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HORÁCIO COSTA

José
Saramago
e a tradição
do romance
histórico
em Portugal
96 REVISTA USP, São Paulo, n.40, p. 96-104, dezembro/fevereiro 1998-99
U ma das maneiras mais imediatas que sempre teve
o leitor ou o estudioso para avaliar a vigência de

uma determinada tradição literária é perguntar-se sobre a


HORÁCIO COSTA
é poeta, tradutor e
ensaísta. É autor de, entre
outros, José Saramago: o
Período Formativo
(Editorial Caminho) e Mar
importância exercida pelas diversas leituras que dela fazem Abierto: Ensayos de
Literatura Hispano-
as obras que se produzem num determinado espaço cultural Americana (Fondo de
Cultura Econômica)
num determinado lapso de tempo. A resposta a esta pergunta
indica não apenas a coesão do corpus literário em questão,

considerado como um todo significante, no qual incidem di-

ferentes lineamentos ou seqüências discursivas ao longo do


tempo – o que, por sua vez, dá azo às diversas tradições das

que se nutrem no presente uma literatura e uma língua, para


conformar aquilo que se chama língua literária. Indica, tam-

bém, quais as linhas de força predominantes no momento em


que examinamos esta literatura. Ainda, a percepção de tais

linhas de força define, pelo menos aproximadamente, o crisol


de relações no qual, graças ao diálogo intraliterário, as mes-

mas noções de passado e presente suspendem-se em prol do

estabelecimento de uma dinâmica paratemporal que aponta,


em seu horizonte, à verdade mais íntima de toda manifestação

artística: a reabilitação do tempo através da obra humana, da


obra artística. Se, como disse Octavio Paz, cada escritor inven-

ta a sua tradição, cada época tende a privilegiar a eleição de


certas interpretações no seio do corpus literário, estas eleições

ajudam-nos a perceber o perfil do momento, não apenas histó-


rico mas também humano, que vivemos.

Como sabemos, o panorama cultural de hoje está carac-

terizado por uma grande incidência, talvez a maior da qual se

tenha tido notícia, de informações provenientes do passado,


Este artigo foi publicado em ver-
são italiana na Rivista Lusobrasilica
numa quase total abertura de referências. No momento atual, ao
n o 2 (col. “I protagonisti del
racconto”), Roma, 1996; também que com nula ou sobeja razão – não importa – deu-se por chamar
reunido no livro Mar Abierto –
Ensaios sobre Literatura Brasileña,
Portuguesa e Hispanoamericana
pós-moderno, o passado é, um tanto paradoxalmente, uma pre-
(México D.F., Fondo de Cultura
Económica, 1998). sença constante: parte integrante do sistema da moda, elemento

