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HH682A – História do Brasil IV

2º semestre de 2009
Trabalho final

Rodolfo C. M. de Almeida

Ponderações sobre a contracultura e uma de suas possíveis manifestações no Brasil

Imaginemos esse trabalho por alguns instantes como uma alucinação onírica:
quatro bolhas opacas flutuam. Por algum tempo você observa-as: encostam-se, apartam-
se, sobem, descem. Interagem? A curiosidade aproxima-se vagarosa e de repente você é
impulsionado na direção das bolhas: decide descobrir o que há nelas. Corre para elas
com a intenção concreta de estourá-las. O que haverá nelas? (haverá algo?) Caso haja,
os conteúdos vão reunir-se com alguma coesão ou espalhar-se-ão em mosaico pelo chão
em que pisa? Quando está prestes a alfinetá-las, você acorda e depara-se novamente
com a argumentação mais comedida e menos pretensiosa deste trabalho em sua forma
real.
Minha proposta aqui é colocar em diálogo interpretações de teóricos sobre o
desenvolvimento da sociedade ocidental nas décadas de 1950 e 1960. Depois, pensar a
situação do Brasil no momento de publicação de PanAmérica (1967), ficção de José
Agrippino de Paula: como, nessa obra, uma proposta de “contracultura” é posta em
curso1; como, também, uma visão/interpretação sobre a realidade do Brasil e da
sociedade global é narrada; como, finalmente, essa obra pode ter repercutido no cenário
nacional. Isso não será feito necessariamente nessa ordem.
Retornemos às bolhas. Agora com um pouco mais de bom senso, explicito seus
conteúdos. Primeira bolha: o autor norte-americano Theodore Roszak e sua
interpretação, no livro Contracultura (The making of a counterculture, 1968), sobre a
situação da juventude (de classe média) estadunidense dentro de um sistema
caracterizado por ele como tecnocrático. Segunda bolha: alguns anos antes da análise de
Roszak, Herbert Marcuse realiza sua leitura da civilização a partir de uma interpretação
que mescla Marx e Freud em Eros e Civilização (Eros and civilization, 1955). Terceira
bolha: Guy Debord e sua interpretação da moderna sociedade industrial em A sociedade
do espetáculo (La société du spectacle, 1967). Quarta bolha: Agrippino de Paula e
1
Talvez seja um exagero de minha parte propor tal abordagem para uma obra tão díspar e não-linear
quanto esta de Agrippino de Paula (este mesmo via esse seu trabalho como um flerte com a pop art).
Mas, seguindo em minha linha argumentativa que flerta com o perigo (de incoerência, talvez), mantenho
a afirmação de PanAmérica como algo vinculado à produção contracultural. É uma obra razoavelmente
marginal à produção literária do período, mas que foi influente para muitos artistas, em especial àqueles
ligados ao tropicalismo.

1
PanAmérica (1967), onde pretendo atentar mais para o contexto específico do Brasil;
neste ponto, talvez o conteúdo anteriormente tratado2 possa convergir para uma melhor
compreensão da problemática proposta. Possivelmente, no final, as bolhas estarão
desgastadas, estouradas: espero, até lá, ter conseguido agrupar com algum rigor o que
continham.

Roszak3

Contexto norte-americano: os jovens da classe média estadunidense, quando


insatisfeitos com a sociedade em que vivem, não dialogariam com o mesmo radicalismo
da juventude européia. Perante isso, Roszak argumenta que as velhas categorias de
análise social têm pouco a dizer sobre o momento da juventude norte-americana e busca
entender como se mobilizam e por que (p. 18). Para o autor falta um background radical
aos jovens americanos, mas isso não impediu que eles compreendessem com lucidez o
inimigo do momento: a tecnocracia, “uma forma social mais desenvolvida nos Estados
Unidos do que em qualquer outra sociedade” (p.18).
Por tecnocracia entende-se a forma social na qual uma sociedade industrial atinge
a capacidade máxima de integração organizacional: todos os fatores do cotidiano e da
existência em geral – até mesmo a oposição à tecnocracia – são passíveis de exame e
manipulação puramente técnicos (p. 19). O homem não-técnico é cada vez mais
excluído dessa sociedade integrada em que cientistas e técnicos defendem para si uma
postura de imparcialidade político-ideológica: como se o escrutínio técnico estivesse
isento de julgamentos de valor e proporcionasse resultados incontestáveis.
Para convencer os indivíduos, a tecnocracia trabalha com o intento de tornar
aceitáveis três premissas: em primeiro lugar, as necessidades vitais do homem são de
caráter puramente técnico e compreensíveis a partir de uma análise formal realizada por
especialistas; em segundo lugar, a análise formal das necessidades humanas está

