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LOGOS

A sombra de uma estrela - Carla Civelli


Regina Glória Andrade*

RESUMO
Carla Civelli é uma das primeira cineastas do
Brasil. De origem italiana, foi repórter e cine-
S
“ ó raramente um psicanalista se
sente impelido a pesquisar o
tema da estética, mesmo quando
por estética se entende não simplesmen-
te a teoria da beleza, mas as teorias do
sempenhada por mulheres. Se, por um
lado, os filmes apresentam um cinema
único, especial e original, por outro,
apontam grandes dificuldades de pro-
dução, tornando-os raros, com pouco
grafista durante a II Guerra Mundial. Emigrou
para o Brasil em 1948, seguindo seu irmão, sentir.” público e distribuição ine­ficiente.
também cineasta, Mário Civelli. Trabalhou Sigmund Freud A primeira cineasta brasileira foi Cleo
como montadora de filmes e contra-regra. Em de Verberena que, em 1930, dirigiu O
1958, realizou seu único filme, intitulado É um O cinema de mulher tem ocupado Mistério do Dominó Negro. Para esse in-
caso de polícia, de humor fino e inteligente. o lugar de exceção na cinematografia vestimento, vendeu jóias e propriedades
Percebe-se a influência do realismo italiano mundial. As pesquisas associadas aos e produziu apenas este trabalho. Segue
na produção da autora. estudos feministas realizadas nas universi- Carmen Santos, atriz do filme Limite, de
Palavras-chave: Carla Civelli; cinema; mulher. dades americanas e européias buscam um Mário Peixoto. Em 1938, ela começou a
enfoque sócio-político para explicar esta fazer o filme Inconfidência Mineira, que só
SUMMARY
Carla Civelli is one of the first film-makers
atividade rara. Os pesquisadores têm-se veio às telas em 1948. Mas não resta dú-
in Brazil. Belonging to a Italian family, she voltado para a direção, roteiro e mise en vida de que o trabalho mais importante,
was a news-reporter and camera-ope­rator scène de filmes de mulheres, conside- nesse período, foi o da cineasta Gilda de
during the World War II. Coming to Brazil in rando essa produção como possuidora de Abreu: em 1946, dirige seu primeiro filme,
1948, following his brother , who was also a um imaginário próprio do feminino, com O Ébrio. Este filme, que aborda o tema
film-maker, Mario Civelli, she worked as film- características peculiares de linguagem do alcoolismo associado ao adultério e à
montage and stage-manager. In 1958, she cinematográfica. Entre esses estudos, são religião, surgiu num momento de cresci-
made her single movie entitled É um caso de significativos os trabalhos de Françoise mento do cinema brasileiro.
polícia which was considered a humor-intelli- Audé, sobre a condição de modelo do Sobre Carla Civelli, as referências nos
gent mobile. It is seen the Italian realism style cinema de mulher, e os de Laura Mulvey, arquivos públicos de cinema do Museu
in her production.
que interpretam, a partir do referencial de Arte Moderna do Rio de Janeiro são
Keywords: Carla Civelli; motion-picture;
woman da psicanálise, o papel da imagem da poucas. Seu único filme, É um caso de
mulher. polícia, realizado em 1959, com roteiro
RESUMEN A pesquisa de filmes de mulheres é e argumento de Dias Gomes, tem uma
Carla Civelli es una de las primeras cineastas um campo privilegiado para a memória cópia na Cinemateca de São Paulo e,
de Brasil. De origen italiano, fue reportera y do pensamento feminino. Os poucos recentemente, o MAM recuperou a única
cinematografista durante la II Guerra Mundial. filmes brasileiros feitos por mulheres cópia existente nos arquivos da cineasta.
