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ee INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA MESTRADO EM PSICOPATOLOGIA E PSICOLOGIA CLINICA. 2000/2002 Abandono Psicolégico: Estudo Exploratério ‘Um Contributo dos Profissionais dos Centros de Acolhimento Tempordrio de Menores em Risco Isabel Maria Palma Esteves Rosinha Margal - N° 893 ORIENTADOR: Professor Doutor Eduardo Sa Instituto Superior de Psicologia Aplicada 2004 Ao Professor Doutor Eduardo Sa pela orientagio desta tese, pela tranquilidade com que nos estimula a pensar clinica ¢ criativamente, mobilizando saberes e emogies. ‘Aos profissionais dos Centros de Acolhimento Temporario de Menores em Risco que participaram nesta investigacio e que tomaram possivel a sua coneretizagiio. Aos meus colegas de trabalho que, directa ou indirectamente, acompanharam © percurso desta investigagiio, designadamente Anabela Soares por toda a compreensio, 4 Eugénia Rodrigues pela escuta amiga, a Teresa Filipe pela disponibilidade constante e 4 Ana Cecilia pelo apoio estatistico. As minhas queridas amigas Eunice Martins e Patricia Silva pela sua preciosa amizade, por todo o apoio, pelas criticas e pelas sugestdes a esta investigagio. A minha mae pelo seu apoio incondicional e por ter sempre acreditado docemente na concretizagao deste trabalho. ‘Ao Paulo, pela paciéncia, pela confianga, pelo incentivo, pelo amor e ... por tudo. Ao meu pai, eternamente presente. RESUMO Com a presente investigagao pretendemos aceder & compreensio das consequéncias psicologicas do abandono ¢ do acolhimento temporario das criangas, com © objective de realizarmos um estudo exploratério sobre 0 Abandono Psicologico. Na revistio bibliografica, atendendo ao facto de que a problematica do Abandono se relaciona com as questées ligadas a formagiio, insuficiéncia e/ou rompimento de Vinculos Afectivos ¢ aos maus-tratos infantis, procuramos explorar teoricamente esses conceitos, pelo que a fundamentagdo tedrica assenta em diversas reflexes acerca desses aspectos, antecedidos de um enquadramento da crianga e da familia ao longo da hist6ria e do enquadramento juridico até actualidade. ‘A metodologia apresentada é a de utilizagio de um Questionério, que construimos ¢ aplicimos numa amostra aleatéria, constituida por cinquenta profissionais que exercem fungdes em Centros de Acolhimento Temporario de Menores em Risco. Através da sua aplicagaio, procuramos conhecer quais os sinais psicolégicos consensualmente aceites pelos profissionais como de sofrimento psicolégico das criangas acolhidas. Paralelamente, procurémos também saber quais as percepgdes dos profissionais sobre o seu papel para a organizagdo afectiva das criangas acolhidas © sobre o actual sistema de acolhimento temporario. Verificamos que os profissionais identificam de forma consensual alguns sinais de sofrimento psicolégico nas criangas acolhidas temporariamente, corroborando em muitos aspectos, as teorias apresentadas por diferentes autores. Conclui-se da necessidade dos técnicos dos centros de acolhimento temporério terem uma formagio especifica na area das criangas em risco, necesséria para dotectar ¢ corrigir os tipos de afecto que estas criangas podem vir a apresentar (segundo a teoria de Guex) e da necessidade das criangas acolhidas temporariamente serem 0 mais rapidamente entregues as suas “familias de adopgio”, de forma a receberem a constancia do amor necessaria ao seu desenvolvimento. Com base nos estudos de Guex, ao reconhecer em adultos sinais abandonicos da infancia, ¢ licito inferir, com grande grau de possibilidade de probabilidade, que muitas criangas apresentam sinais de mal-estar que podem ser considerados precursores de sintomas abandénicos. Palavras-chave: vinculos afectivos, maus-tratos infantis, abandono psicolégico, acolhimento temporario. ERRATA Na pagina 5, 1° parégrafo, 4* linha, 39* e 40* palavras, onde se 1 “a uma”, leia- se apenas “a” Na pagina 13, 2° pardgrafo, 5* linha, 63° e 64° palavras, onde se 1€ “ou dos”, Ieia-se apenas “dos” ‘Na pégina 24, 4° paragrafo, S* linha, onde se Ié “com os niveis”, leia-se “com os ‘maiores niveis”. Na pagina 112, 13* linha, onde se 1é “nu”, leia-se “num” Na pagina 132, 3° parigrafo, 6* linha, onde se 1é “percepcionadas das criangas, percepcionadas pelos profissionais”, leia-se “das oriangas, percepcionadas pelos profissionais”” Na pagina 151, 2° pardgrafo, entre a 3* ¢ 5* linhas, onde se 1é “as criangas acolhidas sejam agressivas se sintam diminufdas durante o acolhimento, se isolem durante 0 acolhimento, com os adultos e com as outras criangas”, leia-se “as oriangas acolhidas sejam agressivas com os adultos e com as outras criangas, se sintam dimimuidas Na pagina 159, ultimo pardgrafo, onde se 1é “Supomos que este resultado se devera a diversidade de experiéncias”, leia-se “Supomos que este resultado se deveri a diversidade de experiéncias locais”. durante o acolhimento, se isolem durante o acolhimento”. Na pagina 161, iltimo paragrafo, 1* linha, onde se 16 “é a prevenit”, leia-se “6 a prevengio” “Abandono Psicologico: Estudo Exploratério {Um Contributo dos Profissionais dos Centros de Acolhimento Tempordrio de Menores em isco” INDICE Introducio . Revisio da Literatura .. ‘A Crianga e a Familia ao longo da Historia . Civilizag6es Antigas . Idade Média ... O Nascimento do Sentimento de Infancia ... Século das Luzes ... A Familia Contempordnea .... Investigagées ... ‘A Crianga ¢ os Maus-tratos ao longo da Histéria ..... Aspectos Epidemiolégicos A Crianga nos Textos Legais Evolugdo da Legislagio ao longo da Histéria ... Interesse Superior da Crianga .. Lei de Protecgaio de Criangas e Jovens em Perigo .... Medidas de Promogio e Protecgdio em Regime de Colocagio: Acolhimento Institucional de Curta Duragao....46 Perspectivas sobre a Formagiio de Vineulos Afectivos ... Abordagem Etolégica da Vinculagao ....... Teoria de John Bowlby .. Contributos de Mary Ainsworth para a Teoria da Vinculagao... Teorias Psicanaliticas das Relagdes Objectais Abandono Psicolégico/ Criangas em Risco ........ Perspectivas sobre a Insuficiéncia ou Rompimento de Vinculos Afectivos.... Perspectivas sobre os Maus-tratos Infantis. Definigtio ¢ Classificagao ... Btiologia doa maus-tratos infantis .. Perspectivas sobre as Consequéncias Psicolégicas/Traumaticas .. Descrigo clinica/ sintomatologia do abandono: A perspectiva de Guex... wo ll2 Método ..... Amostra .. Delineamento do Estudo Objectivo ¢ objecto do estudo Tipo de Estudo .. Instrumento ... Procedimento .. Apresentaciio e discussiio dos Resultados. Conelusio .... .- 160 163 Referéncias Bibliograficas .... Anexos Anexo A: Guido do Questiondtio ... Anexo B: Anilise Estatistica ... 188 Lista de Quadros QUADRO 1: Evolugao da crianga e da familia ao longo da histéria 249) QUADRO 2: Algumas contribuigdes para o estudo dos maus-tratos infantis ao longo da historia . QUADRO 3: Algumas contribuigdes sobre os aspectos epidemiolégicos dos maus-tratos infantis. QUADRO 4: Evolugao da legislagdo ao longo da histéria QUADRO 5: Algumas conceptualizagdes acerca da vinculagio .... QUADRO 6: Algumas contribuigées sobre a insuficiéncia e o rompimento de vinculos afectivos .. 122 QUADRO 7: Algumas contribuigdes para a definigéio dos maus-tratos infantis....122 QUADRO 8: Algumas contribuigdes para a classificagao dos maus-tratos infantis... +123 QUADRO 9: Etiologia dos maus-tratos infantis 125 QUADRO 10: Consequéncias psicolégicas da insuficiéncia e do rompimento de vinculos afectivos 126 QUADRO 11: Consequéncias psicologicas dos maus-tratos infantis QUADRO 12: Sintomatologia do abandono ... QUADRO 13: Caracterizago da amostra . QUADRO 14: Primeira parte do Questionari QUADRO 15: Segunda parte do Questionsiri QUADRO 16: Terceira parte do Questionario: O olhar sobre o sistema .. +127 127 1129 133 O olhar sobre as criangas .. O othar sobre os profissionais.... 136 137 QUADRO 17: DimensGes relativas 4 Primeira parte do Questionério: O olhar sobre as eriangas ... secre dd QUADRO 18: Itens ordenados por dimens@es .......... ve 44 QUADRO 19: Resultados significativos obtidos na Primeira parte do Questionatio: O olhar sobre as criangas seceennee 46 QUADRO 20: Dimensées relativas & Segunda parte do Questionario: O olhar sobre os profissionais . 153 QUADRO 21: Itens ordenados por dimensées .... 153 QUADRO 22: Resultados significativos obtidos na Segunda parte do Questionério: 158, O olhar sobre os profissionais ........+ QUADRO 23: Dimensées relativas a Terceira parte do Questionario: O olhar sobre o sistema . +158 QUADRO 24: Itens ordenados por dimensées ..... 158 QUADRO 25: Resultados significativos obtidos Terecira parte do Questionério: O olhar sobre o sistema .......-- 159) Lista de Figuras FIGURA 1: Modas, respectivas percentagens e medianas relativos a primeira parte do Questionério O olhar sobre as criancas .. e141 FIGURA 1a: Modas, respectivas percentagens e medianas relativos & primeira parte do Questionatio O olhar sobre as criangas 2142 FIGURA 2: Modas, respectivas percentagens e medianas relativos a segunda parte do Questionario: © olhar sobre os profissionais .. 1-152 FIGURA 3: Modas, respectivas percentagens e medianas relativos a terceira parte do Questionario: O olhar sobre o sistema . 2157 INTRODUCAO, Perceber & um extraordindrio estado mental: perceber tudo 0 que vos rodeia, as Grvores, 0 pdssaro que canta, o Sol atrés de vés; perceber os rostos, os sorrisos; perceber a lama da estrada; perceber a beleza da paisagem, da palmeira delineada sobre o fundo rubro do poente, das dguas crespas- perceber, tdo-s6, sem escolha. (Krishnamurti, 1980, p. 77) ‘As investigagdes demonstram que a primeira inffncia ¢, simultaneamente, a fase mais critica e mais vulnerdvel no desenvolvimento de qualquer crianca e que € nos primeiros anos de vida que se estabelecem os alicerces da vida psfquica, essenciais a0 desenvolvimento intelectual, emocional ¢ moral (Brazelton, T., Greenspan, S., 2002). ‘Todas as fases do desenvolvimento tém necessidades proprias. Deseja-se que os pais torem possivel a construglio e a manutengéo de relagdes estaveis, dando seguranga através da constncia dos investimentos ao longo do tempo, da intensidade ¢ da qualidade do afecto e prestando os cuidados adequados a cada idade. ‘A organizagio familiar © a “qualidade suficientemente boa” dos cuidados prestados & crianga vao influenciar os seus modelos de identificagao ¢ esto na base da continuidade de ser, preconizada por Wincott. Para que as coisas corram bem, D. Meltzer entende que a familia deve desempenhar quatro fungdes fundamentais. Sdo elas: gerar 0 amor, promover a esperanca, conter 0 sofrimento mental e ensinar a pensar (Seabra Diniz, 1993, p. 24). HG, no entanto familias que, por razSes diversas, privam os filhos dos cuidados necessérios ¢ adequados, expondo-as frequentemente a situagdes repetidas de sofrimento, que delapidam os seus recursos de satide, sem que haja quaisquer perspectivas continuadas de reparagao (S4, E., 2002). processo de desenvolvimento, além de nunca ser linear ¢ tinico, envolve riscos € desajustamentos que nem sempre a prevengdo priméria e secundaria pode evitar. Nestes casos, hé que tentar efectivar esses direitos através de uma intervencao que procure superar esses desajustamentos viabilizar uma recupera\ 1995). (Leandro, A., Os diferentes sistemas jurfdicos acolhem os principios da Declarago dos Direitos da Crianga, que prevéem sistemas de protecgao administrativa e judiciria do menor, que passou a ser um verdadeiro sujeito de direitos. A crianga é hoje alvo de atengdes de cariz, preventivo que esto inseridas numa légica de promogiio de is e ecossistemas desenvolvimento integrado, em que a acgdo abarca os varios sistem: (Brofenbrenner, 1979 cit. por Fernandes, 2000). De acordo com 0 Quinto Relatério da série Report Card, preparado em Setembro de 2003 pelo Centro de Investigago da UNICEF, acerca da situago mundial dos maus-tratos, existem entre todos os paises inconsisténcias nas classificagées, falhas de definigdes e de metodologias de investigacio comuns, o que significa que existe uma comparacao internacional pequena. © mesmo se passarii em termos nacionais. Quando uma crianga ou um jovem se encontra em perigo, significa que a sua situagio ou 0 seu estado esto desadequados face ao estédio de desenvolvimento em que se encontra, Assim, sera necessério res tbelecer a coeréncia e o equilfbrio, protegendo-o. Poderd tornai necesséria a adopcao de medidas, a nivel legal, que protejam a crianga ou o adolescente em perigo, tendo em vista © seu interesse superior e 0 seu bem-estar integral. Uma das medidas de promogdo e protecgio possfveis é 0 acolhimento em instituigao, podendo este, de acordo o artigo 50° da Lei de Protecgio de Criangas e Jovens em Perigo (Lei n° 147/99 de 1 de Setembro), ser de curta duragdo (tem Iugar em casa de acolhimento por prazo nfo superior a seis ‘meses) ou prolongado (tem lugar em lar de infancia ¢ juventude quando se justifica um acolhimento com durago superior a seis meses). Neste estudo, interessamo-nos pelo acolhimento tempordrio (de curta duragio) das criangas com idades compreendidas entre os zero e os doze anos, legalmente previsto como tendo uma duracdo maxima de seis meses. ‘Ao nos debrugarmos sobre a bibliografia existente sobre os maus-tratos psicolégicos, verificamos uma lacuna ao nivel da existéncia de tipologias que permitam caracterizar, com base em estudos especificos, as diferentes formas de maus-tratos. Encontramos, porém, estudos empfricos importantes. Esta escassez de trabalhos de investigagio nesta area, pensamos estar relacionada com a dificuldade de avaliagio objectiva deste tipo de mau trato e nao com a pertinéncia do estudo. Existem critérios dispersos do ponto de vista da avaliagio social, juridica, psicolégica, no entanto e face & necessidade de intervencao interdisciplinar cada vez mais necesséria, nao seria conveniente que as equipas de trabalho adoptassem critérios teéricos comuns de partida? Parece-nos importante tentar contribuir nesse sentido. Bowlby (1982), a propésito das questdes cruciais que se referem aos cuidados com a crianga, refere que, entre os psicanalistas e aqueles que séo por eles influenciados, todos reconhecem a importincia vital de uma relagio estével permanente com a uma mfe (ou mée-substituta) durante toda a infancia. ‘Tendo em conta este pressuposto teérico, constituiré 0 acolhimento temporétio ‘uma medida de protecgiio reparadora do abandono psicol6gico? Com a presente investigagio, procuramos aceder A compreensio das consequéncias psicolégicas do abandono do acolhimento tempordrio das criangas, com o objectivo de realizarmos um estudo exploratério sobre 0 Abandono Psicolégico, tendo por base as teorias de varios autores, nomeadamente a teoria de Guex (1950) e de Bowlby (1982), © os contributos recolhidos junto dos profissionais de Centros de Acolhimento Temporério de Menores em Risco, junto dos quais procuramos conhecer quais 0s sinais psicolégicos consensualmente aceites como de softimento psicolégico das criangas acolhidas temporariamente. ‘Ao utilizarmos o termo Abandono Psicolégico referirmo-nos a um termo lato, encarado numa vertente interna ou psiquica, que € do afecto, onde procurémos englobar as insuficiéncias, os rompimentos afectivos ¢ os maus-tratos psicol6gicos. Assim, iniciamos este trabalho revisitando a hist6ria. As ctiangas ¢ as relagées que envolvem a sua vida, nem sempre receberam a importincia, 0 significado e os cnidados que hoje Ihes sdo atribufdos, pelo que o lugar que ocupam na sociedade ¢ na famflia se alterou ao longo dos tempos. O mesmo sucedeu em relagdo ao enquadramento legal das criangas. Assim, a primeira parte do nosso trabalho consiste num enquadramento histérico e legal da crianga. Continuamos este trabalho revendo as teorias. Procuramos compreender como se processa a formago dos vinculos afectivos e qual a sua importancia para o desenvolvimento global da crianga, seguindo-se a abordagem das perspectivas sobre a insuficiéncia ¢ 0 rompimento dos vinculos afectivos e sobre 0s maus-tratos infantis, onde incluimos 0 conceito de abandono psicol6gico. Depois, referimo-nos as consequéncias psicolégicas/ trauméticas das falhas inerentes a esses movimentos e, finalmente, abordamos a descrigao clinical sintomatologia do abandono. Seguidamente, explicitamos a metodologia adoptada. Procuramos, através do contributo dos profissionais de Centros de Acolhimento ‘Tempordrio de Menores em Risco, conhecer quais sio os sinais psicolégicos consensualmente aceites entre eles como de sofrimento psicolégico das criangas acolhidas temporariamente. Paralelamente, procuramos também saber quais as percepgées dos profissionais sobre o seu papel para a organizagio afectiva das criangas acolhidas e também sobre o actual sistema de acolhimento temporério. Para isso, recorremos a um Questionétio, que construimos ¢ aplicémos numa amostra aleat6ria de cinquenta profissionais de centros de acolhimento temporério. Posteriormente, apresentamos os resultados obtidos a partir da anflise estatistica. Verificamos que os profissionais identificam de forma consensual alguns s inais psicolégicos de softimento nas criangas acolhidas temporariamente, corroborando em muitos aspectos, as teorias apresentadas por diferentes autor Conclui-se da necessidade dos técnic $s dos centros de acolhimento temporério terem uma formagao especifica na area das criangas em risco (para detectar e corrigir 0s tipos de afecto que estas criangas podem vir a apresentar: tipo negativo- agressivo e tipo negativo-amante, retomando a teoria de Guex) e da necessidade das criangas acolhidas temporariamente serem o mais rapidamente entregues &s suas “familias de adopgiio”, de forma a receberem a constincia do amor necesséria ao seu desenvolvimento. ‘Com base nos estudos de Guex, ao reconhecer em adultos sinais aband6nicos da infncia, € Ifcito inferir com grande grau de possibilidade e de probabilidade que muitas criangas apresentam sinais de mal-estar que podem ser consideradas precursores de sintomas abandénicos. REVISAO DA LITERATURA “(...) Crescer é ser-se como um rio em que os pais sero as margens; se elas se tornarem apertadas, transbordard; se ndo as tiver, pode crescer em todas as direccées e, sendo assim, ser tudo é ser coisa nenhuma (...)” (Sé, E., 1993, p. 88) ‘A Crianga e a Familia ao longo da Historia © conceito de infaincia € um conceito hist6rico, que nio existiu desde sempre nem da mesma forma € que € indissocidvel da nogdo de vida privada. O sentimento de inffincia, expressio particular do sentimento de familia, tem o seu inicio no século XII, emergindo com maior intensidade a partir dos séculos XVI ¢ XVII (Aries, 1988). ‘Ari’s (1988) reflecte sobre 0 lugar ocupado pela crianga e pela familia nas sociedades tradicionais e nas sociedades industriais. vilizacSes Antigas Nas civilizagées antigas, durante varios séculos, néo havia lugar para a crianga no existia um enquadramento legal que protegesse as criancas, que tinham escassos direitos. O direito exercia-se na defesa dos adultos. Na india, a familia era um grupo reli; ‘oso chefiado pelo pai. Assentava no poder paternal € na autoridade do marido sobre a mulher e os filhos. Aquele desempenhava_ fungGes judiciérias e o seu poder exprimia-se pelo direito total de julgar e punir. Na Babilénia, a familia era igualmente assente no poder paternal, sendo o pai o chefe do cla ou da tribo eo chefe de familia. ‘Na antiga Mesopotfmia, 0 casamento assentava no objectivo da procriagdo e no assegurar ao chefe de familia um herdeiro masculino. O homem detinha a autoridade sobre a famflia e & mulher competia conceber ¢ criar os filhos até a idade do desmame, por volta dos trés anos. A partir dessa idade, a educagio ficava a cargo do pai. No Egipto, a proctiagio fe parte dos dons divinos e a garantia da descendéncia era um dos objectivos da constituigdo da familia. A crianga estava no centro das preocupagdes morais. Ao pai cabia a tarefa de transmitir a sua experiéncia ao filho. Na antiga Grécia (por volta de 2450 aC.) era dada mais importancia & comunidade © as relagdes de