de atos hostis ou atentatórios contra a segurança da
Nação Brasileira‖ (FEITOSA; PINHEIRO, 2012).

Devido à natureza de tal lei, a tramitação desta, gerou ampla polêmica, focadas,
principalmente em torno de três dinâmicas: a primeira atribuía a concepção da Lei do
Abate aos EUA e criticava amplamente o modelo de Guerra às Drogas com todas as
suas consequências; a segunda atacava os vícios jurídicos da autorização para
derrubar aeronaves civis e, finalmente, a terceira ressaltava a importância da lei para a
defesa da soberania nacional e para o combate ao narcotráfico (FEITOSA; PINHEIRO,
2012). Dessa forma, a Lei nª 9.614, de 05 de março de 1998, entrou em vigor, somente,
em 14 de outubro de 2004, através do Decreto nº. 05. 144, de julho de 2004.

Outro entrave à regulamentação da Lei do Abate foi à objeção norte-americana. O


governo estadunidense adotou uma postura mais cautelosa em relação ao abate de
aviões civis, desde o evento do ataque ao avião de missionários norte-americanos
no Peru. Havia o temor por parte do Departamento de Justiça sobre a ilegalidade do
abate de aeronaves civis e sobre a contradição com as posições históricas dos
Estados Unidos sobre o tema. Ademais, as restrições impostas após o caso peruano

762
subordinavam o reinício do Air Bridge Denial Program na Colômbia à negociação de
procedimentos de segurança cuja execução dependia da participação direta de
militares estadunidenses (FEITOSA; PINHEIRO, 2012).

Nesse sentido, o argumento norte-americano em relação à interdição de aeronaves


no Brasil se pautava no fato dos equipamentos do SIVAM terem origem em
empresas daquele país, o que poderia ser enquadrado na Lei Antissabotagem de
Aeronaves328 desse país. Para a cooperação estadunidense ser autorizada em
programas de interdição aérea havia a necessidade de elaboração de uma
determinação presidencial atestando a existência de procedimentos capazes de
impedir a perda vidas inocentes (FEITOSA; PINHEIRO, 2012).

Dessa forma, após intensa negociação entre o governo brasileiro e estadunidense


foi elaborada uma autorização presidencial em que se reconhece o tráfico
internacional de drogas como uma ameaça a segurança nacional do Brasil e a
existência de procedimentos seguros para a prevenção da perda de vidas inocentes.

Assim, o Decreto nº 5.144 delega ao Comandante da Aeronáutica a


responsabilidade de autorizar o tiro de destruição. Tal medida só ocorrerá quando
forem cumpridos todos os seguintes procedimentos: todos os meios envolvidos
devem estar sob o controle operacional do Comando de Defesa Aeroespacial
Brasileiro (COMDABRA); as medidas coercitivas329 devem ser registradas em
gravação sonora e/ou visual das comunicações; o tiro de destruição será executado
apenas por pilotos e controladores de defesa aérea qualificados segundo os padrões
estabelecidos pelo COMDABRA; o procedimento ocorrerá sobre áreas não
densamente povoadas e relacionadas com rotas presumivelmente utilizadas para o
tráfico de drogas (FORÇA AÉREA BRASILEIRA, 2007, apud. MARQUES, 2007).

328
Em 1984, lançou-se a diretiva presidencial para segurança nacional nº 138 (NSDD138) contemplando um
pacote de leis destinado a combater os ataques às aeronaves civis, evitar e reprimir o sequestro e uso de reféns,
recompensar informações sobre terroristas e proibir treinamento e suporte às organizações terroristas. Nesse
ambiente, nasceu o Aircraft Sabotage Act, lei diretamente aplicável às situações de derrubada de aeronaves civis
(FEITOSA; PINHEIRO, 2012; 70).
329
As medidas coercitivas estipuladas pela Lei do Abate são: reconhecimento à distância; confirmação da
matrícula; interrogação na freqüência prevista para a área; interrogação na freqüência internacional de
emergência; realização de sinais visuais; mudança de rota; pouso obrigatório; tiro de advertência, com munição
traçante, lateralmente à aeronave suspeita, de forma visível e sem atingi-la. Caso a aeronave não responda a
nenhum dos procedimentos coercitivos citados, ela será considerada hostil e está sujeita à medida de destruição
(FORÇA AÉREA BRASILEIRA, 2007, apud. MARQUES, 2007).

763
Somente Brasil e Colômbia contam com programas de interdição aérea certificado
pelos Estados Unidos.

De acordo com Feitosa e Pinheiro (2012), a discussão pública sobre a aplicação da


Lei do Abate no Brasil e as manifestações após sua regulamentação reforçam a
vinculação da sua existência com os projetos estratégicos de defesa da soberania
nacional na Região Amazônica. Apesar da justificativa do combate ao narcotráfico
contar em todos os momentos, sobressai à preocupação com a defesa das
fronteiras, com a ação de grupos armados na Amazônia e a leitura do narcotráfico
como um problema de segurança nacional.

4 COOPERAÇÃO ENTRE AS FORÇAS AÉREAS DO BRASIL, COLÔMBIA E


PERU

Considerando os padrões transfronteiriços do tráfico internacional de drogas e a


interdependência dos problemas de segurança gerados pelas atividades
transnacionais ilícitas, estas levam a necessidade de ações cooperativas. Tal
contexto se torna ainda mais agudo em uma fronteira como a Tríplice Fronteira
Brasil, Colômbia e Peru, sendo esta conhecida pelo fluxo intenso de drogas,
precursores químicos e armamentos.

Desta maneira, tendo em vista as características das operações de interdição aérea,


Coronel Clifford R. Krieger da Força Aérea Norte-Americana argumenta que tais
operações seriam mais difíceis de serem realizadas ou não seriam funcionais sem a
ajuda de outras forças amigas orientadas pelos mesmos objetivos, o que significa
que após o emprego da Força Aérea deve existir o apoio tático e logístico em
superfície. Dessa forma, Pérez (2009), advoga que se deve fomentar o crescimento
das operações conjuntas tanto dentro dos Estados como com seus vizinhos por
meio de operações combinadas, sendo estas entendidas pelo autor como operações
realizadas entre as forças de dois ou mais países.

Nesse sentido, Brasil, Colômbia e Peru têm buscado empreender operações


conjuntas entre suas Forças Aéreas. O Brasil executa operações com a Colômbia (a

764
Operação COLBRA) e com o Peru (a Operação PERBRA). Ademais, são realizadas,
também, operações aéreas conjuntas entre o Peru e Colômbia.

No que tange a Operação COLBRA, até o momento foram realizados três


exercícios: COLBRA I, COLBRA II e COLBRAIII. Trata-se de uma Operação
Conjunta/Combinada, com a finalidade de realizar atividades de Vigilância do
Espaço Aéreo sobre aeronaves não identificadas, simuladas por aeronaves C-95 da
Força Aérea Colombiana (FAC), desdobradas no aeródromo de Letícia (Colômbia),
e aeronaves Caravan C-98 da Força Aérea Brasileira (FAB), desdobradas no
aeródromo de São Gabriel da Cachoeira (Brasil), simulando aeronaves envolvidas
em atividades ilegais, cruzando a fronteira dos dois países (FORÇA AÉREA
BRASILEIRA, 2009). Tais operações têm como objetivo:

- Estabelecer procedimentos que possibilitem uma maior eficácia no


combate aos tráfegos ilícitos transnacionais, por meio da coordenação
operacional entre os órgãos de defesa aérea do Brasil e da Colômbia.
- Aplicar os procedimentos de coordenação para a transferência de tráfegos
aéreos de interesse.
- Exercitar os Estados-Maiores dos Comandos de Defesa Aérea da FAC e
da FAB na execução de atividades de planejamento de operações aéreas
combinado-conjuntas.
- Exercitar os enlaces de comunicação entre os Sistemas de Defesa Aérea
da FAC e da FAB, de forma permanente, possibilitando, assim, um maior
controle do espaço aéreo adjacente à fronteira comum.
- Estreitar relações, trocar experiências e estabelecer procedimentos
comuns para a vigilância e o controle do espaço aéreo na região (FORÇA
AÉREA BRASILEIRA, 2009).

Os exercícios entre Brasil e Peru, a Operação PERBRA, até o momento ocorreu em


três oportunidades, PERBRA I, PERBRA II e PERBRAIII. A operação consiste no
emprego de aeronaves-alvo que, simulando tráfegos ilícitos, cruzam a linha de
fronteira entre Brasil e Peru, nos dois sentidos. Para localizá-los são empregados
meios de detecção (radares) e de interceptação (aeronaves) de ambos os países,
sendo adotadas as Medidas de Policiamento do Espaço Aéreo previstas, que
consistem, basicamente, em verificar qual o tipo de aeronave, a sua matrícula, a sua
procedência, o seu destino e o que está sendo transportado (FORÇA AÉREA
BRASILEIRA, 2008).

Nesse sentido, podemos também destacar a ação conjunta do governo brasileiro e


peruano na área de vigilância da Amazônia. Em 2003, os dois governos assinaram

765
um memorando para que as informações captadas pelo SIVAM, em Tabatinga,
fronteira com o Peru, fossem partilhada com o país vizinho, criando assim, o Sistema
de Proteção da Amazônia Nacional Peruana e Sistema de ProteccionAmazonico y
Nacional (SIPAM-SIVAM Peru).

No que tange a cooperação entre as Forças Aéreas da Colômbia e Peru, estas


realizam a operação aérea conjunta, PERCOL que tem como objetivo o combate ao
narcotráfico, ademais, os dois países já realizaram exercícios conjuntos de
interdição aérea e busca.

Ademais, Colômbia e Peru assinaram em 2003, um acordo bilateral de interdição


aérea, com a finalidade de combater o narcotráfico por meio de patrulhas
coordenadas na fronteira.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisarmos o SIVAM de acordo com dados do COMDABRA, a implementação


da Lei do Abate, parece ter incrementado a efetividade do SIVAM, antes de tal lei
violações do espaço aéreo eram detectadas, mas a Força Aérea brasileira não
contava com uma legislação para atuar no combate a tais crimes, assim quando
aviões suspeitos eram detectados no espaço aéreo brasileiro, a FAB, simplesmente,
os fotografava para sua identificação, mas não podiam utilizar de meios coercitivos.

O programa de interdição aérea e a possibilidade de destruição de aeronaves hostis


levaram a redução significativa no número de aeronaves em vôo irregular na
Amazônia, fazendo com que rotas, normalmente, utilizadas pelo tráfico internacional
de drogas quase não fossem mais utilizadas. Ademais, cresceram o montante de
apreensões de drogas provenientes da Colômbia.

Tendo em vista a atual estrutura do SIVAM podemos notar que este converteu-se
em um sistema estritamente militar, pois este foi totalmente separado das atividades
civis operadas pelo SIPAM. Dessa forma, discutir cooperação por meio do SIVAM é
discutir cooperação entre Forças Aéreas.

766
Desta forma, podemos argumentar que no tange as características do programa de
interdição aérea brasileiro notamos que no que concerne aos procedimentos
adotados nas operações são harmônicos com o programa colombiano, pois este
também baseia-se em normas internacionais sobre a derrubada de aviões civis.

Não obstante, é importante ressaltar que tais iniciativas são de especial importância
para o Peru, pois este não possui um programa independente de interdição aérea
desde a tragédia que levou ao fim do ABDP peruano.

Ademais, exercícios conjuntos como as Operações COLBRA, PERBRA e PERCOL


contribuem para a harmonização dos procedimentos e fortalecimento da confiança
entre as instituições militares. Contudo, há que se notar que tais operações tem se
dado, somente, de forma bilateral, faltando arranjos multilaterais nesse sentido,
principalmente, para o manejo de problemas de segurança comum que afligem os
três países na Tríplice Fronteira, levantando a necessidade de operações conjuntas
entre estes.

Não obstante há negociações para exercícios militares entre as forças aéreas


brasileira, boliviana, colombiana e peruana.

Dessa forma, nota-se que operações militares conjuntas podem ser um


instrumento fundamental para o aprofundamento da cooperação em segurança
e defesa entre os países amazônicos na busca do estabelecimento de regimes
sub-regionais de segurança.

Contudo, apesar de políticas mais repressivas no combate ao narcotráfico, nota -


se que o principal objetivo de tais medidas, a diminuição da oferta, não foi
atingido. Nos casos brasileiro e colombiano, únicos países que ainda mantém
políticas de abate de aeronaves civis, houve o deslocamento do tráfico para os
rios e para as fronteiras secas.

Dessa forma, cabem indagações sobre os resultados da chamada Guerra às Drogas


e o enquadramento do combate ao narcotráfico. Além de questionamentos sobre a
missão das Forças Armadas da América Latina em um cenário pós-Guerra Fria, em
especial no caso brasileiro dentro do Estado democrático.

767
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769
O QUE DIZEM OS PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANOS SOBRE
A COOPERAÇÃO EM MATÉRIA DE COOPERAÇÃO EM DEFESA REGIONAL:
COMPARANDO MERCOUL E CAN330.

Gills Lopes 331

1 Introdução

A América do Sul se apresenta aos estudos de segurança e defesa sob dois vieses
maniqueístas. No primeiro, que diz respeito ao âmbito das ameaças interestatais, ela
é, majoritariamente, considerada uma região de poucos conflitos internacionais
(MEDEIROS FILHO, 2010, p. 12) e relativamente pacífica (BRASIL, 2012), embora –
como salientam Mares (2008), Alsina Júnior (2008, p. 241) e Buzan e Wæver (2003,
p. 304-339) – perdurem ainda disputas historicamente latentes, como as questões
das Ilhas Malvinas/Falklands, de Essequibo e de outras pendências territoriais. No
segundo viés e adentrando na esfera interna, seus Estados enfrentam graves
dificuldades em combater as chamadas ―ameaças assimétricas‖ – como o
narcotráfico e a biopirataria. Assim sendo, nada mais lógico do que fomentar a
cooperação intrabloco, por meio de mecanismos pós-westfalianos, inibindo a
ocorrência de conflitos. Mas, aparentemente, não é o que se vê na região.

Tal dicotomia impõe aos Estados, pelo menos, três dilemas: (i) modernizar as forças
armadas em face das ameaças assimétricas (COVARRUBIAS, 1999, p. 3),
configurando-se, assim, uma não separação ontológica entre segurança pública e
defesa nacional, tão temida aos estudiosos dos assuntos sobre a defesa
(ASSOCIAÇÃO..., 2011); (ii) priorizar uma consolidação democrática – nos níveis
nacional e regional – sem dar a devida atenção à defesa nacional, principalmente
nos tempos de (relativa) paz; e (iii) fomentar a cooperação em matéria de segurança
regional, em meio a culturas de segurança nacional tão díspares.

330
O presente trabalho é uma adaptação de Lopes (2013).
331
Doutorando em Ciência Política (UFPE)

770
Assim, no quesito possibilidades de inferências complexas e tendo as questões de
defesa como variável interveniente, pode-se dizer que o cenário sul-americano é
assaz pertinente para tal exercício investigatório; esse desafio é o que motiva o
presente texto. Mais especificamente, o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e a
Comunidade Andina de Nações (CAN ou simplesmente Comunidade Andina) são
selecionados pelo fato de as relações políticos e militares entre seus Estados-
membros produzirem certos protótipos identificáveis ao longo do tempo e do espaço,
possibilitando alocá-los num determinado padrão comportamental. Ademais, o
MERCOSUL ―constitui uma das principais vertentes da estratégia brasileira de
inserção econômica internacional na atualidade‖ (ALMEIDA, 2005, p. 10).

Como framework de análise, opta-se pelos modelos de estruturas de Estado


engendrados por Emil Kirchner e James Sperling e orientados para superar a
problemática da governança de segurança regional e global – sendo a primeira o
objeto deste capítulo – avaliando países quanto a suas adequações categóricas
entre westfaliano ou pós-westfaliano, melhor analisados na próxima seção. Para
lograr êxito nesta investida, acredita-se que um molde estrangeiro não tem eficácia
analítica, nem pragmatismo acadêmico, se ele está alheio às idiossincrasias da
América do Sul e, em especial, aos dois blocos regionais em tela (vide, por exemplo,
crítica do professor Héctor Luis Saint-Pierre nas derradeiras páginas). Por isso,
selecionam-se a perspectiva comparada de Olivier Dabène sobre os blocos
regionais latino-americanos, como aporte histórico-político, e o exame geopolítico de
Oscar Medeiros Filho acerca dessa região.

A escolha prévia do modelo pós-westfaliano para figurar no subtítulo do presente


capítulo explica-se pelo fato de que, boa parte da literatura sobre os processos de
integração regional (PIR) latino-americanos, imputa à América do Sul uma direção não
pessimista quanto à condução da cooperação multilateral via bloco regional –
principalmente à região mercosulina – e quanto a ela ser um subcontinente
relativamente pacífico (DABÈNE, 2009, p. 7). A hipótese a ser testada aqui visa a
responder se realmente tal visão – baseada, assim, num modelo pós-westfaliano – se
sustenta para a região sul-americana, no que pese o papel do MERCOSUL e da CAN.

771
2 Os modelos westfaliano e pós-westfaliano

Kirchner e Sperling (2010, p. xvi-xviii) propõem um framework que busca explicar


como a cultura de segurança nacional impacta na governança de segurança
(securitygovernance) regional. Para tanto, eles utilizam quatro variáveis
intervenientes para saber como o Estado: (i) entende o ambiente externo; (ii) utiliza
suas ferramentas diplomáticas: se coercitiva ou persuasivamente; (iii) manifesta seu
padrão de interação: se unilateral, bilateral ou multilateral; e (iv) faz escolhas
institucionais. Nessa linha de raciocínio, a questão da governança de segurança é
analisada sob quatro domínios ou categorias: (a) prevenção: intervenções pré-
conflitos; (b) garantia (assurance): intervenções pós-conflitos; (c) proteção:
segurança interna; e (d) persuasão (compellence): intervenção militar (KIRCHNER;
SPERLING, 2010, p. 1).

Dependendo de como a cultura de segurança nacional de um Estado é conduzida, e


levando-se em conta as variáveis e as categorias acima, é possível, segundo
Kirchner e Sperling, enquadrá-lo num modelo westfaliano ou pós-westfaliano. Este
trabalho, extrapolando os alcances propostos originalmente por tal modelo, parte da
hipótese de que as culturas nacionais de segurança, se analisadas conjuntamente e
respeitando suas delimitação e história, podem refletir na formação ou não de uma
cultura regional, ainda que minimamente institucionalizada.

Grosso modo, o núcleo duro da ferramenta de análise de Kirchner e Sperling


remonta aos conceitos engendrados a partir da chamada ―Paz de Westfália‖ –
Vestfália ou, ainda, Westphalia – um conjunto de tratados internacionais assinados
em 1648 que encerra várias guerras europeias, criando um sistema internacional –
europeu – de Estados-Nação. Em outras palavras, após 1648, apenas poucos
Estados – àquela época, monarquias dinásticas – que possuíam envergaduras
bélicas muito semelhantes (princípio da ―balança de poder‖) tornam-se os principais
atores internacionais capazes de desequilibrar a ordem internacional (KISSINGER,
1994, p. 21). Um dos pontos fulcrais dessa contextualização é a percepção de que a
guerra, a partir daquele momento, torna-se um instrumento legitimado não mais pelo
nome de Deus e/ou do Papa, mas pelas próprias aspirações e ações estatais (raison
d‘État). Portanto, hoje, a ―[...] persistence of the Westphalian state elsewhere better

772
explains the continuing force of anarchy and the persistence of the balance of power,
concerts and impermanent alliances as regulators of interstate conflict‖ (KIRCHNER;
SPERLING, 2010, p. 2).

Vale salientar, ainda, que essa tentativa de categorizar o Estado, tomando como
base as características por trás do sistema engendrado a partir de 1648, também é
adotada por outros autores. Buzan e Wæver (2003, p. 22), por exemplo, modelam
três tipos ideais que buscam designar o espectro estatal entre fracos e fortes, a
saber: pré-moderno, moderno e pós-moderno. Ademais, este também é a
engenharia por trás do conceito de complexos regionais de segurança (CRS), da
Escola de Copenhague. Embora os CRS sejam mais bem detalhados nas obras de
Buzan e Wæver (2003, p. 60-89) e de Medeiros Filho (2010, p. 52-58), vale frisar
que suas tipologias (formação de conflito, regime de segurança e comunidade de
segurança) permitem relacioná-los aos modelos westfaliano e pós-westfaliano
quanto a uma maior ou menor propensão ao conflito, por parte dos países sul-
americanos. Para Buzan e Wæver, os subcomplexos regionais de segurança do
Cone Sul e dos Andes ocupam posições diferentes quanto à propensão ao conflito,
i.e., possuem políticas/instituições/culturas de resolução de conflito e de cooperação
distintas (BUZAN; WÆVER, 2003, p. 340). Segundo eles, o Cone Sul é uma sub-
região que está transmigrando de um regime de segurança para uma comunidade
de segurança. Já na porção andina da América do Sul, o combate ao narcotráfico,
com grande suporte dos Estados Unidos da América (EUA), mantém vida a latente e
tradicional questão da segurança das fronteiras (FRANÇA, 2011, p. 71), inserindo,
assim, os países da CAN na tipologia ―formação de conflito‖, i.e., mais inclinados ao
conflito (BUZAN; WÆVER, 2003, p. 340). Ressalva-se também que essa última
topologia copenhagueana mostra-se mais propensa aos Estados do tipo westfaliano.

Assim, o Estado westfaliano, nos termos de Sperling, possui as seguintes


características: é indisposto para a cooperação e para a governança de segurança;
tem forte apego à territorialidade; está altamente preocupado em proteger suas
autonomia e independência; e separa a política interna da externa, evitando
interferências externas em seus arranjos constitucionais internos. Seguindo essa
mesma linha de raciocínio, Buzan e Wæver lembram que, até pouco tempo após a
Segunda Guerra Mundial, essas eram as características dos Estados modernos que

773
predominavam nas relações internacionais: governos deveras robustos e
centralizadores, buscando controlar suas sociedades; postura independente e
autossuficiente; soberania intocável; fronteiras geográficas que delimitavam
visivelmente suas culturas, economia e políticas; forte tendência a securitizar em
ameaças que estão dentro/fora dos seus territórios (BUZAN; WÆVER, 2003, p. 22-
23). Portanto, em termos comparativos, o modelo moderno de Estado, utilizado por
esses dois autores, assemelha-se ao westfaliano ora em estudo.

Já o modelo pós-westfaliano parece inclinar-se para uma visão mais neoliberal


institucionalista das relações internacionais. Nele, o Estado possui três
características principais que o diferenciam dos westfalianos: (i) diminuição de sua
capacidade e desejo de ser o portal entre os fluxos internos e externos de pessoas,
bens e ideias; (ii) aceitação voluntária da governança interestatal e da perda de
autonomia, a fim de maximizar os benefícios de bem-estar desses fluxos
transfronteiriços e de enfrentar os desafios ou ameaças comuns ao bem-estar
nacional; e (iii) o direito internacional qualifica a soberania tanto de um governo,
legitimando ou não suas prerrogativas contra seu próprio povo, quanto de órgãos
internacionais ou supranacionais (KIRCHNER; SPERLING, 2010, p. 2-3).

Como visto, essa hipótese pós-westfaliana renega os principais pressupostos da


teoria (Neo)Realista de Relações Internacionais (RI), principalmente aqueles que
versam acerca de uma única e homogênea sociedade internacional de Estados
unitários – as ―caixas pretas‖ (―billiardballs‖) waltzianas. Assim, para essa visão em
específico, Kirchner e Sperling parecem assumir uma linha de raciocínio assaz
condizente com a de outros autores, como Andrew Hurrell (2007, p. 3-4), que, em
esforço de pensamento semelhante, busca identificar o primeiro framework analítico
de se visar a ordem internacional por meio da ideia de uma pluralista e limitada
sociedade de Estados soberanos. Assim, como Sperling, Hurrell – sucessor da
tradição da Escola Inglesa de RI – utiliza-se de determinadas instituições centrais
para compor seu framework, a saber: o direito internacional, a balança de poder, as
grandes potências, a diplomacia e, como não poderia deixar de ser, a guerra. Em
contrapartida, da mesma forma que Hurrel, Sperling mira boa parte de sua análise
para o papel imprescindível da sociedade civil, enquanto uma variável a ser
considerada pelos formuladores de políticas (policy-makers). Nesse sentido, outputs

774
iniciados no interior de um Estado, com ajuda da diluição das barreiras físicas e da
revolução proporcionada pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC),
podem tomar proporções gigantescas em outro, principalmente se este for um
Estado de modelo pós-westfaliano. Dessarte, é bem mais provável que Estados pós-
westfalianos estejam dispostos a substituir seus objetivos particulares de segurança
nacional por objetivos mais amplos e coletivos – como é o caso da União Europeia
(KIRCHNER; SPERLING, 2010, p. 4). O modelo pós-westfaliano também corrobora
com o modelo pós-moderno, de Buzan e Wæver, sobretudo no que tange à cessão
voluntária sobre suas fronteiras, inclinando-se, assim, para uma maior cooperação
multilateral a fim de superar os desafios emergidos com ela.

3 MERCOSUL e CAN em perspectiva comparada: existe um modelo pós-


westfaliano nos processos de integração regional sul-americanos?

O francês Olivier Dabène define PIR como um processo histórico de crescentes


níveis de interação entre unidades políticas – subnacional, nacional ou transnacional
– marcado por atores que compartilham ideias comuns, fixam objetivos e definem
maneiras orquestradas de alcançá-los, e que, ao realizá-la, ajudam a construir uma
região (DABÈNE, 2009, p. 10). Dessa sua assertiva, derivam-se três corolários: (i) o
processo pode abranger uma diversidade de atores, níveis e agendas; (ii) o
processo pode derivar de algo estrategicamente planejado ou pode surgir de uma
interação social não intencional; e (iii) o processo pode criar instituições formais para
sustentá-lo. Todas essas três derivações são levadas em consideração nesta
análise, já que: (i) a percepção dos atores (públicos no geral e militares no
específico) e a materialização das agendas (de segurança nacional) dos PIR sul-
americanos são imprescindíveis para se traçar um panorama comparativo do
MERCOSUL e da CAN; (ii) o modus operandi de que resultaram os PIR em tela
ajuda a identificar os seus principais pontos de inflexão; e (iii) a formalização desses
dois PIR, per se, pode indicar certos comportamentos por parte das forças armadas
ou relacionados à temática da segurança nacional.

Sob a luz das reflexões supra, este momento do texto é dedicado a examinar mais
de perto os dois objetos selecionados para análise: a CAN e o MERCOSUL. Não se

775
pretende, aqui, trazer marcos legais ou dados mais profundos sobre ambos, e sim
demonstrar o porquê da escolha, através das oportunidades e dos desafios para as
questões de segurança nacional e regional que eles abarcam.

O processo de integração sub-regional nos Andes é um dos mais antigos da


América Latina, remontando às primeiras reuniões em meados da década de 1960,
no bojo daquilo que é conhecido como a primeira onda de regionalização. Quando
dos golpes militares em alguns Estados-membros do Pacto Andino – como Peru e
Chile –, nos anos 1970, esse PIR entra em estágio de abandono, haja vista que a
caserna naquele momento prefere voltar-se para os assuntos nacionais e,
principalmente, não querer saber de partilha de interesses coletivos ou
supranacionais (é interessante notar que, do ponto de vista da história política sul-
americana e da conjuntura da Guerra Fria, os maiores representantes operacionais
da seara da defesa – os militares – não põem nem mesmo em consideração a
utilização do PIR andino para fomentar culturas de segurança sub-regional; pelo
contrário, voltam-se, cada vez mais, para os próprios umbigos). Tendo em vista, no
final dos anos 1980 e início dos 1990, (i) a redemocratização do subcontinente e (ii)
a necessidade de contrapor a Iniciativa para as Américas, enviesada pelo governo
Bush-pai com um forte teor meramente econômico, as novas lideranças nacionais
buscam retomar o PIR andino (DABÈNE, 2009, p. 92). Entretanto, é somente em
1996 que o Pacto Andino torna-se a Comunidade Andina. Como lembra Dabène, a
CAN dota-se de um aporte institucional assaz complexo e numeroso. Atualmente,
ela é constituída pelos seguintes Estados-membros: Bolívia, Colômbia, Equador e
Peru (COMUNIDAD ANDINA, 2012). O Chile desmembra-se da CAN, em 1977, em
virtude do que já foi exposto, e a Venezuela retira-se em 2000, em represália ao
acordo assinado entre EUA, Colômbia e Peru, buscando, então, no MERCOSUL um
novo amparo regional (DABÈNE, 2009, p. 211). Assim, Dabène (2009, p. 87)
concorda com a hipótese de McCall Smith relativamente ao fato de que, quanto mais
encorajado a aprofundar um PIR seus membros estão, mais legalizado o processo
está. Nesse sentido, percebe-se que o aporte legal da CAN é um dos mais robustos
dentre os blocos regionais de todo o continente americano e o mais sólido na
América do Sul, em específico, conquanto não consiga prover a si mesma de um
aparato institucionalizado com poderes supranacionais (DABÈNE, 2009, p. 93). Em

776
outras palavras, a lógica administrativa da CAN parece seguir um modelo
westfaliano de governança, embora haja iniciativas regionais bem avançadas de
desenvolvimento social e de programas cooperativos na área de saúde – típicos de
Estados pós-westfalianos.

Já os acordos para a formalização do MERCOSUL são uns dos que inauguram a


segunda onda de integração regional, no início da década de 1990. Esse período,
conforme lembra Dabène, é notoriamente marcado, também, pelos movimentos civis
contra a globalização, em que pese a não aceitação popular do chamado Consenso
de Washington (Washington Consensus), uma série de políticas macroeconômicas
de caráter neoliberal recomendadas pelas ―Instituições de Bretton Woods‖ (Banco
Mundial e Fundo Monetário Internacional – FMI). Os dois ―pais fundadores‖ do
MERCOSUL buscaram um PIR que fosse totalmente diferente do andino, no que diz
respeito ao engessamento administrativo, i.e., com poucas instituições – a modéstia
institucional de que fala Dabène – e uma burocracia básica. Pode-se dizer que os
arranjos institucionais mercosulinos favorecem o Brasil: ele detém uma possibilidade
de core invejável dentro do bloco, possuindo poder suficiente para vencer
praticamente qualquer votação, ampliando a assimetria no Cone Sul. O baixo nível
de legalismo, aponta Dabène, atrelado à lógica intergovernamental – alinhada mais
a uma vertente realista do que a uma liberal – prevalece, em detrimento da
supranacional, fazendo com que as principais decisões sejam tomadas por
consenso entre os Presidentes dos respectivos Estados-membros. Esse tipo de
arquitetura institucional impossibilita a ―integração a partir de baixo‖ – ou seja, que
processos decisórios partam da sociedade e cheguem aos governantes – fazendo
com que haja certa perda de credibilidade pelos formuladores de políticas (policy-
makers) regionais, acentuando, cada vez mais, a chamada ―integração a partir de
cima‖ (DABÈNE, 2009, p. 96-98). Tendo em vista (i) o desligamento temporário do
Paraguai, devido ao impeachment do ex-Presidente Fernando Lugo, em junho de
2012, e (ii) a consequente aceitação do pedido de adesão da Venezuela ao bloco,
como Membro-Pleno (MERCOSUL, 2012), não se realiza maiores inferências quanto
ao Estado bolivariano dentro do bloco, já que suas aspirações e ações não estavam
lastreadas plenamente às diretrizes mercosulinas. A tradição pacifista da política

777
externa brasileira (PEB) (LAFER, 2004, passim) praticamente dá o tom das
percepções de ameaças estatais ao bloco na fase pré-Venezuela.

Quanto às questões de defesa, no âmbito dos dois blocos regionais ora em tela,
praticamente inexistem fóruns ou políticas que gerem ou facilitem uma cultura de
segurança regional ou, mesmo, que faça a prevenção ou a análise ex-ante nessa
área; veem-se, sim, documentos relacionados a problemas pontuais ex-post, mas
que, amiúde, não passam pelo crivo e/ou assessoria militar, e sim pela seara política
e/ou administrativa. Talvez, uma crítica que pode ser feita a esta assertiva advém
dos dados disponibilizados por Dabène acerca das decisões tomadas pelos dois
blocos: das suas 707 decisões tomadas entre 1969-2008, a CAN destinou 34%
delas para a área de política (instituições, relações exteriores, direitos humanos e
segurança), tendo o comércio a quantia de 45%; já o MERCOSUL, das 526 decisões
entre 1991 e 2007, metade delas foram para a área de política (idem) (DABÈNE,
2009, p. 122-127). Todavia, olhando atentamente para os números, é possível
perceber que no caso do MERCOSUL, por exemplo, as decisões relacionadas
estritamente às questões de segurança – e que, portanto, podem incluir questões de
defesa – somaram apenas 16, ou seja, 3% do total (DABÈNE, 2009, p. 126); já no
caso da CAN é ainda mais confuso, pois ―segurança‖ é uma subcategoria da grande
área ―política‖, mas, em contrapartida, há outra subcategoria em ―social‖ que
engloba ―política antidrogas‖ (menos de 5% do total geral) (DABÈNE, 2009, p. 123).
Mesmo buscando separar questões de defesa de questões de segurança,
especificamente para a região andina, essa separação tanto inexiste, como também
faz parte da própria cultura de segurança nacional de países como a Colômbia. Isso
demonstra dois fatos: o primeiro diz respeito à precisão das informações obtidas na
fonte, no sentido de que as subcategorias deveriam ser mais bem detalhadas
quantitativamente; e, o segundo, a negligência com que os temas de segurança
nacional/regional são tratados por parte dos dois organismos analisados. Como
lembra a professora de RI da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Tereza
Cristina França, ―As características dos conflitos estão atreladas às sociedades‖,
assim, ―o raio de alcance do conflito pode crescer ou se manter estático, sair de um
Estado como também penetrá-lo‖ (FRANÇA, 2011, p. 70). Seguindo essa lógica, os
conflitos podem ser analisados/categorizados conforme os seguintes raios de

778
alcance: local-nacional-internacional-transnacional-global. O Esquema 1 demonstra
o proposto por ela. Retomando atenção à CAN, trata-se de uma área com um
histórico de conflitos cujos raios de alcance variam do local ao transnacional e não é
por menos que o próprio Dabène reconhece que ―securityis a complex issue‖
naquela região (DABÈNE, 2009, p. 185).

Esquema 1 – Raios de alcance dos conflitos, segundo França (2011, p. 70).

Ruma-se agora para uma análise específica acerca da geopolítica sul-americana,


tendo como aporte os argumentos do professor de RI e Geografia da Academia
Militar das Agulhas Negras (AMAN), Oscar Medeiros Filho. Esta parte tem como
objetivo acentuar (i) as distintas culturas de segurança nacional que os Estados-
membros do MERCOSUL e da CAN possuem e (ii) a inexistência de culturas de
segurança regionais – ou seus equivalentes institucionais – por parte do
MERCOSUL e da CAN. Essa tese busca sustentação, sobretudo, em relação (a) à
natureza múltipla dos atores que ameaçam a soberania dos respectivos países, (b)
aos raios de alcance dos conflitos sul-americanos e (c) às pendências territoriais
históricas entre alguns de seus Estados-membros que já culminaram em conflitos
mais sensíveis. Entende-se, portanto, que somente à luz da geopolítica dessa região
e da análise de conflitos é possível lograr êxito numa resposta que corrobore ou não
a pergunta-regente deste texto.

779
Parte-se incialmente do entendimento sobre o conflito enquanto output político,
elegendo-se a metodologia aplicada pelo Heidelberg Institute for International
Conflict Research (HIIK) sobre conflitos intra e interestatais. De acordo com o HIIK, o
conflito político surge da diferença de posição em relação a valores relevantes de
uma sociedade – itens do conflito – entre, pelo menos, dois atores determinantes e
diretamente envolvidos, que emerge de observáveis e interligados meios
conflituosos, os quais estão além daqueles estabelecidos, ameaçando uma função
central de Estado ou a ordem do direito internacional, ou que mantém a
probabilidade de fazê-lo (HIIK, 2012a). Nesse sentido, cinco níveis de intensidade
podem ser auferidos da definição acima: conflito latente, conflito manifesto, crise,
guerra limitada e guerra (o HIIK tem modificado as categorias, nos últimos anos,
para adequar-se às suas metodologias). O Mapa 1 mostra a ocorrência de conflitos
violentos em todo o mundo, no ano de 2011, cuja variação de cor corresponde à
intensidade do conflito: quanto mais escura a cor, maior a intensidade.

Mapa 1 – Conflitos violentos no nível nacional, em 2011, segundo HIIK (2012b, com
adaptações).

Pelo Mapa 1, é possível perceber que boa parte do Cone Sul não apresenta conflitos
violentos, enquanto que a região andina mostra-se mais escura. Assim, segundo o
HIIK, os conflitos mais importantes ocorridos em 2011 na América do Sul,
envolvendo Estados-membros dos dois blocos regionais aqui analisados, são postos
na Tabela 1 abaixo.

780
TABELA 1 – Conflitos interestatais na América do Sul (2011)

Estados-parte Itens de conflito Intensidade Bloco(s)

Argentina e Reino Território e recursos (Ilhas


1 (Conflito latente) MERCOSUL
Unido Malvinas/Falklands*)
Território e recursos
Bolívia e Chile 1 (Conflito latente) CAN
(acesso ao mar)
Colômbia e
Poder internacional 1 (Conflito latente) CAN
Equador
Colômbia e Ideologia e poder
1 (Conflito latente) CAN
Venezuela** internacional
Colômbia e Território e recursos
1 (Conflito latente) CAN
Nicarágua (fronteira marítima)
Território e recursos
Peru e Chile 1 (Conflito latente) CAN
(fronteiras)
Venezuela** e Ideologia e poder
2 (conflito manifesto) CAN
EUA internacional
Território e recursos
Venezuela** e
(Arquipélago de Los 1 (Conflito latente) CAN
Colômbia
Monjes)
Fonte:HIIK, ConflictBarometer, 52-53 (com adaptações).

Notas: * Como lembra Tereza Cristina N. França, ao longo dos outros anos, a Guerra
das Malvinas ocupou todos os níveis de intensidade (FRANÇA, 2011, p. 74).

** Embora a Venezuela tenha se retirado da CAN, em 2006, ela se mantém


na lista daquele bloco, tendo em vista que seus imbróglios ideológico e territorial com a
Colômbia iniciam-se respectivamente em 2004 e 1871, e com os EUA, em 2001.

Como se vê, dos oito conflitos ocorridos no ano de 2011, sete têm participação de,
pelo menos, um Estado-membro da CAN e apenas um possui, pelo menos, um
Membro-Pleno do MERCOSUL envolvido. Vale frisar que os conflitos violentos de
intensidades maiores (de 3 a 5, na escala proposta pelo HIIK) ficaram de fora da
tabela, por serem analisados apenas no nível subnacional, ou seja, com fulcro em
episódios cujos itens de conflitos giram em torno de questões conexas
principalmente ao narcotráfico e a movimentos internos, como os de secessão e

781
reforma agrária. Caso eles fossem acrescentados à Tabela 1, a CAN teria bem mais
citações, sobretudo, por causa do prolongado conflito entre Colômbia e as Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Os dados acima apresentados
corroboram a ―tese dos arcos‖, do professor de RI da Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Héctor Saint-Pierre, melhor desenvolvida a seguir.

Medeiros Filho nota que os PIR – os quais figuram com mais frequência nas
agendas de Estados pós-westfalianos – dão uma nova face à geopolítica sul-
americana, especialmente às dos extremos norte (Andes) e sul (Cone Sul) da
região. Para ele, esse tipo de política é uma manifesta superação do paradigma
realista clássico – frequente nos modelos westfalianos – no subcontinente. O papel
dos PIR para com a geopolítica da América do Sul configura-se como uma variável
independente, cuja manipulação pode explicar como as políticas e culturas de
segurança nacional tomam forma tanto no representante do Cone Sul
(MERCOSUL), quanto no dos Andes (CAN). Para ajudá-lo em sua empreitada
analítica, ele recorre a uma tipologia criada por Saint-Pierre, na qual este divide o
subcontinente em duas regiões, formando, assim, duas faixas em forma de arcos: o
―Arco da Estabilidade‖ e o ―Arco da Instabilidade‖ (MEDEIROS FILHO, 2010, p. 65).
Essas duas tipologias casam, como já precitado, justamente com a análise acima: o
primeiro arco perpassa por todos os países mercosulinos, sem áreas de potenciais
conflitos armados; já o segundo arco delimita aquelas zonas – Amazônia e Andes –
onde o conflito é mais possível de ocorrer.

Mapa 2 – Arcos da ―estabilidade‖ e da ―instabilidade‖ na América do Sul, segundo Medeiros


Filho (2010, p. 65, a partir de Héctor Saint-Pierre)

782
O Mapa 2 pode ser encarado de diversas formas. Uma delas é a culminância gráfica
do histórico de conflitos interestatais, sobretudo entre os países da região andina.
Parece que, naquela região, seus Estados buscaram, por décadas, a resolução dos
seus conflitos mediante o uso da força. Os mecanismos hemisféricos mostram-se
praticamente ineficazes, principalmente quando a intensidade do conflito atinge
índices mais elevados. O exemplo-mor disso é auferido na Guerra das Malvinas, em
1982, quando a Organização dos Estados Americanos (OEA) nada fez e onde o
território sul-americano foi palco para o desembarque de tropas extracontinentais. A
análise final de Medeiros Filho sobre os níveis de ―integração geopolítica‖ sul-
americanos é a de que eles ―parecem obedecer a uma linha de gradação crescente
entre a vertente atlântica (maior nível de integração/estabilidade) e a vertente
pacífica (integração comprometida e instabilidade regional)‖ (MEDEIROS FILHO,
2010, p. 65). Assim, do seu raciocínio, pode-se depreender que o que ele chama de
―integração geopolítica‖ sul-americana, nada mais é que a constatação de que os
blocos regionais das respectivas sub-regiões não dão conta de superar os conflitos
interestatais entre seus membros, de forma orquestrada e sem o prolongamento dos
mesmos. Um exemplo disso é a guerra entre Peru e Equador, em 1995, quando
essa praticamente empaca o PIR andino (DABÈNE, 2009, p. 93). A Tabela 2 busca
resumir os principais argumentos dos autores utilizados nesta seção, no que tange
aos aspectos conflituosos entre CAN e MERCOSUL.

TABELA 2 – Principais abordagens teóricas utilizadas para comparar MERCOSUL e


CAN neste trabalho

AUTOR(ES) / ARGUMENTOS MERCOSUL CAN

Barry Buzan e Ole Wæver /


Entre regime e
Formação de conflito
comunidade de segurança
Tipologia do CRS

Tereza Cristina França / Raio de


Local-nacional-internacional-transnacional
alcance dos conflitos

Oscar Medeiros Filho / Nível de Maior nível de Integração comprometida


―integração geopolítica‖ integração/estabilidade e instabilidade regional

Héctor Saint-Pierre* / Topologia


Arco de Estabilidade Arco de Instabilidade
quanto à propensão de conflitos

Fonte: Elaboração própria.

Nota: * Fonte: MEDEIROS FILHO, 2010.

783
Em última instância, países entram em conflito, muitas vezes, por não terem canais
de comunicação entre si ou meios minimamente institucionalizados que solidifiquem
uma confiança mútua – primeiro passo para o desabrochar de uma cultura de
segurança regional. Parece ser esse o caso tanto do MERCOSUL quanto da CAN.

Sob essa perspectiva, não há uma governança de segurança regional, neste caso,
sub-regional e ligada a um PIR, nos moldes propostos por Kirchner e Sperling,
justamente porque, igualmente, não há subsídios teóricos e/ou, muito menos,
empíricos, significativos sobre os quatro domínios de tal governança e elencados na
seção primária deste trabalho. Por outro lado, há duas justificativas que podem
servir de norte para compreender tal vácuo. A primeira delas diz respeito às
competências iniciais e atuais dos dois PIR discutidos aqui. O MERCOSUL, por
exemplo, foi engendrado para ser, como seu próprio nome sugere, um mercado
comum, ou seja, uma zona de privilégios precipuamente econômicos entre seus
membros, embora, hoje, constitua-se uma união aduaneira imperfeita (KUME; PIANI,
2005). Já a CAN, por seu turno, elege as preocupações sociais como sua bandeira
inicial; prova disso é a criação da atuante Organização Andina de Saúde (ORAS)
(DABÈNE, 2009, p. 181). Porém, por trás dessas justificativas, residem outras duas
contra-argumentações para cada um dos dois blocos, tendo o tema da defesa como
elo. A primeira delas, sobre o MERCOSUL, é no sentido de atestar o que o
neofuncionalista Ernst B. Haas cunha spill-over; e a segunda, direcionada à CAN,
remonta ao já mencionado conceito de PIR, fornecido por Dabène.

Antes de adentrar na ideia engendrada por Haas, cabe um salvo-conduto – atrelado a


um alerta feito por Saint-Pierre – sobre a utilização de conceitos e outros mecanismos
explicativos desenvolvidos especificamente para o processo de integração europeia,
mas que, devido a seu poder de explicação e inferência, é também utilizado lato
sensu pela literatura nacional para realizar comparações entre PIR:

Pretender importar el exitoso caso europeo a América del Sur podría


resultar en una comedia. Estudiar aquel proceso es una obligación
académica, pero tornarlo como un paradigma es desconocerlos rigores de
la historia con el tiempo y el espacio. Aun que los europeos no consiguieron
todavía llegar al punto de integración deseado y ante cada conflicto externo
sobre el que deben deliberar aparecen las divergencias sobre los intereses
comerciales y económicos nacionales, es su proceso de integración
económico y político el que algún día puede llevar a que la UE cuente con
una política común de seguridad y defensa (SAINT-PIERRE, 2009, p. 18).

784
Com esse alerta em mente, segue-se com o conceito de spill-over, cujo nascituro é o
período pós-Segunda Guerra Mundial e cuja defesa está atrelada à visão de que,
para prover a segurança e o desenvolvimento da Europa então devastada, era
imperioso haver uma integração entre seus Estados. A forma pela qual tal
integração iria ser abraçada é um dos pontos principais das discussões entre
políticos e acadêmicos integracionistas daquela época. Na seara dos que defendem
um PIR europeu profundo e gradativo, está Haas, que, dentre outros, parte do
pressuposto de que (i) a integração regional naquele continente era inevitável e
deveria ficar a cargo de órgãos supranacionais que centralizariam as decisões sobre
os setores estratégicos – como a produção do carvão e do aço, matérias-primas que
alimentaram a indústria bélica da Segunda Guerra Mundial – para a manutenção da
paz europeia e (ii) que a integração num setor levaria necessariamente a pressões
técnicas para outros setores. É neste último pressuposto que reside a ideia do efeito
spill-over – na literatura nacional sobre PIR, o termo é mantido intacto em seu idioma
original; em outros casos, é geralmente traduzido como ―transbordamento‖ ou
―contaminação‖. Nas palavras do professor de Ciência Política da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), Marcelo de Almeida Medeiros, ―este mecanismo
constitui-se no punctumsaliens do neofuncionalismo que, inspirado no funcionalismo,
prescreve um método de cooperação não coercitiva‖ (MEDEIROS, 2010, p. 284).À
tal ferramenta, podem ser imputados os anseios primários dos governantes
brasileiro e argentino. Ao final dos anos 1970 e início dos 1980 e na falta de canais
de comunicação e instituições de cooperação mútua entre os dois Estados, seus
respectivos projetos nucleares acendiam, em ambos, as aspirações defensivo-
ofensivas originadas pelo dilema de segurança. Quando do recrudescimento de
suas relações, ainda à sombra da ―cortina de ferro‖, seus Presidentes buscaram
aumentar a confiança mútua, elegendo o setor econômico como aquele que
cimentaria a primeira camada no PIR do Cone Sul. Essa ideia, de que pressões do
setor de segurança nacional causaram um output econômico, pode ser uma
variação do efeito formulado por Haas. Medeiros, sobre o sentido originário do spill-
over, ainda assevera que tal mecanismo é ―um vetor de contaminação progressiva
[...] que debuta em um setor específico e, paulatinamente, se propaga a setores
adjacentes e interdependentes‖, favorecendo, assim, ―o desenvolvimento e a
consolidação da supranacionalidade‖ (MEDEIROS, 2010, p. 284). Como já

785
mencionado, o MERCOSUL não segue a lógica supranacional, e sim a
intergovernamental, o que pode explicar, em certa medida, o fato de as questões de
segurança nacional não terem sido ―contaminadas‖ pelo setor econômico, uma vez
que, para a lógica intergovernamental, os Estado membros de um organismo regional
ou internacional não cedem parte de sua soberania – princípio supranacional – com
medo de perder capacidades em termos de poder. Logo, uma cultura de segurança
regional deve ficar apenas nas ideias pré-mercosulinas, no que cunha-se, aqui, de
―efeito spill-over imperfeito‖, já que os objetivos inicias foram alcançadas (confiança e
cooperação mútua entre os dois países, afastando qualquer tipo de inimizade), mas
não se culminou com o transbordamento/contaminação originário e informal
(segurança regional), e, sim, se permaneceu no primeiro setor (economia),
avançando-se, em graus diferentes, para outros (como cultura e educação).

A segunda contra-argumentação, de que as ideias originais, formalmente assinadas,


para a criação dos dois blocos regionais não dizem respeito às questões de
segurança nacional, é direcionada à CAN. Ela está duplamente atrelada ao conceito
de integração regional, formulado por Dabène, e também à conjuntura em que o
Pacto Andino se insere. Relembrando Dabène, PIR é um processo histórico, o que,
em outras palavras, quer dizer que ele é necessariamente um processo dinâmico
que, por si só, deve adequar-se ou responder a constrangimentos impostos nacional
ou internacionalmente, com o fito de superá-los de forma articulada. Ora, mesmo
que o processo de integração regional não tenha sido gestado sob a tutela de uma
das superpotências da época – EUA e União Soviética – não se pode perder de
vista (i) o fato de que o continente Americano era, de facto, zona de influência direta
dos ianques e (ii) que Cuba – maior expoente da abnegação político-estratégica
estadunidense nas Américas – está a poucas milhas, por exemplo, da Colômbia. Por
mais que as aspirações iniciais tenham se voltado para o aspecto social dos Estados
membros, foi só Augusto Pinochet tomar o poder no Chile – sob a alegação de que o
país andino rumava para um socialismo do tipo comunista – poucos anos depois da
assinatura do Pacto, que a lógica da segurança nacional obstou qualquer aspiração
regional. Não se defende aqui, por exemplo, um viés realista, de que os assuntos
internacionais devam ser geridos estritamente em termos de high politics, mas,

786
todavia, negligenciá-los por completo, dependendo da conjuntura que o envolve,
pode significar um erro de cálculo vital.

A Tabela 3 esquematiza as principais análises realizadas aqui sobre os dois blocos


regionais.

TABELA 3 – MERCOSUL e CAN em perspectiva comparada

Nível MERCOSUL CAN

Assimetria de poder intrabloco média/alta baixa

Legalismo Médio alto

Complexidade institucional Baixa alta

Burocracia Baixa alta

Amplitude da agenda Alta alta

Tipo de integração / ―a partir de cima‖ / ―a partir de cima‖ /


envolvimento da sociedade civil Baixo baixo

intergovernamentalismo intergovernamentalismo
Tipo de governança
(realista) (liberal)

Cultura de segurança regional Baixa baixa

Fonte: Elaboração do autor.

Pelo fato de este trabalho não se situar no âmbito normativo, mas sim no
investigativo, entende-se que quaisquer tipos de recomendações não se fazem
necessárias, haja vista que a maior delas seria em direção ao que o Conselho de
Defesa Sul-Americano (CDS), sob a égide da União de Nações Sul-Americanas
(UNASUL), já vem materializando: fechar todas as brechas; em outras palavras,
atuar na sensível e complexa área que é a segurança sub-regional. O CDS não está
nos mesmos moldes que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que
é uma aliança militar, nem mesmo pode ser encaixado na tão desejada Comunidade
de Defesa Europeia, não aprovada em 1954; ele pode, sim, ser considerado uma

787
resposta à falta de iniciativas por parte dos PIR sul-americanos em matéria de
defesa e segurança regionais. É nesse tom que Saint-Pierre assevera sobre a
importância do CDS, decretando a falência de outros tipos de organismos
internacionais existentes no continente americano:

El proyecto y ejecución del CSAD (sic) satisface las necesidades de la


defensa y seguridad subregional y su recorte geopolítico obedece al
reconocimiento de las particularidades y diferencias latinoamericanas. Tanto
las percepciones compartidas como las amenazas y desafíos subregionales
justifican un mecanismo específico para la defensa que permita reforzar,
anticipar o intensificar los instrumentos hemisféricos que se mostraron
inadecuados, morosos, omisos o inútiles (SAINT-PIERRE, 2009, p. 18).

4 Considerações finais

Conforme o breve levantamento exposto até aqui, conclui-se que, pelo menos, no
último quartel, a história e a política demonstram que não há uma ligação significativa
entre PIR e construção da paz (DABÈNE, 2009, p. 7). Ao contrário da União Europeia,
que teve na segurança seu leitmotiv para promover sua integração, ainda sob os
escombros deixados pela Segunda Guerra Mundial, a América do Sul parece não ter
uma bússola-mor para lhe guiar, levantando, assim, a bandeira de várias causas para
seus PIR. Isso, a priori, não constitui um erro, mas pode significar o engessamento
institucional a posteriori, como já exemplificado na terceira parte deste texto.

Este trabalho extrapola a aplicação dos conceitos formulados por Kirchner e Sperling
com o fito de compreender se há ou não culturas de segurança regionais no
MERCOSUL e na CAN. Porém, o presente trabalho não encontra subsídios
significativos para afirmar a existência de um modelo puramente pós-westfaliano nos
processos de integração regional sul-americanos, conquanto processos que visem a
superar, em algum nível, certos desafios impostos pelo modelo westfaliano sejam
evidenciados. Conclui-se, ainda, que o MERCOSUL, dos dois blocos, pode ser
considerado um ―bloco regional westfaliano‖, e que a CAN, embora possua algumas
credenciais típicas do modelo pós-westfaliano, possui outras de cunho westfalianos
– apontadas nas Tabelas 2 e 3 – que superam, em muito, aquelas.

788
Com certeza, a criação do CDS vem para tapar a maioria dos vácuos que
MERCOSUL e CAN têm deixado em relação à cooperação em matéria de defesa,
elementos tão essenciais que credenciariam ambos os PIR como pós-westfalianos,
em matéria de cultura de segurança regional.

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790
O DESENVOLVIMENTO DE UMA TEORIA REALISTA OFENSIVA PARA
COOPERAÇÃO EM DEFESA

Lucas Pereira Rezende332

1 Introdução

O tema da cooperação talvez seja um dos mais estudados na área das Relações
Internacionais. As abordagens institucionalistas neoliberais, por exemplo,
debruçam-se em larga medida em entender o que leva e como se institucionaliza a
cooperação internacional. (AXELROD, 1984; AXELROD; KEOHANE, 1985; HAAS,
1990; KEOHANE, 2005; KEOHANE; MARTIN, 1995; KRASNER, 1982; LIPSON,
1984; MILNER, 1992; SNIDAL, 1991, URPELAINEN, 2012). Realistas também
discutem o tema, em especial via estudos das alianças, ainda que com
expectativas mais reduzidas. (GRIECO, 1990; HERZ, 1950; HYDE-PRICE, 2007;
JERVIS, 1978, 1985 e 1999; LAYNE, 2006; MATTES, 2012; MEARSHEIMER 1994,
1995 e 2001; MONTEIRO, 2011/12; MORGENTHAU, 1959, 2003; PAPE, 2005;
REITER, 1994; SCHROEDER, 1976; SCHWELLER, 1994, 1997; SINGER; SMALL,
1966; SNIDAL, 1991; SNYDER, 1991; WALT, 1987, 1999, 2005; WALTZ, 1959,
1979; WILKINS, 2008, 2012; WOHLFORTH, 1999). Autores construtivistas também
trabalham expectativas para a cooperação, sugerindo novas formas de
socialização. (BUZAN; LITTLE, 2001; BUZAN; WÆVER, 2003; HOPF, 1998;
KARACAZULU; UZGÖREN, 2007; NINCIC, 2005, 2010; ONUF, 1989; RUGGIE,
1995; WENDT, 1992). Todas essas correntes, de modo geral, buscam localizar o
elemento da cooperação, como princípio geral, nas relações internacionais. Alguns
autores foram mais específicos no tema da cooperação em defesa e segurança
internacional, e buscaram criar modelos teóricos que explicassem post hoc essa
cooperação em algumas regiões específicas. (COTTEY; FORSTER, 2004;
DYSON, 2010; MORONEY et al 2007, 2009; MUTHANNA, 2006; POSEN, 2006;
RESENDE-SANTOS, 2007; TUCKER, 1991).
332
Doutorando em Ciência Política (UFRGS), Professor de Relações Internacionais (FACAMP), pesquisador da
Rede Interinstitucional de Pesquisa em Política Externa e Regimes Políticos (RIPPERP).

791
Ainda que tenham produzido avanços importantes, há limites significativos para se
entender a cooperação em defesa que não são aprofundados pela literatura.
Enquanto as teorias de Relações Internacionais são muito amplas, localizando as
condições mais ou menos propícias para a cooperação, aqueles que buscaram
especificamente tratar do elemento da cooperação em defesa e segurança
internacional são específicos demais. Sendo, em geral, construídos para descrever as
dinâmicas de relacionamentos específicos, esses modelos não são possíveis de
serem replicados em outras regiões. Desenvolver uma nova teoria que busque não
apenas localizar quando a cooperação será mais incentivada, mas também como ela
deve se dar, é uma tentativa de superar esses limites apresentados pela literatura.

Se lograrmos sucesso em identificar no realismo ofensivo, a teoria das Relações


Internacionais onde a cooperação é mais difícil de ser alcançada, elementos que
indiquem a possibilidade da cooperação em defesa e segurança internacional,
poderemos, então, sugerir um modelo teórico bastante amplo e com alta expectativa de
poder explicativo - uma vez que poderia também ser adotado, como ponto de partida,
pelas teorias institucionalista neoliberal, que toma muitos dos supostos realistas como
seus, e pela teoria dos Complexos Regionais de Segurança, aumentando ainda mais a
proximidade entre as duas abordagens. A construção de uma nova teoria serve
também para trazer um maior entendimento a respeito do comportamento de um
sistema unipolar, uma vez que não há ainda uma teoria sólida de como esse sistema
opera. (MONTEIRO, 2011/12). Nossa proposta, nesse sentido, não é trazer uma
resposta única e nem final sobre o tema, mas mostrar como as pressões sistêmicas na
unipolaridade servem para incentivar a cooperação em defesa.

2 A Cooperação Realista Ofensiva em Defesa na Unipolaridade

Uma vez que partimos de algumas discussões já previamente bastante


exploradas pela literatura, tomamos como dados alguns supostos importantes:
partimos de uma abordagem realista estrutural (WALTZ, 1959, 1979), com ênfase
no realismo ofensivo (MEARSHEIMER, 1994, 1995 e 2001; RESENDE-SANTOS,
2007). Tomamos também como suposto que, após o colapso soviético, o mundo
tornou-se unipolar (WOHLFORTH, 1999; LAYNE, 2006). É a partir das

792
expectativas teóricas do realismo ofensivo e das dinâmicas estruturais da
unipolaridade que nos propomos desenvolver um modelo teórico que identifique
as motivações dos Estados para se engajarem na cooperação nas áreas de
defesa e segurança internacional.

Em primeiro lugar, é preciso definir o que cooperação quer dizer nessa área. Ações
em defesa são voltadas para os Estados Nacionais, como modo de preservação da
integridade soberana. Segurança internacional é voltada para uma perspectiva mais
sistêmica, como forma de impedir o surgimento de conflitos internacionais, qualquer
que seja sua forma ou origem. Muthanna (2006) difere mais substancialmente os
conceitos. Segundo o autor, cooperação em segurança é um termo mais geral, pois
envolve todas as formas relacionadas à segurança internacional, indo desde relações
bi a multilaterais e envolvendo tanto civis quanto militares. Ela envolve: cooperação
político-militar, o que inclui atuações multilaterais como as operações de paz da ONU;
cooperação civil em segurança; e cooperação em defesa, que inclui os ministérios de
defesa, agências associadas e as forças armadas de diferentes Estados, incluindo,
mais especificamente, a questão da cooperação militar. Essa definição inclui outras
formas de descrição dos alinhamentos militares do pós-Guerra Fria, como a
Diplomacia de Defesa de Cottey e Forster (2004). Adotaremos o conceito de
cooperação em defesa no desenvolvimento de nossa teoria, uma vez que objetivamos
entender o conceito específico de cooperação envolvendo forças armadas.

Ainda que os elementos regionais sejam mais perceptíveis sob a unipolaridade, o


tipo de ameaças não será o mesmo. Desde a emergência da unipolaridade, os
conflitos observados no sistema internacional são muito mais de origem intraestatal
do que interestatal (SUTTERLIN, 1995; DOYLE; SAMBANIS, 2006). A unipolaridade
não apenas elimina os conflitos guiados pela balança de poder global, mas minimiza
até mesmo as disputas das balanças de poder regionais, uma vez que os Estados
buscarão não contestar a ordem global mantida pela potência unipolar. Buscar
alterar a balança de poder regional poderia ser visto pela potência unipolar como
uma tentativa de busca do status de hegêmona regional, ameaçando, assim, a
balança de poder global. Quanto maior o interesse da potência unipolar em uma
região, maior a possibilidade que as dinâmicas regionais reflitam as dinâmicas de

793
poder globais. (BUZAN; WÆVER, 2003). Quanto mais próxima for uma região da
área de interesse estratégico vital da potência unipolar, portanto, menor será a
probabilidade de que as dinâmicas de segurança dessa região sigam contra os
interesses do único polo do sistema. Esse elemento vai ao encontro da
expectativa de Monteiro (2011/12) sobre os dois primeiros tipos de conflitos
esperados na unipolaridade - tanto a dominação ofensiva quanto a defensiva
levam a conflitos entre a potência unipolar e um outro Estado. Isso significa que,
quanto maior o interesse da potência unipolar em uma região, mais limitados em
sua capacidade ofensiva serão os Estados - uma vez que qualquer ação que vá
contra o interesse do polo global possa ser retaliada. O terceiro elemento de
Monteiro (2011/12), do desengajamento, levaria a conflitos entre outros Estados
que não a potência unipolar, em consonância com nossas expectativas de
aumento da importância das balanças de poder regionais. E, mesmo nesses
casos, sempre há a possibilidade do polo global atuar ainda como balanceador
offshore. Esse motivador da cooperação em defesa é explicado pelo realismo
ofensivo pelo caráter calculado da agressão.

Lembremos que, sob o realismo ofensivo, a agressão não é indiscriminada, e que se


comportar de maneira ofensiva significa aumentar a sua segurança.
(MEARSHEIMER, 2001). Dyson (2010) também afirma que o comportamento dos
demais Estados será diferente na unipolaridade, uma vez que seu tipo de resposta
sempre será contextual ao exercício de poder do polo. Nesse sentido, contrariar os
interesses da potência unipolar em questões de segurança internacional é aumentar
os riscos, e não os ganhos, de um ataque - o que diminuiria, ao invés de aumentar,
a capacidade de sobrevivência do atacante. Para maximizar a sua segurança,
seguindo os princípios do realismo ofensivo, os Estados deverão seguir, ou, ao
menos não contrariar, os interesses da potência unipolar.

Segundo Proença Jr. (2003, p. 2), "[c]ada sociedade, em cada tempo, configura
de uma maneira particular a conversão de seus recursos em forças", o que não
torna incompatível que, para maximizar o seu poder e aumentar sua segurança,
devido ao novo caráter das ameaças pós-1991, os Estados se vejam compelidos
a cooperar em defesa.

794
3 O Dilema da Segurança e a Cooperação em Defesa

Por que cooperar em defesa? Tradicionalmente, a não ser que motivados pelo
surgimento de um Estado revisionista, as teorias realistas afirmam que cooperar
em defesa é diminuir a capacidade de sobrevivência do Estado. Há, segundo
Mearsheimer (2001), dois tipos de poder: real e latente - composto por elementos
que podem ser transformados em poder real. Cooperar em defesa, por essa lógica,
é, nos termos de Urpelainen (2012), diminuir as opções externas dos Estados
justamente na área onde ele é mais sensível, no poder real, responsável imediato
pela garantia de sua sobrevivência. A premissa básica do realismo ofensivo é o
dilema da segurança, como elemento que leva à auto-ajuda e dificulta a
cooperação internacional.

Segundo Mearsheimer (2001), contudo, mesmo direcionados pelo dilema da


segurança, os Estados não vão querer começar uma corrida armamentista se isso
não for sinônimo de uma melhora em sua posição estratégica. Como, sob a
unipolaridade, a melhor opção para aumentar a segurança dos Estados é não ir de
encontro aos interesses da potência unipolar, cooperar em defesa pode ter
múltiplas motivações:

(1) mesmo sob a unipolaridade, os Estados se preocupam com a balança de poder


regional e global, ainda que possam fazer pouco, ou nada, para alterá-las. Mesmo
assim, Mearsheimer (idem) afirma que, antes de se preocuparem em projetar poder,
os Estados de segunda linha se preocuparão em se defender dos maiores. Nesse
sentido, cooperar em defesa pode ser um caminho para que esses Estados possam
manter, modernizar e, eventualmente, até mesmo aumentarem seus recursos de
poder sem, contudo, (a) desencadearem uma corrida armamentista que não possam
manter ou (b) despertarem a discordância da potência unipolar. A unipolaridade não
elimina, mas controla, como nenhuma outra distribuição de recursos, os efeitos do
dilema da segurança. (DYSON, 2010).

(2) O realismo ofensivo afirma também que aliados influenciam nos gastos e tipos de
investimento em defesa. Quanto mais ricos forem os aliados, menos gastos precisa-
se fazer em defesa. Levando em consideração a discussão sobre a mudança do
perfil das alianças pós-1991 feita por Wilkins (2012), e reconhecendo que o atual

795
padrão de aproximação dos Estados é o de um alinhamento, o comportamento
maximizador dos Estados, orientados pelo realismo ofensivo sob a unipolaridade,
tem sido direcionado para as parcerias estratégicas (COTTEY & FORSTER, 2004;
DYSON, 2010; US CONGRESS - OTA, 1990). Nesse sentido, cooperar em defesa
pode servir para melhorar a posição estratégica dos Estados de segunda linha frente
à potência unipolar sem terem que gastar tanto.

(3) Uma vez atingido o status de hegêmona regional333, Mearsheimer (2001) afirma
que esse ator vai trabalhar para que não surjam hegemonias regionais em outras
partes do mundo. Preferencialmente, diz a teoria, o hegêmona vai deixar que as
balanças de poder regionais atuem, optando por agir como balanceador offshore
caso as dinâmicas regionais não sejam suficientes para conter o surgimento de um
novo candidato a hegêmona regional. Essa expectativa está em acordo com a
estratégia de desengajamento, tal qual descrita por Monteiro (2011/12), que levaria a
um aumento da importância das balanças de poder regionais na unipolaridade e a
conflitos envolvendo outros Estados que não o polo global. Já para Wohlforth (1999),
a fim de evitar atrasos ou falhas na contenção de Estados revisionistas, a presença
da potência unipolar será mais frequente nas demais balanças de poder, indo ao
encontro das estratégias de dominância ofensiva e defensiva de Monteiro (2011/12),
o que favorece mais, em termos de pressão estrutural, a emergência de conflitos
entre a potência unipolar e outro Estado.

Monteiro (2011/12) afirma que, mesmo que a unipolaridade incentive a potência


unipolar a começar nessa configuração de poder através da dominância ofensiva, é
possível que, com o tempo, ela altere o seu comportamento em direção ao
desengajamento. Enquanto autores como MacDonald e Parent (2011) defendem o
desengajamento, apresentando seus casos bem sucedidos ao longo da história -
ainda que em outras configurações de poder que não a unipolaridade -, Brooks,
Ikenberry e Wohlforth (2012/13) dizem que claramente essa estratégia não deve ser
procurada pelos EUA. Se a estratégia atual, de maior presença global, é o "diabo
que nós conhecemos", o desengajamento é o "diabo que nós não conhecemos", que
"apresentaria riscos e custos muito maiores" (WOHLFORTH, 2012/13, p. 10).

333
Ainda que tenhamos optado por fazer uso do termo potência unipolar, nesse ponto faz-se necessário
recapitular a discussão de hegemonia regional de Mearsheimer (2001).

796
Qualquer que seja a expectativa de comportamento a ser seguida, pelas duas
possibilidades acima descritas, é de interesse do polo evitar o surgimento de
Estados revisionistas nas balanças de poder regionais. Nesse sentido, a cooperação
em defesa nas balanças de poder regionais, mesmo naquelas sem a presença da
potência unipolar, funciona como instrumento em favor do polo global, uma vez que
serve para conter eventuais candidatos a hegêmonas regionais.

Sob a perspectiva da potência unipolar, os elementos da Nova Diplomacia de


Defesa também justificam a cooperação em defesa pela lente do realismo ofensivo.
O engajamento estratégico com antigos ou potenciais inimigos, o espalhamento da
democracia como forma de garantir o estabelecimento de regimes aliados e o
desenvolvimento em capacidades para engajamento em operações de paz são
exemplos de Cottey e Forster (2004) nesse sentido. Todos esses elementos
facilitam o controle de eventuais ameaças estatais via cooperação, barateando e
simplificando a manutenção da ordem unipolar e justificando a cooperação em
defesa por razões do realismo ofensivo.

(4) Mesmo em processos de cooperação em defesa que levem à formação de


instituições, a cooperação em defesa por razões do realismo ofensivo é possível,
desde que contribua como "parte de um processo mais amplo de construção estatal
regional multinacional"334 (CEPIK, 2010, p. 62). Nesse sentido, as disposições
realistas que Cepik (2010, p. 61-2) identifica em instituições internacionais, geradas
e mantidas pela cooperação em defesa, são:

1) as instituições internacionais são criadas por Estados interessados em


poder; 2) a cooperação institucionalizada no domínio internacional ainda é
complexa; 3) existem conflitos distributivos ("ganhos relativos desiguais"),
independentemente da quantidade de informações fornecidas pelas
instituições internacionais; 4) o desenho institucional pode reduzir, mas não
eliminar, as dificuldades associadas com as metas de integração e
cooperação em segurança.

Isso significa que as instituições devem servir ao propósito de maximização trazido


pelo realismo ofensivo, favorecendo, e não diminuindo, a capacidade estatal.

334
Itálico nosso.

797
Diferentemente, portanto, do que a literatura realista em geral aponta, a cooperação
em defesa na unipolaridade é não apenas incentivada para a manutenção do status
privilegiado da potência unipolar, mas também para os demais Estados do sistema.
Por ser mais difícil de ser atingida do que outras formas de cooperação, uma vez
que lida diretamente com o poder real dos Estados, a cooperação em defesa pode,
também, servir como um elemento desencadeador de outras formas de cooperação.
Resende-Santos (2007, p. 9) afirma que os Estados copiam as práticas bem-
sucedidas dos outros não apenas em questões militares, mas também em "práticas
econômicas, regulatórias, administrativas e, até mesmo, constitucionais". Há,
portanto, uma utilidade normativa importante para se entender as razões e
condições para a cooperação em defesa na unipolaridade, uma vez que pode servir
para uma ampliação da agenda política dos Estados envolvidos - desde que respeite
a premissa básica do realismo ofensivo, de maximizar o poder do Estado para
melhor garantir a sua sobrevivência.

4 As Variáveis Independentes da Cooperação Realista Ofensiva em Defesa na


Unipolaridade

Se os Estados tiverem a cooperação em defesa como um meio de maximizarem o


seu poder, aumentando a sua capacidade de sobrevivência, devem atentar para as
seguintes variáveis: (1) a distribuição de recursos entre as unidades do sistema; (2)
o tipo de cooperação; (3) o efeito da cooperação na capacidade estatal; (4) o
desenho das instituições geradas; (5) a emulação de casos bem sucedidos.

(1) A distribuição de recursos entre as unidades do sistema. A cooperação


militar será dependente do contexto político em que esteja inserida. Em primeiro
lugar, o suposto teórico do nosso modelo é, para o sistema global, que haja a
unipolaridade. Isso significa que quaisquer formas de cooperação em defesa
devem ser guiadas pelo princípio máximo de concordância, ou, ao menos não
discordância, da potência unipolar. Outras polaridades terão outros incentivos
sistêmicos diferentes. Na bipolaridade, esse incentivo previamente descrito
existirá apenas para os membros das alianças de cada um dos polos. Na
multipolaridade, seja ela equilibrada ou desequilibrada, os efeitos sistêmicos

798
indicarão a cooperação em defesa dentro do modelo tradicional das alianças, tal
qual descrito pela teoria clássica da balança de poder.

Estando a balança de poder global definida, as balanças de poder regionais terão


maior importância para a compreensão da cooperação em defesa sob a
unipolaridade. Esse elemento dependerá também da estratégia adotada pela
potência unipolar, se de dominação ofensiva ou defensiva ou de desengajamento.
Quanto maior a presença, maior a possibilidade de envolvimento da potência
unipolar nas dinâmicas regionais, segundo Monteiro (2011/12).

Urpelainen (2012) ainda afirma que as incertezas sobre o campo externo vão
afetar a cooperação profunda em duas situações: (a) quando a frequência d e
Estados com poucos recursos (chamados por ele de Estados vulneráveis) for alta
e (b) quando a cooperação profunda assimétrica de fato diminui as posições de
barganha desses Estados. Isso significa que sistemas com muitos Estados
vulneráveis não conseguirão incentivar a cooperação em defesa, uma vez que
não terão condições elementares para levarem adiante tal cooperação.
Poderíamos, para evitar confusões com as dinâmicas da multipolaridade
equilibrada, chamar esses casos de nulidade polar.

De igual modo, quando a distribuição de recursos for excessivamente assimétrica


na balança de poder regional, a cooperação em defesa pode significar a perda
total de autonomia dos Estados vulneráveis frente aos principais polos do sistema
regional. Sob a perspectiva da potência unipolar, a multipolaridade desequilibrada
é o mais arriscado modelo de balança de poder, uma vez que há um candidato a
hegêmona regional que, se bem sucedido, pode incomodá-la na balança de poder
global. Nesse sentido, nas balanças de poder regionais, a nulidade polar e a
multipolaridade desequilibrada são os modelos que não incentivam
estruturalmente a cooperação em defesa.

Tal qual na balança de poder global, os sistemas que mais estimulam a cooperação
em defesa nas balanças de poder regionais são a bipolaridade, uma vez que forma
dois grandes blocos de alianças, e a unipolaridade, que, tal qual no sistema global,
leva os demais atores a se alinharem naturalmente com o polo regional - já que não
há a possibilidade de uma aliança balanceadora.

799
Há uma diferença marcante da cooperação nas balanças de poder regionais e a
global. Ao tratarmos das dinâmicas regionais sob a unipolaridade, a configuração
regional multipolar equilibrada pode também incentivar a cooperação em defesa.
Essa distribuição de poder pode servir para: (i) conter o surgimento de um candidato
a hegêmona regional; (ii) aumentar o grau da capacidade estatal geral das unidades
envolvidas.

(2) O tipo de cooperação. Urpelainen (2012) mostra-nos que a cooperação pode ser
rasa ou profunda. Quanto mais perto da profunda, mais serão necessários
ajustamentos políticos difíceis de serem revertidos, o que aumenta a dependência
dos atores de uma cooperação contínua, reduzindo, portanto, as opções externas
dos envolvidos. Se o objetivo dos Estados no realismo ofensivo é maximizar a sua
segurança, situações onde a cooperação profunda contínua em defesa possam
levar a uma diminuição, e não a um aumento, da sua segurança devem ser evitadas.
A cooperação profunda pode representar um aumento desproporcional de
dependência, o que enfraquecerá a capacidade do Estado de agir sozinho quando
necessário. Cooperar em defesa, nesses casos, seria trabalhar contra o princípio
realista ofensivo de maximização da sobrevivência. Mattes (2012) também afirma
que a expectativa de oportunismo nas alianças também incidirá sobre o tipo de
cooperação. Nesse sentido, modelos de alinhamento onde a possibilidade de
oportunismo seja grande, e que tal oportunismo possa representar uma mudança
brusca da balança de poder regional em favor de um ator específico devem ser
evitados na cooperação de defesa, uma vez que seriam sinônimo de perda, e não
da maximização da segurança do Estado. O tipo de cooperação em defesa deve ser
guiado pelo princípio do Dilema da Segurança: deve ter elementos distributivos tais
que possibilite o aumento conjunto dos recursos dos envolvidos, sem privilegiar
nenhuma unidade em detrimento das demais. Tal privilégio pode levar a um
desequilíbrio da balança de poder regional, desencadeando um movimento
balanceador local ou, até mesmo, global, pelo envolvimento da potência unipolar.

(3) O efeito da cooperação na capacidade estatal. A racionalidade do Estado e o seu


desejo de sobreviver são supostos fundamentais do realismo ofensivo. Desse modo,
arranjos cooperativos que levem a uma diminuição da capacidade do Estado devem
ser evitados - a não ser que esse seja claramente o objetivo. Nesse caso, contudo, o

800
Estado estará agindo contra as expectativas do realismo ofensivo, uma vez que
voluntariamente estará abrindo mão do seu desejo de sobrevivência.

(4) O desenho das instituições geradas. Contanto que contribuam para a


maximização do poder dos Estados para garantir melhor a sua sobrevivência, as
instituições serão elementos importantes nas relações internacionais. Parte-se do
suposto que: (a) as instituições internacionais são criadas por Estados interessados
em maximizar o seu poder, (b) a cooperação internacional institucionalizada é ainda
complexa, (c) a preocupação com os ganhos relativos desiguais existe, e independe
das informações trazidas pelas instituições internacionais, e (d) o desenho
institucional pode diminuir, mas não mitigar, os problemas relacionados aos
objetivos de integração regional e cooperação em defesa (CEPIK, 2010).

As instituições vão contribuir para a cooperação em defesa, nesse sentido, se: (i)
aumentarem os ganhos da cooperação mútua e/ou diminuição dos custos caso um
Estado coopere e outro não; (ii) diminuir os incentivos para defecção através da
diminuição dos ganhos da trapaça e/ou do aumento dos custos da não-cooperação;
(iii) fizerem qualquer coisa que aumentem a expectativa do outro cooperar (JERVIS,
1978); (iv) houver uma conexão do desenho institucional com a balança de poder
regional e a global. Quanto maiores as pressões do dilema da segurança, maior a
possibilidade que a cooperação em defesa leve a instituições mais formais, calcadas
na lógica das alianças. Essas instituições, contudo, têm um incentivo a não se
manterem sob o mesmo desenho institucional caso as pressões sistêmicas mudem
(WILKINS, 2012).

(5) Emulação de casos bem-sucedidos. É uma premissa do realismo ofensivo que


Estados copiam estratégias bem-sucedidas, como forma de maximizar o seu poder
(WALTZ, 1979; MEARSHEIMER, 2001). Segundo Resende-Santos (2007, p. 9),

[e]mulação militar é a imitação deliberada por um Estado de qualquer


aspecto do sistema militar de um outro Estado que recaia sobre seu próprio
sistema militar. Essa emulação traz as forças armadas do emulador (ou
componentes específicos delas) a uma correspondência razoavelmente
próxima ao modelo sendo emulado. A emulação, como uma forma genérica
do comportamento estatal, é a imitação voluntária, proposital e sistemática
por um Estado de técnicas e práticas de um outro.

801
Tal velocidade de cópia depende tanto de fatores sistêmicos, como o nível de
ameaça que os Estados se deparam (RESENDE-SANTOS, 2007), quanto fatores
internos, como o grau de vulnerabilidade externa de um Estado. (DYSON, 2010;
POSEN, 2006; HYDE-PRICE, 2007). A emulação dos casos bem sucedidos deverá
ser uma condição a ser buscada apenas se as demais variáveis também forem
espelháveis ao caso em questão. A emulação de casos bem sucedidos de
cooperação em defesa que desconsidere as demais variáveis apresentadas, ou
mesmo as emule de maneira equivocada, poderá levar a uma diminuição da
maximização do poder do Estado, operando, dessa forma, contra os princípios do
realismo ofensivo. A emulação só deve ser perseguida caso todas as variáveis
acima descritas sejam análogas.

As ações dos Estados podem impactar as variáveis acima trabalhadas


separadamente ou em conjunto. Ainda que nossa proposta seja a construção de um
modelo teórico estrutural, temos ciência que variáveis internas importam. Talvez não
como elementos explicativos abrangentes, como a pressão sistêmica. Ainda assim,
optamos por apresentar, como elementos de pesquisa adicionais ao modelo teórico
principal, duas variáveis internas335 que contribuam para o propósito de
maximização do poder do Estado com o intuito de aumentar a sua segurança via
cooperação em defesa. Essas variáveis estiveram presentes em todos os modelos
teóricos específicos que encontramos, por isso optamos por incluí-las como
elementos incrementais - ainda que não necessariamente explicativos
generalizadores. São elas: (a) criar formas de comunicação interinstitucionais
domésticas que favoreçam a coesão dos processo de formulação e condução das
tomadas de decisão na cooperação em defesa, o que inclui a promoção dos
relacionamentos entre civis e militares. Esse elemento tem reflexo importante para a
abordagem estrutural: contribui para a criação da unidade do Estado como ator nas
relações internacionais, fortalecendo sua capacidade de resposta e, portanto, sua
habilidade em transformar as novas formas de recursos, quaisquer que sejam elas,

335
Temos ciência que não são apenas essas duas variáveis que podem influenciar, pelo caráter doméstico, o
fortalecimento da capacidade estatal via cooperação em defesa. Apresentar variáveis domésticas em um modelo
estrutural é uma armadinha ontológica, pelo problema da baixa capacidade explicativa associado às teorias
reducionistas. (WALTZ, 1979). Fôssemos fazer uma lista das variáveis domésticas possíveis de influenciar nesse
caso, nunca chegaríamos a uma lista final, haja vista a infinidade de possibilidades e de casos excepcionais.
Contudo, essas duas variáveis parecem-nos importantes como princípio geral, por isso sua inclusão aqui como
sugestão de investigação futura.

802
em maior segurança; (b) o grau de vulnerabilidade externa, medido pelas variáveis
domésticas de constituição de poder, que depende de elementos como: "[(1)]
tamanho do território e da população, [(2)] posição geográfica, [(3)] capacidade
produtiva" (DYSON, 2010, posição 2640), além dos elementos trazidos pelo realismo
neoclássico, como o que Dyson (2010) chama de autonomia executiva.

5 Conclusão

A teoria realista ofensiva de cooperação em defesa na unipolaridade indica que há


razões, sob determinadas circunstâncias, que justifiquem a cooperação em defesa
pelos Estados. Uma vez que a expectativa do realismo ofensivo é a maximização do
poder dos Estados, diferentes estruturas levarão a diferentes formas de
maximização de poder.

Nossa nova proposta teórica para a compreensão do porquê a cooperação em


defesa tornou-se um fenômeno tão observado, de maneiras tão distintas, no pós-
Guerra Fria busca trazer uma construção teórica ampla que permita compreender (1)
a motivação dos Estados para cooperar em defesa; (2) as variáveis independentes
que afetam a cooperação em defesa; (3) um modelo amplo de cooperação em
defesa que possa ser replicado em diferentes regiões do mundo.

Não sendo possível o balanceamento contra a potência unipolar, as pressões


estruturais serão para a contenção de Estados revisionistas - tanto na balança de
poder global quanto nas regionais. Nesse cenário, tentativas de alteração das
balanças de poder regionais serão punidas pelo sistema. A forma como os Estados
poderão, então, maximizar o seu poder é a cooperação em defesa, uma vez que tal
cooperação supõe uma concordância - ou ao menos não discordância - da potência
unipolar. Guiados pelo dilema da segurança, os Estados se preocuparão com os
ganhos relativos, motivo pelo qual qualquer tentativa de nova hegemonia regional
será contida pelos demais Estados. Nesse sentido, a cooperação em defesa deve
prover não apenas aumento da capacidade estatal individual, mas também
elementos distributivos que não desencadeiem uma corrida armamentista no plano
regional e nem um balanceamento offshore por parte da potência unipolar. Cooperar
em defesa serve, nesse sentido, para aumentar a posição relativa dos Estados
participantes tanto frente aos demais Estados quanto frente à potência unipolar,

803
sem, contudo, aumentar as pressões do dilema da segurança. Esse suposto
reafirma o princípio egoísta dos Estados, de buscarem maximizar o seu poder para
melhor garantir a sua sobrevivência, mas mostrando que novos tempos exigem
novas formas de maximização de poder.

O modelo teórico aqui proposto busca suprir dificuldades encontradas na literatura,


criando condições que possam favorecer a investigação da cooperação em defesa
nas mais diferentes regiões do globo, incluindo a América do Sul. Incentiva-se, como
elemento de fortalecimento da capacidade explicativa da teoria, sua aplicação nas
condições propostas.

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809
OS LIMITES DA PLATAFORMA CONTINENTAL
BRASILEIRA NO CONE DO AMAZONAS:
A CONVENÇÃO DE DIREITO DO MAR E A DEFINIÇÃO DO PÉ DO TALUDE 336.

Rodrigo Fernandes More337

1 Introdução

Em maio de 2004, o Brasil encaminhou à Comissão de Limites da Plataforma


Continental (CLPC) uma Proposta de Limite Exterior da Plataforma Continental
Brasileira, cujo objetivo era declarar como território brasileiro 338, ―ipso facto‖ e ―ab
initio‖, a plataforma continental além das 200 milhas marítimas, conforme prevê o
artigo 76 da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM).

Em abril de 2007, o Brasil recebeu as Recomendações da CLPC com restrições a


cerca de 19% do total da área pleiteada (cerca de 200.000Km 2), mais precisamente
sobre quatro áreas: no cone do Amazonas, na Cadeia Norte Brasileira, na Cadeia
Vitória-Trindade e na margem Sul. Ainda assim, 765.000Km2 foram recomendados
como Plataforma Continental do Brasil339.

Diante do sucesso parcial do pleito brasileiro, desde julho de 2008 está sendo
preparada a revisão da proposta brasileira ou uma nova proposta, conforme permite
o artigo 8 do Anexo II da CNUDM.

336
O autor agradece os comentários da Capitão de Mar e Guerra (RM-1) Luiz Carlos Torres, da Capitão de
Fragata Isabel King Jeck e da Capitão-de-Fragata Ana Angélica Ligiero Alberoni Tavares, do LEPLAC. No
entanto, erros e omissões são responsabilidade somente do autor.
337
Curso de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito, Universidade Católica de Santos
338
Os incisos V e VI do artigo 20, da Constituição Federal elenca entre os bens da União “os recursos naturais
da plataforma continental e da zona econômica exclusiva” e “o mar territorial”. Contudo, a Constituição guarda
competência do Congresso Nacional para, com sanção do Presidente da República, dispor sobre “os limites do
território nacional, espaço aéreo, marítimo e bens de domínio da União” (inciso V, do artigo 48), norma
constitucional que serve de fundamento para a Lei nº 8.617/1.993, que Dispõe sobre o mar territorial, a zona
contígua, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental brasileiros, e dá outras providências. Como “[o]
limite exterior da plataforma continental será fixado de conformidade com os critérios estabelecidos no art. 76 da
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, celebrada em Montego Bay, em 10 de dezembro de
1982” (Parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 8.617/1.993 c/c artigo 76 da referida Convenção), tem-se que a
plataforma continental, não apenas por definição legal, mas também jurisprudencial internacional refletida nas
Diretrizes da Comissão de Limites da Plataforma Continental (Caso North Sea Continental Shelf,
INTERNATIONAL COURT, 1969; UN, CLCS/11/Add 1., 1999), é a continuação natural do território do Estado
costeiro, portanto, parte do território nacional brasileiro.
339
A consulta a essas áreas e a outros mapas sobre zonas costeiras e oceânicas do Brasil podem ser realizada no
Atlas Geográfico de Zonas Costeiras e Oceânicas do Brasil (IBGE, 2013).

810
Tanto na submissão da Proposta original quanto da revisão ou nova proposta, a
orientação técnica e jurídica para Estados costeiros seguem o disposto no artigo 76
da CNUDM e no documento intitulado "Scientific and Technical Guidelines of the
Commission on the Limits of the Continental Shelf", referida como ―CLCS/11",
adotado pela CLPC em 13/05/1999, traduzidas neste estudo como ―Diretrizes‖.

Embora a CNUDM e as Diretrizes sejam diplomas técnico-jurídicos que, por


natureza, devem conferir determinado grau de segurança, certeza e previsibilidade
quanto aos critérios e metodologias científicas adotados nas Recomendações,
crescem as controvérsias em torno do trabalho da CLPC.

Sob o ponto de vista jurídico, Kunoy, Heinesen e Mørk (2010, p. 359-361), Serdy
(2011, p. 364), Subedi (2011, p. 421) e Kunoy (2012, p. 116) apresentam críticas
muito pertinentes à CLPC no que se refere a dois pontos: o exercício ilegítimo pela
CLPC da função de interpretação da CNUDM, que Serdy (2011) denomina ―função
legislativa‖ e sobre a natureza jurídica das Diretrizes, que reputa como não
vinculantes (―not legally binding‖). Como artigos científicos de autores em comum, o
trecho a seguir Kunoy (2012, p. 116) reflete bem o fundamento comum das críticas
jurídicas sobre os trabalhos da CLPC nesse aspecto:

The Commission has not been vested with powers to adopt legal
instruments that would be binding upon states parties to the Convention and
the Scientific and Technical Guidelines44 (‗the Guidelines‘) are, per se, not
legally binding on states parties. It is true that subsequent agreements may
‗have a bearing on the juridical situation of the parties and on the rights that
each one of [the states parties] could properly claim‘. Yet, only agreements
‗between the parties‘ may constitute subsequent agreements within the
meaning of Article 31(3)(a) of the Vienna Convention on the Law of Treaties
(‗the Vienna Convention‘).

Sob o ponto de vista técnico, que não se afasta do jurídico por que neste tem seus
fundamentos de validade e eficácia, a CLPC tem enfrentado críticas sobre a
intepretação das Diretrizes. Por exemplo, no caso da Proposta da Austrália, os
questionamentos estão relacionados à intepretação sobre a aplicação do critério
restritivo da isóbata de 2.500 metros (KUNOY; HEINESEN; MØRK, 2010, p. 358;
UN, Commission Australia, 2008). No caso do Brasil, que teve quatro áreas não
recomendadas pela CLPC, entre elas o cone do Amazonas, a crítica está

811
relacionada à interpretação dada pela CLCS aos dados batimétricos, geológicos e
sísmicos apresentados pelo Brasil para determinação da base do talude. Note-se
que são 106 as propostas perante a CLPC: 61 propostas completas entregues e
outras 45 preliminares.

Figura 1. Relevo marinho e limites legais

Fonte: International Hydrografic Organization, 2006

O potencial para controvérsias é ilimitado tanto sob o aspecto quantitativo quanto


qualitativo de propostas, seja sob o aspecto jurídico ou técnico (geológico,
geomorfológico ou hidrográfico). Numericamente, as 106 propostas de Estados
costeiros de extensão da plataforma continental implicam, por exclusão, no avanço
sobre o que antes era considerado Área, portanto sobre o patrimônio comum da
humanidade (artigo 136 da CNUDM), ou seja de todos os Estados. Qualitativamente,
o potencial para controvérsias é da essência do tema, que toca fundamentos
históricos e de Direito como soberania sobre águas, solo e subsolo marinhos, uma
disputa que remonta à Antiguidade (REIS; ALMEIDA, 2012).

Como se disse, no caso do cone do Amazonas, as divergências entre o Bra sil e


a CLPC está na localização da base do talude como resultado da intepretação
divergente em torno dos dados batimétricos, geológicos e sísmicos
apresentados pelo Brasil. É importante destacar que não há erros quanto a
metodologia de processamento de dados e sua coleta, apenas divergências
interpretativas e metodológicas que deveriam ser orientadas e solucionadas

812
pelas Diretrizes: a CLPC não coleta dados, mas analisa dados e materiais
fornecidos pelos Estados proponentes .

De acordo com a Subcomissão da CLPC que analisou a proposta brasileira, as


análises produzidas pelo Brasil identificaram 7 pontos no pé do talude localizados na
zona de transição entre os cones Médio (―Middle Fan‖) e Inferior (―Lower Fan‖) do
Amazonas (Fig.2), em profundidades entre 3.600m e 4.100m, nas quais ocorre uma
pequena variação do gradiente (UN, Commission Brasil, 2011, §29).

No exame dos dados brasileiros, a análise da Subcomissão foi que a base do talude
deveria ser definida no local de maior variação regional do gradiente, em profundidades
aproximadas de 2.600m e 3.400m, coincidindo com a mudança regional no padrão de
deposição (de sedimentos), mais semelhantes a uma elevação continental. A diferença
de profundidades aproximadas da base do talude dá o tom das divergências entre o
Brasil e a CLPC, que exploraremos
Figura 2. Divisão do cone do Amazonas (DAMUTH,
adiante.

Como se percebe, o maior desafio


desse estudo na apresentação da
controvérsia sobre o cone do
Amazonas está na interdis-
ciplinaridade, especialmente entre o
Direito e a Geologia: talude,
elevação continental, variação de
gradiente, dados batimétricos e
sísmicos não são termos cotidianos
para o jurista, embora sejam termos
afetos ao direito do mar: apesar de
ser um instrumento jurídico na
forma, a CNUDM necessita de
instrumentos técnicos, como a
CLCS/11 (1999), cuja natureza
juridicamente vinculante é
controvertida, como vimos.

813
Em suma, apoiado na interdisciplinaridade, este estudo pretende apresentar os
principais aspectos da controvérsia sobre o cone do Amazonas, limitado à análise do
sumário das Recomendações sobre a Proposta brasileira pelo acesso a informações
públicas da CLPC340, já que as Recomendações recebidas pelo Brasil são
confidenciais.

Nesse sentido, o primeiro capítulo cuidará da definição do problema, ou seja, das


bases jurídicas para extensão da plataforma continental. O capítulo segundo cuidará
dos principais aspectos jurídicos e técnicos das Recomendações da CLPC e os
contra-argumentos brasileiros. No terceiro capítulo traçaremos breves considerações
sobre as alternativas do Brasil entre uma nova submissão de Proposta ou a
reapresentação da Proposta revisada. Concluiremos com breves reflexões finais
com vista a abrir o debate jurídico sobre a suficiência científica, técnica e jurídica dos
argumentos brasileiros de extensão da plataforma continental no cone do
Amazonas, a justificar a proposta original apresentada à CLPC.

2 A extensão da plataforma continental: a CNUDM e as Diretrizes sobre a


definição do pé do talude

A artigo 76 da CNUDM que trata da hipótese de extensão da plataforma continental


obriga os Estados costeiros a considerar 3 critérios de distância: a) as linhas de
base a partir das quais se mede a largura do mar territorial (artigo 76, CNUDM); b) o
pé do talude continental (artigo 76, 4, ―a‖); e, c) a isóbata de 2.500m, que é uma
linha que une profundidades de 2.500m (art. 76, 5 CNUDM e §3.1.1. das Diretrizes).

O conceito de plataforma continental é apresentado no artigo 76 da CNUDM:

A plataforma continental compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas


que se estendem além do seu mar territorial, em toda a extensão do
prolongamento natural de seu território terrestre, até o bordo exterior da margem
continental, ou até uma distância de duzentas milhas marítimas das linhas de
base, a partir das quais se mede a largura do mar territorial, nos casos em que o
341
bordo exterior da margem continental não atinja essa distância.

340
O sumário executivo das Propostas e o sumário das Recomendações estão publicados pela Division for th
Ocean Affairs and the Law of the Sea (DOALOS). Disponível em:
<http://www.un.org/depts/los/clcs_new/commission_submissions.htm>. Acesso em: 25 jul. 2013.
341
Art. 76, 3 da CNUDM: A margem continental compreende o prolongamento submerso da massa terrestre do
Estado costeiro e é constituída pelo leito e subsolo da plataforma continental, pelo talude e pela elevação

814
Se o Estado costeiro conseguir demonstrar à CLPC que o prolongamento natural de
seu território em direção ao bordo exterior da margem continental se estende além
da distância de 200 milhas marítimas das linhas de base (artigo 76, 4, ―a‖), a
plataforma continental pode se estender além desse limite, respeitando critérios
geológicos fixados nos parágrafos 4 a 6 do artigo 76 da CNUDM, segundo quatro
critérios: dois alternativos e dois restritivos. Essa demonstração é denominada nas
Diretrizes por ―test of appurtenance‖ (―teste de pertencimento‖342, §2.2), que não
encontra fundamento na CNUDM nem em seu Anexo II.

Os critérios alternativos permitem estender a plataforma continental além das 200


milhas marítimas, e dependem da determinação da base do talude (JECK;
ALBERONI; TORRES, 2012). De acordo com o artigo 76, 4, ―i‖ e ―ii‖ da CNUDM são:

 uma linha traçada de conformidade com o parágrafo 7º do artigo 76 da


CNUDM, com referência aos pontos fixos mais exteriores em cada um dos
quais a espessura das rochas sedimentares seja pelo menos 1% da
distância mais curta entre esse ponto e o pé do talude continental
(conhecida como fórmula Gardner); ou
 uma linha traçada de conformidade com o parágrafo 7º do artigo 76 da
CNUDM, com referência a pontos fixos situados a não mais de 60 milhas
marítimas do pé do talude continental (conhecida como fórmula Hedberg).

O parágrafo 7º do artigo 76 da CNUDM determina que o Estado deve traçar o limite


exterior da sua plataforma continental, quando esta se estender além de 200 milhas
marítimas, ―unindo, mediante linhas retas, que não excedam 60 milhas marítimas,
pontos fixos definidos por coordenadas de latitude e longitude.‖

continental. Não compreende nem os grandes fundos oceânicos, com as suas cristas oceânicas, nem o seu
subsolo (BRASIL, 1995).
342
É uma tradução livre do autor. O sentido jurídico de “appurtenance” aplicável à plataforma continental é de
agregar uma parte de território que se identifica como extensão natural do território principal do Estado costeiro,
ou como se diz na teoria do Direito, com a devida vênia: o acessório que segue o principal. A definição do
Black‟s Law Dictionary é “That which belongs to something else; an adjunct; an appendage; something annexed
to another thing more worthy as principal, and which passes as incident to it, as a right of way or other
easement to land; an out-house, barn, garden, or orchard, to a house or messuage. Meek v. Breckenridge, 29
Ohio St. 042; Harris v. Elliott, 10 Pet. 54, 9 L. Ed. 333; Humphreys v. McKissock, 140 U. S. 304, 11 Sup. Ct.
779, 35 L. Ed. 473; Farmer v. Water Co., 50 Cal. 11. Appurtenances of a ship include whatever is on board a
ship for the objects of the voyage and adventure in which she Is engaged, belonging to her owner. Appurtenant is
substantially the same in meaning as accessory, but it is more technically used in relation to property, and is the
more appropriate word for a conveyance.” (BLACK‟s, 2013).

815
Os critérios restritivos aplicam-se conforme os parágrafos 5 e 6 do artigo 76 da
CNUDM, definindo os pontos fixos que constituem a linha do limite exterior da
plataforma continental no leito do mar não podem:

 exceder a 350 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se
mede a largura do mar territorial; ou
 ultrapassar as 100 milhas marítimas da isóbata de 2.500 metros, que é uma
linha que une profundidades de 2.500 metros.

O Estado costeiro, ao submeter uma proposta de extensão da plataforma


continental, baseia-se nesses critérios da CNUDM, mas se orienta pelas Diretrizes
fixadas pela CLPC, cujo objetivo é

[...] prover orientação aos Estados costeiros que pretendam submeter dado
e outro material referente aos limites exteriores da plataforma continental
em áreas nas quais tais limites se estendam além das 200 milhas náuticas
das linhas de base a partir das quais o mar territorial é medido. As Diretrizes
focam no esclarecimento do escopo e profundidade da prova técnica e
científica admissível a ser examinada pela Comissão durante a
consideração sobre cada submissão com o propósito de fazer
recomendações.

Todos os dados e materiais que compõem uma proposta são de responsabilidade


do Estado proponente, de modo que sua coleta é orientada pelas Diretrizes na
medida que estas determinam as normas e metodologias técnicas e científicas
admitidas pela CLPC.

No caso do pé do talude, além dos critérios alternativos do artigo 76, 4, ―a‖, i e ii, o
parágrafo 4, ―b‖ do mesmo artigo prevê um segundo regime de ―prova em contrário‖
(―evidence of the contrary‖): ―Salvo prova em contrário, o pé do talude continental
deve ser determinado como ponto de variação máxima do gradiente na sua base‖.
Esse é o fundamento principal da irresignação brasileira a respeito da
Recomendação da CLPC, como veremos adiante.

3 Natureza jurídica das Diretrizes e da CLPC.

A natureza jurídica das Diretrizes derivada da interpretação e natureza de suas


regras refletem-se num órgão com características sui generis no direito internacional:
a CLPC.

816
A submissão de propostas à CLPC estabelece um vínculo de jurisdição entre o
Estado proponente e a CLPC fundado na adesão voluntária a uma regra contida na
CNUDM de que a extensão da plataforma continental além das 200 milhas
marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial
só é juridicamente legítima no direito internacional convencional se submetida e,
então, recomendada pela CLPC. Assim, o Secretário Geral da ONU não deve
aceitar o depósito de limites delineados conforme o artigo 76 da CNUDM sem que
respeitem às Recomendações da CLPC (KUNOY, 2012, p. 114).

Trata-se de um vínculo de efeito negativo para Estados que não desejarem a


extensão de sua plataforma continental, mas que ainda podem se opor juridicamente
às pretensões de outros Estados; ou um vínculo de efeito positivo para os Estados
costeiros que pretendem ter reconhecida a extensão natural de seu território para o
mar na forma do artigo 76 da CNUDM. Essa oposição, contudo, tem exercício
limitado no âmbito da CLPC343. A Recomendação confere efeito erga omnes apenas
aos limites depositados344. Nesse sentido, como fez a Austrália, é possível
depositar-se apenas os limites recomendados (UN, MZN, 2012).

A partir da submissão da proposta, estabelece-se o vínculo positivo na forma do


parágrafo 8 do artigo 76 da CNUDM, de modo que ―[o]s limites da plataforma
continental estabelecidas pelo Estado costeiro com base nessas recomendações
serão definitivos e obrigatórios‖. Confira-se:

8. Informações sobre os limites da plataforma continental, além das 200


milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do
mar territorial, devem ser submetidas pelo Estado costeiro à Comissão de
Limites da Plataforma Continental, estabelecida de conformidade com o

343
Os Estados Unidos enviaram carta ao subsecretário Geral da ONU responsável por assuntos legais
questionando o Sumário da Proposta brasileira, que havia dado publicidade a todos os membros da ONU. Na
carta, datada de 30/04/2004, os Estados Unidos requereram atenção da CLPC sobre dados de espessura de
sedimentos e a cadeia de Vitória-Trindade. Retransmitida pelo Secretário Geral e recebida a carta na CLPC, o
presidente solicitou aos demais membros da Comissão que desconsiderassem o conteúdo da carta dos Estados
Unidos, lembrando que tanto o Anexo II quanto os Procedimentos da CLPC admitem uma única hipótese para a
comunicação por terceiros Estados na análise de propostas: em casos de disputa entre Estados com costas
opostas ou adjacentes ou em casos de territórios em litígio ou disputas marítimas (UN, CLCS/42, 2004, §§16/17;
UN, CLCS/40/Rev.1, 2008, artigo 46,1).
344
Alguns países como Irlanda e França optaram pela submissão de propostas parciais apenas sobre partes
incontroversas, reservando-se o debate futuro: “The partial OCS submission strategy adopted by some coastal
States has seen submissions based on staggered partial claims, uncontested partial claims with future identified
claims reserved, and uncontested partial claims with future unidentified claims reserved. The „staggered claims‟
approach is best reflected in the strategies adopted to date by Ireland and France.” (ROTHWELL, 2008, p.
204).

817
Anexo II, com base numa representação geográfica equitativa. A Comissão
fará recomendações aos Estados costeiros sobre questões relacionadas
com o estabelecimento dos limites exteriores da sua plataforma continental.
Os limites da plataforma continental estabelecidas pelo Estado costeiro com
base nessas recomendações serão definitivos e obrigatórios.

Como o artigo 8º do Anexo II da CNUDM prevê a possibilidade de propositura de


uma proposta revista ou de uma nova proposta em caso de discordância com as
recomendações, a natureza ―definitiva e obrigatória‖ só se estabelece sobre os
limites recomendados e depositados na ONU. Há, contudo, um prazo decadencial
de 10 anos para as Propostas, que deve ser observado conforme o artigo 4º do
Anexo II da CNUDM:

Quando um Estado costeiro tiver intenção de estabelecer, de conformidade


com o artigo 76, o limite exterior da sua plataforma continental além de 200
milhas marítimas, apresentará à Comissão, logo que possível, mas em
qualquer caso dentro dos 10 anos seguintes à entrada em vigor da presente
Convenção para o referido Estado, as características de tal limite
juntamente com informações científicas e técnicas de apoio. O Estado
costeiro comunicará ao mesmo tempo os nomes de quaisquer membros da
Comissão que lhe tenham prestado assessoria científica e técnica.

Diante de uma Recomendação negativa total ou parcialmente‖, considerando o


prazo decadencial de 10 anos e o ―prazo razoável‖ referido no artigo 8 do Anexo II
da CNUDM345 surgem, então, algumas questões: a) o que caracteriza uma nova
proposta? b) Qual o prazo razoável de uma proposta revisada? c) É legalmente
válido o juízo de admissibilidade de pedido de reconsideração sobre uma proposta
(proposta adotada ou rejeitada) previsto no artigo 34 das Normas de Procedimento
da CLPC346? d) Que Subcomissão avaliará uma nova proposta ou uma revisada? A
mesma anterior, uma nova Subcomissão ou um órgão subsidiário de uniformização?
São questões relevantes para análise das alternativas para o Brasil sobre a
Recomendação recebida da CLPC, como veremos mais adiante.

345
Artigo 8. No caso de o Estado costeiro discordar das recomendações da Comissão, deve apresentar à
Comissão dentro de um prazo razoável uma proposta revisada ou uma nova proposta.
346
Do original: “When a proposal has been adopted or rejected, it may not be reconsidered unless the
Commission, by a two-thirds majority of the members present and voting, so decides. Permission to speak on a
motion to reconsider shall be accorded only to two speakers opposing reconsideration, after which the motion
shall be immediately put to the vote.” (UN, CLCS/40/Rev.1, 2008)

818
Por hora, basta considerar que a possibilidade de novas propostas ou de
propostas revisadas pode ser considerada uma válvula de escape para aplicação
futura de novas tecnologias, técnicas e teses científicas, já que é princípio no
direito internacional do meio ambiente, por exemplo, o estabelecimento da
verdade científica com base na melhor tecnologia disponível 347, deixando-se
abertas as portas para a evolução do conhecimento. Contudo, isso só é viável se
a intepretação das Diretrizes sobre as propostas seguir o mesmo princípio,
inclusive sob a ótica da uniformização.

As Diretrizes deixam clara a preocupação da CLPC em uniformizar o processo de


preparação das provas técnicas e científicas:

1.4. A Comissão elaborou essas Diretrizes com vista a garantir uma prática
estatal uniforme e ampla durante o processo de preparação das provas
técnicas e científicas submetidas pelos Estados costeiros. A Comissão está
ciente de que há outras metodologias científicas e técnicas usadas pelos
Estados na implementação das provisões do artigo 76 para a preparação da
submissão, não cobertas pelo presente documento. Essas Diretrizes não
pretendem exaurir todo campo de possibilidades metodológicas
contempladas pelos Estados. Considerando que muitos caminhos
científicos e tecnológicos estão disponíveis para o desenvolvimento de um
corpo de prova que possa igualmente conformar com todas as provisões
relevantes contidas na Convenção, a Comissão se empenhou em enfatizar
aquelas que possam minimizar custos e resultarem na otimização dos
recursos e das informações existentes.

1.6. [...] Essas Diretrizes não focam na descrição em detalhes das teorias e
metodologias técnicas específicas envolvida em cada disciplina.

A questão controversa é que a uniformização dos processos não encontra


equivalente na uniformização das decisões, ou seja, nas Recomendações. A
uniformização formal e objetiva do procedimento não se reflete, necessariamente,
numa uniformização material e subjetiva sobre a intepretação do julgador. A
evidência teórico-prática dessa dissonância está nos tribunais brasileiros, cujos
incidentes de uniformização de jurisprudência são exceção à liberdade do
magistrado no exercício do seu livre convencimento, por exemplo.

347
O conceito de melhor tecnologia disponível (“best available technology”) é próprio do direito ambiental e, na
relação com o direito do mar, encontra fundamento na proteção do meio ambiente marinho. O conceito é
expressamente mencionado na Convenção para Proteção do Meio Ambiente Marinho no Nordeste do Atlântico
(CONVENÇÃO..., 1992).

819
Se a CNUDM representa um regime jurídico do mar, se o Anexo II da CNUDM
estabelece um procedimento jurisdicional voluntário com efeitos erga omnes e se as
Diretrizes da CLPC defendem uma uniformidade dos processos de submissão, o
procedimento das Recomendações deve ser alterado para contemplar a
uniformização defendida no direito internacional e esperada pelos Estados
proponentes como medida de segurança jurídica e política. Nesse sentido, a
principal alteração deve ocorrer nas propostas de revisão, cuja reanálise não deve
ser feita pela subcomissão original, mas por uma subcomissão distinta, talvez um
órgão uniformização348.

4 As recomendações da CLPC sobre o cone do Amazonas

A compreensão deste capítulo demanda conhecimento básico sobre a definição de


―cone‖ como aquele formado na margem ao largo da foz do rio Amazonas. A
descrição de Damuth e Flood (1987) sobre o cone do Amazonas o identificam como
o terceiro maior cone de mar profundo do mundo, formado pela deposição de
sedimentos do rio Amazonas, lançadas ao mar profundo.

A forma de cone, sua espessura e sua extensão decorrem de diversos fatores


geológicos, geofísicos e hidrográficos que, segundo análise do LEPLAC, tornam o
cone do Amazonas único e distinto das demais formações observadas na margem
brasileira.

A proposta brasileira para a extensão da plataforma continental no cone do


Amazonas tem como fundamento os critérios alternativos das alíneas i e ii do
parágrafo 4, ―a‖, do artigo 76 (espessura das rochas sedimentares de pelo menos
1% da distância mais curta entre esse ponto e o pé do talude continental ou o limite
de 60 milhas marítimas a partir do pé do talude), o critério restritivo do parágrafo 5

348
De acordo com o artigo 6 (2) do Anexo II da CNUDM, a aprovação de uma Recomendação exige dois terços
dos membros presentes e votantes, significa que 14 dos 21 membros devem aprova-la. Contudo, 7 membros da
CLCS formaram a Subcomissão que analisou o pleito brasileiro e 1 membro está impedido por ser brasileiro
(almirante Jair Alberto Ribas Marques). Considerando que todos os 21 membros estejam presentes, os votantes
serão apenas 20. Considerando, ainda em tese, que os 7 membros da Subcomissão avaliadora manterão seus
votos, é matematicamente impossível atingir-se os dois terços (14 votos) necessários para aprovação ou mesmo
admissibilidade de uma nova proposta ou proposta revisada, já que restarão apenas 13 membros, ainda que
votem unanimemente. A constatação eventual de membros ausentes apenas reforça essa evidência.

820
do mesmo artigo (350 milhas náuticas da linha de base que mede a largura do mar
territorial), além de respeitar a fronteira marítima entre Brasil e a Guiana Francesa,
fixada no Tratado de Paris, de 1981.

Como dissemos, a primeira avaliação de uma proposta é o ―test of appurtenance‖,


ou seja, se o cone do Amazonas pode ser considerado a extensão natural do
território brasileiro. O teste é um ―requisito de admissibilidade‖ para o exame da
proposta e foi afirmativo no caso do Brasil, o que significa que a proposta passou a
ser examinada de forma técnica e cientificamente qualitativa, com o fim de
determinação dos pontos de limites a partir dos critérios alternativos e restritivos dos
parágrafos 4 e 5, respectivamente, do artigo 76 da CNUDM.

A segunda avaliação sobre o cone do Amazonas foi a identificação dos pontos


que compõem o pé do talude: as divergências entre o Brasil e a Subcomissão
se estabelecem.

É possível resumir essas divergências num debate técnico-científico em torno das


características singulares do cone do Amazonas, cuja análise de dados e material,
conforme a Proposta do Brasil, demandam a integração de conhecimentos. No
sentido de resumir e fixar muito precisamente tais divergências, confiram-se alguns
trechos destacados pela própria CLPC nas Recomendações, como parte da
manifestação do Brasil nos debates ao longo da análise da proposta 349:

A submissão brasileira considera os cones Superior e Médio como análogos


a um talude continental e o cone Inferior como análogo a uma elevação
continental, portanto localizando a base do talude continental na parte mais

349
A Proposta brasileira é sigilosa por força do Anexo II dos Procedimentos da CLPC, razão pela qual
recorremos apenas aos documentos públicos disponíveis no sistema de documentos da ONU que apenas dão
notícia através de sumários dos argumentos brasileiros e dos argumentos usados pela Subcomissão e CLPC nas
Recomendações. Confira, tradução livre do autor (UN, Commission Brasil, 2011, §§33/34): “The Brazilian
submission considers the Upper and Middle Fan as analogous to a continental slope and the lower fan
analogous to a continental rise, therefore placing the base of the continental slope at the Distal end of the
Middle Fan, coinciding with the lobe deposition of the Channel levee systems. “This understanding is based on:
the similarities between erosive and depositional processes; the continuous slope downwards without a regional
break; and the continuous channel levee systems down to the boundary with the Lower Fan.” “the continuous
slope of the Amazonas Fan can not be compared to the normal passive margin described by Heezen et al.
(1959); “it is difficult to identify the region of the base of the continental slope and place of the FOS in
continuous slope of a unique feature such as the Amazonas Fan;” “in order to provide an analogy with a normal
continental slope and rise, it considered carefully the physiography and the geological processes of erosion and
deposition in the Amazonas Fan.”

821
distante do cone Médio, coincidindo com o lóbulo de deposição do sistema
de canais de diques marginais [vide Fig.2]

Esse entendimento é baseado: nas similaridades entre os processos


erosivos e deposicionais; no contínuo declive do talude sem quebra
regional; e no sistema de canais de diques marginais em direção aos limites
do cone Inferior.

O talude contínuo do cone do Amazonas não pode ser comparado a


margens passivas normais descritas por Heezen et al. (1959)

É difícil identificar a região do talude continental e do seu pé em taludes


contínuos de características únicas como o cone do Amazonas.

Com objetivo de fornecer uma analogia com um talude e elevação


continental normal, foram considerados cuidadosamente os processos
fisiográficos e geológicos de erosão e deposição do cone do Amazonas.

O debate se estabelece sobre a análise de dados batimétricos e sísmicos fornecidos


pelo Brasil segundo critérios geológicos e geomorfológicos distintos.

O Brasil propôs que o pé do talude está entre os cones Médio (―Middle Fan‖) e
Inferior (―Lower Fan‖) do Amazonas (Fig.2), em profundidades entre 3.600m e
4.100m, nas quais ocorre uma pequena variação do gradiente (Summary, 2011,
§29). De outro lado, a Subcomissão identificou a base do talude na região de
ocorrência da maior variação regional do gradiente, segundo sua interpretação, em
profundidades aproximadas de 2.600m e 3.400m, coincidindo com a mudança
regional no padrão de deposição (de sedimentos), com características de uma
elevação continental:

37. A Subcomissão entendeu que a mais significativa mudança regional no


gradiente ao longo do cone ocorre debaixo da zona de transição Superior-
Média do cone em profundidades entre 2.600m e 3.400m baseado nas
análises de dados batimétricos em conjunto com a literatura científica
internacional disponível. De uma perspectiva morfológica, nenhuma outra
região ao longo de todo cone oferece com tanta clareza a localização do pé
do talude, que se funde com a base da margem passiva continental do
talude continental através de sua partes final norte e sul.

[...]

41. Há diferentes pontos de vista na literatura científica internacional em


relação à classificação de certas partes dos cones de mar profundo de
acordo com os componentes nos quais as margens continentais são
subdivididas: Por exemplo, enquanto Babonneau et al. (2002) considera que
o cone superior é análogo a um talude continental, e os cones médio e
inferior são análogos a uma elevação, Curray et al. (2003) considera os

822
cones superior, médio e inferior como equivalentes a uma elevação
continental numa situação geográfica diferente. A Subcomissão considera o
cone superior do Amazonas análogo a um talude continental (embora com
um gradiente menor), e os cones médio e inferior como análogos a uma
elevação continental baseada em todos os dados morfológicos e dados
suplementares geológicos e geofísicos contidos na Submissão e na
informação científica disponível na literatura científica internacional.