2
Para ser mais pontual quanto a esse meu referido “conteúdo”, cito agora os capítulos das obras citadas
usados com mais ênfase neste trabalho: Roszak, Theodore. “Os filhos da tecnocracia” In _______.
Contracultura. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1972, pp. 15-53; Marcuse, Herbert. “A dialética da
civilização” e “Os limites históricos do princípio de realidade estabelecido” In ________. Eros e
civilização: uma crítica filosófica ao pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, pp. 83-103, 123-
131; Debord, Guy. “A separação consumada” In ________. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997, pp. 13-25. O romance de Agrippino de Paula será discutido em sua totalidade (se isso
é possível), todavia, de uma forma menos esquemática, a partir de seleções que permitam um diálogo
com minha proposta de trabalho. Paula, José Agrippino de. PanAmérica: epopéia. São Paulo: Max
Limonad, 1988.
3
As referências desta seção do trabalho relativas à argumentação do autor tratado ficarão no corpo do
texto, entre parênteses. Quando algo for de extrema necessidade de elucidação e não se encaixar
adequadamente na narrativa, apelarei para uma nota de rodapé ou outra.

2
concluída, assim sendo, nenhum setor/fator da vida humana encontra-se intocado pelo
conhecimento técnico; por fim, todos os especialistas autorizados e competentes para
analisar nossas existências fazem parte da grande estrutura estatal ou empresarial (p. 23-
24). Dentro de um prognóstico tão totalizante não haveria espaço para contestações:
todo e qualquer problema, reclamação, ou atrito social é desconsiderado como irreal –
algo como: se a técnica não pode solucioná-la, ele não pode ser realmente um problema
– ou como um mal-entendido. O espaço de uma dinâmica social conflituosa é
mascarado dentro de um pretenso regime político neutro, organizado sobre critérios
técnicos.
Além de pregar uma imparcialidade ideológica, o regime tecnocrático seria
responsável pelo apaziguamento das insatisfações, silenciamento/acomodação das
minorias (p. 26). A educação, a vida do espírito, a sexualidade, a busca da verdade, a
livre iniciativa, o lazer criativo, o pluralismo, a democracia, o debate, o governo com
consentimento dos governados: todos esses campos da existência humana estariam
dominados pela estrutura tecnocrática de controle e apaziguamento e ajudariam na
criação de imagens de “liberdade” e “felicidade” (p. 28-29).
Segundo Roszak, no momento em que escreve [1968], as ideologias esquerdistas
tradicionais não estariam preparadas para organizar um protesto, formalizar uma crítica
contra a tecnocracia (p. 33). Para o autor, no contexto dos Estados Unidos, a esperança
recai sobre a juventude: os jovens de classe média nutririam um sentimento de
insatisfação na medida em que descrêem do mundo como um antro de “prazer,
liberdade e segurança econômica” (p. 41). Esta insatisfação pode levar a dois caminhos:
acomodação ou marginalização. O segundo caso é o refúgio da esperança em mudanças
de Roszak. Todavia, não é uma crença de que a juventude mudará algo sozinha: muito
pelo contrário, o autor acredita que essa “nova cultura” insurgente entre os jovens deve
ser aproveitada por intelectuais adultos, os quais conseguiriam organizar uma oposição
política coerente contra a tecnocracia a partir da contracultura da juventude (p. 48-51)4.
Esse prospecto não muito otimista sobre a sociedade norte-americana foi uma das
primeiras tentativas de sistematizar a possibilidade de desenvolvimento de uma cultura,
desde os anos 1950 e estendendo-se nos anos 1960, fora do sistema dominante e fora
dos círculos políticos tradicionais. Em outras palavras, a contracultura seria

