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V Congreso Chileno de Antropología. Colegio de Antropólogos de Chile A.

G, San
Felipe, 2004.

A Antropologia e seus
`Clássicos': Da Utilidade do
Conceito de `Clássico' para a
Vida Antropológica Brasileira.

Adolfo de Oliveira.

Cita: Adolfo de Oliveira (2004). A Antropologia e seus `Clássicos': Da


Utilidade do Conceito de `Clássico' para a Vida Antropológica
Brasileira. V Congreso Chileno de Antropología. Colegio de
Antropólogos de Chile A. G, San Felipe.

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A Antropologia e seus ‘Clássicos’:
Da Utilidade do Conceito de ‘Clássico’
para a Vida Antropológica Brasileira
Adolfo de Oliveira*

Resumen com a “antropologia internacional”, entendida esta como


a antropologia praticada na França, Reino Unido e Esta-
Pretendo analizar la forma “canónica” de cómo autores dos Unidos da América do Norte. Uma abordagem, diga-
claves de la formación de la disciplina antropológica son
mos, etnográfica da questão dificilmente deixaria de
discutidos y utilizados en la producción antropológica
brasilera, a partir de mi experiencia con la antropología reconhecer que antropólogos “clássicos” são aqueles
británica. Buscando observar también, como son utiliza- que, entre outras coisas, produziram trabalhos
dos los autores “clásicos” en los debates y argumenta- antropológicos significativos para a história da
ciones contemporáneas en la antropología. Con este con- antropologia nestes países. Mariza Peirano, uma
fronto, pretendo interpretar la forma en que estés autores antropóloga brasileira extremamente influente na
clásicos son actualizados en la producción antropológica
discussão sobre o papel dos “clássicos” no ensino e na
brasilera como elemento característico de su identidad.
Palabras Claves. Antropología Brasilera; autores clási- prática da antropologia brasileira, sumarizou esta
cos; antropología de la antropología. abordagem, que de resto parece presente, de forma não-
sistematizada, no senso comum dos antropólogos
Abstract brasileiros:
É sobre a tensão entre o presente teórico e a
I seek to analyse the “canonic” way trough which key história da disciplina que a antropologia se trans-
anthropological authors are discussed and appropriated mite, resultando que, no processo de iniciação,
in Brazilian anthropological production, from the standpoint
of my previous experience with British anthropology and
cada iniciante estabelece sua própria linhagem
its specific form of inserting “classic” authors in the como inspiração, de acordo com preferências que
contemporary anthropological argumentation. From this são teóricas mas também, existenciais, políticas,
confrontation, I attempt to interpret the renewal of these às vezes estéticas e mesmo de personalidade.
authors in Brazilian anthropological production as a pecu- Assim, além dos clássicos Durkheim, Marx e
liar feature of its identity as Brazilian anthropology.
Weber, que ensinarão a postura sociológica, o
Keywords. Brazilian Anthropology, classic authors, an
anthropology of anthropology. antropólogo em formação entra em contato com
uma verdadeira árvore genealógica de autores
Este trabalho trata da forma como são percebidos e re- consagrados (e outros malditos), na qual cons-
presentados, na antropologia brasileira, autores centrais truirá uma linhagem específica sem desconhecer
da história da antropologia. Minha tese é que a a existência de outras. Na antropologia, as
classificação de tais autores enquanto “clássicos” - im- linhagens disciplinares são tão importantes que
plicando aí uma percepção específica não apenas da se pode imaginar que, sem elas, o antropólogo
posição destes autores no interior da disciplina como não tem lugar na comunidade de especialistas.
também do papel desempenhado pelas teorias destes (...) [A] transmissão de conhecimento e a formação
no trabalho de antropólogos brasileiros – fala muito não de novos especialistas – através de processos
dos autores em si mesmos mas da própria antropologia pelos quais se deu o refinamento de conceitos,
brasileira. mas mantiveram-se os problemas – favorece uma
De fato, a ênfase de antropólogos brasileiros, ao falar prática na qual os autores nunca são propriamente
dos “clássicos” da disciplina, remete a uma conexão ultrapassados: nomes conhecidos que um dia
foram criticados e combatidos, freqüentemente são