alianga do que A familia. A famflia tinha uma importincia politica, sendo uma etapa necesséria para a agregaciio de um individuo na cidade. O infanticfdio era considerado como uma precaugio legitima contra a fome, sendo uma prética autorizada e tolerada (Salgueiro, 1991). Em Roma (século Il a.C. a I d.C.) 0 pai detinha o direito ilimitado sobre a vida ou a morte dos filhos, especialmente sobre os filhos disformes e débeis, excepto © ptimogénito, que mandava afogar ou castigava corporalmente (Rousselle, 1996). A religifo fazia da crianga um ser diablico, com pecados e dotado de forgas obscuras que suscitavam desconfianga. Idade Médi Na idade média a crianga continua a ser considerada como propriedade dos pais. A antiga sociedade tradicional tinha dificuldades em conceber a crianga ¢ 0 10 adolescente, Arits (1988) defende, como primeira tese, a auséncia do sentimento da infancia na Idade Média. Na Europa Ocidental, até ao século XI, 0 sentimento de inffincia nfo existia, 0 que significa que nio existia a consciéncia da especificidade infantil. A infancia era apenas um tempo de transigéo que passava depressa. Quando deixava de ser enfaixada, a crianga passava a vestir-se como os adultos. Entre os séculos XIII e XVII, a crianga era encarada como um simbolo do mal ¢ da imperfeigio e é, muitas vezes, rejeitada e abandonada pela famflia. Os pais tinham © poder de colocar o direito da existéncia dos filhos & prova, fazendo-os passar por duras provas de resistencia, muitas vezes espancando-os ¢ molestando-os fisica ¢ psicologicamente. O pai podia matar o filho sem correr grandes riscos. O abandono tornava-se, muitas vezes, a tinica solugio legal para a mae se separar de um filho ilegitimo, nao aceite pelo pai ou pelo meio. O infanticidio era praticado em segredo, como forma de controlo demogréfico ou como soluc&o para a ilegitimidade, a malformagao e a miséria. Durante a Alta Idade Média, a Igreja recorreu a sang6es para controlar o infanticidio (Flanchin, 1979 cit por Motta, 2001). A rejeigdo da crianga era frequentemente manifestada pela recusa da mae em amamenté-la (Badinter, s.d.). As criangas eram mandadas para longe dos pais para serem criadas por amas de leite ¢ os pais preocupavam-se muito pouco com os filhos distantes. A entrega as amas seria considerada uma conduta de abandono ou mesmo um infanticidio disfargado (Badinter, s.d.). Quando a crianga regressava a casa dos pais vinha muitas vezes gravemente doente, uma vez que as amas de leite no tratavam convenientemente das criangas, alimentando-as mal e enfaixando-as devido a moleza do seu corpo e para que crescessem direitas ¢ bem formadas. A crianca que sobrevivia transformava-se rapidamente num pequeno adulto, passando ditectamente de crianga muito pequena a adulto jovem. Logo que WW comecava a desenvolver-se fisicamente, misturava-se no mundo dos adultos, aprendia a viver no contacto directo com eles, partilhando as suas tarefas © divertimentos. A socializagio da crianga nfo era assegurada nem controlada pela familia. A educagio era assegurada pelo aprendizado, isto é, aprendia-se as coisas ajudando os adultos a fazé-las. Havia uma indeterminag! das idades que se estendia a todas as actividades sociais: divertimento, oficios, armas. A crianga era criada junto com o adulto, vivendo e aprendendo ao longo das actividades didrias. ‘A duragdo da infancia resumia-se ao periodo de maior fragilidade fisica da crianga. Durante os primeiros anos de vida manifestava-se um sentimento superficial da crianga que Aris (1988) denominou de sentimento da «crianga-brinquedo», em que os adultos brincavam com ela por ser pequena e engracada, no sendo dada, regra geral, grande importincia, por exemplo, & morte de uma crianga, uma vez que essa seria substituida por outra. Por isso se dizia que a crianga permanecia numa espécie de anonimato. Ultrapassado aquele perfodo, muitas vezes a crianga ia viver para longe da familia. Aquele sentimento de inféncia despertou inicialmente a favor dos rapazes ¢ as raparigas continuavam submetidas a um modo de vida tradicional que as confundia com os adultos. Na arte, representava-se especialmente a infancia pela sua graga ou pelo seu pitoresco. Os retratos das criangas vio representando a evolugdo das formas de encarar a inffincia de acordo com cada época. ‘A familia nao tinha uma fungio afectiva. O amor podia existir, mas nfo era indispensdvel A existéncia, nem ao equilfbrio da familia, As antigas funebes familiares eram a conservagio dos bens, a prética de um oficio, a entreajuda quotidiana e, em momentos de crise, a protecco da honra ¢ das vidas, tendo em vista a sobrevivéncia. 12 Nas comunidades tradicionais, as trocas afectivas e os interc&mbios sociais efectuavam-se fora da familia, propensio a que 0s historiadores franceses dio 0 nome de sociabilidade. A familia distinguia-se com pouca clareza de um espaco social caloroso. © Nascimento do Sentimento de Infancia Com o aparecimento da escola, a partir do fim do século XVII, a crianga ganha um novo lugar na famflia e na sociedade, Surge o inicio de um sentimento sério auténtico de infancia e 0 apego a crianga j& nao se exprime pelo divertimento com as suas «tontices». Os adultos alteram a sua concepgio sobre a crianga, a quem passa a ser atribufda, pela primeira vez, uma especificidade ¢ uma originalidade psicolégica. ‘A familia comega a organizar-se em tomno da erianga, a quem comeca a ser dada uma importincia que a faz sair do anonimato. Comega a ser considerado conveniente limitar o mémero de filhos para melhor cuidar deles e comega a ser observavel a redugio dos nascimentos. ‘As fungGes familiares deixam de se centrar na honra e na fortuna e a familia passa a ser um lugar de afecto, alteragao que se exprime, sobretudo, através da importncia que passa a ser dada & educag A crianga deixa de se misturar com os adultos e passa a ir & escola, a qual passa a ser o instrument normal de iniciagao social, de passagem de condicdo de crianga a de adulto. Inicia-se um longo proceso de enclausuramento das criangas, ficando estas isoladas na a ou no colégio, sujeitas a uma disciplina, antes de serem “langadas ao mundo”. Segundo Badinter (s.d), esta é uma forma moralmente aceite dos pais se desembaracarem dos filhos, tal como acontece com as raparigas no caso dos conventos. 13 Século das Luzes No século XVII, com a Filosofia e os principios das Luzes (Igualdade, Felicidade e Amor), as necessidades e os cuidados a ter com as criangas passam a ser cada vex mais importantes na sociedade. S6 a partir do século XVIII, a familia comega a distanciar-se da sociedade, deixando-a fora de uma zona de vida privada. A familia deixa de assegurar apenas a transmissdo de bens e do nome, para assumir uma fungo moral e espiritual. Passa-se do casamento por conveniéneia para o casamento por amor. Os pais passam a ser cada vez mais responséveis pela felicidade ou dos filhos. A vida doméstica ganha um espago privado que vai desenvolver o sentimento da familia, a intimidade entre os casais e 0 sentimento entre mae e filho. Instala-se, defi ivamente, a nogio de infancia, sendo a crianga considerada um ser precioso e insubstituivel, distinta dos jovens e dos adultos. ‘A familia transforma-se Jenta, mas decisivamente em tomo de duas ideias: afei e privacidade. No entanto, esta nova maneira de olhar a crianga desponta primeiramente em meios particularmente favorecidos da burguesia urbana (Almeida, A, André, I. & Almeida, H., 2001). Comeca a operar-se uma revolugao das mentalidades, uma vez que hé uma transformagio radical na importancia que ganha o papel materno. A Familia Contemporfnea Com a I Guerra Mundial, a mulher foi obrigada a assegurar 0 papel do homem que ia para a guerra, tomando-se independente através de uma actividade profissional, alterando o tipo de relago que tinha com o homem (Correia, 1998). 14 A evolugio da familia medieval para a familia do século XVII e para a familia moderna, no sentido de uma maior intimidade, limitou-se, por muito tempo, aos nobres, aos burgueses, aos artesos e aos lavradores ricos (Shorter, 1975). No inicio do século XIX, grande parte da populagio mais pobre, vivia ainda como as familias medievais (Aris, 1988). Ainda nesse século ¢ no inicio do século XX, a operdria ou a mulher do pequeno artesfo, necessitam mandar os filhos para 0 campo, para poderem dedicar-se a0 trabalho (Badinter, s.d.). Nesta época a exploragao do trabalho infantil era uma constante, Muitas criangas representavam a possibilidade de rendimentos que completavam o salério dos pais. Um factor essencial para uma melhoria nos cuidados maternos foi a melhoria das condicdes materiais. Outros progressos surgiram, tais como os progressos ao nivel da saiide da crianga e 0 encontro de formas de acolhimento fora do meio familiar. No século XIX a vida social polariz: desap: se em torno da famflia e da profissio, \do a antiga sociabilidade. A sociedade encarregou-se de cuidar das criangas, nomeadamente através da criago de creches. A teoria psicanalitica torna a mae como figura central da familia, com atribui de um papel fundamental & amamentagao no desenvolvimento da crianga. S6 no século XIX ¢ superada a lacuna no que se refere a designagdo da crianga durante os primeiros meses, quando se vai buscar ao inglés a palavra baby, que designava nos séculos XVI e XVII as criangas em idade escolar. Persiste, no entanto, a ambiguidade entre a infancia ¢ a adolescéncia. A nogdo de adolescéncia levaré muito tempo a formar-se. Tudo se passa como se a cada época correspondesse uma idade privilegiada uma periodizagao especifica da vida humana: a «juventude» é a idade privilegiada do século XVIII, a infancia a do século XIX, a adolescéncia a do século XX. Estas variagdes de século para século dependem do equilibrio demogréfico. (...) exprimem a reaccdo da sociedade perante a duragdo da vida (Arits, 1988, p.57). Na opinio de Segalen (1999, cit. por Ferreira, F., 2001), actualmente o nascimento de um filho € objecto de um forte investimento afectivo, geralmente fruto de um projecto do casal, estando a responsabilidade parental a cargo dos pais, quer no campo afectivo, quer no campo educativo. Parece estar a surgir uma nova concepgiio, “o amor paternal” (Badinter, s.d., p.361), & semelhanga do amor de mic. A primeira inffincia é actualmente encarada como um perfodo de aprendizagens, de desenvolvimento de capacidades sensoriais, motoras, afectivas ¢ sociais. A familia éencarada como matriz, do desenvolvimento da personalidade da crianga. O projecto da infancia moderna traz portanto consigo uma norma, isto é a representacdo do que deve ser uma infancia “normal e desejdvel”, e um ideal do que se entende por “bem-estar infantil”. E assim em relagdo a esta norma implicita que se podem reconhecer socialmente, nas suas margens, as situages da “crianga em risco”, em “estado de sofrimento” ou mesmo da “crianca maltratada” (Almeida, A., André, L. & Almeida, H., 2001, p. 22). Investigacées No século XX houve um grande avango nas pesquisas ligadas & psicologia infantil na busca de detectar as necessidades efectivas das criangas ¢ 0 papel que 0 professor deveria assumir diante da educagio. Os estudiosos voltaram-se para 0 conhecimento dos aspectos cognitivos do desenvolvimento, da evolugio da linguagem e da interferéncia dos primeiros anos de vida, no desempenho académico posterior. 16 © apego € um relacionamento activo, afectuoso, recfproco, singular, especifico € persistente entre duas pessoas. Ble ocorre em quase todos os animais. 3s trabalhos de Harlow, Hinde e Lorenz demonstraram que 0 fenémeno primério da vinculagio nio € caracteristico da espécie humana, existindo também na primeira inffincia de numerosos mamfferos e de certas aves (Cruz, A., org, 8.4.). Freud (1905) salientou a importincia das primeiras relagdes crianga/mée, colocando a mie, enquanto primeiro objecto de amor, como o protétipo de todas as relagdes de amor (Oliveira, 2000). Os estudos sobre bebés desenvolveram-se a partir das contribuigées de John Bowlby, Rene Spitz, Margareth Mahler, D. W. Winnicott, T. Brazelton, entre outros. Os primeiros estudos sobre a relagio entre mie e filho, foram baseados em observagées nas quais Rene Spitz estudou o comportamento de criangas separadas dos pais em instituigdes, descrevendo a patologia resultante da falta dos cuidados maternos. John Bowlby (1958) enfatizou a competéncia inata do recém-nascido para entrar ‘em comunicagio social com a pessoa que cuida dele. Considerava a sucgao, o chorar, © agarrar, 0 chorar e o sorrir modalidades bésicas e inatas de interacgio e apego & mie (Brazelton & Cramer, 1992). D. W. Winnicott enfatizou que tudo 0 que ovorre entre a mie e a crianga interfere no desenvolvimento infantil. Defendeu o estudo da interacgao mie ~ bebé, considerando que a me deve proporcionar um ambiente suficientemente bom, demonstrando disponibilidade para a crianga e possibilitando-Ihe um espaco relacional, potenciador da auto-exploragio e da autonomia. Relativamente & questo da Vinculagdo, esta seré desenvolvida mais adiante. ‘A Crianga e os Maus-tratos ao longo da Histérica A historia da crianga maltratada remonta & Antiguidade, sendo uma realidade desde sempre, que persiste ao longo dos séculos. Até aos anos 50, a sociedade moderna recusou-se a considerar a presenca e gravidade dos maus-tratos infantis, muito embora evidéncias histéricas indiquem a sua ocorréncia desde o inicio da civilizacdo (Arids, 1986, cit. por Figueiredo, 1998). Canha (2000), refere que se pode considerar o infanticfdio como o primeiro esté duma escala de violéncia exercida sobre a crianga, a que se seguiram ¢ associaram e outros tipos de maus-tratos, como a escravatura, o trabalho infantil, a mendicidade e a negligéncia. Constata-se que, ao longo da hist6 houve uma evolugio no reconhecimento de diferentes formas de maltratar. O papel dos investigadores, como os que a seguir se descrevem, tornou-se essencial na identificagéo e na compreenstio dos maus-tratos infantis. Apesar de existir deste sempre, 0 mau trato s6 aparece referido nos finais do século XIX, tendo sido Ambroise Tardieu (1860), professor de Medicina Legal na Faculdade de Medicina de Paris, foi o autor que escreveu 0 primeiro artigo médico sobre os maus-tratos, onde descreveu, pela primeira vez, 0 “Sindrome das Criangas Batidas”, (Gallardo, 1994). Baseou-se em resultados de aut6psias a um conjunto de criangas com menos de 5 anos de idade, vitimas de morte violenta, que sugerem terem sido os pais os respectivos agressores (Almeida, A., André, I. & Almeida, H., 2001). ‘A frequéncia dos maus tratos infantis foi aumentando a pouco e pouco, até que, em 1874, se deu um trdgico acontecimento que fez reflectir a opiniaio piblica de muitos paises, 0 caso Mary Ellen: “uma menina de quatro anos, que vivia com os seus pais em Nova Iorque, era espancada constantemente e passava a maior parte do dia amarrada, com correntes, 18 aos pés da cama; perante estas evidéncias, os vizinhos denunciaram o caso. No entanto, como 0 mau trato infantil néio era considerado delito, submeteu-se 0 caso & Sociedade Protectora dos Animais, insinuando-se ironicamente que esta criatura pertencia a este grau de escala zoolégica, A menina foi separada dos pais.” (Marcovich, 1981 citado por Gallardo, 1994, p.20) Com base neste caso, fundou-se em Nova Torque, por Abraham Jacobi, a Sociedade para a Prevengao da Violéncia para com a Crianga (Gallardo, G., 1993, p. 18), tentando chamar a atengZo para os maus tratos as criangas pequenas. John Caffey, radiologista pediatra, em 1946, publicou uma investigagao, em que estudou hematomas subdurais e miiltiplas fracturas dsseas em bebés, em diferentes estados de consolidagio, que nao tinham sido tratadas antes ¢ se encontravam em diferentes estados de consolidago (Gallardo, 1994). Nos artigos que entdo publicou aborda nao sé a “inespecificidade e dificuldade diagnostica dos sinais radiolégicos da sffilis no esqueleto de criangas pequenas” (alguns dos quais viria a descobrir terem uma origem diferente), como defendeu a origem traumdtica da “associagao de hematomas subdurais” com certas “fracturas miiltiplas de ossos" (fruto de agressdes intencionais) (Almeida, A., André, I. & Almeida, H., 2001, p. 26). Silverman, em 1953, despertou o interesse de autores para o estudo da chamada sindrome do traumatismo desconhecido, colocando a hipétese de serem os pais os responsAveis por miiltiplas fracturas, negligéncia, descuido ou mesmo por agressdio deliberada, Wolley ¢ Evans, em 1955, referem-se pela primeira vez 4 importancia do meio em que a crianga vive como causa das crises de violéncia ¢ demonstraram que as lesdes 6sseas crénicas melhoravam com o afastamento da crianga do seu ambiente familiar, néo voltando a surgir (Canha, 2000). 19 © passo mais importante deu-se em 1962, num artigo publicado no “Journal of American Medical Association”, quando Henry Kempe ~ pediatra - descreve pela primeira vez, de forma completa, 0 “Sindrome da Crianga Batida”, dando conta de um elevado ntimero de criangas admitidas na sua unidade pediétrica com lesdes nfo acidentais provocadas pelos pais (Kempe, Silverman, Steele, Droegemueler & Silver, 1962, cit. por Figueiredo, 1998). Kempe, define este termo como uma situagdo em que as criangas pequenas receberam agressées fisicas graves, geralmente provocadas pelos pais ou seus substitutos. O artigo descreve os factores de risco, a fisiopatologia, as manifestagdes clinicas, os diferentes tipos de maus-tratos e reconhece a necessidade de uma equipa multidisciplinar para uma orientagio correcta da crianga e do seu afastamento temporirio dos pais, tendo em vista a protecgdo da ianga. Reconheceu ainda os riscos de recorréncia e de morte. Cerca de quinze anos mais tarde, Kempe fundou a pioneira International Society for Prevention of Child Abuse and Neglet, responsével pela edigéo regular de uma primeira revista da especialidade- Child Abuse and Neglet. The International Journal (Almeida, A., André, I. & Almeida, H., 2001). Os maus-tratos infantis ligam-se definitivamente a pediatria ¢ o interesse piblico iniciado nos Estados Unidos da América, espalha-se um pouco por todo o mundo, aumentando progressivamente a sensibilidade piiblica face &s eriangas. Os resultados dos trabalhos de investigagio que sucederam ao artigo de Kempe, vieram demonstrar e reforgar a importéncia da defesa ¢ da protecco & infancia nos seus miiltiplos aspectos. No entanto, na opinido de Emery (1989, cit. por Figueiredo, 1998), Kempe centrou-se excessivamente na condigéo psicopatoldgica dos pais das criancas maltratadas, e teve enfoque demasiado clinico em termos de defini Em 1963, Fontana substituiu a designagao de “Crianga Batida” e introduz a denominagao de “Crianga Maltratada”, conceito mais amplo que o de Kempe, que engloba todo 0 tipo de violencia infligida & crianga, nomeadamente as manifestagdes 20 de privagio emo (Gallardo, 1994) Em 1969, D. Gil, define 0 mau trato como qualquer acto deliberado, por omisséio onal, afectiva e nutritiva, de negligéncia ou de agressao ou negligéncia, originado por pessoas, instituigdes ou s ciedades, que prive a criang dos seus direitos © liberdades ou que interfira com 0 seu desenvolvimento. Considera, assim, que o mau trato infantil nao sé se circunscreve ao ambiente familiar, como também pode ser causado por determinadas instituicSes ou pela prépria sociedade. ‘As organizagSes internacionais sob o impulso, designadamente da ONU, tém contribuido para tornar esta problemética visivel junto da opinio publica ¢ para encorajar os Estados a adoptarem medidas de protecgdio das criangas e estratégias de prevengao de situagdes de risco. Em 1946 foi fundada a UNICEF (Fundo das Nagdes Unidas para a Infancia), com 0 objectivo genérico de melhorar a vida das criangas e Ihes proporcionar bem- estar (cuidados de satide, educagao e nutrigao). ) O estudo pedopsiquidtrico e psiquidtrico das criangas batidas e dos pais maltratantes, incluindo o ponto de vista médico e psico-social; a observagaio da crianga, dos pais e da familia — s6 comecou verdadeiramente a desenvolver-se nos anos 70. A psicologia clinica e a psicologia da satide debrucaram-se sobre 0 problema, aprofundando 0 seu conhecimento. A psiquiatria e a pedopsiquiatria forenses, assim como a psicologia legal, estuda, com as ciéncias juridicas, as questoes de direito. Eas ciéncias da educagéo e a sociologia ocupam-se também deste terreno de pesquisa. Observou-se, entiio, que 0s maus-tratos nao se restringiam as agressées fisicas; abrangiam um muito mais amplo leque de situagdes - abusos sexuais, privagdes vérias, incluindo a alimentar, negligéncia, caréncia afectiva, violéncia psicolégica. 