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ISSN 1517-2422 (versão impressa)

ISSN 2236-9996 (versão on-line)

cadernos

metrópole
planejamento urbano e regional:
percursos e desafios

Cadernos Metrópole
v. 18, n. 37, pp. 609-924
nov 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3700
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP

Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–,

Quadrimestral
ISSN 1517-2422 (versão impressa)
ISSN 2236-9996 (versão on-line)
A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22

1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos.


I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles

CDD 300.5
Periódico indexado no SciELO, Redalyc, Latindex, Library of Congress – Washington

Cadernos Metrópole

Profa. Dra. Lucia Bógus


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles
Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes
05015-001 – São Paulo – SP – Brasil

Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro


Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles
Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão
21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970


São Paulo – SP – Brasil
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http://web.observatoriodasmetropoles.net
Secretária
Raquel Cerqueira
planejamento
p lanejamento u
urbano
r b a n o e re
regional:
egional:
percursos
p desafios
e rc u r s o s e d e s a f io
os
PUC-SP
Reitora
Anna Maria Marques Cintra

EDUC – Editora da PUC-SP


Direção
Miguel Wady Chaia

Conselho Editorial
Anna Maria Marques Cintra (Presidente), José Rodolpho Perazzolo, Karen Ambra, Ladislau Dowbor,
Lucia Maria Machado Bógus, Mary Jane Paris Spink, Miguel Wady Chaia, Norval Baitello Junior,
Oswaldo Henrique Duek Marques, Rosa Maria B. B. de Andrade Nery

Coordenação Editorial
Sonia Montone
Revisão de português
Equipe Educ
Revisão de inglês
Carolina Siqueira M. Ventura
Revisão de espanhol
Vivian Motta Pires
Projeto gráfico, editoração
Raquel Cerqueira
Capa
Waldir Alves

Rua Monte Alegre, 984, sala S-16


05014-901 São Paulo - SP - Brasil
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www.pucsp.br/educ
cadernos
metrópole

EDITORES
Lucia Bógus (PUC-SP)
Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ)

COMISSÃO EDITORIAL
Eustógio Wanderley Correia Dantas (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil)
Sérgio de Azevedo (Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (Universidade de São Paulo,
São Paulo/São Paulo/Brasil)

CONSELHO EDITORIAL
Adauto Lucio Cardoso (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/
Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Cristina Fernandes (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/
Pernambuco/Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi
(Universidad Nacional de General Sarmiento, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Angélica Tanus Benatti Alvim (Universidade Presbiteriana Mackenzie,
São Paulo/São Paulo/Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Carlos Antonio de Mattos (Pontificia
Universidad Católica de Chile, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G. Fortuna (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Claudino Ferreira (Universidade de
Coimbra, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (Universitat de Barcelona, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (Universidade Federal do
Pará, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (Universidade Federal do Pará, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (Universidade
de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes
da Silva (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Geraldo
Magela Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/
São Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas
(Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil)
Jesus Leal (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) José Alberto Vieira Rio Fernandes (Universidade do Porto, Porto/Portugal) José Antônio F.
Alonso (Fundação de Economia e Estatística, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) José Marcos
Pinto da Cunha (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa/Portugal)
José Tavares Correia Lira (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado
da Silva (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza/Ceará/Brasil) Márcio Moraes Valença (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes
(Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento
M. Clementino (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (Universidade de Brasília, Brasília/Distrito
Federal/Brasil) Marta Dominguéz Pérez (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) Montserrat Crespi Vallbona (Universitat de Barcelona, Barcelona/
Espanha) Nadia Somekh (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (Universidade Católica do Salvador, Salvador/Bahia/
Brasil) Norma Lacerda (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/Pernambuco/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (Universidade de São Paulo, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (Universidade de São Paulo, São
Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da
Silva (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Sarah
Feldman (Universidade de São Paulo, São Carlos/São Paulo/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/São Paulo/
Brasil) Wrana Maria Panizzi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)
Colaboradores

Alex Ferreira Magalhães (UFRJ/Brasil) Alexandre Sabino do Nascimento (UPE/Brasil) Ana Claudia Duarte Cardoso (UFPA/Brasil) Ana Lucia Nogueira
Britto (UFRJ/Brasil) Ana Maria Fernandes (UFBa/Brasil) Angelica Aparecida Tanus Benatti Alvim (UPM/Brasil) Antonio Pedro Alves de Carvalho (UFBa/
Brasil) Arilson da Silva Favareto (UFABC/Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (USP/Brasil) Aylene Bousquat (USP/Brasil) Beatriz Silveira Castro Filgueiras
(UFF/Brasil) Benito Muiños Juncal (UNIFACS/Brasil) Benny Schvasberg (UnB/Brasil) Carlos Antonio Brandão (UFRJ/Brasil) Carlos Antonio de Mattos
(PUC-CL/Colômbia) Carlos José Candido Fortuna (UC/Portugal) Carolina Ferreira de Fonseca (UFG/Brasil) Cibele Saliba Rizek (USP/Brasil)
Cid Olival Feitosa (UFS/Brasil) Claudette de Castro Silva Vitte (Unicamp/Brasil) Clovis Ultramari (UFPR/Brasil) Cristina López Villanueva (UB/
Espanha) Denise Cunha Tavares Terra (UENF/Brasil) Denise de Alcântara Pereira (UFRRJ/Brasil) Diana Scabelo Lemos (UFF/Brasil) Doralice
Barros Pereira (UFMG/Brasil) Eduardo Cesar Leão Marques (USP/Brasil) Eduardo Vasconcelos Raposo (PUC-RJ/Brasil) Eliseu Sposito (UFV/
Brasil) Elmer Nascimento Mato (UFS/Brasil) Ermínia Maricato (USP/Brasil) Ester Limonad (UFF/Brasil) Eugenio Fernandes Queiroga (USP/
Brasil) Fabio Duarte (PUC-PR/Brasil) Fabricio Leal de Oliveira (UFRJ/Brasil) Fania Fridman (UFRJ/Brasil) Felipe Nunes Coelho Magalhães
(UFMG/Brasil) Fernanda Furtado de Oliveira e Silva (UFF/Brasil) Fernanda Sánchez Garcia (UFF/Brasil) Fernando Augusto Proietti (FOC/Brasil)
Francisco Carlos Baqueiro Vidal (UFBa/Brasil) Fernando Garrefa (UFU/Brasil) Floriano José Godinho de Oliveira (UERJ/Brasil) Frederico Rosa
Borges de Holanda (UnB/Brasil) Geraldo Magela Costa (UFMG/Brasil) Gerônimo Leitão (UFF/Brasil) Gilda Collet Bruna (UPM/Brasil) Gustavo
Henrique Naves Givisiez (UFF/Brasil) Heliana Comin Vargas (USP/Brasil) Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG/Brasil) Henri Acselrad (UFRJ/
Brasil) Humberto Miranda do Nascimento (Unicamp/Brasil) Inaiá Moreira de Carvalho (UFBa/Brasil) Jan Bitoun (UFPE/Brasil) Jeroen Klink
(UFABC/Brasil) João Farias Rovatti (UFRGS/Brasil) José Antonio Gomes de Pinho (UFBa/Brasil) José Borzacchiello da Silva (UFC/Brasil) José
Julio Ferreira Lima (UFPA/Brasil) José Luis Vianna da Cruz (UFRRJ/Brasil) Juciano Martins Rodrigues (UFRJ/Brasil) Juliano Pamplona Ximenes
Ponte (UFPA/Brasil) Jupira Mendonça (UFMG/Brasil) Jussara Ayres Bourguignon (UEPG/Brasil) Laila Mourad (UCSal/Brasil) Lamounier Erthal
Villela (UFRRJ/Brasil) Laura Machado de Mello Bueno (Puccamp/Brasil) Leandro Dias de Oliveira (UFRRJ/Brasil) Leandro Luiz Giatti (USP/
Brasil) Livia Izabel Bezerra de Miranda (UFPE/Brasil) Lúcia Cony Faria Cidade (UnB/Brasil) Lucia Helena Pereira da Silva (UFRRJ/Brasil) Lucia
Leitão (UFPE/Brasil) Lucia Zanin Shimbo (USP/Brasil) Luciana da Silva Andrade (UFRJ/Brasil) Luciana de Oliveira Royer (USP/Brasil) Luciana
Corrêa do Lago (UFRJ/Brasil) Luis Antonio Machado da Silva (UFRJ/Brasil) Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos (UFBa/Brasil) Marcelo
Tadeu Baumann Burgos (PUC-RJ/Brasil) Marcio Moraes Valença (UFRN/Brasil) Marco Akerman (USP/Brasil) Marco Aurélio Costa (IPEA/
Brasil) Marco Aurélio Santana (UFRJ/Brasil) Marcos Barcellos de Souza (UFABC/Brasil) Maria Amélia Jundurian Corá (PUC-SP/Brasil) Maria
Camila Loffredo d’Otaviano (USP/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (USP/Brasil) Maria Dulce Picanço Bentes Sobrinha (UFRN/Brasil) Maria
Graciela González Pérez de Morell (Unifesp/Brasil) Maria Julieta Nunes (UFRJ/Brasil) Maria Lucia Martins Reffinetti (USP/Brasil) Mariana
Fix (USP/Brasil) Marilia Steinberger (UnB/Brasil) Marinez Villela Macedo Brandão (Unifesp/Brasil) Marta Dora Grostein (USP/Brasil) Maura
Veras Pardini Bicudo (PUC-SP/Brasil) Maurici Tadeu F. dos Santos (UAB/Brasil) Miguel Antonio Buzzar (USP/Brasil) Miguel Matteo (Ipea/
Brasil) Montserrat Crespi Vallbona (UB/Espanha) Nadia Somekh (UPM/Brasil) Neio Lucio de Oliveira Campos (UnB/Brasil) Nilton Ricoy
Torres (USP/Brasil) Nivaldo Carneiro Junior (Santa Casa de SP/Brasil) Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio (USP/Brasil) Norma Lacerda
(UFPE/Brasil) Olga Lucia Castreghini de Freitas Firkowski (UFPR/Brasil) Pasqualino Romano Magnavita (UFBa/Brasil) Patricia Chame Dias
(UFBa/Brasil) Paula Carnevale Vianna (Univap/Brasil) Paula Freire Santoro (USP/Brasil) Paulo Artur Malvasi (Santa Casa de SP/Brasil)
Paulo Roberto Rodrigues Soares (UFRGS/Brasil) Pedro de Novais Lima Jr. (UFRJ/Brasil) Pedro Roberto Jacobi (USP/Brasil) Rachel de Castro
Almeida (UnB/Brasil) Rafael Feleiros de Pádua (USP/Brasil) Rainer Randolph (UFRJ/Brasil) Raquel Rolnik (USP/Brasil) Regina Dulce Barbosa
Lins (UFAL/Brasil) Regina Maria Prosperi Meyer (USP/Brasil) Renato Cymbalista (USP/Brasil) Ricardo Brinco (FEE/Brasil) Ricardo de Souza
Moretti (UFABC/Brasil) Ricardo Ojima (UFRN/Brasil) Robert Moses Pechman (UFRJ/Brasil) Robson Dias da Silva (UFRRJ/Brasil) Rômulo José
da Costa Ribeiro (UnB/Brasil) Rosa Moura (Ipea/Brasil) Rosana Denaldi (UFABC/Brasil) Rosetta Mammarella (FEE/Brasil) Saint-Clair Cordeiro
Trindade Jr. (UFPA/Brasil) Sandra Lencioni (USP/Brasil) Sarah Escorel (Fiocruz/Brasil) Sarah Feldman (USP/Brasil) Sergio González López
(Uaemex/México) Sergio Manuel Merencio Martins (UFMG/Brasil) Suzana Pasternak (USP/Brasil) Sylvio Bandeira de Melo e Silva (UFBa/
Brasil) Tales Boher Lobosco Gonzaga de Oliveira (UFMG/Brasil)
sumário

617 Apresentação

dossiê: planejamento urbano e regional:


percursos e desafios

The centrality of metropolitan agglomera ons 623 A centralidade das aglomerações metropolitanas
in the globalized economy: economic na economia globalizada: fundamentos
founda ons and poli cal perspec ves econômicos e possibilidades polí cas
Daniel Sanfelici

Governança em um mundo suburbano emergente 647 Governance in an emerging suburban world


Pierre Hamel
Roger Keil

Axes: a new paradigm of regional planning? 671 Eixos: novo paradigma do planejamento regional?
Infrastructure axes in the na onal PPAs, Os eixos de infraestrutura nos PPA’s nacionais, na
in the Iirsa and in the macrometrópole paulista Iirsa e na macrometrópole paulista
Jeferson Cris ano Tavares

Gentrifica on in urban studies: an inves ga on 697 La gentrificación en los estudios urbanos:


about the academic produc on of ci es una exploración sobre la producción académica
de las ciudades
Félix Rojo Mendoza

Reviewing the use of IBGE data for research 721 Revendo o uso de dados do IBGE para pesquisa
and land planning: reflec ons on the classifica on e planejamento territorial: reflexões quanto
of the urban and rural situa on à classificação da situação urbana e rural
Caroline Krobath Luz Pera
Laura Machado de Mello Bueno

Sustainable spa al planning: a challenge 743 Planeamiento territorial sostenible: un reto


for the future of our socie es; applied criteria para el futuro de nuestras sociedades;
criterios aplicados
Adrián Ferrandis Mar nez
Joan Noguera Tur

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 609-924, nov 2016 615
The end of slums? Planning, par cipa on 765 O fim das favelas? Planejamento, par cipação
and removal of families in Belo Horizonte e remoção de famílias em Belo Horizonte
Clarice de Assis Libânio

Entrepreneurial urban planning 785 Planejamento urbano empresarialista


in real estate, residen al and service em complexos imobiliários, residenciais
complexes: Reserva do Paiva under analysis e de serviços: a Reserva do Paiva em análise
Adauto Gomes Barbosa

Space in geography and the space 803 O espaço na geografia e o espaço da arquitetura:
of architecture: epistemological reflec ons reflexões epistemológicas
Lucia Leitão
Norma Lacerda

When the project disguises the plan: concep ons 823 Quando o projeto disfarça o plano:
of planning and its metamorphoses concepções de planejamento
in the city of Belém, state of Pará e suas metamorfoses em Belém (PA)
Ana Cláudia Duarte Cardoso
Taynara do Vale Gomes
Ana Carolina Campos de Melo
Luna Barros Bibas

Housing in historic downtowns: a challenge 845 Habitação em centros históricos: um desafio


to the integra on of public policies à integração das polí cas públicas
Lucia Maria Machado Bógus
António Miguel Lopes de Sousa

In search of landscape feeling 863 Em busca do sen mento da paisagem


Margareth Afeche Pimenta

Street performers: workers or beggars? 879 Ar stas de rua: trabalhadores ou pedintes?


Bruno Buscariolli
Adele de Toledo Carneiro
Eliane Santos

Chaosgraphies city 899 Caosgrafias cidade


Frederico de Araujo

921 Instruções aos autores

616 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 609-924, nov 2016
Apresentação

A área do Planejamento Urbano e Regional foi sempre marcada por ter uma agenda
abrangente e ousada, procurando dialogar com as grandes transformações sociais e suas múltiplas
dimensões em cada conjuntura histórica. O escopo necessariamente multi e interdisciplinar de nosso
campo permitiu análises profundas, de conjunto e de longo alcance da realidade urbano-regional.
Entretanto, a partir da década de 1990, a fragmentação crescente do campo, em
compartimentos de disciplinas isoladas, talvez tenha rompido com aquela virtuosa e promissora
tradição. Nesse período mais recente, os teoricismos, abstratos e desconectados da realidade, mas
também os empiricismos, que absolutizavam os estudos caso a caso, tiveram seu grande momento.
Nas últimas duas décadas, as profundas e abrangentes transformações sociais, econômicas,
políticas, institucionais, simbólicas e de modos de vida, nas diversas escalas espaciais, provocaram
impactos marcantes na produção social do espaço. Novas dinâmicas urbanas e regionais ocorreram
ou estão em processo.
Nesse contexto, são imensos os desafios de análise para buscar entender permanências,
inércias e rupturas naqueles processos de transformação em variadas dimensões, com impactos
socioespaciais marcantes.
Regiões e cidades foram profundamente impactadas desde o início dos anos 2000 por
velhos e novos processos. Transformações econômicas, grandes projetos de investimento, novas
relações fundiárias e imobiliárias com o processo de financeirização, provisão de bens e serviços
e de infraestrutura urbana, movimentações populacionais, lógicas em rede, aparecimento de novas
formas de organizar a produção, mudanças na ação do Estado, metamorfoses culturais, renovadas
modalidades de lutas socioespaciais, etc.
Que programas de pesquisas são requeridos para buscar responder a problemáticas tão
complexas e mutantes? Que dimensões da realidade captar? Que múltiplos olhares são possíveis
sobre o espaço?

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h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3700
Apresentação

Nesse contexto de intensas alterações da realidade, convidamos para este número de Cadernos
Metrópole pesquisadoras e pesquisadores das diversas áreas de conhecimento que abordam a
questão urbana e regional para trazerem suas contribuições para esse importante debate sobre os
pontos imprescindíveis da agenda renovada a enfrentar em nossas investigações e reflexões acerca
das transformações recentes nos espaços das cidades e regiões sob análise. O tema da chamada foi
“Planejamento Urbano e Regional: percursos e desafios”.
Abrindo a coletânea, o artigo A centralidade das aglomerações metropolitanas na economia
globalizada: fundamentos econômicos e possibilidades políticas, de Daniel Sanfelici, propõe uma
discussão teórica sobre as forças econômicas que reiteram a centralidade da metrópole no processo
de globalização e sobre as possibilidades e limites da ação política local. Afirma que, em que pese a
infinidade de previsões sobre o iminente declínio da importância das grandes cidades, estas últimas
se mantêm como nós privilegiados do desenvolvimento econômico. Examina os fundamentos
econômicos da aglomeração espacial e discute como essas mesmas forças econômicas, mediadas
pela ação pública local, estruturam o espaço intraurbano. Arremata, vislumbrando as possibilidades
abertas à ação pública local, ressaltando que, para ser eficaz, deve ser concebida, ao mesmo tempo,
como transescalar e multidimensional.
Em seguida em Governance in an emerging suburban world, Pierre Hamel e Roger Keil partem
da afirmação de que as cidades são crescentemente definidas pelas suas periferias. A produção
dos espaços suburbanos, através de diversas modalidades de governança (Estado, acumulação de
capital e autoritarismo privado), vem transformando cidades-região de maneiras inesperadas. A
diversidade de formas espaciais que moldam o desenvolvimento suburbano traz novas escalas para
a compreensão das questões urbanas. Os autores tratam dessas questões emergentes a partir do
caso canadense, abrindo importante perspectiva para estudos comparados.
Ao problematizar a organização territorial ancorada em eixos de infraestrutura propostos pelo
poder público e demonstrar as relações entre reestruturação produtiva e configuração do território,
o artigo Eixos: novo paradigma do planejamento regional? Os eixos de infraestrutura nos PPA’s
nacionais, na Iirsa e na macrometrópole paulista, de Jeferson Cristiano Tavares, procura analisar,
em diferentes escalas e com recortes espaciais, o papel dos eixos: nos PPA’s, no âmbito federal; no
programa Iirsa, no âmbito continental; e o Plano de Ação da Macrometrópole Paulista (PAM 2013-
2040), no âmbito estadual. O artigo afirma a consolidação de um protagonismo em curso do eixo
como elemento estruturador da organização territorial nessas diferentes escalas.
Por meio de análise bibliométrica, o artigo La gentrificación en los estudios urbanos: una
exploración sobre la producción académica de las ciudades, de Félix Rojo Mendoza, procura analisar
a recente produção científica sobre o processo de gentrificação. O autor ressalta a utilização, por
vezes, livre, imprecisa e generalizada do termo que ganhou crescente relevância nos últimos anos.
A gentrificação, que implica reestruturação urbana com deslocamento e substituição de classes
sociais no espaço, vem sendo utilizada para também caracterizar processos às vezes muito distintos.
Entre outras contribuições do autor para o debate, está o questionamento sobre se é possível seguir

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Apresentação

utilizando esse termo ou se seria necessário renomear tais processos de transformação urbana nos
diversos contextos socioespaciais.
O artigo Revendo o uso de dados do IBGE para pesquisa e planejamento territorial: reflexões
quanto à classificação da situação urbana e rural, de Caroline Krobath Luz Pera e Laura Machado
de Mello Bueno, por meio de uma discussão sobre as transformações relativas ao uso da terra
no processo de expansão urbana da Região Metropolitana de Campinas, observa a relevância
das informações coletadas e as dificuldades de classificação colocadas pela dicotomia urbano-
-rural quanto à situação dos setores censitários propostos pelo IBGE e apresenta os limites e as
possibilidades desses dados para o mapeamento de tendências de crescimento metropolitano.
Aponta as possibilidades para reorganização da classificação, para caracterizar as desigualdades
do espaço urbano, sugerindo que o uso desses dados poderá ser mais efetivo para construção e
avaliação de políticas públicas municipais e metropolitanas.
O artigo Planeamiento territorial sostenible: un reto para el futuro de nuestras sociedades:
criterios aplicados, de Adrián Ferrandis Martínez e Joan Noguera Tur, assevera a necessidade de
planejar adequadamente o desenvolvimento territorial, ante o modelo socioprodutivo dominante,
como a única maneira de ter territórios mais sustentáveis e de alcançar e manter o bem-estar da
população. Ao refletir sobre essa premência, destaca a importância do planejamento territorial como
um instrumento fundamental para a evolução sustentável dos territórios, avançando na definição de
critérios de sustentabilidade fundamentais para a execução de ações consequentes.
O artigo O fim das favelas? Planejamento, participação e remoção de famílias em Belo
Horizonte, de Clarice de Assis Libânio, analisa as políticas públicas e o planejamento para as áreas
de favelas em Belo Horizonte nos últimos anos e os seus resultados paradoxais. Demonstra que
houve um processo de desfavelização, com avanços na consolidação urbanística das favelas e na
provisão de serviços públicos, porém observa que tais ações não encontraram correspondência
no que diz respeito à apropriação e ao uso do espaço urbano como direito fundamental. Defende
que houve uma inflexão nas práticas governamentais nesses espaços com, de um lado, a garantia
do direito de permanência das famílias no local e, de outro, o aumento do direito de participação
cidadã nas decisões a elas afetas, mas sem o enfrentamento de questões substantivas do direito
mais amplo à cidade.
A partir de uma análise crítica dos Cirs – Complexos Imobiliários, Residenciais e de Serviços, o
artigo Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários, residenciais e de serviços: a
Reserva do Paiva em análise, de Adauto Gomes Barbosa, aborda as características e as consequências
desses empreendimentos plurifuncionais e a governança urbana desse planejamento urbano
empresarialista que resultou na concepção do Cirs Reserva do Paiva, na Região Metropolitana do
Recife. Frutos de uma interescalaridade das ações, os Cirs resultam da ação de distintos agentes e
de uma eficiente articulação com o poder público. Evidencia-se o protagonismo privado, ainda que
o Estado seja fundamental como agente regulador e viabilizador do negócio. Ao serem concebidos e
produzidos sob a tônica do exclusivismo socioespacial, constituem-se em resposta conservadora ao