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de legitimação ou de foco de autoridade no sentido literário-crítico mais corrente
sobre quaisquer aspectos da vida social, na cultura contemporânea, que se caracte-
política e cultural de povos e indivíduos, riza por dois núcleos significantes princi-
objeto de estudos escrupulosos ou pais: a dupla vocalidade, na qual convivem
manipuladores, campo aberto para a ima- o texto parodiado e o texto parodiador para
ginação artística, onírica ou mitológica, obter um registro comum, assim como o
instância de experimentação ou de revisionismo crítico do texto parodiado pelo
escrutação intelectual, meio entre meios parodiador –, tão freqüente no universo
para o afiançamento de técnicas de explo- artístico atual, bem ilustra a relação à qual
ração mercadológica. O passado, a tradi- me refiro.
ção – ou, melhor dizendo, os passados e as No caso das literaturas de língua portu-
tradições – encontram-se, hoje, a ponto de guesa, a obra narrativa de José Saramago
converterem-se numa espécie de revela com bastante propriedade as carac-
concorridíssimo bal-masqué ao qual as- terísticas anteriores. Por um lado, nela re-
sistem, se se puder dizê-lo assim, todos os flete-se a eleição de séries de autores, ou,
vivos e todos os mortos, juntamente com melhor dito, de tradições literárias, do
os mortos dos mortos, unidos num mesmo, corpus literário português, reafirmando
multitudinário, e algo banal, frenesi. assim a vigência do mesmo através do
Sem avançar julgamentos negativos de dialogismo intraliterário; por outro, atra-
valor – já que este frenesi, visto do futuro, vés da utilização paródica dessas séries ou
poderá ser considerado como o responsá- tradições nos textos que a compõem, nela
vel por uma configuração cultural nova que, se instaura, para lá de modismos ou de re-
possivelmente, encontra-se em processo de ferências conjunturais, uma postura de res-
gestação agora –, a única maneira de gate, que se traduz em incorporação do
desbanalizar a relação com o passado, de passado literário, como motor de lingua-
tal forma que ele possa, entre outras coisas, gem, no presente.
voltar a representar o índice de coesão do Adiante referir-me-ei especificamente
corpus literário, é, para o produtor de lin- às relações da obra romanesca de José
guagem, desenvolver vínculos de total sub- Saramago com três nomes-chave do sécu-
jetividade em relação à tradição, de tal lo XIX em Portugal: Almeida Garrett, Ale-
maneira que ela se veja não simplesmente xandre Herculano e Eça de Queirós, os
incorporada ao discurso porém à voz mes- quais, sem que se tivessem dedicado prin-
ma que a elegeu. Ir além da citação, da cipalmente ao subgênero do romance his-
superfície transparente ou opaca de uma tórico, escreveram obras direta ou indireta-
obra, para transformar esta incorporação mente inspiradas, em maior ou menor me-
na força motora do texto e, mesmo, do pa- dida, na “grande narração” que oferece a
norama profundo dos significados da obra história nacional lusitana e que desenvol-
literária, através da depuração desta mecâ- veram, no vasto leque de suas obras e cada
nica de incorporação, para o que incidem qual à sua maneira, temas e formas de in-
em partes iguais tanto a sensibilidade como terpretação da história portuguesa.
a intencionalidade daquele que incorpora o Antes de prosseguir, um esclarecimen-
passado e, ao fazê-lo, diz, ou busca dizer: to: ao escolher esta série literária de inegá-
este é, parece-me, o desafio que a prova- vel importância no corpus literário portu-
velmente excessiva exposição para com o guês, obedeço a dois critérios. Primeiro, a
passado propõe para o criador contempo- um critério de afinidade, já que em muitos
râneo, imerso entre informações que dele de seus romances e obras de teatro Saramago
parecem provir, porém que, no mais das distinguiu-se por trabalhar temas históricos
vezes, em sua gritante obviedade, escon- e formas de representação do tempo históri-
dem sua fundamental ilusoriedade. co na obra literária, o que pressupõe um
O recurso à paródia – termo aqui consi- vínculo entre sua produção e a de seus
derado não em sua acepção comum porém antecessores na literatura portuguesa.