21 Abandonou-se progressivamente o conceito de crianga batida e substituiu-se pelo de crianga maltratada” (Matos, 1997, p. 38). Em Portugal, o tema dos maus-tratos a crianga ganhou visibilidade durante a década de 80, através do empenho da comunidade pediétrica, em colaboragaio interdisciplinar com outros profissionais. E apés a comemoragio do Ano Internacional da Crianga, em 1979, que se comega a prestar uma séria atengdo ao problema da violéncia contra as criangas, dentro ¢ fora da famflia. A partir de entao, estabeleceu-se uma concertagio entre a Secciio de Pediatria Social da Sociedade Portuguesa de Pediatria, o Centro de Estudos Judiciérios (CEJ) o Instituto de Apoio 4 Crianga (Almeida, A., André, I. & Almeida, H., 2001). Aspectos Epidemiolégicos ‘Ao nivel da incidéncia dos casos de maus-tratos, em virtude de uma grande néimero de casos ocorrer em meio familiar, verificam-se alguns constrangimentos na sua determinagiio. Em Portugal, so conhecidos alguns estudos, relativamente aos quais fazemos referéneia. Assim, em 1986, Fausto Amaro publica no Centro de Estudos Judiciérios, a primeira abordagem sociolégica dos maus-tratos as criangas em Portugal. O estudo baseava-se numa amostra de freguesias representativas dos distritos do continente ¢ procurava nfo s6 quantificar, como também caracterizar as situagdes dos maus- tratos, negligéncia, abuso sexual, mendicidade e acidentes sofridos pelas criangas (Almeida, André e Almeida, 1999). Concluiu existirem cerca de vinte mil criangas maltratadas negligenciadas em 1985. Quanto aos tipos de mau trato encontrados, 0 22 autor conclui existir uma distribuicdo semelhante & descrita para outros paises, sendo que a negligéncia representava 48% do total dos casos, os maus-tratos psfquicos 31- 36% e os maus-tratos fisicos 16-21% (Almeida, André ¢ Almeida, 2001). Em 1999, um Relatério realizado sobre as “Familias e os maus-tratos s criangas em Portugal” (cit. por Magalhies, 2002, p. 40), revelou que: 1- Relativamente a caracterizagio do contexto doméstico onde residem as criangas: ~ a maioria vive cm familias nucleares (41%), sendo muito expressivo © peso das familias monoparentais (25%) e 0 das familias recompostas (15%); = 0s adultos responséveis pelas criangas distribuem-se por todos os niveis de escolaridade, contudo apenas 8% pos: ii um grau de instrugio superior ao primeira ciclo do ensino basico; - metade dos pais maltratantes vivem juntos, 32% esto separados ou nunca tiveram uma relagéo conjugal (12%). 2- Relativamente ao perfil da crianga vitima de maus-tratos: ~ a distribuigo dos sexos € equitativa; - og maus tratos afectam criangas de todas as idades, no entanto, 6% tém menos de um més e 25% menos de um ano; = cerca de 13% so criangas fruto de uma gravidez. precoce; = cerca de um tergo das criangas falta sistematicamente & escola e um quarto chega sistematicamente atrasada; outro tergo repetiu, pelo menos, um ano de escolaridade; - metade das criangas ficam sozinhas em casa por longos perfodos de tempo ou a guarda de irmaos menores; ~ quase 60% das criangas nao faz vigilancia médica regular; - 11% das criangas tm uma doenga crénica, 8% uma deficiéncia e 10% uma doenga mental. 3- Relativamente ao perfil do abusador: - em 83% dos casos os abusadores co-residem com a crianga, - em cerca de 65% dos 808 0 abusador é a mie ou 0 pai; - 4% dos abusadores so portadores de alguma deficiéncia fisica, 10% de alguma deficiéncia mental, 13% sao toxicodependentes, 45% sao alcodlicos, 10% cometeram actos considerados como crime. Verifica-se, através deste estudo, que o lar familiar é o lugar privilegiado da violencia sobre as criangas, que as mies so responséveis por mais maus-tratos aos filhos do que os pais, que mais de metade dos progenitores autores de maus-tratos constituem casais nucleares e que filho mais novo, é o mais excessivamente maltratado. Em 2002, 0 Relat6rio de Avaliagiio da Actividade a Comissées de Protecgio de Criangas ¢ Jovens (CPC), publicado pela Comissio Nacional de Criangas e Jovens em Risco, revela que no ano 2001 foram acompanhadas 10.123 criangas e jovens no Ambito dos processos instaurados pelas CPCJ. Verifica-se que 27,2% dos casos corresponde a adolescentes com idades compreendidas entre os 13 e os 15 anos, com probleméticas associadas de negligéncia e abandono escolar, acompanhadas da prética de condutas desviantes de outras situagGes de perigo. Estas probleméticas repetem-se, quer no escaltio etério dos 10 aos 12 anos, quer no dos 6 aos 9 anos (20,2%), & excepgio da pritica de condutas desviantes, que € nestes dois tiltimos escaldes, substitufda por maus tratos fisicos e psiquicos. No que diz respeito as criangas com menos de 5 anos de idade (22, 1%), as probleméticas mais frequentes so o abandono, a negligéncia, os maus- tratos fisicos e outras situagdes de perigo. 24 © quinto Relatério da série Report Card, preparado em Setembro de 2003 pelo Centro de Investigagio da UNICEF, sobre mortes infantis devidas a maus-tratos nos paises ricos, indica que nos 23 pafses industrializados do mundo cerca de 3500 ctiangas com menos de 15 anos morrem em cada ano devido a maus-tratos (fisicos € negligén ). © risco de morte devido a maus-tratos € de 24% nas criangas com menos de um ano de idade, de 31% nas criangas com idades entre um e quatro anos de 45% nas criangas com idades entre os cinco e os catorze anos. Entre 0s 23 paises da OCDE, a Bélgica, a Repiiblica Checa, a Hungria ¢ a Franca apresentam niveis de mortes por maus-tratos, que sfio quatro a seis vezes mais altas do que a média dos restantes paises. Por outro lado, os Estados-Unidos, México © Portugal tém médias entre dez a quinze vezes mais altas do que a média dos paises principais. Nos tiltimos cinco anos, Portugal apresenta anualmente 0.4% de mortes por 100.000 criangas devido a maus-tratos, em criangas com idades inferiores a quinze anos. Por outro lado, combinando a morte por maus-tratos com a “morte devido a causa indeterminada”, Portugal apresenta 3.7% de mortes por 100.000 criangas, sendo entre todos os outros paises, 0 pais que apresenta maior indice de mortes de criangas. Os Estados-Unidos apresentam 2.2% de mortes devido a maus tratos Espanha, Grécia, Itélia, Irlanda e Noruega, parecem ter um baixo nivel de incidéncia de mortes por maus-tratos. © Relatério conclui que as mortes de criangas devido a maus-tratos es aparentemente em declinio na grande maioria dos paises industrializados. Os paises com o§ mais baixos niveis de mortes de criangas por maus-tratos também tém os mais baixos nfveis de morte de adultos por homicidios. A semelhanga, as trés nagdes com os niveis de mortes por maus-tratos, Estados-Unidos, México e Portugal, também tém maior taxa de morte nos adultos por homicfdios. Relativamente as causas, a pobreza ¢ o stress, juntamente com as drogas e 0 lcool, parecem ser os 25 factores precipitantes associados ao abuso e negligéncia das criangas. Nas familias onde existe violéncia doméstica entre os adultos, € comum serem referidos maus- tratos as eriangas. A percentagem de mortes por maus-tratos de acordo com a idade é de 24% nas criangas com menos de um ano, de 31% nas criangas entre um e quatro anos ¢ 45% nas criangas entre os cinco € 0s catorze anos. Relativamente as estratégias de prevenco dos maus-tratos, ainda que o Relatério. néio pretenda definir medidas para 0 combate para cada pals, refere que existe um nivel de consenso no debate entre os paises industrializados que passa pela existéncia de linhas telef6nicas de ajuda, por servigos de visitas domiciliérias, pelo aumentado da cobertura dos média, pela observaco de grupos de risco, incluindo campanhas de combate a todas as formas de violéncia. Os paises nérdicos tomaram a dianteira na promogio da cultura da ndo-violéncia, banindo a ideia de que a violéncia é normal, através de campanhas relacionadas com brinquedos e com programas de televisio violentos. As inconsisténcias nas classificagées, a falha de definig&es e de metodologias de investigacdo comuns significam que existe uma comparagao internacional pequena ¢ que a extensio de criangas maltratadas est certamente abaixo da representagio das estatisticas. Os problemas das criangas precisam ser trazidos para primeiro plano diatiamente em todos os pafses Sete paises, Austria, Dinamarea, Finlandia, Alemanha, Islindia, Noruega e Suica, adoptaram leis proibindo especificamente a punigao fisica das criangas. 26 A Crianga nos Textos Legais A Evolucio da Legislacio ao longo da Histér Até a0 século XIX, no havia leis especificas dirigidas aos menores, uma vez que se partia do principio de que as criangas eram propriedade privada dos pais., considerando-se normal a violéncia que exercessem sobre os filhos (Kempe & Kempe, 1978). A crianga nfo era reconhecida como um sujeito de direito. ‘Apenas em 1874, em Franga, e cinco anos mais tarde, em Inglaterra, surge uma lei que protege as criancas de serem vendidas, abandonadas ou abusadas pelos pais (Aries, 1988). Segundo Rodrigues (1986), 0 interesse da comunidade internacional pela problematica da protecgao e defesa dos menores surge apés a 1* Guerra Mundial. Relativamente ao interesse prestado ao longo da histéria A defesa das criangas, tém-se verificado desenvolvimentos legislativos de interesse, de que se destaca: 1911- Surge a primeira lei de protecgdo a infancia; 1920- Surge em Genebra a Unido internacional de protecgdo & infancia; Até cerca de 1950- As preocupagdes sobre a proteccdo a infaincia sao de ordem humanitéria; 1959- Surge a Declaragio dos direitos da crianga. A abordagem dos problemas da inffincia evolui, estendendo-se & adolescéncia e & juventude. A protecgfio passa a ser influenciada por objectivos de ordem sécio-politica (protecgdo da crianga enquanto “cidadiio do mundo”, chamada a dirigir os destinos da humanidade) e de ordem econémica (protecgio da crianga pela importéncia do seu papel na economia). 27 1962- Foi publicada a Organizagiio Tutelar de Menores - configurando medidas que se destinavam, indiscriminadamente, a menores em perigo € a menores agentes de crimes, 1978- Foi revista a Organizacao Tutelar de Menores (Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro), que se manteve em vigor até final do ano 2000. 1979- Ano Intemacional da Crianga. A Assembleia Geral das Nagdes Unidas sugere a criagio da Convencio sobre os direitos da crianga, de forma a conferir um carécter obrigat6rio & Declaragiio dos Direitos da Crianga. 1989- f aprovada a Convengio sobre os Direitos da Crianga, pela Assembleia- geral das Nagdes Unidas. 1990- Foi ratificada na Assembleia da Repiblica a Convengio sobre os Direitos da Crianga, em sintonia com a deliberacéio anterior da Assembleia-geral da Nagies Unidas. 1991- Foram criadas em Portugal as Comissdes de Protecco de Menores (DL 189/91 de 17 de Maio); 1999- As Comisses de Protecgfo de Menores foram reorganizadas em Comissdes de Protecgdio de Criangas ¢ Jovens, de acordo com a Lei de Protecgio de Criangas e Jovens em Perigo (DL N° 147/99 de 1 de Setembro), 2003- E aprovada a Lei n® 31/2003, que altera 0 Cédigo Civil, a Lei de Protecgaio de Criangas ¢ Jovens em Perigo, o Decreto-lei n° 185/93, de 22 de Maio a Organizagao Tutelar de Menores e o Regime Juridico da Adopcao. A Crianga é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que Ihe for aplicdvel, atingir a maioridade mais cedo (art, 1° da Convengao sobre os Direitos da Crianga). 28 Esta definigio coincide com o conceito de menor que consta no Cédigo Civil portugués: "é menor quem néo tiver ainda completado dezoito anos de idade" (art. 122° do Cédigo Civil). A Declaragio dos Direitos da Crianga, aprovada pela ONU em 1959, continua a ser um ponto de referéncia importante. Entre os direitos reconhecidos a crianga, quer a nivel internacional, quer a nivel nacional, conta-se 0 direito a viver ¢ desenvolver-se no seio de uma familia onde seja amada como filho. ‘Transcrevemos alguns Princfpios que se relacionam com a problematica em estudo. De acordo com o Principio n° 6 da Declaracio Universal dos Direitos da Crianga, “A crianca para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade precisa de amor e compreensdo. Sempre que seja posstvel, deverd crescer sob 0 amparo e responsabilidade dos seus pais e, em qualquer caso, num ambiente de afecto e seguranca moral e material, salvo circunstancias excepcionais, a crianga de tenra idade no deve ser separada da sua mae. A sociedade e as autoridades piiblicas tém a obrigagao de cuidar especialmente das criancas sem familia ou que caregam de meios necessdrios de subsisténcia (...)” De acordo com 0 Principio n° 9 da Declaragiio Universal dos Direitos da Crianga, A Crianga deve ser protegida contra toda a forma de negligéncia, crueldade € exploracéio. Nao deve ser submetida a trdfico, qualquer que seja a sua forma. A Crianga ndo deve ser admitida num emprego antes de ter atingido uma idade minima apropriada; ndo deve, em caso algum, ser constrangida ou autorizada a 29 exercer uma ocupago ou um emprego que prejudique a sua satide ou a sua educagéo, ou que entrave 0 seu desenvolvimento fisico, mental ou moral. Também a Convengdo das Nagdes Unidas sobre 0 Direito das Criangas, assinada por Portugal em 1990, prevé no n°1 do artigo 19°: "Os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas a proteccao da crianga contra todas as formas de violéncia fisica ou mental, dano ou sevicia, abandono ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploragdo, incluindo a violéncia sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada ". No actual Cédigo Penal, os casos passiveis de configurarem situagdes de maus- tratos em criangas ¢ jovens, estilo previstos nos artigos 138°, 152° e 172° a 176°. Magalhiies (2002), releva pela frequéncia da sua ocorréncia, os artigos 152°, 172° e 174°. O artigo 152° (Maus tratos e infracgdo das regras de seguranga) refere-se aos maus tratos fisicos e(ou) psfquicos, ao tratamento cruel, a0 emprego em actividades perigosas, desumanas ou proibidas e A sobrecarga com trabalhos excessivos, sem que implique um dolo especifico ¢ tendo maior relevancia se a vitima for crianga ou jovem. Encontra-se, pois, aqui prevista a situagio de maus tratos fisicos ou psiquicos, cometidos pelos representantes legais das criangas e(ou) jovens, entidades patronais, directores de centros de acolhimento, lares, colégios, instituiges particulares de solidariedade social, etc. Este crime pode concorer com os crimes contra a integridade fisica (artigos 143° ¢ 144°). No artigo 172° (Abuso sexual de criangas) protegem-se as criangas menores de 14 anos contra a pritica de c6pula, coito anal ou oral, de outros actos sexuais de relevo, de condutas censurdveis, obscenas ou pomograficas ¢ da exposigéo e cedéncia de fotografias, filmes ou gravages porogrificas em que estas sejam usadas. O artigo 174° (Actos sexuais com adolescentes), relativo c6pula, coito anal ou oral com adolescentes, circunscreve os meios de sedugo ao abuso da inexperiéncia, exigindo que a pessoa ofendida tenha entre 14 ¢ 16 anos. A inexperiéncia refere-se & falta de conhecimento prético das actividades sexuais, que toma o adolescente incapaz de emitir uma opiniao ou consentimento esclarecido sobre essas actividades e suas consequéncias (Magalhies, 2002, p. 69). Nos termos da lei, os maus-tratos tém duas formas de protecgiio: a protecgio tutelar, que protege a crianga ou o jovem dessas situagdes, e a protecgdo penal que, para 0s continuar a proteger, responsabiliza criminalmente 0 abusador. Actualmente, os direitos dos menores so encarados interdisciplinarmente, isto é, nos diferentes contextos em que se desenrola o proceso de desenvolvimento: contexto familiar, escolar, social e juridico. - No contexto familiar: 0 menor tem direito a desenvolver-se no seu meio familiar, dada a importincia do papel do pai e da mae no seu desenvolvimento. A Constituigao Portuguesa (art. 36, 6) consagra que “os filhos nao podem ser separados dos seus pais, salvo quando estes ndo cumprem os seus deveres fundamentais para com eles € sempre mediante decisiio judicial”. ~ No contexto escolar e social: o direito & educagdo ¢ reconhecido como princfpio fundamental pelos diversos textos constitucionais, devendo ser entendido amplamente, como compreendendo a instrugdo, 0 ensino ¢ todas as formas de io os titulares & educagio (jogos, desporto, tempos livres, etc.). Os menores beneficiérios do direito & educagGo. No entanto, cabe ao Estado assegurar a realizagio e aos pais, escolher a modalidade do seu exercicio (Rodrigues, A., 1986). No contexto social, 0 menor tem direito & protecgao contra a nfo exploragiio © & protecco contra a crueldade, a negligéncia e outras formas de exploragao (consumo, sexualidade, trfico, etc. © menor tem também direito A satide, como condigéio essencial para 0 seu desenvolvimento fisico, intelectual e social. = No sistema jurfdico: O menor tem direito a um nome, a uma nacionalidade, & protec social e a um tratamento especial em matéria penal Q Interesse Superior da Crianca Leandro, A. (1995) realga, como elemento fundamental comum ao conjunto de princfpios e direitos dos menores, a consagragio do principio de que todas as decisdes relativas a criangas, tomadas por instituigées piblicas ou privadas de protecgdo social, por tribunais, autoridades administrativas ou orgs legislativos, terdo primacialmente em conta o interesse superior da crianga. Para clarificar a nogio de interesse do menor, Rodrigues A. (1986) salienta a importincia de se ter sempre em conta que, sendo o desenvolvimento um proceso continuo, 0 menor deve ser encarado como um ser em formagio, que se desenvolve em interacgio permanente com o meio fisico, familiar ou social (abordagem psico- social). Os factores cognitivos, afectivos ¢ operatives estio em permanente interacco, sendo que, quando se estuda o desenvolvimento social do individuo (na familia ou na comunidade), se devem ter em conta essas interferéncias permanentes. 