42. A metodologia descrita na Proposta para determinar a base e o pé do talude


continental ao longo de toda a Submissão é alegadamente baseada em critérios
morfológicos e suplementada por dados geológicos e geofísicos. A abordagem
aparentemente advogada pela delegação do Brasil para o Norte e para região do
cone do Amazonas durante a última consulta com a Subcomissão parece
enfatizar um argumento geológico baseado em alguns, mas nem em todos os
processos sedimentares prevalecentes sobre os principais resultados
encontrados baseados na morfologia e outras informações geológicas e
geofísicas suplementares. Este cenário sugeriu a investigação por parte dessa
Subcomissão sob a norma da prova em contrário a regra geral contida no artigo
76. Mas quando essa abordagem foi examinada pela Subcomissão com a
informação existente, tornou-se claro para a Subcomissão a mesma localização
da base do pé do talude continental listada na Tabela 1 [elaborada pela
Subcomissão a partir de perfis e dados batimétricos fornecidos pelo Brasil sobre
os pontos do pé do talude propostos] seria encontrada [confirmando as
profundidades médias entre 2.600m e 3.400m].

Como resultado da indeterminação sobre o pé do talude, a Subcomissão não pode


definir o limite exterior da plataforma continental além das 200 milhas marítimas no
cone do Amazonas:
60. Como resultado da incerteza remanescente na determinação da exata
localização do pé do talude continental na base das regiões do talude
continental identificadas pela Subcomissão e na ausência de informações
geodésicas e sísmicas necessárias para definir novos limites por critérios
positivos, a Subcomissão foi incapaz de analisar o limite exterior da
plataforma continental além das 200 milhas náuticas no Norte e na região
do cone do Amazonas.

O sumário das Recomendações conclui a análise da extensão da plataforma


continental no cone do Amazonas da seguinte forma:

61. A Comissão recomenda ao Brasil preparar uma proposta revisada ou


nova em relação aos limites exterior da plataforma continental além das 200
milhas náuticas no Norte e na região do cone do Amazonas.

62. A Comissão recomenda que o pé do talude continental seja determinado


numa nova proposta ou revisada dentro da base do talude continental de
acordo com as metodologias aplicadas e resultados descritos pela
Comissão nessas Recomendações.

823
63. A Comissão recomenda ao Brasil que considere as conclusões e as
implicações delineadas acima com relação aos pontos de espessura dos
sedimentos numa nova proposta ou revisada, e às preocupações
levantadas em relação aos temas da velocidade de análise e interpretação
sísmica na parte norte do Norte e região do cone do Amazonas.

Como não há um órgão de recurso na CLPC, o artigo 8 do Anexo II da CNUDM


prevê apenas duas alternativas que devem ser exercidas em ―prazo razoável‖: a
apresentação de uma nova proposta ou de uma proposta revisada.

5 Alternativas do Brasil: revisão ou nova proposta?

Como são alternativas excludentes, com implicações jurídicas, políticas e


estratégicas complexas em diversos campos e atividades que o Brasil pretende
regular sobre o sua plataforma continental estendida, esse capítulo não pretende
esgotar o debate, apenas lança-lo à reflexão da academia no Brasil.

Diante da recomendação parcial sobre a Proposta do Brasil surge a questão


principal formulada para esse capítulo: o Brasil fará uma nova proposta ou uma
proposta revisada? Dessa questão, derivam outras já levantadas neste estudo: a) O
que caracteriza uma nova proposta? b) Qual o prazo razoável de uma proposta
revisada? c) É legalmente válido o juízo de admissibilidade de pedido de
reconsideração sobre uma proposta (proposta adotada ou rejeitada) previsto no
artigo 34 das Normas de Procedimento da CLPC350? d) Que Subcomissão avaliará
uma nova proposta ou uma revisada? A mesma da proposta original, uma nova
Subcomissão ou um órgão eventual subsidiário de uniformização?

A redação do artigo 8 do Anexo II da CNUDM permite que ao Estado costeiro, ao


discordar da Recomendação, apresentar à CLPC, num prazo razoável, uma
proposta revista ou nova.

Numa interpretação restritiva, seja revista seja nova, a proposta deve ter como
escopo a delimitação de limites sobre a mesma área já analisada pela CLPC. A

350
Do original: “When a proposal has been adopted or rejected, it may not be reconsidered unless the
Commission, by a two-thirds majority of the members present and voting, so decides. Permission to speak on a
motion to reconsider shall be accorded only to two speakers opposing reconsideration, after which the motion
shall be immediately put to the vote.” (UN, CLCS/40/Rev.1, 2008).

824
diferença de natureza entre uma proposta nova e revisada não está clara sob a ótica
jurídica, senão sob o aspecto procedimental: uma proposta nova entra no fim de
uma longa fila de 61 propostas definitivas e outras 45 preliminares; uma revisada,
não. Essa falta de clareza, ou talvez uma interpretação mais extensiva daquele
artigo 8 tomando-se em conta toda a CNUDM e não somente o particular restritivo
da CLPC e suas normas de procedimento (UN, CLCS/40/Rev.1, 2008), foi
evidenciada no procedimento de análise da proposta brasileira, estabeleceu-se o
princípio de se permitir o complemento e mesmo a retificação de material, pois
segundo Subsecretário Geral para Assuntos Legais da ONU Nicholas Michel (2005),
não há nada na CNUDM que preclua o direito do Estado de submeter dados revistos
no curso de uma avaliação351. Mas e após as recomendações?

Como vimos, as Recomendações da CLPC ao Brasil ganharam uma redação que


extrapola uma natureza técnica de orientação, aproximando-se a CLPC de um órgão
jurisdicional de fato, mas não de direito. Assim, numa interpretação restritiva apoiada
na prática da CLCS relacionada ao exercício ilegítimos de poder jurisdicional e
legislativo, se o Estado costeiro decidir por seguir as orientações da CLPC sobre
áreas discordantes, submeterá uma proposta revisada adaptando a proposta original
às recomendações, ao nosso ver um desvirtuamento jurídico das funções da CLPC.
De outro lado, seguindo a mesma tese restritiva, se quiser se opor às
recomendações, fazendo valer os aspectos técnicos de sua Proposta original,
deverá propor uma nova proposta. Nas duas hipóteses, interpretando de forma
extensiva o princípio reconhecido no parecer de Michell (2005), poderá o Estado
costeiro adicionar dados, material e informações, tornando assim sem efeito a
distinção jurídica quanto ao conteúdo da proposta (nova ou revisada), afirmando-a

351
Do original: “Additional material and information relating to the limits of the continental shelf or substantial
part thereof, provided by a coastal State to the Commission in response to its requests for additional data,
information or clarification in the course of the examination by the Commission of the submission of that coastal
State, is expected to support, integrate and clarify the particulars of the limits of the continental shelf contained
in the submission. However, there is nothing in the Convention that precludes a coastal State from submitting to
the Commission, in the course of the examination by it of the submission of that State, revised particulars of the
limits of its continental shelf if the State concerned reaches a conclusion, while reassessing in good faith the
data contained in its submission, that some of the particulars of the limits of the continental shelf in the original
submission should be adjusted, or if it discovers errors or miscalculations in the submission that need to be
rectified.” (UN, CLCS/46, 2005, p. 12-13).

825
apenas em seu caráter formal relacionado a regras procedimentais: o local na ―fila‖.
O ―prazo razoável‖ para uma ou outra proposta em face da discordância sobre uma
Recomendação parece-nos ser o mesmo de submissão: 10 anos.

No que se refere à análise de admissibilidade sobre uma proposta nova ou revisada


na hipótese de discordância dom uma recomendação, o artigo 34 das Normas de
Procedimento da CLPC (UN, CLCS/40/Rev.1, 2008) a vincula a um quórum de
maioria de dois terços entre os membros presentes e votantes. Esse vínculo parece-
nos ilegal, a medida que o exercício de direito de soberania previsto no artigo 76 da
CNUDM não pode ser limitado por norma interna da CLPC, da mesma forma como a
própria norma interna não estipula juízo de admissibilidade para propostas originais.

No caso de uma proposta revisada, talvez a pergunta-chave seja a seguinte: será


avaliada pela mesma Subcomissão? Note-se que a resposta a esta pergunta não
está clara nem para uma nova proposta, pois não existe restrição nos
Procedimentos da CLPC (UN, CLCS/40/Rev.1, 2008), em especial dentre as regras
que determinam a composição das Subcomissões (idem, art. 42). Então, qual a
relevância da pergunta?

A relevância está na uniformidade técnica-científica que as Recomendações devem


espelhar por força do que prevê as próprias Diretrizes (UN, CLCS/11, 1999). Por
definição e princípio, as razões de decidir não devem oscilar subjetivamente de uma
Subcomissão para outra, minando a busca de segurança jurídica e solução pacífica
de controvérsias que perpassa todo o sistema da ONU, refletidos como regra
especial no artigo 76 da CNUDM.

Assim, nem a mesma Subcomissão, nem os mesmos membros, podem analisar


uma proposta revisada ou nova proposta de um Estado costeiro com mesmo objeto
de proposta já recomendada, sob pena de tornar definitiva e obrigatória a
metodologia, os critérios e a própria interpretação do perito ou da Subcomissão
sobre as Diretrizes e sobre limites que, paradoxalmente, não se aperfeiçoaram.
Além disso, em razão do sigilo sobre as propostas, a literatura científica
internacional traz notícias de grande variação de entendimentos de Subcomissões
na aplicação das Diretrizes, em especial em situações de prova em contrário e
identificação de processos sedimentares.

826
O reforço do impacto negativo do elemento subjetivo na revisão de decisões por um
mesmo órgão é reforçada pelo princípio do duplo grau de jurisdição (em inglês, ―two-
tier trial system‖). Fere princípios de direito admitir que a CLPC possa fazer
recomendações sem um procedimento de revisão em duplo grau. Não existe no
sistema das Nações Unidas outro órgão decisório, nos mesmos moldes da CLPC,
sem duplo grau de jurisdição. E a CLPC, apesar de não ser composta por juristas, é
um órgão de moldura jurídica que não se aparta do sistema jurídico da ONU, onde o
duplo grau é regra.

A solução é relativamente simples e tem abrigo no próprio texto dos Procedimentos


da CLPC, no artigo 43, que permite a criação de órgãos subsidiários para
desempenho de funções, a principal delas em torno da uniformidade, certeza e
segurança técnica e científica sobre aspectos de geologia, hidrografia e geofísica,
inclusive jurídica, no exame de dados e materiais na apresentação das
Recomendações (CNUDM, Anexo II, artigo 3, §1). Esses aspectos só serão
satisfatoriamente atendidos pela criação de um órgão ou Subcomissão de
uniformização ou revisão.

Obviamente, a criação de um órgão subsidiário aumenta, sob o ponto de vista


prático, a sobrecarga sobre os atuais 21 peritos, que já se debruçam sobre 106
propostas, entre preliminares e definitivas, sendo então de se considerar um
aumento no número de peritos na CLPC que, se por um lado aumenta, em tese, o
risco da subjetividade, é por outro compensado pela uniformização em duplo grau,
solucionando a questão jurídica de fundo de legitimidade da recomendação que
torna definitivos e obrigatórios os limites propostos.

6 Reflexões finais

O potencial de divergências e conflitos em torno das Recomendações da CLPC


revela-se a cada recomendação publicada, em especial pela falta de uniformidade
quanto à interpretação das Diretrizes em cada Subcomissão, gerando incerteza,
insegurança e imprevisibilidade sobre um tema extremamente sensível que toca
direitos de soberania sobre riquezas do solo e subsolo que compõe a plataforma
continental. Juntamente com as propostas, são identificados potenciais de

827
exploração minerária que, por definição legal da própria CNUDM, deixam de ser
afetos ao regime jurídico de exploração dos fundos marinhos, que inclui a Área
(artigo 136 a 155), as competências e atuação da Autoridade Internacional dos
Fundos Marinhos e a Empresa (artigo 156 a 171), o Anexo III (Condições
Básicas para a Prospecção, Exploração e Aproveitamento) e o Anexo IV
(Estatuto da Empresa).

Em breve, como se tem notícia, o Brasil deve apresentar uma nova proposta ou uma
proposta revisada sobre as quatro áreas não conclusivas, segundo a CLPC, entre as
quais o cone do Amazonas, objeto deste sucinto estudo.

Como se percebeu, trata-se de uma questão permeada pela interdisciplinaridade


entre geologia, geofísica e hidrografia com o direito, que tem um papel tão
fundamental quanto aquelas ciências na intepretação da CNUDM, das Diretrizes
e das Recomendações. Aliás, o direito deve exercer papel importante desde a
formulação da Proposta, afinal o produto da avaliação da CLPC é um documento
jurídico por natureza, muito embora a CLPC não contenha juristas, o que talvez
explique o tom equivocadamente mandatório das conclusões e recomendações
que tem publicado. A submissão de proposta à CLPC é condição jurídica
convencional para extensão da plataforma continental, mas a Recomendação não
é mandatória, pois a CLPC não tem competência para interpretar juridicamente a
CNUDM nem para legislar.

As divergências sobre as recomendações relatadas pela literatura internacional


sugerem a necessidade de ampliação da CPLC e revisão de suas funções, em especial
pela criação de um procedimento ou órgão de uniformização, pois às propostas
aguardando análise, somar-se-ão as propostas revisadas. É preciso fortalecer o papel
da CLPC fortalecendo os instrumentos jurídicos que consolidam sua legitimidade.

REFERÊNCIAS

BLACKs‘ Law Dictionary online. Disponível em:


<http://thelawdictionary.org/appurtenance/>. Acesso em: 25 jul. 2013.
BRASIL. Decreto nº 1.530, de 22 de junho de 1995. Declara a entrada em vigor da
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, concluída em Montego Bay,

828
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1995.
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Assinada em Paris, em 22 set. 1992. Disponível em:
<http://www.ospar.org/html_documents/ospar/html/ospar_convention_e_updated_tex
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DAMUTH, John E.; FLOOD, Roger D. Quantitative characteristics of sinuous
distributary channels on th Amazon Deep-Sea Fan. Geological Society of America
Bulletin, v. 98, p. 728-738, jun. 1987. Disponível em:
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Acesso em: 9 jul. 2013.
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Disponível em: <https://www.mar.mil.br/secirm/p-atlas.html>. Acesso em: 3 jun.
2013.
INTERNATIONAL Court of Justice. North Sea Continental Shelf Cases. Pleadings,
oral arguments and documents. 1969, p. 6. Disponível em: <http://www.icj-845

829
A LONGA GUERRA DO GOLFO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA SOB A ÓTICA
DAS DOUTRINAS POWELL E BUSH (1991-2003)

Sandro Heleno Morais Zarpelão352

Sidnei José Munhoz353

1 Introdução

A Guerra do Golfo, de 1991, e a Guerra do Iraque, de 2003, foram dois exemplos de


conflitos em que os Estados Unidos se envolveram diretamente no final do século
XX e início do século XXI. Assim, para entender melhor o seu comportamento como
ator internacional importante nos dois conflitos, torna-se imprescindível que se
estude a sua política externa sob a ótica das Doutrinas Powell e Bush.

Vale ressaltar que a política externa dos Estados Unidos da América do Norte pode
ser enquadrada no paradigma da longa duração, pois desde o século XIX, poucas
mudanças e rupturas ocorreram ao longo da história. Ao longo da segunda metade
do século XIX e até a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ocorreram importantes
embates na sua política externa, entre os chamados isolacionistas e os
internacionalistas.

Nesse sentido, verificar-se-á a influência das doutrinas Powell e Bush na eclosão


das Guerras do Golfo, em 1991, e do Iraque, em 2003, demonstrando que os citados
conflitos possuem uma ligação estreita e fazem parte de uma longa guerra no Golfo,
da mesma forma como ocorreu na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais de
acordo com o historiador Eric Hobsbawm (HOBSBAWM, 1995).

Para tanto, será necessário trabalhar rapidamente com a Doutrina Carter, erigida
durante o governo do presidente Jimmy Carter (1977-1981), que defendia uma
política de intervenção militar dos Estados Unidos no Oriente Médio, em defesa dos

352
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Política e dos Movimentos Sociais – Universidade
Estadual de Maringá.
353
Programa de Pós-Graduação em História Social – Universidade Estadual de Maringá.

830
interesses petrolíferos estadunidenses. Ressalta-se, que as Doutrinas Powell e Bush
foram muito influenciadas pela Doutrina Carter.

A Doutrina Powell foi aplicada durante a Guerra do Golfo, de 1991, e já a Doutrina


Bush foi aplicada durante a Guerra do Iraque, em 2003, quando Washington liderou
uma invasão ao território iraquiano, apoiado por Londres. Assim, notar-se-á a
influência dos princípios embasadores das citadas doutrinas estadunidenses
naqueles conflitos.

Em outras palavras, era a Doutrina Powell sendo aplicada no campo militar e


estratégico. Contudo, tal conflito não terminou em 1991. A "longa Guerra do Golfo"
continuou com a invasão estadunidense sobre o Iraque, em março de 2003, quando
foi colocada em prática a Doutrina Bush e que possivelmente foi influenciada pela
Doutrina Powell.

O objetivo do trabalho, então, é discutir e refletir sobre os conflitos no Golfo sob a


ótica das Doutrinas Powell e Bush, demonstrando que tanto a Primeira como a
Segunda Guerra do Golfo pode ser considerada como um longo embate, por meio
de uma metodologia comparativa, demonstrando que tanto a Primeira como a
Segunda Guerra do Golfo possui várias diferenças e semelhanças, formando um
longo embate, envolvendo atores estatais e não-estatais, como os EUA, a ONU e o
Iraque em verdadeiras guerras assimétricas.

2 A longa Guerra do Golfo: uma análise comparativa das Guerras do Golfo e do


Iraque sob a ótica das Doutrinas Powell e Bush (1991-2003)

Em 1980, o então presidente dos Estados Unidos da América, James Earl Carter
(1977-1981), mais conhecido como Jimmy Carter, revelou ao país e ao mundo que o
Oriente Médio, mais especificamente o Golfo Pérsico, era uma área importantíssima
para os interesses estadunidenses, principalmente na questão de fornecimento de
petróleo.

831
Sendo assim, o democrata Jimmy Carter ao proferir o discurso anual ―O Estado da
União‖354 (―The State of the Union‖), em 23 de janeiro de 1980, demonstrou que a
região do Golfo Pérsico era vital para a geopolítica da Casa Branca. Carter salientou
que se fosse necessário empregar até meios militares para que os objetivos dos
Estados Unidos fossem protegidos, ele o faria (FUSER, 2005, p. 168-169).

Indubitavelmente, a Doutrina Carter representou uma considerável mudança na


política exterior dos Estados Unidos para o Oriente Médio. Entre os anos de 1945,
com o fim da Segunda Guerra Mundial, e 1979, com a Revolução Islâmica Iraniana,
Washington procurou garantir o acesso ao petróleo através de uma aliança ambígua
com o Reino Unido e, depois, em uma aproximação com a Arábia Saudita e o Irã.
Isso pressupunha o não uso do poderio militar para conseguir alcançar as
abundantes reservas petrolíferas encontradas principalmente na região próximo ao
Golfo Pérsico, no Oriente Médio.

Contudo, a citada transformação aconteceu porque cinco fatos históricos ocorridos


na década de 1970 forçaram o Departamento de Estado e o Pentágono, nos
Estados Unidos, a se adequarem aos novos tempos. O primeiro fato foi a Primeira
Crise Internacional do Petróleo355, em 1973, causado pela Guerra do YomKippur356
entre Israel contra Egito e Síria. O segundo fato histórico foi a Revolução Islâmica
Iraniana, em fevereiro de 1979, que derrubou o Xá Reza Pahlevi que governava o
Irã desde 1953. Em seu lugar assumiu o Aiatolá Khomeini. O terceiro fato foi a
Segunda Crise Internacional do Petróleo, no biênio 1979/1980, em que os preços do
barril de petróleo subiram ainda mais, agravando e colocando em risco o

354
A cada ano que se inicia, todo presidente dos Estados Unidos deve, geralmente em janeiro, apresentar ao
Congresso os princípios e regras que irão ditar os rumos de seu governo, seja no aspecto interno bem como no
aspecto externo. É o chamado discurso “O Estado da União”.
355
Crise Internacional do Petróleo: devido ao embargo do petróleo feito pela OPEP contra os países ocidentais,
ocorreu um aumento considerável no preço do barril de petróleo, passando de aproximadamente US$ 2,00 para
US$ 12,00, provocado pela OPEP. Vale ressaltar que esta última utilizou o petróleo como “arma política” para
tentar pressionar os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental a pressionarem Israel, para que este
devolvesse os territórios ocupados na já mencionada Guerra dos Seis Dias.
356
Guerra do YomKippur (1973): conflito ocorrido entre Israel contra Egito e Síria, sendo que estes dois últimos
realizaram um ataque surpresa no dia do YomKippur, ou dia do “perdão”, data sagrada para a religião do
judaísmo. Conseqüência direta da Guerra dos Seis Dias (1967), vencida por Israel. O efeito direto foi a
manutenção dos territórios ocupados e reivindicados por jordanianos, egípcios, palestinos e sírios, no caso a
Faixa de Gaza, Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Colinas do Golan sob o domínio israelense. Outro efeito foi a
1a Crise Internacional do Petróleo.

832
fornecimento do ―ouro negro‖ para os mercados ocidentais. O quarto fato ocorreu em
novembro de 1979, quando um grupo de muçulmanos radicais atacou a grande
mesquita localizada em Meca, colocando em risco a estabilidade política do governo
saudita e o apoio dos Estados Unidos para Riad (SCHUBERT; KRAUS, 1998, p. 52-
53). Por fim, o quinto e último fato histórico relevante foi a Invasão do Afeganistão
pela União Soviética, em dezembro de 1979.

De acordo com Igor Fuser os Estados Unidos, com a Doutrina Carter, aumentaram
sua presença diplomática e política no Oriente Médio, pois existia um duplo
obstáculo: ―[...] 1) assegurar o controle das reservas de petróleo do Golfo Pérsico, e
2) reagir à intervenção da URSS no Afeganistão, interpretada, ao menos
publicamente, como uma ameaça‖ (FUSER, 2005, p. 169).

A Doutrina Carter vinculava o petróleo com a segurança do Golfo Pérsico. Tratavam-


se de temas interdependentes na visão daquela doutrina. Assim, o Oriente Médio
passou a ser considerado uma região prioritária para os interesses dos Estados
Unidos e, em conseqüência, deveria ficar sob o controle e a proteção direta da Casa
Branca. Em outras palavras, o Oriente Médio deveria ser sua área de influência, livre
das ingerências da União Soviética e dos países europeus ocidentais como o Reino
Unido e a França. A Doutrina Carter pode ser considerada uma ―Doutrina Monroe
para o Oriente Médio‖, de acordo com o historiador Douglas Little (LITTLE, 1994).

Para se compreender melhor a Doutrina Carter, faz-se mister discorrer algumas


palavras sobre o principal teórico, Zbigniew Brzezinski, e sua teoria geopolítica que
influenciou e formulou a política externa estadunidense.

Brzezinski entendia que o Oriente Médio, a Europa Ocidental e a Ásia Central eram
fundamentais em suas análises, pois se os Estados Unidos controlarem essas
regiões, de acordo com ele, que aprimorou os pensamentos dos pensadores
Mackinder e Spykman, poderá controlar a Eurásia e, por conseguinte, o mundo.

Para Brzezinski a luta pelo poder mundial entre os Estados Unidos e a União
Soviética, na Guerra Fria, tinha como grande palco as três regiões estratégicas da
Rimland, defendidas pelo teórico Nicholas Spykman: o Leste da Ásia (Península

833
Coreana e Vietnã), a Europa Ocidental (principalmente as duas Alemanhas) e o
Sudoeste da Ásia (Golfo Pérsico e Afeganistão) (MELLO, 1998).

O Sudoeste da Ásia, mais conhecido como Oriente Médio, só apareceu como uma
importante região na disputa pelo poder mundial, quando as outras duas regiões
supracitadas estavam estabilizadas em termos políticos, ao mesmo tempo em que, o
fornecimento de petróleo associado a uma forte instabilidade no Oriente Médio
ameaçavam os interesses geopolíticos e econômicos dos Estados Unidos. O que
estava em jogo era o petróleo.

Entretanto, além da ameaça soviética, havia outra preocupação que se revelou logo
após a realização do discurso de Carter, pelo então secretário de Defesa, Harold
Brown: a instabilidade no ―Terceiro Mundo‖, principalmente nos países do Oriente
Médio. Assim, os Estados Unidos trataram de proteger, como parte de seu ―interesse
vital‖ o fluxo de petróleo que saia do Oriente Médio para abastecer o Ocidente.
Então, foi necessária a construção de bases militares em países do Oriente Médio,
negociações do direito e de acordos para o tráfego aéreo militar e uso de aeroportos
em países como Egito e Marrocos e a renovação do direito de instalação da base
naval estadunidense no Bahrein (BACEVICH, 2005, p. 192).

A partir da Doutrina Carter, houve o aumento crescente da presença militar dos


Estados Unidos no Oriente Médio, durante os governos subseqüentes como de
Ronald Reagan, George H. Bush, Bill Clinton e George Walker Bush.Então, mesmo
após a elaboração de novas doutrinas militares e de política externa como a Powell,
Clinton e Bush a essência da Doutrina Carter continuou presente, isto é, a forte
presença militar, diplomática e política dos Estados Unidos no Oriente Médio,
aliando a questão da segurança dos Estados Unidos com o petróleo.

A crise no Oriente Médio, em 1990, entre o Iraque e o Kuwait, acelerou a elaboração


de uma nova doutrina estratégica para os Estados Unidos. Era imperativo construir
uma doutrina capaz de conjugar o uso de armas tecnologicamente avançadas,
conhecidas como ―inteligentes‖, que arrasariam o inimigo, com a sua destruição para
depois ocorrer uma intervenção terrestre. A idéia era causar o menor número
possível de baixas de soldados estadunidenses e também de civis do adversário.

834
A Guerra do Golfo ocorreu exatamente em uma época de transição nas relações
internacionais, de agonia da Guerra Fria e do surgimento da Doutrina Powell.

Destaca-se que ela foi concebida a partir da experiência negativa dos Estados
Unidos na Guerra do Vietnã, com a questão dos conscritos. Assim, ao final do citado
conflito, o Exército dos Estados Unidos sofrerá uma profissionalização a partir de
1973. A mudança ocorreu em grande parte devido à traumática experiência
envolvendo os conscritos que lutaram nas Forças Armadas Estadunidenses durante
a Guerra do Vietnã (1965-1975) (SILVA, C., 2004, p. 409-412).

Por consequência, foram criadas condições ideais para que se elaborasse uma nova
doutrina militar pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos e pelo Pentágono.
Era a Doutrina Powell (SILVA, F., 2004, 703-704) que defendia a idéia de guerra
limpa, com bombardeios cirúrgicos e estratégias que poupariam vidas dos aliados na
guerra. Era a guerra de videogame. A idéia de zero killed(morte zero) era muito forte
e importante como princípio inserido em tal doutrina.

Ressalta-se, que o presidente George H. Bush (1989-1993), dos Estados Unidos,


precisava desenvolver tal doutrina, para que permitisse ao Pentágono possuir uma
capacidade estratégica de agir concomitantemente em dois lugares diferentes, em
termos militares, mesmo que fossem geograficamente distantes.

Assim, Estados considerados potências regionais ou aspirantes a esse posto, sem


influência mundial, cujos interesses estratégicos fossem concorrentes aos dos
Estados Unidos, como o Iraque, Irã e Síria, por exemplo, passaram a ser os novos
inimigos dos Estados Unidos no início da década de 1990. Eram os Estados ―fora-
da-lei‖. Emergiu, ainda na década de 1990 e principalmente, com os atentados de 11
(onze) de setembro de 2001, em Washington e New York, o terrorismo que também
passou a ser considerado inimigo do ―Tio Sam‖.

Durante os governos dos presidentes Ronald Reagan (1981-1989) e George Bush


(1989-1993) os Estados Unidos elegeram novos inimigos em sua política externa,
substituindo o algoz soviético e seu socialismo. Foram eleitos, de acordo com Noam
Chomsky (CHOMSKY, 1996), quatro novos inimigos: a instabilidade econômico-
política dos Estados terceiro-mundistas, o narcotráfico hispano-americano, o

835
terrorismo em escala internacional, principalmente no Oriente Médio e o
fundamentalismo islâmico.

A Doutrina Powell estabeleceu que os Estados Unidos só pudessem intervir em


duas situações: quando estivessem em risco áreas com reservas de combustíveis
fósseis, como petróleo, abastecedoras do Ocidente, como o Kuwait e o Iraque, no
Oriente Médio; e, em áreas estratégicas consideradas essenciais para a segurança
de aliados e de locais economicamente fundamentais para os Estados Unidos. Para
a doutrina, o país necessita de segurança e equilíbrio no cenário internacional para
poder agir. Isso quer dizer que Washington não iria intervir em todo e qualquer
conflito regional.

Do ponto de vista da ação militar, a Doutrina Powell ainda se faz presente e é


mantida. Não se pode esquecer que ela foi substituída pelas Doutrinas Clinton e
Bush, mas ainda assim, permanece atual nas intervenções militares dos Estados
Unidos. O problema das baixas em combate é um tema delicado no território
estadunidense desde a Guerra do Vietnã. As freqüentes comparações da Invasão
dos Estados Unidos ao Iraque, a partir de 2003, com o conflito no Vietnã, é um claro
sinal disso.

A atual intervenção militar de Washington, iniciada em 2003, no Iraque, inicialmente


encontrou apoio da mídia e de parcela da população estadunidense. Contudo, a
euforia inicial da guerra passou e aconteceu a emergência de novos fatos que
desmentiram os argumentos apresentados pelos governos dos Estados Unidos e do
Reino Unido, para justificar a guerra preventiva contra o Iraque, em 2003. Os
argumentos eram basicamente dois: o primeiro se referia a possíveis ligações do
governo de Saddam Hussein com a rede terrorista Al Qaeda, de Osama Bin Laden.
Já o segundo, era a existência de programas de desenvolvimento e de estoques de
armas de destruição em massa (nucleares, químicas e biológicas).

Vale ressaltar que tal embate bélico ocorreu durante o governo do presidente
republicano, George Walker Bush, em 2001.

O establishment conservador governamental conduziu os Estados Unidos, entre os


meses de janeiro e setembro de 2001, portanto antes dos Atentados de 11 de

836
setembro, para uma política externa conservadora, bastante focalizada nos
interesses estadunidenses em detrimento do mundo.

Então, tal política externa unilateral, defensora árdua dos interesses estadunidenses,
foi chamada pelo Departamento de Estado de ―multilateralismo à la carte‖.
Washington se reservou o direito de analisar e agir pontualmente cada questão
internacional, de acordo com os seus interesses, mesmo que fosse necessário
infringirem tratados ou o próprio direito internacional.

Em situações internacionais bastante delicadas, como o caso do Iraque, no Oriente


Médio, Washington se recusava a agir em determinados momentos e em outros,
seguia um caminho próprio, sem levar em consideração os tradicionais aliados,
como os europeus e também organizações internacionais, como as Nações Unidas.
Tratava-se de um unilateralismo perigoso para a estabilidade internacional.

Tais ações unilaterais estadunidenses se intensificaram no cenário internacional


após os atentados de onze de setembro de 2001, em New York e Washington. No
mesmo mês, o presidente George Walker Bush, perante os congressistas do
Capitólio, reafirmou que os Estados Unidos lutariam com afinco e grande força,
contra o terrorismo internacional, sem a interferência e mediação de organismos
internacionais, como a Organização das Nações Unidas, através do estabelecimento
de uma política de combate estadunidense para eliminar tal problema.

A Doutrina Bush, cada vez mais institucionalizada e presente nas entranhas do


aparato estatal dos Estados Unidos, foi colocada em prática no sentido de preparar
as Forças Armadas Estadunidenses para a invasão ao território iraquiano.

Vale lembrar que a nova doutrina se tornou mais explícita a partir de 2002, quando
Condoleeza Rice afirmou que, diferentemente da Guerra Fria, não bastava possuir
grande quantidade de armas de destruição em massa para convencer o inimigo de
não atacar, pois as forças inimigas se apresentariam dispersas e múltiplas, isto é,
sem alvos a proteger. Então o território deveria ser redefinido para efeito de
estratégia de guerra. As idéias de Condoleeza Rice foram amplamente aceitas por
Bush, em seu discurso realizado no dia 30 de janeiro de 2002, ao afirmar na época
que os Estados Unidos detinham o direito de realizar ataques preventivos contra

837
países que estivessem desenvolvendo armas que ameaçassem a sua segurança.
Seria o caso do Iraque.

As ações dos Estados Unidos no cenário mundial sempre objetivaram intervir em


países onde os conflitos ou crises coloquem em risco os interesses estadunidenses.
Mesmo a Doutrina Powell ter sido substituída nas relações internacionais, vale
mencionar que na área militar ela ainda permanece no interior da Doutrina Bush. A
Invasão ilegal do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, e a preocupação constante
da opinião pública estadunidense com a questão das baixas são fortes indícios da
manutenção da essência da Doutrina Powell.

Também não se pode esquecer que a invasão estadunidense sobre o Iraque


ocorreu devido ao grande interesse dos Estados Unidos em garantir o acesso às
vastas reservas petrolíferas iraquianas, tão necessárias para a sua economia ávida
por recursos energéticos. Nesse sentido, os Estados Unidos aliaram o petróleo com
a questão de segurança de seus interesses no Oriente Médio. Assim, se fosse
necessário uma intervenção militar nessa área, ele o faria, como de fato fez na
Guerra do Golfo de 1991 e na Guerra do Iraque, de 2003. Pode-se inferir, portanto,
que a Doutrina Carter, mesmo tendo sido substituída por outras doutrinas, continua
presente na política externa dos Estados Unidos através da sua preocupação com
as reservas petrolíferas do Oriente Médio.

3 Considerações finais

Percebe-se, então, de acordo com o que foi discutido, quatro questões são
fundamentais na política externa dos Estados Unidos e que estiveram presentes na
Guerra do Golfo, de 1991, e na Guerra do Iraque, de 2003, por ocasião da aplicação
das Doutrinas Powell e Bush.

A primeira foi assegurar o fornecimento de petróleo para os Estados Unidos, através


das intervenções militares no Oriente Médio, mais especificamente no Iraque. Trata-
se de uma preocupação da Doutrina Carter presente em amplos conflitos.

838
A segunda foi garantir uma ingerência militar com o menor número de mortes de
soldados estadunidenses, através do uso de aviação e tecnologia, com o apoio da
imprensa interna e externa, resultado da síndrome do Vietnã. Trata-se de uma
preocupação da Doutrina Powell e da Doutrina Bush também.

A terceira se refere ao fato de que os governos dos presidentes George H. Bush


(1989-1993) e de George Walker Bush (2001-2009), preocuparam-se bastante com
o Oriente Médio, em especial o Iraque. Nesse sentido, apesar das diferenças
temporais, causais e factuais das Doutrinas Powell e Bush, ambas foram colocadas
em prática em guerras que envolveram o Iraque.

Assim, como quarta e última questão, deve-se lembrar que a Guerra do Golfo, de
1991, foi de certa forma, uma continuação com a Guerra do Iraque, em 2003. Então,
os princípios embasadores de ambas as doutrinas estiveram presentes nos
mencionados conflitos demonstrando que as duas guerras são parte de uma longa
guerra no golfo, por estarem interligados.

Referências

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by war. Oxford: Oxford University Press, 2005.

BRZEZINSKI, Zbigniew. The Grand Chessboard: american primacy and its


geostrategic imperatives. New York: Basic Books, 1997.

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840
Simpósio Temático 12

AS RELAÇÕES DA FAB COM OS EUA ENTRE 1941 E 1948

Anderson Matos Teixeira357


Adelar Heinsfeld358
Eduardo Munhoz Svartman359

1 Introdução

A eclosão da Segunda Guerra Mundial criou o ambiente necessário para a


criação de uma força aérea independente no Brasil. A criação da FAB deu-se
em meio a um tempo conturbado, onde o Brasil buscava o apoio de uma nação
mais forte para promover seu projeto de modernização, o que incluía as bases
de uma indústria aeronáutica e uma Força Aérea no estado-da-arte. O que se
viu foi a construção de uma parceria cujo resultado material foi positivo num
primeiro momento, mas deixou cicatrizes visíveis até hoje. Até 1946, a FAB
seguia o modelo de operação da USAAF, mas a partir daí, passou a construir
um modelo próprio, adaptando os ensinamentos daquela força aérea parceira a
realidade nacional, buscando um distanciamento doutrinário a partir de então.
Mas os laços firmados eram tão profundos que não podiam ser desfeitos em
pouco tempo. Na medida que o Brasil perdia importância na estrutura defensiva
do hemisfério, a FAB passava a ter dificuldades em obter material dos Estados
Unidos, fazendo com que o projeto de uma força moderna e melhor dotada em
relação aos vizinhos fosse esvaziado. Não que o laços entre a FAB e os EUA
tenham sido desfeito em algum momento, mas a perda de importância do Brasil
para os Estados Unidos fez com que a FAB busca-se outros fornecedores de
material, mas a dependência permaneceu.

357
Bolsista de doutorado em Ciência Política pela UFRGS.
358
História, UPF
359
Ciência Política, UFRGS.

841
2 Contexto das Relações

Boa parte da estrutura do Ministério da Aeronáutica, e do seu braço militar e


operacional, a Força Aérea Brasileira, é oriunda da Aviação Militar. Os norte-
americanos já prestavam assistência à aviação da Marinha, numa cooperação
técnica desde 1916, quando da compra dos Curtiss F por aquela força, para a
criação da Escola de Aviação Naval. Mas a partir de 1918 a Missão Militar Francesa
passou a atuar junto ao Exército para modernizá-lo ―frente aos novos desafios da
guerra moderna‖. Mas, em 1917, houve uma missão técnica francesa também, para
a implantação e estruturação da aviação do Exército.

Num período mais próximo ao do nosso objeto de estudos, em 1932, após a


Revolução de 1932, o Exército brasileiro comprou dos Estados Unidos 14
aeronaves de caça, iniciando assim uma quebra da influência material francesa
na aviação daquela força. A Missão Francesa que atuava na modernização do
Exército perdeu um pouco seu foco, que era a atualização do Exército brasileiro e
a consultoria sobre o melhor equipamento para ela, e passou a ser a porta de
entrada de material francês, mesmo de materiais obsoletos ou de qualidade
inferior ao de outras nações. O declínio da Missão Francesa se deu,
principalmente, pela percepção da oficialidade da aviação do Exército de que o
pensamento, no caso, a doutrina francesa, não era compatível com a realidade
brasileira e nem os materiais (aviões) refletiam o que havia de melhor em
qualidade e tecnologia. A atração e o entusiasmo que o Exército teve na década
de 1920 com a presença da Missão Francesa, no decênio seguinte foi
contrastada por uma sucessão de movimentos de oposição.

Depois desta compra, e das várias demonstrações que as empresas aeronáuticas


norte-americanas fizeram no país, o material norte-americano passou a ser visto
como moderno e referência em tecnologia pelos militares brasileiros. Tanto que,
quando o Ministério da Aeronáutica foi criado, absorvendo as aeronaves das
aviações da Marinha e do Exército, das 99 aeronaves entregues pela Aviação Naval,
52,5% eram de origem alemã, 17,2% inglesa e 30,3% norte-americana. Já a Aviação
Militar, das 331 aeronaves entregues a nova pasta, 7% eram nacionais, 0,9%

842
italianas, 0,6% alemãs, 4,8% inglesas e 86,7% dos Estados Unidos (INCAER, 1991,
v3, p. 90,119).

3 EUA e a FAB

A aproximação dos Estados Unidos com a América Latina, e mais precisamente,


com o Brasil, deu-se pela questão estratégica. Os norte-americanos almejavam
uma posição de líder global, que já vinha sendo construída desde o século XIX. A
obra de Mahan360 em consonância com o Destino Manifesto e a Doutrina Monroe,
caminham neste sentido, para se construir esta posição. Para se ter um status de
potência global, era necessário o apoio e a presença de maneira que seus meios
pudessem ter um alcance global. Durante a Primeira Guerra Mundial, os Estados
Unidos estavam se inserindo na Comunidade Internacional como uma potência
emergente, atingindo a posição de Potencia Global ao fim da Segunda Guerra
Mundial, em 1945.

Deve-se levar em conta que, o Brasil para os Estados Unidos tinha ainda outra
importância. A fonte de matéria-prima estratégica, tal como metais nobres, ferro,
bauxita, etc. A perda desta fonte, não que inexistisse concorrentes para suprir o
mercado norte-americano, mas com os acordos de favorecimento e exclusividade de
fornecimento deles do Brasil aos estadunidenses, o custo por estes materiais seria
maior, sendo mais vantajosa a manutenção das fontes destes recursos com uma
nação aliada. Assim a atuação dos Estados Unidos em meio ao reerguimento do
comércio mundial pós-crise de 1929 e seu envolvimento nos esforços de guerra,
visavam à consolidação desta política internacional.

Já o Brasil apresenta um retrato diferente, pois estava mais preocupado com a


situação regional e interna. No contexto regional, a Argentina era percebida como
uma ameaça à segurança da região sul, sempre deixando os militares alarmados
com os movimentos próximos a fronteira. Além, ainda no contexto regional, o Brasil
buscava se manter como referência ou líder regional na América do Sul, na tentativa

360
The influence of sea Power upon history, 1660-1783, nesta obra Mahan apresenta o papel do mar na projeção
internacional das potencias, afirmando que este seria o caminho para o desenvolvimento estadunidense, sendo
absorvido como uma política para aquele governo.

843
de quebrar tal atitude da Argentina. No âmbito interno, o Brasil buscava se
reestruturar da crise de 1929, pois sua economia estava construída entorno do
comércio internacional do café, e tinha sido o que puxou para o vermelho a
economia brasileira; e a luta por modernizar o país com inúmeros desafios, tal como
melhorar a educação, saneamento básico, industrialização, ligação entre as regiões
e administração pública. Por isso o contexto em que o Brasil se inseriu na conjuntura
internacional do final da década de 1930 e a barganha que fez entre os Estados
Unidos e a Alemanha visava conquistar os objetivos estratégicos brasileiros,
arrumando a base do comércio e a estrutura político-social nacional.

A parceria que o Brasil fechou com os Estados Unidos, no que tange as atribuições
do Ministério da Aeronáutica, visava adequar às estruturas, meios e capacidade
operacional. Para os Estados Unidos, este vínculo era temporário, visando a
consolidação da sua atuação global. Logo era necessário, para os Estados Unidos,
para a segurança do continente e a presença na Europa, que o Brasil não fizesse
oposição e auxiliasse na conquista dos seus interesses. Como parte da sua busca
pela posição global, num primeiro momento, os Estados Unidos buscaram a
hegemonia das rotas aéreas comerciais brasileiras, que, juntamente com o governo
brasileiro, por meio de incentivos, como a construção de aeroportos e fornecimento
facilitado de aeronaves, buscaram ocupar o espaço antes ocupado pela Alemanha.

O mais importe sobre a relação do Brasil com os Estados Unidos, sobre questões
aeronáuticas, é a mudança no paradigma da aviação. No caso da FAB, observando
as aeronaves e seus sistemas de navegação, este alinhamento do Brasil com os
EUA resultou na mudança, no jargão da aviação, do voo ―arco-e-flecha‖361, para uma
navegação aérea moderna, com auxílios em terra e a introdução da navegação por
instrumentos.

Existiam no Brasil, antes de 1940, pouquíssimas estações de rádio para


comunicação com as aeronaves. Com a abertura de novas rotas aéreas pelo interior
do país, antes só operadas pelos militares do Correio Aéreo Militar, havia a

361
Arco e flecha é o voo onde a navegação é estimada e utiliza principalmente dos recursos visuais presentes no
solo, como estradas, rios e outros marcos. Uma vez que se tem uma referencia no solo visualizada pela aeronave,
o piloto, pelo tempo de voo, estima aonde é sua localização.

844
necessidade da instalação de auxílios para maior segurança na operação daquelas
rotas pelas empresas aéreas.

A Pan-American foi pioneira em muitos aperfeiçoamentos da aviação no


Brasil, e de outras áreas, estabelecendo as primeiras estações
meteorológicas e sistemas de comunicação terra-ar para a segurança dos
voos. Seus engenheiros lançaram muitos dos campos de pouso do País
(MCCANN, 1995, p.176).

Deve ser compreendido que está política norte-americana de afastamento da


influencia alemã na aviação comercial, não foi algo dada somente pela Pan-
American, mas sim, uma política do governo estadunidense para inserção não só do
Brasil, mas de toda a América Latina sob a sua influencia. A Pan-American foi um
instrumento para a concretização de tal política. A entrada dos Estados Unidos na
aviação comercial brasileira foi de suma importância para o país, não só por
modernizá-la, mas por colocá-la em sintonia com as normas para a operação das
rotas internacionais de aviação, fazendo com que, logo após a guerra, o Brasil
viesse a fazer parcerias e acordos aeronáuticos com outros países, sendo primeiro
os Estados Unidos em 1946 (BRASIL, 1946, p.1079) e depois, em 1948, com
Dinamarca, Suécia e Holanda (BRASIL, 1948a, p.713/847/1100).

Como parte dos trabalhos da CERNAI (Comissão de Estudos Relativos à


Navegação Aérea Internacional), a partir de 1946, o Brasil passou a fazer parte dos
países membros da Convenção de Chicago (BRASIL, 1946, p.1111), tratado este
que ratificava as normas internacionais para o voo comercial e civil. Dentre os
estudos desenvolvidos pela CERNAI, o Ministério da Aeronáutica passou a
incentivar que empresas aéreas nacionais operassem linhas aéreas ligando o Brasil
aos Estados Unidos (BRASIL, 1946, p.1259).

É interessante notar que dentre os esforços de cooperação da FAB, com os Estados


Unidos, a Panair362 tinha uma dificuldade para compor a tripulação de suas
aeronaves, sendo muitas vezes solicitava o empréstimo de pilotos e atendido pela
arma aérea brasileira (BRASIL, 1943, p.117/ 1945, p.242). Este pessoal militar
emprestado a Panair se fazia, pois um decreto de Getúlio Vargas, anterior a guerra,

362
Panair do Brasil, subsidiaria da Pan-American.

845
obrigava que as tripulações em voos nacionais fossem somente feitas por cidadãos
brasileiros natos. Na verdade, todos os cursos de piloto, obrigatórios para a
obtenção dos breves, só poderia ser feito por brasileiros natos.

4 A Segunda Guerra Mundial e a Afirmação das Relações

O envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial ocorreu antes do alinhamento


definitivo com os Estados Unidos, e também anterior a declaração de guerra ao
Eixo, dada em 22 de agosto de 1942. Durante as negociações pelo alinhamento,
entre final da década de 1930 e inicio da década de 1940, durante o desenrolar das
ações na Europa, em várias situações o governo brasileiro fez vistas grossas as
ações tanto da Alemanha quanto dos Estados Unidos no uso de seu espaço aéreo.

As companhias aéreas alemãs, quando ainda operavam sem restrições nas linhas
brasileiras, em muitos casos, os pilotos das aeronaves que faziam as rotas que
ligavam o Brasil a Europa, eram oficiais da Lufthwaffe, em esquema de rodízio, com
o objetivo de se adaptarem e conhecerem os trajetos no continente americano. Da
mesma forma, a LATI aproveitava seus voos pra contrabandear materiais
estratégicos leves, como diamantes industriais, além de ser o meio de transporte
entre a América do Sul e a Europa para oficiais e autoridades do Eixo (MCCANN,
1995, p.177), até ser apropriada pelo governo brasileiro e consequentemente,
encerrada sua rota.

No caso dos estadunidenses, ao inserirem o Brasil como aliado de suas políticas, o


fizeram de modo direto e premeditado. Assim que a ADP 363 passou a entregar os
campos de pouso e algumas instalações, o país passou a ser a rota de passagem
das aeronaves fornecidas aos aliados. Mas a princípio, isto gerou um incidente. O
sobrevoo de aeronaves estadunidenses era permitido, desde que tivessem matrícula
e tripulação dos Estados Unidos. O fato foi que, nesta ocasião, em maio de 1941, as
aeronaves que estavam sendo transladadas tiveram seus registros transferidos para
a Inglaterra e a bordo, estavam navegadores ingleses, para se familiarizarem com a
rota, forçando os brasileiros a permitir o sobrevoo de seu território por aeronaves
363
ADP Programa de Desenvolvimento de Aeroportos, numa parceria entre a Pan-American Airways e a
USAAF.

846
beligerantes. O translado de aeronaves era feito por outra subsidiária da Pan-
American, uma empresa ―fria‖, a Atlantic Airways (MCCANN, 1995, p.191).

5 As Formas de Relação entre FAB e EUA

O pensamento sobre o emprego de poder aéreo passa não só pela aplicação dele
em sua atividade final, tal como o bombardeio ou a interdição do espaço aéreo em
si, mas pela estrutura que sustenta e garante a capacidade de realização do seu
objetivo proposto. O profissional militar, sendo ele de terra, mar ou ar, está
condicionado à natureza e as condições que o ambiente em que opera lhe impõe
(SANTOS, 1991, p.24).

Tendo sido criado e estruturado o novo ministério, em meio à guerra, fez com que
sua organização operacional demanda-se revisão devido à nova forma de guerra
aérea. Os resquícios da Missão Francesa passaram a ser descartados a favor de
uma nova doutrina de emprego de poder aéreo. Durante a Segunda Guerra Mundial,
a FAB, apoiando os esforços dos aliados, abriu as portas para a entrada do modus
operandi norte-americano, seguindo o modelo do exército daquele país. Esta
entrada se deu em toda estrutura, como o treinamento de pessoal, materiais e bases
e em parte no pensamento.

Os Estados Unidos, observando ainda durante a década de 1930 as mudanças no


cenário estratégico internacional, já observavam o papel da aviação na nova forma
de guerra. Durante os anos 1930 os norte-americanos, principalmente o exército,
reformularam completamente sua aviação, de modo que ela apoiasse os interesses
daquele país no cenário internacional global. A partir de 1937 começaram a serem
desenvolvidas séries de modelos de aeronaves que, durante a Segunda Guerra
Mundial, aperfeiçoadas, passaram a ser o pilar da estratégia aérea dos aliados364.

Com o alinhamento do governo brasileiro e norte-americano, foram montadas


estruturas para que a comunicação e as trocas provenientes da política da
barganha entre as duas nações pudesse ser efetivada. Com a comissão de

364
Observando os principais modelos empregados pelos EUA e o ano em que começaram a ser concebidos e
desenvolvidos.

847
compras de materiais, depois denominada Comissão Aeronáutica Brasileira em
Washington, organizada em setembro de 1941, foram enviados delegados
representantes para a negociação junto com as empresas aeronáuticas
estadunidenses o fornecimento de material aeronautico ao Brasil (BRASIL, 1945,
p.607). A principal forma de troca de solicitações entre os Estados Unidos e o
Brasil, no que diz respeito a demandas militares e de defesa, foi a JBUSDC –
Comissão Conjunta de Defesa Brasil-Estados Unidos, criada em maio de 1942
(MOURA, 1991, p.27).

Estas organizações foram as bases da relação entre o Ministério da Aeronáutica


e o governo norte-americano. Juntamente com a lei de Lend&Lease, que fornecia
a preços irrisórios os materiais solicitados pela FAB aos Estados Unidos, cuja
JBUSDC avaliava as necessidades e sugeria as opções dentro da estratégia
desenvolvida entre os dois países para a proteção do hemisfério, a presença
norte-americana dentro da FAB foi sendo construída. A vinda, em 1943 de
Roosevelt a Natal, para se encontrar com Vargas, selou definitivamente o vínculo
das estruturas militares brasileiras com o governo estadunidense. Foi n este
encontro que a FEB foi criada e apoiada pelos Estados Unidos e
consequentemente o envio da FAB a guerra também.

Um fato curioso é que Vargas, ao conhecer o comandante da Força Naval do


Atlântico Sul, almirante Ingram, logo se tornaram amigos. A relaçã o de
confiança entre os dois foi tanta que Vargas entregou a Ingram o planejamento
da defesa do litoral brasileiro, algo que o exército norte-americano queria há
tempos. Ingram passou a ser um porta-voz do Brasil nos Estados Unidos e o
melhor representante dentro da esfera de poder mais próxima de Vargas que os
estadunidenses tiveram. Em uma carta enviada a Salgado Filho, em 1943,
Ingram agradece ao então ministro pela ajuda da FAB nos esforços de guerra e
defesa continental e afirma que até aquele momento, está satisfeito com a
organização das Forças Aéreas Unidas na área nordestina, de modo que estão
a contento, ressaltando o ponto crítico da cooperação entre as forças do Brasil e
Estados Unidos, os materiais de defesa, onde ele pretende ir pessoalmente a
Washington negociar mais (BRASIL, 1943, p.625).

848
Uma vez que os acordos políticos foram acertados, vinculando o Brasil na órbita de
influencia dos Estados Unidos, o governo brasileiro, buscou-se adequar a forma com
que a economia norte-americana operava. Para isso, buscou, ao conhecer o modelo
de exportação dos estadunidenses, preparar um regulamento para que o
recebimento dos diversos materiais solicitados a eles fosse atendido de forma
correta, observando o modelo de notas trimestrais, para que os pedidos chegassem
no devido tempo (BRASIL, 1942, p.816).

A forma como se deu a relação entre a FAB e os Estados Unidos, deu-se de


maneira ampla, por varios meios, tal como o material, ao auxiliar o ministério da
Aeronautica na construção de bases e no fornecimento de material aeronáutico
propriamente dito. Alem ainda podem ser destacados, os aspectos de formação de
pessoal e doutrinários.

6 Bases

A construção de infraestrutura aeroportuária demanda muitos anos e é algo muito


caro. São necessárias grandes áreas desapropriadas para a implantação de tais
benfeitorias, mais espaços para expansão e inabitáveis para operações seguras.
São infraestruturas duradouras, com vida útil além dos 50 anos, mas que demandam
manutenção constante.

Das atuais 17 bases aéreas (sem contar os centros de pesquisa, escolas e outras
instalações que não são operacionais ou os destacamentos), cerca de 29,5% delas
tiveram intervenção dos Estados Unidos via ADP e mais outras foram utilizadas
como base de operações por norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial.

A ADP foi a contribuição mais importante da Pan-American à defesa


continental a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Sob um
contrato secreto com o Departamento de Estado, a Pan-American construiu
uma cadeia de cerca de cinquenta e cinco campos de pouso e bases, que
se desenvolveram a partir dos EUA como braços de uma torques – um
através do Panamá, Colômbia e Venezuela e o outro através das Índias
Ocidentais e Guianas, convergindo sobre Natal no Nordeste brasileiro, a
área há oito horas por ar de Dacar, que havia muito tempo vinha
causando intranquilidade em Washington. Natal tornou-se o ―trampolim

849
para a vitória‖ que permitiu um permanente fluxo de homens, aeronaves
e equipamentos para a frente de batalha (MCCANN, 1995, p.181).

Uma das cláusulas do contrato da ADP, lembrando que ele era desenvolvido pela
Pan-American Airways e que esta possuía uma subsidiária no Brasil, visava a
operação por aquela empresa em um determinado tempo, para recuperar o
investimento feito. Por mais que eles tivessem construído e melhorado vários
aeroportos pelo país, esta não foi uma ação de caridade, nem só pelo contexto da
guerra, mas garantia a continuidade das operações da Pan-American no Brasil por
mais algumas décadas.

A presença da ADP deixou muitas marcas no país, podendo ser observada até hoje
na arquitetura similar das bases aéreas de Salvador, Natal, Fortaleza, Belém e parte
de Recife. Um fato a ser observado é que em Parnamirim – Natal – a pista principal
tinha capacidade para operar bombardeiros pesados. Logo, teve que ser construída
com tal intenção, já que o peso deste tipo de aeronave é superior ao das comerciais
operadas na época.

A 2ª ZA, onde estão situadas as bases aéreas de Salvador, Recife, Natal e


Fortaleza, foi, durante a guerra e período sequente, a região militar que mais
recebeu recursos que qualquer outra ZA, tendo como exemplo, a receita de agosto
de 1942, cuja região militar nordestina recebeu um total de 25,22% da verba daquele
mês, sendo superior inclusive a da Diretoria de Obras, 23,55% (BRASIL, 1942,
p.1122). Isto vem a corroborar o papel que tanto a diretoria de obras, quanto a
região nordestina tiveram nos esforços de guerra, sendo a 2ªZA a que mais
movimentou pessoal durante o período da guerra. No pós-guerra, veio a ter um
decréscimo de pessoal, mobilizado para outras regiões.

A guerra impôs, principalmente á 2ª ZA, uma reformulação na questão da


estruturação de organização e do espaço físico utilizado por ela. É claro que o
Ministério da Aeronáutica não estava preparado para a guerra, visto pelo
volume de desapropriações de terras no entorno das bases aéreas ou da
requisição de instalações. No caso da 2ª ZA, em 1941, na implantação dela, foi
requisitada as instalações da AirFrance, em Recife, para abrigar o coma ndo da

850
ZA, dentre outras instalações de apoio, como hangar e depósitos de
combustível (BRASIL, 1941, p.857).

Outras empresas norte-americanas se beneficiaram das relações entre FAB-EUA. A


Standard Oil Company of Brazil, subsidiária da Standard Oil Co. passou a ser a
responsável pela construção, em 1943, dos depósitos de combustível e lubrificantes
na Base Aérea de Recife (BRASIL, 1943, p.71), logo sendo estendida para outros
aeroportos e bases da região. Há que se notar que Recife foi o primeiro local de
instalação de depósitos de combustível de grande volume, na mesma localidade
onde estava o QG da 2ªZA e do comando e base principal da frota da marinha norte-
americana.

Por vários anos a Panair foi uma das empresas aéreas mais importantes do país,
sendo ela uma das fundadoras da ponte-aérea Rio-São Paulo. Ainda, a instalação
de auxílios de navegação, estações de rádio e meteorológicas haviam sido
montadas e operadas pelo pessoal da Pan-American e Panair. Até hoje, parte da
infraestrutura construída por estas empresas ainda é utilizada, principalmente as
construídas nas décadas de 1950 e 1960.

7 Equipagens

Até então o Brasil não possuía capacidade de desenvolvimento e produção de


aeronaves em larga escala. Apenas alguns modelos de produção nacional haviam
sido adquiridos pelas forças armadas antes de 1941. Com o alinhamento com os
Estados Unidos, o Ministério da Aeronáutica comprou alguns modelos de aeronaves
com a observação de que após um número de aeronaves fosse entregue, por meio
de translado dos Estados Unidos, pudessem ser produzidas em instalações no país,
tal como os T-6 e os PT-19. Existiam no país pequenas indústrias com a capacidade
de produção, de modo artesanal, aeronaves e parte delas. Com os contratos, a
maioria passou a produzir de modo standard as partes de aeronaves e alguns
protótipos de modelos.

Como as aeronaves herdadas das antigas aviações não atendiam aos novos
requisitos, quase toda a frota da FAB teve que ser adquirida, para atender as

851
demandas de defesa nacional e do continente, e elas foram fornecidas pelos norte-
americanos. O avião de tempos em tempos deve passar por revisão, mas os
motores, partes móveis, hidráulicas e elétricas, além dos instrumentos de bordo,
devem ser substituídos com uma frequência maior. Tanto que, em 1941 a Bendix
Co., empresa de fornecimento de materiais aeronáuticos e sobressalentes, por meio
da representação da firma Luiz F. Braga e Filhos, solicita a instalação de uma
unidade para estoque de peças aqui no Brasil, de modo a atender aos pedidos da
FAB (BRASIL, 1941, p.694).

Para manter um esquadrão com capacidade de pronto emprego e operacional,


deve-se ter em estoque uma grande quantidade de sobressalentes, que na medida
em que vão sendo consumidos, necessitam ser adquiridos dos fabricantes. E neste
momento, os fabricantes, junto com o governo norte-americano, decidem se
fornecem ou não tal tipo de sobressalente e a seu preço, causando vulnerabilidade
na capacidade operacional das unidades.

Com a lei de Lend & Lease, que facilitava a aquisição de materiais e equipamentos
bélicos, a FAB conseguiu modernizar sua frota. Há que se observar que esta
modernização não foi só percebida pelos brasileiros, mas de uma maneira geral,
colocou a FAB em contato com o que havia de mais moderno na época.

Uma das provas desta transferência direta dos Estados Unidos para a FAB é a
transferência de 4 canhões antiaéreos, que defendiam Nova York, diretamente para
o Brasil (CONN; FAIRCHILD, 2000, p.381). Isso vem a corroborar com a tese de que
não foi fornecida sucata para a FAB. A principal questão da transferência de
materiais e equipamentos para o Brasil era a capacidade industrial dos Estados
Unidos em suprir as demandas. Com as tropas norte-americanas envolvidas em
ações por toda a Europa e parte do Pacifico, uma grande quantidade de suprimentos
e materiais era demandada por suas tropas, acarretando atrasos nos repasses para
os aliados e até mesmo o não fornecimento.

Até para as próprias tropas eram negados alguns equipamentos. Num oficio
expediente da representação norte-americana no Rio de Janeiro, de 17 de julho de
1942, é solicitado um avião para apoiar as atividades do departamento de

852
inteligência365. A resposta vem em setembro daquele mesmo ano, que a aeronave
(um Lockheed Lordestar) estava sendo emprega em apoio às atividades do Exército
norte-americano em outra região366.

A própria unidade em que o 1º GAvCa foi subordinada é testemunha disso. A


unidade de caça da FAB foi criada para ser enviada a Itália, junto com o 350th
Fighter Group (350FG) da Força Aérea do Exercito dos Estados Unidos. O 350FG
era formado por três esquadrões norte-americanos, o 345th, 346th e o 347th. Ao
chegar a Itália, foi incorporado junto ao 350FG o 1º GAvCa, já se diferenciando do
padrão de organização da USAAF. Mas quando foi criado o 350FG e
consequentemente o 345th, 346th e o 347th, pelo general Carl Spaats, não havia
aeronaves para compor as unidades, sendo agregados a principio, os já obsoletos
P-39 de outros esquadrões que estavam iniciando a substituição por aeronaves mais
modernas; não havia instalações para abrigar os esquadrões; e não havia pilotos,
sendo 50% de reservistas em treinamento na Inglaterra e também não havia
mecânicos, sendo emprestados de outras unidades, uma vez que as aeronaves
estavam desmontadas e não havia pessoal para monta-las (BUYERS, 2006, p.15).
Este era um retrato de que a capacidade de fornecimento de material e pessoal
também era critica nos Estados Unidos.

Não que, a isso, não tenha somado o interesse do governo norte-americano em nos
fornecer itens de segunda mão ou mesmo com vida útil reduzida, mas que a
incapacidade de suprir as múltiplas demandas é algo que precisa ser observado em
primeiro plano, observando o desenrolar da guerra.

Com o fim da guerra surgiu uma nova era da aviação, a do jato. Ainda durante os
combates da Segunda Guerra Mundial, alemães, britânicos e japoneses testara
máquinas impulsionadas a motor a jato, elevando exponencialmente a velocidade
das aeronaves. Logo após a guerra os Estados Unidos e Rússia também passaram

365
Carta-oficio enviada pelo então Major de Infantaria James R. Hughes ao Chefe do Serviço de Inteligencia, do
Departamento de Guerra – Washington-DC. Escrita em 8 de julho de 1942 e enviada em 17 de julho de 1942.
NARA, nº 745073, desclassificado.
366
Carta-oficio respondendo a solicitação de 17 de julho de 1942. Enviada pelo Coronel Claude M. Adams,
representante militar no Rio de Janeiro, escrita e enviada em 1 de setembro de 1942. NARA, nº 745073,
desclassificado.

853
a desenvolver tal tipo de motor. Mas junto com o motor, havia o refinamento das
técnicas de construção e aerodinâmica.

Ao final da guerra, em maio de 1945 e até meados de 1946, o Brasil pode se


beneficiar da lei de Lend & Lease e se equipar com os materiais de sobra da guerra,
já que havia muito material e sobressalentes a preços irrisórios. Mas, com a
mudança de paradigma da defesa com a introdução das turbinas e foguetes, o Brasil
levou um tempo a sentir a necessidade deles, e quando solicitada a ajuda ao
parceiro norte-americano, lhe foi negada a compra. Negada no sentido de que os
Estados Unidos estavam em guerra contra a Coréia e não tinham como tirar das
linhas de combate as aeronaves e os custos eram muito superiores à capacidade de
pagamento brasileira.

Estas aquisições diretamente dos Estados Unidos, e somente deles, pela Lei de
Lend & Lease, foi num ritmo e volume tão grandes que o Ministério da Aeronáutica
elaborou uma portaria, a 197, de julho de 1945, a fim de padronizar os pedidos de
materiais daquele país (BRASIL, 1945, p.550). Sem contar que, ainda sobre
materiais, os Estados Unidos doaram a FAB os uniformes e vestimentas de frio para
o pessoal que estava treinando lá e os que estavam envolvidos nas operações de
guerra na Itália (BRASIL, 1945, p.98). Além, tornou-se padrão, como arma individual,
as pistolas Colt e revólveres Smith & Weasson, ambos de calibre .45‖ e de
procedência norte-americana.

O que ocorreu mesmo foi a dependência exclusiva de material norte-americano,


fazendo com que o Brasil ficasse amarrado a vontade deles em nos fornecer
equipamentos. Num caso eventual de atrito com eles, de imediato seria cortada esta
fonte, deixando-nos completamente vulneráveis. A mudança desta dependência
começou a ser construída quando, em 1946, houve a criação de um departamento
de pesquisa aeronáutica, o embrião do que é hoje o DCTA/ITA (BRASIL, 1946,
p.158). Para isso, vieram dos Estados Unidos professores para compor o quadro
docente do centro técnico (BRASIL, 1946, p.1445).

854
O último ponto sobre a questão material é a dos recursos financeiros e capacidade
de pagamento. A FAB, quando escolheu o P-47 foi, não só pela capacidade de
sobrevivência, mas também pelo baixo custo operacional, de aquisição e mecânica
simples. A falta de recursos financeiros nos impedia de comprar itens com maior
capacidade tal como o P-51. O mesmo ocorreu com o Gloster Meteor que possuía a
melhor relação custo-benefício e menor valor operacional e de aquisição frente aos
concorrentes norte-americanos.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e consequentemente o Lend & Lease, a FAB
ficou sem uma canal de obtenção de material. Com a mudança dos interesses
norte-americanos, visando logo após a guerra, a contenção da ameaça soviética, os
Estados Unidos criaram, entre 1946 e 1955, o MAP (Military Assistence Program).
Por este canal A FAB buscou se adequar as novas tecnologias que estavam
despontando no pós-guerra, no caso, o motor a jato e os primeiro misseis e
foguetes. As dificuldades impostas pelo congresso norte-americano, já que a região
latino-americana já não possuía prioridade em relação a segurança, fez com que a
FAB buscasse outras opções, vindo a comprar o Gloster Meteor, mas, já
extrapolando o espaço temporal deste estudo, o MAP viria a ser o mecanismo de
compra de material estadunidense, como o caça F-5, o cargueiro C-46 e o
helicóptero Bell47.

8 Pessoal

Outro ponto que deve ser observado é a questão do treinamento de pessoal, oficiais,
subalternos, tripulantes e técnicos. Os pilotos e tripulantes (nem todos eram oficiais,
havia sargentos e cabos pilotos) já haviam se brevetado antes da criação do
Ministério da Aeronáutica, mas com a grande demanda de pilotos, e também a
qualificação para o voo nas novas e modernas aeronaves, a grande maioria dos
pilotos teve que ir aos EUA, para terem contato com uma aviação que para a época
era referência.

Os pilotos anteriores ao ministério foram aos EUA fazer adaptação às novas


técnicas de voo e táticas modernas, grupo este onde parte dele foi enviada a Itália.

855
Por exemplo, a formação dos integrantes do 1ºGAvCa que foi a Itália, realizou-se em
Aguadulce Air Field – Panamá, e na Army Air Force School of Applied Tactics – EUA
(BRASIL, 1947, p.145). Já os futuros pilotos, nesta situação, somente oficiais
reservistas, fizeram toda a escola, desde o aprendizado de voo e adaptação, nos
EUA e conforme a guerra evoluía, foi sendo transferida esta instrução para o Brasil.
Em 1943, a FAB e a USNAVY criaram a USBATU (United States Brazilian Training
Unit) para formar o pessoal que fora designado para atuar na defesa da costa
nordestina (INCAER, 1991, p.479), principalmente os que iriam operar a aeronave
PV-1. Mas como a demanda de pilotos era muito superior à formada, os reservistas
oriundos dos também recém-criados CPORAer, assim que eram aprovados nos
cursos, já eram incorporados à ativa.

Dos técnicos (mecânicos e especialidades de apoio às atividades aéreas) alguns


eram oriundos das escolas técnicas da aviação da marinha e do exército. Mas,
também, pela nova necessidade e demanda de pessoal, uma vez que há a
necessidade de uma quantidade de pessoal de apoio para cada aeronave, e a
FAB havia incorporado uma quantidade muito elevada de novas aeronaves e
materiais em seu acervo, logo deveria dispor de pessoal que atendesse a todas
estas novas máquinas.

Salgado Filho, em viagem aos EUA, conheceu os métodos de treinamento privado das
escolas de formação de pessoal técnico da aviação do exército norte-americano,
contatando o reitor de uma das escolas, que logo em seguida, assinaram um contrato,
vindo a se instalar em São Paulo, como Escola Técnica de Aviação. Esta instituição foi,
com a fusão da antiga escola do Galeão, a base para o que hoje é a Escola de
Especialistas da Aeronáutica, em Guaratinguetá-SP. Até os moldes de como era o
treinamento no período da guerra são similares aos de hoje.

Com o fim da guerra, o fluxo de pessoal enviado aos EUA a fim de estudo foi sendo
reduzido. O envio era de tal forma que a FAB criou regulamentos de envio de
bagagem de pessoal aos EUA. Em 1947 a Escola Técnica de Aviação foi desfeita,
dando prosseguimento à formação de técnicos exclusivamente pela Escola de
Especialistas da Aeronáutica e por um quadro de instrutores totalmente brasileiro.

856
A questão financeira também influenciou neste ponto. Da mesma forma que ao
abordar a relação material, na de pessoal, as poucas escolas de formação de
pessoal, tanto de subalternos técnicos, quanto de oficiais nas diversas modalidades,
foi afetada pela quantidade de centros de formação e a duração dos cursos
(subalternos – 2 anos; oficiais – 4 anos mais especialização). Enquanto nos EUA a
formação era feita em diversas escolas, cada uma com uma especialidade e
finalidade e seguiam uma padronização, no Brasil era concentrado em poucas
(técnicas-3 e de oficiais-1) e seguiam diferentes métodos de ensino.

Como a demanda por pessoal era muito grande, já que as aeronaves operadas
eram as dezenas e a manutenção de cada uma demandava vários especialistas, a
capacidade em operar tais aeronaves era afetada. O ritmo de manutenção era
crescente, fazendo com que as aeronaves disponíveis para as operações
diminuíssem. Tanto que, durante as operações do 1º GAvCa na Itália, não houve
recompletamento de pessoal, nem dos mortos ou feridos, nem para troca de pessoal
para descanso dos que estavam lá. Esta é outra questão pela qual não se podiam
operar equipamentos de mecânica complexa, sendo preferíveis equipamentos
simples, mas com relação custo-benefício grande.

Da mesma forma haviam graduados pilotos. Isto é um herança das aviação da


Marinha e do Exército que já naquelas forças era permitido. No caso da FAB, os
graduados foram absorvidos das aviações das outras forças, sendo empregados
como pilotos em voos com mais de um tripulante, tal como bombardeiros ou de
transporte, seguindo a logica de que o oficial que acompanhava o graduado como
piloto era o comandante da aeronave e lhe ditava as ordens. Era a replicagem do
pensamento oficial comanda, graduado executa. Este arranjo foi abolido em 1948,
com a publicação do Aviso 33-G2 de 28 abril de 1948, a proibição de condução de
aeronaves por pessoal subalterno (BRASIL, 1948a, p.313).

857
Dentro do Ministério havia pessoal norte-americano, dando suporte à estruturação
da nova pasta. Ainda em 1944, o EMAer publicou uma portaria a fim de regularizar
tal presença em sua estrutura367.

9 Pensamento

Quando foi criado o Ministério da Aeronáutica o que se buscou foi romper com o
antigo pensamento e modus operandi que a Missão Francesa nos impôs. O maior
problema é que esta ruptura de paradigma veio em meio a uma crise internacional, a
Segunda Guerra Mundial. Com o alinhamento junto aos norte-americanos, a
introdução do modelo de emprego e pensamento deles foi inevitável. Mas já
começou a se pensar num modelo de pensamento sobre Poder Aéreo próprio, de
modo que melhor atendesse aos interesses nacionais.

A partir da segunda metade da década de 1930, os Estados Unidos reestruturaram


suas defesas focando principalmente na nova forma de emprego da aviação. Para
isso renovou sua frota e buscou elevar sua capacidade e quantidade de meios.
Conn e Fairchild (2000, p. 25) afirmam que o próprio presidente Roosevelt, ao se dar
conta que o poderio aéreo nazista era de maior grandeza que o norte-americano,
determinou um levantamento da capacidade da cadeia de indústrias aeronáuticas e,
em 1938, promulgou uma política para a produção de dez mil aeronaves de combate
e a capacidade para produzir mais dez mil por ano, uma vez que a defesa
estadunidense ―era mais fraca em aviões‖.

De todas as forças apoiadas pelos pacotes norte-americanos de defesa continental,


o da Força Aérea foi a que recebeu maiores incentivos e ajudas. Observando a
capacidade que as aeronaves possuíam naquela época, era possível, por exemplo,
e o que os norte-americanos temiam, um ataque alemão vindo de Dacar, na África
ocidental, atingindo o nordeste brasileiro e logo em seguida, após a tomada de uma
parte da região, atacar o canal do Panamá e a região do Caribe e Golfo do México.

367
Estado-Maior da Aeronautica. Boletim Reservado Nº4. Permanencia de Militares Extrangeiros na Força
Aérea Brasileira – Transcrição De Aviso. Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1944 (desclassificado pela SPADS-
EMAER em 20-04-2012).

858
Por isso a responsabilidade pela proteção marítima e defesa do litoral recaiu mais
sobre a FAB. Com a presença de Ingram gerenciando a estruturação da defesa
brasileira, coube as Forças Armadas do Brasil seguirem o modelo norte-americano.
Se observarmos nosso enquadramento em relação à guerra, podemos ter dois tipos
de atuação, uma estratégica e outra tática. Motta (2001, p.18) afirma que durante os
anos 1940, a FAB foi intrinsicamente tática. Isto se dá pela forma com que foram
empregadas as forças, subordinada aos norte-americanos em um teatro de
operações de menor escopo.

Enquanto a Europa em si era um teatro de operações, sendo pensado pelos


aliados de uma forma única, a nível estratégico, ao fragmentar em varias
frentes, tal como a Leste, Itália, França, Países Baixos, cada um passou a ser
um nível tático. Não que ações estratégicas não pudessem ser desenvolvidas
nestas frentes, mas estas ações diziam respeito à estabilização da frente. Isso
reflete na seguinte consideração: a FAB podia ter capacidade aeroestratégica,
mas condicionada a um cenário tático, dentro da estratégia global, logo sendo
uma força aerotática. O próprio modelo de aeronaves que a FAB optou em
utilizar não possuía a capacidade estratégica.

Da mesma forma quando falamos na defesa do litoral e da proteção aos comboios


no Atlântico, isto pode também ser considerado tático, pois por mais que fosse
imprescindível tal ação na consolidação dos objetivos da estratégia global da guerra,
a FAB também atuou num cenário diminuto da guerra. Sem tal ação, os alemães
teriam uma liberdade muito grande, e conseguiriam impedir o fluxo de suprimentos,
material e tropas para os aliados. Isto também pode ser observado nos modelos de
aeronaves empregadas pela FAB.

Após a guerra, a FAB passou a construir o seu conhecimento e pensamento, mesmo


que baseado nos métodos e programas norte-americanos (MOTTA, 2001, p.19). Em
1946 foi criado o curso de Estado-Maior provisoriamente na ECEME, composto por
oficiais das três forças armadas, além de civis contratados (BRASIL, 1946, p.274). O
curso era dividido em dois períodos, o fundamental e superior, com nove meses de
duração cada. Os oficiais formados em Estado-Maior no Fort Leavenworth – EUA,
eram dispensados do período fundamental, ingressando diretamente no superior

859
(BRASIL, 1946, p.1399). A ECEMAR só seria criada em dezembro de 1947, mas
regulamentada em abril de 1948 (BRASIL, 1948a, p.248).

O Estado-Maior da Aeronáutica foi realmente criado e instituído pelo decreto 22.429,


de 11 de janeiro de 1947, onde foi regulamentada sua estrutura e funcionamento.
Antes, havia um Estado-Maior, mas ele era composto tanto por brasileiros, quanto
por estadunidenses, de modo que o intercâmbio visava à preparação do pessoal
brasileiro aos métodos de planejamento (BRASIL, 1947, p.7). Neste mesmo sentido,
o decreto 9.520, de 25 de julho de 1946, criou o Estado-Maior Geral, predecessor do
EMFA (criado em 1948), subordinado diretamente ao presidente da república, para
assessoramento das decisões sobre organização das defesas nacionais (BRASIL,
1946, p.716).

Outro passo importante foi à criação do Curso de Táticas Aéreas, em setembro


de 1947 (BRASIL, 1947, p.686), estabelecido no 1º Grupo Misto de Instrução da
Escola Técnica, na Base Aérea de Cumbica – São Paulo. Este curso passou a
desenvolver as novas formas de emprego, que junto com o EMAer, passaram a
desenvolver o pensamento próprio do Ministério da Aeronáutica. A criação da
ESG em 1948 veio a contribuir ainda mais para a origem de um pensamento
próprio da FAB. Neste mesmo ano, o EMAer publicou sua primeira doutrina. Na
verdade ela era um esboço, uma vez que o próprio regulamento do EMAer já
apontava algumas diretrizes operacionais. Neste documento, o que se
caracteriza é a forma com que a FAB irá operar em apoio as atividades das
demais forças (BRASIL, 1948b, p.5/7).

Enquanto o Poder Aéreo era somente visto como emprego militar em muitos países,
tal como Mitchell pregava, o pessoal que antes da guerra voava nas linhas do CAN,
passaram a desenvolver a ideia de um poder aéreo focado para a defesa, mas
também para a integração nacional. Parte das aeronaves que foram utilizadas na
proteção do litoral, que possuíam grande autonomia de voo, foram adaptadas para
operarem na região amazônica após a guerra. Logo a FAB passou a desenvolver
um poder aéreo não convencional, ficando as unidades de combate na defesa da
região sul, sudeste e nordeste e as unidades de ―assistência‖ nas regiões centro-
oeste e norte. Está ligação foi de tal importância que o CAN não ligava somente o

860
país, mas também o continente, com voos para, além dos Estados Unidos, Bolívia,
Guianas e Paraguai (BRASIL, 1946, p.1200).

Por mais que hoje, o CAN seja uma atividade secundaria na doutrina da FAB, na
década de 1940, foi uma artífice de integração, sendo observado em alguns
momentos uma atenção maior a está função do que a reestruturação da força de
defesa, com a manutenção de caças já antiquados a tal função, cuja modernização
só viria a ser feita em meados da década de 1950.

10 Considerações Finais

A relação entre a FAB e os Estados Unidos, entre 1941, anos da criação do Ministério
da Aeronáutica e 1948, ano da publicação do primeiro esboço de doutrina daquela força
se deu de diversas maneiras. Relação, no sentido de que a FAB teve contato com um
considerado volume de informações, saberes e modus operandi norte-americanos,
absorvendo, incorporando ou assimilando de diversas formas.

É possível observar que os Estados Unidos levaram em consideração a geopolítica


como instrumento para a conquista da hegemonia mundial e regional. As Doutrinas
Monroe e Roosevelt, juntamente com os princípios de Mahan sobre o domínio dos
mares, Haushofer com as pan-regiões, e mais próximo do período estudado, William
Mitchell com o poder aéreo de alcance global, tornaram-se instrumentos de
orientação da política de defesa aérea norte-americana.

Entre 1930 e 1945 os Estados Unidos procurou estreitar suas relações com os
países da América do Sul, através de uma política de diálogo cordial. Esta política foi
recebida de maneira diferente entre as principais nações do continente sul-
americano. O Brasil passou buscar alavancar seu desenvolvimento econômico e um
melhor posicionamento no cenário internacional, e para isto era necessário o
alinhamento e a aproximação com uma das potências da época. Após pressão
internacional e vantagens econômicas ofertadas, optou-se pelo alinhamento com os
Estados Unidos, mesmo sob certas condições.

861
Durante o período da guerra o Brasil ficou condicionado as vontades e
capacidade produtiva dos Estados Unidos, uma vez que o Brasil era
imprescindível para a defesa do continente e dos territórios estadunidenses.
Enquanto havia o interesse na parceria com o Brasil, os Estados Unidos
incentivaram as relações entre os dois países, mas, com a mudança de foco nas
relações internacionais, o Brasil passou para o segundo plano, uma vez que o
foco passou a ser a Guerra Fria e a defesa da Europa.

Estes reflexos podem ser vistos pela forma com que a arma aérea se estruturou
e forjou seu pensamento, incorporando no princípio de sua origem, o
pensamento de uma nação que surgia como referência em termos de material e
pensamento. Ainda hoje, os princípios que norteiam a doutrina de emprego da
FAB são muito similares aos da Força Aérea dos Estados Unidos. Identificando
as raízes do nosso pensamento, podemos ver a forma de nossa evolução e o
caminhar ao longo dos anos.

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Janeiro: MAER, 1941.

_____, _____. Caderno de Boletins do ano de 1942. Rio de Janeiro: MAER, 1942.

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23 de setembro de 1942/01 de agosto de 1945 no teatro de operações do
mediterrâneo. Maceió: UFAL, 2006.

862
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ocidental. Rio de Janeiro: Bibliex: 2000.

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_____, _____. Historia Geral da Aeronáutica Brasileira – da criação do


Ministério da Aeronáutica até o final da Segunda Guerra Mundial. Belo
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segunda guerra mundial até a posse do Dr. Juscelino Kubitschek como
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durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1991.

SANTOS, Murillo. O caminha da profissionalização das Forças Armadas. Rio de


Janeiro: Editora do Livro/Incaer, 1991.

863
COLÉGIO MILITAR: UMA ADEQUAÇÃO NECESSÁRIA.

Claudio Esteves Ferreira368

Os historiadores são pessoas perigosas; eles são


capazes de subverter tudo. Precisam ser controlados.

Nikita Kruchtchev.

A função desempenhada pelas elites, no processo de criação, manutenção e


renovação dos elementos culturais que compõem uma identidade nacional própria,
no conjunto de cidadãos de um Estado, tem sido absolutamente fundamental. Esta
importância foi mostrada em muitas das pesquisas empreendidas por Eric. J.
Hobsbawn (2004, 2006), James Joll (1988) e Arno J. Mayer (1959, 1987). Através de
um conjunto determinado de ações, as principais elites nacionais europeias
conseguiram reunir, na segunda metade do século XIX, o necessário apoio das
principais classes sociais existentes para as políticas externas empreendidas pelos
governos dos Estados369 que controlavam. Ao mesmo tempo, essas elites haviam
percebido que era absolutamente imprescindível que essas ações não ficassem
apenas no campo da educação e da propaganda, na formação de uma opinião
pública favorável, e, na expressão de Hobsbawn, na ―invenção das tradições‖. Eram
necessárias também ações concretas que fossem assim percebidas pelo público
alvo, de tal modo que este pudesse, de fato, se identificar com os valores difundidos,
integrando-se no processo de formação de uma ―consciência nacional‖. Os sucessos
dessa política ficaram cabalmente evidenciados com o apoio dado pelos partidos
políticos originados de movimentos operáriosà expansão imperialista370. Este apoio
só pode ser alcançado após os governos dos Estados imperialistas promoverem
políticas sociais objetivas371 que produziram de facto uma significativa elevação do
padrão de vida urbana de seus trabalhadores industriais372. Assim, nesses países,
na expressão de Montserrat Guibernau, (1997, p. 80) os Estados puderam criar suas
nações ao formarem em seus respectivos limites territoriais conjuntos de habitantes
com identidades nacionais próprias.
368
Colégio Militar do Rio de Janeiro.
369 São especialmente conhecidas as dramáticas manifestações de entusiasmo e patriotismo das populações
desses Estados quando da eclosão da Grande Guerra, em agosto de 1914. Para as bases sociais dessa política, ver
especialmente Mayer (1987) e Joll (1984).
370Para o caso do apoio da social democracia alemã, especialmente dos revisionistas liderados por Eduard
Bernstein, ao imperialismo, ver Droz (1979).
371 Uma referência clássica para o caso inglês encontra-se em Niveles de vida, 1850-1914, in: Hobsbawn
(1977).
372 Para uma análise das reformas urbanísticas empreendidas no período, ver Benevolo (1976).

864
Segundo Guibernau há uma nítida relação entre altos níveis de alfabetização e o
surgimento de um nacionalismo promovido pelo Estado. Constata-se que onde
houve um bem sucedido sistema de instrução promovido pelo Estado, houve o
desenvolvimento de um forte senso de comunidade. Onde o Estado teve sucesso na
imposição de uma cultura e de uma língua, desenvolveu-se um sentimento de
patriotismo entre os seus cidadãos e estabeleceu-se uma combinação de várias
espécies de relações econômicas, territoriais, religiosas, linguísticas e culturais que
foi bem além da simples conexão política..

Primeiramente para ser expressa e desenvolvida por completo, a


identidade nacional requer que as pessoas que formam a nação
desfrutem do direito de decidir sobre seu destino político comum. Em
segundo lugar, se a considerarmos num plano pessoal, a identidade nacional
obviamente se relaciona com outras possíveis, uma vez que a nação
aparece como um fundo comum, criando um mundo significativo. Mas, acima
de tudo e além disso, a reivindicação das nações de possuírem um estado é
a reivindicação de serem reconhecidas como ―agentes‖ dentro do sistema
global dos estados nacionais [...].

A criação da identidade nacional, afirmo, corresponde a um processo


complexo pelo qual os indivíduos se identificam com símbolos que têm o
poder de unir e acentuar o senso de comunidade. Esse processo de
identificação envolve um fluxo contínuo entre os indivíduos e os símbolos ,
no sentido de que os indivíduos não têm apenas de aceitar os símbolos já
estabelecidos, mas têm antes de recriá-los constantemente e atribuir-lhes
novo significado conforme a alteração das circunstâncias através dos quais a
vida se desenvolve. A tradição tem de ser reinventada e
persistentemente atualizada (GUIBERNAU, 1997, p. 82-83, p.94, grifos
nossos).

Para Marc Ferro, a imagem que temos de nós próprios ou de outros povos está
associada à história que nos foi contada na infância e suas principais lições
perduram ao longo de nossas vidas. Em um sentido amplo, através da análise da
história que se conta às crianças e aos adultos, Ferro acredita ser possível conhecer
a identidade de uma sociedade e de sua trajetória ao longo do tempo e que, apesar

865
das inevitáveis mudanças, se pode distinguir uma matriz da história de cada país
que permanece ao longo das gerações, marcando a consciência coletiva de cada
sociedade. Portanto, torna-se relevante conhecer os elementos constitutivos dessa
matriz para delinear uma representação ampla, tão fiel quanto possível, de cada
coletividade ou nação. É dessa visão de conjunto que se origina a nossa
representação dos outros e a nossa representação de nós mesmos373. Ferro
considera essencial o estudo da identidade que existe em cada história nacional
para que se torne possível distinguir as visões que cada cultura nacional possui de
seu próprio passado, e do passado das demais sociedades.

A constatação empírica feita por Ferro (1981) da existência de sucessivas e


mutantes versões históricas contidas nas narrativas dos livros didáticos de diferentes
sociedades, indica um fato já apontado por Benedetto Croce, no início do século XX.
Segundo este, this past does not answer to a past interest, but to a present interest,
in so far as it is unified with an interest of the present life (CROCE, 1960, p. 12).
Assim, quando o historiador volta ao passado, na realidade está refletindo sobre
questões de sua própria época e em razão dessa circunstância, à medida que as
gerações se sucedem, novos problemas e novas questões adquirem relevância,
exigindo frequentes releituras do passado histórico e, por conseguinte, produzindo
novas versões sobre esse dito passado.

Quando a produção história está inscrita no âmbito da história institucional, a


questão apontada por Croce adquire relevância especial, já que esse tipo específico
de narrativa374histórica visa atender às necessidades de uma instituição, origem ou
foco de uma história para justificar e legitimar sua existência e à sua postura e
atitudes tomadas ao longo do tempo. Ao fazer isso, a instituição procura responder
as questões feitas pelo presente ao seu passado.

373 Edward Said em Cultura e Imperialismo constatou que “ uma das mais difíceis verdades que descobri
trabalhando neste livro é que pouquíssimos, dentre os artistas ingleses ou franceses que admiro, questionaram a
noção de raça “submissa” ou “inferior”, tão dominante entre funcionários que colocavam essas ideias em prática,
como coisa evidente, ao aceitarem governarem a Índia ou a Argélia. Eram noções amplamente aceitas, e
ajudaram a propelir a aquisição imperial de territórios na África ao longo de todo o século XIX” (SAID, 2011, p.
12-13).
374 Segundo Cesare Segre, os fundamentos conceituais da narração encontram-se claramente delineados na
Poética de Aristóteles. A ação de narrar pode ser descrita como “a realização linguística mediata que tem por
finalidade comunicar a um ou mais interlocutores ume série de acontecimentos, de modo a fazê-lo(s) tomar parte
no conhecimento deles, alargando assim o seu contexto programático.” (SEGRE,1989, p. 58).

866
Esteja ela a serviço do Estado, da Igreja, do Islão ou do Partido, essa história
institucional é um discurso ativo sobre a história que se está fazendo; e, como
a história, esse discurso necessariamente evolui, mudando com constância
seu sistema de referências, sofrendo toda espécie de metamorfoses,
aceitando modos diferentes de escrever. De forma que, conforme a natureza
dessa missão, conforme a época, o historiador adotou determinado conjunto
de fontes, escolheu um outro método; mudou de fontes ou métodos como um
combatente muda de arma e de tática quando as que utilizava até o momento
perdem a sua eficácia (FERRO, 1989, p. 23).

É portanto perfeitamente possível, a partir do que foi exposto acima, concluir que a
legitimidade histórica de uma instituição depende, também, de sua capacidade de
produzir narrativas históricas institucionais que, associadas a ações políticas
concretas, sejam capazes de responder às questões postas pelos sucessivos
presentes, preservando assim o status da instituição no contexto social de cada
período histórico. Não só é absolutamente compreensível, como previsível, e até
desejável, que o Exército, como instituição a serviço do Estado no Brasil queira
produzir, e produza, uma versão institucional de sua história e da história do Brasil.

Nos últimos anos, vem sendo imposta, paulatinamente, no sistema Colégio


Militar, uma coleção didática de história editada pela Bibliex. E desde então, esta
imposição, feita sem qualquer consulta aos professores, tem criado uma série de
graves problemas.

No processo de ensino-aprendizagem, a imposição da coleção vem acarretando


uma severa queda na qualidade deste processo. Ela não serve como obra de
referência para os professores fundamentarem as suas aulas e avaliações e nem
para os alunos prepararem-se para estas avaliações. Seu conteúdo é pobre, sua
narrativa é truncada e sua estrutura não está assentada em sólidos alicerces
epistemológicos e metodológicos. Em suma, não atende as necessidades básicas.

Em 2013 a DEPA enviou aos professores de cada ano os planos de sequência


didática, a serem desenvolvidos em conjunto com o livro didático. No item 4 – Linha
Didático-Pedagógica para o Estudo da História nos Colégios Militares para o
primeiro ano do ensino médio, consta a seguinte instrução:

867
A História será estudada como conhecimento fundamental para a formação
do cidadão culto. Para tanto, não é necessário ―reescrever a História‖, como
alguns têm feito nos últimos anos, procurando denegrir nossos vultos
maiores e estabelecer versões ideológicas ou ―descobrindo‖ outras que
nunca encontraram apoio nos fatos.

A tentativa de congelar eternamente uma determinada versão da História expressa a


incapacidade atual da instituição de responder às perguntas dos novos tempos, pós
ditadura militar burguesa. O desconhecimento e/ou a inobservância das cruciais
questões apontadas por Croce e Ferro sobre a mutabilidade das versões históricas,
e da necessidade de suas narrativas responderem às questões postas pelos
sucessivos presentes, revela a fragilidade dos alicerces epistemológicos que
fundamentam a narrativa da coleção didática em discussão. Além disso, do ponto de
vista metodológico, esta postura descarta completamente o uso de novas
abordagens e de novas fontes que vem sendo continuamente incorporadas na
produção do conhecimento histórico.

O livro destinado ao primeiro ano do ensino médio, em sua edição de 2010, contém
apenas em duas únicas páginas a fundamentação teórica-metodológica de todo o
livro. Lá, não se observaqualquer menção ao papel do narrador na seleção dos
eventos apresentados e principalmente aos condicionantes de toda ordem que
atuam sobre o historiador durante a sua contrução da narrativa. Para os autores do
livro e da instrução acima citada parece haver apenas uma única e verdadeira
versão da História, a deles. As poucas e truncadas referências a outros autores,
Marc Bloch, Toynbee (não se menciona nem o seu primeiro nome) e Edward H. Carr,
todos da década de trinta do século passado,não citam de qual a obra foram
extraídas e muito menos qual a página que as contém. Contudo, o mais grave, sem
dúvida, é a total ausência de uma reflexão sobre a crucial questão da relação
sujeito-objeto na produção do conhecimento histórico.

868
Como exemplo do tratamento dado à História pelos autores do livro, buscar-se-á
analisar o evento que adquiriu, no âmbito da instituição militar o status de um mito375
- a Insurreição Pernambucana.

Em nenhum momento da narrativa apresentada desse episódio há qualquer


menção ao fato crucial sobre as origens da invasão holandesa da colônia
portuguesa do Brasil. Desde o início da implantação da agromanufatura do
açúcar no Brasil até o início daUnião Ibérica (1580), holandeses e portugueses
eram sócios no negócio do açúcar no Brasil. Durante esse período, o
financiamento da produção vinha em grande parte do capital holandês que, em
troca, recebia o direito de comprar açúcar mascavo no Brasil 376 levá-lo para o
refino na Holanda e posteriormente distribuí-lo comercialmente através da na
Europa. Na verdade, os holandeses detinham a principal parcela dos lucros
auferidos na produção portuguesa de açúcar no Brasil 377.

Desde 1568, os holandeses lutavam contra os espanhóis pela independência


política . Contudo, foi somente após a União Ibérica, em 1580, que os holandeses
foram proibidos de participar do negócio do açúcar em parceria com os
portugueses. Aí reside a origem do problema e das invasões holandesas no
Brasil. Privados deste negócio e em guerra com Portugal, consequência da União
com a Espanha, os holandeses passaram a atacar sistematicamente o império
português no Atlântico e no Índico.

A expulsão dos holandeses do nordeste brasileiro foi um movimento organizado a


partir do território da colônia e liderado pelos principais senhores de engenho que
estavam ameaçados de perderem suas propriedades. Endividados com a
Companhia das Índias que havia financiado a reconstrução dos engenhos

375 Segundo Jose Ferrater Mora, denomina-se mito a uma narrativa de algo fabuloso que tenha ocorrido em uma
época distante e pouco definida. Ele podem estar relacionado a demonstrações de heroísmo e é frequentemente
visto como marco fundador da história de uma sociedade ou do gênero humano em geral. O mito torna-se um
modo de ser, a forma de uma consciência. A consciência mítica pode ser investigada mediante uma análise
epistemológica que visa compreender a função do mito na consciência e na cultura. “A formação dos mitos
obedece a uma espécie de necessidade: a necessidade da consciência cultural. Os mitos podem ser considerados
como supostos culturais” (MORA, 1982, p.266).
376O que flexibilizava substancialmente o suposto monopólio comercial de Lisboa.
377Ver: “A luta global com os holandeses (1600-1663)” da obra clássica de Charles Ralph Boxer, O império
colonial português (1415-1825) que, inexplicavelmente, não é citada como referência no livro didático.

869
destruídos durante a invasão, estes proprietários organizaram-se para expulsá-los
da colônia.

Sobre estes eventos, o livro didático relata;

Em 23 de maio de 1645, foi assinado o Compromisso Imortal de Ipojuca por


João Fenandes Vieira e mais 18 importantes lideranças da Insurreição
Pernambucana, quando pela primeira vez se exaltava o sentimento de
pátria.

―Nós abaixo assinados nos conjuramos, e prometemos, em serviço da


liberdade, não falar, a todo tempo que necessário, com a ajuda de fazenda e
pessoas, contra qualquer inimigo, em restauração de nossa pátria: para que
o nos obrigamos a manter todo o segredo que nisto convém; sob pena de que
quem o contrário fizer ser tido por rebelde e traidor, e ficar sujeito ao que as
leis, em tal caso, permitam. E debaixo deste comprometimento nos
assinamos em 23 de maio de 1645‖ (grifos nossos).

Com base nesta citação, os autores do livro concluem que aí residiria as origens do
sentimento patriótico brasileiro. No entanto, uma leitura atenta mostra a intrínseca
tibieza desta proposição. O documento citado é claro quando explicita o objetivo de
restaurar a pátria. Ora só se restaura algo que já existe, no caso a pátria portuguesa
e não uma primordial pátria brasileira como pretendem os autores da obra em
questão. Além dessa incongruência, cabe uma indagação final: Se, havia de fato
naquele momento, um suposto sentimento de pátria brasileira, por que o movimento
insurrecional não desdobrou em uma luta pela independência colonial ? Ao contrário,
após a expulsão dos holandeses, os líderes do movimento voltaram-se docilmente
para o domínio de Lisboa.

Não há nada, do ponto de vista acadêmico, que reprove a intenção do Exército de


produzir uma coleção didática de História que expresse sua versão institucional da
História. Contudo é essencial que ela seja crível e que esteja em sintonia com os
princípios teóricos e metodológicos válidos e reconhecidos pela comunidade acadêmica
de sua época. Este não é um empreendimento fácil. Ao contrário, requer uma equipe
altamente habilitada e qualificada e, principalmente, tempo. Este é um trabalho de longo
prazo e que, para alcançar resultados plausíveis, deve durar alguns anos.

Além dos problemas de natureza acadêmica, a adoção imposta dessa coleção didática
tem trazido severos contrangimentos a imagem pública do Exército. O segundo volume
da coleção destinada ao ensino fundamental foi retirado de circulação por decisão

870
judicial que atendeu a uma representação do Ministério Público que apontava as
interpretações profundamente ideológicas contidas em seu texto378.

No mês de julho, uma professora doutora do Colégio Militar de Porto Alegre foi
afastada de suas turmas em razão das críticas que fez ao livro. Ela foi reconduzida a
sala de aula por decisão judicial que acatou a sua represntação contra o Colégio por
assédio moral.

Para evitar a propagação de tais situações altamente constrangedoras para a


imagem da instituição, recomenda-se a retirada imediata da coleção didática de
História adotada atualmente pelo Sistema Colégio Militar. Como acontece em
todas as escolas, os professores das unidades devem ser os primeiros a serem
consultados sobre seus possíveis substitutos e, juntamente com as equipes
pedagógicas, proceder uma avaliação criteriosa e profissional dos livros disponíveis
no mercado e determinar quais os mais adequados. Assim, o Sistema Colégio Militar
ajustar-se-ia às posturas assumidas pelos comandos da Marinha (Colégio Naval) e
da Aeronáutica (Colégio Brigadeiro Newton Braga) que utilizam livros escritos por
profissionais com larga experiência no mercado editorial didático em todas as
disciplinas. Os livros adotados nestas instituições fazem parte do PNLD (Programa
Nacional do Livro Didático) e sãodisponibilizados aos seus alunos a um custo zero, o
que não ocorre no Sistema Colégio Militar cujos volumes da coleção imposta são
vendidos ao preço de mercado.

É importante para o Estado que suas instituições militares reflitam historicamente


sobre a sua história, e sobre suas relações com a história institucional do Estado,
cuja segurança constitui-se em sua função precípua. É apenas através de uma
constante reflexão, séria e franca, sobre seu passado que uma instituição encontra as
respostas adequadas para as questões postas a ela pelo presente. Só assim ela pode
elaborar e definir as estratégias adequadas para os tempos futuros. Portanto, é
imprescindível que a instituição, como indicam Ferro e Guibernau, atualize,
periodicamente, o discurso narrativo construído sobre si mesma e faça sutis ajustes
para que este possa responder às novas questões postas por cada novo presente

378 Para uma contundente análise crítica e técnica produzida na Academia sobre este volume da
coleção,ver http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=1864. Apesar do teor principal das
críticas estar voltado para o fato da coleção deturpar o conhecimento histórico disponível ao público sobre os
acontecimentos que levaram à deposição do presidente João Goulart, há neste documento uma preciosa análise
técnica do volume destinado ao ensino fundamental. Essas críticas são muito pertinentes e precisam ser lidas
com muita atenção.

871
histórico. Torna-se, portanto, absolutamente vital à liderança de uma instituição
perceber quando contextos até então vividos como presentes começaram a fazer
parte da história. O fim da Guerra Fria (1991) foi um acontecimento tão dramático que
quase ninguém deixou de perceber e a perspectiva aterradora da aniquilação nuclear
mútua, uma das marcas registradas do período, desapareceu e virou História.
Contudo, o fim de outros ciclos históricos nem sempre foram tão evidentes e sua
percepção requer um espírito crítico mais arguto que apenas o do homem comum.

O difícil momento que Exército enfrenta na sua relação com a sociedade civil deriva,
em grande parte, da incapacidade desta instituição de interpretar o fim de um ciclo
histórico, do qual foi o principal protagonista. A polarização ideológica oriunda dessa
época não mais existe, e sua existência no passado precisa ser reinterpretada
historicamente, e posta no lugar onde de fato ela está, no passado histórico. A
Guerra Fria acabou. A doutrina da Segurança Nacional tal como formulada durante
aquele período histórico deixou de fazer qualquer sentido. Não há mais ―comunistas
e nem um hipotético movimento comunista internacional infiltrado nas sociedades
que visa subverter os ideais da democracia, da liberdade e nos levar ao
totalitarismo‖ (sic).

A História mostra que o distanciamento temporal permite que os fatos sejam


interpretados sob novos prismas. As atitudes dos atores históricos relevantes
precisam ser compreendidas historicamente, isto é, estando inscritas e circunscritas
em seus próprios contextos políticos, sociais, econômicos e culturais. Nesse ponto
reside a chave para a instituição dissociar-se de um passado que se tornou
problemático379. A tentativa do Exército de manter o discurso ideológico utilizado no
passado para justificar atitudes tomadas pela instituição nesse passado soa cada vez
mais anacrônica e expõe a instituição a um constrangimento público que só se agrava.
No tempo presente, o discurso da instituição sobre a sua história e a história do Brasil
beira o ridículo. É imperioso que as atuais elites intelectuais da instituição produzam
uma ampla e profunda revisão de sua inserção histórica e que ajustem, aos novos
tempos, o seu discurso sobre a sua história, sobre a sua inserção na história do Brasil e

379 Talvez não haja exemplo mais emblemático de um “ajuste de contas com a história” do que o contido
no documento "Memória e Reconciliação: a Igreja e as Culpas do Passado", divulgado na quaresma do ano
de2000. Neste documento, o Papa João Paulo II, em nome da Igreja católica, pede o perdão divino para os
crimes que a instituição e os seus seguidores cometeram ao longo de sua história.

872
do mundo. O discurso institucional do Exército brasileiro sobre suas ações no passado
histórico precisa ser assentado em novas bases. É importante também que, nesse
processo, a instituição adeque o seu discurso aos discursos institucionais dominantes,
integrando-se às demais elites brasileiras no processo de construção de uma identidade
nacionalmais adequada para o novo lugar que o Brasil diz pretender ocupar no sistema
e na ordem internacional do século XXI.

Tal como ocorreu na formação das identidades nacionais dos Estados europeus, no
final do século XIX, quando palavras e propagandas, não foram suficientes para
legitimar a existência das instituições controladas pelas suas respectivas elites
nacionais, no Brasil, deste início de novo século, torna-se absolutamente indispensável
que as elites do Exército tomem decisões políticas definitivas e que expressem a
disposição desta instituição, de se adaptar aos novos tempos históricos380. Esta
disposição possibilitaria relegar os incômodos episódios do passado ao próprio
passado, livrando, de uma vez por todas, a instituição dos estigmas, dos fantasmas e
esqueletos que esse passado ainda mantém presentes e vivos, nos dias de hoje.

Referências Bibliográficas

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1989.
_____ .Falsificações da História. Sintra: Publicações Europa-América, 1981.

380Ver os artigos de Desmond Tutu e Renato Lessa sobre, respectivamente, o processo de reconciliation na
Africa do Sul, e a Comissão da Verdade no Brasil. Ambos foram publicados no Estado de São Paulo, em 22 de
maio de 2012: aliás, J5.

873
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara
Koogan Ltda, 1989.
GUIBERNAU, Montserrat .Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo
no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
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Internet
http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=1864

Períodicos
O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 2012.

874
A GÊNESE DO ENSINO DOS SERVIÇOS DE INFORMAÇÕES E INTELIGÊNCIA
NO BRASIL: A ESCOLA NACIONAL DE INFORMAÇÕES

Fabiana de Oliveira Andrade381

As dificuldades para definir a criação de uma Escola especialmente destinada à


formação dos responsáveis pela atividade de informações no Brasil foram imensas.
O país carecia de uma tradição voltada à capacitação do quadro de funcionários
desta área e tampouco tinha experiência na elaboração de uma doutrina de
informações.

Após a instalação do regime militar em 1964, a atividade de informação


continuou a ter uma formação frágil e sua estruturação, montagem e
capacitação foi delegada à Golbery do Couto e Silva. A fragilidade remetia a
uma espécie de amadorismo nesta área, impressão esta que não passou
despercebida pelas principais autoridades da área.

O General Carlos Alberto Fontoura, chefe do SNI de 1969 a 1974, em entrevista ao


CPDOC, ressalta esta inabilidade brasileira:

Nós éramos amadores. Então tínhamos que ter uma escola que formasse
agentes de informações. Esse foi o objetivo principal da [EsNI] [...]. Era uma
escola completa, com tudo de bom que as outras tinham. [...] Foi muito
bem-feita, muito bem construída, e foi muito elogiada por chefes de serviços
de informações estrangeiros que a visitaram como uma das melhores do
mundo (D‘ARAÚJO, 1994, p. 71).

Após diagnosticar as dificuldades e a inabilidade dos brasileiros neste quesito, se fez


presente intenções profissionalizantes, concretizadas com a criação da Escola
Nacional de Informações – EsNI - e a elaboração da doutrina de informações
brasileira:

381
Mestre do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP – Campus de Franca

875
Desde que surgiu o SNI, oriundo do antigo SFICI, a cada dia vinha se
acentuando a necessidade de articular os órgãos de Informações,
estabelecendo entre eles a necessária coordenação e hierarquia técnica.
Sentia-se falta de consolidação de fluxos adequados de entendimento,
representados por canais fidedignos e por uma linguagem comum.

O Plano Nacional de Informações estabeleceu os canais e suas regras de


exploração, mas, então, sentiu-se, de maneira aguda, a necessidade de
uma linguagem comum, fruto de pessoal qualificado, adestrado nos
mesmos princípios e técnicas. Daí a idéia da criação de uma Escola
Nacional de Informações, que já era freqüentemente cogitada [...]
(OLIVEIRA, 1999, p. 55).

Em meados do governo Médici, no dia 31 de março de 1971, o decreto n° 68.448/71


instituiu a criação da EsNI. O jornalista Ayrton Baffa, Lúcio Sergio Porto Oliveira,
responsável por escrever a história da atividade de inteligência brasileira destinada à
Agência Brasileira de Informações - ABIN e o general Ênio dos Santos Pinheiro,
militar responsável pela estruturação e formação da Escola Nacional de
Informações, sendo o primeiro a ocupar o cargo de diretor da EsNI, em depoimento
coletado ao CPDOC, ressaltam as incumbências iniciais da Escola, cujo principal
objetivo consistia em cooperar com o desenvolvimento da Doutrina Nacional de
Informações na formação de agentes. Ademais, fazia-se urgente o estudo sobre a
própria atividade de informações, a fim de que se obtivesse um melhor rendimento
nas atividades do Sistema Nacional de Informações – SISNI.

O general Ênio dos Santos Pinheiro relata o momento em que foi responsabilizado
pela criação da EsNI:

O presidente então me chamou e disse que me havia escolhido para


construir e instalar a Escola Nacional. Eu saí general no dia 30 de março de
1971, e a ideia do presidente era que eu inaugurasse a Escola no ano
seguinte, em março de 1972. Na primeira reunião que fizemos, já
dispúnhamos de todas as instruções para seu planejamento – as condições
tinham de ser fixadas antes de começar a discutir o problema (D‘ARAÚJO,
1994, p. 133).

Através de uma abordagem acadêmica, mas indicando razões idênticas, Joanisval


Brito Gonçalves indica que, ainda mais do que uma incumbência, o estabelecimento
de uma doutrina de informações, que deveria ser conhecida e empregada por todos
os órgãos do SISNI e por seus agentes – civis e militares –, era um dos pilares para

876
a criação da EsNI. Perante a ausência de especialização do quadro de funcionários,
essa iniciativa deveria estar voltada também, à capacitação dos agentes pois

Um serviço de informações eficiente e eficaz não seria alcançado sem


profissionalização, a qual não poderia dispensar o devido treinamento e a
formação doutrinária daqueles que deveriam exercer a atividade ou mesmo
dos que se beneficiariam dela (GONÇALVES, 2008, p. 509).

O Decreto nº 68.448, de 1971, além de indicar a subordinação da Escola ao Chefe


do SNI, estabeleceu as finalidades da EsNI em seu artigo 2º. Entre suas finalidades
é possível citar a preparação de civis e militares para atender às necessidades de
informações e contrainformações do SISNI, a cooperação no desenvolvimento da
doutrina nacional de informações e, por fim, a realização de pesquisas tendo em
vista um melhor rendimento nas atividades do SISNI.

O decreto também ressalta a necessidade de que seu diretor fosse um general da


ativa das Forças Armadas, do posto de General-de Brigada ou equivalente.
Portanto, seu diretor, necessariamente, deveria ser um militar, embora o foco da
atuação na formação de agentes fosse predominantemente civil, como defendido
por seu primeiro diretor, o general Ênio Pinheiro dos. Abordando sobre as condições
fixadas para a construção da Escola, o general indica:

Primeiro, a Escola deveria ser em Brasília. E também tinha que ser eclética,
fazer a integração entre civis e militares. Então, fomos buscar
especialização nos lugares em que havia militar e civil juntos. Por exemplo,
eu fui para os Estados Unidos. O serviço de informações dos Estados
Unidos, a CIA, é civil, o FBI é civil. Mas eles não trabalham sozinhos, de
jeito nenhum. As Forças Armadas têm um grupo separado para trabalhar
com esses dois órgãos: são os adidos militares. O chefe da CIA nunca
comandou. Só o adido militar. Veio ao Brasil, foi ao mundo inteiro. Era um
especialista. Porque é preciso aproveitar o indivíduo (D‘ARAÚJO, 1994, p.
133).

Já era nítida a carência de uma doutrina de informações na comunidade de


informações no Brasil. As maiores contribuições obtidas a respeito provinham da
tradução de obras clássicas como Informações estratégicas de Sherman Kent,
analista de Inteligência no Office of Strategic Services e no Office of National
Estimates (CIA), material pioneiro no estabelecimento de métodos para a análise de
informações e A Produção de Informações Estratégicas, de Washington Platt.

877
Entretanto, o que mais aproximava a comunidade de informações à realidade
brasileira foram escritos da Escola Superior de Guerra, principalmente ao que se
relaciona com a Doutrina de Segurança Nacional, e informações herdadas do antigo
Serviço Federal de Informações e Contra-informações (SFICI) (FIGUEIREDO, 2005).

Desta forma, fazia-se urgente a formulação de uma doutrina única e empregada por
todos os órgãos do SISNI, tendo como prerrogativa inicial, de acordo com o Plano
Nacional de Informações, a criação de uma Escola. O desenvolvimento posterior do
sistema, baseado na produção doutrinária, levaria em conta uma base comum
teórica e metodológica, além de contar com um treinamento prático, possibilitado
pelos cursos fornecidos pela EsNI. Tais cursos deveriam seguir os procedimentos
exigidos pelos Planos Gerais de Ensino (PGE), anuais, continuados, que regulavam
as atividades de ensino e de doutrina a partir do funcionamento da EsNI.

De forma a padronizar e instruir as ações do SISNI, foi editado o primeiro Manual de


Informações (M-07), aprovado em 10 de dezembro de 1976, com a Portaria nº 626 –
GAB/SNI. Este manual, portanto, consolidou e sistematizou a doutrina que já era
utilizada em caráter experimental a partir da edição do Manual de Informações
Provisório, de 1973.

Priscila Brandão Antunes chama atenção a base da doutrina de informações


presente no manual, o que ancorava as ações do SISNI.

A partir de uma edição provisória, de 1973, a Portaria n° 626 – GAB/SNI, de


10 de dezembro de 1976 aprovava o Manual de Informações, o qual
consolidava a doutrina e nortearia a atividade no Brasil. O Manual,
documento de caráter reservado, dividia-se em Informações, Contra-
Informações e Operações (este último em volume separado e acessível a
muito poucos), e passaria por algumas revisões, a última delas em 1989
(ANTUNES, 2002, p. 64).

O Manual de Informações, considerado um guia da comunidade de informações


brasileira, articulava dados desde questões básicas do cotidiano de uma agência de
informações, até aspectos mais específicos da atividade de coleta e análise de
informações, o que possibilita apreender que a doutrina, na verdade, era transposta
e compreendida a partir deste manual. No trecho a seguir, Lúcio Sérgio Porto

878
Oliveira apresenta um dos aspectos tratados pelo Manual, que ressalta a finalidade
da atividade de informações, tal como extraído do M-07:

As atividades de Informações têm por finalidade a produção de


conhecimentos que habilitem as autoridades governamentais, nos
respectivos níveis e áreas de atribuição, à oportuna tomada de decisões ou
a elaborações de planos. Em sua maior amplitude, destinam-se a fornecer
subsídios ao Governo para a formulação, a execução e o acompanhamento
da Política Nacional (OLIVEIRA, 1999, p. 60).

A partir deste momento, a EsNI implantou uma política de capacitação dos recursos
humanos, tendo por base um trabalho técnico de definição de perfil profissiográficos
que seriam encaminhados para as funções de Analista de Informações e para fazer
parte das operações. Este processo teve o ápice de seu desenvolvimento com o
general Otávio Aguiar de Medeiros, diretor da EsNI entre 1975 e 1978 e só pôde ser
alcançado satisfatoriamente a partir do suporte técnico de um quadro de
psicológicos que integravam a Divisão de Psicologia do Departamento de Doutrina e
Pesquisa da Escola (OLIVEIRA, 1999).

Com o embasamento teórico adquirido pela sistematização da Doutrina de


Informações e o Manual de Informações, adicionado à capacitação proporcionada
pela EsNI, o Sistema Nacional de Informações operou mais uniformemente, de
maneira sistematizada e coordenada durante as décadas de 1970 e 1980.

É possível entrever, desta forma, o papel da Escola Nacional de Informações como


capacitadora dos agentes de informações, não apenas do SNI, mas da Marinha, da
Aeronáutica, do Exército e de outros órgãos da Administração Pública, difundindo
entre estes a doutrina de informações brasileira, e formando, de fato, a comunidade
de informações brasileira (GONÇALVES, 2008, p. 516).

Segundo relato do primeiro diretor da EsNI, o General-de-Brigada Ênio dos Santos


Pinheiro, a sede da escola seria situada em Brasília, ―porque tinha que ser em
Brasília‖ – contrapondo-se à ESG e as demais Escolas de Estado-Maior das Forças
que se encontram no Rio de Janeiro. Isto derivava do fato de a EsNI ser encarada
como o elo de integração entre civis e militares. Com isso, a escola deveria ser
eclética quanto a sua localização e seu público e a nova capital, Brasília, era

879
indicada para tanto. Ademais, era necessária, também, a centralização das
principais atividades do governo na nova capital.