4
Neste ponto, a interpretação de Roszak converge com os dizeres de Marcuse quando este prefacia uma
nova edição do seu livro Eros e Civilização em 1966 e afirma serem os intelectuais, junto com os jovens,
a vanguarda da ação política contra a sociedade afluente, pois ambos potencialmente recusam (ou, no
mínimo, são críticos perante) a atual situação da sociedade. Cf. Marcuse, op.cit., p. 23.

3
representativa de uma franca insatisfação não vinculada diretamente aos espectros
políticos tradicionais da esquerda ou da direita5. A meu ver, essa capacidade de
mobilização de insatisfações de uma juventude não foi algo restrito aos Estados Unidos.
Contudo, antes de adentrar com mais detalhes nessa discussão, vejamos mais algumas
reflexões sobre a psicologia dos indivíduos dentro da sociedade industrial moderna.

Marcuse6

A partir do texto O mal-estar da civilização de Freud, Marcuse traça a influência


decisiva do sentimento de culpa no desenvolvimento da civilização: existe uma
correlação fundamental entre progresso e um crescente sentimento de culpa (p. 83). A
origem do sentimento de culpa encontra-se no complexo de Édipo: concretiza-se
quando, com a ajuda dos irmãos, o pai é assassinado. Na medida em que os seres
humanos caminham no desenvolvimento da civilização esta figura paterna é substituída,
multiplicada e suplementada pelas autoridades e poderes sociais: desta forma as
proibições e inibições aumentam em número, grau e vigor e, conseqüentemente, o
impulso agressivo também é ampliado (p. 84). Para conter o impulso agressivo duas
alternativas seriam possíveis: desenvolver um Eros forte capaz de sujeitar os instintos
destrutivos – coisa não desejável em uma sociedade de controle como a moderna
sociedade industrial – ou intensificar o sentimento de culpa (p. 84-85).
A função do trabalho é essencial para o controle social. Trabalho visto como
labuta – portanto, não-libidinal, fruto do esforço, algo desagradável – imposta pela
busca do progresso dentro dos preceitos da civilização industrial (p. 85-86). Esse
modelo civilizacional reprime a sexualidade, seja nas relações de trabalho, seja na
maioria dos instintos sociais. Sublimação. Sujeitar o Eros e alterar o equilíbrio da
estrutura instintiva humana7. Originalmente, antes da civilização, a vida humana seria
uma fusão entre Eros e Thanatos – entre a sexualidade e o instinto de morte –, sendo
que o primeiro subjugaria o segundo, porém, após a sublimação, o Eros é domado.
Mesmo assim, Marcuse vê alguma esperança de mudança nos rumos civilizatórios
devido a dois fatores: primeiro, nem todo trabalho é dessexualização, desagradável e

5
Com isso não nego a possibilidade de que movimentos contraculturais assumam vinculações com
ideologias políticas específicas. Apenas ressalto que eles não se originam, aparentemente, de uma
orientação política bem definida.
6
Vide nota 3.
7
Marcuse, na “Introdução” de Eros e Civilização deixa claro que os instintos (os impulsos) são passíveis
de modificação histórica conforme os seres humanos desenvolvem novas formas de socialização, p. 30.

