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Carla Viana Coscarelli Ana Elisa Ribeiro (Orgs.) LETRAMENTO DIGITAL ASPECTOS SOCIAIS E POSSIBILIDADES PEDAGOGICAS Belo Hes zonte Ceale* Gente de alorcaca tue excita Auténtica 5 20d Capitulol0 A COERENCIA NO HIPERTEXTO Luiz Anténio Marcuschi Ponto de partida: o problema Se, no hipertexto, como diz a vulgata, o que se tem é a au- séneia de um centro controlador a ponto de Johnson-Eilola (1994, p. 212) afirmar que “os hipertextos nao precisam clistinguir entre margens ¢ centro”, pOe-se com certo “pavor” a questo da conti- nuidade tépica, da centracao temiatica e da continuidade de sen- tido, isto é, da prépria nogio de coeréncia. Neste caso, indagar-se-ia de onde vem a orga lade necessiria ao texto € a sua perspectiva interpretativa. Uma das respostas, talvez a mais radical e esclarecedora, mas também a mais vulnerdvel, sugere que, no hipertexto, o centro da coeréncia passa para o navega- dor, pois é com ele que esti o monse. Essa idéia, que parece singular e¢ distintiva, atribuindo aos processos de produgao de sentido no hipertexto uma inova- ¢ao radical em relacio aos demais textos impressos (ou orais) na forma tradicional, nado parece to nova. E esta sera uma das teses centrais nesta andlise. Se tomarmos a coeréncia, na acep- cao aqui desenvolvida, como uma perspectiva interpretativa e nao como uma propriedade textual, nem algo imanente ao tex- to, a coeréncia sera sempre construida no processo de leitura. Assim, nao parece residir neste ponto a particularidade que caracteriza os hipertextos na sua relagdo com a coeréncia. 186 Letramente digital - Aspectos socials « possibilidades pedagogicns Em relacio 2 nogao de coeréncia adotada, deve ficar claro que nao se trata de dar o predominio ao leitor, nem de dizer que ele é 6 responsdvel direto e Unico pelo senti- do, mas que ele dirige os movimentos que conduzem A construgao do sentido, De moda especial, afirmo que a coeréncia nao é uma propriedade estrutural do texto. E uma operacio do individuo sobre o texto: é uma perspecti- va interpretativa situada. Mas dizer isso nao é afirmar algo especifico do hipertexto e, sim, algo que vale para todo e qualquer texto, Também nao significa dar ao leitor a prima- zia da produciio de sentido e, sim, afirmar a incompletude sistematica de todos os textos. Contudo, é possivel concordar com Gerd Fritz (1999, p. 221), em seu estude sobre a coeréncia no hipertexto, quando esclarece que o hipertexto nto parece um bom objeto para se investigar a coeréncia. Mas ele é um bom momento para dis- cutirmos em que consiste a coeréncia e o que é que o hiper- texto tem a nos ensinar sobre ela. Talvez seja um bom momento para se observar com maior precisao qual a no¢ao de lingua que melhor consegue dar conta do fendmeno. Pensar coe- réncia € pensar operagées cognitivas com a lingua e, nio, pensar estruturas textuais. Para abordar o tema, partimos de alguns aspectos da vida cotidiana e da dispersividade discursiva a que esta- mos submetidos, bem como a cada vez mais incontornavel presenca dos Mipertextos eletrdnicas no nosso dia-a-dia. Este ensaio € uma pequena tentativa de oferecer alguns pontos de apoio para pensar a coeréncia no bipertexto e esclarecer em que condicées a questac pode fazer sentide. Além dis- so, serve também para perceber que o hipertexto nao é um fendmeno do meio estritamente eletrénico ou exclusivida- de do mundo digital. Assim, toda vez que nos referimos a bipertexta entenda-se que, por razGes de brevidade, te- mos em mente ¢ bipertexto eletrémico, mas algo mais do que ele esta em jogo. Acoerénciano hipertexto — Luiz AnténicMarcuschi | 87 Dispersividade Discursiva Suponha que vocé, produto tipico de classe média urba- na, esteja confortavelmente sentada/o no seu sofa, assistin- do 4 tevé a cabo, numa daquelas assinaturas da SKY ou DIRECT-TV com mais de cem canais 4 disposicio de seu con- irole remoto, Ao simples toque nos botées desse controle, mudando de canal, vocé pode assistir a trinta filmes aos pe- dacinhos ¢ ainda ver um bocado de antincios publicitérios, desenhos animados e alguns videoclipes, degustar um chef cozinhando, presenciar animais excticos copulando, um Shop- time vendendo apetrechos eletrGnicos, um grupo portenho cantando, além de entrar numa missa ou num culto evengéli- co, ver um filme porné e até tentar entender as perguntas da Xuxa, da Adriane Galisteu, Monique Evans e outras divas silicoxigenadas. E se vocé esté com um jornal na mao, ou uma revista ou um livro, ainda vai misturando mais coisas com 0 amendoim que mastiga aguado com Coca-cola. Pois bem, essa situacio nao é inusitada, nao é incomum nem de- nota esquizofrenia ou loucura. E o cotidiano de muitas pes- soas. Eo verdadeiro mix discursivo deste inicio de século. A pergunta €: como lidam vocé, suas amigas € seus ami- gos com tanta