Está en la página 1de 34

Psicologia e o

realização Direito à Memória


e à Verdade
CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP
Psicologia e o
Direito à Memória
e à Verdade
CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP
Caderno Temático nº13 – Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade

XIII Plenário (2010-2013) Gerente geral


Diógenes Pepe
Diretoria
Presidenta | Carla Biancha Angelucci Coordenação de comunicação
Vice-presidenta | Maria de Fátima Nassif Christiane Gomes
Secretário | Luis Fernando de Oliveira Saraiva
Tesoureira | Gabriela Gramkow Organização do caderno
Christiane Gomes
Conselheiros efetivos
Ana Ferri de Barros, Carla Biancha Revisão ortográfica
Angelucci, Carolina Helena Almeida Estela Maria Carvalho
de Moraes Sombini, Fernanda Bastos
Lavarello, Gabriela Gramkow, Graça Projeto gráfico e editoração
Maria de Carvalho Câmara, Janaína Fonte Design | www.fontedesign.com.br
Leslão Garcia, Joari Aparecido Soares
de Carvalho, Leandro Gabarra, Luis
Fernando de Oliveira Saraiva, Maria
de Fátima Nassif, Mariângela Aoki,
Maria Orlene Daré, Patrícia Unger
Raphael Bataglia, Teresa Cristina Lara
de Moraes.

Conselheiros suplentes
Alacir Villa Valle Cruces, Cássio Rogério
Dias Lemos Figueiredo, José Ricardo
Portela, Lilihan Martins da Silva, Luiz
Eduardo Valiengo Berni, Luiz Tadeu
Pessutto, Marília Capponi, Marly
Fernandes dos Santos, Rita de Cássia
Oliveira Assunção, Roberta Freitas
Lemos, Rosana Cathya Ragazzoni
Mangini.

Ficha Catalográfica

C744p
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (org).
Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade. / Conselho Regional de
Psicologia da 6ª Região – São Paulo: CRPSP, 2012.
36f.; 23cm. (Caderno Temático 13).

Bibliografia
ISBN: 978-85-60405-20-6

1. Psicologia 2. Memória-Verdade 3. Direitos humanos Título


CDD 363.51

Ficha Catalográfica
Elaborada por: Vera Lúcia R. dos Santos – Bibliotecária
CRB 8ª Região 6198
Cadernos Temáticos
do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série CADERNOS TEMÁTICOS
do CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho
em diversos campos de atuação da Psicologia.
Essa iniciativa atende a diversos objetivos. O primeiro deles é concretizar
um dos princípios que orienta as ações do CRP SP, o de produzir referências
para o exercício profissional de psicólogos (as); o segundo é o de identificar
áreas que merecem atenção prioritária, em função de seu reconhecimento
social ou da necessidade de sua consolidação; o terceiro é o de, efetivamente,
garantir voz à categoria, para que apresente suas posições e questionamentos
acerca da atuação profissional, garantindo, assim, a construção coletiva de
um projeto para a Psicologia que expresse a sua importância como ciência
e como profissão.
Esses três objetivos articulam-se nos Cadernos Temáticos de maneira
a apresentar resultados de diferentes iniciativas realizadas pelo CRP SP
que contaram com a experiência de pesquisadores (as) e especialistas da
Psicologia para debater sobre áreas ou temáticas diversas da área. Reafir-
mamos o debate permanente como princípio fundamental do processo de
democratização, seja para consolidar diretrizes, seja para delinear ainda
mais os caminhos a serem trilhados no enfrentamento dos inúmeros desa-
fios presentes em nossa realidade, sempre compreendendo a constituição
da singularidade humana como fenômeno complexo, multideterminado e
historicamente produzido. A publicação dos Cadernos Temáticos é, nesse
sentido, um convite à continuidade dos debates. Sua distribuição é dirigida
a psicólogos(as), bem como aos diretamente envolvidos com cada temática,
criando uma oportunidade para a profícua discussão, em diferentes lugares
e de diversas maneiras, sobre a prática profissional da Psicologia.
Este é o 13º Caderno da série. O seu tema é Psicologia e o Direito à Memó-
ria e à Verdade. Outras temáticas e debates ainda se unirão a este conjunto,
trazendo para o espaço coletivo, informações, críticas e proposições sobre
temas relevantes para a Psicologia e para a sociedade.
A divulgação deste material nas versões impressa e digital possibilita a
ampla discussão, mantendo permanentemente a reflexão sobre o compro-
misso social de nossa profissão, reflexão para a qual convidamos a todos (as).

Diretoria do CRP
Gestão 2010-2013
Cadernos já publicados, podem ser consultados em www.crpsp.org.br:
1 – Psicologia e preconceito racial
2 – Profissionais frente a situações de tortura
3 – A psicologia promovendo o ECA
4 – A inserção da Psicologia na Saúde Suplementar
5 – Cidadania ativa na prática
5 – Ciudadanía activa en la práctica
6 – Psicologia e Educação: contribuições para a atuação profissional
7 – Nasf – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
8 – Dislexia: subsídios para políticas públicas
9 – Ensino da Psicologia no Nível Médio
10 – Psicólogo judiciário nas questões de família
11 – Psicologia e Diversidade Sexual
12 – Políticas de Saúde Mental e juventude nas fronteiras psi-jurídicas
Sumário

Apresentação

Maria Orlene Daré


7

Carla Biancha Angelucci


8

Marilene Proença
10

Pedro Paulo Bicalho


11

Maria Ivonete Barbosa Tamboril


13
MEMÓRIA E DIREITOS HUMANOS:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
ACERCA DAS EXPERIÊNCIAS DAS
COMISSÕES DA VERDADE
Ignácio Dobles Oropeza
15
A URGÊNCIA DA CONQUISTA DO
DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE
Ivan Akselrud de Seixas
23
Apresentação 7

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


Maria Orlene Daré
Conselheira e Coordenadora da Comissão de
Direitos Humanos do CRP SP

O Sistema Conselhos de Psicologia, por meio da a dignidade daqueles que tiveram que se calar e
Comissão Nacional de Direitos Humanos e das promover o reconhecimento social de outra versão

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


Comissões Regionais, continuamente vem reafir- da história.
mando a importância dos Direitos Humanos na Sabemos que a memória é um componente fun-
formação do(a) psicólogo(a) e em sua atuação damental para a construção da verdade. E que essa
profissional. Tornou-se um desafio, no sentido verdade se constitui em direito, não só do passado,
ético, levar o(a) psicólogo(a) a pensar em uma mas direito à verdade presente. A maneira como
prática cotidiana não violadora de Direitos Huma- foram tratadas as violações de Direitos Humanos
nos e nos efeitos que essa prática produz na vida no passado tem implicações e consequências nos
das pessoas, na sociedade e no reconhecimento e dias atuais. Conhecer a verdade do passado é
exercício da Psicologia. essencial para conhecer as violações no presente
Nesse sentido, o CRP SP, a convite do Instituto e prevenir a repetição no futuro.
de Psicologia da Universidade de São Paulo, reali- Lembramos que resistir também é um direito
zou o Seminário Psicologia e Direitos Humanos: e ele está presente na afirmação de Ivan Aksel-
Direito à Memória e à Verdade. rud de Seixas durante sua exposição no evento:
A coletânea de discursos presentes neste “Exercíamos o direito de resistir à ditadura”. Esta
caderno traz à luz as razões do envolvimento da afirmação compõe sua narrativa, que de forma in-
Psicologia com a temática. É traçado um panorama descritivelmente lúcida e impactante elucida fatos
das diversas Comissões da Verdade existentes na e acontecimentos ocorridos, inclusive a internação
América Latina, suas configurações e diferentes dele e de inúmeros presos políticos em hospitais
expressões. psiquiátricos durante a ditadura militar no Brasil.
O evento também nos convoca a refletir sobre Esperamos que as informações presentes neste
a importância da recuperação da memória social caderno se estendam à categoria e à sociedade e
e histórica para o país e, sobretudo, o significado ajudem a esclarecer fatos e verdades históricas
para aqueles que sofreram tortura, graves abusos e do país.
violações de Direitos Humanos durante o período Esta publicação também marca mais um passo
da ditadura militar. na direção e na consolidação da Psicologia no cam-
Romper o silêncio imposto e dar voz e legitimi- po de Direitos Humanos, contribuindo, assim, para
dade às narrativas dos que conseguiram expressar um repensar a partir dessa perspectiva, incluindo a
sua própria verdade tornou-se uma obrigação reflexão sobre quais práticas psicológicas, compro-
ética, já que tais depoimentos poderão restaurar missos e verdades estamos assumindo.
8 Carla Biancha Angelucci
Conselheira Presidenta do CRP SP

É com profunda honra que recebemos o convite nossos saberes, nossas práticas, criticar o que a
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Psicologia historicamente tem realizado e também
Paulo para participar da organização de um evento considerar criticamente a nossa própria atuação
deste porte e com esta temática. é trabalhoso, muitas vezes doloroso e solitário, o
A Comissão de Direitos Humanos, não casual- que, comumente, procuramos evitar. Percebermo-
mente, é regimental: precisa existir em todos os -nos na contracorrente da vida atual, que convida
Conselhos de Psicologia, porque tem a função de ao desprezo pelo passado e ao não enfrentamento
insistentemente nos relembrar que o exercício da dos desafios, pode impelir-nos ao conformismo.
profissão deve estar, a um só tempo, subsidiado A Comissão de Direitos Humanos nos relembra a
pelos direitos humanos e direcionado a eles. Isso necessidade de permanecermos no incômodo, na
não é simples, não é natural e tampouco óbvio. tensão entre aquilo que temos e aquilo que preci-
Podemos ter inúmeras intervenções psicológicas samos criar, de modo a comprometermo-nos, de
que, sem sequer refletirem sobre isso, contrariam fato e de direito, com serviços de qualidade para
os direitos humanos. Por isso sua presença contí- a população.
nua nas discussões sobre o exercício da Psicologia Relevante destacar ainda que memória e psi-
é fundamento ético-político, a fim de que pense- cologia mantêm uma relação antiga e profunda.
mos que Psicologia queremos e que prestação de Em tempos de discussão sobre o sentido que a
serviços devemos realizar para a população. Sem lembrança e o esquecimento podem ter para as
esses questionamentos, corremos o risco de termos pessoas e para a coletividade, é fundamental que
discussões e projetos corporativistas, ou seja, possamos entender o direito à memória como o
uma Psicologia orientada pelo pragmatismo, sem direito à dignidade de cada um(a) e de todos(as)
se reportar ao necessário tensionamento entre o nós. É por demais custoso exigir de cada uma das
que, atualmente, podemos oferecer como ciência pessoas envolvidas com a tortura cotidiana prati-
e profissão e as necessidades reais e concretas da cada pelos governos autoritários, que tivemos por
população. décadas no Brasil, que sustente solitária e heroi-
Nem sempre tendemos a fazer aquilo que, de camente a lembrança detalhada do sofrimento im-
fato, precisamos fazer. Até porque, não raro, são pingido. É necessário que ofereçamos uma rede so-
inúmeros os impeditivos para a realização das cial em que cada um (a) possa apoiar-se, de modo
necessidades e anseios da população. Transformar que lembrar não tenha o caráter revitimizante de
9