* Consultor independente. E-mail: joaodasilva99@yahoo.com

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incorporados nas gerações seguintes porque, dizer, franceses, britânicos e estadunidenses) é ‘ muito
relidos, revelam riquezas antes desconhecidas. mais explicitado’- isto é, publicizado enquanto marca,
Este mecanismo de incorporação de autores, que digamos assim, da forma de abordagem antropológica
marca a disciplina, talvez se explique como um de cada autor – que com seus supostos equivalentes
culto a ancestrais: embora raramente se encontre brasileiros. Esta ‘explicitação’, a meu ver, oculta (e ao
hoje um especialista que se defina como um mesmo tempo revela) uma diferença de qualidade na
estruturalista estricto sensu, também dificilmente relação entre antropólogos brasileiros e a produção teó-
um antropólogo deixa de incluir vários dos rica de antropólogos da tríade supostamente central da
princípios do estruturalismo em sua prática disci- antropologia enquanto disciplina: é a partir da relação
plinar. O mesmo talvez posa ser dito a respeito de entre a produção brasileira e a produção de autores
todos os fundadores de linhagens, num mecanis- daqueles países que a primeira estabelece a sua
mo que não respeita fronteiras: aqui no Brasil, excelência – e, porque não dizer, sua ‘antropologicidade’
Darcy Ribeiro incorporou Herbert Baldus que foi mesma. Em outras palavras, tudo se passa como se
incorporado, junto com Florestan Fernandes, por para se fazer ‘antropologia realmente antropológica’ no
Roberto Cardoso de Oliveira, e assim Brasil fosse necessário que as situações etnográficas
sucessivamente (o reconhecimento das filiações defrontadas (e confrontadas, e enfrentadas) pelos
locais é, contudo, muito menos explicitado que no antropólogos brasileiros redundem, ao final e ao cabo,
caso das vinculações estrangeiras) (Peirano 1990: em comentários, quase que à maneira escolástica
05-06). tomista, sobre as teorias de autores ‘canônicos’ france-
Alguns elementos aqui são reveladores do caráter ses, britânicos e estadunidenses. O resultado concreto
“clássico” dos “clássicos” tal como entendidos no Bra- desta perspectiva, em termos da formação de
sil (isto é, qua “clássicos”). Note-se em primeiro lugar antropólogos via programas de pós-graduação no Bra-
que a autora busca antes de mais nada falar da discipli- sil, traduz-se em estudantes com grande conhecimento
na antropológica, sem estabelecer fronteiras entre a da produção de alguns antropólogos europeus e norte-
antropologia tal como feita no Brasil e aquela feita em americanos da primeira metade do século XX (a notável
outros países. O tema do artigo de onde extraí esta citação exceção aí sendo Clifford Geertz e alguns antropólogos
é a antropologia no Brasil, tendo o artigo sido escrito estadunidenses pós-modernos, aparentemente já
para fomentar o intercâmbio acadêmico com um cientista alçados à categoria de “clássicos”), acoplada a um
político, no foro do encontro anual da ANPOCS, a conhecimento – a meu ver – incompleto e vago da
Associação Brasileira de Pós-Graduação em Ciências produção antropológica contemporânea.
Sociais. Este fórum, um dos mais tradicionais e O cerne destas reflexões veio-me quando realizava meus
expressivos das ciências sociais brasileiras, reflete ele estudos de doutoramento no Reino Unido. Deparei-me
próprio o contexto da institucionalização das ciências com uma situação na qual o ensino de autores centrais
sociais no Brasil nos anos 1930, sob a égide da filosofia, da história da antropologia não era mais que isso
englobando linhas de pesquisa que hoje se diferenciam – história da antropologia. A relação ‘linhageira’, propa-
entre sociologia, antropologia e ciência política (Peirano lada por Peirano, entre “clássicos” e produtores
1990: 02). No entanto, a própria autora escreveu sua antropológicos contemporâneos simplesmente não era
tese de doutoramento sobre a ‘antropologia da parte da forma de se pensar a disciplina aí. Autores
antropologia’, estudando as especificidades da formação centrais do pensamento antropológico não são tratados
da antropologia no Brasil em conexão com o processo como ‘cânone’ a ser seguido, nem mesmo refutados: de
de construção (do pensamento social a respeito) da nação fato, há pouca ou nenhuma remissão aos mesmos nas
(Peirano 1991). No artigo citado, porém, sua preocupação teses de doutoramento aí, a maioria trata principalmente
central é justamente definir as especificidades da de literatura antropológica recente sobre seus temas
antropologia (em especial as metodológicas) vis-á-vis específicos de pesquisa. Uma situação quase que oposta
aquelas outras disciplinas, não as especificidades da à descrita acima é comum neste país, com os recém-
antropologia brasileira frente a outras formas de ingressos de programas de doutoramento dominando
atualização ‘nacional’ da disciplina. muito da produção contemporânea relativa a seus cam-
Dado este contexto, é interessante constatar que para a pos de investigação, mas com conhecimento pobre, o
autora, o vínculo estabelecido entre antropólogos mais das vezes, dos autores tradicionais da história da
brasileiros e “fundadores e linhagem” estrangeiros (vale antropologia.