informacio? Come conseguimos nés construir algum sentido para tudo isso © come concatenamos tantas impresses simultaneamente? Como distinguimos uma coisa da outra? Come separamos os textos ¢ sabemos 0 que perten- ce ao qué? Enfim, come construimos coeréncia em meio a este selva de textos em vertiginosa sucessdo? Nao creio que seja necessii ‘do tao complica- da Cembora comum) como a descrita para se ter uma idéia da dispersividade discursiva a que estamos regularmente sub- metidos no nosso cotidiano. Basta vocé estar sentada/o di- ante de um televisor uma situa a hara do telejornal e j4 sera bombardeada/o por um sem-ntimero de pequenos textos se- qienciados — noticias, reportagens, entrevistas, antincios pu- blicitarios - que se sucedem sem relacio imediata entre si 188 Lecramento digital - Aspectos seciais ¢ possibilidades pedagégicas quanto aos temas. Tudo é recebido em leituras nervosas de telejornalistas com olhares petrificados mirando felepromp- ters. Nao obstante isso, vocé sabe quando uma coisa come¢a e termina, sabe do que estio falando, o que es dizer, o que estAo querendo vender e até consegue imaginar © grau de plausibilidade. Distingue o que € noticia ou co- mentario do que é propaganda comercial ou politica. Conse- gue entender o que se passa. Fica com a confortavel sensagio de que aquilo faz sentido. A ordem em que as coisas apare- cem nao é muito importante. Na realidade, isso é assim por- que vocé é mentbro desse universo sociodiscursivo. Mas nao se iluda, pois vocé foi treinado/a para isso e grande parte das pessoas nao entende tio bem isso tudo. querendo Continuando com a mesma idéia de observar nossas ativi- dades no dia-a-dia, imaginemos uma caminhaca a pé pelo centro de uma cidade como o Recife. Andando por ela, podemos ir lendo, ouvindo € observando tudo o que nos vem pela frente a ponto de, em breve, nao sabermos mais se estamos diante de muitos textos ou se tudo aquilo forma um grande hipertex- posto ac longo de pracas, las, ruas, ruelas, muros, postes e becos. to multimididtico concretamente alamedas, aveni Se vocé entra na rua das Calgadas, uma rua bem popular no centro do Recife, o que vé n caminhada é mais ou menos o seguinte, em meio a uma multidao se acotovelando na rua estreita: de inicio, um outdoor com enormes fotos e uma logomarca; mais adiante, muitos anincios com algumas ao longo da rua, um aparelho de som depois do ou- tro, todos ligados promovendo os produtos da loja ou tocan- do misicas de letras ininteligiveis; mais em cima, um placar com anuincio publicitirio eletrénica na forma de video; adi- ante, uma banca cheia de jornais, revistas e panfletos cola- dos nas paredes externas. Na esquina, uma placa com dois nomes e alguns niimeros (ruas e casas); a0 longo das outras ruas, muitas placas, de todos os tamanhos e cores, com no- mes de lojas; pessoas indo e vindo, vendedores ambulantes com as mais diversas bugigangas, enfim, um bombardeio real Acoeréncia no hipertexto— Lutz Anténio Mareusehi 189 de intimeros textos ou talvez de uma perisagent textual, des- territorializada, tentacular, labirintica e. ainda assim, conca- tenada. Uma selva textual. Os mais afoitos diriam que se trata de “poluicao visual ¢ sonora”. Assim sao as ruas do comércio of popular, mas muito pior é a balburdia s tao aclimatizados shoppings. icada de mossos A questao é: forma isso tudo um hipertexto na vida didria ou sio muitos e pequenos textos sempre somadas e lidos indi- vidualmente? Quem monta as fronteiras entre eles? Ha ai mar- pens, ha ai centros? Na verdade, vocé nao. precisa entrar na Internet para defrontar com um hipertexto. O hipertexto ja se encontra no seu caminho didrio de casa para o trabalho, a escola, a igreja, o dentista e o mercado, clescle ha muito tempo. Tudo isso serve, pelo menos, para suscitar uma divida com respeito 4 idéia de que o texto é exemplarmente o que se encontra na pagina impressa. Se féssemos ver o qué, no dia-a-dia, chega 4s pessoas como escrita, teriamos, hoje, maior volume de escrita fora das paginas impressas do que em ou- tros suportes € ambientes. Veja-se o que o cidadao tem como escrita desde que acorda até deitar: tudo o que usamos esti mais ou menos nomeado por escrito e, sem querer, vemos ali, todos os dias, nomes cde sabonetes, escovas dentais, pies, leites, frutas, ruas, dnibus, bancos, lojas, andncios diversos, legendas nos filmes de tevé, muros com escrita, portas de banheiro com mensagens, qua- dro-negro na escola, marcas do mais diversos tipos nos mais diversos objetos e artefatos, moedas, paredes cheias de carta- zes de todos os formatos e com todo tipo de aviso € informa- cao. Nada disso esti na folha de papel impressa e algumas dessas cois S$ néo estario mais la numa segunda passagem, tendo em vista a sua fugacidacde, como as legendas do filme que vi agora 4 tarde ou a escrita do muro que foi repintado. Claro que ainda haveria o jornal, o livro, a revista e assim por diante, mas esses nao sio os mais manuseados pelos seis bi- lhdes de seres humanos que povoam o planeta Terra. 