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Segundo, a um critério de particulariza- Balança da Europa, de 1830.
ção de sua relação com as obras dos três A segunda crônica, chamada “Viagens
escritores mencionados. Saramago apresen- na Minha Terra”, interessa-nos mais ago-
ta uma relação complexa e mutante com a ra. O nível de incorporação paródica de
tradição literária que incorpora em sua es- Almeida Garrett por parte de Saramago
critura. Por enquanto, deter-me-ei em as- caracteriza-se já no título, que repete inte-
pectos específicos que, sob meu ponto de gralmente o do livro mais importante do
vista, caracterizam não apenas a leitura que escritor romântico português, publicado em
ele faz de Garrett, Herculano e Eça, mas 1846. Viagens na Minha Terra, nunca é
que refletem, também, a importância que demais lembrá-lo, é um “romance” frag-
Saramago concede à rica matriz da prosa mentado, cuja principal característica de
portuguesa do século XIX. Portanto, esco- estilo é justamente a digressão, e no qual o
lhi três aspectos definidos em sua escritura autor joga com numerosos registros vocais
recente, que remetem às obras de Almeida e enredos paralelos. Essa obra, um peque-
Garrett, de Alexandre Herculano e de Eça no monumento literário que, como os que
de Queirós: um traço estilístico, com rela- o são verdadeiramente, rejuvenesce com o
ção ao primeiro, uma postura ideológica, passar dos anos, pode ainda hoje surpreen-
com relação ao segundo, e um esquema der o leitor contemporâneo devido ao que
formal, que implica, por sua vez, uma pos- revela da liberdade criativa de seu autor e
tura crítica, com relação ao terceiro. da veia literária experimental que ele nela
plasmou, se contextualizada na época (e no
O traço estilístico afim entre Saramago meio) em que foi escrita. Em sua crônica,
e Almeida Garrett é a digressão. Já em duas Saramago estabelece dois elementos rela-
de suas crônicas escritas durante a década tivos à sua leitura de Almeida Garrett,
dos 70, reunidas no livro Deste Mundo e do ambos de importância para o desenvolvi-
Outro (1971, 1a ed.), Saramago deteve-se mento futuro de sua prosa narrativa.
sobre a figura e a obra do poeta, dramatur- Examinêmo-los.
go e romancista que, conforme rezam os Por um lado, diz que “o melhor nas
compêndios, introduziu o Romantismo em Viagens… não é a Joaninha dos Olhos
Portugal (com a peça Camões, em 1825). Verdes” – a heroína do romance –, porém
Uma das crônicas intitula-se “Almeida o “prazer digressivo” do escritor românti-
Garrett e Frei Joaquim de Santa Rosa” e co, que “salta de tema em tema com um de
trata da filosofia política liberal de Garrett, benigna indiferença mas que, no fundo, não
que foi também, recordemo-nos,um políti- perde o norte, nem uma gota d’água que
co renomado em seu tempo. Como Par do faça mover o seu moinho” literário. O que
Reino, Garrett opôs-se ao conservadorismo se depreende desses pequenos comentários
antidemocrático dos absolutistas e ao obs- é que Saramago, quanto à sua relação com
curantismo da censura portuguesa encar- Garrett, prefere o estilo sobre o conteúdo e
nada, precisamente, no dito frei Santa Rosa submete o enredo, tão complexamente con-
(o qual, aliás, a serviço da Inquisição e em cebido pelo autor das Viagens…, à forma
pleno Século das Luzes, proibiu nos domí- com a qual se desenvolve a narração.
nios portugueses algumas pérolas Por outro lado, um pouco mais adiante
fundacionais da literatura européia, tais em sua crônica Saramago afirma que “[…]
como La Princesse de Clèves, de Mme. de o melhor das Viagens… é exatamente a
la Fayette, publicado havia tanto, em 1678). viagem – a crônica”. Em termos metafóri-
Esta crônica ilustra a exemplaridade da cos, essa breve observação sobre o texto
figura histórica de Garrett para Saramago, garrettiano vincula a escritura de sua crôni-
como um dos primeiros escritores portu- ca – e, se bem quisermos, toda produção de
gueses que, na era moderna, refletiu sobre escritura – com a idéia da viagem. O escri-
a vida política nacional sua contemporâ- tor nos alerta sobre sua noção de escrever
nea – especialmente no livro Portugal na como um errar (uma “errância”, com o