Emigró a Brasil en 1948, seguiendo su herma- revelam questões latentes da sociedade Este filme reveste-se de importância, pois,
no, también cineasta, Mario Civelli. Trabajó brasileira, que o movimento feminino somente em 1974, a cinematografia femi-
como montadora de películas y asistente de dos anos 70/80 vai retomar de maneira nina terá outro título: O Nome da Rosa, de
filmación. En 1958, hizo su única película,
manifesta. Vanja Orico.
titulada É um caso de polícia, de humor fino e
inteligente. Se advierte el influjo del realismo
Este artigo é resultado de uma pes- A escassez de informações sobre
italiano en la obra de la autora. quisa sobre o cinema de mulher no Bra- Carla reflete-se na falta de ilustrações. Seu
Palabras-llave: Carla Civelli; cine; mujer. sil. Foram investigados filmes de longa irmão Mário Civelli, em depoimento pres-
metragem feitos por cineastas mulheres tado, relatou que existia somente uma
entre 1946 e1974, entre elas Gilda de fotografia de Carla, na qual a cineasta apa-
Abreu, Carla Civelli e Maria Basaglia. rece com seus familiares. Um baú cheio de
Algumas especificidades ocorrem documentos e de fotografias, confiado à
com este tipo de atividade quando de- filha de Carla, desapareceu quando esta
se separou do marido. Perdeu-se, assim,
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a história de uma família que faz parte integraram o Grande Conselho de Milão. Por ocasião da chegada de Carla ao
da história do cinema de São Paulo e do Porém, quando se evidenciou o papel de Brasil, Mário havia assumido a direção
Rio de Janeiro. guarda pretoriana das Forças Armadas das filmagens de Dino de Laurentis e
Uma característica comum das di- e se aboliu a liberdade de imprensa, o aproveitou a oportunidade para contratar
retoras mulheres européias, e também General Civelli, revoltado, demitiu-se do a irmã. Quando foi para o interior de São
presente entre as cineastas brasileiras, é o Conselho e, em exílio voluntário, veio a Paulo, deixou para ela a responsabilidade
processo de ascensão dentro do cinema: falecer três anos depois. pelo trabalho.
primeiro é necessário tornar-se atriz para Nesse conturbado período italiano, os Na mesma época, veio para São Paulo
depois dirigir um filme. Carla Civelli come- irmãos Civelli atuaram junto às tropas alia- a companhia Piccolo Teatro di Milano,
çou como montadora e continuísta. das na 5ª Armada Americana. Ingressaram dirigida por Ruggero Jacobbi. Carla e
no Psychology-Work Departement, no Ruggero se apaixonaram e se casaram
A influência italiana no Brasil setor de filmagens de eventos da guerra. um ano depois.
Carla Civelli nasceu em 2 de fevereiro O diretor da seção era o cienasta Marcello Carla era uma mulher prática e resol-
de 1920, em Milão, Itália. É irmã de Mário Pagliero, ator principal de Roma Cidade via todos os assuntos de Rugge­ro. Ele,
Civelli, nascido em Roma em 1922: ele Aberta, famoso por sua participação porém, estava sempre ligado a outras
imigrou para o Brasil, vindo a ter um papel não só neste, mas em vários outros filmes mulheres. Este era um ponto de conflito
de destaque no cinema em São Paulo. Por italianos de fins da década de trinta. Mário constante entre os dois. Para não fugir
volta de 1936, Mário Civelli abandona os foi assistente de produção e Carla, assis- à regra dos pioneiros, ele não rejeitava
estudos e participa de algumas filmagens tente de montagem e continuísta. trabalho. Sempre dedicado ao teatro,
em Roma, provocando um escândalo Carla e Mário envolveram-se nos emprestou o seu know-how ao cinema.
para a tradicional família burguesa. Por horrores da guerra. Percorreram campos Chegou a realizar alguns filmes para a
interferência do avô, recebe permissão de batalha e hospitais, com tarefa que se Vera Cruz com a ajuda de Carla. Quando
para trabalhar em cinema. resumiu a de meros correspondentes de se separou de Carla, mudou-se para Por-
Carla, muito unida ao irmão mais moço, guerra do que propriamente de cineastas. to Alegre para ser professor de teatro e
aproveitou a autorização do avô e entrou Filmaram cadáveres empilhados, verda- depois retornou à Itália.