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Quero deixar claro aqui que não pretendo fazer nenhum serve para educar e desenvolver um tipo desejável
julgamento de excelência desta ou daquela forma de de ser humano. Pois os clássicos representam o
ensino de antropologia. Ambas têm seus pontos positi- nível mais alto de realização humana e deveriam
vos e seus pontos negativos – um dos quais, em relação portanto ser de interesse primeiro para todos os
aos estudantes britânicos, é a virtual impossibilidade de homens (Cassirer, Kristeller & Randall 1948: 04;
debate entre os próprios estudantes, uma vez que estes minha tradução).
não parecem dominar um cabedal de conhecimentos Petrarca foi ainda o responsável pela criação da noção
comuns a todos de forma a criar um campo de discussão cíclica da civilização, que segundo ele teria atingido seu
compartilhado. No entanto, para além destas questões, pico na antiguidade, seguindo-se um declínio de um
vale ressaltar que a comparação entre as duas formas milênio, tendo revivido em sua própria época. È a partir
de abordagem dos autores ‘tradicionais’ – chamemo-los desta periodização que se fala desde então de
assim, para evitar ambigüidades – mostra a ‘renascimento’ e de ‘idade média’. Esta concepção foi
especificidade da abordagem ‘classicista’ enquanto for- retomada um século depois pelo artista florentino Loren-
ma especificamente brasileira (ainda que talvez zo Guiberti, que a aplicou na definição da história da arte
compartilhada, em suas características gerais, por outras como ressurgindo nas mãos de Giotto, após a destruição
diferentes antropologias nacionais) de organização e das obras da antiguidade clássica com a ascenção do
representação do conhecimento antropológico e de sua cristianismo. Surge aqui uma das características
transmissão disciplinar. marcantes da noção de ‘clássico’ tal como nós a enten-
Convém agora examinar mais de perto a noção mesma demos hoje:
de ‘clássico’, tal como empregada pelo senso comum Junto com esta idéia de um ciclo das eras, a mar-
(não apenas antropológico), à procura de elementos que ca identificadora da abordagem renascentista da
ajudem a compreender a peculiar noção ‘classicista’ na história da arte é ainda a ideologia do humanismo,
antropologia brasileira. A noção, tal como a conhecemos que coloca a humanidade como o centro das ten-
hoje, adquire forma no início da época que se tativas de compreensão do mundo e a usa como ‘a
convencionou chamar renascimento, em especial medida de todas as coisas’. Isto leva à ênfase nas
através da filosofia humanista de autores como Francesco realizações de indivíduos e às maneiras nas quais
Petrarca e Giovanni Pico della Mirandola. ‘Humanismo’ estes tiveram um impacto em suas esferas de
representava então, não uma nova forma de filosofia, atividade. (Fernie 1995: 10; minha tradução)
mas um programa educacional e cultural centrado no Temos aí então as principais características do ‘clássico’:
estudo da retórica, poesia, história e filosofia moral, por a ênfase nas realizações individuais de autores (ou ar-
oposição ao aristotelismo tomista, cujo foco principal tistas, ou filósofos) distantes (no tempo, segundo a
eram a lógica e a filosofia natural. Tratava-se enfim de concepção ‘clássica’), a excelência destas realizações
uma oposição entre dois diferentes campos de estudo, quando comparadas às contemporâneas, juntamente com
não – como usualmente se pensa – entre uma nova e a busca da reprodução desta mesma excelência (simi-
uma velha filosofia: lar ao ‘julgamento de qualidade’ enfatizado por Giorgio
Os interesses dos Humanistas iam da retórica à Vasari para inclusão de um determinado artista no
poesia, da história à filosofia moral. O trabalho em cânone de grandes obras) em trabalhos contemporâneos,
cada um desses campos compreendia tanto o através do estudo destes autores, tomados como cânones
estudo dos autores clássicos apropriados quanto desejáveis desta produção contemporânea. Como
a composição de escritos originais segundo seu coloquei anteriormente, estas mesmas características
modelo. Para os estudos destas disciplinas os parecem aplicar-se ipsis literis à noção de ‘clássico’ na
acadêmicos de então, seguindo certos preceden- antropologia, guardadas as devidas proporções.
tes antigos, cunharam o termo inclusivo Studia A justaposição destas noções de ‘clássico’ – a
Humanitatis, ou ‘as humanidades’, e portanto antropológica e a tradicional’, proveniente da história da
denominaram-se ‘Humanistas’ (...) Ainda que ‘hu- arte – fornece ainda pistas para a compreensão da
manidades’ seja meramente outro nome para estes relação, estabelecida pela primeira, entre autores
estudos particulares, a escolha do termo implica ‘canônicos’ e a produção antropológica de autores
uma reivindicação assaz característica do ideal brasileiros. Com efeito, é visível que ‘clássicos’ são,
cultural e educativo dos Humanistas: o cultivo dos antes de mais nada, franceses, britânicos e
clássicos ou ‘humanidades’ justifica-se porque estadunidenses, jamais brasileiros, chilenos, indianos,