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 617-621, nov 2016 619
Apresentação

planejamento urbano, que nega a cidade como totalidade, não contribuindo para o enfrentamento
de seus problemas estruturais.
Com o objetivo de procurar estabelecer algumas distinções epistemológicas entre os corpos
disciplinares da geografia e da arquitetura, que têm como objeto o espaço, o artigo O espaço na
geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas, de Lucia Leitão e Norma Lacerda,
ressalta que nas últimas quatro décadas o conceito de espaço se tornou alvo de análises críticas
explícitas por parte dos geógrafos, com possíveis diferenciações desse conceito quando confrontado
com a formulação teórica dos arquitetos. As autoras procuram indicar e discutir as especificidades
teórico-metodológicas de ambos os campos do conhecimento espacial, ressaltando a necessidade
das aproximações disciplinares e da explicitação das premissas conceituais que emergem do urgente
diálogo entre essas disciplinas.
A reforma do Ver-o-Peso, principal símbolo do Centro Histórico de Belém, é analisada em
Quando o projeto disfarça o plano: concepções de planejamento e suas metamorfoses em Belém
(PA), de autoria de Ana Cláudia Duarte Cardoso, Taynara do Vale Gomes, Ana Carolina Campos de
Melo e Luna Barros Bibas. O artigo busca dialogar com as concepções de cidade, as intervenções
conduzidas pelos grupos políticos locais, as coalizões com o setor privado e a mídia local. Aponta
tensões e disjuntivas entre as várias concepções em disputa: de apropriação da paisagem e dos
espaços públicos com melhoria da vida cotidiana das pessoas do lugar versus a mercadificação
das orlas e dos espaços verdes e a produção do espaço artificial e espetacularizado de deleite do
visitante, etc. Demonstra como a esfera política pouco considera, atualmente, o ambiente urbano
amazônico em sua complexidade, não abrindo espaço para uma abordagem da modernização de
Belém atenta à participação popular, à festa inclusiva e à sociobiodiversidade local.
A partir do estudos dos casos das cidades de Salvador, no Brasil, e do Porto, em Portugal,
discutindo os condicionantes que permitiram estruturar programas ou políticas públicas continuadas,
com significativos resultados nos processos de reabilitação e preservação, o artigo Habitação em
centros históricos: um desafio à integração das políticas públicas, de Lucia Maria Machado Bógus
e António Miguel Lopes de Sousa, contextualiza as formulações programáticas e os fundamentos
conceituais a elas associados da habitação, entendida como política pública integrada, de forma a
compreender a relevância das práticas de planejamento urbano que integram a questão habitacional,
suas formas de articulação e impactos nos processos de sociabilidade e de revitalização funcional
daqueles centros históricos sob análise.
A ideia de paisagem relaciona-se diretamente com a era moderna. Entre aproximações e
distanciamentos, o sentimento da paisagem (stimmung) resulta de um longo debate que coloca em
questão a racionalidade definitiva do mundo. A conflitualidade latente entre razão e emoção leva
Kant a admitir a possibilidade da apreensão suprassensível da natureza. Sulzer e Herder alinham-
-se com ressalvas nessa direção, reconhecendo a existência de prazer ou de excitação, provocados
a partir da interação exterior. Carus, a partir de então, refere-se diretamente ao sentimento da
paisagem, apoiado em influências cruzadas de Goethe e Humboldt. O artigo Em busca do sentimento
da paisagem, de Margareth Afeche Pimenta, reflete sobre a trajetória que poderia ter conduzido à

620 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 617-621, nov 2016
Apresentação

elaboração do sentimento da paisagem, acompanhando essa trajetória de elaboração conceitual,


reconhecendo à pintura a capacidade de suscitar, em Carus, o estímulo para a apreensão sensível
do mundo.
O artigo Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?, de Bruno Buscariolli, Adele de Toledo
Carneiro e Eliane Santos, em uma criativa pesquisa de etnografia urbana, apresenta as principais
características da interação entre artistas de rua e o público em diferentes horários, localizações e
tipos de arte, utilizando-se do método da observação. A pesquisa evidenciou que a performance dos
artistas de rua é um fenômeno democrático, porém, de modo geral, esses profissionais são ainda
vistos pela população como pedintes, e não como pessoas de carreira artística em construção. Foram
também verificados o perfil social dos espectadores, o tipo de arte que apreciam e a localização
geográfica da atuação.
Por fim, o Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura – GPMC, coordenado pelo professor
Frederico Araujo, apresenta o artigo Caosgrafias cidade, um modo de construção coletiva de discursos
que navega entre ciência, arte e filosofia. Aciona a prática cartográfica como trama de afectos,
associada à noção de caos como possibilidade do devir. Como modo “caótico” de composição de
grafias enquanto potência para criação de discursos, como uma aventura corpóreo-palavreira, que
busca instaurar tensionamentos no processo de instituição e narrativa do objeto experienciado. As
caosgrafias são, assim, inventadas como “acontecimentos desconstrução”, exercitando esse modo
caosgráfico de construção de discursos com o tema “cidade”.
A chamada do presente número de Cadernos Metrópole contou com 68 trabalhos submetidos,
o que exigiu mais de 140 pareceres. Gostaria de agradecer aos pesquisadores que atenderam
à chamada e aos pareceristas que realizaram um trabalho de alta qualidade, o que possibilitou
apresentar um abrangente balanço das temáticas emergentes no campo dos estudos urbanos e
regionais, que deixa aqui essas importantes reflexões para nossa agenda de investigações, futura
e coletiva.

Carlos Antônio Brandão


Organizador

Carlos Antônio Brandão


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional.
Rio de Janeiro, RJ/Brasil
brandaoufrj@gmail.com

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 617-621, nov 2016 621
A centralidade das aglomerações
metropolitanas na economia globalizada:
fundamentos econômicos
e possibilidades políticas*
The centrality of metropolitan agglomerations in the globalized
economy: economic foundations and political perspectives

Daniel Sanfelici

Resumo Abstract
Em que pese a infinidade de previsões sobre o imi- D e spit e t h e nu m e r o u s p r e d ic t io ns a b o u t
nente declínio da importância das grandes cidades, the imminent decline in the impor tance of
estas últimas mantêm-se como nós privilegiados large cities, they continue to be key hubs of
do desenvolvimento econômico. Este artigo propõe economic development. This articles aims to
uma discussão teórica sobre as forças econômicas discuss the economic forces that keep the
que reiteram a centralidade da metrópole no pro- metropolis at the center of globalization, as
cesso de globalização e sobre as possibilidades e well as prospects and limits for political action
limites da ação política local. Na primeira parte, o at the local level. In the first part, the paper
artigo dedica-se a examinar os fundamentos eco- discusses the economic foundations of spatial
nômicos da aglomeração espacial. Na segunda par- agglomeration. The second par t looks into
te, discute como essas mesmas forças econômicas how these economic forces, mediated by local
básicas, mediadas pela ação pública local, estru- public action, structure intra-urban space. In
turam o espaço intraurbano. E, na terceira e últi- the third and last part, the paper examines
ma parte, discute as possibilidades abertas à ação the possibilities open to local public action,
pública local, ressaltando que, para ser eficaz, esta underscoring that, in order to be effective, it
última deve ser concebida, ao mesmo tempo, como has to be seen as simultaneously trans-scalar
transescalar e multidimensional. and multi-dimensional.
Palavras-chave: globalização; urbanização; proxi- Keywords: globalization; urbanization; spatial
midade espacial; desenvolvimento local. proximity; local development.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3701
Daniel Sanfelici

Essa constatação de uma trajetória de


Introdução
urbanização acelerada e, no âmbito desta,
uma importância inegável das metrópoles e
Em julho de 2015, o governo chinês anunciou megacidades, refuta um sem-fim de narrativas
um plano ambicioso de consolidar, no nordes- surgidas nos últimos decênios que, evocando
te do país, uma área metropolitana contínua as facilidades de comunicação e transporte
entre Beijing e Tianjin, a 150 km da capital. engendradas pelas inovações tecnológicas,
Se o projeto tiver êxito – o que depende, en- ponderavam que a proximidade espacial e, por
tre outras coisas, de investimentos pesados em conseguinte, a aglomeração da população em
infraestrutura de transporte e o deslocamento grandes centros urbanos haveriam perdido seu
de parte considerável da estrutura administra- sentido econômico e social. No mínimo, o mun-
tiva, atualmente concentrada na capital, para do haveria de caminhar para um processo de
um ponto intermediário entre os dois polos –, urbanização cada vez mais difuso, dominado
a megalópole ostentará uma população pró- por redes de pequenas e médias cidades fisi-
xima a 130 milhões de habitantes, ocupando camente próximas e economicamente conecta-
uma área equivalente a seis vezes a cidade de das, a exemplo do que ocorre na Terceira Itália;
Nova York (Johnson, 2015). Em que pesem as em versões mais ousadas, a difusão do traba-
ambições superlativas do governo chinês pa- lho a distância e as infinitas possibilidades de
ra esse projeto, ele é apenas um entre outros subcontratação viabilizadas pela comunicação
planos recentes que parecem sinalizar para em tempo real permitiriam formas de coope-
uma percepção aguçada, por parte das auto- ração que diluiriam por completo a necessi-
ridades chinesas, acerca da conexão existente dade de copresença em um espaço de fluxos
entre crescimento econômico e urbanização imateriais. Embora a primeira hipótese pareça
(Johnson, 2013). Esta última, longe de ser ape- mais plausível, a realidade é que não apenas
nas o resultado passivo do primeiro, é cada vez a urbanização, mas a metropolização continua
mais reconhecida como seu motor indispensá- sendo um traço indelével da economia atual, o
vel, uma descoberta bem-vinda para um go- que suscita a necessidade de discutir, de uma
verno que aspira a manter um ritmo frenético parte, as forças que continuam a impelir esse
de crescimento como peça de legitimidade de crescimento ininterrupto das cidades e a re-
um sistema político autoritário. Não obstante estruturação dos seus espaços e, de outra, as
todas as incertezas que envolvem projetos de aberturas e possibilidades políticas existentes
tal porte, o ritmo acelerado de urbanização e para direcionar esse crescimento para configu-
o crescimento do número de metrópoles não rações mais desejáveis do ponto de vista social
estão circunscritos à China, tampouco são fruto e ambiental.
de simples voluntarismo político; antes, trata- Com isso em vista, este artigo procura
-se de uma tendência clara na maior parte dos refletir criticamente sobre as condicionantes
países, desenvolvidos ou em desenvolvimento, econômicas subjacentes ao ressurgimento
intervencionistas ou mais liberais. das cidades e às mudanças na estruturação

624 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016
A centralidade das aglomerações metropolitanas...

espacial interna dos centros urbanos. Revisitan- de moradia e saneamento, passando por trans-
do brevemente a literatura relativamente ex- porte, segregação e acesso desigual ao urbano,
tensa sobre o processo de aglomeração e seus até os problemas ambientais que se avultam.
fundamentos econômicos, a primeira seção do Observa-se que avanços em muitos desses
artigo discute como o crescimento vertiginoso campos só podem ser obtidos através de um
das grandes cidades repousa sobre um rol de enfoque integral dos problemas em questão e
vantagens econômicas colocadas em marcha de formas de cooperação territorial mais sofis-
pela proximidade espacial sob a forma de eco- ticadas no âmbito da gestão das metrópoles e
nomias externas ou externalidades. A dinâmica da elaboração e execução de políticas públicas.
de acumulação não é apenas responsável, con-
tudo, por produzir níveis cada vez mais eleva-
dos de urbanização e de metropolização, mas
igualmente por fomentar transformações de
A vantagem das metrópoles:
grande envergadura na estrutura espacial in- aglomeração e inovação
terna das cidades através da modificação dos
usos do solo urbano. Visando lançar luz sobre Entre as profecias que, no auge dos anos 1990,
esses processos, muitos dos quais francamen- o discurso otimista da globalização validava,
te desfavoráveis ao acesso mais democrático estava a ideia de que as tecnologias da infor-
à cidade, a segunda parte do artigo discute mação e de transporte levariam, em maior ou
os principais interesses, agentes e forças en- menor grau, à perda de importância ou disso-
volvidos na produção do espaço da cidade e lução do território como nexo fundamental de
aponta como a entrada de novos agentes no interação social.1 Para os economistas versados
circuito imobiliário colocou novas questões pa- na teoria econômica ortodoxa, esse vaticínio
ra a reflexão. Como ficará evidente nessas duas se amparava na premissa de que a redução
primeiras seções, o reconhecimento da impor- ininterrupta dos custos de transporte e de co-
tância desses processos e forças econômicas municação, ao propiciar maior fluidez na trans-
nas transformações em curso não significa, ferência dos fatores de produção, favoreceria
absolutamente, a adesão a uma concepção da inexoravelmente uma distribuição mais equi-
economia enquanto um campo independente tativa dos recursos no espaço, enfraquecendo
da prática social, operando exclusivamente de gradativamente as forças gravitacionais que
acordo com suas leis internas; antes, ressaltar- geram a polarização (Veltz, 2014). No tempo
-se-á o entrelaçamento inevitável dos proces- que transcorreu desde então, as evidências
sos e práticas ditas econômicas com as dimen- não pararam de se acumular no sentido opos-
sões social e política. Por fim, na última seção, to: se, por um lado, a globalização favoreceu
o artigo coloca em pauta os principais desafios efetivamente o comércio de longa distância e
que se perfilam no horizonte da gestão das me- viabilizou, através das tecnologias da informa-
trópoles nos próximos anos, desafios estes que ção, práticas mais sofisticadas de coordenação
se revelam ainda mais urgentes nos países em global das estratégias empresariais, por outro,
desenvolvimento – desde problemas básicos não eliminou a necessidade de proximidade

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016 625
Daniel Sanfelici

territorial na organização das atividades eco- mais ou menos simplificadas em torno de no-
nômicas. Antes, há indicativos de uma corre- ções como centro e periferia ou países desen-
lação robusta entre a integração econômica volvidos e subdesenvolvidos. A questão crucial
global e a aglomeração espacial em alguns é compreender por que e como certos polos
poucos polos urbanos que concentram, cada de aglomeração atingem níveis de produtivi-
vez mais, as atividades econômicas mais avan- dade e inovação crescentes, distanciando-se,
çadas, articulando-se horizontalmente em uma em termos de riqueza produzida e apropriada,
rede de cidades que extrapola as fronteiras, e das demais cidades e regiões. Muitas disputas
muitas vezes a capacidade de ação, dos esta- surgiram em torno da resposta mais adequada
dos-nação (Amin e Thrift, 1992; Sassen, 2000; a essas questões, mas há hoje um consenso
Scott, 1998; Veltz, 2014). Um indicador ilus- de que as metrópoles gozam de uma série de
trativo dessa importância adquirida pela me- vantagens de natureza cumulativa sob a for-
tropolização é o crescimento exponencial do ma de economias externas ou de aglomeração
número de megacidades no mundo – definidas (Scott, 1988; 1998; 2006; Scott e Storper, 2007;
como aglomerações com mais de 10 milhões Storper e Walker, 1989; Storper, 1997; Veltz,
de habitantes. Segundo relatório da ONU, em 2014; Bathelt, Malmberg e Maskell, 2004;
1990 havia 10 megacidades no mundo, cifra Pecqueur, 2009).3 Estas últimas englobam fe-
que saltou para 28 em 2014. 2 Esse número nômenos diversos que podem ser condensados,
pode, além disso, ser uma subestimação da sob o risco de certa simplificação, em quatro
soma total: um relatório recente da Organi- principais: 1) o compartilhamento de infraes-
zação para a Cooperação e Desenvolvimento truturas físicas de alto custo e marcadas pela
Econômico (OCDE) calculou em 15 o número indivisibilidade; 2) as interdependências tran-
de megacidades existentes apenas na China, sacionais entre firmas de um mesmo segmen-
7 a mais do que as estimativas da ONU indica- to ou cadeia produtiva; 3) a formação de um
vam (cf. Krause-Jackson, 2015). Nem mesmo mercado de trabalho denso, diversificado e es-
os graves e persistentes problemas sociais e pecializado; e, finalmente, 4) a criação de um
ambientais que concentrações populacionais ambiente propício à circulação de ideias, ao
dessa dimensão costumam ocasionar parecem aprendizado e à inovação. Esses diferentes in-
frear o ritmo de crescimento das metrópoles, centivos à aglomeração não são mutuamente
sobretudo nos países em trajetória de cresci- excludentes; antes, eles frequentemente se so-
mento econômico acelerado. brepõem ou se articulam de modos complexos.
Extrapolando o registro meramente ane- Todavia, o peso ou a importância de cada um
dótico, é forçoso indagar quais são as causas deles se altera ao capricho de mudanças tec-
desse surto de urbanização recente. Há pelo nológicas, de mudanças regulatórias que fa-
menos dois decênios, uma bibliografia vasta no vorecem ou inibem o comércio internacional e
campo da geografia econômica e da economia de novas formas de concorrência que emergem
regional vem procurando oferecer respostas como reação a transformações no ambiente de
mais refinadas a essa interrogação, qualifi- negócios. Convém discorrer brevemente sobre
cando o debate a fim de suplantar explicações cada um deles.

626 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016
A centralidade das aglomerações metropolitanas...

A mais básica de todas as formas de eco- verticalizadas em que as diferentes etapas da


nomia de aglomeração é aquela que decorre produção e suas conexões são coordenadas
do compartilhamento de um sistema de infra- por deliberação administrativa. A inclinação
estruturas de suporte ao comércio e à indús- em favor de um determinado sistema de pro-
tria. Com efeito, uma série de infraestruturas dução (no caso, menos verticalizado) responde
básicas e fundamentais à acumulação indus- a imperativos de eficiência que se relacionam
trial – como rodovias, ferrovias, portos, aero- com economias de escala – ou seja, qual escala
portos, sistemas de telecomunicação, sistemas de produção é mais apropriada para a fabrica-
de esgoto, etc. – possui custos elevados e alto ção de um determinado componente – e com
grau de indivisibilidade. Essa sensibilidade das os custos de transação – ou seja, os custos de
infraestruturas às economias de escala diminui obtenção de um insumo via mercado compa-
a viabilidade de dispersão das delas pelo terri- rado com os custos de produzi-lo internamen-
tório, principalmente em países com escassos te, o que remete ao que se costuma designar
recursos para serem investidos. Historicamen- por economias de escopo ou de variedade. A
te, portanto, o compartilhamento de infra- contribuição de Scott (1988) à teoria da orga-
estruturas de alto custo foi um dos impulsos nização industrial proposta por esses autores
primordiais para aglutinar as firmas em torno consiste em integrar a distância espacial como
de polos de urbanização intensiva, e isto de um componente essencial dos custos de tran-
maneira tanto mais exacerbada quanto mais sação. A proximidade espacial e a aglomeração
limitados eram os recursos para investimento aparecem, então, como produto de uma busca
no ambiente construído. por maior eficiência através da redução dos
Um segundo patamar de vantagens aglo- custos de transação especificamente relaciona-
merativas emerge como resultado da densidade dos com a distância física. No entanto, como o
e frequência das trocas efetuadas entre produ- próprio autor admite (Scott, 2006), mais do que
tores independentes em um contexto de divi- apenas uma redução dos custos de transação
são social do trabalho. Recorrendo à teoria dos associados à distância, a proximidade espacial
custos de transação de Ronald Coase e a seus entre produtores articulados em uma cadeia
desenvolvimentos posteriores em autores como de valor possibilita reajustamento e reconfi-
Stigler e Williamson, Scott (1988; 2006) elabora guração céleres das relações de fornecimento
uma teoria da aglomeração que tem por núcleo (input-output), o que se revela particularmente
explicativo a busca das firmas por reduzir os vantajoso em um contexto de volatilidade da
custos de transação. Segundo esse autor, mui- demanda e de inovações de produto recorren-
tos setores industriais obtêm sua organização tes, como tem sido o caso do capitalismo nos
ótima na forma de sistemas de produção de- últimos decênios. Em outras palavras, em um
sintegrados verticalmente – ou seja, sistemas contexto de incerteza de mercado e da conse-
nos quais as diferentes etapas do processo de quente necessidade de ajustar frequentemen-
produção de um bem final são efetuadas por fir- te o perfil da oferta para responder de modo
mas independentes, unidas apenas por relações adequado à evolução rápida e imprevisível
de mercado, em vez de unidades produtivas da demanda, a aglomeração mitiga os riscos

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016 627
Daniel Sanfelici

derivados da necessidade de encontrar novos know-how e a experiência adquiridos na em-


fornecedores e insumos especializados. presa em que estava.
Um terceiro nível de externalidades rela- Indubitavelmente mais importante na
cionadas à aglomeração surge da formação de atual fase do capitalismo, em que a concorrên-
um mercado de trabalho denso e diversificado. cia entre empresas nos setores líderes da eco-
Aqui as vantagens emergem das facilidades nomia se baseia não mais apenas no preço final
de que gozam as empresas no momento de e sim, crescentemente, no conhecimento e na
prospectar e de contratar novos empregados inovação (Storper, 1997; Veltz, 2014; Mouhoud
com qualificações especializadas para realizar e Plihon, 2009; Scott, 2014; Courlet e Pecqueur,
funções específicas, minimizando o risco de 2013), a aglomeração está associada com um
não encontrar a mão de obra de que necessi- quarto efeito de externalidade positiva: a pro-
tam para responder à evolução dos mercados. moção do aprendizado. O ponto de partida pa-
Do ângulo do empregado, existência de um ra estabelecer essa relação entre aprendizado
universo extenso e heterogêneo de empresas e aglomeração é o reconhecimento de que os
permite-lhe valorizar competências específi- caminhos que conduzem à inovação e ao pro-
cas, incentivando e justificando maior nível de gresso técnico não estão circunscritos à pesqui-
qualificação e especialização (Scott e Storper, sa e ao desenvolvimento realizado em labora-
2007; Scott, 2006; Puga, 2010). Esse incentivo à tórios, separados do dia a dia da produção e da
habitação em áreas aglomeradas é ainda mais gestão dos negócios. Com efeito, se, no auge
contundente quando se trata de casais com do período fordista, não era de todo equivoca-
qualificação elevada, visto que a probabilida- do destacar a forte separação entre o momento
de de ambos encontrarem inserção adequada da concepção e o momento da execução como
no mercado de trabalho é significativamente um dos traços marcantes da organização da
maior em metrópoles do que em cidades me- produção (Veltz, 2014), nos segmentos tipica-
nores (Veltz, 2012). É preciso, outrossim, levar mente pós-fordistas a inovação aparece cada
em consideração, como outro fator de estímulo vez mais como resultado de processos intera-
à aglomeração, que os trabalhadores localiza- tivos que ocorrem no seio de uma densa malha
dos em uma área aglomerada têm maior pro- de relações cotidianas travadas entre profissio-
babilidade de exibir uma trajetória profissional nais de uma mesma firma e, mais amplamen-
de mobilidade entre empresas de um mesmo te, pertencentes a uma miríade de firmas que
setor ou mesmo de setores diferentes. Essa mo- cooperam horizontalmente no interior de uma
bilidade é, ao mesmo tempo, fonte de sociali- mesma cadeia produtiva (Veltz, 2014; Bathelt,
zação – ou seja, fomenta a internalização, pelo Malmberg e Maskell, 2004; Malmberg, 1997).4
trabalhador, dos ritmos, hábitos e práticas de Essas relações envolvem a troca frequente de
trabalho dominantes na aglomeração em ques- conhecimentos diversos, mormente de natu-
tão, induzindo o aumento da produtividade das reza tácita, que contribuem para solucionar
empresas – e de circulação de aprendizado – toda sorte de problemas relacionados à orga-
na medida em que, ao migrar de uma empresa nização da produção e que, mais amplamente,
para outra, o trabalhador leva consigo todo o estimulam a experimentação de novas formas

628 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016
A centralidade das aglomerações metropolitanas...