para o cinema também. Formou-se no deiros depósitos de horrores. Mário relata A característica principal de Carla
Sacre-Coeur de Roma, tradicional colégio que eles ficaram horas a fio esperando Civelli era a discrição. Viveu em São Paulo
religioso. Estudou música e harpa, chegando que ratos comessem cadáveres para faze- no anonimato. A partir da relação com
a ser con­certista, com cerca de dezoito anos rem as filmagens documentais da guerra. Ruggero, passou a atuar em teatro: fazia
de idade. As­sim como o irmão, sem­pre foi Os lugares eram fétidos, escuros, sem ilu- roteiros, escrevia peças, controlava a di-
irrequieta, indócil, buscando uma vi­da minação natural, de difícil acesso. Termi- reção; era uma espécie de assistente de
autônoma e independente da família. nada a guerra, Carla continuou em Roma, teatro. No início dos anos cinqüenta, foi
Conforme depoimento do irmão de com Marcello Pagliero e Mário Serandei assistente de marcação com as atrizes de
Carla, o avô, um patriarca italiano do - com quem iniciou a arte da montagem teatro Cacilda Becker e Dercy Gonçalves.
princípio do século, autorizou os netos - , realizando rotinas pouco motivadoras. Também preparou adaptações, ilumina-
a fazerem um “vôo” para a vanguarda Nessa ocasião, Mário Civelli foi convidado ções e cenários para televisão.
mundial. Um fato que pesou nessa para ser assistente de direção de Dino de Da experiência com a televisão, Carla
decisão foi a ida dos irmãos Civelli para Laurentis, em filme que seria produzido recebeu proposta de morar no Rio de
trabalhar com o famoso Mario Seran- no Brasil. Aceitou o convite e se mudou Janeiro, onde conheceu seu segundo ma-
dei, conhecido pelo para São Paulo por rido, Giussepe Baldacco­ni. Com o apoio
apelido de “Padre”, volta de 1946. dele, resolveu fazer seu primeiro e único
por andar sempre Os irmãos con- filme: É um caso de polícia. Baldacconi foi
de terno preto. En-
Uma característica comum tinuaram se cor­res­ responsável pela produção e montagem
quanto Mário traba- entre as diretoras mulheres pondendo. Numa do filme. Para escrever o roteiro, Carla
lhava em filmagens, européias, também presente dessas cartas, Carla convidou Dias Gomes.
cuidando da foto- entre as cineastas brasileiras, é o perguntou a Mário Nessa ocasião, Carla era técnica de
grafia, inclusive em processo de ascensão dentro do porque não a con- dublagens. Foi nesse período, também,
filmes de Vis­conti, vidava para morar que consolidou a relação com Baldac-
Carla atuava nos es- cinema: primeiro é necessário no Brasil. Mário fi- coni. Passaram a morar juntos, mas não
túdios como mon­ tornar-se atriz para depois dirigir cou feliz com o de- se casaram.
tadora, em filmes sejo da irmã e, em Carla adaptou-se bem ao Brasil, pois,
dessa significativa 1947, Carla chegou além de não voltar mais para a Itália, falava
fase do cinema ita- em São Paulo. português e não gostava de conversar em
liano. Apesar de Carla ter trabalhado como italiano como Mário. No final de 1979, ela
Às vésperas da guerra, a Itália se dila- montadora de filmes italianos durante foi hospitalizada no Rio de Janeiro em esta-
cerava em meio os movimentos fascistas. a década de 1930, consulta feita à do grave, com leucemia, vindo a falecer.
O pai de Carla e Mário, General Civelli, Cinemateca de Roma mostrou que seu
fazia parte do grupo de conservadores nome não constava nos registros. O filme de Carla Civelli
que apoiavam o Partido Nacional Fascista, É um caso de polícia foi o único fil-
e chegou a ser um dos dez nomes que Vivências no Brasil me dirigido por Carla Civelli. Este fato
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é comum no cinema de mulheres. Em cenas cômicas, outras insólitas, outras observado por intermédio do relato
pesquisa realizada na Europa, em nível apresentam lugares comuns. Ao redor verbal dos pacientes, o inconsciente
de pós-doutorado, investiguei a história da personagem principal, articulam-se é descrito por Freud como um sistema
do cinema de mulher e verifiquei que inú- as cenas. Perseguições, pessoas presas em que “as palavras se encontram
meras mulheres fizeram apenas um filme e policiais em busca de solução de um num complicado processo asso­ciativo
durante toda a vida. (Andrade, 1992) São crime imaginário. no qual se reúnem elementos de origem
poucas as referências ao filme de Carla Durante muito tempo o cinema visual, acústica e cenes­tésica”. (Freud,
Civelli. Em As Musas da Matinê, Elice Mu- insistiu em repro- [1915], p.243) Dessa
nerato e Maria Helena Dercy de Oliveira duzir cenas fixas. A forma, faz parte do
fazem referência ao filme de Carla Civelli, cineasta que prece- inconsciente uma
que tinha a sinopse que se segue. de Carla Civelli, Gil- Por vezes, tem-se a impressão sucessão de inscri-
“Belinha (Glauce Rocha) é uma jo- da de Abreu, apesar de que a diretora tinha como ções e signos que
vem aficionada por crimes. Durante um de todo o sucesso meta principal a captação de se formam em dois
almoço num restaurante da Zona Sul de O Ébrio, optou
carioca tem sua atenção despertada pela por esse modelo de
imagens reais. Mas, essa aproxi- sentidos: o laten-
te e o manifesto.