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etc. Ora, vemos acima que a retomada da contribuição locais’). Eu contraporia assim –guardando os limites da
da antiguidade grega no renascimento só poderia ser metáfora e do bom humor – à concepção ‘linhageira’ de
realizada a partir de uma ruptura entre sua Peirano da produção antropológica (brasileira?) uma
contemporaneidade e aquela antiguidade. Em outras concepção ‘canibalística’, à la Araweté (Viveiros de
palavras, enquanto as realizações intelectuais, artísti- Castro 1986), na qual autores brasileiros são ‘devora-
cas, etc, européias foram vistas como uma continuidade dos’ de moto próprio por ‘deuses canibais’ estrangeiros,
em relação à antiguidade greco-romana – ou seja, du- renascendo antão, resplandecentes, à imagem e
rante aquela época que posteriormente denominou-se semelhança dos últimos...
‘idade média’ – a percepção dos autores antigos não era Passemos então a algumas conclusões relativas a uma
esta que tratamos aqui; esta só pode se efetuar a partir antropologia do ‘classicismo’ acadêmico da antropologia
do momento em que a contemporaneidade renascentista brasileira. Chegamos aqui à conclusão – de resto, afir-
vê a si mesma como retomando os antigos após uma mada no primeiro parágrafo deste trabalho – de que a
ruptura (‘decadência’) de um milênio. O elemento de perspectiva ‘classicista’ de antropólogos brasileiros diz
ruptura é então fundamental para a caracterização do muito, se não dos ‘clássicos’ em si mesmos, da
‘clássico’ enquanto tal. antropologia brasileira. E ela diz, creio eu, sobre uma
Este mesmo elemento está muito evidentemente pre- complexa concepção de hierarquia presente não ape-
sente na abordagem ‘classicista’ de antropólogos nas na academia brasileira mas no serviço público na-
brasileiros1, ainda que a aqui a descontinuidade não seja cional – do qual a academia, sendo muito
imediatamente vista como temporal. Trata-se, é claro, majoritariamente formada por professores de universi-
de uma ruptura que, postulando a existência de um ‘cen- dades federais, é parte intrínseca – e, pode-se dizer,
tro’ e uma ‘periferia’2, busca criar uma ponte entre estes também presente de forma difusa na sociedade brasileira
a partir da recorrência a autores ‘centrais’ – aqui em um como um todo (Matta 1997). Conforme coloca Peirano,
sentido que remete mais a uma geografia do poder que à nas conclusões de sua tese sobre a antropologia da
importância intrínseca dos autores, a meu ver – como antropologia brasileira,
elemento legitimador de uma produção ‘periférica’. De Eu vejo o caso brasileiro [isto é, da antropologia
fato, poderíamos mesmo especular se esta cisão ‘cen- brasileira] como dominado por duas tendências
tro-periferia’ não ocultaria em seu bojo uma dimensão ambivalentes, que resultam em uma distinção en-
temporal, ainda que comprimida, uma vez que, segundo tre dois tipos distintos de ‘outros’. De um lado,
a própria Peirano, a institucionalização das ciências intelectuais provêm majoritariamente das cama-
sociais no Brasil nos anos 1930 estaria ligada ao projeto/ das médias urbanas, uma elite que possui
ideologia modernista da época: relações umbilicais com centros intelectuais ‘mo-
Um dramático câmbio ideológico ocorreu nos anos dernos’, tais como a França, a Alemanha e mais
1930, na qual as pessoas passaram a acreditar recentemente os Estados Unidos [da América do
que o Brasil, até então ‘tradicional’, tornara-se Norte]. Estes são os primeiros ‘outros’ encarados
subitamente ‘moderno’. Neste ponto, a sociologia, por intelectuais brasileiros. Além do mais, dada a
que englobava todas as ciências sociais, foi cha- relação histórica entre os Brasil e países europeus,
mada a prover as respostas para os problemas de a elite intelectual se vê como parte do mundo
se construir uma sociedade que estaria destinada ocidental, e portanto se relaciona e absorve os
ao desenvolvimento e se tornaria apropriada para valores do ‘universalismo’. Ao mesmo tempo, no
o aperfeiçoamento do espírito humano (Peirano entanto, a desigualdade e a despossessão são
1991: 60-61; minha tradução) características dominantes desta relação, e
Pode-se conceber portanto a abordagem ‘classicista’ frequentemente resultam em sentimentos de
como uma representação sincrônica de um processo ‘anomalia’ (...), ‘estranhamento’ (...) ou na sensação
temporal, pelo qual a produção ‘periférica’ tornar-se-ia de serem ‘desterrados em sua própria terra’.
‘moderna’ a partir da recorrência – ou da conexão sim- O segundo tipo de ‘outro’ é o despossuído ou ‘opri-
bólica, poderíamos dizer – entre produtor antropológico mido’ no interior da sociedade brasileira, em
‘periférico’ e ‘autor canônico central’. A necessidade de relação aos quais os intelectuais se colocam em
tal conexão mostra porque, segundo Peirano (ver citação uma posição privilegiada. Aqui, a relação de
anterior), ela é mais explicitada que as conexões com desigualdade em relação aos centros
outros antropólogos brasileiros (‘filiações a linhagens internacionais se inverte, os intelectuais sendo a