de organização do trabalho, o uso de novos acelerado e autossustentado através da espe-


equipamentos técnicos e a criação de novas cialização em um setor ou em um grupo de
linhas de produtos. A proximidade espacial de- setores econômicos de destaque, crescimento
sempenha aqui um papel indispensável (embo- este que lhes confere uma posição privilegiada
ra, deva-se frisar, jamais exclusivo) na medida na divisão territorial do trabalho. É assim que
em que gera um ambiente propício à inovação certas cidades vêm a adquirir reputação pelo
contínua através da troca constante de infor- domínio que exercem sobre as cadeias produ-
mação, ambiente este caracterizado pelo que tivas de alguns setores econômicos, como é o
Storper e Venables (2004) denominaram bur- caso de Londres e Nova York nas finanças, São
burinho. Bathelt, Malmberg e Maskell (2004, Francisco e o Vale do Silício na indústria de tec-
p. 38) explicam que o burburinho: nologia da informação, Milão na moda e Paris
na indústria farmacêutica, para citar apenas
[...] refere-se à ecologia de informação e
comunicação criada pelos contatos face a os exemplos mais conhecidos. É importante
face, pela copresença e pela colocalização ressaltar, portanto, que as externalidades de
das pessoas e firmas em uma mesma in- aprendizado a que estamos aludindo não são
dústria e lugar ou região. Esse burburinho
um resultado mecânico dos automatismos de
se compõe de informações específicas e
mercado, mas repousam sobre a capacidade
contínuas atualizações dessas informa-
ções, processos intencionais ou não inten- de os agentes econômicos locais construírem
cionais de aprendizado em encontros or- instituições (formais e informais) e desenvolve-
ganizados ou acidentais, a aplicação dos rem rotinas que fomentem a cooperação para
mesmos esquemas interpretativos e en-
o aprendizado de longo prazo, o que coloca
tendimentos mútuos sobre novos conhe-
em questão muitos dos modelos de desenvol-
cimentos e tecnologias, assim como tra-
dições culturais e hábitos compartilhados vimento urbano e regional que dominam a
em um domínio tecnológico particular, agenda política das cidades (voltaremos a esse
que estimulam o estabelecimento de con- ponto adiante).
venções e outros arranjos institucionais.
A persistência desse conjunto de meca-
(Tradução nossa)
nismos econômicos primários sustenta, portan-
Por isso, uma vez que ganham forma, to, as forças centrípetas de aglomeração que,
em uma região, convenções duradouras ba- por sua vez, promovem a aceleração do pro-
seadas no que Storper (1997) denominou in- cesso de urbanização na escala global, como
terdependências não comerciais ( untraded o exemplo da China atual ilustra bem (Miller,
interdependencies) entre os produtores, e insti- 2012). A menos que transformações profundas
tuições que, ao mesmo tempo, refletem e repro- ocorram no atual modelo de desenvolvimento
duzem as características fundamentais dessas econômico, a marcha da urbanização não de-
convenções, o processo de aglomeração tende verá ser refreada e, menos ainda, revertida nos
a se fortalecer como decorrência das vanta- próximos decênios. Por isto, o urbano e a urba-
gens competitivas geradas pelos processos de nização precisam estar no centro de qualquer
aprendizado. Algumas aglomerações passam, reflexão acerca do desenvolvimento econômi-
então, a exibir uma trajetória de crescimento co e social e dos sentidos que lhes devem ser

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016 629
Daniel Sanfelici

atribuídos. Em particular, parece inevitável hoje dos direitos de propriedade e pela formação de
a conclusão de que a mobilização do potencial um mercado no qual os proprietários negociam
latente de cooperação no contexto da imensa seus imóveis a um preço que reflete a capitali-
diversidade de culturas, hábitos, concepções e zação do fluxo esperado de renda (na forma de
habilidades que as cidades encerram é uma das aluguéis) que a cessão do uso da propriedade
chaves para repensar o desenvolvimento na imobiliária pode lhes proporcionar. Esse fluxo
atualidade. No entanto, antes de discutir essas esperado de renda guarda estreita relação com
questões relativas às possibilidades de inter- o posicionamento (cambiante) de uma parce-
venção política, convém colocar em pauta uma la do solo no tecido metropolitano. O princípio
outra dimensão do processo urbano, a saber, mais básico de estruturação do espaço urbano
as transformações do uso do solo urbano, os é, portanto, o da precificação da centralidade,
agentes que as promovem e suas consequên- o que explica que o gradiente de preços do so-
cias para os diferentes grupos e classes sociais lo urbano tenda a atingir seus patamares mais
que habitam as cidades. elevados nas proximidades dos pontos de maior
concentração das atividades econômicas ou em
locais onde o acesso a essas centralidades é
facilitado pela existência de infraestruturas de
A mudança nos usos transporte (Harvey, 2010; Scott, 1980) – o que
do solo urbano não significa que outros princípios de estrutu-
e a estrutura intraurbana ração do solo urbano não se façam igualmen-
te presentes, como amenidades diversas que
As mesmas forças de atração gravitacional que, criam externalidades positivas.
na escala do território, ocasionam a aglomera- Esse princípio básico de atribuição de
ção da atividade econômica em concentrações um preço (renda) à centralidade pode ser vis-
urbanas de elevada densidade e grande exten- lumbrado nitidamente em operação quando
são, condicionam algumas das características um investimento realizado pelo Estado em
básicas da estrutura interna das cidades. O uma nova linha de transporte metropolitano
tecido intraurbano é marcado pela justapo- interliga pontos antes mal conectados com as
sição de uma gama extensa de usos do solo áreas centrais da cidade, reposicionando as di-
que conformam uma totalidade ao mesmo ferentes parcelas do tecido urbano no espaço
tempo altamente diferenciada e fortemente relativo (Harvey, 1999). Um exercício hipotético
polarizada. Essa polarização reflete a procura permite ilustrar esse processo. Quando ocorre
das firmas e dos indivíduos nelas empregados um investimento em uma nova rede de trans-
por proximidade espacial, gerando pontos de porte ou a extensão de uma linha de transporte
maior densidade ocupacional que estruturam, já existente, o solo urbano situado nas imedia-
grosso modo, a distribuição dos usos do solo ções de um novo terminal de transporte torna-
(Scott, 2008). O acesso à proximidade espacial -se alvo de disputa entre potenciais usuários
e às vantagens dela decorrentes é mediado, com fins residencial ou comercial em função
na economia capitalista, pela regulamentação do seu melhor posicionamento em relação às

630 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016
A centralidade das aglomerações metropolitanas...

principais centralidades da metrópole. Essa dis- e Henneberry, 2000). Para permanecer com a
puta gera uma expectativa de preços futuros ilustração precedente: se as leis de zoneamen-
em ascensão que sinaliza, aos empreendedo- to da área adjacente ao novo terminal de trans-
res imobiliários, uma oportunidade de ganhos porte inibirem o adensamento e a verticaliza-
com a oferta de imóveis novos na região. Os ção, a elevação dos preços e, por conseguinte,
proprietários de imóveis ou terrenos na região a velocidade e intensidade das transformações
são, então, confrontados com uma demanda serão sobremaneira limitadas. 5 Em segundo
crescente de firmas de incorporação e constru- lugar, essa explicação focaliza (quase) exclusi-
ção em busca de terrenos para construção. Se vamente o lado da demanda por espaço como
a disponibilidade de terrenos for limitada por determinante nas transformações que ocorrem
se tratar de uma região já plenamente construí- nos usos do solo, atribuindo ao segmento imo-
da, os empreendedores imobiliários deverão biliário (e, portanto, à oferta) o papel eminen-
adicionar, aos demais custos de um empreen- temente passivo de reagir aos sinais de preço
dimento, os custos de demolição das estrutu- gerados pelo crescimento e pelas preferências
ras existentes e, com base nesse cálculo, deci- cambiantes da demanda – estas últimas con-
dir acerca da viabilidade do empreendimento. dicionadas por forças macroeconômicas ou
Com a expectativa de ganhos futuros validan- macrossociais, como a geração de empregos,
do os planos de investimento dos empreende- para o caso da demanda das empresas, ou o
dores imobiliários ocorrerá um gradativo aden- aumento da renda, para o caso da demanda
samento ocupacional acompanhado de (maior das famílias (Healey e Barrett, 1990; Healey,
ou menor) elevação dos preços imobiliários na 1991; Gottdiener, 1994). No entanto, ainda que
localidade, alterando, por sua vez, o perfil so- em um nível elementar, a demanda por novos
cioeconômico dos moradores. imóveis responda a estímulos macroeconômi-
Se é inegável que a lógica da centralida- cos variados, a natureza e a direção espacial
de estrutura em grandes linhas a distribuição das transformações imprimidas na escala local
dos usos do solo urbano, a caracterização do refletem igualmente as interações (muitas ve-
processo de transformação nos usos do solo zes conflituosas) entre uma gama heteróclita
nos termos acima capta apenas parcialmente a de agentes – proprietários de terras, incorpora-
realidade, porque supõe o triunfo irrestrito de dores, investidores, bancos, agências de plane-
uma racionalidade econômica pura em que os jamento urbano, etc. – inseridos em um contex-
empreendedores apenas respondem cegamen- to de convenções, valores, instituições e rotinas
te aos estímulos gerados pela evolução da de- de produção particulares ao território no qual
manda. Em primeiro lugar, e de modo evidente, operam. Dito de outra maneira, a simples exis-
todas as decisões de transformação do uso do tência de uma demanda não permite antever
solo são mediadas por instituições e por mar- com precisão: 1) se essa demanda será aten-
cos regulatórios, operantes em diversas escalas dida (no volume necessário) e com que rapi-
espaciais, que restringem ou direcionam a ação dez, tendo em vista os inúmeros obstáculos de
dos proprietários, dos investidores, dos empre- natureza regulatória e de coordenação que se
endedores e dos usuários finais (Ball, 1983; Guy interpõem aos agentes na produção de novos

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Daniel Sanfelici

imóveis; e 2) como essa demanda será atendi- devem disputar o espaço (social, mas também
da, seja em termos de tipologias e qualidades geográfico) com outras formas de conceber
de construção, seja em termos de localização. os benefícios aportados pela propriedade de
Depreende-se disso, entre outras coisas, que imóveis. Ademais, raramente os habitantes de
a reconfiguração dos usos do solo da cidade uma cidade aceitam passivamente o avanço da
não deve ser interpretada apenas como uma racionalidade econômica sobre formas alter-
reação do mercado imobiliário a variáveis que nativas de conceber, imaginar e organizar os
lhe são exógenas, como a evolução da renda, usos e fluxos que perpassam o espaço urbano
o crescimento econômico, a mudança das pre- (Fainstein, 2001). Embora inúmeras disputas de
ferências dos consumidores e a ampliação das moradores contra o adensamento e a constru-
infraestruturas de transporte, mas também, em ção de novos edifícios não sejam muito mais
boa medida, como um produto das decisões e do que defesas de privilégios, bem sintetizadas
apostas especulativas de empreendedores que, no acrônimo inglês NIMBY,8 muitas outras são
longe de agir isoladamente, fazem-no em um conduzidas por organizações e movimentos
ambiente denso de interações, trocas de infor- sociais com uma visão mais ampla de direito
mação, crenças compartilhadas, alianças, etc. à cidade. São essas organizações que pressio-
(Guy e Henneberry, 2000; Fainstein, 2001). É nam o poder público para intervir no sentido de
essa autonomia relativa da oferta em relação impedir que o adensamento excessivo elimine
às circunstâncias econômicas que explica a os espaços públicos ou gere uma sobrecarga
capacidade de o setor imobiliário criar novas sobre a infraestrutura existente; para preservar
centralidades urbanas em localidades pouco o patrimônio histórico-cultural da cidade; pa-
evidentes do ponto de vista dos eixos estru- ra reivindicar o direito de grupos sociais mais
turantes de uma metrópole, produzindo um vulneráveis permanecer em áreas mais centrais
redirecionamento do crescimento da cidade das cidades (seja mediante o investimento em
através da redistribuição dos grupos sociais no novos projetos de moradia social, seja através
6
tecido urbano. da regularização e qualificação de assentamen-
O enredamento do mercado imobiliário tos informais); ou para solicitar melhor acessi-
em contextos sociais, políticos e culturais de bilidade das áreas mais empobrecidas aos cen-
referência tem por corolário evidente que a tros de emprego e lazer através da ampliação
morfologia espacial das cidades jamais é um da rede de transporte. A mercantilização do
reflexo de uma racionalidade econômica pura, solo urbano e a rígida segregação dos grupos
como preconizam ou desejam algumas aborda- sociais no espaço que dela resulta não podem
7
gens econômicas. Como assinala Haila (1988), ser, portanto, vistas como um processo contí-
as condições de exercício de uma racionalidade nuo e inexorável, sem contradições e disputas
mais puramente econômica, que viabilizaria o que impõem avanços e recuos (voltaremos a
tratamento do solo urbano como um ativo fi- esse ponto adiante).
nanceiro nos termos de Harvey (1999), nem Em síntese, a estrutura interna das ci-
sempre estão presentes e, mesmo quando es- dades traduz, inegavelmente, os imperati-
tão, os agentes portadores dessa racionalidade vos econômicos básicos de aglomeração e

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A centralidade das aglomerações metropolitanas...

polarização, mas essas forças primárias são antes assinalar um ponto de comum acordo
sempre mediadas e defletidas por normas, entre a maioria dos autores, a saber, que um
instituições, rotinas e convenções sociais que dos traços mais expressivos da ascensão das
produzem resultados pouco previsíveis em ter- finanças globalizadas é seu afã de reduzir, para
mos socioespaciais – algo que um olhar com- fins de comparabilidade imediata, todos os se-
parativo superficial entre cidades tão diferentes tores da economia a um denominador comum
como Amsterdã e Los Angeles, ou São Paulo universal: sua capacidade de gerar valor para
e Buenos Aires, pode facilmente confirmar o acionista investidor. Esse apetite por renta-
(Shatkin, 2007). Dito isto, é pertinente reconhe- bilidade se combina com estratégias de diver-
cer que a entrada em cena de novos agentes sificação de ativos – tanto geográficas quanto
na produção do espaço vem produzindo pres- setoriais – que prometem reduzir a exposição
sões em favor de um aprofundamento de uma ao risco concentrado, compensando flutuações
racionalidade mais estritamente econômica na negativas em algum setor com ganhos mais ex-
concepção e produção das cidades. Referimo- pressivos em outro.
-nos aqui à relevância que assumiram os ativos O setor imobiliário emergiu, nesse con-
de base imobiliária nas estratégias de gestão texto, como uma das alternativas de diver-
de portfólio de agentes financeiros designados sificação de investimento aos investidores
genericamente como investidores institucio- institucionais, que podem obter exposição a
nais. Desde meados da década de 1980, sob essa “classe de ativos” (jargão comum no meio
o efeito triplo da desregulamentação e libe- financeiro) por mais de uma via – por exem-
ralização financeira iniciada com mais ímpeto plo, a compra de ações ou de títulos privados
nos Estados Unidos, das inovações no âmbito emitidos por construtoras e incorporadoras;
das tecnologias da informação e, finalmente, a aquisição direta de imóveis para locação a
do redirecionamento da poupança privada, outras empresas, como edifícios corporativos
antes concentrada em depósitos bancários, nos distritos de negócios das cidades ou gal-
para alternativas de investimento mais rentá- pões logísticos situados próximos a entronca-
veis como fundos de pensão e mutual funds, mentos rodoviários estratégicos; a aquisição
os investidores institucionais tornaram-se de cotas de companhias imobiliárias ou fundos
protagonistas das transformações profundas de investimento imobiliário; a compra de par-
ocorridas na economia capitalista, muito além ticipação em shopping centers, etc. Conforme
do domínio financeiro stricto sensu. São essas uma gama de pesquisas vem demonstrando, a
transformações de ampla envergadura nas es- entrada desses novos agentes no financiamen-
truturas básicas do capitalismo que uma litera- to à atividade imobiliária acarretou mudanças
tura extensa, e em franco crescimento após a importantes não apenas na organização inter-
crise de 2008, procurou englobar com o con- na do setor imobiliário, que em alguns países
ceito de financeirização (Braga, 1997; Orléan, levou à consolidação de firmas de maior poder
1999; Froud, Johal e Williams, 2002; Chesnais, de mercado, mas também na própria manei-
2002; Lapavitsas, 2009; Belluzzo, 2009). Não é ra como esse setor produz as cidades (Bote-
nosso propósito aqui revisitar esse debate, mas lho, 2007; Fix, 2007; Shimbo, 2012; Theurillat,

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Daniel Sanfelici

Corpataux e Crevoisier, 2010; Aalbers, 2008; em cidades nas quais a liquidez dos ativos é
David e Halbert, 2014; Halbert e Rouanet, 2014; mais elevada, ou seja, em que a densidade do
Sanfelici e Halbert, 2016; Guironnet, Attuyer mercado imobiliário local facilita tanto a re-
e Halbert 2015; Fields e Uffer, 2016). Em par- venda do ativo para reestruturação da carteira
ticular, a presença dos investidores financeiros quanto a prospecção de um novo locatário na
introduziu temporalidades e espacialidades dis- ocasião de uma rescisão ou término de contra-
sonantes no processo de produção das cidades, to; e em que a percepção de risco é menor de-
geralmente tributárias de um modo diferente vido à familiaridade com o ambiente de negó-
de conceber rentabilidade e risco (Theurillat, cios (Theurillat, Corpataux e Crevoisier, 2010;
Rérat e Crevoisier, 2015). Henneberry e Mouzakis, 2014).
Três breves exemplos são suficientes O segundo exemplo refere-se à presença
para esclarecer esse ponto. Primeiro, no caso dos investidores como acionistas de empresas
de ativos como edifícios de escritório, o mo- de construção e incorporação, um tema sobre o
vimento de externalização (venda) do patri- qual é instrutivo olhar para a evolução recente
mônio imobiliário por parte de empresas até no Brasil. A partir de 2005, quando uma onda
então proprietárias-ocupantes, iniciado nos de investimento estrangeiro atingiu o segmen-
anos 1980 e justificado pelo anseio por maior to da construção e incorporação, um grupo de
flexibilidade operacional, tornou esses ativos incorporadoras tirou proveito das condições
imobiliários alvos preferenciais de investidores de financiamento para adotar estratégias de
como fundos de pensão e veículos de investi- expansão acelerada através da aquisição de
mento especializados, como os fundos de in- outras empresas e da entrada em mercados
vestimento imobiliário. Esses agentes investem regionais (Shimbo, 2012; Fix, 2011; Sanfelici,
seja adquirindo imóveis já existentes de firmas 2013). Essa estratégia de expansão acelerada,
que desejam se desvencilhar de seu patrimônio fruto de uma convenção coproduzida entre a
imobiliário, seja adquirindo (e às vezes finan- comunidade financeira e a diretoria das cons-
ciando) imóveis novos que lhes são ofertados trutoras de capital aberto, engendrou um en-
por promotores imobiliários. As análises exis- curtamento do horizonte temporal das empre-
tentes sobre as estratégias de investimento sas, cujo desempenho passou a ser mensurado,
desses investidores financeiros apontam para nos anos que sucederam à abertura de capital,
lógicas de seletividade pronunciadas que con- cada vez mais de acordo com o aumento no
tribuem para a concentração geográfica dos volume de unidades lançadas de um trimestre
investimentos imobiliários em um núcleo duro para o outro, em detrimento de uma visão de
de metrópoles com vocação global e, dentro mais longo prazo e multidimensional (Sanfelici
delas, em alguns poucos distritos de negócios e Halbert, 2016). Essa ênfase na capacidade de
consolidados. Essas lógicas possuem funda- expansão das empresas teve como resultado,
mentos diversos, mas frequentemente encon- além de uma mudança decisiva na estrutura do
tram explicação em noções de risco e retorno setor devido à maior participação de mercado
muito próprias às finanças de mercado, que le- das incorporadoras de capital aberto, a multi-
vam os investidores a priorizar o investimento plicação de grandes projetos imobiliários, como

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A centralidade das aglomerações metropolitanas...

condomínios fechados e loteamentos denomi- em processos de valorização territorial que tor-


nados “bairros planejados”, que fortaleceram nam mais difícil a presença de moradores de
um padrão fragmentado de produção do espa- renda mais baixa e de pequenos comerciantes
ço nas grandes cidades (Sanfelici, 2013). em áreas de acessibilidade urbana elevada,
Por fim, convém sublinhar que os in- embora as repercussões concretas de projetos
vestidores financeiros se caracterizam pelo imobiliários ou planos de renovação urbana
recurso a práticas de investimento pouco con- precisem ser estudadas caso a caso e não de-
vencionais que permitem extrair o máximo de dutivamente presumidas.9 De todo modo, esses
rendimento de um ativo imobiliário. Uma des- novos agentes econômicos e as estratégias que
sas práticas é a aquisição de imóveis na fase acionam colocam importantes desafios para
recessiva do ciclo de negócios, visando ganhos gerir as metrópoles, sobretudo de uma perspec-
de capital de curto e médio prazo. Essa prática tiva que priorize as questões de justiça social e
geralmente está acessível somente a grandes direito à cidade.
fundos de investimento que podem recorrer à
alavancagem (contração de empréstimos) para
maximizar os ganhos e já se faz presente na Desafios futuros
realidade brasileira com a entrada recente de das metrópoles: reinventar
grupos internacionais como Blackstone (Grant,
2015). À aquisição pode se seguir um projeto
o desenvolvimento local
de renovação do ativo para adequá-lo às exi- através de um enfoque
gências das empresas ocupantes e, após a reto- transescalar e multidimensional
mada do crescimento econômico, a revenda do
ativo para outros investidores e a realização de Diante do quadro de transformações acima es-
expressivos ganhos de capital. boçado, em que forças econômicas abstratas
A participação mais ativa de investido- parecem impor tanto um recrudescimento da
res financeiros no circuito de financiamento da metropolização em escala global quanto uma
atividade imobiliária bem como o volume de profunda reestruturação da morfologia interna
recursos que esses agentes estão aptos a mo- das metrópoles, haveria ainda sentido em pen-
bilizar sinalizam, portanto, para um avanço da sar (e exercer) a política na escala local? Ou,
racionalidade financeira que converte os ativos ao contrário, haveriam as interdependências
imobiliários em ativos financeiros comparáveis tecidas pela globalização e a proeminência de
a outros títulos e obrigações (Harvey, 1999). agentes econômicos desterritorializados causa-
Cada vez mais zonas urbanas percebidas como do um esvaziamento da política nessa escala
subaproveitadas do ponto de vista da geração geográfica? E, finalmente, se a resposta para
de renda são reconvertidas a fim de possibilitar esta última indagação for negativa, que mar-
uma extração de renda compatível com a sua gem de manobra haveria restado aos governos
localização no tecido metropolitano. Essa pres- locais? As reflexões elaboradas nos parágrafos
são por capitalização financeira dos fluxos de acima, que sublinharam o caráter social e po-
rendimento urbano traduz-se, em muitos casos, liticamente situado da economia capitalista e

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das trocas de mercado, sugerem, de imediato, Ao contrário da concepção anterior, que vê a


uma resposta positiva à primeira interrogação. política local inteiramente à mercê do poder
No entanto, entendemos que é preciso quali- de fogo das maiores empresas e de sua inca-
ficar esse debate se se pretende pensar o de- pacidade de estabelecer laços mais duradou-
senvolvimento local e, sobretudo, nesse movi- ros com as localidades, esta última concepção
mento, responder à terceira questão, sobre as se inspira em boa parte na literatura, revisada
margens de manobra na escala local. no primeiro item deste artigo, que versa sobre
Conforme argumentou Halbert (2016), as externalidades geradas pela copresença de
duas formulações, em boa medida antagônicas, atores econômicos organizados em cadeias
ganharam proeminência na reflexão sobre o produtivas locais. Para esta, a internacionali-
papel dos governos locais no contexto da glo- zação das economias nacionais e a consequen-
balização. A primeira ressalta a fluidez e mo- te perda de capacidade de coordenação eco-
bilidade dos atores econômicos ensejadas pela nômica dos Estados nacionais haveriam alçado
globalização da economia e propugna a imple- a escala local à linha de frente na política de
mentação de políticas visando a atrair esses desenvolvimento. Não se trataria, entretan-
atores desterritorializados mediante a oferta to, de atrair investidores exógenos através da
de incentivos de natureza diversa, como inves- concessão de incentivos, mas de identificar
timentos em infraestrutura física e incentivos os recursos latentes de uma região e poten-
fiscais. Segundo essa concepção da política lo- cializar sua mobilização através do incentivo
cal, não restaria a esta última, portanto, senão à cooperação entre os agentes locais. Como
adequar-se ao poder de mobilidade das gran- enfatiza Halbert (2016), tratar-se-ia, aqui, de
des firmas e disputar com outras localidades a uma engenharia territorial “suave”, baseada
atração dessas firmas, na esperança de que a menos na oferta de ativos materiais do que no
instalação de novos agentes exógenos possa incentivo à mobilização e associação entre os
gerar sinergias positivas em suas interações atores econômicos.
com outras firmas locais e, assim, impulsionar Não é nosso objetivo, aqui, analisar cri-
o crescimento econômico. A ideia de cidade ticamente essas duas vertentes (para isso, ver
criativa, inspirada pela teoria de Richard Flori- Halbert, ibid.), mas antes apontar dois aspectos
da, não seria muito mais do que uma variante que nos parecem essenciais para pensar o de-
desta última concepção, cujo foco é a atração, senvolvimento local na atualidade, sobretudo
não de empresas, mas de indivíduos altamente se quisermos escapar de duas ilusões muitas
qualificados para os centros urbanos através vezes presentes na literatura sobre o desenvol-
da melhoria de sua qualidade de vida (medida vimento local: a de que o exercício da política
pela existência de espaços públicos, cosmopoli- nas demais escalas geográficas haveria perdido
tismo cultural, tolerância, etc.). importância ou sentido na era da globalização;
Uma vertente diferente desta última é e a de que a política local deve focar-se no estí-
aquela por alguns denominada novo regio- mulo ao crescimento econômico, visto que me-
nalismo (Amin, 1999) ou localismo endógeno lhorias sociais e ambientais viriam naturalmen-
10
(Brandão, 2007), em suas diversas variantes. te a reboque do crescimento. O primeiro deles