4
repressivo; segundo, as inibições impostas pela cultura8 afetam também os impulsos de
agressividade e destruição, derivativos do instinto de morte (p. 87).
Então, embora, na maioria das vezes, os impulsos destrutivos sejam satisfeitos/
controlados, mantém-se a repressão à sexualidade. Estaríamos, em 1955, em um
momento civilizacional em que as técnicas provêem as bases do progresso, onde a
racionalidade tecnológica estabelece os padrões de conduta e a proposta de um
desempenho voltado para a produção. Este contexto insere-se dentro de um quadro mais
geral de desenvolvimento civilizacional onde um ciclo de dominação-rebelião-
dominação aumenta progressivamente a dominação (p. 89-91). Por que a rebelião não
suprimiu a dominação? A racionalização do poder seria igualada à racionalidade da
opressão: para manter o poder, a ordem, a possibilidade de uma liberdade arbitrada são
necessários a opressão, a sublimação, o aumento do sentimento de culpa. Mas, para
Marcuse, essa racionalidade estaria caminhando para tornar-se ilegítima devido ao
próprio progresso da civilização. O organismo humano é cada vez mais transformado
em um fim em si mesmo: isso problematiza uma racionalização de domínio totalizante,
porém cria espaço de outras formas de controle9. Entre essas novas formas de controle
está a noção de produtividade, agora não necessariamente unida com a labuta em si, mas
com todas as atividades do convívio social (p. 92-99).
Contudo, a produtividade tem seu contraponto: o trabalho é cada vez mais
alienado, o fator humano faz cada vez menos diferença dentro do processo de produção.
A oposição entre a potencialidade de libertação e a realidade da repressão está patente
em todas as esferas da vida: a vinculação real entre indivíduos e cultura está solta.
Ainda assim os meios de controle e repressão conseguem sustentar esta aparente
irracionalidade a partir de uma redução do papel e da atuação da consciência para
apenas regular a coordenação entre o indivíduo e o todo sem a rebelião de um para com
o outro. A felicidade, a partir dessa anestesia da consciência, torna-se possível e ajuda
na pacificação da rebelião (p. 100-102). Todavia, Marcuse ainda vê possibilidade de
superar a dominação: como as potencialidades humanas são eliminadas no mundo de
trabalho alienado, criam-se chances para a eliminação do trabalho (repressivo) dentro
das potencialidades humanas (p. 103). Em outras palavras, existem brechas para revisar
a noção de que a civilização sempre será repressiva.

8
Também na “Introdução”, Marcuse diz utilizar os termos “civilização” e “cultura” como
intercambiáveis, p. 30.
9
Essa dialética entre possibilidade de liberação e práticas de repressão é uma constante durante a análise
de Marcuse sobre a civilização moderna.

5
Antes de continuar por outras sendas de elucubrações teóricas, alguns comentários
mais sobre Marcuse, agora sobre a diferenciação/relação entre princípio de realidade e
princípio de desempenho. No momento em que escrevia, o autor percebia um domínio
do princípio de desempenho na sociedade e uma conseqüente identificação deste como
sendo o próprio princípio de realidade (p. 123). Os dois são a mesma coisa? Um
possibilita a existência do outro? Bem, o que interessa para Marcuse é buscar a
possibilidade de um princípio de realidade diferente e não-repressivo. Para isso, duas
ponderações sobre o princípio de desempenho são necessárias. Primeiro ponto, o
progresso da civilização sucedeu-se sob o domínio do princípio de desempenho: este
conseguiu proporcionar um nível de produtividade que não necessitaria de extrema
organização repressiva dos instintos para consumação da quantidade de trabalho
alienado requisitado de cada indivíduo, contudo, para que alguns grupos mantenham o
domínio sobre outrem, a carga repressiva não é nem um pouco diminuída. Segundo
ponto, a própria Filosofia da civilização ocidental constrói seu conceito de razão com as
características dominantes do princípio de desempenho, porém, esta Filosofia carrega
em si o germe da contradição dessas mesmas características, possibilitando uma
possível superação (ou separação) do princípio de desempenho sobre o princípio de
realidade (p. 123-124).
Desta forma, torna-se possível vislumbrar uma sociedade onde o processo
histórico consiga suprir os meios necessários para obsoletar as instituições do princípio
de desempenho, permitindo uma diminuição da carga repressiva sobre os instintos 10.
Para Freud, não existe a possibilidade de uma sociedade não-repressiva. Marcuse, por
sua vez, crê, até certo ponto, nesta hipótese: para isso propõe a alteração da dinâmica
entre os instintos do sexo e da morte (p. 126-131). Conforme mencionado
anteriormente, Eros e Thanatos estão relacionados e o advento da civilização desloca o
equilíbrio entre eles. Reordenar esse equilíbrio, desestruturar o princípio de
desempenho, questionar a dominação: por esse caminho objetiva-se a construção de
uma civilização diferente, onde a mais-repressão não esteja presente.

