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Título original: La città, publicado originalmente pela Pazzini Stampadore

Editore,VillaVerucchio (Rímini), 2004 (esta versão corresponde à quarta edicão de 2009)

Apresentação

Este breve texto nasceu de um seminário realizado no Centro Sant'Apollinare de Fiesole.A


gravação das confe-rências de Massimo Cacciari foi transcrita e editada, após trabalho atento e
demorado, por Tonino Nasuto, e de seguida revista pelo responsável do Centro. O texto
conserva intencionalmente um certo estilo «falado», exibindo, contudo, algumas dificuldades
resultantes da complexidade do tema, que por vezes parece entrar em contradição. Deve, por
isso, ter-se presente o que o autor dizia no início da sua exposição: «Desde as suas origens a
cidade é "investida" por uma ordem dupla de "desejos": desejamos a cidade como "seio",
como "mãe" e, em simultâneo, como "máquina", como "instrumento"; queremo-la "éthos", no
sentido original de morada e residência e, ao mesmo tempo, queremo-la um meio complexo
de funções; pedimos-lhe segurança e "paz" e, concomitantemente, pretendemos dela grande
eficiência, eficácia e mobilidade. A cidade vive sujeita a questões contraditórias. Querer
ultrapassar esta contraditoriedade é má utopia. É necessário, ao invés, dar-lhe forma. A
cidade, na sua história, é a perene experiência de dar forma à contradição, ao conflito.»

Capítulo

Pólis e civitas: a raiz étnica e o conceito dinâmico de cidade

Uma vez que não faz muito sentido falar de cidade em sentido geral, é bom começar por fazer
alguns esclarecimentos do ponto de vista histórico-terminológico. A cidade enquanto tal não
existe. Existem diferentes e distintas formas de vida urbana. Não é por acaso que o termo
«cidade» pode ser dito de diferentes maneiras. Por exemplo, em latim não existe termo
correspondente ao grego pólis. A diferença respeitante à origem da cidade é uma diferença
essencial. Quando um grego fala de pólis pretende, antes de mais, indicar a sede, a residência,
o lugar em que um determinado génos, uma determinada estirpe, uma gente (gens/génos)
tem as suas raízes. Em grego, o termo pólis remete de imediato para uma ideia forte de
enraizamento. A pólis é o lugar onde determinada gente, específica no que toca a tradições e
costumes, tem a sua sede, reside, onde tem o seu próprio éthos. Em grego, éthos é um termo
que indica a mesma raiz dolo termo latino sedes, e não tem nenhum significado unicamente
moral, como pelo contrário o termo latino mos. Os mores latinos são tradições, costumes; o
éthos grego — termo muito anterior a qualquer costume e tradição — é a sede, o lugar onde a
minha gente tradicionalmente mora, reside. E a pólis é precisamente o lugar do éthos, o lugar
que serve de sede a determinada gente. Esta especificidade ontológica e genealógica do termo
pólis não está presente no termo latino civitas. A diferença é radical, á que no termo latino
civitas, reflectindo bem, se manifesta a sua proveniência do termo civis, e os cives formam um
conjunto de pessoas que se reuniram para dar vida à cidade. Émile Benveniste, o grande
linguista indo-europeu, sublinhou muito bem este aspecto há já bastante tempo. Não existe,
portanto, madame la ville, assim como não existe monsieur le capital ou madame la terre.
Civitas é um termo que deriva de civis, portanto, de certo modo surge como produto dos cives
quando se reúnem num mesmo lugar e se submetem às mesmas leis. No grego, ao invés, a
relação inverte-se por completo, já que o termo fundamental é pólís e o derivado é polítes, o
cidadão. Note-se a perfeita correspondência entre a desinência de polítes e de civitas; mas, no
segundo caso, indica a cidade, no primeiro, o cidadão. Para os romanos a civitas é, desde
sempre, aquilo que é produzido pela reunião de várias pessoas sob as mesmas leis para lá de
qualquer especificidade étnica ou religiosa. Este é um aspecto absolutamente característico e
extraordinário da Constituição romana comparativamente à história das cidades gregas e
helénicas que a precederam. E é fundamental para compreender, de seguida, a força política
da história

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romana, a ênfase política — no sentido actual do termo —, que domina a história romana. Na
civilização grega, a cidade é fundamentalmente a unidade de pessoas do mesmo génos, e
portanto consegue-se perceber como a pólis, ideia que remete para um todo orgânico,
antecede a ideia de cidadão. Em Roma, pelo contrário, desde as origens — e o próprio mito
fundador romano o diz — a cidade é confluência, convergência de pessoas muito diferentes no
que toca a religião, etnias, etc., e que só concordam entre si em virtude da lei. É o grande mito
da Concórdia romana, que domina Tito Lívio e está na fundação da historiografia romana. Com
efeito, no primeiro livro da história de Roma Ab urbe condita,' esta concepção é evidente e, de
seguida, torna-se um tema fundamental da politologia e filosofia política europeias. O primeiro
deus a quem se ergue um templo em Roma é o deus Asylum. Roma é fundada pela obra
concordante de pessoas que haviam sido, inclusivamente, expulsas das suas cidades, ou seja,
por exilados, errantes, refugiados, proscritos, e que confluem para um mesmo lugar, fundando
Roma. Este aspecto domina a história romana: a ideia de cidadania não apresenta qualquer
raiz de natureza étnico-religiosa. É verdade que também existiam escravos, mas entre os
homens livres é-se cidadão independentemente da estirpe ou do credo. Este facto é único
quando comparado com a história das cidades gregas e helénicas anteriores a Roma. De
seguida, através da influência romana, esta concepção de cidadania difunde-se também
noutras cidades e por toda a bacia do Mediterrâneo, quando esta se torna romana. O percurso
termina com o famoso Édito antoniniano de Caracalla nas primeiras décadas do século ni d. C.,
1 Lívio,Tito, Ab urbe condita (versão em português: História de Roma, Editorial Tr1rt,14rit-r, T
ichnn rnna1 [N. rir,

12 em que todos os homens livres que habitam nos confins do Império se tornam cives
romani, sejam eles africanos, da Ásia Menor, espanhóis, gálios, e por aí adiante, independente-
mente de qualquer especificação étnico-religiosa. Antes da influência romana, e do seu
domínio, não encontramos nada disto: em nenhuma das poleis gregas, onde prevalece, ao
invés, o princípio «pertenço àquela pólis porque é nela que o meu génos está sediado». Como
é óbvio, não se exclui a possibilidade de estabelecer foedera, alianças entre as cidades, mas
cada uma delas (aspecto fundamental para compreender a história da Grécia) constitui
substancialmente uma realidade isolada por causa do enraizamento de estirpe e génos. A
consequência é o isolamento de cada pólís em relação às outras. Existem as olimpíadas, as
grandes festas, porém, as cidades gregas permanecem ilhas, e só por brevíssimos períodos se
conseguem federar devido à pressão de acontecimentos extremos particularmente dra-
máticos (por exemplo, no início do século v a. C. devido às guerras persas) ou porque uma
delas assume hegemonia, mesmo que breve, sobre as outras (a hegemonia ateniense dura
pouquíssimo e a espartana ainda menos). Existe, portanto, a impossibilidade das cidades
gregas poderem dar vida a unidades federadas mais amplas precisamente porque nenhuma
delas é uma civitas, nenhuma consegue absorver e integrar no seu seio elementos que lhe
sejam alheios. Aquele que na pólís é livre, mas não pertence ao génos, é um meteco, um
hóspede, categoria muito próxima da que tinham os judeus e os cristãos nas cidades muçulma-
nas. Alguns historiadores, com efeito, consideram que o direito de hospitalidade nas cidades
muçulmanas — motivo pelo qual elas se tornam, durante séculos, cidades

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verdadeiramente multiculturais e multirreligiosas na bacia do Mediterrâneo — fosse uma


consequência da institucionalização da hospitalidade presente nas cidades helénicas para o
estrangeiro livre, completamente tolerado e reconhecido na posse dos seus direitos pessoais,
das suas próprias tradições e livre de praticar o próprio culto, mas sem a possibilidade de
exercer direitos politicos. Encontramo-nos, assim, perante esta grande distinção que nos leva a
questionarmo-nos sobre o conceito de cidade: devemos dar-lhe um valor fortemente étnico
ou entendê-la no sentido de cívitas? Quando pensamos na democracia ateniense não
podemos esquecer que ela funcionava na base de uma ideia étnica e religiosa; mas na pers-
pectiva romana trata-se de um produto artificial: ou seja, é-se cidadão de pleno título, com
todos os direitos, simplesmente porque se concorda em viver submetido a determinadas leis e
a obedecer àquele regime: o termo concórdia tem esse significado. Naturalmente, a sede
Roma, a Urbs, apresenta um grande valor simbólico, mas do ponto de vista substancial tem um
significado diferente do de Atenas ou Alexandria. Roma é o centro do Império, onde estão as
grandes instituições políticas (o Senado, a República e, depois, o Imperador), mas nela não
habita uma determinada estirpe ou raça, que, enquanto tal, a domine; o seu primado não
advém de razões como as que faziam com que um ateniense considerasse Atenas como o
verdadeiro coração, o valor fundamental da Hélade. Outra ideia interessante, que nasce
precisamente neste contexto, é que a cidade é «móvel» na sua íntima essência. Um dos
epítetos mais significativos da tardo-romanidade é o de Roma mobilis, precisamente porque o
dinamismo