190. Letramento digital - Aspectos socials « possibilidades pedagdgicas A questao, formulada de maneira um tanto intuiti ria: Como & que as pessoas produzem sentido e coeréncia ao se defrontarem com esse labirinto textual? Entrando no nos- so tema: como se dd a coeréncia no bipertexto, sendo ele es- sencialmente ndo-linear? Premissas equivocadas Ha algumas premissas bastante aceitas, mas que podem ser questionadas, j4 que nao dao conta das situagdes descri- tas nem de todos os textos impressos e muito menos da ques- lio hipertextual. Basicamente, porque seguem uma visio formal e estrutural da lingua, sem sensibilidade para o uso em Ccontextos sociocognitivos relevantes. Nessas perspectivas, ainda hoje é comum definir-se 0 fexto como uma seqiléncia coesa e coerente de enunciados. Supde- se, Neste caso, uM autor que organiza os enunciados, selecio- na um tépico, distribui esse t6pico discursivamente e assim vai construinde seu texto, Central para uma tal visto de texto é a nogao de estrutura e organizacao centrada. Ao leitor cabe se- guir essa estrutura ¢ entender o que o autor disse. Para essas teorias, a coeréncia € uma propriedade textual que se da numa particular forma de seqdenciar os compo- nentes, organizar a informac4o € propiciar o acesso ao senti- do imanentemente sugerido. Busca-se um maximo de explicitude, investindo extensivamente em padr6es tanto gra- maticais quanto estilisticos, A lingua é vista como uma espé- cie de instrumento de conducao das idéias e o texto é tido como um recepticulo de informagdes objetivamente sedimen- tadas e passiveis de serem capturadas com precisdo. Embora essa seja uma visao tradicional e admitida larga- mente pelos livros cidaticos e postulada por todos os que defendem a nogao de autoria como intangivel, os lingtistas de texto ndo mais contemplam essa visio. Para a Lingilistica de texto, o texto é multinivel, multilinear e nao contém toda proposta de sentido por insuficiéncia de explicitude. A visio Acocrénciane hipertexto— Luiz Antinia Marcuschi 19] dada pelas teorias da linearizagao direta seria, neste case, uma espécie de ilusionismo semantico € cognitive, ja que o texto ndo é um artefato cognitive auténomo, Para a visdo tradicional, o hipertexto seria uma espécie de “ameaca" 4 idéia de estrutura textual estavel. Isso porque ele nao tem uma realidade fisica palpavel e s6 se mostra virtual- mente ou num formato de programa “invisivel” no seu con- junto. Ele seria tao volatil quanto o som. Esse aspecto é importante porque nos poe diante de uma situacio muito complexa para a andlise da realidade hipertextual. Mas o pro- blema maior nao estaria na volatilidade nem na virtualidade €, sim, na nio-linearidade, ndo-continuidade, ndo-centrali- dade e, de modo especial, na possibilidade de interferéncia do leiter-navegador. Contudo, isso é comum também na es- crita impressa, como, por exemplo, nas enciclopédias, nas obras de consulta e nos diciondrios, para ficar apenas em alguns textos, O hipertexto tem como diferencial o fato de tender a uma densidade maior nesse aspecto. De acordo com Johnson-Eilola (1994, p. 207), a menciona- da ameaca oferecida pelo hipertexto se daria em varios graus. Por exemplo, no caso dos hipertextos “exploratérios ” (como definidos por M. Joyce, 1995), o leitor preservaria o contetido Proposto pelo autor e apenas selecionaria trilhas, roteiros ou opcodes de leitura previstas imanentemente pelo autor do hi pertexto, Ja no caso de hipertextos “construtivos "(como defi- nidos por M. Joyce), a ameaga seria muito maior e a nagao de autoria comecaria a se evaporar. Nao sé haveria escolhas de caminhos pelos leitores-navegadores, mas também comple- mentag6es e adendos de novos contetidos. Também é comum ver-se defensores da escrita, tais como Walter Ong (1982), Jack Goody (1977), Erik Havelock (1982) € outros, afirmando a estabilidade textual, ou seja, para esses autores, o quite estd escrito no papel tem realidade, durabilida- de e fixidez. Isso em contraposi¢Ao ao que se observa no caso da oralidade, cujos textos seriam fugazes, instaveis e fluidos. 