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


colocar o sujeito a todo momento em contato com a Então, recuperar a memória e reconhecer
dor que um dia já sentiu, atualizando-a. Essa rede o direito à verdade como essencial para nossa

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


deve sustentar a dignidade daqueles que sofreram vida é também nos recolocarmos diante desses
e deve apoiar o trabalho da narrativa, a fim de que compromissos, que muitos (as)procuram abafar.
a construção de sentidos não seja tarefa de um Compromissos esses que foram violentamente
ou de outro, mas de cada um de nós, em relação. abafados no período da ditadura, mas ainda hoje
Quando construirmos apoios compartilhados que são alvo de esforço diligente para permanecerem
nos permitam suportar o que a lembrança traz, ocultos, seja de forma mais direta, como a violên-
torna-se também mais possível comprometermo- cia de Estado, seja de forma dissimulada, como a
-nos não só com a compreensão das situações que desqualificação de inúmeros segmentos sociais.
vivemos, mas também com aquilo que aqueles que Afinal, quando calamos idosos (as), crianças
tanto sofreram no passado estavam defendendo. e jovens, quando desvalorizamos aqueles que
Passamos, com isso, a nos responsabilizar pelos discordam, quando imputamos o lugar de doente
valores que estavam sendo defendidos, pela luta àqueles que não se identificam com o ideal nor-
efetivada, mas, principalmente, pela recuperação mativo, mas, principalmente, quando aderimos a
dos projetos que foram soterrados pela brutalidade um projeto de harmonia e homogeneidade social,
da ditadura. Assim é que nos tornamos mais e estamos silenciando a diversidade e, com isso,
mais responsáveis por continuar empunhando desviando-nos de maneira radical do projeto de
as bandeiras que muitos (as) outros (as) antes democracia pelo qual tantos(as) colocaram em
de nós fizeram permanecer vivas em seus gestos risco suas vidas e de suas famílias.
de resistência e sobrevivência.  Quero enfatizar Precisamos, juntos (as), manter viva a me-
com isso que o direito à memória e à verdade nos mória dos motivos pelos quais tantos (as) de nós
recoloca em contato com os compromissos e as se dispuseram a ousar, discordar, lutar, resistir,
perspectivas de determinados grupos sociais, aqui sofrer e, sobretudo, permanecer dignos (as) em
no Brasil e no mundo, que tinham muito clara suas vidas ou em suas mortes. Assim, a partir
uma referência do que poderiam ser a liberdade, de um presente realmente engajado com o que
a democracia e a construção de processos sociais há muito tempo perseguimos, é que poderemos
em que todos (as) tivessem garantia de direito à construir e experimentar um projeto emancipa-
voz e à participação social. tório de sociedade.
10 Marilene Proença
Conselheira do Conselho Federal de Psicologia e
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

É com grande satisfação que realizamos o Semi- torturados durante o regime militar. Neste país, as
nário Psicologia e Direitos Humanos: Direito violações aos direitos humanos que permearam a
à Memória e à Verdade, fruto da articulação do ditadura, vão para além desse período, existiram
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar antes dele e seguem até os dias atuais. Mas sem
e do Desenvolvimento Humano, do Instituto de dúvida nenhuma, a grande motivação da criação
Psicologia da Universidade de São Paulo, com o das Comissões da Verdade, das comissões de busca,
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. de reconstrução dessa história e dessa memória
Sabemos que a história dos países da América está na pauta central das nossas lutas e ações no
Latina tem sido marcada por muitos períodos de campo da Psicologia. 
exceção, de violência do Estado, de retirada de Estar aqui representando um programa de
direitos civis e sociais de significativa parcela da Pós-Graduação em Psicologia Escolar do Desen-
população. Pensar a história e a memória latino- volvimento Humano, que tem dentro das suas
-americana, na perspectiva dos direitos humanos, linhas de pesquisa trabalhos ligados aos direitos
é tratar das formas de violação de direitos e da humanos de crianças, adolescentes e adultos, nos
necessidade de encontrar caminhos, e alternativas faz também zelar, cada vez mais, por um compro-
de enfrentamento das ações na direção de uma so- misso da universidade com a sociedade brasileira,
ciedade mais justa, menos desigual e democrática. buscando em suas pesquisas, na sua articulação
“As veias abertas da América Latina”, como nos no campo da extensão e da formação de psicólo-
apresenta Eduardo Galeano, expõem os proces- gos (as), a possibilidade de levarmos esses temas,
sos de expropriação que gerações vêm sofrendo e de estudarmos, aprofundarmos e termos cada vez
contra os quais vêm lutando e resistindo. mais consolidadas proposições, perspectivas e
Este Seminário se insere nessa discussão, concepções que nos ajudem a argumentar a favor
tendo como tema central a criação da Comissão da vida, da história e da memória.
da Verdade no Brasil. Nesse sentido, o evento se Estar aqui hoje, ao lado do Conselho Regional
propõe a conhecer mais sobre a natureza desta de Psicologia de São Paulo, representado por sua
Comissão, ouvir diversas vozes e experiências Presidenta Carla Biancha Angelucci, que também foi
latino-americanas com relação à constituição de aluna no Programa de Psicologia Escolar do Desen-
Comissões da Verdade, bem como conhecer as volvimento Humano, juntamente com Maria Ivonete
ações realizadas institucionalmente no Brasil para Tamboril, é um grande orgulho, porque vemos que os
a constituição dessa Comissão. Este é um tema que nossos egressos, nossos ex-alunos são grandes mili-
tem sido muito caro a todos nós, pois nos remete tantes dos Direitos Humanos e da Psicologia em uma
às questões principalmente do resgate da história perspectiva crítica neste país. Isso nos orgulha muito
daqueles que desapareceram, que foram mortos e como professores e como militantes dessa causa.
Pedro Paulo Bicalho 11
Coordenador da Comissão Nacional de

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


Direitos Humanos do Conselho Federal
de Psicologia

Quero colocar em discussão que este tema é de Estado, território, soberania e governabilidade.
fundamental para nossa atuação. É preciso que Pensar essa relação entre Estado e território é,

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


pensemos por qual razão esta temática está aqui antes de mais nada, refletir sobre o modo como
sendo pensada pelo eixo Psicologia e Direitos essa sociedade conceituou e conceitua aquilo
Humanos. O que, afinal de contas, o Direito à Me- que podemos entender como lixo. Lixo que, neste
mória e à Verdade tem a ver com Direitos Humanos momento que vivemos de grandes eventos que
e Psicologia? estão por vir, como a Copa e as Olimpíadas, faz
Em primeiro lugar, quando falamos em ver- com que representantes de certas classes da so-
dade, precisamos pensar que essa verdade pela ciedade sejam entendidos como lixo, e como tal
qual estamos lutando serve para pensarmos, his- devem ser banidos das cidades, o que podemos
toricamente, como foi constituído este país. Mas, perceber em políticas higienistas praticadas por
principalmente, é uma verdade que diz respeito a certos governos. 
acontecimentos que revelam determinadas lógicas Mas podemos conceituar esse lixo como sendo
que nos foram propostas, determinadas relações matéria fora do lugar, que nada mais é do que a
de força que fizeram funcionar um tempo histórico defesa de um ponto de vista. Desse modo, pensar
no Brasil. Tempo histórico este que não tem um esse ponto de vista é concluir que ele impõe uma
recorte no passado apenas. É preciso pensar que relação entre Estado e território, relação essa que
este direito à verdade é também o direito à verdade serviu para algumas lógicas que vigoraram duran-
do presente, porque esta realidade que vivemos te a ditadura militar, mas que também serviram
hoje está atravessada pelas mesmas lógicas que para lógicas atuais.
fizeram com que, durante a ditadura militar, al- Em nossa atualidade, podemos trazer uma sé-
guns acontecimentos pudessem ser produzidos. rie de exemplos. Um deles é o que diz respeito aos
Desse modo, é preciso pensar que a abertura chamados autos de resistência, que são aquelas
irrestrita dos arquivos da ditadura militar é algo fun- mortes impetradas hoje pelo Estado brasileiro, nas
damental, não porque queremos saber o que tem lá quais a pessoa que morre é vista como culpada de
dentro. O que existe lá serve para pensar as lógicas seu assassinato – o que impede, inclusive, uma
que fazem funcionar o mundo contemporâneo, o investigação do Ministério Público. Ou seja, existe
que vivemos no Brasil. Talvez esta seja a grande uma verdade contemporânea que não é colocada
função desta discussão: a abertura dos arquivos em discussão, exatamente por algumas concep-
diz respeito a um tempo histórico que não passou.  ções de morte e de lixo que envolvem a sociedade
Acredito que o debate sobre o direito à memória em que vivemos. 
e à verdade envolve, não somente história, mas Então, o que está em jogo? Por qual razão nós,
principalmente a discussão entre as concepções psicólogos (as), precisamos discutir essa questão?
12