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presente no mito das suas origens permite-lhe imaginar e construir o seu mito através da
síntese dos mais diversificados elementos. Todo o esforço de Virgílio e toda a ideologia
augustana se baseiam na ideia das origens, e as origens de uma cidade são sempre a sua
potissima pars (como é dito no Códice de Justiniano), a parte mais forte, pois a origem é aquilo
que funda uma cidade. Mas as origens de Roma, tal como a ideologia augustana as representa,
estão precisamente na confluência de diferentes povos; os próprios latinos não são os inimigos
conquistados e submetidos. Zeus promete a Juno que os troianos serão sim, os vencedores,
mas depois serão eles próprios absorvidos pela língua e pelo nome dos latinos. É Eneias quem
vai ter com os etruscos para lhes propor uma aliança: é tudo uma confluência de elementos
diferentes, de tradições e línguas diferentes e é esta precisamente a civitas. Sob a égide de
uma mesma ideia, aliás, sob a égide de uma mesma estratégia (mais do que uma ideia
fundadora), porque o que junta estes cidadãos tão diferentes não é a sua origem, mas o fim
comum. A cidade projectada no futuro junta os cidadãos, não o passado da gens, não o
sangue. Estamos juntos para atingir um fim: eis o porquê de Roma mobilis. Tudo isto é
claramente afirmado no grande poema virgiliano. Mas qual é o fim a alcançar? A resposta é:
imperíum síne fine. De diferentes lugares, da Europa, da África e da Ásia conflui-se, em
concórdia, para permitir que Roma expanda as suas fronteiras: que o Império Romano não
tenha fronteiras espaciais nem temporais. Império não significa império de polícia, domínio
exercido pelas armas: em Virgílio, «Império sem fim» quer dizer que Roma deve dar as suas
leis ao mundo inteiro, à urbe toda; que a Urbs deve tornar-

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-se aquela que dita as leis, aquela que impõe a concórdia ao mundo inteiro submetendo-o à
lei. O pressuposto implíci-to nesta ideia é o de que aquilo que rege a civitas não é um
fundamento originário, mas um objectivo: vivemos juntos pois, através da concórdia produzida
pelas nossas leis, podemos almejar um grande fim, Roma mobilis. Não é isto mesmo que a
Igreja veio copiar? Esta é a grande e eterna construção do direito romano; por isto mesmo é
que os Padres da Igreja consideravam Roma providencial. A estrutura jurídica da Igreja é
essencialmente romana e não poderia deixar de o ser. É grandiosa a ideia de que aquilo que
nos congrega e reúne, não é nada de originário, mas apenas um fim. Que não é mais que a
«globalização»: fazer da orbis uma urbs, de maneira a que o círculo mágico que nas puleis
delimitava e aprisionava dentro dos limites da cidade coincida com o círculo do mundo, em
toda a sua dimensão espacial e temporal. Esta é a grande ideia romana, que já faz parte do
ADN do Ocidente, e dele não se pode extirpar, á que se tornou a ideia fundamental da teologia
política, implícita no espírito de missão, de evangelização. Esta mobilidade, naturalmente, só
pode ter êxito se for associada à ideia de civitas augescens, de cidade sempre em crescimento:
outro termo chave e emblemático sobre o qual, amiúde, me tenha debruçado com os amigos
romanistas, e que predomina na nossa linguagem e no nosso património cultural. Mas é um
termo inconcebível no contexto da pólis: ao lermos Platão e Aristóteles damo-nos conta que o
problema dramático era o de a pólis não se alargar em demasia; se se alargava demasiado,
como conseguiria man-ter-se enraizada no seu génos? Nas obras República e Leis de

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Platão, e na Política de Aristóteles o problema que emerge é o de como manter as


características espacialmente controláveis da pólis, caso contrário ruiria a concepção de pólis
que ambos defendem. Ao invés, a característica fundamental, programática da civitas é a de
crescer; não existe civitas que não seja augescens, que não se dilate, que não «de-lire» (a lira é
o sulco, sinal que delimitava a cidade, delírio significa sair da lira, ultrapassar os limites da
cidade). A civitas, portanto, é por sua natureza augescens, não é concebível para um romano
umá civitas que não «delire»! O critério fundamental do génos é inevitável na formação da
pólís, mesmo em Platão e em Aristóteles. Que a pólis seja formada por animais políticos
falantes é mais que óbvio, mas o lógos só pode ser grego. Os gregos, em toda a sua história,
são quase exclusivamente monolingues. O Império Romano, ao invés, é programaticamente
bilingue (este é um aspecto interessantíssimo, se o compararmos com o carácter cultural do
império americano, pelo menos no que se refere aos seus líderes). Na literatura grega, do
século i ao século vi d. C. não são citados quaisquer autores latinos, não são citados Virgílio,
Horácio, Ovídio ou Lucrécio: prática e substancialmente todos eles são ignorados. A cultura
grega continuava a considerar que o seu lógos —por pertencer, nos seus vários dialectos, a um
génos e o caracterizar— era, dada tal «radicação», dada a sua fusão com a própria «sedes»,
com o próprio éthos (no sentido acima referido), univer-sal dada tal «radicação». Ou seja, o
lógos tinha para os gregos um significado também ético, não era, de todo, um simples
instrumento para calcular e comunicar. Os helénicos não tinham qualquer ;rafia em madeira

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concepção instrumental da linguagem. A linguagem era o que os caracterizava enquanto


helénicos em comparação com os bárbaros. Não se podem separar os dois aspectos: de um
lado o éthos, do outro, o lógos. Um dos elementos fundamentais do éthos grego é a sua
linguagem, que tem aquelas características de medida, articulação e riqueza, que é a única
linguagem que os gregos, sobretudo no século v, sentem como capaz de parresía (o falar
franco, livre). O único lógos capaz de produzir diálogos, em que o elemento dialógico, do
convencimento, da persuasão, é fundamental. Nas outras linguagens sentia-se sobretudo o
timbre do comando, da tirania, do indistinto, como na grande terra asiática — espaço
geográfico do indistinto — não organizada em poleis autónomas, ciosas da sua própria
autonomia, dos próprios cultos, de que sentiam a especificidade. Havia, certamente, um
Olimpo comum, mas jamais compreenderemos o que quer que seja da mitologia grega se não
tomarmos consciência de que era localizada, «territorializada» a sua forma (quantos sepulcros
de Héracles existiam em toda a Grécia, e quantos os dos outros heróis?). A Grécia era isto:
uma família feita de distinções ciosas, de diferenças. E esta era a sua debilidade, tanto que o
milagre só durou até à guerra do Peloponeso. O Nómos, a lei — termo cuja raiz está ligada à
terra (nomós é a terra de pastagem) — é, como explicaram Carl Schmitt e muitos outros, a
repartição da terra. A lei é, na sua origem, aquele processo mediante o qual se reparte a terra,
a terra de pastagem. Divide-se a terra indistinta tendo como base um lógos. É claro que o
nómos ligado à terra deve espelhar uma justiça mais elevada: e este é o discurso dos filósofos
(Heráclito, Empédocles e outros), que, no entanto,

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o conjugam sempre em alternativa à sua pólis, aos seus concidadãos. Os filósofos políticos (o
empenhamento político da filosofia existe desde as origens, desde os Sete Sábios) intervêm na
pólis, mas sempre com intenções polémicas, já que a pólis não os escutava. E diziam que as
leis, os nómoi da cidade, devem ser imagem de Diké, para contrariar o facto de não o serem,
uma vez que estavam unicamente ligadas à terra. A morte de Sócrates foi o grande pecado da
pólis, a qual, para defender a sua Constituição material, condena o justo. O nómos da pólis aos
olhos do filósofo, — aos olhos daquele que diz: «escuta o lógos», «combina o nómos da pólis
com a Diké celeste» — era exclusivamente ligado à terra. Isto é o que acontece com os
filósofos até Platão durante dois séculos; por seu lado, Aristóteles vira página, fazendo uma
fenomenologia das Constituições políticas. Platão não é escutado, tanto que elabora a obra
República, como indicação suprema daquilo que a pólis deveria ser para funcionar de maneira
equilibrada e justa, indicação essa totalmente irreal em relação ao funcionamento da pólis
concreta. Por outro lado, a radicação na terra era uma referência simbólica fortíssima, pois o
génos e o lógos significavam aqueles mitos, aquelas tradições, aqueles costumes. Onde é que
os gregos aprendiam a ler e a escrever se não em Homero e em Hesíodo? O testemunho de
toda a filosofia grega é o de que a relação com a Diké cósmica é sempre incerta e
problemática. Acerca da raiz da palavra pólis diz-se tudo e mais alguma coisa. GiambattistaVico
afirmava que o termo tinha a mesma raiz que a palavra pólemos, guerra; o mesmo foi
defendido e repetido por Çarl Schimtt, e muitos outros

23 depois dele. É certo que a raiz de pólis, se é indo-europeia, indica a pluralidade e a


multiplicidade. Mas é de todo incerto que seja uma raiz indo-europeia, mediterrânica,
semítica, mesopotâmica ou acádica. É sabido que inúmeros termos gregos, toponímicos e não,
têm uma raiz não indo-europeia, mas mediterrânica, pelásguica e acádica. E, provavelmente
também nesta última, pois em acádico existem vários nomes com esta etimologia que indicam
cidadela, castelo, lugar fortificado.

A cidade europeia: entre lugar para morar e espaço de negotium

A perspectiva europeia desenvolve-se substancialmente não a partir da posição grega, mas da


romana. Nós, de facto, concebemos a cidade como lugar para onde as pessoas confluem ao
aceitarem e obedecerem a uma lei. O direito europeu desenvolve-se a partir desta ideia, que
procede tal e qual do direito romano. E não só o direito europeu, até a grande instituição
ocidental que é a Igreja é dominada por esta ideia. Tanto a cidade do homem como a cidade
de Deus não são de modo algum interpretadas segundo parâmetros de tipo étnico. A Igreja no
seu peregrinar, diz Santo Agostinho, acolhe todos no seu seio independentemente das
diferenças de etnia, língua e costumes. E, no entanto, esta posição levanta um grande proble-
ma do ponto de vista das modalidades do habitar. É como se trouxéssemos em nós a nostalgia
da polis, da cidade-lugar para morar; aspecto que entra em conflito com a tensão