10
A diminuição da carga repressiva sobre os instintos permitiria uma supressão da “mais-repressão”,
conceito utilizado por Marcuse para caracterizar a repressão que excede o necessário para conter os
impulsos de agressividade.

6
Interlúdio

Neste momento pode surgir a questão: para que toda essa teorização neste
trabalho? Justifico: acho importante colocar em debate algumas possibilidades gerais de
interpretação sobre o momento por que passava o mundo ocidental entre 1950 e 1960 de
uma maneira mais geral. Problematizar o momento histórico em que surgiu a noção de
contracultura e o que ela representa. Desse ponto, aí sim, argüir diretamente sobre o
contexto brasileiro a partir de uma perspectiva delimitada e tentar discutir algumas
hipóteses (conclusões e sínteses são improváveis, neste trabalho, eu imagino).
Aproveito o gancho da seguinte frase: “Os vínculos reais entre o indivíduo e a sua
cultura estão soltos”11. E prossigo.

Debord12

A partir de agora, uma parte mais nebulosa deste trabalho. Um leve destrinçar das
34 primeiras teses (ou boa parte delas) do livro A sociedade do espetáculo (p. 13-25).
Comecemos. A vida nas sociedades onde reinam as modernas condições de produção
tornou-se uma imensa acumulação de espetáculos: todas as esferas da existência são
perpassadas por representações, uma “teatralidade” (Debord não utiliza este termo) do
real (real invertido). As imagens do espetáculo são fragmentadas, autonomizadas,
especializadas, portanto, a unidade da vida não pode ser restabelecida dentro da
sociedade espetacular: o parcial apresenta-se como unidade geral completa, mas,
unidade como objeto de mera contemplação, sem liberdade para intervenção ou
alteração autônoma por parte do receptor. Oscilando entre os fragmentos e a unidade
geral da sociedade, o espetáculo propõe ser ele mesmo seu próprio método de
unificação e representação da sociedade. As coisas continuam separadas, mas o
espetáculo expressa uma unificação a partir da “linguagem oficial da separação
generalizada”.
Não é restrito, o espetáculo, a um mero conjunto de imagens: ele é uma relação
social entre pessoas, mediada por imagens; uma visão de mundo objetivada no real. É o
resultado do modo de produção existente e, ao mesmo tempo, o modelo atual de vida
dominante na sociedade – a forma e o conteúdo do espetáculo justificam as condições e
os fins do sistema existente. A realidade surge no espetáculo e o espetáculo é o real:
ambos são parte de uma alienação recíproca desenvolvida no seio da moderna sociedade
11
Marcuse, op.cit., p. 102. (grifos no original)
12
Vide nota 3.

7
industrial e, em última instância, o espetáculo propicia a fabricação concreta da
alienação, torna a vida apenas mais um produto daquele que a vive.
Simplificando. Com o que foi dito até agora temos que o espetáculo apresenta-se
como uma positividade unificadora e criadora do real. Ele é a principal produção da
sociedade atual, pois trabalha “como indispensável adorno dos objetos produzidos [...],
como demonstração geral da racionalidade do sistema, e como setor econômico
avançado que molda diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos”. Para
Debord, o espetáculo desenvolve-se de maneira autônoma perante a economia. Cria-se,
com o espetáculo, um universo de aparências, apresentadas como expressão do real: ele
torna a vida opaca: reconstrói materialmente a ilusão religiosa ao apresentar suas
imagens como o real.
O espetáculo é uma atividade, um discurso ininterrupto, que responde por todas as
instâncias da existência. Importante frisar, mais uma vez, o caráter fundamental da
separação para o funcionamento do espetáculo. Explico. No âmbito do trabalho, o
trabalhador é separado daquilo que produz e perde a noção de unidade da atividade
realizada. Em um âmbito mais geral, toda e qualquer atividade social também é
fragmentada pelas imagens do espetáculo: a sociedade é fragmentada e penetra em uma
produção circular de indivíduos isolados. Contudo, o espetáculo reúne os fragmentos
com suas imagens e aliena o espectador em favor do objeto-imagem contemplado. Os
indivíduos isolados são reunidos em um sistema espetacular de separação expressa
como unidade real.
Onde quis chegar com essa um tanto confusa exposição das teses de Debord? A
visão da moderna sociedade industrial deste autor dialoga com os textos tratados
anteriormente. Todos mostram problemas no atual estado da civilização, mas Roszak e
Marcuse aparentam crer em uma possível solução em curto ou médio prazo e propõem
um caminho para mudança. A especificidade de Debord é a aparente falta de soluções
perante uma sociedade do espetáculo totalizante. É um diagnóstico desalentador. Sem
prognóstico de mudança. Todavia, não deixa de ser uma arguta análise da sociedade do
seu presente13 que articula lucidamente os critérios que a organizam. Por isso desenvolvi
parte de sua argumentação: proporciona mais elementos para a formulação de um
quadro geral de análises sobre a moderna sociedade industrial dos anos 1960. Passemos
agora para o contexto específico do Brasil.