192 Letramanto digital - Aspectos socinis « possibifidades padagégicas O texto escrito, impresso no papel ¢ transmitido pelos livros, seria uma versio autorizada e autoritativa do seu autor, Ao leitor no caberiam interferéncias na producao daquele tex- to. Até mesmo quanto 4 ordem da leitura tudo estaria ali, posto pelo autor. Nao vamos contraditar frontalmente esses autores no que podem ter de preconceituoso ou falacioso em suas posic¢ées, mas digamos apenas que isso no é mais vali- do se consideramos tudo o que vem ocorrendo na drea da escrita e, em particular, se consideramos o que vem ocorren- do na relacao da fala com a escrita nos estudos mais recentes sobre o tema. Considerando, portanto, que o hipertexto se desenvolve no plano da nao-linearidade e da relagio nao-imediata nem da relevancia temética direta, mas por interconectores (links) cuja organizagio tem uma estrutura retorica imanente, como mostrou Burbules (1998), e tendo em vista que a coeréncia se da como uma relacio de relevancia, seja global ou local, pare- ce bastante improvavel coadunar as nogdes de hipertexto e coeréncia num mesmo nivel de observagio. E justamente a esse aspecto um tanto paradoxal que nos dedicaremos agora Em que o hipertexto difere do texto impresso? Uma observacio ébvia é a de que tanto os hipertextos quanto os textos impressos sio fexfos. Isso impede que se faca uma distingao nitida e definida entre textos e hipertextos em geral. E também possivel afirmar que certos textos im- pressos sio muitas vezes nao-lineares, assim como muitos hipertextas sdo absolutamente lineares. Nao é esse, pois, o caminho a seguir. Por outro lado, convém deixar de lado também as diferengas Sbvias entre o hipertexto e 0 texto impresso, tais como 0 fato de aquele ocupar o espaca do video e este se dar na folha de pa- pel: o fato de um ser virtual ¢ o outro, concreto; um poder ser acessado em tempo real, por uma multidac de individuos, si- multaneamente, € 0 outro ser de acesso limitado; um poder Acoeriinciano hipertexto — Lulz Anténia Marcuschi 193. relacionar © interconectar uma pluralidade quase jlimitada de textos € © outro sofrer de limitagdes fisicas. Deixando de lado esses aspectos, vejamos algumas diferencas importantes, Para esta andlise e todas as que tentam confrontar texto impresso ¢ hipertexto, seria bom ter presente que nao se deve colocar a questao numa visao dicotémica. Pois, como ja frisa- do, estamos diante de fevfose para que se possa falar de textos, algumas condicSes devem ocorrer, embora nao saibamos ao certo quais sejam elas, efetivamente, em termos de obrigatori- edade, jf que o texto, como se vera, é um evento comunicati- vo. Hoje temos, ao lado das edigdes ce jornais e revistas em Papel impresso, edigGes de jornais e revistas eletrGnicos no formato hipertextual. Seria interessante observar quais sao as diferencas entre ambos os formatos do mesmo jornal ou mes- ma rev . Mas certamente nao vamos ter uma oposi¢io dico- t6mica no que toca ao problema da textualidade como tal. Por isso, ndo se deve confundir o aspecto operacional do manu- selo com 0 aspecto epistemolégico e constitutive do texto. Quanto 4 sua organizacdo, o hipertexto nado tem um cen- tra, ou seja, ndo tem um vetor que o determine. Ele nao é uma unidade com contornos nitidos, como ja di um _feixe de possibilidades, uma semos. Ele é especie de leque de ligacdes possiveis, mas nao-aleatorias. Serve-Ihe de metdfora a nogao de esfrela, que nao forma um centro, mas varios vértices que se ligam a outros vertices. A auséncia de centro tira a possibi- lidade de limites e contornos definidos. Aquilo que num tex- to impresso pode ser tide como digresscio torna-se o modus faciendie o modus legendi do hipertexto. Metdforas comuns para designar essa falta de centro do hipertexta sao as nogdes de Jabirinto, rede, tentdculo, paisa- gem, tecido € outras nessa mesma linha. Paralelamente a isso, a leitura é denominada por metiforas do tipo navegagdo, nomadismo, caminbada, flanerie e até voyeurismo. Essas expressGes Sugerem sempre um aspecto saliente, ou seja, a falta da orclenacdo tradicional. 194 Letramente digital - Aspectos sock possibilidades pedagagicas Mas serao essas metiforas consistentes? Serio os caminhos hipertextuais to diversos a cada vez? Suponhamos que alguém entre no sitedo CNPq em busca de uma informacao, por exem- plo, o curriculo Lattes de um amigo. Sabe-se que o formulario hipertextual oferece uma série de trajetos a serem percorridos até a informacio. Pode-se apenas clicar num /imk ou entio digitar um nome em local apropriado ou identificar algum des- critor ou filtro e assim por diante. Mas, como em todos os ca- sos desse tipo, niio ha liberdade de seguir caminhos para chegar a alguma informacao. Se vocé busca 0 curriculo Lattes de um colega, seu caminho é o mesmo sempre € para todos. Se voce quer saber onde, num livro impresso, esté um dado conceito, pode ir ao indice remissiva e procurar als} pagina(s) indicadats) para a palavra. Vocé pode ler um livro comecando pela con- clusio ou pelo capitulo 5. Do capitulo 1, pode ir ao capitulo 4, © que nao significa que voce esta perdido. A coeréncia é um estado criativo que nao aumenta nem diminui se voce Jé da pagina 1 até a 225 ou pula capitulos seguinds outra ordem. Do ponto de vista da autoria, sempre se diz que o texto im- presso tem um autor determinadio e distinto do leitor quanto & producio fisica do texto, o que, no caso do