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perdão pelo neologismo) de sentido em mance. Fundo e forma, enredo e lingua-
sentido, como um deslocamento, em suma, gem, tudo em O Ano da Morte de Ricardo
como um deslocar-se pelo sentido sem que Reis remete-nos à digressão, de origem
este deslocamento implique a perda de um garrettiana, não apenas como força motora
sentido original da escritura. do texto, mas também como produtora de
Para lá de suas crônicas – as quais, jun- conteúdos narrativos: a partir do digressar,
tamente com sua produção poética, e como instaura-se uma sensibilidade em todo o
o escritor mesmo assinalou repetidas ve- narrar que condiciona tanto a velocidade e
zes, foram fundamentais para a evolução a sucessão de instâncias narrativas, como o
de sua obra narrativa –, o “modelo seu surgimento ou a sua multiplicação, que
digressivo” da prosa garrettiana, quintes- às vezes parecem aleatórios (característica
sencializado em Viagens na Minha Terra que se afirma, por exemplo, se tomarmos
(que, por certo, por sua vez muito fica a como elemento de comparação com a de
dever à leitura de Garrett de Voyages Autour Saramago um outro tipo de escritura roma-
de ma Chambre, de Xavier de Maistre), é nesca, não praticada pelo escritor, que es-
perceptível em toda a produção romanesca teja estritamente apegada à direcionalidade
de José Saramago. A sinuosidade, a alu- imposta pelos focos narrativos principais
são, o prazer de narrar, a justaposição de do relato).
conteúdos narrativos e de linhas indepen-
dentes de enredos, o dialogismo com o lei- Como mencionei acima, a relação de
tor, a perseguição de um sentido através do José Saramago com Alexandre Herculano,
errar pelo sentido, numa palavra: a digres- o grande romancista histórico e historiador
são, característica da escritura de Almeida português do século passado, dá-se menos
Garrett, é um estilema evidente na textua- em termos textuais que ideológicos. O pa-
lidade que Saramago desenvolve a partir pel de Herculano no contexto da
de Manual de Pintura e Caligrafia (livro intelectualidade portuguesa do século XIX
de 1977, que marca sua estréia como ro- foi instrumental. Como bibliotecário real
mancista “adulto”) e que chega até seus (na Real Biblioteca do Palácio da Ajuda),
romances mais recentes – como, por exem- teve acesso aos documentos mais impor-
plo, O Evangelho Segundo Jesus Cristo. tantes da história de Portugal, inclusive o
De forma notável, no romance O Ano arquivo da Inquisição. Assim, Herculano
da Morte de Ricardo Reis (1984) observa- pôde desenvolver a primeira interpretação
mos todos esses traços em ação. As moderna da história da nação portuguesa.
andanças do heterônimo de Fernando Pes- Sua compilação de documentos medievais,
soa, Ricardo Reis – o qual, entre os alter- reunidos em sua Portugaliœ Monumenta
egoi do poeta português, sem dúvida é o Historica, sua mais ampla História de Por-
possuidor de uma configuração literária tugal e, de modo especial, seus estudos
mais especialmente elusiva –, por uma Lis- sobre as origens da Inquisição portuguesa,
boa chuvosa e submetida ao regime o caracterizaram como um dos mais im-
salazarista, seus encontros e diálogos com portantes historiadores do continente eu-
o espectro de seu criador, Fernando Pes- ropeu de sua época. Por exemplo,
soa, os amores do personagem sarama- Menéndez Pelayo, em seu famoso ensaio
guiano Ricardo Reis com as musas que “La Historia Considerada como Obra de
povoam as odes do heterônimo pessoano Arte”, apresentado na Real Academia de
Ricardo Reis, até o seu “falecimento” nove História em Madrid em 1876, classifica
meses depois de sua chegada a Portugal Herculano como um dos melhores “histo-
proveniente do Brasil, vítima de uma espé- riadores-artistas” da Europa.
cie de abulia vivencial, provêem um qua- Como historiador, Herculano legou-nos
dro admiravelmente difuso e sinuoso, que uma visão tanto democratizadora como
se espraia em termos analógicos, para lá do desmitificadora da história nacional portu-
enredo, a nível da escritura mesma do ro- guesa, por duas razões básicas. A primeira