25 para a universalidade. Nós achamos que a cidade para ter dimensões humanas deve, de
certa maneira, recordar a pólis. Quanta retórica sobre a polis, sobre a política, que vem de
polis (todos os políticos repetem este refrão). Queremos regressar a um espaço bem definido,
a um território bem delimitado que permite trocas sociais, relações sociais ricas e
participadas? Na polis tudo isto acontecia na base daquele critério não indiferente, que se
tende a esquecer, segundo o qual poucos eram aqueles que tinham poder de decisão nas
assembleias; quando eram muitos limitavam-se a alguns milhares na agora a trocar cargos
entre si, a tomar decisões livres (os homens livres que participavam em Atenas eram no
máximo cerca de 15.00o-20.00o). É esta a ideia de cidade que queremos cultivar, ou, pelo
contrário, queremos cultivar a grande ideia romana de uma cidade feita de gente diferente
que vem de todos os lados, que fala todas as línguas, que tem todas as religiões, mas uma só
lei, um único senado, um imperador e uma missão? Que referencial escolhemos: a origem ou o
fim, o vínculo à estirpe ou à lei? É este o dilema. Caso contrário, como é que se constrói a
comunidade? Através de simples pactos entre interesses diferentes, mediante armistícios,
tréguas, compromissos precários? Esta é a primeira questão a examinar. Existe uma segunda
tensão que caracteriza a nossa relação com a cidade; uma tensão que é mais específica da
cidade moderna. Quando se fala de cidade, nós que pertencemos às civilizações urbanas (os
primeiros testemunhos arqueológicos de vida urbana no ambiente mediterrânico remontam a
3500-4000 a. C.; portanto, só há cerca de 6.000 anos é que podemos falar de civilização urbana
com os seus ciclos, os seus apogeus e as suas crises) assumimos

26 sempre uma postura dupla e contraditória em relação a esta forma de vida associada: por
um lado, concebemos a cidade como lugar para nos encontrarmos e reconhecermos como
comunidade, um lugar acolhedor, um «seio», um lugar onde residir bem e viver em paz, uma
casa (a casa como ideia reguladora através da qual, desde as origens, nos aproximá-mos desta
revolucionária forma de vida associada); por outro lado, cada vez mais consideramos a cidade
como uma máquina, uma função, um instrumento que nos permite, com o mínimo
impedimento, fazer os nossos negotia, os nossos negócios. De um lado, a cidade como lugar de
otium, lugar de troca humana, seguramente efectivo, activo, inteli-gente, enfim, um lugar para
morar; do outro, o lugar onde desenvolver os negotia da maneira mais eficaz possível. Ou seja,
continuamos a pedir duas coisas diferentes à cidade. Mas isso é característico da própria
história da cidade: quando ela desilude em demasia e se torna unicamente negócio é então
que começa a fuga da cidade, como tão bem testemunha a nossa literatura: a arcádia, a
nostalgia de uma idade mais ou menos não-urbana; por outro lado, quando, ao invés, a cidade
assume realmente as caracterís-ticas da agorá, do lugar de encontro rico do ponto de vista
simbólico e comunicativo, então, imediatamente nos apres-samos a destruir este tipo de lugar,
pois contrasta com a funcionalidade da cidade como meio, como máquina. O que é que
aconteceu na história urbana dos últimos séculos? Entre os séculos xv e xx houve a destruição,
em nome da cidade instrumento, de tudo aquilo que na cidade anterior impedia este
movimento, obstaculizava as dinâmi-casdos negotia. Em todas as cidades europeias, de manei-
ra sistemática e programática, de maneira mais ou menos

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violenta, aconteceu isso. Em Itália aconteceu menos do que noutros sítios, apesar de tudo; e
não porque amássemos mais o nosso passado, mas tão-somente porque tivemos um
desenvolvimento tardio e, portanto, a violência do impacto da indústria-mercado sobre a
cidade antiga foi mais lenta do que noutros países. Antes de discutirmos as escolhas
urbanísticas devemos, por isso, pôr-nos a questão: o que é que pedimos à cida-de? Pedimos
que seja um espaço no qual todo o tipo de obstáculo ao movimento, à mobilidade universal, à
troca, se reduza ao mínimo, ou pedimos-lhe que seja um espaço em que existem lugares de
comunicação, lugares fecundos do ponto de vista simbólico, onde se dê atenção ao otium?
Infelizmente, pedem-se ambas as coisas com a mesma intensidade, só que elas não podem ser
pedidas em simultâneo e, portanto, a nossa posição relativamente à cidade surge, cada dia
mais, literalmente, esquizofrénica. Isto não significa que seja uma posição «desesperada»,
aliás, é muito fascinante pois pode surpreender-nos a cada instante. É uma contradição de tal
maneira aguda que pode mesmo ser a premissa de uma nova criação. Foi o que aconteceu na
dissolução da forma urbana do mundo antigo: a dissolução radical dessas formas deu vida ao
novo espaço urbano continental europeu, mediante instituições que jamais alguém poderia ter
imaginado ou inventado (novas ideias de direito, novas relações de domínio, novas formas de
comunidade, por exemplo, a monástica, que foi fundamental na promoção de novos modelos
de desenvolvimento urbano). Talvez esta nossa pergunta tão violentamente contraditória
produza soluções criativas, que não estejam em
28 continuidade com a história passada. Convido sempre os urbanistas e os arquitectos a
raciocinarem nestes termos, não em termos de conservação — tentando desesperadamente
recortar pedacinhos de agorá —, ou de autorização acrítica da mobilidade universal, que são
modos de conce-ber os opostos como faces da mesma moeda, já que o futurismo e o
conservadorismo total sempre se acompanharam reciprocamente em tudo, na urbanística, na
arte, na política, por todo o lado. É necessário, ao invés, partir da contraditoriedade desta
questão e procurar valorizá-la enquanto tal, fazendo-a eclodir. É melhor fazer projectos de
arquitectura e urbanística que ponham em evidência, para o público, o carácter contraditório
típico da pergunta que o mesmo público levanta, sem esconder e mistificar esta situação, sem
julgar conseguir ultrapassá-la com a fuga para a frente ou regressando ao passado de Atenas.
Nunca mais existirá agorá.

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Capítulo 3

O advento da metrópole

Nos dias que correm ainda se pode falar de cidade? Em Itália, num ou noutro caso, talvez
ainda seja possível. No caso de Florença, por exemplo. Mas nos casos de Milão, Roma, Nápoles
e Palermo é dificil fazê-lo. As metrópoles tardo-antigas, Roma mobilis, a Urbs, que «de-lira» a
partir do seu sulco, tem muitas características comuns com quanto direi de seguida. A história
europeia das cidades até ao período barroco mostra uma cidade que, ao invés, e de certa
maneira, se assemelha à do palácio de Siena, descrito no fresco de Ambrogio Lorenzetti da
Alegoria do bom governo: é uma cidade em que está presente o elemento de comunhão e de
comunicação; existe também o elemento mítico (certamente nessa cidade havia conflitos,
causados na sua maioria pela proximidade como factor de inimizade), mas a sua forma
prevalecente é a da partilha comunitária dos espaços. Essa cidade é destruída pelo ímpeto
simultâneo da indústria e do mercado e, assim, surge a metrópole, a Grofistadt, dominada
pelas duas «figuras» chave, os dois corpos que a regulam: a indústria e o mercado. Na cidade
medieval, a catedral e o palácio do governo ou o palácio do povo são presenças chave. Do
mesmo modo, na cidade moderna as presenças chave são os lugares da produção e os das
trocas. Tudo se organiza em torno destas presenças como factores capazes de atribuir
fecundidade simbólica ao todo global da cidade. Mas ao mesmo tempo, a cidade organiza-se e
regula-se em redor destes momentos; é em torno deles que se institui a urbanística, que se
elaboram intervenções de programação desses factores dominantes que permitem, enquanto
«valores partilhados», resolver a «equação». Sabe-se, com efeito, que a indústria tem deter-
minadas exigências quanto ao local, implica determinadas funções —habitacionais, antes de
mais— que devem ser organizadas de uma certa maneira, com determinada tipologia de
edifícios. Deste modo, o espaço organiza-se em redor destes corpos relativamente conhecidos,
rígidos, fixos. No campo da física dir-se-ia que são «corpos galileianos» de referência. E a
metáfora não é extemporânea, á que o próprio Einstein nos convida a raciocinar — tendo por
base uma metáfora acerca da história da cidade — sobre uma relatividade restrita e uma
relatividade geral: e a primeira é a que diz que os corpos de referência permitem métricas, que
dizem respeito à totalidade do sistema. A evolução no sentido da metrópole foi possível
porque o ponto de partida da cidade europeia não foi a pólís grega, mas a civitas romana. A
nossa ideia de cidade é totalmente romana, é civitas mobilis augescens, facto fundamental
como demonstra a história das transformações urbanas, das revoluções políticas que têm a
cidade como centro, ao contrário de outras cidades, onde afirma urbis se modificou precisa-•
mente por influência, ou melhor, pelo assalto da civilização ocidental. As civilizações urbanas
da antiguidade que • conhecemos são riquíssimas, mas estáveis nas suas formas:

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todas demonstram estarem ligadas à terra, quer as grandes cidades mesopotâmicas quer
aquelas orientais (Quioto, Xangai, Pequim eram megalópoles quando Londres e Paris eram
aldeias, porém, as formas permaneceram relativamente estáveis durante séculos). As incríveis
revoluções da forma urbis são consequência da abordagem à cidade resultante da civitas
romana. As formas urbanas europeias ocidentais são consequência das características da
civitas. A cidade contemporânea é a grande cidade, a metrópole (este é, com efeito, o traço
característico da cidade moderna planetária).Toda a forma urbis tradicional foi dissolvida.
Outrora, as formas de cidade eram absolutamente diferentes (vejam-se as diferenças entre
Roma, Florença e Veneza). Agora, só existe uma forma urbis, ou melhor, um processo único de
dissolução de toda e qualquer identidade urbana. Este processo (que, como veremos, atinge o
seu ponto alto na cidade-território, na cidade pós-metropolitana) tem a sua origem na
afirmação do papel central que o nexo lugar de produção e mercado representa. O sentido da
relação humana reduz-se a produção-troca-mercado. Aqui todas as relações se concentram e,
assim, todos os lugares da cidade são vistos, projectados, projectados de novo, trans-formados
em função destas variáveis fixas, do valor delas. Lugares simbólicos são estes e mais nenhuns.
Desaparecem os lugares simbólicos tradicionais, sufocados pela afirmação dos lugares de
troca, expressão da mobilidade da cidade, do Nervenleben, da vida nervosa da cidade. As
novas construções são maciças, dominam, são um estorvo físico, são grandes contentores
(imaginem-se as grandes arquitecturas das típicas cidades industriais, o fascínio que por todo o
lado exerce a arquitectura-fábrica), cuja essência consiste,

32 no entanto, em serem móveis, em dinamizarem a vida. São corpos que produzem uma
energia mobilizadora, desestabi-lizadora, desenraizadora. Estas presenças dissolvem ou põem
entre parêntesis as presenças simbólicas tradicionais que, de facto, se reduzem ao centro
histórico. É assim que nasce o «centro histórico»: enquanto a cidade se desenvolve, agora, em
conformidade com as presenças de produção e de troca — dominantes e centrais —, a
memória torna-se museu e cessa, assim, de ser memória, pois a memória tem sentido quando
é imaginativa, recreativa, caso contrário, trans-forma-se numa clínica onde pomos as nossas
recordações. Acabámos por «hospitalizar» a nossa memória, tal como as nossas cidades
históricas, ao fazermos delas uns museus.