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A centralidade das aglomerações metropolitanas...

consiste em reafirmar o lugar da política na uma política de estímulo econômico implemen-


escala local, mas, diferentemente da perspecti- tada na escala local, segundo as linhas de ação
va dita localista, atentar para suas imbricações propugnadas pelo modelo de desenvolvimento
com outras escalas políticas, ou seja, pensar a endógeno, seja o suficiente para desatar um ci-
política exercida na escala local como inserida clo de crescimento virtuoso significa ignorar a
em arranjos escalares mais complexos, que não complexidade dos arranjos escalares nos quais
podem ser ignorados nem suplantados pela está inserida a política local (Brandão, 2004;
pura vontade dos atores locais. Por isso, enten- MacLeod e Goodwin, 1999; Brandão, 2007;
demos que uma política de desenvolvimento Veltz, 2012; Amin, 1999).
que se dirija ao local não pode perder de vista Uma segunda constatação, relacionada à
a complexidade escalar do Estado e da política. primeira e que fortalece a perspectiva de pen-
O segundo consiste em ressaltar que uma polí- sar a política local como inserida em arranjos
tica de desenvolvimento urbano só merece es- escalares maiores, refere-se ao fato de que a
sa denominação a partir do momento em que importância adquirida pela escala local na ges-
as diferentes dimensões do que se deveria con- tão do desenvolvimento urbano não é apenas
siderar desenvolvimento estejam devidamente um corolário da reorganização da economia
articuladas em um projeto de longo prazo. global, que haveria elevado esse nível escalar
Quanto ao primeiro ponto, que denomi- como aquele funcionalmente mais adequado
naremos transescalaridade da política urbana, para equacionar os problemas que entravam
ele decorre de pelo menos duas constatações o desenvolvimento; na verdade, nos países em
importantes. A primeira refere-se ao fato de que a descentralização avançou de maneira
que a preeminência da escala local, mesmo nos mais rápida e consistente, isto ocorreu também
casos de descentralização da gestão pública como consequência da implementação de uma
mais pronunciados, precisa ser, ainda assim, estratégia de reorganização do Estado que
relativizada. Apesar da delegação de inúmeras reflete um determinado projeto político hege-
responsabilidades administrativas às escalas mônico (Brenner, 1999; MacLeod, 2001). Isto
de governo regional e local, em toda parte a significa, portanto, pensar a estrutura e orga-
escala nacional continua tendo um peso cen- nização (inclusive escalar) do Estado não como
tral na definição de algumas das diretrizes ba- um produto direto de determinações econô-
silares do desenvolvimento social e econômico. micas advindas da globalização da economia,
Decisões importantes com respeito a aspectos mas como um resultado (sempre temporário)
tão diversos quanto a política de juros, a previ- de conflitos e disputas políticas em torno de
dência social, a definição do salário mínimo, a um projeto hegemônico (Swyngedouw, 1997;
destinação de verbas à saúde e à educação, a MacLeod e Goodwin, 1999).11
política comercial, o investimento em pesquisa Quais são as implicações, para a política
e tecnologia, o investimento em grandes infra- urbana, que decorrem do reconhecimento da
estruturas, entre inúmeros outros, continuam, complexidade escalar da política e do Estado?
em muitos países, sendo prerrogativa política Parece-nos essencial ressaltar, aqui, que qual-
dos governos centrais ou federais. Esperar que quer projeto de desenvolvimento na escala

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Daniel Sanfelici

urbana deve almejar a construção de vínculos brasileiro é rico em exemplos. É certo que exis-
de cooperação e alinhamentos de metas com tem inúmeras políticas e intervenções em nível
outras escalas de administração política, visan- local, muitas delas previstas no Estatuto da
do à potencialização dos ganhos gerados por Cidade, que podem atenuar as desigualdades
uma determinada política pública. É evidente urbanas, como a definição de zonas especiais
que a construção desses vínculos entre escalas de interesse social, o uso do IPTU progressi-
políticas não é apenas um problema de nature- vo para coibir a especulação com terrenos em
za técnica, visto que as relações entre escalas regiões providas de infraestrutura, a regulari-
estão permeadas por relações de poder, e estas zação e urbanização de favelas e a concessão
definem em grande medida em torno de quais de terrenos públicos ou a desapropriação de
políticas a convergência escalar será possível – terrenos privados para fins de moradia social
voltaremos a esse ponto das relações de poder. (para um rol desses instrumentos, ver Souza,
No entanto, é preciso frisar que a ausência de 2001). Essas políticas e mecanismos devem
formas de coordenação interescalar na formu- ser reconhecidos em sua utilidade e devem ser
lação e implementação das políticas urbanas empregados em todo seu potencial. No entan-
resulta em toda sorte de disfuncionalidades e to, essas ações terão seus efeitos limitados ou
ineficiências que constituem importantes im- mesmo dissolvidos enquanto o sistema tribu-
pedimentos para avanços imprescindíveis no tário brasileiro, instituído em sua maior parte
âmbito do desenvolvimento urbano. A questão em âmbito federal, permanecer caracterizado
emergente da mobilidade urbana no Brasil, que por injustiças tributárias gritantes (Gondim e
esteve no centro dos protestos de 2013, ilustra Lettieri, 2010), um ponto que muitos estudio-
bem a urgência de uma política de coordena- sos do urbano soem ignorar.12
ção entre escalas. Embora inúmeros municí- O segundo ponto que merece atenção
pios tivessem envidado esforços genuínos, nos diz respeito à multidimensionalidade das polí-
últimos anos, no sentido de aprimorar o siste- ticas de desenvolvimento local, ou seja, à exi-
ma de transporte coletivo e, assim, abreviar o gência de um reconhecimento mais explícito e
tempo de deslocamento diário entre moradia e reflexivo, pelos agentes políticos, das interde-
trabalho, as políticas implementadas em nível pendências existentes entre as diferentes di-
federal de incentivo ao transporte individual mensões do fenômeno urbano como condição
motorizado e de financiamento subsidiado para a formulação de políticas públicas mais
à aquisição da casa própria anularam todo e abrangentes e justas. Subjacentes a esse ape-
qualquer avanço que tivesse sido efetuado na lo estariam razões tanto de ordem normativa
escala local ou metropolitana (Maricato, 2011; quanto de eficiência. No que tange à sua base
Souza, 2013), deteriorando, sobremaneira, normativa, a ideia de multidimensionalidade
as condições de deslocamento de parte dos implica transcender uma visão de desenvolvi-
habitantes da cidade. A necessidade de ação mento local e regional que, a despeito de avan-
transescalar é igualmente evidente em uma ços, continua a colocar o acento sobre o cres-
política de mitigação das desigualdades so- cimento do produto como indicador prioritário
cioespaciais locais, e aqui novamente o caso do progresso (Moulaert e Nussbaumer, 2005).

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A centralidade das aglomerações metropolitanas...

Essa visão economicista, já há muito criticada instituição de fóruns de discussão e de acom-


por pensadores das mais variadas filiações teó- panhamento das políticas públicas; a promoção
ricas, segue muito presente na literatura sobre de canais de diálogo e troca de conhecimento
desenvolvimento regional. Ora, se é verdade entre as empresas locais e exógenas visando
que não se pode conceber o desenvolvimento a estimular a reflexividade, o aprendizado e a
local e regional em um contexto de privação inovação; o combate às dinâmicas de segrega-
material aguda, como ocorre em muitos países ção socioespacial que erigem barreiras (físicas
do mundo em desenvolvimento, é também ca- e simbólicas) ao encontro de grupos sociais e
da vez mais inegável que a noção de desenvol- culturais diferentes, um dos impulsos vitais da
vimento extrapola em grande medida a mera vida urbana. Trata-se, aqui, de apenas alguns
elevação do produto e da renda. Com efeito, exemplos que evidenciam o fato de que mui-
sabe-se hoje que este último não necessaria- tas das políticas frequentemente concebidas
mente garante direitos básicos, como o acesso como pertencentes ao campo do social e do
à educação, ao saneamento básico, a condições político são também componentes essenciais
ambientais salutares, ao atendimento médico, da vitalidade econômica da metrópole. Por isto,
etc., benefícios que decorrem também de ou- o horizonte de um urbanismo aberto (Halbert,
tros aspectos, como as disputas políticas em 2010), que se oponha às tendências de frag-
torno das prioridades de gasto público, o dese- mentação e segregação sempre presentes nas
nho das instituições, a qualidade da implemen- metrópoles, deve estar no centro das políticas
tação das políticas, a distribuição da renda, etc. de desenvolvimento local. Desnecessário frisar
Em um plano mais pragmático, os avanços que, tal como a ideia de uma política multies-
teóricos efetuados nos campos da geografia calar, a inclusão dessa perspectiva totalizante
econômica, sociologia econômica e economia no planejamento urbano e regional é um ato
institucional, que colocaram em evidência o essencialmente político, no sentido de que pre-
caráter social e culturalmente situado da eco- cisa confrontar uma gama de forças, interesses
nomia (Amin, 1999; Peck, 2005), fornecem sub- e setores econômicos que promovem e se be-
sídios para uma política de desenvolvimento neficiam de um modelo de cidade e de política
regional que tem na integração entre as dife- urbana de viés segregador.
rentes dimensões do mundo social uma condi-
ção básica de eficiência da intervenção estatal.
Com efeito, cada vez mais se reconhece que a Considerações finais
robustez econômica das regiões se alicerça na
qualidade e densidade dos elos que aproximam O presente artigo procurou sintetizar, em gran-
os diferentes agentes econômicos, suscitando des linhas, as principais forças econômicas
um ambiente propício à confiança e à coope- que impelem o processo de urbanização e as
ração. A construção de vínculos de associação mudanças territoriais urbanas no capitalismo
mais duradouros inclui, entre outras coisas, a atual. Observou-se, em primeiro lugar, que o
criação e o fortalecimento de uma cultura de motor básico da acumulação, impulsionado
participação democrática e cidadã, através da pela pressão competitiva em um ambiente

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econômico crescentemente global, exacerba a complexidade escalar da política – o que per-


busca pela proximidade espacial por parte dos mite escapar de um localismo ingênuo presente
agentes econômicos, principalmente em função em parte da literatura sobre o ressurgimento
das vantagens competitivas que a aglomeração das cidades e regiões – quanto a multidimen-
espacial engendra – o que contraria um leque sionalidade do desenvolvimento econômico.
variado de previsões surgidas no limiar da mais Ressaltar as oportunidades de transfor-
recente revolução tecnológica acerca da perda mar as áreas metropolitanas em prol de um
de importância da copresença no funcionamen- desenvolvimento econômico e social alterna-
to básico da economia. São essas forças funda- tivo não significa, de forma alguma, ignorar o
mentais que reorganizam a economia global fato de que a política local está enredada em
em um extenso arquipélago composto de den- relações intricadas e multiescalares de poder
sas aglomerações urbanas interconectadas por (MacLeod, 2001). De uma parte, os governos
redes (comerciais, informacionais, tecnológicas) locais precisam encontrar caminhos para for-
de longa distância cada vez menos definidas ou jar alianças com outras escalas de poder, que
controladas pelas fronteiras nacionais. Em um facilitam o acesso aos recursos (monetários,
segundo momento, assinalamos que igualmen- técnicos, operacionais, etc.) necessários para
te na escala local existem determinações eco- implementar ações na escala local. A existência
nômicas fundamentais que moldam e reconfi- de divergências políticas entre diferentes entes
guram incessantemente a distribuição dos usos territoriais pode tanto dificultar o acesso a es-
do solo urbano, sobretudo em função da acessi- ses recursos, perturbando iniciativas potencial-
bilidade à principal (ou principais) centralidade mente positivas, quanto, em casos mais extre-
da cidade. Contudo, como procuramos salientar, mos, bloquear por completo a possibilidade de
em especial no item precedente, essas forças capacidade de um governo local levar adiante
econômicas não operam em um vácuo social, um projeto político alternativo.
mas estão fortemente enraizadas em estrutu- De outra parte, é evidente que, no âm-
ras políticas, tradições culturais, instituições, bito local, a existência de visões arraigadas (e
convenções e redes de poder local. Por isso as muitas delas francamente conservadoras) sobre
transformações impressas pela globalização na o desenvolvimento local e a inércia que essas
escala local não devem ser vistas como o resul- visões produzem opõem forças de monta para
tado de forças de mercado inexoráveis, às quais o avanço de projetos políticos mais progressis-
não restaria outra opção senão adaptar-nos (a tas. Em uma democracia, as divergências e as
famosa proposição neoliberal sobre não haver disputas políticas devem sempre ser decididas
alternativa). Antes, há margem considerável de com base na construção de novos consensos
manobra para redirecionar o desenvolvimento que permitam agregar os cidadãos em torno
econômico para arranjos mais favoráveis do de um projeto político mais amplo. A disputa
ponto de vista da justiça social e ambiental. acerca desses consensos está, todavia, sempre
Para isso, como foi ressaltado, é necessária aberta. Por isso, a construção de uma política de
uma visão que tome em consideração tanto a desenvolvimento local alicerçada em uma visão

640 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016
A centralidade das aglomerações metropolitanas...

mais progressista da cidade requer, antes de vocabulário) político capaz de oferecer uma vi-
tudo, que as forças progressistas na sociedade são alternativa de cidade que seja coerente e
civil elaborem um novo imaginário (e um novo que mobilize os diferentes grupos sociais.

Daniel Sanfelici
Universidade Federal Fluminense, Instituto de Geociências, Departamento de Geografia. Niterói,
RJ/Brasil.
danielsanfelici@gmail.com

Notas
(*) Este artigo é o resultado de reflexões desenvolvidas durante estágio de pós-doutorado no
Laboratoires Techniques, Territoires et Sociétés (Université Paris-Est). Agradeço à Capes pelo
financiamento ao estágio de pesquisa.

(1) Esse discurso não se circunscrevia aos debates no campo da economia, mas, em suas diferentes
versões, estava presente nos principais debates das ciências humanas, como o atesta a
prevalência do conceito de “desterritorialização” entre seus proponentes. Cf. Haesbaert (2004).

(2) Cf. http://www.un.org/en/development/desa/news/population/world-urbanization-


prospects-2014.html.

(3) A profusão de pesquisas explorando a relação entre aglomeração e desempenho econômico foi
precedida, no período pós-guerra, por teorias de economistas como François Perroux, Albert
Hirschman e Gunnar Myrdal. Apesar do pioneirismo desses autores, a questão ficou em grande
medida submersa diante de outros temas que eram considerados mais importantes, como as
relações entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos ou entre centros e periferias, na arena
internacional (Sco , 2002).

(4) Sobre isto, Veltz (2014) afirma que “é na interorganização [...] que se constroem as competências
e que se definem, em grande parte, os avanços técnicos. O ‘progresso técnico’ é, ao mesmo
tempo, cada vez mais endogeneizado na economia mercan l e subme do às suas leis, e mais
dependente de processos coopera vos e socializados” (p. 190, tradução nossa).

(5) Pode-se presumir, como muitos o fazem, que os interesses de alguma fração de classe ou
setor econômico ou, ainda, e de maneira mais abstrata, do capital serão determinantes na
formulação das leis de uso e ocupação do solo. Existem, evidentemente, muitos exemplos para
confirmar tal assertiva. Entretanto, existem inúmeros outros exemplos em que, no embate
entre proprietários e construtoras, os primeiros acabam por impor suas preferências, sobretudo
quando são proprietários de alta renda.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016 641
Daniel Sanfelici

(6) Essa capacidade endógena do mercado imobiliário de redefinir, em um contexto de expecta vas
e crenças par lhadas entre os empreendedores privados, a distribuição dos usos do solo na
cidade levou Abramo (2001 e 2012) a desenvolver uma análise da produção da cidade baseada
na economia das convenções.

(7) Em edição recente, a revista The Economist, tradicional porta-voz do liberalismo econômico,
lamentou a persistência de limitações ao aproveitamento do solo urbano em cidades como
São Francisco e calculou que o PIB americano seria em torno de 13% mais elevado caso essas
restrições fossem suprimidas. Em que pese a estreita redução do bem-estar social à dimensão
do PIB que uma proposição desse po carrega, mesmo essa revista reconhece que, levada ao
limite, a racionalidade econômica destruiria o que as cidades têm de melhor.

(8) Not In My Back Yard, que traduz a ideia do pico morador de renda média e alta que é indiferente
ao adensamento e à construção, desde que não ocorram no seu bairro.

(9) Justamente porque, como procuramos discutir nos parágrafos anteriores, as reivindicações
da sociedade civil podem, em muitos casos, frear os efeitos mais negativos da valorização
imobiliária ou modificar projetos de renovação urbana para contemplar interesses diversos.

(10) Muitos autores fazem vista grossa às nuances e gradações existentes entre autores muitas vezes
classificados como pertencentes a uma mesma vertente teórica, o que acaba por empobrecer
o debate.

(11) Essa concepção estratégica do Estado, inspirada no trabalho de Bob Jessop, está bem sinte zada
no texto de MacLeod e Goodwin (1999).

(12) É possível mesmo conjeturar que uma reforma tributária que corrigisse as distorções regressivas
do atual sistema tributário brasileiro poderia ter efeitos mais profundos sobre o acesso à
habitação do que uma polí ca de subsídios à aquisição da casa própria.

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Texto recebido em 25/jan/2016


Texto aprovado em 29/jun/2016

646 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 623-646, nov 2016
Governance in an emerging
suburban world
Governança em um mundo suburbano emergente

Pierre Hamel
Roger Keil

Abstract Resumo
Cities are increasingly defined through their Cada vez mais, as cidades estão sendo definidas
peripheries. This observation is the result of através de suas periferias. Essa observação resulta
what has been explored by urban researchers do que tem sido explorado por pesquisadores urba-
wo r l d w id e. Su b u r b an d evelo p m e nt , w it h nos no mundo todo. O desenvolvimento suburbano,
diverse modalities of governance – through com diversas modalidades de governança – através
the state, capital accumulation and private do Estado, acumulação de capital e autoritarismo
authoritarianism – is transforming city regions privado – está transformando as regiões das cidades
in an unexpected way. The diversity of spatial de uma forma inesperada. A diversidade de formas
forms shaping urban /suburban development espaciais que modelam o desenvolvimento urbano/
is part of a peripheral growth bringing in a suburbano faz parte de um crescimento periféri-
new scale for understanding urban issues, co que está introduzindo uma nova escala para se
the metropolis or the city region. The paper compreender as questões urbanas, a metrópole ou
is subdivided in four parts. First, we take into a região da cidade. O artigo está dividido em quatro
account the expansion of suburban spaces partes. Primeiro, consideramos a expansão dos es-
in order to highlight the new urban issues paços suburbanos para ressaltar as novas questões
emerging at a city regional scale. Second, we urbanas que estão emergindo em escala regional.
look at framing the mechanisms of suburban Em seguida, nos debruçamos sobre os mecanismos
governance. Then, after paying attention to the de governança suburbana. Finalmente, após aborda-
Canadian situation, we compare the model of mos a situação canadense, comparamos o modelo
suburban governance in Anglo Saxon settler de governança suburbana em sociedades coloniza-
societies to other forms and / or models of doras anglo-saxãs a outras formas e/ou modelos de
suburbanization prevailing in other parts of the suburbanização que prevalecem em outras partes do
world. mundo.
Keywords: suburbs; cities; actors; governance; Palavras-chave: subúrbios; cidades; atores; go-
Canadian suburbs; post-suburban realities. vernança; subúrbios canadenses; realidades pós-
-suburbanas.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 647-670, nov 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3702
Pierre Hamel, Roger Keil

And fourth, before concluding, it is necessary to


Introduction
recall the implementation of different models
Due to recent transformations of metropolitan of suburban governance in different regions of
and/or city regions, suburban spaces have seen the world.
their traditional representations as exclusive At the outset, it should be clear that our
bedroom communities fade away. This is related intention is not to construct a “distinctively
to impressive processes of urban-suburban suburban theory” (Vaughan et al, 2009: 475).
expansion everywhere, but also to restructuring Instead, we want to confront existing elements
inherent in new forms of suburbanism. From of urban theories to the materiality of current
now on, it is no longer possible to look at suburban expansion. This is an unavoidable
suburbanization as an incidental or marginal first step for exploring the significance of
phenomenon. On the contrary, the intensity ongoing restructuring of the urban globally.
and diversity of suburbanization has made it
the key component characterizing the cities of
today and tomorrow. In other words, to better Expanding suburban spaces
understand the new and changing landscapes and their governance
of contemporary urban settlements, it is
necessary to pay close attention to suburban Suburban spaces exhibit a diversity of spatial
living as a way of life. But it is also how forms and social characteristics. Whether we
citizens, political elites and city builders make consider the “classical” model of single family
choices regarding the urban periphery that is at home tract housing, the high-rise dominated
stake. For this reason, understanding suburban “modernist” suburbs of Europe or Canada,
living cannot be achieved satisfactorily without the squatter settlements of Asia and Africa,
considering issues of governance. The fact that the gated communities of California, Brazil
landscapes of global suburban expansion and or South Africa or the explosive extension
diversifying suburbanisms are challenging the in mega-urban India and China, they are
usual reading of the urban in most theories of all contributing to suburban growth. In
the city is one of the main starting points to our addition, the post-suburban environments
reflection. This is what we would like to explore of existing – even shrinking – metropolitan
1
in this article. regions are home to many, if not most of the
For that matter we have divided what “urban century’s” population. Few of us live
follows into four parts. First we will consider “downtown”, most live, work and play across
the relevance of expanding suburban spaces the urban region in formerly or currently
and their governance for understanding the suburban neighbourhoods, sectors, quartiers.
new challenges faced by cities and/or city There is no doubt that, from a political economy
regions. Second, we will focus on what is perspective, the current trends supporting
required, from a theoretical standpoint, for urban growth or the development of city-
analysing suburban governance. Third, special regions are resulting primarily from peripheral
attention is given to the Canadian example. urban growth. What was considered a specific

648 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 647-670, nov 2016
Governance in an emerging suburban world

post World War II phenomenon, primarily tied have been researched widely ( McManus
to the Keynesian-Fordist production of space, and Ethington, 2007). Different aspects
has now become a universal process with investigated by researchers have included both
“suburban constellations” arising around the the conditions leading to the establishment of
globe (Harris 2010; Keil 2013). Such a tendency suburbs and the forces contributing to their
has not been difficult to observe in Canada transformation. In that respect, the diversity
where the concentration of population in city- of factors taken into account in urban
regions over the last decades was particularly studies – including ethnicity, race, economics
strong (Hiller, 2010). But this observation can and social activities – have contributed to
easily be extended to a global scale. This is at our understanding of the complexity and
least one of the key hypotheses underlying transforming character of these settlements
our thinking. For us, urban growth and (Nicolaides and Wiese, 2006). That said, these
urbanization at a global scale are materializing studies predominantly focused on specific
primarily through metropolitanization that can cases and historical contexts and paid little
be defined, on the one hand, by the internal attention to the universal and particular forces
social and spatial structuring of metropolises involved in suburbanization processes and
and, on the other, by the building of a system of their consequences on the ‘suburban ways of
metropolises at a global scale (Bassand, 2007; life’ – which we refer to as suburbanism(s).
see also Brantz et al., 2012). And this is being These are defined jointly by structural factors
achieved mainly through peripheral urban and subjective cultural choices characterizing
growth. Processes of suburbanization are now different situations that are influenced by
subsumed within emerging megalopolitan national and regional contexts. Because of
spaces. ‘Suburbs’ are a ‘zombie category’ at that omission and given our political-economy
odds with the contemporary form of urban perspective, we see a need to pay greater
regions, while outer suburban and exurban attention to a diversity of geographical
spaces continue to rapidly expand and define settings with a focus on how suburban
the growth of ‘edgeless cities’ (Lang and Knox, expansion is transforming cit y-regions
2008). It is possible, therefore, to identify and how suburbanism(s) are part of social
suburbs as one ‘moment’ of development and transformations (Moos and Mendez 2015).
life within growing megalopolitan regions. The multiple urban realities we see when
Su bur ban g row t h and ex pansion considering suburbs and suburban growth from
is ce r t ainl y not a new p h e n o m e n o n . a global perspective highlight the importance
Suburbanization has been part of urbanization of historical and geographical differences.
and urban development as long as urbanism Although these two entry points do not
has emerged as a form of life or as a mode always converge, they nonetheless contribute
of collective organization (Vieillard-Baron, complementary information that enhances
2011; Teaford, 2011). In addition, in the our understanding of current (sub)urban
field of urban studies and more specifically issues. The suburbs are now an unpredictable
urban history, suburbs and suburbanization landscape, especially compared to the