hipertexto, poderia ser parcialmente esfumacado, j4 que numa das possibilidades tecnolégicas de construcac de hipertextos haveria condigdes de interferéncia fisica na composigio do texto. A co-autoria 6, de fato, fisica. Como diz Snyder (1998, p. 127), “o hipertexto esfu- maca as fronteiras entre escritores € leitores”. Mas isso é em funcio de um dado modo de programacao. E ainda continuam, nitidas as fronteiras entre aquele que lé e aquele que escreve ou, em dadas momentos, eles podem ser mesclados. Quanto a isso, a0 analisar a “pragmatica da leitura’, Bur- bules (1998, p. 103) indaga o que € de fato diferente numa leitura da pagina impressa em relagao a uma leitura hipertex- tual. Em primeiro lugar, nota o autor, a pagina impressa altamente seletiva (essa seletividade, no entanto, ja vem pre- determinada) na forma de leitura de notas, consulta a outros livros remetidos pela pagina, a identificacto de fontes € assim A cosréncia no hipertexte — Lulz Aanténio Mareuschi | 95 por diante. Muitas dessas co: ‘ s6 podem ser feitas saindo do livro. As vezes isso me obriga até a sair de casa e buscar um livre na biblioteca, compra-lo na livraria, etc, J4 0 com- putador permite que eu entre na Web, visite as bibliotecas virtuais e sobreponha a p4gina em leitura uma obra qual- quer ¢ até mesmo uma biblioteca inteira. Sao outras formas de caminhar, mas sempre se caminha trilhas em que o papel do leitor é similar. Em segundo lugar, pensa-se que a pagina impressa é ex- clusiva mandando ler “este ou este ou este...” texto e nda permitindo somé-los; ja o hipertexto seria mais inclusivo no sistema “e..¢..¢..¢..e" (v. Bursuies, p. 103), tendo em vista uma navegacio mais ampla e descentralizada. O fato de ser um texto inclusive daria am hipertexto seu carater mais saliente de dispersao radial, podendo criar uma ilusio centrifuga e desviar com fa idade para mi ites caminhos. Mas a propria nogao de “desvio de caminho” nio é muito significativa num caso desses. Pois resta saber se havia um caminho previa- mente tracado a ser percorrido. Pessoalmente, julgo que tan- to um quanto outro formato textual oferecem possibilidades inclusivas e exclusivas que dependem da estratégia do leitor. e nio da natureza do texto em si mesmo. Prosseguindo nessa andlise € retornando ao que abser- vou Burbules (1998, p. 106-109), pode-se dizer que: a) a forma de organizagio do hipertexto nao é hierdrquica e linear, no sentido em que a organizacao do texto impresso o é Para Burbules, o protétipa ca escrita impressa seria a nogaio de silogismo, ao passo que, para a construgio hiper- textual, seria o rizonia, isto é, um crescimento pelo enraiza- mento e pelas bifurcagées; b) a maneira de o hipertexto organizar a informacaio é 0 bricolage e a justaposic¢do numa perspectiva flexivel, ou seja, sem uma relagao de natureza Iégica ou outra que lhe parecga evidente ou imeciata. Em conseqiléncia, pode-se esperar tam- bém uma “fragmentagio do contetido”. 196 Letramento digieal = Aspectos socias ¢ pomibiidades pedagéleas Por fim, os /iks, que sempre sao tidos como interconee tores que guiam ce forma objetiva € direta a textos ou blocos informacionais novos, estio submetidos a uma complexa re- torica Cv. Bursutes 1998) de aco a ponto de ndo ser pos ivel sequer controlé-los, Nao sio propriamente os hinks enquan- to itens lexicais ou expressdes lingilisticas que fazem o traba- lho de conexio, mas @ propésitoe da busca ou da construgao do link, E este 6 também, de uma maneira geral, o nosso modo de ler textos, ji que ndo somos lineares e, por vezes, daclo conceito ou certa expressio nos leva ao diciondrio ou a consulta de um livro. Num livro impresso, muitos termos sao links potenciais, isto é, desencadeadores de associaches, lei- turas paralelas e assim por diante. Veja-se que dado elemento num hipertexto pode funcio- nar de varios mods enquanto orientagao conectiva. Os links geram expectativas diversas a depender de onde se situam. Eles so instrumentos interpretativos, e nao simples instru- mentos neutros ¢ ingénuos de relagdes constantes € estati- cas. Isso vai exigir uma discussio mais detida de alguns conceitos, tais como as nogées de Mingua, texto e coeréncia, implicadas na teoria que se constr6i, Nocao de lingua e coeréncia ja ela hiper- Para um tratamento da produgao textual, + textual ou nao, é importante ter uma nogao de lingua ade- quada, ja que é 0 meio pelo qual e como qual construimos o texto, Nesse caso, a lingua nao pode ser vista como simples instrumento nem como simples meio de representagho das idéias ou dos fatos. A lingua no é um espellio ou represen- istema de re- tacio da realidade ¢ muito menos um simples gras, tal como postulaco ma maioria das teorias formais. Uma nogio de lingua que possa dar conta dos processos de formulacdo textual na perspectiva textual-discursiva deve pre- ver que a lingua, mais