33

Capítulo 4 A cidade-território (ou a pósmetrópole)

Hoje estamos numa fase seguinte. Enquanto nas metrópoles estas presenças ainda
estruturavam o espaço, criando escalas que se podem reconhecer na dialéctica centro-
periferia, sendo critérios dominantes da urbanística clássica dos séculos xIx e xx (as diferentes
funções produtivas, residenciais e terciárias), hoje esta possibilidade foi simplesmente ultra-
passada. A cidade-território impede toda e qualquer forma de programação deste género.
Estamos, agora, na presença de um espaço indefinido, homogéneo, indiferente nos seus
lugares, onde se dão acontecimentos que se baseiam em lógicas que já não correspondem a
um desígnio unitário de conjunto. E estes acontecimentos, enquanto tais, modificam-se com
uma rapidez incrível: a fábrica não era certamente a catedral, não tinha a estabilidade dos
velhos centros da forma urbis, mas ainda assim tinha uma certa estabilidade. Agora, a rapidez
das transformações impede que no âmbito de uma geração se conservem memórias do
passado. Isto implica que, agora, vivamos numa situação em que casa

34

e não-casa estejam interligadas, morada e não-morada sejam duas faces da mesma moeda.
Este processo, embora tenha o seu centro propulsor no Ocidente, atinge agora todos os
continentes. Em 195o, havia 83 cidades em todo o mundo com mais de um milhão de
habitantes, so das quais estavam em países industrializados. Hoje, as cidades com mais de um
milhão de habitantes são 30o e a maioria delas está em países pobres. Em 2015 teremos 33
cidades acima dos 20 milhões de habitantes, e 27 delas pertencem a países pobres. Qual a
configuração delas? Extrapolando da situação actual, seria demasiado fácil prevê-lo:
vastíssimas áreas indiferenciadas do ponto de vista arquitectónico, a regurgitarem de funções
de representação, financeiras, de governação, cercadas por áreas periféricas residenciais,
«guetizadas» umas em relação às outras, áreas comerciais de massa, «resquícios» da produção
manufactureira. O todo relacionado por «acontecimentos» ocasionais, fora de qualquer lógica
urbanística e administrativa. A «casa», para a grande massa, é a do mini-apartamento
padronizado. Como dizia uma publicidade no Senegal: «Comprem as nossas casas pequenas,
poderão viver nelas com a mulher e o filho, e finalmente poderão recusar hospitalidade aos
parentes quando vêm do campo.» Estas periferias para as classes médio-baixas-burocráticas,
que é um dos aspectos mais inauditos dos países subdesenvolvidos (em África as burocracias
públicas empregam dez vezes mais pessoas do que as que empregavam durante o período
colonial) são a consequência do processo de mega-urbani-zação daquelas zonas, porque
destruíram recursos e culturas locais e multiplicaram burocracias. Este é o plano destes
territórios: de um lado, centros directivos, representativos,

35

terciários, à maneira ocidental; do outro, periferias populares, à maneira ocidental, que


atingem a degradação em apenas poucos anos; ou seja, as bidonvilles, os bairros de lata. Outro
modelo é o da cidade única, como no Japão, onde ao longo da costa não existe solução de
continuidade desde o norte até Hiroxima. Aí, a cidade coincide totalmente com o território.
Não existem dúvidas de que o território em que habitamos representa um desafio radical a
todas as formas tradicionais de vida comunitária. O desenraizamento que produz é real. Todas
as formas ligadas à terra tendem a dis-solver-se na rede das relações temporais (ver mais à
frente). Mas para isso é necessário que o espaço assuma precisamente o aspecto de uma
forma a priori, equivalente e homogéneo em todos os seus pontos, ou seja, que desapareça a
dimensão de lugar, a possibilidade de definir lugares dentro do espaço, ou de caracterizar este
último segundo uma hierarquia de lugares simbolicamente significativos. Ora bem, será
possível viver sem um lugar? Será possível habitar onde não existem lugares? O habitar não
tem lugar lá onde se dorme e, por vezes, se come, onde se vê televisão e se diverte com o
computador de casa; o lugar do habitar não é o mero alojamento. Só uma cidade pode ser
habitada; mas não é possível habitar a cidade se ela não se dispuser a ser habitada, ou seja, se
não «der» lugares. O lugar é o sítio onde paramos: é pausa — é análogo ao silêncio de uma
partitura. Não há música sem silêncio. O território pós-metro-politano ignora o silêncio numa
partitura; não nos permite parar, «recolher-nos» no habitar. Ou seja, não conhece, não pode
conhecer distâncias. As distâncias são o seu inimigo. Cada lugar, no seu seio, parece destinado
a encolher-se, 36 a perder intensidade até se tornar em nada mais que lugar de passagem, um
momento da «mobilização» universal. Vives numa cidade que é casa e não é casa, em que
estás e não estás, que experimentas como contradição. Quais as consequências? Enfrentar o
problema com a ideia de restaurar lugares, no sentido tradicional do termo, é um modo
regressivo e reaccionário. Ou então, pode-se aplaudir o processo e dizer «que belo!» à sua
dinâmica, ao movimento de dissolução, prepotentemente em acto, dos lugares. «Agora,
vivemos no antiespaço; estabelecemo-nos no ciberespaço; temos que imaginar a nossa casa
como tendo sensores» (são palavras do arquitecto americano William J. Mitchell no seu livro
City of bits);2 mas este futurismo informático é a outra face da postura conservadora
reaccionária, que anseia pela restauração da agorá e da pólis. Dar forma a esta contradição de
maneira a conseguir vivê-la e compreendê-la, e não apenas ser vítima dela, é um problema.
Um problema teórico que deve ser enfrentado. Continuando nós a ser lugares, como podemos
não querer lugares? Porém, os lugares desejáveis já não podem ser os da pólis nem sequer os
das metrópoles industriais. Têm que ser lugares onde as características da mobilização
universal conseguem estar representadas.

O corpo e o lugar

Mas por que é que precisamos de lugares? Por causa de • algo que diz respeito à nossa
dimensão fisica mais primitiva. -13 ".5 • Refiro-me à phYsis no sentido mais próprio (fisica vem
de phYsis, que é a natureza). Será concebível um espaço-sem-

45

-lugar sendo verdadeiro, como é verdade, que aquele lugar absolutamente primeiro, que é o
nosso corpo, «resiste»? Como resolver este lugar no contínuum temporal? Ou como reduzi-lo
a uma função meramente dependente do seu desenvolvimento? Se somos lugar, como
podemos não buscar lugares? A filosofia do território pós-metropolitano parece exigir a nossa
metamorfose em almas puras, ou em pura dynamis, energia intelectual. Talvez a nossa alma
seja realmente a-oikos, sem casa, tal como o giros platónico, mas... o nosso corpo, a razão do
nosso corpo? E o próprio nómada não terá nada que ver com o lugar? Passa de um lugar para
o outro, não se detém em nenhum—mas conhece sempre novos lugares. E o que
representavam os seus grandes tapetes se não a casa, o lugar da sua casa, que o seguia por
todo o lado e no qual habitava? Pode ser que se chegue a um ponto — como já aconteceu com
as «profecias de ficção científica» — em que o nosso corpo pode ser transmissível como
qualquer outra informação. Então, porventura, o problema da sua razão específica, e portanto
do lugar e do habitar, será «resolvido». Mas esse homem será realmente além-homem em
tudo e para tudo? Podemos imaginá-lo em «transmissão» perene ou terá, pelo contrário, a
certa altura, que «pôr os pés na Terra»? Será permanentemente insone o peregrino, como as
almas em voo em redor do Poeta no Paraíso, ou terá que parar para descansar? E onde? Em
estações de «recarga»? Em distribuidores de energia? Ou noutros lugares? Mas quais? É
evidente que este homem jamais conseguirá reconhecer como seus os lugares dos antigos
espaços urbanos, nem sequer os das antigas metrópoles. Eis, então, o grande e fascinante
problema que têm que enfrentar todos aqueles que, com consciência crítica46

e filosófica, abordam a perspectiva do território pós-metro-politano sob os vários aspectos


administrativos, urbanísti-cos, arquitectónicos. Nenhuma nostalgia reaccionária da «bem
fundada» terra da Urbs; nenhuma vontade nostálgica de restaurar-recuperar os lugares da
antiga cidade: isso daria apenas lugar a vernáculos «localistas», a uma Heimatkunst, uma arte
regional vazia e insensata. Mas também nenhuma «fuga para o futuro», nenhuma ideologia
futurologista! Semelhante tendência faz da arquitectura um mero jogo formal, fá-la perder
toda a potência construtiva, toda a seriedade e responsabilidade. Que fazer, então? No espaço
metropolitano subsistia ainda uma precisa hierarquia entre edificios ou «contentores», que
desempenhavam a função de corpos de referência. O «relógio» destes corpos ritmava a
métrica do conjunto. A urbanística contemporânea sempre se orientou, mais ou menos,
segundo a linha que eles garantiam, tentando racionalizar a utilização do espaço nessa base.
Todo o corpo-edifício de referência é chamado a desempenhar uma tarefa definida, tem
qualidades e propriedades específicas. Deste ponto de vista, o espaço metropolitano não
difere substancialmente do espaço urbano — a não ser pelo facto de transcender todos os
velhos limites, lançando-se ao longo das directrizes do seu movimento. São estas as
contradições que obrigam a ir além da metrópole. De um lado, a essência da metrópole
consiste em irradiar-se num espaço como pura forma a priori; do outro, este seu irradiar-se é
constantemente contrariado pela «gravidade» dos corpos de referência que a ocupam. Para
estar à altura desta tarefa urbanística é preciso enfrentar, ou pelo menos identificar, um
problema filosófico