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 647-670, nov 2016 649
Pierre Hamel, Roger Keil

traditional representation of the suburban introducing a growing divorce between urban


model generally associated with the European- and anti-urban values, including the culture of
American experience to the divergent forms localism. Other researchers have also devoted
and processes that characterize peripheral attention to the multi-faceted expansion of
urban development in the Global South where suburbia and have suggested to describe and
one now sees a proliferation of suburban forms name the phenomenon in new terms: outer
and ways of life, not just a uniform “planet of cities (Herrington, 1984), cities without cities
slums” (Davis 2006; McGee 2015). Equally, the (Zwischenstadt) (Sieverts, 2003), metroburbia
classic picture of American suburbs as middle- (Knox, 2008), boomburbs (Lang and LeFurgy,
class haven is no longer valid. The account by 2007) to just name a few.
Lisa McGirr (2012) of the climbing rates of All these contributions point in the
poverty in the US suburbs is indicative of the same direction. It is not longer possible to
changes that are taking place in that country: ignore the social, cultural, economic, and
“In many of America’s once pristine suburbs, political transformations produced by suburban
harbingers of inner-city blight – overgrown lots, expansion and its impact on city-regions.
boarded up windows, abandoned residences – But what are the social consequences of
are the new eyesores” (see also Anacker 2015). these urban transformations? What forces
Since 2008, U.S. suburbs have been increasingly and actors are responsible for the collective
populated by the poor. This development choices involved in suburbanization and
certainly puts some distance between the metropolitanization processes? With regard to
current situation and the historic vision of political economy, what are the main driving
suburban development once traced by Kenneth forces? And finally, what are the resources and
T. Jackson (1985) in his famous account of opportunities for political regulation? In other
“crabgrass frontier”. words, in what terms has suburban governance
A careful yet not uncontested consensus been defined and experienced in different
is emerging in the field of urban studies: regions of the world: in what way have suburbs,
contributing actively and through diversity suburban elites, or the political class in charge
to metropolitanization, suburban processes of state initiatives regarding suburbs, suburban
are reaching a new qualitative stage. This is expansion and suburbanism, been involved in
what the notion of post-suburbia as coined the governance of suburbs?
by Jon C.Teaford (1996; see also Phelps and For us governance remains a contested
Wu 2011) is trying to get at. Building on notion and primarily an “empty signifier”
previous conceptual proposals – edge cities (Offe 2009). For that matter, governance
(Garreau, 1991), exopolis (Soja, 1989), and does not tell us much about what interests
outer cities (Herrington, 1984) – Teaford shape the power relationships involved in
underlines that metropolitan sprawl has negotiation and decision-making processes.
fundamentally changed not only the pace Bringing together representatives of markets
and structure of metropolitanization but or private enterprises, state authority, and
also its political culture and management, citizens, governance promotes cooperation

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Governance in an emerging suburban world

between these actors, even though it is always around the world. But does addressing how
possible that cooperation can being channelled suburban governance has been implemented in
or even manipulated to serve special interests. the Global North and the Global South solve all
Beyond the ideological claims of a lessening the theoretical issues suburban governance has
of class interests under governance discourse, to deal with?
one has to be aware of class response to According to Dennis R. Judd (2011, p.
public challenges in the context of neoliberal 17) an “all-encompassing theory” of the city
austerity (Davies, 2011). Instead of leading is “impossible to achieve”. And we can say
to more democracy, governance mechanisms the same for urban-regions where suburban
under neoliberal rule have often resulted in expansion is taking place. This does not
more authoritarianism in process and outcome mean that theoretical concerns are useless.
(Swyngedouw, 2005). Institutional changes that In fact, we think exactly the opposite is true.
have taken place in the political field since the To gain a better understanding of the way
1980s are clearly a big concern. The emergence suburban governance is taking shape and is
of the governance model in the urban literature managed in different parts of the world, it is
has undoubtedly reflected a shift in “how important to raise conceptual concerns and to
we conceptualize urban governments as discuss the implications of theoretical choices
governments” (Andrew, Graham and Phillips, involved in defining suburban expansion and
2002, p. 12). Processes of policy-making are suburbanism(s) as specific object of study.
taking a new form: The universalization of urbanization has to be
taken seriously not only as an empirical object
Polic y-making no longer separates
of inquiry but also as a challenging issue at a
neatly policy-makers from policy-takers,
nor does it distinguish between public theoretical level.
and private actors in all type of roles
throughout the policy process. The
polity structures addressed by political
mobilization and that produce policy Framing the mechanisms
decisions are not solely those of the of suburban governance
nation-state, but those of other polities
(…). (Piattoni, 2010, p. 249)
A large literature explicitly investigates how
Taking into account the way reflexivity urban regions are governed. Immigration
and professional specialization has transformed policies, housing, infrastructure, transportation
the political context, the reference to the and development processes contribute to the
notion of governance is being used in a critical process of governance. Whether it is urban
way. Instead of looking at it as a ‘fait accompli’, regime theory, growth coalitions, regulation
we refer to it as a working tool for exploring theory, or accounts of urban social movements,
how policy-making regarding suburban we have many conceptual resources for
expansion and suburban way of life have been understanding how urban-regions are planned,
institutionalized and/or have been underway built and are struggled over. However, much

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 647-670, nov 2016 651
Pierre Hamel, Roger Keil

less attention has been paid to the question processes of urbanization and suburbanization,
of suburban governance; specifically the or what Lefebvre (1968; 2003[1970]) has
constellation of public and private processes, theorized as an “urban revolution”. At the
actors and institutions that determine and time of writing, Lefebvre’s revolution was
shape the planning, design, politics and a provocative hypothesis. The globalization
economics of suburban spaces and everyday of neoliberal capitalism has furthered the
behaviour. Admittedly, a range of different decentralization and universalization of urban
scholars and (sub)urban commentators have space at a global scale and, as Lefebvre
explored the regulation of suburban spaces postulated, is transforming aspects of everyday
and processes of suburbanization (see Young life and ‘space’ of the urban. Powerful processes
2015). Yet, often the discussions are not of uneven development, capital accumulation,
couched in the language of governance per migration and agricultural transformations
se (for an exception see Phelps et al., 2010; have resulted in varied forms of peri-urban
Phelps and Wood, 2011). At the same time, any development that touch all urban-regional
survey of the existing literature would reveal spaces. However, the universalism of this
that it is exceedingly difficult to pin down process should not occlude the particularities of
exactly what suburban governance means and how suburbs are produced and lived. Both the
how it is practiced. In fact, suburbs and their form and content of different suburban spaces
social meanings are connected to the history are heavily path-dependent, reflecting different
of different national contexts (Faure, 2010). As political, economic, cultural and environmental
underlined by John Archer (2005), in England histories. Moreover, the social and ecological
and America, ongoing contentious issues are histories affecting the permutations of
the results of the Enlightenment project that suburbanization and forms of everyday life are
one can find at the basis of Western values, marked by relations of power, inequality and
starting with the material world. Therefore, marginalization, which profoundly affect the
the array of descriptors across different trajectories of suburban growth and decline.
geographical and linguistic areas makes the Suburbanization has certainly taken the
task of ascertaining similar and different form of a global process (Harris, 2010; Keil,
modes of suburban governance difficult yet 2011; 2013), yet we lack a comprehensive
still a necessary project (Harris and Vorms assessment of the forces of governance
forthcoming). that guide the proliferation of peripheral
Th u s, o u r a i m i s t o d e v e l o p a urbanization. The problematic of governance
framework, and argument that accounts involves accounting for the particular
for the universalization of suburbanization, manifestations of the more general urban-
while maintaining a focus on the particular regional process of decentralization. The
manifestations of this global process. It is true governance of suburbanization and attendant
that different descriptors of suburban life signify forms of everyday life are a matter of
particular forms of decentralized urban space. identifying the constitutive dynamics that
Yet behind all of these forms of suburbs are the shape and influence how suburbs are produced

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Governance in an emerging suburban world

and experienced. Governance contains a within the space of city regions (Addie and Keil
politics of suburbanization that facilitates its 2015; Keil et al., 2016). In fact, the problems
process but also questions the effects of growth of political regulation that public authorities
(and decline). It can be part of a more general are facing are more and more inscribed
politics of scale but can also entail a number of within metropolitan areas where specific
social and economic dynamics in which politics issues (socio-spatial segregation, security,
may be present but invisible. The question we environment, health, education, matters of
ask then is as follows: What are the universal sustainable development) are being discussed.
and particular forces shaping suburbanization Metropolises are not only the main location
processes in different urban-regions? where it is possible to observe the restructuring
In broad terms there are two central of relations between state and civil society, but
aspects of suburban governance, the also the main sphere directly affected by social
first of which concerns how processes of changes related to neoliberalism (Jouve, 2005).
suburbanization and forms of suburbanism are Thus, from a political economy perspective,
differentiated historically and geographically. the new territorial frames associated with
Yet at the same time, in an increasingly metropolises are becoming the spaces where
globalized urban world, suburbanization a new capitalist regulation is implemented
processes in different spaces are guided by and where capitalist contradictions are
similar practices whether it is, for example, transferred to, but also the scale where new
annexation (Cox, 2010; Kennedy, 2007; Zhang compromises have to be worked out (Baraize
& Wu, 2006) or the diffusion of ideologies and Négrier, 2001). An important gap remains,
that sanctify decentralization, public choice however, between metropolitan institutions
and private homeownership (Langley, 2009; on the one hand and functional territories
Marcuse, 2009). Thus the second aspect of on the other (Lefèvre, 1998; Keil and Addie
suburban governance entails accounting for 2015; Phelps et al. 2010, p. 378). One of the
the points of convergence regarding how central tensions of governing suburbanization
suburbanization proceeds whether in Eastern and postsurbubanization is the misalignment
Europe, the United States, South Asia and in a between political institutions and the rapid
range of other spaces. Suburban governance growth of decentralized development, which
entails accounting for both the converging and continually transforms the territoriality of
diverging patterns of peripheral development. urban-regions (Boudreau et al., 2006; Boudreau
Doing so requires paying attention to the et al., 2007; Le Galès, 2003; Phelps and Wood,
varied agents, methods, relations and 2011, Phelps et al, 2010; Young and Keil 2014;
institutions through which development is Keil et al., 2016).
managed. Together, these can be viewed as the Three styles of suburban development
mechanisms of suburban governance. can be identified: self-built, state-led and
One then has to keep in mind that private-led suburbanization. These three forms
mechanisms of suburban governance are also of suburban development do not unfold in
increasingly taking place at the scale and a teleological manner from one stage to

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Pierre Hamel, Roger Keil

another but rather each type of suburban self-led, state-led, and market- or private-led
expansion is evident in different historical development avoids taking the Euro-American
moments and spaces. Self-led peri-urban case as fundamental and highlights divergent
growth is serendipitous and occurs without yet comparable processes in different spaces.
detailed planning. The scale of development In all of its forms, suburban development
ranges from individual, residential and is led by distinct but complementary modalities
commercial developments to large tracts of of governance through the state, capital
informal housing. This type of development accumulation and private authoritarianism.
is thus fragmented and heterogeneous and Different state forms have played a role in
is typified by low regulation. Infrastructure suburbanization processes. At the same
tends to be poorly developed and time, it is important not to view the state as
characterized by the type of disconnectivity monolithic but rather it is crucial to see the
that Graham and Marvin (2001) describe as scaled nature of states and to consider the
“splintered urbanism”. In contrast, state-led state as a site of social conflict crystallized,
suburbanization is centralized, planned and however momentarily, in an institutional form.
directed by government agencies. This style Emphasizing the role of capital in the making
of suburbanization is dependent on conscious of suburban life allows us to acknowledge
establishment of residential, industrial and how a range of practices, including industrial
commercial developments, often through relocation and financialization, have defined
deliberate zoning and planning processes. the suburbanization process and suburbanism
Infrastructure connectivity tends to be utilized itself. The power of capital has been closely
as a lever for guiding and regulating the bound to that of the state but it is impossible
development process. Market- and private-led to understand the state without considering
development tends to involve decentralized capital and vice versa. If relations between state
control yet the state plays a facilitative role in and capital are at the heart of suburbanization
terms of land-use, labour and environmental and the forms it took in different contexts, the
policy and judicial and legislative frameworks. recent financial and political crisis highlight
This type of suburbanization takes commercial, how local economic development is currently
residential and industrial forms although challenged by two major problems: firstly, the
is defined by political and social exclusion. pressures coming from external flows as the
Development is exclusively for profit and result of economic globalization, secondly, the
tends to be uneven as new spaces boom while weakening of the State2 as responsible for social
others decline. These three different forms of and economic redistribution (Mongin, 2008).
suburbanization represent ‘ideal-types’ that Tendencies towards privatized authoritarian
nonetheless represent concrete forms and forms of governance have been very strongly
processes of suburban development – albeit linked with recent suburban development.
affected by particularities of history and Gated communities can be considered here
geography. In contrast to periodizing suburban as the core of a range of governmentalities in
expansion and decline, distinguishing between which socio-spatial differentiation has morphed

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Governance in an emerging suburban world

into a more coercive landscape of exclusion and to the increasing suburbanization of urban-
segregation. regions in all spaces including the US. Much
We are proposing these three modalities more, suburban forms classically associated
here as a conceptual framework for a with English and American suburbs, such
discussion on governance of suburbanization as the bungalow, villa and veranda all have
and increasingly diverse ways of suburban their roots in places such as India and the
life. We suggest that tensions between Mediterranean and were appropriated through
these modalities will rise as they often have colonial processes ( King, 2004). In their
incompatible processes, goals and outcomes. own ways, both Roy and King illustrate the
Most importantly, the dynamics of the various necessity of going beyond the North American
suburbanism ways of life that unfold in the and European suburban experience and push
emergent peripheries of our cities rebel against us to consider different worldly forms of
the governmentality (Foucault, 2003) of the suburbanization. In this paper, though, we will
suburbanization process that produced and start close to home with a sketch of suburban
conditioned them. governance in Canada.
Often it is assumed that the US
experience represents the paradigmatic case of
suburbanization that other cases are measured The example
against. Suburban spaces such as Levittown, of Canadian suburbs
New York, are often held up as idealized
versions of suburbanization. However, one of We begin with some historical and definitional
the key points of agreement in the blossoming perspectives before looking at Canadian
literature on suburbs is that diversity is the norm suburbs through the complex lens of the
rather than the exception, which means that country’s federalism, its regional diversity
Levittown is but one form of suburbanization. and institutional specificity. From an historical
This is even more evident when we consider perspective, Canadian urbanization is
the range of suburban development occurring entrenched in the European tradition. At
in post-socialist states (Hirt, 2007; Hirt and the outset, spatial organization and urban
Petrovic, 2011), China (Feng, Zhou and Wu, forms were clearly influenced by the model of
2008; Zhang and Wu, 2006), India (Dupont, centrality that has contributed to define the
2007; Kennedy, 2007), Africa (Davis, 2006; classical European city. However this model
Grant, 2005) and even within Europe and was profoundly transformed during the 19th
North America, where we see denser or non- century by the North American liberal culture
conforming forms of suburbanization (Fishman, defined around individuality, freedom and
1987; Freund, 2007; Young, 2006). In terms of ownership. The priority given to consumer
the governance of suburbanization, Ananya preferences was a direct consequence of that
Roy (2009) pushes us to consider multiple culture and has had a predominant influence in
worldly forms of governance, not as derivative regards to suburbia and its distinctiveness. In
of the US experience, but rather as central this sense, it is very much in line with the other

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Pierre Hamel, Roger Keil

cases in this section of the book that highlights in US federalism. Their autonomy is directly
the classical Anglo-Saxon cases. It reflects the circumscribed by provincial legislation and
governmentality of white settler societies in authority.
a perceived environment of abundance and Taking into account regional differences
spatial limitlessness, opportunity to break class and the presence of two distinct cultures at
and ethnic restraints, and individuality. the root of the Canadian political compromise,
Urban Canada is made up of regions a separation of powers has been established
(Central Canada, Atlantic Provinces, Western between the provincial and federal levels. As
Provinces and Northern Territories). Historical, stipulated in the British North America Act
geographical and cultural differences have (BNAA) of 1867, local issues and responsibilities
contributed to support suburbanization are exclusively a provincial matter. Thus,
processes considered as major components of provinces are responsible for ensuring that
metropolitanization. Here we have to recall local land management and planning meet
that “as early as 1825, Canada was one of the needs of Canadians. However, despite the
the most urbanized countries in the world” establishment of a clear separation of powers
(Hiller, 2010a, p. XV). This is due to the choice between the provincial and federal levels, grey
of concentration in viable settlements made areas of litigation did not take long to occur
by the colonizers and the population. Since between the two tiers. We lack the space
then, this trend has been constantly reinforced. here to revisit the history of these conflicts,
According to the 2006 census, the Canadian but one must emphasize that the spending
population was strongly concentrated within power and specific prerogatives of the federal
the six major metropolitan areas: “(…) nearly government allowed Ottawa to influence the
half of the Canadian population (45 per cent) development of municipalities and urban areas.
reside within them” (Hiller, 2010a, p. XVIII). The federal government has not hesitated to
To grasp this reality and the fact that take the initiative and support the financing
urban growth is taking place in all census of households for home ownership towards
metropolitan areas (CMA), including the the creation of the Canadian Mortgage
choice of urban and suburban forms as and Housing Corporation (CMHC) or the
decided by economic, social and political construction of transport infrastructures. We
actors, it is necessary to better understand the will look at these central avenues for suburban
specificity of Canadian municipalities, both governance in detail below.
urban and suburban. The federalist context – Today Canadian suburbs are changing
as it was defined in 1867 by the constitution rapidly. The rather stereotypical view that saw
and evolved as a result of a cultural, economic the suburbs as categorically different from
and political compromise and through a the inner city has been widely challenged.
fundamental conflict between centralizing Canadian suburbanization has traditionally
and decentralizing forces – has played a major been influenced by the American and the
role. In Canada, municipalities do not have an European models. While in Canada, as in the
autonomous status as they have, for example, UK, the US and Australia, “the suburban ideal

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Governance in an emerging suburban world

was … luring residents to a detached house Suburbanization has become more


along the metropolitan fringe” (Teaford, 2011, diverse in every respect. For example, ethnic
p. 23), even the single-family home suburbs diversity in Toronto’s periphery is now
like Toronto’s Don Mills “included many unmatched anywhere. The white middle class
townhouses and apartments” (Teaford, 2011, suburbs of the post-war years are largely
p. 27). Working class suburbanization has been gone. The ‘old’ or ‘inner’ suburbs have huge
another distinctive feature of suburbanization and very diverse non-white and immigrant
in Canada historically (Harris, 1996; Fiedler populations (Hulchanski, 2010). Terms like the
and Addie, 2008, p. 6). Although more recently ‘racialization of poverty’ and ‘vertical poverty’
eclipsed by the “creeping conformity” are now strongly associated with the extensive
(Harris, 2004) of mass-produced middle class suburban tower neighbourhoods where the
suburbanization, the self-built proletarian combination of immigration, renter status
suburbs in Toronto were prototypical and and visible minority membership as well as
changed the way suburbanization has been gender has become a predictor of structural
viewed in Canada. poverty (United Way of Toronto, 2011). More
Notably, the state has had a visible role significant perhaps are the concentrations of
in structuring the suburban landscape and immigrant populations in some newer sub-
in ordering the space of the periphery (Keil and exurbs such as Brampton, Mississauga
and Young, 2011). As a result of the specific and Markham. The phenomenon of the diverse
interaction of state, market and authoritarian suburb needs to be understood in relation
governance (public and private) in Canada, we to the continued formation of the global city
find both the single-family home subdivisions region and the emergence of postcolonial and
t y pic al fo r t h e US an d t h e hig h r is e - postmetropolitan forms of urbanization (Keil,
dominated peripheral ensembles associated 2011a,b).
with suburbanization in Europe. Uniquely, The neoliberalization and ‘splintering’
though, suburban Canada has now become (Graham and Marvin, 2001) of suburban
a remarkable new model of development development has led to a reorientation of
that is largely defined by the immigrant metropolitan politics, and a redefinition of
experience and the diversity of new suburban political imaginaries and institutional as well
populations. While Australian and American as geographic boundaries. It is impossible now
suburbs have also become havens of new to imagine the suburbs neatly sequestered
immigration and increasing demographic spatially and socially from a categorically
diversification (including a tendency to see different ‘inner city’. In fact, most suburban
rising poverty levels in urban peripheries), the development now takes place in a newly
Canadian case seems to be most advanced defined in-between city that neither resembles
in showing cracks in the classic Anglo-Saxon the old inner city and the glamorous cookie-
model of white middle class suburbanization. cutter suburbs. Clearly, both these spaces still
Three things have changed in recent years in exist both in their gentrified and sometimes
Canada: gated reality and they attract much attention

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Pierre Hamel, Roger Keil

and investment particularly in an era that interests, graft and corruption in peripheral
defines urban development as creative, young localities as Laval (Quebec), Mississauga and
and driven by the knowledge economy. Yet, Vaughan (Ontario) as well as Surrey (British
many Canadians now live, work and play Columbia). The causes are numerous, but the
in quite undefined and nondescript middle relatively limited media coverage of suburban
landscapes where everything seems to politics may account for the apparent lack of
happen at once: large scale infrastructure like accountability of some political leaders in
highways and airports are next to residential suburban localities.
quarters; all manner of service infrastructures Canadian suburbs have been shaped by
including universities and high tech corridors a multiplicity of factors. The absence of state
are adjacent to low rent apartments; parks and regulation, the role of federal and provincial
parking are side by side; high speed highways governments in supporting access to direct
and transit deserts define the same space; and indirect homeownership, the availability
religious mega-structures are across the street of inexpensive land for suburban expansion
from ethnic mini-malls (Young et al., 2011). and the irrepressible desire of workers for
The political equation of regionalization access to homeownership were all elements
and redistribution has been severed as supporting suburban expansion and its
aggressive suburban regimes have come to diversified landscape. After the Second World
power regionally or even federally in Canada to War, with a new wave of suburbanization,
use their political base to fundamentally shift suburban municipalities had to contribute to
the meaning of metropolitan politics. At the metropolitan governance. As urban issues
same time, suburban regimes in communities were increasingly defined at a metropolitan
around Toronto (as well as in Montreal and scale, suburbs were involved in decisions
Vancouver) are developing a decidedly regarding transpor tation, housing and
autonomous set of strategies to make their economic development concerning whole city-
mark in an increasingly competitive global regions. Thus, the representation of conformity
city environment. At first glance, this suburban used to define suburbia is necessarily
resurgence in metropolitan politics seems outdated. Within the new context of suburban
to represent a throw-back to earlier periods governance, the priority given to economic and
of regional regulation but closer inspection financial concerns raises new challenges for
reveals a new set of political circumstances public authorities.
that have to do with the maturing of a largely What is distinctive about Canadian
suburbanized Canadian urban region and new suburban governance may be its regional
modes of multilevel governance. As suburban character and its increasing difference from
local administrations ostensibly gain more both the European and American models
autonomy and influence at a metropolitan from where it developed its character in the
scale, some of them have become hotbeds past. Canada is now strongly urbanized and
of political and fiscal impropriety. This was the country’s population is concentrated in
expressed recently through conflicts of large metropolitan areas: Toronto, Montreal,

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Governance in an emerging suburban world