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elite no interior de sua própria sociedade. É neste turalmente’ no quadro das relações assimétricas con-
contexto que a ideologia da construção da naçãoé formado pela ideologia ‘classicista’, os primeiros
orientada para a integração nacional, e o ‘outro’ se representam uma ameaça simbólica a esta, uma vez
torna o índio, o camponês, o caipira e as camadas que, recusando a hierarquia imanente àquela ideologia,
baixas urbanas. colocam em evidência a possibilidade de a antropologia
O resultado é a angústia do intelectual, presa de brasileira libertar-se daquela ‘angústia’ mencionada an-
uma situação na qual, ‘falando uma lingua européia, teriormente, por meio de uma recusa radical da
professando uma religião que é euro-asiática, hierarquia, abrindo assim novos campos de
sendo uma extensão cultural da Europa, nós so- possibilidades para a construção de uma antropologia
mos, não obstante, brasileiros’ (...). É aqui que baseada em relações de caráter simétrico, tanto com
valores universais são buscados e incorporados, ‘outros antropológicos’ – aqui em um sentido multipolar
mesmo que ‘para nós o universal seja mediado e horizontal – quanto com ‘outros nativos’.
pela Europa. A Europa, para nós, já é o universal.’ Com relação aos últimos, talvez fosse interessante
(Peirano 1991: 259-60; trechos entre aspas lembrar que, se a antropologia brasileira – e, de fato, as
correspondem a uma entrevista com o sociólogo antropologias nacionais, incluindo aí as ‘de centro’, con-
Antônio Cândido; ênfase da autora) forme Peirano (1991) – é construída tendo por base uma
Vê-se que a ‘classicismo’ se encaixa nesta concepção ideologia – no sentido dumontiano (1970) – de construção
desenvolvida pela autora da antropologia brasileira, na da nação, então as recentes transformações da
posição de solução para o que ela denominou ‘a angústia sociedade brasileira, a partir de finais dos anos 1980,
do intelectual’: ao conectar-se simbolicamente com a estariam a solicitar, senão a fomentar, o surgimento de
‘Europa’ – tomada aqui como sinônimo de modernidade novas antropologias no Brasil. O muito recente
e englobando também a antropologia estadunidense – surgimento de novos agentes políticos na sociedade
através dos ‘clássicos’, o antropólogo seguidor da brasileira, como negros (Arruti 1997) e povos indígenas
abordagem ‘classicista’ resolve, quase (Oliveira 2002; Oliveira, Oliveira Neves & Santilli 2001)
psicanaliticamente, sua ‘angústia’ por meio de uma – ou antes, sua visibilização, superando processos de