47

fundamental: é possível a eliminação do espaço enquanto formos corpos? Pedimos ao mundo


externo que se dissolva num mundo virtual, enquanto continuamos a ser o lugar do nosso
corpo, alguns milhares de moléculas que nos compõem e que têm determinada forma
espacial. Como podemos fazer conviver o lugar que somos com a eliminação externa de todos
os lugares? Problema essencial. Poderíamos fazer ficção científica inteligente à maneira de
Philip K. Dick: assim que conseguisse transmitir-me a mim mesmo como um fax ou como um e-
mail, o problema ficaria resolvido. Se pudéssemos tratar o nosso corpo como uma informação
entre outras, o problema ficaria resolvido, dado que agora dominamos a informação, somos
capazes de a manipular e transmitir. Mas não é o que está a acontecer? Porventura, a ciência
médica não está a tratar o corpo como um conjunto de informações? Muita gente fala de
biopolítica, de um tratamento da vida baseado em perspectivas e aparatos técnico-políticos. E
isto, longe de ser ficção científica já é realidade (a ficção científica é uma ideia-limite, uma
ideia reguladora); esta perspectiva está nos factos: técnica e politicamente o nosso corpo já é
tratado como um conjunto de informações. Temos que analisar este paradoxo filosófico e
estético. A energia que o território pós-metropolitano liberta é essencialmente
«desterritorializante», anti-espacial. É certo que se pode afirmar que este processo já se
iniciou com a metrópole moderna, mas só hoje tende a exprimir-se na sua plenitude. Toda a
métrica espacial é sentida como obstáculo a ultrapassar. A ideia reguladora é cada vez mais
uma «anjópolis» absolutamente desenraizada. Esta é também48

a ideia reguladora, ou a filosofia de base, das tecnologias informáticas; para as quais, aliás, a
superação do vínculo espacial não é mais que o primeiro passo na direcção da superação do
vínculo temporal, ou seja, na direcção da possibilidade de uma forma da comunicação deveras
completamente angélica (com efeito, os anjos compreendem-se reciprocamente sem qualquer
mediação, no «imediatismo» do simples pensar). Semelhante forma de comunicação torna o
espaço perfeitamente indiferenciado e homogéneo. Deixa de apresentar qualquer
«densidade» particular, qualquer «saliência» significativa. E naturalmente o efeito desta sua
eliminação consistirá na perfeita transparência e fiabilidade das informações. De facto, se as
informações já não encontram qualquer obstáculo, se já não tiverem que ser «transportadas»,
não serão vítimas de desentendimentos ou equívocos. O mito ou a ideologia da perfeita
«desterri-torialização» faz-se acompanhar pelo mito de uma forma imediata de comunicação,
ou melhor pela total eliminação do desentendimento dissolvendo-se no entendimento. Mas
infelizmente, o espaço vinga-se desta vontade de ubiquidade! Vinga-se de duas maneiras:
antes de mais, no sentido de já não nos movermos nas cidades, por problemas de trânsito
(sim, todos os dias somos obrigados a descobrir que ainda somos corpos e que nos
movimentamos com meios que ainda são corpos que não se podem compenetrar: a ilusão de
que mediante as tecnologias informáticas as nossas exigências de movimento fisico seriam
reduzidas está substancialmente a revelar-se pura ideologia, pois quanto mais cresce a
velocidade de informação, mais aumenta, parece, o desejo de movimento fisico e de
ubiquidade). O espaço vinga-se, então, imobilizando-nos nas cidades.

49

Mas vinga-se, também, de outra maneira: as arquitecturas que se fazem por todo o lado
contrastam radicalmente este desejo de movimento e de «espiritualização» resultando,
amiúde, num peso monumental único. Constroem-se corpos muito rígidos, que estorvam,
monovalentes. A arquitectura tem uma aspiração, paradoxal e patética, devido ao simbolismo
do edificio (em Berlim é possível ver, para lá da qualidade específica de cada contentor
individual, o triunfo da ênfase e da monumentalidade, como se quisessem fazer a nova
Acrópole ou o Parlamento americano típico dos finais do século xviii). A linguagem
arquitectónica, independentemente da qualidade deste ou daquele arquitecto, quando
intervém à escala urbana, fá-lo com uma filosofia que contradiz totalmente esta tendência
para a mobilização universal. Quando muito fizeram-no os mestres de há algumas gerações,
que haviam concebido edificios realmente transparentes, «passagens». Mas isto acontece por
uma razão essencial: a exigência de presenças fortes, significativas e simbólicas no território
pós-metropolitano é indicador de uma exigência psicologicamente insuperável, que todavia
entra em conflito com a da ubiquidade.

Espaços fechados e espaços abertos

Este problema foi abordado, mas as respostas continuam a ser desadequadas. A existência
pós-metropolitana continua «congelada» em espaços fechados. Aos contentores tradicionais
juntaram-se outros, mas com a mesma lógica. Os contentores são dispostos segundo ordens e
motivações diferentes das que presidiam à organização metropolitana, 50
mas não deixam de ser contentores. Aumenta a ocasionalidade, o aparente arbítrio da sua
colocação, mas a sua qualidade é sempre a mesma: cada qual tem propriedades relativamente
fixas, estáticas. Continua a ser um «corpo» de referência, ou a pretender sê-lo (sempre com
maior esforço, já que na indiferença do território é agora impossível sobressair realmente).
Multiplica-se, então, a ênfase, a retórica do contentor, e quanto mais esta aumenta, mais
ressalta a sua pobreza simbólica. A persistência destes espa-os fechados, a resistência que
estes «corpos» exercem ao desenrolar-se da vida pós-metropolitana, é cada vez mais
claramente intolerável. Espaço fechado, não é, naturalmente, apenas o edificio definido na
base de uma função, ou de uma única «propriedade»; é-o, e mais ainda, o bairro «resi-
dencial»; espaços fechados são os parques de diversão, onde o próprio divertimento se torna
«crónico», como a doença nos hospitais, a educação nas escolas ou nos campus, a cultura nos
museus e nos teatros. O fenómeno é particularmente evidente na evolução da cidade
americana, mas é-o um pouco por todo o lado. Perante a intensificação, talvez insustentável,
desta vida nervosa e na impossibilidade de encontrar lugares no espaço-tempo do território,
quem pode vive uma parte do seu dia nesta mobilização universal e, depois, foge para aquelas
que os sociólogos americanos chamam gated communities (comunidades fechadas). Fechamo-
nos num sítio qualquer, fechamo-nos à noite, assim que os rendimentos o permitem, num
lugar-prisão. Quanto mais fisiologicamente in-secura é a vida na cidade-território, mais se
procura o sine-cura impossível da «morada». Em Itália só estamos no começo, ainda existem
poucos

51

exemplos deste fenómeno, mas nos EUA é prática comum. Os ricos abandonaram Manhattan,
vão para as localidades de New Jersey e passam as noites, como num fortim, a ver televisão. E
no dia seguinte voltam a mergulhar no trânsito metropolitano: a vida deles é assim. Esta
necessidade de comunidades fechadas provavelmente responde a uma exigência profunda da
nossa psique, uma vez que não é fácil viver na mobilização universal, viver numa métrica
simplesmente temporal. Mas a contradição é evidente: se o espaço fechado diz, por um lado,
necessidade de comunidade, por outro, diz necessidade de privacy: quer no que toca ao estilo
de vida quer no que respeita à concepção e prática do direito. Como podemos falar de cidade,
tentando dar a este termo uma valência comunitária, se a cidade é regulada por formas de
direito privado? Se assim é, então é apenas um conjunto de pessoas que cruzam relações na
base do interesse recíproco, como empresas que se relacionam mediante contratos
comerciais. E que a teoria do direito público se esteja a reduzir à forma contratual é, agora, um
processo inevitável. Porém, levanta um grande problema, porque então a nossa não é uma
pólis ou uma civitas, mas, como dizia Platão, uma sinoiquia, uma coabitação. Somos pessoas
indiferentes umas para as outras, mas que coabitam; regulamos as nossas relações na base do
direito privado. Mas sendo assim, quer dizer que nos «movemos» no contexto de algo que nos
obstinamos a chamar cidade, mas «moramos», habitamos num condomínio. Estaremos neste
ponto? Há quem diga que a indiferença do condomínio é um mal menor, já que lá onde
existem vínculos fortes, simbólicos, acabamos sempre por entrar em

52 guerra; no condomínio, no máximo, podem acontecer meras rixas. Na raiz do condomínio


só existe a pluralidade, enquanto na da cidade existe, provavelmente, também polemos, a
guerra. Enfim, as guerras civis são mais frequentes nas cidades do que nos condomínios.
Sempre é um sinal de esperança...