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delas vincula-se à ênfase com a qual ele 48 respectivamente, aos quais translada
tratou a história social do Portugal medie- suas concepções da época medieval em
val. Ao contrário da interpretação corrente Portugal. Seu respeito pelo exercício da
nos meados do século XIX, e de costas para ficção, como exemplo de uma modalidade
a interpretação oficial da gesta portuguesa, do discurso da verdade e como forma de
que tradicionalmente deu maior atenção ao compreender e desvelar o complexo funcio-
período dos descobrimentos e ao Portugal namento interior da história, é perceptível
imperial (vide, por exemplo, toda a maqui- na passagem que cito a seguir:
nária nacionalista que o salazarismo extraiu
destes dois tópicos), Herculano sublinhou “Novela ou História, qual destas duas
pela primeira vez em Portugal o papel das cousas é a mais verdadeira? Nenhuma, se o
classes médias na conformação da nação. afirmarmos absolutamente de qualquer
Por conseguinte, resgatou em seus estudos delas. Quando o caráter dos indivíduos ou
a importância da instituição do município das nações é suficientemente conhecido,
na época medieval, desmontando assim quando os monumentos, as tradições e as
com bases factuais a visão aristocrática, crônicas desenharam esse caráter com pin-
quando não monárquica e centralizadora, cel firme, o noveleiro pode ser mais verídi-
do processo histórico português, que pre- co do que o historiador; porque está mais
valecera em Portugal por séculos. Ainda, habituado a recompor o coração do que é
ao diferenciar que as forças comunais, re- morto pelo coração do que vive, o gênio do
presentadas pelos concelhos municipais, ti- povo que passou pelo do povo que passa.
nham sido as mais importantes para a for- Então de um dito ou de muitos ditos ele
mação da nação portuguesa, Herculano de- deduz um pensamento ou muitos pensa-
monstrou que a noção transpirenaica de feu- mentos, não reduzidos à lembrança positi-
dalismo não se aplicava ao caso português. va, não traduzidos, até, materialmente; de
Até aqui, quanto ao aspecto democratizador um fato ou de muitos fatos deduz um afeto
da obra intelectual de Herculano. ou muitos afetos, que se revelaram. Essa é
A segunda razão que explica a ascen- a história íntima dos homens que já não
dência de sua obra sobre toda a histo- são: esta é a novela do passado. Quem sabe
riografia portuguesa a ela posterior é sua fazer isso chama-se Scott, Hugo ou De
desmitificação do discurso oficial. Ao opor- Vigny, e vale mais e conta mais verdades
se a algumas narrações mitológico-históri- que boa meia dúzia de bons historiadores
cas arraigadas no imaginário português – – Porque estes recolhem e apuram monu-
um bom exemplo é o da suposta interven- mentos e documentos, que muitas vezes
ção divina na Batalha de Ourique, o foram levantados ou exarados com o in-
famigerado “Milagre d’Ourique”, que te- tuito de mentir à posteridade, enquanto a
ria dado lugar à fundação da monarquia história da alma do homem não pode fa-
lusitana sob a proteção de Cristo, no século lhar, salvo se a natureza pudesse mentir e
XII –, Herculano, seguindo os passos dos contradizer-se, como mentem e contradi-
“estrangeirados” do Século das Luzes, se- zem os monumentos”.
para dogma de razão, e a análise histórica
do relato maravilhoso cristão. Herculano não apenas influiu no espírito
Porém, a postura intelectual de Hercu- liberador do imaginário histórico mas, so-
lano, sendo “científica” no que tange à his- bretudo, e devido a tomadas de posição como
tória “objetiva”, não é de modo nenhum essa, de defesa do imaginário histórico, na
adversa à fantasia. Além de afirmar o papel representação do tempo histórico na prosa
da “arte da História” na sociedade portu- de ficção portuguesa posterior a si.
guesa moderna, Herculano outorga um lu- Como disse acima, há uma afinidade
gar ao imaginário histórico em seus roman- ideológica entre Herculano e Saramago, que
ces. Os mais notáveis são Eurico, o se estabelece além da ideologia política
Presbítero e O Monge de Cister, de 1844 e stricto sensu, e que se deve à similitude