A partir da criação da Escola Nacional de Informações, a primeira dificuldade


apresentada era referente ao local de instalação e montagem da EsNI, como é
comentado por Oliveira. Em Brasília, havia a previsão de três distintos locais:

1. a primeira, em área próxima ao Regimento de Cavalaria de Guardas -


RCG, nas imediações do Parque Ferroviário;

2. a segunda, nas proximidades do Grupo de Artilharia Antiaérea - GAAAe,


no Setor Militar Urbano, denominada área do Canil; e

3. a terceira, na margem esquerda da estrada que liga o Setor Policial Sul


a Taguatinga, por detrás da área da Polícia Militar do Distrito Federal
(OLIVEIRA, 1999, p. 57).

A Escola recaiu na última opção, por diversas razões como segurança física,
desimpedimento da área e acessibilidade. Sendo assim, a EsNI estabeleceu-se em
um conjunto arquitetônico harmonioso, que atendia às propostas de beleza,
funcionalidade, adequando-se aos princípios da atividade de inteligência.
Inicialmente, pensou-se em edificar a Escola em um prédio único com vários
pavimentos, porém, por questões de segurança e de confiabilidade, a obra foi feita
em vários blocos separados, obedecendo ao quesito básico da inteligência: a
compartimentação de informações. Desta forma, as atividades desenvolvidas em
determinada estrutura não seriam de conhecimento de outras estruturas. Destarte,
além de atender às demandas do ensino regular e de formação e capacitação dos
futuros agentes de inteligência, permitia uma certa flexibilidade para estender sua
capacidade e utilizar novas formas de atuação dentro do campo do ensino.

O general Ênio dos Santos Pinheiro, ao relatar a sua inserção na criação da EsNI,
explicita como foi iniciado seu processo de elaboração:

E o que aconteceu? Pensei comigo: ―O que vou fazer? Esse troço é


secreto.‖ Chamei o capitão Fortuna, que tinha trabalhado comigo no
Batalhão Ferroviário, engenheiro formado no IME. Ele topou [...]. Eu o levei
comigo, dei-lhe casa, dei-lhe tudo; E ele projetou a Escola todinha. Eu ia
desenhando: ―Quero a Escola assim, assado‖. E a Novacap construía.

880
Houve dificuldades, porque a Novacap teve que penetrar, conhecer, para
saber o que ia fazer. E tínhamos um stand de tiro subterrâneo, uma porção
de coisas. Foi um pouco complicado (D‘ARAÚJO, 1994, p. 131).

Após percorrer , em diversos países, inúmeras escolas consideradas com


excelência, os responsáveis pela montagem da EsNI a equiparam com um dos
melhores laboratórios de línguas do Brasil382, os mais modernos aparelhos
eletrônicos, e também uma academia moderníssima de tiro subterrânea 383, contendo
isolamento sonoro, com cabines separadas por vidros blindados. Além disso, havia
um auditório cujos assentos – feitos de couro bege, luxuosíssimo à época -
possuíam fones de ouvido individuais, configurando também uma sala de cinema – a
melhor de Brasília - e um estúdio de televisão.

A construção da EsNI teve grande apoio dos serviços congêneres, principalmente


norte-americanos, que forneceram cursos e treinamentos tanto ao general Ênio dos
Santos Pinheiro, quanto aos demais integrantes do SISNI:

Os americanos perceberam que nosso projeto era para valer e se


interessaram [...] porque nossos princípios eram os mesmos, a parte teórica
era parecida com a americana. Nós não tínhamos, por exemplo,
equipamento. Agora, as nossas instalações eram muito melhores que as
deles [...].

Quando a Escola começou a ser construída, os americanos ofereceram ao


general Médici um curso de seis meses para mim na CIA e no FBI, para
trazer a documentação que eles empregavam nos Estados Unidos e criar os
regulamentos. Então fui para Washington fazer esse curso [...] (D‘ARAUJO,
1994, p. 133-134).

Ainda hoje a estrutura da Escola ganha destaque, pois a Escola de Inteligência –


ESINT - da ABIN continua funcionando no local, que contém, além do estande de
tiro, vários blocos e uma estrutura completa para a prática desportiva – piscinas
olímpicas, quadras de futebol, pistas de atletismos e até um ginásio coberto.

382 A notoriedade do curso de idiomas da EsNI foi tão grande que seu laboratório de idiomas foi considerado o
melhor da América Latina e significativamente pareado com os de outros serviços de informações dos países
desenvolvidos.
383 A montagem desse estande de tiros foi a maior dificuldade encontrada pela empresa responsável pela
construção, a Novacap.

881
A estrutura funcional da EsNI, basicamente compreendia a Direção e o
Departamento de Ensino, responsável pela organização e execução dos cursos
básicos (A, B e C) e dos estágios, variáveis em cada ano, para atendimento de
informações circunstanciais. Este departamento possuía também uma Divisão de
Pedagogia, com encargos de planejamento do ensino e seu devido controle

Além deste departamento, constava também o Departamento de Pesquisa e


Doutrina, que, além do indicado em sua nomenclatura, também era responsável
pela Divisão de Idioma e pela Divisão de Psicologia. Através deste departamento,
foram editados diversas publicações doutrinárias, com destaque às revistas
Coletânea Le Inteligência 384. Desta forma, o grande diferencial da Escola era a
preocupação constante não somente com a teorização e prática das disciplinas
de informações, mas também com a metodologia e didática empregadas. A EsNI
era responsável, ademais, pela elaboração de pesquisas e formulação da
Doutrina de Informações, o que atribuiu um grau de excelência para a Escola,
que tão logo assumiu o posto que se incumbia a ESG: o pensar tática e
estrategicamente a atividade de informações no Brasil.

O Departamento de Administração, por sua vez, contemplava grande número de


funcionários, em sua maioria civil, qualificados para suas atribuições. Oliveira destaca a
seguinte característica do pessoal responsável por este setor: ―acendrado espírito de
corpo, sadio em todos os sentidos, e comprovado pelo modo como eram atendidos, por
mais complexos que fossem, os pedidos e as ordens atribuídos à Escola, sempre
cumpridos com presteza, correção e dedicação‖ (OLIVEIRA, 1999, p. 64).

Ademais, ressalta-se o Departamento de Informática do Serviço Nacional de


Informações, que permanecia sob controle estritamente administrativo da EsNI,
conforme ressalva Oliveira, e o Centro de Pesquisas, destinado a equipamentos
criptográficos, sendo o antecessor do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento para
a Segurança das Comunicações - CEPESC.

O corpo docente foi dimensionado visando atender às necessidades do ensino


proposto pela Escola Nacional de Informações – entre estas, a elaboração da

384Tais publicações influenciaram fortemente a evolução e a consolidação da doutrina nacional de Inteligência


no Brasil, uma vez que foi veículo difusor de inúmeros temas relativos à atividade de informações no Brasil e no
mundo.

882
doutrina. A preferência na escolha da equipe de instrutores da Escola era por
pessoas que tinham experiência na área de informações, embora o general Ênio dos
Santos Pinheiro demonstrasse a intenção de mesclar militares e civis dentro do
quadro de funcionários.
Fomos pegando as pessoas que tinham função de informação, que já
possuíam vivência nesse assunto [...] Desde o princípio tivemos a
preocupação de colocar alguns civis, além do pessoal do Exército, da
Marinha e da FAB. Esse era o núcleo central da Escola [...].

Para entrar na Escola, era preciso fazer exame psicotécnico, psicológico,


porque nós queríamos conhecer o perfil do homem brasileiro de
informações, que não era o mesmo do americano. (D‘ARAÚJO, 1994, p.
136).

Para a composição do quadro docente, foram selecionados alguns oficiais das


Forças Armadas para serem enviados ao exterior com o objetivo de frequentarem
cursos e aulas em outras escolas e serviços de informações aliados, de forma que
passassem a conhecer a estrutura e o funcionamento de outros serviços e de seus
programas de formação. Segundo relata o General Ênio Santos Pinheiro, em suas
memórias para o livro do CPDOC, os principais países intercambistas foram os
Estados Unidos, Alemanha Ocidental, Israel, França e Grã-Bretanha. De forma a
completar o quadro docente, Gonçalves indica que, além dos professores, era
constituído por montares385 preparados e versáteis, geralmente mais jovens, que
ministravam aulas mais didáticas e intelectualizadas.

Complementarmente aos oficiais enviados ao exterior que aprenderam com seus


congêneres, integrou o corpo docente da Escola os funcionários da Escola Superior
de Guerra e das Forças Armadas, outrora responsáveis pela formação dos agentes
de informações, e também alguns profissionais do próprio Serviço Nacional de
Informações.

Alfred Stepan indica as principais diferenças entre a EsNI e ESG, no tocante à sua
estruturação, quadro de funcionários, entre outros:

A EsNI tinha um corpo permanente de pesquisadores; a ESG não tinha. A


EsNI lidava com estudo de casos concretos e dados reais, e estava

385
Segundo tradição oral, Montares remete à jovens oficiais. Entretanto, dicionários consultados não apresentam
o verbete, embora tenha sido empregado na tese de doutorado de Joanisval Brito Golçalves, fonte relevante para
esta etapa da pesquisa.

883
vinculada a um órgão operacional, enquanto a ESG tendia a formular
doutrinas abstratas e não mantinha vínculos operacionais. A EsNI era uma
escola profissional, de quatro graus, que tinha por incumbência o
treinamento de todos os candidatos ao Sistema Nacional de Informações, a
aplicação de testes e o ensino de inglês, espanhol, russo, alemão, francês e
italiano e, eventualmente, árabe, ao passo que a ESG [...] era um misto de
curso de orientação e curso de extensão universitária. Dentro da arena
intra-estatal a EsNI estava, claramente, acumulando recursos poderosos.
(STEPAN, 1996, p. 29).

Destarte, além de instrutores permanentes e externos, a Escola também contava


com uma equipe de pedagogos, professores de idiomas, tradutores, e técnicos e
psicológicos, formando uma equipe de funcionários altamente qualificada.

Paralelamente à formação do corpo docente, a equipe discente foi composta, nos


cursos A, B e C, em grande parte, por funcionários públicos, ligados ao SISNI e por
militares das três Forças (OLIVEIRA, 1999). Era trabalhado o perfil profissiográfico
dos aspirantes à Escola, destinando-os, após essas análises, às funções de análise
de informações e ao ramos das operações. Para tanto, contava com o apoio da
Divisão de Psicologia do Departamento de Doutrina e Pesquisa, que oferecia um
quadro competente de psicólogos especializados que avaliavam cada perfil
individualmente.

Sendo assim, para ingressar na escola, era necessária a realização de exame


psicotécnico, psicológico, para que se estabelecesse o perfil do homem brasileiro
integrante do sistema de informações. Quando questionado, o General Ênio Santos
Pinheiro discute dois tipos de pessoas admitidas na Escola: ―um, intelectual, e outro,
que trabalhava no campo de operações‖, após a seleção era ―feito um código de
honra e um código de ética para o pessoal‖(D‘ARAÚJO, 1994, p. 136). Ainda nesta
coletânea, Ênio dos Santos Pinheiro atribui a formação dos agentes do Serviço
Nacional de Informações e do Sistema Nacional de Informações, durante o período
anterior à inauguração da Escola Nacional de Informações, às academias militares,
tendo em vista o combate a subversão.

Os futuros alunos da Escola eram indicados pelo comandante de suas unidades


militares, e sua faixa etária abrangia entre 21 e 24 anos. Eles deveriam ter cumprido
o serviço militar obrigatório em corpos de elite do Exército, além de ainda ocuparem,

884
nas Forças Armadas, o posto de segundos-tenentes. Posteriormente, havia uma
rigorosa seleção que incluía investigação social, exames médicos na Policlínica da
Aeronáutica e psicotécnico. Após aprovados, Lucas Figueiredo indica que os
candidatos eram convidados a abandonar seus postos nas Forças Armadas e cursar
a Escola, entretanto, o curso de informação na EsNI não garantia efetivamente um
emprego no SISNI ou no SNI. Além dessas características o futuro analista ―deve
possuir raciocínio lógico apreciável, percepção e objetividade, assim como
conhecimentos concernentes às atividades de Informações, e às necessidades de
Informações dos Órgãos Governamentais, a fim de capacitá-lo a realizar essas
atividades mentais com sucesso‖ (EsNI, 1972).

A EsNI foi incumbida da formação de civis que integrariam o SISNI e o SNI, afinal
este era um órgão modaldo na CIA, e portanto, de caráter civil. Desta forma, a
grande maioria dos alunos que integrou o quadro discente da EsNI eram civis,
selecionados entre os funcionários dos ministérios, preferencialmente jovens,
empresas públicas e autarquias, que se interessassem ou tivessem aptidão para
trilhar a carreira na área de informações e inteligência.

Carlos Alberto da Fontoura, dirigente do SNI entre 1969 e 1974, embora


representasse parte do contingente militar que dirigia a Escola, que tinha em seus
moldes de ensino um modelo de instrução militar, ressalta a importância da
formação de um sistema civil:

A minha política era a seguinte: vão freqüentar essa Escola,


preferencialmente civis. O SNI é um órgão civil, e deve passar às mãos dos
civis no mais curto prazo possível, inclusive a chefia. Claro que isso
dependeria do Presidente da República. Mas a minha política era essa.
Matriculei muito poucos militares durante o tempo em que estive no SNI
[1969-1974]. Praticamente só civis, pessoal indicado por Ministérios, por
diferentes órgãos. É claro que sofriam um rastreamento, e mesmo lá dentro
eram muito bem observados (D‘ARAÚJO, 1994, p. 94).

Entretanto, na década de 1970 ingressaram na Escola alguns jovens oriundos do


Núcleo de Preparação dos Oficiais da Reserva e do Centro de Preparação dos
Oficiais da Reserva, os chamados ―oficiais R2‖. Estes eram selecionados em suas
unidades militares e, para se matriculares na Escola e realizarem os cursos,
deveriam se desincorporar do serviço militar. A maioria dos jovens tinha curso

885
superior completo ou incompleto e integrariam o quadro de funcionários do SNI da
década de 1980 até 1990. Não obstante, os postos chaves ocupados na ABIN 386
provinham destes analistas de carreiras, os oficiais R-2, salvo, raras vezes, os
concursados.

O general Ênio Pinheiro (D‘ARAÚJO, 1994) informa que além do funcionamento do


curso de idiomas, também eram oferecidos cursos permeados por uma doutrina
anticomunista, divididos em três categorias: A) Altos Estudos, com duração de um
ano letivo; B) Fundamentos; e C) Operações. Os dois últimos com duração de um
semestre. Todos tinham aula de segunda à sexta-feira, em período integral,
contando com turmas de, no máximo, trinta alunos.

À vista disso, a EsNI cumpriu seu objetivo de centralizar a formação da atividade de


informações no Brasil (GONÇALVES, 2008). Para tanto, a Escola recebeu o Curso
de Informações (OLIVEIRA, 1999) – que integraria o curso categoria ―A‖ - da Escola
Superior de Guerra. Destinado à formação e habilitação de analistas de informações
a nível nacional, o curso ―A‖ era voltado para a formação de chefias, sendo como
uma pós-graduação, já que se exigia que o aluno-estagiário fosse formado no curso
―B‖ ou ―C‖, para o grupo civil, era requerido o título de formação universitária ou, no
caso de militares, deveriam ser oficiais das Forças Armadas, ocupantes de postos
de Oficial Superior, sendo formados no Curso de Comando e Estado-Maior.

As aulas versavam sobre assuntos políticos, econômicos e sociais da realidade


brasileira, tendo em vista a análise de conjuntura e estudo de casos. O
Planejamento da EsNI, de 1987, complementa: ―em seus cursos básicos, será
transmitido o conhecimento genérico a conjuntura interna e externa, nos campos
político, econômico e psicossocial, com ênfase para os aspectos relacionados com a
Segurança Nacional‖ (ESNI, 1987).

A segunda categoria de cursos, ―B‖, era destinada à formação de Analistas de


Informações, que foi assimilado do Curso de Informações do Centro de Estudos do
Pessoal do Exército - CEP387. A formação dos analistas de informações era em nível
regional e setorial. Para o corpo discente requeria-se oficiais das Forças Armadas

386 Márcio Paulo Buzanelli, Diretor-Geral da ABIN entre os anos 2005 e 2007, fazia parte dos oficiais R2.
387Tanto o Curso da ESG quanto o do CEP, ao serem transferidos para a Escola Nacional de Informações,
foram desativados em suas escolas de origem.

886
detentores de postos de capitão e major, e civis com curso universitário completo
(OLIVEIRA, 1999).

O curso abarcava abordagem de matérias como sociologia, história, geografia e


ciências políticas. Inicialmente, o aluno estudava a história do comunismo, desde o
surgimento da doutrina, com Karl Marx, perpassando pela Revolução Russa em
1917, e finalizando com a Revolução Cubana e seus efeitos na América Latina.
Podemos analisar o processo da Guerra Revolucionária como pode ser encontrado
nas sínteses para aulas encontradas no Arquivo Nacional em Brasília 388.

À terceira modalidade de cursos – categoria ―C‖- cabia a responsabilidade pelo


campo prático da atividade de informações e contava com um processo de seleção
mais rígido, pois seu objetivo era a formação dos ―agentes de rua‖ do SNI, a
atividade mais perigosa e delicada. Destarte, os Cursos de Operações de
Informações, titulados Cursos C1 e C2389, eram destinados a preparação de
pessoas para a coleta de informações e dados.

Para integrarem o corpo discente do Curso C-1 demandava-se que fossem de


organizações distintas das Forças Armadas e, no caso de civis, também deveriam
portar nível superior. Já o Curso C-2 era integrado por praças - especialmente
suboficiais e sargentos - das Forças Armadas e civis com o nível médio de
escolaridade.

Ao longo da trajetória histórica que ficou marcada na EsNI, foram realizados


diversos cursos, programas de treinamento, estágios e eventos especiais –
seminários e painéis, visando sempre ao aprimoramento do grau de especialização
dos agentes e da doutrina nacional de Informações. Portanto, além dos cursos
regulares, a EsNI oferecia os denominados ―cursos extraordinários‖, ministrados
para adidos militares e funcionários públicos que trabalhavam com informações
estratégicas.

388 Posteriormente, serão discutidas com maior precisão as matérias e temas debatidos nos referidos cursos.
389 Os cursos categoria “A”, “B” e “C” foram regulados pelo primeiro Regulamento da EsNI, baixado em 1972,
diploma que também contemplava os demais programas de ensino, denominados Estágios.

887
No caso dos adidos militares, e também das pessoas que, embora no exterior,
tivesse contato com informações, a EsNI também oferecia um curso, contendo,
inclusive, programas de total imersão idiomática.

Destinado aos Ministros de Estado, outro programa especial contou com uma carga horária
de 48 horas. Segundo o general Ênio Pinheiro, todos os ministros deveriam fazer esse
curso, embora separados, para lhes ensinar o que era informação, como usar essas
informações que lhes eram repassados, sua utilidade e importância.

Outro curso que merece destaque é o Curso de Analista da Área Econômica,


ministrado de 2 de fevereiro a 23 de julho de 1981, e os Cursos de Informações do
Campo Externo, realizado do dia 1º de março de 1982 a 8 de dezembro de 1989.
Foram realizados também os Estágios de Proteção da Informação Empresarial
Sensível - EsPIE entre os anos de 1985 a 1987. Entre os cursos extraordinários e
programas especiais que constam nos currículos da EsNI, tem-se também como
exemplo os Estágios de Criptologia, Análise de Propaganda, Estimativa,
Recrutamento e Entrevista.

O curso de aperfeiçoamento de analistas foi oriundo da interação entre a Agência


Central (AC) do SNI e a EsNI. Segundo as necessidades, a Agência Central
defendia a necessidade de uma especialização de seus analistas e, de outro, a EsNI
foi projetada para atender essa finalidade, estando apta a assumir, em termos de
ensino, tal responsabilidade. Desta forma, era permitido a EsNI, a cada ano letivo,
executar um curso destinado a determinada especialidade.

Cada curso de aperfeiçoamento deveria conter dois módulos, sendo o primeiro à


distância, através de correspondência, e o segundo presencial, cujos alunos se
reuniriam na Escola. A estruturação dos cursos nestes moldes atendia à carência
pela qual passaria o SNI caso a maioria de seus analistas fossem afastados de seus
cargos e deveres, em suas agências, por um tempo prolongado.

O grande desafio que coube a EsNI foi o desenvolvimento de um curso à distância


eficaz e qualitativo. Para tanto, contou-se, especialmente, com a Divisão de

888
Pedagogia para a organização do Curso de Analistas do Campo Econômico390, o
primeiro e único Curso de Aperfeiçoamento de Analistas realizado pela EsNI.

O ensino à distância, onde a EsNI foi pioneira, baseava-se na elaboração de


apostilas por professores selecionados da Universidade de Brasília – UnB,
rigorosamente elaborado em termos pedagógicos pela Divisão de Pedagogia.

As apostilas possuíam um capítulo exclusivo para uma autorreflexão sobre o tema


abordado, oferecendo material e bibliografia complementar sem onerar os alunos
matriculados. Além disso, a EsNI disponibilizou uma linha telefônica exclusiva para
atendimento dos alunos.

Os principais objetivos do Curso de Estratégia visavam proporcionar ao pessoal da


EsNI a dimensão estratégica de seus estudos e de suas análises, compatibilizando,
também, o Plano Nacional de Informações (PNI) com o nível dos planejamentos
político-estratégicos do Poder Executivo em esfera Federal. Também era
incumbência deste Curso favorecer que a doutrina de informações sedimentasse
aspectos que se referem a valores, conceitos e princípios.

Em oito meses de elaboração, o Curso de Estratégia compreendia uma organização


curricular e seleção de professores e de alunos rigorosa.

A Divisão de Pedagogia da EsNI, por sua vez, elaborou uma pesquisa pedagógica,
consultando, tanto em esfera nacional quanto internacional, os prováveis
conhecimentos que deveria ser portador um analista de estratégia para o
cumprimento adequado de suas incumbências e funções.

Durante poucos anos o Curso funcionou, mesmo com o incorreto nome de


Curso de Informações do Campo Externo (CICE), quando, na verdade, o
campo externo era uma derivada da grande Estratégia Nacional, e o
currículo assim o expressava. Mas esse óbice não ofuscou o valor do
Curso, confirmado por pessoas que o fizeram e não integravam o quadro do
SNI. Os analistas que freqüentaram o Curso e eram do SNI também
avaliaram-no como de grande importância para o SNI. Lamentável que
tenha sido interrompido sem que houvesse o tempo necessário para criar
uma massa crítica de analistas com a visão estratégica das informações
(OLIVEIRA, 1999, p. 70).

390 Este curso foi realizado em 1980.

889
É possível entrever indícios, ainda que obscuros e não declarados, de que a
modificação do objetivo principal, tal como ocorreu com o SNI, também se apresenta
na EsNI. Quando o órgão se torna um parâmetro para Costa e Silva, seu objetivo
deixa de abarcar somente a coleta e a análise de informações bem como seu
fornecimento ao presidente da República e passa a ser possuidor de um papel de
assessoria, de formulador de ideologias e opiniões à presidência da República e à
vários recônditos da sociedade. Desta forma, pode-se entender o EsNI não como
um mera formadora que indicaria os caminho para a produção de informações que
subsidiariam as decisões do presidente, mas como uma formuladora dentro de um
sistema de informações.

Ernesto Geisel, declara que a ―paixão‖ e a subjetividade do SNI que sobrepuseram


sua visão técnica dos fatos é possível concluir, principalmente tendo em vista as
apostilas que serão futuramente analisadas, que esta paixão também esteve
presente na EsNI, em seus manuais, em suas doutrinas e, principalmente, na
formação de seus agentes.Portanto, é possível entrever indícios de que haja
dimensões políticas dentro da formação dos agentes de informações no Brasil, que,
sobrepujando o contexto nacional, reveste-se de características internacionais,
adequadas à Guerra Fria e ao doutrinamento norte-americano da época.

Referências Bibliográficas

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brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002.

D‘ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Os anos de
chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

ESNI. Diretriz para o Planejamento do Ano Letivo da ESNI. Brasília, 1987.

____. NA-BC-07-203 – Reservado. Brasília, 1972.

FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio: A história do serviço secreto


brasileiro de Washington Luís a Lula, 1927-2005. Rio de Janeiro: Record, 2005.

890
GONÇALVES, Joanisval Brito. SED QUIS CUSTODIET IPSO CUSTODES? O
Controle da atividade de inteligência em regimes democráticos: os casos de Brasil e
Canadá. Tese de Doutorado. Brasília, 2008.

OLIVEIRA, Lúcio Sérgio Porto. A história da atividade de inteligência no Brasil.


Brasília: ABIN, 1999

STEPAN, Alfred. Os Militares: da Abertura à Nova República. Tradução de


Adriana Lopez e Ana Luíza Amendola. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

891
A ESCOLA DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DA AERONÁUTICA:
REPOSITÓRIO DO PENSAMENTO DO PODER MILITAR AEROESPACIAL
BRASILEIRO

João Rafael Mallorca Natal391

1 Introdução

―Nem cora o livro de ombrear com o sabre, nem cora o sabre de chamá-lo irmão‖.

(CASTRO ALVES, 1970, p. 48)

A frase acima constitui-se em verdadeiro apanágio da educação militar, ao colocar


em um mesmo patamar, com igual importância, a carreira d‘armas propriamente dita
e a atividade acadêmica.

Tal atividade acadêmica abrange o ensino, ou seja, a transmissão do conhecimento,


e a pesquisa, que é a produção desse mesmo conhecimento.

Nesse sentido, a Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR),


organização do Comando da Aeronáutica encarregado de ministrar Altos Estudos
Militares, tem conduzido suas atividades, formando profissionais do emprego da Guerra
Aérea, produzindo e difundindo o conhecimento relativo ao preparo e ao emprego do
Poder Militar Aeroespacial brasileiro, também conhecido como Poder Aéreo.

Em tal contexto, o presente trabalho tem por objetivo identificar de que maneira a
ECEMAR tem sido, desde sua criação, um verdadeiro repositório do pensamento do
Poder Militar Aeroespacial brasileiro.

391
Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica.

892
2 Metodologia

Inicialmente, será feito um breve relato histórico da ECEMAR. A seguir, estudar-se-


á, de forma qualitativa, a obra de três dos mais emblemáticos Instrutores desta
Escola, e que se destacaram na produção de conhecimento acerca do Poder Militar
Aeroespacial: os Tenentes-Brigadeiros do Ar Nélson Freire Lavanére-Wanderley,
Deoclécio Lima de Siqueira e Murillo Santos. Além de um sucinto relato de suas
atuações na ECEMAR, serão comentadas suas contribuições, como autores de
obras consagradas, relativas ao Poder Aéreo.

Finalmente, a produção de conhecimento científicos, especificamente voltados para


o Poder Militar Aeroespacial, realizada pelos Oficiais-Alunos da ECEMAR, no Curso
de Comando e Estado-Maior (CCEM), será objeto de um capítulo específico.

Esta pesquisa baseou-se em fontes bibliográficas e documentais, analisando, de


forma qualitativa, os diversos aspectos ligados à história da ECEMAR, bem como
dos já nomeados Instrutores, e ainda de uma análise de dados, sobretudo
quantitativa, acerca da produção de conhecimento dos Oficiais-Aluno do Curso de
Comando e Estado-Maior (CCEM), em especial daquela diretamente relacionada
com o preparo e emprego do Poder Militar Aeroespacial brasileiro.

3 A Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica

O Ministério da Aeronáutica e a Força Aérea Brasileira, ao serem criados, em


janeiro de 1941, absorveram porções da estrutura do Exército e da Marinha,
especificamente aquelas organizações voltadas para o preparo e emprego dos
meios aéreos. Consequentemente, herdaram daquelas instituições suas escolas de
aviação, localizadas no Campo dos Afonsos e no Galeão, adaptando-as para a
formação de oficiais e de sargentos da Aeronáutica.

A recém-criada FAB, no entanto, ressentia-se da falta de um estabelecimento de


ensino específico, para preparar seus oficiais superiores para o desempenho de
funções de Estado-Maior. O próprio Estado-Maior da Aeronáutica, em seu primeiro
Regulamento, estabelecia que ―enquanto o número de oficiais com cursos de

893
Estado-Maior for insuficiente para as necessidades do E.M. da Aeronáutica, poderão
ser utilizados nestas funções oficiais de reconhecida capacidade profissional‖
(BRASIL, 2005).

Com a participação da FAB na Segunda Guerra Mundial, novas tarefas foram


atribuídas à Força, ficando evidenciada, em especial a partir de 1944, a inadiável
necessidade de preparar-se oficiais para as funções de Estado-Maior (BRASIL,
2005). A solução emergencial foi o envio de oficiais superiores para realizarem o
Curso de Estado-Maior Aéreo (Air Staff School), na Escola de Comando e Estado-
Maior do Exército dos Estados Unidos da América (Army General Staff
&CommandSchool), em ForthLeavenworth, Kansas. Entre o segundo semestre de
1944 e junho de 1945, três turmas de oficiais superiores da FAB cursaram a Air Staff
School, totalizando 26 novos oficiais de Estado-Maior.

De volta ao Brasil, a esses oficiais, além de ocuparem postos no Estado-Maior da


Aeronáutica (EMAER), foi atribuída a missão de criarem um curso de Estado-Maior
para suprir as necessidades da FAB. Esse curso, denominado Curso de Estado-
Maior da Aeronáutica, foi criado pelo Decreto nº 20.798, de 19 de março de 1946, e
passou a funcionar, provisoriamente, nas instalações da Escola de Estado-Maior do
Exército, atualmente Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), na
Praia Vermelha. O primeiro Diretor do Curso foi o Coronel-Aviador Luiz Leal Netto
dos Reys, egresso da Air Staff School .

O primeiro Curso de Estado-Maior foi ministrado no segundo semestre de 1946; esta


turma formou-se a 24 de dezembro do mesmo ano, e era composta por sete Oficiais-
Alunos. A segunda turma, com vinte Alunos, graduou-se em 23 de dezembro de 1947.

Finalmente, em 16 de dezembro de 1947, através do Decreto nº 24.203, de 16 de


dezembro de 1947, é criada a Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica
(ECEMAR), a qual, a partir de 1948, recebe autonomia administrativa e sede própria, à
Rua das Laranjeiras, 192, em prédio outrora ocupado pela Embaixada do Japão.

O primeiro Comandante da ECEMAR foi o Brigadeiro-do-Ar Luiz Leal Netto dos


Reys, o qual, ―com grande capacidade e merecimento, organizou eficientemente a
Escola e imprimiu ao seu ensino um alto padrão de cultura militar e geral, que logo

894
elevou a ECEMAR a uma situação de destacado prestígio‖ (LAVANÈRE-
WANDERELY, 1975). O primeiro Chefe (―Subdiretor‖) de Ensino da Escola foi o
Coronel-Aviador Nélson Freire Lavanère-Wanderley, cuja atuação na ECEMAR será
objeto de análise, em capítulo adiante.

Já em seu primeiro Regulamento, datado de 5 de abril de 1948, Art. 1º, e § único,


fica estabelecido que,

Além da finalidade acima estabelecida, a ECEMAR é também um centro de


estudos para o Estado-Maior da Aeronáutica, competindo-lhe difundir a
doutrina de guerra e os ensinamentos de seus trabalhos, entre os oficiais da
Aeronáutica; estudar as concepções táticas, estratégicas e defensivas do
emprego do Poder Aéreo, incluindo sua aplicação em operações combinadas;
emitir parecer sobre os assuntos submetidos à sua consideração pelo
Estado-Maior da Aeronáutica; apresentar sugestões ao Estado-Maior da
Aeronáutica, sobre matéria de organização da Aeronáutica e emprego das
forças aéreas; e preparar e publicar manuais para uso escolar (BRASIL,
1948).

Conforme pode-se depreender da citação acima, desde sua criação, já possuía a


ECEMAR a atribuição fortemente voltada para a produção de conhecimentos, no
campo do Poder Aéreo.

Em 1953, a ECEMAR transfere-se para suas novas instalações, no Galeão, Ilha do


Governador, local em que permanece até o ano de 1985, quando são inauguradas
suas atuais instalações, no Campo dos Afonsos.

4 Historiadores e Teóricos: Insignes Instrutores da ECEMAR

Durante os seus 67 anos de existência, a ECEMAR notabilizou-se pela passagem,


por sua cátedra, de notáveis Instrutores. No tocante à produção de conhecimento,
com vistas ao preparo e emprego do Poder Militar Aeroespacial, no entanto, três
desses oficiais destacam-se, por obras de sua autoria. Esses oficiais são Nélson
Freire Lavanère-Wanderely, Deoclécio Lima de Siqueira e Murillo Santos.

a) Os historiadores: Lavanère-Wanderley e Deoclécio Siqueira

895
O Tenente-Brigadeiro do Ar Nélson Freire Lavanère-Wanderley, carioca de
nascimento, foi declarado Aspirante-a-Oficial na antiga Escola Militar do Realengo,
em 1930. Destacou-se ainda como jovem tenente na ocasião em que, juntamente
com o então Tenente Casimiro Montenegro Filho, fez o primeiro voo do, à época,
Correio Aéreo Militar (mais tarde Correio Aéreo Nacional – CAN), a 12 de junho de
1931. Durante a Segunda Guerra Mundial, já no posto de Tenente-Coronel,
desempenhou a função de Oficial de Ligação da Força Aérea Brasileira junto ao
Comando das Forças Aéreas Aliadas no Teatro de Operações do Mediterrâneo.
Nessa função, pôde participar das atividades do 1º Grupo de Aviação de Caça da
FAB, na Itália, tendo voado em 19 missões de guerra.

No tocante ao ensino, ocupou relevantes funções, como as de Chefe do Ensino da


Escola de Aeronáutica, Diretor do Curso de Tática Aérea e primeiro Chefe
(―Subdiretor‖), de Ensino na Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica. Em
tal função, destacou-se por auxiliar o primeiro Comandante da ECEMAR, Brigadeiro
Netto dos Reys, em ativar e organizar a Escola, selecionando Instrutores,
organizando currículos e contribuindo para a excelência do ensino naquela
instituição. Finalmente, assumiu o Comando da ECEMAR, no período compreendido
entre 02 ago e 31 out 1949 e, posteriormente, entre 31 out 1950 e 19 jan 1951, e
ainda de 23 fev 1960 a 27 fev 1961.

Em relação à produção de conhecimento, Lavanère-Wanderley escreveu, dentre


outras, as obras ―História da Força Aérea Brasileira‖, em 1966, e ―Estratégia Militar e
Desarmamento‖, em 1969. Na primeira obra, relata o surgimento do Poder
Aeroespacial no Brasil, com os seus precursores, com os primeiros raidsaéreos, a
criação das escolas de aviação, nos Afonsos e no Galeão, a participação da Aviação
na Revolução Constitucionalista de 1932, e a campanha da criação do Ministério do
Ar, nos anos 30. A seguir, descreve a trajetória do Correio Aéreo Nacional e a
criação do Ministério da Aeronáutica e da Força Aérea brasileira, em 1941. Segue-
se um capítulo pormenorizado acerca da participação da FAB na Segunda Guerra
Mundial, quer na Campanha da Itália, quer na Campanha do Atlântico Sul. A par
disso, descreve e analisa momentos decisivos na FAB, como a Revolta de
Jacareacanga, em 1956, a atuação da FAB no Congo, em operação de paz, entre
1960 e 1964, e encerra a segunda edição de sua obra, em 1975, com a reafirmação

896
da glória de Alberto Santos-Dumont, à época considerado ―Patrono da Força Aérea
Brasileira‖. Esta obra é de grande valia para a compreensão acerca da formação e
da consolidação do Poder Aéreo, uma vez que, nos dizeres de Eduardo Gomes, à
época Ministro da Aeronáutica,

O trabalho do Tenente-Brigadeiro Nélson Freire Lavanère-Wanderley vem


preencher uma lacuna há muito sentida por todos. Escrever a História da
Força Aérea Brasileira é um mister que dignificaria qualquer de seus
integrantes e que acrescenta mais uma parcela de mérito a um de seus
pioneiros (GOMES, apudLAVANÈRE-WANDERLEY, 1975, p. 9).

Em sua obra subsequente, ―Estratégia Militar e Desarmamento‖, de 1969, Lavanère-


Wanderley discorre acerca dos modernos conceitos de Estratégia, abrangendo
desde a questão das Relações Internacionais em um mundo polarizado pela Guerra
Fria, até as ideias de Segurança Estratégica, mormente na América Latina,
passando pelas doutrinas de Estratégia Nacional, Estratégia Militar, e ainda pelas
ações militares na guerra moderna. Nestas, destaca-se sua visão de ações militares
de caráter estratégico, a qual ia de encontro à doutrina até então vigente, na FAB,
que era de ações puramente aerotáticas, ou seja, de apoio às forças de superfície.
Nas ações de caráter estratégico, ―a decisão é obtida no âmbito da Estratégia Geral,
isto é, agindo ao mesmo tempo sobre os campos militar, econômico, psicossocial e
político do poder nacional do inimigo‖ (LAVANÈRE-WANDERLEY, 1969).

O Brigadeiro Lavanère-Wanderley ainda tece considerações sobre a Estratégia


Nuclear, de grande importância à época em que o mundo vivia preso às ideias de
confrontação atômica entre as superpotências, bem como à utilização militar do
espaço exterior, à época denominado ―espaço cósmico‖, às demais armas de
destruição em massa (químicas e biológicas), e ainda à guerra revolucionária.

No tocante ao desarmamento, suas considerações não estão voltadas para o Poder


Militar Aeroespacial, especificamente, mas para os tratados internacionais de caráter
multilateral e bilateral, com ênfase para o Tratado de Não-Proliferação de Armas
Nucleares, e para as conversas sobre limitação de armas estratégicas, entre as
superpotências.

Tamanha foi a relevância da atuação do Brigadeiro Lavanère-Wanderely para esta

897
Escola, que a ECEMAR foi escolhida para, após seu falecimento, receber sua
memorabilia, composta de condecorações, distintivos, brevês, citações e outros
documentos, dispostos em memorial em sua homenagem.

Dentre os militares que desempenharam a função de Instrutor da ECEMAR, cabe


igualmente salientar a figura do Tenente-Brigadeiro do Ar Deoclécio Lima de
Siqueira. O BrigDeoclécio nasceu em Jardinópolis (SP), no ano de 1916 e foi
declarado Aspirante-a-Oficial, ainda na antiga Escola Militar do Realengo, a 22 de
novembro de 1937. Teve destacada atuação nas linhas do Correio Aéreo Nacional
e, durante a Segunda Guerra Mundial, cumpriu 137 missões de patrulhamento
marítimo no litoral brasileiro, em proveito da guerra antissubmarina contra a
agressão nazi-fascista. Nas atividades de ensino, foi Instrutor da ECEMAR nos anos
de 1950, 54, 58, 59, 63 e 1964, tendo chegado ao cargo de Comandante em 31 de
março de 1967, nessa função permanecendo até 10 de fevereiro de 1971, ou seja,
quase quatro anos de Comando. Após sua passagem para a reserva, foi o
idealizador do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER), bem como seu
primeiro diretor, de 1986 até 1992.

Foi autor de vasta obra, de caráter histórico e também doutrinário. Destacam -se
os livros ―Caminhada com Eduardo Gomes‖, escrito em 1984, no qual relata
significativa parte de sua carreira sob o comando do líder Marechal-do-Ar
Eduardo Gomes, quer nas linhas do Correio Aéreo Nacional, desbravando os
rincões brasileiros, ainda no tempo da aviação ―arco e flecha‖, quer no Nordeste
brasileiro, participando do esforço de guerra contra o Eixo, na Segunda Guerra,
executando missões de patrulha antissubmarino e auxiliando Eduardo Gomes a
implantar as bases e unidades aéreas da recém-ativada Força Aérea Brasileira,
em meio ao conflito.

Sua outra obra, ―Fronteiras‖, de 1986, apresenta um caráter mais doutrinário. Nele,
Deoclécio relata, após extenso trabalho de pesquisa histórica, não apenas suas
experiências nas missões de patrulha antissubmarino, na guerra, mas trata de todos
os aspectos da luta contra aquela ameaça, incluindo as estratégias e táticas da
guerra submarina e, por outro lado, o preparo e emprego das forças brasileiras e
norte-americanas que combatiam os submarinos do Eixo, nas porções Norte e Sul
do Oceano Atlântico.

898
Todos os ataques dos submarinos do Eixo, quer alemães ou italianos, levados a
efeito na costa brasileira, são relatados de forma pormenorizada, com recurso a
fontes históricas primárias.

Um aspecto importante, em relação à obra ―Fronteiras‖, diz respeito à evolução das


táticas e das novas tecnologias de navegação e ataque, em proveito da luta
antissubmarino. Nesse aspecto, cita o autor que,

O aumento do poder dos submarinos era evidente. Já aparecera o snorkel,


um tubo respiradouro que permitia a eles permanecer a pouca
profundidade por muito tempo. No campo das medidas eletrônicas,
progrediram também. Desenvolviam medidas antirradar e utilizavam o
efeito doppler para mistificar suas posições. Aumentavam a capacidade e
aperfeiçoavam e reforçavam o armamento. Até meios aéreos garantiam
mais segurança. Do lado das democracias livres, o mesmo acontecia.
Novos aviões chegavam, com maior velocidade. Maior capacidade e
armamento mais apropriado. A tática dos ataques noturnos se aprimorava
[...] Apareceu a ideia das boias sonoras que, lançadas ao mar, captavam a
direção do som dos submarinos e a transmitia aos aviões, facilitando a
marcação da posição. Surgiram os paraquedas luminosos, o rádio
altímetro e possantes faróis de ataque sob as asas. No campo dos
armamentos, a grande novidade eram os foguetes de alta velocidade e
cinco polegadas de diâmetro, o famoso HVAR-5 (High
VelocityAircraftRocket– 5) que, lançado de avião, podia transpor a couraça
dos submarinos. (...) Mas, a grande vedete de tudo era o radar. O
aparecimento desse extraordinário engenho no universo da aviação veio
revolucionar essa atividade humana. A sigla significa Radio
DetectionandRanging – rádio detecção e rastreamento (SIQUEIRA, 1986,
p. 89).

A verdadeira maturidade do Poder Aéreo brasileiro na guerra antissubmarina, no


entanto, foi alcançada em outubro de 1943, com a criação da Unidade Aérea de
Treinamento Brasil-Estados Unidos (United States-Brazil Air Training Unit –
USBATU). A missão dessa unidade, ativada pela Marinha dos Estados Unidos no
setor norte-americano da Base Aérea de Natal (RN), era o de capacitar as
tripulações brasileiras com o stateoftheart da guerra antissubmarino, treinando
nosso pessoal nas mais modernas técnicas, táticas e equipamentos existentes, já
citados anteriormente. Deoclécio, também em ―Fronteiras‖, faz um relato das
atividades da USBATU, fartamente documentado, o qual traz uma imagem vívida da
importância de tal treinamento para a consolidação do Poder Aéreo da FAB. Cita
Deoclécio que,

899
O importante, porém, é o objetivo que a referida unidade se propunha
alcançar. No capítulo anterior, ficou clara a necessidade de uma evolução no
sentido de atualizar os conhecimentos dos aviadores da FAB, a fim de
capacitá-los a uma luta mais eficiente contra os submarinos inimigos, pois o
avanço da tecnologia não comporta mais a improvisação do arco e flecha
(SIQUEIRA, 1986, p. 105).

O Brigadeiro Deoclécio, em ambas as obras, contribuiu para que o pensamento e as


circunstâncias que nortearam a formação inicial do Poder Militar Aeroespacial
brasileiro, em plena Segunda Guerra, fossem conhecidos pelo público, e difundidas
no seio da FAB. Empreendeu, inclusive, pesquisas avançadas sobre o Poder Aéreo
na Segunda Guerra, a partir de fontes primárias. Entrevistou Mitsuo Fuchida, o
principal comandante do ataque aéreo a Pearl Harbour, em 7 de dezembro de 1941,
e que também teve significativa participação na batalha de Midway, no ano seguinte.
Na obra ―Fronteiras‖, Deoclécio faz o seguinte comentário sobre tal entrevista,

Os mesmos porta-aviões que escaparam ao ataque de Pearl Harbour, foram


os que, seis meses depois, a 4 de junho de 1942, massacraram os porta-
aviões japoneses. E Mitsuo Fuchida, o comandante dos aviões contra Pearl
Harbour, estava também em Midway e, sobre esta batalha, elaborou um
precioso testemunho em livro famoso. Desejei vê-lo nesta viagem ao Japão.
Havia muitos pontos a esclarecer (SIQUEIRA, 1986, p. 110).

Em reconhecimento à atuação do Brigadeiro Deoclécio na ECEMAR, quer como


Instrutor, quer como Comandante, o auditório principal dessa Escola foi designado
como ―Auditório Brigadeiro Deoclécio‖. Esse oficial veio a falecer no ano de 1998,
mas sua profícua contribuição ao estudo do Poder Militar Aeroespacial continua a
ser utilizada, na ECEMAR, no INCAER e em instituições de ensino militar, face à
importância de seus escritos para a consolidação da doutrina da Força Aérea
Brasileira.

b) O teórico do Poder Aéreo: Murillo Santos

O Tenente-Brigadeiro-do-Ar Murillo Santos ingressou na Força Aérea Brasileira em


1948, tendo sido declarado Aspirante-a-Oficial em 1950. Durante sua carreira,
ocupou diversas funções relevantes, dentre as quais as de Comandante da Escola
de Aperfeiçoamento de Oficiais da Aeronáutica, bem como de Instrutor da Escola de
Comando e Estado-Maior da Aeronáutica, nos anos de 1972 até 1976. Neste último
ano, exerceu a função de Chefe do Departamento de Ensino da ECEMAR.

900
Murillo Santos escreveu, em 1989, uma obra de caráter doutrinário, denominada
―Evolução do Poder Aéreo‖, a qual se inicia com as conceituações básicas acerca
desse poder. Estabelece que o Poder Aéreo (ou Aeroespacial), é composto por três
elementos,

Desenvolvimento tecnológico de veículos aéreos e espaciais, bem


como de toda a infraestrutura decorrente; recursos humanos, que os
dirijam, operem e sobre eles pensem e raciocinem; e ideias, conceitos
e doutrinas, que descrevam o que o Poder Aéreo pode e deve fazer
(SANTOS, 1989, p. 16).

Santos continua sua obra com a contextualização histórica do desenvolvimento do


Poder Aéreo, iniciando pelos primórdios e pela Primeira Guerra Mundial. A seguir,
tece considerações sobre as primeiras elaborações teóricas do Poder Aéreo.
Nessas considerações, examina a carreira e o pensamento do General Giulio
Douhet, italiano, considerado o ―profeta da guerra aérea‖. Douhet codificou seus
pensamentos doutrinários, a respeito do Poder Aéreo e da Guerra Aérea, em sua
obra fundamental: ―O Domínio do Ar‖, publicada em 1921. Douhet é o primeiro
pensador do Poder Aéreo a compreender a capacidade do avião em empreender
ações de caráter estratégico, ou seja, atingir o inimigo não apenas no campo militar,
mas nos demais campos do Poder Nacional, ou seja, o econômico, o político e o
psicossocial. Cita Dohuet em sua obra que,

Sendo independente da superfície e podendo deslocar-se mais


rapidamente do que qualquer outro meio, o aeroplano veio a tornar-se
uma arma ofensiva por excelência. Movimenta-se em todas as
direções com igual facilidade e alcança maior velocidade. As forças
aéreas acham-se, portanto, em condições de ameaçar todo o
território incluído em seu raio de ação (...) Ademais, como ele bem
destaca, não se trata apenas de alcançar as forças militares dos
inimigos, mas de afetar seu ânimo moral, levando a guerra até a
retaguarda, fazendo assim desaparecer a já mencionada
característica predominante da Primeira Guerra Mundial, que era a de
circunscrever-se o Teatro de Operações a uma parcela do território,
deixando a vida fluir com relativa normalidade em derredor (SANTOS,
1989, p. 38).

O conceito-chave de Douhet, consistia na expressão ―Domínio do Ar‖ ou ―Controle


do Ar‖, o qual foi expresso da seguinte forma: ―dominar o ar significa estar em

901
condições de impedir o voo do inimigo, ao mesmo tempo em que se garante esta
faculdade para nós mesmos‖ (SANTOS, 1989).

Murillo Santos considera que as ideias de Douhet podem ser sintetizadas da


seguinte forma:

Para assegurar-se uma adequada defesa nacional, é necessário e


suficiente que se tenha condições, em caso de guerra, de obter o
comando do ar. O objetivo primário dos ataques aéreos não deve ser
as instalações militares, mas sim as indústrias e os centros
populacionais distantes do contato com as forças de superfície
inimigas. A força aérea inimiga não precisa ser destruída somente no
combate aéreo, mas sim a partir de suas instalações e fontes de
produção (SANTOS, 1989, P. 43).

Nesse contexto, Douhet antecipou a existência não apenas das operações


aeroestratégicas, mas igualmente das ações que viriam, no futuro, a ser
denominadas Supressão de Defesas Aéreas Inimigas (SDAI), as quais iniciam todas
as campanhas aéreas, na guerra moderna.

A par de Douhet, Murillo Santos relata as ideias do General William ―Billy‖ Mitchell,
do Exército dos Estados Unidos da América (EUA), ―defensor tenaz da organização
autônoma da Força Aérea‖ (SANTOS, 1989). Mitchell, contemporâneo de Douhet,
partilhava muitas de suas teorias, em especial aquelas relacionadas ao emprego
estratégico da aviação; conforme Santos,

Assim, acreditava na eficiência e no papel essencial do ataque aéreo


a instalações industriais e atividades de que dependia o inimigo.
Supunha mesmo que a ação deste pudesse ser paralisada com níveis
modestos de bombardeio (SANTOS, 1989, p. 49).

As palavras exatas de Mitchell, a respeito da paralisação completa das atividades


inimigas, utilizando-se de poucos meios aéreos, foram assim escritas,

É desnecessário que estas cidades sejam destruídas, no sentido de


que toda casa seja nivelada com o chão. Basta que se consiga
impedir a população de realizar suas atividades costumeiras. Umas
poucas bombas de combustíveis serão suficientes (MITCHELL apud
SANTOS, 1989, p. 49).

902
Murillo Santos, ainda na sua obra fundamental, ―Evolução do Poder Aéreo‖, traça
uma visão geral da Aviação entre as duas grandes guerras. A princípio, relata a
experiência britânica com a criação da Real Força Aérea (Royal Air Force – RAF),
em 1918, e de seu principal propugnador, líder e organizador: o Marechal-do-Ar Sir
Hugh Trenchard. Oficial oriundo da Infantaria do Exército britânico, Trenchard
aprendeu a pilotar em 1912, com 39 anos de idade, já na patente de Major.
Participou da Primeira Guerra Mundial como aviador, tendo sido promovido a
general ainda durante a guerra. Sua brilhante participação no conflito levou as
autoridades militares britânicas a designá-lo para chefiar o processo de organização
da nova força armada.

Os motivos que levaram os britânicos à criação de uma Força Aérea autônoma,


segundo Santos, não foram ideias desenvolvidas e elaboradas por estados-maiores,
mas sim um senso de urgência, causado pelo bombardeio de Londres pelos
alemães, em 1917, consubstanciado no ―RelatórioSmuts‖.

O segundo relatório do Comitê do Primeiro-Ministro, designado para


examinar a organização aérea e a defesa aérea nacional contra raids
aéreos, foi datado de 17 de agosto de 1917. O Marechal de Campo Jan
Smuts era o presidente deste Comitê, formado para enfrentar o problema
crucial surgido em decorrência dos bombardeios a Londres. Como
consequência desse relatório, criou-se, no começo de 1918, a
IndependentBombing Force, para a realização de operações aéreas
estratégicas, e organizou-se mais tarde, de forma autônoma, a Royal Air
Force. O Relatório Smuts tornou-se um documento clássico na história
da evolução do Poder Aéreo (EMMEapud SANTOS, 1989, p. 60)

A obra de outro importante teórica do Poder Aéreo, Alexander P. Seversky, é


relatada a seguir, por Murillo Santos. Ênfase é dada à obra de Seversky,
Victorythrough Air Power (Vitória pela Força Aérea, na edição brasileira), a qual,
publicada em 1942, tornou-se importante referência no tocante ao emprego do
Poder Aéreo, no âmbito da estratégia militar. O livro de Seversky contém uma
análise judiciosa acerca da ―Batalha da Inglaterra‖, na qual as forças aéreas alemã
(Luftwaffe) e britânica (RAF) enfrentaram-se, em busca do controle do ar sobre as
ilhas britânicas. Face à derrota dos alemães, a interpretação de Seversky é de que a
Luftwaffe não estava preparada para uma verdadeira campanha aeroestratégica,
mas apenas para o apoio aéreo aproximado, isto é, o apoio às forças de superfície.

903
O Terceiro Reich tinha construído bombardeiros que eram belas
máquinas voadoras, às quais se incorporavam os últimos
conhecimentos aerodinâmicos. Eram de excelente construção e
admiravelmente adequados à eficácia do piloto. Mas não possuíam o
alcance, a necessária capacidade de carga de bombas, a blindagem,
ou a potência de fogo, que os habilitasse a bombardear os objetivos,
nas verdadeiras condições de conflito aéreo (SEVERSKYapud
SANTOS, 1989, p. 79).

Os demais capítulos de ―Evolução do Poder Aéreo‖ são dedicados aos relatos


acerca da atuação das forças aéreas na Segunda Guerra Mundial, na Guerra da
Coreia, Guerra do Vietnã, das guerras entre ìndia e Paquistão e árabe-israelenses,
Guerra das Malvinas e outros conflitos contemporâneos. Em todos eles, Santos
reafirma a ênfase nos aspectos da evolução tecnológica da Guerra Aérea, em
especial acerca do advento do radar, na Segunda Guerra Mundial, e do míssil, mais
recentemente.

A obra do Tenente-Brigadeiro do Ar Murillo Santos é hoje, utilizada como livro


didático na ECEMAR, face à sua amplitude, cobrindo de forma abrangente mais de
um século da história e do pensamento doutrinário do Poder Militar Aeroespacial.

5 Curso de Comando e Estado-Maior: a Produção Científica

Não somente os anteriormente citados Instrutores da Escola de Comando e Estado-


Maior da Aeronáutica, com suas obras publicadas, contribuíram para a formação e
consolidação do pensamento do Poder Militar aeroespacial brasileiro. O principal
curso da ECEMAR, denominado Curso de Comando e Estado-Maior (CCEM),
existente desde a fundação da Escola, em 1946, também tem a atribuição de
produção de conhecimento científico, também no campo do Poder Aeroespacial.

Até o ano de 2003, a produção intelectual do CCEM, feita através de


monografias, não possuía a obrigação de apresentar um caráter rigorosamente
científico. A partir de 2004, no entanto, foi adotada a obrigação de que a
produção intelectual dos Oficiais-Alunos apresentasse um caráter científico, quer
nas monografias, quer nos artigos científicos elaborados pelos alunos. Dessa
forma, proporção significativa da produção dos Oficiais-Alunos foi direcionada

904
para temas ligados diretamente aos aspectos relacionados ao preparo e emprego
do Poder Militar Aeroespacial brasileiro.

Este pesquisador buscou nos arquivos da ECEMAR os dados necessários à


validação de tal afirmação. A amostra foi escolhida entre os anos de 2007 a 2011,
abrangendo assim cinco anos de produção científica do CCEM. As monografias e
artigos científicos foram divididos em duas categorias: aqueles diretamente
relacionados com o Poder Militar Aeroespacial, e aqueles não diretamente
relacionados a tal Poder, conforme a tabela adiante.

Tabela 1 – Comparação entre trabalhos científicos realizados

pelos Oficiais-Alunos do CCEM

Ano Monografias / Artigos Monografias / Total Porcentagem


diretamente
Artigos Mon/ %
relacionados com o
relacionados
Poder Militar Artigos diretamente
Aeroespacial a
relacionados
outros assuntos

2007 087 067 154 56,49%

2008 082 077 159 51,57%

2009 059 084 143 41,25%

2010 099 056 155 63,87%

2011 104 061 165 63,03%

Totais 431 345 776 55,24%

Fonte: Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica

905
Da simples visualização da tabela acima, é possível depreender-se que, dentre um
universo de 776 trabalhos científicos confeccionados pelos Oficiais-Alunos do
CCEM, em período de cinco anos, 431 deles tiveram por tema assuntos diretamente
relacionados com o preparo e emprego do Poder Militar Aeroespacial, perfazendo
assim 55,24%, ou seja, a maioria dentre o total de trabalhos. Destarte, tais números
validam a afirmação acima, confirmando ter a ECEMAR, efetivamente, significativo
papel na formulação do pensamento do Poder Militar Aeroespacial brasileiro.

5 Conclusão

No presente trabalho, foi investigado de que maneira a ECEMAR tem sido, desde
sua criação, um verdadeiro repositório do pensamento do Poder Militar Aeroespacial
brasileiro. No primeiro capítulo, discorreu-se brevemente acerca da metodologia a
ser empregada, nesta pesquisa. A seguir, osaspectos históricos da criação da
ECEMAR foram relatados, de forma a contextualizar a missão da Escola, no tocante
à produção de conhecimentos.

O capítulo subsequente explorou, com maior profundidade, e de forma qualitativa, o


papel de três ilustres Instrutores da ECEMAR, os Brigadeiros Nélson Freire
Lavanère-Wanderley, Deoclécio Lima de Siqueira e Murillo Santos, conhecidos por
sua ampla e ponderável produção científica, nos assuntos relativos ao Poder Militar
Aeroespacial, também chamado Poder Aéreo. Pôde-se pormenorizar, inclusive,
alguns aspectos significativos acerca do Poder Aéreo, tanto em seus aspectos
históricos quanto doutrinários.

Finalmente, foi analisada, de forma quantitativa, uma amostra dos trabalhos


científicos elaborados por Oficiais-Alunos do Curso de Comando e Estado-Maior, os
quais demonstraram, de forma insofismável, a prevalência dos assuntos
relacionados ao Poder Aéreo, em detrimento dos demais assuntos.

Face aos resultados obtidos, quer qualitativos, quer quantitativos, fica plenamente
demonstrado que a ECEMAR vem a er um efetivo repositório do pensamento do
Poder Militar Aeroespacial brasileiro, quer através da produção de conhecimento
científico por seus Instrutores, quer pelos escritos de seus Oficiais-Alunos.

906
Referências Bibliográficas

BRASIL, Presidência da República. Decreto Nº 20.798, de 19 de março de 1946.


Cria o Curso de Estado-Maior da Aeronáutica. 1946.

_____,_____. Decreto Nº 24.203, de 16 de dezembro de 1947. Cria a Escola de


Comando e Estado-Maior da Aeronáutica. 1947

_____,_____. Decreto Nº27.784, de 5 de abril de 1948. Aprova o Regulamento da


Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica. 1948

_____,_____. História Geral da Aeronáutica Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto


Histórico-Cultural da Aeronáutica, 2005.

CASTRO ALVES, Antônio Frederico. Espumas Flutuantes. Salvador: Edições


GRD, 1970.

LAVANÉRE-WANDERLEY, Nelson Freire. História da Força Aérea Brasileira. Rio


de Janeiro: Editora Gráfica Brasileira, 1975.

_____. Estratégia Militar e Desarmamento. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1969.

SANTOS, Murilo. Evolução do Poder Aéreo. Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 1989.

SIQUEIRA, Deoclécio Lima. Caminhada com Eduardo Gomes. Rio de Janeiro:


Editora Revista Aeronáutica, 1984.

_____. Fronteiras. Rio de Janeiro: Editora Revista Aeronáutica, 1986.

907
Simpósio Temático 13

PERIÓDICOS CIENTÍFICOS DE DEFESA: UMA CONTRIBUIÇÃO DAS


INSTITUIÇÕES MILITARES PARA A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO ACADÊMICO-
CIENTÍFICO

Jaqueline Santos Barradas392

1 Introdução

A construção e consolidação da uma área do conhecimento passam pela produção


sistemática de conhecimentos, e sua consequente comunicação aos pares, à
comunidade científica e a sociedade. Para Ziman (1979) a ciência é conhecimento
público e como tal deve ser comunicado. À comunicação científica cabe divulgar os
resultados da evolução da ciência, das pesquisas acadêmicas e científicas por meio
dos periódicos especializados e dos encontros científicos.

O periódico científico apresenta os resultados de pesquisas científicas realizadas em


uma determinada área do conhecimento. A unidade que compõe o periódico é o
artigo científico, produto de uma pesquisa científica realizada. O artigo é a
comprovação de um resultado que deve ser comunicado. Para Ziman (1979, p.24) ―a
pesquisa científica é uma atividade social‖.

A presente comunicação é a primeira parte de uma pesquisa em que se busca


identificar e analisar a contribuição dos periódicos científicos para a
institucionalização e constituição do campo acadêmico-científico da defesa nacional
no Brasil. Assim, tem por objetivo mapear os periódicos científicos correntes
editados por instituições militares no Brasil.

Além da introdução, a comunicação encontra-se dividida em quatro partes. A


primeira parte abordará os conceitos de periódicos científicos, de campos de
conhecimento e de defesa nacional. Em seguida será descrita a metodologia

392
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ) e analista do Centro de
Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra.

908
utilizada para se chegar aos resultados; a terceira parte tratará das variáveis
escolhidas para analisar os periódicos; a quarte parte fará uma análise dos
resultados face as variáveis descritas na parte anterior. As considerações finais
fecham o texto destacando erros e acertos e possíveis caminhos a serem trilhados
tendo em vista a contribuição dos periódicos editados pelas instituições militares
para a consolidação campo acadêmico-científico da defesa nacional no Brasil.

2 Conceito de periódicos científicos, campos de conhecimento e defesa


nacional

Segundo Miranda e Pereira (1996) o periódico, como veículo de comunicação do


conhecimento, cumpre as seguintes funções: registro oficial público da
informação mediante a reconstituição de um sistema de editor-avaliador; arquivo
público - fonte para o saber científico;o estabelecimento de prioridade da
descoberta; e a disseminação de informações para os cientistas: históricas,
metodológicas, pedagógicas etc.. As autoras destacam ainda que os periódicos
cumprem também ―outra importantíssima função, qual seja, a de definir e
legitimar novas disciplinas e campos de estudos, constituindo-se em um legítimo
espaço para institucionalização do conhecimento e avanço de suas fronteiras‖
(MIRANDA; PEREIRA, 1996, p.376). Ziman (1979, p.118) no ensaio publicado
Conhecimento público afirma que ―o carimbo de aprovação de uma nova
disciplina é o aparecimento de uma revista especialmente dedicada aos
interesses de seus expoentes [...] Ela representa um ato de solidariedade e
confraterniza e polariza o assunto‖.

Bourdieu define campo como o ―[...] locus onde se trava uma luta concorrencial entre
os atores em torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão‖
(ORTIZ, 1983, p.19). É o espaço onde se manifestam as relações de poder, o que
implica afirmar que ele se estrutura a partir da distribuição desigual de um quantum
social, que determina a posição que um agente específico ocupa em seu seio. Bourdieu
denomina este quantum de ―capital social‖ (ORTIZ, 1983, p.21). O campo pode ser
considerado tanto um ‗campo de forças‘, pois constrange os agentes nele inseridos,

909
quanto um ‗campo de lutas‘, no qual os agentes atuam conforme suas posições,
mantendo ou modificando sua estrutura (BOURDIEU, 1996).

O campo científico é um espaço em que pesquisadores disputam o monopólio da


competência científica, cujo funcionamento pode ser comparado a um jogo, em que
os princípios do funcionamento são dominados por seus participantes.

Para se compreender o campo acadêmico-científico de defesa é preciso conhecer


ainda o conceito de Defesa Nacional. Este não é encontrado facilmente na literatura,
embora se trate de um dos campos mais antigos na história das sociedades. É
preciso recorrer à literatura especializada para localizá-la e é frequentemente
associados a outros muito próximos, como segurança e dissuasão. Proença Filho e
Diniz (1998, p. 55) a define como ―o conjunto das ações militares visando a garantir
o estado de segurança‖. Em outro trecho da mesma obra, esses autores afirmam
que ―a defesa reduz a capacidade do inimigo em nos causar danos ou mesmo
derrotar-nos‖. Na Política de Defesa Nacional, aprovada pelo Decreto nº 5.484, de
30 de junho de 2005, o conceito adotado é que a defesa nacional ―é o conjunto de
medidas e ações do Estado, com ênfase na expressão militar para a defesa do
território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças
preponderantemente externas, potenciais ou manifestas‖.

Pelas definições acima se entende que a defesa nacional é uma área


intrinsicamente vinculada às instituições militares de um país, embora não exclusiva
das mesmas. Assim, a presente comunicação restringe-se a identificar e analisar a
contribuição dos periódicos científicos editadas por essas instituições, denominadas
Forças Armadas: Exército, Marinha e Aeronáutica. Inclui-se nesse contexto a Escola
Superior de Guerra, um instituto de altos estudos diretamente subordinada ao
Ministério da Defesa, cuja administração é militar.

3 Metodologia

Este trabalho é parte de uma pesquisa em que se investigam as contribuições dos


periódicos científicos de defesa para a construção do campo acadêmico-científico da

910
defesa. Este recorte inicial da pesquisa foi realizado investigando o papel das
instituições militares como editores científicos, cujos resultados encontram-se
descritos nesta comunicação.

O levantamento teve como ponto de partida a pesquisa no portal do Ministério da


Defesa do Brasil em que se encontra a Rede de Bibliotecas do Ministério da Defesa
(REBIMD), onde estão listados, entre outros, os periódicos editados pelas
instituições militares. Uma busca mais exaustiva foi realizada no site de cada
periódico e, em alguns casos, na própria coleção de periódicos. A pesquisa na
REBIMD e nos sites foram realizadas entre os dias 20 e 27 de março de 2013 e
revistos em 03 de julho de 2013.

A investigação quantificou a coleção de periódicos das instituições militares em um


total de dezessete (17)assim distribuídos: dois editados pela Escola Superior de
Guerra (ESG), seis pela Marinha, quatro pelo Exército e cinco pela Aeronáutica. Os
resultados foram apresentados em um quadro em que se considerou a tabela de
classificação do QUALIS/ CAPES por área do conhecimento, a instituição editora, a
periodicidade, a indexação em bases de dados, a utilização de sistema OJS (Open
Journal System), o ano da 1ª edição e o ISSN (International Serial Standart Number)
impresso e eletrônico, além da área definida pelo editorial e a vinculação a
programas de graduação ou pós-graduação no Brasil.

4 As variáveis escolhidas para analisar os periódicos

Para o exame dos periódicos foram escolhidos alguns fatores extrínsecos e


intrínsecos como critérios de avaliação: editor; Qualis e a respectiva área indexada;
periodicidade; Sistema OJS; 1ª edição; ISSN; indexação em bases de dados; área
definida pelo editorial; vinculação a programas de graduação ou pós-graduação.

Editor

Miranda e Pereira (1996) dedicam alguns parágrafos abordando o papel do editor


científico. Para as autoras os editores desempenham papel central no processo de

911
comunicação na ciência. A maior parte das decisões a respeito do conteúdo dos
periódicos científicos é tomada pelos editores, e muito se têm indagado a respeito
do seu papel. Um dos papéis mais discutidos é o de gatekeeper da ciência. Esse
papel, segundo Crane, é aquele que se traduz pela função intermediária
desempenhada pelo editor entre autores e leitores no que concerne à seleção do
que o público vai ler. O papel de gatekeeper é mais difícil de desempenhar nas
ciências sociais, em que as decisões e as normas são mais subjetivas. É difícil
decidir o que é qualidade e o que não é. Para Munters, qualidade não é apenas
uma questão de exatidão. Eles funcionam não apenas como intermediários entre
autores e o público alvo, mas, principalmente, como integradores de interesses
diversos: de autores, do público, do publicador, da gráfica, do periódico, da
disciplina científica e dele mesmo.

Neste processo, editores são igualmente assessorados por seus pares enquanto
membros do corpo editorial na forma de referees ou de outras posições que
complementem o papel do editor. Nesse sentido, o editor não é um livre
empreendedor.

A formação dos editores é provida pela própria prática, e o importante é o


conhecimento da área de pesquisa, e não o profissional relativo à publicação,
pois sua principal tarefa é o controle de alta qualidade. O tempo necessário para
obter experiência é longo, cerca de oito anos. A atividade raramente
éremunerada e, na maioria das vezes, o editor concilia sua função de professor e
pesquisador com as funções típicas de edição de periódicos.

QUALIS Periódicos

QUALIS Periódicos é o conjunto de procedimentos utilizados pela CAPES


(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) para estratificação
da qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação. Os
resultados são disponibilizados em uma lista online com a classificação dos
periódicos utilizados pelos programas de pós-graduação para a divulgação da sua
produção. A estratificação da qualidade dessa produção é realizada de forma

912
indireta, seguindo critérios pré-estabelecidos. A classificação de periódicos é
realizada pelas áreas de avaliação e passa por processo anual de atualização.
Assim, os periódicos são enquadrados em estratos indicativos da qualidade, sendo o
A1, o mais elevado, seguindo-se os demais estratos (A2; B1; B2; B3; B4; B5) até o
C, com peso zero. É interessante observar que um mesmo periódico, ao ser
classificado em duas ou mais áreas distintas, pode receber diferentes avaliações.
Isto não constitui inconsistência, mas expressa o valor atribuído, em cada área, à
pertinência do conteúdo veiculado. (CAPES, 2013)

Área indexada

A QUALIS se utiliza da tabela de classificação de áreas do conhecimento da


CAPES, dividida em 48 áreas. A área de defesa não existe em tal classificação,
razão pela qual os periódicos, ao serem classificados pela Coordenação, são
indexados em outras áreas do conhecimento, de acordo com os programas de pós-
graduação em que estiverem vinculados.

Periodicidade

A periodicidade de um periódico é importante termômetro da área. A demanda


frequente de autores interessados em publicar e o consequente fluxo contínuo ou não
de originais, demonstra o interesse que existe em publicar em uma determinada área
do conhecimento. Aqueles periódicos que possuem fluxo mais intenso de originais
publicam mais vezes ao ano, com regularidade e pontualidade. Apontam ainda um
interesse pontual ou o crescente interesse de grupos por determinadas áreas.

As maiores dificuldades dizem respeito à ausência de uma cultura acadêmica de


publicação. Nesse sentido, os periódicos precisam primeiro estabelecer normas e
valores culturais, criando condições institucionais para sua sobrevivência.
(MIRANDA; PEREIRA, 1996, p.379)

913
Sistema OJS

Trata-se de uma iniciativa de acesso aberto que proporciona interoperabilidade entre


bibliotecas e repositórios digitais. Em decorrência da discussão e promoção do
acesso aberto surge o Open Journal System – OJS, desenvolvido pelo Public
Knowledge Project (PKP) da British Columbia University e Simon Fraser University
Library, ambas do Canadá. O OJS é software de formato aberto e utiliza o protocolo
de dados Open Archives Initiative Protocol for Metadata Harvesting (OAI-PMH). O
OJS é um sistema de publicação e gestão de periódicos científicos eletrônicos,
composto por um software de código aberto, disponível para periódicos do mundo
todo. Tem o objetivo de aumentar os leitores das revistas científicas, bem como
contribuir para o bem público em escala global. No Brasil, o OJS foi traduzido e
customizado pelo IBICT, ficando conhecido como SEER (Sistema Eletrônico de
Editoração de Revistas) (LIMA;MIRANDA, 2011)

1ª edição

Define a antiguidade de um periódico na área de conhecimento. Os títulos correntes,


ou seja, aqueles que se encontram editados initerruptamente desde a sua primeira
edição, revelam um interesse contínuo de uma determinada área do conhecimento,
que se manteve ao longo de um período de tempo. A 1ª edição marca o momento na
história que o tema se tornou público, em que houve a necessidade de comunicar os
resultados de pesquisas emergentes em uma determinada área do conhecimento.

ISSN (International Standard Serial Number)

Trata-se de um código universal para identificar de publicações seriadas por meio de


seus títulos. O ISSN (International Standard Serial Number), sigla em inglês para
número internacional normalizado para publicações seriadas, é o código aceito
internacionalmente para individualizar o título de uma publicação seriada. Por ser
um código único, o ISSN identifica o título de uma publicação seriada que esteja em
circulação, em fase de lançamento ou que já saiu de circulação, seja qual for o

914
idioma ou suporte físico utilizado (impresso, .online, CD-ROM e demais mídias). O
ISSN é composto por oito dígitos distribuídos em dois grupos de quatro dígitos cada,
ligados por hífen e precedido sempre por um espaço e a sigla ISSN. A aplicação do
ISSN apoia o controle bibliográfico universal e auxilia na produção editorial do país,
promove a identificação de títulos, a recuperação e transmissão de dados (IBICT,
2013).

Na busca pelos periódicos na base QUALIS é um dos campos utilizados para


recuperação da informação.

 Indexação em bases de dados

 Área definida pelo editorial

Pesquisa do termo defesa no editorial das revistas:

A Revista Militar de Ciência e Tecnologia (RMCT) é um


periódico científico, destinado à publicação de artigos, bem
como de noticiários, relacionados à pesquisa e ao
desenvolvimento científico-tecnológico de interesse do Exército
e do País, no tocante à Segurança Nacional.

5 Análise dos resultados

No que se refere ao papel dos editores, percebe-se certo amadorismo na realização


das atividades nas instituições militares. Pode-se atribuir ao pouco conhecimento
dos editores sobre as exigências dos órgãos que atribuem a qualificação dos
periódicos no Brasil e no exterior. Observa-se certa ingenuidade no que se refere à
competitividade existente no contexto dos periódicos científicos, quer seja na disputa
dos autores e textos que contenham destacada qualidade acadêmica, quer seja na
concorrência pelos recursos de agências de fomento privadas e governamentais.

Uma notícia veiculada pela Folha de São Paulo, em julho de 2013, informa a
suspensão de quatro revistas brasileiras pela Thomson Reuters, empresa que
organiza a lista do JCR. A notícia afirma que as revistas brasileiras usaram um

915
truque conhecido como "stacking" para inflar o fator de impacto. A prática é uma
espécie de citação cruzada. Uma revista A cita a revista B, enquanto a B cita a
revista A. Assim, a média de citações é inflada. O editor de uma das revistas
suspensas393, afirmou que pode estar havendo uma diferença de tratamento com os
brasileiros: "Os editores das revistas científicas do Brasil não são profissionais como
os da Europa e dos EUA. Nós somos autores" (MIRANDA, 2013).

Este fato reflete uma realidade no que se refere ao papel dos editores no Brasil. Se
os editores de revistas científicas do Brasil ainda pecam em quesitos como os
citados anteriormente, o que se dirá em relação aos editores de instituições militares
que ainda não desconhecem muitos fatores relacionados as práticas
institucionalizadas das atividades dos editores?

No que se refere à qualificação dos periódicos pela QUALIS/CAPES, o mais bem


qualificado é a Revista da ESG, no estrato B2 (na área de Ciência Política e
Relações Internacionais) que, em 2013, completa 30 anos de edição ininterrupta. Os
demais periódicos analisados encontram-se aglomerados entre os estratos B3 a B5.
Nenhum dos periódicos estudados conquistou os níveis superiores da qualificação,
os estratos B1, A2 e A1.

Embora os periódicos analisados cumpram os requisitos: ISSN, periodicidade e


regularidade de publicações, não há uma preocupação em cumprir os requisitos
básicos da qualificação de acordo com o previsto no Qualis. Pode-se atribuir certo
desconhecimento sobre as exigências. Entretanto, observa-se o empenho das
instituições em manter, com recursos próprios, a edição e a divulgação dos
periódicos.

É visível a pouca utilização do sistema OJS nos periódicos analisados. Os editados


mais recentemente já nasceram no sistema, como se pode observar nos periódicos
editados pela Força Aérea Brasileira (Conexão SIPAER e JATM) ou mesmos em
alguns mais antigos que migraram para a plataforma, como a Coleção Meira Matos,
a Pesquisa Naval e a Revista da UNIFA. Não se têm noticias se os mais antigos
estão se realizando o movimento para migração para tal plataforma. Cabe destacar
que, embora boa parte das revistas estudadas tenha acesso à web (com exceção de

393
Bruno Caramelli, editor da revista da AMB.

916
dois periódicos: A Defesa Nacional e a Revista do Exército Brasileiro), elas se
encontram disponibilizadas em acessos eletrônicos diversos, mas nem sempre pelo
sistema OJS. O fato é que o uso da OJS é um dos requisitos para um periódico ser
aceito pelo portal Scielo, por exemplo, já que permite a interoperabilidade entre
acervos digitais.

Quanto à antiguidade das revistas editadas pelas instituições militares podem-se


observar algumas situações curiosas:

 o periódico mais antigo que se teve conhecimento, Revista Marítima


Brasileira, editado pela Marinha do Brasil, data de meados do século XIX
(1851), com edições correntes;

 a Revista do Exército Brasileiro, cujo primeiro número corresponde ao ano de


1882, disponibiliza os quatro primeiros anos na Hemeroteca Digital Brasileira,
uma parceria com a Fundação Biblioteca Nacional para o resgate da memória
daquele histórico periódico (HEMROTECA, 2013).

 a revista A Defesa Nacional , fundada em 1913, tem sido alvo de estudos de


alguns pesquisadores e historiadores, relacionando-a ao movimento de
modernização do Exército Brasileiro realizado em 1934.

Percebe-se uma proliferação de periódicos lançados a partir de 2005. Talvez fosse


interessante que houvesse o fortalecimento dos periódicos já existentes e
qualificados do que a pulverização em muitos periódicos pouco qualificados.

Quanto à vinculação a programas de graduação ou pós-graduação, três dos cinco


periódicos editados pela FAB têm estreita vinculação a programas: Revista da
UNIFA, JATM e Reta@. A Revista da UNIFA está vinculada ao Mestrado profissional
em Ciências Aeroespaciais; a JATM; e Reta. No Exército, a Revista Militar de
Ciência e Tecnologia é editada pelo IME, que possui nada menos que oito cursos de
mestrado e três de doutorado, entre eles a pós-graduação em Engenharia de Defesa
com cursos de mestrado e doutorado. Possui ainda a Coleção Meira Matos, editada
pelo Instituto Meira Matos e vinculada ao programa de pós-graduação, reconhecido
pela lei de Ensino do Exército com área de concentração em defesa nacional.
Recentemente a CAPES reconheceu o Curso de Mestrado Acadêmico em Ciências

917
Militares da ECEME, aprovando e recomendando a sua implantação, com a
avaliação ―Conceito 3‖ (CURSO..., 2013). Na Marinha, duas revistas estão
vinculadas à formação acadêmica: a Revista da EGN, editada pela Escola de Guerra
Naval, está diretamente relacionada à educação superior de pós-graduação em
Ciências Navais ministrada por aquela Escola; e a Revista de Villegagnon, editada
pelo Escola Naval, órgão de formação com graduação em Ciências Navais, ambas
reconhecidos pela Lei de Ensino da Marinha (BRASIL, 2006).

6 Considerações finais

Embora existam 17 periódicos editados pelas instituições militares, nem todos


abrangem, necessariamente, a área de defesa. Desses, cinco têm declarado como
escopo a área de defesa ou segurança. Outros, embora editados pela área, tratam
de assuntos correlatos, transversais e periféricos, concorrendo e consumindo os
escassos recursos da área.

É necessário que os editores se profissionalizem para trazerem maiores resultados


para suas revistas, como visibilidade dos trabalhos realizados e publicados
possibilitando que os resultados das pesquisas comunicados pelos artigos, bem
como seus autores, sejam conhecidos, reconhecidos e citados.

Igualmente importante é que as instituições militares cobicem a indexação de seus


periódicos em bases de dados, que poderão alavancar a disseminação do
conhecimento e a utilização e a projeção de artigos, dos autores, das instituições em
âmbito nacional e internacional.

Há que se ter um foco para o empoderamento da área. A inexistência de um politica


que defina e direcione recursos - humanos, financeiros, tecnológicos – ocasiona a
falta de foco e o dispêndio e o concurso de recursos já escassos. O Exército foi o
único que editou uma diretriz que define normas para publicação de revistas
militares (BRASIL, EB, 2001), demonstrando uma preocupação em alinhar objetivos
e recursos.

918
Os resultados desta pesquisa revelam que a preocupação constante das instituições
militares em comunicarem os resultados de suas pesquisas remonta ao século XIX,
com a criação do primeiro periódico cientifico. Entretanto cabe ressaltar que a
inexistência da área do conhecimento Defesa nas agências governamentais como a
CAPES e o CNPQ faz com que os periódicos sejam classificados em outras áreas
interdisciplinares do conhecimento como Ciência Política e Relações Internacionais,
História, Engenharias, pulverizando os resultados das pesquisas nesta área de
conhecimento e dificultando a consolidação da área de Defesa como campo de
conhecimento.

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Guaratinguetá: EEAR, 2009. Disponível em:
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https://www.egn.mar.mil.br/arquivos/revistaEgn/index.html Acesso em 03 jul.2013

921
Simpósio Temático 14

A SISTEMÁTICA DE PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO NO MINISTÉRIO DA


DEFESA: UMA ANÁLISE CRÍTICA

Adriano Lauro394

Rudibert Kilian Junior395

1 Introdução

No Ministério da Defesa (MD), enquanto o Processo de Planejamento Conjunto (PPC)


aborda o planejamento em níveis tático e operacional, existem dois documentos
regulando o planejamento estratégico: a Sistemática de Planejamento Estratégico
Militar (SPEM) e o Sistema de Planejamento Estratégico de Defesa (SISPED).

O Estado brasileiro, atualmente, prioriza a redução das diferenças sociais 396


existentes no país; por isso, os recursos orçamentários destinados ao preparo das
Forças Armadas para o cumprimento de suas finalidades constitucionais são
escassos. Portanto, é primordial que a sistemática de planejamento estratégico, no
âmbito do Ministério da Defesa, seja efetiva e permita o planejamento de longo
prazo para o emprego judicioso dos recursos disponíveis, evitando-se a duplicação
de esforços, a perda de eficiência e desvios de direção.

Este artigo visa à avaliação dos documentos que regulamentam o planejamento de


alto nível das Forças Armadas, especificamente a Sistemática de Planejamento
Estratégico Militar (SPEM) e o Sistema de Planejamento Estratégico de Defesa
(SISPED), no sentido de contribuir para a administração do MD identificar
oportunidades de aprimoramento dessas publicações.

É utilizada a comparação do que contém a SPEM e o SISPED com a


metodologia proposta por GODET (?), empregando-se como ferramenta a

394
Escola de Guerra Naval
395
Escola de Guerra Naval
396
Conforme estipulado no Art. 3º da Constituição Federal: “Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento
nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”

922
Teoria Geral da Administração (TGA). Também são aproveitadas as palestras
ministradas no CPEM-2012.

Foi estabelecido como escopo o Ministério da Defesa que é visto como um sistema,
considerando-se as Teorias Sistêmicas da Administração e a Teoria da
Contingência.

Este artigo contém, além desta introdução, uma seção apresentando o


embasamento teórico do trabalho os conceitos de estratégia, a metodologia para
sua construção e avaliação, bem como os conceitos da abordagem sistêmica da
administração de Teoria da Contingência. Em seguida, são apresentados os
sistemas estudados. Nas próximas duas seções são realizadas as análises da
SPEM e do SISPED e feita a comparação com a metodologia de GODET. No
parágrafo seis é realizada a comparação do SPEM com a SISPED, à luz dos
conceitos apresentados no trabalho e das análises dos capítulos anteriores. Por fim,
na seção sete, são apresentadas as conclusões obtidas a partir das análises
realizadas no decorrer do trabalho.

2 Estratégia, Sistemas e Organizações, Principais Conceitos

Aqui será apresentado o referencial teórico para estruturação do trabalho. Para tal,
haverá uma explanação sobre como a estratégia pode ser elaborada e como ela
pode ser avaliada. Também, alguns conceitos básicos a respeito das teorias da
administração visando dar sustentabilidade teórica às avaliações que serão
realizadas no decorrer do trabalho.

a) Estratégia

São vários os autores que definem métodos para a construção de uma estratégia.
Utilizar-se-á o enfoque de Michel Godet por considerar que ele enfatiza a
prospectiva na construção da estratégia e, no entendimento deste autor, ser esse
um dos aspectos de diferenciação relevantes entre as diversas formas de se
construir a estratégia.

Para Godet, ―a prospectiva e a estratégia são dois amantes intimamente ligados‖,


mas deve-se separar bem o ―tempo da antecipação, ou seja, a prospectiva das
mudanças possíveis e desejáveis‖ com o ―tempo da preparação da ação‖ que é o

923
tempo necessário para a ―elaboração e avaliação das opções estratégicas possíveis
para a organização preparar as mudanças esperadas (préatividade) e provocar as
mudanças desejáveis (proatividade).‖

A necessidade de preparação da ação presente e o ―entendimento‖ do futuro leva a


formulação de cinco questões fundamentais: ―Quem sou eu?‖; ―O que pode acontecer
no futuro?‖; ―O que posso fazer?‖; ―O que vou fazer?‖; e ―Como vou fazer?‖.

A metodologia desenvolvida para construir a estratégia é composta de nove etapas


que são apresentadas na Fig. 1.

FIGURA 2 – Planejamento estratégico com base em cenários

Fonte: GODET, CEPES, Lisboa

924
b) Abordagem Sistêmica da Administração e Teoria da Contingência

A TGA evoluiu o seu enfoque passando por diferentes estágios, da clássica à


abordagem sistêmica, passando pela abordagem humanística, neoclássica,
estruturalista e behavorista.

Segundo CHIAVENATO (2004, p. 322) a abordagem sistêmica das organizações,


baseada na Teoria Geral dos Sistemas, é apoiada em três princípios fundamentais:
o expansionismo, o pensamento sintético e a teleologia.

Segundo o expansionismo, todo o fenômeno é parte de um fenômeno maior. O


desempenho de um sistema depende de como ele se relaciona com seu ambiente.
O expansionismo entende que o fenômeno é constituído por partes, mas enfatiza o
todo do qual ele faz parte. Transfere o foco da visão para o todo.

O pensamento sintético explica o fenômeno como parte de um sistema maior e o


papel que desempenha nesse sistema maior. Nesse caso, a abordagem sistêmica
está mais interessada em juntar as partes do que em separá-las.

A teleologia explica que a causa é uma condição necessária, mas nem sempre
suficiente para que surja o efeito, dando à relação causa-efeito um tratamento
probabilístico, não determinístico, como antes. Dessa abordagem, resulta a máxima
de que o todo é diferente da soma de suas partes.

A Teoria da Contingência, surgida após a abordagem sistêmica das organizações,


nasceu com as pesquisas para avaliar os modelos de estruturas organizacionais
mais eficazes para certos tipos de empresas. Elas pretendiam avaliar a influência
dos pressupostos clássicos, como a divisão do trabalho, amplitude de controle,
hierarquia de autoridade, entre outros, na eficácia da organização. Como fruto
dessas pesquisas, chega-se a uma nova concepção de organização, na qual a
estrutura e funcionamento dependem da interface com o ambiente. Não há um único
melhor jeito de organizá-la, porquanto as organizações precisam ser
sistematicamente ajustadas às condições ambientais.

Autores de uma das pesquisas que deram origem à Teoria da Contingência,


Lawrence e Lorsh (1973) concluíram que os problemas organizacionais básicos para

925
as empresas enfrentarem as condições externas, tecnológicas e de mercado são a
diferenciação e a integração. Na diferenciação, a organização divide seu trabalho em
departamentos, cada qual desempenhando uma tarefa especializada dentro de um
contexto ambiental, também especializado. Essa diferenciação no ambiente da tarefa
provoca diferenciação na estrutura dos departamentos. Já a integração é gerada por
pressões vindas do ambiente da organização no sentido de obter coordenação e
unidade de esforços entre os vários departamentos (CHIAVENATO, 2004, p. 396).
Quanto melhor for a estruturação da organização para aproveitar as relações intra e
interdepartamentais, melhor será a sua sinergia e, consequentemente, sua eficiência.
Quanto maior o foco da direção da organização para as relações com o ambiente em
que se insere, bem como a sua capacidade de alinhar seus departamentos com esse
foco, melhor será a sua eficácia.

Podemos afirmar que a aplicação dos tópicos acima expostos permite ao sistema
crescer e se sustentar em um determinado ambiente. A estratégia define os objetivos;
trata o processo de construção de um futuro desejado, em termos de sistema; e,
procura aumentar as relações entre os subsistemas componentes e ajustar seu
comportamento, com sua adequação ao ambiente. Em síntese, ao alinhar uma
organização e todos os seus setores em torno de objetivos estratégicos, aumenta-se a
sinergia desse sistema e consequentemente sua eficiência.

c) Definindo os Sistemas a Serem Estudados

A Política de Defesa Nacional (PDN) em vigor, aprovada pelo Decreto 5.484 de 30


de junho de 2005 ―é o documento condicionante de mais alto nível do planejamento
de defesa‖e estabelece os ―objetivos e diretrizes para o preparo e o emprego da
capacitação nacional, com o envolvimento dos setores militar e civil, em todas as
esferas do Poder Nacional. O Ministério da Defesa coordena as ações necessárias à
Defesa Nacional.‖(PDN, 2005).

Utilizam-se conceitos da Administração e de suas definições de estratégia porque se


estará discorrendo sobre o planejamento e a condução de um Ministério que deverá
visar ao preparo de todo o aparato militar para seu emprego em situação de guerra.

926
Daí a importância de, sem se perder o foco do preparo para a guerra, poder utilizar-
se de conceitos e de princípios de administração para o preparo dos recursos
disponíveis, objetivando a defesa do Estado.

Define-se o primeiro sistema como o sistema ―Militar‖, representado pelo Ministério


da Defesa, seus órgãos, instalações, pessoal, conhecimento e meios, bem como as
Forças subordinadas.

O trabalho abordará as estratégias para o preparo do sistema Militar para a guerra,


não no seu emprego, pois se considerará o estado de paz.

O sistema Militar está inserido no sistema Brasil, que pode ser traduzido pelas
expressões do poder nacional397.

Como subsistemas do sistema Militar existem o Ministério da Defesa e as três


Forças Armadas, ou seja, os sistemas: ―Marinha‖; ―Exército‖; e ―Força Aérea‖. No
estudo em questão focar-se-á no sistema ―Militar‖. Os sistemas ―Marinha‖, ―Exército‖
e ―Força Aérea‖ serão divididos em subsistemas de Comando, operacional, pessoal,
material e finanças. A Fig. 2 representa esse Sistema Militar detalhadamente.

FIGURA 2 - Sistema Militar detalhado

Fonte: elaboração do autor.

397
As expressões do Poder Nacional estão definidas no Manual Básico: assuntos específicos, vol. 2. Escola
Superior de Guerra: expressão política, econômica, psicossocial, militar, científico e tecnológica.

927
Observa-se que os subsistemas de pessoal, material, finanças representam o
conceito de diferenciação, referido, anteriormente, na Teoria da Contingência,
enquanto os sistemas de comando e operativos exigem a integração de todos os
demais subsistemas para funcionar. Tal afirmação se torna mais clara quando se
percebe que os Órgãos de Direção Setorial (ODS), focando em suas áreas de
atuação, onde possuem relações mais intensas, preparam a Força para ser
empregada e tem nos Comandos Operativos o seu fim.

Isso significa que o setor operativo integra as diferenciações ocorridas para o


preparo da Força, cujas orientações foram definidas pelo sistema de comando e,
quanto mais os seus subsistemas estiverem integrados, maior vai ser a sua
eficiência. Está, então, na integração dos subsistemas a obtenção da sinergia
necessária que proverá a eficiência.

3 A Sistemática de Planejamento Estratégico Militar

Em 2005, o MD publicou o MD51-M-01, SPEM, que tem por finalidade ―estabelecer


a sistematização do planejamento de alto nível para as Forças Armadas visando a
contribuir com o atendimento dos objetivos de Defesa Nacional.‖.

O setor responsável pela construção e elaboração do planejamento estratégico no


MD é a Subchefia de Política e Estratégia, subordinada à Chefia de Assuntos
Estratégicos que, por sua vez, está subordinada diretamente ao Estado-Maior
Conjunto das Forças Armadas.

Serão comentados alguns dos aspectos relevantes do documento à luz dos


conceitos da TGA e estratégia.

Em termos de objetivos, a SPEM visa a contribuir com os objetivos da Defesa


Nacional. Esses objetivos não estão definidos na sistemática, que não indica a sua
origem (PDN), mas indica o caminho para onde todo o planejamento deve convergir
quando define os documentos condicionantes do planejamento, indo ao encontro
dos conceitos apresentados.

928
Ao tratar de análise de ambiente, a SPEM explica que é necessário delimitar o
contexto de planejamento, de ambientes, realizar sua análise e definir os principais
aspectos a serem considerados, bem como as relações funcionais entre eles.

A SPEM aborda os termos ―políticas‖ e ―estratégias‖; onde as ―políticas‖ explicitam


as orientações em termos de objetivos e diretrizes e as ―estratégias‖ formulam os
conceitos estratégicos, planos e programas, indicando o ―como‖ chegar.

Ao delimitar seus documentos constituintes, fica claro que em cada um dos níveis
considerados (o nacional, setorial e subsetorial), deverá existir um documento
estabelecendo a política e, outro, a estratégia, forçando a cada um dos níveis tratar
o planejamento conforme as orientações definidas.

Onde é detalhada a sistemática propriamente dita, observa-se que são tratadas três
fases: concepção estratégica e configuração das forças; planejamento do preparo; e
planejamento do emprego operacional. A primeira e a segunda são objetos do
estudo. A fase de concepção estratégica é subdividida em quatro subfases que
passaremos a tratar separadamente:

Na primeira subfase, a formulação da conjuntura nacional e internacional, existe a


atribuição de responsabilidade pelo desenvolvimento (MD) e participação das FA e
SISBIN. Tais medidas podem permitir a integração entre as Forças no que tange à
disponibilização de informações dos setores afins a cada Força e a consequente
equalização de conhecimentos e de padronização de entendimentos dos cenários
construídos. A participação do SISBIN será valiosa, na medida em que trará dados
relevantes de todos os outros setores do governo, contribuindo de forma significativa
para uma visão ampla do ambiente. Nessa subfase, porém, não são abordados a
metodologia, a periodicidade, nem o prazo para o cumprimento dessa ação.

No ponto de vista da TGS nas organizações, a participação das Forças incrementa as


relações laterais entre as Forças, aumentando a sinergia no Sistema Militar, bem como
a participação exógena ao Sistema Militar por meio do SISBIN. Após consolidado o
cenário, será utilizado para permitir a verticalização da informação padronizada dentro
do MD e das Forças, contribuindo para o alinhamento estratégico. Portanto, essa

929
subfase, se corretamente implementada, pode assegurar a aplicação correta tanto dos
conceitos inerentes à estratégia como a dos atinentes a TGA.

Na segunda subfase, está prevista a construção de cenários prospectivos sob a


responsabilidade do MD com a participação das FA com a utilização de metodologia
científica, para propiciar uma visão de futuro possível. Considerando que a
cenarização permite a ampliação do conhecimento do possível estado futuro do
ambiente e que ele é fundamental para o estabelecimento do estado futuro
desejado, a partir do momento em que essa cenarização é construída por todos os
participantes do processo, da mesma forma que a subfase anterior, irá contribuir
para o aumento das relações entre as Forças Singulares e o MD, aumentando a
sinergia do Sistema Militar. A padronização de cenários irá permitir o alinhamento
estratégico e a verticalização desse conhecimento.

A não definição da metodologia a ser adotada na construção desses cenários


deverá ser suprida em outra publicação que ainda não foi criada. Outra lacuna
nesta subfase é a falta de participação de elementos externos ao Sistema Militar
nessa construção, fragilizando as relações deste sistema com o ambiente em que
está inserido.

Na terceira subfase, far-se-ão a avaliação dos cenários prospectivos e a formulação


dos conceitos estratégicos de emprego. Neste ponto, o MD passa a realizar a
avaliação para efeitos da PMD e EMiD; e as FA realizam essa avaliação para a
formulação dos conceitos estratégicos e para a configuração de forças. Esta
delegação de responsabilidades para a MB, EB e FAB dissocia o movimento das
duas subfases anteriores para aumentar a relação entre as Forças Singulares, ao
permitir que cada Força realize uma avaliação isolada e estruture seu conceito
estratégico sem a convergência de esforços para que se tenha um Sistema Militar
integrado nos prováveis cenários levantados.

Os conceitos de diferenciação e integração das organizações são ressaltados na


avaliação desta subfase. Há que se considerar que, provavelmente, prevaleceu a
diferenciação necessária para o trato das especificidades de cada Força na redação
final da SPEM. Mas o fato é que tal procedimento se torna perigoso na medida em
que, quando se avalia o cenário apenas com as especificidades da Força e se

930
formula o conceito estratégico da Força, limitado por essa visão, abre-se mão,
prematuramente, da integração fundamental no setor operativo. Condena-se à
operação isolada a Força que deveria operar conjuntamente, ou, no mínimo, cria-se
dificuldades para a posterior integração das Forças no setor operativo, visto que
essa integração foi deixada de lado prematuramente.

Cabe ressaltar que não se visa a tirar de quem tem a expertise de avaliação do
cenário específico a possibilidade de analisar suas especificidades e formular seu
conceito estratégico, mas sim de forçar, antes que essa avaliação ocorra, o
pensamento de como seriam tratados conjuntamente os cenários específicos,
delimitando-se os principais recursos para atender àquele cenário e, após ter-se
definido o conceito estratégico conjunto, partir para o conceito estratégico da Força e
a posterior delimitação das Forças para atender ao cenário que já foi pensado
conjuntamente. Essa proposta visa a manter a integração (Teoria da Contingencia)
do MD no Comando (Direção da Organização) e nos meios operativos, permitindo
que cada Força formule o seu próprio conceito estratégico, derivado de um conceito
estratégico do MD e, posteriormente, elabore a sua configuração de força.

A próxima subfase, configuração de força, que é de responsabilidade de cada FA,


sem qualquer limitação de método ou processo, decorre da formulação de um
conceito estratégico da Força, que já foi amplamente abordado nos parágrafos
anteriores. A configuração de força de cada FA considerará à integração com as
demais Forças Armadas na relação direta da integração das subfases anteriores.

A SPEM define que o MD será o responsável pela verificação de que as


configurações de força estão de acordo com as HE da EMiD. Ora, essa verificação é
tão mais complexa quanto é o afastamento do MD no estabelecimento dos conceitos
estratégicos das Forças, o que confirma a necessidade da proposta de se
confeccionar o conceito estratégico de forma conjunta para posterior elaboração do
conceito estratégico de cada força.

As Fig. 3 e 4 mostram, respectivamente, um esquema do que está estabelecido na


SPEM (Fig. 3) e a sugestão para ajustar esse documento os conceitos apresentados
no decorrer do trabalho, Fig. 4.

931
FIGURA 3 - Esquema de atual Concepção
Estratégica e Configuração de Forças da
SPEM.

FIGURA 4 - Esquema da proposta de Concepção


Fonte: Elaboração do autor.
Estratégica e Configuração de Forças para SPEM.

Fonte: Elaboração do autor.

A Fase do Planejamento do Preparo, segunda fase, destinada às atividades


relacionadas com a execução dos planos de obtenção e de preparo dos meios
identificados na fase anterior, está dividida em duas subfases: elaboração dos
planos estratégicos; e obtenção e preparo dos meios. Em nenhuma delas estão
definidas as responsabilidades pelo desenvolvimento nem pela metodologia,
processos ou modelos a serem empregados. É subentendido que essas subfases
deverão ser de responsabilidades das FA, devido às duas últimas subfases da fase
anterior já serem de responsabilidade delas.

A terceira e última fase, Planejamento do Emprego Operacional, está fundamentada


nas doutrinas existentes, nas estratégias aplicáveis, nas HE e nas experiências dos
adestramentos realizados, cujos planos podem oferecer subsídios para alterações
nos documentos condicionantes da SPEM. Portanto, por se tratar de emprego do
Sistema Militar, esta fase não estará no escopo deste trabalho, mas poderá, como
dito na SPEM, contribuir para a construção da estratégia.

Ao se comparar a sistemática de planejamento da SPEM com a metodologia de


planejamento estratégico com base em cenários, proposta por Godet, pode-se
observar que:

932
As 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª etapas de Godet: análise do problema e delimitação do sistema;
análise da empresa; identificação de variáveis-chave da empresa e do ambiente; e
estudo da dinâmica retrospectiva da empresa, fatores de força e fraqueza – não são
abordadas pela SPEM, visto que a fase ―Concepção Estratégica e Configuração de
Forças‖ atenta apenas para o ambiente, ―Conjunturas Nacional e Internacional‖, não
existindo qualquer análise para o Sistema Militar.

As etapas cinco, seis, sete e oito de Godet: redução da incerteza sobre questões-
chave levantadas; levantamento das opções estratégicas e cenários prováveis;
avaliação das opções estratégicas levantadas; e realização das escolhas
estratégicas e priorização dos objetivos – são atendidas pelas subfases: construção
de cenários prospectivos e avaliação dos cenários e formulação dos conceitos
estratégicos de emprego. No entanto, essas subfases não são detalhadas e por isso
faltam definições de metodologias e responsabilidades.

A 9ª. etapa de Godet, produção de plano de ação e gestão é atendida plenamente no


aspecto de produção do plano de ação com a elaboração dos documentos previstos
nos níveis nacional, setorial e subsetorial, porém a gestão é negligenciada na SPEM.

Não existe na SPEM qualquer tópico que aborde a avaliação da estratégia.

4 O Sistema de Planejamento Estratégico de Defesa

O Sistema de Planejamento Estratégico de Defesa, SISPED, foi publicada no Diário


Oficial da União, no244, de 21 de dezembro de 2011 mas não recebeu designação da
série MD. A Assessoria de Planejamento Institucional (ASPLAN), diretamente
subordinada ao Ministro, é o órgão responsável pelo documento e também pelas ações
de condução do planejamento estratégico, definidas em seu texto, incluindo os
cronogramas.

O documento está estruturado em 12 itens assim definidos: Item 1 - Finalidade; Item


2 - Introdução; Item 3 - Visão Geral da Metodologia - em que constam a estrutura,
operacionalização e o ciclo de planejamento; Item 4 - Missão; Item 5 - Visão de
Futuro; Item 6 – Valores. Na Fig. 5 são detalhadas as fases de planejamento (cada

933
fase corresponde a um item do documento), nas quais consta, em cada uma delas,
a composição do Grupo de Trabalho (GT) que irá conduzir as atividades e o
cronograma a ser cumprido. O documento é encerrado com o Item 12,
considerações finais.

FIGURA 5 - Metodologia do SISPED

Fonte: SISPED, p. 7

5 Pontos Importantes do SISPED

O SISPED já define no próprio corpo do documento a Missão, a Visão do MD, os


Valores e os principais conceitos de planejamento estratégico que irão balizar todo o
desenrolar dos trabalhos.

Também, define três níveis de planejamento: nacional, setorial e subsetorial; fixando


os documentos que comporão cada um desses níveis.

Procura tratar o imprevisível ao estipular a necessidade de confecção de cenários,

934
quando, por meio da análise do sistema Militar e de seu ambiente, procura
estabelecer metas, diretrizes e sequência de ações para que o MD contribua, com o
restante do Estado, para atingir os Objetivos Nacionais permanentes, definidos na
Constituição Federal.

FIGURA 6 – SISPED

Fonte: Elaboração do autor.

O SISPED apresenta, conforme a Fig. 6, em cinco fases, uma metodologia a ser


seguida (não está representada a 5ª. fase, a ―Gestão‖), os responsáveis por
conduzir os trabalhos, os participantes e os cronogramas a serem observados.
Essas cinco fases, apesar de não apresentarem o detalhamento existente na
metodologia de Godet, cumprem várias das etapas propostas por aquele autor, a saber:

935
A 1ª. etapa da metodologia de Godet (analisar o problema em questão e delimitar o
sistema estudado) é atendida pela 1ª. fase do SISPED. A 2ª. etapa de Godet
(análise da organização) é abordada pela metodologia proposta por meio do
diagnóstico do ambiente interno, previsto na 1ª. fase do SISPED.

A 3ª. e 4ª. etapas de GODET (variáveis-chave internas e externas; e dinâmica da


empresa na sua envolvente), identificação das variáveis-chave da empresa e do
ambiente e estudo da dinâmica e retrospectiva da organização, fatores de força e
fraqueza, desafios e pontos importantes do ambiente são abordados de forma
parcial pelo SISPED, visto que não há o detalhamento da sua 1ª. Fase.

GODET, na 5ª. Etapa, propõe a redução da incerteza sobre as questões-chave


levantadas. Esse procedimento poderá ser realizado na construção de cenários, se
for definida uma metodologia adequada para essa construção, que está, ainda, na
1ª. Fase do SISPED.

As etapas seis, sete e oito da metodologia de GODET (levantamento de opções


estratégicas, avaliação e escolha dessas opções) não são contempladas no
SISPED. No entanto, as fases dois e três do SISPED abrangem, parcialmente,
essas etapas de GODET, isso porque, são nessas fases que se definem o que e
como se pretende fazer. Essas respostas estão na PND, END, PMD e EMiD e esses
documentos são elaborados nas fases dois e três.

Por fim, a etapa 9, de GODET (elaboração do plano de ação e gestão), é abordada


pelas fases dois, três, quatro, e cinco do SISPED.

Dessa análise, verifica-se que o SISPED atenta para a elaboração da ―ideia


estratégica‖, com a limitação de não exigir a criação de opções e escolhas
estratégicas, e dispensa razoável atenção à confecção dos documentos que
traduzirão essas ―ideias estratégicas‖. Por sua vez, ao dispensar cuidado na
confecção desses documentos, definindo quem os fará e quando fazê-los, o
SISPED atenta para o alinhamento estratégico, fundamental para o aumento da

936
relação entre os subsistemas componentes do MD e do MD com seu ambiente.

Apesar de não fazê-lo de forma explícita, estipula o planejamento do emprego, por


meio da Política Militar de Defesa, Estratégia Militar de Defesa e do PEECFA, e o
planejamento para atingir o futuro desejado, por meio das Políticas de Ciência,
Tecnologia e Inovação, de Indústria de Defesa e Ensino de Defesa, com suas
Estratégias e Planos decorrentes. Prevê a ligação entre o planejamento do emprego
e o planejamento do estado futuro desejado, por meio da gestão do PEECFA e dos
demais planos que deverão alimentar, ou realimentar, prontamente o processo de
planejamento ou o novo ciclo de planejamento.

Ao definir a necessidade de indicadores e um processo de gestão, procura criar


ferramentas para manter o andamento do processo nas linhas definidas e permitir
seu ajuste quando e onde for necessário.

O SISPED possui um delineamento geral do processo e não detalha as fases, mas


define que esse detalhamento é importante e deverá ser realizado a tempo do
planejamento.

Durante todo o planejamento, o SISPED estabelece que a construção das ideias deve
ser realizada com a participação de todas as Forças e setores do MD, reforçando a
necessidade de troca de conhecimentos para a construção da base dos documentos a
serem elaborados. Ao fazer isso, prioriza a integração à diferenciação, ou seja,
considera mais importante o planejamento integrado do que valorizar as
especificidades de cada Força no alto escalão. Cabe alertar que o planejamento
integrado não quer dizer um planejamento ―misturado‖, mas, sim, um planejamento que
dos mais altos escalões aos mais baixos está preocupado com a interoperabilidade
entre as Forças e a consequente aplicação do Poder Militar de forma integrada.

Por fim, o SISPED não apresenta qualquer ferramenta de avaliação da estratégia,


isto é, se após formulada a estratégia está realmente contribuindo para que a
organização percorra um caminho seguro que a levará ao tão almejado estado

937
futuro desejado, utilizando com eficiência e eficácia os escassos meios alocados
para o cumprimento de suas tarefas constitucionais.

6 SPEM Versus SISPED

Fruto da publicação do SISPED, sem a revogação da SPEM, já nascem algumas


dúvidas: qual o órgão do MD é o responsável pela condução do planejamento
estratégico? Qual documento deverá ser seguido? Para que dois documentos? Em
caso de divergências de orientações, qual deles deverá ser seguido?

Dessas perguntas, decorre um aspecto essencial para a condução de qualquer


organização: quem dita a regra? Se existem dois documentos normativos sobre um
mesmo assunto que não foram criados para se complementarem, fica evidente que
o MD ainda possui problemas internos para serem resolvidos nos aspectos
relacionados ao planejamento estratégico.

É sabido também que o MD, a partir de 2010, passou por um período de


reestruturação que ainda não está plenamente efetivado. Muitos cargos foram
criados e os setores possuem muitos desses novos cargos vagos. As contratações
de funcionários civis ainda não se efetivaram e as Forças Singulares, que também
sofrem com deficiência de pessoal, não conseguem atender a demanda de Oficiais
Superiores solicitada pelo MD.

No trato dos níveis de planejamento, tanto a SPEM como o SISPED definem três
níveis: nacional, setorial e subsetorial; mas possuem divergência entre os
documentos tratados e produzidos, a saber:

- A SPEM não prevê, em âmbito nacional, a Política Nacional e Conceito Estratégico


Nacional como documentos enquadrantes da PDN; não faz referência à END.

- O SISPED não cita os documentos enquadrantes, em nível nacional, e faz


referência à END.

938
Cabe ressaltar que o Ministério da Defesa é um ministério no nível dos demais e
deverá contribuir para a ―construção‖ de uma PDN como órgão
orientador/coordenador.

Há diferença na construção da PMD: enquanto para a SPEM é um documento único


orientador, para o SISPED, já tem que ser confeccionado, considerando as
necessidades de cada ―grande área‖. A partir da PMD, devido essa diferença, todos
os demais documentos deverão possuir estruturas diferentes, apesar de não
estarem explicitamente definidos.

Outra diferença refere-se à formulação do conceito estratégico. Enquanto a


SPEM define a formulação de um conceito estratégico no nível das Forças, o
SISPED constrói um planejamento integrado até no nível de planos, não citando
a necessidade de formulação de um conceito estratégico no nível das Forças.

Os dois documentos apresentam metodologias de formulação da estratégia


diferentes. Ambos apresentam passos a serem cumpridos sem, no entanto,
apresentarem o detalhamento desses passos ou a necessidade de utilizar alguma
metodologia reconhecida para a formulação de estratégias, ou os fundamentos para
essas metodologias. A SPEM não apresenta as definições dos conceitos
necessários para o desenvolvimento da formulação da estratégia. Já, o SISPED
apresenta vários conceitos, de vários autores, sobre o que se entende por estratégia
e sobre os principais termos necessários para a sua formulação, sem apresentar
uma sequência metodologicamente encadeada para a construção do processo.
Portanto, nenhum dos documentos apresenta um embasamento teórico para as
suas metodologias.

O detalhamento da comparação das metodologias propostas em ambos os


documentos com o processo proposto por GODET é sintetizado no quadro abaixo.

939
QUADRO 1 - Quadro comparativo Godet, SPEM, SISPED

Fonte: elaboração do autor.

7 Conclusão

O MD não possui um documento que defina os vários pontos que um processo de


planejamento estratégico deveria possuir, por isso, recorreu-se a autores que
estudam metodologias de planejamento estratégico, utilizando-se conceitos que
foram úteis na comparação dos documentos que regulam a sistemática de
planejamento de alto nível.

940
De acordo com as abordagens da TGA, o sistema Militar deve incrementar de forma
eficiente as relações tanto de seus subsistemas componentes, o MD e as três
Forças, como com os sistemas componentes do Sistema Nacional para que possa
atingir com efetividade seus objetivos. A falta de relações entre os sistemas
conduzem à sua degradação. Ao se analisar e comparar as sistemáticas que
regulam esse planejamento, a SPEM e a SISPED, ressaltam-se, abaixo, alguns
pontos divergentes que podem levar a uma dissipação de esforços.

A existência da SPEM e do SISPED, por si só, geram conflito na condução do


planejamento estratégico, visto que são documentos de mesmo nível que regulam
de formas diferentes um mesmo assunto.

Verificou-se também que, à luz da metodologia de GODET, nem a SPEM nem o


SISPED englobam todas as fases de um ―planejamento estratégico completo‖.

A SPEM é bastante limitada nas análises do próprio sistema e na gestão, enquanto


o SISPED deixa a desejar nas comparações das opções estratégicas e na decisão a
ser adotada. Considerando que o SISPED é mais detalhado e é claro nas
atribuições de tarefas e seus prazos.

A criação de uma sistemática que abranja todas as fases do processo estratégico


trará maior eficiência nesse planejamento. Sugere-se que seja definido um prazo
para o detalhamento das subfases, para que se tenha um documento completo nos
aspectos de regulação de planejamento de alto nível.

Portanto, é fundamental a aceleração desses ajustes, pois eles são o alicerce da


sinergia necessária para a otimização dos recursos da União numa era tão dinâmica
e competitiva cuja inserção do Brasil no cenário internacional exige Forças Armadas
condizentes com seu porte.

Referências Bibliográficas

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1988.
BRASIL. Decreto no 5.484, de 30 de junho de 2005. Aprova a Política de Defesa
Nacional e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 01 de julho de 2005.

941
______. Decreto no 6.703 de 18 de dezembro de 2008. Aprova a Estratégia
Nacional de Defesa e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 19 de dezembro de 2008.
______. Escola Superior de Guerra. Manual Básico: assuntos específicos, v. II.
Reimpr. Rio de Janeiro, 2009.
______; ______. MD51-M-01: Sistemática de Planejamento Estratégico Militar
(SPEM). Brasília, DF, 2005.
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Brasília, DF, 2012.
CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração: uma visão
abrangente da moderna visão das organizações. 3ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro.
Elsevier, 2004 – 7ª reimpressão.
GODET, Michel, et. al. Caderno do CEPES: a ―caixa de ferramentas‖ da prospectiva
estratégica. Lisboa: CEPES – Centro de Estudos de Prospectiva e Estratégia.
KILIAN JUNIOR, Rudibert. Planejamento Estratégico. Rio de Janeiro: Escola de
Guerra Naval, 2012 (Apresentações de Power Point. Notas de aula).
LAWRENCE, Paul R.; LORSCH, Jay W. As Empresas e o Ambiente:
Diferenciação e Integração administrativas. Petrópolis: Vozes, 1973.

942
GUERRA, GUERRILHA E TERRORISMO: UMA PROPOSTA DE SEPARAÇÃO
ANALÍTICA A PARTIR DA TEORIA DA GUERRA DE CLAUSEWITZ

Flávio Pedroso Mendes398

O propósito deste texto é apontar, de maneira sumarizada e tentativa, o caminho


para traçar fronteiras claras entre o que comumente se chama de guerra regular e
os fenômenos da guerra irregular ou guerrilha e do terrorismo. O instrumental para
fazê-lo será buscado na abordagem mais sólida e consistente do fenômeno bélico: a
teoria da guerra de Clausewitz. Começa-se identificando alguns dos elementos
essenciais dessa teoria399, após o que se passa à apreciação da guerra irregular,
baseando-se também diretamente em Clausewitz (Capítulo 26 do Livro VII do Da
Guerra), concluindo com um olhar sobre o fenômeno do terrorismo, beneficiando-
nos da excelente discussão de Diniz (2004).

Carl Von Clausewitz, em sua obra magna Da Guerra (CLAUSEWITZ, 1993), foi o
primeiro a dar tratamento verdadeiramente científico ao fenômeno da guerra,
rompendo com a tradição de elaboração de manuais de conduta na guerra e de
regras para a vitória400. Clausewitz se propunha a entender a guerra em sua
integralidade e complexidade, identificando seus elementos definidores e o
relacionamento entre eles. Para tanto, Clausewitz partiu de uma concepção abstrata
de guerra, que captasse a sua essência. Para Clausewitz, essa essência é a luta, o
embate físico entre duas partes, uma tentando submeter a outra e deixá-la incapaz
de resistir. Nasceu um conceito aparentemente simples, mas em cujos
desdobramentos reside a gênese da ciência do bélico: ―[a] guerra é, portanto, um ato

398
Professor Adjunto do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia, possui
mestrado em Estudos Estratégicos pela Coppe/UFRJ e doutorado em Relações Internacionais pelo IRI/USP.
399
Esta parte é um sumário da discussão feita em Mendes (2012).
400
A respeito de Jomini, contemporâneo de Clausewitz e seu principal rival intelectual, pertencente ainda à
tradição prescritiva de princípios e regras para o sucesso na guerra, ver Brinton, Craig e Gilbert (1943); Shy
(1986) e Proença Jr., Diniz e Raza (1998). A respeito de outros autores importantes, antes e depois de
Clausewitz, que também se propuseram a identificar princípios e regras para a vitória na guerra, ver Earle (1943)
e Paret (1986).