O território indefinido

«Aonde é que nós habitamos, hoje?» questionam-se os mais perspicazes. Habitamos nas
cidades? Não, habitamos em territórios. Onde termina uma cidade e começa outra? As
fronteiras são meramente administrativas e artificiais, não têm qualquer sentido geográfico,
simbólico ou político. Habitamos em territórios indefinidos, e as funções distribuem-se no seu
seio, para além de qualquer lógica de programação, para lá de qualquer urbanística; localizam-
se consoante os interesses especulativos, a pressão social, mas não segundo um desígnio
urbanístico, que, mesmo nos grandes mestres da urbanística, provinha precisamente do facto
de se poder raciocinar na base daquelas funções fundamentais. Mais do que desaparecidas,
tais funções difundiram-se e disseminaram-se: a desindustrialização, o fim daquelas presenças
produtivas com o seu carácter maciço, produziu não o desaparecimento da produção, mas o
facto de ela já não estar concentrada em determinados espaços, mas por todo o lado, tendo-
se disseminado. Até as funções de troca estão por todo o lado. É verdade que ainda existem
polaridades neste «espaço»; que ainda existem actividades que podemos definir «cen-trais» e
que orientam.ern'seu redor as formas de ligação,

53

a mobilidade, etc. Mas estas polaridades cada vez mais se podem organizar por todo o lado. Os
acontecimentos produzidos pelas decisões de investimento produtivo, comercial,
administrativo, etc., podem localizar-se, agora, sem terem em conta os eixos tradicionais de
expansão da cidade. Os papéis de centro e de periferia podem substituir-se recíproca e
incessantemente; e esta troca recíproca ocorre ocasionalmente ou então, ocorre na base de
lógicas mercantis e especulativas, que rejeitam toda e qualquer «grelha» predefinida de
funções. O território continua a «especializar-se», mas fora de qualquer projecto global. É, de
facto, a morte de todas as «codificações» do movimento moderno, do seu pensar a cidade
como agregação sucessiva de elementos, desde a habitação ao edifício, ao pólo funcional, à
cidade inteira como «contentor de contentores». É a morte da tipologia abstracta. Que
significa isto? Será necessariamente o fim de toda a «forma» comunitária, ou um processo de
libertação dos vínculos que a caracterizavam? É uma excitação dos «espíritos animais» do
sistema, ou o processo acena a um intelecto geral capaz de «recuperar terreno» em formas
diferentes das do passado, livre de todo o enraizamento ligado à terra, fixo? Por outras
palavras, o território pós-metropolitano é a negação de toda a possibilidade de lugar ou é
possível «inventar» lugares próprios do tempo em que a vitalidade deles parecia ser-lhes
negada? A cidade está em todo o lado; ergo, a cidade já não existe. Já não habitamos em
cidades, mas em territórios (dá-me vontade de usar uma etimologia errada! Território vem de
terreo, ter medo, sentir terror). A própria possibilidade de fixar limites à cidade parece, hoje,
inconcebível, ou

54
melhor, reduziu-se a uma questão puramente técnico-administrativa. Chamamos cidade a esta
«área» por razões absolutamente ocasionais. Os seus limites não são mais que um mero
artificio. O território pós-metropolitano é uma geografia de acontecimentos, uma activação de
ligações, que atravessam paisagens híbridas. O «limite» do espaço pós-metropolitano só é
dado pela «fronteira» da rede de comunicações; à medida que a rede se alarga podemos dizer
que estamos a «sair» da pós-metrópole, mas é evidente que se trata de uma «fronteira» sui
generis: só existe para ser ultrapassada. Encontra-se num estado de crise perene. Neste
sentido, pode-se dizer, com uma fórmula paradoxal, que vivemos num território
desterritorializado. Habitamos em territórios cuja métrica já não é espacial; já não existe
qualquer possibilidade de definir, como para a metrópole antiga, os percursos de difusão ou
«delírio» segundo eixos espaciais precisos (aqui o centro, ali a periferia). O modelo de
irradiação a partir do centro, segundo determinados eixos, previa que à medida que se saía do
centro, ao longo de vias bem definidas, quase canais antigos, se encontravam as funções
residenciais, industriais, etc. Esta lógica, típica da organização urbana e metropolitana, deixou
de ter validade. As mesmas funções podem ser encontradas por todo o lado, sobretudo, se se
acentuar o grande problema da reutilização dos velhos espaços industriais; podem encontrar-
se, então, funções riquíssimas e centrais na antiga periferia (veja-se o caso da Pirelli em Milão,
onde pode surgir... o Scala!). Toda a métrica tradicional passou de prazo. Não há nenhum
desígnio urbanístico em base ao qual se faça o Scala na cidade de Sesto San Giovanni;
casualmente determinou-se ali um vazio ,que tinha que ser preenchido

55

e surgiu a ocasião para o fazer; no futuro poderá ser preenchido por um supermercado, por
escritórios, por uma universidade e por aí adiante. Não se sabe, não se pode saber, não é
predizível o que vai acontecer para preencher aquele vazio. O desenvolvimento da cidade de
metrópole para território não pode, portanto, ser programado: é este o drama de todos os
arquitectos e urbanistas. A dificuldade não depende da incapacidade deles ou da vontade
política dos administradores, depende da impossibilidade de programar. Até porque ultrapassa
qualquer limite administrativo; os limites administrativos são todos fictícios, artificiais, mas
continuam a existir, e isso torna ainda mais impossível uma séria programação, uma vez que
não é dado saber ou calcular de modo algum onde, por exemplo, terminam os limites de
Florença e onde começa Scandicci. A perda de «valor simbólico» da cidade cresce em pro-
porção; assistimos, ou temos a impressão de assistir, a um desenvolvimento sem meta, isto é,
literalmente, insensato, a um processo que não apresenta nenhuma dimensão «orgânica». E,
com efeito, a metrópole do intelecto abstracto, unicamente dominado pelo «fim» da produção
e da troca de mercadorias. É absolutamente «natural» que o «cérebro» de semelhante sistema
considere cada elemento espacial um obstáculo, um resquício inútil, um resíduo do passado
que deve ser «espiritualizado» ou «volatilizado». Mas ao mesmo tempo, e pela mesma razão,
esse facto produz a impossibilidade de programar o conjunto. Sobre os nexos entre as partes,
sobre a lógica das relações, que é o essencial, ninguém é soberano. Domina o jogo por
definição imprevisível dos interesses privados. A «ocupação» do território já não 56 conhece
nenhum nómos (já que nómos, lei — não o esque-çamos-- significa, na origem, divisão,
repartição de um determinado território ou «pastagem» [nomós]).

Espaço e tempo
Quem esteve em Tóquio, São Paulo ou Xangai sabe que não faz qualquer sentido falar de
cidade. São territórios, e nós moramos em territórios cuja métrica já não tem qualquer sentido
espacial, mas quando muito unicamente temporal. Fazemos todas as nossas contas em base
ao tempo, não ao espaço; já ninguém pergunta a que distância fica determinada cidade, mas
quanto tempo demora a chegar lá. O espaço tornou-se apenas um obstáculo. Claro, ele vinga-
se das nossas métricas temporais, já que o espaço possui uma inércia, como os filósofos
sempre souberam: não nos podemos desenraizar por completo e voar, pelo menos até agora,
para cobrirmos pequenas distâncias. A vingança do espaço é a de o sentirmos como
impedimento, como maldição. E com efeito, achamos que a felicidade é sermos ubíquos. O
que se revela um grande problema, pois, de um lado, a nossa mente raciocina em termos de
ubiquidade e, portanto, vive o espaço como maldição, mas por outro, exigimos que a cidade se
organize em lugares, ainda por cima, acolhedores. Mas como é que os lugares acolhedores,
simbolicamente ricos, podem não representar obstáculos espaciais? Exigimos atravessar a
cidade em tempo real, mas também queremos que seja bela. Não é possível construir em
determinado lugar uma cúpula de Brunelleschi e, ao mesmo tempo, querer atravessá-la num
instante., Uma coisa do género só

57

poderá acontecer numa cidade puramente virtual, como a que tentaram pôr às portas de
Veneza para os japoneses: saídos do aeroporto, em vez de irem para a cidade, entravam numa
espécie de sala cinematográfica tridimensional e visionavam um filme sobre Veneza. É claro
que uma cidade com Veneza resiste à transformação em mera realidade virtual, mas não deixa
de ser um grandíssimo problema, pois já na cidade moderna havia o esforço de transformar a
cidade em via (nos finais do século xix a transformação de todas as grandes cidades europeias
consistia precisamente nisto). Hoje precisamos de transformações ainda mais radicais, já que a
busca de mobilidade cresceu tão desmesuradamente graças às novas tecnologias que entra
em conflito com o espaço, sobretudo lá onde esse espaço resiste ou então não foi
anteriormente transformado. Para além do mais, no espaço pós-metropolitano, as funções
assumem o aspecto de acontecimentos, também devido à rapidíssima transformação do
próprio território: aí, mais do que localizar uma função, dá-se algo, acontece alguma coisa,
constrói-se um supermercado, que é um acontecimento, e passados alguns anos, no lugar do
supermercado surge outro. Isto passa-se em Xangai, em Tóquio, onde existem mais
acontecimentos do que propriamente edificios: é um espaço que se organiza conforme
medidas temporais para acontecimentos, e o território apresenta-se como colocação de
acontecimentos. É a última fase da cidade moderna, no seu desenvolvimento metropolitano,
que irradia a partir do seu centro, e é capaz de dominar toda e qualquer persistência antiga.
Mas assiste-se a um fenómeno que, a certo ponto, parece irreversível: esta expansão torna-se
cada vez mais ocasional, 56

conhece nenhum nómos (já que nómos, lei — não o esqueçamos-- significa, na origem,
divisão, repartição de um determinado território ou «pastagem» [nomós]).

58 cada vez menos programável e governável. Quanto mais a «rede nervosa» se dilata, mais
devora o território circundante e mais o seu «espírito» parece perder-se; quanto mais ela se
torna «poderosa», menos parece ser capaz de ordenar-racionalizar a vida que nela se
desenrola. O intelecto metropolitano sofre uma espécie de «crise espacial», que é
perfeitamente análoga à que sofre o Estado Leviatã, o Estado moderno na sua soberania
territorialmente determinada. Os poderes que determinam o crescimento metropolitano têm
cada vez mais dificuldade em se «territorializar», em se «encarnar» numa ordem territorial,
em dar vida a formas de convivência legíveis-observáveis no território. Pede-se aos habitantes
do território que reajam com «imediatismo», como um sistema nervoso «saudável», à
variação do estímulo, à variação da presença ou da forma, com uma velocidade que não tem
qualquer comparação com outro momento da nossa civilização urbana. E no entanto,
continuamos a pedir à nossa cidade, que nos ofereça lugares de acolhimento, de «estadias
demoradas», como se, por um lado, o nosso córtex cerebral tivesse desenvolvido estas formas
de mobilidade impetuosa, violenta, mas por outro, nalguma zona profunda do cérebro
continuasse a existir a necessidade de casa, de protecção: uma dissociação que, agora, diz
respeito à nossa estrutura fisiológica. Mas, entretanto, o tempo da metrópole contrasta
dramaticamente com a sua organização espacial, com o «peso» dos seus edificios, com a
massa dos seus contentores. As massas da metrópole não se transformam em energia, pelo
conw trário, absorvem-na, consomemna. Exactamente o oposto do que acontecia na cidade,
onde existia correspondência entre os tempos das funções, dos trabalhos, das relações, e a

59 qualidade das arquitecturas, onde a arquitectura enriquecia, potenciava a qualidade do


conjunto. Temos que recuperar esta correspondência, mas é impossível fazê-lo propondo
novamente uma forma urbis tradicional. Temos que «inventar» correspondências, analogias
entre o território pós-metropolitano, em que vivemos, e edificios, lugares onde conseguir
habitar; temos que «inventar» novos edificios que sejam lugares, mas lugares para a vida pós-
metropolitana, lugares que exprimam e reflictam o tempo, o movimento.