O que está em jogo é uma certa consolidação dores. É importante para pensarmos de que modo
do medo como política pública. E é preciso que o nosso medo e o nosso lixo contemporâneo são
pensemos, antes de mais nada, de onde vem essa entendidos, e de que modo as políticas públicas
produção do medo e para onde é dirigida sua existem para dar conta de tudo isso. Políticas
produção; que relações de alteridade são essas essas que não são naturais, mas que advêm de
que impõem a nós um sentimento de medo de uma história, de uma construção, e é preciso que
uns aos outros? E para que ele serve? Medo esse essa construção, ou melhor, que a lógica que faz
que, durante a ditadura militar, estava alocado na funcionar essa construção seja compreendida por
fisionomia daquele que era entendido como sub- todos nós, para que possamos entender o que de
versivo, mas que, na nossa contemporaneidade, fato estava em jogo naquele período histórico que
serve para entendermos quem são aqueles a quem hoje chamamos de ditadura, mas principalmente
devem ser dirigidas as políticas penais deste país. a lógica que está em jogo neste período histórico
Então, o direito à memória e à verdade é algo que que vivemos hoje. 
diz respeito, fundamentalmente, às discussões Pensar o direito à memória e à verdade é pen-
que nós, psicólogos (as), trazemos na atualidade sar o tempo todo de que modo este tema, transver-
das nossas ações. salmente, atinge não somente uma concepção de
Talvez seja este o nosso grande desafio en- direitos humanos, mas também uma concepção
quanto profissionais da Psicologia: estranhar de Psicologia. Desse modo, pensar Psicologia e
essa produção de medo, que, apesar de ter um Direitos Humanos, atravessados pelo tema do
recorte histórico na ditadura militar, persiste nos Direito à Memória e à Verdade, é algo fundamen-
dias de hoje. Conhecer essas relações de força é tal. E, se é algo fundamental, precisamos fazer
conhecer o modo como elas foram construídas com que essa discussão atravesse não somente
historicamente. Pensar o resgate histórico da as nossas discussões, mas, principalmente, a
verdade não é algo que serve apenas aos historia- nossa formação.
Maria Ivonete Barbosa Tamboril 13
Pedagoga, doutora em Psicologia Escolar e do

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


Desenvolvimento Humano pela Universidade de
São Paulo; professora e pesquisadora licenciada do
Departamento de Psicologia no curso de graduação e no
programa de mestrado em Psicologia da Universidade
Federal de Rondônia e secretária nacional de Defesa dos
Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República

Em nome da nossa ministra da Secretaria de Um marco histórico para a América Latina, já que
Direitos Humanos, Maria do Rosário, destaco o Brasil ainda precisa responder a vários pontos de

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


a importância e a necessidade da academia se interrogação que existem em sua história.
debruçar sobre este tema. Não que ela já não o Nunca deveríamos esquecer essa pauta, por
tenha feito antes, mas estamos em um outro mo- isso a importância desse evento, já que a grande
mento, que é o da temática do direito, assegurado finalidade da Comissão da Verdade é tentar exa-
pela Constituição Federal de 1988: o Direito à minar e esclarecer as graves violações de direitos
Memória e à Verdade. Um direito inalienável do humanos praticadas durante a ditadura militar.
povo brasileiro. Ele foi assegurado pelos nossos Essa comissão já foi pautada, com o aparato da
constituintes, eleitos especificamente para a Cons- sociedade brasileira, desde o relatório da Comis-
tituição de 1988. Este legado, que está no Ato das são de Mortos e Desaparecidos e a Comissão da
Disposições Constitucionais Transitórias, 25 anos Anistia. Por isso nós, sociedade e governo brasilei-
depois, nos dá a possibilidade real e concreta de ro, tivemos já nesses 25 anos os primeiros passos
que o Congresso brasileiro aprove um projeto de nesse caminho. A Comissão da Verdade, como diz
lei nos moldes do Programa Nacional de Direitos o nosso ex-ministro Nilmário Miranda, é o quarto
Humanos, o PNDH-3. momento mais importante depois da Lei da Anistia
O PNDH-3, para nós, é um eixo orientador a para confirmar a democratização do nosso país.
partir das temáticas do povo brasileiro. Um docu- Ela atende a um anseio e a uma expectativa muito
mento resultado de amplas discussões. Esse docu- grande da sociedade brasileira, na perspectiva dos
mento é constituído por seis eixos, um deles trata direitos humanos e da violação desses direitos.
exclusivamente do Direito à Memória e à Verdade. Mais do que isso: confirma a memória do povo do
Este eixo tem três diretrizes, articuladas em três ob- país. Porque a história, quando não é transmitida
jetivos estratégicos e 11 ações programáticas. Uma de geração para geração com todos os seus fatos,
delas é a criação da Comissão da Justiça e Verdade. vai sendo esquecida e silenciada.
14
Memória e Direitos Humanos: 15

algumas considerações acerca da

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


experiências das comissões
da verdade
IGNÁCIO DOBLES OROPEZA
Professor da Escola de Psicologia da

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


Universidade da Costa Rica

Realmente, estou muito agradecido pelo convite e das lutas dos povos. Ao mesmo tempo, essa as-
para dialogar sobre um tema tão importante. piração à verdade influiu de tal forma nos direitos
Pensei em uma frase de George Mead, pai do humanos e nas relações internacionais que fez
interacionismo simbólico, que diz: “O passado é com que o direito à verdade tomasse corpo como
o desmembramento do presente”. Um provérbio tal. Isso foi assinalado e mencionado na resolução
russo afirma: “Coloque-se no passado e você vai Sobre o Direito à Verdade das Nações Unidas, em
perder um olho. Esqueça o passado e você vai 1997, redigida por Theo Van Bowen.
perder dois olhos”. Isso também é muito sábio, Sem dúvida, aqui temos uma situação parado-
principalmente no campo dos direitos humanos, xal. A Comissão Interamericana de Direitos Hu-
do direito à verdade, para todos (as) aqueles (as) manos, no seu ditame nº 28, em 1992, estabelece
que tomam para si a tarefa social de ser empreen- que o governo argentino desse período violou a
dedores (as) da memória, usualmente com um alto Convenção Americana de Direitos Humanos com
custo social e pessoal.  as leis da impunidade no país. Essa Comissão
Vou falar das diversas Comissões da Verdade
em uma espécie de quadro comparativo, retoman-
do alguns aspectos da discussão que talvez sejam
É curioso que a discussão
importantes. As Comissões da Verdade têm sido acadêmica sobre a memória colocou
propostas como instituições condicionadoras de sérias dúvidas sobre o conceito da
políticas da memória nos contextos pós-guerra e verdade como algo alcançável.
pós-ditadura. E, também, num pós-sistema de ex-
clusão e discriminação extrema como o apartheid,
na África do Sul, onde a atuação com alto perfil Interamericana reconhecia o direito à verdade e
público de uma Comissão é conhecida como uma estabeleceu o ditame que reconhecia o direito que
das experiências mais importantes no que se refere as vítimas têm de levar a juízo aqueles que consi-
a Comissões da Verdade. derarem que violentaram seus direitos humanos.
É curioso que a discussão acadêmica sobre a Foi assim que a Argentina se tornou o cenário, nos
memória colocou sérias dúvidas sobre o conceito anos 1990, do que se chamou Juízos pela Verdade,
da verdade como algo alcançável, como objetivo que se iniciaram em 1998 com o Juízo da Câmara
desejável para a tarefa da memória do sofrimento Federal da cidade de La Plata.
16 No que se refere às Comissões da Verdade, é Interessante é que na última parte do século
interessante saber como se formam as institui- 20, ainda diante de inúmeras dificuldades e obs-
ções da memória, como produtos de negociações táculos, a tarefa de buscar essas verdades tem
e correlações de forças. Para Zalaquett, jurista sido atribuída a diferentes atores em distintas
argentino1, se não conhecemos a verdade e se ocor- ocasiões. Instituições que, de uma maneira ou
reu alguma situação de repressão ou violação de outra, participam das negociações, em conjun-
direitos, corremos o risco de que medidas severas turas que têm permitido esse tipo de acordo. As
possam se tornar arbitrariedades ou vinganças, e primeiras experiências feitas por essas Comissões
medidas de clemência ou perdão se transformem da Verdade não se detiveram muito em discussões
em impunidade. A verdade, no que se refere às filosóficas e conceituais sobre a busca da verdade
violações graves de direitos, diz este mesmo autor, e suas características.
deve ser completa. Para ele, isso inclui a informa- Mas é muito importante observar que uma das
ção detalhada sobre o planejamento e a identidade mais recentes Comissões da Verdade, a instalada
no Peru em 2003, desenvolveu discussões con-
Os jogos de poder que exerceram ceituais interessantes a respeito da verdade e da
reconciliação, sendo influenciada por consultas
influência determinante no período
públicas, discussões e seminários sobre experi-
irregular em que esses atropelamentos
ências de Comissões anteriores. A experiência
foram cometidos, seguem funcionando peruana tenta definir o conceito de verdade. As
no presente. anteriores estavam preocupadas demais com o que
estava acontecendo e não entraram em nenhuma
de quem deu as ordens e de quem levou a cabo es- discussão conceitual.
sas tarefas de repressão. Estas informações devem Apresento a seguir uma definição sofisticada de
ser oficiais, ou seja, ter o apoio de instituições do verdade, elaborada pela comissão que funcionou
Estado e serem difundidas publicamente. Isso é no Peru:
muito importante para as vítimas e seus aliados, «A verdade seria o relato fidedigno, eticamente
que sempre souberam o que aconteceu. Mas o articulado, cientificamente respaldado, contras-
problema não é só das vítimas é, também, de toda tado intersubjetivamente, alinhavado em termos
a sociedade.  narrativos, afetivamente perfeito, sobre o ocorrido
O panorama do qual Zalaquett fala é muito no país nos últimos 20 anos compreendidos pelo
complexo e difícil de conseguir porque, como mandato».3
comum, os jogos de poder que exerceram influ- Penso que há um sentido filosófico muito im-
ência determinante no período irregular em que portante para este debate porque destaca a elabo-
esses atropelamentos foram cometidos, seguem ração narrativa das memórias e também procura
funcionando no presente. É o que Theodor Adorno compreender razões e motivos, e não verdades
escreveu, num famoso artigo, sobre a memória na absolutas e definitivas. É importante entender o
Alemanha2.  que estava em jogo no momento em que tudo ocor-
reu. A elaboração da memória tem que ser vista
1 Zalaquett, J. (1996) “El marco normativo para una política sobre de um ponto de vista ético, para que as tarefas e
las violaciones de Derechos Humanos ocurridas en el pasado”
Fundación Mirna Mack, Amnistía y reconciliación nacional:
encontrando el camino de la justicia, 87-108.
3 Comisión de entrega de la Comisión de la Verdad y Reconcilia-
2 Adorno, T. (1969) ¿Qué significa remover el pasado? Interven- ción (2004) Atún Willakuy. Versión abreviada del informe final
ciones. Nueve modelos de Crítica. Caracas: Monte Ávila, 117-136. de la Comisión de Verdad y Reconciliación. Lima, p.32.
as ações não sejam relativizadas, pressupondo a -ditatorial, fez uma opção: nem pela justiça, nem 17
impossibilidade de classificar ou qualificar o que pela verdade, nem pela reparação.  