943
de força para compelir nosso oponente401 a fazer a nossa vontade‖. (CLAUSEWITZ,
1993, p. 83) Os termos centrais do conceito clausewitziano de guerra são ―ato de
força‖, ―compelir‖ e ―nossa vontade‖. (PROENÇA JR. e DINIZ, 2006) O ―ato de força‖
delimita o fenômeno em termos de seus meios – a força -, separando-o de outras
manifestações em que meios exclusivamente não-violentos sejam empregados.
―Compelir‖ indica a necessidade de dobrar o oponente, obrigá-lo a algo a que ele
naturalmente se opõe. E ―nossa vontade‖ diz respeito ao objeto de toda a ação, o
motivo que levou ao emprego do meio força e que causou a oposição do outro, que
por isso mesmo se tornou um oponente.

O passo seguinte da investigação empreendida por Clausewitz foi derivar os


desdobramentos lógicos do seu conceito de guerra. O resultado foi o que Clausewitz
denominou de ―três interações‖, que logicamente deveriam conduzir ao exercício
irrestrito e extremo da violência na guerra. As três interações discutidas por
Clausewitz podem ser assim sumarizadas:

(i) Não há limite lógico ao emprego da força e aos esforços para destruir
o oponente. Diante disso, se um lado moderar deliberadamente seus
esforços e o outro não, o primeiro se veria em desvantagem e correria o
risco de sofrer uma derrota (CLAUSEWITZ, 1993, p. 83-5);

(ii) O maior imperativo natural da guerra é desarmar o oponente e deixá-


lo incapaz de seguir lutando. Assim, a cada lado se coloca a necessidade
de desarmar o outro antes que ele próprio seja desarmado (CLAUSEWITZ,
1993, p. 85-6);

(iii) Diante da necessidade de superar o poder de resistência do oponente,


mediante um cálculo que considere os meios à sua disposição e a força de
sua vontade, cada lado procederá da mesma forma, engendrando um
relacionamento competitivo que só poderia resultar no máximo dispêndio de
todos os meios à disposição. (CLAUSEWITZ, 1993, p. 86)

401
Uma observação é necessária. Empregou-se o termo “oponente” no lugar de “inimigo” (enemy), utilizado por
Paret e Howard em sua tradução para o inglês do Da Guerra (On War, 1993), da qual serão extraídos e
traduzidos os trechos citados neste artigo. Acreditamos que o termo “inimigo” é inadequado e a razão para esse
julgamento é a distinção feita por Clausewitz entre intenção hostile sentimento hostil. Enquanto a intenção hostil
está necessariamente ligada à guerra, implícita no emprego de força contra o outro, o sentimento hostil não
pertence intrinsecamente ao fenômeno, podendo ou não estar presente em casos particulares. Por essa razão,
optou-se pela neutralidade do termo “oponente”, que traduz unicamente a idéia de oposição. Essa observação
vale para todo o texto. Cumpre ressaltar ainda que todas as citações são traduções nossas para o português a
partir de On War (1993).

944
Das ―três interações‖, desdobradas logicamente do conceito de guerra como um ato
de força para obrigar o outro a fazer a nossa vontade, deriva o tipo de guerra
conceitual, ou ―guerra no papel‖, que Clausewitz caracteriza como uma guerra
absoluta. A guerra seria absoluta porque se daria num gigantesco espasmo de
violência, um choque único de todo o montante de energia e recursos mobilizáveis
pelos contendores. Não poderia ser diferente se somente as dinâmicas e interações
previstas pelo conceito estivessem em jogo.

A relação estreita de Clausewitz com a ciência tem origem no terceiro passo de sua
construção, quando o autor vira os olhos para a realidade e se propõe a analisar a
história das guerras. A honestidade com que Clausewitz empreendeu seu estudo
não lhe permitia deixar escapar uma conclusão muito clara: as guerras reais diferiam
e muito da forma absoluta prevista conceitualmente. Três diferenças marcantes se
impunham: (i) a guerra na realidade nunca é um ato isolado, à parte do contexto
político que envolve os dois lados em conflito; (ii) a guerra na realidade não consiste
num único choque instantâneo, em que toda a parada é decidida; e (iii) os resultados
das guerras reais nunca são finais. (CLAUSEWITZ, 1993, p. 87-9)

Em síntese, a anomalia essencial que se impunha a Clausewitz era a existência de


pausas na condução das guerras. Logicamente, a guerra absoluta não admitia
moderação e pausas, pois se a um lado conviesse esperar um momento mais
oportuno para lutar, ao outro conviria tomar a iniciativa e lutar no presente. A
explicação final de Clausewitz para a ocorrência de pausas na guerra pertence ao
estágio mais maduro e avançado do seu pensamento402. Devem-se considerar, a
esse respeito, duas conclusões essenciais: (i) não há uma polaridade verdadeira
entre o ataque e a defesa, sendo antes duas formas qualitativamente distintas de
guerra; e (ii) a defesa é intrinsecamente mais forte do que o ataque. (CLAUSEWITZ,
1993, p. 94-5) Assim, torna-se compreensível que, eventualmente, um lado, ou
ambos, dada a dimensão momentânea de suas forças, podem ser fortes o suficiente
para se defender, porém fracos demais para atacar. De acordo com Clausewitz,
―temos de perguntar se a vantagem de adiar uma decisão é tão grande para um lado
quanto a vantagem da defesa é para o outro‖. (CLAUSEWITZ, 1993, p. 94)

402
O entendimento a respeito da resposta final de Clausewitz para a anomalia das guerras reais, que caracteriza o
estágio mais maduro de seu pensamento, é devido à pesquisa seminal de Diniz (2002).

945
Explicado teoricamente o fato de que as guerras reais ocorrem de forma
sequenciada, com períodos alternados de ação e de inação, é importante salientar
as implicações disso para as considerações e decisões na guerra. Na medida em
que as guerras consistem numa série de combates, surgem naturalmente
considerações e decisões sobre como travar cada combate individual e sobre o valor
e a importância de cada combate à luz do que se busca na guerra. Ao primeiro
grupo de considerações e decisões Clausewitz dá o nome de tática, ou o uso da
força no combate; ao segundo Clausewitz dá o nome de estratégia, ou o uso dos
combates (ou de seus resultados) para a consecução do propósito da guerra.
(PROENÇA JR; DINIZ, 2006, p. 8) Perceba-se que a diferença entre tática e
estratégia só faz sentido porque as guerras não são decididas em um único embate,
como na guerra absoluta. Nesse caso, só estariam presentes considerações e
decisões táticas, ou sobre o emprego das forças no combate.

Um terceiro grupo de considerações e decisões que estão presentes em toda a


guerra recebe a designação geral de política403.Retomando o que se mencionou por
alto anteriormente, o terceiro elemento central da definição de guerra – ―nossa
vontade‖ – revela o seu caráter instrumental. A guerra é um meio, não um fim em si
mesma, e seu fim é a concretização da nossa vontade, à qual se opõe a vontade do
oponente, que precisa ser dobrada. A guerra nasce, portanto, de um conflito de
vontades entre dois lados. Essa interação entre os objetivos de dois lados, ou a
situação em que as vontades de um lado se esbarram nas vontades de outro, é que
se pode entender amplamente como política. Clausewitz propõe, assim, uma
definição complementar e mais precisa de guerra: ―a guerra é meramente a
continuação da política por outros meios‖. (CLAUSEWITZ, 1993, p. 99) Ademais,
diante da conclusão teoricamente informada de que a guerra na realidade não é
decidida por um único enfrentamento colossal, mas sim de forma sequenciada e
temporalmente espaçada, a política pode voltar à cena após o início das hostilidades
e reavaliar suas considerações com base nos desdobramentos observados. A
política, em conclusão, não só determina o recurso à guerra, mas permeia o

403
Para uma concepção de logística – condições materiais de possibilidade das forças combatentes, abrangendo
sua criação, deslocamento e sustentação - derivada de Clausewitz e defendida como um quarto grupo de
considerações e decisões que permeiam a guerra, ao lado de tática, estratégia e política, ver Proença Jr. e Duarte
(2005).

946
fenômeno em toda a sua extensão: ―[v]emos, portanto, que a guerra não é
meramente um ato político, mas um verdadeiro instrumento político, uma
continuação do intercurso político, realizado com outros meios‖. (CLAUSEWITZ,
1993, p. 99)

Encerra-se aqui a discussão enormemente sumarizada de alguns dos elementos


centrais da teoria da guerra de Clausewitz. Acreditamos que o enquadramento do
fenômeno da guerrilha, ou guerra irregular, no edifício teórico clausewitziano pode
ser buscado no capítulo 26 do livro VII (―A Defesa‖) do Da Guerra, intitulado ―O Povo
em Armas‖. Apesar de não utilizar o termo guerrilha, quando Clausewitz fala de
―guerra por meio de levantes populares‖ e de ―insurreição geral‖ (CLAUSEWITZ,
1993, p. 578 e 583) ele claramente se refere ao tipo de confrontação armada
conduzida por civis a que chamamos hoje de guerrilha. Como ponto de partida,
Clausewitz considera o fenômeno como um meio de condução da guerra, que pode
ser avaliado em termos de sua eficácia contrastada com os esforços empreendidos.
Para Clausewitz, ainda, a guerrilha é uma das manifestações da tendência natural
ao rompimento de barreiras pelo elemento de violência na guerra, ―um alargamento
e intensificação do processo de fermentação conhecido como guerra‖
(CLAUSEWITZ, 1993, p. 578).

A própria natureza da resistência civil não permite a execução de grandes ações e


enfrentamentos. Clausewitz sagazmente compara a guerrilha ao fenômeno físico da
evaporação: ―ela depende do quanto a superfície está exposta‖. (CLAUSEWITZ,
1993, p. 579) Quanto mais esparramada estiver a água no solo, mais rápida será
sua evaporação; analogamente, quanto mais dispersa uma força regular, mais
vulnerável aos assédios de uma guerrilha bem organizada ela estará. Entretanto, já
de início Clausewitz demonstra ceticismo quanto às condições para que uma
guerrilha obtenha uma vitória decisiva sobre um exército regular. Para ele, o êxito da
guerrilha ―pressupõe uma área ocupada de um tamanho que, na Europa, não existe
fora da Rússia, ou uma desproporção entre o exército invasor e o tamanho do país
que nunca ocorreria na prática‖ (CLAUSEWITZ, 1993, p. 579). Efetivamente,
Clausewitz acredita que o sucesso de uma guerrilha depende de cinco condições:
―(i) a guerra deve ser travada no interior do país; (ii) a guerra não pode ser decidida
numa única investida; (iii) o teatro de operações deve ser razoavelmente grande; (iv)

947
o caráter nacional deve ser adequado para esse tipo de guerra; (v) e o país deve ser
difícil e inacessível, em razão de montanhas, florestas, pântanos, ou dos métodos
locais de cultivo‖ (CLAUSEWITZ, 1993, p. 579).

À parte das possibilidades de sucesso de uma guerrilha, concentremo-nos no que


nos interessa mais diretamente aqui: sua distinção analítica da condução de uma
guerra regular. Enquanto os movimentos e ações de um exército regular são
razoavelmente esperados e visualizados (sem embargo do elemento surpresa, que
não raro é essencial em operações de forças regulares), os movimentos e ações da
guerrilha têm de ser necessariamente furtivos e elusivos. A materialização,
característica de uma força regular que espera atacar ou se defender, deve ser
evitada a todo custo por um grupo guerrilheiro, sob pena de serem localizados e
destruídos por forças regulares com poder combatente superior. Na guerrilha, para
parafrasear Clausewitz, a resistência deverá acontecer ao mesmo tempo em todo
lugar e em lugar nenhum (CLAUSEWITZ, 1993, p. 580). A desvantagem numérica e
de força também dita que forças guerrilheiras nunca devem atacar unidades
combatentes de dimensões consideráveis, muito menos a força principal do
oponente. Para Clausewitz, sua atuação deve se concentrar às margens do teatro
de operações, onde tende a não haver concentração de força: ―[e]les [bandos de
civis armados] não devem pulverizar o centro, mas mordiscar a casca e ao redor das
extremidades‖ (CLAUSEWITZ, 1993, p. 580). Beneficiando-nos do coloquialismo, a
guerrilha deve tomar a sopa pelas beiradas.

O sucesso tático da guerrilha reside em explorar ao máximo a surpresa – daí as


emboscadas e escaramuças serem suas principais formas de ataque – e de tentar
obter superioridade numérica no ponto de ataque, ou, ao menos, se posicionar de
forma a poder atacar e desengajar rapidamente (curso de ação em inglês conhecido
como hit-and-run[bater e correr]). O nexo logístico do oponente aparece comumente
como um alvo natural para os guerrilheiros, pois costumam possuir pontos
vulneráveis que, se obstruídos, podem causar sérias privações materiais. É com
esse potencial que forças guerrilheiras tendem a causar o maior enfraquecimento
das forças regulares: ataques constantes e bem sucedidos podem obrigar ao
desdobramento e dispersão de um número significativo de tropas para a defesa das

948
linhas de comunicação, tropas essas subtraídas das forças regulares principais para
enfrentamentos futuros.

Já o sucesso estratégico da guerrilha reside em deteriorar as forças do oponente


– físicas e morais, possivelmente mais as últimas do que as primeiras – a ponto
de fazê-lo questionar sua própria capacidade (ou vontade) de manter o que é
disputado. Na gramática clausewitziana, a guerrilha se manifesta pela
combinação entre defesa estratégica e ofensiva tática. O futuro dos guerrilheiros
estará selado a partir do momento em que forem obrigados a assumir a defensiva
tática, pois aí sua destruição será apenas questão de tempo. A conclusão a que
chega Clausewitz é a de que a guerrilha se integra ao planejamento estratégico
da defesa de duas maneiras: (i) como último recurso antes da entrega total do
futuro da nação às mãos do oponente, diante da prostração absoluta das forças
regulares; (ii) ou como força auxiliar aos esforços regulares de defesa, enquanto
o exército regular ainda constituir uma força combatente (CLAUSEWITZ, 1993, p.
583). A desejabilidade desta segunda forma de emprego, contudo, como parece
transparecer da argumentação de Clausewitz, é questionável, na medida dos
riscos para ambos os lados que pode implicar a atuação coordenada entre grupos
guerrilheiros e exércitos regulares.

O enquadramento do fenômeno do terrorismo na ciência do bélico se tornou


enormemente mais fácil depois do esforço analítico de Eugenio Diniz, em trabalho
intitulado ―Compreendendo o Fenômeno do Terrorismo‖ (DINIZ, 2004). Diniz propõe
uma definição de terrorismo como fenômeno social, e não jurídico, pois, neste último
caso, seu tratamento ficaria irremediavelmente à mercê de jurisdições particulares.
Uma definição social de terrorismo é a única capaz de fornecer um efetivo
instrumento de análise, capaz de identificar o fenômeno à parte de elementos
circunstanciais de espaço e de tempo. Uma definição social de terrorismo implica
apreendê-lo a partir de seus meios e fins (DINIZ, 2004, p. 5).

Com relação aos meios, identifica-se amplamente o terrorismo com o emprego ou


ameaça de emprego da força. Apesar de correto, esse entendimento é incompleto
para circunscrever o fenômeno. Segundo Diniz, ―o meio do terrorismo não é o emprego
ou ameaça deemprego da força, mas o emprego ou ameaça de emprego da forçade uma

949
maneira específica: oterror” (DINIZ, 2004, p. 6). Enquanto o emprego – potencial ou
concreto – da força é um pré-requisito para causar terror – ou seja, o terror advém do real
ou potencial dano material à vida e aos objetos das pessoas -, o terror é essencial e
analiticamente distinto da força em si. Num atentado terrorista, a força é utilizada (ou
ameaçada) contra alvos indiscriminados e a destruição, se ocorrer, não importa em si
mesma. Em outras palavras, enquanto a destruição causada por um ataque numa guerra
regular ou numa guerrilha tem importância em si mesma, na medida de seu impacto sobre a
correlação de força entre os contendores, a destruição causada em um atentado terrorista
(por exemplo, num shopping center ou numa discoteca, para ficarmos nos exemplos
utilizados por Diniz), em si mesma, é irrelevante para a correlação material de força. “É seu
efeito psicológico que importa” (DINIZ, 2004, p. 5). É a geração de medo e pânico – terror -
que constitui o meio das ações terroristas404.

Com relação aos fins, Diniz se mantém fielmente no universo clausewitziano ao considerar o
terrorismo como um fenômeno político. Assim, qualquer grupo terrorista tem como fim
último a alteração de determinada situação política. Porém, considerar simplesmente o fim
político colocaria o uso do terror pela Al-Qaida, por exemplo, ao lado do bombardeio
indiscriminado de cidades japonesas pela Força Aérea Aliada na Segunda Guerra Mundial.
Em ambos os casos tem-se o uso do terror para buscar um fim político, apesar de serem
fenômenos claramente distintos. No primeiro caso, tem-se o que Diniz achou por bem
chamar de emprego político terrorista do terror (ou o que queremos entender de maneira
geral como terrorismo), e no segundo caso tem-se o que Diniz denominou emprego político
não-terrorista do terror. Como diferenciar os dois? Para Diniz, a diferença se encontra na
vinculação entre o ato e o objetivo político final. Retornando mais uma vez ao edifício
clausewitziano, a diferença se encontra na ponte entre decisões táticas e o resultado político
– ou seja, na estratégia. No caso do emprego político não-terrorista do terror, o lado que
emprega o terror busca influenciar diretamente o comportamento da vítima, forçando-a a
mudá-lo. No caso do emprego político terrorista do terror (terrorismo), a vinculação é
indireta. Não se pretende – porque não se pode - atingir o objetivo político diretamente pela

404
É interessante notar, como faz Diniz, que o meio terror não circunscreve a natureza do perpetrador. Forças
Armadas que se utilizem de ataques indiscriminados à população de seu oponente com o propósito de causar dor
e pânico – como no caso do bombardeio estratégico à laDouhet – se utilizam do terror tanto quanto organizações
terroristas não governamentais. Daí a distinção que Diniz julga útil fazer entre o uso terrorista e o uso não-
terrorista do terror, como se verá logo abaixo.

950
ação terrorista. O ato de terror é intermediário e busca alterar no futuro a correlação de
força em favor do grupo terrorista, a partir da divulgação de sua causa, de sua apresentação
como alternativa de luta política, da exposição de vulnerabilidades do oponente, entre
outros aspectos (mas, normalmente, a partir da combinação de todos esses fatores) (DINIZ,
2004, p. 12). Daí a conclusão de Diniz de que o terrorismo é, na realidade, um estratagema,
que se propõe a ser uma ponte entre o presente e uma situação futura mais propícia à
consecução do objetivo político do grupo terrorista. Diniz propõe, por fim, a sua definição:

Com tudo isso em vista, portanto, podemos entender terrorismo como


sendo o emprego do terror contra um determinado público, cuja meta é induzir
(e não compelir nem dissuadir) num outro público (que pode, mas não
precisa, coincidir com o primeiro) um determinado comportamento cujo
resultado esperado é alterar a relação de forças em favor do ator que emprega o
terrorismo, permitindo-lhe no futuro alcançar seu objetivo político — qualquer
que este seja (DINIZ, 2004, p. 13).

Em conclusão sumária e preliminar, vemos que, a partir de Clausewitz, podemos caracterizar


tanto o que se entende normalmente como guerra regular quanto os fenômenos da
guerrilha e do terrorismo como sendo, em sua essência, guerra. Trata-se, nos três casos, do
uso da força (no caso do terrorismo, para causar terror) para obrigar o outro a fazer a nossa
vontade; e, igualmente, trata-se da continuação do intercurso político pela adição de novos
meios. No entanto, necessidades analíticas e empíricas impõem que esses três fenômenos
claramente distintos devam ser separados por fronteiras visíveis a olho nu. A teoria de
Clausewitz nos fornece o caminho. Da diferença na correlação de força entre os contendores
nascem necessidades táticas e estratégicas que impõem que se siga um dos três cursos de
ação. Travar uma guerra regular, uma guerrilha ou apelar para o terrorismo não é uma
questão de escolha, mas antes de necessidade. Se se quer mudar uma situação política e se
pode criar e manter um exército regular, para lançar uma campanha regular, esse é o modo
mais lógico e potencialmente exitoso de fazê-lo. Se se quer alterar a situação, mas existem
restrições materiais para a condução de uma campanha regular, possivelmente uma
guerrilha – com suas necessidades táticas e estratégicas, conforme se discutiu, e suas
limitações inerentes – seja a única opção. Pior ainda, se nem um contingente combatente

951
irregular mínimo possa ser constituído, talvez reste apenas o terrorismo como estratagema
para que, quiçá no futuro, alcance-se uma correlação de força mais favorável para perseguir
o objetivo político desejado.

Naturalmente, a compreensão de que se trata de necessidade imposta por uma dada


correlação de força, e não de escolha, pode retirar grande parte do peso moral do debate,
particularmente no que respeita ao terrorismo. Mas este é tema para outro texto.

Referências Bibliográficas

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Strategic Studies, v. 28, n. 4, August, 2005, p. 645-677.
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SHY, John. Jomini. In: PARET, Peter (Ed). Makers of Modern Strategy: from
Machiavelli to the Nuclear Age. 1a. Ed. New Jersey: Princeton University Press,
1986, p. 143-185.

952
O ORÇAMENTO DE DEFESA DOS EUA: RACIONALIDADE X PRESSÕES
DOMÉSTICAS

Juliano da Silva Cortinhas405

1 Introdução

Com o fim da ordem sistêmica bipolar da Guerra Fria, o governo estadunidense


começou a discutir o novo papel do país na Nova Ordem Internacional, termo
utilizado pelo então Presidente George H. W. Bush para descrever a estrutura
que vinha se formando. Apesar de alguns analistas defenderem que o período
deveria ser utilizado pelos Estados Unidos para construir uma era unipolar
(KRAUTHAMMER, 1990/1991), a Administração Bush (1989-1992) decidiu que
o país deveria reduzir seus gastos militares, transferindo a prioridade do
orçamento para o reequilíbrio da economia nacional, que vinha passando por
uma profunda crise, relacionada com os altos déficits orçamentários dos anos
anteriores. Essa redução viria em um contexto de divisão das responsabilidades
internacionais, pois emergia a visão de que um sistema internacional em que
prevalecesse a interdependência propiciaria a redução dos custos de
manutenção da hegemonia aos EUA.

Nesse sentido, a Administração Bush sugeriu ao Congresso o cancelamento de


diversos programas de armamentos, mas não conseguiu realizar os cortes que
pretendia, pois o Legislativo estadunidense decidiu manter despesas que o
Executivo pretendia eliminar.

Diferentemente do que prevê a maioria das teorias de Relações Internacionais, as


razões que explicam essa lógica estão, eminentemente, no âmbito interno da política
dos EUA. Os gastos com defesa daquele país não podem ser explicados somente
por variáveis sistêmicas, que são insuficientes para a compreensão de como são
405
Instituto Pandiá Calógeras. As opiniões expostas neste artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não
tendo qualquer relação com as funções profissionais que desempenha no Ministério da Defesa. Importante
ressaltar, ainda, que esta é apenas uma versão preliminar de um artigo que o autor vem desenvolvendo com bae
nas conclusões obtidas em sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Brasília, em 2012.

953
construídas as preferências nesses processos decisórios, que são extremamente
complexos406.

O argumento central que será desenvolvido neste artigo está baseado em um


pressuposto central. A noção de que as teorias sistêmicas que explicam os gastos
com defesa dos países, como as desenvolvidas por Kenneth Waltz 407 e Susan
Strange408, precisam ser complementadas. Além disso, entende-se que mesmo
teses fundadas em modelos de processo decisório, como os três modelos de
Graham Allison, por privilegiarem a simplificação metodológica, não fornecem
explicações completas sobre as razões dos gastos estatais com defesa.

Face à necessidade de atender as determinações da organização do Encontro da


Associação Brasileira dos Estudos de Defesa quanto à extensão dos trabalhos
apresentados, este artigo não se concentrará na apresentação dos principais
conceitos elaborados pelos autores que embasam a análise proposta ou nas críticas
desenvolvidas a tais modelos, que já foram bastante debatidas pelo autor
(CORTINHAS, 2012, p. 29-58). Ao contrário, o objetivo será a ilustração de como os
modelos podem ser complementados, a partir da análise das funções que alguns
agentes ocupam nas decisões e das estruturas que influenciam o processo de
elaboração do orçamento de defesa estadunidense.

É importante, porém, esclarecer que este artigo propõe duas adaptações aos
modelos de Allison (ALLISON; ZELIKOW, 1999). A primeira é tratar os três modelos
como parte de um continuum de distribuição de poder entre os agentes do processo
decisório, sendo que o modelo I está no primeiro extremo desse continuum, em que
o poder é concentrado nas mãos de um só agente e o modelo III está no extremo
contrário, em que o poder de decisão está amplamente dividido entre agentes que

406
As teorias sistêmicas/estruturais pressupõem que os Estados são atores racionais, que formulam suas decisões
a partir de cálculos custo/benefício que maximizam seus ganhos e minimizam suas perdas, com o objetivo de
atingir o interesse nacional.
407
Waltz (2002) tendem a maximizar seus gastos militares em ambientes menos estáveis. Como o autor entende
que o sistema mais estável é o bipolar, o fim da Guerra Fria levaria a uma tendência de aumento dos gastos com
armamentos. Esse aumento, porém, não ocorreu (CENTER FOR DEFENSE INFORMATION, 1996).
408
Strange (1999) defende que o aumento das ameaças percebidas levaria a um aumento dos gastos com
armamentos. Este artigo pressupõe, portanto, que o final da Guerra Fria, que decorreu do declínio do principal
adversário dos EUA, permitiria que os estadunidenses reduzissem seu orçamento de defesa. A hipótese de
Strange se comprova parcialmente, pois apesar de haver um aumento dos gastos em situações de conflito armado
por que passaram os EUA, não há uma redução considerável desses gastos quando as ameaças são minimizadas
(CENTER FOR DEFENSE INFORMATION, 1996).

954
buscam influenciar o processo decisório e os tomadores de decisão do governo. A
aplicação desse continuumà análise do orçamento de defesa dos EUA permite a
associação entre os modelos, pois as decisões orçamentárias, extremamente
complexas e com características que variam ao longo dos anos, podem se
aproximar mais de um ou de outro extremo do continuum409.

A segunda adaptação dos modelos de Allison é a sua associação aos conceitos


construídos pelo debate agente-estrutura, minimizando o individualismo excessivo
do autor, o que será desenvolvido a seguir.

2 A Análise do Orçamento de Defesa dos EUA pela Associação dos Modelos


de Allison ao Debate Agente-Estrutura em Relações Internacionais.

O debate agente-estrutura vem sendo desenvolvido, nas Relações Internacionais,


principalmente pela Teoria Construtivista e, mais modernamente, pelo Realismo
Científico, sendo essa visão compartilhada pelo autor desse artigo. Mais
especificamente, a visão do debate que será aqui utilizada é exposta por WIGHT
(2006), que parte da noção de que toda vida social é estruturada a partir de quatro
faces de um mesmo cubo social.410

Para que seja possível compreender as relações dos agentes com as estruturas de
que fazem parte, essas quatro faces precisam estar contempladas na análise.
Importante salientar que nenhuma delas pode ser isoladamente relacionada
somente com as estruturas ou com os agentes que participam de uma decisão. Elas
são constituintes de ambos, o que torna necessária a análise conjunta da estrutura e
do papel dos agentes que participam dos processos decisórios de elaboração do
orçamento de defesa dos EUA. Por critérios didáticos, porém, analisar-se-á,

409
Essa aplicação de diferentes modelos para explicar os processos decisórios de forma concomitante está de
acordo com a própria visão de Allison acerca da aplicação dos modelos (ALLISON, 1969, p. 716).
410
A primeira face tem natureza material, marcada pelos recursos ou atributos físicos das unidades em interação,
que são determinados, em parte, por suas características individuais e, em parte, pelas estruturas em que atuam; a
segunda face é denominada de ações inter-intra-subjetivas, marcada pelas regras, normas, crenças e instituições
que constituem a vida social; a terceira face se refere às relações sociais, que determinam a composição da
estrutura e o próprio posicionamento dos agentes que atuam no nível estrutural; a última face é a da
subjetividade do agente.

955
primeiramente, o papel dos agentes que participam da elaboração do orçamento de
defesa e, a partir daí, a discussão será aprofundada pela observação das variáveis
agenciais e estruturais que caracterizam o processo decisório.

Wight propõe que o conceito de agente deve ser compreendido a partir do que o
autor denomina de três níveis de agência411.

No processo decisório do orçamento de defesa dos EUA, são quatro os principais


agentes que atuam, sendo que os membros do Executivo e os membros do
Legislativo participam do processo como tomadores de decisão e os membros das
Forças Armadas e dos grupos de interesse participam somente de modo indireto,
pela tentativa de influenciar seu resultado.

Individualmente, o principal agente do processo decisório é o Presidente, pois


concentra um grande poder em suas mãos. Dessa forma, a análise da variável
―personalidade‖ do Chefe do Executivo é importante. Uma segunda variável
relevante para a análise do papel do Presidente no processo decisório é a sua
popularidade. Ainda com relação ao nível de agência1, a terceira variável a ser
considerada é a ideologia dos agentes que participam do processo decisório412.

Com relação ao nível de agência2, as variáveis consideradas mais relevantes são o


partido político do agente e sua representatividade eleitoral. Os tomadores de
decisão ligados ao Partido Republicano têm uma tendência de aprovar maiores
gastos com defesa (COBB, 1969), enquanto os Democratas apoiam gastos

411
“Se nós chamarmos o nível de agência que se relaciona à „liberdade de subjetividade‟ de agência1, o segundo
nível, agência2, refere-se à forma pela qual a agência1 se torna um agente de algo e esse algo se refere ao
sistema sócio-cultural em que as pessoas nascem e se desenvolvem [...] Todavia, apesar de que „nossas‟ pessoas
nascem em um sistema sócio-cultural, elas não são agências de todas as partes dele. Então, elas se tornam
agentes de grupos ou coletividades com as quais se identificam. [...] A agência3 se refere aos „lugares de práticas
posicionadas‟ que os agentes1 habitam [...] Uma forma de pensar sobre isso é que a agência3 se refere aos
„papéis‟ que os agentes1 desempenham para a agência2” (WIGHT, 2006, p. 213).
412
Na tese do autor (CORTINHAS, 2012), foi considerada a média dos legisladores na mensuração da ideologia
do Congresso. A medida sobre a ideologia dos membros das Casas e dos Presidentes analisados foi realizada
com base nos números fornecidos pelo thinktank “Americans for Democratic Action” e na metodologia proposta
por McCormick e Wittkopf (1990, p. 1083). Neste artigo, por outro lado, não foram feitas observações muito
abrangentes sobre a ideologia dos legisladores. Deve-se destacar, apenas, que na Administração Reagan a
ideologia do Congresso, principalmente nos dois primeiros anos de mandato, era bastante conservadora, ou seja,
muito próxima da ideologia do Presidente. Já nos dois últimos anos de Reagan e nos quatro anos de Bush, havia
maior discrepância entre a ideologia do Presidente e do Legislativo, sendo mais difícil a articulação da aprovação
das preferências do Chefe do Executivo pelo Congresso.

956
reduzidos. A representatividade eleitoral se relaciona com o fato de que tomadores
de decisão que são originários de distritos eleitorais com grande intensidade de
investimentos em defesa tendem a apoiar maiores gastos.

Apesar da importância dos níveis anteriores, na análise dos orçamentos de defesa


dos EUA, o nível de agência mais relevante é o de agência3, que se refere ao papel
que os agentes ocupam no processo decisório. Esse nível é importante porque
existem diferenças importantes nas condições de representatividade dos membros
do Executivo e do Legislativo. Os primeiros representam uma parcela muito maior do
eleitorado, pois são escolhidos para responder às demandas de toda a população
estadunidense. Ao contrário, os congressistas representam uma parcela muito
específica do eleitorado, o que os torna mais vulneráveis aos interesses organizados
(lobbies) que buscam influenciar o processo decisório (MILNER, 1997; SHEPSLE;
WEINGAST, 1984; COX; STOKES, 2008). Dessa forma, a emergência do Legislativo
no processo decisório privilegia os grupos de pressão da indústria de defesa.

Os outros dois agentes que participam do processo decisório o fazem somente de


maneira indireta, por meio de tentativas de influenciar o processo.

Os membros das Forças Armadas concentram sua pressão sobre os membros do


Executivo, procurando aumentar os gastos e atuando conjuntamente, de modo a
não estabelecer uma concorrência entre si, o que prejudicaria seus interesses no
longo prazo (STUBBING, 1984; SMITH, 1996).

Por fim, outro agente importante no processo decisório são os grupos de interesse.
No sistema político estadunidense, esses grupos tem uma intensidade
(GOLDSTEIN, 1999) e uma capacidade organizacional (OLSON, 1999; SMITH,
1996; DOMKE, 1984) muito grandes e, por isso, a análise de seu papel nos
processos decisórios é fundamental, apesar de não ser o foco deste artigo.

Quanto à estrutura do processo decisório, as duas características mais relevantes


para a observação de como o ambiente influencia o posicionamento dos agentes
são as normas que regulam seu comportamento e as condições estruturais que
determinam o equilíbrio de poder entre esses agentes.

957
A análise das normas que regulam a construção do orçamento de defesa dos EUA
demonstra que há uma extensa divisão de funções na sua elaboração. O Executivo
tem o poder de agenda, o que lhe dá uma grande vantagem (BARRETT;
ESHBAUGH-SOHA, 2007, ALLISON; ZELIKOW, 1999, BERNSTEIN, 2000), pois
tem condições de moldar as discussões no Legislativo, criando padrões e
estabelecendo os programas que os congressistas irão debater. Os legisladores,
contudo, têm o poder de decisão final sobre o orçamento.

A lei que regula a elaboração do orçamento de defesa é a Lei do Orçamento de


1974, que foi aprovada em um momento de grande prevalência institucional do
Legislativo sobre o Executivo413. Apesar de atribuir vantagens ao Congresso, a
legislação, por si só, não é suficiente para que os posicionamentos dos legisladores
prevaleçam. Isso só ocorre se outras variáveis estruturais que afetem o equilíbrio de
poder entre os agentes também privilegiarem o Congresso.

As normas somente permitem que os legisladores ascendam, mas não garantem


sua prevalência. Para que elas sejam efetivas, é necessário haver uma combinação
positiva de variáveis estruturais. Como não há a possibilidade de aprofundar muito a
discussão acerca de cada uma delas, faz-se uma breve exposição dessas variáveis
e de seu efeito para o equilíbrio de poder entre os agentes do orçamento de defesa:

- Estrutura internacional – A estrutura internacional é uma das duas estruturas que


interferem no montante de gastos com defesa realizados pelos Estados Unidos.
Como indicam diversos autores (STRANGE, 1999; BERRY; LOWERY, 1990, p. 688;
McCCORMICK et al, 1997, p. 135), a demanda por esses gastos aumenta em
períodos de maior ameaça internacional e em situações de conflito militar, pois,
nesses cenários específicos, o equilíbrio das contas orçamentárias fica em segundo
plano. Além disso, nessas ocasiões, a necessidade de decisões rápidas e eficientes
privilegia o papel do Executivo. A diminuição das ameaças internacionais, por outro
lado, abre espaço para a prevalência do Congresso, pois a preocupação com a
eficiência dos gastos diminui (WITTKOPF; MCCORMICK, 1998, p. 443).

413
Essa prevalência foi decorrente de vários eventos internacionais e domésticos, como a má gestão da Guerra
do Vietnã, a primeira crise do petróleo e a crise política decorrente do escândalo de Watergate. Percebendo a
possibilidade de aumentar o seu controle sobre o orçamento, o Congresso aprovou a Lei de 1974, que criou
várias ferramentas para que o Legislativo pudesse se impor sobre o Presidente, como a exigência da elaboração
de um orçamento próprio do Congresso.

958
- Divisão partidária do governo – sem um amplo apoio do Congresso, um Presidente
não tem condições de aprovar as políticas de seu interesse ou de promover grandes
alterações orçamentárias414. Essa variável está relacionada com a anterior, pois,
como observa Mayhew (1991, p. 195-196), em situações de grandes ameaças
externas, a divisão partidáriadiminui, já que passa a existir uma grande tendência de
apoio ao Presidente.

- Estado da Economia – as diferenças estruturais entre um ambiente de


prosperidade econômica e um ambiente em que há déficits orçamentários e
pressões inflacionárias e empregatícias são profundas. Se o orçamento for
superavitário, o Presidente tem mais liberdade para exigir do Congresso políticas
que o satisfaçam. Além disso, a pressão doméstica sobre os congressistas tende a
diminuir, deixando-os mais livres para atender às demandas de um Presidente que
vem, ao menos teoricamente, construindo políticas econômicas equilibradas. Ao
contrário, se o orçamento enviado pelo Presidente é deficitário, a pressão dos
grupos de interesse sobre os congressistas aumenta, pois nenhum ator societal está
interessado em perder seus recursos. Como a margem dos legisladores para
atender os grupos específicos será menor, eles tenderão a cortar alguns gastos que
considerem desnecessários e que foram requeridos pelo Presidente. Todavia, cortes
de programas de armamentos, que significariam a perda de empregos importantes
em uma indústria politicamente forte, serão dificilmente obtidos. O poder,
naturalmente, flui para quem tem o poder final de decisão.

Opinião pública – a importância da opinião pública para a tomada de decisão acerca


do orçamento de defesa dos EUA é inconstante, sendo sua influência mais relevante
e mais claramente perceptível em momentos de graves crises internacionais ou
quando a economia está em situação precária. O crescimento das ameaças
externas, por exemplo, cria um ambiente de forte nacionalismo e um maior apoio
aos gastos. O efeito é conhecido como ―rallyaroundtheflag‖ (ONEAL; BRYAN, 1985;

414
As análises que tratam do apoio bipartidário às demandas presidenciais nos EUA identificam que, quando o
Presidente se posiciona claramente com relação a um tema, a diferença de apoio, no Congresso, de membros do
seu e do outro partido varia em cerca de 25% (EDWARDS III; WAYNE, 1994, p. 298-300).

959
BAUM, 2002)415. Ao contrário, crises econômicas aumentam a pressão popular pelo
corte de gastos militares.

- Ciclo Eleitoral – no primeiro ano de governo, os Presidentes tendem a ter um maior


apoio da opinião pública e do eleitorado, sendo esse período chamado de lua-de-
mel do Presidente. É nesses momentos que grandes alterações na política
orçamentária são mais comuns (BARRETT; ESHBAUGH-SOHA, 2007; EDWARDS
III; WAYNE, 1994; MAYER, 1995). No último ano dos mandatos, também o efeito do
ciclo eleitoral é evidente, pois nenhum tomador de decisão está disposto a cortar
gastos que podem gerar desemprego em períodos próximos da eleição.

- Distribuição das informações – a distribuição das informações é uma das variáveis


mais relevantes para a análise de um processo decisório, pois os agentes que
possuem informações mais adequadas tendem a ser beneficiados (MILNER, 1997). A
princípio, o Presidente, pela sua estrutura de assessores, tem mais condições de
reunir melhores informações. Por outro lado, os grupos de interesse das indústrias de
defesa cumprem o relevante papel de suprir informações aos Legisladores. Além
disso, a Lei do Orçamento de 1974 criou o Escritório de Orçamento do Congresso,
que diminuiu a lacuna informacional entre o Executivo e o Legislativo.

Além dessas variáveis estruturais, também características específicas dos agentes


que participam do processo decisório devem ser consideradas. Essas variáveis já
foram mencionadas, mas vale a pena aprofundar sua análise.

- Personalidade do Presidente – será mensurada de acordo com a já citada obra de


Barber (1992). O autor desenvolve quatro tipos ideais de caráter presidencial 416,
associando os Presidentes examinados neste artigo a deles.

- Popularidade do Presidente – um Presidente popular tem mais facilidades ao


conduzir as relações com o Congresso. Dificilmente o Congresso irá contrariar um

415
Em momentos de ameaças evidentes, a popularidade do Presidente tende a bater recordes, como ocorreu com
George Bush depois da Guerra do Golfo, em 1991 (EDWARDS III; WAYNE, 1994; THRALL; CRAMER,
2009).
416
O primeiro é o Presidente ativo e positivo, que exige de seus assessores um padrão de qualidade elevado em
suas respostas, enquanto busca construir um ambiente produtivo e positivo de trabalho. George Bush se encaixa
nesse tipo presidencial. A segunda categoria é o Presidente ativo e negativo, que tem, também, uma grande
capacidade de trabalho, mas não sente prazer no exercício da função. O terceiro tipo, em que Barber encaixa
Reagan, é o Presidente passivo-positivo, que busca criar consensos entre os membros de sua equipe, mas se sente
pessimista com relação a si mesmo e deixa a construção de novas políticas a cargo de seus assessores. Por fim, o
Presidente passivo-negativo tende a ter problemas no cumprimento de sua função e dificuldades, até mesmo, nas
relações com seus assessores.

960
Presidente que se posicione claramente acerca de um tema e seja popular
(EDWARDS III; WAYNE, 1994; ANDRADE; YOUNG, 1996; PAGE et al., 1987).

- Ideologia – a ideologia dos agentes varia entre conservadores, moderados e


liberais (MCCORMICK; WITTKOPF, 1990). A ideologia é importante em dois
aspectos: primeiramente, porque se o Presidente e o membro médio do Congresso
possuem uma ideologia semelhante, a decisão tende a favorecer o primeiro. Além
disso, se ambos tiverem ideologias conservadoras, como aconteceu durante a
gestão de Reagan, ao menos nos dois primeiros anos do mandato, a tendência de
aumento dos gastos com defesa tende a se concretizar.

- Intensidade dos lobbies – se os grupos de pressão de uma determinada indústria


forem intensos (GOLDSTEIN, 1999), tendem a ter grande capacidade de influência
sobre uma decisão. O lobby das indústrias de armamentos é considerado um dos
mais fortes do cenário político estadunidense (SMITH, 1996; GHOLZ; SAPOLSKI,
1999-2000; DOMKE, 1984; FORDHAM, 2003). A relação simbiótica entre os grupos
de pressão da indústria de defesa, os congressistas e os membros das Forças
Armadas, conhecida como Triângulo de Ferro (SMITH, 1996), é o principal
instrumento político desenvolvido pela indústria, cuja força pode ser medida pela sua
riqueza e pelos resultados financeiros positivos que vêm obtendo ao longo dos anos
(COBB, 1969). A intensidade dos lobbies da defesa, que já é inicialmente grande,
aumenta ainda mais em um ambiente de prevalência do Legislativo.

A análise desse conjunto de variáveis aponta os cenários decisórios em que existe


uma prevalência do Executivo ou, ao contrário, em que há a ascensão dos
legisladores. No primeiro caso, a tendência é de uma decisão que se aproxime mais
do modelo I (racional) de Allison, pois o Presidente está mais isolado das pressões
específicas dos grupos de pressão e é o responsável direto pela criação de políticas
de defesa que aumentem o nível de preparação dos Estados Unidos em relação a
possíveis ameaças. Ao contrário, a ascensão do Congresso no processo de
elaboração do orçamento de defesa faz com que a decisão se assemelhe ao
previsto pelo modelo III (política governamental) de Allison, pois há a emergência de
diversos atores societais no processo.

Abaixo, propõe-se um quadro em que as variáveis estruturais e agenciais discutidas


nesse artigo são relacionadas com os modelos de Allison, apesar da ressalva de

961
que mesmo uma decisão tomada em um desses ―cenários ideais‖ não pode ser
totalmente associada a um dos modelos do autor417:

Quadro I – A Associação entre os Modelos de Allison e o Debate Agente-Estrutura

Variáveis Modelo I Modelo III

Nível de ameaça Alto Baixo

Distribuição partidária Bipartidarismo Governo dividido

Estado da economia Bom Ruim


Estruturais

Opinião pública Favorável à proposta do Contrária à proposta do


Presidente Presidente

Ciclo eleitoral Período de lua-de-mel do Anos eleitorais


Presidente

Distribuição das Privilégio ao Presidente Privilégio ao Congresso


informações

Personalidade do Ativa e positiva Passiva e negativa


Presidente

Popularidade do Alta Baixa


Agenciais

Presidente

Ideologia Semelhante entre Executivo e Ideologias contrapostas


a média do Congresso entre os Poderes

Intensidade dos lobbies Baixa Alta

Tendência do processo Prevalência do Executivo Prevalência do Legislativo

O quadro apresentado acima pode ser apresentado de modo mais simplificado em


um gráfico em que o eixo X representa a estrutura doméstica e o eixo Y representa a
estrutura internacional.

417
“Os modelos ideais nunca são encontrados em situações reais de processos decisórios, que, muitas vezes,
são definidos com base em variáveis que não são captadas por modelos que visam à simplificação teórica,
como fatores emocionais, a preferência por uma burocracia em detrimento de outra, o simples hábito e outras
(CRABB; HOLT, 1989, p. 8).

962
Gráfico I – Continuum da Concentração de Poder Decisório

MAIOR
APROXIMAÇÃO DO
PROCESSO
CONCENTRAÇÃO DE PODER DOMÉSTICO

DECISÓRIO COM O
MODELO I DE
ALLISON

MAIOR APROXIMAÇÃO DO PROCESSO


DECISÓRIO COM O MODELO III DE
ALLISON

NÍVEL DE AMEAÇAS INTERNACIONAIS

Como se nota, o aumento do nível de ameaças internacionais e da concentração de


poder doméstico leva a uma tomada de decisão que se aproxima do modelo I de
Allison.

3 Breve Comparação entre os Orçamentos de Defesa dos Anos Reagan e


George H. W. Bush

O primeiro ponto importante na comparação entre os processos de elaboração do


orçamento de defesa nas gestões Reagan e Bush está relacionado com o fato de
que o primeiro pretendeu realizar uma grande elevação dos gastos militares e seu
sucessor, ao contrário, objetivou, com o intuito de se adequar ao fim da corrida
armamentista entre EUA e URSS, realizar um grande corte no orçamento de defesa.
Tal comparação, a princípio, pode parecer desigual, pois a tendência institucional do
Congresso é ter sérias ressalvas (principalmente por critérios políticos) à redução de
custos com defesa. A questão, porém, não é tão simples, pois o Legislativo, em
outros períodos históricos, como no segundo mandato de Reagan, forçou a redução

963
dos gastos militares, respondendo ao aumento excessivo dos déficits orçamentários,
que passaram a pressionar os congressistas.

Nos dois primeiros anos da Administração Reagan, diversos fatores contribuíram


para que o Presidente pudesse elevar, em grande escala, os gastos militares. A
aplicação das variáveis mencionadas neste artigo permite a compreensão dessas
razões. Havia uma clara ameaça internacional, que foi potencializada a partir da
invasão soviética ao Afeganistão e da Revolução Islâmica do Irã. Tais
acontecimentos ampliaram a percepção de ameaça pelos governantes e opinião
pública418 estadunidense, o que facilitou a criação de um consenso bipartidário no
Legislativo419. Além disso, apesar de Barber (1992) analisar que Reagan era um
Presidente passivo, diversos autores, como Stockman (1986) e Allison e Zelikow
(1999, p. 276), definem-no como um Presidente de personalidade extremamente
forte, que confrontava quaisquer possíveis obstáculos para fazer suas ideias
prevalecerem, o que foi facilitado pela sua alta popularidade no início do mandato
(EDWARDS III; WAYNE, 1994, p. 104) e grande capacidade de condução da mídia.

Uma das consequências mais perversas dessa ampla elevação dos custos foi
decorrente da concentração de gastos nas contas de ―Pesquisa e Desenvolvimento‖
e ―Aquisição de Novos Equipamentos‖. Devido a esse formato, o buildup de Reagan
não gerou prejuízos somente durante sua gestão, mas também deixou marcas
negativas no longo prazo. O aumento dos gastos nessas contas ocasionou os
chamados efeitos de ―onda de popa‖ e de ―onda de proa‖420, o que diminuiu, nos

418
Sobre a questão, é relevante a análise de Bartels (1991), para quem, percentualmente, o amplo apoio da
opinião pública foi mais importante que outras variáveis, como a filiação partidária e a inclinação ideológica,
para o buildup de Reagan. Apesar das colocações do autor, porém, o modelo deste artigo pressupõe que a
importância da opinião pública não é fixa, mas se altera de acordo com outras variáveis estruturais. Se Bartels
(1991) estivesse totalmente correto com relação ao crescimento dos gastos durante o mandato de Reagan, a
opinião pública teria a mesma importância em outros processos orçamentários, o que não ocorreu. Ao final do
primeiro mandato de Reagan, por exemplo, o público deixou de apoiar o aumento dos gastos e, mesmo assim, o
Presidente continuou solicitando mais recursos para a defesa (STUBBING; MENDEL, 1986).
419
O bipartidarismo foi bastante evidente nos primeiros anos da gestão Reagan, que conseguiu o apoio quase
irrestrito de Representantes Democratas do sul do país, os chamados Bow Weevils, ligados a uma área mais
conservadora do Partido. A existência desses democratas, de início, permitiu a Reagan a construção de um
consenso bipartidário em torno do aumento dos gastos com defesa. Tal aliança, porém, durou poucos anos e
desde o início dos anos 80 já havia alguns sinais de quebra do consenso bipartidário entre os Poderes
(LINDSAY; RIPLEY, 1992).
420
O primeiro se refere ao fato de que os compromissos com a pesquisa de novas tecnologias geram custos em
diversos orçamentos posteriores, pois os recursos para pesquisa se traduzem em várias fases, sendo que o

964
anos seguintes, a capacidade de preparação do aparato de defesa dos EUA, pois o
aumento nessas contas foi compensado pela redução nos gastos em ―Manutenção‖
e ―Treinamento de tropas‖ (ADAMS; CAIN, 1989; STEINBRUNER, 1988, p. 147). Em
resumo, Reagan passou a concentrar os gastos militares em pesquisa e
desenvolvimento e em aquisições, minimizando a capacidade de preparação e
treinamento.

George H. W. Bush iniciou seu mandato precisando gerenciar ambientes muito


diferentes, tanto internacional quanto domesticamente. À derrocada da União
Soviética e a consequente redução das ameaças aos EUA no sistema
internacional, somaram-se os altíssimos déficits orçamentários e o grandioso
comprometimento de gastos com defesa, condições estruturais que levaram Bush
a propor uma ampla redução das despesas militares, concentrando as reduções
nas contas que Reagan havia priorizado. O Presidente propôs ao Congresso o
corte ou a finalização de dez programas militares 421, com base na ideia de que
uma redução profunda deveria ser realizada.

Além das características já mencionadas, Bush precisou enfrentar um ambiente


doméstico bastante peculiar. O fim da Guerra Fria ocasionou duas alterações
importantes para o cenário político estadunidense: o consenso bipartidário entre
Executivo e Congresso tornou-se menos provável e o poder de decisão pendeu para
o Legislativo, o que foi decorrente da menor popularidade do Presidente, do
agravamento das crises econômicas e do próprio déficit orçamentário, entre outros
fatores. O conjunto dessas alterações tornou mais difícil a efetivação da decisão da
Administração de reduzir os gastos dos EUA com defesa.

dinheiro irá ser amarrado durante muitos anos para que a pesquisa não fique estagnada. O segundo efeito pode se
tornar ainda mais prejudicial, pois quando é encerrada a fase de pesquisa e desenvolvimento e o equipamento
está pronto para ser produzido, a “onda de proa” significa que um valor muito elevado de recursos será
comprometido, independentemente de o gasto prever que o programa tenha poucos ou muitos equipamentos
contratados. Esse fato advém de dois problemas: primeiramente, relaciona-se com a previsão subestimada dos
custos do equipamento no início de sua pesquisa e desenvolvimento, uma prática muito comum nos EUA; em
segundo lugar, com a lógica de que quanto menos unidades de um equipamento forem produzidas, maior será
seu custo unitário, o que eleva o custo total de um programa mesmo que o número de armamentos produzido
seja reduzido.
421
O gasto com defesa já estava sendo reduzido, em menor medida, desde 1985, mas o Secretário de Defesa de
Bush, Dick Cheney, decidiu acelerar os cortes em seus pedidos orçamentários ao Congresso em cerca de US$
180 bilhões de dólares de 1989 a 1994 (KORB, 1989). Entre os programas mais importantes que Cheney decidiu
cortar estavam o caça F-14D e a aeronave de rotor giratório V-22 Osprey, mas essas tentativas de corte do
Executivo pararam no Congresso, que não aceitou colocar em risco os lucros das empresas contratantes e,
consequentemente, os empregos em seus distritos eleitorais.

965
Além de estar embasada na opinião de analistas que haviam feito parte da gestão
Reagan422, a decisão do Executivo parecia ser bem fundamentada: poupar recursos
na defesa, em um cenário internacional de diminuição das ameaças, permitiria
aplicá-los no aprimoramento do desempenho macroeconômico do país, o Presidente
não conseguiu convencer o Congresso de que os empregos perdidos na indústria de
defesa seriam compensados, com sobras, em outras áreas423.

Dessa forma, a redução dos gastos com defesa, que deveria ser natural (na visão
das teorias sistêmicas), não ocorreu, devido às características estruturais
enfrentadas pela Administração Bush e pelas preferências naturais dos agentes que
participam do processo decisório.

Como se percebe pela observação geral das diferenças estruturais e agenciais entre
as gestões Reagan e Bush, os cenários internacional e doméstico enfrentados pelos
presidentes eram bastante diferentes, o que afetou suas capacidades de conduzirem
o Congresso de modo a obterem a aprovação de suas propostas orçamentárias.
Enquanto Reagan obteve, devido a uma conjuntura extremamente favorável, um
amplo apoio do Congresso para seu buildup de defesa, Bush foi incapaz de obter a
aprovação de suas propostas. A comparação entre os dois momentos pode ser
realizada, mesmo que de modo breve, de três diferentes formas, que podem
demonstrar que os processos decisórios dessas gestões se aproximam de extremos
opostos do continuum de distribuição de poder proposto neste artigo, como será
discutido a seguir. Por questões meramente didáticas, serão analisadas,
primeiramente, as discussões orçamentárias da Administração Reagan, que
posteriormente serão comparadas com os dados da gestão Bush.

A primeira maneira de observar os níveis de aprovação das propostas orçamentárias


do Presidente pelo Congresso é comparar os valores absolutos de gastos com
defesa requeridos pelo Executivo com as quantias finais aprovadas pelo Legislativo.

422
Um desses analistas era Lawrence Korb, que passou a defender, desde então, o corte nos gastos: “Com
esforços apropriados, nossos líderes políticos poderiam cortar dezenas de bilhões nos gastos do Pentágono,
liberando um dinheiro significativo para usos verdadeiramente importantes e para as pessoas que os apoiam. Mas
aí aparecem as más notícias. A liderança política para essa tarefa não se materializou, apesar da clara
necessidade de que a América aperte o cinto fiscal e aumente nossa segurança em muitas áreas” (KORB, 2005).
423
Quando Bush assumiu, em 1989, o número de empregados relacionados com a indústria de defesa era muito
maior do que o existente em 1980, quando Reagan chegou ao poder. De 1976 a 1986, esse número dobrou
(GHOLZ; SAPOLSKY, 1999-2000), o que foi decisivo para que as mudanças pretendidas por Bush, que
significariam perdas nesse setor, fossem emperradas pelos congressistas.

966
Tabela 1 – Percentual de Aprovação dos Pedidos Orçamentários de Reagan
para Apropriações com Defesa (Valores Totais424):

Requerimento Valor Valor Valor Índice de


da aprovado pela Aprovado pelo aprovado Final aprovação
Administração Casa Senado

1981 200.878.234 197.517.189 208.868.645 199.899.264 99,51%

1982 249.612.409 230.750.564 233.749.005 232.026.724 92,95%

1983 260.926.119 247.062.791 253.945.137 249.820.875 95,74%

1984 292.221.823 270.063.432 279.392.105 274.398.173 93,90%

Fonte: tabela elaborada com base nos dados contidos no Congressional Quarterly (1982, p. 321;
1983, p. 278; 1984, p. 481; 1985, p. 400).

Como se observa, o Congresso, mesmo nos anos em que houve um


aprofundamento da recessão econômica nos EUA, manteve forte apoio às
demandas de Reagan. O simples exame desses números, porém, não demonstra
claramente o nível de prevalência do Executivo sobre o Legislativo na primeira
gestão de Reagan.

A análise precisa ser aprofundada por meio de uma segunda comparação entre os
orçamentos propostos pelo Presidente e os aprovados pelo Legislativo, a
observação das discussões orçamentárias realizadas anualmente durante a gestão.
Essa análise, realizada em Cortinhas (2012, p. 236-250), demonstrou que os
orçamentos aprovados em 1981 e 1982 foram amplamente favoráveis às propostas
do Executivo, tanto em termos financeiros, como já demonstrado, como nos
programas aprovados. Todos os programas concebidos pelas Forças Armadas e
defendidos por Reagan foram aceitos pelo Legislativo nesses anos.

424
Em milhares de dólares.

967
Nos dois últimos anos da gestão, porém, a situação foi levemente alterada. O apoio
da opinião pública ao Presidente caiu, principalmente pelo aumento dos déficits
orçamentários e pela piora de diversos índices macroeconômicos. A conseqüência
dessas alterações foi sentida na eleição de meio-termo de 1982, quando o Partido
Republicano perdeu muito espaço no Legislativo. A partir de então, as negociações
orçamentárias passaram a ser muito mais difíceis para Reagan, que, mesmo assim,
continuou obtendo ampla margem de aprovação para seu projeto de buildup militar.
Mesmo no quarto ano de gestão, nenhum programa de armamento foi encerrado
pelos legisladores.

Por fim, uma última forma de comparar os níveis de aprovação das propostas de
Reagan pelo Congresso é a observação das discussões sobre alguns dos principais
programas de armamentos propostos pelo Executivo nos quatro anos da
Administração. Três programas de armamentos geraram bastante polêmicas entre
Executivo e Legislativo no período e, assim mesmo, receberam investimentos
vultosos: os mísseis MX (programa de mísseis estratégicos bastante controverso,
pois confrontava os esforços de desarmamento), o bombardeiro B-1 (que objetivava
a substituição do B-52) e o programa da Marinha de 600 Navios. A análise
aprofundada desses programas (CORTINHAS, 2012, p. 250-260) demonstra que,
apesar de terem sofrido alguns cortes em anos específicos, foram amplamente
aprovados pelo Congresso.

Como se observa, as três formas de análise do nível de aprovação das propostas


orçamentárias de Reagan no Congresso demonstram que o Presidente foi
amplamente atendido pelo Legislativo. As características desses processos os
aproximam das tendências previstas pelo modelo racional de Allison. O Presidente,
teoricamente, representa toda a população do país e, estando mais distante das
pressões específicas dos grupos de interesse, tem mais condições de aproximar
suas demandas do interesse nacional.

Se os mesmos critérios forem adotados para a compreensão dos processos


decisórios do orçamento de defesa da gestão Bush, porém, resultados bastante
diferentes são obtidos.

De início, é importante observar que, se forem comparados somente os índices de


aprovação dos requerimentos de apropriação do Presidente pelo Congresso, pode-

968
se correr o risco de pressupor que os níveis de aprovação do Legislativo aos
pedidos de Bush foram extremamente altos, se comparados aos de Reagan, como
se pode observar pela tabela abaixo:

Tabela 2 – Percentual de Aprovação dos Pedidos Orçamentários de Bush Para


Apropriações com Defesa (Valores Totais425):

Requerimento da Valor Valor Valor Índice de


Administração aprovado pela Aprovado pelo aprovado aprovação
Casa Senado Final

426
FY1990 223.516,2 226.048,3 223.369,2 302.963,7 100%

FY1991 288.641,7 269.281,4 268.240,9 269.981,5 93,54%

FY1992 270.936,3 270.565,8 270.257,7 269.911,2 99,62%

FY1993 261.133,5 251.866,7 250.685,6 253.786,6 97,19%

Fonte: tabela elaborada com base nos dados contidos no Congressional Quarterly Almanac (1990, p.
452; 1991, p. 813; 1992, p. 622; 1993, p. 599)

O nível de apoio que a tabela ilustra é maior que o de Reagan em seu primeiro
mandato. Novamente, porém, os dados devem ser qualificados, a partir da
observação das discussões orçamentárias específicas.

Primeiramente, é importante observar que o valor da última aprovação do


Congresso (aproximadamente US$ 253.786.600.000) é maior que o primeiro
requerimento orçamentário da Administração Bush (aproximadamente US$
223.516.200.000). Isso demonstra que a estratégia do Legislativo para evitar
reduções drásticas dos gastos militares foi bastante agressiva. No primeiro ano dos

425
Em milhões de dólares.
426
O valor utilizado na tabela leva a crer que a totalidade do pedido orçamentário de Bush foi aprovado pelo
Congresso. Deve-se levar em consideração, porém, que, quando as Casas se reuniram para discutir as propostas
do Presidente conjuntamente, os legisladores decidiram aumentar, em grande medida, o pedido orçamentário de
Bush. O valor aprovado é, em verdade, 35,5% maior que o pedido do Presidente. Esse aumento, como se observa
pela análise mais específica das contas em que o aumento se concentrou, relacionava-se com gastos com pessoal
terceirizado, para os quais Bush não havia solicitado quaisquer valores, prevendo incluí-los em outra conta
orçamentária. Além disso, o acréscimo também é composto por um aumento de mais de US$ 6 bilhões na conta
de pesquisa e desenvolvimento, relativo a programas que o Presidente pretendia cortar e que foram mantidos
pelo Legislativo.

969
debates, os congressistas garantiram a manutenção dos programas politicamente
importantes, mesmo diante das propostas de corte ou encerramento enviadas por
Bush e Cheney. Nos anos seguintes, o trabalho do Congresso foi somente no
sentido de continuar apropriando os valores requeridos pelo Presidente em sua
totalidade, além de incluir valores que o Executivo pretendia eliminar.

Analisando especificamente os debates orçamentários realizados anualmente, o que


foi realizado em Cortinhas (2012, p. 300-314), pecebe-se claramente que, já nos
primeiros anos de gestão, as divergências nos orçamentos propostos pelo Executivo
e as versões finais aprovadas pelo Legislativo eram profundas. A Administração
Bush entendia que os EUA deveriam concentrar os investimentos em defesa nos
programas estratégicos, realizando cortes mais profundos em programas
convencionais, pois muitos se mostravam ineficientes. Entre os dez programas que
a Presidência propôs cortar, estavam o caça F-14D e a aeronave V-22 Osprey. O
Congresso decidiu manter todos os programas, independentemente da realização
de uma análise profunda sobre a sua eficiência. O único argumento para a
manutenção era a importância política dos empregos gerados pelo investimento
nesses equipamentos.

Nos três anos seguintes, a lógica se manteve. O Executivo propôs o corte de


diversos programas convencionais e o Congresso os manteve, minimizando o ritmo
de redução de gastos. Nos programas mais controversos, a velocidade dos gastos
foi atenuada, por meio do aumento do prazo para pesquisa e desenvolvimento, mas
nenhum programa foi cortado nos quatro anos de gestão, havendo a manutenção
dos efeitos de ―onda de popa‖ e ―onda de proa‖.

Entre os programas mais custosos que foram discutidos durante a gestão Bush,
analisados em Cortinhas (2012, p. 314-320), estavam o bombardeiro B-2 Stealth, o
programa de reaparelhamento da Marinha e o programa de mísseis M-X. Bush
propôs uma ampla redução nos investimentos dos três, pois entendia que nenhum
deles era essencial para a defesa dos EUA. O único dos três programas que foi
encerrado, apesar da forte contrariedade dos legisladores, foi o MX. Essa decisão
não estava relacionada com as preferências dos legisladores, mas decorreu da
assinatura dos acordos START entre EUA e URSS, que decretaram o fim dos

970
investimentos nos mísseis.

Se forem comparados os requerimentos orçamentários de Bush com o as leis de


apropriação do Congresso, há, claramente, uma prevalência da política sobre a
racionalidade dos gastos, com destaque para a manutenção de programas de
armamentos, que eram considerados inadequados pelo Executivo. Percebe-se,
claramente, que os interesses políticos relacionados com os investimentos nas
contas de pesquisa e desenvolvimento mantiveram os investimentos de longo prazo,
sem que houvesse uma ampla discussão da eficiência ou necessidade dos
equipamentos. Antes da Guerra Fria, os EUA se desmobilizavam no fim de suas
guerras, mas isso não aconteceu, pela primeira vez, depois daquele confronto
específico (GHOLZ; SAPOLSKI, 1999-2000, p. 7). Isso ocorreu porque, em um
ambiente de poucas ameaças, as aquisições da defesa passaram a ser dominadas
por incentivos clientelistas (GHOLZ; SAPOLSKI, 1999-2000, p. 22).

Motivar politicamente as decisões do orçamento de defesa não era uma prática nova,
mas a importância dela aumentou muito a partir dos anos 1990. Nesse período, o
Triângulo de Ferro da defesa passou a dominar as discussões orçamentárias
(LINDSAY, 1991). A ascensão do Congresso tornou a elaboração e a especificação dos
gastos em defesa uma decisão muito mais complexa, que passou a estar mais próxima
da lógica do modelo III (política governamental) de Allison.

4 Conclusões

O artigo procurou, por meio de uma associação entre teses sistêmicas, os modelos
conceituais de Graham Allison e os conceitos do debate agente-estrutura, analisar
os processos orçamentários de duas gestões que apresentaram características
muito distintas.

O objetivo da análise foi somente tatear algumas questões principais e, por isso,
entende-se que o grau de complexidade das discussões do orçamento de defesa
estadunidense não foi captado adequadamente por esse artigo. Uma análise mais
profunda do tema foi realizada pelo autor em sua tese doutoral, mas as observações

971
deste estudo podem demonstrar que o Executivo, durante os primeiros anos da
Administração Reagan, tinha prevalência no processo decisório, o que levou à
tendência de aprovação de suas demandas pelo Legislativo e à criação de políticas
que se aproximaram mais do modelo I de Allison, apesar de que o conceito de
racionalidade do autor não se encaixa perfeitamente na explicação desses
processos decisórios..

Ao contrário, os orçamentos construídos durante a Gestão Bush se aproximam do


modelo III de Allison, pois a emergência do Congresso, que retomou sua margem de
manobra na discussão orçamentária nessa Administração, impediu o cancelamento
de programas de armamentos que o Presidente considerava inadequados ao
atendimento do interesse nacional dos EUA. A decisão final dos processos foi mais
fortemente influenciada pelos legisladores, que têm interesses muito específicos no
processo decisório, e pelos lobbies das indústrias de defesa, que, apesar de não
estarem no foco do artigo, afetaram a decisão.

Tanto o ambiente internacional quanto o doméstico foram decisivos para que o


processo decisório sofresse alterações. O que é evidente na análise, porém, é
que, independentemente das características específicas que apresentam os
processos decisórios, em todos houve pressões muito fortes por gastos militares
elevados. Essa lógica, que está relacionada tanto com a estrutura quanto com a
característica dos agentes que compõem o processo decisório, impede uma
redução do orçamento de defesa estadunidense que seja efetiva e produza
efeitos de longo prazo.

O atual Presidente daquele país, Barack Obama, vem tendo sérias dificuldades
em seus esforços de reduzir o orçamento de defesa. A conjuntura atual é muito
semelhante à enfrentada por Bush e, apesar de que essa afirmação carece de
comprovação empírica, pode-se pressupor que muito dificilmente os corte nos
gastos de defesa que vem sendo observados produzam efeitos de longo prazo.

972
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977
PRÁTICAS E PROPOSIÇÕES DA CARREIRA CIVIL EM DEFESA

Valentina Gomes Haensel Schmitt427

Adriana Marques428

1 Introdução

A quantidade de civis que trabalham e, especialmente, a posição que ocupam nos


Ministérios da Defesa é um bom indicativo das mudanças ao longo do tempo.
Fatores relevantes para essa análise são a atenção que as autoridades
governamentais dos novos regimes dão à participação da sociedade civil na
formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a Defesa, bem
como o fortalecimento dos mecanismos institucionais que garantam a efetiva direção
política sobre as Forças Armadas.

No Brasil, essa mudança é recente. A criação do Ministério da Defesa (MD) ocorreu


em 1999, com o intuito de substituir o antigo Estado-Maior das Forças Armadas
(EMFA). Assim, ao invés de existirem três ministérios, com características
exclusivamente militares – da Aeronáutica, do Exército e da Marinha -, institui-se
uma pasta focada em Defesa, conjugando as três Forças e o ambiente civil. Após a
criação do MD, constatou-se aproximação entre civis e militares, especialmente na
troca de conhecimentos, na revisão da Política de Defesa Nacional, na elaboração
da Estratégia Nacional de Defesa e nos estudos para a confecção do Livro Branco
de Defesa Nacional (VASCONCELLOS, 2011).

Quanto mais transparente e discutida é a questão da defesa, melhores serão as


soluções, tanto para os militares como para civis. O meio militar pode beneficiar-se
com a opinião da sociedade; a sociedade por participar de forma ativa dos destinos
do país (VASCONCELLOS, 2011). Frente a esse desafio, em julho do ano corrente,

427
Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares. Instituto Meira Mattos/Escola de Comando e
Estado-Maior do Exército.
428
Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares Instituto Meira Mattos/Escola de Comando e
Estado-Maior do Exército.

978
foi aprovado Projeto de Lei da Câmara PLC 38/12, que prevê a criação da carreira
de especialista civil em Defesa, conforme proposto na Estratégia Nacional de
Defesa. A criação de tais cargos visa a estruturação do Ministério da Defesa para
fazer frente aos futuros desafios nacionais.

Diante de tal contexto, visualiza-se um desafio na gestão pública, no que tange a


criação de uma carreira específica e nova no país. Se por um lado a gestão de
carreiras estimula e instrumentaliza os indivíduos para pensar no seu
desenvolvimento, ela também oferece à organização instrumentos para pensar
estrategicamente na gestão de recursos humanos (DUTRA, 2011). De outra
perspectiva, constata-se a dificuldade na determinação de competências, perfis,
políticas e práticas adequadas para o melhor desempenho e prestação de serviços à
sociedade. Assim, uma das possibilidades, na Administração Pública Federal, está
nas atividades de desenvolvimento de competências para auxiliar o planejamento
das carreiras e, consequentemente, maximizar o desempenho individual e a
qualidade da entrega organizacional (LIMA, 2005).

O presente artigo tem por objetivo analisar aspectos centrais da carreira do


profissional civil em Defesa. Para tanto são descritas práticas de diferentes países
(em função de sua relevância dentro da problemática, semelhança com a realidade
brasileira). Em um segundo momento realizam-se proposições para um contexto da
carreira civil em Defesa no país.

2 Referencial Teórico

a) Pessoas e Recursos Humanos nas organizações

Organizações são compostas de pessoas e as estruturas necessárias para que


essas alcancem objetivos determinados. Tanto recursos como as pessoas podem
ser os diferenciais no alcance de desempenhos. Entretanto, os recursos por si só
não são suficientes para explicar diferenças de performances, visto que as
organizações devem estar em condição para fazer uso de tais recursos (FREILING,
2004). São as pessoas que proporcionam o diferencial.

979
No cotidiano, a prática de gestão das pessoas é costumeiramente chamada de
administração/ gestão de recursos humanos. Entende-se que pessoas são recursos,
assim como os demais. Entretanto, a característica diferenciadora deste recurso em
relação aos demais faz com que a sua gestão seja elemento crítico no planejamento
estratégico. A gestão estratégica de recursos humanos visa conectar os níveis
macro (das abordagens de recursos) e micro (psicologia) para articular como os
recursos humanos são relacionados com a efetividade (PLOYHART; WEEKLEY;
RAMSEY, 2009).

b) Recursos Humanos na Administração Pública

A administração de recursos humanos na Administração Pública é um ambiente


composto por diversas particularidades. Inicialmente, existe a visão de que o seu
estudo refere-se à forma de operação das organizações públicas da forma mais
eficiente. Assim, as metas e os objetivos são determinados por funcionários públicos
responsáveis (como legisladores) a quem os membros da burocracia prestam contas
(DENHARDT, 2012). Outro fato é que o desafio das organizações públicas reside no
seu ponto de distinção entre as privadas, pois as de caráter público foram criadas
para: o atendimento de valores democráticos em detrimento de interesses
específicos (LYNN, 2010), além de assegurar a implementação uniforme e sem
vieses da lei - ao invés da visão predominante de eficiência, flexibilidade e
proximidade com a clientela (PETERS; PIERE, 2010).

Entretanto, mesmo diante da relevância da gestão pública e, consequentemente, da


adequação de seus quadros de pessoais, Lima (2005) constata que a história das
políticas de gestão de seus recursos humanos no Brasil é marcada por
descontinuidades e dificuldades referentes à estruturação dos principais sistemas.

No Brasil, há ainda a peculiaridade de que na administração pública federal o cargo


público de livre provimento possui centralidade, ou seja, os cargos de direção e
assessoramento superiores são predominantemente ocupados pelos chamados
DAS, mediante indicação, sendo que o seu exercício é uma atribuição diretamente
relacionada com habilidades e competências específicas que implicam em práticas
de relacionamento com grupos de interesses, de coordenação das ações, de gestão

980
e, nas ações e resultados da administração pública (CÂMARA, 2009). Tal contexto
pode ser interpretado de duas perspectivas, em que ora é entendido pela busca por
competências distintas daquelas que as organizações públicas possuem e ora
podem ser visto como uma incapacidade da sua administração de prover os cargos
de direção com pessoal interno.

Um dos meios para superar dificuldades da gestão pública está em inovar. Mais
especificamente, a gestão da inovação consiste na invenção e implementação de
práticas de gestão, processos, estruturas ou técnicas que sejam novas para aquilo
que se espera em relação aos objetivos organizacionais (BIRKINSHAW; HAMEL;
MOL, 2008).

c) A gestão de carreiras como diferencial

Carreira, de acordo com Feldman (2003), pode ter tanto a conotação da capacitação
como do investimento de longo prazo. Dutra (2011) descreve carreira como um
termo para definir a mobilidade ocupacional e a estabilidade do indivíduo na
organização – tal como a carreira militar – ou, ainda como uma sequência de
estágios e transições originadas a partir do ambiente, que engloba a relação
organização-indivíduo, conciliando expectativas de ambas as partes. Trata-se de um
processo de longo prazo, prioritariamente caracterizado pela evolução, de modo que
visa contribuir para o desenvolvimento e alcance de expectativas do indivíduo e da
organização. A relevância da administração de carreiras está no fato de que esse
processo visa selecionar, avaliar, dar atribuições e desenvolver os indivíduos para,
coletivamente atender às suas necessidades futuras (HALL, 1996). Tradicionalmente
o desenvolvimento da carreira aplica-se aos cargos mais altos das organizações,
porém sendo uma tendência mutante à medida que as organizações se reestruturam
para enfatizar competências e contribuições de pessoas dos diferentes níveis
hierárquicos – destaca Milkovich (2000).

Araújo e Garcia (2009) apontam que na prática, as vantagens dos planos de


carreiras são a retenção de talentos, movimentação de pessoal e identificação do
perfil necessário. A retenção de talentos envolve a apresentação de perspectivas de
desenvolvimento, inclusive com a finalidade de redução de rotatividade. A

981
movimentação eficaz e eficiente envolve o domínio das informações essenciais para
a ocupação de determinadas posições. A identificação do perfil necessário refere-se
ao atendimento de necessidades atuais e futuras da organização.

O desenvolvimento de carreiras e, por consequência do potencial dos recursos


humanos permite às organizações potencializar seu capital humano, ou seja,
aumentar o potencial criado da emergência dos conhecimentos, saberes,
habilidades e características individuais (PLOYHART; MOLITERNO, 2011; HITT,
2007). Todos os elementos que o compõem, quando aprimorados, podem propiciar
diferencial. Entretanto, assim como os demais recursos, quando não tratados,
podem deteriorar ao longo do tempo (LESTER; HILLMAN; ZARDKOOHI;
CANNELLA JR, 2008). Logo, desenvolvimento de carreira, indivíduo e organização
são processos contínuos, caso contrário, representam a estagnação.

Campbell, Coff e Kryscynski (2012) destacam que o capital humano pode ainda ser
caracterizado pela sua especificidade para manter o diferencial sustentável. No caso
de organizações da administração pública, o capital humano pode ajudar para a
melhor prestação de serviços à sociedade, utilizando-se de menos recursos
financeiros e materiais conciliados com a melhor qualidade do serviço prestado.

d) Competências para o desenvolvimento organizacional

Um fator de destaque no desenvolvimento organizacional é a gestão de


competências, coerentes com elementos da estratégia como: a missão, a visão de
futuro e os objetivos (BRANDÃO e GUIMARÃES, 2001). As gestões de
competências e a de desempenho são aliadas, pois presumem um processo que
considera a interdependência entre os atos de planejar, acompanhar e avaliar.

Banerjee (2003) categoriza as competências entre simples e centrais (core). As


competências simples são aquelas úteis para fazer uso de recursos existentes -
como mão-de-obra ou a distribuição do conhecimento -, em outras palavras, são
aquelas utilizadas para ativar a utilidade dos recursos disponíveis na organização.
Competências centrais respondem pela agilidade e mudanças potenciais no
ambiente permitindo diferenciar, significativamente, os recursos, quando necessário.

982
Na Administração Pública, Lima (2005) propõe que a gestão por competências, visa
alinhar esforços para que competências humanas possam gerar e sustentar as
organizacionais necessárias à consecução de objetivos estratégicos. A distinção
entre ideal e prática está na formação de um quadro de servidores adequado, que
se fundamente na contratação de funcionários com o domínio de conhecimentos
técnicos sobre matérias específicas, aliados a um conjunto de habilidades e atitudes
compatíveis com suas futuras atribuições. A competência organizacional depende
do desenvolvimento inter-relacionado e equilibrado de uma série de fatores, que
dependem do equilíbrio de competências (SANCHEZ, 2004).

Lima (2005) adiciona que, uma vez adotada a prática de gestão de carreiras
conciliada com a estratégia de gestão por competências, a adequação de perfil para
o posto e a carreira passa a ser uma variável-chave. Práticas distintas podem
propiciar a avaliação de competências individuais, tais como concursos, cursos
preparatórios e períodos probatórios. O autor ressalta ainda que concursos
possibilitam a avaliação das competências requeridas pelas áreas a serem supridas,
alinhadas com as competências estratégicas definidas pela organização. Contudo,
com o intuito de viabilizar a identificação das competências interpessoais,
estratégicas e gerenciais, cuja observação não seria possível - pela aplicação de
instrumentos e provas –, outras práticas podem ser adotadas. Concilia-se assim
capacidade intelectual e adequação de perfil.

e) Defesa no Brasil

Durante o processo de redemocratização no Brasil as relações civis-militares


encontravam-se na dependência de quatro fatores: a autoridade presidencial; a
atuação dos ministros (ou comandantes militares); o desempenho do Congresso e
as atitudes da sociedade civil (OLIVEIRA, 2004). Visando diminuir a influência militar
no primeiro escalão, o governo Collor extinguiu o Serviço Nacional de Informações,
e a Secretaria de Assessoramento de Defesa Nacional foi substituída pela
Secretaria de Assuntos Estratégicos. Nesse momento, o Gabinete Militar e o Estado-
Maior das Forças Armadas tiveram o estatuto ministerial modificado e o controle
sobre o desenvolvimento de atividades nucleares foi transferido para o Ministério da

983
Ciência e Tecnologia.

O Ministério da Defesa (MD) foi criado em junho de 1999, no segundo mandato do


presidente Fernando Henrique Cardoso, através da Medida Provisória 1.799-6
(BRASIL, 1999a). Seu formato inicial foi decidido por um restrito grupo de ministros
civis e militares. Ao legislativo coube apenas a aprovação do projeto governamental.
Sua implantação reduziu sensivelmente a presença de militares no primeiro escalão
do governo. AoMD coube a competência para tratar de grande sensibilidade e
complexidade, como as operações militares e a doutrina de operações conjuntas, o
orçamento de defesa, políticas e estratégias militares, inteligência estratégica,
ciência, tecnologia e inovação, educação de defesa e saúde, mobilização nacional,
sensoriamento remoto, comando e controle, e o serviço militar.

Anteriormente, havia cinco ministros militares: os da Marinha, do Exército e da


Aeronáutica, além do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) e da
Casa Militar, ambos com status ministerial. Aos comandantes militares, no entanto,
foi assegurada a precedência hierárquica sobre os demais oficiais-generais das três
Forças Armadas (BRASIL, 1999b) e o direito a julgamento em foro especial. O
Ministério da Defesa viria a contribuir para uma maior articulação entre as três
Forças Armadas, um velho problema que o EMFA não foi capaz de solucionar, além
de facilitar a cooperação entre o setor do Estado responsável pela Defesa e a área
diplomática.

A criação da Política de Defesa teve como mérito principal ser o primeiro documento
oficial elaborado pelo governo brasileiro a respeito do tema. Com sua promulgação,
o governo brasileiro assumiu, pela primeira vez, como sua a responsabilidade de
estabelecer as diretrizes que devem orientar a formulação das concepções
estratégicas brasileiras e apresentar de forma coordenada a política externa e a
política de defesa do país. Outro ponto relevante da Política de Defesa foi o
reconhecimento de que seria necessário aprimorar o nível de integração entre as
três Forças em seu preparo e emprego (BRASIL, 1996).

No que tange à estruturação do Ministério da Defesa, o organograma, as funções de


alguns órgãos e as normas para o preenchimento de cargos no Ministério da
Defesa, alguns pontos diferem do projeto original sancionado em 1999. Em linhas

984
gerais, pode-se afirmar que, no concernente às relações entre civis e militares, foram
registrados avanços e retrocessos no bojo da estrutura ministerial. Os principais
retrocessos no plano das relações entre civis e militares estão contidos no Decreto
4.735 de 2003, que modificou algumas normas e competências, notadamente no
tocante às normas para o preenchimento de cargos determinando que os cargos de
Secretários e de Diretores de Departamento só podem ser ocupados por Oficiais-
Generais da ativa.

Atualmente, a Administração Central do MD não conta com quadro próprio de


profissionais. Sua atual composição é de com 1163 profissionais, dos quais 483 são
civis– dos quais 150 são oriundos de atividades prévias nas Forças Armadas, 176
provenientes de outros órgãos e 176 nomeados em cargos de DAS (BRASIL, 2012).
Em face da carência e real demanda por adequação da estrutura do ministério, no
ano corrente, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 38/12
que permite a estruturação do Ministério da Defesa. O texto cria cargos de confiança
e gratificações militares. Ao todo, são 225 cargos de Grupo-Direção e
Assessoramento Superiores (DAS), 28 gratificações de representação, 134
gratificações para cargos de confiança e 101 gratificações de representação para
exercício de função do MD. Ficou o desafio de estruturação da carreira de civis em
Defesa. O Livro Branco de Defesa Nacional prevê a contratação de profissionais
civis ―após seleção em concurso e realização de curso de especialização em defesa,
na sua grande maioria, preencherão cargos no Ministério da Defesa (BRASIL, 2012,
p. 186)‖.

f) Competências em Defesa

Defesa, conforme Vasconcellos (2011), é um ato ou conjunto de atos realizados


para obter ou resguardar as condições que proporcionam a sensação de Segurança.
O autor aponta os benefícios diretos e indiretos da Defesa Nacional. Dentre os
benefícios diretos estão a manutenção da integridade territorial do país; a defesa
dos recursos naturais; a defesa do sistema político, dos seus valores e da sua
cultura; assegurar a autonomia internacional; e segurança de cada cidadão e
instituição. Como benefícios indiretos estão a inovação tecnológica

985
(desenvolvimento e transferência); o desenvolvimento de setores industriais; o papel
sócio-econômico (qualificação de mão-de-obra, infra-estrutura, ações de defesa
civil); e projeção e respeito no campo internacional.

Ao descrever a profissão militar, Caforio (2007) aponta que ela está incluída entre
aquelas incorporadas em uma organização e fortemente dependentes dessa, no
qual o Estado é seu único cliente. A ocupação do profissional está definida como um
exemplo de fusão entre profissão e organização onde aspectos estritos profissionais
e burocráticos estão presentes simultaneamente. Ao analisar as qualidades
essenciais da profissão militar, o autor destaca como as principais – dentre 18 – a
habilidade para liderar, a especialização profissional, a disciplina, o senso de
responsabilidade, a determinação e o patriotismo. No segundo nível estão a abertura
mental, o espírito de sacrifício, a iniciativa e a aparência física.

De acordo com Marques (2001), no Brasil, entre os condutores do novo regime


militar prevalecia a tese de que somente os que usassem farda teriam ―competência‖
para interpretar questões de defesa. Esse contexto se alterou, entretanto,
permaneceu o desafio de identificar competências em Defesa compartilháveis com
profissionais civis atuantes em Defesa.

3 Procedimentos Metodológicos

No que tange aos fins, a pesquisa caracteriza-se por ser descritiva e explicativa. O
caráter descritivo teve por finalidade expor características da carreira civil e suas
características em diferentes Estados. A análise consistiu da avaliação de elementos
inerentes à carreira em Ministérios de Defesa, de países cujas peculiaridades
destacam-se como modelos favoráveis à comparação. O estudo em tela parte,
portanto, da compreensão de elementos que interferem na composição da carreira
do especialista civil em Defesa.

A coleta de dados foi realizada por intermédio de pesquisa bibliográfica, investigação


documental e na internet e a realização de entrevistas com militares do Exército dos
países estudados neste artigo - tendo como característica a informalidade e o uso de
roteiro de pesquisa semiestruturado.

986
A análise de dados visou à descrição e explicação das abordagens e possibilidades
de carreira de profissionais civis, na área de Defesa. Portanto, se buscou identificar
elementos distintivos na inserção de civis na carreira de Defesa na Argentina, Chile,
Espanha e Estados Unidos. No segundo momento, buscou-se com a avaliação do
estado-da-arte das práticas e potencialidades para a criação da carreira de civis em
Defesa no Brasil.

4 Resultados da Pesquisa

A presente subseção visa apresentar elementos de destaque na prática de inserção


de profissionais civis na Defesa de países distintos. Dentre os países eleitos estão a
Argentina,Chile, Espanha e Estados Unidos.

a) Argentina

O Ministério da Defesa argentino tem a peculiaridade de ser ocupado unicamente


por civis e de caráter predominantemente fixo, além daqueles de caráter político –
no nível superior. O ministério é considerado como o órgão político para administrar
os assuntos da defesa, de modo que assuntos da área são tratados pelos civis e
delegados aos militares. O Ministério da Defesa está amparado em eixos temáticos
classificados pela: educação/formação; direitos humanos; ciência, tecnologia e
produção; planejamento estratégico; planejamento logístico; saúde e bem-estar;
Malvinas; política interna da defesa; equidade de gênero; campanha Antártica; e
missões de paz.

Civis de carreira permanecem ao longo do tempo, permitindo a continuidade


das atividades – diferente da realidade militar de rotatividade. Não há a exigência
pela formação específica, assim, profissionais são contratados de acordo com a
necessidade generalista da posição a ser ocupada. Os profissionais de carreira na
defesa, de modo geral, realizam, após contratados, cursos na Escola de Defesa
Nacional – nos níveis de mestrado ou doutorado -, cursos de capacitação política e
de administração pública. A formação específica é provida pelo ministério de acordo
com suas necessidades.

987
Esse contexto resultou do entendimento do governo argentino de que a reforma da
educação em Defesa nacional deveria compreender o desenvolvimento de civis e
militares. Por isso analisou a experiência de outros países e formou equipes
multidisciplinares.

No ano de 2006, iniciou-se um processo destinado a transformar a educação voltada


à Defesa Nacional, sendo centrada em duas dimensões: 1. o reconhecimento do
Ministério da Defesa como órgão central de gestão das políticas de Defesa; 2. a
reestruturação do sistema de formação e capacitação civil e militar, com a introdução
das perspectivas de Direitos Humanos e gênero na política de Defesa. Ainda neste
ano houve a criação da Subsecretaria de Formação (com o apoio do PNUD), da qual
dependem a direção de institutos militares e a Escola de Defesa Nacional. A
Subsecretaria assumiu a responsabilidade de: 1. elaborar políticas educativas de
Defesa; 2. coordenar as linhas de ação entre os diferentes organismos e
supervisionar a sua execução; 3. aperfeiçoar e atualizar os quadros das Forças
Armadas, da Administração Pública e sociedade.

Para a formação de civis, a Subsecretaria criou o denominado ―Projeto de Formação de


Civis para a Defesa‖, cujos objetivos seriam de: 1. fortalecer a capacidade de
gerenciamento civil da política de Defesa Nacional, visando as distintas
responsabilidades para a condução da Defesa Nacional e suas organizações; 2. formar
profissionais com capacidades técnicas e de administração para interagir com
profissionais militares e funcionários políticos no que se refere à condução da Defesa.

Para alcançar os objetivos de formação de pessoal e capacitação sobre questões


afetas à Defesa, desenhou-se um modelo de competências ajustável aos níveis de
formação. Desse modelo foi consolidado o perfil caracterizado por: 1. flexibilidade e
adaptação à mudanças; 2. negociação e construção de consenso; 3. capacidade de
antecipação à situações críticas; 4. capacidade para desenhar e gerir políticas
públicas efetivas; 5. visão multidisciplinar; 6. conhecimento de relações
internacionais; 7. valores e profunda vocação para o serviço público; 8 conhecimento
da diversidade cultural; 9. experiência de integração cívico-militar.
Consequentemente, em função da amplitude de perfis e as necessidades de
profissionais especializados na Defesa, diferentes níveis de formação foram criados.

988
Da mesma forma, as ações educativas de sensibilização para o público geral
abarcaram cursos, jornadas e seminários. Dentre os cursos é importante destacar
que esses viriam a abranger desde cursos introdutórios e de graduação, como
cursos de especialização e mestrado.

Em termos de adaptações culturais o caso argentino é único. Uma vez que o


Ministério da Defesa é ocupado exclusivamente por civis - e está acima das Forças
em termos decisórios – o processo adaptativo foi mais no sentido de ensinar
militares a aceitar os interesses e proposições de civis, ao invés de um trabalho
conciliatório.

b) Chile

O Ministério de Defesa Nacional do Chile foi criado em 1932 com o objetivo de


ser o órgão responsável pela condução de políticas do setor de defesa e
garantir a segurança exterior do país (CHILE, 2013). Atualmente, a maior
mudança é de que o papel da Defesa, e decisões correlatas, está no Ministério
da Defesa, anteriormente o seu papel era predominantemente administrativo –
comparável ao Brasil.

Nos períodos mais recentes destacaram-se os fatos como o retorno da democracia


– que proporcionou novos rumos para execução da política de defesa - e a criação
do Centro de Treinamento Conjunto para Operações de Paz. No ano de 2010, com a
promulgação da Ley 20.424 a estrutura do Ministério ficou dividida em: 1. Ministro da
Defesa Nacional; 2. Subsecretaria de Defesa; 3. Subsecretaria das Forças Armadas;
4. Estado-Maior Conjunto. Hoje as atividades administrativas das Forças Armadas
estão concentradas na Subsecretaria das Forças Armadas.

A inserção de civis no Ministério vem ocorrendo ao longo das últimas duas décadas,
representando um trabalho gradativo de adaptação cultural e convencimento da
relevância de aproximação para o trabalho conjunto. Em termos de constituição, o
intuito é de compor de profissionais técnicos e administrativos, civis e militares. São
princípios básicos para a atuação dos indivíduos a ética no serviço público, valores
de disciplina, prudência e patriotismo. O civil vem a cumprir um papel diferente do

989
militar que é de capacitação técnica, especialmente na área de planejamento
estratégico, de projetos e áreas que precisem de um outro olhar. A atual estrutura do
Ministério, destacando a Subsecretaria da Defesa - que tem o papel primário e
secundário de tratar de questões estratégicas e político-estratégicos – vêm
incorporando civis.

A Subsecretaria de Defesa é composta por: 2. Subsecretário de defesa; 2. Divisão


de planos e políticas; 3. Divisão de relações internacionais; 4. Divisão de avaliação
de projetos: 5. Divisão de desenvolvimento tecnológico e indústria. A Divisão de
planos e políticas é encarregada de propor ao Subsecretário de Defesa a Política de
Defesa, a Política Militar e os documentos de planejamento do nível político
necessários para sustentar a condução da Defesa Nacional. A Divisão de relações
internacionais é encarregada de propor ao Subsecretário de Defesa as Políticas de
Relações Internacionais de Defesa, e documentos de planejamento do nível político
no âmbito da Defesa necessários para o emprego de meios nas atividades de
cooperação internacional. A Divisão de avaliação de projetos assegura, através de
procedimentos e protocolos metodológicos, para a Defesa Nacional a
correspondência entre os Projetos de Investimento em Defesa, a Política de Defesa
e a Política Militar. A Divisão de desenvolvimento tecnológico e indústria é
encarregada de propor ao Subsecretário de Defesa a política para a pesquisa
científica e o desenvolvimento tecnológico, além da política para o funcionamento
das empresas de defesa.

Não existe uma formação específica para a inserção de civis no Ministério da


Defesa. Profissionais passam por estágios de formação na Academia Nacional de
Estudos Políticos e Estratégicos (ANEPE) – como a compreensão das dinâmicas da
Defesa. Para cada cargo existe uma formação específica. Parte-se do princípio de
que se o profissional que possui preparo adequado, não há a necessidade da
formação militar, mas do estágio em Defesa. Além da capacitação, muitos
profissionais - conforme o papel exercido - participam de visitas técnicas em
unidades do ministério, visando a ambientação e conhecimento das particularidades
do ambiente. O Ministério dispõe de recursos para a formação de seus profissionais,
inclusive no exterior.

990
Dentre as competências destacam-se: 1. a necessidade de perfil profissiográfico,
relativo ao cargo que será desempenhado e suas devidas especializações; 2.
flexibilidade para incorporar os conhecimentos à área militar; 3. possuir os
conhecimentos militares para executar o trabalho (que podem ser adquiridos
posteriormente a inserção do civil no MD). Portanto, há necessidade da formação
básica do profissional, sendo complementado ao conhecimento específico da área
militar. Assim, o profissional inserido pode ter uma perspectiva técnica, porém
adaptada à realidade (e cultura) militar.

Dentre as modalidades de contratação destacam-se os quadros de profissionais


fixos e temporários. Profissionais fixos compõem os quadros básicos do ministério e
possuem benefícios financeiros. Profissionais temporários são contratados por
períodos anuais e demandados de acordo com necessidades específicas. Em
adição, militares da reserva vem sendo contratados, para seguir atuando no
Ministério da Defesa. Portanto, o civil é relevante por dar outra perspectiva, oferecer
conhecimento diferenciado do militar, especialmente por compreender que a
abordagem que o Estado deve dar ao tema demanda a multisetorialidade – que não
é exclusiva dos militares.

Como políticas para a inserção do profissional destacam-se as diretrizes


relacionadas ao compromisso legal de sigilo, qualificação e responsabilidade para
trabalhar com questões da Defesa, de grande relevância para o Estado. Questões
sigilosas podem ser compartilhadas, desde que dentro das limitações e
necessidades do âmbito do trabalho; não existem diferenciações entre civis e
militares nesse sentido.

O processo de aproximação entre as culturas civil e militar é consequência do


relacionamento cotidiano, do trabalho de conhecimento das diferentes unidades
militares e, sobretudo, do trabalho de relacionamento ideológico na aproximação
entre as partes – destacando a reunião entre os atores para a confecção de
documentos da Defesa e cursos.

Cabe destacar que avaliações de desempenho são realizadas anualmente. As


expectativas de desempenho são expostas previamente ao período, seja em termos
de resultado, capacitação, interação e demais aspectos inerentes ao trabalho. Assim

991
como o ensino por competências, os trabalhos são delineados de acordo com as
competências esperadas nas respectivas áreas, que são utilizadas como parâmetros
para contratação e desenvolvimento do profissional – um mapa funcional.

c) Espanha

Na Espanha o conceito de Defesa Nacional é vinculado a toda sociedade, na


salvaguarda da soberania e interesses nacionais. O Ministério da Defesa é o
departamento do Estado ao qual corresponde a preparação, o desenvolvimento e a
execução da política de defesa e a gestão da Administração Militar. Na estrutura
principal desse ministério são ocupados por civis os cargos de ministro,
subsecretaria e secretário geral. Os demais profissionais são alocados de acordo
pelas áreas funcionais. A categorização é dividida em: 1. gestão e serviços comuns;
2. técnica e profissional; 3. atividades específicas.

Recentemente na Espanha tem ocorrido a substituição de diversas áreas da


administração, de profissionais militares por civis, sobretudo na área de ensino.
Como exemplo das mudanças, agora todas as escolas militaressão obrigadas a
ofertar cursos civis para militares. Logo, a formação de militares passa a ser mista –
com conhecimentos civis e militares. Na área de pesquisa a Espanha realiza
diversos contratos com Institutos e Fundações que assessoram e fornecem
consultorias, especialmente no alto nível. O assessoramento especializado é
contratado por intermédio de organizações terceirizadas. Atividades políticas são
ocupadas por nomeações, por partidos políticos, configurando em cargos assumidos
em caráter temporal, de acordo com interesses específicos.

O quadro de profissionais é subdividido em 5 grupos.

O grupo profissional 1 é composto por trabalhadores cujo desempenho requer um


alto grau de conhecimentos que exercem sobre um ou vários setores da atividade.
A formação desejada inclui título de doutorado, nível superior.

O grupo profissional 2 é composto por trabalhadores que exercem funções


consistentes na realização de atividades complexas com objetivos definidos dentro
de seu nível acadêmico. A formação desejada inclui título de nível superior,

992
engenheiro técnico, arquiteto técnico ou equivalentes.

O grupo profissional 3 é composto por trabalhadores que realizam funções com alto
grau de especialização e que integram, coordenam e supervisionam a execução de
tarefas homogêneas ou funções especializadas. A formação desejada é de título de
nível superior ou equivalente.

O grupo profissional 4 é composto por trabalhadores que exercem tarefas com


alguma autonomia, requerem conhecimentos profissionais adequados e atitudes
práticas. A formação desejada é de título de educação secundária, educação geral
básica ou técnica.

O grupo profissional 5 inclui trabalhadores que executem tarefas consistentes em


operações seguindo um método de trabalho preciso e completo, com alto grau de
supervisão, que normalmente exigem conhecimentos de nível básico. A formação
desejada é de equivalente a formação primária.

Na Espanha há diversos organismos independentes que formam civis, na área de


Defesa, com subsídios do Estado. Um exemplo é o Instituto Universitario General
Gutiérrez Mellado que oferece cursos - sobre temas como paz, segurança ou defesa
–, com profissionais civis e militares, com diferentes períodos de duração e que
convida profissionais de distintas áreas de atuação e formação, destacando-se
economia, ciência política, direito e relações internacionais.

Em termos de contratação há o pessoal de quadro fixo, temporário, terceirizado e


político. O pessoal temporário, denominado pessoal laboral, trabalha com contratos
renováveis a cada dois anos, cumprindo necessidades temporárias - sendo parcela
substantiva do quadro de civis. As terceirizações – normalmente grandes empresas
de consultoria - são focadas no nível de especialização do profissional, em
detrimentos às demandas específicas. A última opção tem como vantagem o fato de
liberar o estado das obrigações contratuais. O quadro político é predominantemente
escolhido pelo ministro.

Para concorrer a uma vaga no Ministério a exigência mínima é a formação em nível


superior. Há a valorização dos cursos de mestrado realizados nas instituições de
ensino reconhecidas pelo Ministério da Educação. Uma peculiaridade do caso

993
espanhol é que atualmente civis também podem participar dos cursos de Estado-
Maior – como jornalistas da área de defesa, membros de ONG -, a intenção é de
permitir que os profissionais compreendam especificidades da área como ofensiva,
defensiva, missões de paz, Direito Internacional dos Conflitos Armados. Assim,
amplia-se o conceito de que a defesa não é uma questão exclusiva dos militares.

As demandas por capacitação são distintas. Profissionais terceirizados, como


consultores, com conhecimentos técnicos e preparação específica não são foco de
esforços de capacitação por parte do ministério, pois sua contratação é voltada para
aspectos específicos. Profissionais ocupantes de posições políticas são capacitados,
inclusive para evitar críticas sobre o desconhecimento sobre questões militares,
trata-se, portanto, de um processo de adaptação. Em termos de profissionais da
área de ensino, não há a necessidade de capacitação, dado que não há a
necessidade de adaptação do conteúdo transmitido.

Para aproximar as diferenças culturais entre civis e militares o trabalho é


desenvolvido desde os níveis mais baixos do ambiente militar, inserindo professores
civis na formação de oficiais. Paralelamente, há o esforço para a sensibilização da
sociedade sobre os assuntos da defesa. Peculiaridade do sistema espanhol é que o
oficial pode atuar na troca de conhecimentos - em aulas ou palestras – sendo
remunerado pela organização civil.

d) Estados Unidos

As Forças Armadas americanas foram criadas em 1775. Catorze anos após, em


1789, foi criado o Departamento de Guerra – precursor do DepartmentofDefense
(DOD). O órgão - agência governamental mais antiga do país - é voltado para as
atividades de Defesa, e foi estruturado tendo como missão prover as Forças
Militares com o necessário para dissuadir a guerra e proteger a segurança do país.
A missão do DOD viria a ser a de prover oficiais com informações oportunas e
acuradas sobre políticas de defesa, organizações, funções e operações.

A estrutura do DOD é composta no primeiro nível pelo Secretário da Defesa –


principal consultor de políticas em Defesa do Presidente -, no segundo nível está o

994
Secretário Adjunto – para quem é delegado poder e autoridade para todos os
assuntos dos quais o secretário autorizar. Atualmente, o DOD é composto por 1, 4
milhões de militares – das distintas forças - e 718.000 civis – representando o maior
empregador daquele país. Dentre os programas de acesso estão o estágio
remunerado para estudantes, carreiras para recém-graduados, constando de
treinamentos, orientação e oportunidades de desenvolvimento de carreira no serviço
Federal.

Dentre as vantagens na inserção do civil na Defesa estão: 1. o fato de que o militar


tem a rotatividade como inerente à profissão; 2. alguns serviços são mais
econômicos quando realizados por civis, dado especialização e o custo fixo do
militar; 3. a opção da terceirização para redução de custos, como meio para suprir
necessidades de conhecimentos dos quais o militar não possui.

Civis são especialmente relevantes nas atividades de assessoria aos militares em


temas específicos – como, por exemplo, discussões que relacionem o Departamento
de Estado e o Departamento de Defesa, contratação de empresas civis e aspectos
de mercado. As posições mais altas são ocupadas por civis, mas existem posições
que são exclusivas de militares. Existem profissões para civis de carreira,
temporários, terceirizados e de nomeação para cargos políticos. A terceirização é
direcionada para a complementação de especialidades, das quais não se dispõe.

Uma peculiaridade é a contratação temporária dos militares da reserva, para


atividades como treinamentos ou missões, considerando que esses dominam
conhecimentos necessários para o aperfeiçoamento da Defesa. Profissionais podem
atuar no Serviço Senior Executivo (SES), que é composto por indivíduos líderes da
força de trabalho civil, cujo perfil seja de orientação para resultados. O processo
seletivo para tais posições se inicia com a manifestação de interesse do profissional
junto à agência, para as posições de candidato ao programa de desenvolvimento
SES. Dentre as competências requeridas estão aquelas necessárias para a
construção de uma cultura corporativa federal voltada para resultados, atendimento
ao cliente, construção de times e coalizões dentro e fora da organização. Tais
competências são caracterizadas como qualificações essenciais de executivos.

995
O governo americano possui ainda programas específicos para pessoas com
necessidades especiais, veteranos destas condições são considerados em
programas específicos. Para tanto, são avaliados aspectos como a existência de
deficiência específica e a capacidade para o trabalho.

Em termos de formação, existem oportunidades de cursos ofertados por


universidades civis e militares com algum tipo de relação com o Departamento de
Defesa. As próprias escolas militares ofertam vagas para civis. Nas universidades
civis as vagas são ofertadas para o público em geral, a participação nos cursos não
implica em priorizar um candidato, mas em uma vantagem em relação aos demais.
Os cursos ofertados especificamente pelo DOD são para profissionais já
contratados. A capacitação é constante, entretanto, o foco é mais direcionado para
adequação do profissional ao cargo a ser ocupado.

e) Análise das práticas

A inserção de civis na carreira de Defesa, nos países analisados, é uma constante.


Sua relevância é justificada em elementos como a necessidade de compartilhar
questões de defesa, ampliação de conhecimentos, além de adaptação ao regime.
Em paralelo, o diferencial de compor quadros específicos do ministério com
profissionais civis é justificado pela necessidade de manutenção da memória
organizacional, que no caso militar seria prejudicada pela sua característica inerente
da rotatividade.

Em termos de formação, observa-se que é prática a contratação de profissionais


com formações genéricas, adequadas aos perfis profissiográficos. As necessidades
de conhecimentos em Defesa são, portanto, sanadas após entrada do civil no
ambiente de defesa com capacitações específicas que permitam a adequação entre
indivíduo e atividade a ser desenvolvida. Cursos das áreas afins à Defesa são
de grande relevância seja para a formação, atualização profissional como para a
conscientização acerca das atividades da área. Da mesma forma, a capacitação
pode envolver a adaptação de mão dupla, ou seja, civis podem adaptar-se à
realidade militar e a recíproca também é verdadeira.

996
O exercício das atividades em defesa, por civis, abrange uma diversidade de
oportunidades que envolvem o quadro fixo, quadro temporário, terceirização e
posições políticas. Dessa forma, constata-se que: 1. o quadro fixo refere-se ao
atendimento das demandas constantes do Ministério, ocupados por profissionais de
formação específica para os cargos e com capacitação posterior à contratação; 2. o
quadro temporário costuma ser composto por profissionais de contratos anuais ou
bianuais, para sanar necessidades temporárias; 3. a terceirização é uma opção para
inserir profissionais com maior nível de especialização, para sanar necessidades
temporárias e bastante específicas, das quais a capacitação em defesa – após a
contratação - não é um pressuposto. 4. posições políticas são uma realidade que,
para a sua adequação à área, demandam capacitação específica – inclusive para
refletir em reconhecimento por parte dos militares. Característica única do ambiente
de defesa é a possibilidade de aproveitamento de militares da reserva para a
condução de atividades que demandem o conhecimento técnico/militar, sem, porém
prejudicar o andamento das Forças.

Aproveitando as pistas de perfil e competências destacam-se características como:


flexiblidade para adaptação cultural e mudanças; patriotismo; disciplina; negociação
e construção de consenso; proatividade; capacidade para desenhar e gerir políticas
públicas efetivas; visão multidisciplinar; conhecimento de relações internacionais;
vocação para o serviço público; conhecimento da diversidade cultural. Esses são
apenas alguns dos potenciais elementos para o perfil do profissional civil à ser
inserido no ambiente de defesa.

Por fim, verifica-se que, de modo geral, o trabalho de aproximação cultural entre
profissionais militares e civis é resultado do esforço cotidiano de compreensão das
distinções e similaridades entre ambas as realidades. A aproximação entre as partes
é um dos elementos mais visíveis do processo de democratização, notadamente da
defesa.

5 Considerações Finais

Conclui-se, portanto, que a inserção de civis não se trata de uma decisão


personalista, tampouco uma decisão imposta quando da definição da Política de

997
Defesa Nacional. Essa decisão reflete a necessidade de adaptação a um contexto, o
qual o Brasil - dentre as países estudados – surge com o comportamento reativo.
Uma explicação para essa posição pode ser explicada pelo fato de ser o Ministério
da Defesa o mais recente em fundação - há pouco mais de uma década.

Com a criação de tal carreira, o MD pode assumir a posição de gestor das decisões
e atos que concernem a área, de modo que possa ser entendido como uma espécie
de holding de Defesa - nas quais estão subordinados a Marinha, a Aeronáutica e o
Exército. A juventude do MD surge como oportunidade para inovar, inclusive com a
possibilidade de ofertar novas práticas para a administração pública brasileira.
Dentre as principais atividades destacam-se a possibilidade de coordenar e otimizar
a Defesa; centralizar políticas de recursos humanos; gerar reflexos positivos nas
Forças; aperfeiçoar a gestão; otimizar processos e o uso de recursos. A diferença
entre as Forças e o MD está nas atividades de preparo e emprego.

Ao entender carreira nos sentidos de capacitação com investimento de longo prazo


(FELDMAN, 2003), ou a mobilidade ocupacional e a estabilidade do indivíduo na
organização (DUTRA, 2011), o foco direto das ações do ministério passa ser em três
categorias: quadro fixo, temporário e profissional da reserva (contratado - PTTC).
Indiretamente, no sentido de suprir suas demandas temporárias e de maior nível de
especialização, as terceirizações surgem como opção. Investindo esforços nessas
possibilidades o MD aumentará o potencial de atendimento de suas necessidades
futuras pelo desenvolvimento dos seus recursos humanos – conforme preconizado
por Hall (1996).

Ao desenvolver carreiras, com capacitações direcionadas à temática, visualiza-se a


possibilidade de ampliação do capital humano, com conhecimentos, saberes,
habilidades e características individuais – assim como proposto pelos autores
(PLOYHART; MOLITERNO, 2011; HITT, 2007). De forma específica, constata-se
que a prática aponta para um modelo de competências (BANERJEE, 2003) nas
quais as simples são relacionadas com perfis profissiográficos generalistas e as
centrais específicas com a realidade da defesa.

Constata-se assim a adequação entre teoria, práticas em relação ao conteúdo


preconizado no Livro Branco de Defesa Nacional (BRASIL, 2012), notadamente na

998
adequação dos quadros do MD às necessidade de Defesa Nacional. Por fim, é
importante ressaltar que o presente trabalho não tem por intenção esgotar as
discussões sobre o assunto, especialmente em função de suas limitações de
amostra e abrangência do tema.

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1001
Simpósio Temático 15

O BRASIL E SUA “LIDERANÇA” NA AMÉRICA DO SUL:

PERCEPÇÕES A PARTIR DOS PLANOS NACIONAL, REGIONAL E GLOBAL

Alexandre Fuccille

1 Introdução

Falar de Brasil no contexto sul-americano, necessariamente implica falar em


números grandiosos: 48% da área total do subcontinente, 50% de sua população,
59% de sua economia/PIB (detendo cerca de 75% da base industrial e 2/3 de sua
agricultura), 42% da produção de petróleo, responsável por quase 3/4 dos
desembolsos voltados à infraestrutura da integração regional, entre outros
indicadores igualmente superlativos. Tais cifras certamente impactam e obrigam-nos
a olhar com mais vagar a questão da permanência e mudança na arquitetura de
segurança e defesa do subcontinente na presente época.

O século XXI inaugura um novo período no relacionamento entre os países da


América do Sul e, em particular, do Brasil para com estes. A erosão da influência
norte-americana na região (associada a outras prioridades), ao lado de um maior
protagonismo brasileiro e um sistema internacional crescentemente multipolar com
novos vértices de poder, afetaram decisivamente a forma pela qual a segurança e
defesa no subcontinente eram pensadas e conduzidas há mais de meio século.
Fundamentalmente, percebe-se um esforço que pretende representar uma
passagem de um arranjo caduco de segurança coletiva em direção a um modelo
mais dinâmico de segurança cooperativa, contudo de contornos ainda incertos e
cujo resultado final segue em aberto.

Posto isso, o propósito deste artigo é procurar avaliar desde uma perspectiva
brasileira a dinâmica, os avanços e os desafios nas amplas áreas de segurança e


Doutor em Ciência Política pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é professor da Universidade
Estadual Paulista/UNESP e membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional/GEDES.

1002
defesa no subcontinente no presente século, cotejados com movimentos como o
giro à esquerda e centro-esquerda nos governos da região, o novo protagonismo
externo brasileiro neste espaço geográfico, os avanços na integração regional e
seus impactos (UNASUL, Conselho de Defesa Sul-Americano etc), culminando na
constituição do que tem sido chamado por alguns analistas de um vigoroso
Complexo Regional de Segurança (CRS).

Ao debruçarmo-nos sobre a bibliografia do tema aqui proposto, notamos que a


mesma é caracterizada por uma constante ambivalência, ora sinalizando para uma
cooperação salutar e sem volta entre os países sul-americanos, ora apontando para
divergências de fundo insuperáveis, ao menos nos curto e médio prazos, e um papel
ainda incerto por parte do Brasil neste processo.

2 A “primavera sul-americana”

Como resposta à deterioração socioeconômica assistida ao longo da década de


1990, que arrastou dezenas de milhões de pessoas à pobreza em uma região já
marcada por imensas desigualdades de todo o tipo – fruto da adesão quase que
incondicional aos preceitos do ―Consenso de Washington‖ (a troika composta por
FMI, Banco Mundial e Departamento do Tesouro dos Estados Unidos) –, somado a
um quadro político extremamente complexo e sensível caracterizado por uma
paulatina corrosão das instituições, a passagem do milênio sinalizou com uma nova
alvorada onde, distintamente da cena anterior, novos governos crescentemente
identificados com as demandas da cidadania e dos movimentos sociais
experimentavam uma oportunidade de condução dos negócios nacionais.

Simbolizada pela posse de Hugo Chávez Frías no governo da Venezuela em 1999,


esta espécie de ―primavera sul-americana‖ seria seguida pela assunção de novos
governantes de esquerda e centro-esquerda ao longo de toda a primeira década do
novo século, como Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil (2003), Néstor Kirchner na
Argentina (2003), Tabaré Vázquez no Uruguai (2005), Evo Morales na Bolívia
(2006), Rafael Correa no Equador (2007) e Fernando Lugo no Paraguai (2008), que

1003
abririam as portas – em princípio – a novas possibilidades e formas de cooperação
neste inédito contexto.

A grande contradição é que, ao contrário do que o senso comum parece sugerir, a


emergência destas novas lideranças, acompanhadas de intensa mobilização popular
e seu séquito de anteriormente excluídos do processo político, acabou por levar a
uma nova situação onde,

As bases sociais dessas novas lideranças tendem a considerar que boa


parte de suas dificuldades econômicas e sociais são consequências dos
impactos vindos de seu exterior, passando a demandar dos governantes
posicionamentos internacionais mais autônomos. Para não perder apoio
político doméstico, essas lideranças por vezes exacerbam seus discursos e
práticas de política externa. A consequência é que, paradoxalmente, a nova
onda de líderes ―esquerdistas‖ sul-americana, a qual se supunha ser
facilitadora de uma futura pauta de política externa de integração regional
por proximidade de identidades ideológicas, acaba por operar contra essa
tendência (DUPAS; OLIVEIRA, 2008, p. 239).

Poucas não foram as ocasiões em que as disputas no plano sub-regional, seja por
intermédio da Comunidade Andina de Nações (CAN), do Mercado Comum do Sul
(Mercosul) ou ainda da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), fizeram
dissipar energia que poderia ser canalizada conjuntamente e explicitaram as
pesadas contendas de bastidores que orientam as chancelarias nacionais.429

Não obstante, as históricas hipóteses de guerra e de conflito já eram coisas do


passado. O incremento do preparo orientado em função de capacidades (não
confundir com capabilities) ao invés das antigas ameaças, crescentemente é uma
realidade. O fim da guerra fria, o novo ambiente democrático pós-regimes
autoritários, a intensificação do processo de globalização e o que se convencionou
chamar ―novas ameaças‖ (normalmente via atores não-estatais), aumentou
vertiginosamente a adoção das medidas de confiança mútua entre os países sul-
americanos.

Por outro lado, a antiga antipatia que muitos dos novos presidentes do
subcontinente nutriam por Washington combinada à forma pouco habilidosa com

429
Apenas para ilustrar, isso pode ser facilmente verificado nos embates envolvendo a “diplomacia dos
biocombustíveis” (Lula) versus a “diplomacia do petróleo” (Chávez).

1004
que os interesses estadunidenses foram conduzidos por estas paragens, acabaram
evidenciando a decrepitude crescente de instituições e mecanismos como a OEA, a
Junta Interamericana de Defesa (JID), o TIAR, entre outros, dando sinais
inequívocos de esgotamento do sistema de segurança hemisférico estruturado a
partir das décadas de 1930-40.

O movimento recente de securitização do fenômeno do terrorismo na agenda


política norte-americana acabou por gerar respostas contraditórias na América do
Sul, quando não de aberta confrontação. A baixa prioridade estratégica
historicamente conferida pelo Departamento de Estado yankee à região 430 (ou
―invisibilidade‖, como preferem outros), combinada à profunda alteração da agenda
internacional deste país pós-setembro de 2001, os sucessivos reveses em temas
como implantação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), os fracassos
nas tentativas de eleger seus candidatos a secretário-geral da OEA, as negativas do
Chile e México (então membros-rotativos do Conselho de Segurança da ONU) em
dar seu aval à invasão do Iraque em 2003, entre outras questões, acabaram por
consolidar um imaginário de espaço geográfico possível e passível de desenvolver
políticas mais independentes, advindas de uma maior margem de autonomia.
Ademais, a saída do estado de hibernação em que ficou o urso russo ao longo dos
1990 e o espetacular crescimento chinês e seu desembarque no subcontinente,
ajudaram a complexificar ainda mais este novo quadro.