Um indicador: a polivalência dos edificios

Vivemos obcecados por imagens e mitos de velocidade e de ubiquidade, mas os espaços que
construímos insistem, obstinadamente, em definir, delimitar, demarcar. Precisamos de lugares
onde habitar, mas estes não podem ser espaços fechados que contradigam o tempo do
território no qual, goste-se ou não, vivemos. Um labirinto de dificuldades e de problemas! O
espaço metropolitano ainda era, para usar uma metáfora da fisica contemporânea, um espaço
de «relatividade restrita»; o espaço do território pós-metropolitano deverá ser um espaço de
«relatividade geral». Aqui, qualquer edifício deve não apenas valer como corpo de referência,
mas os corpos devem poder ser «de-formados» ou transforma-dos durante o seu movimento.
Deste modo, a distribuição da matéria neste espaço mutará constante e imprevisivelmente. O
espaço global nascerá da interacção entre os seus vários corpos: elásticos, «deformáveis»,
capazes de se «acolherem» reciprocamente, de penetrarem uns nos outros, de

6o

serem esponjosos. Cada qual será polivalente não apenas englobando em si diferentes
funções, eventualmente «confinando-as» de novo no seu seio, aprisionando-as dentro de si,
mas também entrando intimamente em relação com o outro diferente de si, enquanto capaz
de o reflectir. Nesse espaço, cada parte é como uma mónada que acolhe em si a globalidade
do todo, que tem em si a lógica do todo: uma individualidade universal. Não se trata, por isso,
de uma operação ideológica de supressão dos limites: qualquer corpo apresenta limites, sob
pena de se anular. Nem se trata de confundir «anarquicamente» as relações entre os diferen-
tes tempos dos diferentes lugares. Trata-se, sobretudo, de as concertar sem confundir,
fazendo viver a totalidade, a forma do inteiro, na qualidade de cada parte. Jamais poderemos
sentir-nos habitantes em lugares segregados do conjunto do território; em lugares «prote-
gidos» acabaremos por sentir-nos ainda mais alienados que numa carruagem do
metropolitano. Não buscamos lugares separados, fechados, protegidos, para nos sentirmos
em casa. E também não podemos morar num comboio, num auto-móvel, numa estação, num
aeroporto... Podemos talvez habitar lá onde o completamento formal do lugar concorda com a
universalidade das informações que nele recebemos, lá onde o próprio individual nos
comunica o universal. Será possível imaginá-lo? Devemos projectar os nossos edifícios como
estabelecimento no anti-espaço da rede informática, como nós da rede, polivalentes e
intercambiáveis. Devemos construí-los como sensores, quase interfaces de computador.
Quanto mais rica e complexa for a informação que recebemos, quanto mais móvel no tempo,
quanto menos «radi-cada» em propriedades rígidas, mais problemas nos suscitará

49-

66 «clínico»: uma clínica para as obras de arte, outra para os estudantes, outra ainda para os
doentes, para os apaixonados de ópera. É tudo rígido num território em que já não existe
nenhum lugar. Da parte do público sente-se a necessidade de dar valências simbólicas à cidade
e, assim, o político-administrador responde com teatros, universidades, hospitais, etc., e
suporta com enfado o já-construído, a cidade existente, que ocupa espaço por causa das suas
estradas, dos seus parques de estacionamento e dos seus novos «contentores», por detrás dos
quais já não existe a pessoa nem a comunidade de pessoas. Quando muito existem «comis-
sões» de interesse, em defesa de interesses absolutamente privados. Pelo contrário, um lugar
assume valor simbólico quando existe entre as pessoas um éthos comum, quando não mesmo
uma verdadeira religio civilis. Caso contrário, é impossível construir câmaras municipais,
tribunais, teatros. E até igrejas. Enfim, não é possível construir lugares que tenham valência
simbólica num espaço pós-metropolitano. É preciso, talvez, começar a projectar em voz baixa,
modestamente, «à civil», renunciar às grandes pretensões simbólicas, que ameaçam a cada
instante cair no ridículo. E tentar combinar mais funções na construção dos edifícios. Se esta
postura vai satisfazer a nossa exigência de lugares não sei. O que eu sei é que hoje vivemos
com estas contradições gritantes, com estas dissociações.

Capítulo 5

A perspectiva gnóstica: o habitar humano entre a terra e o céu

Embora nos pareça convicção eterna não conseguirmos prescindir do espaço externo, não está
escrito em lado nenhum que não o possamos fazer. Não é esta, porventura, a aspiração
fundamental da nossa civilização? Não é por acaso que, por mais subtilezas historiográficas
que se possam imaginar, o tom fundamental da nossa cultura, grega, helénica, cristã, é o da
rejeição do corpo. A perspectiva gnóstica de «desterritorializar» os corpos é, de facto, a
ideologia dominante, hoje, no projecto técnico-científico. O nosso destino consiste num radical
desenraizamento de toda e qualquer ligação à terra. Se reflectirmos sobre as dominantes da
cultura contemporânea veremos isto mesmo por todo o lado: desde o discurso de há pouco
sobre a cidade até à representação artística abstracta, ao espiritual na arte, manifesta-se o
desenraizamento em relação às condições estético-sensíveis. Estamos rodeados por ordens

68 sem enraizamento (Ordnung sem Ortung, como diriam Carl Schmitt ou Ernst Jünger). Esta
perspectiva gnóstica domina por todo o lado. Não tem nada a ver com a perspectiva judaica e
judaico-cristã original; porém, é impossível não ver a presença deste pensamento no
desenvolvimento da Europa e da Cristandade. Com efeito, a filosofia e a teologia cristãs não se
podem separar, nos seus desenvolvimentos, do platonismo e do neoplatonismo. Embora não
seja dualista não há dúvida que a perspectiva do platonismo cristão exige o retorno à pátria
não ligada à terra. Somos cives futuri, a verdadeira cidadania está no futuro, é isto que
Agostinho e a tradição cristã defendem. A nossa raiz está no alto (arbor inversa: uma árvore
invertida). A nossa cidadania, a nossa politéia, está nos céus. Existe uma reserva fundamental
relativamente a todo o enraizamento ligado à terra; a toda a possibilidade de afirmar «a minha
pátria está aqui». Esta dúvida radical em relação a toda a cidadania ligada à terra é a razão
pela qual os romanos consideravam «ateus» os judeus e os cristãos, pois estes recusavam
reconhecer o valor das divindades pagãs, incluindo as da cívitas no seu carácter móvel,
augescens. Os cristãos recusavam-se a prestar culto à cidade, porque esta cidade não é a
Cidade celeste. Os romanos sempre foram muito tolerantes com todos os cultos. Em toda a
história romana não existe qualquer sinal da mais pequena perseguição a uma religião, a não
ser aos cristãos. É verdade que os romanos massacraram os judeus (em 7o d. C. e em 140 d.
C.); mas a razão advinha do facto de estes se terem revoltado várias vezes. São Paulo, ao invés,
convida os cristãos a não lutarem contra o Império, e em séculos de perseguição não existe um
único atentado cristão às autoridades rórnanas. A grande estratégia cristã foi

69

a de desfazer o Império Romano a partir de dentro, sem a menor oposição política, sem nunca
o combaterem no seu terreno, como, ao invés, fizeram os judeus. Os judeus combateram o
Império em nome do esperado reino messiânico de cariz nacionalista; os cristãos pretenderam
substituí-lo mediante uma expectativa escatológica do reino celeste. Juliano, o apóstata, é um
caso completamente anómalo, é um verdadeiro reaccionário, não é um romano, é um grego, e
entra em feroz polémica contra o Senado Romano, defende a pólis, vê a «grecidade» ainda
como estirpe própria. Não ama Roma, mas Atenas, não ama a cidade que cresce e se expande,
é um nostálgico das letras e da pólis. A sua utopia é uma utopia regressiva e não se pode ler
como reacção romana ao Cristianismo. Já Constantino, pelo contrário, é um grande romano,
que procura, precisamente, alimentar com o Cristianismo uma renovatio írnperii com sede em
Roma; e a coisa parecia resultar. Constantino espera que o Cristianismo, tornando-se muito
forte e poderoso, como as outras religiões, constitua um carburante novo, um alimento novo
para o grande mecanismo do direito romano. Mas tal não aconteceu porque o universalismo
cristão é intransigente. Coisa assombrosa até para o patriciado romano, o Cristianismo, assim
que foi plenamente legitimado e reconhecido, impõe pela primeira vez no âmbito do Império
uma religião de Estado. O conceito de religião de Estado é tipicamente cristão. Roma não o
conhece, em Roma existiam numerosos cultos. E este facto impede a realização do desígnio
constantiniano tal como Constantino o augurara. Quando os especialistas defendem que o
nosso destino não está ligado à terra e que nós somos inevitavelmente chamados a colonizar o
universo todo, que a nossa casa não70
é o planeta Terra, este é o sinal distintivo fundamental de todas as grandes gnoses. É uma
gnose secularizada, a doutrina salvífica gnóstica é substancialmente niilista, isto é, não tem um
fim determinado, uma civitas futura precisa, mas a nostalgia da gnose é mesmo uma saudade
do caminhar, do infinito desenraizar-se, da espiritualização. A Vergeístung, a transformação de
todas as nossas relações comunitárias em relações espirituais, isto é, desterritorializadas,
incorpóreas, é o traço característico da metrópole, como ensinavam os grandes sociólogos dos
finais do século xix. As nossas trocas ocorrem cada vez mais numa dimensão comunicativa, que
evita a mediação corpórea. O espaço, que se contrai progressivamente mais, «catastrofizando-
se» em tempo, pode sofrer uma espécie de colapso gravitacional, uma contrafacção, um
espasmo. Existirão civilizações capazes de contrariarem esta tendência fundamental? O Islão é
uma religião universalista exactamente como o Cristianismo, o seu objectivo é o de concretizar
o Dar-el-Islam (a terra do Islão) no globo todo. Deste ponto de vista é uma concorrente, mas a
concorrência não é uma contratendência. O Islão, portanto, não é «o outro». A distinção
segundo a qual a globalização não é a ocidentalização do mundo, é uma das teses mais
discutidas e discutíveis, porque até agora não existe nenhuma prova empírica que a suporte.
Até agora, a globalização foi ocidentalização. Huntington diz: «se a globalização for uma
ocidentalização dar-se-á um choque de civilizações, pois aqueles que não se reconhecem na
civilização ocidental vão opor-se à globalização.» Mas ele não nega que a globalização tenha
sido, até agora, urna ocidentalização. Sublinha,