conversa de dois desconhecidos. Ambos cenas fixas, quase mação exagerada da realidade Correspondem aos
discutem sobre a melhor maneira de fotográficas, tal é a também transfigura, afasta e conteúdos latentes
matar uma mulher, de nome Suzana. Com ausência de movi- provoca imagens distorcidas. os conflitos defen-
o intuito de segui-los, Belinha inventa mento de câmera. sivos, idéias recal-
vários pretextos para livrar-se da presença Essa forma de filmar cadas, pulsões e
do noivo Godofredo (Sebastião Vasconce- foi inspirada nos desejos. Este ma-
los). Quando os dois desconhecidos saem filmes pioneiros que, já nas décadas de terial está sob a garantia de forças que
do restaurante, ela os segue no carro de 1940 e 1950, não faziam mais sucesso em atuam sobre ele. Ao retorno deste ma-
Godofredo para descobrir aonde vão. De Holly­wood. Com o avanço da tecno­logia terial contido pela repressão, Freud deu
volta à casa, convence o noivo a fingir que e da imaginação dos cineastas, a imagem o nome de conteúdo manifesto.
é um dos homens que havia seguido para, cinematográfica adquiriu um movimento Os atos do cotidiano, portanto, são
por telefone, demover o outro da idéia próximo da realidade. As câmeras ad- todos provenientes desse jogo de libera-
de matar Suzana. Godofredo acredita quiriram uma condição quase biológica, ções e de equilíbrio dos recal­ques. Entre
finalmente na história de Belinha mas identificada ao olho humano, que capta todos os atos psíquicos, aqueles consi-
tenta dissuadi-la da idéia de impedir o imagens super­postas e ágeis ao mesmo derados como artísticos são os que mais
crime. Mas, Belinha, por conta própria, tempo. Além desse movimento natural, inquietam os psicanalistas, desde Freud.
resolve visitar um dos desconhecidos. Ao a câmera ousou ir além das possibilida- Nas bases da constituição do sujeito estão
chegar ela é confundida com outra moça. des do olhar, inovando a transparência os elementos de origem visual. O olhar é
Quando esta outra moça chega, Belinha e até mes­­­mo a simultaneidade. Um fato considerado, nos estudos psicanalíticos,
descobre que seu nome é Suzana e relata importante nesse desenvolvimento foi a sobretudo pelo teórico francês Jacques
o plano que visa assassiná-la. Godofredo construção de personagens. Ganhando Lacan, em sua função escópica, dando
sai atrás da noiva, e Vilma (Mara Di Carlo), forma e conteúdo, proliferaram a expres- origem a uma das quatro pulsões do
irmã de Belinha, preocupada com os são subjetiva, o comportamento emocio- inconsciente. Todas as pulsões estão re-
acontecimentos, chama a polícia. Esta in- nal e a problemática psicológica. Este fato ferenciadas ao campo do Outro, conceito
vade a ca­sa e leva todos para a delegacia, aproximou os personagens do público, inovador que fundamenta as relações
onde se esclarece o episódio. Luiz, além tornando-os semelhantes às pessoas do familiares (vivência edípica) estrutu­rantes
de ser um grande escritor, estivera apenas mundo cotidiano. do sujeito, bem como articula a diferença
discutindo com um amigo um capítulo de Assim, a imagem evoluiu da con- sexual, o gozo, e propicia a dialética inter-
sua novela de rádio.” (Munerato & Der­cy dição puramente intencional para subjetiva, na qual o contexto sócio-cultu-
de Oliveira, 1982, p.25 ) alcançar um valor próprio, pelo perfil psi- ral é valorizado, favorecendo a extensão
cológico de seus personagens. A verdade dos conceitos psicanalíticos.