13
Lembro novamente que A sociedade do espetáculo foi publicado em 1967.

8
O Brasil e a PanAmérica

Momento: 1967. Regime militar, a “transição para a democracia” cada vez menos
cogitada. Ambiente restritivo, intelectuais cerceados ou cooptados, juventude entre
revolta e acomodação. Entremeios, alguma passividade e alguma mobilização. O Estado
advoga o crescimento econômico, propõe grandes obras, nega os preceitos da “república
populista”: impõe o princípio de desempenho, incentiva-se a criação de postos para
especialistas. Apesar da censura, as diversões públicas, com destaque à televisão,
aumentam cada vez mais seu público e sua influência.
Entre as possibilidades de atuação contra tal situação costuma-se destacar dois
grupos: os intelectuais e estudantes da “esquerda tradicional”14 por um lado e os
indivíduos do chamado desbunde de outro. Darei destaque por um tempo para os
pertencentes ao segundo grupo. Costumam ser lembrados, entre os desbundados,
principalmente as figuras ligadas ao Tropicalismo, o qual teve suas primeiras
manifestações em 1967 e “estabeleceu-se” como tal mais precisamente no ano de 1968.
Heloísa Buarque de Holanda vê tal grupo de indivíduos como representativos de um
momento de crise e percebe em seus posicionamentos duas características marcantes:
uma crítica ao pensamento da esquerda e a defesa do uso dos canais de massa (televisão,
principalmente) para a divulgação de seus ideais15. Marcelo Ridenti, por sua vez, pensa
no Tropicalismo não como uma ruptura radical com a cultura política dos anos 1960,
antes o percebe como uma crítica ao nacional-popular que não implicava o rompimento
com o nacionalismo: o povo brasileiro era também um fator central do discurso
Tropicalista, todavia, buscava-se tal aproximação a partir de um viés “antropofágico”
(referência à Mário de Andrade) que aceitava os “modismos” e a aparelhagem da
indústria cultural como veículo para disseminação de idéias16.
Bem, mas, e quanto ao autor que analisarei brevemente neste trabalho: José
Agrippino de Paula? Foi influente junto aos tropicalistas, mas não vejo muita
possibilidade de caracterizá-lo como tal. Sua participação era mais fluída: quero dizer,
não se preocupava em manter ou reivindicar vínculos com qualquer movimento. Por
isso, para motivos de análise, escolhi estudá-lo sob o viés de um “rótulo” mais amplo,
contracultura. Há estudos recentes sobre a contracultura no Brasil em fins da década de
14
Generalizo a caracterização da esquerda porque um debate mais longo sobre as divergências entre os
grupos esquerdistas não caberia nas pretensões e limites deste trabalho.
15
Holanda, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. São
Paulo: Brasiliense, 1981, p. 55.
16
Ridenti, Marcelo. “A brasilidade tropicalista de Caetano Veloso” In _______. Em busca do povo
brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 265-315.