Vancouver, Ottawa-Gatineau and the Calgary- the ways in which government distributes
Edmonton corridor (Bourne et al., 2011, p. 7). responsibilities in federal states.
In addition, more than half of the population Suburbanization plays a major part in the
of Canada resides in the Windsor-Quebec City rescaling and shifting of responsibilities across
corridor “and seven out of 10 manufacturing a multi-level governance structure. The push
jobs in the country are located there [...]” into new, often sprawling, suburban peripheries,
(Hiller, 2010b, p. 28). The importance of even in slow growth cities like Winnipeg, is
this population concentration and the rising linked to the expansion of the so-called “new
power of metropolitan regions throughout economy,” and the suburban way of life has
the country are certainly important features become the standard for the new metropolitan
of the new urban landscape of Canada. There normal with consequences for the overall
is now a truly Canadian story developing from course of policy in an environment of continued
coast to coast which is internally differentiated devolution, austerity and state restraint. In
(in a federalist context) and shows some this context, it is ever more questionable
remarkable similarities across the nation’s whether Canadian municipalities and regional
(sub)urban reach. Cities, regions and their institutions have the capacity to deal with
suburbs are now recognized as central to the challenges of immigration, poverty, exclusion
governance of the vast territory of Canada, and environmental issues wrapped up in the
which is beginning to understand itself as a continued push for suburban expansion.
primarily urban country.
The current push in Canada for regional
forms of regulation can be understood as Elements of comparison
a form of state rescaling (Boudreau et al.,
2006, 2007; Keil et al., 2016). In the context of This article talks about suburban governance
neoliberalization and globalization of Canadian both as a conceptual terrain and as an object
territorial government, local and regional of empirical study. What lessons can we learn
modes of governance are assuming new from the geographic spread of suburbs?
responsibilities. This has to do with interurban Through Hamel and Keil (2015), we
and interregional competition for investment set up governance in two important ways:
and labour (Florida, 2002), with infrastructure In the first instance, it asked how suburbs
provision (Young et al., 2011) as well as with are planned and designed, conceived and
the need to establish an institutional framework materialized through self-built, state-led
to deal with post-welfare state issues of and private-led development. But it further
social, economic, cultural and environmental proposed to understand governance through
regulation. While the debate on rescaling looks three inter t wined modalities involving
at broader dimensions of social institutions in the state, capital and emergent forms of
a changing global geography (Keil and Mahon, authoritarian governance. In a second move,
2009), the literature on multi-level governance we put forward to extend governance to
(Piattoni, 2010) has specifically dealt with processes of suburban life (suburbanisms)

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 647-670, nov 2016 659
Pierre Hamel, Roger Keil

and post-suburbanization which go beyond financial institutions (a mortgage system


the actual original making of the suburbs geared towards single family home ownership)
(suburbanization) and extend towards the usually underwritten by central governments
governmentalities of (sub)urban life in the and administered by lower level governments,
21st century overall. a cultural disposition towards living on and
In many ways, the term and the near the land (arcadian and homesteading
phenomenon of suburbanization – and its ideals co-generative of settler societies more
derivative terms suburbanism, suburb – have generally), and an optimistic belief in the
been associated most directly with a history of limitlessness of resources (energy, water,
decentralized urbanization that springs in ideal- land). The second assumption was that the
typical form from the combination of liberal Anglo-Saxon ideal case is most prototypically
capitalist democracy and centrality of property expressed in the United States which has been
rights. With an original impetus from the British examined by Nijman and Clery (2015) as well
experience – which has been discussed in as Peck (2015). In the US, more than anywhere
relation to its Western European neighbors (see else, a stereotypical image of suburban form
Phelps and Vento, 2015) –, suburbanization as and life was developed during the 20th
it is commonly understood has had its clearest century in such a way that, even today, the
manifestation in the formerly British colonies term suburb itself evokes images of 1950s
and settler societies in the United States, and 1960s sitcoms (or their nostalgic remakes
Canada and Australia. Two assumptions can in the form of the successful current TV series
be made. First, in these countries, the dream MadMen). While the project on Global
of the detached house at the suburban fringe Suburbanisms 3 overall attempts to debunk
was not just a figment of the imagination (as the American predominance of the notions of
it appeared to be in many societies around suburbanization, suburbanisms and suburban,
the globe throughout the 20th century, even the American case is a good and necessary
those that housed their population mostly in place to start not just because the majority
apartments) but it was a built reality as large of the extant literatures on the matter refer
percentages, in some regions and time periods mostly and often exclusively to the American
even the majority of housing units constructed, case. The study of Canada (Keil et al., 2016)
were single family homes on previously and Australia (Johnson, 2015) provide
undeveloped land in the outskirts of towns and important declinations on the Anglo-Saxon
cities. The centrality of the notion of property experience and perhaps corrections to the
ownership coincided with institutional and stereotype from which other more meaningful
cultural conditions under which the suburban links to different competing experiences of
way of life could thrive in a particular built suburbanization today can be made.
environment. With it came political form Having considered the ideal case of
(fragmentation), economic structure (a virtuous suburban governance in Anglo Saxon settler
cycle of mass production and consumption societies, it is necessary to consider existing
triggered by Fordist economies of scale), alternatives as we find in other countries,

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Governance in an emerging suburban world

either in Eastern and Western Europe or in main modality of suburban governance.


Latin America. Some of those cases worldwide Emerging models of suburbanization in
have demonstrated significant variation from Africa (Bloch, 2015), in India (Gururani and
the time of the onset of industrial era (sub) Kose, 2015) and in China (Wu and Chen, 2015)
urbanization. Those cases have been in more are not to be understood as versions of Anglo
or less direct “conversation” with the Anglo Saxon ‘normativity’ but as endogenous and
Saxon cases through urbanist theory and autonomous forms of peripheral urbanization
praxis. The English greenbelt and garden city that have now come to be the most dynamic
ideas, for example, had an influence beyond and quantitatively most recognizable forms
their original town planning context in the of producing urban settlements worldwide.
UK. The epochal significance of the Charter of While these developments are called
Athens that prescribed functional separation “emerging” here, they are not exactly new,
since the 1930s as well as the modern having been preceded by thousands of years of
planning ideals that followed were both urbanization in one form or another. They are
universal in intent and specific in form of built “emergent”, though, in the sense that their
environment and governance. The largely state- new forms of urbanization, which we have
driven highrise suburbanization in Western noted as largely suburban, are appearing at an
European (and Canadian) welfare states has unprecedented rate. What is emergent here is
had similarities in intent, process and outcome not just a mere addition to existing – classical
with the peripheral housing estates in Eastern or alternative – forms of suburbanization
Europe after the Second World War. Phelps and and governance but an entirely new mode
Vento (2015) and Hirt and Kovachev (2015) of urbanization altogether, one that defies
respectively explored both common ground and simple categorization, typology and especially
divergent developments in Western and Eastern subordination to existing western models
Europe during the past few decades. What was of understanding. Modalities of suburban
perhaps different in particular, and subject of governance in Africa, China and India,
examination, is the notion of shrinkage that therefore, point to emerging forms of life on
has now become a dominant feature of (sub) this planet in a thoroughly urbanized society
urban governance in peripheries of Eastern where most life we call ‘urban’ exists in the
European cities (Kabisch and Rink, 2015). But it sprawling, low and high density, formal and
has not just been in Europe that we have seen informal, self-built, state-driven or privately
original and alternative suburban development constructed, suburban expanses that cities in
with longstanding histories. The Latin American those regions consist of.
situation as it has been scrutinized by So what can we take from this global
Heinrichs and Nuissl (2015) provides insight tour d’horizon? Returning to our proposition
into an interesting and distinctive tradition of of three competing and colluding modalities
suburbanism which, perhaps in absence of the of suburban governance, we can conclude that
welfare statist version of Europe, has lately all three, to varying degree, are present in the
been heavy on authoritarian privatism as the different cases we referred to. The state has

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Pierre Hamel, Roger Keil

classically enabled and limited certain types of the ‘American’ model as universal form of
of developments in suburban environments development. In Western Europe, countries
t h r o u g h e c o n o m i c i n c e n t i v e s, d i r e c t such as Greece, Ireland, Portugal and Spain
intervention (e.g. planning or infrastructure continue to work through the lingering pain
provision), policing and services. Governments that that strategy inflicted on their economies
at all scales remain particularly present through speculative overbuilding in their cities’
as actors in those places where the state peripheries in the 1990s and early 2000s.
has been known traditionally to shape the What are the emerging processes of
urban reality: in Western Europe, in Canada suburban governance? There is a continued
in particular. The most pervasive form of tension between the urge for regional
suburbanization through state-led governance governance (see also Keil et al., 2016) and
is certainly present in China where local state the pervasive tendency for suburban polities
entrepreneurialism plays an increasing role to assert themselves separately from the core
in the development of suburban land. State city but also in contradistinction from each
activity, however, is coupled with one of the other and in respect to regional government
fiercest forms of capital accumulation and i n s t i t u t i o n s. Fr a g m e n t a t i o n , p o l i t i c a l
productive of some of the most authoritarian idiosyncrasy and institutional individualism
forms of privatism ever seen on this planet. reign supreme in many of the new suburban
The traditional Anglo-Saxon cases, the United territories in the world’s “cities in waiting”.
States, Great Britain, Australia and Canada In many parts of the world, suburbanization
to a degree, continue on a trajectory, which and post-suburbanization processes present a
sees suburban governance mostly aligned mixture of formal and informal, institutionalized
with waxing and waning powers of the and spontaneous, state, market and private
market. Even after the meltdown of 2008, forms of governance. New political interests
the accumulation through the production of are being shaped by political economies of land
suburban space continues (almost) unabated. that are newly invented and articulated with
When we say “almost” we refer specifically to arcane land use practices, along with novel (if
the increased formal adaptation through New often mannerist and derivative) built forms,
Urbanist and sustainability-inflected versions gross social, spatial and service inequities and
of suburbanism that have replaced some of the new in-between proximities whose political
more vulgar and wasteful forms of sprawl of potential are just beginning to unfold.
the past two decades and preach instead the What are the emerging themes of
gospel of compact and dense structures and suburban governance? Shelter and jobs are
forms. The Anglo-Saxon, market-driven models important, especially in developing nations
of suburban governance are now joined world where suburbanization is still produced by
wide by aggressive suburbanization machines majority rural-to-urban migration. Mobility
in India, China, Africa, Latin America and infrastructures, primary and secondary
Eastern Europe, where massive accumulation schooling, taxes remain high on the agendas of
strategies are based on the sprawling roll-out suburban politics. The environment, economic

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Governance in an emerging suburban world

(especially commercial) development, and suburbanization processes around the world.


community safety are always big issues. The Furthermore, in the past, we could surmise that
experiences of suburban shrinkage and poverty, suburban governance was firmly entrenched in
post-suburban in-betweenness, and increasing the logics of the political economy of urban
diversity have now become major subjects of growth. Growth coalitions, growth machines,
suburban governance. Informality in suburban urban regimes, while often focused on mostly
development – be it in squatter settlements with regards to central municipalities in the
or corporate edge cities and research parks – Global North, also regulated and facilitated
continues to be part and parcel of all regional suburban governance beyond the conventional
trajectories and necessitates more inclusive city limits elsewhere. Lately, this terrain has
forms of suburban governance. In many parts been extended to include the in-between
of the world, though, informality continues to areas of urban regions (Young and Keil, 2014;
be met with strong interventionist measures Dear and Dahman, 2011). The consequences
by the local state to create order on an urban are profound. New actor constellations arise
fringe that is seen as out of control. From this from the booming “ethnoburbs” and “arrival
divide stem new demands reminiscent of the cities” in the outskirts of cities world wide
traditional register of struggles for the Right (Saunders, 2010).
to the City or “participation, empowerment, Depending on the circumstances, the
and accountability” in the words of Gururani effects of state-led suburban governance could
and Kose (2015). It is also the main site for the lead to more spatial justice (Soja, 2010) (as it
formulation of a new meaning of a postcolonial ostensibly did in Toronto during the formative
suburban politics which redefines political years of the Municipality of Metropolitan
society, as Roy phrased it. We then arrive, as Toronto) or to gross inequalities (as happened
she says at the “suburban periphery [as] a vital in the racialized and classed situation in many
site of the remaking of property, power, and the US cities or as it turned out to be the case in
public interest” (Roy, 2015). the recent past in Toronto) (Hulchanski, 2010).
Are there new actors in suburban The accumulation of capital continues to act
governance? Suburban governance everywhere as a second modality of suburban governance.
is firmly linked to the development and Property capital in collaboration with growth-
sustainability of financing institutions, be this oriented municipal governments goes on
through savings and loan institutions, regular to push residential frontiers of urban areas
bank credit, mortgages. In Africa, India and outward in an aggressive manner (Logan
China, as well as in the countries of Eastern and Molotch, 1987). Global firms usually
Europe, mortgage markets had to be developed get their way in locating their headquarters,
in order to carry the task of financializing back offices and branch plants close to the
land and financing construction. Institutional suburban infrastructures that are ostensibly,
innovation and individual entrepreneurship are yet deceptively, sold to (or rather paid for by)
part and parcel of this fundamentally capitalist local voters and taxpayers as serving their
set of practices that are now pervasive in interests primarily. Universities, colleges and

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Pierre Hamel, Roger Keil

school boards play a major role in structuring metropolitan peripheries (Keil, 2013). In large
suburban spaces and investments in their parts of the world, this continues to mean
infrastructures (Addie, Keil and Olds, 2014). primary urbanization of rural populations on
The roles of capital and of the state are the outskirts of major centres. Indisputably,
intertwined. Private development capital China (where the government has plans
and developers have played a significant to create settlements for at least another
role in suburban growth as well as suburban quarter billion peasants in suburban mega-
governance. The third modality of suburban cities), India and Africa, lead the way with
governance is authoritarian and private. Far an unprecedented wave of primary rural-to-
from naturally increasing the likelihood of urban migration which will transform not
democratization (in contrast to government), just these countries and continents forever
current forms of governance are often built but will shift the balance of populations,
on through authoritarian, if not coercive economies and powers further from the
technologies of power. North and West to the South and East of
We can view the three modalities of the planet. Yet in an equally breathtaking
suburban governance as somewhat compatible simultaneity, those first-time urbanites will
arenas in which various instruments and be neighbours to established, yet rapidly
technologies of suburban governmentality are changing post-suburban landscapes that
being produced. Remarkably, the state has are revolutionized under the dictates of a
mostly acted in symbiosis with the property neoliberalized, globalized, flexible regime of
industry in pushing suburbanization as a self- accumulation. While the cities of the global
propelling outcome of governance which, in South still expand at the margins and require
turn, produces expectations about different provision of first and fundamental collective
models of suburban life. Lately, suburbia has consumption services, infrastructure and
occasionally shed its image of an open and institutional innovation, they alread y
liberated domain close to nature and has folding in on themselves and demanding
assumed the look and feel of a camp: enclosed immediate attention as urban quarters,
and sequestered, fenced and secured. internationalized business districts and
mature neighbourhoods. The solid difference
between original suburbanization and post-
Conclusion suburban realities as explored in this article
melts into air. Governance of these spaces
The “urban centur y”, as ours has been remains one of the leading task of the 21st
labeled, is really defined by an expansion of century.

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Governance in an emerging suburban world

Pierre Hamel
Université de Montréal, Department of Sociology. Montreal, Quebec, Canadá.
pierre.hamel@umontreal.ca

Roger Keil
City Institute, York University, Faculty of Environmental Studies. Toronto, Canadá
rkeil@yorku.ca

Notes
(1) For this, we rely heavily on what has been explored in our edited book (Hamel and Keil, 2015).
More specifically what is presented in this ar cle comes mainly from both the introduc on and
conclusion of the book in addi on to chapter 1 (Ekers, Hamel and Keil, 2015) and chapter 4 (Keil,
Hamel, Chou and Williams, 2015).

(2) Economic globaliza on is not a recent phenomenon. But the form it takes since the 1970s in
rela on to the Fordist crisis is different than what it has been in the past, par cularly regarding
State restructuring and fiscal tightening. Consequently, State regulation – particularly in
reference to suburban governance – goes with deregula on and a revision of past socipoli cal
compromises (see Bauman and Bordoni, 2014).

(3) Here we refer to the Major Collabora ve Research Ini a ve Global Suburbanisms: Governance,
Land and Infrastructure in the 21st Century sponsored by the Social Sciences and Humani es
Research Council of Canada (2010-17); see www.yorku.ca/suburbs.

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Texto recebido em 12/maio/2016


Texto aprovado em 19/ago/2016

670 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 647-670, nov 2016
Eixos: novo paradigma do planejamento
regional? Os eixos de infraestrutura
nos PPA´s nacionais, na Iirsa
e na macrometrópole paulista*
Axes: a new paradigm of regional planning?
Infrastructure axes in the national PPAs,
in the Iirsa and in the macrometrópole paulista
Jeferson Cristiano Tavares

Resumo Abstract
O objetivo deste artigo é problematizar a organi- Our goal is to discuss inter-scalar territorial
zação territorial interescalar baseada nos eixos de organization based on the infrastructure axes
infraestrutura propostos pelo poder público, entre proposed by the government between 1995 and
1995 e 2015. Sua análise está fundamentada no 2015. Our analysis is grounded on the theoretical
referencial teórico que demonstra as relações entre framework that shows the relationship between
(re)estruturação produtiva e organização do territó- (re) structuring of production and territorial
rio (Logan e Molotch, 1987; Scott, 1998; Brenner, organization (Logan; Molotch, 1987; Scott, 1980;
2010). Foram eleitas, como objetos de estudo, as Brenner, 2010). We chose to study planning
ações planejadoras propostas pela iniciativa públi- actions proposed by public initiative. At the
ca, no âmbito federal: os planos plurianuais e seus federal level: the PPAs and their programs; at the
respectivos programas; no âmbito continental: os continental level: the plans and proposals of the
planos e propostas da Iirsa; e no âmbito estadual: Iirsa; and at the state level: the Plano de Ação
o Plano de Ação da Macrometrópole Paulista (PAM da Macrometrópole Paulista (PAM 2013-2040).
2013-2040). As conclusões do artigo apontam para Our findings point to the ongoing leading role
um protagonismo em curso do Eixo como elemento of the Axis as a structuring element of territorial
estruturador da organização territorial nas suas di- organization in its different scales, guided by
ferentes escalas orientado pelos preceitos de inte- the principles of integration, connectivity and
gração, conectividade e competitividade. competitiveness.
Palavras-chave: eixos; planejamento regional; Keywords : axes; regional planning; PPA; Iirsa;
PPA; Iirsa; macrometrópole paulista. macrometrópole paulista.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3703
Jeferson Cristiano Tavares

equilíbrio do desenvolvimento territorial a ser


Introdução
alcançado a partir da indústria motriz e de sua
Nas últimas três décadas, pudemos observar articulação com a cadeia produtiva distribuída
importantes iniciativas de organização terri- controladamente pelo território.
torial baseadas em eixos formados por faixas O que se observa nos modelos de orga-
de infraestrutura (em geral econômica: comu- nização territorial propostos recentemente é a
nicação, energia e logística) que buscam orien- incorporação do eixo como elemento estrutu-
tar regionalizações para provisão de recursos rador de uma nova regionalização com fins à
públicos e privados. Essas iniciativas têm pre- organização territorial e que, dialogando com
domínio após o processo de redemocratização os preceitos econômicos vigentes da reestru-
brasileira e ocorrem em escalas diferenciadas turação produtiva de origem neoliberal, tenta
(continental, nacional e estadual) e em perío- responder aos problemas de desequilíbrio do
dos contínuos, demonstrando o enraizamento desenvolvimento pela integração, conectivi-
de uma ideia. Representam um paradigma de dade e competitividade regionais. Evidente-
planejamento regional porque avançam em re- mente, pela origem e finalidade de cada eixo,
lação ao modelo polarizado preconizado pela eles divergem no seu conteúdo e na sua for-
escola francesa de planejamento regional, vi- ma, mas convergem para objetivos e padrões
gente durante a segunda metade do século XX territoriais semelhantes. O que se busca neste
na América do Sul. Além disso, carregam consi- estudo, portanto, é a caraterização desses ei-
go um paradoxo, pois, ao romper com o mode- xos, historicizando-os,a fim de compreendê-
lo polarizado, mantêm-se baseadas na matriz -los numa dimensão maior que o campo políti-
econômica a partir da qual a atividade produti- co no qual foram concebidos e de inseri-los no
va e a organização territorial exercem influên- contexto socioeconômico com o qual eles se
cias recíprocas, tal como no modelo francês. propõem a dialogar.
As políticas do pós-Segunda Guerra
Mundial que, no Brasil, redundaram no chama-
do Desenvolvimentismo incorporaram paula- Os eixos: integração,
tinamente o modelo de Polos de Crescimento desenvolvimento
(proposto por Perroux em 1955). Esse modelo
foi difundido por ações, principalmente, da
e territorialidade
Cepal (Comissão Econômica para a América nas diferentes escalas
Latina e o Caribe, 1948), da CIBPU (Comissão
Interestadual da Bacia do Paraná-Uruguai, Eixos Nacionais de Integração
1951-1972) e do Plano Decenal 1967-1976 (do e Desenvolvimento nos primeiros
governo de Castello Branco) e influenciou pla- PPA´s, a partir dos anos 1990
nos estaduais (como no estado de São Paulo) e
diretrizes institucionais (como no IBGE) (Tava- No âmbito nacional, os Eixos Nacionais de In-
res, 2015). De forma geral, a teoria dos Polos tegração e Desenvolvimento (Enid) foram uma
de Perroux apontava para um prognóstico de estratégia concebida, de forma preliminar, no

672 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016
Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

PPA 1996-19991 como matriz para investimen- meio ambiente. E, como estratégia de atração
tos de infraestrutura em regiões delimitadas de investimentos, tornaram-se uma ação pú-
a partir de importantes fluxos de escoamento blica a partir da provisão de recursos públicos
de produtos nacionais. Na sua segunda versão, e privados para irradiar o desenvolvimento: “A
resultante do Consórcio Brasiliana que objeti- realização desses investimentos irradia exter-
vou aprofundar a versão do PPA 1996-1999, os nalidades favoráveis à atração de empreendi-
eixos constituíram-se em “[...] um instrumento mentos produtivos” (Brasil, 2001, p. 15).
particular [...] para o equacionamento de pro- A origem dessas versões remete-se ao
jetos relevantes com vistas a um planejamento trabalho de Eliezer Batista (Infraestrutura para
amplo, de abrangência nacional e nítido cará- o desenvolvimento social e integração na Amé-
ter espacial [...]” (Ablas, 2003, p. 172). Na sua rica do Sul, 1997) e à influência desse trabalho
versão novamente revista e conceituada no sobre o PPA 1996-1999, que tratava dos inves-
PPA 2000-2003 (Anexo I – Diretrizes estraté- timentos em infraestrutura como instrumento
gicas e macro-objetivos, tópico Agendas), os de integração espacial.
eixos foram propostos com a justificativa de Para aprofundar as diretrizes do PPA
equilibrar o desenvolvimento regional e de 1996-1999, o governo federal abriu licitação
promover a distribuição de riqueza; além de para uma ampla consultoria da qual resultou
integrar as regiões por meio de plataformas o trabalho “Identificação de oportunidades
eficientes que possibilitassem maior competi- de investimentos públicos e/ou privados” de-
tividade no mercado internacional. Suas dire- senvolvido pelo Consórcio Brasiliana (formado
trizes foram: complementaridade regional por pelas empresas vencedoras do certame: Booz-
meio de investimentos que proporcionassem o -Allen & Hamilton do Brasil Consultores Ltda.,
desenvolvimento e a redução das disparidades Bechtel International Inc. e Banco ABN Amro
regionais; desconcentração para criar novos S.A.) entre os anos de 1998 e 1999. Os estudos
espaços econômicos; participação privada; for- foram acompanhados pelo BNDES (Banco Na-
talecimento das relações internacionais com a cional de Desenvolvimento Econômico e Social)
América Latina e, principalmente com o Mer- e pelo Ministério do Planejamento, Orçamento
cosul; fortalecimento institucional pelos ins- e Gestão (Nasser, 2000, p. 166).
trumentos de financiamento; desenvolvimento A base do discurso dos eixos propos-
local integrado a partir da sua influência no ta pelo referido trabalho fundamentou-se na
âmbito urbano; fomento do setor de serviços; integração física e na preocupação com os
e incentivo e integração das infraestruturas “desequilíbrios espaciais e sociais” dessas re-
econômicas às redes de infraestrutura social e giões, independentemente das fronteiras ad-
recursos hídricos (Brasil, 2001, pp. 15-16). Ao ministrativas, aproximando-se do modelo de
longo desse processo (em cerca de 8 anos) os definição de uma “região de planejamento”
eixos foram considerados o principal instru- (originalmente conceituada por Boudeville no
mento de dinamização territorial e abordaram seu Aménagement du territoire et polarisation)
as infraestruturas econômicas, de informação e (Ablas, 2003, pp. 172-173), sem desprezar as re-
conhecimento, de desenvolvimento social e de lações polarizadas herdadas da escola francesa.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 673
Jeferson Cristiano Tavares

Na prática, essa consultoria propôs uma segundo o qual, após revisão e complementa-
regionalização do território nacional a partir ção dos estados, estimava-se US$207 milhões
de critérios definidos pelos principais eixos de de investimentos necessários.
infraestrutura do País e sua área de influência, Por fim, essas nove regiões foram reagru-
considerando a importância de vias de trans- padas em quatro regiões definitivas:
porte, a funcionalidade das cidades abrangidas, 1) Rede Sudeste, Eixos Sudoeste e Eixo Sul: a
a existência de focos dinâmicos e os aspectos mais produtiva do País com predominância de
ambientais. O objetivo central foi estabelecer terciário avançado e prioridade para a difusão
uma base física capaz de direcionar os inves- e competividade;
timentos públicos e privados atrelados a pro- 2) Eixo Oeste e Eixo Araguaia-Tocantins: celeiro
jetos específicos e afins a esses investimentos. de produtos agrícolas para exportação (agro-
Assim, foram definidos nove eixos que resulta- pecuária e agroindústria) com prioridade para
ram em nove delimitações de regiões: Sul; Su- a logística de alta capacidade;
doeste; Rede Sudeste; São Francisco; Araguaia- 3) Eixo São Francisco e o Eixo Transnordestino:
-Tocantins; Oeste; Transnordestino; Madeira- a mais deficitária e pobre, com prioridade para
-Amazonas; e Arco Norte. novas oportunidades e adensamento das ca-
A partir dessas regiões, foram identifica- deias e inclusão social, com especial interesse
dos potenciais, demandas futuras (de transpor- sobre os recursos hídricos; e
te, energia e telecomunicações) de oportunida- 4) Eixo Madeira-Amazonas e Arco Norte: com
des de investimentos, além de necessidades de recursos para conservação e com prioridade
serviços sociais que compuseram um “portfólio para desenvolvimento inovador, biodiversidade
de investimentos” (Ablas, 2003, pp. 177-178) e integração internacional.