Memória feminina cinematográfica passa a oferecer, então, O filme de Carla Civelli tenta se
O filme faz uma apologia do imagi- a condição de ficção palpável através aproximar de cenas da realidade. A
nário feminino, já que, além de a perso- da imaginação e da identificação. Sua narrativa provém de dados imaginá-
nagem principal ser uma mulher, há uma condição abstrata, absoluta e tirânica é rios que devem ser comprovados no
exaltação de traços próprios da persona- modificada e elaborada. Esse ponto de decorrer da estória. O que fica claro
lidade feminina, como a curiosidade, a deslocamento abre espaço para conceitos no filme é o rompimento de ilusão. A
investigação, a fantasia e a imaginação, no da psicanálise, tais como o imaginário, o objetividade da câmera interfere sobre
sentido subjetivo do pensamento. Não há sonho; ou procedimentos técnicos, como os fatos imaginários e modifica a rea-
registro, em artigos da imprensa da épo- a interpretação, que passam a integrar o lidade. Por vezes, tem-se a impressão
ca, desse filme de Carla e só recentemente estudo do cinema. de que a diretora tinha como meta
o Museu de Arte Moderna do Rio de Ja- Nos estudos do inconsciente e na principal a captação de imagens reais.
neiro recuperou a única cópia existente natureza da subjetividade do homem Mas, essa aproximação exagerada da
nos arquivos da cine­mateca. A trama de está o reforço mais palpável para realidade também a transfigura, afasta
É um caso de polícia é desenvolvida com as fundamentações teóricas sobre e provoca imagens distorcidas. A con-
a arte. Provindo do trabalho clínico seqüência é que o filme não consegue
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se aproximar do documentário devido ginária da transmissão, já que só por isso Nesse espaço, a personagem cinema-
aos elementos imaginários jogados na se suportará intérprete”. (1985, p.144 ). Por tográfica vive. Esse fascínio reproduz a
trama e ao próprio movimento que o esse processo de identificação, tem-se a vida, em cuja sensação de irrealidade e
cinema oferece. ilusão de acesso ao imaginário do autor de morte o cinema se funda. Impressa na
É essa impossibilidade de objetivida- onde se localizam os símbolos. fita de celulóide estão as paixões. Essas
de da câmera na apreensão da realidade Nas pesquisas sobre a narrativa lite- sensações se refletem no fato de que, no
que a simulação dos fatos apresenta. rária de Barthes, Greimas e Todorov, fica cinema, a personagem é encarnada na
Essa condição favorece a criação de um evidente a referência à ação e ao desejo pessoa do ator. Seu registro é feito pelas
mundo fictício, um verdadeiro simulacro dos personagens como um fio condutor imagens que captam a voz, os gestos, as
da realidade. Nesse sentido, Baudrillard do texto. Na ficção literária, a personagem expressões e o corpo do ator, daí as restri-
(1981) argumenta que há uma impos- é construída por símbolos, por signos ções às dublagens. Seu papel - aquilo que
sibilidade de se encontrar o absoluto lingüísticos e, sobretudo, por palavras, ele representa - pode ser determinado
porque a cena da ilusão e a cena da nunca por imagens, que são a condição pelo diretor, mas sua pessoa, o que passa
realidade se confundem. Ao criticar do cinema. A apreensão das personagens para a tela, a expressão de seu carisma, já
a sociedade de nosso tempo, o autor está predeterminada. Um fator decisivo
detecta um comportamento histérico nesse encontro é que a personagem
em busca da produção e da reprodução expressa pelo ator revela um artista, um
da realidade Assim, em toda parte, o hi- O efeito do cinema não é ape- outro com espaço próprio, o que explica
perrealismo da simulação se traduz pela nas identificatório, mas é também a preferência de alguns diretores pela
alucinante semelhança com o próprio provocador de uma certa alie- exclusividade de certos atores. A per-
real, o que anula o charme e a energia sonagem expressa pelo ator é captada
das representações. nação, a partir da qual o sujeito, pela câmera, onde as interferências das
Porém, o que oferece um caráter úni- isolado de si mesmo, é capturado experiências de ambos vão favorecer um
co e sincrônico ao filme é a capacidade da pela imagem. Este fenômeno processo de interna­lização das imagens
diretora de reproduzir imagens impressas provoca uma sutura, uma pseudo- pessoais do ator. Todo esse movimento se
em sua subjetividade. A reprodução no encontra sob as condições do tempo em
filme tem valor de transcrição, operada que a personagem é criada e do tempo
pela câmera a partir da transmissão das em que é filmada.