32 Sao varios os textos legais, que se debrugam sobre a nogio de interesse do menor: a) O.TM. (Organizagao Tutelar de Menores) Os Tribunais de Menores tém por fim a protecgao judicidria dos menores ¢ a defesa dos seus direitos e interesses mediante a aplicagéio de medidas tutelares de protecedo, assisténcia e educagdo (Art. 2 da OTM- DL n° 314/78 de 27 Outubro). O Tribunal escolherd, dentre as medidas aplicdveis, a mais adequada a cada caso (art. 12,2), tendo em conta a sua exequibilidade pratica (art. 21). ‘As decis6es proferidas podem ser, a todo o tempo, revistar, para mais fécil reintegrago social do menor (art. 46, 1). O interesse superior da crianga deve ser a consideragdo determinante (Declaragao dos Direitos da Crianga). b) No Cédigo Civil Portugués ‘A nogio interesse do menor aparece nomeadamente nos artigos 1878,2; 19051, 2e3e nos artigos 1919 e 1978. c) Nas convengées internacionais - Convengio relativa a protecgao de menores (Haia, 5-10-61); ~ Convengio sobre a lei aplicdvel as obrigagSes alimentares (Haia, 2 de Outubro de 1973); ~ Convengiio Europeia sobre 0 reconhecimento ¢ a execugiio das deci: sobre a guarda de menores (Luxemburgo, 20-5-80); - Convengio Europeia em matéria de adopgio de criangas (Estrasburgo, 15- 10-75); -Di claragiio dos direitos da crianga (1959) A Base II consagra que: « a crianga deve beneficiar de uma proteceao especial e ver-se rodeada de possibilidades concedidas pela Lei e por outros meios, a fim de se poder desenvolver de uma maneira sa ¢ normal no plano fisico, intelectual, moral, espiritual e social, em condigoes de liberdade e dignidade. Na adopgdo de leis para esse fim, o interesse superior da crianga deve ser a consideragéo determinante». ‘Também a Base IV da mesma Declaracio, estabelece que: «a crianga, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, tem necessidade de amor e compreenso. Deve tanto quanto posstvel crescer sobre a protecdo e responsabilidade dos pais ¢, em qualquer caso, numa atmosfera de afecto e de seguranca moral e material: a crianca, na primeira infaincia, ndo deve, salvo circunstncias excepcionais, ser separada da sua mae». No que toca ao desenvolvimento, as primeiras relagoes da crianga com os pais (ow substitutos) assumem grande importancia; relagdes, no plano da consciéncia, com os pais reais e relagées , no plano inconsciente, com as «imagos» parentais, isto é, as imagens dos pais que, pouco a pouco, sao interiorizadas pela crianca. Sao estas primeiras relagdes que conferem, mais tarde, ds atitudes sociais, uma tonalidade emotiva e que, em grande parte, determinam a conduta da crianga, do jovem e do adulto, nas suas relagdes com os outros ¢ com a comunidade (...). O comportamento, a atitude ou a accao do menor, crianga ou adolescente, depende do aspecto particular da situagdo que incide sobre o organismo ou que é seleccionado 34 por ele: depende, também, da estrutura do individuo, naquele momento, a qual decorre de interacces complexas entre, por um lado, as caracteristicas e esquemas de acgao herdados (factor hereditério) e, por outro lado, da histéria individual das aprendizagens (esquemas e padroes culturais adquiridos, vigentes na sociedade). E a interaceao destes dois factores que produz, ao longo do tempo, o desenvolvimento do individu (Ericson, E.- 1982) a sua historia estrutural e funcional, desde a concepedo até a morte (Rodrigues, A., 1986, p. 476, 477). Desta forma, so as caracteristicas e as necessidades préprias de cada estédio do desenvolvimento que ditam o interesse do menor. Quando o menor se encontra em perigo ou desadaptado, é necessério introduzir algo que restabelega 0 equilibrio e & esse algo que pode constituir © interesse do menor. A reconstrugiio do equilfbrio deve facilitar a integragdo social. A nogio de interesse do menor associam-se as nogdes de protecg%o, assisténcia, situagao particular, perigo, grave prejuizo, integragio social, necessidades, direitos e obrigagSes, formagiio e educagiio (Rodrigues, A. 1986). O sistema jurfdico na matéria de menores baseia-se na intervengdo da familia, com respeito da autonomia progressiva da crianga e do jovem, e na participagio do Estado e da sociedade, 0 que pode levar & realizacdo harmoniosa dos direitos das criangas (Leandro, A., 1995). Relativamente aos estédios do desenvolvimento humano, de forma a haver unanimidade nas nogdes, uma comissio de peritos da Organizagio Mundial de Satide, propés a seguinte nomenclatura: Infancia - do nascimento aos 13 anos (pré-puberdade); Puberdade — dos 13 aos 15 anos; 35 Adolescéncia ~ dos 15 aos 18 anos; Suventude — dos 18 aos 25 anos; Tdade adulta - com ponto médio sensivelmente aos quarenta anos; Velhice ~ depois dos 65 anos. ‘A menoridade € considerada como uma etapa do processo de socializagio, devendo este processo permitir 2 construga0 pessoal do menor e o acesso ao estado adulto, Como foi dito anteriormente, 0 menor & hoje encarado como um ser em formago e, enquanto tal, em relago com o seu meio. No entanto, do ponto de vista hist6rico, nem sempre a menoridade foi reconhecida como um trajecto da vida humana. Relativamente as situagées em risco tém-se verificado desenvolvimento legislativos de interesse, dos quais se destacam: ~ A ctiagio das Comissées de Protecgdo de Menores, DL 189/91 de 17 de Maio — “permitem uma justica informal mais apropriada @ crianga incentivadora da responsabilidade e solidariedade comunitérias, quer no dominio do abandono ou de situagdes de risco, que anteriormente eram da competéncia exclusiva do Tribunal, quer no dominio dos comportamentos para-delinquentes ou pré-delinquentes” ( Leandro, A., 1995, p. 36); ~ Resolugdo da Assembleia da Repiblica n° 16/VI, sobre medidas da crianga em tisco; = Resolugio do Concelho de Ministros n° 30/92 de 23 de Julho, que criou o Projecto de Apoio & Familia e & Crianga, para actuagio no dominio da crianga maltratada; ~ DL 192/9 de 3-9, que reformulou o “Acolhimento familiar”; ~ A criagdo de mais Tribunais especializados em matéria de Famflia e Menores; = DL 185/93 de 22 de Maio, que aprovou o novo regime juridico da Adopgio, que pretende clarificar e tornar mais segura a definigdo dos casos; ~ A criagio das Comisses de Protecgio de Criangas e Jovens, DL N° 147/99 de 1 de Setembro, que vieram substituir as ComissGes de Protecgao de Menores. Na opiniio de Leandro, A. (1995) @ aplicagéo prdtica de todos estes instrumentos juridicos constitui uma grande interpelacdo, a exigir maturidade pessoal ¢ comunitéria que parta de posigdes suficientemente esclarecias, radicadas numa ética muito exigente, baseada na interpretagdo correcta da realidade e ainda na formacéo que se funde uma reflexto tedrica cuidada e numa pritica constantemente avaliada (p. 37). Quando uma crianca ou um jovem se encontra em perigo, significa que a sua situagio ou o seu estado, esto desadequados face ao estidio de desenvolvimento em que se encontra. Assim, serd necessario, restabelecer a coeréncia ¢ 0 equilfbrio, protegendo-o 37 Lei_de Proteccfio de Criancas e Jovens em Perigo (Lei n° 147/99 de 1 de Setembro) O enquadramento legal das criangas e jovens em perigo teve uma evolugao com a publicagao da Lei n? 147/99 de 1 de Setembro (Lei de Protecgdo de Criangas ¢ Jovens em Perigo), que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2001 e teve uma alteragio recente, através da Lei n° 31/ 2003 de 22 de Agosto, coincidente com a alteragio do regime juridico da adopgio, ‘As comiss6es de protecco tém como objectivo promover os direitos e proteger a crianga e 0 jovem em perigo, de modo a garantir o seu bem-estar e 0 seu desenvolvimento integral (art. 1°), quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua seguranga, satide, formagio, educagdo ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acgdo ou omissiio de terceiros ou da propria crianga ou do jovem a que aqueles ndo se oponham de modo adequado a remové-lo (art. 3°, n° 1). Intervém na pessoa com menos de 18 anos ou na pessoa com menos de 21 anos que solicite a continuagio da intervencao iniciada antes de atingir os 18 anos (art. 5°, a), So instituigdes oficiais, nao judiciérias, com autonomia funcional. Considera-se que a crianga ou 0 jovem est4 em perigo (de acordo com o art. 3°, n°2), quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situagées: est abandonada ou vive entregue a si propria, quando sofre maus-tratos fisicos ou psfquicos ou € vitima de abusos sexuais, quando néo recebe os cuidados ou a afei¢aio adequados & sua idade e situagiio pessoal, quando € obrigada a actividades ou trabalhos excessivos ou inadequados & sua idade, dignidade e situag&o pessoal ou prejudiciais & sua formago ou desenvolvimento, quando esta sujeita, de forma directa ou indirecta, a 38 comportamentos que afectem gravemente a sua seguranga ou o seu equilfbrio emociona ou entiio quando assume comportamentos ou se entrega a actividades ou consumos que afectem gravemente a sua satide, seguranga, formagio, educagio ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se Ihes oponham de modo adequado a remover essa situago. A actual lei consagra, de acordo com o art. 4°, princfpios orientadores da intervengiio, designadamente o interesse superior da crianga e do jovem, a privacidade, a interven precoce, a intervengio minima (exercida exclusivamente pelas entidades cuja acco seja_indispensdvel), a proporcionalidade ¢ actualidade (a intervengio deve ser a necessfria ¢ a adequada a situagdo de perigo existente), a responsabilidade parental (exercida de modo que os pais assumam os seus deveres), prevaléncia na familia, a obrigatoriedade da informagio (direito & informagao dos motivos que determinam a intervengio ¢ da forma como esta se processa) e o princ{pio da subsidiariedade (a intervencio deve ser efectuada, sucessivamente pelas entidades com competéncia em matéria da infancia e juventude - pessoas singulares ou colectivas, piiblicas, cooperativas, sociais ou privadas -, pelas comissdes de protecgio de criangas ¢ jovens em perigo e, em ditima instancia, pelos tribunais).. A intervengio das comissdes de protecgfio tem lugar, quando nfo seja possivel as entidades referidas actuar de forma adequada e suficiente a remover 0 perigo (art. 8°). Nestas circunstincias, de acordo com o art. 65°, as entidades com competéncia em matéria de infaincia e juventude, comunicam as comissdes de protecgdo as situagdes de perigo de que tenham conhecimento no exerefcio das suas fungdes sempre que nao possam, no Ambito exclusivo da sua competéncia, assegurar em tempo a protecgao suficiente que as circunstancias do caso exigem. ‘A intervengio das comiss6es de protecgiio depende do consentimento expresso dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante 0 caso (art. 9°) e da nfo oposicao da crianga ou jovem com idade igual ou superior a 12 anos (art. 10°, n°l). Na auséncia de consentimento, de acordo com o art. 91°, n°l, quando exista perigo actual ou iminente para a vida ou integridade fisica da crianga ou do jovem e haja oposigao dos detentores do poder paternal ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades com competéneia em matéria de infancia e juventude ou as comissbes de protecgdo tomam as medidas adequadas para a sua proteccao imediata e solicitam a intervenco do tribunal ou das entidades policiais. De acordo com o n° 3 do mesmo artigo, enquanto no for possivel a intervengao do tribunal, as autoridades policiais retiram a crianga ou 0 jovem do perigo em que se encontra e asseguram a sua protecgiio de emergéncia em casa de acolhimento temporéirio, nas instalagbes das entidades com competéncia em matéria de infancia ¢ juventude ou em outro loc: adequado. As comis sées de protecco funcionam, de acordo com 0 disposto no art. 16°, numa modalidade restrita e numa modalidade alargada, A comissio restrita compete intervir nas situagdes em que uma crianga ou jovem esté em perigo (art. 21°). Compete-Ihe, designadamente, atender e informar as p as que se dirigem & comissio de protecgdo; apreciar liminarmente as situages de que a comissio de proteccio tenha conhecimento, decidindo o arquivamento imediato do caso quando se verifique manifesta desnecessidade de intervengZo ou a abertura de proceso de promogio de direitos e de proteccio; proceder & instrug&o dos processos; solicitar a participagéio dos membros da comis- silo alargada nos processos referidos na alinea anterior, sempre que se mostre necessério; solicitar parecer € colaboragiio de técnicos ou de outras pessoas & entidades piiblicas ou privadas; decidir a aplicagiio ¢ acompanhar e rever as medidas 40 de promogio e protecgiio, com excepgio da medida de confianga a pessoa seleccionada para a adopeiio ou a instituicao com vista a futura adopgio; informar semestralmente a comissio alargada, sem identificagio das pessoas envolvidas, sobre 08 processos iniciados ¢ o andamento dos processos pendentes. Pretende-se que a comissio alargada promova acces, identifique caréncias, mobilize recursos na comunidade ¢ dinamize programas que afastem as criangas ¢ jovens das situagdes de perigo. A comissio restrita € constitufda pelo presidente, por representantes do muni pio ou das freguesias e da seguranga social, quando nfo exergam a presidéncia. Os restantes membros devem ser escolhidos de forma interdisciplinar e interinstitucional, incluindo, sempre que possivel, pessoas com formagio nas Areas do servigo social, psicologia e direito, educagao e satide (art. 20°). A comissiio de protecgao dispie, de acordo com o art. 34°, de um conjunto de medidas de promogio e proteccio, que visam afastar 0 perigo em que os menores se encontram; proporcionar-lhes as condigdes que permitam proteger ¢ promover a sua seguranga, satide, formagio, educagio, bem-estar e desenvolvimento integral ow ainda garantir a recuperagio fisica e psicolégica das vitimas de qualquer forma de exploragao ou abuso. A aplicagio das medidas de promogio dos direitos e de protecciio ¢ da competéncia exclusiva das comissdes de protecgio ¢ dos tribunais; a aplicagiio da medida de confianga a pessoa seleccionada para a adopgio ou a instituigdo com vista a futura adopeaio (alfnea g) do n°1 do art. 35°) € da competéncia exclusiva dos tribunais. al ‘As medidas de promogio e protecgo so executadas em meio natural de vida ou em regime de colocago, consoante a sua natureza. As medidas a executar em meio natural de vida so as seguintes (art. 35°): - Apoio junto dos pais: consiste em proporcionar a crianga ou jovem apoio de natureza psicopedagégica e social e, quando necessério, ajuda econémica (art. 39°); = Apoio junto de outro familiar: consiste na colocagio da crianga ou do jovem sob a guarda de um familiar com quem resida ou a quem seja entregue, acompanhada de apoio de natureza psicopedagégica e social e, quando necessério, ajuda econémica (art. 40°); ~ Confianga a pessoa idénea: consiste na colocagao da crianga ou do jovem sob a guarda de uma pessoa que, nfio pertencendo @ sua familia, com eles tenha estabelecido relagao de afectividade recfproca (art. 43°); - Apoio para autonomia de vida: consiste em proporcionar directamente ao jovem com idade superior a 15 anos apoio econémico e acompanhamento psicopedagégico e social, nomeadamente através do acesso a programas de formagao, visando proporcionar-Ihe condigGes que 0 habilitem ¢ Ihe permitam viver por si s6 ¢ adquirir progressivamente autonomia de vida (art. 45°, n°1). Esta medida pode ser aplicada a mies com idade inferior a 15 anos, quando se verifique que a situago aconselha a aplicagiio desta medida (art. 45, n°2); ~ Confianga a pessoa seleccionada para a adopgo ou a instituigdio com vista a futura adopgio. ‘As medidas de promogio € proteccio em regime de colocagio sio as seguintes: - Acolhimento familiar: consiste na atribuigao da confianga da crianga ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma familia, habilitadas para o efeito, visando a 42 sua integragio em meio, familiar e a prestagdo de cuidados adequados as suas necessidades ¢ bem-estar € a educago necesséria ao seu desenvolvimento integral. Considera-se que constituem uma familia, de acordo com o disposto no n° 2 do artigo 46°, duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra hé mais de dois anos em unio de facto ou parentes que vivam em comunhao de mesa e habitagio. = Acolhimento em instituicio: pode ser de curta duragéo ou prolongado e consiste na colocagao da crianga ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalagdes e equipamento de acolhimento permanente e de uma equipa técnica que lhes garantam os cuidados adequados as suas necessidades © Ihes proporcionem condigées que permitam a sua educagio, bem-estar © desenvolvimento integral (art. 49°). O acolhimento em instituigio pode ser de curta duragdo (tem lugar em casa de acolhimento por prazo nfo superior a seis meses) ou prolongado (tem Iugar em lar de infincia e juventude quando se justifica um acolhimento com duragao superior a seis meses)- art. 50°. ‘As medidas aplicadas pelas comissdes de protecgdo integram um acordo de promogiio e protecgiio (art. 36°). No acordo de promogao e protecgao em que se estabelegam medidas a executar em meio natural de vida, devem constar nomeadamente as seguintes cléusulas (art. 56°, n°l): = Os cuidados de alimentagio, higiene, satide e conforto a prestar & crianga ou ao Jovem pelos pa s ou pelas pessoas a quem sejam confiados; ~ A identificagao do responsdvel pela crianga ou pelo jovem durante o tempo em gue nao possa ou ndo deva estar na companhia ou sob a vigiléincia dos pais ou das pessoas a quem estejam confiados, por razies laborais ou outras consideradas relevantes; 43 - 0 plano de escolaridade, formagao profissional, trabalho ¢ ocupagiio dos tempos livres; - O plano de cuidados de satide, incluindo consultas médicas ¢ de orientagio psicopedagégica, bem como o dever de cumprimento das directivas e orientagbes fixadas; - O apoio econémico a prestar, sua modalidade, duragao ¢ entidade responsdvel pela atribuigo, bem como os pressupostos da concessio. De acordo com 0 art. 56°, n°2, se o perigo resultar de comportamentos adoptados em r de alcoolismo, toxicodependéncia ou doenga psiquistrica dos pais ou das pessoas a quem a crianga ou 0 jovem esteja confiado, 0 acordo inclui ainda a mengo de que a permanéncia da crianga na companhia destas pessoas, é condicionada & sua submissdo a tratamento ¢ ao estabelecimento de compromisso nesse sentido. Podem ainda constar do acordo, directivas e obrigagées fixadas & crianga ou ao jovem relativamente a meios ou locais que nfo deva frequentar, pessoas que no deva acompanhar, substncias ou produtos que nfo deva consumir, ¢ condigdes e hordrios dos tempos de lazer. ‘As medidas cessam quando (art. 63°) surja uma das seguintes situages: decorra © respectivo prazo de durago ou eventual prorrogagio; a decisaio de revistio Ihes ponha termo; seja decidida a confianca administrativa ou judicial, nos casos previstos no artigo 44.° da lei (colocagio sob guarda de pessoa idénea seleccionada para adopgao); 0 jovem atinja a maioridade ou, nos casos em que tenha solicitado a continuagio da medida para além da maioridade, complete 21 anos ou entio seja proferida decisio em procedimento cfvel que assegure o afastamento da erianga ou do jovem da situagao de petigo. 44 ‘As comissbes de protecgdo devem comunicar ao Ministério Piiblico (art. 68°) as situagdes em que considerem adequado o encaminhamento para a adopgio; as situages em que no sejam prestados ou sejam retirados os consentimentos necessérios & sua intervengio, & aplicagzio da medida ou & sua revisdo, em que haja oposigio da crianga ou do jovem, ou em que, tendo estes sido prestados, no sejam cumpridos os acordos estabelecidos; as situages em que nfo obtenham a dispo- nibilidade dos meios necessérios para aplicar ou executar a medida que considerem adequad; que nao tenha sido proferida decistio decorridos seis meses apés 0 conhecimento da , nomeadamente por oposi¢ao de um servigo ou instituigéo; as situagSes em situago da crianca ou do jovem em perigo; a aplicagio da medida que determine ou mantenha a separagdo da crianga ou do jovem dos seus pais, representante legal ou das pessoas que tenham a sua guarda de facto. Comunicam ainda ao Ministério Piblico as situagdes de facto que justifiquem a regulagdo ow a alterago do regime de exercicio do poder paternal, a inibi¢ao do poder paternal, a instauragio da tutela ou a adopgdo de qualquer outra providéncia c{vel, nomeadamente nos casos em que se mostre necesséria a fixago ou a alteracao ou se verifique 0 incumprimento das prestagdes de alimentos (art. 69°). Quando os factos que tenham determinado a situagio de perigo constituam crime, as entidades com competéncia em matéria de infancia e juventude e as comiss6es de protecgdo devem comunicé-los ao Ministério Pablico ou as entidades policiais (att.70). © Ministério Pablico intervém na promogiio e defesa dos direitos das criangas jovens em perigo e pode exigir aos pais, ao representante legal ou a quem tenha a guarde de facto os esclarecimentos necessérios. Representa as criangas ¢ jovens em perigo, propondo acgdes, requerendo providéncias tutelares civeis e usando de quaisquer meios judiciais necessérios & promogao e defesa dos seus direitos ¢ & sua proteccdo (art. 72°). 45 O Ministério Pablico requer a abertura de processo judicial de promogio dos direitos e de protecgfio quando tiver conhecimento das situagdes das criangas e jovens em perigo residentes em areas em que ndo se encontre instalada comissio de protecg&o, considere necesséria a aplicagio judicial de uma medida de promogio e io da comissio de protec¢ao protecgio ou ainda requeira a apreciagdo judicial a deci (at. 73°). 