substituição. Aqui, o deixar-se devorar pelo ‘outro mo- invisibilização, tanto imposta pelo estado quanto auto-
derno’ - ou ‘outro externo’ - equivale a identificar-se com imposta (Almeida Costa 2001; Oliveira 1998) - me pare-
este, criando assim o ‘outro tradicional’ – ou ‘outro inter- ce estar a requerer novas formas de antropologia. Novas
no’ – enquanto tal. Através do ‘classicismo’, então, eli- no sentido de refletir suas reivindicações de
mina-se a oposição assimétrica triádica referida por horizontalização das relações sociais no interior da
Peirano na citação acima, entre o ‘outro externo’, o sociedade brasileira, questionando fortemente seu
antropólogo e o ‘outro interno’, recriando a dualidade caráter hierárquico e discriminador. Tais antropologias,
‘moderno-tradicional’ e eliminando assim a ‘angústia antes de mais nada, necessitariam rever e criticar a
intelectual’ de encontrar-se in medias res, por assim hierarquia intelectual assumida e exemplificada pelo ‘cre-
dizer, equilibrando-se na linha divisória entre (o que é do classicista’, tanto quanto rever e criticar muito das
visto como) os campos mutuamente excludentes do ‘tra- antropologias praticadas nos países ditos ‘de centro’ em
dicional’ e do ‘moderno’. Campos que, como se sabe, termos de teoria antropológica. Tais antropologias
não admitem posição mediana. Neste processo, o necessitariam construir novas formas de relacionamento
‘clássico’ torna-se em algo como o totem na definição com seus ‘outros paradigmáticos’. Talvez uma solução
‘clássica’ de Durkheim, que “... não é somente um nome, possível seja a reversão da relação ‘clássica’:
é um emblema, um verdadeiro brasão...”. Talvez venha ‘canibalizar’ o ‘outro externo’, ao invés de deixar-se
daí o incômodo causado àqueles que professam o ‘cre- canibalizar por ele; e ser devorado pelo ‘outro interno’.
do classicista’ pelos antropólogos brasileiros que não
possuem, nas palavras de Peirano, uma ‘filiação Notas
linhageira’, que em suas próprias palavras correm o ris-
co de não encontrar lugar na ‘comunidade de especialis-
1
Cabe aqui lembrar ainda que proponentes desta concepção,
tas’. Comunidade esta que, ironicamente, acolhe ao localizar o início da antropologia brasileira justamente
nos ‘fundadores de linhagem’ que marcam sua própria
calorosamente e sem restrições antropólogos
abordagem ‘classicista’, ignora – ou mesmo, renega ao
estrangeiros (isto é, franceses, estadunidenses e esquecimento – muito da antropologia brasileira produzida
britânicos). Pois enquanto estes últimos se inserem ‘na- antes destes ‘fundadores de linhagem’, reescrevendo assim