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


aconteceu. Para isso, recorre-se a vários métodos: Desde 1974, foram produzidas 23 comissões só na
perícias judiciais, antropologia forense, análises América Latina. A primeira, na Bolívia, em 1982, sob
de laboratório. Essas tarefas, as difíceis situações o governo de Hernan Siles Zuazo, foi um enorme fra-
em que se deve atuar e o acúmulo de experiência casso. O processo mais produtivo e importante tem
condicionam a carência desse tipo de elaboração sido o argentino. Coordenada pelo escritor Ernesto
e discussão conceitual em experiências anteriores.  Sábato, ela começa com a Comissão Nacional sobre
Acredito que precisamos analisar com cuida- o Desaparecimento de Pessoas, criada mediante
do algumas circunstâncias dessas experiências decreto em 1983, quando se iniciou o período de-
internacionais. Quero discutir algumas tarefas da mocrático. Quando nasceu, a comissão argentina
memória social, os condicionamentos e os defeitos encontrou, nos debates desse tempo, adversários

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


no marco dos processos em que têm sido instituí- em organismos de direitos humanos, por exemplo,
das as Comissões da Verdade, que são ferramentas as Mães da Praça de Maio. O escritor Adolfo Pérez
culturais e institucionais. Quero falar um pouco Esquivel, prêmio Nobel da Paz, também não quis
das suas configurações e dos seus lugares sociais.  integrar a Comissão. Atualmente, o livro Nunca
De certa forma, as Comissões da Verdade são Mais, que é o relatório da Comissão, é extremamente
tentativas de sutura social com diversos objetivos.
De alguma maneira, são iniciativas de colocar as
A elaboração da memória tem que
coisas em seu lugar. Ou, em alguns casos, de criar
um lugar novo. Isso fica muito claro, por exemplo, ser vista de um ponto de vista ético,
quando elas se relacionam com assuntos da pátria para que as tarefas e as ações não
e reconciliação. sejam relativizadas, pressupondo
Essa foi uma grande descoberta da comissão
a impossibilidade de classificar ou
peruana: se uma importante parte do país não
qualificar o que aconteceu.
sabe o que aconteceu (no caso, a ditadura), não
pode haver reconciliação. Passadas as circuns-
tâncias mais cruciais da repressão e do conflito, importante, pois foi reeditado 25 vezes e é a publi-
o que acontece em alguns lugares do mundo, em cação mais vendida da história editorial argentina4.
sociedades dilaceradas, é que parte importante do A comissão também foi acusada de ativar ódios
debate tem sido institucionalizada nessas comis- e ressentimentos, impedir o esquecimento e não
sões. O Uruguai, por outro lado, foi o único país propiciar a reconciliação nacional. É interessante
da América Latina que optou pelo esquecimento que a comissão argentina é a única que não fala de
em um referendo. Foi uma espécie, então, de reconciliação nacional, termo que simplesmente
“esquecimento democrático”. No dia 16 de abril não aparece. A comissão peruana agrega o termo re-
de 1989, 58% das pessoas que votaram, ativadas conciliação depois que Alejandro Toledo Manrique
pela mobilização de setores sociais dos direitos assume a presidência desse pais. Chile, El Salvador
humanos, resolveram anistiar os repressores. Foi, e Guatemala também retomam o conceito. 
nesse momento, curiosamente, um mecanismo
anti-democrático na democracia. A lei da impu-
4 Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas
nidade foi ratificada nesse momento. Por muitos
(1983/2003) Nunca Más. Informe de la Comisión Nacional
anos, no Uruguai, o assunto permaneceu impune. sobre la Desaparición de Personas. Buenos Aires: Editorial de
Dessa maneira, o país, na chamada transição pós- la Universidad de Buenos Aires (Sexta edición).
18 Há uma discussão proposta por Patrícia Valdez, O que precisamos ressaltar com as Comissões
que dirigiu e coordenou a Comissão de El Salvador, é a sua contribuição à satisfação do direito à
na qual ela defende que as Comissões da Verdade verdade das vítimas e à reconciliação nacional
só têm sido possíveis num mundo unipolar em (termo que agora cabe) e, por último, seus efeitos
termos políticos, ou seja, seria impossível que elas pedagógicos. Porque a ideia é criar uma verdade
tivessem existido na Guerra Fria, porque nesse pe- pública, ou seja, fornecer uma versão avaliada
ríodo iriam nascer acusações de favorecimento de do que aconteceu nas respectivas sociedades que
um dos dois lados5. Aliás, chegamos aqui ao tema enfrentaram ditaduras militares. O que iremos
da doutrina de segurança nacional. Em 1999, de- dizer às nossas crianças e aos jovens sobre o que
pois que Augusto Pinochet foi preso em Londres, a aconteceu no Brasil nos anos 1960? É a transmis-
advogada de direitos humanos, Pamela Pereira, em são da memória, que não pode ser um ato mera-
uma mesa de diálogo com a presença de entidades mente vertical ou comemorativo. É muito mais
de direitos humanos e acadêmicas, afirmou: “O complicado e complexo.
professor universitário que ensinava democracia Quando falamos das Comissões, partimos da
era um inimigo. Também o era o dirigente operário convicção de que reunimos elementos necessários
para uma nova definição da verdade pública, fun-
damentada na realidade dos fatos ocorridos.  Essa
Quando falamos das Comissões,
é a ideia que tem sido canalizada em muitos casos.
partimos da convicção de que Quando o debate começa, está cheio de enganos.
reunimos elementos necessários Um deles é considerar que vítimas e algozes
para uma nova definição da verdade estão em condições iguais. É claro que isso não
pública, fundamentada na realidade está certo em nenhuma situação. Nos referimos à
situação pós-ditadura e pós-guerra. Por exemplo,
dos fatos ocorridos.
o discurso dos dois demônios. Júlio Maria Sangui-
netti, presidente uruguaio que levou até o fim as
que convocava a greve. Assim, uma conduta sin- leis da impunidade, afirmou: «O Uruguai viveu
dical passava a ter o caráter inimigo. Quantos não uma guerra interna, promovida por dois demô-
desapareceram por condutas dessa natureza?”6 nios: um esquerdista, guerrilheiro e marxista; o
Então, o contexto da Guerra Fria, para alguns outro, os militares, que se apoderaram do poder
autores, significava a impossibilidade de abrigar e cometeram alguns excessos».7 A teoria dos dois
esse tipo de comissão. Para alguns isso se deve demônios não foi inventada por ele. Ela surgiu
também ao fato de que a Comissão significaria na Argentina, com os decretos de impunidade
um grande perigo porque é uma leitura da situa- das chefias militares, que também anistiaram os
ção que subestima os elementos estruturais que principais chefes das guerrilhas, especialmente da
seguem operando. Um caso patético é a Guatema- Montonera (organização político-militar argentina
la. As mesmas estruturas repressivas continuam que empreendeu uma luta armada, na forma de
funcionando de uma maneira tremendamente vio- guerrilha urbana, entre 1970 e 1979). 
lenta, mesmo estando numa suposta democracia. O jornalista e pesquisador argentino Horacio
Verbitsky classifica isso como uma lógica dissocia-

5 Valdéz, P. (2001) “Las comisiones de la verdad, introducción”


en Méndez, J., Abregó, M, Mariezcurrena, J. Verdad y Justicia.
7 Citado em Michelini, F. (2001) “La experiencia del Cono Sur en
Homenaje a Emilio F. Mignone. IIDH, CELS, 2001, 123-128.
material de Comisiones de la Verdad” en Méndez, J., Abregó,
6 Citada en Fundación de ayuda social de las iglesias cristianas M, Mariezcurrena, J. Verdad y Justicia. Homenaje a Emilio F.
(FASIC), Mesa de Dialogo. Exposiciones. Santiago,16. Mignone. IIDH, CELS, 2001, p.188.
da, surgida na Argentina desde o início do governo Já no caso chileno, é impensável que algum 19
pós-ditadura, porque pretende pesquisar o horror estrangeiro fosse integrar a Comissão da Verdade.

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


sem castigar os culpados. Essa suposta igualdade Um dos integrantes, inclusive, foi ex-ministro da
que a teoria dos dois demônios sustenta é um
absurdo. No caso argentino, temos pesquisas dos
Centros de Estudos Legais e Sociais que apontam
Reforço novamente que o interessante
que os grupos armados no país não chegaram a ter é que são comissões que surgem,
mais de dois mil integrantes; enquanto o Exército, de uma maneira ou de outra, por
nessa época, possuía 200 mil soldados8. É muito relações de força e negociações.
difícil falar de um empate e de dois demônios em
igualdade de condições, em um contexto como
esse. Porém, essa é uma ideologia muito forte. Há Educação de Augusto Pinochet. Na última comis-