46 Medidas de Promociio e Proteccio em Regime de Colocacao: Acolhimento Institucional de Curta Duracio © Acolhimento em Instituigdo é uma das medidas de promogio e protecgio previstas na Lei de Protecgao das Criangas em Risco (art. 50°), podendo tratar-se de um acolhimento de curta duragdo, que tem lugar em Centros de Acolhimento Tempordtio de Menores em Risco. Os Centros de Acolhimento Temporirio para Menores em Risco, de acordo com Guia de Recursos para Apoio ao Acompanhamento das Criangas e Jovens (s.d), tratam-se de estruturas de acolhimento transitério para criangas e jovens, onde, para além de Ihe serem proporcionados todos os cuidados bisicos essenciais, ¢ realizado, por uma equipa técnica, 0 estudo © 0 diagnéstico das situagdes e € definido a(s) solugdo(Ges) tendencialmente mais adequada(s) em termos de planos de vida, num perfodo que nio deve ultrapassar os 6 meses. Destinam-se a acolher criangas e jovens em situago de perigo, sempre que cumulativamente ocorra: ~ A natureza ¢ a gravidade da situago ponha em causa a sua seguranga, sade, formagao ou desenvolvimento; ~ O contexto sécio-familiar em que se encontram nao permita a realizagio do diagndstico objectivo da sua situagao e a planificagdo da intervengo mais adequada. ‘Acolhem criangas e jovens dos 0 aos 18 anos, de ambos os sexos, prevendo-se a diferenciagao da estrutura fisica, em termos da organizagdo dos espagos, de forma a adequé-los as faixas etérias 0/12 e 12/ 18 anos, com alguma flexibilidade no limite dos 12 anos, nao ultrapassando uma lotagio de 12 criangas ou jovens. 47 ‘A intervengdo € da responsabilidade de uma equipa técnica de formagio interdisciplinar, devidamente dimensionada que Ihe permita dar 0 apoio ¢ a atencao que cada crianga ou jovem requer, procedendo paralelamente ao diagnéstico tao célere quanto possivel da sua situacdo, pressuposto indispensdvel & elaboragiio dos respectivos planos de vida. A equipa técnica deve integrar as valéncias da psicologia, do servigo social, da educagio, da medicina e da érea juridica, com especializagaio inicial ou adquirida e formacio continua em matérias ligadas & infancia e juventude. De acordo com os principios orientadores da Intervengio, esta é centrada na crianga ou jovem como ser em desenvolvimento, numa perspectiva global ¢ multidisciplinar, favorecendo-se relagdes de proximidade entre as criangas ¢ jovens acolhidos, bem como os adultos profissionais que com elas lidam e desenvolvendo um ambiente de confianga ¢ afectividade que lhes permita seguranga e suscite adesio as medidas que vierem a ser adoptadas. De acordo com os mesmos principios, a ponderacdo da solugo e encaminhamento mais adequado deve obedecer ao princfpio de prevaléncia na familia, isto é, devem ser avaliadas, sequencialmente, as seguintes respostas: = O regresso & familia natural, préxima ou alargada, mantendo-se ou promovendo-se, se for caso disso, 0 apoio & familia, em colaboragéo com as instituigdes e servigos locais, pelo tempo necessério A garantia do bem-estar da crianga; - A insergiio numa familia alternativa- privilegiando-se sempre que possfvel a adopgdio- quando o regresso & familia natural nio for viével; ~ A admis em lar que assegure um acompanhamento individual e a integragao social em condigées aproximadas 4s de um niicleo familiar; 48 Apresentamos, de seguida, os quadros sintese, referentes respectivamente & evolugio da crianga e da famflia ao longo da hist6ria (Quadro 1), as contribuigdes para 6 estudo dos maus-tratos infantis ao longo da hist6ria (Quadro 2), as contribuigdes acerca dos aspectos epidemiol6gicos dos maus-tratos infantis (Quadro 3) ¢ & evolugio da legislagio ao longo da histéria (Quadro 4). 49 Quadro 1. Evolugiio da crianga ¢ da familia ao longo da histéria ‘Contribuigbes ~ Familia como grupo religioso chefiado pelo pai, que detinha o direito absoluto de julgar e de punir. Babildnia Famiflia assente no poder paternal ‘Antiga Mesopotimia | - Autoridade centrada no homem; = Casamento com fins de procriagao. Egipto ~ Constituigao da familia com fins de garantia da descend&ncia; ~ Crianga no centro das preocupagbes. Grécia Antiga ~ Comunidade no centro das atengdes; - Autoridade do chefe de familia; = Infanticfdio como pratica tolerada e autorizada, Roma =O pai detinha 0 poder ilimitado sobre a vida ou a morte dos filhos. ‘Europa Ocidental Contribuigies ‘Até ao século XI | - Autoridade do pai; = Crianga como adulto em tamanho reduzido; | - Auséncia do sentimento de infiincia. _ ‘Séoulos Xia XVI | - Crianga encarada como sfmbolo do mal ¢ da imperfeigio; - Pritica do infanticidio sob a aparéncia de acidente, como solugdo para problemas como a marginalidade, a malformacao ou a miséria, = Criangas criadas por amas de leite ou entao abandonadas; -Tomada de consciéncia superficial da especificidade da crianga: sentimento de «crianga-brinquedo» surgiu inicialmente em beneficio dos rapazes. ‘Século XVI ~ Surge infcio de um sentimento sério e aut€ntico de inflincia: a crianga ganha uma especificidade e uma originalidade psicolégica; = Escola como instrumento de iniciagao social, de passagem & condigio de adulto; Séeulo XVI ~ Familia como realidade morale espiritual; ~ Sentimento de infancia e de familia aleangado; ~Aceitagio das necessidades espectficas das criangas; = Pais responstiveis pela felicidade ou infelicidade dos filhos; Papel materno ganha importincia, ‘Séeulo XIX) KX = Teoria psicanalitica torna a m&e como figura central da familia, com atribuigio de um papel fundamental & amamentagio no desenvolvimento da crianga; = Melhoria nas condigées materiais leva & melhoria dos cuidados maternos; ‘Século XX = Nascimento de um filho, objecto de um forte investimento afectivo, geralmente fruto de um projecto do casal; = Progressos ao nivel da satde da crianga e de criacdo de creches; - Responsabilidade parental baseada no afecto e na educagio; = Primeira infincia encarada como perfodo de aprendizagens ¢ de desenvolvimento de capacidades. Quadro 2, Algumas contribuigles para o estudo dos maus-tratos infantis ao longo da histéria ‘Autores Contribuicdes 1860- Ambroise Tardieu ~ Primeira deserigio da "Sindrome das Criancas Batidas” 1874- Abraham Jacobi = Fundagio da Sociedade para a Prevencdo da Violéncia para com a Crianga 1946 -Toha Caffey, ~ Publi Gio de investigagao com base em estudos radiol&gicos | 1953 - Silverman ~Sindrome do Traumatismo Desconhecido 1962 Henry Kempe “Descrigio completa da "Sindrome da Crianga Batida” 1963- Fontana ~nirodagio da denominagio de “Crianga Maliratada”™ 1969- D. Gil ~Definigao de mau-trato Quadro 3. Algumas contribuigdes acerca dos aspectos epidemiol6gicos dos maus-tratos ‘Autores Contribuigbes Fausto Amaro (1986) = Primeira tentativa de abordagem socioldgica dos maus-tratos as ceriangas em Portugal. Concluiu existirem cerca de vinte mil criangas maltratadas e negligenciadas em 1985 uma distribuigao semelhante & descrita para outros paises, sendo que a negligéncia representava 48% do total dos casos, os maus-tratos psiquicos 31-36% e 0s maus-tratos fisicos 16-21% (Almeida, André e Almeida, 2001). Relatério sobre as “Familias e 0 maus- tratos as criangas em Portugal” (1999) ~ Relatério realizado a pedido da Assembleia da Repdblica. Verifica-se, através deste estudo, que o lar familiar é 0 lugar privilegiado da violéncia sobre as criangas, que as mies so responsdveis por mais maus-tratos aos filhos do que os pais, que mais de metade dos progenitores autores de ‘maus-tratos constituem casais nucleares e que 0 filho mais novo é 0 mais excessivamente maltratado, RelatGrio de avaliagio da actividade as Comissbes de Protecgao de Criangas Jovens (2002) = Publicado pela Comissio Nacional de Criangas e Jovens em Risco, Revela que no ano 2001 foram acompanhadas 10.123 criangas e jovens 1no mbito dos processos instaurados pelas CPCI. Quinto Relatdrio da UNICEF da série Report Card (Setemibro de 2003) —Tem como objectivo chamar @ atengio para os problemas dos maus- tratos nos pafses industrializados e para a necessidade de pOr fim a uma prética que tem consequéncias extremamente negativas para as criangas, Sio relatadas algumas medidas (legislativas ou outras) tomadas por alguns pafses e que vieram a ter resultados positivos na forma como a sociedade reage. Quadro 4. Evolugio da legislacio ao longo da histé 51 Marcos Historicos " Contribuigies 1911 Surge em Portugal a primeira Lei de Proteceio Menores, que criou os Tribunais de Menores. 1920 ‘Surge em Genebra a Unio internacional de Protecgio & inflincia. “Até cerca de 1950, "AS preocupagdes sobre proteccio so de ordem humanitaria, 1959 ‘A Assembleia Geral das NagGes Unidas aprovou, por unanimidade, a Declaragio Universal dos Direitos da Crianga, um conjunto alargado de princfpios que consagram, nomeadamente, 0 seu direito a identidade, 20 nome e & nacionalidade, o direito a brincar e a crescer num ambiente de paz e amizade. 1962, Foi publicada a Organizagio Tutelar de Menores - configurando medidas que se destinavam, indiscriminadamente, a menores em perigo e a menores agentes de crimes. 1979 ‘Ano Internacional da Crianga. A Assembleia Geral das Nagées Unidas sugere a criaglo da Convencio sobre os direitos da crianca, de forma a conferir um carécter obrigat6rio & Declaragdo dos Direitos da Crianga, 198) E aprovada, pela Assembleia Geral das NagSes Unidas, a Convengio sobre os Dircitos da Crianga, com cardcter vinculativo para os Estados que a adoptaram, defendendo como lema principal “o interesse superior da crianga”. Os 54 artigos versam direitos relativos & provisto, proteecio participagdo da crianga em todos os assuntos que Ihe digam directamente respeito 1990 Foi ratificada na Assembleia da Repdblica a Convengio sobre os Direitos da Crianca, em sintonia com a deliberagiio anterior da Assembleia-geral da NagGes Unidas. 1991 Foram criadas as Comiss6es de Protecgio de Menores (CPM) em Portugal insituigdes oficiais ndo judicidrias. 1999 ‘As CPM foram reorganizadas para Comissoes de Protecgio de Criangas ¢ Jovens, 2008 E aprovada a Lei a 31/2003, que altera o Cédigo Civil, a Lei de Protecgio de Criangas e Jovens em Perigo, 0 Decreto-lei n® 185/93, de 22. de Maio a Organizago Tutelar de Menores e o Regime Jurfdico da Adopeao. 52 Perspectivas sobre a Formagéio de Vinculos Afectivos Um bebé néio pode existir sozinho; ele é uma parte essencial de uma relagao. D. W. Winnicott Uma das grandes riquezas da vida é a possibilidade que os seres humanos tém de estabelecer fortes e s6lidos vinculos afectivos, sendo o vinculo mais importante considerado pelos investigadores, aquele que se dé entre mae e filho. As teorias psicanaliticas, a0 considerarem a primeira época da vida como fundamental na determinagio da qualidade da existéncia adulta, contribuiram amplamente para fazer da mée a figura central na vida afectiva da crianga. Siio varios os autores que se tém vindo a referir & importancia do papel materno no desenvolvimento da estrutura interna da crianga € no desenvolvimento da sua relagio com o exterior. Trés conceitos tém vindo a ser utilizados pelos autores para caracterizar a relagio da crianga com a mie: «telagdes objectais», «dependéncia» «yinculagio» (attachment), estando cada um deles ligado a uma formulagio tedrica distinta. Aeeste propésito, Ainsworth (1969) refere-se a cada um deles, salientando que 0 conceito «relagées objectais» deriva da teoria psicanalitica do instinto, para a qual a origem das relagdes objectais reside no primeiro ano de vida, sendo o primeiro objecto da crianga a mie, cuja relagao inicial tem uma natureza essencialmente oral. © conceito de «dependéncia», por seu lado, deriva das teorias da aprendizagem social, para as quais a origem das relagdes interpessoais reside no comportamento de dependéncia da crianga em relagdo & mie, reforgado pelos cuidados que a mie Ihe 53 dispensa e na interacglio que desenvolve com cla. Finalmente, 0 conceito de evinculagdo» deriva de Bowlby (1958), que propés uma nova abordagem para as origens das relagdes da crianga A mie, tendo por base uma perspectiva etolégica. Para o autor, 0 termo «vinculagio» refere-se a0 lago afectivo que uma pessoa estabelece com outra, sendo o primeiro lago formado provavelmente com a mie. Fazemos, de seguida, uma descrig&o sucinta das ideias dos principais autores sobre o tema da Vinculagio, com o intuito dos relacionarmos, mais adiante, com a importincia dos cuidados afectivos & crianca. Abordagem Etolégica da Vinculacio ‘A etologia estudou 0 comportamento das espécies animais, nomeadamente no que diz respeito aos comportamentos de ligagéo, privilegiando como metodologia de estudo, a observaco directa dos comportamentos em meio natural, com especial énfase inter-relagd s entre os organismos e o meio envolvente. Estas metodologias vieram influenciar 0 estudo da relaco pais/filhos na espécie humana (Cunha, C. & Si, E., 1996). Varios autores (Bateson, 1966; Sluckin, 1965; Salzen, 1970; Thorpe, 1958; Moltz, 1960) cit. in Rajecki, 1976); Ratner, 1976; Harlow, 1958 (cit. 1976); Lorenz, 1935 (cit. in Lorenz, 1974); Schappi, 1983 (cit. in Schappi, 1987); in Harlow, Rajecki, 1976) estudaram a génese das ligagdes infantis em algumas espécies animais, partindo do principio de que as experiéncias no inicio da ontogénese influenciam, profundamente, as fases ulteriores do desenvolvimento e que a relagaio mde-filho organiza a ontogénese (Cunha, C. & S4, E., 1996, p. 66). 54 Apesar dos fundadores da ctologia serem K. Lorenz ¢ N. Tinbergen, foi com as experiéncias de Harlow (1958) sobre os macacos resus € com os trabalhos paralelos de Bowlby sobre o bebé humano, que a etologia viu abriu 0 campo das suas aplicagées ao comportamento humano (Marcelli, 1998). K. Lorenz (1957) realizou os primeiros estudos cientfficos sobre 0 comportamento de aves recém-nascidas que seguiam os primeiros objectos em movimento que visualizavam, fossem ou ndo membros de sua familia, aos quais se apegam cada vez mais. Denominou este comportamento de imprinting, caracterizado como uma forma répida, inata e instintiva de aprendizagem precoce, que ocorre na vida do animal e tem a importante fungdo de permitir 0 reconhecimento dos pais aos filhos, com a finalidade de favorecer a ligagdo social ¢ de reproduciio sexual com ‘membros de sua propria espécie ¢ no de outras (comportamentos de filiagao), Estas descobertas foram aplicadas, posteriormente, & teoria da vinculagio. Ao descrever a ontogénese das ligagdes infantis nos seres humanos, Bowlby (1969, cit. in Soczka & Bastos (Orgs.), 1976, p. 72) notou que «(...) @ forma como se desenvolvem as ligagées afectivas nos bebés humanos, e como se concentram numa figura discriminada, é suficientemente parecida com 0 que acontece noutros mamfferos, e€ em aves, para poder ser incluida, legitimamente, no capitulo imprinting». Harlow (1958), através de diver experiéncias, demonstrou a necessidade de um vinculo afectivo entre 0 bebé macaco rhésus e a mic, assim como todas as implicagBes que a falta desse vinculo acarretava. Criou experimentalmente imitagoes de mies macacas de arame, umas revestidas de tecidos delicados ¢ sem alimento outras nao revestidas mas com alimento (mamadeira). Observou que os bebés macacos preferiam as mies revestidas de tecidos delicados as mfies revestidas apenas de arame e que a varidvel aleitamento estava longe de significagio estatfstica. Para Harlow, isso significou que 0 reconforto do contacto ou “apego” constitui uma varidvel maior no vinculo com a mie, superior & alimentago. Verificou também que os macacos bebés separados da mie mas criados juntos, apresentavam melhor comportamento social do que aqueles mantidos isolados. As fémeas criadas em total isolamento tém, posteriormente, um comportamento de rejeicio muito forte em relagio ao seu proprio bebé. Estas experiéncias mostram a importincia da necessidade precoce de apego e as sequelas duradouras, até mesmo definitivas que uma caréncia precoce provoca no bebé macaco (Marcelli, 1998, p. 22). Assim, foram tomadas como varidveis importantes, a serem consideradas na organizagio das ligag6es infantis nos macacos thésus, 0 contacto precoce com a mae (ou com o substituto materno), © conforto do contacto, 0 isolamento e a privacdo social prolongados nos primeiros meses de vida ¢ as competéncias sensoriais do bebé-macaco (Cunha, M. & S4, E., 1996). Harlow (ibid.) verificou, ainda, que a fémea rhésus que havia sofrido privagao social precoce e prolongada era, a seu tempo, uma md mae, indiferente aos sinais do {filho, tratando-o e maltratando-o como se de um objecto se tratasse (Cunha, M. & S4, E., 1996, p. 68). ‘A abordagem etol6gica proporcionou grandes contributos para a compreensiio da teoria da vinculagio, j4 que introduziu a nogiio de competéncia e influéncia infantil na interacgo com o meio. 56 ‘Teoria de John Bowlby A luz dos trabalhos de etologia, Bowlby, refutou, a partir de 1958, a teoria freudiana do apoio da pulsao libidinal (0 estabelecimento da relagdo libidinal apoia- se na satisfagdo da necessidade oral) e considerou a nogdo de apego & mie. Defendeu que 0 apego do bebé & mie ¢ da mie ao bebé resulta de determinados sistemas de comportamento caracieristicos da espécie, que se organizam em toro da mie. Descreveu, na primeira versio da sua teoria (1959), cinco sistemas de comportamento (sugar, agarrar-se, seguir, chorar, sorrir) que definem a conduta de apego. Considerou (1969) que esta conduta € priméria ¢ tem o objectivo de manter a crianga na proximidade da me (Marcelli, 1998, p. 22). A Teoria da Vinculago de Bowlby (1981) postulou as experiéncias afectivas iniciais com os pais, ou seus substitutos, como a base para as relagdes afectivas futuras, Demonstrou que a acessibilidade de figuras parentais € 0 tinico meio capaz de produzir sentimentos de seguranga na crianga e utilizou o termo vinculago para designar este tipo de relagio (Canavarro, M., 1999). O ponto fundamental da minha tese, é que existe uma forte relagao causal entre as experiéncias de um individuo com seus pais e a sua capacidade posterior para estabelecer vinculos afectivos, e que certas variagées comuns dessa capacidade, (...) podem ser atribuidas a certas variagdes comuns no modo como os pais desempenham seus papeis. (...) A principal variével ara a qual chamo a atengdo é 0 grau em que os pais de uma crianga the ‘fornecem uma base segura ¢ a estimulam a explorar a partir dessa base (Bowlby, 1982, p. 128). Bolwby (1982) chama de “vinculo afectivo” 4 atracc¢do que um individuo sente por outro individuo e evidencia a necessidade de uma figura de ligago (ou de apego) que fornega a crianga, adolescente (ou adulto) uma base segura. 37 Durante os primeiros meses de vida, o bebé aprende a discriminar uma certa figura, usualmente a mie, e desenvolve um grande prazer em estar na sua companhia. Depois dos seis meses de idade, aproximadamente, 0 bebé mostra as suas preferéncias de modo inconfundivel (Schaffer, 1958). Durante a segunda metade do primeiro ano de vida e a totalidade do segundo e terceiro, a crianga esta intimamente ligada a sua figura materna, 0 que significa que fica contente na companhia dela e aflita quando ela estd ausente. Mesmo separagées momentaneas levam frequentemente a crianga a protestar; € as mais demoradas sempre envolvern 0s mais vigorosos protestos. Apds 0 terceiro ano, 0 comportamento de ligacao é suscitado um pouco menos prontamente do que antes, embora a mudanca seja apenas de grau. A partir do primeiro aniversdrio, outras figuras, como o pai ou a avé, também podem tornar-se importantes para a crianca, de modo que a sua ligagdo nao se limita mais a uma figura. No entanto, existe usualmente uma preferéncia bem marcada por uma determinada pessoa. A luz da filogenia, é provavel que os vinculos instintivos que ligam o bebé humano a uma figura materna, sejam construfdos de acordo com 0 mesmo padrao geral presente em outras espécies maméferas (Bowlby, 1958; Rollman-Branch, 1960; Harlow ¢ Zimmermann, 1959) Bolwby, 1982, p. 43). ‘A propésito da contribuigio de Bowlby, designadamente ao nivel da importancia que atribui as relagSes precoces, Rosa Abelaira (1992, p. 9) refere que «um bebé carente torna-se inseguro e ansioso e todo 0 seu universo de interesses € preocupagées gira a volta dessa falta e todas as suas energias siio canalizadas para a obtencdo de seguranca». Para que a crianca se afaste da mie ¢ se tone auténoma teré, portanto, de se sentir segura de afecto. E 0 apego que possibilita a diminuicao da dependéncia em relagio & mie e que permite a autonomia e a individuagio da crianga. 