9
1960 e início da década de 1970: costuma-se destacar a importância do jornal O
Pasquim e outras publicações de imprensa, contudo, Agrippino de Paula não recebe
muito destaque, quando muito é citado de passagem17. Talvez a postura circunspecta do
autor e as características excessivamente alegóricas (ou surreais, para alguns) dos seus
trabalhos18 tenham contribuído para não ser lembrado com tanta freqüência nos debates
sobre cultura e política no Brasil do final da década de 1960.
Proponho, de agora em diante, deter-me com mais calma em alguns aspectos da
ficção PanAmérica, de Agrippino de Paula. Comecemos pelo título e subtítulo.
PanAmérica: epopéia. Saga épico-poética de um personagem-narrador – sem nome,
daqui em diante chamado de “eu-narrador” – que transita livremente sem menção à
fronteiras, pela América, desde os Estados Unidos até o Brasil19, passando por
territórios não especificados que podem ser vários países da América Central ou da
América do Sul: é uma narrativa de acontecimentos grandiosos ocorridos durante uma
jornada pela América considerada como um todo indiviso. São diversos episódios não
necessariamente relacionados que estruturam a narrativa: ficção fragmentária composta
por parágrafos-capítulos nos quais a repetição e o ilógico ou surreal são naturalizados.
O eu-narrador interage durante seu périplo com uma grande variedade de ícones da
cultura da moderna sociedade global: são várias as peripécias sexuais com Marilyn
Monroe, as lutas com Joe DiMaggio, as aventuras guerrilheiras com Harpo Marx ou
Che Guevara, etc.
Não há um enredo definido. Os episódios alternam-se enquanto o eu-narrador
circula pela América contracenando com figuras cujos nomes-imagem são globalmente
reconhecidos. Os ícones-mito da cultura pop são desgastados-desconstruídos no
desenrolar da narrativa: a realidade invertida da sociedade do espetáculo é
ridicularizada, desvela-se o véu do falso real com a ajuda do absurdo. A saga
fragmentária do eu-narrador desnuda a separação-unificadora do real consumada pela
sociedade espetacular e implode-a, literalmente20.
17
Dois desses estudos são: Barros, Patrícia Marcondes de. “Provocações brasileiras”: a imprensa
contracultural made in Brazil – coluna underground (1969-1971), flor do mal (1971) & a rolling stone
brasileira (1972-1973). UNESP, Assis: tese de doutorado (história), 2007. Capellari, Marcos Alexandre.
O discurso da contracultura no Brasil: o underground através de Luiz Carlos Maciel (c. 1970). USP, São
Paulo: tese de doutorado (história), 2007.
18
Agrippino de Paula não ficou somente no campo literário, também se envolveu com o cinema (diretor
do filme experimental Hitler Terceiro Mundo, entre outros) e com o teatro (a peça Rito do amor
selvagem).
19
Perceptíveis por causa de referência à lugares conhecidos, como Hollywood ou o Cristo Redentor.
20
Como no episódio final, no qual, após uma seqüência de acontecimentos caóticos, a Terra parece estar
prestes a desintegrar-se: “[...] O grande bloco formado pelos bonzos budistas, liquidificadores,
submarinos, corujas e tanques se introduziu num outro bloco fragmentado que viajava à frente. O outro