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


um interessante estudo de uma psicóloga argenti- são que operou, em 2010, a Comissão Equatoriana
na, que trabalha em São Francisco, Susana Kaiser, da Liberdade, apoiada pelo governo de Rafael
que ela chama de Pós-memória do Terror9. Ela Correa, tinha como coordenadora uma ex-guer-
voltou ao país e realizou pesquisas com jovens rilheira, vítima da repressão, que foi torturada e
que não eram de direitos humanos, nem familiares esteve presa na Costa Rica. É o único caso que eu
de militares. Na pesquisa, que foi muito extensa, conheço em que a Comissão da Verdade é presi-
ela descobriu que os jovens ainda condenam o dida por uma vítima da repressão.  
processo ditatorial e aceitam as premissas básicas Então é possível perceber como há uma gran-
da Ditadura, entre as quais a teoria dos dois demô- de variedade de situações. Reforço novamente
nios. Então eles também são pró ao não-castigo. que o interessante é que são comissões que
Há muitas variáveis quando se trata de Comis- surgem, de uma maneira ou de outra, por rela-
sões da Verdade. No caso de El Salvador, por exem- ções de força e negociações. Porque, em muitos
plo, houve uma negociação de paz que parte do fim casos, inclusive no Brasil, órgãos, entidades e
da guerra salvadorenha, fruto de negociações entre igrejas elaboraram seus próprios relatos do que
governo e exército, sendo que um dos acordos foi aconteceu. O Serviço de Paz e Justiça do Uruguai
a criação da comissão. Na situação daquele país, também teve seus relatos sobre a ditadura no
não havia qualquer possibilidade de ela ser inte- país. A particularidade é que essas são Comis-
grada por salvadorenhos. Por isso, os integrantes sões da Verdade com função pública e balizadas
dessa comissão eram americanos, venezuelanos pelo poder do Estado. Porém, isso tem diferentes
e argentinos. Não havia nenhum salvadorenho, expressões em países diferentes. 
porque não havia nenhuma figura num país em Voltando à situação de El Salvador, a direita
guerra polarizada que fosse aceitável para as duas no país, por conta da pressão internacional e pela
partes. Além disso, os arquivos da comissão estão situação de guerra, assinou acordos de paz na Co-
em Nova York, acredito. Ou seja, nunca estiveram missão da Verdade. Imediatamente eles atuaram
em El Salvador. Era impossível.  Imaginem vocês as no sentido oposto: cinco dias depois, anistia para
vítimas dando seus depoimentos nessas condições. todos os generais. Já na África do Sul, a comissão
era televisionada e pública, se constituindo como
um verdadeiro evento nacional. O relato da Comis-
8 Verbitsky, H. (2001) “Mignone y la singularidad argentina” Mén-
dez, J., Abregó, M, Mariezcurrena, J. Verdad y Justicia. Homenaje
são da Verdade de El Salvador não foi divulgado
a Emilio F. Mignone. IIDH, CELS, 2001, 25-28. massivamente. Então, depende muito de cada
9 Káiser, S. (2005) Posmemories of Terror. Londres: Palgrave, Mc situação, de cada país. 
Millan.
20 Uma grande pesquisadora e estudiosa das Co- têm memória. Eles também as constroem. De
missões da Verdade, Priscilla Hayner, questionou certa forma, não é apenas recuperá-la. É uma
certa vez como caracterizar estas comissões. Elas, imagem falsa. A memória nunca se recupera; ela
primeiro, focam o passado, mas não investigam se constrói.
eventos específicos. As comissões não são para Patrícia Valdéz disse algo extremamente impor-
investigar uma matança ou uma repressão. São tante. “O tema das Comissões da Verdade depende
para trabalhar em padrões de abuso em certos do que os movimentos, organismos e sociedade
períodos. Elas funcionam por tempo definido para fazem com ele.”14 Ou seja, as expectativas de que
depois entregarem seus relatórios. No Brasil, a as Comissões irão resolver questões da memória
ideia é que ela dure dois anos. Elas são avalizadas e da história estão absolutamente destinadas à
pelo Estado e esta é a diferença das comissões frustração. Uma outra declaração sábia da mesma
não oficiais: pesquisam fatos recentes, não são pesquisadora, que eu sublinho: “As Comissões
comissões históricas10. da Verdade são entes difíceis e controversos. Elas
E temos também tarefas muito complicadas têm uma tarefa enorme, que muitas vezes pode
e complexas, porque envolvem a transmissão
da memória. Outro estudioso, Michelini, disse:
“As Comissões da Verdade têm uma importância
Será um dia possível que as
fundamental nos próximos anos, porque os mo- Comissões da Verdade surjam em
mentos de dor históricos não são transmissíveis às outros contextos, como Abu Graib?
novas gerações que se incorporam à vida ativa dos
países.”11 Autores como Michelini são, ao meu ver, ser impossível de ser cumprida com o tempo e
um tanto otimistas. Essas visões não seriam com- recursos, que são insuficientes. Elas devem lidar
partilhadas, por exemplo, por Margaret Popkin, com mentiras descaradas, primitivas e vulgares;
outra pesquisadora que, na América Central, tra- e têm que encarar negações, enganos, dolorosas
balhou com esses assuntos12. Pesquisas empíricas e quase inenarráveis memórias das vítimas para
recentes, como a de El Salvador, não colocariam revelar verdades que ainda são perigosas e que
isso, porque as elaborações do passado também ainda continuam a resistir.» 15
têm a ver com o presente13. Um caso exemplar é a comissão da Argentina
Isso também tem a ver com o fato de que os que, feita por setores dos direitos humanos, aca-
repressores, seus aliados e seus grupos também bou tendo um papel absolutamente fundamental
em tudo o que aconteceu depois, chegando aos
juízes, aos repressores, inclusive sacerdotes, que
10 Hayner, P. (2001) Unspeakable truths: facing the challenges of
Truth Comissions. New York: Routledge. participaram de torturas. 
11 Michelini, Michelini, F. (2001) “La experiencia del Cono Sur en
Como podemos avaliar o efeito de uma Co-
material de Comisiones de la Verdad” en Méndez, J., Abregó, missão da Verdade? Esta também é uma questão
M, Mariezcurrena, J. Verdad y Justicia. Homenaje a Emilio F. tratada por Priscilla Hayner, que questiona tam-
Mignone. IIDH, CELS, 2001,p. 203.

12 Popkin, M. (2001) “La búsqueda de la verdad y la justicia 14 Valdez,P. Valdéz, P. (2003) “Comisiones de la verdad: un ins-
después de las comisiones de la verdad en Centroamérica” trumento de las transiciones a la democracia” CAP Estudios.
en Méndez, J., Abregó, M, Mariezcurrena, J. Verdad y Justicia. Working Papers. P.6
Homenaje a Emilio F. Mignone. IIDH, CELS, 2001, 223-259.
15 Popkin. Popkin, M. (2001) “La búsqueda de la verdad y la justi-
13 Rellana, C.I. (2005) “Discurso oficial y reparación social” en cia después de las comisiones de la verdad en Centroamérica”
Portillo, N., Gaborit, M., Cruz, J.M. Psicología social en la pos- en Méndez, J., Abregó, M, Mariezcurrena, J. Verdad y Justicia.
guerra: teoría y aplicaciones desde El Salvador, 169-224. Homenaje a Emilio F. Mignone. IIDH, CELS, 2001, 223-259
bém até que ponto o público está envolvido. Até social trocam perspectivas. O foco maior desse 21
onde o processo da Comissão da Verdade envolve processo cognitivo e comunicativo não é o passa-

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


a população de diferentes setores: psicólogos (as), do, e sim assuntos sérios do presente, tais quais a
profissionais da saúde, setores sindicais, jovens? natureza do poder e a questão da lealdade, tanto
Que grau de participação é gerado? E que tipo de a culturas oficiais como vernaculares.»16
apoio e contenção oferece esse processo das co- Será um dia possível que as Comissões da
missões às vítimas? Que qualidade, que natureza Verdade surjam em outros contextos, como Abu
tem o relato? Até onde chega a verdade? Este é um Graib? Priscila Hayner, no final de seu livro, per-
assunto a que, em meu livro Memórias da Dor, gunta: quando vamos ter Comissões da Verdade
dedico um capítulo inteiro. sobre as intervenções dos Estados Unidos na
Em nenhum dos dois relatórios elaborados pela América Latina?
comissão no Chile (1991 e 2004) aparece o nome Finalizo com uma homenagem a um amigo,

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


de qualquer repressor. No relatório salvadorenho, Jon Cortina. Sacerdote jesuíta, foi companheiro
que é muito interessante e avançado em alguns de Ignacio Martín-Baró e trabalhava em El Sal-
pontos, também não consta nenhuma palavra vador num povoado rural quando Martín-Baró
sobre o assunto dos paramilitares, que na história foi assassinado. Ele estava em uma comunidade
do país é muito pesado. A comissão peruana e a quando ouviu no rádio o seu nome como um dos
comissão guatemalteca enfatizam e apontam a mortos. Ele se salvou porque estava trabalhando
relação das forças estrangeiras, o treinamento
por parte dos exércitos norte-americanos e das
Outro ponto complexo é a questão de
forças contrainsurgentes no Peru e na Guatemala.
Nos outros países, e em El Salvador, o assunto
gênero que não consta nos relatórios.
internacional é completamente colocado de lado, Há graves violações consideradas
nenhuma menção é feita. É daí que vem a pergun- crimes de guerra.
ta: até onde vai a verdade?
Outro ponto complexo é a questão de gênero lá no dia do massacre. Mas a razão pela qual eu
que não consta nos relatórios. Há graves violações relembro Jon Cortina, que era físico de formação, é
consideradas crimes de guerra. O tema aparece porque ele foi um dos organizadores da Comissão
na Comissão da Guatemala, mas nos outros é um da Verdade em El Salvador, além de organizar a
assunto completamente ausente. Então, novamen- Fundação Pró-Busca, que trabalhava com o res-
te pergunto: que verdade está sendo construída? gate de crianças camponesas sequestradas pelo
Por último, e talvez o mais importante: qual é exército salvadorenho. Ele morreu depois de par-
o impacto social da comissão? Não é um assunto ticipar conosco de um congresso de psicologia da
de curto prazo ou de efeito imediato. Como mostra libertação, vítima de um derrame cerebral.  
a experiência argentina, é algo de longo prazo.  Jovens camponeses de Chalatenango relem-
Compartilho a definição de Bodnar sobre braram Jon Cortina, organizador da memória da
memória pública. «Essas palavras são um corpo vida dessas mesmas populações. Esta é então
de crenças e ideias sobre o passado que ajudam a uma homenagem à memória das vítimas ativas e
sociedade ou um público a entender tanto o seu organizadas de quem, com seu sacrifício, com sua
passado quanto o seu presente e, por implicação, ambição, com sua valentia, com sua coragem orga-
seu futuro. É moldada ideologicamente numa es-
fera pública em que várias partes de sua estrutura 16 Citado en Wertsch, J. (2002) Voices of collective remembering.
Londres: Cambridge University Press, p. 33.
22 nizou um esforço para trabalhar sobre a memória
num contexto absolutamente adverso. 
Quando as Comissões da Verdade salvadore-
nhas fizeram um relatório, recebido com muito
otimismo pelas vítimas, os camponeses e outras
pessoas de diversos setores, rapidamente, como eu
já disse, tiveram a anistia decretada pela direita
no governo. O mais interessante é que, para as
vítimas, os camponeses, o processo da Comissão
da Verdade não dizia absolutamente nada de novo.
Eles sabiam de tudo p orque tinham vivenciado
o acontecido em El Salvador. O importante é que
pela primeira vez esse testemunho era avaliado e
conhecido pelo resto da sociedade salvadorenha.
Isso é o que é mais importante.
A urgência da conquista do Direito 23

à Memória e à Verdade

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


IVAN AKSELRUD DE SEIXAS
JORNALISTA, PRESIDENTE DO CONSELHO ESTADUAL

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA
(CONDEPE)