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entre as posturas do historiador Herculano Pedegache, médium que no Portugal
com as de Saramago frente à história nacio- joanino tinha o dom de “ver” o interior das
nal. Como seu antecessor do Dezenove, o pessoas) sobrevoam a mole imponente do
romancista busca a desmitificação do dis- convento, afirmando assim a supremacia
curso oficial sobre a história; como aquele, dos valores intelectuais e espirituais sobre
privilegia em seus romances o exame das os materiais, que via de regra vêm associa-
forças sociais mais próximas às classes dos à concepção e à construção de espaços
médias e baixas, antes de dedicar-se ao de representação do poder, em quaisquer
escrutínio das que detêm o poder. Além meridianos ou latitudes.
disso, se excetuarmos Que Farei com Este Detrás da alegoria barroca, que estrutu-
Livro?, peça de teatro que se desenvolve ao ra como um ímã o enredo do romance –
redor da figura de Camões (1980), pedra e ar, imobilidade e vôo, hieratismo e
Saramago prefere abordar períodos histó- invenção –, detrás da linguagem de extra-
ricos que não o da época dos descobrimen- ção não menos barroca que pulsa em
tos portugueses, excessivamente imantada, Memorial do Convento, o pensamento
e daí desgastada, pela grandiloqüência se- saramaguiano segue próximo ao pensamen-
cular do Estado. to de Alexandre Herculano, sistematizador,
Em contrapartida, poderíamos assina- democratizador, desmitificador.
lar uma correspondência inversa entre os
dois escritores: se Herculano separa dogma E que dizer da relação entre o mais ex-
de historiografia no século XIX, Saramago pressivo romancista português da atuali-
lança mão da retórica do real-maravilhoso dade com o mais expressivo romancista
em momentos escolhidos de suas narrati- português de há um século? Sem dúvida,
vas, tendo entre outras coisas por objetivo os vínculos entre Saramago e Eça de
a crítica do maravilhoso cristão; desta Queirós não são poucos. Poder-se-ia
maneira emula, a partir da variante enfocar, por exemplo, um estilema, assim
discursiva do realismo-maravilhoso, ao como foi acima feito com relação a Almeida
Herculano que se opôs à versão piedosa da Garrett. O recurso à ironia, que é uma ca-
história portuguesa no episódio da Batalha racterística da prosa de Saramago, poderia
de Ourique. remeter, no contexto da literatura portu-
No romance Memorial do Convento guesa, à ironia fina, tida e havida como uma
(1982), por exemplo, todas as característi- “marca registrada” de Eça nas letras lusita-
cas mencionadas são visíveis. Nele, nas, que o mestre do Realismo português
Saramago desenha um extenso afresco da soube manejar com admirável habilidade.
sociedade portuguesa barroca, a partir da Entretanto, como disse anteriormente,
construção de dois objetos: primeiro, o algo é um esquema formal, que implica uma
monstruoso Palácio de Mafra, mandado postura crítica, o que neste momento quero
fazer por D. João V como se um gigantes- frisar na aproximação de Saramago a Eça
co, tremendo ex-voto real a uma promessa de Queirós. Refiro-me a um aspecto
feita aos franciscanos para que sua consorte intertextual, em termos de estrutura e de
Maria Ana de Áustria concebesse-lhe um economia narrativa, que relaciona Histó-
herdeiro; segundo, o dirigível “Passarola”, ria do Cerco de Lisboa (1989) com A Ilus-
inventado pelo “Padre-Voador”, o frade tre Casa de Ramires, romance de Eça pu-
científico e heterodoxo brasileiro blicado postumamente, em 1900.
Bartolomeu Lourenço de Gusmão, dirigí- Nesse romance, cuja ascendência sobre
vel cuja existência é verdadeira, porém cujo a primeira obra do escritor brasileiro
* Cf: “Brasil: 1933: Serafim,
Caetés e Casas-Grande”, ori-
desempenho é ainda objeto de discussão Graciliano Ramos (Caetés, 1933) já assi-
ginalmente publicado na Revis- entre os estudiosos. Num memorável tre- nalei em outro ensaio (*), Eça desenvolve
ta de la Universidad Nacional
Autónoma de Mexico no 35 cho do romance, os amantes Baltasar e um duplo enredo. Por um lado, narra as
(fevereiro de 1984); reunido no Blimunda (cujo personagem, diga-se de aventuras de um fidalgo arruinado, que, em
livro mencionado na nota da
página 96. passagem, é inspirado na setecentista Mme. seu torrão ancestral, procura encontrar as