De toda sorte, o fato para o qual estamos querendo aqui chamar a atenção é que, a
despeito de disputas (pontuais ou não) entre os diferentes Estados sul-americanos
no processo de construção e condução da integração regional, parece haver um fio
condutor comum (excetuado a Colômbia) com respeito à temática segurança e
defesa que é a aspiração por parte das lideranças políticas do fim da heteronomia e
ingerência norte-americana na região. Neste particular, a América do Sul
concretamente parece vivenciar uma nova realidade, com o florescimento inclusive
de novas institucionalidades como o CDS e outros mecanismos, não obstante uma

430
Recentemente o secretário de Estado do governo Barack Obama, John Kerry, em discurso ante o Comitê de
Assuntos Exteriores da Câmara de Representantes, classificou a América Latina como “quintal” dos Estados
Unidos.Ver John Kerry (2013) e Colombo e Frechero (2012).

1005
crescente aproximação militar entre Paraguai e Estados Unidos, notadamente após
a suspensão do primeiro do Mercosul e da UNASUL em meados de 2012.431

Todavia, apesar de importantes transformações operadas no panorama sul-


americano, este novo quadro não representou per si o rompimento ou a renúncia da
lógica do imperativo das ―pequenas soberanias‖, tão necessário à criação dos
arranjos transnacionais que reiteradamente aparecem como um anseio nos
discursos dos diversos líderes locais e que, vale lembrar, são buscados ao menos
desde o Congresso do Panamá, em 1826, idealizado por Simón Bolívar. As
diferentes visões, por vezes conflitantes, sobre o que é integração e como ela deve
ocorrer (nos mais distintos campos) continuam a predominar.

3 O Brasil no novo contexto

A posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2003 traria


importantes mudanças não só internas como também externas, dada a estatura de
maior player regional e as dimensões físicas, políticas, econômicas e militares que o
Brasil possui.432 Recordemos que uma maior assertividade com relação à
cooperação e integração sul-americanas, ainda que não constituam propriamente
uma novidade quando olhamos retrospectivamente a história, recentemente ganha
novos contornos a partir do esforço – da perspectiva brasileira – iniciado com o
presidente Cardoso, aprofundado pelo presidente Lula da Silva (ambos dirigentes
lastreados em uma forte diplomacia presidencial) e novamente reiterado pela atual
presidente Dilma Rousseff.

No presente século, para além da integração física e econômica pretendida, o Brasil


tem trabalhado na América do Sul procurando fomentar uma agenda comum de
segurança e contra-arrestar a influência norte-americana na região (originalmente

431
Antes disso, exercícios militares por parte do Exército brasileiro na fronteira com o Paraguai em fins de 2008,
em uma espécie de desagravo informal aos “brasiguaios” (principais produtores agrícolas naquele país) que
sofriam pressão dos sem-terra local, mobilizou um efetivo de milhares de homens trazendo tensão e desconforto
à região. Para piorar, desde 2010 a guerrilha também passou a ser uma nova triste realidade neste sofrido país,
por intermédio do Exército do Povo Paraguaio (EPP).
432
Nesse mesmo ano teve lugar no Brasil, pela primeira vez na história, a “1ª Reunião de Ministros da Defesa da
América do Sul”. A Política Externa Brasileira ao longo do governo Lula (2003-2010) é motivo de muita
controvérsia entre os analistas. Com respeito às questões de segurança e o tratamento diferenciado que estas
receberam ao longo dos dois mandatos do presidente Lula, sugerimos Villa e Viana (2010).

1006
centrada na expansão de bases militares no subcontinente, reativação da IV Frota
Naval e combate ao terrorismo e às drogas). A pactuação desta agenda comum
permitiria, em tese, a criação até mesmo de uma comunidade de segurança, dada a
centralidade da territorialidade na dinâmica dos estudos de segurança. Contudo,
seja no nível regional ou ainda no sub-regional, obstáculos têm aparecido.

A marcha da integração tem seguido com avanços, impasses e por vezes


retrocessos, desde a I Cúpula Sul-Americana realizada em agosto/setembro de 2000
em Brasília, com os chefes de Estado da região. Se geografia é destino, como se diz
na geopolítica, o Brasil e seus vizinhos pareciam estar despertando de um longo
período de letargia e inação, ciosos da necessidade de pactuação de uma agenda
comum de oportunidades e desafios. Como forma de escapar às armadilhas muitas
vezes colocadas pela frágil institucionalização da democracia e instituições na
região, arroubos populistas e/ou disputas por liderança no processo de integração
sul-americano, o Brasil optou por apostar em um tipo de amálgama, a partir de
Cardoso, mantendo o regionalismo aberto anterior e alicerçado na integração física
(por meio da Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-
Americana/IIRSA), tendo, por finalidade, a promoção do desenvolvimento da infra-
estrutura de transporte, energia e comunicações.433 Destacando os progressos da
perspectiva brasileira, por ora poderíamos listar como principais a estruturação da
Comunidade Sul-Americana de Nações/CASA (posteriormente renomeada União de
Nações Sul-Americanas/UNASUL), a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano
(em aberta oposição aos EUA, que procurou valer-se da Colômbia para bloquear
esta iniciativa do Brasil) e o ingresso da Venezuela como membro pleno do Mercosul
(a Bolívia já assinou o Protocolo de Adesão e as tratativas com o Equador têm
avançado positivamente).

O Conselho de Defesa Sul-Americano é a proposta mais ousada no âmbito da


temática aqui abordada, em que pese não explicitar defesa contra quem ou o quê.434
É importante assinalar que entre a apresentação da proposta, iniciada em conversas
bilaterais de bastidores ao longo de 2006-2007, e a exposição pública e aprovação

433
São mais de 500 projetos a um custo estimado de cerca de US$ 120 bilhões. Para áreas de ação, projetos,
planejamento e documentos da IIRSA, ver <http://www.iirsa.org/index.asp?CodIdioma=ESP>. Acesso em: 15
mar. 2013.
434
Para uma cronologia da criação do CDS e as disputas envolvendo sua instituição, ver Medeiros Filho (2010),
Carvalho (2009) e Teixeira (2011). Para um balanço mais amplo, cf. Pagliari (2009).

1007
do CDS em dezembro de 2008, diversas foram as articulações para superar as
diferenças de forma e conteúdo entre seus 12 membros, bem como sepultar a ideia
de que tal instrumento visava consolidar a hegemonia brasileira na região.435 Entre
uma Colômbia que se enxergava insulada, cercada de governos esquerdistas (para
não falarmos dos estreitos vínculos político-ideológicos com Washington e a
colaboração na área castrense via Plan Colombia), a uma Venezuela histriônica que
defendia a criação de um instrumento militar operacional comum chamado
Organização do Tratado do Atlântico Sul (OTAS, nos moldes da Organização do
Tratado do Atlântico Norte/OTAN),436 acabou vingando a proposta de
implementação de uma estrutura suavizada – subordinada a um bloco regional
multipropósito como a UNASUL –, de concertação entre seus integrantes, capaz de
fomentar o intercâmbio nos campos da segurança e defesa, cujas decisões só têm
validade se acordadas por consenso e com previsão de ao menos um encontro
anual ordinário entre seus ministros da Defesa.437

Para alguns atores deste processo, a acelerar a conformação deste arranjo estavam
1) a possibilidade de transbordamento de ―novas ameaças‖ a outros países, como o
narcotráfico colombiano para o Brasil e a contenda envolvendo Colômbia, Equador e
Venezuela pela morte de Raúl Reyes (número dois na hierarquia das Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo/FARC-EP); 2) os conflitos
sub-regionais como os contenciosos envolvendo Perú e Equador, Bolívia e Chile,
entre outros; 3) os movimentos autóctones difundindo um sentimento separatista,
como ilustram Bolívia e Paraguai; 4) frear os ímpetos bolivarianos na região,
sobretudo via isolamento da Venezuela e/ou dos países integrantes da ALBA; 5)
evitar uma corrida armamentista na região, com a adoção cresceste de medidas de
confiança mútua (CBMs, do original Confidence Building Measures); 6) solidificar o
Atlântico Sul como um área de paz, livre de armas nucleares e vital de projeção de

435
Um interessante panorama de como a inserção brasileira foi pensada desde a década de 1950 até os dias
atuais, pode ser conferido em Vigevani e Ramanzini Júnior (2010). A propósito da discussão em torno da ideia
de liderança brasileira, vale a pena considerar Danese (2009).
436
Antes desta oportunidade, a última vez que a criação de um mecanismo semelhante foi aventada deu-se
nos anos 1980, no início do governo Ronald Reagan (1981-1989), onde Argentina e África do Sul eram
entusiastas de tal proposta norte-americana. O Brasil e outros países africanos – notadamente os da chamada
África ocidental – procuraram obstaculizar tal iniciativa. Já em meados de 1982, com a eclosão da Guerra das
Malvinas, tal devaneio esboroava-se.
437
Acerca das suas funções e outras atribuições, ver o site <http://www.cdsunasur.org/>. Acesso em: 27 mar.
2013.

1008
poder ao Brasil, não permitindo a presença de potências extra-regionais (como o
caso do Reino Unido e a questão Malvinas/Falklands); 7) impedir a materialização
de uma política estratégica de segurança hemisférica definida a partir dos Estados
Unidos para o subcontinente; e, último mas não menos importante, 8) concretizar os
objetivos estratégicos da Política Externa Brasileira de consolidação de um processo
de integração sul-americano.438

Efetivamente, mais do que nunca, para que o desenvolvimento do Brasil se acelere e


se consolide sua pretensão de player global, a estabilidade joga um papel
fundamental não apenas para o florescimento pleno de suas potencialidades mas
igualmente para mostrar ao mundo seu desempenho como fiador de uma importante
estabilidade regional.439 O comando da Missão de Estabilização das Nações Unidas
no Haiti (MINUSTAH) desde 2004 não tem outra razão, para além das justificativas
protocolares de ajuda humanitária etc, constituindo-se em um verdadeiro ponto de
inflexão no modus operandi brasileiro em operações de paz da ONU.

Ao mesmo tempo, como frisa bem Alsina Jr. (2009, p. 181), ―a satisfação territorial e
a não securitização de ameaças emanadas dos países lindeiros permitem que o
País [Brasil] priorize a dimensão do desenvolvimento em detrimento da dimensão
estratégico-militar‖. Todavia, se historicamente foi assim, um país com mais de
15.000 quilômetros de fronteiras secas, cerca de 8.000 quilômetros de litoral e um
imenso espaço aéreo,440 que reivindica um assento permanente em uma possível
reconfiguração do Conselho de Segurança da ONU e pretende-se avalista da
concórdia em seu entorno, não pode prescindir de uma estrutura militar crível e
descurar de seus meios de defesa. Ao mesmo tempo, tarefa complexa e difícil esta

438
Notas pessoais a partir de conversas off the record com membros do Ministério das Relações Exteriores
(Itamaraty) e Ministério da Defesa brasileiros.
439
Para tanto é fato que ao lado do tradicional soft power há inúmeros desafios colocados a fim de que o Brasil
aumente seu hard power. Por exemplo, uma importante limitação advém do fato deste país ser o único membro
do acrônimo BRIC desnuclearizado. Cf. Bertonha (2010) e Flores (2009-2010).
440
Corroborando estes elementos, a lembrança de que várias nações sul-americanas são menores geograficamente
do que muitos Entes Federados brasileiros (e.g., se o Estado do Amazonas fosse um país seria o 3º maior da
América do Sul – depois de Brasil e Argentina), menos populosos (e.g., o Estado de Minas Gerais tem um
população maior que Bolívia, Paraguai e Uruguai somados), de menor peso econômico (e.g., se o Estado de São
Paulo fosse um país seria a 2º maior economia do subcontinente, só perdendo para o próprio Brasil), entre outros
pontos, não podem deixar de causar mal-estar entre seus vizinhos.

1009
sem que se incorra na clássica armadilha do ―dilema da segurança‖, conforme
proposto por Herz há mais de meio século.441

Em várias circunstâncias o Brasil não tem sido feliz, para dizer o mínimo, em erigir
um discurso coerente e que pareça crível aos demais parceiros regionais, tendo
como consequência um perfil identitário ainda não claramente delineado. Ao falar
sobre o subcontinente e a relação do Brasil para com este, enquanto o presidente
FHC destacava que ―só teremos êxito se formos capazes de ser companheiros dos
outros países. Não podemos sufocar, tirar vantagem desnecessária. A vantagem é
estratégica, não é para o dia de amanhã‖, por vezes temos afirmações como a do
presidente Lula de que ―é impressionante como todos esses países estão quase a
exigir que o Brasil lidere a América do Sul‖ (PARA AMERICA..., 2008). Em que pese
os esforços envidados por Lula da Silva para que a integração regional saísse do
papel e a ação que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) passou a jogar para concretizar a IIRSA e como um dos braços da política
externa brasileira, em larga medida há um sentimento generalizado do Brasil como
um hegêmona, gigante e subimperialista, permeando corações e mentes de boa
parte dos vizinhos sul-americanos.442 Para que tal percepção se esvaia, é preciso
que se avance, reduzindo efetivamente as importantes assimetrias que ainda
caracterizam os países da região e apostando na integração regional para valer (e
não apenas como mecanismo de salvaguarda a ameaças externas comuns de
diferentes tipos e/ou um tipo de soft balancing). Não só os vizinhos menores, mas
também o Brasil seria enorme beneficiário se tal processo ocorresse, dissipando
definitivamente a imagem de um ―gigante egoísta‖ – na feliz expressão de Andres
Oppenheimer.

441
Desta perspectiva, na ausência de autoridade centralizada e em um sistema internacional anárquico, o fato de
um Estado tornar-se mais seguro reduz a segurança de outro Estado, com os riscos daí decorrentes de uma
interminável corrida armamentista e da misperception (HERZ, 1950, p. 157 et seq.).
442
Em uma rápida busca pela internet isto é facilmente visualizável. Apenas para aclarar, ver “Dossiê
Imperialismo Brasileiro”, Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2009; “O imperialismo brasileiro preocupa a
região”, O Estado de S. Paulo, 23 out. 2008; “El imperialismo brasileño seguirá intacto con el gobierno de
Dilma”, ABC Color, disponível em: <http://www.abc.com.py/articulos/el-imperialismo-brasileno-seguira-
intacto-con-el-gobierno-de-dilma-178977.html>, acesso em: 27 fev. 2013; Samuel de Jesus. “„Imperialismo
Brasileiro‟: visões jornalísticas sobre a atuação brasileira na América do Sul e no mundo”, disponível em:
<http://mundorama.net/2012/09/25/imperialismo-brasileiro-visoes-jornalisticas-sobre-a-atuacao-brasileira-na-
america-do-sul-e-no-mundo-por-samuel-de-jesus/>, acesso em: 26 fev. 2013). Para um contraponto a estas
leituras, cf. Curado (2011).

1010
A dificuldade da presidente Dilma atualmente reside em um resiliente quadro
internacional de crise, que impacta diretamente os planos doméstico, regional e
global, limitando a capacidade de ação do Estado brasileiro no sistema
internacional. Por outro lado, a crescente probabilidade de convulsão da
Argentina que se avizinha, somado a uma Venezuela fragilizada tanto econômica
quanto politicamente, abrem novas portas para o Brasil transformar esta crise em
oportunidade.

Assim, a construção de uma ativa e altiva comunidade de segurança com vistas à


estabilidade regional aparece como um tema e tarefa central nos marcos mais
amplos desse processo, uma vez que mesmo com a decisiva participação
brasileira em dirimir desconfianças, criar entendimentos e facilitar o diálogo, a tão
propalada identidade sul-americana em matérias de defesa até este momento é
uma promessa não realizada. Porém, as políticas integracionistas avançam em
diferentes velocidades, por vezes de forma mais acelerada no campo político –
vide o Conselho de Defesa Sul-Americano –, porém seguidas de um
descompasso no campo econômico e outros, bem como de uma arquitetura
institucional mais sólida capaz de dar suporte a uma integração mais profunda e
profícua. Todavia, nunca as possibilidades de cooperação foram tão grandes
como na atual quadra histórica. 443

4 As dificuldades na construção de uma nova cultura estratégica

A construção de uma nova cultura estratégica, não obstante a aproximação política


e o incremento dos fluxos de comércio intra-regional que se seguiu após o fim dos
regimes militares na região e o término da guerra fria, não é tarefa das mais fáceis.
Foram séculos com os vizinhos se percebendo como as principais ameaças e
orientando o preparo de suas Forças Armadas para a guerra com seus países
lindeiros e/ou de seu entorno.

443
Com isto não estamos querendo – em absoluto – negar as diferentes tensões em torno das imagens geradas e
percebidas por diferentes coletividades sobre a presença brasileira no subcontinente, a saber, o estereótipo
hegemônico, o perfil de liderança e a alteridade hispânica. Para detalhes, ver Galvão (2009), p. 72 et seq.

1011
As considerações anteriores e a discussão em torno de uma nova cultura
estratégica, necessariamente nos leva a algumas questões: houve alteração
importante na distribuição global de poder no sistema internacional nos últimos
anos?; como essa repartição de poder afeta as opções sul-americanas e, em
particular, as brasileiras?; temos instituições regionais fortes?; o mundo político/civil
dirige o mundo das armas/militar? Estas e outras questões impactam centralmente a
reflexão que aqui estamos desenvolvendo.

Um primeiro elemento a ser destacado é a mudança relacional na posição dos


Estados Unidos no sistema internacional. Os ataques de 11 de setembro de 2001,
os pioneiros em grande proporção na porção continental norte-americana desde sua
ascensão à condição de potência, não só abalou o sentimento de incolumidade
contemporâneo por parte daquela população, como lançou seu sistema político em
uma cruzada internacional nominada war on terror. A crise financeira iniciada em
2008, cujo epicentro se deu neste país, igualmente implicou em um declínio – ainda
que relativo – da superpotência no conjunto das interações sociais que se
desenvolvem na esfera internacional. Ainda assim, sem entrarmos em pormenores
do renascimento russo a partir de Putin e do crescente protagonismo chinês,
acreditamos que a polaridade do sistema internacional não foi alterada no período
pós guerra fria,444 a despeito de novos vértices de poder que tem emergido no
presente século mas que ainda não conseguiram romper com a unipolaridade.

Ao lado disso, as urgências estratégicas e militares norte-americanas – notadamente


Afeganistão e Iraque – possibilitaram como resultado concreto que, em uma região
que ainda no período da guerra fria nunca esteve no topo das prioridades da grande
potência, houvesse uma nova divisão de responsabilidades onde o Brasil desponta
como garante da estabilidade sul-americana (inclusive procurando moderar os
países bolivarianos), em uma espécie de liderança aquiescida, sem contudo
confrontar severamente Washington no nível global.

Como pano de fundo, desde a formação do Mercosul em 1991 até o


estabelecimento da UNASUL em 2008, temos visto uma pulular de instâncias,

444
Em plena “crise”, os Estados Unidos da América, que concentram menos de 5% da população mundial, em
2012 continuavam responsáveis por 43% dos gastos militares e de defesa do planeta. Ver
<http://www.sipri.org/databases/milex>. Acesso em: 12 jul. 2013.

1012
processos e instituições, que precisam ser fortalecidos, maturados e sedimentados.
As céleres, e constantes, alterações e regressões de pontos anteriormente
acordados entre os países do subcontinente pouco contribui para o fortalecimento
das instituições regionais – condição necessária ainda que insuficiente – e de esteio
para o aprofundamento das relações de segurança interestatais, que é o ponto que
aqui mais de perto nos interessa. O exemplo mais dramático talvez seja dado pelo
Mercosul, proposta de Mercado Comum, atualmente na fase de União Aduaneira
(mais que imperfeita!), que tem levado importantes setores das sociedades de
diferentes Estados membros integrantes deste bloco a defenderem que este arranjo
retroaja a uma Área de Livre Comércio. Os reflexos de tal instabilidade podem ser
sentidos, e.g., na não concretização de uma Agência de Segurança e Defesa do
Mercosul, como previsto há mais de uma década e cuja sede situar-se-ia em
Montevidéu (a exemplo do Parlasul), dificultando a passagem e avanço do nível do
diálogo bilateral para o diálogo subregional.445

Assim, no início da segunda década do novo século,

Os processos de integração permanecem, mas sem aprofundamentos. Na


área de defesa e segurança atingiu-se um patamar significativo de
mecanismos de confiança mútua, ao que parece satisfatório aos países. Ou
seja, novos e ousados passos não são estabelecidos, ainda que com a
criação da UNASUL e do Conselho de Defesa Sul-Americano. (SOARES,
2011, p. 104).

Junto a isto, sem desconsiderar muitas vezes inépcia política civil e a


lentidão/desconfiança das burocracias nacionais, vale destacar que os atores
fardados não são meros coadjuvantes e uma mentalidade tão arraigada e
conservadora como a militar não se transmuta por uma simples troca de regime
político e uma nova realidade histórica. Requer, em verdade, uma profunda
alteração no plano cultural e dos signos socialmente construídos. Nessa direção,

As transformações culturais são naturalmente processos largos, não isentos


de marchas e contramarchas. As mudanças nas concepções de segurança
são parte desses processos, e na região têm estado marcadas por debates
profundos acerca do que significa a segurança, qual é o papel das forças
militares, e fundamentalmente, quais são as visões que cada país tem

445
Documentos pessoais da fase em que trabalhei na Secretaria de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais
do Ministério da Defesa no Brasil, de 2003 a 2005.

1013
acerca do que desafia seu cenário de segurança. Isto causa impacto nas
possibilidades multilaterais. (DONADIO, 2011, p. 115).

Concomitantemente, o controle civil democrático sobre os militares deve ser um fato


consolidado e, neste sentido, a direção política deve apontar para quais Forças
Armadas são ambicionadas em função do perfil estratégico pretendido pelo país,
que deverá contemplar o redimensionamento de seus meios, aqui incluso pessoal,
material, educação etc. Gostaríamos de assinalar que, em alguns países da região,
o aparelho militar vem perigosamente – ao nosso ver – assumindo tarefas que
competem aos civis, com possíveis desdobramentos nada alvissareiros, para além
da manutenção da já tradicional missão de fiadores (em diferentes graus) da ordem
política e institucional que este preserva em muitas destas nações.

Uma nova cultura estratégica não surge da noite para o dia. De forma um tanto
sumarizada e pensando em termos de região e acúmulo no tema em tela, vale listar a
criação de mecanismos como o ―Tratado Americano de Soluções Pacíficas‖/Pacto de
Bogotá (1948), a ―Zona Livre de Armas Nucleares na América Latina‖/Tratado de
Tlatelolco (1967), a ―Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul‖ (1986), o ―Acordo de
Mendoza‖ entre Argentina, Brasil e Chile (1991) proibindo a proliferação, a posse e o
uso de armas químicas e biológicas, a ―Zona de Paz Sul-Americana‖/Comunicado de
Brasília (2000), a inauguração das ―Reuniões de Ministros da Defesa da América do
Sul‖ (a primeira ocorrendo no Rio de Janeiro em 2003), além do crescente
adensamento das relações bilaterais entre Brasil e Argentina desde a década de 1980
na área nuclear com a abdicação da fabricação e emprego por ambos de armas
atômicas, a instituição da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de
Materiais Nucleares/ABACC (única organização binacional de salvaguardas nucleares
do mundo), culminando no ―Acordo Bilateral de Cooperação em Matéria de Defesa‖
firmado em 2007.446 Enfim, um expressivo acervo e uma não desprezível tradição de
se procurar distensionar o ambiente de segurança e defesa regional.

A partir de 2009, com o início efetivo de suas atividades, o Conselho de Defesa Sul-
Americano tem aparecido como um importante espaço de concertação onde, a
446
A esses poderíamos somar as iniciativas brasileiras dos Acordos Bilaterais-Quadro com Bolívia, Chile,
Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai, além dos Acordos-Quadro de segurança regional assinados pelo
Mercosul com Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela – todas deste século.

1014
despeito das idiossincrasias regionais/ideológicas entre a CAN, o Mercosul, ou ainda
a ALBA, importantes avanços têm sido registrados, como a definição de Planos de
Ação comuns na temática de segurança e defesa, o estabelecimento de medidas de
confiança mútua, a criação do Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED) na
cidade de Buenos Aires, a construção de uma metodologia comum de medição dos
gastos em defesa, um importante intercâmbio em matéria de formação e
capacitação militar, entre outros pontos igualmente meritórios. Não obstante,
desafios permanecem.

5 Considerações finais

Em face do exposto, a regionalização da arquitetura de segurança e defesa no


subcontinente prossegue, mas com novas interrogantes: o que temos assistido,
corrida armamentista ou reaparelhamento? e os históricos contenciosos fronteiriços
e querelas territoriais, foram superados? os espaços e identidades nacionais
crescentemente são respeitados reciprocamente? como se evitar desequilíbrios
onde a economia/PIB – bem como os gastos na área de defesa – apenas do Brasil
representam mais da metade de todos os outros países do subcontinente somados?
podemos – definitivamente – falar em superação da dicotomia Pacífico (arco de
instabilidade/CAN) versus Atlântico (arco de estabilidade/Mercosul)? como a
questão amazônica se apresenta hoje? o risco de balcanização de países da região
é coisa do passado? a tutela estratégica norte-americana foi contida?

Na verdade, o Conselho de Defesa Sul-Americano ainda não passou por nenhuma


prova de fogo capaz de por em xeque a eficácia e eficiência desta estrutura
institucional, para além do gerenciamento – importante – de crises. Em paralelo, a
chamada agenda negativa que caracterizou o relacionamento EUA-América do Sul
no período pós-guerra fria, centrada no combate ao tráfico de drogas, terrorismo e
outros delitos de natureza policial, foi parcialmente superada. A despeito disso, os
Subcomplexos Regionais de Segurança do Cone Sul e Norte-Andino vivenciam
dinâmicas ainda bastante díspares entre si, que necessitam de maior articulação e
organicidade. A integração sul-americana e a estruturação de um Complexo
Regional de Segurança de tipo centrado têm avançado, de forma não-desprezível,

1015
alicerçada muitas vezes em bases frágeis, como uma forte retórica nacionalista,
defesa da soberania e não-intervenção.

O comportamento do Brasil, principal fiador da criação do CDS, carece de coerência


e se apresenta inúmeras vezes de forma diacrônica. Se por um lado, no mais alto
nível político, Brasília trabalha pela concretização deste arranjo institucional (que já
representa 2/3 do destino de suas exportações em armamentos), por outro,
descuida-se de engajar o próprio Ministério da Defesa e, mais particularmente, os
militares brasileiros, a atuarem de forma mais decisiva e decidida pela concretização
desta importante iniciativa e de seus mecanismos operativos. Na prática, vários altos
oficiais e oficiais-generais veem com muita reserva este empreendimento, não
poucas vezes classificando-o como uma ―extravagância‖, fruto de devaneios de um
governo esquerdista, que não encontraria correspondência na realidade.

Se iniludivelmente a integração regional tem funcionado como uma estratégia


para garantir mais voz (e força) aos pleitos da região em um mundo de
crescentes assimetrias de poder, isto não pode eclipsar a absoluta fragilidade que
tal instrumentalização deste importante processo representa para uma
cooperação mais sistêmica, não obstante avanços pontuais. A passagem da
segurança coletiva à segurança cooperativa é um fato. Enfim, a semente foi
lançada, mas, para que esta viceje, será preciso muita atenção, cuidado e
dedicação. O sentimento cultivado por parte da elite brasileira acerca de seu país
como um ―queridinho‖ na região é rarefeito em sua fundamentação. Se o Brasil de
fato quiser liderar, é preciso vontade e mobilização para tanto e que esteja ciente
de que isto tem um preço (e não é barato!).

Ao longo de toda a primeira década do século XXI, as reuniões não só


aumentaram de periodicidade, bem como novos arranjos institucionais foram
pensados e implementados. Como resultado final, constatamos neste breve
balanço da dinâmica, avanços e desafios nos campos da segurança e defesa no
espaço geográfico sul-americano que o atual processo de integração é marcado
por várias ambivalências, inconsistências, quando não abertas oposições. Mais:
a construção de uma nova cultura estratégica, ainda que louvável, se mostrará
um ―gigante de pés de barro‖ se não for acompanhada do respectivo

1016
aprofundamento e criação de novas institucionalidades nos planos econômico,
social, cultural, entre outros. Nesse sentido, esta contribuição, longe de
pretender esgotar o tema em tela, propõe-se a ser uma reflexão em uma área
ainda pouco explorada no subcontinente, somando-se às demais tentativas de
interpretação do Brasil e da América do Sul contemporâneos e os papéis que
estes almejam no presente século.

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1019
PERSPECTIVAS Y DESAFÍOS PARA LA COOPERACIÓN INDUSTRIAL EN
DEFENSA

Aureliano da Ponte447

1 Introducción

La conducción política argentina estableció entre sus objetivos el fortalecimiento de


la industria de producción para la defensa, tal como revela la Directiva de Política de
Defensa Nacional del año 2009 (DPDN, 2009)448, documento sectorial que inaugura
el Ciclo de Planeamiento, en el cual se explicitan los lineamientos centrales de esta
política y de la política militar.449 En el plano regional, el Consejo de Defensa
Suramericano (CDS), en el cual el país desempeña un rol muy activo, dispuso entre
sus prioridades la cooperación en la esfera deIndustria y Tecnología de Defensa (en
adelante ITD). Este propósito ha sido expresado tanto en su estatuto de creación
como en los planes de acción que orientan las iniciativas del Consejo (Eje 3:
Industria y Tecnología de Defensa: 2009-2010 /2010-2011 y 2012).

Sin embargo, pese al carácter estratégico y a su significado en términos de poder


nacional (PAARLBERG, 2004; SEMPERE, 2006; LONGO, 2009; SOUSA
MOREIRA, 2011; SANJURJO JUL, 2011), a las manifestaciones institucionales
recientes reflejadas en los documentos referidos, e inclusive considerando la
existencia de una frondosa bibliografía autóctona dedicada a reflexionar sobre la
integración regional, llamativamente, el estudio de la ―cuestión tecnológica‖ y su

447
Escuela Superior de Guerra
448
La Directiva dice: “MINISTERIO DE DEFENSA deberá continuar con el proceso de fortalecimiento y
profundización del desarrollo de la Industria de Producción para la Defensa […] Deberán promoverse los
cambios necesarios a efectos de lograr un sistema científico y tecnológico de la Defensa efectivamente
coordinado y funcional” (DPDN, 2009).
449
Argentina adoptó la metodología de planeamiento por capacidades en el año 2007. En relación al
Planeamiento, se define como el “proceso esencial e insustituible del Sistema de Defensa Nacional en lo que
refiere a la definición de todos los subsistemas del Instrumento Militar: recursos humanos, infraestructura,
logística, material, información, adiestramiento, organización y doctrina” (Decreto 1729/07)

1020
vinculación con la política de defensa, ya sea en la dimensión autónoma o en la
cooperativa, ha permanecido en un lugar relegado de la agenda académica.450

En tal virtud, este trabajo busca una aproximación a una problemática


extremadamente compleja. Uno de los aspectos que lo vuelve más equívoco es que
los objetivos políticos, estratégico-militares y económicos influyen tanto en el plano
nacional como en el cooperativo, pero operando bajo distintas lógicas. Esto es
central, por ello, hay que identificar las diferencias. Es decir, se debe reflexionar
desde que posición un país coopera y con qué finalidad, evitando confundir los
niveles. El caso de Brasil evidencia este argumento. Mientras que el país participa
del CDS, continúa generando un conjunto de instrumentos para el fortalecimiento de
su propia base industrial de defensa (FERNANDES, 2004; ESTRATEGIA
NACIONAL DE DEFESA, 2008; LONGO, 2009; DAS GRAÇAS CORRÊA, 2010;
DEFESA, 2013).451

En otras palabras, pensar la cooperación regional obliga a reflexionar a la vez en la


propia política argentina en ITD, partiendo de distinguir cómo las variables
intervinientes inciden en cada nivel. Así las cosas, se formulan los siguientes
interrogantes para orientar el trabajo: ¿Cuáles son las características y
condicionantes para elaborar una política industrial y tecnológica en el área de
defensa? ¿Cómo se articula el desarrollo autónomo con la dimensión cooperativa?

El artículo se organiza de la siguiente manera. Primero analiza el doble carácter,


político-estratégico y económico-industrial, de la ITD. Luego, considera algunos
elementos de su relación con el contexto mundial para dar cuenta de su vinculación

450
Este trabajo define a la tecnología “como el conjunto ordenado de conocimientos utilizados en la producción
y comercialización de bienes y servicios” (SÁBATO, 1975; LONGO, 2007). Lógicamente, son de particular
interés aquellas con potencial aplicación en el campo de la Defensa Nacional.
451
Amarante (2011) define que “a obtenção da tecnologia militar passa a ser o alvo das bases de defesa de C&T,
de P&D, de Infraestrutura, de Produção e de Logística. A integração funcional dessas cinco bases compõe a
espinha dorsal para a capacitação tecnológica militar de um país, sinteticamente cognominada por Base
Industrial de Defesa (BID). O sucesso da BID decorre do trabalho conjunto e harmônico do setor produtivo,
normalmente realizado pela gestão privada, e do setor de desenvolvimento, usualmente a cargo da gestão
pública”. Otro autor, Brick (2011) propone utilizar el concepto más amplio de Base Logística de Defensa
(BLD) ya que considera que incluye la “participação de diversas instituições nacionais no que concerne à
pesquisa e desenvolvimento (CT&I), produção, manutenção, inteligência tecnológica, financiamento e
mobilização de material de defesa [...]”.

1021
con el poder en el sistema internacional. Sobre estas bases, procura una
aproximación que ayude a dilucidar las complejidades intrínsecas y los múltiples
aspectos que deben tenerse en cuenta como referencia para elaborar una política
industrial y tecnológica en defensa, tanto autónoma como cooperativa. Concluye con
los principales desafíos para la dimensión nacional como para la cooperación
regional.

2 Perspectiva de análisis y conceptos orientadores

La fortaleza de los países industrializados se sustenta en sus capacidades


tecnológicas, por lo que disponen una batería de instrumentos y herramientas
institucionales de apoyo a sus empresariados nacionales, así como a sus industrias
estratégicas, entre las que se encuentran las de defensa.452 Después, el modelo
industrial emergente, esto es los arreglos institucionales de cada uno, se configura
en función de las particularidades e idiosincrasias de cada caso, ya sea más liberal
como Estados Unidos e Inglaterra o más estatista como el caso francés, el ruso o el
chino. Al respecto, pueden mencionarse muchas experiencias que confirman que la
industria de defensa demanda necesariamente su decidida y activa participación
(BELMIRO DO NASCIMENTO; FISCHMANN, 2004; DER GHOUGASSIAN, 2010;
SÁNCHEZ ANDRÉS, 2010).

Así las cosas, es pertinente preguntarse hasta qué punto puede desarrollarse la ITD
separadamente de la estructura productiva y qué enseñanzas pueden obtenerse del
desarrollo aislado que exhibieron algunas experiencias en la Argentina.453 En tal
virtud, la elección del enfoque sabatiano como herramienta de diagnóstico e
intervención para la formulación de la política industrial y tecnológica de la defensa
resulta el más apropiado.454

452
Guimarães (2003) señala que la ciencia y la tecnología, así como la educación de calidad son factores que
influencian de forma decisiva el desarrollo económico de los Estados.
453
Para un estudio general de las experiencias del sector de industrias de defensa puede verse da Ponte (2010a).
Sobre la trayectoria particular de la Fábrica Militar de Aviones y la industria aeronáutica argentina puede
consultarse da Ponte (2010b).
454
Se concibe al desarrollo científico-tecnológico e industrial como “una acción [planificada y] coordinada entre
tres elementos fundamentales: Gobierno, Infraestructura Científico–Tecnológica y Estructura Productiva” (el
agregado es mío, Sábato, 1968).

1022
Con esta perspectiva, “Gobierno” (G), comprende al conjunto de instituciones
responsables de: garantizar la defensa de los intereses nacionales; formular la
política nacional en industria y tecnología de defensa (así como la de cooperación
regional e internacional) y disponer la correspondiente movilización de recursos;
articular la política del sector defensa con la infraestructura científica-tecnológica
nacional y con la estructura productiva; generar y sustentar la demanda y promover
las exportaciones; invertir en infraestructura; financiar tanto la producción como la
demanda (en especial de las PYMES); relacionarse con otros Estados para la
apertura de mercados; garantizar las actividades de Investigación y Desarrollo a
través del aporte de una parte sustancial de los recursos económicos utilizados para
estas actividades; diseñar instrumentos e implementar mecanismos de fomento; y
mejorar la arquitectura jurídica para generar condiciones que favorezcan el
surgimiento y/o fortalecimiento, según el caso, de las empresas de defensa
(públicas, mixtas o privadas). La “Estructura Productiva‖ (EP) está conformada por el
conjunto de todos los sectores productivos, que proveen los bienes y servicios que
demanda este sector y que deben aportar la otra parte del capital necesario (Base
Industrial). La “Infraestructura científico–tecnológica” (ICT) se compone del sistema
de educación, laboratorios, institutos y centros donde se realiza I+D, tanto estatales
como privados (Base Científico-tecnológica).

En relación a la dimensión cooperativa, se adopta la propuesta del nuevo


regionalismo, en razón de que no considera a las regiones simplemente como
organizaciones formales ni como algo dado, sino que las entiende como
construcciones y deconstrucciones inmersas en el proceso de transformación global
y que responden a una lógica multidimensional que excede en el entendimiento de
las actividades regionales a los acuerdos de libre comercio o a los regímenes de
seguridad. Es decir, no tienen una forma estática sino, por el contrario, dinámica en
su desarrollo y abierta al cambio y la adaptación.455 Es fundamental tanto para
comprender su naturaleza como para poder explicar el proceso, ubicar como eje a
las condiciones particulares y a la trama histórica, aceptando la posibilidad de

455
El regionalismo es conceptualizado como la política y el proyecto en el cual tanto los Estados como actores no
estatales cooperan o coordinan estrategias dentro de una determina región. El objetivo es perseguir y promover
metas comunes en una o más áreas, pudiendo operar tanto en el nivel estatal como en el de otros actores sociales,
aunque Soderbaum (2008) apunta que, generalmente, el concepto está asociado a un programa formal
(conducido por el Estado).

1023
diversos modelos (Farrell, 2005).456 De este modo, es esencial la interacción entre
regionalismo y regionalización, en tanto puede impulsar la formación de redes
regionales que busquen profundizar los niveles de cooperación, así como la
emergencia de actores regionales y/o organizaciones.

3 Industria y Tecnología de Defensa: características diferenciales

El estudio de la ITD entraña una complejidad particular no siempre contemplada por


los responsables de concebir las estrategias y formular las políticas públicas
derivadas en esta esfera. El tipo de bien/producto y sus implicancias en términos de
poder y las dificultades emergentes propias de una actividad industrial asociada a
bienes con cierta intensidad tecnológica, son características definitorias. Así, su
especificidad distintiva se debe a la interacción permanente entre dos aspectos
condicionantes que la atraviesan.

En este sentido, cualquier consideración sobre la ITD demanda que se realice partir
de su doble carácter, político-estratégico (militar y científico-tecnológico) y
económico-industrial. Esto a su vez supone apuntar dos cuestiones potencialmente
problemáticas, una específica y otra mucho más general que la contiene. La primera,
se relaciona a ciertas tendencias economicistas que subordinan su carácter
estratégico a criterios económicos. La segunda, se refiere a aquellos países en los
cuales la política industrial y tecnológica de defensa se concibe desligada de la
Estrategia Nacional de Desarrollo (END).457

En el plano político-estratégico, las motivaciones para la instalación de la ITD han


sido intensamente debatidas por la literatura especializada (DAGNINO, 2010). Sin
entrar en el detalle de esos debates, en lo que parece haber cierta coincidencia es
que las causas y la racionalidad no son económicas ya que tienden a ser deficitarias
por lo general sino que son estratégicas y geopolíticas. La razón es el derecho de

456
La regionalización hace referencia, en su significado más básico, al proceso de concentración de actividades a
nivel regional (por caso comercio, ideas e incluso conflictos). Igualmente, en un plano de mayor abstracción
implica cooperación, integración, cohesión y lo que podría referirse como la creación de una identidad regional
(SODERBAUM, 2008).
457
Adoptamos la definición de Bresser Pereira que dice: “[…] é um conjunto de valores e normas que tem como
critério fundamental defender o trabalho, o conhecimento e o capital nacionais, seja protegendo-os da
competição internacional seja definindo políticas para torná-los mais capazes de competir” (2006, 215-216).

1024
las naciones a su Defensa Nacional. Igualmente, disponer de una ITD es el
resultado de la elección de un país sustentada en los intereses nacionales y
objetivos contribuyentes en la que influyen la apreciación del escenario internacional
de defensa, la política externa y la evaluación de costos/beneficios de las opciones
producción versus importación (make or buy). En consecuencia, no puede
concebirse en abstracto, sino en función de objetivos determinados por la política y/o
estrategia de defensa. El planeamiento estratégico debe ser la guía que oriente el
tipo de producción. De hecho, las necesidades se definen con arreglo a la estrategia
militar propia y al consecuente diseño del instrumento militar, así como el tipo de
conflicto bélico que (se estima) podría eventualmente enfrentarse.

En cuanto a los aspectos científico-tecnológicos, este trabajo se aparta del concepto


de spin-off458, uno de los pilares de legitimación ideológica del ―complejo industrial-
militar‖. En los presupuestos de este concepto se afirma que existiría una tendencia
intrínseca en la investigación militar, en función de su contenido tecnológico, de
producir un impacto positivo en el sector civil, y de allí, al conjunto de la economía.
Esto ha llevado a perseguir una dinámica científico-tecnológica que se habría
tornado independiente de los condicionantes político-estratégicos y económico-
industriales.

En las últimas décadas hay investigaciones que compararon programas de I&D con
contenidos y características formales análogas demostrando que ha sido mayor el
impacto de los programas civiles en términos de avance del conocimiento.
Enfocados en estas cuestiones, algunos autores han demostrado la tendencia,
presente en los países avanzados, de que innovaciones originadas en el sector civil,
después de convenientemente testeadas, son aplicadas con éxito en el sector militar
(spin-in) (REPPY, 2003; JAMES, 2004).459 En todo caso, el punto central no pasa
tanto por cuál sector es el que genera la tecnología, sino cómo aprovechar y

458
Puede definirse Spin-off básicamente como la transferencia de tecnología desarrollada en el sector militar al
civil. Surgió después de la II Guerra Mundial en función de la transferencia real para el sector civil del conjunto
de innovaciones desarrolladas intensivamente en la esfera militar.
459
En caso de que se acepte como verdadera la idea de spin-off se manifieste en los países avanzados, cabe
igualmente un análisis específico para la realidad de los países periféricos, dotados de una capacitación
científico-tecnológica e industrial y de recursos públicos para invertir en el sector mucho menor (DAGNINO,
2010).

1025
fomentar la interrelación entre la estructura productiva y la infraestructura científico-
tecnológica general con la ITD.

En el plano económico, si bien la decisión de invertir en ITD (en lugar de adquirir en


el exterior) depende del interés y la visión que el Estado le otorgue, es necesaria la
existencia de un nivel de demanda interna coherente con la escala de producción
industrial mínima rentable y, complementariamente, es muy relevante para su
sustentabilidad la capacidad del país para exportar.

No obstante, es menester agregar que ningún país implantó en el mundo una


industria de defensa para intentar obtener ganancias económicas, impacto social o
crear empleo. La decisión se relaciona con asegurar la soberanía sobre las
capacidades tecnológica e industrial de un sistema de defensa. Entonces, el objetivo
de exportar material de defensa se da consecutivamente con el propósito de
amortizar las inversiones realizadas para su producción. En ese caso, debe
considerarse cómo se organiza el mercado de armas, quiénes son los competidores
y quiénes son los clientes potenciales.

En términos industriales, actualmente la ITD requiere importantes recursos para el


financiamiento (tanto de la producción como de la demanda); exige cada vez
mayores economías de escala (se vincula con los índices mínimos de rentabilidad
económica y productividad, lo cual es muy complicado en un pequeño mercado ya
que atenta contra las condiciones de precio y calidad para competir con la industria
extranjera); necesita mano de obra calificada (la educación científico-tecnológica es
un factor básico); implementar procesos dinámicos de producción (con lógicas
diferenciales en cada industria); desplegar una sofisticada comercialización (que
involucra a los Estados); promover entendimientos de largo plazo y,
primordialmente, el apoyo estatal a través de instrumentos y mecanismos de
fomento y promoción. Por eso, es central la función articuladora del Estado
(Gobierno) con la infraestructura científico-tecnológica y con la estructura productiva,
debido a que además de promover sinergias positivas puede evitar duplicaciones
innecesarias (da Ponte, 2010b y 2011).

1026
4 La industria de defensa y el contexto internacional

Si bien las primeras décadas del siglo XXI se caracterizan por la especulación
financiera y una crisis económica aún en curso, la industria sigue siendo el motor del
desarrollo económico y de las capacidades científico-tecnológicas de los países. Ello
se observa en la base de sustentación y configura, a la vez, la fuente central de su
poder militar (GARCÍA VARGAS, 2011; SANJURJO JUL, 2011). Esto se refleja en el
volumen de recursos destinado a Defensa en promedio del PBI: Estados Unidos
(4,7%), Francia (2,5%), China (2,1%), Rusia (4,3%), Reino Unido (2,7%), así como
en la masa de dinero utilizada para la adquisición de armamentos (SIPRI, 2010).460

Por otro lado, entre las principales tendencias de las últimas décadas se destaca
una relativa internacionalización de las industrias de defensa. Este fenómeno,
originado durante la Guerra Fría, sufrió transformaciones cualitativas luego de la
misma (DER GHOUGASSIAN, 2010).461 No obstante, si bien efectivamente se ha
desarrollado una dinámica propensa a la internacionalización de las grandes
empresas de armamentos, analizarla como un dato de la realidad sin tener en
cuenta ciertas variables puede derivar en conclusiones inadecuadas. Hay dos
aspectos fundamentales que no pueden soslayarse. Primero, el hecho de que cada
potencia se ha reservado el control de determinados sectores y/o tecnologías para sí
misma. Al respecto, es oportuno insistir con que el tipo de bien/producto es de
carácter estratégico y tiene implicancias en términos de poder en el sistema
internacional (FRACALOSSI DE MORAES, 2012).462Segundo, las experiencias
revelan que son los Estados (y sus intereses) los que están detrás de las empresas,
lo cual contradice aquellas posturas que pretenden aplicar a la ITD las reglas de libre
mercado (SANJURJO JUL, 2011).463 Evidentemente, en el escenario internacional
los procesos no son unidireccionales.

460
Evidentemente, en cada caso debe considerarse que los respectivos porcentajes de PBI suelen diferir
considerablemente de acuerdo al tamaño de los países. Sin embargo, estos indicadores demuestran el grado de
importancia relativa que esas sociedades le otorgan a la “cuestión tecnológica”.
461
Khatchik Der Ghougassian (2010, p. 12-13) dice “las empresas de producción armamentista tuvieron que
acomodarse a la lógica de la competencia que impuso el mercado global. Las grandes fusiones de las industrias
europeas y norteamericanas en la década de 1990 reflejan la exitosa adaptación de estas empresas a la lógica
de la globalización”.
462
Por mencionar uno de tantos ejemplos, Francia explicita en su Libro Blanco de Defensa (2008) que el tema
del armamento nuclear queda bajo la órbita exclusiva de las decisiones propias.
463
En palabras de José M. Sanjurjo Jul (2011, p. 40-41) “los economistas liberales sostenían hasta muy
recientemente que las que competían en el campo internacional eran las compañías no las naciones, sin
embargo la experiencia más reciente contradice –o al menos modifica– esta afirmación, porque a lo que

1027
Así las cosas, en lo que parece haber una suerte de acuerdo implícito entre las
economías industrializadas es en mantener el statu quo diferencial entre ellas y los
países emergentes, sobre todo en la esfera de ITD. Ello se evidencia a través de
acciones coercitivas que prohíben que ciertas tecnologías estén disponibles, incluso
por medio de la transferencia tecnológica. Según Dagnino (2010), existen
numerosos ejemplos recientes que muestran cuan subordinadas están las iniciativas
nacionales, relacionadas a las tecnologías sensibles, a los intereses de las potencias
y a las disposiciones internacionalmente aceptadas.464 Como se observa, son los
intereses geopolíticos los que imponen ciertas lógicas en el campo de la ITD. En
todo caso, es central tener presente que el fondo de la cuestión es de orden político-
estratégico y no de capacidades técnicas.

Otro punto a destacar se refiere a lo que este trabajo identifica como el paradigma
de la ―hiper sofisticación tecnológica‖ de los asuntos militares465 cuyo origen data de
los años setenta. En aquella década comenzó a desarrollarse en los países
industrializados, aunque fundamentalmente en Estados Unidos, una propensión a la
fabricación de sistemas de armas que pese a su costo creciente (en I&D y
producción), exhibían soluciones tecnológicas poco efectivas e inclusive
desventajosas en los escenarios de operación. Por caso, tiempos y costos de
mantenimiento excesivamente altos, demanda de calificación para su operación
incompatible con el entrenamiento militar, entre otras. Acompañando este proceso,
los intereses corporativos del llamado ―complejo militar-industrial‖ inflaron
artificialmente los costos (DAGNINO, 2010). Como sustento intelectual para dar
justificación académica, surgió en la literatura el concepto de Revolución de los
Asuntos Militares (RAM), la cual coloca a la tecnología militar como la variable

estamos asistiendo es que, cada vez mas naciones actúan con estrategias competitivas globales e integradas
gobierno-industria”
464
Luiz Pedone (2009) ha escrito sobre estos mecanismos a los que define como cercenamiento tecnológico, y
consisten en “el conjunto de acciones practicadas por Estados, grupos de Estados, organismos internacionales o
empresas y consorcios de empresas para bloquear, denegar, restringir o dificultar el acceso a bienes y
tecnologías sensibles, por parte de instituciones, centros de investigación o empresas de otros países”.
465
Dagnino (2010, p. 157). dice sobre esto que “Expresiones como “arsenal barroco”, acuñado por Mary
Kaldor, sirvieron para marcar la constatación de que la introducción en los armamentos de sofisticaciones
tecnológicas excesivas terminaba por tener un efecto criticable.”

1028
determinante (BITZINGER, 2008). Esto pone el énfasis en una lógica que ―impone‖
la necesidad de contar con los sistemas ―último modelo‖ y, cuando ello no sucede,
entonces la derrota posiblemente esté asegurada (―tener el segundo mejor caza-
bombardero implica la muerte y la derrota‖, Scheetz 2011: 48). Al respecto, es
elocuente la sentencia que afirma que ―hay una tentación de usar equipo de
segunda calidad. Esto puede ser bueno en tiempo de paz pero no en la guerra‖
(KIRKPATRICK, 1997).

5 De la Política tecnológica de defensa a los desafíos para la cooperación


regional

Un intento de diagnóstico

Al momento de rastrear antecedentes referidos a la ITD en América del Sur, además


de observarse una variedad de trayectorias en términos históricos, se identifican dos
tipos de elementos subyacentes: convergentes y divergentes (DA PONTE, 2012).
Entre los primeros, se destaca la dependencia relativa de todos respecto de los
países industrializados en materia tecnológica e industrial. Entre los aspectos
divergentes, se registran casos en los cuales se optó por un perfil importador de
tecnología extranjera, mientras que en otros se emprendieron experiencias
orientadas por la búsqueda de ciertos márgenes de autonomía tecnológica. Esta
situación tiene dos efectos simultáneos. Por un lado, vuelve más complejo el asunto
ya que supone admitir la existencia de intereses heterogéneos entre los países de
América del Sur y, por el otro, representa una variable esencial que impacta en la
posibilidad de articular –o no- una estrategia cooperativa.

Por otro lado, en cuanto a los aspectos científico-tecnológicos en general y a su


correlación con la ITD, históricamente se observa en la región una serie de
dinámicas que merecen exponerse. Primero, la ruptura entre educación-ciencia y
tecnología-producción, lo cual es consecuencia de haber corrido del centro del
análisis las implicancias políticas de la tecnología. Segundo, una baja capacidad de
utilización del potencial científico para la innovación tecnológica evidenciada por la
dificultad en enlazar los avances y progresos de las instituciones públicas

1029
(universidades e institutos de investigación) con la producción tecnológica de las
empresas públicas, mixtas o privadas. Tercero, la falta de conexión entre la mano
de obra capacitada para I&D formada por las universidades y las empresas. Por
lo general, muchos de esos profesionales altamente calificados trabajan en
instituciones del gobierno, o lo que es más común, en universidades. Cuarto, el
sector privado posee una conducta en materia de I&D e innovación contraria a la
creación de las condiciones que podrían permitir la absorción de tecnologías
generadas en el país. Esto es el resultado de una racionalidad caracterizada por
un patrón de consumo imitativo de los países avanzados, lo cual perjudica la
realización de I&D local.

Con respecto a lo último, la discusión reviste cierta problemática particular por


cuanto plantea una supuesta disyuntiva entre la búsqueda de autonomía a la que
aspiran las Fuerzas Armadas a fin de aumentar su libertad de acción y las
preferencias de esos mismos actores de poseer las últimas tecnologías sólo
disponibles para las grandes potencias, lo cual obliga a importar. Este razonamiento
ha influido e influye profundamente en el pensamiento militar de los países de la
región. Bajo la suposición de un riesgo inminente que muchas veces carece de
fundamentos, ciertos actores ejercen presión para disponer lo antes posible de
sistemas de armas de última generación. No sólo es pertinente preguntarse a qué
intereses responde esta lógica sino que planteado en estos términos, se corre del
centro del análisis a la política y a la estrategia y se induce a una dinámica
referenciada en la situación de los países industrializados, sin valorar en su justa
dimensión las diferencias cualitativas entre éstos y los suramericanos.

Esta situación se agravó durante los años noventa cuando el paradigma predominante
promovió que las funciones del Estado debían reducirse a la mínima expresión. Este
abandono tuvo como principal síntoma la inexistencia de planeamiento de largo plazo y
una fuerte presión acerca de las características que ―debía‖ tener la ―inserción
competitiva‖ en la globalización por parte de los países de la región. En el trasfondo de
estos argumentos subyacía que ―Difícilmente se podrían alcanzar niveles de eficiencia
semejantes a los de las tecnologías más modernas utilizadas por esas empresas para
producir bienes adecuados a los mercados que ellas controlan” lo cual según esta

1030
visión ―volvía prohibitivo o irracional el desarrollo de variantes tecnológicas propias‖
(DAGNINO, 2010, p. 196).

Todas estas circunstancias impactan negativamente en diversas esferas. Por un


lado, limitando concretamente el desarrollo de las capacidades de defensa sobre
bases propias. Por el otro, más relevante aún, condicionando sus opciones
disponibles. Esto es producto de las presiones internacionales pero también del
modelo de industrialización que históricamente siguieron los países de la región, por
el cual la Base Logística de los sistemas de defensa se apoya en la adquisición de
paquetes tecnológicos llave en mano.466Además, en la posibilidad de competir cada
país de manera individual bajo las reglas de un mercado en el que poco o nada
puede incidir. Esto incrementa la presión sobre sus sectores de ITD reales o
potenciales. De manera similar, durante el siglo XX las industrias de defensa se
vieron perjudicadas por la oferta de rezagos de guerra a precios casi de remate lo
que terminó favoreciendo la compra al extranjero y perjudicando proyectos de
desarrollo autónomo (PORTELLA BERTAZZO, 2003; DA PONTE, 2011).

Una política industrial y tecnológica para la Defensa

La política nacional en ITD debe formularse en el marco de una Estrategia Nacional


de Desarrollo que promueva al conjunto de las fuerzas productivas nacionales pero
que concentre los mayores esfuerzos en los sectores industriales estratégicos. A fin
de alcanzar sustentabilidad en el mediano y largo plazo, debe orientarse por los
objetivos de autonomía tecnológica (que no es lo mismo que autarquía) y de
apertura de los paquetes tecnológicos, bajo la impronta y las necesidades concretas
del planeamiento estratégico de la Defensa.467

466
En línea con la propuesta de Sábato y Mackenzie se adopta como unidad de análisis de la tecnología al
paquete tecnológico, definido como “[…] un paquete de conocimientos organizados de distintas clases
(científico, técnico, empírico, etc.) provenientes de diversas fuentes (descubrimientos científicos, otras
tecnologías, libros, manuales, patentes, etc.) a través de métodos diferentes (investigación, desarrollo,
adaptación, copia, espionaje, expertos, etc.)” (1980, 24).
467
La noción de autonomía tecnológica, es entendida como “la capacidad de decisión propia de un país para
elegir, proyectar, programar, instrumentar y realizar su política científica. […] no se mide por la mejor o peor
manera en que haya sabido formular verbalmente su política, sino por la capacidad real de alcanzar los
objetivos propuestos” (SÁBATO, 1968, p. 12).

1031
La ITD sólo logra sostenerse si forman parte de una política de desarrollo industrial
integral que genere un ambiente de competitividad sistémica favorable en el cual las
empresas (públicas, mixtas y/o privadas) y los centros de I&D de defensa cooperen
y/o se asocien con otros sectores industriales y con centros de investigación
nacionales. En ese marco debe diseñarse una política de cooperación. Es decir, a
las pregunta formuladas (sobre qué bases y para qué un país coopera), se agrega
en qué términos y condiciones se inserta un país emergente en la llamada
―globalización‖. Ahí es donde se inscribe la cooperación regional, lo que no significa
restarle importancia en lo absoluto, sino que ubica el eje en la confluencia entre
regionalismo (en tanto proyecto o política) y la noción de regionalización,
contemplando las motivaciones de los diversos actores.

Nuevas perspectivas para la cooperación

En principio, las circunstancias han cambiado. Una serie de documentos de defensa


(Libro Blanco de Argentina, 2010; DPDN, 2009; Estrategia Nacional de Defesa,
2008) y declaraciones que han surgido de las reuniones del Consejo de Defensa
Suramericano (Declaración de Bogotá, 2012; Declaración de Guayaquil, 2010;
Declaración de Santiago de Chile, 2009) expresan la relevancia que cada país le
otorga actualmente a la ―cuestión tecnológica‖ así como a la cooperación en
Suramérica. Sin embargo, ello no invalida que las motivaciones que llevan a cada
uno a involucrarse sean diferentes, ni que esto sea negativo. En todo caso, el clima
de época favorable no garantiza automáticamente que el proceso pueda
profundizarse (CHILE, 2009).

Los asuntos militares y de Defensa han sido incorporados a la agenda de un


proceso de integración de la región por primera vez en 2008 con la creación de
UNASUR. Este es un elemento contextual insoslayable para reflexionar sobre el
tema. Al respecto, desde el punto de vista de las intenciones de los actores
participantes, las mismas dan cuenta de un escenario propicio. Sin embargo, las
realidades económicas, sociales y culturales son diferentes. De ahí que en el
enfoque adoptado, el nuevo regionalismo, subyace una lógica de largo plazo que
parte de caracterizar a la integración como un proceso histórico en construcción.

1032
Asimismo, otra cuestión fundamental es que debe situarse en el centro del análisis la
relación de la ITD con el desarrollo y con las capacidades de la Defensa Nacional.
Ello implica partir de su doble carácter, político-estratégico (militar y científico-
tecnológico) y económico-industrial. Como es evidente, pensar en las posibilidades
de avanzar en la cooperación entre los países de la región en esta área puede
parecer, a priori, un objetivo de difícil concreción. Por ello, la base de una Estrategia
Suramericana en Ciencia, Tecnología e Industria de Defensa debe constituirse a
partir de la coordinación y complementación entre diferentes políticas nacionales en
la esfera industrial y tecnológica de la defensa.

De este modo, el punto de partida es el contexto histórico concreto y el


reconocimiento de la existencia de intereses y realidades heterogéneas, lo cual
permite aceptar la interacción entre diversos esquemas sectoriales y no un modelo
rígido. Evidentemente, esto le imprime una lógica dinámica y también flexible. Los
países de la región enfrentan el mismo desafío, esto es, el desarrollo de una
industria que en mayor o menor medida esté fundada sobre bases nacionales y/o tal
vez regionales, capaces de garantizar la defensa de su soberanía.

En clave suramericana, para que cada país pueda obtener resultados positivos para
sí mismo pero también para su/sus contraparte/s, la cooperación debe ser
sustentada por las capacidades propias. En todo caso, así como la ITD no debe
concebirse por fuera de la estrategia de desarrollo, los objetivos de un proceso de
cooperación, en tanto proyecto político, tampoco. Estos deben contribuir a mejorar la
situación de cada actor involucrado. Lo importante es que para que su impacto se
transforme en capacidades nacionales (y eventualmente regionales), su orientación
debe buscar generar y/o fortalecer los cimientos sobre los cuales se asiente no
únicamente en el plano teórico. Es decir, el propósito debe tender a robustecer la
base científica, tecnológica e industrial de cada país.

6 Conclusión

Con el objetivo de realizar una aproximación desde las Ciencias Sociales a la


―cuestión tecnológica‖ y la Defensa Nacional, este trabajo ha propuesto un enfoque

1033
analítico que contribuya a enmarcar un debate necesario sobre cuestiones
insuficientemente estudiadas.

El primer aspecto que se destaca es que resulta relevante conocer las


características y los condicionantes políticos, estratégico-militares y económicos
como elementos fundamentales para poder elaborar una política industrial y
tecnológica en el área de defensa. Al respecto, la adopción del enfoque sabatiano no
supone sobredimensionar al sector sino, por el contrario, permite comprender que no
puede concebirse su desarrollo de manera aislada de la estructura productiva ni de
la infraestructura científico-tecnológica de un país. De este modo, el eje no pasa por
lo militar o lo civil, sino por el diseño de instrumentos y herramientas que contribuyan
a la densificación de las cadenas productivas de los sectores industriales
estratégicos y cómo estas cadenas se interconectan. Pese a que en países como
Argentina el rol del Estado en el desarrollo nacional ha sido motivo de intensos
debates que aún no han sido saldados, lo cierto es que parece difícil afirmar, e
incluso encontrar evidencia empírica, que compruebe que la industria (sobre todo
aquella de base tecnológica) pueda desenvolverse sin el apoyo estatal ya sea a
través de mecanismos directos o indirectos.

A esta altura, se podría preguntar: ¿Por qué considerar a la industria y tecnología de


defensa como parte de las industrias estratégicas? Por dos motivos: por un lado,
porque comparte con ellas sus efectos de aprovisionamiento y propulsión de la
estructura económica y la infraestructura científico-tecnológica. Por el otro, por su
relación con la disuasión y las capacidades de la Defensa de un país. En otras
palabras, la industria y tecnología de defensa no debe concebirse ni desarrollarse
por fuera de la Estrategia Nacional de Desarrollo como marco general, ni de la
política industrial y tecnológica de defensa en particular, ni tampoco desarticulada de
sus bases industrial y científico-tecnológica. Cuando el desarrollo se da por fuera de
este esquema, se incrementa la ineficiencia del sector y su impacto es muy limitado.

El segundo punto a destacar es que el desarrollo autónomo no es incompatible con


la cooperación regional sino que pueden, aunque como resultado de impulsos
concretos, ser complementarios. En todo caso, el asunto pasa por comprender que
la dimensión cooperativa se apoya, y debe ser funcional, a los objetivos propios. Por

1034
ejemplo, los estudios revelan diversas motivaciones para la cooperación industrial en
defensa en el caso de los países de Europa, que abarcan desde la disminución de
costos de I&D y producción y/o la generación de economías de escala por aumento
de demanda, hasta el desarrollo de equipamiento común que favorezca la
interoperabilidad, entre otros (ISS, 2008). Mientras que las primeras pueden
identificarse como económicas, la segunda como estratégica y geopolítica.

En suma, la cooperación regional representa una oportunidad potencial vis a vis un


doble desafío. Por eso, en primer lugar es fundamental definir pero también
instrumentar una política industrial y tecnológica propia que cuente con las
herramientas institucionales adecuadas. Sobre esa base, establecer los mecanismos
que permitan articularla con proyectos cooperativos.

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1039
CONFORMAÇÃO E TRATAMENTO DA QUESTÃO DAS DROGAS ILÍCITAS

NA REGIÃO SUL-AMERICANA

Graciela De Conti Pagliari468

1 Introdução e referencial teórico

Este trabalho intenta se debruçar sobre a questão do tráfico de drogas na região sul-
americana como um problema cuja complexidade exige medidas coordenadas que
seriam mais bem implementadas a partir de uma agenda regional. Considerando a
mudança na realidade de segurança nas últimas décadas, o tráfico de drogas tem
sido apontado como uma das principais questões que afetam a segurança dos
Estados e indivíduos. O presente trabalho faz parte de um projeto mais amplo de
pesquisa acerca de dinâmicas de segurança na região sul-americana as quais
interligam os temas tradicionais da agenda de segurança e questões ―novas‖ que
despontaram com muita força nos últimos anos. As considerações aqui
apresentadas representam reflexões iniciais e ainda incipientes sobre o narcotráfico
como ilícito transnacional e produtor de insegurança regional, possibilidades de
cooperação multilateral e o papel do Brasil nesse contexto.

O enfoque do problema é feito sob o prisma regional para poder abordar as


diferentes interfaces de um tema que é transnacional e que apresenta reflexos mais
intensos e/ou mais profundos dependendo do país considerado. Enfatiza-se,
contudo, o olhar sobre a Colômbia pois o país vem sofrendo consequências
importantes em decorrência desse problema a partir da interligação entre atores
internos (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - FARC), uma agenda
bilateral com os Estados Unidos e a securitização e militarização deste combate.

As drogas ilícitas assumiram lugar destacado na agenda de segurança em face do


aumento da demanda tanto em termos globais quanto regionais. A cooperação
multilateral remonta ao início do século XX a partir do tráfico de ópio. Com a criação

468
Professora de Relações Internacionais

1040
da ONU, o controle das drogas ilícitas passa a se dar sob seus auspícios a partir de
um regime internacional baseado em políticas de repressão, sanção e punição469.
Como resultado, as únicas finalidades para a utilização de drogas ilícitas não
classificadas como crime são o seu emprego em fins medicinais e de pesquisa.
Assim, os povos que têm historicamente utilizado a coca em suas culturas – como os
indígenas peruanos e bolivianos – não têm essas formas reconhecidas como lícitas470.
É com base nessas regras multilaterais que se estabelece a cooperação entre
Estados nos demais planos regionais e sub-regionais bem como são as referências
nas quais se baseiam as políticas nacionais de combate às drogas ilícitas.

O Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime – UNODC, reconhece uma
série de consequências negativas inesperadas decorrentes das convenções como a
criação de um mercado paralelo lucrativo e violento, controlado pelo crime
organizado. A repressão não produziu diminuição da oferta pois os cultivos são
transferidos para outras regiões, bem como coibir um tipo de substância provoca o
deslocamento do consumo para outras substâncias. A transnacionalização mais
vigorosa do narcotráfico a partir das últimas décadas do século passado provocou
mais violência urbana471 e para que a teia de produção, processamento e
distribuição funcione, se estabelecem outros ilícitos como corrupção, lavagem de
dinheiro, tráfico de armas e precursores químicos472.

A região sul-americana tem sido diretamente afetada por essa situação pois abriga
países produtores de coca e, considerando a política internacional que tem sido
aplicada à questão, a área vem sofrendo os efeitos nefastos de uma política que

469
Convenções sob os auspícious da ONU para controle das drogas ilícitas: Convenção Única de Estupefacientes
(1961, estruturou o regime internacional de controle de drogas estabelecendo o ópio, a cocaine e a maconha a
serem fiscalizadas); Convenção Sobre Substâncias Psicotrópicas (1971, medidas contra anfetaminas e
estimulantes); Convenção contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas (ou Convenção
de Viena, 1988, trata do tráfico de drogas e lavagem de dinheiro).
470
Em 2011 o governo boliviano propôs emendar o artigo 49 da Convenção de 1961 que trata da abolição do
hábito de mastigar coca. Os Estados-Partes rejeitaram a proposta o que levou a Bolívia a denunciar a Convenção,
cuja denúncia entrou em vigor em 2012. Mas o governo do país fez uma nova adesão ao tratado em janeiro deste
ano, com reservas a proibição ao consumo tradicional da folha de coca (Relatório da Junta Internacional de
Fiscalização de Entorpecentes, JIFE, 2011).
471
O número de homicídios é extremamente alto especialmente em alguns países da região como Brasil (51,6
homicídios/mil habitantes) e Colômbia que historicamente lideraram esse indicador, com o determinante mais
visível para o tráfico de drogas. Também El Salvador, Guatemala e Venezuela apresentam dados preocupantes a
partir da década de 1990, colocando a América Latina como a líder mundial na taxa de homicídios. Relatório
“Mapa da Violência: os jovens da América Latina” (2008).
472
Tais questões provocam efeitos ainda mais nefastos na região sul-americana à medida que encontram
debilidades e vulnerabilidades internas que são agravadas a partir dos efeitos desses ilícitos.

1041
privilegia o combate à oferta. Por ser uma questão transnacional o problema não
pode ser resolvido apenas por um país, no entanto para que seja possível buscar
soluções ou propor alternativas em termos multilaterais precisa-se considerar como
parâmetro definidor pelos Estados que esse é um problema a ser combatido e
também precisa-se definir a condição – prioritária ou não - que os diferentes Estados
atribuem ao mesmo.

De uma análise das prioridades de segurança para as sub-regiões latino-americanas


decorre que o narcotráfico é reputado como ameaça prioritária para todas elas. Para
o UNODC, o narcotráfico deve ser tratado como um problema de segurança
hemisférica, pois nenhum país passa ao largo dos efeitos decorrentes das drogas: a
região andina (Colômbia, Peru e Bolívia) é responsável pela produção da folha de
coca que gera a maior parte da cocaína consumida em todo mundo; enquanto
países como México (por onde passa entre 74% e 90% da cocaína para os EUA),
Venezuela e Equador (trânsito para a Europa e também EUA) são rotas de
passagem; e a América do Norte é o mercado consumidor de quase a metade da
produção (os Estados Unidos têm aproximadamente 6 milhões de consumidores de
cocaína).

A cooperação torna-se um imperativo para alcançar resultados positivos, tanto em


termos de diminuição da oferta, quanto da redução da demanda eis que a demanda
vem aumentando em toda a região, as estimativas apontam o crescimento do
consumo de cocaína na América do Sul, sendo Brasil e Argentina os maiores
mercados. Não apenas o consumo preocupa mas também a produção, pois a
América Latina - que tem sido a maior exportadora mundial de cocaína e maconha -
passou também a produzir heroína, ópio e drogas sintéticas. Portanto, o
enfrentamento precisa ser tanto em relação ao tráfico internacional de drogas quanto
ao comércio para consumo interno.

Conforme os documentos da Comisión Latinoamericana sobre Drogas y Democracia


(2009), a América Latina foi a região mais afetada com as consequências negativas
da política de guerra às drogas. Pode-se citar: incremento da violência, boa parte
associado ao tráfico de drogas; parte das forças do Estado deixou-se corromper pelo
crime organizado; o dinheiro proveniente do tráfico de drogas fomenta o tráfico de

1042
armas e a corrupção; milhares de jovens e policiais são vítimas fatais das guerras
internas travadas pelo controle deste comércio ou nos combates com as forças do
Estado; problemas de deslocamento da população rural (mais de dois milhões de
deslocados internamente e milhares de refugiados colombianos); o estigma sobre o
cultivo da coca, tradicional nas culturas de Bolívia e Peru; problemas ambientais
causados pela fumigação dos cultivos, ainda que não tenham sido completamente
dimensionados.

Esta questão enseja preocupações para os países da região não apenas quanto à
escalada da violência interna e enfraquecimento das instituições, mas também em
relação à defesa (resguardo das fronteiras, não-ingerência e respeito à soberania
nacional), visto que as políticas de repressão indiscriminada securitizaram o
problema das drogas e militarizaram o seu combate. Porém, tal como as outras
novas ameaças, no que se refere às drogas ilícitas, é difícil delimitar as questões
domésticas do fenômeno e as externas. A transnacionalidade do fenômeno imbrica
o interno e o externo de forma que não se pode estabelecer o limite da questão
apenas na segurança estatal, mas é possível buscar a implementação de uma
política de longo prazo adequada ao problema de modo a não tornar os resultados
mais preocupantes do que as suas causas iniciais.

Assim, em termos de referencial teórico-analítico, a Escola de Copenhague parece a


abordagem mais adequada para tratar o problema pois, considera a análise dos
complexos regionais de segurança e setores outros relacionados com a questão da
segurança, que não apenas o militar. Ao levar em conta os preceitos da Escola de
Copenhague para interpretar a temática, percebe-se reflexos nos diversos setores
de análise apresentados pela Escola, muito embora em alguns pareça ter caráter
apenas subsidiário. Nesse sentido, a securitização ―é constituída pelo
estabelecimento intersubjetivo de uma ameaça existencial com proeminência
suficiente para ter efeitos políticos substanciais‖ (BUZAN; WÆVER; WILDE, 1998, p.
25, tradução nossa). Esse conceito se constitui em importante ferramenta que
permite mapear as alterações regionais e considera que a agenda de segurança
varia, ela não é a mesma, eis que engloba padrões diferentes em distintas regiões.
Assim, os atores não necessariamente são os mesmos, bem como os setores
apresentam importância diversa.

1043
Considerando-se os setores de análise de segurança que o referencial citado
considera, inicia-se a análise tomando-se como referência o setor militar. Deste setor
se pode inferir que a dinâmica a ser considerada leva em conta que o tema
apresenta-se securitizado nas últimas décadas e, muito embora seja uma situação
que normalmente não envolve o aspecto militar cabendo ser tratado como uma
questão de polícia, ele está colocado na agenda de segurança e como tal vem
sendo tratado por meio da militarização das suas respostas. Se, como bem
apregoam Buzan, Waever e Wilde (1998) em assuntos militares os Estados são
mais preocupados com os vizinhos do que com potências distantes, a securitização
desse tema por alguns Estados, gera uma situação de instabilidade regional. Como
os Estados são preocupados em manter-se no sistema internacional, uma região
instável pode ser ameaçadora à manutenção do seu status quo regional.

Instabilidade essa que vai decorrer de uma invocação para além das regras normais
do jogo – ou da politização dos assuntos – das respostas produzidas. Assim, tem-se
o emprego das forças armadas, respostas que tendem a agendas bilaterais ao invés
de políticas multilaterais, pouco espaço para a atuação da polícia, overlay da
superpotência em relação à região andina e ao tratamento do tema em detrimento
da construção de uma agenda regional. Se a região sul-americana apresenta menos
dinâmicas securitizadas com o fim da Guerra Fria, uma menos intensa atuação da
superpotência de modo direto, apresenta, por outro lado, algumas disputas regionais
tradicionais que podem ser securitizadas e o uso da força não é descartado nessas
disputas, muito embora a possibilidade de conflitos interestatais na região é
considerada baixa.

A soberania dos Estados, ligada ao setor político e cara aos Estados da região,
busca ser preservada pelas ações políticas dos atores regionais. O Brasil, por sua
vez, prima pela manutenção desta e afastamento de situações ameaçadoras. Assim,
elegeu a região amazônica como uma das prioridades de sua política de defesa. A
região está diretamente relacionada com a questão das drogas que atinge o arco
amazônico e nossa fronteira norte, assim, muito embora não se configure uma
situação na qual um Estado ameace a soberania do outro, o que se apresenta é um
temor, especialmente por parte das forças armadas brasileiras, do resultado da
baixa atuação ou pouca presença do Estado naquela região.

1044
Um temor é o de que a área norte da América do Sul seja abarcada pelas dinâmicas
de segurança do complexo de segurança da América do Norte tendo em vista que
os Estados Unidos consideram que os problemas que afetam essa zona são de fácil
fluidez, se espalham rapidamente e podem afetar o território americano. A
consequência desse entendimento político e abordagem norte-americana seria a de
considerar a região andino/amazônica como vinculada às dinâmicas de segurança
da América do Norte e não mais do complexo de segurança da América do Sul.
Cope (2006) refere a importância da região andina/amazônica para a segurança
norte-americana ao destacar que o norte da América Latina é prioritário nas
decisões de segurança norte-americanas, considerando-se os desafios decorrentes
das ameaças assimétricas pós-11 de setembro, quando tais eventos demonstraram
que os Estados Unidos devem confrontar os adversários não-estatais que ameaçam
o país e seus interesses.

Assim, o entorno sul a ser considerado como parte vital para a defesa norte-
americana deve compreender México, Caribe, América Central e a parte norte da
América do Sul, porque todos os problemas que ameaçam esses países - como
democracias relativamente fracas, violência, forças públicas que são incapazes de
exercer completamente o seu poder de polícia sobre seu território, fronteiras
porosas, além de sérios problemas transnacionais - também se tornam ameaça aos
Estados Unidos. A estratégia, portanto, em relação ao flanco sul da defesa norte-
americana, cujo centro gravitacional permanece sendo as drogas da Colômbia, deve
considerar que há uma correlação direta entre combater o fortalecimento das redes
do tráfico e das redes de contrabando e outras formas de crime transnacional e o
combate ao terrorismo.

Do ponto de vista deste trabalho entende-se que o setor societal pode ser tanto mais
afetado quanto for atacada a segurança humana por meio dos deslocamentos forçados
em função sobretudo das fumigações (Colômbia). Se as identidades de alguns grupos
de deslocados forem afetadas enquanto grupos de indivíduos não estar-se-á falando
somente em deslocamentos mas na ameaça à sobrevivência do grupo em si, afetando
claramente a vertente da segurança humana. A segurança humana pode estar
ameaçada na medida em que o Estado pode se mostrar não somente como um
garantidor da segurança mas também como um gerador de ameaça. Ao promover uma

1045
política puramente repressiva de combate às drogas e desconsiderar as questões
culturais envolvidas (cultivos tradicionais de folha de coca) bem como de saúde e de
polícia interna, o Estado desconsidera algumas vertentes importantes da questão
atentando apenas ao mote de securitização da mesma.

O setor ambiental, por sua vez, também pode ter objetos de referência ameaçados
na medida em que os efeitos das aspersões químicas, especialmente as aéreas,
afeta o solo, os rios, as plantações e mesmo as populações que, por vezes, são
obrigadas a se deslocarem em face dos riscos produzidos por essa prática. Modus
operandi esse que não é novidade no país colombiano mas que ressurge a partir da
implementação do Plano Colômbia.

Nem todos os setores envolvidos estão securitizados da mesma maneira, mas há


um ponto chave a ser considerado que é a intenção ou não do Estado em tratar a
situação do tráfico de drogas como um assunto da agenda de segurança e essa
intensidade passa tanto mais pela capacidade de influência que os Estados Unidos
tem em um determinado Estado ou a possibilidade que o mesmo possui de cooptar
esses atores regionais para a sua agenda de segurança. Essa dinâmica se configura
mais intensa com relação aos países andinos, mas é muito menos clara ou
pronunciada com países como o Brasil, por exemplo.

Segundo os autores Buzan, Wæver e Wilde (2003), pode-se analisar as dinâmicas


de segurança da América do Sul como formadoras de um complexo regional de
segurança, ou seja, são relações de segurança cuja intensidade permite constituir
dinâmicas de segurança entre si de modo a conformar uma área de segurança. São
então utilizados para entender essa lógica relacional à medida que se considera
que, diante do padrão regional, o qual se configura tanto pela distribuição de poder
quanto pelas relações históricas de amizade (expectativa de proteção e apoio) e
inimizade (relacionamento estabelecido por suspeita e medo), um Estado não pode
analisar e resolver seus problemas de segurança nacional de maneira separada dos
outros Estados da região. O nível de interdependência daí decorrente é variável em
consequência da projeção de poder dos Estados. No caso de a região apresentar
um Estado-potência que domine as dinâmicas de segurança, o mesmo projetará o

1046
seu poder a ponto de causar a sobreposição (fenômeno chamado overlay) sobre as
demais dinâmicas desta região.

Duas subáreas compõem o complexo de segurança sul-americano, quais sejam o


Cone Sul e a sub-região andina. Interessa a esse trabalho especialmente considerar
em relação a essa divisão em sub-regiões de segurança, a participação dos Estados
Unidos como a grande potência na região andina. Os Estados Unidos exercem uma
maior e mais direta influência sobre a América Central, Caribe e que avança em
direção ao norte da América do Sul (área andina). Nesta referida zona se destacam
processos de securitização e militarização, problemas tradicionais de fronteira e
―novas ameaças‖ aos Estados e indivíduos.

A forte influência norte-americana no Caribe e América Central promoveu a


absorção das dinâmicas de segurança dessas áreas pelo complexo de segurança
da América do Norte. A sobreposição das dinâmicas de segurança da América do
Norte está se alongando para o norte da América do Sul em face do envolvimento
dos Estados Unidos nas questões relacionadas ao combate ao narcotráfico. O
auxílio financeiro promovido pelos Estados Unidos especialmente à Colômbia – que
se traduz, em grande medida, em assistência militar – acrescido da presença de
seus oficiais de inteligência e, em face da utilização das forças armadas no combate
ao narcotráfico, securitizou e militarizou o conflito.

2 Política Antinarcóticos: propostas e resultados

O combate às drogas ilícitas é uma demanda global e tem se dado, durante


décadas, de forma repressiva, especialmente sobre a oferta. Não tem sido diferente
na América Latina, onde as estratégias antinarcóticos desenvolvidas têm sido
fortemente influenciadas pela percepção dessa ameaça pelos Estados Unidos. Por
isso, quando se analisa o problema das drogas ilícitas na América do Sul, precisa-se
considerar os efeitos da política antidrogas norte-americana. O fato de as reações
da região serem tanto favoráveis quanto contrárias à política antidrogas norte-
americana repercute na determinação de suas políticas, assim como nas

1047
possibilidades e formas de cooperação internacional em âmbito bilateral e regional
(PROCÓPIO; VAZ, 1997).

A Colômbia, nas últimas décadas, tem sido o país mais afetado pelo problema das
drogas na América do Sul. Encontraram ali um cenário ideal para prosperar: um
conflito armado interno em curso, a escassa presença do Estado em algumas áreas
e problemas de governabilidade. O conflito armado, que tem sido o maior problema
de segurança colombiano, assumiu uma nova perspectiva em consequência do
narcotráfico. Também os governos colombianos internalizaram o discurso norte-
americano de combate às drogas, de modo que se estabeleceu uma agenda sub-
regional, na qual, no entanto, os demais países da região não estão integrados.

A ―guerra contra as drogas‖ a partir do final dos anos 1980 estimulou Colômbia, Peru
e Bolívia a erradicar, apreender e reprimir o tráfico, o que foi feito mediante o
emprego de meios militares. Segundo Tokatlian (1994), essa estratégia da política
antinarcóticos caracterizada como ―cocainization‖, ―Andeanization‖ e ―militarization‖
provocou a exacerbação de problemas sociais, econômicos, políticos, diplomáticos,
ecológicos, militares e de saúde, anteriormente existentes e que foram
potencializados pela relação com o tráfico de drogas. Por meio da Iniciativa
Andina473, os Estados Unidos se dispuseram a mobilizar auxílio econômico para que
os países pudessem substituir os cultivos de coca e fomentar o desenvolvimento
alternativo.

Entretanto, condicionou-se essa ajuda aos resultados alcançados pelos países


andinos no emprego desta política, além disso, como contrapartida ou exigência,
deveriam promover reformas econômicas liberalizantes. Desde esse momento era
preocupação dos países andinos o papel das forças armadas ou a sua intervenção
na repressão ao tráfico de drogas. Para eles, a repressão ao tráfico deveria ter
caráter essencialmente policial, no entanto, consideram a possibilidade de que, se
for do interesse soberano do Estado e respeitado o ordenamento jurídico próprio, as
forças armadas poderiam tomar parte da repressão ao tráfico. Ocorreu então que a
ajuda proveniente dos Estados Unidos foi mais direcionada para a área militar do
473
A Iniciativa Andina destinava aos países andinos importantes recursos para apoio econômico e militar eis que
os Estados Unidos considerava que era mais apropriado conter a oferta da droga antes dela chegar ao seu
território e, para que essa luta tivesse melhores resultados, era importante fortalecer os vínculos com os países
andinos.

1048
que para a economia, também decorreu uma deteriorização dos direitos humanos na
região; o conflito foi securitizado, provocando mais tensão do que aumento nos
graus de cooperação multilateral.

A Colômbia acabou sofrendo os efeitos dessa política pois a produção da folha da


coca se deslocou de Peru e Bolívia para seu território, adentrando o país justamente
nas zonas controladas por grupos guerrilheiros. Aplicou a estratégia repressiva com
o aumento da participação das forças militares na repressão ao narcotráfico, o que
ficou consubstanciado com a implementação do Plano Colômbia no início da década
de 2000.

Se ao longo da década de 90 a produção deslocou-se para a Colômbia, a partir da


implementação do Plano Colômbia houve o deslocamento da produção para Bolívia
e Peru. O relatório do UNODC de 2012 ressalta que no quinquênio 2006-2010 a
Colômbia passou por uma redução na fabricação da cocaína ao mesmo tempo que
Bolívia e Peru tiveram o aumento do cultivo de arbusto de coca e produção de coca.
O relatório (UNODC, 2012, p. 59, tradução nossa) destaca

a dinâmica do cultivo do arbusto de coca na Colômbia é diferente da dos


outros países. A forte pressão de erradicação exercida pela Colômbia
mediante a fumigação aérea de zonas de cultivo de arbusto de coca, junto
com as intensas atividades de erradicação manual, deram lugar a uma
situação altamente dinâmica. As zonas de cultivo frequentemente se
deslocam, mudam de tamanho, ou são abandonadas, reativadas e
abandonas novamente em períodos relativamente breves. Em contraste,
nos outros países a erradicação, exclusivamente manual, se limita a certas
zonas de cultivo, pois fora delas existem plantações nas quais o cultivo do
arbusto de coca pode estar permitido pelo Governo para os mercados
autorizados no país.

Com a retomada nas erradicações químicas dos cultivos ilícitos, a fumigação aérea
passou a ser empregada com produtos químicos mais potentes e também a área
coberta pela mesma foi ampliada. A área bruta envolvida na produção de cocaína na
Colômbia é muito maior do que as áreas de Bolívia e Peru, e a diferença entre esta
e a área líquida colombiana demonstram, conforme o relatório UNODC (2012, p. 60),

1049
―que uma grande parte da superfície do cultivo do arbusto de coca segue estando
sob pressão por parte das autoridades encarregadas de aplicar a legislação
antidroga‖.

Uma importante dimensão a considerar é a dinâmica interna colombiana e a relação


que se estabelece entre os grupos armados e o narcotráfico. Considerando a
relação das FARC com as drogas e, em que pese o processo de negociação de paz
com o governo iniciado em outubro de 2012, o grupo não abandonou sua
participação no negócio das drogas e nem está claro se o fará. Como destaca
Mathieu (2012, p. 7, tradução nossa)

Se bem que as FARC colocaram fim de maneira oficial a metodologia dos


sequestros e os últimos reféns uniformizados foram liberados em abril e
maio de 2012, ainda não se sabe se há civis capturados (nem quantos
poderia haver). Ademais, a organização não abandonou os atentados como
método de luta nem seus vínculos com o narcotráfico.

Segundo o mesmo autor, as FARC negam participação no tráfico de drogas,


assumindo, contudo, que o grupo cobra um tributo da produção e do comércio de
folhas e pasta de coca e cocaína nas regiões que estão sob seu controle. No
entanto, analistas afirmam que as FARC exercem o controle sobre 60% dos cultivos
de coca e do narcotráfico no país (MATHIEU, 2012, p. 11). Por certo, o acordo de
paz474 que está sendo gestado entre as FARC e o governo colombiano refletiria na
reforma da política de drogas tratando de trabalhar programas para a substituição
dos cultivos e a despenalização do consumo.

O presidente Santos advoga a necessidade de repensar a guerra às drogas pois a


Colômbia vem pagando um preço alto por essa política pois apresenta uma
combinação de cartéis de drogas e a guerrilha envolvida com o tráfico de drogas,
fatores que colocaram o país como ‗narcoterrorista‘, implicando numa condição
importante de falência do Estado475. Ele destaca que os grandes cartéis que

474
O governo Santos e as FARC travam um diálogo para conversações de paz desde outubro de 2012 em Havana
e Oslo.
475
No ranking dos Estados falidos a Colômbia (caracterizada como em situação crítica) aparece em 52 o lugar em
2012; 44o em 2011; 46o em 2010; 41o em 2009. Disponível em:
<http://www.foreignpolicy.com/failed_states_index_ 2012_interactive>.

1050
colocavam a democracia colombiana de joelhos foram desmantelados, somente
restando as FARC que está cada dia mais enfraquecida. Para Santos, em entrevista
ao ‗The Observer‘, é importante discutir novas abordagens ao problema das drogas
uma vez que ainda se está pensando como há 40 anos.

Embora para a Colômbia o problema das drogas seja uma questão de segurança
nacional, ele considera que a questão deva ser repensanda globalmente, colocando,
inclusive como opção, a possibilidade de legalização de substâncias com menor
potencial ofensivo. Considera, ainda, a necessidade dos países grandes
consumidores – como os Estados Unidos – terem de agir mais intensamente para
reduzir a demanda.

A política repressiva de ―guerra às drogas‖476 foi ineficaz na resolução do problema a


que os países envolvidos estão expostos. A Comissão Latino-Americana sobre
Drogas e Democracia477 (2009) ressalta a insuficiência dos resultados, os pesados
custos econômicos e de vidas humanas que a repressão gerou, o aumento no
número de prisões nos Estados Unidos por crimes relacionados às drogas (menos
de 50 mil pessoas em 1980 e 500 mil em 2007); apesar desses dados, o preço das
drogas diminuiu.

A resposta deveria ser uma política que privilegia a redução dos danos para as
pessoas, sociedades e instituições. A política empreendida nas últimas décadas
fracassou e o problema das drogas que atinge o continente como um todo, deve ser
tratado de forma coletiva, pois políticas unilaterais ou bilaterais continuarão sendo
ineficazes para atacar uma questão transnacional, que inclui lavagem de dinheiro,
corrupção da justiça, aumento da criminalidade (RUSSEL; TOKATLIAN, 2008, p. 20-
21).

O problema das drogas, que não foi minimizado com o emprego de uma política que
militarizou o combate, vai além da questão do tráfico de ilícitos, por isso, a repressão

476
O presidente Santos, falando acerca dos resultados do Plano Colômbia, considerou a vitória contra as drogas
como uma vitória pírrica (MULHOLLAND, 2011).
477
A Comissão Latino Americana sobre Drogas e Democracia criada pelos ex-presidentes Fernando Henrique
Cardoso (Brasil), César Gaviria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México) e integrada por um número maior de
personalidades internacionais, produziu um relatório intitulado: “Drogas e Democracia: rumo a uma mudança de
paradigma”. Nesse documento a Comissão avaliou o impacto das políticas da guerra às drogas – considerando-os
como falhos – e propôs uma mudança profunda para o enfrentamento do problema passando, inclusive, por uma
política de legalização.

1051
– que deve existir, obviamente – não basta, são necessárias políticas públicas com
ênfase em programas alternativos que gerem renda e emprego. Estes programas
precisam ser direcionados para as áreas mais afetadas, além disso, para que os
projetos sociais e econômicos alternativos se constituam em opções de longo prazo,
os problemas sociais precisam ser considerados no todo (desplazados, retomada
das terras, cultivos alternativos viáveis). Como o International Crisis Group (2008b,
p. 20, tradução nossa) inferiu:

As dificuldades inerentes em organizar comunidades altamente vulneráveis,


a persistente presença de grupos armados ilegais nas zonas de cultivos de
coca, a incapacidade dos programas do governo em adaptar-se às
necessidades locais e a ausência de políticas de desenvolvimento
ambiciosas em nível regional, nacional e internacional, deixam dúvidas
sobre os resultados finais.

Como uma decorrência do Plano Colômbia produziu-se o ―efeito balão‖ (―efecto


globo‖), ou seja, o deslocamento do problema para outros países afetando Bolívia e
Peru, mas também México, e as regiões do Caribe e América Central. Ou seja, muito
embora a Colômbia tenha sofrido e continue a sofrer as maiores consequências do
problema das drogas, o país não é o único a enfrentar esse problema.

Assim sendo, na construção das respostas precisa-se levar em conta que a resposta
do Estado, enquanto garantidor da segurança de seu território e de seus cidadãos,
não pode desconsiderar a promoção da segurança humana que é ameaçada. Da
mesma maneira, os governos se omitem em estabelecer respostas alternativas a
questões, como a das drogas, que se aprofundam em face das debilidades
estruturais dos Estados.

A fragilidade da segurança humana478 está diretamente relacionada ao emprego de


tais políticas e o resultado das mesmas. Os deslocamentos forçados, os altos
índices de violência interna, a lavagem de dinheiro e os crimes correlatos, a grande
perda no número de indivíduos jovens, gera um espiral em relação ao tema nas já
degradadas sociedades. Quer dizer, os problemas sociais e econômicos anteriores

478
Na Colômbia, em torno de 4 milhões de pessoas foram deslocadas em face do conflito armado nessas últimas
décadas.

1052
vem ressaltar o descaso com relação à segurança humana e o resultado negativo de
tais políticas com relação aos indivíduos.

3 O Brasil e o destaque ao narcotráfico

Durante certo tempo os países sul-americanos temeram que o conflito colombiano


espalhasse seus efeitos pela região (spillover) à partir das políticas de combate ao
mesmo implementadas internamente. Contudo, mais do que a ameaça do spillover
do conflito como um todo o que ocorreu foi que determinados efeitos negativos
repercutiram nos vizinhos criando focos de instabilidade seja em decorrência dos
deslocamentos da população (especialmente para Equador, Venezuela e Panamá)
seja em face do cultivo dos ilícitos na fronteira ou mesmo do tráfico de drogas.

O Brasil, como país limítrofe, inquieta-se não somente em relação a eventuais


invasões do território por grupos armados, mas, também com as ramificações
estabelecidas com os ilícitos, como tráfico de drogas e armas, contrabando e crime
organizado. Os efeitos dessas conexões repercutem, sobretudo, nas grandes
cidades brasileiras, tanto em relação aos reflexos das redes do crime organizado,
quanto aos índices de violência e problemas sociais.

O receio com as questões relacionadas à segurança pública é especialmente


relevante na região, dada a interdependência entre os Estados. Esses problemas
são agravados pela inexistência de políticas estatais para controlar a escalada da
violência, bem como pela ainda insuficiência no fortalecimento das instituições, além
dos fatores estruturais que favorecem o seu desenvolvimento. O movimento do
Brasil, em termos de segurança pública, é no sentido de manter o tratamento político
do tema, evitando a securitização de tais questões.

Por isso o Brasil, como uma das principais rotas do tráfico de drogas internacional,
trabalha para fortalecer ações de prevenção, de redução da demanda, conciliando
com métodos de repressão. Visa que as ações se desenvolvam por meio das
polícias, contando com suporte das forças armadas (exemplo é o acordo assinado
com o governo da Bolívia de uma estratégia regional contra as drogas para ações

1053
conjuntas de polícias, com o suporte das forças armadas, para localizar e destruir
laboratórios e pistas de pouso clandestinas e trocar informações acerca do tráfico).

4 Considerações finais

Questões transnacionais como o tráfico de drogas desafiam a capacidade dos


Estados sul-americanos de desenvolverem políticas multilaterais. Desafiam Estados
e governos a trabalharem conjuntamente na implementação de ações que
minimizem os impactos de tais problemas. Mas mesmo que as preocupações sejam
compartilhadas entre os países da América do Sul, os interesses nem sempre o são.
Quer dizer, embora o fenômeno das drogas seja um problema comum a toda a
região, os seus efeitos em relação à segurança de cada país são distintos. O Brasil
se preocupa com o crime organizado como correlato do tráfico de drogas, que gera
aumento da violência e lavagem de dinheiro. Além disso, tem especial atenção com
o resguardo das fronteiras nacionais, sobretudo, na região amazônica, que se
caracteriza por ser uma área de difícil controle devido às suas dimensões, à falta de
recursos humanos e materiais para dotar os órgãos de controle e fiscalização de
todos os meios necessários, por isso, há uma insuficiente presença do Estado na
área.

Os novos desafios à segurança, em vista da variedade dos potenciais de conflito,


requerem uma combinação de medidas de âmbito militar, financeiro, econômico,
político e policial, além da coordenação de esforços nacionais, regionais e
internacionais. Neste sentido, são importantes as medidas coordenadas, bilateral
e regionalmente, adotadas pelos países sul-americanos, que tem crescido nos
últimos anos, embora essas ações não possam ser consideradas como definitivas
para a solução do problema. Cada Estado tem se preocupado em adotar atitudes
que representem respostas aos problemas que mais diretamente repercutem em
seu país, como o reforço de vigilância militar na fronteira por parte de Equador e
Brasil.

Por isso, embora para o UNODC, de todos os problemas que a região enfrenta
aquele que melhor pode ser administrado por meio de ações coletivas é o tráfico de

1054
drogas - por ser um fenômeno que afeta a todos os países, seja por serem lugar de
trânsito ou produtores, ainda a região carece de alternativas multilaterais.

De outro modo, o interesse dos Estados Unidos na região andina em termos de sua
própria defesa nacional e segurança faz com que se considere a condição de
avançar o complexo de segurança da América do Norte para a aquela área,
incluindo-a nas dinâmicas de segurança norte-americanas. Isso significa dizer que,
nos cálculos dos atores regionais acerca de possíveis ações de cooperação, deve-
se levar em conta a intensidade da participação dos Estados Unidos na região ou
como importante ator externo interessado naquelas dinâmicas de segurança ou
como overlay na sub-região andina.

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1056
O PRIMEIRO CURSO AVANÇADO DE DEFESA SUL-AMERICANO (CAD-SUL):
REFLEXÕES SOBRE A DEFESA DA AMAZÔNIA

Heleno Moreira479

1 Introdução

O Parágrafo único do Art 4º da Constituição Federal de 1988 cita que: ―A República


Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos
povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana
de nações‖. Na última década, a cooperação e a integração sul-americana têm sido
muito debatidas. Tais discussões culminaram em 23 de maio de 2008 com a
aprovação do tratado constitutivo da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL,
2008), que compreende nove conselhos, dentre eles o Conselho de Defesa Sul-
Americano (CDS, 2011) cujos objetivos gerais são: 1) consolidar a América do Sul
como uma zona de paz, base para a estabilidade democrática e o desenvolvimento
integral dos nossos povos e contribuir para a paz mundial; 2) construir uma
identidade sul-americana em matéria de defesa, que considere as características
sub-regionais e nacionais e que contribua para o fortalecimento da unidade regional;
e 3) gerar consensos para fortalecer a cooperação regional em matéria de defesa.

As principais atividades do CDS constam de Plano de Ação Anual, constituído de


quatro Eixos de atuação (áreas temáticas), assim distribuídos:

1. Políticas de Defesa

2. Cooperação Militar, Ações Humanitárias e Operações de Paz

3. Indústria e Tecnologia de Defesa

4. Formação e Capacitação

479
Escola Superior de Guerra.

1057
O terceiro plano, elaborado para o ano de 2012, foi aprovado na Reunião
Extraordinária do CDS, na cidade de Lima, no Peru, nos dias 10 e 11 de novembro
de 2011, com 27 iniciativas. Dentre estas, o Brasil propôs a atividade 4.a: ―Realizar
um Curso Avançado de Defesa na Escola Superior de Guerra do Brasil, destinado
aos Altos Funcionários de Defesa dos países sul-americanos, civis e militares,
durante o ano de 2012‖.

O presente artigo relata essa experiência, fruto de participação e de estudos, como


planejador, discente e Adjunto do Diretor do primeiro Curso Avançado de Defesa
Sul-Americano (CAD-SUL), realizado no segundo semestre de 2012, nas instalações
da Escola Superior de Guerra (ESG), no campus Rio de Janeiro.

O objetivo deste texto é apresentar algumas reflexões sobre como o processo de


integração sul-americana pode contribuir para a defesa da Amazônia, ao considerar
que a Amazônia brasileira estará melhor defendida se toda a região amazônica
também estiver. O trabalho aborda, principalmente, a importância de um curso
desse nível para a construção de um pensamento de defesa e para o
desenvolvimento regional.

2 O Curso Avançado de Defesa Sul-Americano (CAD-SUL)

O CAD-SUL destina-se a capacitar civis e militares que atuam na área de defesa


dos países da UNASUL, proporcionando-lhes conhecimentos que possibilitem o
desenvolvimento de um pensamento sul-americano de defesa, com base na
cooperação e integração regionais. Para a consecução do objetivo geral do curso, a
estrutura curricular foi desenvolvida ao longo de 10 semanas, com uma carga
horária de 327 horas/aula, reservadas às atividades de estudo e complementares.

Esta estrutura curricular amparou-se em estudos teóricos e em aplicações práticas


do conteúdo programático, estabelecido por meio de estudos e disciplinas,
ministrados de modo a integrar diversos conhecimentos, tendo em vista que o tema
defesa é um conceito bem amplo, além de estar ligado de modo inseparável ao
conceito de desenvolvimento (END, 2008).

1058
O corpo discente contou com a participação de representantes de 11 países –
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname,
Uruguai e Venezuela. O curso foi construído também buscando propiciar uma
salutar troca de experiências e de conhecimento entre futuros líderes na área de
defesa e eventos importantes para o aprofundamento da cooperação, além do
fortalecimento da confiança entre os países integrantes do citado bloco regional.

Faz-se oportuno destacar aqui que a abordagem metodológica desenvolvida pela


ESG propicia aos discentes a aplicação prática dos conteúdos analisados em
diversos níveis de complexidade, configurando-se como um sistema de estudos,
pesquisas e atividades que requerem tanto desempenhos individuais como em
grupo. Por esse motivo são privilegiadas técnicas de ensino que tornam as
atividades mais produtivas e dinâmicas, de modo a favorecer a participação, a troca
de experiências e o desenvolvimento dos discentes.

Os docentes foram representantes do Ministério das Relações Exteriores, do


Ministério da Defesa, professores doutores acadêmicos e da própria ESG. Também
foram convidados palestrantes da Argentina, do Chile e do Equador. O argentino Dr
Alfredo Forti, Diretor do Centro de Estudos Estratégicos de Defesa da UNASUL
(CEED) para falar sobre ―Geopolítica da América do Sul‖; o Chile indicou o Ex-
chanceler Juan Gabriel Valdez, para transmitir sua experiência no comando da
Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti (MINUSTAH) – ―Estudo de
caso nas operações de paz‖. O Equador indicou o Dr Maximiliano Donoso e o
Coronel Napoleón Alvarado para fazer conferência sobre ―Aspectos de segurança e
defesa da América do Sul‖.

Ao longo do curso foram realizadas visitas às Escolas de Formação de Oficiais das


Forças Armadas Brasileiras480 e aos seus Órgãos de Ciência e Tecnologia481,
incluindo-se também nesse expediente o Comando Militar do Leste, o Comando da
Divisão Anfíbia da Marinha, o Navio-Aeródromo São Paulo (Porta-aviões), todos

480
Escola Naval (Rio de Janeiro – RJ), Academia Militar das Agulhas Negras (Resende – RJ) e Academia da
Força Aérea (Pirassununga – SP)
481
Instituto de Pesquisas da Marinha e Centro Tecnológico do Exército, ambos situados na cidade do Rio de
Janeiro – RJ. E o Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (São José dos Campos – SP).

1059
situados na capital carioca, além da EMBRAER (São José dos Campos – SP) e do
Comando de Aviação do Exército em Taubaté, São Paulo.

O curso foi composto pelas seguintes disciplinas: I - Caracterização dos Países da


UNASUL; II - Organismos Internacionais; III - Geopolítica e Geoestratégia; IV -
Segurança e Defesa; V - Base Industrial de Defesa; e VI - Logística em ambiente
estratégico.

Essas disciplinas possibilitaram discussões que conduziram a alguns ensinamentos


e conceitos, que serão vistos a seguir.

3 Lições aprendidas

A América do Sul foi considerada, por muito tempo, como um continente distante,
separado; hoje se projeta internacionalmente pela autossuficiência em energia, por
extensos reservatórios de água doce e a exuberante biodiversidade. Portanto, um
patrimônio que merece ser preservado e defendido.

As fronteiras devem ser espaço de cooperação e não de separação. No entanto, os


principais obstáculos da UNASUL / CDS são as diferentes características dos países
e suas conseqüentes assimetrias.

A falta de conhecimento na América do Sul sobre as diferentes regiões que


compõem o continente é muito grande, não só entre o Brasil e seus vizinhos, como
entre estes e o Brasil ou entre eles mesmos. O grande desafio, no contexto do 1º
CAD-SUL, foi cada um dos representantes desses territórios apresentarem suas
visões para os outros, tendo em vista as muitas diferenças culturais.

As aulas no referido curso eram dadas, na sua grande maioria, no idioma português,
fato este que, no início, dificultou de forma considerável, pois a maioria dos
discentes era de língua espanhola. A Guiana usa o idioma inglês e o Suriname, o
holandês. Este último foi atenuado, uma vez que seus representantes entendiam e
falavam português e espanhol. Após cerca de trinta dias, a comunicação tornou-se
mais fácil, pois o português começou a ficar mais fácil de ser entendido.

1060
A avaliação do ensino, realizada por intermédio de pesquisas realizadas ao fim de
cada disciplina, foi fundamental para o aprimoramento e aperfeiçoamento do curso,
que terá sua segunda edição no ano de 2013. Após planejado, a execução foi
criticada, sendo levantados os pontos positivos e as necessidades de melhoria.

Como exemplo, pode ser citado o Laboratório de Simulação de Cenários, ferramenta


de extrema importância, mas por ter sido utilizada na segunda semana do curso, foi
avaliada de maneira negativa, uma vez que exigia muitas regras a serem
assimiladas e pouco tempo disponível para aprendê-las, aliada à dificuldade com a
compreensão do idioma português, ainda pouco dominado pelos discentes. Levou a
que essa atividade fosse revista para os próximos cursos.

Outra crítica negativa é que num curso sul-americano, a maioria dos docentes foi de
brasileiros, que apesar de orientados a falar sobre a América do Sul, tendiam a
transmitir conhecimentos, em maior quantidade do Brasil. Para atenuar essa
situação, para o próximo curso foram convidados palestrantes de seis países
estrangeiros – Argentina, Chile, Equador, Peru, Uruguai e Venezuela.

As dificuldades de integração são muitas, destacando-se, entre essas, as diretrizes


das ações governamentais de cada região que adotam padrões diferenciados na
ocupação de seus territórios. O Brasil, por exemplo, prioriza a parte litorânea, não
dando a devida atenção à sua região centro-norte, fato esse que dificulta a
ocupação do interior. Outra questão a se ressaltar é a deficiência de transporte
aéreo com poucos voos diretos entre as capitais dos países da América do Sul.
Existe, desta forma, uma enorme carência de infraestrutura.

De acordo com Pinto (2012), construir uma hidrovia não é caro - cerca de R$ 30
milhões de reais. Há muitas bacias fluviais, com destaque para as do Araguaia, do
Tocantins, do Amazonas e do Prata. Mas os óbices são muitos: questões ambientais
e indígenas e, principalmente, falta de vontade política, além de excessivos
procedimentos administrativos e burocráticos, que acabam propiciando, em várias
oportunidades, a divergência entre leis federais, estaduais e municipais, contribuindo
para a insegurança jurídica.

1061
Para um projeto de integração e de defesa da Amazônia, há necessidade de se
aplicar medidas para tornar fácil o acesso físico e cultural. A região é considerada
despovoada e tem escassez de conexão nos setores de energia, transporte e
comunicações, apesar das grandes potencialidades que até hoje não foram
aproveitadas.

Como exemplo de iniciativa de cooperação a Organização do Tratado de


Cooperação Amazônica (OTCA, 1978) é constituída por oito países amazônicos:
Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Tem os
seguintes objetivos: desenvolvimento harmonioso e integrado; elevação do nível de
vida; integração da região amazônica às economias nacionais; troca de
experiências; crescimento econômico e preservação do meio-ambiente.

Silva (2012) aponta que: 1) na América do Sul deve haver clareza das esferas
políticas e estratégicas dos conceitos de ―Defesa‖ e de ―Segurança‖. Existe uma
enorme dificuldade em distinguir esses dois conceitos; 2) a Amazônia, com seus
recursos e soberania, é uma área vulnerável brasileira, sendo assim também para a
América do Sul;e 3) a estratégia brasileira decorre de algumas constatações; dentre
elas o desenvolvimento da Amazônia. E, portanto, a necessidade de se desenvolver
toda a região, e não somente a parte situada em território nacional.

Conforme aponta Silva (2010, p.65), as questões capazes de gerar crises e impor
situações de insegurança para a comunidade das nações centram-se, agora,
largamente em ações intraestatais (ecologia, direitos humanos) e transfronteiriços
(máfias variadas)... ].A disciplina, ministrada durante o curso, ―Segurança e
Defesa‖ ressaltou a importância da integração sul-americana, uma vez que esse
importante tema entrou na agenda das relações internacionais, exigindo novos
estudos, análises e debates, com o surgimento de novos atores e, como
conseqüência, novas ameaças.

A Declaração sobre Segurança das Américas, ocorrida na cidade do México, em


2003, descreve como Novas Ameaças: pobreza extrema, terrorismo, crime
transnacional, armas de destruição em massa, drogas, corrupção, tráfico de armas,
lavagem de ativos, desastres naturais, tráfico ilícito de pessoas; e ataques à
segurança cibernética.

1062
Lima (2012) mostrou que não se vislumbra uma ameaça comum. As dificuldades
são os problemas logísticos, financeiros e das legislações de cada país, indicando
necessidade deintercâmbio de estudos e de pessoal; manutenção e, se possível,
ampliação dos exercícios militares entre os países; e integração da logística militar
(pesquisa, desenvolvimento e produção).

Gonçalves (2012) aponta a integração como um meio, uma ferramenta para


gerar mais desenvolvimento e seu argumento central se baseia na tese que o
avanço desse processo depende da convergência dos modelos de
desenvolvimento a longo prazo.

Com a finalidade de atenuar a ligação física entre os países da UNASUL, a Iniciativa


para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) nasceu no ano
2000 sob o signo da inovação, com idéias para a construção de uma visão comum
da infraestrutura, trabalhando sinergicamente com três setores – transportes,
energia e comunicação. A utilização do conceito de Eixo de Integração e
Desenvolvimento (EID) permitiu aos governos sul-americanos o planejamento para
além das suas fronteiras.

Um dos maiores desafios da IIRSA consiste emrealizar a conexão territorial entre os


países e possibilitar sua operação eficiente: infraestrutura construída, regulações
adequadas e operação otimizada.

4 Reflexões sobre defesa da Amazônia

Para este estudo deve-se ressaltar que a Política de Defesa Nacional (PDN) do
Brasil (BRASIL, 2005) é o documento condicionante de mais alto nível do
planejamento de defesa do país, o qual define uma política de Estado voltada para
ameaças externas quefixa os objetivos nessa direção e orienta o preparo e o
emprego da capacitação nacional. Esse Decreto Presidencial explica os conceitos
de segurança e defesa adotados no Brasil, estabelecendo a diferença entre ambos,
conforme adotado abaixo que:

I - Segurança é a condição que permite ao País a preservação da soberania


e da integridade territorial, a realização dos seus interesses nacionais, livre

1063
de pressões e ameaças de qualquer natureza, e a garantia aos cidadãos do
exercício dos direitos e deveres constitucionais;

II - Defesa Nacional é o conjunto de medidas e ações do Estado, com


ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos
interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas,
potenciais ou manifestas.(PDN, 2008, p.2).

A Estratégia Nacional de Defesa (BRASIL, 2008) trouxe esse debate para a agenda
nacional. Mas é uma tarefa de difícil execução, pois como envolver a sociedade de
um país pacífico como o Brasil, que tem carências de várias ordens, em assuntos
como o desenvolvimento do território brasileiro?

O desenvolvimento de mentalidade de defesa no seio da sociedade


brasileira é fundamental para sensibilizá-la acerca da importância das
questões que envolvam ameaças à soberania, aos interesses nacionais e à
integridade territorial do País. (orientação estratégica 6.20 da PDN).

A PDN (BRASIL, 2005) e a END (BRASIL, 2008) estabeleceram que: ―a Amazônia,


considerando a cobiça internacional e as vulnerabilidades nacionais, é a área
estratégica prioritária, sendo a sua integração o fator de maior impacto na redução
das vulnerabilidades naquela região‖.

De acordo com Neves Neto (2011, p.19), a grande bacia fluvial do Amazonas possui
1/5 da disponibilidade mundial de água doce. Os rios são as verdadeiras ―estradas
líquidas‖ que alimentam a vida da região. A maioria dos povoados, vilas e cidades
está situada ao longo dos cursos de água.

Smith (2011, p. 80) cita: ―Está na moda dizer que a água é o ―petróleo do futuro‖,
pelo qual o mundo estaria disposto a entrar em guerra no século XXI‖.

Os países desenvolvidos e os em desenvolvimento necessitam cada vez mais de


fontes de energia para manter ou mesmo conquistar seus objetivos, aí incluído o
desenvolvimento. O Ministro da Defesa brasileiro declara sobre a questão:

1064
Não me canso de dizer: ser país pacífico não é sinônimo de estar desarmado.
A dissuasão é a estratégia primária da política de defesa brasileira. E defesa,
volto a repetir, não se delega. Seu objetivo é evitar, por meio da posse de
adequadas capacidades militares, agressões ao patrimônio brasileiro ou
ações que afetem, ainda que indiretamente, interesses nacionais. (AMORIM,
2012, p. 8).

Segundo Santos (2004, p.17),―A questão energética é muito séria, pois sem energia
a nação não pode produzir ou desenvolver-se. Uma nação dependente em seu
próprio território, naquilo que lhe é mais estratégico, não tem condições de manter
sua soberania. Tende sim, a ser colonizada ou controlada por nações mais
poderosas‖.

Essas idéias iniciais mostram que não há inimigos declarados, mas há riquezas,
patrimônios nacionais que necessitam de defesa.

De acordo com Neves Neto (2011, p.12), a END, estabelecendo a Amazônia como
área prioritária para a defesa, busca conciliar exploração e preservação, permitindo
visualizar a necessidade de um maior comprometimento da classe política na
manutenção, desenvolvimento e povoamento da área. Ou seja, só corrobora a
noção de que a melhor defesa é o desenvolvimento do país.

A região amazônica, com sua flora, fauna, minerais e biodiversidade, por exemplo,
torna-se uma das regiões mais ricas do planeta, e de acordo com Neves Neto (2011,
p. 9), os óbices que dificultam a conquista desse objetivo podem ser listados como
crimes transnacionais, narcotráfico, corrupção, depredações do meioambiente, em
cerca de 11.000 Km de fronteiras, caracterizando-se assim as ―Novas Ameaças‖.

Fregapani (1995) aponta que segurança se obtém pela ocupação e pelo


desenvolvimento482, mas a capacidade militar não pode ser esquecida.

Em muitas localidades estratégicas da Amazônia, o Estado brasileiro se faz presente


apenas com as Forças Armadas, ou seja, com a expressão militar do poder

482
Desenvolvimento é o processo global de aperfeiçoamento do homem e o aprimoramento dos sistemas sociais
(ESG, v 1, p. 53).

1065
nacional483, notando-se a falta das outras quatro expressões, já que esse poder é
uno e indivisível. Assim, há um desequilíbrio que necessita ser corrigido.

A ausência de instituições governamentais traz como conseqüências, dentre outras,


ações negativas de Organizações Não Governamentais (ONG)484 e de missões
religiosas, que usam o índio como ser indefeso para conquistar seus interesses.

Segundo Villas Bôas (2013), atualmente, o atendimento às necessidades básicas na


Amazônia fica cada vez mais precário, devido à pouca presença de instituições
estatais. Da mesma forma, as questões ambientais e indígenas, juntamente com os
ilícitos, estão se agravando. Vive-se, no momento, o dilema do desenvolvimento
versus o ambientalismo, em que o desmatamento da floresta amazônica representa
a prática mais condenável por todas as organizações nacionais e internacionais,
pois traz danos irreparáveis ao ecossistema. Portanto, o importante é fazer dela, a
terra, um dos fundamentos do poder nacional, transformando seus recursos naturais
em riquezas para o Brasil, para a América do Sul, agregando valor. Afinal,

Um dos grandes desafios do desenvolvimento é promover o


crescimento econômico sem agredir os valiosos ativos
ambientais do país e, ao mesmo tempo, recuperar os que
foram depredados, preservando-os para o usufruto tanto das
gerações atuais quanto das futuras. (SALOMÃO 2010, p. 393).