Fui apresentado aqui como jornalista, presidente Precisamos citar nomes. Situar politicamente
do CONDEPE (Conselho Estadual de Defesa dos esta questão para entendermos o que estamos
Direitos da Pessoa Humana), diretor do Núcleo falando e, inclusive, entendermos o porquê dos
de Preservação da Memória Política e militante profissionais da Psicologia terem tanto a ver com
político na defesa dos direitos humanos desde esse difícil período brasileiro.
que recuperei a liberdade. Porém, hoje prefiro Primeiramente, a ditadura não foi simples-
ser apresentado como ex-preso político e ficar na mente um governo que enlouqueceu e começou
condição de militante e subversivo. a torturar e a matar. O que aconteceu em 1964
Por outro lado, sou uma pessoa que vive cer- foi um assalto ao poder, aos cofres públicos, e a
cada por profissionais da Psicologia. Sou casado implantação do terrorismo de Estado, detalhada-
com uma psicóloga, Cristiana Pradel; trabalho no mente exercido, não como uma coisa passageira
CONDEPE com o Aristeu Bertelli, que é psicólogo; ou superficial, afinal foram 21 anos nesse regime.
A ditadura no Brasil foi pesada. Há sempre uma
comparação com a da Argentina e do Chile, como
A ditadura não foi simplesmente um
se por aqui ela tivesse sido mais “tranquila”, a tal
governo que enlouqueceu e começou ponto que o jornal Folha de S. Paulo se sentiu no
a torturar e a matar. O que aconteceu direito de dizer que o Brasil viveu uma “Ditabran-
em 1964 foi um assalto ao poder. da”. Nos esquecemos de dar valor à nossa história,
aos nossos personagens, e ficamos com aquele
e tenho vários amigos e amigas que são profis- complexo de vira-lata achando que ditadura boa
sionais desta área. Quando se fala em ditadura, foi lá na Argentina. Não! Ditadura é ditadura. E
repressão e Psicologia, fica algo muito vago, como no Brasil a gente tem a necessidade imperiosa de
se os (as) psicólogos (as) tivessem a boa vontade resgatar tudo o que aconteceu.
de se preocupar com esse assunto apenas por ser Não é de hoje que precisamos disso. Apren-
interessante ou curioso, como se nada tivessem a demos nos bancos escolares que Tiradentes era
ver com ele. Não é bem assim. parte de um movimento chamado Inconfidência
24 Mineira. Aprendemos que ele foi julgado (como negro com índio, não contava muito. Também
se aquele julgamento fosse legítimo), enforcado nesse levante, todos foram presos e torturados.
e esquartejado. Os outros envolvidos no levan- Felipe dos Santos foi esquartejado por quatro
te teriam tido uma vida mansa porque foram, cavalos, que despedaçaram seu corpo. Com tudo
apenas, degredados. Quando lemos os Autos da isso, até os dias de hoje ouvimos uma história do
Devassa, percebemos, primeiramente, que todo Brasil como sendo uma terra de gente pacífica e
esse processo foi extremamente violento e que ordeira, que para tudo consegue dar “um jeitinho”. 
todos foram torturados. O poeta Cláudio Manoel Obviamente que isso é uma mentira grosseira.
da Costa, que na versão oficial cometeu suicídio, Obviamente que isso é para fazer com que tenha-
foi, na verdade, assassinado em tortura. O laudo mos vergonha de sermos brasileiros. Bom mesmo
de necrópsia feito na época, e que está nos Autos foi a ditadura argentina; bom mesmo foram os
da Devassa, mostra que ele morreu durante um libertadores da América Latina, esquecendo que
processo de violentíssima tortura. aqui também tivemos lutadores que engrossam
Tiradentes foi julgado e esquartejado, os ou- esse time.
tros, degredados, ou seja, foram colocados em Temos uma situação curiosa que, até pouco
uma caravela e, próximo à costa da África, jogados tempo, o Brasil parecia fazer fronteira apenas
ao mar para que tentassem nadar e chegar à terra. com os Estados Unidos. Argentina e Uruguai não
existiam para nós; Chile, menos ainda; Costa Rica,
então, nem se sabe ao certo onde fica. Só Estados
Temos que pensar em nossa história
Unidos, que pareciam ficar aqui ao lado. Nós ape-
para falarmos em memória; pensar nas comercializávamos, e principalmente, obede-
em nosso país como o nosso país e cíamos ao nosso irmão maior, os Estados Unidos.
não como qualquer lugar. Temos que pensar em nossa história para fa-
larmos em memória; pensar em nosso país como
Alguns até chegaram, mas quase todos foram de- o nosso país e não como qualquer lugar. O golpe
vorados por animais ou atingidos por doenças; um de 64 não foi uma mudança de comportamento de
ou outro conseguiu viver um bom tempo por lá. um governo, foi um assalto ao poder. Significou a
Se procurarmos no dicionário veremos que a implantação de um Estado terrorista que assaltou
palavra “inconfidente” quer dizer traidor, aquele os cofres públicos. Mas houve muita luta contra
em que não se confia. E nós repetimos essa besteira esse regime. Como houve muita luta e mobilização,
de inconfidentes por causa de nossa não história, de negros e brancos, para que a escravidão no
não memória, não culto aos nossos personagens. Brasil fosse abolida.
Os revoltosos de Vila Rica na realidade foram E quando falamos de ditadura, precisamos
revolucionários e não inconfidentes. Não eram lembrar que, 19 anos antes do golpe de 1964,
confiáveis ao inimigo, à corte portuguesa, porque houve outro regime dessa natureza que termi-
eram nossos heróis, nossos mártires. Cruelmente, nou em 1945, com um processo que levou a uma
Tiradentes é patrono da Polícia Militar. Que saca- Constituição absolutamente democrática, a de
nagem com a nossa história! 1946. Esse período curto de democracia tem uma
Esquecemos também que antes da Inconfi- característica tristemente curiosa. Ao sairmos da
dência Mineira, lá mesmo em Vila Rica, algumas ditadura do Estado Novo, a esquerda, notadamen-
décadas antes, houve outra revolta, liderada por te o Partido Comunista, não cobrou pelos crimes
Felipe dos Santos. Mas como ele era mestiço de cometidos pelo Estado Novo. A famosa cena de
Luís Carlos Prestes saindo da cadeia e indo para neste evento, precisa saber que durante a ditadu- 25
um comício juntamente com Getúlio Vargas, não ra muitas pessoas foram internadas em clínicas

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


cobrando sequer saber o paradeiro de sua mulher, psiquiátricas. E é aí que entra a minha história.
Olga Benário, é patético! Não fui preso ao acaso ou injustiçado. Fui preso
Mas nós, povo brasileiro, também não cobra- porque lutei contra a ditadura. O Estado ditatorial
mos os crimes cometidos na ditadura de Getúlio. tinha mais é que tentar nos destruir, porque nós
Uso sempre um exemplo muito elucidativo: não fomos presos na rua, falando sozinhos con-
durante o Estado Novo, todo mundo falava de tra o governo. Eu, meu pai e minha mãe éramos
Felinto Miller, que era o chefe de polícia. Mas militantes de uma organização clandestina revo-
havia outros personagens. No Rio de Janeiro, uma lucionária de luta armada. Minha mãe não fez
dupla de irmãos – Charles e Cecil Borer – eram ações de luta armada, mas eu fiz várias e meu pai
torturadores durante o Estado Novo. Quando também, pois ele era o dirigente da organização;