Delimitação geográfica dos Enid´s Delimitação geográfica dos Enid´s


referente ao PPA 1996-1999 referente ao PPA 2000-2003

Hid. Madeira-Amazonas
Costeiro do Sul
Franja de Fronteira
São Paulo
Centro-Oeste
Costeiro Nordeste
Transnordestino
Araguaia-Tocantins
Oeste
Saída para o Caribe
Rio São Francisco
Hid. Paraguai-Paraná
Rodovias
Rios
Ferrovias

Elaboração: Consórcio Brasiliana (2000). Elaboração: Consórcio Brasiliana (2000).


Fonte: Galvão e Brandão (2003, p. 222). Fonte: Galvão e Brandão, (2003, p. 223).

674 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016
Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

A proposta dos eixos proporcionou uma Eixos de Integração


nova regionalização para a provisão de inves- e Desenvolvimento (EID) da Iirsa,
timentos com base na lógica produtivista e a partir dos anos 2000
vinculada à infraestrutura regional. Sua jus-
tificativa operava-se pela perspectiva de des- No âmbito continental, a definição dos Eixos
concentração de projetos e investimentos e de Integração e Desenvolvimento está baseada
pela possibilidade de melhor distribuição dos na ideia de franjas multinacionais do território
impactos de desenvolvimento entre as regiões. sul-americano onde se concentram espaços na-
Baseou-se em “projetos-âncoras” de infraes- turais, assentamentos humanos, zonas produti-
trutura, certamente a estratégia mais pragmá- vas e fluxos comerciais. Esses eixos foram pro-
tica e eficiente no retorno dos investimentos. postos pela iniciativa para a IIRSA (Integração
Contudo, não se consolidou no plano das ações de Infraestrutura Regional Sul-Americana) e,
sociais, mais dispersas pelo território e pouco segundo seu argumento, representam uma re-
privilegiadas no portfólio de projetos. ferência territorial para o desenvolvimento sus-
Essa proposta sofreu, ainda, uma revisão. tentável da região, facilitando o acesso a zonas
Com a necessidade de atualizar o Portfólio de de alto potencial produtivo que se encontram
Oportunidades de Investimentos Públicos e/ou atualmente isoladas ou subutilizadas, devido
Privados, o BNDES abriu novo edital para revi- à deficiente provisão de infraestrutura econô-
são do portfólio e adequação do conceito dos mica. São ordenados para facilitar o fluxo de
eixos para integrar o PPA 2004-2007. O consór- bens, serviços, pessoas e informações dentro do
cio vencedor, Monitor, foi composto pelas em- território dos doze países sul-americanos (Ar-
presas Monitor Group e Boucinhas & Campos gentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equa-
e unificado ao consórcio constituído pelas em- dor, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai
presas Booz-Allen & Hamilton e UMAH. e Venezuela) e desse com o restante do mundo.
A proposta dividiu os eixos em cinco Atualmente, são ao todo dez os EID´s, e foram
fases, valorizando o aspecto microeconômi- propostos com a finalidade de promover a inte-
co através do reconhecimento dos clusters gração territorial sul-americana e potencializar
regionais, vinculados a estudos de competi- sua competitividade diante de um contexto de
tividade (Manzoni Neto, 2013, pp. 113-114). reorganização regional de blocos comerciais.2
Mudanças de gestão no poder executivo e, Os dez eixos são: 1) Andino, 2) Andino do Sul,
consequentemente, das políticas provocaram 3) Capricórnio, 4) Hidrovia Paraguai-Paraná,
alterações nos programas públicos federais, e 5) Amazonas, 6) Dos Escudos Guianos, 7) Sul,
os eixos deixaram de ser elemento estruturador 8) Interoceânico Central, 9) Mercosur-Chile e
nos planos seguintes. 10) Peru-Brasil-Bolívia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 675
Jeferson Cristiano Tavares

Cada um desses eixos delimita uma área da infraestrutura física a partir de uma con-
de influência que se consolida como uma re- cepção regional. Formou-se, então, a União
gião apta a receber recursos para propiciar de Nações Sul-americanas (Unasur) que culmi-
desenvolvimento econômico sustentável. Sua nou com o Tratado Constitutivo da Unasur,
origem está na influência brasileira sobre a em 23 de maio de 2008 (em Brasília). Entre
criação da Iirsa, ocasião em que foram apre- outras resoluções, esse Tratado estabeleceu
sentados o mesmo documento de Batista vários conselhos setoriais no nível ministerial
(na sua versão em inglês: Infrastructure for em diferentes âmbitos de trabalho, entre eles
Sustainable Development and Integration of o Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e
South America, 1996) e o documento “Eixos da Planejamento (Cosiplan), criado em 28 de ja-
América do Sul impulsionarão desenvolvimen- neiro de 2009, cujos objetivos centravam-se na
to” (de José Paulo Silveira, 2000 ). Mas, tam- infraestrutura regional, na integração entre os
bém, nos estudos apresentados pelo CAF (Vías países-membros, na compatibilização de nor-
para la Integración, 2000) e pelo BID (Un nuevo mativas e no apoio aos projetos prioritários. A
impulso a la integración de la infraestructura partir de 2011, a Iirsa vinculou-se ao Cosiplan,
regional en América del Sur, 2000 ), na mes- compondo seu Comitê Coordenador (ao lado
ma ocasião. Como resultado, após a fundação dos Grupos de Trabalho), com a finalidade de
da Iirsa, foi apresentado um Plano de Ação ser o foro técnico para apoio do planejamento
(elaborado conjuntamente pelo BID, CAF e da infraestrutura de conectividade regional. A
Fonplata,3 entre outros órgãos regionais) com Cosiplan aprovou recentemente seu Plano de
destacada importância aos eixos na estrutura- Ação (2012-2022).
ção territorial. O maior legado dessa organização ins-
A influência do documento de Batista é titucional ao redor de um conceito de eixo foi
fundamental para entender o panorama sobre uma “Carteira de Projetos” de infraestrutura
o qual se montam os fundamentos propagados nos setores de transporte, energia e comuni-
pela Iirsa através de seu Plano de Ação e do seu cações que foi proposta a partir da Metodo-
expoente territorial, o EID, pois o documento logia de Planejamento Territorial Indicativa.
de Batista propôs a predominância do aspecto Essa Metodologia partiu da identificação dos
geoeconômico, em substituição ao geopolítico, EID´s como organizadores do território sul-
no planejamento do desenvolvimento, a fim de -americano para propor um conjunto de pro-
obter benefícios econômicos pela integração jetos de infraestrutura econômica vinculados
sul-americana. ao território e que proporcionassem melhores
Nesse aspecto, é importante compreen- funcionalidades logísticas dos investimentos e
der a estrutura da Iirsa. Criada em 2000 pela do desenvolvimento sustentável nas suas áreas
primeira reunião de presidentes sul-america- de influência. A primeira versão da Carteira de
nos realizada no Brasil, a Iirsa teve o objetivo Projetos foi elaborada em 2004 e, a partir de
de iniciar um processo de integração e coope- então, passou por sucessivas atualizações. Ini-
ração de múltiplos eixos que integrassem os cialmente previa um portfólio de 335 projetos
doze países e impulsionassem a modernização de infraestrutura organizados em 40 Grupos de

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Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

Projetos estimados em US$37,42 bilhões. Em eixos. As críticas, sobretudo aquelas geradas


2015, a Carteira foi formada por 593 projetos a partir dos impactos causados pela implan-
em 48 Grupos com salto de investimento para tação de rodovias em áreas ambientalmente
US$182,4 bilhões.4 protegidas (como o caso do Eixo Peru-Brasil-
Embora com obras em andamento, as -Bolívia que passa pela Amazônia) e da falta
mudanças institucionais e o enfraquecimento de integração entre projeto econômico e proje-
da participação política brasileira pós-gover- to social, repercutiram negativamente, reposi-
nos FHC minimizaram o protagonismo da Iirsa cionando o papel dos eixos infraestruturais na
e de suas ações efetivas de concretização dos organização territorial da América do Sul.

31 Projetos estratégicos de integração na América do Sul


Agenda de implementação consensuada 2005-2010

Melhoramento da navegabilidade Passo de Fronteira Cúcuta - San


do Rio Meta Antonio del Táchira

Corredor viário Tumaco - Pasto - Melhoramento da rodovia Nieuw


Mocoa - Puerto Asis Nickirie - Paramaribo - Albina e cruza-
mento internacional do rio Marowijne
Porto Francisco de Orellana
Rodovia Venezuela (ciudad Guayana)
Rodovia Paita - Tarapoto - - Guiana (Georgetown) - Suriname
Yurimaguas, portos (Paramaribo) (primeira etapa)
e centros logísticos
Rodovia Boa Vista - Bonfim - Lethem -
Rodovia Lima - Tingo María - Georgetown (primeira etapa: estudos)
Puccalpa, portos e centros logísticos
Ponte sobre o rio Takutu
Ponte sobre o rio Acre Recuperação do trecho El Sillar

Pavimentação Inapari - Puerto Construção da rodovia Palon - San


Maldonado - Inambari e Inambari - José - Puerto Suárez
Juliaca/Inambari - Cusco
Construção da rodovia Cañada
Centro binacional de atendimento Oruro - Villamentes - Tarija - Estación
de fronteira de Desaguadero Abaroa (primeira etapa)
Aanel ferroviário de São Paulo
Rodovia Toledo - Pisiga (trechos norte e sul)

Pavimentação e melhoramento da Passo de Fronteira Infante Rivarola -


Rodovia Iquique - Colchane Cañada Oruro
Nova ponte Presidente Franco - Porto
Construção da ponte binacional Meira, com centro de fronteira
Salvador Mazza - Yacuiba Paraguai-Brasil
e centro de fronteira
Duplicação do trecho Palhoça - Osório
(Rodovia Mercosul)
Gasoduto do nordeste argentino
Duplicação da Rodovia 14 entre Paso
Rodovia Internacional CH-60 de los Libres e Gualeguaychú
(Setor Valparaíso - Los Andes)
Construção da ponte internacional
Projeto ferroviário Los Andes- Jaguarão - Rio Branco
Mendoza (Ferrovia Transandina
Central) Exportação por remessas postais para
médias e pequenas empresas
Adequação do corredor Rio Branco -
Montevidéu - Colonia - Nueva Palmira Implementação do acordo
de roaming sul-americano

Fonte: Iirsa (2004, p. 61).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 677
Jeferson Cristiano Tavares

EID´s

1 Eje Andino
2 Eje Peru-Brasil-Bolívia
3 Eje de la Hidrovía Paraguay-Paraná
4 Eje de Capricornio
5 Eje Andino del Sur
6 Eje del Sur
7 Eje Mercosur-Chile
8 Eje Interoceánico Central
9 Eje del Amazonas
10 Eje del Escudo Guayanés

Elaboração: Iirsa (2010).


Fonte: Ipea (2015, p. 32).

Vetores Territoriais do Plano à qual é atribuída uma carteira de projetos


de Ação da Macrometrópole Paulista, com a finalidade de promover o desenvolvi-
a partir dos anos 2010 mento, o dinamismo e o restabelecimento das
relações física e funcional nas diversas escalas
do território (Governo do Estado de São Paulo,
No âmbito estadual paulista e segundo o Plano 2014b, p. 30). Desempenham influência inter-
de Ação da Macrometrópole (PAM, 2014), Ve- metropolitana nas dinâmicas produtivas ou
tor Territorial é a denominação dada a um re- urbanas através de implantação/moderniza-
corte geográfico de uma determinada área ur- ção de plataformas logísticas, rede ferroviária
banizada da Macrometrópole Paulista (MMP) e complexo aeroportuário (Governo do Estado

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Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

de São Paulo, 2014d, p. 30). Os Vetores Terri- 5) Vetor de Desenvolvimento Sorocaba :


toriais formam seis regiões delimitadas pela in- abrange a região a oeste da Macrometrópole
fluência de alguns eixos rodoviários do estado Paulista (MMP), no eixo das Rodovias Caste-
de São Paulo e destinadas a intervenções de lo Branco e Raposo Tavares, com previsão de
infraestrutura econômica: implantação de sistemas de transporte sobre
1) Vetor de Desenvolvimento Região Metro- trilhos; sistema viário; integração de sistemas
politana de São Paulo: abrange o território da multimodais; articulação e infraestrutura logís-
Região Metropolitana de São Paulo com previ- tica; e no uso do solo;
são de implantação de transporte de passagei- 6) Vetor de Desenvolvimento Perimetral da
ros sobre trilhos, corredores metropolitanos de Macrometrópole: abrange faixa territorial for-
ônibus; plataformas logísticas; sistemas viário/ mada a partir do porto de São Sebastião em
rodoviário e ferroviário de cargas; sistemas direção a São José dos Campos/Jacareí/Campi-
aeroportuários; sistema hidroviário metropo- nas/Sorocaba, com previsão de articulação de
litano; dinamismo econômico e gerência dos sistemas multimodais, portuário, plataformas
recursos hídricos; logísticas; sistemas aeroportuários; eixos rodo-
2) Vetor de Desenvolvimento Vale do Paraí- viários e ferroviários de passageiros e cargas.
ba: abrange a ligação São Paulo/São José dos A rigor, os vetores territoriais estão orien-
Campos/Taubaté, com previsão de implantação tados pelos principais eixos rodoviários do es-
de sistemas de transporte sobre trilhos; inte- tado de São Paulo e abordam seus principais
gração de sistemas multimodais; sistema viá- polos urbanos. Sua origem, portanto, está no
rio; articulação e infraestrutura logística; siste- reconhecimento da estrutura do território pau-
ma de ciência e tecnologia (C&T); uso do solo; lista constituída por polos e eixos e no predo-
e turismo ecológico; mínio dos trechos rodoviários como orienta-
3) Vetor de Desenvolvimento Caminho do dores territoriais das ações futuras de planeja-
Mar: abrange as ligações entre São Paulo Ca- mento por concentrarem adequada infraestru-
pital e Santos entre os centros logísticos, as tura e um potencial parque linear industrial
vias e os modos de transposição da Serra do e logístico em toda sua orla. Eles (os vetores
Mar, para carga e passageiros, em direção aos territoriais) constituem, ao lado dos vetores
acessos do Porto, com previsão de sistemas sistêmicos (cinco grupos sistêmicos de serviços
de transporte sobre trilhos; sistema viário; e recursos naturais: recursos hídricos e sanea-
articulação hidroviária; articulação e infraestru- mento; desenvolvimento ambiental; sistema de
tura logística; e agilização burocrática; energia; inovação tecnológica, qualificação da
4) Vetor de Desenvolvimento Bandeirantes: mão de obra e gestão fiscal; desenvolvimento
abrange a ligação de São Paulo/Jundiaí/Cam- habitacional), a delimitação física e temática,
pinas/Rio Claro/Piracicaba, com previsão de respectivamente, do conjunto de projetos, pro-
ações nos sistemas de transporte sobre trilhos, gramas e planos propostos pelo PAM (Governo
no sistema viário, na integração de sistemas do Estado de São Paulo, 2014b, pp. 37-38 ). E,
multimodais e na articulação e infraestrutura embora algumas parcas ações de uso do solo
logística; e no uso do solo; e gestão administrativa sejam mencionadas no

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Jeferson Cristiano Tavares

decorrer do PAM, não há maior aprofundamen- Dessa forma, o PAM define três eixos estraté-
to dessas ações, levando à compreensão do gicos, ou ideias-chave, que orientam as ações:
predomínio da infraestrutura (sobretudo a eco- Eixo 1) Conectividade territorial e competiti-
nômica) como prioridade de intervenção. vidade econômica, dando importância às con-
Para entender a origem e os efeitos dos dições logísticas e de infraestrutura produtiva
vetores territoriais, é preciso compreender e de circulação econômica, além da criação de
a Macrometrópole Paulista e o seu Plano de ambiente de negócios através da concentra-
Ação. A MMP é formada por 172 municípios ção de empresas, centros de negócios e insti-
delimitados por um raio aproximado de 200 tuições financeiras. Eixo 2) Coesão territorial
quilômetros da capital, São Paulo. Reúne as e urbanização inclusiva, abordando o desafio
Regiões Metropolitanas de São Paulo, de Cam- de desenvolver o território de forma inclusiva,
pinas, da Baixada Santista, do Vale do Paraíba sustentável e equilibrada. Eixo 3) Governança
e Litoral Norte e parte da Região de Sorocaba, metropolitana, tratando da organização políti-
as aglomerações urbanas de Jundiaí e Piracica- co-institucional no que diz respeito, principal-
ba e a microrregião Bragantina. Concentrava, mente à accountability da carteira de projetos.
em 2010, 73,3% do total da população pau- O que se objetiva com esses conceitos é uma
lista, 82,7% do Produto Interno Bruto (PIB) do Macrometrópole “una”, “diversa”, “policêntri-
estado de São Paulo e 27,7% do PIB brasileiro ca”, “compacta” e “viva” (Governo do Estado
e 50% da área urbanizada do estado (Gover- de São Paulo, 2014a, p. 11).
no do Estado de São Paulo, 2014a, p. 1). Para Dessa forma, os vetores territoriais con-
orientar o desenvolvimento da Macrometrópo- formam-se como o espaço prioritário sobre o
le, o governo do estado propôs o PAM como qual se desenrolam essas propostas através
um conjunto de ações com o objetivo de dire- de planos, programas, projetos e obras que,
cionar as principais decisões administrativas reunidos na carteira de projetos, somam um
entre os anos de 2013 e 2040. As diretrizes investimento aproximado de R$415 bilhões
gerais do PAM são espacializar o planejamen- para serem aplicados entre 2013 e 2040. Do
to, criar um processo contínuo e integrar os que se observa das prioridades da carteira
diferentes setores administrativos. Valorizar de projetos, o Vetor de Desenvolvimento da
as funções estruturadoras da Macrometrópole Região Metropolitana de São Paulo concentra
(mobilidade e logística, saneamento ambiental mais de 65% dos investimentos previstos nos
e habitação) integrando setorial e institucio- vetores territoriais, e as obras infraestruturais,
nalmente os projetos e as ações. Enfim, definir sobretudo as de logística e de circulação de
os parâmetros da Política de Desenvolvimento pessoas (rodoviária e ferroviária), consomem
da Macrometrópole Paulista pela definição a maior parte dos recursos totais da carteira
de uma carteira de projetos e investimentos. de projetos.

680 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016
Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

Macrometrópole Paulista e os vetores territoriais do PAM

Fonte: Governo do Estado de São Paulo (2014c, p. 33).

em estudos de novas rodovias (a partir dos


Filiações e conceitos:
anos 1960). Talvez um caso emblemático des-
a resposta territorial sa prática tenha sido o estudo para a Rodovia
à reestruturação produtiva Castello Branco, no estado de São Paulo. Pro-
posta em 1963, sua concepção partiu da neces-
A ideia de eixo como uma larga faixa sob sidade de interligar áreas em desenvolvimento
influência de uma via com potencial de de- pouco atendidas pelo modal rodoviário que
senvolvimento que se constitui numa região apontavam para uma nova fronteira econômi-
objeto de provisão de infraestrutura e de ações ca, ou seja, a articulação entre o estado de São
planejadoras, presente nas três formulações Paulo com os estados do Mato Grosso do Sul e
acima, não é novidade no debate regional. Foi do Paraná e o Paraguai. Seus estudos denomi-
abordada nos estudos de Perroux quando tra- naram-na Eixo de Desenvolvimento Econômico
tou dos polos de crescimento (dos anos 1950) e definiram regiões sob sua influência que te-
(Perroux, 1966a, v. III, pp. 35-38) e foi utilizada riam seu desenvolvimento potencializado pela

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 681
Jeferson Cristiano Tavares

construção da nova rodovia. Prática que se En una escala regional, en la medida


tornou recorrente e aprimorada ao longo das en que estos corredores favorecen el
desarrollo económico y social de las
décadas posteriores com estudos de novas ro-
áreas que recorren, pueden convertirse
dovias e a delimitação de regiões para o desen-
en verdaderos ejes de integración y
volvimento sob sua influência (Tavares, 2015). desarrollo, constituyendo una herramienta
O que se avançou dos modelos de eixos de primer orden para vertebrar la
dos anos 1950/1960 para os eixos propostos organización del território. (p. 14)
nas últimas duas décadas? Permaneceu a ideia
de uma regionalização a partir de um fluxo, Institucionaliza-se uma forma de regio-
mas suas finalidades foram adequadas ao con- nalização a partir do tronco de infraestrutura
texto da reestruturação produtiva qualificando econômica com o objetivo de constituir regiões
o território com fins à integração, à conectivi- para as ações planejadoras. Em resumo, o eixo
dade e à competitividade no mercado nacional é uma faixa de serviços que, integrada terri-
e internacional. A concepção do BID (2000) é torialmente e incorporada pelo planejamento,
paradigmática desse novo modelo de organiza- define uma região de influência a partir da qual
ção territorial: serão destinadas provisões de infraestrutura
(econômica, social, ambiental). Nasce dos flu-
La interacción espacial da lugar a flujos,
xos da infraestrutura econômica, articula-se pe-
que en general no circulan en forma
libre en el espacio, sino que lo hacen a las redes existentes, forma troncos principais a
través de las redes de infraestructura. partir de seus nós e capilaridades, constituindo
Por ello, los fujos que serán objeto de uma região de provisão de recursos. Sua morfo-
análisis son los de bienes, de personas, logia deve-se à reestruturação produtiva, cuja
de información, de energia eléctrica,
hierarquia não segue mais a hegemonia de um
de gas y de petróleo. Estos flujos, al
circular por las redes de infraestructura, único centro macrocefálico, mas se baseia na
suelen consolidar sus movimientos en conexão de vários hubs como propulsores das
algunos tramos, conformando corredores. relações produtivas e comerciais.

Fluxos, redes, corredores e eixos

Fonte: BID (ibid., p. 14).