do que representar ¢ trans nitir cone mentos e idéias, deve possibilitar a constituigio do pensamento Acoerénciano hipertexto — Luiz Anténio Mareuschi: 197 bjetivamente compreensivel caracteristicas bd para ser inters Assim, uma ck sicas da lingua deverd ser a interativicacde, que Bakhtin e outros traduzem no termo dialogicidade, pois lingua 86 existe numa relagio com 0 outro, como bem notou também Wittgenstein. A lingua deve ser sociohistoricamente constituida, ou seja, em contextos culturais, histéricos ¢ cogni- tivos relevantes para o entendimento. Com isso, ela passa a ser uma forma de ago Cuma “forma de vida” coletiva) ou um conjunto de praticas sociointerativas ¢ cognitivas, sempre situacs m suma: lingua é uma affeidade interativa e traba- iho sistemitico, No se nega a presenga do ma, Mas nao se toma o sistema como ponto de partida e chegada. Com base nessas propriedades, é possivel fazer frente as ~aracteristicas tanto do texto impresso quanto do hipertexto eletrénico, ji que ambos podem ser tidos como: emergentes; incompletos; maleay +deterministicos; multidimensio- nais; plurilineares; multifocais; interativos, Para 0 hipertexto nao-autocontide, temos um problema adicional, ji que a coe: lade de longo alcance e certos as- pectos envolvidos nas relagdes anaféricas ou projegdes cléiti nao podem ser tratados do mesmo modo que em textos impres- sos no formato de um livro ou de um artigo com v Isso diz. respeito, em espe: “as ias paginas, a decisGes que envolvem fatos de natureza estritamente morfossintatica e decisoes de orem prag- matica, semAntica ou cognitiva que nio tém o mesmo formato de realizacio dos textos comuns. Contudo, nao se pode deixar de admitir que um hipertexto nac-autocontide, na medida em que é uma possivel composicio de varios textos (cada qual, por sua vez, completo) é algo que nito oferece dificuldade, desde que o leitor saiba construir relagoes de sentido apropriadas. Veja-se a leitura de um jornal didrtio. Ele se parece com um hi- pertexto, E uma oferta de leituras sem ordem prévia. © jornal nao é um texto continuo. Posso ler as seqiéncias em qualquer ordem e pular partes ou péiginas e, ainda assim, saberei onde me encontro e consigo distinguir as noticias ou as reportagens, antincios publicititios e assim por diante. 198 Letramento digital - Aspectos socials ¢ possibilidades padagégicas Nocdo de texto para o hipertexto Retrospectivamente, com Beaugrande (1997, p. 60), pode- se dizer que as gramiticas de texto dos anos 1970 representa- ram um projeto de reconstrugao do texto como um * istema uniforme, estivel e abstrato”, na perspectiva da lingiistica oficial vigente. Tratava-se de uma tentativa de descortinar 0 sistema subjacente e gerador do texto como unidade auto- contida, cuja novidade essencial era a explicitagao dos prin- cipios da morfologia, da sintaxe € de uma seméntica formal que explicavam a conex3o na ultrapassagem do nivel da fra- se. Buscaya-se a legitimagio de um objeto especifico para a Lingiiistica de texto (LT), ou seja, era a identificacao do texto como objeto da lingtiistica, E ele se tornava uma espécie de unidade lingiiistica, 0 que nao parece muito adequado, se- gundo criticas de Reboul & Moeschler (1998, p. 21-28). O tex- to nao é uma unidade indivisivel como o fonema, nem uma wnidade emengente como o morfema, nem uma unidade for- mal-como a frase, No maximo, o texto é uma unidade de agdo ou uma unidade de sentido, Por isso mesmo, © texto, quando tomado como unidade, deve ser visto € analisado com categorias que vao além da forma, mas sem desprezar a forma, jé que o texto nao deixa de ser estruturado e realizado numa e com uma lingua, Trés décacas depois das grameticas de texto iniciais, as motivagoes da LT nao se acham mais na necessidade de uma Gramédtica Transfréstica, mas, sim, numa nova visdo do fun- cionamento da lingua e seu relacionamento com as praticas sociais. Baseados nisso, podemos chegar a uma nova defini- cao de texto. Para isso, sigo Beaugrande (1997, p. 10) que as- sim se expressa: “E essencial tomar o texto como um evento comunicativo no qual convergem agées lingilistic: eogniti- vas e sociais”, Essa posigdo exige uma explicagao a respeito da no¢ae de “evento”, a fim de nao se confundir produto e processo. Na realidade, o evento designa, em primeiro lugar, dois processos interligados: produgdo e compreensdo, Mas Acoerénciano hipertexto — Luiz Anténia Marcuschi 199 esses processos se manifestam em um artefato chamado tex- to que nao é apenas um Construto empirico e, sim, um evento cultural, social, cognitive e fingiiistico, Portanto, a expressao evento tem aqui o objetivo de designar o aspecto tipicamente dinamico do fenémeno texto e sua forma de atuagao A definigio dada por Beaugrande sugere que 0 texto nao. éuma simples sequéncia de palavras escritas ou falacas, mas um evento, na perspectiva em que acabamos de definir, Uma tal definicao envolve enorme riqueza de aspectos, podendo- se frisar as seguintes implicagGes diretas: 1. 