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formas de superação de sua triste existên- “Foi, de fato, com o romance histórico que
cia. Acossado pelos burgueses do local, aos se iniciou, pode dizer-se que do nada, a
quais deve dinheiros e favores, em sua tor- novelística portuguesa moderna, visto que
re desmilingüida Gonçalo Mendes Ramires se perdera inteiramente a tradição do ro-
escreve uma novela histórica sobre as ori- mance de cavalaria, do romance bucólico e
gens medievais de sua família, chamada, da novela sentimental e se afundara o valor
precisamente, “A Ilustre Casa de Ramires”. da ficção alegórica didática, apesar da fama
Por outro lado, a novela do personagem, do Feliz Independente”.
que capítulo após capítulo se entretece na
trama principal do romance de Eça, con- A postura crítica do grande escritor rea-
verte-se num livro dentro do livro, que goza lista português com relação ao romance
de autonomia e de respiração próprias. histórico, considerado como um gênero li-
Esta estrutura ágil, que num princípio terário fundacional e – se se me permite a
poderia parecer o jogo de um escritor ma- liberdade – terapêutico, encontramo-la tam-
duro que busca afirmar ante seus leitores bém em História do Cerco de Lisboa
cativos os seus sempre renovados dotes (1989). Para lá do fato de que, estrutural-
literários, revela o seu sentido mais pro- mente, ambos os romances correspondem-
fundo quando nos damos conta de que, atra- se um ao outro e que, nesse sentido, o leitor
vés do duplo desenvolvimento do enredo, possa identificar n’A Ilustre Casa de
o escritor faz a apreciação crítica do Ramires um antecessor bastante claro do
subgênero literário do romance histórico livro de Saramago no contexto português,
tradicional. Assim, mesmo que a ironia também a função da novela “História do
queirosiana exponha ao ridículo o linguajar Cerco de Lisboa”, que escreve o desencan-
forçado do romance histórico romântico tado revisor Raimundo Benvindo da Silva
(que dá o modelo da “novela” de Gonçalo dentro do romance homônimo de Saramago
Ramires), ao contrastá-lo com a linguagem é não menos terapêutica (ou auto-higiêni-
e a técnica literária que emprega Eça de ca, para dizê-lo em outros termos). Através
Queirós em seu romance tardo-realista e da escritura de “sua” novela, o personagem
do qual o relato de Gonçalinho é um vástago Raimundo afirma-se aos olhos de sua su-
secundário, será justamente através da es- periora hierárquica na editora na qual tra-
critura deste, ridicularizada pelo autor, que balhara por anos, cuja confiança perdera
o personagem recuperará sua dignidade e ao agregar um rotundo e visceral “não” a
juntará as forças para encontrar o seu lugar uma frase fundamental de uma terceira
na sociedade aburguesada e materialista de “História do Cerco de Lisboa”, escrita por
seu tempo. um pretensioso e convencional doutor-his-
Em poucas palavras, se por um momen- toriador ao princípio de seu hipotético tra-
to Eça descarta o modelo do romance histó- tado (sobre o arquiconhecido episódio de
rico à la século XIX, por outro reitera a 1147 no qual o apoio dado pelos cruzados
importância do exercício do imaginário his- garantiu a D. Afonso Henriques o controle
tórico, e a importância da escritura de inspi- do centro de Portugal a partir da conquista
ração histórica, como elementos de equilí- de Lisboa). A frase ao redor da qual cons-
brio tanto para os indivíduos como para as trói-se História do Cerco de Lisboa passa
sociedades. Assim, em seu semi-resgate do a rezar, depois da cômica e indevida intro-
romance histórico praticado nas décadas missão de Raimundo Benvindo da Silva,
românticas, já num período caracterizado que neuroticamente nega esta inegável (sob
pela vigência da estética “científica” rea- o ponto de vista da historiografia) verdade
lista-naturalista, Eça de Queirós parece adi- histórica: “os cruzados não auxiliaram os
antar-se em várias décadas a pareceres como portugueses a conquistar Lisboa”.
o dos críticos Oscar Lopes e António José A partir de sua ínfima e significativa
Saraiva em sua respeitabilíssima História rebelião, Raimundo ascende de revisor de
da Literatura Portuguesa: provas e de estilo a criador de linguagem;