aliás, que todas as resistências à globalização até agora encontradas resultam do facto de ela
se apresentar como ocidentalização. Daqui, as reacções, em especial do Islão. É possível
pensar numa modernização que não seja ocidentalização, sabendo que, agora, o termo
Ocidente já não tem qualquer significado geográfico, e devemos entendê-lo apenas como
domínio da técnica, da racionalidade técnico-científica totalmente anónima, impessoal? A
partir de Max Weber é preciso raciocinar desta maneira quando se pensa no Ocidente. Este
Ocidente vai-se globalizando. Existe alguma via de domínio da racionalidade técnico-científica
que não seja ocidental? Será possível a cisão entre aspectos técnico-económicos e culturais?
De um ponto de vista histórico e filosófico é um disparate afirmar essa cisão, uma vez que
significa interpretar o desenvolvimento técnico--científico-económico ocidental como
realidade totalmente abstraída de qualquer pressuposto cultural, filosófico e religioso.
Algumas correntes reformistas presentes no Islão têm procurado desesperadamente conceber
uma via de modernização não ocidental, separando o aspecto económico do cultural
(interiorizar a técnica, a racionalidade científica, o mecanismo de mercado do Ocidente,
continuando a ser islâmicos). Uma tentativa fracassada. Este trágico falhanço resulta dos vícios
oriundos da colonização, do imperialismo, ou provém da incapacidade politica, da miopia
cultural? É certo que uma interpretação em chave meramente técni-co-económica da técnica
e da economia é insustentável no plano histórico e filosófico, pois sabemos que a «Técnica» é,
em si mesma, altamente filosófica, é produto de uma visão do mundo, de séculos de filosofia,
de teologia, de cultura72

e de civilização. Prova disso é, também, a diferente reacção suscitada pela globalização em


diferen-tes contextos culturais. Parece que nos países islâmicos, em certos países africanos,
etc., a possibilidade da introdução da racionalidade técnico-científica pode produzir a eclosão
das formas culturais pré-existentes, coisa que não aconteceu no Oriente asiático e no Japão,
onde as culturas anteriores permaneceram vivas de alguma maneira no seio do processo de
ocidentalização. As suas formas de cultura, de civilização e de religião, permitiam esta
simbiose. Não se prova, portanto, que a racionalidade ocidental destrua as formas culturais
anteriores, mas o mesmo não se pode afirmar que se consiga separar, por princípio, o aspecto
cultural do aspecto técnico-económico de uma civilização. Regressa, aqui, na sua vertente mais
dramática, o problema das relações entre espaço e tempo. Põe-se, isto é, a questão de saber
se se consegue alcançar uma nova ordem espacial a partir da assunção do primado do tempo
nas nossas existências, na nossa experiência vivida. Antes de mais, não podemos dar por
adquirido que este triunfo do tempo não se desenvolva até às suas extremas consequências.
Este exercício mental que postula que o tempo pode, realmente, subsumir em si mesmo a
experiência espacial, não é uma questão filosoficamente vazia. Kant mantém um dificílimo
equilíbrio entre espaço e tempo, mas acaba por reconhecer o primado do tempo, porque as
formas do esquematismo — que são o eixo da razão pura e da filosofia kantiana, e que
garantem a passagem das categorias para o fenómeno, permitindo, portanto, a construção de
uma

73

ciência da natureza — são formas do tempo; o esquematismo dá-se no tempo, não no espaço.
E de resto o tempo domina a filosofia contemporânea: em Ser e tempo,' Martin Heidegger
reconhece que a única via de acesso ao ser é temporal, enquanto o espaço, na mesma obra, é
considerado um produto, pura imagem da temporalidade do ser-aí (Dasein), como se faltasse
uma topologia. Deste ponto de vista, existe um nexo forte entre Franz Rosenzweig, filósofo
judeu, e Heidegger, como se o primeiro antecipasse o segundo, afirmando que a prepotente
afirmação do tempo produz o conjunto inteiro das novas e específicas experiências espaciais.
Esta poderia ser uma linha de pensamento, não há dúvida. Para que o tempo possa abrir-se a
estas novas dimensões espaciais é preciso que seja um tempo especial. Não pode ser o tempo
kantiano, forma a priori como o espaço, indiferente e equivalente em todos os seus instantes;
deve ser o tempo litúrgico, que é descontínuo, constantemente «decidido», um tempo «re-
cortado», não-indiferente nem homogéneo. Como o espaço, o tempo de Kant é uma dimensão
homogénea e indiferente em todos os seus pontos; o tempo de Rosenzweig é tempo litúrgico,
que afirma que um dia é diferente do outro. Se se tem uma ideia do tempo deste género é
possível combinar aquele tempo com um espaço, caso contrário não. Caso contrário, a ideia de
tempo reflecte aquele espaço-tempo indiferente e vazio em que cada ponto equivale ao outro
e é mensurável segundo os eixos cartesianos. Portanto, para ter uma experiência litúrgica do
tempo, e para ter uma ideia de tempo que per-mita a sua tradução em espaço, é preciso éthos
e éthnos, ou seja judaísmo. E na polémica de Rosenzweig para com o

74 Cristianismo afirma-se, precisamente, que os cristãos têm um espaço litúrgico aparente, já


que para eles a civitas peregrina, embora com tempo próprio, não tem raízes étnicas, não tem
um éthos: um Cristão faz-se tal, um Judeu já o nasce, dizia Rosenzweig com razão. Se esta
perspectiva ameaça eclodir, como podemos remediá-la? Criar um tempo litúrgico forte é, sem
dúvida, uma saída. Porém, se tivermos em mente o esquema de Rosenzweig, é bom recordar
que aquele esquema se afirma como próprio do Judaísmo, não do Cristianismo. É sobre este
ponto, e sobre outros pontos fundamentais, que Rosenzweig, depois de várias abordagens ao
Cristianismo, se separa dele, sublinhando a incompatibilidade entre as duas vias. Pode então a
liturgia conter a eclosão? Que o Cristianismo veja a terra como espaço de missão, para usar a
expressão de Rosenzweig, e que portanto, vá realmente no sentido da globalização, parece
indubitável. Existem vários modos e formas de compreender esta terra como terra de missão,
mas não existe a possibilidade da parte de um Cristão de compreender a terra como éthnos
(era esta a eterna polémica com Sergio Quinzio).

Capítulo 6

Para acabar em... beleza

Alguém estará a perguntar se em toda esta problemática urbanística ainda está presente a
exigência de beleza que parece ter sempre caracterizado a ideia e a prática do habitar.
Respondo que temos que nos entender sobre o termo «beleza», sobre os seus significados.
Belezas há muitas, tal como formas de cidade. Hoje, andamos à procura de uma beleza que se
coloca numa dimensão puramente estética (belo é aquilo que gostamos, aquilo que nos é
agradável), mas a beleza não tem apenas este significado fenoménico-estético. Na idade
clássica não era assim: kalón tinha um significado diferente no grego antigo. Kalón significava:
«vê como está construído forte», «vê como está hirto», «vê como está bem radicado». Algo
que se formou, desenvolveu e construiu de maneira perfeita e, por isso, pode durar. E não era
um juízo subjectivo; ao invés, tinha que ser objectivo. E assim, o que queremos da nossa
cidade? Que seja bela conforme este segundo significado? Para que possa emergir uma beleza
nesta acepção seria necessário que os nossos edificios exprimissem plenamente a nossa vida e
as suas razões, caso contrário, a beleza torna-se uma coisa76 incapturável e indefinível. No
significado clássico de kalón havia medidas, cânones, um sólido fundamento objectivo, não
uma adesão estética subjectiva. Aquele edifício faz parte ou não daquele grande lógos?
Respeita aquele lógos que transcende todas as obras ou não? Uma estátua, um templo eram
belos se correspondiam àqueles cânones que transcendiam a posição estética subjectiva.
Deste ponto de vista, a nossa cidade é, ao invés, uma pátria da varietas. Já nos grandes
tratados arquitectónicos elaborados no século xvI (e, depois, na construção da cidade barroca)
perde força o cânone e as normas passam a ser vistas como artificiais, convencionais. Na
cidade concebida como território o nosso conceito de beleza está entregue à varietas. Não
podemos absolutamente pensar em restaurar medidas, lógoi, relações que tenham valor
canónico. As nossas normas, medidas, e métricas não podem ter um carácter artificial,
convencional. É impossível ultrapassar a corrente e construir monumentos. Mas a varíetas
pode ser uma varietas que agrada. O próprio Leon Battista Alberti, na obra De re aedficatoria,
diz: «olhem que o clássico não é aquilo que os antiquários pensam.» O clássico é também
variedade de formas, e pode ser concinnítas, um canto sinfónico (cum cano: canto conjunto).A
ideia de beleza como concinnítas emerge nos séculos xv e xvi. Teremos que ir nessa direcção.
Experimentá-la de novo.

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