cadeias significantes do artista e suas con- da literatura e o ritmo de leitura são dados Pode-se dizer que a inquietação de
dições nas cadeias do real, do simbólico pelo leitor, ao passo que, no cinema, o Belinha, personagem de É um caso de
e do imaginário. movimento, as cores e a música oferecem polícia, frente às injunções do mundo
cenários provocantes e fortes aos proces- moderno, é ingênua. Dificilmente, hoje,
Neo-realismo e existencialismo sos de identificação. alguém concentraria sua atenção sobre a
Pode-se dizer que a história de É um Ultimamente, com a invasão do suspeita de um assassinato, que escutasse
caso de polícia gira em torno de uma per- videocassete nos lares, essa observação em uma conversa de bar. Ao contrário:
sonagem. Sua atuação é tão mobilizante ganha uma relatividade no que se refere as complicações com a polícia, a perda
que o espectador, ao sair do filme, grava ao tempo do próprio espectador. Dentro de tempo nesse mundo agitado desen­
o conflito e o drama de uma mulher que de sua casa pode-se dimensionar o ritmo corajariam qualquer ação neste sentido.
quer evitar um assassinato. Por outro lado, desejado para a apreensão de um filme. O objetivo da trama é levar o espectador
cenas hilárias provocam uma sensação Sem maiores investigações, ouso dizer a ter maior carga de tensão possível sem,
de bem estar, de humor e de leveza. Por que se duplica o processo de identificação no entanto, atingir o clímax, como no
causa desses traços, pode-se dizer que o com as personagens de um filme. Mane- filme Janela Indiscreta de Hitchcock.
filme é inteligente. jado ao nosso gosto, com possibilidade Também é bem provável que a expe-
No caso do cinema, a passividade de paradas, de retrocesso e de remane- riência teatral de Carla no Brasil no início
especular e a sugestionabilidade onírica jamentos, o filme passa a ser um produto da década de 1950 tenha determinado
facilitam a simbiose entre o espectador fácil de ser consumido. Não fosse assim, uma linguagem menos romântica e mais
e as personagens do filme. A partir de não se multiplicariam os investimentos existencialista. Seguramente, as influên-
enigmas, somos seduzidos ou rejeitamos em videocassetes nos últimos anos. cias de época, o desejo de se diferenciar
as personagens em busca de respostas O efeito do cinema não é apenas iden- das chanchadas igualmente contribuíram
às perguntas que surgem no decorrer tificatório, mas é também provocador de para a criação de uma personagem mais
da trama. São colocadas questões como uma certa alienação, a partir da qual o prática do que sonhadora, mais realista
quem sou eu, o que me propõem, de que sujeito, isolado de si mesmo, é capturado do que romântica. A personalidade de
forma me seduzem esses personagens. pela imagem. Este fenômeno provoca Carla Civelli, prática, objetiva e pouco
Quando lemos um livro ou vemos um uma sutura, uma pseudo-identificação, sonhadora, atuando como uma projeção,
filme, há um processo imperceptível de incidindo no olhar uma dialética entre foi decisiva para a construção da perso-
captura do leitor e do espectador, res- a precipitação e o instante de ver. Nesse nagem Belinha.
pectivamente. Mendonça argumenta que instante, entre uma ação e outra, ocorre O movimento neo-realista iniciou-se
“o leitor se identificará imaginariamente o fascínio. Essa paralisação artificial, ao em 1945 na Itália, provindo da literatura.