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


esse regime acabou, e ninguém apontou o dedo minha mãe era do setor de apoio, assim como
para eles, seguiram torturando durante o período minhas duas irmãs.
curto de democracia e prosseguiram na Ditadura O MRT (Movimento Revolucionário Tiraden-
implementada em 1964. E só não continuaram tes), organização da qual fazíamos parte, não era
torturando porque já estavam muito velhos e não composto por estudantes brancos de classe média
tinham mais condições de se dedicar a essa estra- da zona sul do Rio de Janeiro. Essa é uma mentira
nha arte de massacrar as pessoas. inventada por Fernando Gabeira para falar da luta
Falo isso porque este momento de a gente vir contra a ditadura. Eu sou gaúcho, meu pai, para-
até aqui para falar de memória e verdade é para ense, meu comandante era um operário mineiro,
apontar o dedo na cara de quem participou da meu pai era mecânico, outro companheiro que
ditadura, de quem se beneficiou dela, cobrar seus dirigia a organização era tipógrafo do interior de
crimes e exigir punição. Só assim não teremos São Paulo. Portanto, nenhum de nós tinha nada a
outras ditaduras e novos Charles e Cecil Borer ver com o perfil branco, classe média e estudante
torturando. do Rio de Janeiro.
Daí vem a pergunta: o que os (as) psicólogos Pertencíamos a uma organização revolucio-
(as) têm a ver com memória e verdade? O que têm nária clandestina de luta armada porque enten-
a ver com a ditadura? díamos que o assalto ao poder, feito pela direita
Do mesmo jeito que o Brasil tem um povo pací- brasileira, em 1964, foi a deflagração da luta arma-
fico e ordeiro, segundo a visão oficial, os (as) psi- da. Exercíamos o direito de resistir à ditadura, que
cólogos (as) também não têm nada a ver com essa foi a agressora. Falo que fiz ações de luta armada,
luta, na versão oficial, claro. Só que no meu papel afinal era um guerrilheiro, com muito orgulho, e
de subversivo, afirmo: têm e muito! Falo isso tendo não me analisem, caros (as) psicólogos (as). Eu
como base meu relato pessoal, minha história. tinha 16 anos quando fui preso junto com meu
No Núcleo Memória temos uma ideia que nos pai ao encontrar com um companheiro que havia
guia: “Conhecer o passado, para entender o pre- sido preso e contou nosso lugar de encontro. Nós
sente e construir o futuro”. Por isso, a importância fomos capturados – não aceito a ideia de prisão,
de se conhecer a ditadura de Vargas, para enten- porque para existir prisão é preciso o precedente
der a democracia que estava acontecendo e não da legalidade. Nós fomos capturados, levados para
permitir que houvesse uma nova ditadura. Essa o DOI–CODI e torturados, eu e meu pai juntos. Eu,
quantidade grande de jovens que estão aqui hoje, no pau de arara, e ele, na cadeira do dragão.
26 Eu falei onde morava, já achando que minha Anos depois, nós, membros da Comissão de
mãe e minhas irmãs não estavam mais lá, pois já Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos,
era noite. Porém elas não tinham fugido e foram realizamos buscas à procura dos desaparecidos.
presas. Na manhã seguinte, os jornais anunciaram Tínhamos uma pista de que pelo Manicômio
a morte do meu pai: resistência seguida de morte. Judiciário tinham passado outros presos políti-
Meu pai supostamente resiste à prisão e, no tiro- cos. Além do Mellinho, sabia que também tinha
teio, é morto. Mas meu pai estava vivo quando essa passado por lá um líder messiânico chamado
notícia foi publicada. Meu pai foi morto na noite Aparecido Galdino. Na sua boa fé, Galdino resiste à
do dia em que deram a notícia de sua morte. Eu inundação da região onde ficava sua comunidade
fiquei preso quase seis anos, dos 16 aos 22. Minhas para a construção de uma barragem e, para isso,
irmãs e minha mãe ficaram presas durante um ano convocou os integrantes de sua seita, que ele
e meio sob a acusação de serem mãe, esposa, filhas chamava de Exército de Deus. Os milicos, quando
e irmãs de terroristas. Normalmente isso chama ouviram a palavra exército, já deram um jeito de
“parentesco”, mas na ditadura tudo é possível... interpretar como queriam e invadiram a cidade,
prenderam todos, torturaram muito, até jogar Apa-
recido Galdino no Manicômio Judiciário de Franco
O que os (as) psicólogos (as) têm a
da Rocha. Ele ficou lá por mais de cinco anos e só
ver com memória e verdade? O que saiu depois de muita interferência de Dom Paulo
têm a ver com a ditadura? Evaristo Arns, que organizou uma mobilização
para tirá-lo de lá.
Eu era menor de idade e tentaram me quebrar de Quando estivemos nesse Manicômio Judiciário
vários modos, porém não me rendi. Tive, sim, uma para buscar essas informações, conseguimos de-
vértebra quebrada durante as sessões de tortura tectar que mais alguns presos políticos passaram
e eles tentaram me enlouquecer. Nos últimos três por lá oficialmente. Um deles foi o Costa Pinto,
anos de prisão, fiquei internado na Casa de Custódia um dos fundadores da ALN (Ação Libertadora
e Tratamento de Taubaté, que é um hospício-prisão Nacional), que esteve preso um tempo por lá e
de segurança máxima até os dias de hoje. que também foi dilacerado pelas medicações que
Vocês podem pensar que eu era um caso único. recebeu. Temos outros documentos. Num deles,
O Adriano Diogo, que está aqui, também ex-preso o diretor daquela instituição, o almirante médico
político, foi meu colega de cela; Paulo Vanuchi, Paulo Fraletti, manda aplicar Escopolamina 0,2%
meu amigo, que fez o Plano Nacional Direitos nos presos, afirmando: “Informe que não é medi-
Humanos, também foi parceiro de reclusão. Uma cação, é punição”.
figura que conhecemos lá foi Antonio Carlos de Para quem não sabe, Escopolamina é o soro
Mello Ferreira, o Mellinho, que foi preso e muito, da verdade, usado pelos nazistas. As mulheres
mas muito torturado. Uma das informações que tomam Buscopan, que tem a escopolamina como
queriam tirar dele era a localização da Vanda, um de seus ingredientes da fórmula, porque ele
codinome da presidenta Dilma Houssef. Mas ele elimina os movimentos peristálticos involuntários,
resistiu até o ponto de ser enlouquecido na tortura. expresso pelas cólicas menstruais. Ao aplicar
Ficou por cinco anos no manicômio judiciário, saiu Escopolamina, a pessoa fica sem os movimentos
depois que conseguimos anistia. Porém, estava involuntários, entre os quais a respiração. Assim,
muito debilitado devido a grandes doses de me- vai tendo a sensação que está perdendo a capaci-
dicamentos criminosos que deram a ele. Morreu dade de respirar. É quando o torturador avisa que,
alguns poucos anos após sair da prisão. se ele falar a verdade, lhe aplicará um antídoto.
Assim faziam os nazistas e assim o fez Paulo Quando eu saí da prisão, tive um diálogo que 27
Fraletti nos presos comuns e nos presos políticos só muito recentemente passei a compartilhar

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


do Manicômio Judiciário de São Paulo, o Juqueri. com as pessoas. Na hora em que estava saindo,
Estive na Casa de Custódia e Tratamento de um delegado entrou na sala, me apontou o dedo
Taubaté, mas não cheguei a ser tratado como e disse: “Tu sabe que nós vamos te matar, né?”.
louco. Não me foi administrada nenhuma droga, Respondi a primeira coisa que me veio à cabeça:
mas tentaram dar uma forcinha para que eu en- “Sei, mas vou dar trabalho”. Obviamente que
louquecesse de vez. Nos três anos que passei por essa frase ficou martelando na minha cabeça por
lá, vi de tudo! Primeiro, que os meus colegas de muito tempo. Enquanto me seguiam, me sentia
prisão tinham cometido crimes horrendos. Por “tranquilo”, por assim dizer, mas era muito chato.
lá viviam necrófilos, pedófilos e assassinos em Afinal, aonde eu ia eles iam atrás. Quando saí da
série. Quando saí da prisão, não foi por redução prisão, fui dar um jeito de refazer ou fazer minha

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


de pena nem por decisão judicial, já que nunca vida: voltei a estudar e a trabalhar. Num dia estou
havia sido processado e, consequentemente, paquerando uma garota, quando ela me pergunta
condenado. Só sairia antes se houvesse provas de se eu era gay. Perguntei o porquê da pergunta e
haver cessado minha periculosidade. Seis meses
depois que estava lá, os médicos disseram que
minha periculosidade havia chegado a um nível
Eu era menor de idade e tentaram
de normalidade e indicaram minha soltura. O juiz me quebrar de vários modos,
aceitou, mas o Exército não. Por isso obrigam o porém não me rendi. Tive, sim,
juiz a voltar atrás, e assim fiquei em Taubaté sem uma vértebra quebrada durante as
nenhuma decisão judicial.
sessões de tortura e eles tentaram
Após a morte do jornalista Wladimir Herzog, o
ditador de então, Ernesto Geisel, resolve controlar
me enlouquecer.
seu canil de torturadores. Mas aqui vale dizer que
houve uma grande injustiça nesta história. Assas- ela aponta para um ex-torturador, dizendo que
sinado em outubro de 1975, todo mundo lembra aquele homem não tirava os olhos de mim. Eu
da morte de Herzog, que causou uma comoção não sou gay, mas também era péssimo informar
nacional e é tida como a virada em direção à de- que eu era um ex-preso e aquele, um torturador.
mocratização. Mas não foi bem assim. Em janeiro Assim eu disfarçava e fingia que não sabia o que
de 1976, Manuel Fiel Filho, operário negro e nor- estava acontecendo. Era uma coisa desagradável.
destino (talvez por isso ninguém se lembre dele), Na campanha pela Anistia, vi a oportunidade
foi morto de forma idêntica à de Herzog. Daí que de dar trabalho. Pensava que, se fossem me matar
Geisel é compelido, tamanha a gritaria nacional e eu não iria matar um deles, eu deveria denunciar
e internacional, a fazer a abertura “lenta, gradual para me tornar um alvo difícil. Dentro dessa estra-
e segura”.  tégia, fui um dos primeiros a fazer isso dentro do
Em 1976, o governo Geisel se livra de três casos Congresso Nacional: dar nome e sobrenome aos
complicados que eram foco de muita denúncia. Eu torturadores. A ação causou pânico na bancada do
fui solto em 20 de agosto; Cesar Queiroz Benjamin, MDB, pois dar o nome dos milicos que torturaram
outro menor que estava no Rio de Janeiro, saiu da era um absurdo para eles.
prisão em 4 de setembro; e o Mellinho, em dezem- Eu me dediquei e me dedico a isso, por ter a
bro, que também foi solto para livrar o governo de consciência de que esta é uma tarefa cívica. Vol-
mais denúncias. tamos à questão sobre o que vocês psicólogos (as)
28 têm a ver com isso. Não é porque fiquei preso em não serem cassados. Em outras esferas inferiores
um manicômio judiciário, mas é que o arsenal do do Judiciário também houve isso. Assim o STF
setor psíquico foi usado como instrumento para funcionava, mas submetido.
a ditadura. Um dos torturadores que atuavam em No Legislativo não precisa nem dizer como o
São Paulo, o médico psiquiatra Dr. Carlos Vitor terror foi implantado: “Obedece, senão é cassado”.
Mondaine, usava a alcunha de Dr. José. Ele era O Judiciário e o Legislativo foram dominados e
o capitão psiquiatra, que trabalhava no Hospital existia uma aparência de rodízio no poder, pois
Geral do Exército, torturava no DOI-CODI e se não se teve um único ditador ao longo dos 21 anos
excitava nas sessões de tortura. A ação da Psico- do regime. A cada quatro anos um presidente
logia nesse período merecia ser mais estudada. A era eleito. Só não se fala que o presidente não
Cecília Coimbra, psicóloga do Rio de Janeiro, fez era eleito, e sim indicado pelo Estado Maior das
um trabalho sobre isso que se chama Guardiões Forças Armadas, que era dominado pelo Exército.
da Honra. Temos vários casos que deviam ser mais Então, para quem olhava de fora, via o Legislativo,
bem analisados. o Judiciário e o Executivo funcionando democra-
Trago esse ponto para voltarmos para a ques- ticamente. Havia até imprensa livre, o que era
tão da Comissão da Verdade. A história de que a fato, porque os grandes jornais eram apoiadores
Comissão da Verdade na Argentina julga os tortu- e beneficiários da ditadura.
radores de lá e que abriram seus arquivos pode ser Não podemos nos esquecer disso. Assim como
motivo de inveja para nós. Mas precisamos olhar também não podemos nos esquecer da participa-
melhor esta história porque ela não é bem assim. ção dos empresários, de modo geral, nesse regime.
Segundo Ignácio Dolbles nos contou neste A Varig quase foi para o espaço e teve gente cho-
mesmo evento, havia na Argentina uma lei que rando: “Ah, coitada da Varig, vai fechar...”. Esta
impedia de falar sobre punição aos torturadores: empresa brasileira, que agora foi encampada pela
a lei da obediência devida. Diferente da Argentina, GOL, sempre apoiou a ditadura de Getúlio Vargas,
a ditadura brasileira tinha o papel de implantar fazendo inclusive a ligação entre ele e Hitler; e em
o sub-imperialismo, a polícia da América. Como 1964, juntamente com outros empresários, finan-
disse Richard Nixon: “Para onde balançar o Brasil, ciaram o golpe militar. E como retribuição, claro,
ganharam algumas coisas. A Varig ganhou as
linhas internacionais da PANAIR, que foi fechada
Eu me dediquei e me dedico a isso,
sob o pretexto de más condições das aeronaves.
por ter a consciência de que esta é Os sócios foram à Justiça, ganharam o direito de
uma tarefa cívica. voltar a operar, mas daí a ditadura editou o decreto
secreto. O decreto secreto não permite recorrer à
a América Latina vai junto com ele”. Havia aqui um Justiça, cabendo apenas ao juiz anexar ao processo
projeto político, econômico, e militar. Um projeto e encerrar o caso.
nacional integrado à Guerra Fria e à dominação Dos 1.200 decretos secretos editados, só co-
estadunidense que aqui precisava manter as apa- nhecemos dois. E os outros? O que acobertaram?
rências. Havia um judiciário funcionando a favor Não sabemos até os dias de hoje. Mas daí você tem
disso. Ninguém se lembra de que, nos primeiros empresas beneficiárias, como a Rede Globo, que
três meses do regime ditatorial, foram cassados recebeu muito dinheiro do grupo americano Time
ou perderam direitos políticos cerca de cinco mi- Life, se tornando uma rede de rádio e televisão que
nistros do Supremo Tribunal Federal e que vários não existia até 1964, quando se restringia a um
outros foram “convidados” à aposentadoria para jornal no Rio de Janeiro. Então, essas empresas que
financiaram e se lambuzaram durante a ditadura, Em 1982, quando Franco Montoro foi o primeiro 29
engrossam o coro da aparência de uma imprensa governador eleito democraticamente em São Pau-