58 Contributos de Mary Ainsworth para a Teoria da Vinculacio Mary Ainsworth, nos anos de 1970, continuando os trabalhos de Bowlby, desenvolveu uma forma de avaliar 0 tipo de relagéo de vinculagio estabelecido, conhecida por Situagéo Estranha, Trata-se de uma situagéo laboratorial estruturada, com a duragéo aproximada de vinte minutos, em que se pretende induzir néveis de stress reduzidos na crianga mas com intensidade suficiente para activar comportamentos de vinculagdo (Canavarro, M., 1999, p. 44). Sao utilizadas trés situagées indutoras de stress, relativamente pouco trauméticas mas suficientes para activarem comportamentos de vinculagio, sendo elas a presenga de um local que no seja familiar & crianga, a interacgdo com uma pessoa diferente e breves separagées da mie. A situagdo é gravada em video ¢ classificam-se as interacgdes observadas de acordo com as reacgSes da crianga & separagio da/ com a mie, em trés tipos ou padrées distintos, tal como se descrevem no quadro seguinte, referente aos Padrées do comportamento de interacgZo da crianga com a mie, avaliados na Situagio Estranha (de acordo com Ainsworth e al., 1978, cit. por Canavarro, M., 1999): Padrdes de Vinculagao Descrigiio dos comportamentos de interacgio. Padrao A’ Fxploragio independente da mie (no infcio, separa-se para explorar o ambiente; Inseguro-Evitante | baixa partlha de afectos; estabelece relagio com o estranko). Evitamento activo da mée apés a reunido (olha para outro lado, movimenta-se noutra direcedo, ignora; nfo evita o estranho). Padrio B: ‘A mie é uma base de seguranga para exploragio do ambiente (Separa-se para Seguro brincar, partha emogées enquanto brinca, estabelece relago com o estranho na presenca da mie; conforta-se rapidamente, apés situagio indutora de stress). Procura activa de contacto ¢ interaceo, apés reunio (quando agitada, procura imediatamente 0 contacto € este pie fim & agitacdo; quando nio est agitada, mostra-se satisfeita por ver a mde e dé inicio & interacgi0). Padrao C: ‘Comportamento explorat6rio pobre (dificuldade de se isolar para explorar Inseguro-Ansioso | ambiente; necessita sempre de contacto, mesmo antes da separaclo; receio de situagdes e pessoas diferentes). Dificuldade de estabelecer contacto apés a reunido (existéncia simultfinea de procura e resisténcia ao contacto, gritando, dando pontapés ou rejeitando brinquedos; pode continuar a chorar e gritar ou aparentar grande passividade). 59 Estudos realiz dos com base neste procedimento experimental com amostras recolhidas em populago normal, referidos por Cicchetti (1995), revelaram que aproximadamente 70% das criangas foram classificadas_ como tendo comportamentos de vinculagdo seguro (Padriio B) em relacdo a sua mae, 20% das criancas foram como tendo comportamentos de vinculagdo inseguro-evitante (Padriio A) e os restantes 10% estabelecem relagdes de vinculagao de tipo inseguro- ansioso (Padréio C) com as suas mées (Canavarro, M., 1999, p. 45). Canavarro. M. (1999), refere-se a um quarto padrio de vinculagio identificado por Main & Solomon (1990), descrito no quadro seguinte, e que corresponde a padres atfpicos. de comportamento de vinculagio, caracterizados__por comportamentos desorganizados, nfo tendo as criangas qualquer estratégia coerentemente organizada para lidar com o stress induzido pela separagio da mie, nem com a posterior reunifio, Segue-se 0 quadro relativo aos Padrées de vinculagio da crianga com a mie, avaliados na Situacdo Estranha (de acordo com Main & Solomon, 1990): PadiSes de Vinculagio | _Descrigo dos comportamentos de interacgio Padtio A, BeC | (Equivalents ao sumariado no Quadro 1) Padiio D Padrdes comportamentais carateizados por comportamentos contraitérios, Desorganizado | movimentos "e- expressoes incompletos ou indirectos; comportamentos estereotipados; movimentos assimétricos. Através dos seus estudos, Mary Ainsworth contribuiu de forma determinante para a evolugo e aperfeigoamento da teoria da vinculagio. 60 Freud nfo s6 insistiu em que as raizes da vida emocional mergulham na infancia, como também procurou explorar de um modo sistemético a ligagio entre acontecimentos dos primeiros anos de vida e a estrutura e funcionamento da personalidade (Bowlby, 1982). Especificou (1905) que 0 primeiro objecto de amor da crianga 6 0 seio da mie e referiu-se & primitiva relacio de mamar como 0 prot6tipo das posteriores relagdes de amor. Caracterizou (1914) as primeiras relagdes objectais como «anacliticas», por considerar que 0 amor anaclitico depende principalmente de se ser alimentado. Observou mais tarde (1926) que a crianga sente ansiedade quando a mie se ausenta, assinalando a ;paragio 0 perigo para a crianga de que as suas necessidades corporais nao sejam satisfeitas. Em 1931 Freud reconheceu 0 significado duradouro da vinculagio crianga-mae, constituindo a base para todas as relagdes posteriores (Soczka & Bastos (Orgs.), 1976). No entanto, a descrigdo de Freud quanto ao significado do lago mée-crianga estava incompleta, 0 que deixou lugar para divisdes te6ricas na perspectiva psicanalitica. A partir das descrigdes de Freud, outros teéricos concebem o desenvolvimento das relag6es objectais, relacionando-o com 0 desenvolvimento do ego. Melanie Klein (1952) aponta os mecanismos mentais da introjecedo © da projecedo como fundamentais para a constituigéo do aparelho psiquico. Desde o seu nascimento, em fantasia, 0 bebé introjecta o seio da mie dividindo 08 seus aspectos bons e maus, na perspectiva de introjectar os bons e de projectar os maus. Hé uma integrago progressiva que permite que 0 mundo interno do bebé va sendo construfdo. Inicialmente, ele ¢ vivenciado como todo bom ou todo mau e self e objectos nio esto ainda integrados numa pessoa inteira, Confundem-se e 0 bebé 61 julga serem constituidos por partes do corpo como 0 seio, 0 rosto ou as mios (posig&o esquizo-paranoide). ‘A posicdo depressiva € apontada como o ponto de partida para a emergéncia da nogio de separagdo entre si e 0 objecto, quando a crianga adquire a capacidade de ver a mie como um objecto total. O bebé passa a ser um objecto total e born e mau, antes clivados, passam a fazer parte dele. A distingio entre self e objecto torna-se possivel mundo interno e mundo externo tornam-se separados. Gradualmente, 0 bebé vai percebendo que a mae que frustra ¢ que ele odeia e ataca é a mesma que o conforta e que ele ama e valoriza. Os objectos parciais como 0 seio, 0 rosto, as méos da miie, etc. passam a ser reconhecidos como partes de um objecto tinico e inteiro e 0 bebé apercebe-se que os seus sentimentos ambivalentes sio dirigidos ao mesmo objecto. A culpa pelos ataques ao objecto bom e o receio do ter estragado suscitam o medo da perda do objecto e os desejos de reparaciio aparecem. E a reparag&o que permite que o trabalho de luto se faga e que a posigao depressiva seja ultrapassada. a confianga nos objectos bons que sobrevivem aos maus que permite 0 avango, ou seja, € a relagio € a identificagdo com o objecto extemo que permite a consolidagdo de um mundo interno bom, onde objectos bons constituem a base para a confianga em si e nos outros. A reparago, promovendo esforgos correctores, vai possibilitar um alivio interno pelo mal feito. O bebé vai armazenando, dentro de si, tanto as experiéncias gratificantes do seio que protege, conforta ¢ alimenta, como as experiéncias frustrantes do seio que agride. Vio sendo atribuidos ao seio materno sentimentos amorosos e crueis. Torna- se essencial que o bebé internalize, pouco a pouco, uma imagem benigna da mae € que esta constitua um objecto bom e forte que Ihe dé suporte. Spitz (1957) teorizon que a evolugio psicogenética da crianga € composta por organizadores do psiquismo, que se estabelecem nos dois primeiros anos da crianga, 62 marcados pelo aparecimento de novos esquemas especificos do comportamento chamados indicadores. O indicador do primeito organizador do psiquismo € a aparigdo da reacgio do sorriso a partir do segundo e terceiro més, que revela a instalacdo dos primeiros rudimentos do Eu ¢ do estabelecimento da primeira relagio pré-objectal ainda indiferenciada. © segundo organizador do psiquismo ¢ especificado pelo aparecimento ao oitavo més da reacgfo de angistia ao rosto de um. estranho (frequentemente conhecido pela angdstia do oitavo més) que marca a sua nova capacidade de distinguir 0 Eu do naio-Eu bem como a mie da nio-mie. A crianga chega assim fase objectal e ao estabelecimento de relagdes de objecto diversificados. O terceiro organizador do psiquismo surge no decurso do segundo ano de idade e € especificado pelo surgimento do “nao” (gesto e palavra) que permite que a crianga atinja uma distingdo completa entre si mesma e 0 objecto materno e, em consequéncia, que entre no campo das relagdes sociais (Marcelli, 1998). Enquanto se desenvolve uma estrutura organizadora do ego é a mie que assume as fungSes do ego, sendo o seu ego exterior. Spitz descreve a evolugio da relago objectal em trés estédios: estédio pré- objectal (0 objecto é percebido apenas em fungdo da necessidade interna), estédio do objecto precursor (a crianga reage ao ver 0 rosto do adulto; verifica-se a passagem correspondente da percepgo interior da experiéncia para a percepgdo exterior dos estimulos; inicio rudimentar do ego representado & actividade dirigida) e estidio do objecto libidinal (angtistia do oitavo més- 0 bebé reage com desprazer quando a mae © abandona; o objecto libidinal- a mie- est4 constituido ¢ identificado) (Marcelli, 1998). Os primeiros estudos sobre a relacio entre mie e filho foram baseados em observagdes nas quais Spitz, estudou 0 comportamento de criangas separadas dos pais em instituigdes, descrevendo a patologia resultante da falta dos cuidados maternos. 63 Os estudos de Spitz sobre o desenvolvimento normal permitiram a determinagio de distorgdes patoldgicas préprias de certas situagées trauméticas. Relatou a reaccio comportamental de lactentes de 6 a 18 meses apés uma separagio brusca da mie, deserevendo inicialmente um perfodo de choramingos, depois um estado de retraimento e de indiferenca, em simultdneo com uma regressio do desenvolvimento efou sintomas sométicos. Esta reacgo ¢ denominada pelo autor de «depressio anaclitica». Para Winnicott (1975), a condicao necesséria para que 0 bebé progrida no sentido da identificagao priméria, é a existéncia de uma mde suficientemente boa, que responde ¢ se adapta activamente as necessidades do bebé, atribuindo-lhe um sentido ¢ significado, ¢ que gradativamente diminui essa adaptag&o. Adaptando-se a0 bebé, a'mie permite ao bebé viver a ilusio de que ele cria magicamente 0 objecto externo. «A adaptagio da mae as necessidades do bebé, quando suficientemente boa, dé a este a ilusdo de que existe uma realidade externa correspondente @ sua prépria capacidade de criar» (Winnicott, 1975, p.27). A tarefa da mie seré a de desiludir 0 bebé gradualmente, Sio as provisdes ambientais suficientemente, boas que vaio ajudar 0 bebé a enfrentar a perda da omnipoténcia. A crianga passa de um estado de dependéncia absoluta, em que foi vivido um perfodo de fusio com a mie sem capacidade de resistir & frustragiio da sua auséncia, para um estado de dependéncia relativa em que, gradualmente, consegue passar sem os cuidados maternos. A repeticio das gratificagdes satisfat6rias oferece A crianga as bases para o desenvolvimento da capacidade de estar 86. ‘A mie deveré proporcionar um ambiente facilitador, suficientemente bom, demonstrando disponibilidade para a crianga mas, ao mesmo tempo, possibilitando- The um espaco relacional para a auto-exploracao ¢ desenvolvimento da autonomia (Oliveira, 2000). Na fungiio maternal, Winnicott distingue trés papeis que denomina 64 de holding (amparo fisico e psfquico), handing (manipulagdes do corpo: cuidados de higiene, vestuério e caricias) e object-presenting (momento em que o objecto é apresentado ao bebé). Os fenémenos transicionais permitem a crianga atingir a unidade psique-soma, base de um self auténtico. $6 0 verdadeiro self pode ser criativo e dar & crianga o sentimento de ser real (Marcelli, 1998). Ferreira, T. (2002), referindo-se ao conceito de Winnicott de mie suficientemente boa , diz-nos que € aquela que é capaz de manter a boa distancia, 0 bom envolvimento afectivo segundo as necessidades (decrescentes) do seu bebé. Bion (1962) referiu-se ao estado mental da mie, quando ela consegue receber a ansiedade projectada pelo bebé. Adoptou o termo réverie para se referir a esse estado, O bebé transmite A mae um estado de ansiedade intolerdvel, sem sentido, cabendo A mie reconhecer essa ansiedade, conté-la e dar-lhe algum significado. Para isso, a mente da mie teré de estar num estado de calma receptividade, sem meméria e sem desejo. Quando essa réverie nfo acontece, nao € atribuido significado aos estados do bebé ¢ este experimenta um sentimento de «desconhecimento medonho». Se, pelo contratio, 0 estado do bebé é aliviado, a percepgdo que ele tem é a de ter «projectado algo intolerdvel para dentro do seu objecto, mas 0 objecto foi capaz de conté-lo e lidar com esse algo. Ele pode entéo reintrojectar, no somente a sua ansiedade original, mas uma ansiedade modificada por haver sido contida. Ele introjecta também um objecto capaz de conter a ansiedade e com ela lidar. O conter da ansiedade por um objecto externo capaz de compreensiio é um comeco de estabilidade mental» (Segal, 1975, in Hinshelwood, 1992, p.265). «Mediante a introjecgdo de uma mae receptiva e compreensiva, o bébé pode comecar a desenvolver a sua prépria capacidade de reflexdio sobre os seus préprios estados mentais» (Hinshelwood, 1992, p.464). A relagiio continente/contetido entre o bebé ¢ a mae e a capacidade de réverie favorecem o crescimento psiquico da crianga e da mae. Os fundamentos infantis vaio sendo transformados pouco a pouco em simbolos, pensamentos, abstracgdes cada vez mais elevadas, sendo sinal de satide que esse desenvolvimento ocorra mais no sentido progrediente do que regrediente (Houzel, 1991). Este conceito de Bion tem algumas divergéncias em relag&o ao conceito de holding de Winnicott, uma vez que a fungio de holding visa «dar apoio @ crenga inabaldvel do bebé em sua propria omnipoténcia» e a réverie de Bion «é a tentativa materna de proporcionar uma fungio continente de compreenstio da realidade do bebé, a fim de apoiar a perda de omnipoténcia deste» (Hinsshelwood, 1992,p. 465). Constata-se, portanto, que a forma como a mic contém os estados do bebé e a forma como se posiciona enquanto pessoa em relagdo ao filho, influencia a representagéo que este vai interiorizar dela, base para os passos seguintes do desenvolvimento. Conclui-se que 0 alicerce para uma personalidade estavel e auto-confiante passa pela certeza de poder contar com a presenga e 0 apoio das figuras de apego, assim como pela estimulacio gradual e constante & crescente autonomia (Bowlby, 1981). A posigo teérica de Bowlby tem pontos de encontro com as posigGes adoptadas por outros autores que dio importéncia a influéncia do ambiente sobre o desenvolvimento. Assim, Winnicott (1958), citado por Bowlby (1981), refere que «a maturidade e a capacidade de estar 86 supde que 0 individuo haja tido a oportunidade, gracas a cuidados adequados de adquirir confianga num objecto benigno. Gradativamente, 0 ambiente de apoio para o ego é introjectado e incorpora-se 4 personalidade do individuo, de modo a fazer surgir a capacidade de 66 estar sé» (pp. 377). Mahler (1968), também citada por Bowlby (1981), chega & concluséio de que a auto-confianga, a auto-estima e 0 prazer na independéncia, se desenvolvem a partir da confianga nos outros. Sao construfdos na laténcia ¢ inffincia com 0 auxilio de uma pessoa significativa que sirva de ponto de referéncia para as actividades da crianga e que Ihe dé liberdade suficiente para ultrapassar a fase de separag@o-individuagao. Bion refere-se, por outras palavras, & mae com capacidade de réverie ou seja, capacidade de intuir, fantasiar, agir 0 desejo do bebé, identificando-se com ele, sendo esta qualidade maternal que organiza 0 mundo interior psfquico do bebé, dando progressivamente um sentido a0 mundo que o rodeia pois a mie vive com ele experiéncias afectivas repetidas e de grande intensidade (Ferreira, T., 2002, p. 57). Em sintese: Harlow mostrou a importancia consideravel do contacto corporal e esta teoria foi simultaneamente sustentada por Bowlby. O importante papel das varidveis visuais, indirectamente provado pelo fendmeno de impregnacéo, foi sublinhado por Lorenz e Bowlby. De outro lado, Spitz sublinhou a importancia deste papel pela sua andlise do sorriso, e Bowlby (...) avaliou-o positivamente. Harlow mostrow igualmente que a estimulacdo préprio-perceptiva, o aleitamento 0 calor materno eram varidveis importantes na primeira inféincia (Cruz, A., or8., p.166). ‘Até meados da década de 1950, psicanalistas e teéricos da aprendizagem concordavam que os vinculos afectivos se desenvolviam com base na necessidade de satisfagdo de certos impulsos, como por exemplo a alimentagéo, vista como impulso primétio, e a dependéncia, vista como impulso secundério. Os te6ricos das relagdes objectais, nomeadamente Melanie Klein ¢ Winnicott, procuraram modificar essa reformulagio. Os estudos de Lorenz sobre o imprinting ofereceram uma abordagem o7 alternativa, ao verificar que pelo menos em algumas espécies de aves, durante os primeiros dias de vida, se desenvolvem fortes vinculos sobre uma figura matemna, sem qualquer referéncia A alimentagiio. A partir do modelo derivado da etologia, Bowlby delineou uma teoria da ligagao, em 1958. Abandono Psicolégico/ Criangas em Risco Hoje a loucura dos homens pode ser conhecida, entendida e em grande parte evitada- 6 anossa esperanca. A Satie Mental ea Loucura tém origens precoces em: formas de Amor e formas de Desamor- (Teresa Ferreira, 2002, P- 145) Na sequéncia das teorizagbes anteriormente expostas, aurores com? Winnicott (1975) ¢ Bowlby (1981) atsibuem grande importancia & continuidade nas.relagoes entre a figura materna (00 gubstituto) e a erianga © & qualidade e quantidade. de interacgio suficiente. Para que a relagao seit de qualidad nnecessétio que seit regular e estével. Na Grea das relacoes interpessoais directas, além dos seus aspectos exteriores observaveis, hd uma outra dimenstio da realidade que é de fundamental importdncia. Ea dimensao interior, 4 realidade psiquica, onde as relagaes se vive a partir dos afectos, que podem ser dé quatidades varias, positivas ou negativas. E todo este complexo mundo interno, por vezes pouco claro, tumultuoso ou mesmo violento, que determina decisivamente como vao decorrer as relagdes entre as pessoas & portanto, dizendo de outro modo, 0 ue se pode esperar dessas mesimas relagoes (Seabra Diniz, 1993+ P 61). que acontece na vide-de muitas criangas € a auséncia destes modelos ou & = presenga do seu negative” (Strecht, 1999, p-68). © ave pode gerar na crianga um estado de soffimento com eonsequencits mais ov menos graves, consoamte natureza e a gravidade das sasuficidneias, privagbes ou dishungoes, © que coloca a crianga em situagio de perigo- 69 Nao seré muito clara a nogdo de «criangas em risco». Ao serem descritas desse modo, sempre se coloca a énfase nas criangas abandonadas, nos filhos de nao toxicodependentes... e nos filhos dos outros. Serio, como todas, em risco de .. serem felizes. Mas afinal, talvez sd haja dois grandes riscos na vida: morrermos estarmos sés (que é uma das formas de nos sentirmos mal-amados). Por vezes, damos excessiva importancia as criangas que so abandonadas por fora, talvez para ndo repararmos nas que temos junto a nds, e abandonamos por dentro, dos pequenos abandonos (quando nao podemos ter atengdo para elas) aos grandes abandonos (de vivermos com alguém que sentimos desconhecer nos desconhece) (Sd, E, & Cunha, M., 1996). futuro da crianga depende do modo como os seus riscos foram sendo vencidos: gravemente deprimidas ou pais desejadas, pais psiquicamente perturbados ¢ destituidos de qualidades parentais. Em risco estiio também as criangas cujas familias nfo tm capacidade para Ihes 2 gurar um ambiente acolhedor, protector e nutriente e onde, muitas vezes, a crianga se defronta com maus-tratos, abandonos ¢ abusos sexuais. Torn: tristes, desorientadas, desorganizadas .