Quando se discutem temas amazônicos, as questões tomam um vulto maior devido


às distorções propagadas na comunidade internacional, por intermédio de algumas
ONGs, visto que alguns países ricos querem ensinar como o Brasil deve proteger o
ambiente e os índios. E frequentemente essas interferências externas têm a
capacidade e o poder de potencializar problemas, de inventar e agravar crises com o
intuito de impor aos brasileiros a vontade dos países de primeiro mundo, seus
objetivos políticos, sob a fachada de proteção ambiental e de minorias, sendo estes
tão importantes quanto o atendimento às necessidades básicas da população.

483
Poder Nacional é a capacidade que tem o conjunto de Homens e Meios que constituem a Nação para alcançar
e manter os Objetivos Nacionais, em conformidade com a Vontade Nacional (ESG, 2013, v 1, p. 31). Para fins
didáticos é dividido em 5 expressões: política, econômica, psicossocial, militar e científica-tecnológica.
484
Há um estudo feito sobre as ONG e seus países patrocinadores; entretanto, esse assunto seria tema de outro
artigo.

1066
Derrubar árvores é crime, mas também o é negar atendimento às necessidades
básicas de seres humanos.

Cabe ressaltar que a história mostra que esses mesmos países não resolveram
situações parecidas. Mataram seus indígenas e destruíram seus ambientes naturais.

E como desenvolver a Amazônia? Becker (1982), Pereira (2007) e Mattos (2007),


com seus trabalhos geopolíticos já indicavam a necessidade de ocupação e
desenvolvimento diante da comprovação da existência de muita riqueza em recursos
naturais, ou seja, um potencial econômico.

Villas Bôas (2013) aponta que a fraca presença do estado agrava a situação, uma
vez que há muita regulamentação e pouca fiscalização por parte dos órgãos
governamentais, especialmente nas questões indígenas e ambientais, exceto em
algumas ações fracionadas, não havendo qualquer tipo de integração; potencializa
outros problemas, uma vez que não há fiscalização constante. Nas poucas
oportunidades em que o estado se faz presente, as ações são fracionadas, não
havendo qualquer tipo de integração. E, sendo assim, todas as providências
públicas em relação à Amazônia acabam tendo um viés repressivo, o que,
consequentemente, impulsionam as pessoas, naturalmente, para o ilícito.
Entretanto, há alguns programas e projetos para aquela região, com objetivos de
atender essa demanda. Como exemplo, pode-se citar o Programa Calha
Norte (BRASIL, 2013 a) e o Projeto Rondon (BRASIL, 2013 b).

É necessário, portanto, oferecer alternativas à população local, pois são cerca de 16


milhões de habitantes (WIKIPÉDIA, 2013) esquecidos. Os índios, por serem mais
facilmente manipulados por órgãos nãogovernamentais, e, normalmente esquecidos
pelas autoridades competentes da urgência de sua inclusão aos demais brasileiros,
deixam-se conduzir a quem lhes ofereça algo positivo. Eles carecem de elementos
básicos à sobrevivência, ou seja, hospitais, escolas, transporte, energia, lazer.
Existem ainda outros aspectos de ordem humana, econômica, ambiental e social. É
necessária a presença do Estado, do poder nacional, pois são brasileiros que têm
necessidades básicas não atendidas.

1067
As decisões são tomadas em uma esfera que parece desconsiderar as reais
necessidades dos brasileiros daquela região. É o caso, por exemplo, da sede da
Secretaria da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA, 1978)
está localizada em Brasília, Capital Federal, quando o mais correto seria estar
situada em Manaus para vivenciar a realidade e o espírito amazônico.

Além da ocupação, para o desenvolvimento é necessário um forte e expressivo


investimento em educação, base de tudo, pois permeia as demais áreas. A
educação não resolve todos os problemas, mas todos os problemas se resolvem
com um mínimo de educação. Educação transmite o patrimônio cultural. Uma
sociedade mais culta cuida melhor de sua saúde, valoriza o ensino, trabalha melhor,
tem mais consciência ambiental e conduz a um melhor comprometimento com sua
nação, com o civismo. Como aponta Santos (2006, p.37) ―a cultura é a base
fundamental para a manutenção da unidade nacional, da nacionalidade, da
soberania e condição fundamental para a construção de um futuro comum.
Entretanto a cultura só terá condições de sobreviver, se o Estado atuar no sentido
de preservá-la‖.

A cultura é essencial para a manutenção da integridade


territorial o que, em parte, possibilita o seu vigor e sua
criatividade. Podemos considerar a interferência cultural como
instrumento da estratégia. Considerando estratégia uma arte, a
interferência cultural é uma arma. Uma arma silenciosa e
eficiente (SANTOS, 2006, p.19 ).

Uma das alternativas para atenuar tais adversidades é a criação de polos


universitários, com esforço na Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I), em torno de
Manaus, que tem uma posição central. Urge conectar a Amazônia aos outros
centros de desenvolvimento. Vieira (2005) e Moreira (2008) corroboram a idéia de
aplicação de fortes investimentos e incentivo de C, T& I na Amazônia, propondo a
criação de universidades públicas e Institutos Científico-Tecnológico voltados à
pesquisa, dando-se prioridade para recursos florestais e da biodiversidade,
aquáticos e minerais.

1068
A Amazônia é uma das regiões mais ricas do planeta, com a maioria do seu território
no Brasil, mas também com mais sete países signatários da OTCA. Por isso, é
fundamental sua defesa. Essa floresta toda defendida, irá trazer benefícios não só
ao Brasil, mas para toda a América do Sul. Assim, a integração regional deve ser
considerada primordial para a defesa do continente, e em consequência, para a
Amazônia, não se podendo deixar de mencionar aqui a valiosa contribuição do CAD-
SUL para esta integração, cujo objetivo principal se concentra no desenvolvimento
de um pensamento sul-americano de defesa.

5 Conclusão

O CAD-SUL, curso inédito nas importantes áreas de integração sul-americana e de


defesa, com sua estrutura curricular própria, demonstrou a eficiência da cooperação
como o melhor instrumento da dissuasão. Políticas de defesa e políticas de
desenvolvimento são inseparáveis, uma dando suporte à outra.

Paralelamente, evidenciou a importância do equilíbrio do poder nacional de cada


país, pois a expressão militar é tão importante quanto às demais expressões.
Compreender a geopolítica torna-se fundamental, dado que fatos ocorridos em
outros continentes poderão trazer consequências para a América do Sul.

Não se pode desconhecer a importância estratégica da Amazônia, não só para o


Brasil, mas também para os países membros da OTCA. Suas riquezas
incomensuráveis, suas fontes de água doce, seu banco genético, dentre outros, são
alvo de cobiça por parte de nações desenvolvidas. E cabe aos brasileiros e a todos
os povos que integram o território sul-americano se unirem, consolidando essa
importante integração, para juntos, proporcionarem a defesa necessária à região,
com a finalidade de manter a paz e nunca causar a guerra. Essas propostas devem
começarcom fortes projetos de desenvolvimento e de uma cultura sul-americana
como poderosa arma de sua população.

A integraçãoda América do Sul irá contribuir para a defesa de todos os países da


UNASUL, e como consequência, a região mais rica do planeta estará defendida
como um todo, já que é um patrimônio dos países amazônicos.

1069
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1072
TRASCENDENCIA DE LA INTEGRACIÓN REGIONAL EN DEFENSA Y
SEGURIDAD PARA LA DEFENSA DE LOS PAÍSES SURAMERICANOS. ¿MÁS
ALLÁ DE LA SEGURIDAD COOPERATIVA?

José Manuel Ugarte485

1 Introducción: Suramérica, ¿qué defensa? ¿qué seguridad pública?

A más de dos décadas de la conclusión del conflicto Este-Oeste y a más de cinco


años de la creación del Consejo de Defensa Suramericano de la UNASUR (CDS)
puede afirmarse que Suramérica, desde el punto de vista de su seguridad colectiva,
está en una situación de indefinición, ante la lenta declinación de los mecanismos
hemisféricos –TIAR-OEA- y la virtual situación de estancamiento que parece aquejar
al CDS.

En el mundo de hoy, sólo pocos y bien armados países se abstienen de integrar


alianzas militares u organizaciones de seguridad colectiva.

Entre los países que sí las integran, se cuenta Estados Unidos de América, quien
además de constituir la base fundamental de la NATO-OTAN, posee alianzas
militares bilaterales formales con países como Japón, Corea del Sur y Filipinas,
mantiene su entendimiento estratégico con Israel, persiste en el TIAR, es parte del
Tratado sobre Seguridad con Australia y Nueva Zelandia y en su secreto tratado
sobre inteligencia de señales con el Reino Unido, Canadá, Australia y Nueva
Zelandia; entre otras relaciones, coalitions of the willing, etc.

La Unión Europea desarrolló, dentro de laPolítica Exterior y de Seguridad Común,


una Política Común de Seguridad y Defensa, con órganos políticos y militares y una
significativa fuerza militar para operaciones de paz, desarrollando una identidad
europea de seguridad y defensa. La Federación Rusa cuenta hoy con
laOrganización del Tratado de Seguridad Colectiva, que integra con Bielorrusia,
Armenia, Kazakhstan, Kyrgyzstan y Tajikistan.

485
Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.

1073
El Reino Unido, además de laNATO-OTAN y de los acuerdos con países del
Commonwealth, participa de los Arreglos de Defensa de los Cinco Poderes, con
Australia y Nueva Zelandia, Malasia y Singapur. También entre las alianzas, cabe
recordar laFuerza de Escudo Peninsular, dependiente del Consejo de Cooperación
del Golfo, que integra a Arabia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Quatar, Kuwait,
Omar y Bahrain. Aún en Latinoamérica, elTratado Marco de Seguridad
Centroamericana integrado por Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras,
Nicaragua y Panamá, prevé la defensa colectiva y solidaria en caso de agresión
armada por parte de otro Estado ajeno a la región. Etc. Estamos en un mundo en el
que las guerras interestatales convencionales han disminuido pero no desaparecido.

Por ello, bien puede afirmarse que los Estados, y especialmente aquellos que tienen
un importante patrimonio en recursos naturales y humanos tienen ante sí dos
posibilidades, recíprocamente no excluyentes: organizar una defensa eficaz y
eficiente si ello les es posible, o bien, aliarse con importantes potencias o integrar
organizaciones de seguridad colectiva. Los Estados suramericanos no parecen
decidirse por ninguna de las dos posturas.

De similar indefinición parece adolecerse en el ámbito de la seguridad pública, a


pesar del relativo avance de los mecanismos de cooperación establecidos en la
Reunión de Ministros del Interior (RMI) del MERCOSUR, o de la cooperación en
temas puntuales establecida en la CAN, o del mecanismo hemisférico de las
reuniones MISPA.

2 Seguridad, defensa y seguridad pública en el ámbito hemisférico.

Cabe destacar que los países latinoamericanos están en su gran mayoría vinculados
a Estados Unidos de América por elTratado Interamericano de Asistencia Recíproca
(TIAR) tratado de alianza militar que ha sido objeto de críticas, especialmente con
motivo del Conflicto Malvinas.

1074
Dicha alianza tuvo en el pasado como objetivos, desde la preservación del
continente de un hipotético ataque del régimen nazi, hasta la salvaguarda de la
presunta integridad política e ideológica de Latinoamérica ante la ideología
comunista.

Hoy tiene a uno de sus órganos fundamentales, la Junta Interamericana de Defensa


(JID) convertido en un órgano de la Organización de los Estados Americanos con
una composición más equitativa que otrora y presidido por militares
latinoamericanos. No obstante, la JID quedó privada de toda relevancia para la
defensa. Por ello, la forma de materialización de la garantía de seguridad otorgada
por la superpotencia hemisférica queda, en los hechos, librada a la exclusiva
decisión de ésta, dado que el TIAR carece hoy de órganos permanentes de de
planeamiento o de preparación de la defensa.

Cabe recordar que laJID fue oficialmente establecida el 30 de Marzo de 1942, con la
finalidad de preparar la defensa del hemisferio […] actuar como órgano de
preparación para la legítima defensa colectivas contra la agresión... (Novena
Conferencia Internacional Americana, Bogotá, 1948 […] preparar y mantener al día
el planeamiento militar de la defensa común (Cuarta Reunión de consulta de
Ministros de Relaciones Exteriores de las Repúblicas Americanas, Washington,
1951) (Garrié Faget, 1968). Un aspecto elocuente relativo a sus características era
que su presidente, secretario general, jefe del Estado Mayor multinacional y director
del Colegio Interamericano de Defensa debían pertenecer al país sede, es decir, a
Estados Unidos de América. Carecía de órganos de control político.

En el marco de las nuevas tendencias en materia de seguridad y defensa en


Latinoamérica que siguieron a la conclusión del Conflicto Este -Oeste, el
reglamento de la JID fue modificado en 1995 y finalmente sustituido por un
nuevo Estatuto (OEA, 2006).

La resolución aprobatoria de aquélestableció a la JID como […] una ―entidad‖ de la


Organización […] asignándole el Estatuto el propósito (2.1) de […] prestar a la OEA
y a sus Estados Miembros servicios de asesoramiento técnico, consultivo y

1075
educativo sobre temas relacionados con asuntos militares y de defensa en el
Hemisferio […] teniendo en cuenta […] las necesidades de los Estados más
pequeños, cuyo grado de vulnerabilidad es mayor frente a las amenazas
tradicionales y las nuevas amenazas, preocupaciones y otros desafíos[…].

La desaparición de los privilegios delpaís sede y como consecuencia la asunción de


la presidencia de la JID, por primera vez, el 20 de junio de 2006, de un militar
latinoamericano, entre otros cambios en materia de control civil, han tenido como
contrapartida la pérdida de relevancia del organismo desde el punto de vista de la
defensa, pasando de hallarse a cargo de la preparación y del planeamiento de la
defensa militar del continente, a hallarse encargado de prestar servicios de
asesoramiento en materia militar. ampliándose además la competencia de la JID
hacia materias ajenas a la defensa.

La alianza militar hemisférica486 tiene otras peculiaridades. A partir de la Presidencia


Kennedy y de la designación del Secretario de Defensa Robert McNamara (1961) la
ayuda militar brindada por Estados Unidos hacia América Latina, que hasta entonces
se había orientado a la venta de armamento pesado de rezago y el adiestramiento
para la guerra, cambió, orientándose hacia la preparación para la contrainsurgencia,
y el suministro casi exclusivo de armamento liviano a tal fin.487

El sustento del cambio era la idea, expresada por McNamara (1968, p.44) de que los
países latinoamericanos tenían una baja posibilidad de recibir ataques externos al
hemisferio, por lo que no necesitaban grandes fuerzas armadas convencionales, y
que era preciso concentrar las energías de tales países en la lucha contra la
insurgencia armada, que se asumía inspirada por la ideología comunista, y en el
desarrollo económico para contrarrestarla.

Concluido el Conflicto Este-Oeste e inaugurada por la Asamblea de la OEA de


Santiago (1991) una nueva era en las relaciones en materia de seguridad
hemisférica, el subsiguiente estudio de los nuevos conceptos en defensa y

486
Si bien la carta de la OEA tiene una cláusula de seguridad colectiva (arts. 28 y 29) éste mecanismo está sujeto
a cuestionamientos en cuanto a su eficacia similares a los del TIAR.
487
Con relación a este aspecto y entre múltiples fuentes, V. DE MINELLO, Nelson, El Sistema Interamericano
de Defensa, y de Horacio Veneroni, El empleo de la fuerza armada en el continente americano, en Cavalla
Rojas (1979) y de Veneroni (1971).

1076
seguridad estuvo centrado, particularmente a partir de la Tercera Cumbre de las
Américas (Quebec, 2001) y de la Declaración de Bridgetown (4 de junio de 2002), en
las necesidades de seguridad de los Estados insulares del Caribe, que incluían
aspectos económicos, sociales y de seguridad pública. Dicha tendencia se acentuó
a partir de los atentados del 11 de septiembre de 2001.

La Conferencia Especial de Seguridad de México, consagró un concepto de


seguridad de significativa amplitud, comprensivo, además de las amenazas
tradicionales, delas nuevas amenazas, preocupaciones y desafíos de la seguridad
que incluían, además del terrorismo y narcotráfico, los desastres naturales, la
delincuencia, el SIDA y otras enfermedades, la pobreza extrema, etc.488

Tal amplitud fue extendida a ladefensa, en la Reunión de Ministros de Defensa de


las Américas celebrada en Quito, Ecuador, del 16 al 21 de noviembre de 2004,
oportunidad en la que la Declaración respectiva versó sobre cuestiones de seguridad
pública y políticas, económicas y sociales.

Aunque en sucesivas Conferencias de Ministros de Defensa, el incremento de las


disidencias hizo que disminuyera la inclusión de aspectos ajenos a la defensa, lo
cierto es que la seguridad y defensa en el ámbito hemisférico continúan sujetas a
conceptos peculiares y de muy significativa amplitud que procuran desviar y
reenfocar el ámbito de la defensa a cuestiones de seguridad pública, enfermedades,
pobreza y otros problemas sociales; muy a diferencia de lo que sucede en Estados
Unidos y Canadá.

En realidad, permanece vigente el pensamiento antes expresado de McNamara y la


tendencia hacia la asignación en el ámbito hemisférico a las fuerzas armadas
latinoamericanas de misiones ajenas a la defensa, lo que dificulta en dicho ámbito
una cooperación eficaz para el desarrollo de auténticas capacidades de defensa
para los países latinoamericanos.

Entre las consecuencias de la ya referida Conferencia Especial de Seguridad de


México se encuentran la creación en la OEA (2005) de la Secretaría de Seguridad

488
Sobre los conceptos de defensa y seguridad en América Latina ampliar en UGARTE (2005).

1077
Multidimensional (SSM) bajo cuya dependencia funcionan la Secretaría Ejecutiva de
la Comisión Interamericana para el Control del Abuso de Drogas (CICAD), y el
Secretariado del Comité Interamericano Contra el Terrorismo (CICTE), así como el
Departamento de Seguridad Interna, creado en el año 2006 con el objeto de
promover, fortalecer y profesionalizar políticas públicas de seguridad ciudadana de
largo plazo, actuando como secretaría ejecutiva de las Reuniones de Ministros de
Seguridad Pública (MISPA) del Hemisferio.

Merece destacarse la creación, en el año 2011, del Departamento de Defensa y


Seguridad Hemisférica (DDSH), con el objeto de asistir a los Estados miembros en la
conducción de la política de defensa, apoyo a la capacitación, investigación y
actividades para la formulación de la defensa y seguridad hemisféricas, medidas de
fomento y confianza a la seguridad, entre otros aspectos. Pese a la importancia de
su cometido, fue suprimido a través de la Orden Ejecutiva 08-01 Rev. 5 (2012) Dicha
circunstancia es ilustrativa respecto de la pérdida de relevancia de la defensa dentro
del ámbito hemisférico.

Mayor persistencia y relevancia ha tenido la creación y funcionamiento del


Departamento de Seguridad Pública creado con el objeto de promover, fortalecer y
profesionalizar políticas públicas de seguridad ciudadana de largo plazo, actuando
como secretaría ejecutiva de las Reuniones de Ministros de Seguridad Pública
(MISPA) del Hemisferio.

Este último mecanismo fue iniciado en el 2008 en Ciudad de México –oportunidad


en la que fue emitido el Compromiso por la Seguridad Pública en las Américas,
documento del que cabe destacar la voluntad por parte de los participantes en la
cooperación contra el delito organizado, y el establecimiento de políticas de Estado
integrales en materia de seguridad pública.

Desde entonces, se han sucedido tres MISPA, cabiendo destacar el documento


Consenso de Santo Domingo sobre Seguridad Pública, producto de la MISPA II. De
MISPA III cabe poner de manifiesto la emisión de un documento relativo a
Institucionalización del Proceso MISPA que contuvo las normas para el
funcionamiento de dicho foro,así como su misión de foro hemisférico para el
intercambio de información y experiencias, y de fortalecimiento de la cooperación en

1078
materia de seguridad pública, aprobándose también un documento relativo a Gestión
de la Policía. También debe destacarse la creación del Observatorio de Seguridad
Pública de las Américas.

Este proceso no ha trascendido del intercambio de ideas y propósitos,


establecimiento de consensos, publicación de estadísticas, etc. habiendo perdido
impulso en los últimos tiempos.No obstante, ha sido convocada laIV MISPA, a
celebrarse los días 21 y 22 de noviembre de 2013 en Medellín, Colombia. En
definitiva, en la práctica, la cooperación concreta en el ámbito hemisférico está
limitada al limitado rol de la JID, los ya señalados ámbitos de terrorismo, tráfico de
drogas, y tráfico ilícito de armas livianas, y a una cooperación en el ámbito de la
seguridad pública que, hasta el momento, no ha excedido los aspectos antes
señalados.

3 Cooperación en seguridad pública y defensa nacional en el MERCOSUR


ampliado.

La experiencia de la cooperación en materia de seguridad pública en el


MERCOSUR ampliado se desarrolló sobre la base de las experiencias
europeas de los Tratados de Schengen (1990) y la Cooperación en Justicia y
Asuntos del Interior incluida en el Tratado de la Unión Europea.

Tiene lugar sobre la base de la Reunión de Ministros del Interior o funcionarios


de jerarquía equivalente del MERCOSUR (RMI) creada por Decisión N° 7/96 del
Consejo del Mercado Común.

Esta cooperación, como sucediera con la Unión Europea […] nació de dos
necesidades fundamentales: las derivadas de los problemas de seguridad
pública que surgieron del incremento en la facilidad de transporte de bienes y
personas –traducidos en un fuerte incremento del comercio intrazona- y el
surgimiento del terrorismo internacional en la región, derivado de los atentados
experimentados por la Embajada de Israel y la Asociación Mutual Israelí
Argentina (AMIA) (UGARTE, 2004).

1079
Quedó de ese modo constituido un ámbito institucionalizado de cooperación
subregionalen materia de seguridad pública, comprendiendo secciones nacionales
por cada país integrante del bloque, conformadas por los órganos competentes en
seguridad pública y los funcionarios especializados de cada país integrantes de la
Comisión Técnica -entre otros órganos- que actuaban como órgano de trabajo.

En dicho ámbito fueron suscriptos una serie de acuerdos instrumentando muy


variadas formas de cooperación en seguridad pública, destinados, previa su
aprobación por el Consejo del Mercado Común e incorporación al orden jurídico
interno de los respectivos países –en aquellos casos en que excedieran los aspectos
meramente operativos- a establecer normas destinadas a promover la cooperación
subregional en materia de seguridad pública. Centrada en el delito organizado
trasnacional, abarcó también otros aspectos.

Entre las medidas adoptadas en dicho ámbito, cabe señalar la conformación del
Sistema de Intercambio de Información de Seguridad del MERCOSUR (SISME)
dispuesto originariamente por el Acuerdo 1/98, perfeccionado por posteriores acuerdos.

Consiste en el establecimiento de un vínculo telemático para intercambio de información


de seguridad pública, con la creación por cada país de un nodo nacional para envío y
recepción de información a otros países a través del módulo gerenciador y, dentro de
cada país, por cada institución a través de los nodos usuario.

Se intercambia información sobre personas, vehículos, y armas, previéndose incluir


otros aspectos489. No obstante, preciso es reconocer que a diez y ocho años, aún
funciona de manera parcial, poseyendo conexiones operativas Argentina, Uruguay,
Brasil, Chile y de modo más limitado Paraguay, mientras que la consulta directa on
line sólo era posible en materia de vehículos entre Argentina, Uruguay, Chile y
Brasil, registrándose interrupciones en el funcionamento (MERCOSUL, 2012).

Otro acuerdo de fundamental importancia fue el actualmente llamado Plan General


de Cooperación y Coordinación Recíproca para la Seguridad Regional en el
MERCOSUR y en el MERCOSUR, Bolivia y Chile (1998) hallándose en vías de

489
Actualmente se rige por la Decisión del Consejo del Mercado Común (MERCOSUR) Nº 36/2004,
complementada por el Reglamento aprobado en la Reunión de Ministros del Interior (MERCOSUR) Nº 03/2007.

1080
ratificación, su sucesor Acuerdo Marco sobre Cooperación en Materia de Seguridad
Regional.490

El referido Plan comprendió la previsión de múltiples acciones combinadas entre las


instituciones policiales, fuerzas de seguridad, y otros organismos, agrupadas por
ámbitos: Delictual, Ilícitos Ambientales, Migratorio, Tráfico Material Nuclear y/o
Radiactivo, Capacitación, y Terrorismo. En lo relativo alÁmbito Delictual, se
encontraba subdividido en Narcotráfico, Tráfico de Personas, y Tráfico de Migrantes
Ilegales, Contrabando, Robo/Hurto de Automotores, Crimen Organizado, y Delitos
Económicos Financieros.

Cabe recordar también que en materia de capacitación policial, el Acuerdo RMI N°


15/00, aprobado por Decisión N° 20/00 del Mercado Común, conformó el Grupo
Especializado ‗Capacitación‘, aprobándose posteriormente (2000) el Reglamento
Interno del Centro de Coordinación de Capacitación Policial del MERCOSUR,
destinado entre otros aspectos a coordinar y difundir la oferta educativa policial
ofrecida por cada Estado parte al resto.

En lo relativo al terrorismo, cabe destacar la constitución del Foro Especializado


Terrorismo (FET), ámbito institucionalizado de cooperación en inteligencia, con
participación de instituciones policiales y organismos de inteligencia, comprendiendo
reuniones periódicas, intercambio de información, realización de evaluaciones de
situación en materia de terrorismo y delitos conexos, entre otros aspectos. Incluye
asimismo el intercambio de información por la red RESINF.

La importancia de estos mecanismos excede notoriamente alMERCOSUR, dado


que además de Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay, lo integran también –
aunque en muy diversos grados- Venezuela, Chile, Bolivia, Perú, Ecuador y
Colombia.

Pese a los progresos realizados en materia de cooperación en seguridad pública en el


MERCOSUR, cabe señalar que muchos de los acuerdos celebrados no han entrado en
vigencia, por no haber sido incorporados al orden jurídico interno de sus países,
mientras que otros no reciben acabado cumplimiento.

490
Hoy la totalidad de los países suramericanos, excepción hecha de las Guayanas.

1081
En lo relativo a la cooperación en materia de defensa en el MERCOSUR, cabe señalar
que no trascendió de medidas de fomento de la confianza y la seguridad –entre las que
se destaca la Declaración Política del MERCOSUR, Bolivia y Chile como zona de paz-
491
importantes y ejercicios combinados, mecanismos institucionalizados de reuniones
periódicas entre ministros y altos funcionarios entre diversos países de la subregión, la
participación coordinada de los países integrantes en la MINUSTAH (a partir de 2004),
etc. También -iniciativas binacionales- la creación de la Fuerza de Paz Binacional
Combinada Cruz del Sur entre Argentina y Chile y la Compañía Binacional Combinada
de Ingenieros Militares ―Libertador General San Martín‖ para operaciones de paz, entre
Argentina y Perú.

Como habrá podido advertirse, la cooperación en defensa y seguridad pública en el


MERCOSUR ampliado tuvo lugar dentro de los respectivos ámbitos, protagonizada
por las instituciones pertenecientes a cada uno de ellos.

4 Cooperación en defensa y seguridad pública en la Comunidad Andina.

Características sustancialmente diversas tuvo la cooperación en seguridad


pública en la CAN, donde estuvo centrada en determinados delitos,
fundamentalmente narcotráfico y tráfico de armas; confundiéndose las áreas
de defensa y seguridad pública.

Estuvo estructurada sobredelitos de interés subregional como el narcotráfico, a


través de la Decisión Nº 505 (22-6-2001) Plan Andino de Cooperación para la Lucha
contra las Drogas Ilícitas y Delitos Conexos.

Estableció un mecanismo de cooperación referido al narcotráfico y delitos conexos,


que comprendió no sólo a las instituciones policiales y fuerzas de seguridad, sino
también a fuerzas armadas, organismos de inteligencia y todo otro órgano de
seguridad del Estado, incluyendo también a órganos judiciales y al Ministerio
Público, con énfasis en el intercambio de información y la producción de inteligencia.

491
Efectuada en Ushuaia, el 24 de julio de 1999.

1082
También cabe destacar laDecisión N° 552 (24 y 25-6-2003) Plan Andino para la
Prevención, Combate y Erradicación del Tráfico Ilícito de Armas Pequeñas y Ligeras
en todos sus aspectos (24 y 25-6-2003).

Se asignó al Consejo Andino de Ministros de Relaciones Exteriores el carácter de


órgano responsable de la definición, coordinación y seguimiento de la Política
Comunitaria de Seguridad Andina y, en ese marco, del Plan precedentemente
referido; previéndose que […] se reunirá, cuando lo considere pertinente, con sus
homólogos de Defensa […].

También se estableció que […] 2. El Grupo de Alto Nivel en materia de Seguridad y


Fomento de la Confianza, de conformidad con lo establecido por el ―Compromiso de
Lima‖, será el órgano ejecutivo de la Política Comunitaria de Seguridad Andina y, en
ese marco, del presente Plan.

Cabe consignar que elCompromiso de Lima –Carta Andina para la Paz y la


Seguridad- (17 de junio de 2002)constituyó un acuerdo relativo fundamentalmente a
aspectos de seguridad externa, comprendiendo aspectos de limitación y control de
los gastos destinados a la defensa externa, instauración de una zona de paz, si bien
comprendió también, aspectos de seguridad pública, como un compromiso regional
en la lucha contra el terrorismo, como también el de […] continuar combatiendo las
actividades del crimen transnacional, especialmente las vinculadas al terrorismo,
como son: las drogas ilícitas, el lavado de activos y el tráfico ilícito de armas[…].

Cabe recordar asimismo laDecisión 587 (10-7-2004)sobre Lineamientos de la


Política de Seguridad Externa Común Andina, que pese a estar referida
fundamentalmente a cuestiones de seguridad externa como su nombre lo indica,
incursionó en múltiples aspectos de seguridad pública antes mencionados, tales
como la Decisión 505 y y la Decisión N° 552.

Cabe destacar también la existencia de Decisiones sobre cooperación en otros


aspectos puntuales de seguridad pública.

Habremos de caracterizar en consecuencia a la cooperación en seguridad en la


CAN como estructurada en torno a determinados delitos, considerados de interés
regional, y a cooperación en aspectos puntuales. Desde otro punto de vista, incluyó

1083
bajo la conducción de órganos de relaciones exteriores y defensa, tanto aspectos de
defensa como de seguridad pública-

Cabe destacar que un aspecto de la cooperación en seguridad en la CAN –la


Comunidad Andina de Inteligencia Policial (CAIP)- constituyó el núcleo inicial de la
Comunidad Latinoamericana y del Caribe de Inteligencia Policial(CLACIP), órgano
de cooperación en materia de inteligencia policial constituido por instituciones
policiales, organismos de inteligencia criminal y en menor grado, organismos de
inteligencia nacional, sin conducción política ni participación oficial de sus
respectivos gobiernos, ni respaldo por Tratados o acuerdos formales de sus
gobiernos, siendo sus miembros pertenecientes a países de América Latina y el
Caribe; y de la Comunidad de Policías de América (AMERIPOL), organismo de
cooperación en seguridad pública e inteligencia, constituido por instituciones
policiales de países latinoamericanos del Caribe y de Estados Unidos de América,
también carente de conducción política e instrumentación por acuerdos
internacionales. Ambos organismos –CLACIP está integrada a AMERIPOL- tienen la
presencia como observadores de representantes de instituciones policiales y otros
organismos oficiales no suramericanos, recibiendo también apoyo de ese origen,
teniendo su sede permanente en Bogotá.

En materia de defensa, la cooperación en la CAN está referida a medidas de


fomento de la confianza y la seguridad, en el marco de los ya referidos Compromiso
de Lima y Decisión 587, debiéndose destacarse el Establecimiento y Desarrollo de la
Zona de Paz Andina.492

5 Cooperación en UNASUR.

El surgimiento de laUnión de Naciones Suramericanas UNASUR, creada el 23 de


mayo de 2008 con el propósito, entre otros, de […] construir, de manera participativa
y consensuada, un espacio de integración y unión en lo cultural, social, económico y
político entre sus pueblos (UNASUR,2008, art. 2)[…] e integrada por los doce países

492
CAN,Declaración de San Francisco de Quito,

1084
independientes de América del Sur, constituyó una novedad significativa en el marco
de la integración suramericana.

Implica fundamentalmente la confluencia de la CAN, y del MERCOSUR,


manteniendo no obstante su funcionamiento los mecanismos de integración
subregional referidos.

En este nuevo proceso de integración sudamericana ha surgido el Consejo de


Defensa Suramericano (CDS) como […] instancia de consulta, cooperación y
coordinación en materia de Defensa […] (UNASUR, 2008, artículo 1°).

El CDS, ha avanzado través de iniciativas referidas a intercambio de ideas y


conocimientos, medidas de confianza mutua, y búsqueda de cooperación en
aspectos puntuales; tratando de superar la diversidad de conceptos y enfoques
existentes en Suramérica.

Cabe destacar que elCDS no constituye una alianza militar.

Sus objetivos, modestos, no son por ello menos trascendentes. Se trata de [...]
Consolidar a América del Sur como una zona de paz [...] Construir una identidad
suramericana en materia de defensa […] y […] Generar consensos para fortalecer la
cooperación regional en materia de defensa. (UNASUR, 2008, articulo 4).

Cabe señalar que elCDS es la primera oportunidad en que los países suramericanos
–sin la presencia de Estados Unidos de América- se sientan a hablar acerca de su
defensa. El accionar delCDS ha tenido lugar en el marco de sus sucesivos Planes
de Acción: 2009-2010, 2010-2011, 2012, y 2013 sobre cuatro ejes fundamentales:
Políticas de Defensa, Cooperación militar y acciones humanitarias, Industria y
tecnología para la defensa, y Formación y capacitación.

Transcurridos casi cinco años, cabe destacar tanto la modestia y lentitud de los
avances, como la creciente pérdida de relevancia de los asuntos tratados, y las
demoras en la concreción de los asuntos en curso.

Entre los logros alcanzados en el primero de los ejes nombrados, se encuentra la


creación del Centro de Estudios Estratégicos de la Defensa del CDS, (10 de marzo
de 2009) con el propósito de …generar un pensamiento estratégico a nivel regional,

1085
que coadyuve a la coordinación y la armonización en materia de políticas de
Defensa en Suramérica (UNASUL, 2010).

Instalado efectivamente en mayo de 2011, elCEED-CDS ha producido interesantes


documentos493y actividades detalladas en sus Planes de Trabajo para 2012 y 2013,
aunque exhibe realizaciones limitadas respecto de algunos de sus objetivos.

En otros aspectos, elCDS exhibe líneas de acción que se han mantenido a lo largo
de los años, con realizaciones parciales, tales como la transparencia en la
información sobre gastos e indicadores de defensa, la definición de enfoques
conceptuales de la defensa, y la identificación de los factores de riesgo y amenaza.
Cabe destacar que la realización de ejercicios combinados, sobre desastres
naturales u operaciones de paz, ha tenido lugar exclusivamente sobre la carta,
circunstancia que evidencia el limitado compromiso de medios y .gastos. Una
propuesta de interés, consistente en el establecimiento de un mecanismo de
consulta, información y evaluación inmediata ante situaciones de riesgo para la paz
de nuestras naciones… contenida en el Plan 2010-2011, se reiteró en el Plan 2012,
para desaparecer en el 2013, sin concreción.

En materia de industria y tecnología para la defensa, aspecto en el que parecía


haber un amplio camino de cooperación, existen exclusivamente dos proyectos: la
producción de un avión de entrenamiento básico, promovido por Argentina, y de
aeronaves no tripuladas, por parte de Brasil. No parece cercana la fecha en que se
concrete su producción.

Probablemente ha sido el aspecto de capacitación el que ha registrado más


avances, a través de la realización de cursos destinados a altos funcionarios de
defensa y de civiles en defensa.

Aún reconociendo las limitaciones de la misión y las características del CDS, el


balance a cinco años resulta inevitablemente escaso. Pareciera que los países
latinoamericanos continúan pensando su defensa de forma individual o aún con
aliados extrarregionales.

493
Cabe destacar especialmente los informes relativos a los conceptos en defensa y seguridad en Suramérica y al
Crimen Organizado Trasnacional, que pueden obtenerse en su website http://www.ceedcds.org.ar/Espanol/05-
DocInf/05-01-Docs.html (acc. 10 jun 2013).

1086
Tal parece el caso de Colombia, que suscribió con la NATO-OTAN un Acuerdo sobre
Seguridad de la Información (25 de junio de 2013) para explorar futuras consultas y
cooperación relativas a la seguridad, Según informó la NATO, el acuerdo […]
constituye un primer paso hacia la cooperación en el ámbito de la seguridade
(NATO, 2013)

Un aspecto de UNASUR que reviste interés es la creación del Consejo


Suramericano en materia de Seguridad Ciudadana, Justicia y Coordinación de
Acciones contra la Delincuencia Organizada Transnacional (CSC) (UNASUR, 2012)
como instancia […] de consulta, coordinación y cooperación […] en materia de
seguridad ciudadana, justicia y acciones contra la Delincuencia Organizada
Transnacional…

Cabe destacar del nuevo Consejo la aprobación de su Plan de Acción494, que


incluyó mecanismos de cooperación judicial, de prevención y estudio del delito, y de
prevención y sanción al delito organizado, cabiendo especialmente destacar las
relativas a la creación de un Observatorio Suramericano de Seguridad Ciudadana y
especialmente de generar un sistema suramericano de intercambio de información e
inteligencia criminal.

6 Conclusiones

Reconociéndose el estancamiento del CDS, se ha afirmado que ello obedece


fundamentalmente a la influencia de Estados Unidos de América y de otras
potencias extrarregionales (MIJARES, 2011, p.11-46).

Si bien tal factor puede influir, a nuestro juicio la principal dificultad debe buscarse
en la falta de auténtica voluntad política por parte de los protagonistas,
especialmente después que varios de los principales impulsores dejaron la
escena presidencial.

Aunque el CDS no fue concebido como una alianza militar, ni sus bases fueron las de
una alianza operativa, parece evidente que su creación y evolución debían
razonablemente derivar en una intensa cooperación, particularmente en los terrenos de

494
Realizada en la III Reunión de la Instancia Ejecutiva del referido Consejo, en Lima, 20 y 21 de mayo de 2013.

1087
la industria y tecnología de la defensa, y en manifestaciones más avanzadas de
coordinación, como la constitución de un órgano colectivo de seguimiento de la
situación internacional y prevención y alerta ante crisis, y la creación de un cuerpo
combinado para operaciones de paz entre otras posibilidades..

La temática del presente seminario evidencia la preocupación de Brasil por la


defensa de la Amazonia. Constituye una manifestación de la necesidad de cada país
de defender un valioso patrimonio de recursos naturales que puede ser codiciado
por otros Estados o, simplemente, la posibilidad de decidir qué empleo habrá de dar
a tales recursos, sin injerencia externa.

La preservación de tales recursos requiere perfeccionar la integración suramericana


agregándole las dimensiones de la defensa, para protegerse eficazmente de
cualquier agresión extrasuramericana, y, por otra parte, de la seguridad pública,
para fortalecer la cooperación contra el delito

Parece evidente que el CDS con su integración y características, no podrá aportar


nada significativo a la defensa de la Amazonia y de los restantes recursos naturales
suramericanos.

Tampoco podrá hacerlo un sistema interamericano que persiste en el propósito de


asignar las Fuerzas Armadas latinoamericanas roles ajenos a la defensa, confiando
tácitamente a las Fuerzas Armadas estadounidenses el rol de defensa de todo el
continente americano ante una agresión externa. Esto funcionará sólo si la defensa
del país atacado no contraría el interés nacional estadounidense, como se pudo
advertir claramente en Malvinas (1982).

Mientras siempre cabrá mantener en vigencia el CDS, podría instrumentarse, de ser


posible en el ámbito de UNASUR una cooperación reforzada entre aquellos de sus
miembros que se muestren dispuestos a ello, con miras a construir una integración
en materia de defensa, que permanecería abierta a todos los países suramericanos
que compartan tal objetivo.

La instrumentación de esta integración podría partir, como lo propusimos para el


MERCOSUR hace unos años (UGARTE, 2004)de un órgano de coordinación de las
políticas exterior y de defensa, con apoyo de una estructura multinacional permanente,
y bajo dependencia de este órgano, una Unidad de Planificación Política y Alerta
Temprana formada por funcionarios y especialistas designados por los participantes,

1088
para la observación y análisis –con la cooperación de los organismos de inteligencia
estratégica de los participantes- de la situación internacional determinando riesgos,
amenazas y oportunidades y brindando alerta temprana.

La constitución de una fuerza militar combinada para operaciones de paz a


disposición de la Organización de Naciones Unidas, similar a la argentino-chilena
Cruz del Sur, pero ahora conformada por todos los participantes, constituiría el
primer paso de una cooperación acentuada, basada en el compromiso de los
participantes de contribuir proporcionalmente a la defensa común. Se procedería así
a la construcción de una identidad suramericana en defensa, cooperante con la paz
y –sin perjuicio de su propia finalidad- con el sistema hemisférico.

En el ámbito de la seguridad pública, donde el respectivo Consejo Suramericano


parece decidido a avanzar hacia una cooperación eficaz y donde se cuenta con el
interesante antecedente de la Reunión de Ministros del Interior del MERCOSUR, hoy
extendida a la casi totalidad de Suramérica, se tendería hacia una integración en
dicho ámbito extendiendo y profundizando dicha experiencia, superando sus
actuales limitaciones, incluyendo la plena vigencia y eficacia del SISME y
tendiéndose a la creación de un organismo de inteligencia criminal multinacional, a
semejanza de EUROPOL, con los adecuados controles que posee su modelo.

En definitiva, han pasado más de dos décadas desde la conclusión del conflicto
Este-Oeste y casi un período similar desde la democratización de los países
latinoamericanos. Dentro de ellos, UNASUR y elCDS representan la aspiración de
los países suramericanos de construir una integración económica con contenido
político y una cooperación en defensa; pero en este último aspecto, el avance se
muestra dificultoso por la diversidad de orientaciones políticas e intereses
estratégicos de los participantes. Para superar esta situación, estas líneas procuran
explorar posibilidades.

Referências Bibliográficas

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CAVALLA ROJAS, Antonio (Org.). Geopolítica y Seguridad Nacional en América.


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1089
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UNASUR, adoptada en la Cumbre Extraordinaria de UNASUR en Costa do Sauípe,
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___________UNASUR/CJEG/DECISIÓN/Nº14/2012. Lima, 29 de noviembre de
2012.
VENERONI, Horacio. Fuerza militar interamericana. Buenos Aires: Periferia, 1971.

1090
COOPERAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA INDÚSTRIA DE MATERIAL
DE DEFESA NA AMÉRICA DO SUL: UMA ANÁLISE SOBRE O PAPEL DO
CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO

José Augusto Zague495

1 Introdução

As mudanças no sistema internacional, resultado da reconfiguração do mundo pós


Guerra Fria, os ataques terroristas de setembro de 2001 nos Estados Unidos e a
crise econômica global iniciada em 2008, permitiu a afirmação de novos atores no
contexto internacional e conferiu maior peso ao multilateralismo, com o
robustecimento de iniciativas como o G-20. No escopo das transformações, as
nações sul-americanas, convergiram no objetivo de constituir um organismo
multilateral, integrado por todos os países do subcontinente.

O avanço nos processos de integração política, econômica e o fortalecimento da


democracia na América do Sul, par e passo a um cenário internacional permeado
por conflitos no Oriente Médio e Ásia, á partir do novo milênio, determinou um maior
distanciamento dos Estados Unidos em relação a América do Sul, ocupado com os
conflitos no Iraque e Afeganistão, permitindo o fortalecimento das iniciativas de
cooperação e integração regional e enfraquecendo projetos como a Área de Livre
Comércio das Américas (ALCA), reedição ampliada do arranjo político-econômico,
implementado na década de 1990 na América do Norte.

O momento favorável para novas iniciativas de integração na América do Sul,


propiciou a criação em 2008, da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), que
congrega os 12 países do subcontinente. Em seu Tratado Constitutivo a organização
define como objetivos ―Artigo 2 - [...] construir, de maneira participativa e
consensuada, um espaço de integração e união no âmbito cultural, social,
econômico e político [...].‖ (UNASUR, 2008a, online).Um componente distintivo da

495
Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional - GEDES–Unesp.

1091
Unasul, frente às demais iniciativas de integração na América do Sul, é a
descentralização das suas instâncias deliberativas, com ênfase nos conselhos
ministeriais voltados para o desenvolvimento, energia, educação, cultura,
economia,finanças e defesa. Na estrutura da Unasul, com destacada atuação do
governo brasileiro, foi criado em 2009 o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS)
(UNASUR, 2008b, online, tradução nossa), segundo o seu Estatuto ―[...] uma
instância de consulta, cooperação e coordenação em matéria de defesa [...].‖

O artigo 3º do Tratado Constitutivo do CDS (UNASUR, 2008a), consagra como um


dos princípios da organização ―[...] promove a redução das assimetrias existentes
entre os sistemas de defesa dos Estados membros da Unasul como forma de
fortalecer a capacidade da região no campo da defesa.‖ Com a criação do CDS, o
subcontinente passou a contar com um organismo multilateral capaz de coordenar
em âmbito regional, iniciativas para promover o intercâmbio de conhecimento e
capacidades na indústria de defesa, com o objetivo de impulsionar novos projetos
para o setor.

A indústria de defesa é um setor que depende da ação do Estado para o seu


desenvolvimento. A necessidade de dotar as forças armadas de equipamentos
atualizados e que lhes garanta o máximo de autonomia e meios dissuasórios
capazes de assegurar a soberania frente aos demais estados, são alguns dos
argumentos utilizados pelos governos, ao reservar parte do orçamento público para
o fomento da indústria de defesa. A ação do Estado no fomento à indústria de
defesa, pode ser dividida em cinco aspectos: 1. financiamento a pesquisa,
desenvolvimento e produção de material de defesa; 2. obtenção de tecnologia por
meio da cooperação com outros Estados, repassando a mesma para a indústria de
defesa; 3. compra da produção da indústria de defesa; 4. utilização da burocracia do
Estado, notadamente os canais diplomáticos, para fortalecer as vendas ao exterior e
5. criação de mecanismos para equalizar os custos de produção ao preço da
concorrência e no financiamento às vendas externas através de linhas de crédito
aos compradores.

Os mecanismos de indução ou participação direta do Estado no fomento á indústria


de defesa, ainda que encontre para a sua implementação, resistência, consequência

1092
natural da correlação de forças em regimes democráticos, não se compara a
implementação de tais mecanismos no interior de organismos multilaterais,
constituídos por distintas vozes e visões.

No percurso do CDS desde a sua criação em 2009, o tema indústria de defesa, é


parte integrante dos debates do organismo. Contudo, as ações direcionadas ao
setor, são ainda incipientes e os programas e projetos estão em estágio inicial de
formulação ou implementação. Cabe ressaltar, que o CDS inclui em seu
planejamento anual, um eixo específico para o setor de Indústria e Tecnologia de
Defesa. Os programas abrangem a cooperação técnica, intercâmbio e, em 2012,
decidiu-se por iniciar os estudos para o desenvolvimento de programas para a
produção de um avião de treinamento básico e um sistema de aviões aéreos não
tripulados, que serão analisados de maneira mais detida neste trabalho.
Compreender os mecanismos de cooperação propostos pelo CDS no âmbito da
indústria de defesa e confrontá-los com a realidade sul-americana, no que concerne
aos gastos em defesa, exportação e importação de material de defesa e absorção
de tecnologia, o que será desenvolvido ao longo deste trabalho, permite avançar em
um questionamento: a iniciativa do Conselho de Defesa Sul-Americano ao propor
projetos, por meio do eixo Indústria e Tecnologia de de Defesa, pode ser o embrião
para o desenvolvimento de uma indústria regional de defesa?

2 Indústria e Tecnologia de Defesa

Analisar as primeiras iniciativas do CDS no campo da cooperação para a produção


de material de defesa, objetivo precípuo deste trabalho, exige antes, compreender
os mecanismos utilizados pelo organismo regional na articulação entre os seus
membros, considerando os documentos produzidos pela Instância Executiva durante
as reuniões anuais.

As diretrizes elaboradas pelo CDS e aprovadas consensualmente por seus


membros, estão divididas nos seguintes eixos temáticos: 1. Políticas de Defesa; 2.
Cooperação Militar , Ações Humanitárias e Operações de Paz; 3. Indústria e
Tecnologia de Defesa e 4. Formação e Capacitação. O documento denominado

1093
Plano de Ação (PA) define um cronograma de trabalho e o país responsável e os
corresponsáveis, se for caso, no desenvolvimento das ações propostas. O
primeiro PA foi divulgado em março de 2009, no Chile, durante a reunião dos
ministros da defesa do CDS (CONSEJO DE DEFENSA SURAMERICANO DE LA
UNASUR, 2009, online).

Entre 2009 e 2011, as deliberações no âmbito do CDS sobre o eixo 3 ―Indústria e


Tecnologia de Defesa‖ do PA, tiveram por objetivo a formulação de uma política
regional para a indústria de defesa. Para citar um dos objetivos, o PA 2010
propôs o desenvolvimento de um sistema integrado de informações sobre
indústria e tecnologia de defesa, sob coordenação do Equador e
corresponsabilidade da Venezuela. As propostas são discutidas no âmbito de
grupos de trabalho, integrados por especialistas civis e militares e encaminhadas
para a aprovação durante as reuniões anuais com a presença dos ministros da
Defesa (UNASUR, 2010/2011).

As deliberações propostas pelos países membros, no eixo dedicado a indústria de


defesa nos PA do CDS, podem ser divididas em duas áreas: diagnóstico
eplanejamento. O diagnóstico é obtido por meio das discussões em grupos de
trabalho que investigam a situação da indústria de defesa na América do Sul no
âmbito do CDS. Um exemplo, é a deliberação contida no PA2010/2011 do CDS que
propõe: Unasur (2010/2011, p. 3, tradução nossa)

Fase 3 [...] 3.b Estudar a possibilidade de criar um Centro de Investigação e


Desenvolvimento Tecnológico e Cooperação Industrial do CDS.‖ Ainda no PA
2010/2011 é possível identificar deliberação com características de
planejamento, para segundo a Unasur (2010/2011, p. 3, tradução nossa)
―Fase 1 [...] 3.d Articular um calendário anual das feiras, seminários, e outros
eventos sobre indústria e tecnologia de defesa que se desenvolvem na região
[...].

Em 2012, o CDS deliberou pela primeira vez, sobre projetos de cooperação regional
com objetivo de produzir material de defesa. O primeiro projeto tem por objetivo
segundo a Unasur (2012a, p. 3, tradução nossa) ―3.d Criar um grupo de
especialistas que, em um prazo de seis meses, apresentará um relatório de
viabilidade com vistas ao desenho, desenvolvimento e produção regional de um

1094
avião de treinamento básico [...].‖ No segundo projeto, foi decidido segundo a
Unasur (2013, p. 4, tradução nossa) ―3.b elaborar um estudo de viabilidade para o
desenho, desenvolvimento e produção regional de um sistema de aviões não
tripulados [...].‖ A Argentina foi escolhida como responsável pelo projeto do avião de
treinamento e Chile, Equador, Peru, Brasil e Venezuela, corresponsáveis. No
segundo, o desenvolvimento de um sistema de veículos aéreos não tripulados
(VANTs), o Brasil, que propôs o projeto, tornou-se o único responsável.

O PA 2012 marca uma inflexão nas diretrizes do CDS ao apresentar propostas


para a produção de material de defesa. No decorrer de 2012 e inicio de 2013,
seguindo o cronograma previsto no PA2012, o grupo de trabalho especial liderado
pela Argentina, encarregado do desenho e projeto do avião de treinamento básico,
apresentou um programa para as diversas etapas necessárias ao desenvolvimento
da aeronave. Em abril de 2013 durante a Latin American Aero Defense (LAAD), feira
internacional de defesa realizada no Rio de Janeiro, os países membros do CDS
firmaram um compromisso por meio de documento, que criou o comitê consultivo
para gestão do projeto e montagem do avião de treinamento básico. Durante a 8ª
Reunião da Instância Executiva do CDS, da qual participaram representantes dos 12
países membros da Unasul, realizada em maio de 2013, em Lima no Peru, país que
ocupa a presidência pro-tempore do organismo, houve o anuncio do cronograma
para o desenvolvimento e produção da aeronave, batizada de Unasul I. Segundo
informações da delegação argentina que coordena o programa, a aeronave deverá
ter9.3 metros de envergadura e 12.8 metros de cumprimento, impulsionada por
motor a pistão e será empregada na instrução e treinamento de pilotos. O primeiro
protótipo deverá ser apresentando em 2016, com previsão para a produção em série
á partir de 2017. Na reunião em Lima o CDS definiu que o programa, coordenado
pela Argentina, contará com a participação de todos os membros do organismo, no
desenho ouprodução dos componentes e partes da aeronave. Os custos para o
desenvolvimento da aeronave e produção do protótipo, serão divulgados após o
grupo de trabalho definir a divisão das atribuições entre os países membros, no que
diz respeito à produção dos componentes e tecnologia empregada no processo de
fabricação (ANDINA, 2013, online).

1095
Outra deliberação do CDS é o projeto para o desenvolvimento de um sistema
regional de veículos aéreos não tripulados (VANTs), parte de um programa sul-
americano de monitoramento, que utilizará a estrutura do Centro de Gestão e
Operações do Sistema de Proteção da Amazônia (Cesipan), sediado em Brasília
(UNASUL..., 2012, online).

Ao contrário do programa de produção do avião de treinamento básico que avançou


com rapidez, o PA 2013 definiu o primeiro semestre de 2013 como data limite para a
apresentação do projeto contendo o desenho, desenvolvimento, cronograma e
financiamento da produção do sistema de VANTs. Outra alteração no PA 2013 em
relação ao ano anterior, é que o CDS definiu que o grupo de trabalho que
desenvolve o projeto, até então restrito ao Brasil, terá Argentina, Chile e Venezuela,
como corresponsáveis (UNASUR, 2013).

A cooperação no âmbito do CDS da Unasul, no segmento da indústria de defesa,


ainda que embrionário e restrito á projetos básicos como o avião de treinamento, é
promissora. A produção de um avião de treinamento básico, conta com a vantagem
que países como o Brasil, Chile e Argentina, possuem experiência na construção
aeronáutica. O Brasil com as Indústrias Neiva, depois incorporada pela Embraer,
produziu os treinadores Basico T-23 Uirapuru e T-25 Universal e a Embraer o T-27
Tucano. O Chile e a empresa aeronáutica estatal Enaer produz o treinador básico T-
35 Pilán e a Argentina por meio da FAdeA, produziu as aeronaves de ataque IA-
58Pucará e produz o treinador avançado IA-63 Pampa. Para haver cooperação,
cabe aos países detentores de conhecimento e experiência na construção
aeronáutica, transferir a tecnologia do desenho, desenvolvimento e produção da
aeronave de treinamento básico da Unasul aos grupos de trabalho encarregados do
projeto. Para alcançar representatividade, o programa necessita ter na composição
dos grupos de trabalho, integrantes de todos os países interessados em participar
da fabricação de partes e componentes e não apenas aqueles definidos nos PA.
Disseminar o conhecimento e ampliar a capacidade de um número maior de países
do CDS incorporarem tecnologia para produzir sistemas de armas, fortalece a
cooperação em defesa e a integração por meio da Unasul, e ao contrário do que
sugere a primeira vista, compartilhar tecnologia em um mundo em que a produção
de partes e componentes é cada vez mais segmentada, cria as condições para
diminuição de custos e aumento da sinergia entre cadeias produtivas. Ao mesmo

1096
tempo, abre o horizonte para desenvolver uma cooperação em diversos setores da
indústria de defesa.

Outro projeto vinculado a indústria de defesa em desenvolvimento no CDS da


Unasul, a produção de VANTs no âmbito de um programa regional de
monitoramento coordenado pelo Brasil, aponta para duas possibilidades: 1.
desenvolver um novo veículo áereo não tripulado com caracteristicas apropriadas ao
projeto de monitoramento e 2. utilizar a plataforma do VANT Falcão de fabricação
brasileira. Como coordena o grupo de trabalho encarregado do projeto dos VANTs
no CDS, o governo brasileiro poderá sugerir à Harpia, empresa controlada pela
Embraer e responsável pelo desenvolvimento e produção da aeronave, adaptações
no VANT para atender as necessidade da Unasul e oferecer um pacote que garanta
acesso a tecnologia e possibilidade de fabricação de partes e componentes pelos
países parceiros. A diminuição do custo na produção e o número de encomendas é
um atrativo para tornar viável um arranjo produtivo que incorpore os países vizinhos.
Por outro lado, o governo brasileiro, pode oferecer aos países membros do CDS, a
possibilidade de cooperação na utilização de algumas funcionalidades do Sistema
Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON) em desenvolvimento pelas
forças armadas brasileiras. Como plataforma tecnológica constituída por sensores,
radares, satélites e VANTs, o Sisfron poderá ser utilizado para a cooperação no
monitoramento e vigilância das fronteiras entre o Brasil e os seus vizinhos. Como os
VANTs são plataformas essenciais para a vigilância das fronteiras, a fabricação das
aeronaves em um consorcio liderado pelo CDS, pode propiciar ações mais efetivas
contra o tráfico de entorpecentes e outros ilícitos, notadamente na região amazônica
e ampliar a demanda por estes equipamentos (CCOMGEX, 2012, online).

3 Cooperação e Assimetrias

Estabelecer acordos de cooperação em espaços assimétricos, amplifica as


dificuldades para se construir um processo consensual, que contemple a diversidade
de interesses e as disparidades orçamentárias no setor de defesa. Em uma relação
assimétrica, a confiança é um fator essencial para o estabelecimento de relações
cooperativas, notadamente no bojo de organizações internacionais, em que a ação
política é dependente do consenso.

1097
No contexto da Unasul e do CDS, o Brasil, por dispor de um polo da indústria de
defesa, têm importância fundamental para o sucesso das iniciativas do organismo
multilateral, fortalecendo a cooperação interregional e dissipando as desconfianças
sobre um pretenso projeto hegemônico do país em relação a América do Sul.

As disparidades geográficas e econômicas, diferenças nos gastos com defesa e


desenvolvimento tecnológico entre os membros do CDS, são imperativos que
exigem mecanismos de compensação no sentido de perenizar uma estratégia
compartilhada de cooperação, fundada no intercâmbio técnico-cientifico,
financiamento á pesquisa e desenvolvimento de produtos. Ainda que incipiente, a
cooperação entre os países membros do CDS no desenvolvimento de produtos
da indústria de defesa, sinaliza uma ação cooperativa que no médio e lon go
prazo, havendo continuidade, poderá assegurar o fornecimento de uma
importante gama de equipamentos, resultando em maior autonomia e reforçando
os meios dissuasórios.

A par dos aspectos técnico-científicos necessários para avançar a cooperação no


segmento da indústria de defesa e de variáveis econômicas, que serão revisitadas
ao longo deste artigo, cabe uma análise acerca do dispêndio orçamentário das
forças armadas sul-americanas na área da defesa, incluindo o material de defesa
utilizado pelos membros do CDS.

Segundo o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), instituição


sediada na Suécia, dedicada ao estudo internacional sobre a defesa, em relatório
referente a 2012, os gastos totais com defesa na América do Sul alcançaram a cifra
de US$ 65,93 bilhões. Os gastos em defesa na América do Sul tiveram um
acréscimo de US$ 18 bilhões nos últimos dez anos, evoluindo de US$ 47,7 bilhões
em 2001, para o valor atual. Neste contexto, cabe ressaltar que o dispêndio
orçamentário brasileiro de US$ 33,1 bilhões, representa pouco mais da metade dos
gastos do subcontinente e o 11º do mundo (SIPRI, 1988/2012, online).

Com relação ao Brasil, que possui o maior contingente de militares da região, um


dado substantivo sobre a destinação do orçamento merece atenção: os gastos com
pessoal. Analisando o dispêndio anual das forças armadas brasileiras, verifica-se que
a maior parte dos gastos estão concentrados no pagamento de servidores inativos.

1098
Segundo Dagnino (2010, p.52) ―Com pessoal, as FA gastaram, em 2005, 74% do seu
orçamento [...] do gasto com pessoal, 63% se destina ao pagamento de inativos e
pensionistas [...]‖. Os gastos das forças armadas brasileiras com pessoal são
superiores a média sul-americana, de 58,7% no período entre 2006 e 2010, segundo
o Registro Sul Americano de Gastos de Defesa, produzido pelo Centro de Estudos
Estratégicos de Defesa (CEED) do CDS (UNASUR, 2012b, p. 11).

Uma publicação sobre o dispêndio orçamentário referente aos gastos em defesa na


América do Sul para o ano de 2012, divulgado pelo SIPRI, demonstra que o
segundo maior gasto na região é o da Colômbia com US$ 12,1 bilhões, seguida pelo
Chile US$ 5,4 bilhões; Argentina US$ 4,3 bilhões; Venezuela US$ 4,04 bilhões; Peru
US$ 2,5 bilhões e Equador US$ 2,3 bilhões. Os menores gastos são do Uruguai
US$ 971 milhões de dólares, seguido do Paraguai US$ 421 milhões; Bolívia US$
396 milhões e Guiana US$ 31 milhões. O Relatório não informa sobre os gastos do
Suriname. Pelo critério de gastos percentuais em defesa com relação ao Produto
Interno Bruto (PIB), o Equador com 3,4%; Colômbia 3,3% e o Chile 2,1% lideram as
estatísticas. Com relação as duas maiores economias da região, o Brasil apresenta
um gasto de 1,5% do PIB e a Argentina 0,9%, menor gasto percentual entre os 12
países da região (SIPRI, 1988/2012, online).

Não obstante o valor representativo dos gastos totais em defesa por parte dos
países membros do CDS, o dispêndio na aquisição (importação) de material de
defesa é ainda reduzido frente ao mercado internacional. Segundo Dagnino (2005)
em 2004 ―[...] o mercado sul-americano de material de defesa representava 2% do
total mundial‖. Em 2012, os principais importadores de material de defesa da
América do Sul, levando em conta o conceito utilizado pelo Sipri de sistemas de
armas496, segundo o qual, armas de fogo e munições não são contabilizadas, foram:
Venezuela US$ 643 milhões; Brasil US$ 410 milhões; Colômbia US$ 279 milhões e
Equador US$ 108 milhões. Ainda de acordo com os dados de 2012, os menores
gastos na região foram registrados por: Chile US$ 56 milhões; Argentina US$ 34
milhões; Peru US$ 9 milhões; Paraguai US$ 7 milhões e Bolívia US$ 5 milhões. O
relatório informa que não houve gastos por parte do Uruguai (SIPRI, online).
496
O conceito de sistemas de armas (weapon systems) utilizado pelo Sipri para contabilizar os gastos com defesa,
abrange a comercialização de: aeronaves, armas anti submarino, material de artilharia, mísseis, motores, navios,
satélites, sistemas de defesa aérea, sensores e veículos blindados.

1099
Entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da Nações
Unidas, considerando o ano de 2011, a Rússia, é a maior fornecedora de material de
defesa para a América do Sul, com vendas totais de US$ 378 milhões, seguida dos
Estados Unidos US$ 237 milhões; Grã-Bretanha US$ 89 milhões; França US$ 62
milhões e China US$ 43 milhões. Os dados demonstram grande participação de
países europeus nas vendas para a América do Sul: Holanda US$ 253 milhões,
Espanha US$ 251 milhões e Alemanha US$ 216 milhões. As vendas do Brasil aos
países membros do CDS em 2011 totalizaram US$ 38 milhões, direcionadas ao
Equador, Uruguai e Bolívia pela ordem. Não há qualquer venda contabilizada pelo
Sipri, originária de outro país sul-americano (SIPRI, 2012b).

Sobre o material de defesa importado pelos países membros do CDS no biênio


2011-2012, verifica-se um esforço por parte da Venezuela em reforçar e modernizar
seus sistemas de defesa, com a compra de 5 sistemas de mísseis russos modelo S-
300PMU-1/SA-20A. Nos demais países, verifica-se que a maior parte das
aquisições, tem por objetivo repor material de defesa empregado em aeronaves e
navios. O relatório contabiliza, entre outras aquisições dos países membros do CDS,
a compra de 30 mísseis anti-navio AM-39 Excocet de fabricação francesa por parte
do Brasil e 100 mísseis ar-ar AIM-120CAMRAAM de fabricação estadunidense, por
meio da Força Aérea do Chile, para utilização em suas esquadrilhas de aeronaves
F-16 (SIPRI 2013).

O relatório aponta, como vimos anteriormente, que apenas o Brasil entre os


membros do CDS, possui registros de exportação de sistemas de armas. As vendas
ao exterior somaram US$ 79 milhões de dólares no biênio 2011-2012. A aeronave
EMB- 314 Super Tucano, produzida pela Embraer, é o principal produto de
exportação da indústria de defesa brasileira. A aeronave foi comercializada com as
forças aéreas da Guatemala, Angola, Indonésia e Mauritânia. O outro produto da
pauta de exportações brasileira, contabilizado no relatório é o Sistema Astros II,
produzido pela Avibrás e vendido a Indonésia. O relatório ainda menciona a venda
para a Argentina de 14 unidades do veículo blindado sobre rodas VBTP Guarani,
mas ressalta, que até a data da publicação das informações, o contrato de compra
por parte do governo argentino e a Iveco fabricante do equipamento, não havia sido
assinado (SIPRI, 2012c).

1100
Duas considerações são necessárias após a análise dos gastos em defesa,
exportação e importação de sistemas de armas. A primeira, diz respeito ao potencial
existente para o desenvolvimento de uma indústria de defesa na América do Sul. O
dispêndio anual com a importação de sistemas de armas no subcontinente, US$ 1,5
bilhões em 2012, apesar de reduzido em relação ao total mundial, não é desprezível
em termos regionais, pelo contrário, representa um valor pouco superior a metade
do PIB da Guiana, que segundo o Banco Mundial alcançou US$ 2.85 bilhões em
2012. Robustecer o papel do CDS da Unasul ao garantir o cumprimento do
cronograma dos projetos em andamento: avião de treinamento e VANTs, produzirá
um efeito multiplicador com influência no processo de cooperação. A outra
consideração é sobre o papel do Brasil como polo indutor da cooperação na
indústria de defesa. Em períodos de crise financeira como a que o mundo enfrenta
desde de 2008, em que os estímulos econômicos dos países desenvolvidos para
debelar a crise, produziram efeitos indesejáveis entre as nações em
desenvolvimento como o Brasil, a integração produtiva sob os auspícios de
organismos multilaterais como a Unasul, sem as características hegemonistas de
outros blocos, pode contribuir para diversificar as atividades econômicas, agregar
valor aos produtos e ampliar o desenvolvimento conjunto dos países. A avalanche
de dólares provenientes de investidores dos países desenvolvidos, em busca de
remuneração por juros acima da média mundial, proporcionou uma excessiva
valorização da moeda brasileira, encarecendo o custo da produção. Se há setores
resistentes a integração, a racionalidade econômica aponta, em período de aumento
dos custos internos derivados da valorização cambial, para a necessidade do setor
produtivo brasileiro ampliar o número de parcerias e fornecedores. Isso vale para a
indústria brasileira de defesa. O apoio governamental as empresas privadas
brasileiras, em busca de parcerias com congêneres sul-americanas, fortalece a
cooperação no âmbito do CDS, a medida que multiplica os empreendimentos e
possibilita o desenvolvimento de projetos que exigem apuro técnico-cientifico.
Destarte a necessidade do apoio político a integração sul-americana, não há
cooperação sem que a nação com maior disponibilidade financeira, no caso o Brasil,
desenvolva linhas de crédito mediante financiamento em moldes semelhantes aos
da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), com alcance regional e objetivo de
financiar projetos da indústria de defesa. Os projetos do treinador básico Unasul I e

1101
do sistema de VANTs, deliberados pelo CDS são exemplos de iniciativas que
disseminam o conhecimento. No caso do treinador básico, por sua característica de
projeto multinacional, exigirá a produção de partes e componentes em diversos
países da região e abre a perspectiva para criar uma rede regional de fornecedores
de material de defesa.

A primeira vista, a reação imediata ao se defrontar com o valor das importações sul-
americanas de sistemas de armas, é acreditar que redirecionar parte dos recursos
destinados á compra no exterior para substituir importações e estimular as bases
industriais dos países dos subcontinente, é uma tarefa que demanda apenas
vontade. Entretanto há outros condicionantes que merecem uma análise qualitativa.
Um exemplo da situação descrita é a indústria de defesa brasileira, que alcançou
importância entre os exportadores de sistemas de armas na metade da década de
1980, mas desde então, pouco alterou seu portfolio de produtos. Em 2012 o valor
das vendas externas de sistemas de armas por parte da indústria brasileira de
defesa, alcançou apenas a décima parte do que o país comercializou em meados da
década de 1980, e o Sistema Astros II, desenvolvido no período do conflito Irã-
Iraque, ainda é um dos principais itens da pauta de exportações. A indústria
brasileira de defesa padece segundo Dagnino (2010) ―de não substituibilidade
tecnológica‖, determinada pela incapacidade do país em gerar inovação tecnológica,
impossibilitando à indústria nacional produzir internamente parte considerável do
material de defesa que é importado (DAGNINO, 2010).

Alguns setores da indústria de defesa, intensivos em tecnologia, exigem


mecanismos de integração entre a comunidade científica e o setor produtivo, por
meio da intermediação governamental provendo financiamento à pesquisa,
desenvolvimento do produto e linhas de crédito para a produção. No entanto, o
percentual do orçamento destinado a pesquisa na área da defesa, pelos países
membros do CDS entre 2006 e 2010, representou apenas 0,5% do total do
dispêndio conforme o Registro Sul Americano de Gastos de Defesa (UNASUR,
2012b, p. 11).

Transpor estes mecanismos para uma área de cooperação internacional é uma


tarefa que exigirá tempo, aprendizado, paciência e um substancial aumento nos

1102
gastos em pesquisa e desenvolvimento. Não obstante, há setores da indústria de
defesa de baixa intensidade tecnológica, como a produção de veículos blindados,
que torna a cooperação possível para vários países membros do CDS.

Durante as décadas de 1970 e 1980, a indústria brasileira de defesa, por meio da


Engesa produziu e exportou uma grande quantidade de veículos blindados sobre
rodas para diversos países do mundo. Segundo Moraes (2010) ― [...] a Engesa
exportou 78% dos blindados Cascavel que produziu, 76% dos blindados Urutu e
todas as unidades do blindado Jararaca‖. Entre os principais compradores dos
veículos blindados produzidos pela Engesa, estão os países sul-americanos. Não
obstante diversos programas de modernização, os blindados produzidos pela
Engesa em uso pelos países sul-americanos, encontram-se próximos ao fim da sua
vida útil. Neste sentido, o veículo blindado sobre rodas Guarani, desenvolvido
recentemente pelo Centro Tecnológico do Exército Brasileiro (CTEx) e produzido no
Brasil pela Iveco, por suas caracteristicas similares aos da Engesa, ainda que mais
moderno, possui excelentes condições para substitui-los. Um pacote que ofereça
condições adequadas de financiamento, incluindo a produção de partes e
componentes dos blindados, que tem custo unitário estimado em R$ 2,9 milhões,
por empresas públicas e privadas dos países sul americanos sob a coordenação do
CDS, dotará os exércitos da região de uma viatura blindada padrão.

Um projeto exitoso desenvolvido em parceria por Brasil, Argentina,


Colômbia,Chile e países europeus, prevê para 2014 o vôo do primeiro protótipo
da aeronave Embraer KC390 de 23,6 toneladas, que será utilizada no apoio tático
e transporte de tropas. O desenvolvimento da aeronave custará o equivalente a
US$ 2 bilhões. É o maior programa envolvendo indústrias de defesa da América
do Sul, por meio de um contrato que prevê a construção de partes e
componentes da aeronave pela empresa estatal argentina FAdeA, a estatal
chilena Enaer e a brasileira Embraer, além de empresas de Portugal e da
República Tcheca (AGÊNCIA FORÇA AÉREA, 2013, online)

O programa KC-390 é outro indicativo da viabilidade no desenvolvimento de uma


indústria de defesa sul-americana. Ampliar e sistematizar os mecanismos de
integração no âmbito do CDS, contudo, não depende do voluntarismo político, mas
sobretudo de uma articulação com vistas a institucionalização de um modelo de

1103
cooperação técnico-cientifica. Brasil e Argentina possuem importantes centros de
pesquisa e desenvolvimento no setor, como a Dirección de Investigación Desarollo y
Producción del Ejército (DIDPE) do Exército argentino ou o CTEx do Exército
brasileiro. Sem a capacitação de técnicos e engenheiros, essenciais para o sucesso
do projeto do treinador básico Unasul I, países como Bolívia ou Paraguai, que
dispõe de recursos financeiros e técnicos limitados, não poderão contribuir com o
programa. O governo brasileiro, neste quesito, tem papel fundamental: 1.
possibilitando a formação técnico-acadêmica de civis e militares indicados por seus
países ao CDS para ingressar em instituições como o Instituto Tecnológico de
Aeronáutica (ITA) ou o Instituto Militar de Engenharia; 2. contribuindo para a
especialização de técnicos e engenheiros em centros de excelência como o CTEx e
o Centro Técnico Aerospacial (CTA).

Não obstante as assimetrias de ordem geográfica, econômica e populacional entre


os países sul-americanos, o subcontinente encontrou na Unasul e no CDS,
mecanismos que asseguram valores caros aos Estados que conformam a nossa
região: respeito a soberania e a autodeterminação. Isso não significa a ausência de
contenciosos ou conflitos entre os países, entretanto, aponta em direção à
cooperação e integração, o que é positivo e desejável, para o desenvolvimento
futuro de uma da indústria regional de defesa.

4 Considerações Finais

O êxito dos programas na área da indústria de defesa mencionados neste trabalho,


sob a coordenação do Conselho de Defesa Sul-Americano, é uma importante
contribuição para solidificar os vínculos estratégicos entre os países e cimentar a
integração em um patamar de maior confiança. Um maior interesse na cooperação
por parte do Brasil, que teve papel fundamental nos entendimentos iniciais que
deram forma a Unsaul e ao CDS, afasta a percepção ainda muito viva em países do
subcontinente, de que essas organizações são suporte para um projeto de caráter
hegemônico por parte do país. O processo de integração regional, está sujeito à
atrasos ou a descontinuidade de projetos e programas, resultado da suscetibilidade
de governantes contrários a cooperação nos termos acordados como resultado de
mudanças na representação política dos Estados. Fortalecer e perenizar os

1104
mecanismos de integração são importantes iniciativas para assegurar a
institucionalização dos compromissos firmados pelos Estados.

Considerando o estágio dos projetos em gestação no âmbito do CDS, é


recomendável prudência ao se afirmar, que está em curso no subcontinente o
desenvolvimento de uma indústria regional de defesa. Aspectos de ordem
econômica, técnico científicos e principalmente políticos, no sentido de desenvolver
mecanismos de perenização e institucionalização dos compromissos firmados, são
fundamentais para tornar os projetos factíveis.

Uma agência de fomento vinculada ao CDS, com função especifica de financiar as


ações deliberadas pelos seus membros e um fundo compartilhado, com aporte de
recursos respeitando a capacidade e o tamanho da economia de cada país, são
iniciativas prioritárias e necessárias para robustecer a cooperação no segmento de
defesa no âmbito do CDS.

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Suramericano. Plán de Acción 2013 del Consejo de Defensa Suramericano de la
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1107
O PROCESSO DE INTEGRAÇÃO NUCLEAR BRASIL-ARGENTINA: UM
CAMINHO PARA O DIÁLOGO

Michelly Sandy Geraldo497

1 Introdução

As descobertas atômicas trouxeram um novo olhar para as relações de poder entre


os Estados. O século XX foi tocado pelas descobertas científicas envolvendo
elementos da natureza como nenhuma outra época. O conhecimento sobre o
elemento físsil nos levou à Era Nuclear e à uma nova conjuntura de poder nas
relações internacionais. A América do Sul está inserida nesse contexto e foi
impactada por tal conjuntura.

O relacionamento Brasil-Argentina se implanta sob o símbolo da instabilidade


estrutural no século XIX, com políticas ambivalentes, na qual a rivalidade
predominou sobre a cooperação. Contudo, nota-se que há uma história comum de
etapas quase sincrônicas entre os dois países no passado e que os projeta para um
futuro integrado. Ambos são países sul-americanos, que compartilham a Bacia do
Prata, colonizados por potências ibéricas e que passaram por tensos processos de
consolidação nacional.

Superada, ou não a questão da Bacia do Prata, os dois países continuaram em uma


luta tácita pela liderança na América do Sul, em plena Guerra Fria. Ambos possuíam
desenvolvimento em pesquisas referentes a tecnologia nuclear mais avançado da
região e portanto, a permanência nessa situação foi mantida, bem como a incerteza
nas relações entre os mesmos.

Desse modo, se procura fazer um paralelo entre o contexto histórico e suas


políticas. Nota-se uma lacuna quanto a política interna e externa Argentina, uma vez
que a mesma está em curso de investigação. Contudo, busca-se compreender o

497
Mestranda do Programa de pós-Graduação em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa
Catarina.

1108
processo de cooperação e integração nuclear entre ambos, analisando os fatores
que influenciaram a mudança de postura desses Estados e que culminou com a
criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais
Nucleares, a ABACC.

2 Breve histórico da relações entre Brasil e Argentina

As relações entre Brasil e Argentina possuem um histórico conturbado, de altos e


baixos na interação entre ambos. A disputa pelo poder na região do Cone sul
norteou muitas de suas pautas de política externa.

A área da Bacia Platina foi foco de tensão durante muito tempo. Na época
colonial, ela foi palco dos interesses geopolíticos adversos entre portugueses e
espanhóis. A questão mal resolvida da divisão das bacias hidrográficas entre
Portugal e Espanha, mesmo com o estabelecimento dos Tratados de Madri 498
(1750) e Idelfonso 499 (1777), levaram Brasil e Argentina a herdar essa disputa.
Essas querelas se acirraram com as respectivas independências e com o
antagonismo entre o Império Brasileiro e a Confederação Argentina, núcleo dos
conflitos platinos do século XIX.

Na visão argentina, desde muito ocorreu a percepção do Brasil como ameaça. ―Ao
não romper com o sistema monárquico, contrastando com um hemisfério
republicano, o Brasil foi percebido como herdeiro da aspiração hegemônica e
intervencionista portuguesa no Prata‖ (CANDEAS, 2010, p. 147) . Para o Brasil, a
Argentina também consistia em uma intimidação, uma vez que era o país com o qual
dividia fronteiras estratégicas.

No que tange a isso, Spykman (1944) afirma que a Bacia do Prata é o cerne da
rivalidade brasileiro-argentina:

498
Esse acordo entre Portugal e a Espanha, conduziu à alteração de linha meridiana definida no Tratado de
Tordesilhas. Seus objetivos principais eram o de eliminar as discórdias acerca das possessões de cada reino na
América Meridional, além de resolver as desavenças entre as partes(LAURENZANO, 2008, p.25).
499
A partir desse, modificava-se a linha de limites estabelecida pelo tratado de 1750: a Espanha devolve a Ilha
de Santa Catarina e Portugal cede a Colônia do Sacramento a as Missões à Espanha, e um ponto crucial, a
navegação do Prata ficava exclusiva à Espanha (LAURENZANO, 2008, p.30).

1109
Mais importante entretanto para o futuro da América do Sul é a luta de poder
entabulada na zona de conflito do continente meridional: a bacia do rio da
Prata. Aqui os protagonistas são os dois Estados mais poderosos da América
Latina e a recompensa seria a liderança e o império do continente sul.
(SPYKMAN, 1944, p. 337).

Essa tradição conflituosa, mesmo que na maioria das circunstancias não foi levado
aos fins de fato, se prolongou para além do século XIX. No século XX, verificam-se
alguns fatores, como os próprios momentos históricos, que corroboraram tanto para
a manutenção das tensões, como para a mudança do caráter do relacionamento
entre ambos os países.

A Argentina no imediato pós-Guerra ―era o país mais próspero da América do Sul‖


(CAVLAK, 2008, p.42). Entretanto, partir da década de 60, constata-se a Argentina
foi enfraquecida por alguns fatores internos e externos. Segundo DIAZ e BRAGA
(2006) internamente, o país apresentou problemas em três aspectos: a
concentração demográfica em decorrência do despovoamento do interior e das
regiões fronteiriças; o estrago financeiro resultante da política monetarista recessiva
da ditadura militar; e a regressão da economia argentina, em conseqüência do
excessivo privilégio do setor agropecuário.

Externamente, a Argentina foi abordada por três sucessivos momentos conturbados.


Um para o Brasil, com as querelas relativas a hidrelétrica de Itaipu 500. Outro para o
Chile, na disputa pela soberania sobre o estratégico canal de Beagle. E, não menos
impactante, para a Inglaterra, com a ocupação das Ilhas Malvinas seguida do
insucesso militar na Guerra das Malvinas (MELLO, 1997).

Nessa mesma época, o autoritarismo militar brasileiro ganhou força. Na frente


interna, a congruência entre o capital estatal e o multinacional, auxiliados por uma

500
O Brasil pretendia o aproveitamento do Rio Paraná. Elaborou uma manobra diplomática junto ao Paraguai de
1962 até 1966, que era acompanhada pelo governo argentino com bastante preocupação. Qualquer
aproveitamento hidrelétrico exigiria a construção de uma barragem no Rio Paraná, que diminuiria o volume de
água à jusante. Assim, AA fim de amarrar o Brasil a compromissos jurídicos, limitando suas ações na Bacia do
Prata, o presidente Arturo Illia (1963-1966) propõe aos países platinos a criação de vínculos para a integração
física da Bacia do Prata e o aproveitamento de seus recursos naturais, “sob o pretexto de um desenvolvimento
regional harmonioso” (BANDEIRA, 2003, p. 411). “As preocupações argentinas eram causadas pelo impacto
que ocasionariam à sua política e economia regionais os projetos hidrelétricos brasileiros e pela inquietude em
torno das mudanças que poderiam causar nas suas relações com o Paraguai” (RAPOPORT; MADRID, 1998, p.
282)

1110
conjuntura externa favorável, promoveu a modernização, em termos tangíveis no
momento, da infra-estrutura industrial do país com o "milagre econômico".

Na frente externa, o regime autoritário viabilizou sua política de alinhamento


preferencial aos Estados Unidos. Porém, mesmo o Brasil contando com o apoio de
Washington nessa época, isso não bastou para construir seu status hegemônico de
potência regional. De acordo com DIAZ e BRAGA (2006) outras ações brasileiras,
como o avanço sobre os países menores, a busca por caminhos para o Pacífico, a
cooperação no desenvolvimento destes em setores requeridos por sua própria
economia, a prestação de ajuda técnica e financeira ao Paraguai, na construção da
hidrelétrica de Itaipu, a abertura de seu litoral marítimo, auxiliaram o Brasil a
despontar na liderança da América do Sul.

Desse modo, a rivalidade e o temor, sobretudo, da Argentina de que o Brasil viesse


a dominar as relações na América do Sul, manteve-se bastante presente. Contudo,
havia áreas em que a Argentina mostrava-se a frente do Brasil, como na área
nuclear, que será trabalhada a seguir.

3 Brasil e Argentina Nucleares

A relação entre Brasil e Argentina provem de uma tensão histórica, motivadas por
elementos distintos, mas que possuem muitos aspectos congruentes. Ambos, antes
mesmo dos episódios de Hiroshima e Nagasaki já faziam estudos acerca das
temáticas nucleares. Contudo, é após esses acontecimentos que suas percepções
em relação à questão atômica ganham maior vulto.

A produção científica e de materiais atômicos por estes países, eram vistas com
desconfiança de um para com outro. Portanto, o sigilo de algumas informações foi
mantido por anos e, alguns elementos históricos importantes encontram-se
resguardados até o momento.

a) Programa Nuclear Argentino

1111
Até 1945, os interesses da Argentina pelos minérios de urânio limitaram-se à
aspectos científicos. Uma reavaliação sobre o assunto ocorreu após as explosões
atômicas de Hiroshima e Nagasaki, em que a Direção Nacional de Energia Atômica
(DNAE) tornou-se responsável pelos trabalhos de exploração (OLIVEIRA, 1996, p.
86). A partir desse momento, instalaram-se laboratórios, escolas técnicas e permitiu-
se a participação privada nos empreendimentos. Notadamente, verificou-se que a
Argentina, dentre os países da América Latina, era um dos mais bem dotados de
jazidas de urânio.

Em 1956, fundou-se a Comissão Nacional de Energia Atômica, em que todas as


atividades relacionadas à indústria de urânio estavam inscritas dentro de sua
responsabilidade. Então, o país instaura, anos mais tarde, o Plano Nuclear Argentino
(PLAN), que procurou uma estratégia mais independente e que ―promovesse de
maneira progressiva e completa, a serviço da Nação, o desenvolvimento pleno de seu
potencial humano e material‖ (ORSOLINI, 1984, p. 518).

Assim, o Plano Nuclear Argentino (PLAN) preocupou-se em apresentar um modelo


de execução, fomentando o desenvolvimento de seu potencial humano e de matéria-
prima, à fabricação de equipamentos e de seus próprios reatores, chegando de tal
modo, à conquista do domínio completo do ciclo do urânio e suas alternativas, para
―projetar a hegemonia do país no plano regional e continental frente às pressões
externas‖ (OLIVEIRA, 1998)

O programa nuclear argentino começou a render bons dividendos devido às suas


produções. Entretanto, um passo decisivo ocorreu em l968, com a aquisição do
reator de múltiplas finalidades da Alemanha, para a Usina Nuclear Atucha I, que
produzia o dobro de plutônio em relação aos reatores de urânio enriquecido e
comercializado pelos EUA, na época (OLIVEIRA, 1998) denotando seu forte
empreendimento na área.

Do mesmo modo, as Forças Armadas argentinas sempre mostraram forte interesse


em criar bases para um complexo industrial militar. Com o golpe de l976 e o general
Jorge Rafael Videla no poder, a política nuclear passou a ser considerada como da
mais alta prioridade ao país. ―O orçamento da Comissão Nacional de Energia

1112
Atômica (CNEA) atingiu níveis nunca vistos em toda sua história‖ (FÜLLGRAF, 1988,
p. 127).

Para concepção dos propósitos do PLAN argentino, o ponto alto do projeto dos
militares foi o de comprometer cinquenta por cento do orçamento do país com a
compra e fabricação de armas nucleares (FÜLLGRAF, 1988, p. 128). Seus esforços
caminhavam no sentido de possuir o domínio completo do ciclo do combustível
nuclear, desenvolvimento das tecnologias de enriquecimento do urânio e avançar
em direção às demais tecnologias envoltas na area nuclear.

No final de l983, a Argentina conseguia chegar ao patamar do enriquecimento do


urânio. Há indícios de que o que a impede de fabricar a bomba atômica é apenas
uma decisão política, pois o país já dominava a tecnologia do combustível e tinha
quantidade de plutônio suficiente para fabricar dois ou três artefatos nucleares tão
potentes quanto os de 1945 (OLIVEIRA, 1996, p. 116).

b) Programa Nuclear Brasileiro

O Brasil se insere na pesquisa nuclear, também, antes dos episódios de meados da


década de 40. Em 1934 as primeiras pesquisas significantes foram constatadas.
Contudo, é a partir desses momentos turbulentos desenvolvidos por meio das
descobertas nucleares que o Brasil sente seus impactos e, em nenhum momento
quis ficar atrás501 desse desenvolvimento. Para GIROTTI (1984, p.36) ―é
perfeitamente possível afirmar que no Brasil, a Física Nuclear constitui um desafio
excitante há quase cinquenta anos.‖.

Embora a procura pelo desenvolvimento da ciência e tecnologia no Brasil seja


antiga, as reivindicações de cientistas, intelectuais e professores, inclusive de
escolas militares, tiveram poucas repercussões antes do término da Segunda
Guerra Mundial. Segundo ANDRADE (2000, p. 6, tradução nossa) para

501
“Entendemos que se torna imprescindível estabelecer o quanto antes um programa completo e integrado
no setor da energia atômica em nosso país, abrangendo desde a pesquisa e prospecção do minério,
industrialização dos produtos da lavra, criação do corpo técnico capaz, até a instalação e operação de reatores
atômicos industriais”- Conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o problema dos minérios
atômicos. In: Mirow (1979).

1113
institucionalizar a pesquisa cientifica no Brasil, era necessário reorganizar as
relações entre os grupos sociais, em especial ―o conflito entre os professores das
antigas disciplinas – Direito, Medicina – de um lado e os professores das disciplinas
em progresso e os novos líderes intelectuais, formados nas universidades
americanas e européias, do outro lado‖.

Durante o processo de reorganização política do Estado Novo, houve algumas


medidas para a criação de um conselho de ciência. Porém, somente depois de anos
das primeiras propostas é que o assunto entrou na agenda política brasileira, sob a
coordenação de Álvaro Alberto da Motta e Silva, então capitão-de-mar-e-guerra,
junto a uma comissão de homens envolvidos com a ciência. Dentre as propostas e
justificativas para a criação de uma comissão de energia atômica, estava a
argumentação da necessidade em proteger as reservas de minerais radioativos. O
próprio presidente na época, general Eurico Gaspar Dutra, explicitou em
pronunciamento feito no Congresso em 1949:

É um fato reconhecido que, após a última guerra, tornou notável e


surpreendente o incremento não só por imperativo de defesa nacional, senão
também por necessidade de promover o bem-estar coletivo, os estudos
científicos, e de modo particular os que se relacionam com o domínio da
física nuclear. Neste sentido estão dedicando esforço diuturno as nações
civilizadas, em particular os Estados Unidos, a Inglaterra, o Canadá e a
França, que passaram a considerar tais estudos tanto em função dos
propósitos da paz mundial como, sobretudo, em razão dos imperativos da
própria segurança nacional (CNPq, 1951).

Assim, em janeiro de 1951, alguns dias após Getúlio Vargas retornar à presidência,
é criado o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Consoante a Brandão (2008), o
CNPq passou a ser a principal agência brasileira para o desenvolvimento nuclear,
pois cabia à instituição todas as atribuições no campo nuclear.

Mesmo com a institucionalização de um Conselho voltado para questões


especificas do campo, a questão nuclear, durante os vários governos que
sucederam o país, teve altos e baixos, com maiores e menores incentivos, não
apenas financeiros. Além disso, o papel desempenhado pelos EUA e os governos

1114
brasileiros, foi bastante decisivo para muitas das políticas. Alguns estavam
totalmente alinhados, como é o caso de Café Filho (1954), que foi precedido por JK
que adotou medidas de cunho mais autônomo e nacional, que foram aprofundadas
com a Política Externa Independente de Janio Quadros. Esse fato pode ser visto
com a proposta de Jânio Quadros, ao sustentar que o reator das futuras usinas
nucleares que aqui se instalariam, deveria ter ―80% de seus componentes
construídos no Brasil‖ (OLIVEIRA, 1999, p. 131). De igual modo, João Goulart era
enfático em relação à uma política de independência e máxima participação da
indústria nacional na construção das centrais nucleares (MOREL, 1979).

Com a destituição de João Goulart em 1964, os sucessivos presidentes militares


provocaram radicais mudanças na estrutura econômica e político-social do Brasil,
inclusive alteram a linha política brasileira. Em primeiro momento, com o general
Castello Branco no poder, a questão nuclear perde força com a desconsideração da
―energia nuclear como fonte de energia elétrica em larga escala, no presente
momento‖ (MOREL, 1979, p. 108).

No governo seguinte, o general Costa e Silva a partir de 1967, muda o curso da


política nuclear, onde o desenvolvimento científico, tecnológico e a nuclearização
viram metas. Lançam-se bases de um programa de utilização da energia nuclear,
que embora, em seu discurso prezando pelas fontes nacionais para seu
desenvolvimento, mostrava-se contrário em suas ações502.

De maneira semelhante seguiu a política do general Emílio Garrastazu Médici, com


o adicional do discurso ―Brasil Potência‖, devido ao forte crescimento econômico da
época. Entretanto, de acordo com OLIVEIRA (1999, p.197), o programa nuclear
brasileiro só teve uma definição com o governo Geisel que propunha a implantação
de uma indústria nuclear no Brasil em 10 anos. Então, o programa compreenderia
um grande projeto de nove usinas geradoras de energia elétrica, bem como seus
processos de ciclo de combustível.

502
No governo de Costa e Silva, decidiu-se implantar a primeira usina nuclear do país, um projeto pioneiro que
poderia gerar condições para o desenvolvimento de alta tecnologia no Brasil. Porém, ao decidir implantar a
usina, o presidente optou pela opção antinacionalista, qual seja: utilização de reatores a água leve e urânio
enriquecido, sendo que o pretexto inicial baseava-se no urânio natural e água pesada, a qual país já vinha
produzindo pesquisas.

1115
João Baptista de Oliveira Figueiredo resolveu implementar o Programa Autônomo de
Tecnologia Nuclear (PATN)503, conhecido como Programa Paralelo. As articulações
iniciais contaram com a participação da CNEN e projetos distintos das três Forças
Singulares, porém com objetivos convergentes, em que o principal era o domínio do
ciclo de enriquecimento nuclear. De tal modo, apenas anos depois, em setembro de
1987, já em processo de democratização, com o presidente civil José Sarney é que
o segredo do programa nuclear das Forças Armadas é quebrado. Na presença de
ministros e cientistas, em cerimônia realizada em Brasília, o atual presidente anuncia
que o Brasil havia passado a dominar a tecnologia de enriquecimento de urânio por
meio da ultracentrifugação (ACIDENTES..., 2013).

Do mesmo modo, como consequência de tais políticas descontinuadas, o país


firmou diversos acordos na área nuclear que, na sua grande maioria não foram
favoráveis para o país. Como exemplo disso, tem-se os acordos firmados com os
EUA desde a década de 40504. Já na década de 70, acordos firmados com outros
países, em que vale destacar o ―Acordo do Século‖505, junto a Alemanha.

4 Caminhos da Cooperação Nuclear

De acordo com o Embaixador Araújo Castro (1999, p. 12) o Poder Nacional


determina os limites úteis da política exterior num determinado país. Porém,
segundo o mesmo, no campo externo, o Poder Nacional de um país sofre,

503
Algumas personalidades da época afirmaram que a ideia do Programa Paralelo já havia sido instituída no
governo Geisel. Todavia, a liberação da primeira verba especifica direcionada ao programa veio apenas em
1981.
504
Programa de Cooperação para Prospecção de Recursos Minerais (1940); Acordo Relativo ao Fornecimento
Recíproco de Materiais de Defesa e Informações sobre Defesa (1942); Assinatura do considerado Primeiro
Acordo Atômico (1945); Segundo Acordo Atômico (1952); Acordo de Assistência Militar (1952); Terceiro Acordo
Atômico (também chamado de Acordo do Trigo, 1954); Programa Átomos para a Paz (1955); Acordo de
Cooperação para o Desenvolvimento da Energia Atômica com Finalidades Pacíficas e o Programa Conjunto para
o Reconhecimento e Investigação do Urânio no Brasil (1955); Quarto Acordo Atômico (1956); Acordo de
Cooperação referente aos Usos Civis da Energia Atômica (1965); Acordo de Cooperação para Usos Pacíficos da
Energia Nuclear (1972)
505
Considerado “Acordo do Século”, devido a sua magnitude em termos monetários. “Após um ano de
negociações secretas, nas quais a opinião da comunidade científica nacional não foi levada em consideração,
Brasil e Alemanha firmaram, em 27 de junho de 1975, o Acordo de Cooperação para Usos Pacíficos da Energia
Nuclear” (MEDEIROS, 2005, p.71).

1116
devido as limitações impostas pela livre operação do Poder Nacional dos outros
países. Além disso,

Os compromissos internacionais, as alianças e acordos constituem


evidentemente limitações de soberania e limitações da autonomia da
vontade dos Estados, mas não constituem necessariamente limitações do
Poder Nacional, (...) Pelo contrário, o Poder Nacional de um Estado pode
fortalecer-se e ampliar-se com a conclusão de tais acordos e alianças. É,
entretanto, certo que a esse fortalecimento ou a esta ampliação
corresponde um enfraquecimento ou restrição em um outro Estado
(CASTRO, 1999, p. 16).

Essa percepção de perda vs. ganho, esteve latente entre ambos os países
analisados durante alguns anos. Porém, apesar da antiga rivalidade, a aproximação
na área científica ocorreu de maneira gradativa, uma vez que os países possuíam
uma série de coincidências em seus caminhos, principalmente nas políticas
nucleares (MALLEA, 2012).

Tanto o Brasil quanto Argentina possuíam um programa nuclear estruturado, que


embora com suas falhas, produziu alguns resultados satisfatórios. Ambos eram os
que detinham maior tecnologia na área nuclear, na América do Sul. Fizeram parte da
instauração do Tratado de Tlatelolco em 1967, o assinaram, porém, não o
ratificaram. O mesmo ocorreu com o principal tratado no que tange a temática
nuclear, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP): ambos recusaram-se a
assiná-lo, pois acreditavam que tal tratado limitava seu desenvolvimento no campo
nuclear, mesmo que, alegadamente para fins pacíficos.

A aproximação brasileiro-argentina coincidiu com o relaxamento das tensões entre


as superpotências que levou ao fim da Guerra Fria. Surgiam assim, segundo
VARGAS (1997, p.41), duas tendências importantes no cenário internacional: o
aumento da globalização da economia, fundada na utilização intensiva de
tecnologias avançadas e a consolidação de uma nova agenda internacional, guiada
pelos países industrializados. Nessa nova agenda, ressaltam-se as medidas para
coibir o desenvolvimento, a produção e o armazenamento de armas de destruição
em massa, bem como a proliferação nuclear. Para o Brasil e a Argentina essa
quadra histórica foi marcada pela restauração da democracia e por esforços para

1117
retomar o crescimento econômico, seriamente comprometido pela crise da dívida
externa e pela instabilidade econômica associada com altas taxas de inflação.

Nesse ínterim, um ―novo regionalismo‖506 foi impulsionada pelo atenuar de alguns


constrangimentos da época bipolar que possibilitou a aceleração do fenômeno a da
globalização e que levou a profundas mudanças nas relações de poder e de segurança
entre os Estados. Consoante à CARVALHO e MARTINS (2009), estes dois fenômenos
(globalização e regionalização) podem ser considerados como processos mutuamente
constitutivos no contexto de um sistema global em mutação.

Segundo BUZAN e WAEVER (2003), a lógica de se pensar em termos de regiões, e


de questões de segurança na região, decorre do fato de todos os Estados do
sistema internacional, estão voluntária ou involuntariamente inseridos em uma rede
global de interdependência, da qual se desatar é tarefa extremamente difícil. Dado
que a segurança é um fenômeno relacional, não há como pensar a segurança
nacional de um Estado sem considerar o padrão de interdependência em que tal
Estado está inserido.

Assim, em 1979, as relações regionais, em especial entre Brasil-Argentina dão um


salto qualitativo importante, elevando o patamar dos laços bilaterais. Ainda durante
os regimes militares nos dois países, os entendimentos foram alicerçados em torno
dos pontos de maior confrontação, ou seja, Itaipu e programas nucleares. Ampliou-
se a percepção de confiança tornando ―obsoleta a hipótese de conflito e se inaugura
a fase de construção da estabilidade estrutural no relacionamento entre os dois
países pela via da cooperação‖ (CANDEAS, 2005).

Assim, é assinado o primeiro acordo na área, o Acordo de Cooperação para o


Desenvolvimento e Aplicação dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear, quando da
visita do presidente Figueiredo a Buenos Aires, em 1980. Nos termos do acordo
ficava estabelecida a cooperação entre ambos em vários aspectos tecnológicos,
tanto de formação de recursos humanos quanto de formação técnica.

506
De acordo com CARVALHO e MARINS (2009) o “novo regionalismo” é datado a partir dos anos 1980,
justamente com o relaxamento das tensões Leste x Oeste. Segundo os mesmos, o “velho regionalismo” tem que
ser compreendido no contexto histórico muito particular dominado pelos constrangimentos da bipolaridade que
marcou o período da Guerra Fria.

1118
Dando continuidade ao acordo de cooperação, é assinada em 1985, pelo presidente
José Sarney e Raúl Alfonsín, a Declaração Conjunta sobre Política Nuclear Os dois
primeiros foram a Declaração do Iguaçu e a Declaração Conjunta Sobre Política
Nuclear. Assinada respectivamente junto à Declaração do Iguaçu, em que os
presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín ―expressaram sua convicção de que a
ciência e a tecnologia nucleares desempenhavam um papel de fundamental
importância no desenvolvimento econômico e social‖ (ABACC, 2013). Assim, os
presidentes decidiram criar um grupo de trabalho conjunto para a promoção do
desenvolvimento tecnológico-nuclear para fins exclusivamente pacíficos. A partir de
então o processo de colaboração, não apenas em matéria nuclear, se intensificou e
outras Declarações foram assinadas507.

Seguindo essa conjuntura favorável, foi formalizado em 1991 o Acordo para Uso
Exclusivamente Pacífico da Energia Nuclear, com duração de tempo indeterminado,
estabelecendo o uso pacífico do material e instalações nucleares nas jurisdições de
ambos os países. Tal acordo serviu de base para fomentar a criação da Agência
Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle (ABACC), nesse mesmo ano.
Através dessa agência a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) iria
inspecionar as instalações e tecnologias argentinas, do mesmo modo que a
Comissão Nacional de Energia Atômica (CNEA) da Argentina iria proceder para com
o Brasil. Um sistema de vizinho olhando vizinho (KUTCHESFAHANI, 2010)

De acordo com o Prof. Odilon Marcuzzo do Canto (2013) a criação do Sistema


Comum de Contabilidade e Controle de materiais nucleares (SCCC) e uma agência,
a ABACC, foi consequência do amadurecimento do relacionamento brasileiro-
argentino na área nuclear. Pois, houve um processo de aproximação e de
construção de confiança mútua, não sòmente entre níveis de governo, mas também
entre a própria comunidade técnico-científica do setor nuclear dos dois países que
datava desde o final dos anos 1970 e enfatizado na década de 1980. Ainda
consoante a ele

Este fato sinaliza à comunidade internacional de forma positiva. Na medida


em que a ABACC se fortalece e passa a ser reconhecido internacionalmente

507
Declaração de Brasília em 1986, Declaração de Viedma em 1986, Declaração de Iperó em 1988, Declaração
de Ezeiza em 1988, Declaração de fiscalização Mútua em 1990.

1119
como um sistema robusto e confiável, ele passa a ser um avalista das
finalidades pacíficas das atividades nucleares dos dois países, frente à
508
comunidade internacional.

Desse modo, ―do ponto de vista histórico, a cooperação entre Brasil e Argentina na
área nuclear foi extremamente relevante para a diplomacia brasileira, por
representar a aproximação com um de seus mais influentes e desenvolvidos
vizinhos neste setor‖ (CASTRO, 2006, p. 106). Ademais, serviu como base para
estabilidade e fortalecimento da região

Contudo, os dois países não haviam ratificado o Tratado de Tlatelolco nem o TNP.
Só vieram a fazê-lo alguns anos depois. Em 1994, ambos os países assinaram o
Tratado de Tlatelolco e em 1995 a Argentina adere ao TNP e em 1998 o Brasil
segue o mesmo curso. O embaixador VARGAS (1997, p.44) explica essa
circunstância: ―A posição histórica dos dois países em matéria de não-proliferação
nuclear decorria de uma opção autonomista quanto à utilização e desenvolvimento
da energia atômica‖

Deve-se salientar que o contexto mundial era outro. Houve uma mudança na agenda
de segurança que pautava as relações internacionais durante a Guerra Fria. Com o
fim dessa, a percepção da iminência de um ataque nuclear também se dissipou. As
questões relativas a segurança não sumiram, apenas a preponderância antes
existente cedeu espaço para os novos temas.

Nessa nova conjuntura a separação entre high politics e low politics foi mitigada
e novos tópicos passaram a ocupar lugar de destaque como meio ambiente, as
novas bases da competitividade econômica internacional, direitos humanos,
conflitos étnico-religiosos, ameaças transnacionais, entre outros. De fato, as
questões relativas à segurança passaram a ser vistas de modo cada vez mais
integrado a esses novos temas da agenda internacional e ganham p roporções
de preocupação regional.

O mundo pós-Guerra Fria, o nível regional sustenta-se por si só mais


claramente como o lócus de cooperação e conflito para os Estados e como o
nível de análise para os teóricos em busca de explorar as questões de

508
Entrevista concedida à autora em janeiro de 2013.

1120
segurança contemporâneas. Acreditamos que isso seja verdade ainda que
utilizemos um entendimento de segurança mais amplo do que aquela visão
mais tradicional, militarizada. (BUZAN; WÆVER, 2003, p.10, tradução nossa)

Além disso, partindo dessas perspectivas, o papel do Estado é reavaliado para dar
lugar a associações entre governos, processos de cooperação e de integração
regional. Ainda é um ator preponderante, mas conta com outras conjunções. Nesse
sentido, os organismos internacionais passam a ter uma significância cada vez mais
expressiva para a comunidade internacional, inclusive quando se ―propõem a tratar
de um assunto antes exclusivo do Estado, como o era a questão de segurança‖
(CAMPANA, 2011, p. 13).

5 Considerações Finais

A região do Cone Sul passou por muitos momentos distintos durante muitos anos. A
principal configuração durante décadas foi a de conflito e hostilidades provenientes
precipuamente dos dois principais países da região: Brasil e Argentina.

Diversos fatores intervêm nas relações Brasil-Argentina, nenhum dos quais sendo
determinante de forma isolada: a rivalidade estratégica, a geografia, a economia, as
burocracias de Estado, a política interna, disputa entre modelos de desenvolvimento
e tecnologias. E, portanto, o impacto desses fatores em distintos momentos da
história, que se deu de maneira diferenciada em cada um países, explica a
incongruência bilateral sentida por ambos.

Contudo, o mundo também viveu tempos de transição. O surgimento da Era atômica


junto a Guerra Fria, trouxe fatores de incerteza no âmbito internacional e,
consequentemente afetou a América do Sul. O desenvolvimento de tecnologias
atômicas tornou-se símbolo de poder nessa Era e, quase um imperativo para a
sobrevivência no meio. Novamente, Brasil e Argentina sentiram-se compilados por esse
ambiente e incentivaram pesquisas voltadas à área nuclear. Desse modo, as
desconfianças permaneceram durante os sucessivos governos em ambos os países.

1121
Essa realidade só encontra mudança a partir do relaxamento do conflito bipolar, em
âmbito externo, e concomitante aos abrandamentos dos regimes ditatoriais e
redemocratização, em âmbito interno.

Nessa conjuntura, iniciou-se a cooperação de ambos os países, que somente


mudaram sua política nuclear entre 1990 e 1991, porque nunca houve na história
dos dois países interesse de desenvolver armas nucleares no sentido de travar uma
guerra na região. A cooperação ocorreu em virtude de um novo desenho geopolítico
obtido com o fim do bloco soviético, e pela ascensão de governos democráticos
tanto na Argentina como no Brasil, que pôs fim nas respectivas ditaduras militares.

Com a transição para governos civis nos anos 80, a busca pela integração entre eles
teve grande progresso e foi basilar para acelerar o ritmo de colaboração. Essa nova
configuração política, teve o incentivo, a partir da tomada de consciência por parte
dos países sul-americanos de que a cooperação seria um caminho possível evitar a
marginalização.

Portanto, essa mudança de postura de ambos os países é proveniente de fatores


internos dos mesmos, influenciados pelas questões externas. Sendo assim, a
redemocratização do Brasil e da Argentina teve fortes condicionantes internacionais
que pressionavam para adoção de medidas mais condizentes com as oscilações
globais. Essas transformações globais que incitavam em certa medida
comportamentos voltados à regionalização, impulsionaram para uma visão mais
integracionista e amistosa nos países.

Assim, criação da ABACC e assinatura do Acordo Quadripartite nesse sentido, vem


a corroborar com expectativas externas, ou seja, deixava-se clara a intenção
pacífica da utilização de tecnologia nuclear desses países. No contexto regional,
representou o fortalecimento da região e fortalecimento das credencias bilaterais,
instaurando um clima de confiança e integração, não apenas ao entorno, mas
também para a América do Sul como um todo, principalmente, após a aceitação dos
tratado de 1967 e 1968 por ambos países.

1122
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1125
Simpósio Temático 16

OPERAÇÕES DE CONSTRUÇÃO DA PAZ E REFORMA DO SETOR DE


SEGURANÇA: O CASO DO HAITI

Sérgio Luiz Cruz Aguilar509

1 Introdução

As operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) surgiram na


década de 1940 com o objetivo de colocar em prática o sistema de segurança
coletiva previsto na Carta da Organização. De 1948 até hoje foram realizadas 67
operações, sendo que quatorze delas estão em andamento. Nelas, a ONU emprega
78.807 militares armados, 12.321 policiais e 1.808 observadores militares de 114
diferentes países, e 16.791 funcionários civis (UN, DPKO, 2013).

Apesar da ONU desdobrar operações de paz desde a década de 1940, o tratamento


conceitual das operações de paz só se iniciou na década de 1990. A partir daí várias
operações incorporaram ações para garantir a segurança, a governabilidade local,
desenvolver as instituições do Estado, atuar no campo do Estado de Direito e dos
direitos humanos, dentre outras.

A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) foi criada
em 2004 depois de uma grave crise interna que resultou na queda do presidente da
república. Seu primeiro objetivo foi garantir a segurança para, em seguida, auxiliar o
governo haitiano na implementação de uma serie de políticas públicas como forma
de desenvolver o país, melhorar as condições de vida de sua população e dar
estabilidade às suas instituições implantando, dessa forma, o estado democrático de
direito. Dentre as políticas estava a reforma da Policia Nacional Haitiana (PNH).

O presente texto apresenta algumas considerações sobre as operações de


construção da paz em geral, os objetivos da MINUSTAH e as ações desenvolvidas
para a reforma do setor de segurança no Haiti.

509
UNESP – Campus de Marília/SP

1126
2 As operações de construção da paz

A ONU passou a trabalhar conceitualmente as operações de paz com os


documentos ―Uma Agenda para a Paz‖, de 17 de junho de 1992, e seu ―Suplemento‖
de 3 de janeiro de 1995, ambos do então Secretário-Geral Boutros Boutros-Ghali.
Em seguida, vários relatórios trataram dessas operações como o Relatório Brahimi
(2000), Um Mundo mais Seguro: nossa responsabilidade comum (2004) e Em
Maior Liberdade: desenvolvimento, segurança e direitos humanos para todos
(2005). Com esses documentos a ONU passou-se a utilizar cinco categorias de
operações de paz: prevenção do conflito, promoção da paz, manutenção da paz,
imposição da paz econstrução da paz.

A construção da paz (peace-building) consiste em ações executadas ―após o conflito


que identifiquem e apóiem as medidas e as estruturas necessárias para manter a
paz e permitir a reconciliação duradoura das partes envolvidas‖ (AGUILAR, 2005, p.
21). Podem se dar no âmbito ou na sequência de outro tipo de operação,
normalmente de manutenção da paz. Sendo o objetivo principal o de evitar a
recorrência do conflito, as ações são desenvolvidas por programas em áreas como:
restauração da habilidade do Estado em prover segurança e manter a ordem
pública, fortalecimento do Estado de direito e do respeito aos direitos humanos,
apoio à emergência de instituições políticas legítimas e a processos participativos, e
promoção da recuperação social e econômica e do desenvolvimento, que inclui o
retorno seguro e o reassentamento de desalojados e refugiados. Como essas áreas
se inter-relacionam, o mesmo acontece com as atividades críticas a serem
executadas.

Uma das atividades críticas diz respeito à reforma do setor de segurança - Security
Sector Reform (SSR) com a reestruturação, reforma e treinamento das forças
armadas e policiais, a reforma do sistema legal e judicial, o apoio ao
desenvolvimento de uma legislação essencial e, por vezes, reorganização do
sistema prisional (UN, 2008). A questão chave nas atividades de SSR é como
reconciliar uma sociedade fragmentada com a criação de forças armadas e policiais
como instituições neutras. A questão se torna ainda mais complicada quando há o

1127
componente étnico nos conflitos intraestatais onde grupos formam milícias para
proteger suas comunidades.

Como nos territórios envolvidos em conflitos armados, normalmente, ocorrem abusos e


violações de direitos humanos praticados pelos militares e policiais, é fundamental para
as ações de construção da paz que se estabeleça um mínimo de confiança entre os
integrantes das forças de segurança e entre eles e a sociedade local.

3 A MINUSTAH

O Haiti tem uma população perto de 10 milhões de habitantes e ocupa a penúltima


posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). No final de 2003 uma grave
crise resultou num estado de violência que o governo não pode controlar. O
presidente Jean Bertrand Aristide deixou o país e, por conta do cenário que se
formou, o Conselho de Segurança da ONU (CS) autorizou, em 29 de fevereiro de
2004, por meio da Resolução 1529, a mobilização de uma Força Multinacional
Interina de emergência, por noventa dias, composta por Estados Unidos, França,
Canadá e Chile.

Em seguida, a Resolução 1542 criou a MINUSTAH. Segundo o mandato oficial da


missão, a operação tinha três pilares principais, responsáveis por orientar suas
funções e objetivos: segurança e estabilidade, por meio do apoio ao governo de
transição, à restauração e manutenção do Estado de direito, da segurança e da
ordem pública haitianas, e a proteção dos civis sob iminência de violência física;
apoio ao processo constitucional e político, por meio de bons ofícios e
desenvolvimento institucional, estímulo ao diálogo e reconciliação nacional, apoio ao
estabelecimento um processo eleitoral adequado de eleições livres, incluindo a
participação das mulheres; e direitos humanos, compreendendo esforços para a
garantia do exercício desses direitos, particularmente para mulheres e crianças (UN,
CS, S/RES/1542, 2004).

A Resolução autorizou um efetivo de 1 622 policiais civis, incluindo conselheiros, e


um componente militar com até 6 700 homens.

1128
Decorrente do mandato estabelecido pelo CS, a MINUSTAH foi considerada uma
missão multidimensional e integrada, com uma força militar e componentes políticos
e de direitos humanos. De acordo com o mandato, os aspectos que orientaram as
ações da Missão eram a manutenção da ordem e da segurança, o incentivo ao
diálogo político, e a promoção do desenvolvimento econômico e social. Para isso,
numa primeira fase, a prioridade foi o uso da força para garantir a segurança e a
ordem no país face ao descontrole institucional e a onda de violência que se instalou
com a desestruturação do governo de Aristide.

Atingido esse objetivo, procurou garantir o processo de eleição democrática no Haiti,


que culminou com as eleições presidenciais e a vitória de René Préval. Em seguida,
buscou assegurar condições de governabilidade ao novo governo, garantindo a
estabilidade interna e a reconstrução do Estado haitiano e estimulando diversos
campos de políticas públicas.

4 A reforma do setor de segurança no Haiti

O CS acredita que a reforma do setor de segurança ―é critica para a consolidação da


paz e estabilidade [...] extensão da autoridade legítima do Estado e para a
prevenção do retorno do conflito‖. O setor de segurança inclui, normalmente, forças
armadas, policia, corpos de controle como executivo e os parlamentos, organizações
da sociedade civil, instituições jurídicas e de aplicação da lei como o judiciário e o
sistema prisional, assim como seguranças privadas (GLOBAL, 2007, p.1). O Pool de
Prevenção de Conflito Global do governo britânico define SSR como ―um amplo
conceito que cobre um vasto espectro de disciplinas, atores e atividades. Em sua
forma simples, SSR lida com a segurança pública, legislação, questões estruturais e
de controle, todos assentadas no reconhecimento de normas e princípios
democráticos‖ (GLOBAL, 2007, p. 2).

Há uma relação entre SSR e outros fatores importantes de reconstrução e


estabilização, como transição jurídica, desarmamento, desmobilização, repatriação,
reintegração e reabilitação de antigos combatentes, controle de pequenas armas

1129
assim como questões de igualdade de gênero, crianças em conflitos armados e
direitos humanos.

O histórico de forças armadas repressoras no Haiti remonta a independência. O


comportamento predador sempre fez parte dessas forças. Oficiais eram promovidos
e recebiam terras para garantir a lealdade ao executivo. Nos anos 1990, com a
intervenção internacional que garantiu o retorno do presidente Aristide ao poder,
foram feitos investimentos para criar uma nova força policial, abolir as forças
armadas e estabelecer um judiciário e um sistema prisional independentes dos
militares. O plano central da Operação Restaurar a Democracia dos EUA era
desmobilizar as forças armadas haitianas e garantir a segurança pública. Tinham,
então que neutralizar 7 mil militares do exército como primeiro passo, e incorporar
boa parte desses militares na força policial interina. A criação dessa força fez parte
do pacote apresentado a Aristide assim que retomou o poder. Dos 7 mil militares,
3300 seriam absorvidos pela força interina e os demais desmobilizados. Desses
3300, 1500 seriam mantidos nas novas forças armadas quando a força policial
estivesse operacional. Mas, em 23 de dezembro de 1994, Aristide dissolveu o
Exército. Os militares que não foram incorporados a força policial foram demitidos e
se tornaram candidatos ao programa de desmobilização e reintegração apoiado pela
Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a Organização
Internacional de Migrações (OIM) (MENDESLSON-FORMAN, 2006).