9 texto é visto como um sistema de conexdes entre vdrios elementos, tais como: sons, palavras, enunciados, signifi- cacGes, participantes, contextos, discursos, acGes, etc. 2. o texto € construido numa orfentacado de muttt-sistemas, ou seja, envolve tanto aspectos lingiisticos quanto nao-lin- guisticos no seu processamento (no hipertexto isso é ain- da mais acentuado); 3. 0 texto € um evento interativo e vai além de um simples artefato, sendo também um processo numa co-produgaa (do ponto de vista do sentido na leitura, que, por vezes, leva a estruturas diversas): 4. 0 texto compde-se de elementos que sao multifiuncionais: um som pode ser um fonema, mas, também, uma entoa- 40; uma palavra pode ser um item lexical, mas um ata de fala. Em nossas agGes com a lingua, lidamos mais do que com um conjunto de regras, sejam elas de seqiienciacao ou outras quaisquer. Lidamos com um conjunto de sistemas ou sub- sistemas que permitem As pessoas interagir por escrito ou oralmente, olhendo e¢ especificando sentidos mediante aces com escolhas lingtiisticas. Baseados nessa breve ex- planacao e nogao de texto, podemos ver que o hipertexto nao traz grandes novidades nem dificuldades, pois esta per- feitamente enquadrado nessa perspectiva. 200 Letramente digital = Aspectos socials « possibilidades pedagégicas Nogao de coeréncia Até hoje, a nogio de coeréncia passou por tés fases. A primeira delas nfo distinguia entre coesio e coeréncla & pode ser muito bem-representada pela obra de Halliday & Hasan (1976), que tratam a coestio come fator de coeréncia € tomamt © texto como unidade semintica. Aqui, a coeréncia € vista como propriedade textual tem marcas na superficie. A segunda fase ja distingue entre coesio e coeréncia de mode bastante clara, estabelecendo uma divisao de tarefas desses dois aspectos, cabendo & coesio a ordenacia sinta- tica e A coeréncia, os aspectos seminticos e pragmdaticas. Representante tipico dessa fase € a obra de Beaugrande & Dressler (1981). Nessa segunda fase, j4 se percebe que a coeréncia é algo mais complexo do que um conjunto de marcas e nao se define pel pois a teoria do texto nao é mais uma gramdtica do texto, tal como a via Van Dijk (1972), situado na primeira fase. Hoje, Van Dijk postula uma visio muito diversa daquela ¢ encon- simples boa-formagao textual, tra-se na terceira fase. A terceira fase volta a nao distinguir, de modo rigido, coe- silo € coerén mas nao pelas mesmas razGes que na pri- meira fase. Agora, endossa-se a posi¢ admitida na segunda fase, de que a coeréncia nio é uma propriedade textual imanente, mas se dA mais Enfase ao Powto de vist e a ordenacio cognitiva do texto. Tem-se uma visao mais integra- tiva e holistica e menos fundada em unidades concatenadas como tal. A coeréncia € muito mais um ponto de vista e¢ uma operacao sobre o texto. Algo assim como uma operacao inter- pretativa, como lembrou Koch (1989) e, mais particularmente, em Koch (2002), Tem-se aqui uma guinada que pende, em boa medida, para posturas sociointerativas ¢ com respaldo no cognitivismo de natureza construtivista. Na primeira fase, havia uma nocio de lingua centrada no cédigo e predominio da funcao informacional da lingua. Acoorénciane hipertexto— Lulz Antonio Marcuschi 201 Tinha-se uma noclo mais estrita e talvez influenciada pelo ge- rativismo (v. Van Dux, 1972}, postulando-se a idéia de boa- formagio textual e buscando-se regras gerais para essa postulactiio. Hoje, ji nao se fala mais em gramitica de texty pois o texto é uma entidade lingiistica de natureza diferente da frase. O texto é visto como um processo-produto, e nao uma unidade lingilistica apenas. Assim, ha mais do que og elemen- tos constitutivos internos a serem observados. E importante ter claro que a nocao de evento, tal como postulada por Beau- grande (1997), tem mais a ver com algo dinamico do que com um produto com certo formato rigoroso e de carater empirico. A fase atual leva em conta uma nova nogao de lingua e nao se centra na nocdo de unidade, mas nas agGes. Pelo me- nos nado possui uma unidade especifica da qual parte. Sur- gem reflexGes mais insistentes sobre a multilinearidade e o aspecto cognilivo. Processos inferenciais e referenciais na progressdéo tOpica séo mais insistentemente tratados. Nao se da uma andlise notadamente logocéntrica, admite-se, na cons- tudo do texto, um processo de multi-semiose. A nogao de relevancia, por exemplo, € muito mais vista como construida por multiplas relagdes do que dada na ime- diatez, tal como sugere uma pragniitica estrita do tipo desen- volvido por Grice (1975). Em sintese, nao se pode confundir coeréncia com relagGes de relewancia imediata. Com base nis- so, pode-se defender que a nogao de