com a estória narrada, não se dando conta suspender o gesto, tem uma função anti- Enquanto o ideal do realismo era o de
de que é um veículo de apropriação ima- vida, lugar da morte, que é recuperada capturar os fenômenos da experiência o
pela separação que a imagem provoca. mais objetivamente possível, o neo-rea-
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lismo apostava na vivência. Em ambos en- uma situação social tão mobilizante que intimidade de robe ou de pijama, cabelos
contram-se várias tendências, tais como, os homens se sintam envolvidos. presos e sem se envolver com o problema
a crença no senso comum (realismo ingê- Foi por volta de 1943 que Carla viveu as da irmã. No final do filme, quando todos
nuo) e a captação da realidade como uma primeiras experiências de cinema. A maio- estão na delegacia para esclarecer os mal-
máquina fotográfica. Estas tendências se ria delas estava voltada para a retratação entendidos, Vilma comparece.
difundiram no movimento do cinema. da realidade nua e crua. O realismo segura- Carla Civelli tenta uma persona-
Os neo-realistas expressavam um cons- mente foi uma influência marcante, quando gem com características atuais. É uma
tante desejo de participar da realidade, passava horas a fio esperando uma boa cena, mulher esperta, curiosa, independente,
mesmo que fosse apenas retratando-a. aquelas que mais chocariam o mundo, mos- tanto que procura sozinha resolver o
Documentos, reportagens e testemunhos trando os horrores da guerra. Pode-se dizer enigma que a intrigou. Mas, não de-
autobiográficos fidedignos contavam a que foram esses comportamentos e exigências senvolve em nenhum momento uma
vida de um povo, tentando captar sua do cinema docu­mentário que favoreceram personagem sedutora. Seu noivo está
maneira de pensar e de agir. a linguagem neo-realista que se observa no preocupado em dissuadi-la do papel de
Porém, a tendência mais marcante trabalho da cineasta. detetive. Para se contrapor a ela, cria Su-
dessa travessia entre os anos 40 e 50 foi, Muito significativa também é a perso- zana (Gloria Ladari), uma secretária viúva
sem dúvida, o existencialismo. Represen- nagem feminina secundária, Vilma (Maria extremamente tímida e medrosa.
tada pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre, Di Carlo). Representando o papel da irmã No cinema de Gilda de Abreu, o traba-
essa corrente, de origem no pensamento de Belinha, ela trabalha a semana inteira e, lho para as mulheres funcionava como um
alemão, vai ressurgir com todo o seu por isso, aparece sempre dormindo. Nada é período em que suas vidas não estavam
vigor após a 2ª Guerra Mundial, influindo dito ou mesmo induzido sobre o trabalho protegidas por um homem. Outro tipo
na arte e no cinema. Segundo Sartre, a de Vilma. Sem nenhum charme, aparece na muito comum de posição feminina durante
condição humana não dependeria da
natureza, mas sim da situação histórica.
O homem seria condenado a decidir os
rumos de sua vida. A existência de um
homem ganharia sentido na medida
em que ele levasse em conta os outros
homens e agisse para a construção de
um mundo melhor.
Paralelamente, o existencialismo pro-
curava desvendar o mundo interior do ser
humano, a angústia, a solidão, o senti-
mento de revolta. As relações formais e
institucionais, como o casamento ou o
trabalho fixo e garantido, eram um de-
safio para o pensamento do momento,
representado sobretudo por intelectuais
e artistas.
Nas décadas de 1940 e de 1950 havia a
idéia prevalecente de que a realização pesso-
al da mulher estava condicionada ao sucesso
no casamento, à perfeição na maternidade
e sobretudo ao atrelamento da mulher ao
projeto do homem. Preconceitos contra a
sexualidade fora do casamento eram refor-
çados pelo apego à virgindade. Os métodos
contra­ceptivos clássicos não facilitavam uma
vida sexual livre.
Esse ideário vigente apenas favorecia a
submissão das mulheres e o poder sobera-
no dos homens. Sem que houvesse maio-
res reivindicações, as mulheres conviviam
passivamente com todas essas limitações,
fortalecendo as posições machistas de
seus companheiros. O que surpreende no
filme de Carla Civelli é que, apesar de ser
uma mulher dessa época, influenciada por
todas as opressões, a personagem Belinha
é capaz de ver atendidos os seus desejos.