Mas, apesar de terem recebido bom treinamento, logo os policiais reassumiram


velhas práticas dos militares e continuaram sendo corrompidos pelo tráfico de
drogas. A corrupção é o problema central que atinge autoridades em todos os níveis
no país. Isso faz com que a população desacredite nas autoridades e na polícia, se
armando e fazendo justiça com as próprias mãos, inclusive praticando linchamentos
(MENDESLSON-FORMAN, 2006).

No segundo governo de Aristide, os setores de segurança e justiça foram fortemente


politizadas e muitos juízes, promotores e policiais foram sendo promovidos com
base na lealdade ao governo e não por mérito.

Nos regimes haitianos anteriores o judiciário era subordinado aos militares e todos
cometiam abusos contra a população (CENTRE, 2009a). Os juízes eram nomeados

1130
por períodos fixos pelo Presidente a partir de uma lista preparada pelo Senado ou
pelas assembléias departamentais ou populares. A continuidade no cargo dependia
de um processo político. Promotores eram colocados como agentes do executivo e
os juízes ganhavam menos que os policiais. Logo, eram extremamente vulneráveis à
corrupção (MENDESLSON-FORMAN, 2006). Além disso, o Haiti tem como línguas
oficiais o francês e o créole. Como a maior parte da população fala créole e os
membros do judiciário usam o francês, há dificuldade de acesso à justiça pela maior
parte dos haitianos, agravado pela falta de delegacias de polícia e de cortes em
várias partes do país (CENTRE, 2009a).

A administração civil do sistema prisional só foi criada no Haiti apenas em 1995. Em


2004, havia 21 prisões com 3 640 presos. Super lotação, condições sanitárias e de
saúde não condizentes e extensão dos períodos de detenção sem julgamentos eram
os principais problemas. Cerca de 80% dos detentos no Haiti não haviam sido
condenados o que colaborava para a superlotação das prisões (CENTRE, 2009a).

Em 2001, antigos membros das forças armadas iniciaram uma mobilização na


fronteira com a República Dominicana. No final do ano seguinte, outro grupo iniciou
a mobilização em Pernal e em 2003 iniciaram operações que resultaram na morte de
civis e perseguições a policiais. Os chimeres, gangues ilegais que usavam a força,
muitos delas criadas e financiadas por Aristide para intimidar opositores políticos,
também agiam no Haiti. Em 2004 a situação saiu do controle e a polícia não tinha
poder para fazer frente a esses grupos que controlavam o norte e a parte central do
país (CENTRE, 2009a).

Com o recrudescimento da violência e a queda do presidente, a ONU estabeleceu a


MINUSTAH. No setor da SSR, a operação procurou realizar ações para dotar a
polícia de capacidade para responder, sem apoio externo, às ameaças à
estabilidade do país, por meio da sua profissionalização e o desenvolvimento da
infra-estrutura. Para garantir a segurança inicial do país, além da Força Militar, foram
desdobrados policiais internacionais da ONU.

Foi constituída uma comissão interministerial sobre desarmamento e adotado o


Pacto de Consenso sobre a Transição Política, assinado em abril de 2004. A
comissão, liderada pelo Ministro do Interior, era integrada por antigos militares e

1131
representantes de antigos soldados. No bojo das políticas a serem adotadas nessa
área estavam: compensação por pagamentos atrasados, fundo de pensão para
membros da antiga força militar, dissolvida por Aristide e um dos focos da violência
de 2004, reorganização dessa força, qualificação de antigos militares para
reinserção na sociedade (UN. S/2005/124, 2005).

A força policial haitiana era de cerca de 3mil homens, insuficiente para uma
adequada segurança do país, e diversas delegacias de polícia foram destruídas e
saqueadas durante a crise de 2004. Além do reparo das instalações, foi estabelecido
um programa de reforma, reestruturação, desenvolvimento e profissionalização da
PNH que incluiu o recrutamento e treinamento de novos policiais conduzido segundo
padrões internacionais de policiamento e de direitos humanos.

Nos primeiros anos de desenvolvimento do programa, percebeu-se uma falta de


coordenação entre doadores internacionais apesar da criação de diversos
mecanismos com essa finalidade. Em parte, esse problema estava relacionado com
a falta de um quartel general integrado na MINUSTAH. Em 2009, relatório da ONU
apresentou pequena melhora. No início da operação ocorreram problemas de
relacionamento entre policiais e militares da ONU em razão de culturas operacionais
diferentes. A situação melhorou e, entre 2006 e 2007, operações integradas contra
as gangues tiveram sucesso.

Em novembro de 2009, cumprindo o cronograma, o efetivo da PNH atingiu 10 mil


policiais, mas não tinham ainda equipamentos básicos para operar (CENTRE, 2010).

Como o comercio ilícito operado por traficantes de drogas era um dos principais
problemas de segurança do Haiti, a ONU determinou como prioritário, em 2009, o
controle de fronteiras (CENTRE, 2010). Os 1 800 km de costa desprotegidos e a
fronteira com a República Dominicana facilitam o tráfico de armas, drogas e pessoas
(STIMSON CENTER, 2012). A OIM e a Força Tarefa Canadense de Estabilização e
Reconstrução recuperou 14 postos na fronteira com a República Dominicana e
treinou funcionários de imigração (CENTRE, 2010).

Com relação à área prisional, apesar da reabilitação de 17 centros de detenção


entre 2004 e 2008 o sistema ainda permanecia precário. O plano de reforma do

1132
sistema prisional (2007 – 2012) previu o desenvolvimento da infra-estrutura,
aquisição de equipamentos, treinamento de pessoal e reabilitação e melhora do
tratamento de detentos (CENTRE, 2009a). Foi formado um Grupo de Trabalho em
Prisões liderado pelo Canadá com a presença da MINUSTAH, EUA e Noruega para
apoiar o governo do Haiti em atingir os objetivos do plano (CENTRE, 2009b).

Como baixos salários eram sempre citados como justificativa para a corrupção, o
governo interino adotou, em 2005, medidas para aumentar os salários de policiais e
membros do judiciário em mais de 50% (CENTRE, 2009b).

Entre 2006 e 2007 a seção de justiça da MINUSTAH auxiliou o Ministério da Justiça


a preparar uma nova legislação para fortalecer a atuação independente do judiciário.
Leis relacionadas com o Conselho Superior de Justiça, a definição do status dos
magistrados, e a criação da Escola de Magistratura foram adotadas em 2007, mas
obstáculos políticos não permitiram a implementação da reforma. Apesar do
discurso, as autoridades ainda bloqueavam as ações para reforma do sistema,
fazendo parecer que as elites queriam continuar se beneficiando da disfunção do
mesmo (STIMSON CENTER, 2012).

Desde 2007, a MINUSTAH colabora para o estabelecimento de escritórios de


assistência jurídica com o objetivo de abrir 20 escritórios, 18 um em cada província,
mais dois para atender a populaçã da capital (STIMSON CENTER, 2012).

No entanto, os progressos no campo da reforma do setor de segurança foram


prejudicados diversas vezes. Em 2008, houve uma paralisação do governo durante
uma crise política com a saída do Primeiro Ministro e a vacância do cargo por cinco
meses. Quatro furacões atingiram pesadamente o país. Em 2010, o terremoto de
janeiro devastou parte de Porto Príncipe e o surto de cólera no final do ano atingiu
300 mil pessoas e matou 5 mil (STIMSON CENTER, 2012).

O terremoto de 12 de janeiro de 2010 atingiu a capital, Porto Principe e algumas


cidades próximas, criando uma situação sem precedentes. Quase todos os
membros do governo perderam familiares (GOVERNMENT, 2010a), dois senadores
foram mortos e vários líderes políticos ficaram feridos (ONU, S/2010/200, 2010). O
país perdeu um terço dos 60 mil funcionários públicos (ONU, S/2010/200, 2010).

1133
Aproximadamente 80% do setor de justiça foi afetado. Cerca de 49 prédios foram
danificados, arquivos foram destruídos. O Ministério da Justiça foi completamente
destruído e o ministro teve que ser resgatado dos escombros. Vários juízes
morreram em suas casas (FORTIN, 2011).

A Polícia Nacional do Haiti teve com 77 oficiais mortos e centenas feridos ou


desaparecidos. Só em Porto Príncipe, dos 3 mil policiais existentes, 60 morreram,
200 foram seriamente feridos e um número significante foi para outras regiões com
suas famílias. Metade do total de 8 535 presos escapou das penitenciárias, incluindo
muitos líderes de gangues (ONU, S/2010/200, 2010).

Em torno de 300 mil ficaram feridas (RELIEF WEB, 2010), cerca de 105 mil casas
foram totalmente destruídas e mais de 208 mil ficaram danificadas. Os danos e
prejuízos foram estimados em US $ 7,9 bilhões (pouco mais 120% do PIB do país
de 2009) (GOVERNMENT, 2010b, p. 7).

Dessa forma, o terremoto destruiu parte dos avanços que haviam sido obtidos desde
o estabelecimento da operação de paz em 2004 e fez com que a ONU atribuísse
missões humanitárias a MINUSTAH para auxiliar no socorro e, posteriormente, na
reconstrução da área afetada no Haiti.

5 Conclusão

A construção da paz é um processo longo, profundo e complexo relacionado com


assuntos que afetam o funcionamento da sociedade e do Estado. Além de buscar o
fortalecimento da capacidade de governança as ações atingem diversas áreas como
economia, infra-estrutura, educação, saúde e as instituições ligadas ao
estabelecimento do estado de direito, como as forças de segurança, sistemas
judiciário e prisional.

As ações de construção da paz implicam em realizar a transição de um estado de


violência para o de uma sociedade civil organizada. O estado de violência faz com
que os aparatos de segurança se tornem instrumentos de repressão ao invés da
proteção da sociedade. Assim, mudanças fundamentais nas forças armadas e

1134
policiais, bem como dos sistemas judiciário e prisional, fazem parte desse processo.
A reforma do setor de segurança é desenvolvida com a ideia central de quea polícia
éum serviço, não uma força, com o foco principalna segurançado indivíduoe não do
Estado, que responda às necessidades dosindivíduos e que seja responsávelpor
suas ações (BAYLEY, 2001).

Como o foco da violência no Haiti foram antigos militares e gangues armadas, a


MINUSTAH procurou criar instrumentos para lidar com as demandas desses antigos
militares, agir contra as gangues que dominavam diversas partes do país e
―construir‖ uma nova polícia no país. Ao mesmo tempo, iniciou-se a reforma dos
sistemas judiciário e prisional e procurou-se desarmar a população.

Mas, apesar dos avanços obtidos a partir de 2004, os diversos desastres naturais
prejudicaram e, no caso do terremoto de 2010, destruíram parte do que havia sido
construído no país. Além disso, o Haiti continua a enfrentar significativos desafios
humanitários, com um grande número de pessoas internamente deslocadas ainda
dependentes de assistência para sobrevivência. A epidemia de cólera ocorrida no
final de 2010 mostrou que, além das calamidades provocadas por desastres
naturais, o país possui uma extrema vulnerabilidade a calamidades em outras áreas
como a da saúde. O governo carece de capacidade em razão de vários fatores
estruturais e institucionais.

Apesar dos investimentos questionava-se o nível de comprometimento doméstico ao


programa de reforma do setor de segurança. Atores nacionais expunham seu
comprometimento com o processo, mas na prática não colaboravam com sua
implementação. Isso pode ser parcialmente atribuído a percepção que as iniciativas
de reforma do setor de segurança estavam sendo impostas pela agenda
internacional antes de ser orgânica.

Dessa forma, vislumbra-se que a presença internacional, especialmente da ONU por


intermédio da MINUSTAH ainda será necessária para implementar as inúmeras
ações ainda necessárias para a completa reforma do setor de segurança no Haiti, de
modo a, pelo menos nesse campo, permitir uma situação estável ao país.

1135
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2012.

1137
Simpósio Temático 17

EMBRAER: POSICIONAMIENTO GLOBAL Y NUEVOS DESAFÍOS

Aureliano da Ponte510

1 Introducción

Un Proyecto de Estado de carácter estratégico es la expresión de un arreglo


institucional informal sustentado por la cooperación y apoyo concreto de diversos
organismos, agencias e instituciones estatales, empresarios nacionales, Fuerzas
Armadas, académicos e intelectuales y la sociedad en su conjunto. El mismo supone
objetivos de mediano y largo plazo nacidos de acuerdos entre los principales actores
políticos y económicos de un país vinculados a un proceso de industrialización.
Sobre esta base deberá asentarse la estrategia, así como el diseño y la ejecución de
las políticas públicas, tanto en la gestión doméstica como en la interacción
internacional (DA PONTE, 2012).

Este concepto tiene un carácter dual, en tanto es estratégico e instrumental


simultáneamente. Estratégico, porque supone una Estrategia Nacional de Desarrollo
(BRESSER PEREIRA, 2007). Instrumental, porque subyace a su definición una
suerte de mecanismo que nuclea y vincula a organismos, instituciones y agencias
(Gobierno); a Centros de Investigación y Desarrollo y a las universidades
(Infraestructura Científico-técnica); y al empresariado nacional (Estructura
Productiva) en relación a determinados proyectos, por caso, el desarrollo y
fortalecimiento de la industria aeronáutica (DA PONTE, 2013). Si estas
interacciones son estimuladas desde el Gobierno, producirán comunicaciones en
distintos niveles, lo cual favorecerá el conocimiento y la confianza entre los actores
involucrados. Asimismo, al no proponer un esquema u organización industrial
determinada, el concepto supone cierto nivel de abstracción que le permite una
mayor flexibilidad analítica.

510
Escuela Superior de Guerra

1138
De todas maneras, parece adecuado precisar que esta perspectiva comprende la idea
de participación de los actores nacionales relevantes y el entramado de apoyos
concretos para desarrollar un determinado sector industrial estratégico. No obstante, no
aborda las características que debe reunir laestrategia de producción, ni tampoco
hace referencia a una estrategia empresarial particular, lo cual no es un detalle menor.
La primera es una variable central y condicionante, aunque no exclusiva, que configura
un tipo de Modelo Industrial de Desarrollo. De ahí que su adopción no sea indiferente
para la generación y/o consolidación de capacidades nacionales en la estructura
productiva y en la infraestructura científico-técnica. La segunda, ligada a la noción de
Modelo de Negocios, pone el foco en los indicadores de competitividad (económicos,
comerciales, financieros, entre otros). Evidentemente, en las últimas décadas se ha
profundizado la interrelación de ambos, por lo cual es muy importante que sean
concebidos de forma articulada y complementaria. Sin embargo, no debe soslayarse
que responden a lógicas distintas.

En virtud de lo anterior, el artículo se divide en dos partes más la conclusión. En la


primera, analiza cómo fue el proceso de crisis y privatización hasta su adaptación a
una nueva dinámica global. En la segunda, se destaca su posicionamiento global y
los desafíos asociados.

2 De la crisis a la adaptación

Cuando Embraer pasó a manos privadas a fines de 1994, comenzó una etapa
distinta en su trayectoria. Mientras la empresa fue estatal, el criterio orientador de
la gestión había sido engineering driven, en el cual pueden identificarse como
objetivos, más o menos centrales, el aprendizaje selectivo en el manejo de
―tecnologías llave‖ y el desarrollo de algunas capacidades productivas locales (al
margen de los resultados efectivamente alcanzados en cada uno). Por el
contrario, la nueva gestión alineó a la organización con ―las señales del mercado‖
bajo el criterio market driven. Naturalmente, cada uno deriva tanto en valores y
objetivos como en estrategias productivas y empresariales diferentes. La
empresa, gestada bajo una ―lógica tecnológica‖, fue redireccionada hacia una
―lógica económico-financiera‖.

1139
Igualmente, este período fue extremadamente complejo, por lo que en este artículo
es imposible tratarlo en profundidad. En todo caso, nos abocaremos a plantear
algunas consideraciones para entender cómo Embraer pasó de superar una crisis
casi terminal, hasta generar las condiciones para ascender y posicionarse entre las
primeras del mundo en la producción de aviones comerciales. Ello es relevante si
tenemos presente que fue una de las pocas sobrevivientes de los años noventa
junto con Bombardier (Canadá) y ATR (Francia/Italia), al menos en la producción de
Jets regionales.

Por eso, este nuevo período es interesante para conocer los cambios que la nueva
conducción promovió en la empresa a fin de encarar las transformaciones producidas
en la industria aeronáutica mundial a partir de la última década del siglo XX.

3 Crisis y privatización

A comienzos de 1990, el sector aeroespacial sufrió una crisis que provocó, desde
la desaparición de algunas empresas, hasta la fusión de otras. Para tomar
dimensión del impacto de este escenario sobre la empresa brasileña, hay que
tener presente que en 1994 las pérdidas ascendieron a 310 millones de dólares
contra ventas por valor de 177 millones, recortándose 6.500 puestos de trabajo
entre 1990-1992 y cayendo al puesto 38º (ocupaba el 3º lugar) entre los grandes
exportadores de Brasil. A pesar de que buena parte de las líneas de producción
quedaron ociosas, se llevaron adelante medidas para restringir los efectos
negativos sobre la situación financiera. El objetivo era mantenerse en el mercado,
por lo que se fabricaron piezas para la industria automotriz y para ventiladores,
materiales compuestos, servicios de ingeniería de calidad y ensayos, llegando
incluso a producirse bicicletas en fibra de carbono. Este cuadro se agravó como
consecuencia de algunas acciones que el gobierno de Collor de Melo implementó
entre las que se destacan la prohibición de financiar las exportaciones (una
necesidad determinante para esta industria). Para entonces, los estudios sobre
competitividad de la industria aeronáutica en Brasil eran muy poco auspiciosos.
De hecho, prácticamente todas las empresas nacionales abastecedoras
desaparecieron.

1140
Así las cosas, se decidió avanzar hacia la privatización. El proceso demoró varios
años debido a la oposición que tuvo por parte del Ministerio de Aeronáutica y de la
Fuerza Aérea Brasileña, de los trabajadores y de la población de San José Dos
Campos. Los nuevos socios mayoritarios, pasaron a ser grupos empresarios
brasileños y fondos de pensión con el 40% de las acciones y el derecho a voto, un
10% reservado a los trabajadores y funcionarios y el 6,8% en manos del Estado
(más la acción de oro o ―golden share‖). La privatización incluyó la planta de San
José Dos Campos, Embraer Aircraft Corporation (EEUU), Embraer Aviatione
International (Francia) y Aeronáutica Neiva, fábrica que construía aviones livianos y
había sido adquirida en los años ochenta. El valor de venta fue de R$ 265 millones y
su deuda (antes de un programa de saneamiento que realizó el Estado en el que se
hizo cargo de US$ 700 millones) ascendía a US$ 1000 millones de dólares.

4 Reestructuración y reorientación hacia el mercado

La gestión orientada al mercado se tradujo en un cambio de atención hacia la


satisfacción del cliente como objetivo central. En tal sentido, pueden precisarse
cuatro ejes: administración de resultados a través de la reingeniería financiera y
la restructuración patrimonial, organizacional y productiva; relaciones con clientes
y proveedores sobre nuevas bases; nueva estrategia de mercado; prioridad del
programa ERJ-145. Esto suponía ―refinar‖ y ―profesionalizar‖ cuestiones que si
bien existían en la etapa estatal, eran puestas en práctica de forma más intuitiva.
Entre otras, se oficializaron e institucionalizaron las actividades de planeamiento
estratégico e información de mercado. El propósito era que las acciones fueran
producto de una estrategia elaborada capaz de anticipar las tendencias. Los
planes de largo plazo estipularon metas a alcanzar con rigurosos indicadores de
desempeño.

La restructuración derivó en la reducción de los niveles ejecutivos por lo que la


jerarquía se volvió más simple y se contrató a una consultora internacional para que
rediseñara el organigrama. Ello implicó que fueran los proyectos los que
estructuraran a la empresa (los equipos se conformaban con integrantes de las
diversas áreas), aplicándose un sistema de salarios basado en el rendimiento. Se

1141
organizaron dos áreas de mercado distintas (diferenciadas por el tipo de cliente y el
foco de actuación de cada una). El área civil comercial (explica el 80% de ventas de
la empresa), atiende el mercado mundial de aviación de transporte regional; y el
área militar comercial (representa el 20% de la facturación de la empresa). Esto fue
acompañado por inversiones para mejorar las líneas de producción, modernización
de equipos y máquinas, a fin de aumentar la productividad. Se crearon centros de
apoyo en otros países por lo que ciertas pruebas pasaron a realizarse en el
extranjero, aunque parte de la I+D fue derivada al CTA. Se destinaron recursos en
tecnologías de la información para mejorar los métodos y procesos. En definitiva,
todo esto produjo un importante incremento de la eficiencia y una disminución de los
plazos para la fabricación de los modelos.

La estrategia empresarial a los fines de la recuperación se puso en práctica a través


de una arquitectura que se apoyó en acuerdos institucionales y alianzas estratégicas
con empresas aeronáuticas internacionales. Ahora bien, la empresa ya había
realizado un camino de aprendizaje de la mano de este tipo de entendimientos. No
obstante, lo que cambió fue la naturaleza de estas asociaciones en razón de que
desde este momento pasaron a basarse en los criterios de la competitividad. Por lo
tanto, Embraer se dedicó a las actividades de concepción y diseño de los proyectos,
la integración y el montaje final, transfiriendo a otras empresas (casi en su totalidad
extranjeras) la fabricación de las partes y subsistemas. Si en términos económicos
esto fue favorable tal como exhiben diferentes indicadores, desde la óptica industrial
contribuyó a desconectar a la empresa de la estructura productiva nacional.

Por otra parte, en julio de 1999 se incorporaron como accionistas grupos industriales
europeos. A partir de la nueva composición accionaria, el valor de la empresa
aumentó a alrededor de los U$S 1000 millones. Ello derivó en dos situaciones. Por
un lado, la construcción de una planta destinada a las pruebas de aeronavegabilidad
de aviones militares de alta velocidad, con la finalidad de evitar que deban ser
enviados al exterior, ubicada en la Gavião Peixoto, situada a unos 280 kilómetros al
noroeste de San Pablo. Por el otro, en la creación en abril del año 2000 del Mirage
2000 BR Consortium, cuyo propósito era comerciar en América Latina el avión
Mirage 2000 BR (versión modernizada del Mirage 2000 fabricado por Dassault
Aviation). El acuerdo dispuso que el análisis, desarrollo y prueba del aparato se

1142
realice en forma conjunta, llevándose a cabo el montaje final en las instalaciones
brasileñas.

5 Recuperación y adaptación

La recuperación de la empresa vino de la mano del programa ERJ-145 (13). Este


avión, un jet para 50 pasajeros, fue concebido en los últimos años del período
estatal y desarrollado en difíciles condiciones. Justamente esta situación permite
afirmar que tuvo dos consecuencias fundamentales. Fue el que posibilitó su
continuidad a la vez que simboliza el nuevo paradigma de asociación de riesgo con
proveedores extranjeros que ha marcado la dinámica productiva de allí en adelante.
El costo inicial estimado del ERJ-145 fue de U$S 300 millones y si bien la empresa
tenía la capacidad de fabricarlo en términos tecnológicos, no estaba en condiciones
económicas de afrontar la inversión. Dentro de Brasil, el BNDES financió US$ 100
millones. Los socios principales fueron Gamesa de España, Sonaca de Bélgica,
ENAER de Chile y la norteamericana C/D. Lo que distinguió a este avión de sus
competidores directos (Canadair Regional Jet/CRJ y SAAB 2000) fue que supo
combinar acertadamente el rendimiento de un Jet con los costos de operación de un
turbohélice.

La primera experiencia de la aeronave, homologada el 16 de diciembre de 1996 por


la Federal Aviation Administration (FAA), es un nuevo ejemplo de no se ha
modificado la necesidad de sostén estatal que requiere esta industria. Al respecto, la
pérdida de un contrato por 150 aviones para dos empresas norteamericanas de
transporte aéreo regional (lo ganó el CRJ 500), no fue producto de características
técnicas superiores del aparato, sino de las condiciones de financiamiento que la
Bombardier canadiense ofreció a los compradores. El acontecimiento demostró la
necesidad de fortalecer la colaboración entre Embraer y el BNDES por medio de
diversas modalidades. En este camino, en la Feria Aeronáutica de Farnborough
(Inglaterra) de 1996 se negoció un contrato por 200 ERJ-145 a Continental Express
(EE.UU.) por US$ 375 millones (25 compras firmes y opciones por 175 más). Al año
siguiente, en el Salón Aeronáutico de Le Bourget, tras una disputa con Bombardier,
la empresa lograría el contrato más relevante de su historia. El mismo comprendía la

1143
adquisición de 67 ERJ-145, más las piezas de reposición y asistencia técnica por
parte de American Eagle, subsidiaria para vuelos regionales de American Airlines. El
volumen del contrato fue de US$ 1 billón por los aparatos más US$ 1,6 billones por
los otros servicios.

Al éxito comercial de esta aeronave se agregó en septiembre de 1997 el ERJ-135,


versión para 37 pasajeros que comparte el 90% de sistemas y aeropartes; y luego el
ERJ-140 con 44 asientos, conformando una ―familia‖ de jets. Así, como comenta
Goldstein (2002, p. 105) ―en 1998 EMBRAER volvió a ser rentable tras 11 años
consecutivos de trabajar a pérdida‖. Naturalmente, esta situación fue posible en un
escenario en el cual la economía internacional se encontraba nuevamente en
expansión. En este sentido, para 1999 Embraer se ubicó como primer exportador de
Brasil, generando el 3.5% del total de ingresos por exportaciones del país, aunque,
al importar la mayoría de los insumos para la producción de sus aviones, también
fue el segundo importador.

6 El Estado brasileño y los apoyos institucionales

Al igual que en el pasado, el BNDES continuó siendo, dentro del sector público,
uno de los actores fundamentales que contribuyó de forma concreta con el
financiamiento tanto de la producción como de las exportaciones. Así, cumplió
con el objetivo de apoyar a la empresa con herramientas que abarcaron desde
préstamos y aportes de capital, hasta líneas de crédito para la comercialización.
Además, la Agencia Especial de Financiamiento de la Industria como agente
financiero del sistema BNDES instrumentó el Programa de Financiamiento a la
Exportación de Máquinas y Equipamientos (FINAMEX, actualmente BNDES-
Exim), gracias al cual es factible costear hasta el 100% de las exportaciones de
bienes de capital. Otra ha sido la Financiadora de Estudios y Proyectos (FINEP),
una empresa pública vinculada al Ministerio de Ciencia, Tecnología e Innovación
que coordina el Programa de Apoyo al Desarrollo Tecnológico de la Empresa
nacional (ADTEN). Asimismo, el Programa de Desarrollo Tecnológico Industrial
(PDTI), que ofrece recursos nuevos y exime de impuestos a las empresas
innovadoras tuvo a Embraer como uno de los destinatarios más beneficiados.

1144
Otro de los instrumentos ha sido el Programa de Estímulo a las Exportacion es
(PROEX), gerenciado por el Banco do Brasil, el Ministerio de Hacienda y el
Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.

7 Embraer en el siglo XXI: nuevos desafíos

Desde que inició su recuperación (la elección del año 1998 cuando dejó de
trabajar a pérdida parece adecuada como punto de partida) hasta que se
posicionó como una de las líderes en el segmento de jets regionales pasaron sólo
6 años (2003). En términos cuantitativos, en el período 2000-2010 se observa un
notable crecimiento. Sus ingresos oscilaron entre unos R$ 5,100 millones en el
año 2000 a un pico de R$ 11,700 millones en 2008. En relación al lucro neto, con
información hasta el 31 de marzo de 2012, el total asciende a R$ 8,900 millones
(EMBRAER, 2012). De igual modo, tuvo lugar una significativa expansión
geográfica a través de asociaciones de riesgo y/o la adquisición de subsidiarias
integrales o de servicio de posventa.

a) Expansión y posicionamiento global

Embraer terminó la década del noventa con la asociación estratégica con el grupo
europeo EADS, Dassault, Thales y Snecma, incorporados a la estructura societaria.
A partir del éxito alcanzado por la familia ERJ-145, la empresa comenzó a cotizar en
la bolsa de Nueva York (NYSE) y de San Pablo (BOVESPA), lo cual le facilitó el
acceso al mercado de capitales a menores tasas de interés. Por otro lado, se dio un
doble proceso de expansión. Por una parte, como resultado de su estrategia de
acuerdos y asociaciones de riesgo pasó a conformar un conjunto de compañías. Por
la otra, estableció oficinas en aquellos países claves en su proyección comercial. En
tal sentido, en el 2000 abrió sus primeras oficinas en China para comercializar sus
aviones y brindar servicios de posventa (Beijing y Harbin). Luego en Singapur,
considerado un centro de distribución de vuelos muy importante en Asia y el
Pacífico. En 2002, inauguró una unidad de servicios de mantenimiento en Nashville
(EEUU) que amplió en 2005 y 2006, conformándose la subsidiaria Embraer Aircraft

1145
Maintenance Services, Inc. (EAMS) para atender a las flotas de jets 170/190. En
este país, además, inauguró en 2011 la primera planta para ensamblaje final del jet
ejecutivo Phenom 100 en el aeropuerto de Melbourne (Florida). Asimismo, se
establecieron diversos centros ya sea de servicios, lo que incluye mantenimiento y
entrenamiento, como de producción en Portugal, la República Checa, nuevas
instalaciones en Francia (Villepinte) y en el propio Brasil (Faria Lima, Eugenio de
Melo, Gaviao Peixoto, Taubaté). En definitiva, actualmente tiene presencia global.

En 2002 se asoció a AVIC II de China, estableciendo una unidad en Harbin. A fines


de 2003 era presentada la primera aeronave producida en la Harbin Embraer Aircraft
Industry (HEAI). En 2004, un consorcio liderado por la empresa (EMBRAER-EADS)
compró OGMA (Industria Portuguesa S.A.), ampliando así su presencia en Europa.
En 2012, tras celebrar un acuerdo con EADS pasó a controlar a OGMA. En 2006,
Kawasaki Heavy Industries Ltd., una de sus proveedoras principales, transfirió la
fabricación de partes metálicas de las alas del ERJ-190 y ERJ-195 a Embraer. En
2008, adquirió la totalidad de las acciones del Grupo Liebherrb Aerospace y reforzó
sus entendimientos con Egyptair, trasladando a sus instalaciones en El Cairo las
reparaciones de los componentes, el mantenimiento y revisión de los aviones.

b) Competitividad y producción

La estrategia de producción, en el marco del programa ERJ-145, se desarrolló en


función de la competividad como ha sido mencionado. Para ello, Embraer se valió de
su propia experiencia para absorber los conocimientos resultantes de sus
asociaciones de riesgo, pero también invirtiendo recursos. A comienzos del año
2000 inauguró el Centro de Realidad Virtual (CSRC, sus siglas en inglés) que
permitió la proyección tridimensional de las aeronaves en tiempo real. Esto hizo
posible examinar con un destacado nivel de detalle todo el aparato en la fase de
diseño. De ahí que el ERJ-170, el primer aparato de la nueva familia de jets con
capacidad de 70 a 120 asientos, haya sido desarrollado en 38 meses frente a los 60
meses que había demandado el ERJ-145. Asimismo, los proyectos pasaron a
orientarse por los principios de la ―ingeniería concurrente‖ a fin de optimizar tanto la
etapa de fabricación como la de mantenimiento, disminuyendo los tiempos del ciclo

1146
de fabricación. Esto redujo los costos financieros y de los materiales, posibilitando la
expansión en el mercado.

De igual modo, entre el programa ERJ-145 y el ERJ-170/190 existen otras


diferencias. Si en el primero la relación con los proveedores de partes y
componentes era ―modular‖ (una coordinación más jerárquica de acuerdo al
subsistema o componente de que se trate), en el segundo se convirtieron en socios
de riesgo. De esta manera, se integraron desde el principio, asumiendo no sólo el
desarrollo de los subsistemas sino además contribuyendo con la arquitectura del
avión (la literatura de gestión de proyectos utiliza el concepto de ―Equipo Integrado
de Ingeniería ―). Esta nueva interacción de tipo ―relacional‖ constituyó una mudanza
significativa que si bien favoreció el éxito del programa y facilitó el crecimiento de
algunos de esos proveedores extranjeros, ha tenido un impacto negativo sobre la
industria aeronáutica brasileña (dejando de lado a Embraer) como argumentaremos
a continuación.

c) Consideraciones sobre la estrategia de producción

Las transformaciones mundiales en el sector aeronáutico así como las limitaciones


económicas y financieras de Brasil, fueron factores condicionantes para la elección
de la estrategia de producción que pasó a predominar. La empresa se concentró en
las capacidades de proyectar e integrar la arquitectura de la aeronave, sus
subsistemas, a especificar componentes y los servicios de posventa. Se creó el
concepto de cadena de valor, ubicando en el centro aquellos procesos básicos y
distinguiéndose tres grupos integrantes: los socios, los proveedores y los
subcontratados.

En la evolución de esta cadena, Montoro et al. (2009) identifican la combinación de


tendencias que se entrecruzan configurando una trama compleja y no exenta de
contradicciones como podrá observarse: desverticalización e internacionalización de
los flujos de inversión, comerciales y tecnológicos.

La primera tendencia forma parte de un proceso mucho más amplio que se ha ido
desarrollando al compás de la internacionalización económica que, desde

1147
comienzos de los noventa, comenzó a acelerarse (lo que se expresa en la
―globalización de la cadena productiva‖). Sin embargo, han emergido circunstancias
que van a contramano que deben subrayarse. La cuestión es la siguiente. La
empresa efectivamente se ha sumado a esta lógica y, de hecho, ha estructurado su
modelo de negocios subordinando su estrategia productiva. Sirve de ejemplo que la
política para la industria aeronáutica no ha apuntado a gravar los productos
importados con aranceles altos ni a imponer exigencias en materia de contenido
local. A la vez, han comenzado a aparecer elementos que evidencian la intención de
incrementar el índice de nacionalización de sus aviones.

Ahora bien, lo que no aparece tan claro es a quién atribuir la causa. A la presión de
los gobiernos brasileños desde 2003 hasta la fecha o a la empresa basándose en
las mejores condiciones en que se encuentra actualmente. Así las cosas, este
crecimiento de la participación nacional no debe ser exagerado ya que por ahora es
bastante reducido. Sea como fuere, desde la privatización sus programas se han
desarrollado de forma desconectada de la estructura económica.

La segunda tendencia surge como resultado de la experiencia del programa ERJ-


145, profundizada en la producción de la nueva familia de jets (ERJ-170, ERJ-175,
ERJ-190 y ERJ-195). En el primer nivel de la cadena de valor, no sólo aumentó el
número de socios de riesgo sino que también se triplicó el valor de sus aportes en
razón de que la mayor parte de los sistemas principales fueron adquiridos a
empresas internacionales. Con todo, estos cambios no fueron solo cuantitativos,
sino también cualitativos implicando una mudanza en la dinámica de
relacionamiento. Los socios incrementaron su peso en las decisiones, ya sea en la
elección de los proveedores (el segundo nivel) como en las definiciones de
inversión. Lo cierto es que esta circunstancia restringe la posibilidad de
nacionalización debido justamente al peso económico y tecnológico que tienen. En
un detallado estudio sobre el tema, Montoro et al. sostienen que el ―suceso de
EMBRAER no fue acompañado por una significativa densificación de la cadena de
abastecimiento en el Brasil‖ (2009: 16). Cabe señalar que esto es lo que predomina,
sin que ello implique que no existan casos, que los hay, del establecimiento de
asociaciones que se localicen en Brasil.

1148
d) Embraer Defensa y Seguridad

El segmento de Defensa, si bien representa una participación relativamente pequeña


de sus ingresos, alcanzó en los últimos años algunos logros importantes. Al igual
que en las décadas pasadas, el principal cliente continúa siendo la Fuerza Aérea
Brasileña (FAB) con el 60% de sus aeronaves en uso fabricadas por Embraer. De
todas maneras, las ventas de aviones militares representan para 2012 alrededor del
20% de ingresos. En virtud de ello se ha creado EmbraerDefensa y Seguridad como
un área específica.

En cuanto a las aeronaves, en 1995 había comenzado el desarrollo de una versión


de ataque ligero denominada ALX, que en 1996 fue rebautizada como EMB 315
Super Tucano. Este aparato es una evolución avanzada del Tucano para misiones
de entrenamiento, patrullaje y contrainsurgencia. El contrato entre la FAB y la
empresa estipulaba 99 aparatos el con esa configuración (33 monoplaza y 66
biplaza) cuya primera entrega se concretó a fines de 2003. Asimismo, otros un
número semejante ha sido exportados o está en proceso de serlo (han firmado
ordenes Angola, Burkina Faso, Guinea Ecuatorial, Chile, Colombia, República
Dominicana, Indonesia y Ecuador) (18). De hecho, el Super Tucano representa el
producto militar más exportado por la empresa desde principios de los noventa
(cerca del 67% de las transferencias externas del país entre 2006 y 2010). Ahora
bien, debe apuntarse que al igual que en las décadas anteriores, los componentes
tecnológicos principales son adquiridos en el extranjero. En este caso, los
proveedores son norteamericanos, europeos e israelíes.

Por otro lado, se han fabricado versiones militarizadas del ERJ-145 (EMB-145
AEW&C, Alerta Temprana y Control; EMB-145 MULTI INTEL de vigilancia aérea; y
EMB-145 MP de patrullaje marítimo y misiones antisubmarinas). La FAB adquirió
unidades y otras fueron exportadas. El primer modelo, en términos comparativos, es
uno de los más avanzados y con menores costos de adquisición. Tiene dispositivos
de autoprotección y sistemas de apoyo para misiones militares de vigilancia
territorial. Otra de las acciones llevadas adelante desde 2007 ha sido la
modernización (upgrade) de los cazas AMX (un proyecto con empresas italianas de

1149
principio de los años 1980) con el objetivo de mantener activa una flota de 53
aparatos por otros 20 años.

Sin embargo, el proyecto más ambicioso por su magnitud es el KC-390, un avión de


transporte. La información más reciente indica que con su máxima carga de 23
toneladas tendrá un alcance de 2.590 km, con 19 toneladas será de 3.700 km. y con
14.7 toneladas, de 4.815 km. El primer vuelo se proyecta para el 2014, con la
construcción de dos prototipos y la entrada en servicio para el 2016. Las previsiones
de la empresa indican un mercado potencial de 700 unidades por un valor superior a
los US$ 50 billones. Sin embargo, aunque evidentemente la empresa tratará de
venderlo a quien esté interesado en adquirirlo, al igual que el resto de sus aparatos
militares, va a contener mucha tecnología norteamericana (que suele vetar
operaciones que considera contrarias a sus intereses), lo cual será un factor
relevante al momento de comercializarlo, sobre todo a países sobre los cuales
recaen embargos o restricciones.

8 Conclusión

Este artículo ha realizado un recorrido sintético sobre algunos de los hechos más
destacados del período iniciado a principios de los años noventa, caracterizado por
la crisis de la industria aeronáutica que afectó a la mayoría de las empresas del
sector. Lógicamente, Embraer sufrió el impacto de este contexto. Sin embargo, en
pocos años logró recuperarse, reposicionándose entre las primeras del mundo. La
recuperación implicó una adaptación. En la etapa posterior a la privatización, la
nueva estrategia comercial estuvo destinada a asegurar que las competencias
básicas de la empresa se alinearan con las señales del mercado. Para los nuevos
dueños, el ideal de desarrollo industrial y tecnológico nacional no era una
preocupación relevante. En este sentido, la orientación market driven que se le
imprimió a la gestión fue clara y, por cierto, muy exitosa. De todas maneras, si bien
puede sostenerse que la estrategia empresarial fue competitiva como revelan los
balances e indicadores de la empresa, ello parece más relativo en términos de
fortalecimiento de la base industrial y científico-tecnológica de Brasil. La
concentración en una serie de capacidades y competencias, muchas de las cuales

1150
habían sido originadas en la etapa estatal (concepción, desarrollo, integración y
soporte posventa) posibilitó su sobrevivencia y crecimiento. No obstante, los índices
de nacionalización de piezas y aeropartes que anteriormente se producían en el país
prácticamente fueron reducidos a una mínima expresión. Por eso, es que hemos
afirmado que la producción de los aviones está desanclada de la estructura
productiva del país.

Embraer logró recuperarse luego de la privatización en un período sorprendentemente


breve. En esta primera década del siglo XXI parece haber comenzado una nueva
etapa en su trayectoria marcada por un importante crecimiento tanto en términos
corporativos como en su presencia global. Haberse incorporado al segmento de
aviación comercial regional en la franja de aeronaves de mayor porte implicó un reto
tecnológico y financiero así como una transformación en su escala. Aquí es oportuno
enfatizar que la empresa es comparativamente mucho más pequeña que Boeing y
Airbus, también lo es respecto a su competidora directa Bombardier. Este punto es
central en función de los ciclos de expansión y contracción que caracterizan a esta
industria y la mayor o menor capacidad para superar las fases descendentes. Esta
situación ha impuesto ciertas condiciones para poder permanecer como, por ejemplo,
mantener costos competitivos (de venta, de mantenimiento, de entrenamiento de
pilotos y de operación).

En síntesis, entre los aspectos positivos se destacan: primero, los logros de la


empresa, con resultados muy positivos que demuestran un ascenso notorio. En
otras palabras, en el segmento de aeronaves regionales y jets ejecutivos, hoy juega
en las grandes ligas. Segundo, a lo largo de toda su trayectoria ha sido una
constante su habilidad de aprovechar sus alianzas para ganar conocimientos y
recursos a partir de los cuales se han generado soluciones innovadoras. Tercero, en
su trayectoria se evidencian los resultados concretos que surgen cuando es el
Estado (a través de sus instituciones) y los actores políticos y económicos sociales
relevantes, quienes hacen propio el objetivo y toman en sus manos el impulso a sus
industrias estratégicas. En otras palabras, la historia de Embraer es un ejemplo de
un proyecto sectorial que se transformó en un Proyecto de Estado de carácter
estratégico. Ahora bien, el problema fundamental es de nivel macro ya que persisten
un conjunto de debilidades estructurales en la industria aeronáutica brasileña. Lo

1151
primero a señalar es que los lazos entre Embraer y la cadena productiva local son
muy limitados y a la vez, la cadena es muy dependiente de la empresa. Lo segundo
es que la literatura califica como exitoso su modelo de negocios justamente desde
una perspectiva económico-financiera sin prestar demasiada atención (tampoco se
lo proponen) a la fuerte dependencia de ésta de los socios extranjeros en las
dimensiones tecnológica y productiva. En todo caso, es válido preguntarse es hasta
qué punto las PYMES aeronáuticas nacionales, podrán resurgir y/o absorber
capacidades contribuyendo al desarrollo del país o si, como ha venido sucediendo
permanecerán sólo concentradas en Embraer. Este es el desafío central de los
próximos tiempos.

En suma, analizar esta trayectoria invita a reflexionar sobre el carácter del desarrollo
de las economías emergentes, ¿Es posible el desarrollo industrial y científico-
tecnológico autónomo (que no es lo mismo que autárquico desde ya)? ¿Qué rol
debe desempeñar el Estado en ese proceso? ¿Sobre qué bases debe encararse la
―inserción internacional‖ del país para que sea efectivamente funcional al desarrollo?
Con todo, este artículo se propuso un primer acercamiento a estas cuestiones a
partir de un caso concreto. El objetivo ha sido proponer el concepto de Proyecto de
estado de carácter estratégico como categoría analítica de la economía política
estableciendo su anclaje empírico.

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1154
NOVA CAVALARIA E INDÚSTRIA MILITAR BRASILEIRA, NA PERSPECTIVA DA
ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA (END) – BRIGADAS AEROMÓVEIS.

Jorge C. C. Guerra 511

1 Introdução

A História da Arma de Cavalaria se funde com a da guerra, isto não é diferente no


Brasil. O emprego da Cavalaria, bem como parte significativa de sua Doutrina no
início do Século XX e nas décadas de 60 a 80 do século passado, sãomostradas
em dois filmes "Glory at Beersheba – Charge of Australian Light Horse"512 e
―Fomos Heróis‖513.

O primeiro filme mostra uma carga de cavalaria, no caso os Light Horse, lendária
brigada da cavalaria australiana, contra os turcos na Palestina em 1918 na Primeira
Guerra Mundial. Na batalha de Beersheba os Ligth Horse, fazem uma carga frontal
contra as defesas otomanas entrincheiradas, comartilharia e uma pequena aviação
no começo de seu uso militar. Diferente de uma brigada tradicional de cavalaria, os
Ligth Horse eram uma infantaria montada. Ao chegar ao seu objetivo, os soldados
desmontavam e lutavam a pé. A vitória dos australianos nesta batalha é registrada
como um marco importante da história militar da Austrália.

No segundo filme, o Tenente-Coronel Hal Moore e mais 400 soldados (parte da 1ª


Divisão de Cavalaria Aerotransportada dos USA514) em 1965, são cercados por 2000
soldados vietnamitas na Batalha de La Drang. Na Guerra do Vietnam, o uso de
helicópteros foi intensificado pelos USA, para transporte de tropas, carga e artilharia
de apoio. Nesta batalha havia clara superioridade aérea dos americanos. Este
combate foi um dos primeiros casos registrados de uso de helicópteros artilhados, o
que no caso do Coronel Moore lhe deu uma excelente e vital vantagem tática.

511
UTFPR
512
Ver http://www.youtube.com/watch?v=p7dm_nbjNjE
513
Ver http://www.youtube.com/watch?v=INeo1oO4EbU título americano We Were Soldiers
514
Esta divisão foi criada em Julho de 1965 para integrar helicópteros (Huey UH-1, entre outros) nas operações
de uma divisão completa. Organizada com efetivo de 16.000 soldados e 400 helicópteros podia transportar
simultaneamente três dos oito batalhões.

1155
Ao compararmos as duas batalhas, mesmo em épocas diferentes identificam-se as
características básicas da Cavalaria. Segundo o Manual de Emprego da Cavalaria
(1999) do EB são estas: o poder de choque, a capacidade de romper, flanquear ou
cortar linhas inimigas, tomar e manter posições até a chegada de outras tropas, mas
principalmente a mobilidade e velocidade da tropa.

Usa-se neste artigo o termo ―Nova Cavalaria‖ para tipificar esta Arma tradicional
impactada pelas novas tecnologias e modificações significativas da tecnologia e da
forma de fazer a Guerra515.

No Brasil a missão da Cavalaria Paraquedista (um esquadrão dentro da Brigada


Paraquedista do EB516), conforme o Manual de Emprego da Cavalaria (1999) é
―reconhecimento, a segurança e a realização de operações ofensivas e defensivas
como elemento de economia de força, num quadro de operações aeroterrestres,
aerotransportadas ou aeromóveis‖ – portanto uma unidade de apoio as demais. O
modelo utilizado neste trabalho é do Exército e Fuzileiros americanos, que tem
Divisões de Cavalaria Aerotransportada exclusivas, funcionando como unidades de
―intervenção rápida‖517 e autônoma. Este modelo é acompanhada pela Legião
Estrangeira no nível de Brigada de Cavalaria.

Baseado em Santos (2005), que mostrou as grandes dificuldades das forças de


intervenção rápida dos USA na antiga Iugoslávia e Iraque há alguns anos, bem
como recentemente, segundo a mídia mundial, os problemas logísticos das forças
de intervenção rápida da França no Mali, o modelo da Brigada Aeromóvel do EB,
utilizado neste artigo, é de força capaz de sustentar luta contra forças inimigas por
um período muito superior as das Brigadas de Paraquedistas e em muitos casos
prescindir de força complementar nas operações.

A mobilidade é evidenciada nas Diretrizes da Estratégia Nacional da Defesa (END):

515
Conflitos de alta ou baixa intensidade ofensiva ou defensiva em áreas geográficas restritas, envolvendo tropas
profissionais, onde se procura ganhar ou manter posições estratégicas para dar suporte a
negociaçõesdiplomáticas.
516
No site da Brigada Paraquedista do EB, está clara sua finalidade “A elite de combate contra forças
irregulares”, portanto não configurada como unidade de choque contra forças regulares
http://www.bdainfpqdt.eb.mil.br/
517
Os Fuzileiros Navais e o Exército Americano, mantém pelo menos 10.000 soldados de Cavalaria cada,
completamente equipados, com artilharia pesada e helicópteros de transporte simultâneo de pelo menos 1/3 do
efetivo, além de helicópteros e aviões de carga e ataque – prontos para entrar em ação em 48 horas. A França
mantém cerca de 3.000 legionários mais 3.000 soldados da Cavalaria do Exército nestas condições.

1156
4. Desenvolver, lastreado na capacidade de monitorar/controlar, a
capacidade de responder prontamente a qualquer ameaça ou agressão: a
mobilidade estratégica.A mobilidade estratégica - entendida como a aptidão
para se chegarrapidamente ao teatro de operações – reforçada pela
mobilidade tática – entendida como a aptidão para se mover dentro daquele
teatro - é o complemento prioritário do monitoramento/controle e uma das
bases do poder de combate, exigindo das Forças armadas ação que, mais
do que conjunta, seja unificada. O imperativo de mobilidade ganha
importância decisiva, dada a vastidão do espaço a defender e a escassez
dos meios para defendê-lo. O esforço de presença, sobretudo ao longo das
fronteiras terrestres e nas partes mais estratégicas do litoral, tem limitações
intrínsecas. É a mobilidade que permitirá superar o efeito prejudicial de tais
limitações (BRASIL, 2008, p.4).

O artigo simula o atendimento pela BID brasileira, das demandas de duas brigadas
de Cavalaria Aeromóveis, composta por 3.500 soldados cada, devidamente
equipadas e prontas para agirem, o máximo possível de forma autônoma. Os
modelos comparativos de equipamentos, armas e meios aeromóveis são da
Cavalaria Aerotransportada e Fuzileiros Americanos, bem como da Brigada de
Cavalaria da Legião Estrangeira Francesa. O cenário da simulação é com
superioridade aérea (aviação de caça apta a neutralizar qualquer ameaça aérea). Na
simulação a Cavalaria Aeromóvel é independente da Brigada Paraquedista do EB.
Neste contexto, a dissertação de Duarte (2003), sobre forças de deslocamento
rápido dos USA tem contribuição significativa,

A simulação da unidade de Cavalaria, na forma de brigada atende a organização


indicada pela END, para o Exército Brasileiro:

2. O Exército, embora seja empregado de forma progressiva nas crises e


conflitos armados, deve ser constituído por meios modernos e por efetivos
muito bem adestrados. O Exército não terá dentro de si uma vanguarda. O
Exército será todo ele uma vanguarda. A concepção do Exército como
vanguarda tem, como expressão prática principal asua reconstrução em
módulo brigada, que vem a ser o módulo básico de combate da Força
Terrestre. Na composição atual do Exército, as brigadas das Forças de
ação rápida Estratégicas são as que melhor exprimem o ideal de
flexibilidade (BRASIL, 2008, p.15).

A afirmação da END que todo EB ―deve ser uma vanguarda‖, é bem distante da
realidade de orçamento restrito (muitas vezes não empenhada) e dispersão de
recursos convivendo com o grande efetivo da Força. Uma das formas de lidar com

1157
isto é constituir brigadas de elite, dando prioridade orçamentária a isto. Neste
contexto, as duas Brigadas de Cavalaria Aeromóvel é um importante passo.

2 BID BRASILEIRA E CAVALARIA AEROMÓVEL DO EB.

A Base Industrial de Defesa (BID) brasileira, segundo Lange (2009) é pequena,


porém consolidada. Ela ressente, como outros setores industriais, de políticas
governamentais efetivas que favoreçam o investimento e desenvolvimento de novas
tecnologias, Principalmente, como coloca Ozires Silva em algumas de suas
palestras, a indústria militar se desenvolve a partir de fortes encomendas de suas
próprias Forças Armadas.

No Governo Lula (2003 – 2010), houve um sopro de esperança, com diversas


encomendas de equipamentos novos e retrofits de equipamentos usados. Entre os
projetos que impactam diretamente a Cavalaria Aeromóvel, estão a compra dos
helicópteros EC-725, retroft dos helicópteros Esquilo e Pantera, desenvolvimento do
morteiro de 120 mm, compra do VBTT-Veículo Blindado de Transporte de Tropas
Guarani (há outras versões), fabricação do fuzil Imbel IA2, lançador ALAC, míssil
MSS 1.2 e Radar SABER 60. No governo da Presidente Dilma, há um ―balde de
água fria‖ nas expectativas da BID, não tendo até 2013 o Ministério da Defesa
mostrado com sucesso as necessidades da Força. Só se mantém as encomendas
de Lula para o EB.

Lange (2009) em seu artigo foca os problemas na relação do Exército Brasileiro (EB)
e Base Industrial de Defesa (BID) como: de comunicação, lentidão decisória, bem
como a baixa velocidade e volume das encomendas, o que representa muitas vezes,
um alto risco empresarial. Lange (2009) coloca ―A inércia, a aparente demora em
decisões ou na firme expressão de posições históricas do Exército Brasileiro e da
Indústria de Defesa em prol da Soberania Nacional poderá significar a derrota por
envolvimento ou a morte lenta no ambiente veladamente hostil da atualidade‖. Na
opinião do autor, a letargia nos condena a morte e derrota num conflito mediano ou
grande, pois temos fracacapacidade de C & T e produtiva à curto prazo, o que
contribuí para fraqueza do EB.

1158
A perspectiva da BID para o EB em 2030 é mostrado por Freitas (2013), num estudo
prospectivo, envolvendo cerca de 2000 pessoas ―das mais diversas áreas da
sociedade‖. No cenário mais provável no âmbito militar, não se vê conflitos na
América do Sul em 2030, neste contexto o Governo continua investindo
modestamente em Defesa, mas haverá consolidação da pesquisa e uso de
ciência/tecnologia (C & T) no setor - que o leva a concluir num fraco desempenho
econômico/financeiro da BID neste futuro. Porém o mesmo trabalho, no aspecto
político, indica uma participação cada vez maior do Brasil em missões militares da
ONU, por sua ascensão ao Conselho de Segurança – isto demanda forças de rápida
intervenção e equipamentos no ―estado da arte‖.

As diretrizes para a Base Industrial de Defesa (BID) é indicada na END:

a. dar prioridade ao desenvolvimento de capacitações tecnológicas


independentes; b. subordinar as considerações comerciais aos imperativos
estratégicos;c. Evitar que a indústria nacional de material de defesa polarize
entre produção rotineira e pesquisa avançada;d. Usar o desenvolvimento
de tecnologias de defesa como foco para o desenvolvimento de
capacitações operacionais (BRASIL, 2008, p.26).

Estas diretrizes potencializam a não compra de ―caixas pretas‖, tão normais nas
negociações de materiais e equipamentos militares pelo Brasil.

A Brigada Paraquedista do EB para efeitos comparativos com a simulação da


Brigada de Cavalaria Aeromóvel utiliza aviões C-130 Hércules (Lockheed), C-295
(CASA), Bandeirantes (EMBRAER modernizados) e helicópteros (só os da Aviação
do EB) Cougar, Pantera e Esquilo (franceses) para transporte de tropas/artilhado,
Obus 105 mm C/14 M56 (italianos/americanos), mísseis IGLA antiaéreo (KBM
russa).518 Em 2012 foram entregues os primeiros EC-725519, das 16 unidades
previstas para o EB.

518
Avião C-130 (Lockheed) transporta 64 paraquedistas, 92 soldados ou 45t de carga com alcance de 7.500 km.
O C-105 Amazonas (EADS CASA) transporta 48 paraquedistas, 78 soldados ou 9,5 t de carga com alcance de
4.165 km. Os 32 helicópteros Pantera (Helibras) passam por retrofit, transporta até 12 soldados e 1.600 t de
carga, velocidade máxima 296 km/h e autonomia 650 km. Os 33 aparelhos Esquilo também passam por retrofit,
transporta até6 soldados e 1.000 t de carga, velocidade máxima 287 km/h e autonomia de 652 km. O EB tem
8CougarAS332 transportando 20 soldados ou capacidade de carga no gancho externo de 4,5 t. O obuseiro 105
mm rebocado do EB (fabricantes diversos), peso 1.700 Kg, alcance 11 km (carga simples) e 17 km (carga
inteligente). Míssil IGLA (KB Machinostroyenia) peso 12 Kg (com lançador), altitude operacional de 10 m a
3.000 m e alcance de 6 km.
519
O Ministério da Defesa comprou 50 helicópteros EC-725 Caracal a US $ 55 milhões/cada.

1159
Segundo Barbieri e Sarti (2011),há perspectiva de investimentos em equipamentos
de Defesa de US $ 60 bilhões de 2011 a 2020. Deste total US $23,7 bilhões é para o
EB (Radar Saber, fuzis de assalto, VBTT Guarani, SISFRON - Sistema de Vigilância
das Fronteiras), veículos leves de combate, modernização de helicópteros, mísseis
MSS 1.2 e lança foguetes ALAC. Também é computado mais US $ 10,5 bilhões de
investimentos da Força Aérea Brasileira, que tem conexão direta com atividades
aeromóveis do EB (aviões EMBRAER KC-390, Helicópteros EC-725 (HELIBRAS),
Blackhawke AH-2, compra de aviões de reabastecimento KC-X2, VANTs e
transportes CASA C-295).

A Associação Brasileira das Indústrias e Materiais de Defesa – ABINDE reúne em


2013 mais de 150 empresas associadas520.

A base de C & T do EB para BID é o CTEX - Centro Tecnológico do Exército.521

A situação dos materiais e equipamentos do EB é bem descrita por Lange (2009, p. 84):

O Exército, por sua vez, vem enfrentando uma longa e pesada crise na
reposição de Materiais de Emprego Militar (MEM), para a Força Terrestre
Brasileira (FTB), nos últimos quatorze anos. A falta de investimentos
governamentais no EB, especialmente na área de Ciência e Tecnologia (C
& T) e Pesquisa e Desenvolvimento (P & D), Logística e no
reaparelhamento mínimo de seu equipamento provocou o sucateamento de
seu material bélico. Hoje, a FTB se ressente da falta de veículos blindados,
material de artilharia de campanha, fuzis leves de assalto modernos,
mísseis anti-carro (AC), material de comunicações (estratégicas e táticas) e,
principalmente, demolição. No caso desta última, não existe o controle do
ciclo completo de produção nacional de algumas munições de maior calibre,
fundamentais, na ocorrência de um conflito armado. Além disso, o Exército
carece do desenvolvimento de armas estratégicas, capazes de provocar a
Dissuasão no âmbito internacional, estratégia prioritária definida na Política
de Defesa Nacional (PDN) editada em 2005.

Paralelamente, para Dreyfus, Lessing e Purcena (2005), a indústria de armas leves


brasileiras para o mercado civil e policial ganha destaque internacional na
quantidade e qualidade, fruto da capacidade e visão empreendedora das empresas
nacionais. Isto é confirmado pelo Instituto de Estudos Internacionais e de
Desenvolvimento, em Genebra, que realiza anualmente o Small Arms Trade Survey,

520
Varias das mais importantes empresas de equipamentos e materiais militares estão presentes no Brasil. Ver
http://www.abimde.org.br/?on=associados
521
Ver http://www.youtube.com/watch?v=9fCY1gT4lF0

1160
o mais respeitado estudo sobre este assunto. Em 2011, o Brasil foi o 4º maior
exportador mundial de armas leves, atrás apenas dos Estados Unidos, Itália e
Alemanha. O Setor vai bem principalmente, por não dependerexclusivamente de
encomendas das Forças Armadas Brasileiras.

3 Base Industrial de Defesa (BID) e Cavalaria Aeromóvel.

a) Combatente e pelotão.

A indústria nacional de armas leves pode fornecer o fuzil IMBELIA2 – 7,22 mm


retrátil e rebatível com bandoleira e baioneta, luva isolante – alcance efetivo 700 m.
ou também o projeto Tavor522 da TAURUS. Pistolas e facas de combate para todos
os membros da Brigada, cujo fornecimento pode ser feito por fábricas e cutelarias
artesanais brasileiras. Há tecnologia para tentar projetar e fabricar uma boa
arma para snipers.

O Brasil não fabrica óculos militares de visão noturna, mesmo que a END indique que
todo soldado deveria possuí-lo. O combatente da Cavalaria Aeromóvel deve ter o seu,
dando-lhe igualdade ou vantagem no campo de batalha. O CTEX tem estudos
avançados nesta área, fornecendo suporte à BID para sua fabricação no Brasil.

A indústria brasileira e empresas estrangeiras aqui instaladas podem dar conta em


quantidade e qualidade, de boa parte da demanda de equipamentos de comunicação das
Brigadas de Cavalaria Aeromóvel. Isto incluí links entre combatentes, tropas, aviões,
helicópteros, artilharia, VANTse integrações possíveis entre estas– isto é fundamental à
―guerra em rede‖523. Temos muito a avançar nas comunicações de longo alcance com
outras Forças e o Alto Comando (por falta de satélites militares exclusivos), criptografia
avançada, espionagem e interferência nas comunicações inimigas.

O FELIN (Fantassin a Equipaments et Liaisons Integres), sistema para combatente


fabricado pela Sagem (francesa), começa a ser entregue efetivamente ao Exército

522
Fuzil de assalto israelense calibre 5,56 X 45mm, peso 3,7 Kg (mira, munição, etc.) alcance efetivo 500m. A
TAURUS tem licença para sua fabricação no Brasil.
523
Na Guerra em Rede, as comunicações entre as tropas e equipamentos no Teatro de Operações das forças
amigas estão interligadas e integradas a todos os níveis de comando, devidamente criptografadas. Isto inclui
interferir e espionar as comunicações das forças inimigas.

1161
Francês. Já foram testados no deserto e na selva da Guiana Francesa. É um
sistema centrado no homem, para o campo de batalha centrado em redes. As
brigadas de Cavalaria Aeromóvel oportunizam uma avaliação real e posterior
fabricação no Brasil do COBRA (Combatente Brasileiro) do sistema. Sugere-se a
compra do FELIN (adaptado ao EB) para as brigadas – prevê-se 3.500
conjuntos/brigada.

A produção de boa parte da munição de armas pessoais, metralhadoras, obuses,


granadas, etc. não seria problema para a BID. Estoque de seis meses, sem novo
pedido é um ideal a ser perseguido pelos ―responsáveis‖ de prover verba e
condições para isto.

A BID brasileira, não fabrica metralhadoras pesadas como a FNMAG calibre 7,52 X
51mm com alcance de 1.000 m sem apoio e 1.500 apoiada/fixa. Prevê-se 500
peças/brigada. A fabricação no Brasil pode ser viabilizada através de alianças com
fornecedores estrangeiros. Para a defesa do pelotão 6ALAC83mm (GESPI
Aeronáutica)/pelotão – míssil descartável com alcance de 300 m a 500 m .

b) Artilharia

As Brigadas Aeromóveis do EB, (tomando como referência a Cavalaria Aeromóvel e


Fuzileiros Navais Americanos, bem como a Legião Estrangeira Francesa), devem
possuir poder de fogo a curto, médio e longo alcance.

Como peça de artilharia de curto alcance é indicado o canhão sem recuo Carl
Gustav M3 (Bofors) 83 mm com munição antiblindados e contra fortificações, que
atingi alvos móveis a 400 m e estacionários a 700 m – sugere-se 200 peças/brigada.

Para médio alcance sugerem-se Morteiros Raiados Rebocados de 120 mm,


fabricado pelo Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Conforme Bastos (2007), este
morteiro é apropriado à unidades de pronto emprego, dando forte poder de fogo,
podendo ser rebocado por viatura de ¼ de tonelada. O alcance desta peça varia de
8.300 m (munição comum) e 12.300 m (com munição ―inteligente‖), a primeira
fornecida pela IMBEL e a segunda em desenvolvimento, mas podendo ser suprida

1162
por fornecedores estrangeiros. Bastos (2007) também sugere adaptação do morteiro
a blindado Urutu modernizado – o qual pode ser substituído pelo VTB Guarani. A
adaptação do morteiro ao Agrale Maruá AM 23 CC/ AM 23 CDCC 524 ou similar,
numa versão auto-rebocada mais reboque de munição. Prevê-se 40
unidades/Brigada.

Também para médio alcance sugerem-se obuses rebocados M119A2 e automáticos/


autopulsados de 105 mm. Conforme Benetti (2007), baseando-se no Projeto MOBAT
(Moblily Artilhery), poderia ser feito retrofit de veteranos obuses 105 mm de diversas
procedências e abundantes no EB, aumentando seu alcance com munição
assistida525 de 10 km para 20 km – (autopropulsado pesa cerca de 10 t) mais
reboque de munição (projeto poderia ser desenvolvido por empresas brasileiras).
Prevê-se 30 unidades/Brigada. Também pode ser estudado o retrofit de antigos
obuses 105 mm (automação, sistema de tiro com georeferenciamento via GPS ou
VANTs e utilitários nacionais para reboque + reboque munição).

Complementando a artilharia de médio alcance, 40 VTB Guarani/brigada com


canhão automático de 30 mm, blindagem reativa complementar (para aguentar
impacto de 84 mm e disparo direto de RPG), bem como adaptado para operar 2
lançadores duplos do míssil Spike - ER (Rafael –Israel) – configuração para no
mínimo 8.000 m. Também mais 150 lançadores/brigada do míssil MSS 1.2 (Mectron
Brasil) com alcance 3.000 m – sugere-se estoque de 300 mísseis/brigada.

Para artilharia de longo alcance, tomando como referência o estudo de Benetti


(2008), o Obuseiro Rebocado 155 mm M 777 AR (BAE Systems/ RO Defense) é
indicado. Sua vantagem é o peso da peça, em torno de 5 t e seu alcance de 20 km
com munição comum e 30 km com munição assistida. Há espaço para BID estudar
um veículo nacional para rebocar ou autopropulsar a peça, bem como sistema de
tiro georeferenciado com GPS, VANTs, Radar Contrabateria EnhancedAN/TPQ-37-
RMI (Lockheed Martin)– 02/brigada. Prevê-se 18 peças M 777/brigada.

A defesa antiaérea integrada com mísseis IGLA (russo) – prevê-se 200


unidades/brigada. Retrofit para padrão AOS 40 mm L70FADN (automação,
524
Ver http://www.agrale.com.br/pt/utilitarios-militar
525
Colocação de uma secção adicional na parte posterior do projétil, a qual queima durante o trajeto produzindo
um pequeno jacto. Isto aumenta o significativamente o alcance da munição.

1163
capacidade para munições modernas, interligação a radar, etc) – alcance 5 km, de
canhões antiaéreos Bofors40mm/L60 (EB possuí mais de 100 peças – usar as
melhores para 20 conjuntos/brigada). Mais mísseis RBS 70 (suecos), alcance de 8
km e altitude de 250 m a 5.000m – prevê-se 100 unidades/brigada. Todo sistema
integrado ao radar nacional SABER 60 (200 kg) - 40 alvos simultaneamente, alcance
de 60 km e altitude de 5.000m – 6 unidades/brigada + 1/quarteis. Para defesa dos
quartéis das brigadas 2 unidades PantsirS1(KBP russa)/quartel – alcance até 20 Km
e altitude de 200 m a 15.000 m mais 3 unidades Gepard/quartel – alcance 15 Km e
altitude até 5.500 m. A KMW fabricante do Gepard instalada em Santa Maria (RGS),
poderia adaptar mísseis nacionais ar-ar de curto alcance ao Gepard. A utilização
estacionária/rebocada das torres do PansirS1 ou Gepard com mísseis, reduziria o
peso (facilitando transporte), fornecendo boa proteção às bases e TO das Brigadas -
prevê-se 18 sistemas/brigada.

Há possibilidade de fabricação do IGLA no Brasil. O projeto PantsirS1


poderiatambém ter sua fabricação no Brasil negociada, atendendo as necessidades
do EB na defesa de instalações militares, indústrias e infraestruturas estratégicas.
Isto possibilitaria um salto tecnológico, para produção pela BID de sistemas defesas
antiaéreo de longo alcance e altitude.

c) Meios aéreos para Cavalaria Aeromóvel.

Os helicópteros de transporte de tropa são os EC 725 Super Cougar (Helibras) – no EB


designado como HM-4Caracal, que transportam 28 soldados equipadosmais dois pilotos
e dois mecânicos/artilheiros ou capacidade de carga externa de 5 t, autonomia 1.282 km
(com capacidade de reabastecimento em voo), armado com 2 metralhadoras FNMAG
7,62 mm, mais 2 canhões GIAT de 20 mm e 2 lança foguetes de com 19 projeteis de 68
mm. Direcionar 15 unidades dos 50 já comprados pelo Ministério da Defesa (MD),
adquirindo em separado a complementação das armas (os EC-725 comprados só vem
com 2FNMAG 7,62 mm) – 10 da cota do Exército e 5 da cota da Aeronáutica e compra
de mais 25 EC-725 completo – Total 40 unidades para as duas brigadas aeromóveis do
EB. Os novos equipamentos deverão elevar o percentual de nacionalização de 50% para
80% e diminuir significativamente seu custo unitário.

1164
Como opção aos EC 725, sugere-se estudar a compra de 25 Boing NH-47
(capacidade de abastecimento em voo) CHINOOK, com retrofit a ser executado no
Brasil526, com no mínimo 50% de nacionalização. Este helicóptero pode transportar
35 soldados equipados, capacidade de carga externa de 12.700 Kg, alcance 740 Km
(sem reabastecimento), velocidade 240 Km/h, altitude máxima 5.640 m. Armado com
três MinigunM134. Ou FN–GAU 12,7 X 99 mm. Estes helicópteros também seriam
utilizados para o transporte de carga. Somar um simulador para treinamento no
equipamento escolhido/brigada.

Para helicópteros de ataque/escolta, compra e retrofit de 30 Cobra AH-1WViper para


o padrão AH-1Z527, capacidade externa de carga de 2,5 t, autonomia 685 Km (com
capacidade de reabastecimento em voo)/com tanques extras (1.200 km), velocidade
de cruzeiro 285 km/h, armado com um canhão Gatling de 20 mm, capacidade para
até 4 lançadores X 4 mísseis Helfire II (USA)/Rafael Spike (Israel), 2 lançadores
LAU68C/A com 19 casulos 68mm e 2 mísseis ar-ar Rafael MMA1B (Mectron
Brasil)528 – a ser homologado (Pyton 4) com alcance de 12 km.

A demanda brasileira pelos MMA1B e Helfire II/Spike somadas a de países da


América do Sul, pode viabilizar a fabricação no Brasil destas famílias de armas.
Somar a demanda da Cavalaria Aeromóvel, um conjunto para
simulação/treinamento.

A BID é apta a desenvolver e fabricar Veículos Aéreos Não Tripulados (VANTs),


para a Cavalaria Aeromóvel, que seriam usadas na Inteligência da Brigada,
planejamento de operações e guiamento de tiro de artilharia, escolta avançad e
apoio aéreo aproximado. O Brasil não possuí satélite de uso militar exclusivo,
deficiência esta que em parte pode ser sanada por VANTs529. Prevê-se no mínimo 6
(seis ) VANTs por brigada.

526
Estima-se em torno de US $ 40 milhões/unidade.
527
O fabricante Bell Helicopter deverá fazer o retrofitde 20 equipamentos no Brasil, com pelo menos 50% de
fornecimento nacional. Ver detalhes em http://www.bellhelicopter.com/Military/AH-
1Z/1291148375494.html#/?tab=highlights-tab
528
Multidireção e alcance de 12 Km. Recomenda-se o estudo do Pyton5 (20 km/multisensores de alvo).
529
United 40 Block5 dos Emirados Árabes Unidos. Os equipamentos são desenvolvidos por uma empresa do
país asiático, a ADCOM Systems. Informações divulgadas no site da companhia revelam que este tipo de
aeronave foi projetada para voar em altitudes de até sete mil metros, podendo permanecer no ar por mais de 100
horas sem reabastecimento.

1165
Devido a complexidade do assunto, o transporte de tropas e cargas, atualmente
realizados pelos C-130, C-295 e Bandeirantes modernizados da Aeronáutica, bem
como aviões de reabastecimento em voo e monitoramento/comando TO(EMBRAER
R99), merecem tratamento em artigo específico.

d) Super Tucano do EB – escolta e apoio aéreo aproximado.

Uma solução brasileira de escolta aos helicópteros de transporte de equipamentos e


tropas é a utilização de aviões EMBRAER A-29B (biposto)530. O modelo fabricado
até o primeiro semestre de 2013 apresenta as seguintes características: velocidade
de cruzeiro com carga total no máximo 320 Km/h, autonomia 1.445 Km ou cerca de
3,4 horas (sem tanques extras), capacidade máxima de 1,5 t de carga, distância
para decolagem/pouso 900 m (em pista preparada de terra), teto de serviço máximo
de 10.500 m.

Armas homologadas para o A-29 B: 2 metralhadoras FNHeretal MP3 12,7 mm


(.50) orgânicas no avião, 01 pod de canhão GIATM20A1 de 20 mm, mísseis ar-ar
2 X AIM-9L, MAA-2 (Mectron Brasil), mísseis ar-terra 2 X AGM-65. bombas
―burras‖ MK-81/82 e Griffin guiadas por infravermelho (Mectron Brasil), 4 X pods
de lança-foqutes LM 70/19 ou LAU68mm, bombas JDAM e SDS e lança granadas
BLG-252. A BID tendo certeza de pedidos mínimos/constantes para manter-se
com lucratividade, pode perfeitamente atender sozinha ou associada a parceiros
estrangeiros.

Os aviônicos do A-29 B permitem integrações e modificações do novo modelo. 531

Para atender as necessidades da Cavalaria Aeromóvel, principalmente de escolta


aos helicópteros de transporte de tropas e cargas, bem como apoio aéreo
aproximado (ataque a superfície de alvos perto de forças amigas), requerem
equipamentos apropriados contra qualquer tipo de ameaça (blindados,
fortificações, tropas, artilharia, etc.). Sugerem-se algumas modificações no AT-29
B tais como:

530
Biposto para um piloto e um operador de armas (artilheiro).
531
Ver detalhes http://pt.wikipedia.org/wiki/Embraer_EMB-314_Super_Tucano

1166
- Estudo de fabricação (nacional) e colocação orgânica, de radar para
acompanhamento de alvos simultâneos em terra e no ar (mínimo 40 km), interligado
ao sistema de armas;

- Homologação de uso e estudo de fabricação nacional de mísseis antitanque Helfire


II (Lockheed Martin) ou Spike (Rafael), inclusive para suprir a Cavalaria Blindada;

- Homologação de uso, evolução do sistema de aquisição de alvo/alcance(para


Pyton 5) do míssil MMA1B/Pyton 4 (Mectron Brasil) e também desenvolvimento de
lançadores duplos, nas pontas das asas do A-29, permitindo o transporte de quatro
mísseis ar-ar;

- Substituição das metralhadoras .50, por canhões orgânicos móveis de 20 mm;

- Integração do A-29 com radares do Teatro de Operação (TO) Saber 60 e torres


rebocadas dos Sistemas PantsirS1 ou similar - ―guerra em rede‖;

- Estudo da possibilidade de abastecimento em vôo do A-29 B;

- Homologação no A 29B do míssil ar-terra AGM-65 Maverick532.

- Outras sugestões/avaliações de membros da Cavalaria Aeromóvel/Aviação do EB.

O A-29B além de boa opção militar, pode ser uma ótima opção econômica, pois
custaria no máximo US $ 23 milhões, contra € 50 milhões do Tiger (Eurocopter) e
US $ 40 milhões do AH-1ZViper (Boing). Sugere-se investimento do EB de R$ 150
milhões, para desenvolver um A-29 B para Cavalaria Aeromóvel. Prevê-se a
fabricação de 40 A-29 B Versão Cavalaria(20/brigada), criando renda e empregos
principalmente no Brasil. O A 29 B tem seu custo/hora de operação em 2013 inferior
a US $ 1.100,00/h, que é barato comparado aos helicópteros de ataque sugeridos.
Prever também a compra um simulador de voo do A 29 B modificado/Brigada.

4 Considerações Finais

A BID brasileira está em boa parte preparada, em tecnologia e meios de fabricação,


para suprir parte significativa da demanda da Cavalaria Aeromóvel do EB. Falta

532
Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/AGM-65_Maverick

1167
motivação, devido a inconstância e/ou falta de pedidos do Ministério da Defesa
(MD)/EB. A BID no EB tem problemas de fornecimento em: munição assistida,
metralhadoras pesadas, obuses de 105/155mm, mísseis antiaéreos/antiblindados de
longo alcance, helicópteros de transporte de carga e ataque, radares de
contrabateria e alta altitude . Além de lucratividade para sobreviver , a BID necessita
de pedidos do país onde está instalada. Se o Brasil não compra, fica difícil vender à
outros países.

A criação das Brigadas de Cavalaria Aerotransportada, além de dar vantagem


estratégica e tática ao EB, oportunizaria a BID atender as demais Forças e até
exportar.

Sugere-se que o EB tenha sob seu comando todos os meios (inclusive os aéreos de
reabastecimento em voo, transporte de tropas/carga e monitoramento/comando
EMBRAER R-99), para aperfeiçoamento constante das Brigadas de Cavalaria
Aeromóvel. O avião CASA 295 mais suas variantes, fabricados no Brasil atenderia EB.

Estima-se que investimento em equipamentos militares para as duas brigadas, ficará


em torno de US $ 4 bilhões em três anos533, mais verba mensal de
manutenção/treinamento/munição/combustível de R$ 80 milhões/mês/brigada
(excluindo-se os soldos, alimentação e verbas pessoais diversas para tropa).

O fundamental é vontade política de dar sustentação à Defesa brasileira, prioridade


esta que o governo Dilma não se mostra sensível. Um exemplo disso é a questão de
substituição, escolha e compra dos aviões caças da FAB. Sem superioridade aérea,
as Brigadas Aeromóveis e outras do EB, têm suas operações seriamente
comprometidas. A situação da BID brasileira não fica atrás - parte dos esforços da
Era Lula, para qualificar a Defesa e BID, correm risco de perderem-se pelo
desinteresse do Governo Dilma.

533
Tempo para começo de preparação das brigadas com os meios disponíveis (helicópteros Panteras , Esquilos
modernizados e Cougar, fuzis IA-2 , lançadores ALAC, obuses 105 mm, morteiros 120 mm, mísseis MSS1.2,
Radar SABER, mísseis IGLA, aviões A 29 B da FAB, etc.). A grande dificuldade do EB,é optar em dispersar
ou concentrar parte de seu orçamento no período de três anos.

1168
Referências Bibliográficas

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http://www.ecsbdefesa.com.br/fts/ArtCamp.pdf. Acesso em: 14 jul. 2013.

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http://www.defesa.gov.br/arquivos/2012/mes07/end.pdf. Acesso em: 14 jul. 2013.

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Brasileira de armas leves e de pequeno porte: produção legal e comércio.
Disponível em:
http://www.comunidadesegura.org.br/files/active/0/vitimas_armas_producao_
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dos EUA. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 2003.

FREITAS, José Eduardo de Figueiredo. O Sistema de inovação no Setor de


Defesa no Brasil: proposta de uma metodologia de análise prospectiva e seus
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LANGE, Valério Luiz. Uma Equipe Integrada de Trabalho: Cooperação entre o


Exército e a Base Industrial de Defesa no Brasil. Campinas: Mercado das Letras,
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Militar. Agosto/Setembro 2004, Lisboa. Disponível em: http://www.revistamilitar.pt/
artigo.php?art_id=419. Acesso em: 14 jul. 2013.

1169
Simpósio Temático 18

AMAZÔNIA, FRONTEIRA E DEFESA: ESTUDO DE CASO DO 3° ESQUADRÃO /


ESQUADRÃO NETUNO DO 7° GRUPO DE AVIAÇÃO DA BASE AÉREA DE
BELÉM.

Alberto Teixeira534

Gisely de Nazaré Freitas da Silva535

1 Introdução

As forças armadas são o esteio da soberania de uma nação. A seu encargo está a
defesa do território do país e dos interesses de seu povo. Também é sua atribuição
a defesa da Constituição e da ordem por ela estabelecida, contra rebeliões internas
e movimentos subversivos. Elas são constituídas pelo Exército Brasileiro, a Marinha
do Brasil e o Ministério da Aeronáutica, sendo este objeto de estudo deste trabalho a
partir da atuação do 7° Grupo de Aviação da Base Aérea de Belém.

A princípio, no dia 13 de janeiro de 1913, deu-se o primeiro passo para a criação da


Aeronáutica Brasileira a partir da assinatura de um acordo entre pilotos italianos e o
Ministro da Guerra da época, General Vespasiano de Albuquerque, para a fundação
da Escola Brasileira de Aviação. O campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, foi o local
escolhido para o funcionamento da escola, onde seriam formados pilotos brasileiros.
Apesar de ter funcionado somente 5 meses, foi ela o início do desenvolvimento da
Aeronáutica no Brasil. E em agosto de 1916 era criada a Escola de Aviação Naval.
Em 10 de julho de 1919, inaugurou-se a Escola de Aviação Militar onde todos os
anos são formados pilotos militares de todas as regiões do Brasil que compõem os
diversos esquadrões que defendem o território nacional através das Bases Aéreas
existentes pelo país.

Entre as principais funções que estão entre o legado que permite o exercício da ação
militar no espaço aéreo brasileiro estão a defesa do meio ambiente, das comunidades

534
Professor do curso de Ciências Sociais da UFPA.
535
Graduanda do curso de Ciências Sociais da UFPA

1170
indígenas e de populações carentes, além da examinação constante das organizações
não-governamentais (ONGs) instaladas pelo mundo afora, sobretudo na Amazônia,
algumas com sinceros objetivos humanitários e de proteção ambiental, outras com
atividades subordinadas aos interesses dos seus países de origem, que financiam os
projetos e por tal motivo necessitam da fiscalização das forças armadas brasileiras
sobre suas atividades em território alheio.

Hoje, a politização da natureza é uma invenção contraposta à politização da


economia, que prosperou nas últimas três décadas seguintes à Segunda
Guerra Mundial. Hoje, a anterior centralidade do desenvolvimento foi
substituída dos fotos internacionais pela preocupação com o meio ambiente.
[...] O clássico princípio da soberania dos Estados Nacionais em relação aos
recursos naturais do respectivo território, consagrado pelo direito
internacional, está sendo erodido. A politização da natureza assume que a
irresponsabilidade de um Estado Nacional em relação ao meio ambiente
põe em risco a soberania da humanidade (Lessa, 2001)

A partir desta perspectiva, um dos planos de frente da ação militar através do


Ministério da Defesa em conjunto com o Ministério da Integração Nacional e do
Ministério do Meio Ambiente hoje na Amazônia é o Plano Amazônia Sustentável
(PAS), proposto sob a necessidade de se dar resposta à relação entre o homem e o
meio, focalizando ações locais e mesorregionais lançando um olhar de influência
mútua com o planeta por meio de uma estratégia de desenvolvimento de longo
prazo que assegure inclusão social e desconcentração da renda, com o crescimento
da produção e do emprego a partir da economia que sustenta cada região. Desse
modo, busca-se um crescimento ambientalmente sustentável e redutor de das
desigualdades regionais, dinamizado pelo mercado de consumo de massa, por
investimentos e pela elevação da produtividade, sobretudo pelo modelo de
desenvolvimento e a economia que foi sendo lançada nas diversas macrorregiões
que formam a Amazônia, como se observa na figura 1, a seguir:

1171
FIGURA 1: Amazônia Legal – Povoamento e Macrorregiões Econômicas

FONTE: Documento Guia para I Simpósio ―Amazônia e Desenvolvimento Nacional‖ (2007)

Nesse sentido, o tema desse trabalho está relacionado à investigação da categoria


do funcionalismo público presidida pelo Governo Federal e mediada pelo Ministério
da Defesa que compõe o quadro de militares do 3° Esquadrão / Esquadrão Netuno
do 7° Grupo de Aviação da Base Aérea de Belém. A decisão de dar início a este
estudo se deve ao fato de caracterizar este grupamento presente no território
amazônico a partir da perspectiva que o aponta como verdadeiro ―guardião‖ destas
áreas fronteiriças, contudo, cabe um questionamento: até que ponto esses
profissionais estão intrinsecamente envolvidos com a própria vocação militar e o
propósito de desenvolvimento da Amazônia? uma vez que muitos deles optam por
tal carreira devido à família, ou por não usufruírem de outra opção. Desse modo, a
proposta de investigação segue abordando a visão dos profissionais militares ativos,
ou seja, ainda exercendo atividade, envolvidos à proposta de garantir a soberania na
Amazônia e instigá-los em diversos aspectos, como o conhecimento destes

1172
profissionais em relação ao histórico do seu próprio esquadrão regional na Base
Aérea de Belém, o desenvolvimento das atividades e a sua atuação na região
amazônica e às demais que o competem, além de enfatizar a relação dos mesmos
com a sua estrutura de trabalho ressaltando seus principais equipamentos e
instrumentos específicos utilizados em suas atividades. Esse confronto da
realidade é que motiva a investigação desse trabalho e eleva sua pertinência ás
Ciências Sociais diante a proposta de relacionar as atividades desenvolvidas por
esses militares com as suas expectativas profissionais, ou seja, levantar
informações que indiquem se eles estão aptos à sua funcionalidade dentro da
corporação militar, sobretudo na questão que resulta em considerá-los como
importantes atores sociais ao desenvolvimento local a partir de ação que
caracteriza proteção ao patrimônio nacional sob o aspecto da garantia da
soberania nacional no espaço aéreo, contribuindo como colaborador fundamental
para auxiliar a atuação da Marinha do Brasil em áreas litorâneas que são de sua
responsabilidade proteger e garantir segurança. Para o levantamento de
referencial teórico utilizou-se pesquisas de artigos científicos relevantes ao tema,
além de documentos (considerando que a maioria deles são sigilosos), contudo
liberados de forma parcial com os próprios componentes do 3º Esquadrão
deliberados superiores, sob a comprovação de tema pertinente à pesquisa
acadêmica a partir de encaminhamento da Universidade Federal do Pará (UFPA)
através da Faculdade de Ciências Sociais (FACS) e do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH). Para o estudo selecionou-se a equipe de trabalho que
compõe o Esquadrão Netuno abrigado na Base Aérea de Belém, localizada
próxima ao Aeroporto Internacional de Belém por via da Rodovia Arthur Bernardes
no sentido que segue até a Avenida Júlio César. A principal finalidade no
desenvolvimento deste trabalho foi de obter informações pertinentes ao cotidiano
desses militares. Desse modo, a pesquisa buscou através deste trabalho analisar
aspectos do universo destes militares envolvidos com a garantia de seguridade à
pátria e identificar o comprometimento destes atores quanto ao desempenho de
suas funções enquanto ―guardiães‖ do espaço aéreo nacional, especificamente a
Amazônia com a finalidade de contribuir à proposta de apresentar o cotidiano dos
profissionais que optam por esta carreira, como se pode observar no tópico a
seguir.

1173
2 Metodologia

Para o desenvolvimento deste trabalho foi necessária a aplicação de questionário


aos militares efetivos no 7° Grupo de Aviação da Base Aérea de Belém (3°
Esquadrão / Esquadrão Netuno) que no decorrer da atividade ganhou características
de entrevistas não formais junto à aplicação desses questionários baseados no
conhecimento epistemológico, a partir de análises feitas em relação ao próprio
histórico deste Esquadrão, a sua atuação na Amazônia e informações pertinentes
em relação à sua estrutura de trabalho e equipamentos. Todo este processo foi
realizado em três etapas durante a pesquisa de campo proposta como pesquisa
durante a disciplina Questões Sociológicas na Amazônia no período do 2º semestre
de 2011, presente na grade curricular do curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal do Pará (UFPA) .

A 1ª etapa foi denominada: Reconhecimento da área e Elaboração de questionários,


onde inicialmente visitou-se o espaço da Base Aérea de Belém no bairro de Val de
Cães, com a finalidade de conhecer melhor e constatar as principais informações
referentes ao cotidiano de atividades que envolvem o 7° Grupo de Aviação da Base
Aérea de Belém (3° Esquadrão / Esquadrão Netuno). A partir das informações
obtidas foi elaborado um questionário com perguntas categorizadas da seguinte
forma: 1) Histórico do 7º Grupo de Aviação da Base Aérea de Belém; 2) Atuação do
7º Grupo de Aviação da Base Aérea de Belém na Amazônia e 3) Estrutura de
trabalho e equipamentos.

A 2ª etapa denominou-se: Aplicação dos questionários e durante a aplicação dos


mesmos previamente elaborados verificou-se como são desenvolvidas as atividades
dentro da Base Aérea de Belém, o cotidiano destes militares e como são
categorizadas as hierarquias que compõem este grupo. Nesse momento foram
realizados registros importantes para comprovação de dados e informações deste
trabalho.

A 3ª e última etapa foi chamada de: Criação do banco de dados e Elaboração do


artigo em que a partir do resultado da aplicação dos questionários foi elaborado um
banco de dados que em seguida foi digitado no programa Excel, Posteriormente
esses dados obtidos possibilitaram a construção de uma tabela, que revela

1174
informações pertinentes quanto aos militares entrevistados, além da própria
elaboração deste artigo a partir das informações coletas no decorrer desta pesquisa
em campo.

3 Resultados e discussão

A partir do levantamento das informações foi constatado que a formação dos


militares que compõem o 7º Grupo de Aviação da Base Aérea de Belém é
basicamente toda voltada para o vôo e a carreira militar que abrange técnicas de
vôo e assuntos afins a partir do lema: ―voar, e fazer voar‖. O esquadrão é
comandado por uma patente máxima, um tenente coronel, sendo este o comandante
do esquadrão, permanecendo no cargo por um período de 2 anos por nomeação, ou
sendo convidado a ocupar o cargo, contudo, com a opção de não aceitar. O Grupo
atualmente é composto por um efetivo de 70 militares, sendo 20 oficiais (aviadores e
especialistas), 35 graduados (sub-oficiais e sargentos), 5 cabos e 10 soldados, como
mostra a tabela 1, a seguir:

TABELA 1: Quadro de Militares Efetivos no 7º Grupo de Aviação da Base Aérea de


Belém

HIERARQUIA FORMAÇÃO TOTAL

COMANDANTE TENENTE CORONEL 01

OFICIAIS AVIADORES/SARGENTOS 20

SUBOFICIAIS/SARGENTOS GRADUADOS 35

CABOS SERVIDORES MILITARES 05

SOLDADOS SERVIDORES MILITARES 10

CORPO TOTAL DE EFETIVOS 71

FONTE: Gisely Freitas – Trabalho de Campo (UFPA), 2011

1175
A formação destes militares ocorre por seleção, onde a partir do resultado final são
encaminhados às escolas formadoras da Aeronáutica Brasileira em Guaratinguetá e
Pirassununga, ambas em São Paulo, sendo que os Oficiais Aviadores cursam 4
anos de curso na Academia da Força Aérea em Pirassununga, e os graduados
cursam 2 anos de curso na Escola de Especialistas de Aeronáutica em
Guaratinguetá. No caso doscabos e soldados, esses prestam exame e cursam em
Belém mesmo, embora os soldados sejam jovens de 18 anos que ingressam na
carreira militar podendo ficar até 4 anos servindo a força aérea.

FIGURA 2: Aviação P-95 vista pela parte interna (painel de comando)

FONTE: Gisely Freitas – Trabalho de Campo (UFPA), 2011

O principal instrumento de trabalho dos militares do 7° Grupo de Aviação da Base


Aérea de Belém (3° Esquadrão / Esquadrão Netuno) são os aviões do tipo P-95
(Figura 02) que têm um alcance no céu a uma altitude de até 12.000 FEET (PÉS) e
possui uma autonomia de 7 horas de vôo, ou seja, podem ficar até 7 horas sob o
céu podendo atingir até 230 KNOS, mas em vôo cruzeiro ele fica entre 160 e 180
KNOS. Esta aviação consome em média 345 litros por hora e o combustível que
utiliza é o querosene de aviação. Esses aviões são fabricados totalmente pela
Empresa Brasileira de Aeronáutica (EMBRAER) e dependendo da missão podem
levar a bordo até 8 tripulantes (militares com função a bordo de uma aeronave

1176
militar). Estes são locados de uma forma em que cada tripulante possa ter uma
cadeira onde melhor realize sua função a bordo. A cada missão sempre existem dois
pilotos e um mecânico de vôo. E dependendo da função da missão pode ter um
fotógrafo, quatro observadores para vôos de busca e salvamento.

4 Conclusões

Como se pode observar ao longo da análise que compõe a elaboração deste


trabalho, foi constatado o esforço de desenvolver atividades que garantam a
soberania dentro do território nacional, sobretudo a proteção na região da Amazônia
pelos militares do 7° Grupo de Aviação da Base Aérea de Belém (3° Esquadrão /
Esquadrão Netuno) uma vez que, esses militares são treinados adequadamente e
possuem qualificação suficiente para desempenhar as devidas funções militares que
são atribuídas para cada grupo pelo Brasil afora.

Avaliando a dimensão da problemática que envolve a Amazônia é necessário rever


aspectos políticos e econômicos que envolvem interesses particulares, sendo esta
uma região tão rica e de recursos naturais diversos e importantes para economias
que nem sempre têm o privilégio que existe nesta região.

Nesse sentido, realizando uma análise geral do que foi observado no decorrer da
elaboração deste trabalho, foi possível identificar a dimensão da atuação das
atividades militares na Amazônia e como ela é responsável pela garantia de
proteção e soberania que nem sempre está presente na consciência coletiva da
sociedade, além de não existir o conhecimento a fundo de aspectos importantes
desta seguridade, como: Histórico destes grupos, sua atuação, seus instrumentos de
trabalho e equipamentos, como são desenvolvidas suas atividades, informações
quanto a formação desses militares, entre outros.

Referencias Bibliográficas

BELÉM. Lei Municipal Nº 8.655 de 30 de julho de 2008. Plano Diretor do Município


de Belém. Câmara Municipal de Belém, Pará, 01 de ago. 2008.

1177
BRASÍLIA. Documento Guia para I Simpósio “Amazônia e Desenvolvimento
Nacional. Brasília: Câmara dos Deputados, 19 de nov. 2007.
CASTRO, M H M. Amazônia – Soberania e Desenvolvimento Sustentável.
Brasília: CONFEA, 2007.
EGLER, C. A. G. Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento – Impactos
Ambientais. Brasília: Ed. CREA, 1999.
LESSA, C. Texto apresentado no Seminário CEE/ESG-BNDS, 2001.
PARANAGUÁ, P. Belém Sustentável. Belém: Imazon, 2003.

1178
SEGURANÇA AMBIENTAL GLOBAL: A IMPORTÂNCIA DA COOPERAÇÃO

INTERNACIONAL PARA A CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS AMAZÔNICOS

Cláudio Tadeu Cardoso Fernandes536

1 Introdução

Em função da localização geográfica e de uma complexidade de fenômenos


naturais, algumas regiões do Planeta Terra são dotadas de recursos ambientais
privilegiados tais como ampla disponibilidade de água doce e considerável
biodiversidade. A Amazônia, antes considerada como o ―pulmão do mundo‖,
destaca-se como a mais importante dessas regiões e exerce um papel central no
tocante aos chamados ―serviços ambientais‖. Entre esses serviços podem ser
destacados a produção de água doce, o papel da floresta na absorção de dióxido de
carbono e a dinâmica da massa de ar equatorial continental na América do Sul. Tais
serviços ambientais refletem-se em nível global e contribuem significativamente para
a existência de recursos que podem ser classificados como bens comunais
internacionais.

Apesar da importância desses fatores, as regiões consideradas como ―privilegiadas


pela natureza‖ vêm sofrendo de forma mais intensa as conseqüências de explorações e
transformações predatórias ao meio ambiente, além dos impactos de fenômenos
ligados às mudanças climáticas planetárias, aceleradas por ações antrópicas.

Em nível internacional, as preocupações ambientais ganharam grande impulso a


partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada
em Estocolmo no ano de 1972, e especialmente com a realização da Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em
1992. Esta última conferência, da qual resultaram entre outros importantes acordos
internacionais, a Convenção do Clima e a Convenção da Biodiversidade, além de ter

536
Centro Universitário de Brasília. Colégio Militar de Brasília.

1179
disseminado o conceito de Desenvolvimento Sustentável (desenvolvido pela Comissão
de Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas durante a
década de 1980), também tratou da questão da segurança ambiental internacional.
Esse conceito remete ao fato de que a conservação dos recursos naturais é
fundamental para a manutenção da paz, e sua escassez passa a se transformar em
potencial elemento motivador de conflitos internacionais, bem como no âmbito interno
dos próprios Estados nacionais.

Diante de tal situação, o objetivo do presente trabalho é contribuir para a reflexão


sobre a importância da cooperação internacional para a conservação dos recursos
naturais amazônicos, consideradas as funções vitais que o bioma amazônico exerce
no meio ambiente planetário e as ameaças de degradação e escassez.

2 Segurança ambiental global

Tradicionalmente o conceito de segurança remete à soberania e integridade


territorial do Estado, o qual no âmbito doméstico possui o monopólio da violência ou
o uso legítimo da força para manter a paz dentro de suas fronteiras e a segurança
de seus cidadãos frente a ameaças externas. No campo das relações internacionais
e nos estudos de geopolítica essa acepção encontra fundamentação na teoria
realista e na geopolítica clássica.

A teoria realista clássica concebe os Estados como atores racionais dotados de


interesses, compondo um sistema internacional anárquico, caracterizado pela
ausência de uma autoridade suprema, legítima e inquestionável que possa ditar
regras, interpretá-las, implementá-las e impor sansões a quem não as obedece
(NOGUEIRA; MESSARI, 2005). Nesse sistema, a defesa do interesse nacional e
a garantia da segurança do Estado estariam ligados à maximização do seu poder,
principalmente o militar (OLIVEIRA, 2009) e na posse ou controle de recursos
estratégicos.

Em consonância com a teoria realista, a geopolítica clássica direciona-se à


―formulação de teorias e projetos de ação voltados às relações de poder entre os
Estados e às estratégias de caráter geral para os territórios nacionais e estrangeiros‖

1180
(COSTA, 2008, p. 18), importando significativamente o conteúdo de tais territórios
em termos de população e recursos (naturais ou produzidos).

Em superação às limitações teóricas da geopolítica clássica para explicar a dinâmica


das relações de poder na contemporaneidade, Vesentini (2000) alude ao surgimento
de novas geopolíticas na era da globalização, onde os Estados nacionais sofrem um
relativo enfraquecimento e deixam de ser vistos como os únicos atores na política
internacional. Nesse sentido, outros atores vem ganhando cada vez mais destaque,
tais como organizações não governamentais, organizações internacionais, empresas
transnacionais, blocos de integração regional, etc. Para o autor,

Novos campos de luta são agora vistos como importantes para a


compreensão das relações de poder no espaço mundial, desde a questão
ambiental (embates sobre o uso dos oceanos ou do espaço cósmico ao
redor do planeta, a emissão de gases de efeito estufa, os desmatamentos e
a perda de biodiversidade, desenvolvimento sustentável, etc.) até as lutas
pelos direitos das mulheres, de minorias étnico-nacionais, de grupos com
diferentes orientações sexuais, de povos sem território reconhecido, de
populações excluídas na sociedade global ou em sociedades nacionais, etc.
(VESENTINI, 2000, p. 12).

Polarizando com o realismo político, a teoria liberal também pode ser caracterizada
como um dos paradigmas dominantes no estudo científico das relações
internacionais. Herdeira do Iluminismo, está voltada fundamentalmente para as
preocupações com a liberdade do indivíduo, asseverando que os seres humanos
são capazes, por meio do uso da razão, de definir seu destino de maneira
autônoma, sendo dotados da capacidade de decidir o que é bom e justo como
membros de uma comunidade (NOGUEIRA; MESSARI, 2005).

A influência do liberalismo cresceu decisivamente com a crise do socialismo no


Leste Europeu e a queda do muro de Berlim. Entre as conseqüências imediatas do
fim da Guerra Fria, houve um reforço dos argumentos da doutrina neoliberal, agora
chamada de liberalismo institucional, onde as instituições passam a ser vistas ―como
solução de problemas de escolha coletiva e oferta de bens coletivos‖ (GONÇALVES;
COSTA, 2011, p. 203).

Tomando como referência o pensamento crítico marxista, a corrente estruturalista


que influenciou o pensamento acadêmico na segunda metade do século XX trouxe à

1181
tona a preocupação com o desenvolvimento desigual e as estruturas de dominação
que decorrem do capitalismo global. Assim como nas teorias da dependência, tal
preocupação manifesta-se na teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein, na
qual as oscilações na distribuição do poder entre os Estados no sistema
internacional ocorrem em função da dinâmica do capital em nível global, sendo que
―os Estados desenvolvem sua ação política sob os condicionamentos do mercado
mundial e segundo a posição que ocupam na divisão internacional do trabalho‖
(NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 124). Para além do campo da economia e das
relações internacionais, essa abordagem ainda influencia o pensamento crítico nas
ciências sociais, embora outras correntes de pensamento, especialmente as de
cunho neoliberal lhe confiram um caráter anacrônico. Na Geografia, por exemplo, ao
definir o espaço-tempo no atual processo de globalização como um meio técnico-
científico-informacional, a obra de Milton Santos revela uma clara preocupação com
a perda de soberania dos Estados nacionais e das unidades políticas subnacionais
diante do poder de atores hegemônicos em nível internacional, particularmente as
grandes empresas transnacionais. Para Santos (1997), a dinâmica dos espaços da
globalização demanda uma permanente adaptação da formas e das normas, onde o
estabelecimento e a aplicação de normas jurídicas, financeiras e técnicas, tendem
cada vez mais a estarem condicionadas às necessidades do mercado. Embora tais
normas possam ser criadas em diferentes escalas geográficas e políticas,
organismos supranacionais e o mercado induzem o estabelecimento de normas
globais que tendem a configurar as demais.

Mais especificamente em relação à crise ambiental, Santos argumenta que

a busca de mais valia ao nível global faz com que a sede primeira do
impulso produtivo seja apátrida, extraterritorial, indiferente às realidades
locais e também às realidades ambientais. Certamente por isso a chamada
crise ambiental se produz neste período histórico, onde o poder das forças
desencadeadas num lugar ultrapassa a capacidade local de controlá-las,
nas condições atuais de mundialidade e de suas repercussões nacionais
(SANTOS, 1997, p. 202).

Santos chama a atenção para o fato de que há uma perda de poder dos atores
locais frente aos imperativos das forças de mercado, que se repercute em escalas
mais amplas, como a região ou o Estado ―na medida e que os atores recém-

1182
chegados tragam consigo condições para impor perturbações, o acontecer em uma
dada fração do território passa a obedecer a uma lógica extra-local, com uma quebra
às vezes profunda dos nexos locais‖ (SANTOS, 1997, p. 202).

Nesse sentido, a horizontalidade das decisões nacionais encontra-se cada vez mais
ameaçada pela verticalidade das relações de poder que no contexto da globalização
caracterizam-se por uma interdependência que põe em questão a autonomia relativa
dos lugares.

Ressalvado o esforço da teoria crítica ao apontar os riscos de uma inserção cega


dos países no complexo processo de globalização, nos dias atuais é praticamente
impossível imaginar Estados totalmente isolados, uma vez que da globalização
também decorrem muitos aspectos positivos proporcionados às sociedades.
Ressalta-se ainda que o contexto da globalização, em contraste com a rigidez das
atenções quase que exclusivas para o conflito Leste-Oeste, permitiu maior abertura
para o surgimento de conceitos como o de segurança ambiental global.

Já no final dos anos 1960 o conceito de paz positiva como integração foi repensada
nos estudos de Galtung sobre violência estrutural que envolvia ―uma visão mais
conflituosa do mundo, do que o conceito de paz como integração e inaugurava a
incorporação de uma gama de assuntos relacionados à desigualdade econômica e
as diferenças entre o Norte e o Sul‖ (GALTUNG apud BUZAN; HANSEN, 2012,
p.197). Embora houvesse alguma inspiração no pensamento marxista, a violência
estrutural também estabelecia pontes com a pesquisa liberal-idealista clássica, ao
opor-se à violência que a teoria radical procurava legitimar como resposta à
opressão e à exploração.

Dessa forma, a violência estrutural ―se referia não somente às injustiças manifestas
com consequências materiais físicas, como mortes relacionadas à fome no Terceiro
Mundo, mas também a fenômenos com impacto corporal menos imediato, como o
analfabetismo‖ (GALTUNG apud BUZAN; HANSEN, 2012, p.197-198). Essa
violência encontra amparo nas já citadas teorias do sistema-mundo e da
dependência, em que o subdesenvolvimento decorreria então de uma condição
estruturalmente determinada pelo capitalismo global, onde os países do Terceiro

1183
Mundo caracterizavam-se como fornecedores de matérias-primas e commodities às
grandes empresas de países desenvolvidos.

Também na década de 1960 surgiram importantes trabalhos no campo científico,


que procuravam alertar o mundo sobre a problemática socioambiental (como
―Primavera Silenciosa‖ – Rachel Carson; ―A Tragédia dos Comuns‖ – Garret Hardin;
e o relatório para o Clube de Roma, ―Os Limites do Crescimento‖ – Denis e Donella
Meadows, entre outros). A abrangência dos impactos gerados com a exploração
sem precedentes dos recursos naturais permitiu o surgimento de uma consciência
ecológica entre alguns grupos sociais, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento
da tecnologia de imagens captadas por satélites proporcionava que o homem
tivesse uma visão do planeta de fora dele, levando também à percepção de que a
Terra é um bem comum e que deveria haver uma responsabilidade comum no seu
uso (BECKER, 1997).

A preocupação nos países industrializados em relação aos perigos representados pela


poluição, o esgotamento dos recursos naturais do planeta e a explosão demográfica, a
partir do final da década de 1960, possibilitou a discussão da crise ambiental como fator
importante nos processos de desenvolvimento, passando a evidenciar uma certa
insatisfação com os modelos de desenvolvimento dominantes.

No campo das relações internacionais esses movimentos abriram espaços de


diálogos que proporcionaram a realização da Conferência das Nações Unidas sobre
o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo em 1972, e diversos Acordos
Internacionais que resultaram em alguns consensos sobre a necessidade de uma
forma de desenvolvimento que levasse em conta a causa ambiental. Nesse sentido
começaram a ser estabelecidos os fundamentos que levariam ao surgimento do
conceito de desenvolvimento sustentável, bastante difundido com a divulgação do
relatório da Comissão das Nações Unidas para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, intitulado ―Nosso Futuro Comum‖ em 1987, e tema central da
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada
no Rio de Janeiro, em 1992.

Nos anos 1990 também surgiu o importante conceito de segurança humana.


Elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),

1184
enfatiza as questões ligadas à pobreza e à saúde como parte dos estudos de
segurança global. Quanto ao meio ambiente, de acordo com Buzan e Hansen (2012)
inicialmente estas não eram consideradas de forma explícita nos estudos sobre
segurança, mas as preocupações com a extração predatória de recursos no Terceiro
Mundo e os impactos de políticas estatais sobre o meio ambiente e as sociedades
gradativamente começaram a colocar o meio ambiente de forma clara na agenda de
segurança global. Assim, houve uma reorientação da agenda de estudos de segurança
internacional, que passou a incorporar o meio ambiente como referência, dado que uma
parte dos problemas ambientais maiores caracterizam-se como uma ameaça a toda a
civilização humana. Nesse contexto, processos de institucionalização como a criação
do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) ―também serviram
para posicionar a segurança ambiental como uma das primeiras expansões setoriais de
segurança nacional para além do militar‖ (BUZAN; HANSEN, 2012, p. 205).

Para Ribeiro (2001), a ideia de segurança ambiental global está configurada à


implementação de estratégias por uma unidade política, evoluindo de maneira mais
lenta e encontrando mais resistência que o conceito de desenvolvimento
sustentável, não deixando, todavia, de cumprir a função de fornecer uma justificativa
científica à política externa dos países.

Resguardada a análise precisa de Ribeiro (2001), este artigo considera que os


problemas ambientais em nível global, caracterizados principalmente pelas
consequências das mudanças climáticas e pela perda da biodiversidade elevam a
segurança ambiental global ao patamar de preocupação prioritária nas relações
internacionais. Deve ser cada vez mais levado em conta o fato de que a conservação
dos recursos naturais é fundamental para a manutenção da paz, e sua escassez
perdura como potencial elemento motivador de conflitos internacionais, bem como no
âmbito interno dos próprios Estados. A estes passam a ser atribuídas novas
responsabilidades, pois ainda constituem os principais atores no sistema internacional.

3 Serviços ambientais na Amazônia e bens comuns internacionais

A região amazônica, que além do Brasil se estende pelos territórios da Bolívia, Peru,
Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa

1185
(Departamento Ultramarino da França) ocupa uma área estimada em 5,5 milhões de
Km2 e abriga não só a maior bacia hidrográfica, como também o maior ecossistema
florestal do mundo. Além de uma das mais importantes reservas de água doce,
destaca-se também pela maior biodiversidade do planeta, o que lhe confere uma
vital dinâmica de serviços ambientais.

O conceito de serviços ambientais é relativamente recente e está ligado aos


benefícios vitais proporcionados aos seres humanos pelos processos naturais
que ocorrem nos ecossistemas. De acordo com a Millenium Ecossistem
Assesment (2003) esses serviços podem ser classificados em quatro categorias:
serviços de aprovisionamento ou abastecimento (provisioning); serviços de
regulação (regulating); serviços culturais (cultural); e serviços de apoio ou de
suporte (supporting). Os serviços de aprovisionamento ou abastecimento
correspondem ao provimento pelos ecossistemas de produtos com valor
econômico (bens) como alimentos, água, combustíveis, fibras e outras matérias-
primas. Os serviços de regulação dizem respeito à manutenção dos próprios
ecossistemas e suas dinâmicas, garantindo a continuidade de seus benefícios
para os seres humanos. A regulação do clima e a regulação dos fluxos de água
estão entre os principais exemplos dessa categoria de serviços. Os serviços
culturais dizem respeito a práticas espirituais (religiosas), estéticas, recreativas e
educacionais pelas populações locais que resultam diretamente na conservação
dos recursos naturais. Finalmente os serviços de apoio ou de suporte fornecem a
base para todos os demais a exemplo do ciclo e da produção primária de
nutrientes e a formação dos solos.

Embora possa transparecer uma tendência antropocêntrica na conceituação e


categorização dos serviços ambientais, tendo em vista que há uma clara
preocupação com a perpetuação da espécie humana, deve-se ressaltar que todos
os demais seres vivos dependem desses processos e que obviamente o homem
também faz parte do meio ambiente. Assim, como principal agente de impactos
sobre a superfície terrestre, deve estar consciente de suas responsabilidades na
manutenção da vida no planeta.

A dinâmica dos serviços ambientais tem como resultado a produção de bens que
circulam no planeta, tais como os fluxos de água na atmosfera e o provimento
natural de gases que compõem o ar atmosférico, que remetem à idéia de bens

1186
comuns ou coletivos. Entretanto, consideramos que é preciso cuidado com
possíveis ambiguidades que podem ser desencadeadas pelas definições correntes
de bens comuns. No campo da gestão ambiental, Bursztyn e Burztyn (2013)
preferem utilizar a expressão ―bem coletivo‖, definindo-ocomo

aquele que não é passível de uma apropriação privada, ou seja, não há


possibilidade de exclusão do indivíduo que não contribuiu para o provimento
do bem. Quando um bem comum é provido, todos os que cumprem certos
requisitos têm direito a dele desfrutar, mesmo que não tenham se
empenhado no seu alcance (BURSZTYN; BURSZTYN, 2013, p. 148).

No campo das relações internacionais, Mingst (2009) utiliza a mesma expressão,


conceituando ―bem coletivo‖ como

bens públicos que estão disponíveis para todos, independentemente da


contribuição individual – por exemplo, o ar, os oceanos ou a Antártica – mas
que a ninguém pertencem ou pelos quais ninguém é individualmente
responsável; com bens coletivos, as decisões tomadas por um grupo ou
Estado teriam efeitos sobre outros grupos ou Estados (MINGST, 2009, p.
312).

Le Prestre (2000) afirma que numerosos bens, renováveis ou não, podem ser
considerados comuns uma vez que é difícil limitar o acesso a eles. Além disso, seu
consumo é concorrencial, ou seja, o consumo de um determinado bem por um ator
pode afetar o nível de consumo dos demais. O autor busca citar exemplos tais como
campos petrolíferos situados em áreas transfronteiriças, as regiões polares, o
espaço, os oceanos e os recursos haliêuticos e cinegéticos, todos sujeitos a
explorações excessivas por atores que detêm o acesso a esses bens comunais
antes que os demais atores o façam, o que ameaça sua conservação ou acelera sua
finitude. Assim,

No nível nacional ou internacional, a busca do interesse privado por alguns


pode prejudicar os interesses dos outros atores, se limitar a capacidade
destes últimos de gozar do bem comum. O lançamento de poluentes
atmosféricos por determinado Estado pode afetar a saúde pública ou as
aptidões produtivas de um Estado vizinho. Efluentes perigosos podem
destruir a fauna aquática ou diminuir a capacidade das povoações a
montante de utilizar a água (LE PRESTRE, 2000).

1187
A citação anterior remete ao conceito econômico de externalidade negativa, onde os
impactos de uma determinada atividade econômica não são contabilizados nos
preços de custo, uma vez que os custos negativos são impostos à sociedade como
um todo. Diversas medidas no âmbito nacional têm buscado a internalização de tais
custos, principalmente a imposição de cargas fiscais ou regulamentação. Essas
medidas, entretanto, ainda encontram resistências tanto no âmbito nacional como no
internacional. No âmbito nacional frequentemente há dificuldades dos Estados
(principalmente os países em desenvolvimento) quanto ao processo de gestão. No
âmbito internacional, apesar de avanços conquistados por diversos acordos, a
ausência de uma autoridade supranacional também dificulta o controle das ações e
a obediência às regulamentações. Nesse sentido, se no nível nacional há maiores
possibilidades do Estado impor o respeito às regras, no nível internacional a
ausência de uma autoridade central torna difícil a cooperação, ainda que no
interesse de todos (LE PRESTRE, 2000).

4 A importância da cooperação internacional para a conservação dos recursos


amazônicos

Nos últimos anos, diversos conflitos com emprego de força bélica, principalmente na
África e no Oriente Médio, têm se tornado o principal foco de atenção para os que
acompanham a geopolítica mundial. Embora tais conflitos estejam ligados a uma
série de fatores, parece claro que o temor da escassez de recursos naturais devido
ao aumento do consumo ou esgotamento de reservas, especialmente as de
combustíveis fósseis como o petróleo e o gás natural, tem resultado na mobilização
de enormes recursos econômicos e militares pelas grandes potências para garantir o
controle de áreas consideradas estratégicas.

Em consonância com tal constatação, muitos analistas argumentam que a maior


parte dos conflitos armados no futuro próximo estará relacionada a problemas
ambientais, como mudanças climáticas, o aumento do nível dos mares, e a
escassez de água potável, gerando uma acirrada disputa por recursos e por
territórios mais seguros. Assim, os países passariam a desenvolver poderosas

1188
armas para defender ou assegurar a posse de alimentos, água e estoques de
energia, em que a estabilidade global estaria seriamente ameaçada.

Por outro lado, o novo liberalismo institucional ou corrente de pensamento neoliberal


nas relações internacionais critica a escola realista tradicional e o neorrealismo, que
nem tudo podem justificar nas relações contemporâneas entre os Estados. Nesse
sentido, em muitas situações os Estados nacionais não consideram ameaças à sua
soberania, sendo incentivados à cooperação uns com os outros ao constatarem a
possibilidade de ganhos absolutos (ROCHA, 2002).

Para Keohane e Axelrod (apud NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 90), ―a anarquia


pode ser concebida como um ambiente em que a cooperação é possível, e não
necessariamente como um estado de natureza hobbesiano (um estado de guerra de
todos contra todos)‖. Dessa forma, ainda que se considere a prevalência de uma
estrutura anárquica do sistema internacional, este não impede necessariamente a
cooperação entre unidades soberanas.

Concepções mais recentes no campo das relações internacionais, como o


construtivismo, por exemplo, revelam uma complexidade para muito além dos
Estados como únicos atores do sistema internacional, considerando a inclusão de
outros atores que participam de uma realidade que não deve ser determinada, mas
sim socialmente construída.

No âmbito da Organização das Nações Unidas, a discussão sobre a necessidade de


elaboração de modelos que viessem permitir a conciliação entre o desenvolvimento
gerou correntes de pensamento como a do ecodesenvolvimento ou desenvolvimento
socioeconômico eqüitativo e ambientalmente adequado (GODARD, 1997), lançando
as bases para a elaboração e difusão do conceito de desenvolvimento sustentável.
Este conceito é definido pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e
Desenvolvimento como um meio pelo qual o progresso econômico e social poderia
ser conduzido para atender as necessidades do presente sem comprometimento da
capacidade das gerações futuras também atenderem às suas (CMMAD, 1991).