10
Se existe alguma proposta que pode ser vislumbrada nesse romance de Agrippino
de Paula ela é formulada, segundo minha modesta análise, nos seguintes termos: é uma
negação-pelo-absurdo (ou des-alienação) do modelo organizacional, em todos os seus
pormenores, da moderna sociedade industrial. Atenta-se contra o regime de vida
vigente, sem necessariamente assumir um engajamento ou proposta política claras: eis
aqui uma justificativa para a utilização da noção de contracultura conforme elaborei
anteriormente. Em PanAmérica vejo uma interpretação, vinculada ao momento
histórico brasileiro21, sobre o momento vivido pela sociedade global. Há a implosão da
tecnocracia, a libertação de Eros, a destruição da sociedade do espetáculo, mas não
estritamente nesses termos. Por isso desenredei os referenciais teóricos de Roszak,
Marcuse e Debord: são obras que tratam do momento pelo qual passava a civilização
ocidental nas décadas de 1950 e 1960 e definem critérios de análise mais precisos do
que aqueles apresentados por Agrippino de Paula em seu livro, o qual, ao seu modo,
também expressa uma visão sobre a sociedade deste período.
Apesar do provável exagero teórico deste trabalho de história, espero ter colocado
em perspectiva a atuação de ao menos uma figura marginal do cenário intelectual da
década de 1960 no Brasil. Ao destacar a exceção espero ter contribuído também para
alguma elucidação sobre o padrão – ou algumas variações do padrão. Além disso, o
momento de publicação de PanAmérica é significativo, como já destacado
anteriormente: mas, vale acrescentar que a obra não foi censurada; assim como também
não o foi seu filme Hitler Terceiro Mundo, rodado em 1968, já sob vigência do AI-5. O
que podemos concluir com isso: era Agrippino de Paula um intelectual totalmente
alienado ou simplesmente agia à margem do discurso político tradicional e não foi visto

bloco era formado por um grande número de violinos e perdidos no meio da aglomeração de violinos eu
vi o presidente Kennedy, De Gaulle, Hitler, o reverendo Luther King, o revolucionário Robespierre de
barrete vermelho e um grande número de arcanjos e coelhos. Os blocos de violinos foram se desfazendo e
se separando e os bonzos flutuantes batiam com as cabeças e os braços nos violinos e nos coelhos. Eu vi
televisões, frangos assados, facas, espetos, sapos voadores, foguetes, cobras, peixes, binóculos, máquinas
fotográficas; e no fim do bloco flutuante eu vi uma nuvem de napalm soltando espessas labaredas e uma
fumaça negra. O grande incêndio de napalm atingiu os últimos ocupantes do bloco flutuante formado por
cães e Karl Marx ao longe e era coberto por uma nuvem de fogo. Os dois blocos se encontraram e
partiram em quatro pequenos blocos formados de motocicletas, porta-aviões, bicicletas, máquinas de
lavar roupa, flechas e espadas. Os porta-aviões se chocaram uns contra os outros provocando um grande
som e eu vi o casco dos porta-aviões rasgando e abrindo. Eu olhei para o grande bloco de violinos, do
presidente Kennedy, do primeiro-ministro De Gaulle, Hitler, e do reverendo Luther King deslizando
através dos outros blocos flutuantes que avançavam para frente, e este bloco se imobilizou e passaram
flutuando no espaço homens, mulheres, animais, pássaros e peixes. Apareceu a curvatura da Terra, o mar
brilhante e azul, as nuvens brancas e as montanhas. A Terra se elevava velozmente aproximando-se. [...]”.
Paula, op.cit, pp. 258-259.
21
Não mencionei anteriormente, mas há, entre os personagens recorrentes de PanAmérica, agentes do
DOPS e oficiais norte-americanos responsáveis por golpes militares na América do Sul.

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como um problema à soberania nacional ou como um atentado representativo à ordem
estabelecida? Se o percurso de minha argumentação serviu para alguma coisa esta
pergunta já encontrou sua resposta.
Encerro por aqui um dos caminhos possíveis de se pensar a contracultura no
Brasil.

Bibliografia

Bento, Carlos Henrique. “Pan e latina América: o delírio épico de José Agrippino de
Paula” In IPOTESI, Juiz de Fora, v. 12, nº 1, jan/jul 2008, pp. 145-153.

Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

Holanda, Heloísa Buarque de. “O susto tropicalista na virada da década” In ________.


Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. São Paulo: Brasiliense,
1981, pp. 53-88.

Marcuse, Herbert. Eros e civilização: uma crítica filosófica ao pensamento de Freud.


Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

Paula, José Agrippino de. PanAmérica: epopéia. São Paulo: Max Limonad, 1988.

Ridenti, Marcelo. “A brasilidade tropicalista de Caetano Veloso” In _______. Em busca


do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 265-315.

Roszak, Theodore. Contracultura. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1972.

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