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


livre. O Estadão sofreu censura só tempos depois, lo, antes de tomar posse, um dos seus secretários
já que ajudou a dar o golpe. Mas depois, sim, foi nomeados disse uma grande besteira: “Vamos
o único diário que teve censores em sua redação. queimar os arquivos do DOPS para apagar essa pá-
Os outros todos eram felizes e tranquilos, como a gina infeliz da nossa história”. O delegado Romeu
Folha de S. Paulo, que não só não fez oposição, Tuma, diretor do DOPS paulista e participante de
como deu um dos seus jornais, a Folha da Tarde, todo o processo de repressão política, se aproveita
para o DOI-CODI fazer sua campanha de divul- dessa situação e envia os arquivos do DOPS para a
gação, com o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Polícia Federal, onde ficou até quando Fernando
Essa aparência de legalidade, de funcionamen- Collor de Mello mandou abrir. Em São Paulo, os
to das instituições democráticas, é que diferencia familiares de desaparecidos políticos exigiram e

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


a ditadura brasileira da argentina. Lá o Judiciário o governador Luis Antonio Fleury Filho mandou
para a Secretaria da Cultura toda a documentação.
Hoje este material está no Arquivo do Estado.
Dos 1.200 decretos secretos editados,
Fizemos muitas maluquices para encontrar e
só conhecemos dois. E os outros? O salvar documentos. Uma delas foi invadir o IML,
que acobertaram? que, apesar de público, não tem acesso permitido.
Um dia, nós da Comissão de Familiares de Mortos
não foi incorporado ao aparato repressivo. Por e Desaparecidos Políticos ficamos sabendo que no
isso, se não podemos processar o torturador, IML teria uma reunião para destruir uma série de
processaremos a quem eles obedeciam. Daí, o documentos. Foi então que reunimos repórteres
próximo governo democrático, o de Carlos Menen, e advogados e invadimos a sala do então diretor
criou a Lei do Ponto Final, que estabelece o fim: Antonio Mello. Realmente, lá estavam juntos,
não se tem mais o que fazer. além de Antonio Melo, o delegado Jair Cesário
Mas com muita vontade política, Nestor Kirchne Jr., um promotor e outros funcionários do IML
revogou essas duas leis e aprovou no Congresso Na- prontos para destruir os documentos. Com a
cional outra que permitia a punição. Os arquivos da confusão gerada, foi possível resgatar as fichas.
Argentina, na verdade, nunca foram abertos porque Entre tantas, encontramos uma com a seguinte
a Justiça de lá se baseia em depoimentos e não em inscrição: “não fotografar e não fichar”. Na ficha
documentos escritos para condenar os torturadores. referente a um desconhecido apenas identificado
Pode parecer estranho o que eu vou dizer, mas pelo n° 4059/ 69, concluímos que se tratava de
o Brasil foi o país que mais abriu documentos. Na Virgílio Gomes da Silva, operário assassinado
Argentina isso não aconteceu; o Chile abriu muito no DOI-CODI em setembro de 1969 e dado como
pouco e no Brasil já tem muito documento nos desaparecido desde então. Mas não conseguimos
arquivos do Estado. Quem mandou abrir isso foi mais informações para provar nossa suspeita.
o Fernando Collor de Mello, que por ser muito mi- Quando abrimos os arquivos do DOPS, antes dos
diático e fazer muito alarde em frente às câmeras funcionários públicos, nós, da Comissão, fomos os
na Casa da Dinda, ao ver manifestantes, familiares primeiros a manusear estes documentos e de novo
de vitimas de Goiânia com uma faixa pedindo a não conseguimos encontrar informações para
abertura, disse que em 15 dias abriria os arquivos provar que se tratava desse companheiro. Anos
do DOPS, e assim o fez. Mas quem mandou os depois, Mário Magalhães, jornalista da Folha de
arquivos para a Polícia Federal? S. Paulo, que escrevia um livro sobre Carlos Mari-
30 ghella, encontrou, por acaso, as fotos e as fichas Agora tratemos do caminho das pedras. Se eu
de Virgílio Gomes da Silva e conseguiu provar que for esperar a Comissão vir me perguntar o que eu
nossa suspeita era procedente. tenho para dizer, talvez ela não se lembre que eu
Estou contando isso para mostrar que os arqui- exista. Mas é sempre possível usar a criatividade.
vos estão lá: é preciso procurá-los e pesquisá-los. O deputado estadual Adriano Diogo aprovou na
Não adianta reclamar que eles não existem. Não Assembleia Legislativa uma Comissão Estadual da
adianta reclamar da Comissão da Verdade. No Verdade que terá como tarefa ouvir depoimentos
Chile, a primeira Comissão da Verdade de lá a ser e recolher documentos para encaminhá-los à
instalada foi quando Pinochet ainda estava no
poder. A última revelou que não foram três mil
Precisamos pesquisar mais, trabalhar
desaparecidos, mas sim, 15 mil.
É importante termos claro que a Comissão da mais e entregar os materiais para a
Verdade não irá fazer justiça, pois ela não é um Comissão da Verdade, para que não
tribunal, mas sim uma instância formada por haja novamente aquela desculpa de
pessoas que buscam a verdade. Cabe a todos (as) que ninguém se interessou.
nós fazermos pressão para que a justiça seja feita.
A questão do Plano Nacional de Direitos Hu-
manos 3 é interessante por ilustrar a questão da Comissão Nacional. As Assembleias Legislativas
vontade política. Foram realizadas até hoje 11 de todos os Estados devem fazer isso, assim como
Conferências Nacionais de Direitos Humanos, as Câmaras Municipais. Os CRPs também podem
organizadas por entidades da área e que sempre e devem servir como postos de coleta, para que a
produzem cartas de intenções. O Plano Nacional sociedade tenha a oportunidade de entregar para
de Direitos Humanos já teve duas outras versões, a Comissão o que puder contribuir.
com praticamente o mesmo conteúdo, durante o A Comissão da Verdade não é fruto da cabeça
governo Fernando Henrique Cardoso. Mas faltava de alguém. É uma necessidade nacional. O país
nelas um detalhe: a Comissão da Verdade. precisa saber, como alguns aqui também não
sabiam, do uso de manicômios judiciários, de
drogas, de instrumentos psíquicos contra oposito-
Essa aparência de legalidade, de
res políticos durante o regime militar. Precisamos
funcionamento das instituições pesquisar mais, trabalhar mais e entregar os ma-
democráticas, é que diferencia a teriais para a Comissão da Verdade, para que não
ditadura brasileira da argentina. haja novamente aquela desculpa de que ninguém
se interessou.
Vamos homenagear quem merece e tirar os
Em 2010, o ministro dos Direitos Humanos nomes de tantos torturadores de ruas e praças
Paulo Vanucchi foi praticamente linchado por ter do Brasil. Tiradentes é um herói, um resisten-
defendido a instalação da Comissão da Verdade. te brasileiro. Tiremos das ruas homenagens a
Hoje, estamos debatendo qual comissão teremos. criminosos como Castelo Branco, Costa e Silva,
Isso mostra um avanço fantástico. O que nós temos Médici e outros canalhas do gênero. Precisamos
de fazer é tomar iniciativas. Sete membros é pouco; homenagear as vítimas desse criminoso, como
dois anos é pouco; o Brasil é imenso. João Goulart. Quantas ruas têm o nome dele
aqui em São Paulo? Já Sérgio Fleury, delegado e 31
torturador, condenado como chefe do Esquadrão

Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade


da Morte, tem uma rua com seu nome no bairro
da Vila Leopoldina. E o Minhocão, que o povo da
cidade chama de Elevado Costa e Silva. Temos de
tirar da vista de nossas crianças o nome deles e
colocar nomes verdadeiros do nosso povo, para
que assim possamos nos orgulhar.
Mas não podemos esperar que um parlamentar
faça isso, ou alguém como eu, que tem uma traje-
tória de luta. Todos nós temos de ser protagonistas
desse processo, porque isso diz respeito à nação

CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP


brasileira.
A Comissão da Verdade sinaliza um bom
momento. O Conselho Regional de Psicologia de
São Paulo é excelente instrumento, assim como o
Sindicato dos Psicólogos.
Em nome do povo brasileiro e latino-america-
no, vamos dar todo apoio à Comissão da Verdade,
dar nomes – até porque a maioria dos torturadores
não é conhecida pelos seus nomes e sim pelos seus
apelidos. Com muito orgulho de ser brasileiro, com
muito orgulho de ser latino, com muito orgulho
de ser do lado inteligente da humanidade. Vamos
nos unir para que possamos construir um futuro
melhor e para que no futuro essa garotada possa
bater no peito e dizer que tem orgulho de ser bra-
sileiro, de ser latino-americano e, principalmente,
de ser humano. Essa é nossa tarefa.
Psicologia e o
realização Direito à Memória
e à Verdade
CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP

También podría gustarte