¢, por vezes, agressivas. Os riscos tardios da inseguranga vinculat6ria so os que surgem com a aproximago da idade escolar. As criangas sentem-se mal preparadas para viverem e conviverem com os outros por insuficiente ou inexistente interiorizagiio de matrizes familiares insuficientemente contentoras e organizadoras da vida ps{quica das criangas, por vezes inseridas em matrizes sociais também de qualidade insuficiente (Salgueiro, E., 1995). 70 Mas, afinal, quando esté uma crianga em perigo? “Quando os pais a expdem, frequentemente, a situagdes de sofrimento que levam a erodir e a delapidar os seus recursos de satide, sem que haja quaisquer perspectivas continuadas de reparagao” (S4, E., 2002, p.57).. Assim, a crianga poderé estar em_risco quando.se-verifica uma insuficiéncia uo rompimento de vinculos afectivos.ou-quando os pais (ou 0s seus substitutos) _adoptam comportamentos desadequados, nomeadamente sob a forma de maus-tratos. Ainsworth (1962, cit por Soulé et al., 1995), refere-se a Guex (1950), que designou por Sindroma de Abandono, as desordens futuras, visto que tais criangas esto Jonge de ser capazes de se organizar num modo neurético. Abordaremos esta teorizagao mais adiante. mW Perspectivas sobre a Insuficiéncia e/ou Rompimento de Vinculos Afectivos Sem mée um bebé nao existe- diz Winnicott- e sem holding néo cresce por dentro. (Teresa Ferreira, 2002, p. 57). Como atras referimos, Bowlby teorizou sobre a propenstio dos seres humanos a estabelecerem fortes vinculos afectivos ¢ abordou a explicagao das miltiplas formas de consternagao emocional e perturbagiio da personalidade, incluindo ansiedade, raiva, depressio e desligamento emocional, a que a separagio e a perda involuntéria dao origem (Bowlby, 1982). Winnicott (1975) © Bowlby (1981) atribufram grande importincia & continuidade nas relagées mfe/crianga e & quantidade de interacgio suficiente para 0 estabelecimento da ligago com a figura matemna, que se complementa com a funcao paterna, De acordo com Bowlby (1981, p. 14) “(...) uma crianga sofre privagao quando, vivendo em sua casa, a mée (ou mde substituta permanente) é incapaz de proporcionar-the os cuidados amorosos que as criangas pequenas precisam. E ainda, uma crianga sofre privagdo se, por qualquer motivo, é afastada dos cuidados de sua mie. Esta privacdo serd relativamente suave se a crianca passar a ser cuidada por alguém em que ela jd aprendeu a confiar ea quem jd conhece, mas pode ser acentuada se a mée substituta em questéo, embora amorosa, for uma estranha, Contudo, estas situagdes ainda dao a crianga alguma satisfagdo; representam, portanto, exemplos de “privac&o parcial”. Opdem-se & “privagdo quase total”, ainda bastante comum nas instituigdes, nas creches residenciais e nos 12 hospitais, onde frequentemente uma crianga ndo dispée de uma determinada pessoa que cuide dela de uma forma pessoal e com quem ela possa sentir-se segura (...)". Segundo Marcelli (1998) 0 conceito de caréncia afectiva é miiltiplo, tanto na sua natureza, como na sua forma, sendo necessério ter em conta na sua definigfo trés dimensbes na interacgio mae-filho: - Caréncia por insuficiéncia de interaccdo- remete para a auséncia da mae ou de um substituto materno; ~ Caréneia por descontinuidade dos lagos que coloca em cena as separagies, quaisquer que sejam os seus motivos; ~ Caréncia por distorgio da qualidade do aporte mateo (mae castica, imprevisivel). De forma semelhante, Soulé, Lauzanne & Leblanc (1995), consideram que a abordagem do conceito de caréncia de cuidados maternos deve distinguir: - Nogio de carénci : implica a falta de quantidade de interacgo mie/filho. Segundo Bowlby (1981), esta situagio verifica-se quando a crianca vive numa instituigao ou esté hospitalizada, néio dispondo de um substituto matemno ou ainda quando vive com fa mie (ou substituto) mas nfo recebe dela os cuidados necessdrios, sendo a interacgdo insuficiente. Nesta situago, a crianga sofre de uma privagio parcial dos cuidados. Pode, também, sofrer uma privagio total quando a auséncia fisica se traduz na perda da mie (ou substituto) por morte, doenga ou abandono, nao existindo parentes para cuidar da crianga ou ainda, quando a crianga é retirada A mae (ou substituto) e entregue a estranhos, pela justica ou outras organizagbes de assisténcia piblica; - Nogdio de separagfio ou caréncia por descontinuidade: implica uma auséncia emocional da mie (ou substitute) © nfo necessariamente uma insuficiéncia quantitativa nas interacgdes. Se for proporcionada & crianga uma figura substituta 73 com quem possa interagir, os resultados da experiéncia de separagdo poderio ser minorados. Porém, todas.as_experiénci de separago tendem_a ser perturbadoras, para a crianga que jé tenha estabelecido uma ligacdo com a figura materna; ~ Nogdo de insuficiéncia relacional qualitativa ou distorgo: esté relacionada com a qualidade da relagio materna ¢ implica a falta de adequacdo da resposta da mie as necessidades da crianga. Sao interacgdes que se baseiam, segundo Strecht (1999), na rejeigio, hostilidade, crueldade, abusos fisicos ou sexuais, controlo repressivo ou falta de afecto. Pinto (1982), refere que se encontram sobre a designagio de «privacao materna» experiéncias algo diversas, di ‘inguindo: - Experiéncias de separagdo- implica uma descontinuidade da relago com a figura materna, independentemente de haver uma quebra na ligagio. Faz. a distingaio entre separages de curto prazo (em que no se chegaré a uma quebra do laco afectivo) separagdes permanentes (em que se chega a uma fase de desvinculagio); - Experiéncias de privagdo ou distorgao das relagdes de vinculagao- remete para uma perda ou para uma insuficiéncia quanti iva das relagdes, independentemente da presenga ou auséncia da figura materna, Isto acontece quando, por exemplo, a crianga vé que tudo aquilo que ela diz ou faz é indiferente para os outros, ou acarreta mesmo uma punigdo (Pinto, 1982, p. 63). De acordo com Seabra Diniz (1993) nfo € necessério que se verifique um abandono propriamente dito para que uma crianga possa sofrer de caréncias graves devido & auséncia da mae ou & falta de qualidade da relagdo materna e do ambiente familiar, que poderd relacionar-se com a incoeréncia e descontinuidade na relagdo. Considera que o conceito de caréncia de cuidados maternos (ou o abandono) engloba uma situagdo externa e uma situagao interna. A primeira, pode-se identificar 14 e caracterizar socialmente, remetendo para os perigos materiais que a crianga pode cotter por néo ter quem cuide dela e para os meios necessérios para Ihe garantir a sua sobrevivéncia e bem-estar. A segunda, é uma situagdo interna da crianga ¢ dos pais, um estado emocional, que atinge a crianga profundamente © que implica um softimento que afecta a sua normal evolugao psicolégica. Assim, considera que a caréncia € um prob ‘a dos pais, dos filhos e da sociedade, sendo uma situagio extrema que exige intervengdes répidas ¢ decisivas, verificando a tendéncia de tratamento das situagSes de abandono ou de grave caréncia da relag&o familiar, de __um ponto de vista predominantemente jurfdico, com prejuizo das necessidades e dos _ direitos da janga a favor dos direitos da mae. ‘A nogio de separagao da crianga do seu nticleo familiar implica uma ruptura de um lago anteriormente estabelecido. Segundo Berger (1998) a separagao pode dar- se por divércio dos pais, por abandono dos progenitores ou separagio judicial, utilizando 0 termo “patologia do vinculo”, que diz, respeito & forma perturbada de organizagio da vida psfquica, ‘As classificagées internacionais americanas (DSM-IV-TR, 2002), fazem referéncia & Perturbagio Reactiva de Vinculagdo da Primeira Infancia e do Inicio da ‘Segunda Infancia (F94.X), da seguinte forma: A. Relagdes sociais acentuadamente perturbadas na maioria dos contextos e inadequadas para o nivel de desenvolvimento do sujeito, com infcio antes dos 5 anos de idade, manifestadas por (1) ou (2): (1) Incapacidade persistente para iniciar ou responder & maioria das interacgdes sociais, de modo adequado A maioria das interacg6es sociais, de modo adequado ao nivel do desenvolvimento, manifestada por respostas excessivamente inibidas, contradit6rias, hipervigilantes ou extremamente ambivalentes 15 contradit6rias (por exemplo, a crianga pode responder as pessoas que tratam dela com um misto de aproximagio, evitamento e resisténcia a ser consolada ou pode manifestar uma fria vigilancia): (2) VinculagSes difusas manifestadas por uma sociabilidade indiscriminada com acentuada incapacidade para manifestar vinculos selectivos adequados (por exemplo, excessiva familiaridade com estranhos ou falta de selectividade na escolha das figuras de vinculagio), Tipo inibido: se o Critério Al predomina na apresentagio clinica Tipo desinibido: se 0 Critério A2 predomina na apresentagio clinica C. Cuidados patogénicos manifestam-se pelo menos numa das seguintes caracteristicas: (1) Negligéncia permanente das necessidades emocionais bisicas da crianga relacionadas com o conforto, estimulagao e afecto; (2) Negligéncia permanente das necessidades fisicas basicas da crianga; (3) Mudancas repetidas da pessoa que trata primariamente da crianga, o que impede a formacao de vinculos estéveis (por exemplo, mudangas frequentes dos responsdveis da crianca). D. Supde-se que 0 tipo dos cuidados descritos no Critério C ¢ responsiveis pelo comportamento alterado descrito no Critério A (por exemplo, as alteragdes no Critério A comegaram apés a instauragdo dos cuidados patogénicos que aparecem no Critério ©). 16 Perspectivas sobre os Maus-tratos Infantis O desafio de terminar com os Maus-tratos ds criancas, & 0 desafio de quebrar a relagao entre os problemas dos adultos e 0 sofrimento das criangas. (Innocenti Report Card, Setembro de 2003) Definicio e Classificacio Em virtude do conceito de Abandono vir inclufdo na literatura nas definigdes de maus-tratos, recorremos a essas definig6es, Os maus-tratos apresentam-se como um fenémeno complexo e multifactorial, j& que se trata de um conceito amplo, susceptivel de anélise e de classificagiio em fungio de varios critérios, dimens6es € culturas. Assim, hé alguma dificuldade em estabelecer uma definigio consensual de mau trato infantil, entre os autores. Gabel (1995, cit. por Ferreira, 2001) refere que algumas das dificuldades inerentes 20 diagndstico dos maus-tratos se prendem com a dificuldade em estabelecer a fronteira entre préticas educativas ¢ punitivas ¢ maus-tratos; o siléncio da crianga e a negagio do agressor; as reticéncias conscientes ou inconscientes de um grande mimero de profissionais em admitir que a cri \¢a apresenta so consequéncia de maus-tratos; a insuficiéncia de formagio profissional e da capacidade de cada interveniente em avaliar as situagdes de maus-tratos; o grande mimero de intervenientes médicos, sociais ¢ educativos em torno da familia e a sua dificuldade em se coordenar para estabelecer um diagnéstico; 0 desconhecimento do sistema de protecgao da crianga, 11 Aber e Zigler, 1981; Ciccheti e Bamett, 1991 ¢ Zuravim, 1991 (cit. por Canha, 2000), abordaram a heterogeneidade do fenémeno dos maus-tratos no que se refere & nogio de maus-tratos, aos critérios de classificagio, as causas e consequéncias ¢ aos diferentes nfveis profissionais relacionados com essa problemética (médico, legislativo, sociol6gico, investigativo, psicolégico e de intervengio social), Machado (1996), considera que uma dificuldade na compreensio e avaliago do fenémeno prende-se com o problema da avaliagao do seu impacto especifico, devido A. sua frequente associagio com outros factores negativos, como a pobreza, a desorganizagao familiar ou 0 isolamento social. Para Coimbra, Faria e Montano (1990, p. 193), a violéncia pode ser definida como “todas as acedes dos pais, familiares ou outros que provoquem um dano fisico ou psicoldgico, ou que, de algum modo, lesionem os direitos necessidades da crianga no que diz respeito ao seu desenvolvimento psicomotor, intelectual, moral ¢ afectivo. Compreende ainda a negligéncia definida como 0 conjunto de caréncias de ordem material e/ou afectiva que lesionem igualmente os direitos ¢ as necessidades psicoafectivas e fisicas da crianca”.. Para Kreisler (1995), maus-tratos sfio todas as violéncias fisicas intencionais ou a abstengio voluntéria de cuidados para com a crianga, por parte dos pais ou adultos que a tenham a seu cargo, dos quais resultam danos, ofensas ou morte. Segundo Magalhaes (2002), os maus-tratos podem ser definidos como qualquer forma de tratamento fisico e/ou emocional, inadequada, nao acidental ¢ reiterada, 1B resultante de disfungGes e/ou caréncias nas relagSes que privam o menor dos seus direitos, afectando a sua satide, desenvolvimento fisico, psicol6gico e social e/ou dignidade. Para Mc Gee & Wolf, 1991 (cit. por Figueiredo, 1998), “numa perspectiva desenvolvimental, a adequagéio do comportamento dos pais & definida tendo em conta as necessidades desenvolvimentais da crianga. Mesmo assim, alguns autores alertam que as diferencas individuais — que fazem com que 0 que pode ser considerado apropriado para uma dada crianga nao o seja para outra — devem igualmente ser tidas em conta” (p.8). © Comité Nacional para a Prevencao dos Maus-tratos nas Criangas dos BUA, considera que maus-tratos so “as lesbes corporais nao acidentais, as sevicias sexuais ou psicolégicas, 0 abandono flagrante e a exploragio das criangas, assim como qualquer acto que entrave 0 crescimento ¢ o desenvolvimento fisico e mental normal das criangas” (Sousa, 1995, cit. por Ferreira, 2001, p. 71). A semelhanga da heterogeneidade existente relativamente & nogo de maus- tratos, 0 mesmo se passa em termos das suas classificagdes. No entanto, apesar da amplitude dos conceitos e das suas classificagdes, encontramos varios pontos de confluéneia na maior parte dos autores que citamos de seguida, tais como: violéncias fisicas intencionais, abuso sexual, violéncias psicolégicas ou morais, omissdo ou inadequagio dos cuidados, interferindo no normal desenvolvimento da crianga, Gabel (1995, cit. por Ferreira, 2001, p. 71), considera que todos os paises avangados esto de acordo no que respeita a definir quatro formas de maus-tratos. Sfo elas: 719 - Violéncias fisicas, que se referem & abordagem médica das lesdes trauméticas e, sobretudo, ao sindrome da crianga batida. Fo caso de fracturas ou queimaduras (violéncias fisicas activas) ou estados de desnutrigfo com atraso de crescimento e auséncia de cuidados (violéncias fisicas passivas); = Violéncias “psicolégicas” ou “morais”, mais dificeis de evidenciar, uma vez que no deixam marcas fisicas. Esto relacionadas com a rejeiglio, 0 desprezo, os comportamentos sédicos, as exigéncias desproporcionais para a idade da crianga ou 0 abandono; - Abuso ou violéncias sexuais, sendo necessério distinguir abuso intra-familiar (violagéo, incesto, prostituigo) e extra-familiar (exibicionismo, _pedofi pornogral em actividades que ainda nao consegue compreender, com os pais ou adultos que ‘Trata-se da participagio de uma crianga ou de um adolescente menor detenham autoridade sobre ela. ~ Violéncias institucionais ou negligéncias graves no seio de instituigdes que substituem os cuidados dos pais, como por exemplo o desprezo pela personalidade da crianga, pela raga ou religiéo. Sousa (1995, cit. por Ferreira, 2001) disti tratos: ingue as seguintes formas de maus- - Maus-tratos fisicos, segundo Beeckmans (1989, cit. por Sousa, 1995) incluem os actos cometidos por aquele que tem a crianga a seu cargo e pressupée contacto fisico, resultando nela danos fisicos. Englobam todas as formas de traumatismos nao infligidos as criangas pelos pais ou por aqueles que assumem a idade da crianga; - Maus-tratos psicolégicos, segundo Gabarino (1976, cit. por Sousa, 1995) so a destruigdo ou a deteorizagao significativa das competéncias da crianga. Este tipo de mau-trato esta relacionado com priticas educativas ¢ engloba interacgdes extremas 80 entre as figuras parentais e a crianga, tais como a sobrevalorizagao ou desvalorizagio extrema da crianga por préticas de punigdo, de reforgo negativo ou positive ambiguidade de padrdes de avaliagao; - Negligéncia ou sevicias por omissio dizem respeito, segundo Beeckmans (1989, cit. por Sousa, 1995), & negligéncia intencional das figuras parentais perante as necessidades primarias da crianga; - Abuso sexual, segundo Beeckmans (1989, cit. por Sousa, 1995), € todo o contacto entre um adulto e uma crianga incapaz de dar o seu consentimento. Canha (2000), descreve cinco tipos de maus-tratos: ~ Maus-tratos fisicos, que incluem a sindrome da crianga abanada, queimaduras, fracturas, traumatismos crinioencefillicos, lesGes abdominais, sufocagdo, afogamento ¢ intoxicagdes provocadas; - Negligéncia, que é uma forma frequente de mau trato, com graves repercussées para a crianca, nomeadamente o risco de morte, acidentes, atraso de crescimento ¢ de desenvolvimento e alteragdes de comportamento. Consiste na incapacidade de proporcionar & crianga a satisfagiio das suas necessidades de cuidados biisicos de higiene, alimentagiio, afecto e sade, indispensdveis ao seu crescimento e desenvolvimento normais; = Abuso sexual, que consiste no envolvimento da crianga ou adolescente em actividades cuja finalidade mais velha e mais forte; sa a satisfago sexual de um adulto ou outra pessoa - Mau trato psicolégico ou emocional, definido como a incapacidade em proporcionar & crianga um ambiente de tranquilidade, bem-estar emocional e afectivo, indispensével ao crescimento, desenvolvimento e comportamento adequados. Inclui a auséncia de afecto, a hostilizagio verbal, a depreciacdo, as ameagas e humilhagdes frequentes ou situagées grande violéncia familiar, que 81 originando um clima de maior tensio, terror ou medo, se repercuta no comportamento, rendimento escolar, sono, controlo de esfincteres ou outra actividade da crianga. - Sindrome de Munchhausen por Procuragio, que constitui uma forma rara de mau trato e de grande dificuldade diagnostica. Consiste na simulagao de sinais ¢ sintomas da crianca, por um elemento familiar, com a finalidade de convencer a equipa médica da existéncia de uma doenga, obrigando a hospitalizagdes frequentes, necessidades de investigacio exaustiva e muitas vezes invasivas. ‘Magalhfes (2002) considera, pela sua frequéncia e relevancia, quatro formas de maus-tratos: - Negligéncia, que se trata de um comportamento regular de omissio nos cuidados a ter com o menor, voluntério (com a intengio de causar dano) ou involuntério (resultante, em geral, da incapacidade dos pais para assegurar os cuidados necessérios e adequados), do qual resulta um dano para a satide e/ou para o desenvolvimento fisico e psicossocial, j4 que nio é proporcionada a satisfagio das necessidades em termos de cuidados bésicos de higiene, alimentagio, seguranga, educagio, satide, afecto, estimulagdo e apoio. - Maus-tratos fisicos, que se referem a qualquer acefo, nfo acidental, isolada ou repetida, que provoque ou possa provocar um dano fisico para 0 menor, que se pode traduzir em lesdes fisicas de natureza traumética, doenga, sufocacao, intoxicagdo ou sindrome de Munchausen por procuragdo (em que ha uma simulagio de s inais € doenga, ficando a crianga é sujeita a exames ¢ a tratamentos médicos, por invengdo de uma histéria de doenga ou pela acco directa do abusador (ex: ministrar uma droga para provocar a sintomatologia). 