Pode ser que a questão levantada por ela,
tal como um provável crime, provoque
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essas décadas era a situação das viúvas.


Preenchendo o imaginário masculino de
fantasias de desproteção e de desamparo,
a viúva representava o papel da mulher
mais dependente. Um dia haviam tido o
amparo de um marido que as deixou em
conseqüência da morte e não por causa
de problemas emocionais das próprias mu-
lheres, uma fantasia comum dos homens
de décadas passadas acerca das mulheres
separadas, abandonadas ou divorciadas.
Quanto aos homens, no filme de Carla
Civelli, tem-se Godofredo (Sebastião Vas-
concelos), noivo de Belinha, que é solidário
aos problemas enfrentados por ela. Os
outros são personagens secundários, que Bibliografia
conduzem as situações com tranqüilidade. ANDRADE, Regina. A cena iluminada (psicanálise
Na verdade, seus papéis são comuns e com e cinema). Tese de doutorado. Rio de Janeiro:
pouco destaque. Escola de Comunicação/UFRJ, 1988.
_____. O cinema de mulher na Europa (1895-
Pode-se dizer que É um caso de polí- 1970). Trabalho de Pós-Doutorado. Paris: CNPq,
cia é um filme simples, mas concretiza o 1992-1993.
desejo de uma mulher de fazer um filme, AUDE, Françoise. Cine-modéles cinéma d’elles.
apresentar uma estória, tramar um conto Lausanne: L’age d’homme, 1981.
ou simplesmente lidar com a imagem, BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simu­lations.
uma vez que Carla dedicou sua vida a essa Paris: Galilé, 1981.
tarefa. É significativo o fato de ter criado BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro:
uma situa­ção policial, de mistério e de de- proposta para uma história. Rio de Janeiro:
fesa de uma mulher que imaginariamente Paz e Terra, 1979.
seria assassinada por dois homens. CHAIDERMAN, Miriam. Narrativa e imagem:
movimento do desejo. Percurso - Revista de
Se a linguagem feminina é provo­cada
Psicanálise, n.1. São Paulo: 1988.
pela sedução, condição essencial da escri- FREUD, Sigmund. Obras Completas. Rio de Janei-
tura da mulher, o trabalho de Carla Civelli ro: Imago, 1974, 23v.
comprova esta hipótese, com a ressalva _____. Escritores criativos de devaneios. Op.cit.,
sobre a sexualidade e sensualidade geral- v.9.
mente elaboradas na forma de constantes _____. A sexualidade feminina. Op.cit., v.21.
demandas. Na obra de Carla, a pregnância GALVÃO, Maria Rita & BERNARDET, Jean-Claude.
narcísica está ausente. Cinema: repercussões em caixa de eco ide-
Contudo, se há mistérios no filme, des- ológica. São Paulo: Brasiliense/Embrafilme,
vendados no próprio decorrer da história, 1983.
na vida da diretora esses mistérios perma- .MENDONÇA, Antonio Sergio Lima. Os impasses
conceituais existentes a propósito da categoria
necem. A inexis­tência de documentação
e da ação na indústria cultural. Rio de Janeiro:
sobre sua obra e a ausência de fotografias 1987. (Inédito)
denunciam um aspecto constante na METZ, Christian et.al. Psicanálise e cinema. São
obra de mulheres – a discrição, o ano- Paulo: Global, 1980.
nimato, o esquecimento. Os fragmentos MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário.
reconstituídos pela pesquisa esgotam-se Lisboa: Moian, 1970.
no baú desaparecido, na única entrevista MUNERATO, Elice & OLIVEIRA, Maria Helena
concedida por seu irmão Mario Civelli e Darcy. As musas da matinê. Rio de Janeiro:
no filme realizado. Rio Arte, 1982.
RAMOS, Fernão. (Org.) História do cinema brasi-
leiro. São Paulo: Art Editora, 1987.
VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro.
Rio de Janeiro: MEC/Instituto Nacional do
Livro, 1959.

* Regina Andrade é Psicanalista,


Doutora em Comunicação pela
ECO/UFRJ e Professora do Mes­
trado de Psicologia da UERJ.

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