Apesar de muito criticado, principalmente pela sua elaboração em um momento no


qual os centros de poder mundial declaravam a falência do Estado como condutor

1189
do desenvolvimento e propunham a sua substituição pelo mercado, ao mesmo
tempo em que também defendiam o fim da regulação e do planejamento
governamental (GUIMARÃES, 1997), o conceito de desenvolvimento sustentável
tornou-se o foco das discussões ambientais a partir da Conferência Mundial sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento. Um dos documentos resultantes dessa
Conferência foi a Agenda 21 que enfatiza sobre a necessidade de integração entre
meio ambiente e desenvolvimento na tomada de decisões.

Nesse sentido, instituições internacionais como o Banco Mundial passaram a


disseminar a ideia de governança, na qual a ―boa governança‖ corresponderia a uma
articulação positiva de mediação de interesses entre governos, instituições e
cidadãos, considerando-se um ambiente democrático em que cada ator estaria
consciente de seus direitos e obrigações, bem como da necessidade de respeito a
padrões ecológicos. O alcance da ―boa governança‖ envolveria a participação,
equidade, parceria, ―empoderamento‖ (empowerment), transparência, regras ou leis
(justiça), eficiência, e responsabilização (accounstability) (UNDP, 2000; ZHOURI;
LASCHEFSKI; PEREIRA, 2005).

As preocupações com o meio ambiente alcançaram uma dimensão global, cujos


apelos estenderam-se para as escalas regionais e locais, influenciando governos,
tomadores de decisão, cientistas oriundos das mais diversas áreas, e outros
segmentos da sociedade civil. Além disso, a temática ambiental consolidou-se como
parte da agenda de discussões entre os países, criando possibilidades para o
diálogo e para a cooperação internacional.

Para RIBEIRO (2001), os conceitos de segurança ambiental global e de


desenvolvimento sustentável são centrais para o estabelecimento da ordem
ambiental internacional, porém, em que pese o seu reconhecimento, estes conceitos

envolvem a promoção de ajustes globais – nos quais os vários atores do


sistema internacional certamente devem contribuir para que metas comuns
sejam alcançadas – os países, principais interlocutores na ordem ambiental
internacional, por meio de seus negociadores, têm procurado salvaguardar
o interesse nacional. Agindo dessa forma, transformam as preocupações
com a sustentabilidade do sistema econômico hegemônico e a possibilidade
de que ele nos encaminhe para uma situação de risco em mera retórica
(RIBEIRO, 2001, p. 109)

1190
O alerta do autor é bastante pertinente, pois apesar de todos os acordos e discursos
em relação às causas ambientais, o resultado prático da grande maioria das
políticas governamentais, especialmente nos países pobres e emergentes, tem sido
a continuidade da adoção e implantação de modelos de desenvolvimento ―de cima
para baixo‖ (top-down), que não raro resultam em perversas externalidades
negativas, traduzidas por elevados passivos ambientais e sociais.

No caso brasileiro, mesmo que tenha ocorrido nos últimos anos uma considerável
evolução no arcabouço institucional e o surgimento de importantes movimentos
voltados para a conservação ambiental bem como para as causas sociais, as
necessidades de crescimento econômico do país continuam a ser impostas por
variados grupos de interesses, que muitas vezes colocam a questão da
sustentabilidade socioambiental como entrave ao desenvolvimento, classificando
pejorativamente a atuação (ainda que precária) dos organismos que se voltam para
essa causa como parte do ―politicamente correto‖ em contraposição ao que deveria
ser considerado como eticamente positivo.

No caso conjunto dos países amazônicos, diante das inúmeras dificuldades


enfrentadas por Estados que almejam o desenvolvimento, mas que sequer
conseguem manter plenamente sua presença na região até mesmo em termos de
serviços básicos às populações locais, parece claro que o melhor caminho é o da
cooperação. Nesse sentido, as forças armadas, cujas ações de segurança e
assistência social a grande parte das populações amazônicas, tornam-se o principal
elo da presença do Estado na região, podem também ser consideradas como
agentes fundamentais de cooperação para a conservação dos bens comuns e na
manutenção da segurança ambiental, a exemplo do que já ocorre em relação ao
Sistema de Vigilância e ao Sistema de Proteção da Amazônia.

Além disso, os governos dos países amazônicos devem fortalecer os organismos


multilaterais como a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica no intuito
de desenvolver tecnologias e metodologias próprias de conciliar desenvolvimento e

1191
sustentabilidade e ao mesmo tempo estabelecer formas cooperativas com países
mais desenvolvidos.

5 Considerações finais

O conceito de serviços ambientais vem sendo bastante utilizado em abordagens que


tratam do seu pagamento, já existindo diversas experiências com maior foco no nível
local e mesmo políticas governamentais, a exemplo do ―bolsa floresta‖. Entretanto, é
difícil imaginar tais políticas no nível internacional, especialmente para uma região
que abrange oito estados soberanos e um território pertencente a um país europeu.

Ainda que também já existam iniciativas em curso, tais como o Fundo Amazônia e
projetos para redução de emissões de gases de efeito estufa por desmatamento e
degradação, deve-se considerar que os interesses de seus financiadores nem
sempre são revelados de forma explícita.

Não há dúvidas de que os serviços ambientais produzidos pelo grande ecossistema


amazônico produzem bens que beneficiam toda a humanidade, sujeitando os países
amazônicos a fortes pressões internacionais pela sua conservação. Todavia, os
Estados continuam soberanos quanto à utilização de seus recursos naturais, mesmo
que poderosos agentes econômicos transnacionais que conduzem o processo de
globalização vigente, ao contrário do que muitos pensam, valorizem as fronteiras
com o intuito de retirar o máximo de proveito econômico em cada território.

Embora o atual contexto de crise econômica mundial venha causando retrocessos


no tocante às preocupações com o meio ambiente, é preciso que a comunidade
internacional esteja atenta quanto à manutenção e cumprimento dos acordos já
estabelecidos, bem como estabeleça mais oportunidades de diálogo, sem os quais a
segurança ambiental global estará ainda mais ameaçada. Aqui há sempre que ser
lembrado o fato de que os problemas ambientais não obedecem as fronteiras
criadas pelos homens.

1192
É preciso que os países amazônicos tomem plena consciência sobre os processos
naturais que ocorrem em seus respectivos territórios, os quais são em grande parte
responsáveis pela sustentabilidade planetária. Somente a partir dessa consciência
poderão buscar mais formas cooperativas para desenvolverem alternativas de
desenvolvimento que garantam a conservação de seus recursos.

Finalmente, nas questões relacionadas à segurança ambiental global, e ao controle


de recursos escassos, todos os esforços devem ser mobilizados no sentido de evitar
e repudiar falsas justificativas realistas que busquem legitimar a guerra como
―instrumento de política‖ no âmbito das relações internacionais.

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1194
GOVERNANÇA CLIMÁTICA: UM ESTUDO DO MECANISMO DE
DESENVOLVIMENTO LIMPO COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA PÚBLICA.

Sheyla Rosana Oliveira Moraes537

1 Introdução

É com grande estima que escrevo sobre governança climática na sub área de
políticas públicas dentro da grande área que é a ciência política. Escolhi tal temática
por ter sido tema de minha dissertação de mestrado e a construção desse artigo
contribuiu para dar continuidade aos pensamentos tecidos durante a disciplina de
Política Internacional, Política Publica na Amazônia e Política Publica e o Meio
Ambiente. Nesse sentido, é interessante tratar de temas como aquecimento global,
Mercado de Carbono no Brasil, Mecanismo de Desenvolvimento Limpo num país
que mesmo não pertencendo ao grupo dos países compromissados em diminuir a
emissão de gases poluentes e ter uma matriz energética limpa, se compromete por
meio de estratégias políticos e econômicos para contribuir com a diminuição da
poluição no planeta e mundo mais saudável para todos.

O aquecimento global é o resultado mais evidente do que tem sido a perigosa


combinação de um crescente da população humana, o desenvolvimento tecnológico,
um paradigma de carbono intensivo. Essa relativa austeridade é uma grande
facilidade e tem sido o motivo do desenvolvimento do capitalismo mundial.

O retrato da modernidade tem sido um grande esbanjamento de riquezas e até certo


ponto supérfluo no consumo das necessidades individuais tem colocado em risco a
sociedade e a espécie. Há uma grande dissonância no sistema internacional de
hoje. Se de um lado as emissões de carbono crescem continuamente, de outro
praticamente todos os dirigentes dos países reconhecem a gravidade do problema e
tem uma retórica de cooperação internacional para uma solução mais efetiva das

537
Universidade Federal do Pará , mestre em Ciência Política.

1195
emissões muito distante do comportamento efetivo dos agentes econômicos nas
suas respectivas sociedades.

A realidade é que, há décadas, ambientalistas em todo o mundo vêm alertando a


sociedade sobre os problemas causados pela má utilização dos recursos naturais
disponíveis. Entretanto, somente a partir dos anos de 1990, essa realidade parece
estar mobilizando a opinião pública a ponto de a sociedade exigir novos
encaminhamentos ao modelo de desenvolvimento praticado no mundo, de forma a
garantir não apenas a preservação dos recursos naturais, como também a qualidade
de vida para os que hoje habitam o Planeta Terra e aos que ainda estão por vir.

Para Viola (2005), as questões ambientais globais somente adquiriram densidade com
a descoberta do buraco na camada de ozônio sobre a Antártida. Entre os principais
problemas ligados à atmosfera terrestre encontram-se o aumento da concentração de
Gases do Efeito Estufa (GEE) e a consequente mudança climática, representada por
grandes aumentos na temperatura na terra. Esse aquecimento tem provocado
alterações na natureza tais como o derretimento das calotas polares, e o consequente
aumento do nível dos oceanos, alterações na salinidade do mar, mudanças na
dinâmica dos ventos e chuvas, intensificação de ciclones tropicais, exacerbação de
secas e enchentes, redução da biodiversidade terrestre, aumento da desertificação.
Além da grande preocupação com os efeitos sociais causados pelo impacto na
agricultura, decorrente das perdas de produção de alimentos resultantes dessas
alterações. Entre estas implicações encontram-se maior risco de fome, inanição,
doenças, insegurança alimentar. Há de se considerar, ainda, a possibilidade de
deslocamento de populações residentes em áreas baixas e costeiras, temendo a
inundação de seus territórios (ANDRADE, 2007).

O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) é um dos mecanismos de


flexibilização criados pelo Protocolo de Quioto para auxiliar o processo de redução
de emissões de gases do efeito estufa (GEE) ou de captura de carbono (ou
sequestro de carbono) por parte dos países do Anexo I.

O MDL visa o alcance do desenvolvimento sustentável em países em


desenvolvimento (país anfitrião), a partir da implantação de tecnologias mais limpas

1196
nestes países, e a contribuição para que os países do Anexo I cumpram suas
reduções de emissão.

Os projetos de MDL podem ser baseados em fontes renováveis e alternativas de


energia, eficiência e conservação de energia ou reflorestamento. Existem regras
claras e rígidas para aprovação de projetos no âmbito do MDL. Estes projetos
devem utilizar metodologias aprovadas, devem ser validados e verificados por
Entidades Operacionais Designadas (EODs), e devem ser aprovados e registrados
pelo Conselho Executivo do MDL. Os projetos devem ser aprovados pelo governo
do país anfitrião através da Autoridade Nacional Designada (AND), assim como pelo
governo do país que comprará os CERs. No Brasil, a Comissão Interministerial de
Mudança Global do Clima, estabelecida em 1999, atua como AND Brasileira.

O Conselho Executivo (CE) do MDL numerou 15 setores onde projetos MDL podem
ser desenvolvidos e estão ligados a mais de um setor: Setor 1. Geração de energia
(renovável e não renovável); Setor 2. Distribuição de energia; Setor 3. Demanda de
energia (projetos de eficiência e conservação de energia); Setor 4. Indústrias de
produção; Setor 5. Indústrias químicas; Setor 6. Construção; Setor 7. Transporte;
Setor 8. Mineração e produção de minerais; Setor 9. Produção de metais; Setor 10.
Emissões de gases fugitivos de combustíveis; Setor 11. Emissões de gases fugitivos
na produção e consumo de halocarbonos e hexafluorido de enxofre; Setor 12. Uso
de solventes; Setor 13. Gestão e tratamento de resíduos; Setor 14. Reflorestamento
e florestamento; Setor 15. Agricultura.

Tratando-se de projetos de MDL, intrinsecamente ligados ao meio ambiente e à sua


preservação, e diretamente relacionados com a temática das mudanças climáticas,
isto não seria diferente. Já em sua formulação, houve a necessidade de árdua
negociação envolvendo governos, organizações internacionais, integrantes da
sociedade civil organizada e representantes do mercado. Nos projetos de MDL
verificam-se formas divergentes de análise das propostas apresentadas, exigindo
uma aproximação entre a empresa proponente e as partes interessadas no projeto,
visando ao estabelecimento de consensos mínimos.

Tomando por base essa constatação, que a Ciência Política indaga: Qual a
contribuição das políticas publicas no desenvolvimento dos Projetos de MDL no

1197
Brasil? Quais são os principais conflitos de interesses existentes em um caso desse
tipo? Quais fatores econômicos institucionais o Mecanismo Desenvolvimento Limpo
utilizam no processo de Governança Climática Global para que haja a
reciprocidades entre os países compromissados? Como se vê, muitas são as
indagações possíveis.

Diante da realidade exposta, concluiu-se pela necessidade de realizar uma


investigação sobre as formas de regulação relacionadas aos projetos de MDL.
Objeto relevante para o desenvolvimento dos estudos em Ciência Política, no que se
refere às questões ligadas ao meio ambiente e seus impactos sociais, mas também
para auxiliar na formulação de políticas públicas relativas à governança climática,
bem como para a tomada de decisões no que diz respeito às estratégias político-
institucionais a serem adotadas.

Esse interesse pela interação dos atores no sistema-mundo contemporâneo, diante


de questões ligadas à governança climática em âmbito mundial, faz com que o
presente estudo integre o Projeto de Pesquisa Segurança Ambiental Global na
Amazônia: Dimensões e Agendas (SAGA/CNPq), novo grupo de pesquisa ligado ao
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Nesse contexto, a
análise de uma especificidade ocorrida dentro do Protocolo de Quioto (1997),
considerado um dos mais audaciosos instrumentos da governança climática global,
é extremamente rica. Some-se a isso o fato de o mercado de créditos de carbono,
originado pelo Protocolo, ainda se encontrar em fase de desenvolvimento.

Nações de todo o mundo, e suas respectivas empresas, estão iniciando a adoção


de estratégias que auxiliem no controle das mudanças climáticas globais.
Especialmente no âmbito dos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, há grande
interesse brasileiro para que esse mercado realmente se concretize. O país é
considerado um dos mais fortes negociadores potenciais mundiais de Créditos de
Carbono. Para obter a aprovação desses projetos, e a consequente obtenção dos
créditos, necessariamente as empresas terão que legitimar a si mesmas e a seus
projetos de MDL perante seus públicos.

Sendo esta pesquisadora graduada em Ciências Sociais, na ênfase de Ciência


Política, tendo escolhido a linha de pesquisa em Políticas Publicas, ainda na

1198
graduação e realizado a pós-graduação em Educação Ambiental, inevitavelmente
traz-se um novo olhar para a questão ambiental. Nesse sentido, vê-se a
necessidade de analisar o MDL como instrumento de políticas públicas e seus
fatores econômicos institucionais nesse atual contexto de governança climática
global. Chega-se as premissas básicas que nortearam esse artigo que foi baseado
em minha dissertação de mestrado:

1) O Mecanismo Desenvolvimento Limpo é um mecanismo de flexibilização


econômico com base no artigo 12 do Protocolo de Quioto determina a redução de
gases de efeito estufa na atmosfera e financia projetos de redução ou compra de
emissões de carbono nos países que não fazem parte do anexo I como forma de
execução da Governança Climática a fim de garantir a preservação dos bens
comuns mundiais e melhores condições de vida para as gerações futuras.

2) A implementação de vantagens como o pagamento de serviços ambientais para a


comunidade manter a floresta em pé e proteger o meio ambiente para as gerações
futuras, mudou o olhar para a floresta, transformando-a em credito de carbono
comercializável aos fóruns internacionais por meio da Convenção Quadro das
nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQMUNC) por meio da Lei nº 11.284/06, a
lei de gestão e concessão florestal que contempla a outorga de florestas às
comunidades e esta representa outra forma efetiva de atender aos objetivos de
inserção destas comunidades no MDL, como mecanismo de geração de emprego e
renda e de desenvolvimento sustentável.

3) A governança climática que se estabeleceu no Brasil foi o surgimento de novos


atores não governamentais na política do sequestro de carbono, dessa forma os
países do Anexo I poderiam quitar suas dividas ambientais e climáticas
estabelecidas no Protocolo de Quioto em 1997 por meio da visão mercadológica que
se tornou as florestas.

Na busca de resultados consistentes à análise pretendida, adotou-se como


estratégia metodológica a analise bibliográfica e utilizaram-se os seguintes
procedimentos metodológicos, que serão posteriormente detalhadas: pesquisa
bibliográfica aprofundada pelo método da abordagem a policyanalysis sobre os

1199
principais temas envolvidos, englobando documentos científicos, artigos publicados
pela mídia virtual e impressa, e documentos institucionais.

Além desta introdução, onde o tema do artigo foi contextualizado e se encontra


presente a discussão sobre o conceito de governança climática no sistema global, a
analise conceitua de governança climática e o pensamento sobre políticas públicas e
o MDL, tudo pautado segundo o artigo12 do Protocolo de Quioto.

2 O conceito de governança climática no sistema globalizado

Tratar a questão da Governança apenas pela visão da atual Governança


transnacional como é chamada pelas políticas internacionais globais atuais. Parte-se
do ponto que sem colaboração e boa vontade não há como se estabelecer uma
política efetiva e satisfatória que resolva os nossos problemas climáticos pelo menos
baseados na união entre o poder local e o global. O trabalho tenta focar o clima
como uma demanda transnacional e propõe que tratado com uma elaboração tanto
jurídica como política de governança tem como prioridade usar das teorias da
transnacionalidade para criar através da conduta dos estados metas que sirvam
para alcançar o objetivo e desencadear o nível dependentes causadores do
aquecimento global. Contudo para compreendermos o conceito de Governança
Climática faz-se necessário compreender o sistema global contemporâneo.

3 O Sistema Global contemporâneo

Held (2002) onde a compreensão da globalização contemporânea que começa


aproximadamente a partir de 1945 com a degradação de fatores globais comuns e
decisivos como o aquecimento global e a diminuição da camada de ozônio por meio
de emissões de CO2 para atmosfera realizada pelo desmatamento, queimadas e
emissões de CFC. Essas ações são antrópicas, pois o homem é o único animal
dotado de tal racionalidade, contaminou mares, rios e o ar. Em alguns países, o
desenvolvimento do comercio em produtos tóxicos, em tecnologia nuclear e suas
formas de difusão contribuíram para o processo de degradação ambiental. O

1200
conhecimento desenvolvido por Held será muito um dos principais construtores do
pensamento da governança climática juntamente com Viola (2008) ao analisar que
essa governança baseia-se na adaptação de fortes custos materiais e humanos para
os países do anexo I. Contudo, para a Amazônia, pelo fato do Brasil não está sujeito
a metas quantitativas de redução de suas emissões no primeiro período de
compromisso do protocolo de Quioto (2008 - 2012) funciona oportunidades de
negócios dos recursos naturais e futura preocupação com os acordos pós -2012.

Para Held (2002) a globalização contemporânea está associada aos novos limite s
para a política e a fragmentação do poder do Estado, promovendo uma crescente
variedade de áreas problemáticas que exige do Estado o surgimento de redes
institucionais para solucioná-los, vigiá-los e tomar decisões por meio das
atividades políticas reguladoras e transfronteiriças. Um exemplo prático dessas
novas políticas internacionais seria a zona tri nacional de Acre, Pando e Madre de
Dios compartilhada entre Brasil, Bolívia e Peru que possuem estradas e pontes
que vinculam os três países e devido esses aspectos há vários movimentos
sociais de cooperação ambiental com o objetivo de resolver os problemas de
desenvolvimento regional e assim criaram a Iniciativa Cidadã do MAP (Madre
Dios, Acre e Pando).

A globalização contemporânea começa aproximadamente a partir de 1945 com a


degradação de fatores globais comuns e decisivos como o aquecimento global e a
diminuição da camada de ozônio por meio de emissões de CO2 para atmosfera
realizada pelo desmatamento, queimadas e emissões de CFC. Essas ações são
antrópicas, pois o homem é o único animal dotado de tal racionalidade, contaminou
mares, rios e o ar. Em alguns países, o desenvolvimento do comercio em produtos
tóxicos, em tecnologia nuclear e suas formas de difusão contribuíram para o
processo de degradação ambiental.

Partindo desse ponto, foram criados alguns regimes e tratados internacionais para a
construção e crescimento de uma legislação ambiental que estabeleceram regras de
preservação e conservação ambiental.

Na Conferencia de Estocolmo (1972) foi estabelecida uma agenda ambiental


patrocinada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Foi

1201
uma agenda multilateral que determinou as ações para as décadas seguintes a fim
de solucionar os problemas ambientais vigentes: a proteção da fauna silvestre, a
contaminação e o tratamento das águas, a contaminação do ar, a eliminação e
tratamento dos resíduos sólidos.

Na Conferencia Rio-92 foram incluídas novas ações como as mudanças climáticas e as


emissões de gases de efeito estufa (GEE) (dióxido de carbono, oxido nitroso, metano,
perfluocarbonetos, hidrofluocarbonetos, hexafluoreto de enxofre) e outras instituições:
estabeleceram compromisso ambiental: G7, FMI, Banco mundial e a OMC.

Nessa mudança, esse fenômeno tem minado a ideia de um destino comum para
toda a humanidade, o que foi motivo de circulação no Rio em 92. O atentado
terrorista de setembro de 2005 precipitou uma crise que acabou por colocar
questões além de imediatas e críticas também situadas em um cenário central do
sistema internacional em longo prazo. Os ambientalistas não conseguem entender
como esse período tecnológico tem afetado os países emergentes e algumas
sociedades ocidentais, é claro que essa visão ingênua por parte da democracia tem
prevalecido entre os ambientalistas.

3 Governança Climática: Uma analise Conceitual

O termo governança recebeu suas primeiras conceituações nas teorias que se


dedicavam a desenvolver os temas de interesse publico538. Posteriormente, ocorreu
uma apropriação desse tema num contexto onde se tratavam os assuntos de
Estados-Nação e suas políticas domesticas. Contudo, quando se observou a
utilização da ideia de governança no âmbito da teoria das relações internacionais,
percebe-se que de um conceito inicialmente em busca de um foco, a ideia de
governança global adquiriu nos últimos anos uma estatura tema intrinsecamente
ligado à procura da solução de problemas coletivos. O qual transbordou para as
questões internacionais ambientais como as Mudanças Climáticas.

538
Vale mencionar aqui a definição do termo feito pela OECD, Segundo qual a Governança é “the use of
political authority and exercise of control in society in relation to the management of its resources for social and
economic development” (OECD, 1993, p. 191).

1202
Os últimos anos do século XX indicam o surgimento de uma nova lógica global a
qual elevou muitíssimo o grau de complexidade da agenda internacional
contemporânea. Os antigos padrões teóricos utilizados para pensar e explicar o
mundo passou a conviver então com estas novas abordagens. Esta a razão pela
qual a ideia de governança e suas aplicações neste ambiente de características
multidimensionais se mostra inevitável.

Para Held (2002), essas manifestações têm seus interesses geopolíticos


tradicionais, mas implicam nas questões de segurança e assuntos militares, porém
aborda uma grande diversidade de aspectos econômicos, sociais e ecológicos. Held
(2002) ressalta que o narcotráfico, os direitos humanos e o terrorismo, a exemplo da
guerra Israel- palestinos são aspectos políticos transnacionais que ultrapassaram a
jurisprudência territorial e os alinhamentos políticos existentes e requerem uma
cooperação em âmbito internacional em busca de uma solução efetiva. Contudo,
assuntos como a Defesa e a Segurança estão na ordem do dia da agenda dos
programas Globais por conter em seu arcabouço institucional normas e regras que
governam a ordem mundial entre as instituições dos Estados da Cooperação
Intergovernamental e, assim, manter uma relação com os sistemas de governo e
autoridades transnacionais (ETN) para que se exerça a governança de fato e direito.
Apesar de governabilidade não interferir na execução da governança.

A governança e a governabilidade, apesar de parecer governança e governabilidade


não são sinônimas. Governança não quer dizer Governo e nem Governabilidade,
Governança Global pode ser explicada como ―sistema de ordenação‖ (Roseneau,
2000) e tem que reconhecer a importância de atores- não estatais seja nos meios
mais reservados, tendo o direito de decidirem ou não, ou nos meios de políticas
transparentes.

Compreende-se hoje a governança dividida em duas dinâmicas: de cima para baixo


é a responsável por resolver as demandas de controle social e prestar conta aos
atores (accontability) nacionais e internacionais. De baixo para cima é criado para
atores não estatais elevam suas possíveis soluções às autoridades publicas ou as
resolvem sozinha.

1203
O problema é em relação à natureza da governança, enquanto alguns atuam ao lado
de cientistas, militantes e autoridades do sistema ONU usam o termo ―global‖ para
marcar a dimensão da totalidade do problema em si, já as autoridades e diplomatas
afirmam que o correto seria ―internacional‖ já que a agenda é basicamente
interestatal. O que se analisa prioritariamente é o papel de Estados e Organizações
dentro e fora da ONU.

No entanto, a governabilidade como o próprio sufixo indica quer dizer o ato de


governar, com o intuito de atingir objetivos. Nesse sentido, o conceito de
governabilidade é seguido ao conceito de governança.

A governabilidade é importante para governança, mas para a segurança climática


vai depender de outros parâmetros. A governabilidade é a responsável pela
estrutura das forças, sistemas e tudo. O mais responsável pelo funcionamento de
uma política incrementada, preparada para solucionar problemas, já que para um
governo funcionar é necessário que tenha capacidade efetiva de atuação.

Rosenau (2000) em seu livro ―Governança sem Governo‖ explica que governo e
governança são coisas totalmente diferentes, por exemplo, quanto pelo governo,
que se baseia no poder jurídico e defende os direitos políticos devidamente
instituídos, já o termo governança refere-se as atividades comuns apoiadas em
objetivos comuns que não precisam necessariamente do poder ou da autoridade da
policia para que sejam aceitas e executadas, ou seja, governo é um termo menos
abrangente que governança, pois ela apesar de incluir instituições governamentais,
obriga também mecanismos informais de caráter não governamental, que faz com
que as pessoas e as organizações tenham dentro da área envolvida uma
determinada conduta que satisfaça suas necessidades e resolva seus problemas.
Isto é, a governança é um sistema que depende de sentidos intersubjetivos que
também são constituições, estatutos formalmente instituídos, ou seja, a governança
só funciona se for aceito pela maioria (ou pelo poder representativo dentro do seu
universo) enquanto que o governo pode funcionar mesmo que a maioria seja contra.

A governança é sempre eficaz nas questões em que o sistema não é necessário, ou


não é concebido para existir efetivamente (não falamos de governança ineficiente e
sim de anarquia ou caos) por outro lado os governos podem ser ineficientes sem

1204
deixar de existir, podendo-se dizer que são fracos ou se pode falar em governança
sem governo, sem mecanismos que o regulem numa esfera que funcione nas suas
atividades mesmo sem o endosso de uma atividade formal.

Sente-se que a história passa por um momento de mudança. O atual agravamento


dos conflitos de grupos, a deterioração do sistema social e das condições
ambientais são as preocupações mais evidentes.

As disparidades entre sistema e cidadãos se faz necessário para alcançar mudança


radical nos valores, mas para isso tem que reduzir a ordem e a Governança ate que
se estabeleça na agenda da política mundial uma nova ordem e uma nova política
(nova Governança). No sentido de desenvolver o pensamento de Governança
Global a fim de organizar a vida no planeta que o Relatório da Governança Global
das Nações Unidas entende que governança seria (pag.02):

[...] a totalidade das diversas maneiras pelas quais os indivíduos e as


instituições, públicas e privadas, administram seus problemas comuns. É
um processo continuo pelo qual é possível acomodar interesses
conflitantes ou diferentes e realizar ações cooperativas. Governança diz
respeito não só a instituições e regimes formais autorizados a impor
obediência, mas também a acordos informais que atendam aos interesses
das pessoas e instituições (ONU,1996, p. 2).

Para Rosenau (2000) a governança se constitui num sistema de ordenações dos


componentes intersubjetivos dependentes, mas que também possuem
constituições e estatutos formalmente instituídos, no sentido de trazer a
objetividade de seus componentes para o debate global. Desde a Convenção
do Clima da ONU de 2009, tratar de um assunto tão importante como as
mudanças do clima e levantar questões para que seja abordado de forma
diferente em todo planeta.

Ainda, conceituando governança, para alguns autores como Born (2007) refere-se
ao conjunto de iniciativas, regras, instâncias e processos que permitem às pessoas,
por meio de suas comunidades e organizações civis, a exercer o controle social,
público e transparente, das estruturas estatais e das políticas públicas, por um lado,
e da dinâmica e das instituições do mercado, por outro, visando atingir objetivos
comuns. Assim, governança abrange tanto mecanismos governamentais como

1205
informais e/ou não estatais. Significa a capacidade social (os sistemas, seus
instrumentos e instituições) de dar rumo, ou seja, orientar condutas dos estados, das
empresas, das pessoas em torno de certos valores e objetivos de longo prazo para a
sociedade (BORN, 2007).

Nesse sentido, a governança climática, é vista como um conjunto de relações


intergovernamentais que envolvem organizações governamentais, não
governamentais, movimentos civis, empresas transnacionais (ETN), empresas
multinacionais e mercados capitais globais que priorizam duas razões fundamentais
de conservação e preservação do meio ambiente: primeiro faz-se necessário que
haja uma reinvindicação global de pouca emissão de gases em decorrência da falta
de metas de controle da matéria. A segunda seria o alcance das propostas para
diminuir o aquecimento no planeta por meio de metas claras de cortes na emissão
de gases geradores de efeito estufa discutidas durante o encontro da Dinamarca ou
Acordo de Copenhague em 2009 (COP-15).

O grande marco para a emergência do pensamento e preocupação voltados para as


formas de governança e cooperação internacional foi a assinatura da Carta das
nações Unidas, em 1945, que veio conquistando seu espaço à medida que a
globalização e a interdependência se intensificaram.

de acordo com a Comissão sobre Governança Global (1996), da qual se originou


o livro Nossa Comunidade Global, a visão de governança, integrando uma
grande variedade de atores, provém do reconhecimento de que, na atual
conjuntura amparada por um modelo neoliberal, os governos não são mais
capazes de arcar isoladamente com ônus de governabilidade global, mesmo que
se configurem como atores principais no sistema, para lidar de forma construtiva
com questões que desrespeitem os povos e a comunidade global‖ (ONU, 1996)

Segundo Le Preste e Matimort-Asso (2009) o que motivou não só o aumento como a


complexidade do tema de governança foi a problemática da governança de bens
comuns mundiais e bens públicos mundiais, assim como o forte conteúdo técnico e
econômico de muitos acordos multilaterais em especial envolvendo o meio ambiente.

Barros (2007) demonstra que a governança climática depende cada vez mais da
cooperação de atores não governamentais nos países desenvolvidos em geral e no

1206
Brasil, em particular em pathways informais, ou seja fora dos processos decisórios e
das reuniões oficiais.

Essa governança baseia-se, segundo Viola (2008) na adaptação de fortes custos


materiais e humanos para os países dos anexo I. Contudo, para a Amazônia, pelo
fato do Brasil não está sujeito a metas quantitativas de redução de suas emissões
no primeiro período de compromisso do protocolo de Quioto (2008 - 2012) e ter em
seu bojo fatores atraentes para o mercado ambiental internacional funciona
oportunidades de negócios dos recursos naturais e futura preocupação com os
acordos pós -2012. Uma vez que a região se transforma num fetiche de mercadoria
devido suas florestas (FLORES. 2000).

O Brasil, em junho de 1997, fez uma proposta a ONU com a criação Fundo de
Desenvolvimento Limpo (FDL) que recebeu apoio dos países emergentes e pobres e
critica dos países desenvolvidos. Contudo os Estados Unidos, em outubro do
mesmo ano, articulou com o Brasil uma alteração no Fundo Desenvolvimento Limpo
e surgiu o Mecanismo Desenvolvimento Limpo (MDL) que foi considerado uma das
novidades do Protocolo de Quioto. (VIOLA, 2002).

O MDL é um dos quatro mecanismos para redução das emissões que foram
adotados pelo Protocolo de Quioto. Os outros três só podem ser utilizados entre
países industrializados, são a implementação conjunta (Protocolo de Quioto, artigo
6º); o comércio de emissões (Protocolo de Quioto, artigo 17) e o uso das ―bolhas de
emissões‖ (GOLDEMBERG, 2005).

4 Um estudo do mecanismo desenvolvimento limpo como instrumento de


políticas públicas.

Para entendermos o panorama do estudo do Mecanismo Desenvolvimento Limpo


como instrumentos de políticas publicas ambientais, foi necessário fazermos um
passeio teórico a fim de compreender o conceito de Políticas Públicas, a abordagem
usada no trabalho e suas peculiaridades. Compreender as Políticas Públicas
Ambientais internacionais e brasileira e sua trajetória, o Brasil dentro desse contexto

1207
de Governança Climática e o próprio MDL como instrumento dessa política
instaurada.

No início dos anos 50, nos Estados Unidos, começou a ser estudado o campo das
políticas públicas pelos cientistas políticos sob o rótulo ―policy science‖, ao passo
que na Europa esta corrente havia tomado força a partir do início dos anos 70 e no
Brasil passa a ter uma centralidade a partir da década de 80 com o fim da ditadura
militar e o começo do processo de abertura.

As políticas públicas são frutos da ação humana e todo seu processo se desenvolve
através de um sistema de representações sociais. Segundo Abric (1989 apud
AZEVEDO, 2001), a representação social resulta da trajetória do sujeito, do sistema
social e ideológico no qual ele está inserido e dos vínculos que ele mantém com
esse sistema social:

Segundo esta ótica, as políticas públicas são ações que guardam intrínseca
conexão com o universo cultural e simbólico ou, melhor dizendo, com o
sistema de significações que é próprio de uma realidade social. As
representações sociais predominantes fornecem os valores, normas e
símbolos que estruturam as relações sociais e, como tal, fazem-se
presentes no sistema de dominação, atribuindo significados à definição
social da realidade que vai orientar os processos de decisão, formulação e
implementação das políticas (AZEVEDO, 2001, p.xiv).

Por sua vez, Ruas (1998) define políticas públicas como um conjunto de
procedimentos formais e informais, que expressam relação de poder, mas tais
procedimentos destinam-se tanto à resolução pacífica de conflitos quanto aos bens
públicos e possuem caráter imperativo, resultando em decisões investidas de
autoridade do poder público. O que dá origem às políticas públicas são as
demandas (inputs) e o suporte (with inputs). As demandas são as reivindicações da
sociedade por acesso a um bem de serviço, proveniente de diversos sistemas (local,
nacional, internacional) e seus subsistemas políticos, econômicos e sociais. O
suporte é o arcabouço institucional e financeiro que permite a formulação e
implementação das políticas. No conceito de políticas públicas estão incluídos as
leis e regulamentos, os atos de participação política, a implementação de programas
governamentais ou ainda participação em manifestações públicas.

1208
De maneira bastante simplificada, podemos considerar que grande parte
da atividade política dos governos se destina à tentativa de satisfazer as
demandas que lhes são dirigidas pelos atores sociais ou aquelas
formuladas pelos próprios agentes do sistema político, ao mesmo tempo
em que articulam os apoios necessários... É na tentativa de processar as
demandas que se desenvolvem aqueles ―procedimentos formais e
informais de resolução pacífica de conflitos‖ que caracterizam a política
(RUAS, 1998).

Assim, as políticas públicas são implementadas, desativadas ou reformuladas


com base na memória das sociedades e no processamento das suas demandas
que, revestidas de um caráter imperativo do Estado, por meio de suas
instituições, tornam-se um programa de governo. As demandas novas são
aquelas que resultam no surgimento de novos problemas ou novos atores
políticos, ou seja, quando estes passam a se organizar e pressionar o sistema
político. Nesta situação, temos a questão ambiental e, especificamente, a EA,
que passou a se constituir em uma nova institucionalidade, reunindo atores
sociais e políticos específicos que solicitam do Estado apoio e suporte para
processar uma demanda. (RUAS, 1998; BURZTYN, 2002).

As políticas públicas são geridas pelas instituições. De um modo geral, instituições são
conjuntos de formas e de estruturas sociais instituídas pela lei ou pelo costume que
vigoram num determinado Estado ou povo, regulamentando suas atividades em função
de interesses sociais e coletivos. Existe independente de quem são as pessoas e são
dotadas de uma finalidade que as identifica e as distingue. Instituições públicas são
espaços de atuação de trabalho com regras e procedimentos administrativos, cuja
função principal é organizar e implementar as decisões de governo. Para Fábio
Wanderley Reis (2000), o interesse das Políticas Públicas, está vinculado
respectivamente ao lado do inputs e outputs do processo político.

Os inputs e outputs estariam formulados de maneiras diversas segundo uma


relação: inputs versus outputs, ou seja, processos versus políticas, processos versus
conteúdos, onde a vida política esteja tradicionalmente ligada aos aspectos
processuais. Políticas Públicas, para tanto são formas de políticas sociais
implementadas pelo Estado que pretendem garantir o consenso social, através de
iniciativas que contribuam para a redução das desigualdades e controle das esferas

1209
da vida pública para garantir os direitos dos cidadãos, pois as políticas publicas se
caracterizam enquanto um conjunto de ações no que diz respeito a ―policy analysis‖
coordenadas com o objetivo público dentro de uma análise custo benefício.
Entretanto, por ser a empiria e a prática política sua área de interesse para as
políticas governamentais (―polity‖) devido a falta de teorização e cientificidade (Klaus
Frey apud Wolmann, 1985, p.74).

5 O Brasil no contexto da Governança Climática

A posição brasileira no sistema internacional sofreu mudanças consideráveis entre


1972 e 1990. Na Conferência de Estocolmo (1972), o Brasil e a China lideraram a
aliança dos países periféricos contrários a reconhecer a importância em se discutiros
problemas ambientais. Era visto pelo sistema mundial como um país ascendente.
Porém durante a década de 1970 foi considerado um dos principais receptores de
indústria poluentes advindas de países desenvolvidos. Na década de 1980 houve
um declínio na política ambiental devido a devastação das florestas e isso causou
manifesto da opinião publica em relação ao governo (VIOLA,2002).

Em 1992, na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente-UNCED


(também conhecida como Cúpula da terra, Eco-92 e Rio-92) sediada no Rio de
Janeiro, onde se reuniram representantes de 175 países e de organizações não
governamentais para discutir a implementação do desenvolvimento sustentável
segundo o Relatório de Brutland. O Brasil por meio da Comissão Interministerial de
Meio Ambiente (CIMA), elaborou um relatório expondo seu posicionamento frente à
temática ambiental. A CIMA coordenou representantes de 23 órgãos públicos e foi
criada a Secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República, em seguida
transformada no Ministério do Meio Ambiente.

Na ECO-92, foram assinados importantes acordos ambientais como a Convenção


do Clima e da Biodiversidade; a Agenda 21; a Declaração do Rio para o Meio
Ambiente e Desenvolvimento e a Declaração de Princípios para as Florestas.

A Agenda 21 apresentou programas que podem ser considerados instrumentos


fundamentais para elaboração de políticas públicas em todos os níveis e que

1210
privilegiam a iniciativa local. Partindo desse ponto, a agenda 21 brasileira foi lançada
em julho de 2002 com o objetivo de solucionar o problema entre o ambiental e o
urbano, e para isso, busca orientar as políticas ambientais nas três esferas:
nacional, estadual e municipal por meio de planos e regulamentos que para Cordani
(1997) a solução seria o uso da Agenda 21 local.

Na Conferência de Johannesburgo em 2002 na África do Sul, também conhecida


como Rio + 10, um dos principais objetivos foi a avaliação dos acordos e convênios
ratificados na Rio-92. Mas também procurou discutir ações voltadas a erradicação
da pobreza, à globalização e às questões energéticas, como o Mecanismo
Desenvolvimento Limpo (MDL) e o Protocolo de Quioto e as Mudanças Climáticas.

Em termos de mudanças climáticas o Brasil, através dos Ministérios da Ciência e da


Tecnologia e das Relações Exteriores, instituiu o Programa de Mudança do Clima. O
Programa de Mudança do Clima nasce após a ratificação pelo Brasil da Convenção-
Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima em fevereiro de 1994. A
estratégia do Programa foi definida pelo governo brasileiro, visando o atendimento
dos compromissos iniciais do Brasil na Convenção. O objetivo do Programa é apoiar
o desenvolvimento de informações científicas relativas à emissão de gases de efeito
estufa para subsidiar a definição da política de atuação em mudanças climáticas.
(Ministério da Ciência e Tecnologia, 2004).

O Brasil e a política ambiental encontram-se incorporados à agenda política


internacional por meio dos órgãos institucionais, das entidades não
governamentais, dos movimentos sociais e organizações privadas. É uma
governança que se exerce independente da autoridade do Governo que a
instaura. Roseneau (2000) denomina de Word Politics e diz que a sua forma de
concepção é ampla e envolve regiõesinternacionalmente por meio de seus atores
envolvidos que se dedicam através de atividades alem de suas fronteiras
nacionais e elas se tornam instrumentos de políticas públicas como o caso do
Mecanismo Desenvolvimento Limpo.

1211
6 O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo como Instrumento de Políticas
Públicas.

Chegamos no cerne desse artigo,cujo foco é analisar o Mecanismo de


Desenvolvimento Limpo como instrumento de Política Publica,mas para se chegar a
tal definição, faz-se necessário argumentar a constituição da política ambiental e a
posição do governo nessa questão. Nesse sentido, iniciamos tratando sobre a
função dos instrumentos num plano político–economico-institucional o como se
relacionam com as políticas ambientais.

A política ambiental é constituída da mesma forma como as outras políticas (saúde,


educação, saneamento básico) são, por meio de um conjunto de metas e
instrumentos que visam à redução dos impactos negativos do homem sobre o meio
ambiente e garantir o bem estar das gerações futuras. Porém, com o aumento dos
incentivos econômicos em relação à questão ambiental entre países desenvolvidos
que necessitam reduzir suas emissões de GEE e os países em desenvolvimentos
que se posicionam como fetiche mercadológico na venda do carbono, surge a
necessidade de intervenção por parte do governo (federal, estadual e municipal)
como mediador entre a sociedade e a atividade econômica.

O atual modelo de atuação do governo busca relacionar ações de comando e


controle, assim os padrões de emissão deixam de ser meio e fim da intervenção e
passam a ser instrumentos de uma política mista entre alternativas e possibilidades
para a construção de metas acordadas socialmente (DENARDIN, 2001).

Instrumentos econômicos ou incentivos de mercado buscam influenciar no cálculo


dos custos finais dos produtos bem como nos benefícios gerados para seu produtor,
desta forma devido ao mercado concorrencial a qual está inserido, este busca
implantar um sistema de controle ambiental de forma a redução influências do
instrumento econômico (VIOLA b,1998).

Já os instrumentos de políticas ambientais, de comando e controle impõem


modificações no comportamento dos agentes poluidores através da inclusão de
―padrões de poluição‖, a exemplo disto posso citar controle de equipamentos,
controle de emissões, controle de processos, entre outros (VARELA, 2001).

1212
Varela (2001), ainda explicita que:

Os instrumentos de políticas ambientais podem ser diretos ou indiretos. Os


instrumentos diretos são aqueles elaborados para resolver questões
ambientais e os indiretos são desenvolvidos para resolver outros problemas,
mas, de uma forma ou de outra, acabam colaborando para as soluções ou
agravamento dos problemas relativos ao meio ambiente (Varela, 2001, p. 7).

Instrumentos de política ambiental "São os instrumentos que os formuladores da


política ambiental empregam para alterar os processos sociais de modo que eles se
transformem e se compatibilizem com os objetivos ambientais" (OECD, 1994).

De acordo com Almeida (1997) entre as vantagens dos instrumentos econômicos


ocorre o custo mínimo de sua implementação, redução progressiva de adicionais de
poluição bem como o incentivo ao desenvolvimento de novas tecnologias. Assim
para a ocorrência de uma política ambiental atuante é necessário que o próprio
mercado atue não como mero espectador e sim como ator preponderante para o
desenvolvimento de políticas de regulação. O Protocolo de Quioto e seus
instrumentos econômicos e institucionais elaborados para os incentivos a redução
de emissões surge para mitigar as questões climáticas.

O Mecanismo Desenvolvimento Limpo pode ser classificado como instrumento de


políticas públicas regulatórias, uma vez que seu pode de indução de prática desejável
esta relacionada ao meio ambiente por meio de suas regras e convenções e sua
implementação alcança o desenvolvimento sustentável da população assistida. Para
Souza (2002), as políticas regulatórias são aquelas que envolvem burocracia e grupos
de interesse. Assim, o MDL, no Brasil, aparece nos setores de energia e florestal, a
Agencia Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), uma autarquia vinculada ao Ministério
de Minas e Energia (MNE), com as funções de regular, fiscalizar a geração de energia,
transmitir, distribuir e comercializar a energia elétrica proporciona condições favoráveis
para que o mercado de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e
em beneficio da sociedade (ANEEL,2008). Dessa forma, os projetos de MDL funcionam
como cogeradores de energia regulados pela agencia (ANEEL) que interfere

1213
diretamente na negociação entre as usinas que vendem eletricidade e as
concessionárias que compram a energia excedente.

O projeto, de MDL, Paragominas-Pa formado por uma usina termelétrica (UTE)


pertencente a Uaná energia renováveis, desenvolvido para a comercialização dos
creditos de carbono funciona como instrumento, enquanto a ANEEL é a política
reguladora desse Mecanismo Desenvolvimento Limpo. Porém, O Conselho Executivo
de MDL só emitirá a RCE‘s, se o projeto provar que consegue reduzir as emissões dos
GEE, além da taxa natural de absorvição destes, ou seja, os GEE detêm um ciclo
natural na qual o homem não interfere, assim caso o projeto apresentado comprove que
absorve mais gases que seu ciclo natural o certificado é emitido.

Para Seiffert (2009) todo o processo de emissão das RCEs apresenta uma similaridade
com a certificação de Sistemas de Gestão segundo o modelo normativo da International
Organization for Standardization (ISO), assim diferentes agentes estão de forma direta e
indireta, envolvidos com a aprovação do projeto, a fim de manter toda a credibilidade do
processo de certificação de créditos de carbono.

Para se obter um projeto de MDL aprovado, este deve necessariamente transcorrer


por todas as etapas anteriormente citadas. A principal etapa é a inicial, na qual é
elaborado um estudo de viabilidade, ou seja, um documento preliminar chamado
Project Idea Note (PIN), a qual fornece um diagnóstico do projeto, compreendendo
informações como patrocinador e partes envolvidas (empresas/prefeituras),
influência de políticas públicas para o financiamento do projeto, modelo institucional,
tipo de projeto, localização, descritivo, situação atual, histórico, tecnologia a ser
empregada,barreiras, entre outros.

Para Telesforo e Loiola (2009), as dificuldades que as empresas possuem para a


adoção de projetos de MDL, são as barreiras contidas nos próprios Documentos de
Concepção dos Projetos (anexo) como: barreiras tecnológicas, políticos-
institucionais, econômicas e de investimento e cultural descritas:

a) Barreiras Tecnológicas: Dificuldades relacionadas aos aspectos tecnológicos


da atividade/negócio de geração de energia.

1214
b) Barreiras políticos-institucionais: Constrangimentos que envolvem a relação
político-institucional das empresas com stakeholders no âmbito do mercado de
energia e outras instituições como as concessionárias de energia, governos,
investidores, instituições financeiras, serviços ambientais prestados pelos
agricultores familiares para a conservação e preservação das florestas, etc.

c) Barreiras econômicas e de investimento: Obstáculos encontrados na


captação de recursos para investir na atividade/negócio seja ela de geração de
energia a partir da biomassa, seja no caso de florestamento e reflorestamento.

d) Barreiras Culturais: São as resistências encontradas nas empresas ou nas


prefeituras para agregar a nova atividade em questão.

Outro fator preponderante para o deferimento do projeto de MDL é a comprovação


de que todos os stakeholders539foram considerados na propositura do instrumento
(LOPES, 2002). Segundo Esty e Winston (2006) atualmente as empresas e os
gestores vêm detendo a preocupação de como suas ações refletem nos clientes,
fornecedores, funcionários, comunidades circo vizinhas, entre outras, para que
assim melhor direcionem suas políticas estratégicas.

De acordo com Telesforo e Loiola (2009), esse mercado necessita do apoio


governamental para se desenvolver, pois só este é capaz de alinhar os anseios da
sociedade com a visão do setor privado, e uma forma de prover esse alinhamento
seria através da criação de linhas de financiamento pelo setor público, como política
pública de fomento ao MDL.

7 Considerações Finais

A Convenção do Clima foi um marco no desenvolvimento das polititica de defesa do


meio ambiente como parte da preocupação mundial. Os governos dos países do Anexo
I passaram a se reunir como consequência da preocupação mundial com o efeito
estufa. A degradação da natureza entrou nas agendas governamentais e não
governamentais e passou a ser olhada com mais relevância. Essa Governança

539
É qualquer pessoa ou organização que tenha interesse, ou seja, afetado pelo projeto. Exemplo: gestores
públicos, empresários e sociedade.

1215
Climática que associa a problemática ambiental aos mecanismos que o governo
distribui a fim de encontrar solução econômica e política para as questões ambientais
como a mitigação de GEE na atmosfera em prol de um planeta mais sustentável e de
melhores condições de vida na terra, mas também, na comercialização dos créditos de
carbono advindo como comercio de reduções de GEE.

Ao longo desse estudo, foi feito inicialmente uma analise conceitual de Governança
Climática e suas transformações no sistema globalizante segundo alguns autores
como David Held (2002), James Roseneau (2000), Eduardo Viola (2005) para se
compreender as mudanças ocorridas no mundo e no que elas influenciam no meio
ambiente e na vida das pessoas e quais as formas de manifestação e como o
governo por meios regulatórios reage a essas questões e como se posiciona os
atores nessa sociedade global.

Além disso, estudamos o Mecanismo Desenvolvimento Limpo metas e objetivos,


sua estrutura institucional percebemos que o MDL é um mecanismo de
flexibilização econômica com o objetivo de reduzir as emissões de GEE e
promover o desenvolvimento sustentável. Portanto, cabe às autoridades
nacionais incentivarem a adoção pelas empresas desses projetos como forma de
desenvolvimento e como políticas publicas. Ainda foi feito um estudo sobre o
Protocolo de Quioto, sobre a relação do MDL com o Brasil e quais áreas ele
atuam num país de matriz energética limpa, quantos projetos ele tem, sobre o
mercado de carbono.

O que se pode concluir por meio desse estudo é que as mudanças climáticas têm
influencia na estabilidade do planeta e requer ações de governança para se
conquistar cada vez mais pautas nas agendas internacionais, mas com
implementações locais por meio de políticas domesticas, mas que venham contribuir
com a sustentabilidade do planeta.

Conclui-se também, o Mecanismo Desenvolvimento Limpo é um instrumento de


políticas públicas existente e implementado,segundo, suas regulações, contribui
para o desenvolvimento econômico do país hospedeiro (países não anexo-I) e
compensa as obrigações das partes do anexo I nas reduções de GEE,promovendo
assim o desenvolvimento sustentável.

1216
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1219
Simpósio Temático 19

MILITARIZAÇÃO “NARCOTERRORISMO” E INSURGÊNCIA: O SENDERO


LUMINOSO, AS FORÇAS ARMADAS PERUANAS E A GUERRA ASSIMÉTRICA
NA REGIÃO DO VRAE

Leandro Fernandes Sampaio Santos540

1 Introdução

A região andina concentra a maior produção de cocaína do mundo e é um dos


principais centros de tráfico de drogas, o Peru no ano 2007 ultrapassou a produção
colombiana541. O vale dos rios Apurímac e Ene, conhecido como VRAE, que
abrange os departamentos de Ayacucho, Cuzco e Junín no Peru é um dos grandes
focos de tensão e esteve recorrentemente excluído dos projetos de desenvolvimento
e modernização do país.

Essa região é de grande extensão geográfica que se localiza entre as montanhas


andinas e a zona de transição amazônica deste país, nos últimos anos tem sofrido
uma intensiva militarização por parte do Estado peruano para combater o
narcotráfico e os grupos remanescentes do antigo Partido Comunista do Peru, mais
conhecido como Sendero Luminoso (SL), que está sendo associado ao
―narcoterrorismo‖ pela imprensa local e internacional. O grupo que perpetrou
inúmeros atos de terrorismo na década de 1980, o qual era balizado pela concepção
político-militar maoista da Guerra Popular, está colocando em xeque as FFAA e o
atual governo de Humala.

As atividades do SL foram reforçadas e se tornaram mais constantes com a


expansão da sua zona de atuação no VRAE em resposta à forte pressão das
540
PPGRI San Tiago Dantas, UNESP, UNICAMP, PUCSP.
541
De acordo com UNODC (2008), em 2007 a região andina chegou a produzir cerca de 984 toneladas métricas,
a maior parte era proveniente da Colômbia (600 toneladas métricas). Em 2012, no Peru, as plantações de coca
chegaram a 60.400 hectares contra 48.000 hectares da Colômbia.

1220
operações do Comando Conjunto das Forças Armadas e às instalações de Bases
Contraterroristas. Essas ações do governo fazem parte do Plano VRAEM (2012),
cujo propósito é fortalecer a presença do Estado através de quatro eixos de
intervenção: a luta contra o terrorismo e o tráfico ilícito de drogas, contra as
organizações criminosas, contra a pobreza e contra a desigualdade.

Com efeito, ocorre na região uma crescente militarização e agravamento do conflito


com ações militares do Estado peruano para implantar uma guerra de contra
insurgência para conter não só o narcotráfico e o crime organizado, mas também a
luta subversiva no país. A produção de cocaína na região andino-amazônica
continua elevada o que coloca em questão a eficácia da utilização das forças
armadas na luta contra o narcotráfico não apenas nos países andinos, mas também
no Brasil.

Pretende-se com este artigo discutir algumas questões acerca do conflito na região
do VRAE em três momentos. No primeiro momento abordar-se-á a emergência do
Sendero Luminoso, o percurso histórico do Partido Comunista do Peru-Sendero
Luminoso e os pontos críticos da sua guerra contra o Estado peruano,
compreendendo suas raízes partidárias e ideológicas, sua organização e táticas
insurgentes, bem como suas diferentes fases, perpassando os momentos do seu
auge, do seu declínio e do seu ressurgimento anos depois da prisão de seu mentor
Abimael Guzmán. A seguir, será debatido o ressurgimento do Sendero luminoso e
sua metamorfose ideológica, as suas relações com o narcotráfico e a transição do
maoismo ao narcocapitalismo. O emprego das forças armadas e da polícia nacional
para combater o ―narcoterrorismo‖ e o SL receberá enfoque no último momento,
bem como a militarização da região dos Vales dos rios Apurímac e Ene através da
execução dos Planos VRAE.

2 A emergência do Sendero Luminoso: maoismo e insurgência.

O Partido Comunista do Peru, conhecido como Sendero Luminoso (PCP-SL), foi


fundado em 1970 pelo professor de filosofia Abimael Guzmán (presidente Gonzalo),
que lecionava na Universidad de Ayacucho, inspirado pela ideologia maoista, tinha

1221
como objetivo derrubar o governo peruano através da luta armada para instaurar um
regime comunista campesino.

O Sendero Luminoso (SL) surge a partir da cisão no interior do Partido Comunista


do Peru (PCP) que ocorreu em 1964, ocasionada pela tensão entre as duas
correntes de pensamentos, a pró-soviética e a pró-chinesa. A vertente ligada a
Moscou, que contava com a maioria da liderança nacional, escolheu por instituir um
regime comunista sem violência que cooptaria a elite governante para sua
consecução. A segunda vertente, pró-República Popular da China, acreditava na
luta armada e na necessidade de construir um aparato militar para a guerra
revolucionária. A facção pró-chinesa, que era liderada por Saturino Paredes, se
separou da organização para formar o PCP-Bandera Roja (Bandeira Vermelha), que
depois sofreu uma divisão e deu origem ao grupo maoista Patria Roja (Pátria
Vermelha). O professor Abimael Guzmán continuou no Bandera Roja e articulava
um grande número de membros contra Paredes, somente em 1970 Guzmán deixa o
Bandera Roja e funda a organização maoísta PCP-Sendero Luminoso.

A ideologia do PCP-SL era uma articulação do pensamento de Mao Tsé- Tung e


José Carlos Mariátegui como doutrina política, ou seja, uma combinação da
revolução agrário-camponesa maoista com a ideia de Mariátegui sobre a revolução
comunista peruana. Segundo este autor, o socialismo era presente na sociedade
peruana antes da colonização. Conforme analisa Henri Favre (1988), os
senderistas encontram na obra de Mariátegui ―7 ensaios de interpretação da
realidade peruana‖ um Peru ―semicolonial‖ e ―semifeudal‖ dominado pelo
interesse econômico estrangeiro que explora e oprime a grande população
campesina, tal realidade descrita remonta à China da Grande Marcha, à qual Mao
propagou sua doutrina e estabeleceu as bases de sua revolução. Portanto, se o
Peru pintado pelos senderistas tinha semelhanças com a china pré-
revolucionária, para eles, era preciso aplicar as práticas de Revolução Chinesa à
realidade peruana, ―Mao prolonga Mariátegui, na medida em que sua teoria
desemboca numa estratégia de tomada de poder com a qual o marxista peruano
nunca se preocupou‖ (FEVRE, 1988, p. 83).

1222
De acordo com Lewis Taylor (1988), a emergência do Sendero Luminoso pode ser
divida em três fases. A primeira fase que abarca o período de 1970 a 1977, deu
início ao aparelhamento e ao desenvolvimento da ideologia do partido cujo êxito
foi imediato no meio estudantil. O radicalismo dos membros do SL foi visto com
menosprezo por parte da esquerda revolucionária, que os viam como dogmáticos.
Os senderistas, por sua vez, criticavam ferozmente os outros partidos de
esquerda, principalmente no que tange à postura destes perante o governo de
Velasco que era considerado ―fascista‖ pelo Sendero, ―contra o qual a única
estratégia viável era a luta armada, originada no campo e que finalmente cercaria
as cidades‖ (TAYLOR, 1988, p. 44). Todavia, nesse período, o SL restringia suas
atividades ao âmbito educacional e não participava das manifestações dos
setores trabalhistas na década de 1970.

A segunda fase que abrange os anos de 1977 até meados de 1980, foi
caracterizada pela ―reconstrução do partido‖ que visava torná-lo um aparelho
político-militar capaz de impor uma luta armada o que levaria a um
redimensionamento das ações do SL. Com o aumento de sua influência nos
segmentos estudantis e na região dos Andes Centrais e em Lima, muitos estudantes
e ativistas não estudantes das áreas urbanas foram enviados para o interior do Peru,
onde foram instalados campos de treinamento rurais. No decorrer desse período,
foram atraídos membros de outros partidos da esquerda, de grupos revolucionários
e pequenas organizações que foram incorporados ao SL, o que permitiu a sua
reconstrução e preparação para a luta armada.

A terceira fase, que se seguiu a partir de maio de 1980, definiria as estratégias


militares que seriam seguidas. No centro do debate havia dois posicionamentos
sobre as estratégias que seriam implantadas. O primeiro, defendido por Guzmán, via
na guerrilha rural prolongada originada no interior do país uma estratégia para cercar
as cidades e levá-las ao colapso. O segundo, apresentado por Luis Kawata e outros
membros do comitê central, defendiam a luta armada equivalente no campo e na
cidade. Após intenso debate, que se estendeu até 1981, a proposta de Guzmán foi
escolhida e, a partir do mesmo ano, o partido foi organizado em células rigidamente
controladas e hierarquicamente estruturadas.

1223
Segundo José Luis Rénique (2009), nos primeiros anos da década de 1980, no
começo da guerra contra o Estado peruano 542, o PCP-SL tinha pouco mais de
quinhentos membros que atuavam dentro da estratégia insurgente da guerra de
guerrilha prolongada que, segundo Taylor (1988, p.55), estava organizada da
seguinte forma: ―I) agitação e propaganda; II) sabotagem contra o sistema
socioeconômico; III) generalização da violência e desenvolvimento da guerra de
guerrilha; IV) conquista e expansão de bases de apoio; V) o cerco das cidades
levando ao colapso total do Estado‖.

As quatro etapas da estratégia de guerrilha foram realizadas por meio de inúmeros


ataques contra órgãos e serviços do governo, empresas e setores da elite peruana.
Entretanto, ocorreram desavenças entre parte da população rural e os
revolucionários, sobretudo no que tange à autonomia autárquica, o recrutamento
forçado de crianças e jovens para a guerrilha e ―aniquilamento seletivo‖ contra os
―inimigos do povo‖, como o assassinato de indígenas suspeitos de estarem contra o
SL, o que levou a um ―ponto de ruptura‖ e polarização da sociedade rural
(RÉNIQUE, 2009, p. 158)543.

Em 1989, o governo de Alan García aproveitou o descontentamento dos


camponeses e o enfraquecimento do apoio da população rural ao PCP-SL para
reforçar a presença estatal e militar após a sua visita a Ayacucho.No governo de
Alberto Fujimori, que assumiu a presidência em 1990, teve início uma campanha
político-militar buscando ganhar apoio da população campesina, se valendo do
crescimento econômico favorável, com projetos de infraestrutura seletivos de acordo
com seus interesses nas áreas rurais que foram acompanhadas de medidas
antidemocráticas como a ampliação dos poderes dos militares, militarização do
aparelho estatal e a intensificação da luta contrainsurgente. De acordo com Rénique
(2009, p. 162), 47% dos atentados senderistas entre abril de 1989 e dezembro de
1992 foram perpetrados em Lima e nesse momento o contingente do partido era de

542
Em maio de 1980, os senderistas queimaram as urnas eleitorais da pequena cidade Chuschi situada no
departamento de Ayacucho, cuja ação foi uma declaração de guerra contra o Estado peruano.
543
De acordo com a Comisión de La Verdad y Reconciliación do Peru (CVR), o número de vítimas causadas
pelo conflito armado interno entre os anos de 1980 e 2000, abrangendo mortos e desaparecidos, chegou a marca
de 69.280 pessoas, o PCP-Sendero Luminoso foram responsáveis por 46% (31.331) do total de vítimas fatais. O
departamento de Ayacucho foi o mais afetado. Para mais detalhes consulte o anexo II “¿Cuántos peruanos
murieron?” do Informe Final do CVR: http:// www.cverdad.org.pe/ifinal/pdf/ Tomo%20-
%20ANEXOS/ANEXO%202.pdf.

1224
―cerca de 2.600 militantes, com uma ‗força principal‘ de cerca de 1.450 efetivos e
uma ‗força local‘ de 4.500 equipados com armas artesanais‖. As políticas de Fujimori
em conjunto com as ações repressivas das forças armadas e da polícia levaram à
captura de integrantes do alto escalão do SL que culminou na prisão de Abimael
Guzmán, conhecido como ―Presidente Gonzalo‖ ou ―Camarada Gonzalo‖, em 12 de
setembro de 1992, colocando fim ao que seria o ―velho‖ Sendero luminoso.

3 O ressurgimento do Sendero Luminoso e o narcotráfico

Depois de uma década da prisão do Camarada Gonzalo, os remanescentes do


PCP-SL voltaram a perpetrar novos ataques, como o atentado contra a embaixada
dos Estados Unidos em março de 2002, um pouco antes da visita do presidente G.
W. Bush ao Peru. Nos anos subsequentes, inúmeros ataques foram cometidos pelo
grupo contra o aparato estatal, assim como assassinatos de militares e de agentes
da polícia. Em abril de 2009, o SL armou uma emboscada contra as patrulhas do
exército peruano que estavam na região do VRAE para reduzir o cultivo de coca
resultando na morte de 14 soldados e em agosto do mesmo ano, quando um
helicóptero foi derrubado na mesma região.

Conforme as análises empreendidas por Barnett S. Koven (2010, p. 27), são três
fatores principais que contribuíram para o reaparecimento do ―novo Sendero
Luminoso‖. O primeiro seria a mudança ideológica em que o maoismo se converteu
em ―narcocapitalismo‖ o que possibilitou ao SL arrecadar grandes quantias
pecuniárias para financiar suas operações e se aliar aos narcotraficantes. O
segundo está relacionado à mudança de atitude para com os camponeses e a
condenação das práticas do ―velho SL‖ – como o sequestro de jovens para
recrutamento forçado para causa da guerrilha – para conseguir cooptar o
campesinato pela participação voluntária. O terceiro é a aliança feita com setores do
movimento cocaleiro contra programas de erradicação da coca impostos por países
e organizações externas, isso permitiu estreitar as relações entre ambos,
proporcionando ao SL endossar o recrutamento de novos membros, aumentar o
financiamento para aquisição de armamentos mais modernos e aprimorar a sua
capacidade organizacional.

1225
Após o colapso em 1992, o SL realizou um estudo de cinco anos sobre o que
motivou o fracasso do grupo e concluíram que a violência indiscriminada contra a
população foi a principal causa da derrocada do movimento revolucionário. E esta
constatação os levou a abandonar a maioria dessas práticas que seriam modificadas
para ações comunitárias que tinham como objetivo conseguir conquistar novamente
o apoio popular (BURGOYNE, 2010). Em uma declaração feita em 14 de Abril de
2009 ao Jornada, um diário local da região de Ayacucho, Víctor Quispe Palomino,
conhecido como ―Camarada José‖, o líder da célula do Sendero Luminoso no Vale
dos rios Apurímac e Ene (VRAE), afirmou que não teria como alvo nenhuma
organização não governamental e nem empresa transnacional, mas apenas ―as
forças armadas, policiais e todos os recalcitrantes que se camuflam com eles na
chamada luta contra o terrorismo e o narcotráfico‖544.

As declarações de Palomino nos colocam uma problematização acerca das simples


mudanças dos objetivos do SL, ao contrário do que muitos líderes do governo
peruano e de grande parte da mídia pensavam, a organização não se transformou
num mero componente de segurança para a produção de cocaína e tráfico de
drogas, pois o Sendero Luminoso ainda mantém a insurgência545 comunista como
perspectiva, eno decorrer da primeira década do século XXI adotou a estratégia das
FARC, ou seja, utiliza o narcotráfico como forma de obter lucro para comprar
armamentos e suprimentos, realizar ações comunitárias para angariar o apoio da
população e continuar financiando a luta revolucionária. Entretanto, a aliança feita
entre os membros remanescentes do SL com os narcotraficantes ensejou uma
mutação no interior da organização subversiva tornando-a uma ―narcoguerrilha‖ ou
―narcosenderismo‖. Segundo Koven (2010), o distanciamento da ideologia maoista e
o não reconhecimento de Guzmán como patrono e ideólogo do movimento por parte
das facções senderistas localizadas nas regiões do Vale dos rios Apurímac e Ene e
do Vale Alto Huallaga, fez com esses grupos adotassem o ―narcocapitalismo‖. O
autor não aprofunda o conceito de narcocapitalismo e o relaciona à indústria
cocaleira, à economia ilegal e ao negócio internacional das drogas. Para Iñari G.

544
Para ler mais trechos das declarações do Camarada José consulte Sendero (2009).
545
A insurgência utilizam táticas de guerrilhas e terrorismo através do conflito assimétrico atuando nas margens
sociais e legais, provoca problemas no âmbito político e influenciam, positiva ou negativamente, os processos de
decisão na esfera nacional e internacional.

1226
San Vicente (2005), o conceito de narcocapitalismo além de se diferenciar da ideia
de narcotráfico devido a sua amplitude, abrange não somente as redes ilegais da
produção e comércio internacional das drogas, mas também indústrias formais,
redes bancárias e o próprio aparato estatal:

Por su parte, el ―narcotráfico‖ es una parte del ―narcocapitalismo‖ y del


―narcoimperialismo‖, y no a la inversa, ya que éste segundo abarca el
proceso entero de producción, transporte al por mayor, reparto al por
menor, venta al consumidor individual y lavado del dinero para cuantificar
los beneficios últimos, mientras que el narcotráfico, como su propio nombre
indica y limita, es sólo la parte del transporte. Ello no quita ninguna
importancia a las mafias que realizan esta parte del proceso general, al
contrario, simplemente confirma la superior importancia de otros poderes
ilegales o legales decisivos en el proceso entero, desde la gran banca que
lava el dinero, hasta los aparatos de Estado relacionados con las mafias,
pasando por industrias químicas sin las cuales no existiría el
narcocapitalismo ni el narcotráfico, los colectivos de abogados que ―torean‖
la legalidad burguesa, etc. (SAN VICENTE, 2005, p. 2).

A presença histórica do SL na região do VRAE e Huallaga está ganhando força


novamente na região e suas atividades nos últimos anos estão associadas ao
narcotráfico armado. Os remanescentes senderistas fizeram alianças estratégicas,
mesmo com objetivos conflitantes entre esses grupos, tanto com os narcotraficantes
quanto com campesinos ligados ao movimento cocaleiro peruano e continuam
operando clandestinamente em segredo. Os narcotraficantes peruanos estão
organizados em firmas546 e contam com o auxílio armado do SL para se protegerem
das ações da polícia e do exército peruano. Entretanto, não há consenso no que
tange à caracterização do SL como ―narcoterrorista‖, para Arce (2008), não se trata
de ―narcoterrorismo‖ e sim de narcotráfico armado, que seria uma indústria ilícita que
utiliza a violência armada para manter e ampliar as suas cadeias produtivas, os seus
lucros e a estrutura logística.

546
As firmas são grupos de narcotraficantes que produzem e comercializam ilegalmente a cocaína (mas não
cultivam a folha de coca) que estão organizados hierarquicamente por divisões de tarefas e responsabilidades e
ligados por tradições e normas de condutas. As firmas buscam ampliar a sua rede de influência através de
acordos com grupos não governamentais, governamentais, outras organizações criminosos transnacionais e
insurgentes. Essas organizações criminosas são compostas por chefes “El Patrón”, grupos de proteção armada,
pilotos, químicos, mulas, coletores de pasta, assessores legais e “lavadores” de dinheiro (DEYFRUS, 1999).

1227
Que en la actualidad los grupos supérstites de SL que operan en el VRAE y
en el valle del Huallaga sirvan de brazo armado al narcotráfico es un hecho
en esencia contingente, ya que este mismo rol lo podrían asumir bandas de
delincuentes comunes sin pasado político o, peor aún, licenciados de los
institutos armados que, tras recibiren trenamiento durante el servicio militar,
y ante la falta de oportunidades de desarrollo personal, se pongan a
disposición de las firmas del narcotráfico (ARCE, 2008, p. 18).

As regiões do Vale do VRAE e Hullaga que abrangem parte dos departamentos de


Ayacucho, Cuzco, Pasco, Junín e Huancavelica, por muito tempo estiveram à
margem das políticas públicas de inclusão social, infraestrutura e desenvolvimento
econômico e a continuação da pobreza547 combinada com a parca presença policial
e falta de manutenção das unidades militares, esta combinação de fatores propiciou
um terreno fértil para que o Sendero Luminoso se reerguesse. A ausência do Estado
de direito, de democracia, de políticas de segurança pública efetivas e de
alternativas econômicas lícitas, sem mencionar o fato da existência história da
cultura cocaleira nessas regiões, possibilitaram que a produção de coca fosse
ampliada na região e paralelamente a isso, o narcotráfico também ganhou terreno e
o SL soube tirar proveito dessa situação favorável para sua reestruturação.

4 Planos VRAE, o Emprego das Forças Armadas e a Militarização do Combate


ao Narcotráfico

A guerra de contrainsurgência lançada pelo presidente peruano Alejandro Toledo


colocou a região do VRAE em estado de emergência a partir do ano de 2003 e no de
2006, as forças armadas e a polícia nacional do Peru (PNP) passaram a fazer
operações conjuntas sem medir esforços para acabar com os remanescentes do grupo
insurgente. Os ataques ocorridos no ano de 2005 e no início do ano de 2006 fez com
que o governo destinasse um montante de verbas para que o exército e a polícia
547
O Instituto Nacional de Estadística e Informática fez um estudo sobre a evolução da pobreza no Perú
comparando as regiões no período de 2004 a 2008, neste estudo podemos constatar que os Departamentos com
os maiores índices de pobreza são aqueles com maior presença do narcotráfico e do Sendero Luminoso:
Huancavelica 82,1%, Apurimac 69%, Ayacucho 64,8%, Pasco 64,3%, Puno 62,8%, para citarmos alguns. Para
acessar o estudo acesse: http://censos.inei.gob.pe/DocumentosPublicos/Pobreza
/2008/Exposicion_Pobreza_2008.pdf.

1228
nacional reforçassem suas ações no combate aos ―terroristas‖. E em fevereiro de 2007
foi lançado pelo presidente Alan García Pérez o Plano VRAE, em referência ao ―Plano
Colômbia‖, que tinha por objetivo garantir a paz, combater o narcotráfico e o Sendero
Luminoso e promover o desenvolvimento socioeconômico na região.

O Plano VRAE está fundamentado em três pilares principais: ―ações militares, para
combater os remanescentes do Sendero Luminoso; ações policiais, para combater o
narcotráfico; e ações civis, para promover o desenvolvimento social (...), a
infraestrutura (...) e o desenvolvimento econômico‖ (SANTOS, 2011, p.21). Os
primeiros anos da execução do Plano VRAE não trouxeram os resultados
esperados. As estratégias contrainsurgentes mal delineadas somadas ao mau
preparo das tropas e aos equipamentos bélicos ultrapassados fizeram com que as
operações fracassassem e suas ações não fossem suficientes para conseguir
combater o SL. Os senderistas além de conhecerem muito bem o terreno, contam
com armamentos modernos adquiridos com o dinheiro do tráfico, agem com táticas
diversificadas e atuam em diferentes locais e regiões (Sinaycocha, Santo Domingo
de Acobamba, Junín).

Em 2009, ocorreu um novo lançamento do Plano VRAE que pretendia alcançar


questões mais amplas e fundamentais para o desenvolvimento social e econômico
da região que estava agora fundamentado em três novos eixos: desenvolvimento
econômico e social; segurança e legalidade (contra o narcotráfico e o terrorismo); e
comunicação e participação. Todavia, tanto a primeira edição do Plano VRAE
quanto a segunda não conseguiram aumentar de modo significativo a presença do
Estado peruano na região548, e o novo enfoque que pretendia diminuir o caráter
militarizado do programa para redirecioná-lo ao desenvolvimento humano e
socioeconômico da população camponesa teve pouco êxito, contudo, a estratégia
antiterrorista perpetrada pelos militares incorreu em violações de direitos humanos
contra os camponeses (ARCE, 2008).

No ano de 2012, foi lançado o Plano VRAEM, programa de intervenção nos Vales do
Apurímac, Ene e agora estendendo até a região de Mantaro, foi lançado por Ollanta
548
O jornal El Comércio, Peru, de 16 de abril de 2012, apontou os altos gastos na consecução dos dois primeiros
planos para o VRAE que alcançou a cifra de 400 milhões de soles apenas com operações militares. Para maiores
informações sobre os gastos acesse: http:// elcomercio.pe/politica/1402445/noticia-que-plan-vrae-que-no-
funciona

1229
Humala para ampliar a presença estatal nessa região, orientado por quatro frentes
de ação: 1) luta contra a pobreza; 2) luta contra a desigualdade; 3) luta contra o
tráfico ilícito de drogas e as organizações criminosas; 4) luta contra o terrorismo
(PRESIDENCIA, 2012). Algumas mudanças ocorreram no Plano VRAEM 2012,
como a participação de todos os ministérios, expansão da luta contra o terrorismo e
o narcotráfico para a região do vale do rio Mantoro e construção de escolas e
implementação de programas sociais, entretanto, há muitas críticas sobre esse novo
plano e a principal delas é que ele continua cometendo os mesmos erros das duas
versões anteriores, por exemplo, o não envolvimento das populações camponesas
nas elaborações das políticas públicas de desenvolvimento e de segurança.

As consecuções dos Planos VRAE 2007/2009 e do Plano VRAEM 2012 (que ainda
está em curso) trouxeram à tona as limitações logísticas, estratégicas e táticas das
forças armadas peruanas no combate ao narcotráfico armado, como a utilização da
guerra fixa contra a guerra fluída dos senderistas, o desconhecimento do território e
a ausência de diálogos e interação social com a comunidade local.

O emprego das forças armadas no combate ao narcotráfico armado no Peru pós-


Fujimori ganhou força com a promulgação da lei nº 29166 ―Reglas de Empleo de La
Fuerza‖ no ano de 2007, no governo Garcia, que permite aos membros das forças
armadas utilizarem a força contra a subversão armada, para o reestabelecimento da
ordem interna e o controle de protestos sociais com regras claras e aplicáveis para
que integrantes das forças armadas em exercício de seu ofício possam contar com
um marco jurídico que evite acusações de violações legais e dos direitos humanos.
Com efeito, ao empregar a força não haverá clareza na distinção entre objetivos
civis e militares (DONGO, 2007).

Se a guerra assimétrica é caracterizada pela ausência de regras, no caso peruano a


regra do emprego da força se torna uma forma de tentar adequar as forças armadas
à ausência de padrões e normas rígidas do seu inimigo interno, os
―narcoguerrilheiros‖, cujas ações não estão atreladas a um ethos e nem à moral da
conduta da guerra, elas ultrapassam o campo militar valendo-se da guerra de
guerrilha, do terrorismo, da sabotagem e da insurgência. De acordo com Carl
Schmitt (2008), a necessidade de pacificação intra-estatal leva o Estado, enquanto
unidade política, a determinar o seu inimigo interno e decretar leis especiais para
combatê-lo:

1230
em todos os Estados, de alguma forma, há o que o Direito Público das
repúblicas gregas conhecia por declaração de polemios e o Direito Público
romano por declaração de hostis, ou seja, tipos de desterro, de ostracismo,
de proscrição, de banimento, de colocação horslaloi, em suma, tipos de
declaração de inimigos intra-estatal, podendo ser estes tipos mais rigorosos
ou mais suaves, supervenientes, ipso facto ou com efeito jurídico em virtude
de leis especiais, explícitos ou encobertos por meio de circunscrições
genéricas (SCHMITT, 2008, p. 49).

A militarização sistemática dos Vales dos Rios Apurímac, Ene e Mantaro para
combater o narcotráfico armado como inimigo interno vem ocorrendo desde 2003 e
em 18 de janeiro de 2007 foi decretado o estado de emergência por sessenta dias
pelo Decreto Supremo Nº003-2007-DEconferindo às Forças Armadas a
responsabilidade de manter a ordem pública para alcançar a pacificação total da
região (DEFENSA Y REFORMA MILITAR, 2007). Os Planos VRAE
(2007/2009/2012) e a construção de dez bases militares549 na região intensificaram
a presença das forças armadas e também da polícia nacional peruana na região
para combater os remanescentes senderistas e os narcotraficantes, colocando a
região num estado de sítio permanente onde o conflito armado contra um inimigo
intraestatal faz da exceção a regra.

5 Considerações finais

As mutações contínuas que o Sendero Luminoso vem sofrendo desde o seu


surgimento colocam novos desafios para o governo e as forças armadas peruanas. A
substituição do marxismo maoista pelo narcocapitalismo guerrilheiro e a revisão de sua
trajetória histórica foram fundamentais para o grupo se aproximar dos narcotraficantes,
de setores cocaleiros e do campesinato para conseguir apoio popular e obter lucro ilícito
para financiar a sua luta insurgente. A sua aliança com os narcotraficantes e com
camponeses da região de Ayacucho, que dependem em larga medida do cultivo de
coca, fortaleceu o grupo insurgente ampliando sua influência, suas ações e seus lucros.
A metamorfose ideológica favoreceu a aquisição de armas modernas e mais eficazes
para a consecução de seus objetivos.

549
De acordo com o jornal La Razón de 16 de Outubro de 2012, o governo peruano anunciou no mesmo mês a
instalação de dez bases militares na região cocaleira do VRAE com o objetivo de lutar contra o tráfico de drogas.

1231
O narcotráfico armado é uma das redes do narcocapitalismo que garante acesso ao
dinheiro, armamentos sofisticados e novos recrutas ao passo que amplia a sua
disseminação no meio rural e urbano, e o tamanho e a influência da indústria ilícita
do tráfico de drogas no Peru transbordou afetando os países vizinhos, sobretudo os
pertencentes ao subcomplexo regional de segurança andino. A forte presença do SL
na região do Vale dos rios Apurímac e Ene, associada ao narcotráfico, levou os
diferentes governos peruanos da última década a intensificar a presença estatal
através do emprego das forças armadas e policiais para conter o avanço da
―narcoguerrilha‖. No entanto, para executar essa tarefa, no ano de 2007 foi lançado
o primeiro Plano VRAE, que tinha como objetivo aumentar a presença estatal com
ações militares, combater os narcoterroristas e promover o desenvolvimento
socioeconômico, entretanto, não alcançou o sucesso desejado. No de 2009 foi
lançado o segundo Plano VRAE, o qual também não obteve o êxito esperado. Já em
2012, foi relançado o Plano VRAEM, abrangendo agora o vale do rio Mantaro, com o
propósito de lutar contra a pobreza, a desigualdade, o tráfico ilícito de drogas e
combater os terroristas. Todavia, os Planos VRAE fracassaram e agora o novo
programa para o VRAEM não está conseguindo atingir os seus objetivos, pois ao
invés mudar o panorama da pobreza local, fez com que o governo militarizasse a
região para combater os seus inimigos internos.

O emprego das forças armadas na intervenção no VRAE para combater o


narcotráfico armado intensificou a militarização da região gerando pontos de tensões
que desestabilizam o monopólio do uso da força por parte do Estado peruano e
coloca em questão a governabilidade democrática devido às constantes violações
de direitos humanos, gerando desconfiança em grandes parcelas da sociedade civil.
A implementação de políticas públicas e de serviços de inteligência que busquem
alternativas às ações militares nas territorialidades aonde residem as populações
campesinas, que são as principais cultivadoras de coca, poderá dar início a uma
mudança estrutural do problema que desde a transição democrática ainda perdura.

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1237
Simpósio Temático 20

DESENVOLVIMENTO DE EQUIPAMENTO LABORATORIAL PORTÁTIL PARA


EMPREGO EM CAMPANHA NA DEFESA QBRN, VIGILÂNCIA SANITÁRIA DE
ALIMENTOS E INSPEÇÕES DE SANIDADE AMBIENTAL

José Roberto Pinho de Andrade Lima550

1 Introdução

O Brasil passou a ser um importante ator no contexto político e econômico,


tornando-se sede de importantes eventos (Jornada Mundial da Juventude Católica,
Copa do Mundo e Olimpíadas). Na posição atual, o Brasil contraria interesse
políticos e econômicos e, também, passa a receber lideres e atletas estrangeiros,
alvos compensadores para o terrorismo internacional. No tocante à Defesa, este
cenário atual comporta novos riscos associados às mudanças do status geopolítico
internacional, como o terrorismo.

No Brasil existe uma lacuna no conhecimento Científico e Tecnológico no campo da


Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear (QBRN), em especial na biológica.
Os pesquisadores brasileiros dos campos da saúde coletiva e microbiologia
sinalizaram algum interesse pela temática após os ataques terroristas e
bioterroristas de 11 Set 2001, entretanto as publicações nacionais são, ainda,
superficiais e muito há por investigar, especialmente no desenvolvimento de
fármacos e imunobiológicos, assim como kits diagnósticos que permitam a rápida
identificação dos agentes biológicos, medidas de contenção e de descontaminação,
uso de equipamentos de proteção individual e coletivos, entre outros (CARDOSO;
CARDOSO, 2011). Importante ressaltar o esforço de inovação neste campo da
Divisão de Defesa Química, Biológica e Nuclear do Centro Tecnológico do Exército
(CTEx), que desde 2010, desenvolve o projeto de um Laboratório Móvel de
Identificação de Agentes Químicos, Biológicos, Radiológicos e Nucleares
(LABMOVEL), em parceria com a empresa italiana Cristanini.

550
1ª Base Logística – Exército Brasileiro

1238
Um aspecto que não deve ser negligenciado, especialmente em um país
considerado celeiro do planeta, é a ameaça do agroterrorismo. A destruição
econômica de plantações e rebanhos com finalidades militares já foi empregada
em diversos contextos bélicos, sendo um risco real na atualidade e suas
conseqüências mais nefastas são as econômicas e sociais, especialmente a
fome e o desemprego (YEH et al, 2012). Destruir rebanhos bovinos com a
introdução do vírus da Febre Aftosa em um país, assim como dizimar planteis
de aves com a gripe aviária ou plantações de soja com a ferrugem, são formas
indiretas de enfraquecer e fragilizar uma nação, sem o disparo de um único tiro,
sem detonar uma única bomba e sem mesmo caracterizar quem perpetrou o
ataque. Deve-se lembrar, ainda, que algumas destas pragas podem sofrer
mutações e atingir humanos, como a ameaça real e emergente da influenza
altamente patogênica originária de suínos e aves (FRIEND, 2006).

No campo doutrinário, após a aprovação da Estratégia Nacional de Defesa, a tônica


da Tecnologia de Defesa é a mobilidade e a flexibilidade, enquanto na realidade da
logística de subsistência do Exército Brasileiro a inspeção sanitária dos alimentos
consumidos pela tropa é realizada em 18 (dezoito) Laboratórios de Inspeção de
Alimentos e Bromatologia (LIAB), todos fixos, a maioria nos Depósitos e Batalhões
de Suprimentos regionais. Observa-se, assim, que a capacidade analítica atual não
consegue acompanhar a mobilidade da logística de combate, condição fundamental
para a manutenção da segurança dos alimentos, assim como contribuir com a
vigilância da saúde ambiental no teatro de operações e a Defesa Química, Biológica,
Radiológica e Nuclear (DQBRN).

As políticas públicas de resposta para ameaças QBRN mostram-se dispersas, sem


uma coordenação do governo federal, o que acarreta sobreposição de atividades e
lacunas de atuação (AZAMBUJA, 2012). Um exemplo desta desarticulação na
biodefesa interna é o funcionamento da rede de laboratórios de vigilância em saúde,
existem os estaduais de saúde pública (LACEN), os laboratórios militares de
inspeção de alimentos (LIAB), os laboratórios estaduais e federais de inspeção
vegetal e animal (LARA, LANARA, etc), os laboratórios universitários e de centros de
pesquisa voltados para doenças infecciosas (Ex: FIOCRUZ, IBEx, CTEx, etc),
entretanto esta rede está despreparada para investigar agentes, por exemplo, de

1239
pandemias ou de bioterrorismo. As redes sentinelas de bio vigilância para biodefesa
interna ou desdobramento em operações militares são bem articuladas dos EUA
(Laboratory Response Network) e na França (Bioforce) e integram laboratórios
públicos e privados, especializados no emprego militar, na segurança de alimentos,
nas investigações do campo da veterinária, na defesa sanitária vegetal, e na saúde
pública (BROKOOP et al, 2006; BOUTIN et al, 2000).

Forças Armadas de países com larga experiência em conflitos tem utilizado


equipamentos laboratoriais portáteis de emprego em campanha (SANCET, 2013).
Alguns destes equipamentos foram desenvolvidos por equipe de técnicos militares,
como é o caso do Equipamento Completo de Inspeção Veterinária e Controle Sanitário
– Modelo 2007 (ECIVCS, mod. 2007), do Exército da Espanha (CAPARRÓS, 2009;
DOMÍNGUEZ, 2010;). Neste momento o Brasil não possui equipamento de pronto
emprego em campanha, especificamente voltado para todo o espectro de ação da
vigilância sanitária de alimentos e inspeções de sanidade ambiental, apoiando missões
de inspeção de alimentos, vigilância da saúde ambiental ou detecção de agentes
biológicos. Esta carência não está localizada na área da Defesa, mas também na
capacidade do Sistema Único de Saúde no nível dos pequenos municípios.

Considerando estes pressupostos e a disponibilidade no mercado internacional de


diversos kits e equipamentos de análise rápida no campo da microbiologia e da
físico-química de alimentos, água de consumo humano e meio ambiente, este
trabalho objetivou apresentar o planejamento para a produção nacional de um
protótipo de Equipamento Laboratorial Portátil para Emprego em Campanha na
Defesa QBRN, Vigilância Sanitária de Alimentos e Inspeções de Sanidade Ambiental
(denominado BioELPEC).

2 Desafios Sanitários no Ambiente Operacional

As doenças infecciosas adquiridas a partir de animais, conhecidas como zoonoses,


representam importante e emergente desafio à saúde pública. Estima-se que 60%
das enfermidades humanas emergentes são zoonoses e destas mais de 70% tem
como origem animais de vida silvestre (CUTLER et al, 2010). Estes indicadores

1240
revelam a importância do contexto ambiental como desafio à saúde dos militares em
combate ou integrando missões de paz. Na experiência militar brasileira, merece
destaque o enfrentamento de surtos de malária na missão de paz das Nações
Unidas em Angola, na década de 1990, com registro de três óbitos (SANCHEZ et al,
2000) e no Haiti, especialmente após o terremoto de 2010 (ANDRADE-LIMA;
BATISTA, 2010)

Um exemplo dos desafios sanitários presentes em ambientes operacionais precários,


com elevado risco de contaminação de água, alimentos e infestação de vetores de
zoonoses é retratado no relato de caso de ação de vigilância sanitária durante o
emprego de tropas de Forças Especiais dos EUA na America Latina, por McCown e
Grzeszak (2010). Analisando amostras de água, alimentos e gelo, presentes no local
das operações, os investigadores confirmaram em laboratório a elevada contaminação
das amostras por agentes patogênicos como E. coliO157:H7, Salmonella,
Campylobacter, Clostridium, Shigella, Bacillus, Staphylococcus, Streptococcus e
Listeria, todos potenciais causadores de gastrenterite na tropa.

O Bioterrorismo é definido como um ataque com aliberaçãointencionalde gentes


biológicos ou toxinas com a finalidade de prejudicar ou de matar seres humanos,
animais ou plantas, ou com a intenção de intimidar ou forçar um governo ou uma
população civil a obedecer a objetivos políticos ou sociais outros. Os agentes
biológicos podem ser bactérias, vírus, riquétsias, fungos ou toxinas. Podem variar de
altamente incapacitante a altamente letal, assim como pode ter efeito localizado ou
altamente contagioso. Assim, os agentes biológicos têm potencial ser transformados
em armas e empregados em variadas formas de ataque, variando desde ataques
em escala reduzida com propagação limitada de um agente biológico, até um evento
em grande escala, catastrófico tendo por resultado a destruição em massade
rebanhos, pessoas ou colheitas (KITTELSEN, 2009).

3 Aspectos metodológicos

Tendo por base o estudo da situação problema da falta de equipamentos


laboratoriais portáteis para emprego no campo da saúde pública e defesa, realizou-

1241
se a revisão da literatura, centrada nas principais bases de indexação do campo da
saúde (LILACS, BIREME, PUBMED, SCIELO, SIENCEDIRECT, entre outras),
buscando-se relatos recentes sobre desenvolvimento e emprego de laboratórios
móveis e portáteis. Buscou-se, ainda, em sites comerciais os principais
equipamentos disponíveis no mercado par uso em segurança de alimentos, meio
ambiente e detecção DQBRN.

4 Especificação Técnica do BioELPEC-Brasil

Em 1999, a indústria de alimentos americana realizou 144 milhões de testes


microbiológicos. Cresce a cada ano o mercado de biossensores ou kits de detecção
rápida de contaminação na indústria da segurança de alimentos. Além da indústria,
são potenciais usuários destes equipamentos a área médica, as Forças Armadas, o
setor de vigilância ambiental, agências da inspeção do governo e todo setor que
procura uma ferramenta diagnóstica para detectar os micróbios patogênicos
rapidamente e precisamente. Nos EUA existem 60.000 estabelecimentos de
processamento de alimentos, 250.000 que vendem a varejo, constituindo mu
mercado de US$563 milhões para a detecção dos microorganismos patogênicos.
Estes mercados têm crescido rapidamente e exigido o desenvolvimento de testes
rápidos, de modo que a vigilância de alimentos e meio ambiente seja feita em tempo
real (ALOCILJA, E. C., RADKE, 2003). Esta oferta de tecnologia de detecção rápida
e portátil e a velocidade dos eventos no campo da Defesa tornam esta
disponibilidade tecnológica uma oportunidade para o setor de biossegurança nas
Forças Armadas.

Tendo como referencia principal, a experiência do desenvolvimento do Equipamento


Completo de Inspeção Veterinária e Controle Sanitário – Modelo 2007 (ECIVCS,
mod. 2007), do Exército da Espanha (SANCET, 2013; CAPARRÓS, 2009), mostrado
na Figura 1, buscou-se um protótipo de concepção nacional, porém que utilizasse o
máximo de itens prontos, disponíveis no mercado internacional, produzidos por
marcas consolidadas. Passou-se a chamar o futuro protótipo de Equipamento
Laboratorial Portátil para Emprego em Biosseguraça em Campanha (Bioelpec-Brasil)

1242
Figura 1 - Equipamento Completo de Inspeção Veterinária e Controle Sanitário –
Mod. 2007

Fonte: Sancet (2013)

Definiu-se pela construção do BioELPEC-Brasil no formato de dois containeres de


até 60 Kg, transportáveis por modal rodoviário, aéreo ou naval, com capacidade de
realizar cerca de 100 diferentes tipos de análises, aplicáveis na Defesa QBRN, na
Vigilância Sanitária de Alimentos e nas Inspeções de Sanidade Ambiental no teatro
de operações. O planejamento comportou a componente custo total de produção,
disponibilidade dos equipamentos/suprimentos no mercado nacional e nível de
sensibilidade/especificidade das análises mínima de 80%. Considerou-se que na
frente de ação, seja numa área de conflito, numa missão de paz, numa área de
fronteira amazônica ou em exercícios ou operações no interior do Brasil o
BioELPEC-Brasil funcionará tendo o apoio logístico mínimo local de energia elétrica
(via gerador, por exemplo) e abrigo para uso após abertos os containers.

Considerando as três áreas de emprego do BioELPEC-Brasil, ou seja: Vigilância


Sanitária de Alimentos, Inspeções de Sanidade Ambiental e pesquisa de
contaminação QBRN em amostras ambientais ou de alimentos, optou-se pela
montagem dos módulos elencados no Quadro 1, a seguir:

1243
Quadro 1 – Módulos do protótipo de Equipamento BioELPEC-Brasil

Módulo - Área de
Itens principais Análises principais Fabricante
emprego

- Clean-Trace™ Surface ATP Microbiologia de alimentos,


Vigilância Sanitária análise de contaminação
- Clean-Trace ™ Water Total 3M e MERCK
de Alimentos microbiana em superfícies
ATP
e água de processo
- Placas, mini-incubadora, leitor
e acessórios Petrifilm™

Físico-química e
- ADVANCED Portable Water
Sanidade Ambiental microbiologia de água de Wagtech
Quality Testing Laboratory
consumo e bruta

Diversas
análisesqueincluemagentes ResearchInter
DQBRN - Analisador RAPTOR™
biológicos,toxinas,explosivo national, Inc.
s,eprodutos químicos

O sistema de monitoramento de higiene Clean-Trace™ Surface ATP (fabricado


pela 3M) tem como base a medição da quantidade de adenosina trifosfato (ATP),
fonte de energia presente em células vivas. Desenvolvido para avaliar
rapidamente o nível de contaminação, possui em uma única cápsula todos os
reagentes necessários para apontar a eficiência do processo de limpeza de
ambientes e de equipamentos. Da mesma forma, o 3M Clean-Trace ™ Water
Total ATP é um teste eficiente para avaliar rapidamente o nível de contaminação
de uma amostra de água num local de produção. Os resultados são obtidos de
forma rápida, simples e confiável, garantindo a possibilidade de agir
imediatamente, assim que o problema for detectado.

1244
As Placas Petrifilm™ são sistemas prontos de meio de cultura que contém
diferentes tipos de nutrientes, géis hidrossolúveis a frio, corantes e indicadores,
adequados à recuperação de cada tipo de microorganismos pesquisados. Esses
componentes são impregnados nas camadas internas de dois filmes, o superior
em polipropileno e o inferior em polietileno. A análise microbiológica fica reduzida
a três etapas simples e rápidas, reduzindo as chances de erros, e elevando
economia de tempo. O conjunto é compacto e possibilita a leitura rápida e
informatizada das placas (3M BRASIL, 2013).

O RAPTOR™ é um sistema de ensaio portátil introduzido primeiramente em


2000. Pode ser configurado para detectar uma vasta gama de analises que
incluem agentes biológicos, toxinas, explosivos, e produtos químicos usando
ensaios baseados em antígenos. O RAPTOR™ é essencialmente um leitor da
fluorescência que integra a análise de luminescência, eletrônica e software,
empregando sensores ópticos. O sistema é altamente configurável, podendo ser
definidos protocolos do ensaio múltiplos e desenvolver seus próprios ensaios
(BAIRDet al, 2012). A Figura 2, a seguir, ilustra os principais itens básicos,
componentes do BioELPEC-Brasil.

Figura 2 – Principais componentes do protótipo de Equipamento BioELPEC-Brasil

Fonte: o autor

1245
Os containeres que abrigarão os equipamentos e facilitaram seu transporte e
emprego nas operações deve ser construído em chapa de aço de 2 mm, com
reforço nas cantoneiras e instalação de rodas e alças. O design e processamento
dos containeres deverá ser feito após a aquisição dos equipamentos básicos
(componentes do BioELPEC-Brasil), para dimensionamento preciso e definição se
serão aproveitados os ―cases‖ que já abrigam alguns componentes individualmente.

5 Perspectivas de desenvolvimento e emprego da tecnologia BioELPEC-Brasil

O estudo comprovou a viabilidade técnica, pois existem equipamentos portáteis no


mercado internacional que atendem às especificações. O aspecto financeiro
necessita de mais investigação, pois a avaliação inicial prevê um custo de R$
100.000,00 (cem mil reais) na primeira fase, com Kit básico de análises. Porem a
adição de outros recursos e materiais de suprimento, tradução de manuais,
montagem de Procedimentos Operacionais Padrão (POP) devem demandar mais
R$ 100.000,00 (cem mil reais) numa fase posterior. Nos últimos meses o projeto foi
apresentado ao BNDES, via Comando Militar da Amazônia, e espera-se obter, até o
final de 2013 o financiamento que valide a construção do protótipo.

A segunda fase, destinada à validação do BioELPEC-Brasil, ocorrerá com a montagem


do protótipo na 1ª Base Logística do Exército Brasileiro, em Boa Vista-Roraima, e o
emprego-teste em Operações Militares em ambiente de Selva, pelo período de um ano.
Durante esta fase será produzido um relatório complementar à fase de estudo de
viabilidade técnica e financeira, onde estarão analisados aspectos de resistência do
conjunto dos equipamentos e praticidade de emprego em situação de campanha. Após
os ajustes, o BioELPEC-Brasil poderá ser patenteado como um produto de defesa
desenvolvido no Exército Brasileiro e quando produzido em escala maior, será um
laboratório portátil de uso dual, servindo para apoiar as missões logísticas durante as
Operações Militares e Operações de Paz, assim como poderá servir para equipar as
equipes de vigilância sanitária e ambiental do Sistema Único de Saúde nos mais de
5500 municípios do Brasil.

1246
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1248
ATAQUE DE ANTHRAX E O MANEJO DE CADÁVERES: SOB A ÓTICA DA
BIOSSEGURANÇA

Telma Abdalla de Oliveira Cardoso551

Duarte Nuno Vieira552

1 Introdução

O uso de substâncias químicas e de agentes biológicos como estratégia militar de


dominação não constitui um artifício bélico recente. Situações de conflito envolvendo
o emprego deste tipo de agentes verificaram-se desde a antiguidade tendo todavia
adquirido uma maior visibilidade no decurso dos conflitos bélicos ocorridos no século
XX. Os atentados terroristas de 11/09/2001, em Nova Iorque, seguidos da
disseminação de esporos de B. anthracis, vieram reforçar a possibilidade da
consolidação do bioterrorismo como estratégia de correlação de forças no
enfrentamento de interesses globais. Estes atentados motivaram a modificação da
estrutura de defesa em diversos países e um aumento do aporte financeiro para o
desenvolvimento e produção de novos medicamentos e vacinas.

Diversos agentes biológicos foram estudados com o objetivo de verificar seu


potencial de uso como agentes no âmbito de guerra biológica, porém poucos
evidenciaram características satisfatórias para tal fim. E mesmo estes, para poderem
ser usados como armas, necessitam de ser submetidos a processos complexos que
garantam a satisfação de requisitos múltiplos, nomeadamente a sua estabilidade à
degradação durante a manipulação e armazenamento, durante os processos de
transferência de energia implícitos na maioria dos cenários de disseminação, e ainda
que o agente, uma vez liberado, se mantenha em doses que sejam infectantes numa
área previsível. Estes condicionalismos demonstram a substancial dificuldade e até
mesmo a inviabilidade da utilização deste tipo de armamento. Ainda que os ataques
bioterroristas sejam improváveis e possuam, até a presente data, taxas de

551
Fundação Oswaldo Cruz
552
Universidade de Coimbra e Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, Portugal

1249
morbimortalidade baixas, o potencial de uma arma biológica permanece todavia
elevado. Nas últimas décadas, o avanço biotecnológico vem permitindo o progresso da
genética, com o desvendamento do genoma, motivando a discussão de seu uso para o
campo político estratégico, no âmbito de uma potencial nova geração de armas
biológicas. Em face do exposto, afigura-se óbvio que sistema de saúde pública
nacionais e os profissionais de saúde devam assim estar preparados para lidar com os
mais diversos tipos de agentes biológicos, incluindo os exóticos ao seu país (KHAN et
al., 2000; NOJI, 2001).

Os esporos do anthrax têm sido considerados como uma das melhores opções em
termos de armas para a guerra biológica, já que podem ser produzidos facilmente e
serem armazenados a seco, permanecendo de forma viável durante décadas. São
dispersados pelo ar com facilidade e podem ser inalados por tropas não protegidas,
permanecendo no solo durante muitos anos (CLIFFORDl et al., 2011; MORENO et
al., 2010). E enquanto uma bomba atômica de 12.5 Kt poderá ocasionar cerca de
80.000 mortes, a verdade é que apenas 100 g. de esporos de antrax poderão matar
entre 1 a 3 milhões de pessoas (ARORA et al., 2010; CARUS, 1998).

Situações envolvendo cadáveres contaminados ocasionam um compreensível temor


na população, requerendo o desenvolvimento de esforços que garantam uma
adequada e segura concretização das diversas e necessárias fases de coleta,
transporte, armazenamento e disposição final dos corpos. Ora estas tarefas são
habitualmente executadas por militares, profissionais de atendimento emergencial e
de sobrevivência, mas também por outros intervenientes, nomeadamente
voluntários, na maioria das situações detentores de escassa ou nenhuma formação
ou experiência, e sobretudo no que se refere à manipulação de corpos nestes
contextos de risco particular.

Este trabalho tem como objetivo discutir os riscos que os cadáveres contaminados
com B.anthracis podem representar para a saúde pública e para os profissionais de
primeiro atendimento. Trata-se de um estudo de revisão bibliográfica, conduzido de
acordo com os preceitos metodológicos da estatística descritiva, cujo objetivo é a
leitura, seleção e registro de tópicos de interesse para a pesquisa.

1250
2 Bacillusanthracis

Anthrax é uma doença causada pelo Bacillusanthracis. São bacilos gram positivos,
imóveis, aeróbicos e esporogênicos.Os esporos medem de 1 a 1,5 µm de largura por 3
a 10 µm de comprimento, e são resistentes à desidratação, calor, radiação ultravioleta,
bem como a muitos desinfectantes normalmente utilizados nos serviços de saúde.
Apresentam-se, na Tabela 3, as principais características deste agente.

Tabela 1- Resumo das características principais do Bacillusanthracis

Dose
Possível
Resistên-
Antecedent dissemi- Infec-
Reserva- cia no Período de Diagnós-
e histórico nação em tante na Suspeita Quadro clínico
tório meio incubação tico
de uso dual bioterro- forma
ambiente
rismo inala-
tória

Inalatório (é Inalatório: 2-
esperado em 23 dias
0
BT), cutâneo
Acidente N elevado
8.000 a (natural), Cutâneo: 1- Clínico +
em 1979 na Aerossold de casos
Solo Décadas 50.000 gastrointes- 5 dias cultivo ou
URSS com e esporos vias
esporos tinal PCR
66 mortos respiratórias Gastroin-
(alimentar) e
meningite testinal: 1-7

(complicação) dias

Trans-
Mortalidad Trata- Trata- Profilaxia
Mortalidade missão
e com mento mento com
sem pessoa Vacinação Importância Obs.
tratamento suspeita de
tratamento a
adequado (1a opção) (2a opção) exposição
pessoa

Disponível
Somen- Ciproflo- mas possui
te a xacina (500 baixa duração Difícil
20 a 90% 1 a 50% Cipro- Doxici- Rápida
forma mg/12h) ou de imunização iniciar
conforme conforme floxacina4 clina evolução,
cutânea Doxicicli-na trata-
quadro quadro 00mgIV/12 100mgIV/1 com alta
por (100 Nova vacina mento a
clínico clínico h 2h mortalida-de
contato mg/12h) 14 com Ag tempo
direto dias via oral recombinante
sendo testada

Fonte: CLIFFORD et al., 2011; MORENO et al., 2010; KMAN e NELSON, 2008; WILGIS, 2008;
BOSSI et al., 2004; KAHAN et al., 2003; SPOTTS et al., 2003; CDC, 2002; 2001a; 2001b; 2001c;
FRANZ et al., 1997; FRIEDLANDER et al., 1993.

1251
A doença desenvolve-se de forma natural nos animais selvagens ou em herbívoros
domésticos, bem como nos homens, após contato com animais infectados, produtos
animais contaminados ou contato direto com o agente. A pele dos animais e o couro
podem também conter esporos durante anos. Os seres humanos e os animais
carnívoros são hospedeiros acidentais. É uma doença endêmica em áreas agrícolas
ao redor do mundo (MARTIN; FRIEDLANDER, 2010).

Os esporos de B. anthracispodem permanecer viáveis no solo por muitos anos e


mudanças ambientais, como inundações ou terremotos, têm sido associados ao
aparecimento de epizootias (MARTIN; FRIEDLANDER, 2010).

Identificam-se três quadros clínicos de anthrax:

a) Afetação cutânea: representa 95% dos casos naturais, resultando da


introdução do esporo através de uma solução de descontinuidade da pele. Após o
contacto a incubação ocorre durante 1 a 5 días. A ferida tem a forma de uma
pequena pápula ou mácula urticariante indolor, progredindo para uma vesícula de
1 a 3 cm e posteriormente úlcera. Após 2 a 6 dias, surge uma típica crosta negra
com edema ao redor. Esta crosta cai após 1 a 3 semanas, com uma taxa de cura
de cerca de 80%. Em 20% dos casos, pode haver febre, a qual constitui sinal de
infecção sistémica. A taxa de mortalidade, na ausência de tratamento, é de cerca
de 20%, sendo todavia inferior a 1% com tratamento (MORENO et al., 2010;
BOSS et al., 2004).

b) Afetação pulmonar: resulta da introdução do esporo por inalação através do


trato respiratório. Os endospores podem permanecer inativos por semanas,
situando-se o período de incubação entre 2 a 43 dias. Os primeiros sintomas são
semelhantes aos de um resfriado normal, incluindo febre, mal estar, fadiga, tosse,
dispnéia, dor de cabeça, anorexia e dor no peito. Os sintomas podem progredir
rapidamente para dificuldade respiratória grave, taquicardia e choque. É a forma
mais grave, mas também a mais rara, sendo letal em 90-100% dos casos, se não for
tratada rapidamente. Não existem relatos de transmissão de pessoa a pessoa
(MORENO et al., 2010; BOSS et al., 2004; CHRISTOPHER et al., 2001).

1252
c) Afetação gastro-intestinal: ocorre após ingestão do esporo decorrente do
consumo de alimentos contaminados crus ou mal cozidos. Após 1 a 7 dias de
incubação, surgem os sintomas iniciais, semelhantes a uma intoxicação alimentar,
com febre náuseas, vômitos, perda de apetite, dor abdominal e diarréia. Evolui
rapidamente com hematemese, diarreia grave, abdomem agudo, choque e morte,
em 2 a 5 dias após o início dos sintomas. O diagnóstico precoce é difícil. A taxa de
nmortalidade situa-se em redor de 50% dos casos (MORENO et al., 2010; BOSS et
al., 2004; CHRISTOPHER et al., 2001).

3 Suspeita de um ataque bioterrorista

Suspeita-se de um ataque com anthrax quando há a existência simultânea de


muitos pacientes com sintomas de doença pulmonar grave. Para a identificação dos
casos prováveis de liberação intencional, utiliza-se a definição de caso, como:
possível, provável, confirmado ou deliberado. Caso possível não se aplica ao
anthrax. Caso provável é quando há sinais clínicos sem isolamento do B. anthracis
ou outra prova de confirmação diagnóstica, mas com algum teste laboratorial
positivo. Clínica compatível com antecedente epidemiológico de exposição
ambiental confirmada, sem necessidade de exams laboratoriais. Caso confirmado é
aquele com sintomas clinicos compatíveis e com confirmação diagnostica
laboratorial. Os casos deliberados estão relacionados com mais de um caso
confirmado de anthrax inalado, ou mais de um caso de anthrax cutâneo, sem
antecedente epidemiológico natural, ou ainda mais de dois casos suspeitos de
anthrax ligados entre si pelo periodo temporal ou espacialmente, principalmente se
os pacientes se encontravam na mesma direção do vento (CDC, 2006; DARLING et
al., 2002; ROTZ et al., 2002).

Existem alguns parâmetros para diferenciar os surtos naturais de doenças


infecciosas daquelas suspeitas de serem resultantes de um ataque
bioterrorista. Estes parâmetros incluem desde os padrões temporais de início
da doença, número de casos, período de incubação, sintomas, resistência
antimicrobiana, morbidade, mortalidade, impacto econômico, localização e
distribuição geográfica do surto, distribuição sazonal, potencial zoonótico,

1253
infectividade residual, persistência no meio ambiente, patogenicidade,
prevenção e potencial terapêutico, via de exposição até identificação de
atividades terroristas consistentes (NOAH et al., 1998; CDC, 2006).

A evidência mais importante de um ataque bioterrorista é a aparecimento de grupos


de doentes de forma simultânea (em intervalos de horas ou poucos dias) com
quadro clinico similar, sintomas graves (especialmente entre jovens com bom
estado de saúde), resistência atípica a antibióticos, fracasso ao tratamento habitual,
evolução da doença de forma atípica ou mais grave, distribuição sazonal ou
geográfica anômala da doença, casos agrupados simultaneos em áreas não
contíguas, casos em um mesmo ambiente (sistemas de ventilação comuns) e
reivindicação por grupo terrorista (BUITRAGO et al., 2007; TREADWELL et al.,
2003; SCHULTZ et al., 2002; JONES et al., 2002).

4 Medidas de Biossegurança para reduzir o risco

O melhor método de eliminação das carcaças de animais infectados com


Bacillusanthracis é a incineração. Estes bacilos necessitam de O2 para esporular.
Não se deve permite o exame post-mortem de cadáveres de animais mortos por
anthrax. As formas vegetativas contidas no corpo morrem dentro de poucos dias
com o processo de putrefação. O enterro de corpos contaminados não constitui um
procedimento seguro, pois os esporos podem ser encontrados no solo do local
muitos anos depois, existindo a possibilidade da superfície do terreno ser removida
por atividades agrícolas,drenagem ou escavação, condicionando uma possível
contaminação dos trabalhadores

Recomenda-se que as lesões cutâneas causadas pelo anthrax sejam cobertas


durante as primeiras 24/48 horas após o início do tratamento. Devem ser usadas
luvas ao manusear a ferida durante a coleta de material biológico e eventuais
resíduos gerados no atendimento do paciente, e todos os materiais e equipamentos
potencialmente contaminados devem ser esterilizados.

1254
A administração de vacinas só é recomendada para os profissionaisem ocupações
de risco, sendo sua disponibilidade muito restrita. Nas forças armadas, como parte
de uma preparação para o bioterrorismo, a vacinação pode estar indicada.

A profilaxia antibiótica prolongada só é recomendada para pessoas que tenham


sido expostas a doses substanciais de esporos em aerossol, num cenário de
liberação deliberada. Pessoas que apresentem febre ou sinais de doença
sistêmica devem ser tratadas preventivamente até que a infecção por anthrax
seja descartada.

Nos casos fatais, as necrópsias devem ser desencorajadas. A cremação é preferível


ao sepultamento. O corpo deve ser colocado num saco impermeável para o
transporte e não deve ser retirado deste envoltório. Ressalta-se que os sacos
próprios para cadáveres podem dificultar o resfriamento, assim como aumentam a
velocidade de decomposição dos corpos em regiões quentes.

No caso de enterro, o corpo ensacado deve ser colocado num caixão


hermeticamente fechado e enterrado sem reabertura. O embalsamamento deve
ser evitado.

A desinfecção dos materiais termossensíveis e das superfícies dos veículos de


transporte dos corpos deve ser feita utilizando-se formaldeído a 10% ,glutaraldeído a
4%, peróxido de hidrogênio a 3% ou ácido peracético a 1%. O operador deve usar
roupas de proteção, luvas e protetor facial. Os materiais contaminados, que resistem
à altas temperaturas, assim como os resíduos, devem ser incinerados ou
autoclavados à temperatura de 122°C durante 30 minutos (WHO, 2008).

Os ambientes de isolamento de pacientes e as áreas laboratoriais devem ser


fumigadas utilizando-se solução de formalina ou paraformaldeído
durante 24 horas
e, após este procedimento, os ambientes devem ser bem ventilados.

As precauções universais para o manuseio de materiais biológicos, como sangue


e fluidos corporais, devem ser seguidas. Procedimentos de higiene, como a
lavagem de mãos; cuidados na manipulação de materiais perfurocortantes e
utilização de equipamentos de proteção, são capazes de reduzir o risco
ocupacional. Recomenda-se o uso de vestimenta protetora descartável, composta

1255
de calça e blusão de mangas compridas ou macacão confeccionado em
polietileno, e uso de sapatos fechados. Máscaras descartáveis com filtração
(N95) e luvas deverão também ser utilizadas. Óculos de segurança ou protetores
faciais completos deverão ser utilizados para proteção das mucosas e olhos
contra impactos de partículas volantes, respingos de produtos químicos e
espirros de sangue e fluidos corpóreos.

Além dos requisitos de resposta imediata, a implementação de uma avaliação de


risco para a determinação da contaminação ambiental é muito importante, uma vez
que pode haver esporos no solo, alimentos e água.

É essencial para os profissionais, envolvidos no atendimento emergencial, o


estabelecimento de um programa de educação continuada como parte do processo
de preparação e de mitigação de desastres.

5 Conclusão

A análise dos artigos e casos levantados (n:269), permitiu constatar que mais de
metade eram relativos a ameaças de anthrax e que a maioria envolvia a utilização
de esporos em aerossol. A gestão do ataque de 2001 demonstrou falta de
preparação do pessoal envolvido, motivando múltiplos erros ao lidar com situações
envolvendo o bioterrorismo.

É importante o fortalecimento dos esforços das equipas de urgência e emergência para a


detecção precoce e controle do ataque. Os planos de ação devem incluir a exigência de
notificar quaisquer lesões ou doenças que possuam características de surto deliberado.

Uma boa preparação para um possível ataque bioterrorista deve se concentrar, além
do suporte, num bom sistema de comunicação, numa rede de vigilância
epidemiológica eficaz, treinamento adequado das equipes de cuidados primários e
recursos materiais básicos de emergência, regionalização dos recursos e
infraestruturas, apoio da rede de laboratórios de saúde pública e na criação de
unidades assistenciais de saúde de referência.

1256
A rentabilidade deste esforço será dupla, já que estes recursos são os mesmos que
são necessários para a assistência, controle e monitoramento das doenças
infecciosas emergentes e reemergentes.

Órgão financiador: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico


(CNPq), através do projeto n. 202387/2011-9 (Pós-doutorado no Exterior).

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