82 ~ Abuso sexual, que se traduz pelo envolvimento ocasional ou repetido do menor em préticas que visam a gratificagZo sexual do adulto ou jovem mais velho, numa posigio de poder ou de autoridade sobre aquele. ~ Abuso emocional, que se refere a um acto intencional e inadequado, caracterizado pela auséncia do suporte afectivo © do reconhecimento das necessidades emocionais do menor, do qual resultam danos para o desenvolvimento fisico e psicossocial do menor. Pode manifestar-se através de insultos verbais, humilhago, ridicularizagio, desvalorizagio, hostilizagdio, ameagas, indiferenga, , envolvimento discriminagio, rejeigilo, abandono temporério, culpabilizagio, criti em situagdes de violéncia doméstica extrema e/ou repetida, etc. Segundo Magalhaes (2002), pode haver uma sobreposicio de diferentes tipos de ‘maus-tratos, Considera que todos os tipos de maus-tratos implicam abuso emocional, pelo que s6 deve ser considerado isoladamente quando constituir a tinica forma de abuso. ‘Aurora Pérez (1986) descreve quatro tipos de maus-tratos: ~ Maus-tratos por injurias fisicas- este tipo de maus-tratos inclui o “Sindroma das Criangas Batidas”, que constitui uma emergéncia pediétrica quando a crianga entra num servigo de urgéncia hospitalar. A crianga apresenta lesées miltiplas, que nao tiveram origem no mesmo espago de tempo, tais como hematomas subcutaneos, fracturas com diversos graus de cicatrizagio nas costelas, queimaduras, deslocagao das articulagées, diversas lesdes de pele, labios, olhos ¢ érgios genitais. Pérez, A. (1986), refere-se & discrepancia notéria entre os sinais que a crianga apresenta e a versio que os pais relatam. Considera que o perigo para a organizagio psicolégica reside em que a crianga cresca com um tipo de vinculo em que o processo relacional se encontra perturbado ¢ invertido, j& que o sentido protector € organizador do relacionamento se transformam em traumatizante, Corre-se 0 risco da crianga se identificar com as figuras maltratantes, podendo vir a desenvolver também ‘um quadro psicopatolégico severo, podendo vir a tornar-se num adulto maltratante. ‘As criangas apresentam-se normalmente nas consultas com um comportamento de retracgo e apreen: , choro sem motivo aparente, agressividade evitam falar sobre 60s pais ou sobra a familia. Este tipo de maus-tratos pode conduzir & morte da crianga, especialmente durante o primeiro ano de vida; = Maus-tratos por abandono fisico- este tipo de mau trato caracteriza-se pela negligéncia ao nivel da alimentagio, higiene, vestudrio, assisténcia médica, escolaridade. As criangas podem ficar a cargo das suas proprias decisdes, dormir fora de casa ou ser de facto abandonadas pelos pais, ficando a sua vida em risco. As sequelas emocionais provocadas pelo abandono fisico manifestam-se ao nivel do desenvolvimento emocional ¢ da estruturagdo psicol6gica, podendo potenciar a delinguéncia; = Maus-tratos por abuso sexual- 0 abuso sexual ¢ exercido por um adulto sobre uma crianga ou adolescente, numa relacio de submissiio. Este mau trato poderé ser detectado através de dificuldades na marcha, no sentar, por manchas de sangue na roupa, dor ou lesées na zona genital e/ ou anal. Na sequéncia do abuso sexual, a crianga pode apresentar alteragdes no seu comportamento, tais como instabilidade emocional, empobrecimento das relagées, regre: es, actividades masturbatérias nfo habituais anteriormente, condutas bizarras a nfvel sexual, manifestando um conhecimento exagerado da actividade sexual, fugas de casa, etc. A estabilidade emocional da crianga torna extremamente vulnerdvel na sequéncia deste tipo de ‘mau trato e a identificagio sexual pode ser afectada, De acordo com a personalidade da crianga, podem ser despertadas eclosbes psicéticas que podem comprometer a sua vida futura; 84 ~ Maus-tratos por abandono emocional- estilo relacionados com a falta de interesse de ligago do adulto pela crianga. A crianga pode apresentar atrasos ao nivel do desenvolvimento fisico e intelectual e podem observar-se hdbitos perturbados, tais como tendéncia para morder, transtorno do sono, na alimentagiio, condutas agressivas e passivas, etc. Os pais agressores obrigam os filhos a obter ganhos como forma se gratificarem, existindo uma relagio patolégica ¢ invertida. A crianga cresce com medo dos pais, tornando-se insegura ¢ susceptivel ao erro. Segundo Matos, C. (1997), © conceito actual de crianga maltratada engloba fundamentalmente quatro condigdes: agressdo fisica, violéncia psiquica, abuso sexual e negligéncia. Me Gee e Wolfe (1991, cit. por Figueiredo, 1998), os maus-tratos psicolégicos serio todos os maus-tratos que implicam dimensdes verbais ¢ nfo verbais, como por exemplo expressées activas de rejeigéio, actos depreciativos, actos que provocam medo e ansiedade, actos que levam ao isolamento da crianga, actos de exploragdo ou situag6es em que so negados os cuidados necessérios ao desenvolvimento da crianga. Bowlby (1982, p. 129), refere-se a certos padré tfpicos de parentalidade patogénica, que incluem as experiéncias a seguir descritas, perante a presenga das quais podem levar uma crianga, um adolescente ou um adulto, a viver em constante ansiedade, com medo de perder a sua figura de ligagdo e, por conseguinte, ter um baixo limiar para a manifestagdo de um comportamento de ligagdo. Esses padroes incluem: = Aus€ncia persistente de repostas de um ou ambos os pais ao comportamento cliciador de cuidados, da crianga e/ou depreciacao ¢ rejei¢do marcada; = Descontinuidades da parentalidade, ocorrendo mais ou menos frequentemente, incluindo perfodos em hospital ou instituigao; - Ameacas persistentes por parte dos pais de néo amar a crianga, usadas como um meio para controlé-la; - Ameagas, por parte dos pais, de abandonar a familia, usadas ou como método de disciplinara a crianga ou como uma forma de coagir o cénjuge; - Ameagas por parte de um dos pais de abandonar ou mesmo de matar 0 outro, ou ento, de cometer suicfdio (estas ameagas so mais comuns do que se poderia supor); = IndugGo de culpa crianga, afirmando que o comportamento dela é ou seré responsdvel pela doenga ou morte de um dos pais. Em relagiio ao meio ambiente externo, segundo Bowlby (1982), 0 que importa € saber em que medida as frustrages e outras influéncias impostas por ele desenvolvem 0 conflito intrapsiquico de tal forma e com tal intensidade que 0 equipamento psiquico imaturo do bebé nao possa regul-la satisfatoriamente. 86 Etiologia dos maus-tratos infantis ‘A revisdo da literatura sobre 0s maus-tratos infantis denota um grande interesse dos investigadores no estudo dos padrées de interacgdo nas familias maltratantes. ‘As teorias derivadas da Psicologia Clinica, da Pediatria e da Sociologia, mostram resultados empiricos de investigagdes relativas & identificagiio de determinados factores de risco/ condig6es de vulnerabilidade para a ocorréncia de maus-tratos, tais como as caracterfsticas dos pais, as caracteristicas da crianga e as caracteristicas do contexto ambiental em que se processa a relagdo. © comportamento interactivo das mées maltratantes tem vindo a ser essencialmente caracterizado por um padrio de hostilidade coberta e por uma acco que ¢ intrusiva e interferente com os propésitos do bebé (Figueiredo, 1998). Segundo Magalhies (2002), os factores de risco dos maus-tratos so quaisquer influgncias que aumentam a probabilidade de ocorréncia ou de manutengo de tais situagdes. Resultam de estudos retrospectivos, desconhecendo-se ainda o gran de probabilidade de virem a constituir uma situagao de risco. ‘A propésito da nogiio de “Factores de Risco”, segundo Marcelii (1998), denomina-se factor de risco todas as condigdes existenciais na crianga ou no seu meio que acarretem um risco de morbilidade mental superior aquele observado na populacdo geral por meio dos estudos epidemiolégicos. 87 Sio factores de risco conhecidos actualmente, segundo Marcelli (1998): ~ Na crianga: prematuridade, sofrimento neonatal, gemelaridade, patologia somatica precoce, separagdes precoces; - Na familia: separagdo parental, desentendimento crénico, alcoolismo, doenga cronica, casal incompleto, 6bito; - Na sociedade: miséria sécio-econémica, situagaio de migrante. Os autores distinguem ainda os acontecimentos pontuais (tais como hospitalizagio, nascimento de um irmAo, ...) das situagdes crénicas ¢ duradouras (tais como clima familiar degradado, insuficincia sécio-econdmica, ...). © conjunto dos “factores de ris 0” leva ao estabelecimento de perfis de risco. (...) 0 estudo dos factores de risco apresenta um claro interesse epidemioldgico, evidenciando factores psicossociais e sofrimentos psiquicos mas, ao contrério, tem um interesse restrito para a avaliagdo prognéstica de um individuo (...) p. 292. Segundo (Martinet, 2000) as situagdes de risco acompanham todo o periodo perinatal. Podem verificar-se no perfodo pré-natal, por exemplo, a negagdo da gravidez; a sua nfo declaragio; a no preparagio da vinda da crianga. No periodo p6s-natal, quando a mie volta para casa, o assumir da relagio pais-crianga pode em algumas situag s evitar que os maus-tratos se instalem. Para o mesmo autor, todas as disfungGes interactivas, sejam quais forem as causas (podem depender da mae ou da crianga), criam nos pais uma ferida narefsica, acompanhada do sentimento de serem maus pais, enquanto na crianga se desenvolve muito cedo o sentimento de ser mé e indigna de ser amada. De tudo isto resulta um hiato relacional que pode desenvolver as condigdes que levem ao mau trato. & um circulo vicioso que se instala, gerando nos pais um sentimento de incapacidade que leva A depressio ¢ & agressividade. 88 Investigagdes realizadas por Altemeier et al. (1979, 1984); Poweel (1980); Vietze et al. (1980); Daniel et al. (1983); Lutezker et al. (1984); Deykin et al. (1985); Webster-Sriton (1985), referem algumas caracteristicas do adulto agressor, comuns aos sujeitos observados. Assinalam-se como os mais relevantes (cit. por Morais, 2001, p. 20): ter sofrido experiéncias de maus-tratos em crianga, a presenga de tragos depressivos, um baixo nivel de auto-estima e a escassa tolerfincia ao stress. Segundo Kreisler (1995, cit. por Ferreira, 2001), as condigées sécio-culturais devem set compreendidas como elementos de facilitagio e nao como factores etioldgicos exclusivos. “(.,.) Muito embora o abuso e a negligéncia aparecam associados aos contextos de pobreza (Almeida et al., 1995; Straus & Geles, 1986), um elevado niimero de criangas que vive em condigaes sécio-econdmicas muito desfavorecidas niio é ‘maltratada e as situagées de maus tratos esto representadas em todos os estratos s6cio-econdmicos (Almeida, et al., 1995; Bizouard et al., 1991; Knutson, 1995), pelo que a associagéio entre nivel sécio-econémico e maus tratos infantis nao é directa. As perspectivas que valorizaram a importéincia das varidveis sociais, tais como a pobreza, embora consigam explicar uma parte razodvel dos casos de maus-tratos, nao conseguem explicar os maus-tratos que se verificam nas classes sociais médias e elevadas. A negligéncia parece ser 0 tipo de maus-tratos que mais se associa ao baixo estato sécio-econdmico da familia. (Drake & Pandey, 1996; Egami, Ford, Greenfield, & Rosa, 1996)” (cit. por Figueiredo, 1998, p. 12). Segundo Canha (2000), so situagdes precipitantes do mau-trato a perda do emprego, 0 agravamento das dificuldades econémicas, a morte de um familiar, 0 diagnéstico de uma doenga grave num familiar, a separagio ou divércio dos pais, depressfio da mie ou qualquer outro acontecimento que perturbe o j4 instével equilfbrio familiar. Estes factores, conjuntamente com a tolerdincia cultural face 20 89 castigo fisico, que continua a ser aceite como um método legitimo de educagio, contribuem para o aparecimento da violéncia intrafamiliar. Para Seabra Diniz (1993) a uldade de amar é um problema humano que se pode ver em todos os niveis sécio-econmicos, considerando que as caréncias materiais podem ter uma influéncia consideravel no seu agravamento, mas nao 0 determinam necessariamente. Milner e Dopke (1997, cit. por Figueiredo, 1998), baseados na revisio de estudos empfticos, salientam que certas caracterfsticas dos pais propiciam que sejam maltratantes, ta s como circunsténcias bioldgicas (factores psicofisiolégicos como a reactividade ao stress), cognitivo-emocionais (como a auto-estima, forga do ego, percepgdes relativas ao comportamento da crianga, expectativas relativas ao comportamento da crianga, psicopatologia, afectividade negativa) e comportamentais (isolamento, dificuldades na interacgo com a crianga, uso de élcool e/ou drogas) Outros estudos apontam para que as criangas cujos pais tém determinadas perturbagdes psicopatolégicas — desordem de personalidade anti-social, abuso de substancias psicoactivas, sintomatologia depressiva- esto particularmente em risco de serem vitimas de maus tratos (Almeida et al., 1995; Arrubarrena, & Paul, 1992; Bizouard, Nezelof, & Bonnet, 1991; Chappin, Kelleher, & Hollenberg, 1996; Egami, € tal., 1996; Ethier, Lacharité, & Couture, 1995; Kotch et al., 1995). Por outro lado, outros estudos mostram que quando a doenga mental dos pais se associa & presenca de maus-tratos, 0s efeitos sobre 0 desenvolvimento da crianga estio aumentados (Walker, Downey, & Bergman, 1989). 90 ‘A importincia do estado de satide mental dos pais na ocorréncia dos maus-tratos infantis tém, contudo, do a diminuir, uma vez que a investigago tem tido dificuldade na identificagao de um tipo particular de psicopatologia que seja por si s6 responsével pelas situages de maus-tratos observados (Emery, 1989; Knutson, 1995). Nesta perspectiva, Fernandes (2000) defende que os casos de violéncia no sao necessariamente, inerentes & patologia mental, pois nfo so os doentes mentais, z pessoas que mais frequentemente cometem actos de violéncia. Os casos de violéncia perpetrados por doentes mentais, nfio sio mais do que a ponta visfvel do iceberg que envolve a na sua base as pessoas consideradas normais. De entre as diferentes entidades nosol6gicas psiquiétricas ligadas aos actos de violéncia, podem citar-se a esquizofrenia, as perturbagées da personalidade do tipo anti-social, a toxicodependéncia © alcoolismo crénico, bem como situagdes clinicas que envolvem individuos com retardamento mental. Para além das_patologi que se enquadram no Ambito da psiquiatria propriamente dita, hd outras situagdes clinicas que podem levar ao cometimento de actos de violéncia, mas que nfo esto relacionadas com a neuropsiquiatria por reflectirem doencas cerebrais crOnicas, como a epilepsia, a deméncia e a doenga de Parkinson”. Figueiredo (1998) refere que a ocoréncia de maus-tratos nao pode provavelmente ser explicada com o recurso exclusivo a varidveis de ordem individual. Ainda assim, Kreisler (1995, cit. por Ferreira, 2001) distingue dois tipos de condigées psicolégicas dos sujeitos maltratantes: - Descompensagies episddicas, muitas vez s associadas a condigdes. familiares precétias, exclusio social, nascimento inoportuno do filho, alcoolismo, OL enfraquecimento psicolégico ¢ moral de muitas mulheres apés 0 parto. Trata-se de personalidades frégeis, em que ha uma incapacidade passageira de investir no seu filho, Os maus-tratos so epis6dicos ¢ irregulares; ~ Personalidades portadoras de graves anomalias caracteriais, sendo os tragos mais evidentes a falta de afectividade (transit6ria ou permanente), a auséncia de culpa e de tolerancia a frustrago. A fragilidade e a impoténcia fisica e psiquica seré compensada por passagens ao acto através de violéncia fisica e/ou verbal. Reid, Kavangh e Baldwin (1987, cit. por Morais, 2001) mostraram que os pais que maltratam os seus filhos, frequentemente pereebem incorrectamente as suas capacidades reais, quer se trate de capacidades intelectuais, como de controlo de impulsos agressivos ou de hiperactividade. Azar, Robinson, Hekemian e Twentyman, 198: Bauer ¢ Twentyman, 1985; Twentyman e Plotkin, 1982 (cit. por Morais, 2001), verificaram que os agressores so frequentemente pessoas imaturas ¢ impulsivas, 0 que tem como consequéncia terem percepgdes € expectativas erradas face conduta infantil, Analisam 0 comportamento da crianga como se esta fosse mais velha, atribuindo-Ihe uma intencionalidade e esperando dela mais do que a sua idade permite. "(.) Haverd uma grande probabilidade de também os pais agressores terem sido objecto de cuidados maternos e paternos inadequados, tendo sido mesmo ‘maltratados, podendo assim falar-se num ciclo transgeracional. E como se os pais estivessem condenados a repetir com os seus filhos as dificuldades por que eles proprios passaram enquanto criangas, parecendo o "amor mais frégil que 0 esquecimento ou que o perdio" (Strecht, 1998, p.61). Esta conduta agressora indica 92 uma deficiéncia na qualidade maternal, nas vivéncias da primeira infancia dos pais" (Ferreira, 2001, p. 79). Alguns estudos concluem que a probabilidade da crianga ser vitima de maus- tratos aumenta quando ambos os pais foram vitimas de abuso durante a infincia (Zaidi et al., 1989, cit. por Figueiredo, 1998a). ‘Algumas circunstncias parecem tornar a crianga mais vulnerével aos maus- tratos. Autores como Frodi & Lamb, 1980; Vietz et al., 1980; Kempe & Kempe, 1979; Lebovici, 1983; Felthous, 1984 (cit. por Morais, 2001), referem que existem determinadas condigdes vulnerdveis aos maus-tratos, tais como a prematuridade ¢ 0 baixo peso A nascenga. Figueiredo (1998), refere-se ainda a problemas médicos & nascenga, na medida em que interferem negativamente na competéncia do bebé para entrar em contacto com os pais podem dificultar a tarefa de certos pais para lidar adequadamente para se envolver afectivamente com o bebé. Por sua vez, as dificuldades temperamentais ou a presenca de deficiéncia podem ser igualmente factores de risco. Outro factor parece ser a incapacidade da crianca satisfazer as expectativas dos pais. ‘A parentalidade precoce também pode contribuir para uma falta de recursos de “coping” adaptativos as situagdes mais exigentes (Wolfe 1988; Carson, 1987; Fuster eal., 1988, cit. por Machado, 1996). Figueiredo (1998) refere que as caracterfsticas da crianga tanto podem ser antecedentes como consequentes ao facto da crianga ser maltratada; assim como podem ser a causa das circunstdncias que geralmente acompanham os maus-tratos infantis. 93 Matos, C. (1997) refere-se ao resultado do estudo psiquidtrico dos pais maltratantes e negligentes, o qual revela a sua imaturidade afectiva e irresponsabilidade/incompeténcia parental. Revela ainda uma porgio psicética da personalidade, nao contida pelos mecanismos de defesa e nivel neurético (recalcamento, deslocamento e formagao reactiva - defesas ¢ tipo histérico, f6bico ou obsessivo) e/ou canalizada a sua energia agressiva pelos processos de sublimagao. Revela, outras vezes, um micleo depressivo de tipo melancélico nao elaborado e que se manifesta pela inversio sddica, sobre 0 fraco, do masoquismo essenci ou primério. Do ponto de vista dos mecanismos psiquicos envolvidos na violéncia dos pais para os filhos, ela é, por outro lado, a repetig&o, por identificagiio ao agressor, dos maus-tratos ¢ negligéncia a que foram submetidos na sua infancia pelos seus proprios pais. Isto é, 0 pai batedor foi em regra uma crianga batida ¢ o pai abandonante foi em regra uma crianga abandonada. Trata-se de um comportamento transgeracional, resultado de um proceso de aprendizagem indirecta da agressio, por identificagao com o agressor. Hé, por outro Jado, uma aprendi gem directa da conduta agressiva. A crianga batida tem medo e obedece € como foi batida mas niio abandonada (aquilo que mais teme), faz a aprendizagem directa do masoquismo. O adulto vé que a sua estratégia agressiva revela resultados e repete-a (Coimbra, M., 1997). Hé ainda um outro mecanismo psiquico na violéncia dos pais para os fithos: a necessidade de reprimir a emergéncia (retorno @ consciéncia) de uma situagdo infantil traumdtica e recalcada, cuja recordagdo o comportamento do filho, por semelhanga ou contraste, reactiva (A. Coimbra de Matos, 1991). O adulto-pai, numa atitude siibita e violenta,

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