992 Tomo II Actas 5º Congreso Chileno de Antropología Simposio Identidad de la Antropología Chilena
a história da antropologia brasileira a partir de si mesmos. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. (1998): O Trabalho do
Por exemplo, em escritos dos antropólogos ‘classicistas’ é Antropólogo. Editora UNESP/Paralelo 15, São Paulo &
virtualmente ignorada a antropologia produzida na Bahia Brasília.
desde o início do século passado, que teve expoentes CASSIRER, E., P. O. KRISTELLER & J. H. RANDALL
como Arthur Ramos e Nina Rodrigues. Outros, como Gilberto (ORGS.) (1948 [1969]): The Renaissance Philosophy of
Freyre, são relegados a uma certa ‘pré-história’ da Man. University of Chicago Press, Chicago.
antropologia, isto é, a um período anterior à DUMONT, L. (1970): Homo Hierarchicus. The Caste System
institucionalização de programas de pós-graduação em and its Implications. University of Chicago Press, Chicago.
antropologia no Brasil. A abordagem ‘classicista’ revela-se FERNIE, E. (1995): Art History and its Methods. A Critical
assim enquanto essencialmente acadêmica e conectada a Anthology. Phaidon Press, London.
tais programas de pós-graduação, um de cujos fundadores, MATTA, R. DA (1997): Carnavais, Malandros e Heróis.
Roberto Cardoso de Oliveira, é visto como ‘fundador de Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro. Editora Rocco,
linhagem’ de muito do que estou chamando aqui ‘abordagem Rio de Janeiro.
classicista’ na antropologia. No entanto, esta démarche me OLIVEIRA, A. DE (1998): A Invisibilidade Imposta e a
parece um tanto reducionista, ignorando muito do que é Estratégia de Invisibilização entre Negros e Índios: Uma
produzido em termos de antropologia no Brasil, tanto dentro Comparação, In Caroso, C & J. Bacelar (orgs.): Brasil: Um
quanto fora da academia. País de Negros? CEAO/EDUFBA, Salvador.
2
Para um tratamento da questão dentro da conformação OLIVEIRA, A. DE (2002): Fragmentos da Etnografia de
‘centro-periferia’, ver Cardoso de Oliveira (1998: 107-34) – uma Rebelião do Objeto. Indigenismo e Antropologia em
ainda que o autor afirme (p. 110) que “... os conceitos de Tempos de Autonomia Indígena.AnuárioAntropológico 1998,
periferia e de centro não possuem mais que um significado Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro.
geométrico ... sem, porém, implicarem em um quadro OLIVEIRA, A. DE, L.J. DE OLIVEIRA NEVES & P. SANTILLI
valorativo, isto é, de ‘boa’ ou ‘má’ antropologia...” (2001): Política Indígena no Brasil. Da Exclusão à Dialogia,
l’Ordinaire Latino-Americain, 184: 75-86, IPEALT, Toulouse.
PEIRANO, M. (1990): Os Antropólogos e suas Linhagens
Bibliografia (À Procura de um Diálogo com Fábio Wanderlei Reis). Série
ALMEIDA COSTA, J.B. (2001): Brejo dos Crioulos e a Antropologia, Departamento de Antropologia, UnB, Brasília.
Sociedade Negra da Jaíba. Novas Categorias Sociais e a PEIRANO, M. (1991): The Anthropology of Anthropology:
Visibilização do Invisível na Sociedade Brasileira. Pós, The Brazilian Case (Tese de Doutorado, Harvard University,
Revista de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Instituto 1981). Série Antropologia, Departamento de Antropologia,
de Ciências Sociais, UnB, Brasília. UnB, Brasília.
ARRUTI, J.M.A. (1997): A Emergência dos VIVEIROS DE CASTRO, E. (1986): Araweté. Os Deuses
‘Remanescentes’: Notas para o Diálogo entre Indígenas e Canibais. Editora Zahar, Rio de Janeiro.
Quilombolas. Mana. Estudos de Antropologia Social, Vol. 3,
No. 2, Universidade Federal do rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

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