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a partir do livre exercício de seu imaginário aqui, ao conceito bergmaniano de “tempo
histórico, acederá a uma nova realidade vivido”), para transformar a gesta coletiva
vivencial. O prêmio por sua visceral in- em “sua”, individual, imaginando-a e arran-
disposição contra as regras da verdade his- cando-a com fórceps ao buraco negro da
tórica – e do decoro historiográfico, para história “historiográfica” (com o perdão pela
não dizer contra as regras assentes de seu redundância).
ofício de revisor – será de ordem espiritual:
o amor maduro que estabelecerá com sua Nos parágrafos anteriores assinalei al-
ex-chefa, a Dra. Maria Sara, convertida agora gumas relações entre a obra de José
em sua leitora. Saramago e a tradição do romance históri-
Evidentemente, esta plongée dans co em Portugal. De Almeida Garrett pro-
l’imaginaire historique do personagem- vém o tom digressivo com que o escritor
autor, tão gratamente recompensada, recu- trata do problema da representação da ima-
pera, em termos próprios, a “verdade” da ginação histórica na prosa, e Alexandre
ficção histórica formulada por Herculano Herculano fornece-lhe alguns valores ideo-
na passagem antes citada. Por outro lado, e lógicos que Saramago maneja para enfren-
de forma análoga, se Eça de Queirós ridi- tar essa problemática. Em Eça de Queirós
cularizou n’A Ilustre Casa de Ramires a encontramos um antecessor de um esque-
linguagem do romance histórico, o alvo da ma formal e de uma postura de revisão crí-
irrisão saramaguiana em Histórica do Cer- tica da novelística histórica como subgênero
co de Lisboa é, mutatis mutandis, a lingua- literário.
gem vero – e logocêntrica da historiografia. Ao vincular-se de forma tão direta, e
Neste romance, Saramago parece indicar tão lhana, à tradição aqui enfocada,
que, para que os fatos sejam plenos, não Saramago ilustra um momento da incorpo-
podem limitar-se a ser apenas o que deles ração subjetiva, da incorporação vocal à
se sabe, ou se crê saber, que foram: eis aqui qual me referi no princípio deste ensaio.
a necessidade inescapável da ficção, não Finalmente, esta revitalização de um pas-
face a, porém como parte da história. A sado literário dentro do corpus de uma lite-
questão vai além do mero problema da in- ratura indica-nos a coesão orgânica da lite-
terpretação: aponta à percepção e à escolha ratura portuguesa e nos oferece a possibi-
baseada no afeto – posta em prática pelo que lidade de experimentarmos, liberados do
Goethe chamou Wahlverwandtschaften, tempo histórico devido à ficção, a para- (ou
“afinidades eletivas” –, pelo sujeito, de uma meta-) temporal reabilitação do tempo,
“história vivida” (refiro-me indiretamente, pedra angular de toda invenção artística.

104 REVISTA USP, São Paulo, n.40, p. 96-104, dezembro/fevereiro 1998-99

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