coeréncia nao implica, necessariamente, a nocao de linearidade, pois todo texto obedece a uma construcao mul near, como observa Beau- grande (1997). E, nesse caso, a hipertextualidade nao traz problemas para 0 tratamento da coeréncia. Embora nao pareca uma relacao problematica, convém fri- sar da maneira mais explicita possivel que coeréncia ndo se confinde com compreensdo. Ha um limite entre ambas e esse limite tem fronteiras complexas, nao podendo ser determina- do de maneira estanque. O fato de um texto ser compreensi- vel pode ser tida como um indicio de que também seja 202 Letramenta digital - Aspectos sociais © possibilidades pedagégicas coerente, mas isso (a coeréncia) nado é uma decorréncia e, sim, uma condicao. E por isso que nao se pode igualar a nocao de compreensio com a nocio de coeréncia, pois a co- eréncia é uma condi¢do para que sé possa chegar 2 compre- ensiio, Ambas estao imbricadas em muitos niveis, mas nao em todos. Um texto coerente é aquele que di acesso e permite a produgao de sentidos, mas nico um sentido determinado e uni- co. O sentido a que eu chego é efetivado pela forma particular de meu acesso a ele (pistas eu considerei no texto), Assim, pode haver varias compreensdes de um texto, mas nio varias coerén- cias. Dizer que um texto é coerentee que permite edrias compre- ensdes é dizer duas coisas a respeito do funcionamento dos textos. Admito que essa posicio ainda nao € clara e pode ser motivo de debate, mas o certo é que a coeréncia ndo é uma propriedade do texto e, sim, um modo de funcionamento dele com base em operacdes mentais, Também nao € uma liberdade completa concedicda ao leitor, mas segue pistas bem-definidas, j4 que a coeréncia nao é um vale-tudo, Coeréncia é uma cons- tnucio cognitiva permitida pelo texto, nis nao esta no texto, assim como os fenémenos morfolégicos, fonoldgicos, lexicais, etc; € um modo de acesso, e nao uma propriedade formal. A coeréncia no hipertexto Ja foi observado que o hipertexto nao foi concebide para uma recepcdo completa, o que nio exige uma relacao com- pleta prévia e prevista entre todos os elementos ou nds infor- macionais que podem ser interconectados. De igual modo, mio € importante para a concepcdo de hipertexto que todos os seus usuarios sigam a mesma rota ou facam o mesmo cami- nho para que tenham rendimento cognitive satistatério, Mas isso ocorre também com qualquer texto impresso. E comum, por exemplo, que leiamos um capitulo de um livro e nada mais. Muitas sao as imagens cunhadas para descrever metaforica~ mente o$ processos de organizagao do hipertexto como nio- centrado, isto é, centrifugo, em vez de centripeto: muiltimodal A cosrincians hipertexto — Luiz AnténioMarcuschi 203. em vez de logocéntrico; descontinuo em ver de linear; aberto em vez de nucleado ¢ ordenado com margens enquadradas; fvtertextual de um modo mais radical do que os demais textos. Isso faz, segundo Bolter (1991) Capue Jousson-Enona, 1994, p. 212), com que se possa ver as margens do hipertexto como sua “vilvula de seguranga” “para prevenir o texto da desinte- gragao sob a forca de uma leitura desconstrutiva’, Nao se pode, no entanto, postular que o hipertexto seja constitutiva- mente ordenado por desvios e digressdes s6 porque Ihe fal- tam um centro ¢ uma ordenacdo formalmente acabada. Mas existem artificios formais nos hipertextos que operam como indicadores dessa ordenacdo centripeta, tai de orientac’o (itens, temas, produtos, categorias), por exem- plo, num shopping virtual que orienta o comprador virtiuala fim de que nao se perca e ndo perca seu tempo € sua pacién- cia. A Unica coisa que se pode dizer é que os “arranjos de poder tradicionais ¢ hierdrquicos” modificam-se na relacio escritor/leitor, no caso do hipertexto, a ponto de desaparecer a “identidade autoral intocdvel”, surgindo os movimentos de negociacdo e redistribuigdo desse poder (v. JoHNsoN-Enota, 1994, p. 213). O hipertexto oferece mais imprevisibilidades, come, por exemplo, quando, ao cicarum nome, entra-se nao numa esperada nota biografica do autor e, sim, na Mivraria virtual Amazon.com, em que estd o livro 4 venda. Mas esse é um problema de expectativa nao-cumpridas, € nfo de inco- eréncia. Retornar ao texto € o remédio. come OS MmEenUS Cabe-nos providenciar novas nodes para coes’io € coe- réncia a fim de abrigar também a producao hipertextual com suas inceterminagdes frente a expectativas, Contudo, pode- se indagar: Em que é mesmo que divergem a texto Unpresso eo Dipertexto no que respeita & coeréncia? O que se pode dizer de um que nao vale, em absoluto, para 0 outro? Posta desse modo, a questio é opressiva € nao conduz a grande coisa, mas é instigante, Permite procurar ou correr atras de divisdes que talvez se mostrem muita mais como gradacées do que dicotomias, Certamente, a sensacao da

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