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Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

Sua constituição como ação planejadora sobretudo pela revisão das ações integradas
está orientada por um novo contexto político e entre Estado e iniciativa privada. Foram abor-
econômico que se inicia na redemocratização dadas todas as áreas de transporte, de energia
brasileira a partir das primeiras eleições dire- e de comunicações com vistas a modernização,
tas, em 1989. Os princípios econômicos adota- ampliação e privatização de parte dessas infra-
dos a partir de então baseiam-se na definição estruturas e de previsão de aumento de atendi-
de um cenário de abertura econômica com vis- mento nas áreas mais carentes do País (Brasil,
tas a um modelo de Estado mais enxuto ante a 1996b, sem página, item II: Objetivos e metas
maior participação do capital privado nos ser- da ação governamental, subitem: Infraestrutu-
viços públicos. No PPA de 1991-1995, elabora- ra econômica).
do no governo de Fernando Collor de Melo (lei O discurso de reorganização adminis-
n. 8.173 de 30 de janeiro de 1991), fica clara a trativa, investimentos públicos e privados nos
repercussão da ideia de reestruturação política setores econômicos de serviços públicos e a
e econômica expressa no seu art. 5º, § 1º, 2º e retórica pelo combate dos desequilíbrios regio-
5
3º. E do projeto político e econômico neolibe- nais parecem ter criado uma estranha aproxi-
ral de minimizar a participação do Estado nos mação entre os preceitos da ciência regional
serviços públicos, atribuindo-lhe funções regu- predominantes a partir da década de 1950, de
ladoras, enquanto, à iniciativa privada, cabe- equilíbrio territorial do desenvolvimento, aos
riam as novas atribuições dos serviços públicos. preceitos das políticas neoliberais, de privati-
Não foi a única ação nesse sentido, mas foi um zação dos serviços públicos. Esse hibridismo
importante prenúncio (na forma de plano) das fica muito evidente se analisarmos a proposta
políticas neoliberais que se consolidariam nas de Batista (1995) que está baseada no modelo
gestões presidenciais seguintes. de belt agrícola norte-americano (apud Faro;
No primeiro governo Fernando Henrique Pousa e Fernandez, 2005, pp. 12 e 157), se-
Cardoso foi instituído o PPA para o quadriênio gundo o qual uma grande região é atendida
1996-1999 através da lei 9.276, de 9 de maio por ações, planos e projetos qualificadores
de 1996, que trouxe, no seu anexo, as diretri- com finalidade econômica. Seu conceito ori-
zes, os objetivos e as metas do referido PPA. As ginal, “sistêmico-holístico”, partiu do aspecto
estratégias contidas nesse anexo vislumbram geoeconômico para constituir espaços a partir
o “aprofundamento do programa de desesta- de suas vocações produtivas articulando re-
tização” e a “reformulação e fortalecimento cursos naturais, energia e logística no âmbito
dos organismos de fomento regional” (Brasil, nacional e sul-americano.
1996b, sem página, item I.1 Das estratégias)
com fins a reduzir os “desequilíbrios espaciais Os belts – ou eixos – foram concebidos
como espaços econômicos e territoriais
e sociais do país” (uma das três principais dire-
concretos, com certa harmonia em relação
trizes do PPA)6 pela provisão de recursos para
às vocações produtivas, cuja exploração
serviços públicos básicos de caráter social. As deveria presidir a identificação dos princi-
infraestruturas econômicas, por sua vez, ocupa- pais projetos de eliminação dos gargalos
ram um espaço importante nessa proposta, de logística, para levar a produção aos

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Jeferson Cristiano Tavares

mercados de forma competitiva – uma seu conceito integral, e a aplicaria aos PPA´s e
política de desenvolvimento industrial e, aos seus programas políticos “Brasil em Ação”
ao mesmo tempo, associada a projetos
e “Avança Brasil”. Ao ser incorporado pela
de infraestrutura, que permitiriam a alo-
proposta do Consórcio Brasiliana, o modelo
cação na produção. (Raphael de Almeida
Magalhães apud Faro; Pousa e Fernandez, de Enid´s foi adaptado com base nas ideias
2005, p. 12) dos polos de desenvolvimento (1950 e 1960)
e de “região de planejamento” de Boudeville
Eles opunham-se ao modelo de corre- (Manzoni Neto, 2013, pp. 111-112), deflagran-
dores de exportação, pois deveriam articular- do esse hibridismo não só de conceitos, mas e
-se com o entorno e promover o contágio do sobretudo de posturas teórico-metodológicas
desenvolvimento nas áreas lindeiras com po- de períodos distintos. Aliás, sintomático do diá-
tencial produtivo. Para o funcionamento, con- logo com os argumentos do PPA 1996-1999,
tudo, era necessário ajuste da infraestrutura, em que predominou o discurso do combate
sobretudo a econômica, para articular matéria- aos desequilíbrios espaciais e sociais bem ao
-prima, recurso humano e mercado consumidor. gosto do debate regional que predominou no
Brasil entre os anos 1950-1970. Dessa forma,
Entender os eixos é respeitar a mais- os Enid´s transformaram-se na plataforma ter-
-valia das potencialidades tanto de uma
ritorial sobre a qual se dispunham projetos de
microárea como de uma macroárea. É
necessário integrar internamente regiões investimentos do setor público e privado com
economicamente viáveis. Depois, essas fins a incidir na área de influência dos eixos.
áreas serão integradas à América do Investimentos com “objetivo último de fortale-
Sul. Esta, por sua vez, será integrada cer, com o máximo de participação privada, os
ao mundo [...]. (Depoimento de Eliezer
Eixos de Integração e Desenvolvimento como
Batista apud Faro; Pousa e Fernandez,
2005, p. 157) vetores de maior competitividade econômica
e menores desequilíbrios sociais e regionais”.7
Esse hibridismo em aproximar os precei- Esse modelo foi novamente alterado
tos desenvolvimentistas ao contexto neoliberal quando incorporado pelos EID´s da Iirsa que,
pode ser mais bem compreendido se visualizar- mesmo sob forte influência do governo de
mos o caminho percorrido por essa proposta. FHC, redesenhou seu modelo de eixo a partir
Os estudos de Batista foram encomendados pe- do debate da constituição de novos mercados
lo governo de Fernando Collor de Melo (1990- econômicos unificados com proposta de “mo-
1992) e aprofundados no governo de Itamar dernização da infraestrutura física da Améri-
Franco (1992-1995), por solicitação do então ca do Sul em áreas de transporte (...)” (Iirsa,
ministro das Relações Exteriores, Fernan do 2011, p. 7). E manteve a ideia de grandes cin-
Henrique Cardoso (e financiados pelo Business turões de desenvolvimento na escala continen-
Council for Sustainable Development – Latin tal e de maneira integrada a partir das infraes-
America). Fernando Henrique Cardoso, por sua truturas econômicas.
vez, adotaria a ideia já no seu primeiro man- Os ecos da década de 1950 também
dato como presidente (1996-2003), mas não exerceram influência sobre os EID´s da Iirsa

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Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

pela Cepal, contudo de maneira atualizada e comercial e a integração seriam uma


baseando-se na sua resposta à reestruturação condição necessária para se promoverem o
progresso técnico e o crescimento econô-
econômica mundial, sob a noção do “Regiona-
mico com equidade. (Santos, 2014, p. 55)
lismo Aberto”, pela defesa da cooperação re-
gional e integração hemisférica a partir da sua A Iirsa nasceu nesse contexto incentiva-
visão produtiva com equidade e do reforço da da pelo: empenho neoliberal ao qual se incli-
concorrência (ibid., nota 2, pp. 21-22). nava boa parte dos governos que a apoiaram;
pelo envolvimento desses governos nos tra-
Nas perspectivas do regionalismo aberto
e do novo regionalismo, a integração re- tados multilaterais, como Mercosul (Mercado
gional seria um processo de liberalização Comum do Sul, criado em 1991) e Alca (Área
comercial intrarregional que trabalharia Livre de Comércio para as Américas, criada em
fundamentalmente como um alicerce e
1994); e pelos esforços desses governos em re-
um estágio do processo de liberalização
posicionar o mercado e a iniciativa privada no
comercial internacional, iniciado na Roda-
da Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e papel antes ocupado pelo Estado. E sua função
Comércio – General Agreement on Tariffs foi a de promover a integração infraestrutural
and Trade (GATT) – e retomado na Roda- para consolidar a conexão entre os países sul-
da de Doha lançada no âmbito da Organi-
-americanos para lhes proporcionar maior com-
zação Mundial do Comércio (OMC). (Pa-
petitividade no mercado (livre) internacional. O
dula, 2014, p. 296, nota 4)
projeto neoliberal, portanto, transpassa as bar-
Um dos principais objetivos era garantir, reiras administrativas e político-econômicas e
aos países latino-americanos integrados, coe- se consolida no território ante a reorganização
são e força para enfrentar o comércio inter- mundial do comércio. E seu viés técnico não
nacional e suas oscilações. A integração (co- foge à regra da iniciativa privada, haja vista a
mercial, principalmente, mas física, também) importância das instituições bancárias na sua
mostrou-se como importante estratégia diante concretização (BID; CAF, atualmente Banco de
da nova configuração mundial do comércio e Desenvolvimento da América Latina; Fonplata)
da reestruturação produtiva. Condições que e a predominância dos investimentos privados
atribuíam, à infraestrutura, papel fundamen- nos projetos e na própria construção dos Eixos:
tal na organização do território por promover
A Iirsa nasce sob uma concepção na qual
a integração dos fluxos pelo continente; exigir
ganha proeminência a necessidade de
aproximações políticas que proporcionassem atração do setor privado para participar
as compatibilizações entre essas infraestrutu- do equacionamento financeiro dos pro-
ras; e otimizar economicamente a produção. jetos, seguindo a lógica das privatizações
e de participação mínima do Estado na
[...] Dessa forma, a Organização Mun- economia, para atrair investimentos em
dial do Comércio como instância de re- infraestrutura para a região e, consequen-
gulação, os acordos de livre comércio e temente, para os governos que buscavam
a união aduaneira seriam parte substan- uma alternativa para viabilizar novos in-
tiva da agenda da integração. A abertura vestimentos [...]. (Padula, 2014, p. 312)

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 685
Jeferson Cristiano Tavares

No caso do PAM, embora ele não apre- que redesenhou as fronteiras internacionais,
sente as bases conceituais e seu histórico nacionais e estaduais e tem consolidado o eixo
remeta-se mais à rotina do planejamento esta- como o principal mote físico-espacial de novas
dual, ele também foi elaborado e proposto em intervenções e investimentos.
meio a uma gestão de viés neoliberal que se
alinhava, há duas décadas, a esses preceitos
sul-americanos e nacionais. Condição que jus-
tifica a utilização, constante, dos aspectos de
Convergências e paradoxos:
conectividade e concorrência na organização
os predomínios econômico,
territorial da macrometrópole e do predomí- locacional e setorial
nio de ações pautadas por grandes obras de
infraestrutura econômica. A lista de seus prin- Essas propostas de eixos têm em comum ou-
cipais desafios esclarece bem a importância: tros aspectos, além de serem concebidas sob
da competitividade econômica territorial para um contexto político e econômico de reorgani-
atração de mais investimentos; da conecti- zação regional do mercado internacional:
vidade da macrometrópole para proporcionar a) constituem uma boa parcela do planeja-
maior eficiência à integração das atividades mento regional pelo predomínio da infraestru-
8
produtivas. São parte da sua carteira de pro- tura econômica (comunicações, energia e, prin-
jetos obras de forte impacto produtivo, como cipalmente, logística ou transportes nos seus
centros logísticos, porto seco, retroporto, vários modais);
plataforma logística, plataforma remota, aero- b) partem de um fluxo existente (material,
porto, porto fluvial, porto marítimo e comple- como pessoas ou produtos; ou imaterial, como
xos aeroportuários. distribuição de energia ou sistema de comuni-
O que se segue, nas três esferas do pla- cações) e a partir dele delimita uma região sob
nejamento (nas escalas continental, nacional e sua influência;
estadual), são ações alinhadas ao neoliberalis- c) as regiões delimitadas pela influência dos
mo e com explicitado vínculo à predominância eixos resultam em: manchas ora contínuas, ora
da iniciativa privada como propulsora de inves- descontínuas; podendo estar sobrepostas ou
timentos. A bagagem neoliberal dessas propos- não; não se limitando às fronteiras municipais,
tas, decorrente dos governos predominantes estaduais ou nacionais, portanto rompendo a
nesse período, redundou num discurso de “de- ideia clássica de regionalização como a prática
senvolvimento” inócuo, pois esteve menos vin- do agrupamento de áreas confinadas e reuni-
culado a soluções sobre os passivos sociais e das por algum tipo exclusivo de similaridade;
ambientais, e mais preocupado em criar ativos d) promovem a integração territorial repro-
territoriais setoriais. duzindo no espaço as soluções para as necessi-
Definitivamente, a pauta da competiti- dades econômicas de conectividade produtiva
vidade territorial apoiada na sua integração e e aumento de competitividade;
conectividade com mercados mundiais conso- e) morfologicamente, contrariam o mode-
lidou um modelo de intervenção infraestrutural lo macrocefálico típico da cadeia produtiva

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Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

fordista monocêntrica, ao compor múltiplas no planejamento de regiões já qualificadas e


relações hierárquicas e corresponder aos novos inseridas no contexto produtivo e que se cons-
padrões produtivos; titui como ações com concentração de investi-
f) são formuladas a partir da nova matriz mentos nos setores de energia, comunicações
econômica neoliberal, com importante parcela e transporte. Embora as propostas dos eixos se
de investimento privado; justifiquem pelo espraiamento dos efeitos po-
g) estão inseridas em programas mais abran- sitivos dessas ações sobre as regiões delimita-
gentes (de âmbito político ou técnico), nos das, as regiões com menor potencial produtivo
quais apresentamnotória relevância estrutural; e, em geral, as mais carentes ficam à margem
h) incorporam, no discurso, questões sociais dos investimentos. Condição que, em grande
e ambientais, embora o foco permaneça na parte, explica a – praticamente – ausência de
produtividade; investimentos nos equipamentos sociais e nas
i) retomam o debate regional pelo viés in- medidas mitigadoras ambientais.
terescalar (nos âmbitos continental, nacional A primeira crítica mais contundente so-
e estadual), excluindo, contudo, o debate no bre os Enid´s que, sem prejuízo da escala, pode
âmbito local, sobre o qual os reflexos negativos ser estendida para os EID´s (da Iirsa) e para os
dessas implantações são mais impiedosos e no Vetores Territoriais (do PAM), parte dos estu-
qual emergem com mais força os temas sociais dos de Galvão e Brandão (2003, pp. 187-205)
e ambientais; que filiaram a proposta brasileira ao contexto
j) dividem um mesmo vocabulário (são co- político e econômico de princípio neoliberal e
muns os termos: plano de ação [PAM] ou plano apontaram seu distanciamento da escola de
de ação estratégica [Iirsa]; carta de projetos planejamento que se consolidou no período
[Iirsa] ou carteira de projetos [PAM]; portfólio desenvolvimentista.
de investimentos [Consórcio Brasiliana]) que,
[...] Curiosamente, ao invés de um mo-
para além da similaridade de termos, explicita
mento de ruptura e mudança, aquele
uma afinidade programática de intervenções da formulação da proposta dos “eixos”
de grande porte na qualificação do território [Enid´s, complemento nosso] representou
para modernizá-lo como novo ambiente de in- a continuidade em relação às opções neo-
vestimentos do capital privado. liberais assumidas no início da década [de
1990, complemento nosso]. [...] As priva-
Algumas dessas características não foram
tizações, concessões de serviços públicos,
poupadas pelas críticas recentes. Nos três casos desmonte de controles estatais e outras
(Enid´s, EID´s e Vetores Territoriais), essas críticas medidas assemelhadas continuaram seu
têm-se pautado pelas questões econômicas; curso por toda a década, atestando a ine-
pelos privilégios localistas das intervenções xistência de solução de continuidade [...].
(Ibid., p. 188)
em áreas historicamente mais desenvolvidas e
[...] Traços essenciais daquele perío-
aptas ao (maior) desenvolvimento; e pelo cará- do [desenvolvimentista, complemento
ter setorial das propostas. De forma geral, iden- nosso], sim, estavam sendo definitiva-
tificam o predomínio neoliberal que se instala mente abandonados. (Ibid., p. 189)

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 687
Jeferson Cristiano Tavares

Em que pese a influência dos polos de De acordo com a natureza dos investi-
crescimento sobre o conceito de eixos, esses se mentos dos Projetos da Carteira do PAM,
cerca de 56% demandam a participação
distanciam daqueles sobretudo quanto ao fo-
de recursos privados, seja em forma dire-
co e à maneira dos investimentos. Enquanto os
ta, seja por meio de PPPs e concessões.
polos buscavam o equilíbrio territorial pela dis- (Ibid., p. 179)
sipação do desenvolvimento pela indústria mo-
triz e pela integração territorial de sua cadeia, Considerando que o equacionamento da
os eixos preveem investimentos setorizados na política neoliberal depende dos investimentos
infraestrutura produtivista. Ambos contam com privados e que estes dependem de retornos fa-
investimentos privados (pela indústria, no caso voráveis, consolida-se um ciclo vicioso garan-
dos polos; pelas parcerias entre capital público tido pela decisão locacional. Com o abandono
e privado, no caso dos eixos), contudo as polí- dos princípios desenvolvimentistas (diga-se de
ticas que incentivam os eixos, paradoxalmente, passagem, que estavam baseados, entre outros
provocam uma concentração de ativos em re- paradigmas, no da industrialização), também
giões já privilegiadas por investimentos, con- se abandonou o princípio de equilíbrio terri-
trariando os objetivos de equilíbrio regional. torial do desenvolvimento (presente nos dis-
Essas diferenças aumentam quando analisadas cursos de planejadores no início da segunda
as passagens que se dão do aspecto geopolí- metade do século XX). Assim, o privilégio em
tico para o geoeconômico; desenvolvimentista atender áreas já potencialmente desenvolvidas
para o neoliberal; estatal para o privado; e, em (ou em curso de desenvolvimento) pelo aporte
última instância, do equilíbrio territorial para a de recursos de infraestrutura econômica deixou
competitividade-integração-conectividade ter- de lado o atendimento às áreas mais carentes
ritoriais. A entrada do capital privado na provi- e a prioridade por equipamentos de natureza
são dos serviços de caráter público reforça essa social. Pois, afinal, a primazia do investimen-
mudança. No PAM, esses papeis ficam bem to privado condiz com a certeza de lucros dos
definidos: recursos aportados. Em sintonia com a ques-
tão econômica segundo a qual os eixos res-
PPP: pondem aos preceitos neoliberais, entram em
Essas novas formas de relação público-
debate as escolhas locacionais a partir das
-privada estão no centro da estratégia
quais predominam investimentos em áreas já
de desenvolvimento da Macrometrópole
preconizada no PAM. Assegurar o desen- qualificadas e aptas à maior produtividade. Nos
volvimento dessa região pressupõe que EID´s, por exemplo, a decisão locacional optou
grandes investimentos sejam realizados. por baixo investimento no Eixo do Escudo das
E estes dependem de financiamento e da
Guianas que, mesmo estratégico para a região,
ação de atores privados que encarem o
possuia “baixo grau de desenvolvimento” (Pa-
território da MMP como um local seguro
para investimentos, com prazo garantido dula, 2014, p. 335). Já, nos vetores territoriais, a
e regras estáveis. (Governo do Estado de área mais privilegiada com investimentos (65%
São Paulo, 2014d, p. 158) do total destinado aos vetores territoriais) é o

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Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

Vetor de Desenvolvimento da RMSP (Governo setores de transporte e energia, com for-


do Estado de São Paulo, 2014d, p. 179), região te concentração de projetos no setor de
transporte, o qual corresponde a 94% do
tradicionalmente mais desenvolvida e com cer-
número de operações e 91% dos valores
teiras possibilidades de retornos.
previstos de investimentos. No âmbito
Embora a organização territorial dada desse setor, mais de 50% dos investimen-
pela lógica da atividade produtiva como cerne tos se localizam no modal rodoviário [...]
do desenvolvimento não fosse uma inovação (Costa e Gonzalez, 2014, p. 37)
das estratégias dos eixos (pois a ideia de polos
Nos vetores territoriais, os maiores inves-
de crescimento de Perroux partia da indústria
timentos são previstos também em logística,
motriz como difusora de desenvolvimento), as
não apenas no aspecto quantitativo (que re-
escolhas locacionais para implantação desses
presenta a maior soma de valores de investi-
eixos têm-se pautado pela potencialidade de
mentos), mas também no aspecto qualitativo,
concorrência dessas regiões. Ao propor uma re-
tendo em vista que são as ações com maior
gionalização estadual, nacional ou continental
prioridade, além de serem classificadas como
por eixos infraestruturais em “regiões ganha-
estruturantes (Governo do Estado de São Paulo,
doras” ou com potencial de desenvolvimento,
2014d, p. 179).
fica clara a opção por áreas já equânimes em
Em resumo, essas ações baseadas terri-
relação à produtividade. Ficam de fora, portan-
torialmente nos eixos e nas suas respectivas
to, as áreas com conflitos e contradições sociais
regiões de planejamento, orientadas por um
e ambientais que, em geral, necessitam de mais
portfólio de investimentos em grandes obras
atendimento e, por isso mesmo, não represen-
predominantemente infraestruturais, aponta-
tam certezas de investimentos.
ram para uma estratégia de desenvolvimento
E em relação ao tipo de aporte de investi-
vinculado estritamente ao produtivismo em
mento, nos três casos, predomina a setorização
áreas historicamente mais desenvolvidas.
da infraestrutura em energia, comunicações e
transportes com larga vantagem do modal ro-
doviário. Na concepção dos Enid´s, por Batista,
esse princípio já se destacava como estrutural Conclusão
(apud Faro; Pousa e Fernandez, 2005, p. 157).
Nos EID´s e nos Vetores Territoriais, eles ficam No nosso estudo, identificamos como a pro-
evidentes no percentual de recursos destinados posta de eixos (Eixos Nacionais de Integração
a esses setores da infraestrutura em compara- e Desenvolvimento; Eixos de Integração e De-
ção com os demais investimentos. Nos EID´s, senvolvimento; e Vetores Territoriais) tem por
a previsão de investimentos estimados pelo finalidade organizar o território a partir da
Cosiplan, para 2016, considerou boa parte des- constituição de regiões sob influência de im-
tinada aos transportes: portantes faixas de infraestrutura econômica e
como as propostas derivadas desses modelos
Com respeito ao perfil setorial da car-
teira API, a tabela 11 evidencia que os dialogam com premissas neoliberais de qualifi-
investimentos previstos se limitam aos cação do território pela sua competitividade na

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 689
Jeferson Cristiano Tavares

escala global. Tendo em vista essas evidências, busca responder a um determinado contexto
podemos afirmar o protagonismo do eixo como econômico mundial.
novo padrão formal/espacial de organização Por fim, podemos compreender que o
territorial definido por políticas e programas de modelo de eixos tem se enraizado de tal forma
âmbito territorial proporcionados por governos nas instituições de planejamento que, mesmo
estadual, nacional e continental. Esse novo pa- os antigos padrões de organização territorial,
drão, por sua vez, reforça a influência das ati- antes influenciados pela ideia de polos, estão
vidades produtivas, pois se desenvolve por um sendo revistos à luz da lógica dos fluxos das
diálogo entre as decisões locacionais e o capi- dinâmicas produtivas. Haja vista a aprovação
tal privado, não apenas com investimentos na das duas novas regiões metropolitanas no es-
atividade industrial, mas também nos setores tado de São Paulo: Região Metropolitana do
de serviços de interesse público. E, ao privile- Vale do Paraíba e Litoral Norte (2012) e Re-
giar mais as atividades produtivistas e as áreas gião Metropolitana de Sorocaba (2014). Em
mais competitivas, utiliza o argumento de “de- ambos os casos, o que parece ter predomina-
senvolvimento” para justificar a modernização do como fator decisivo para a definição dessas
dos equipamentos infraestruturais. regiões metropolitanas não foi a constituição
Nesse contexto, a transposição de matriz de uma metrópole polarizada a partir de suas
predominante, que passa dos Polos de Cresci- principais cidades (São José dos Campos; So-
mento para os Eixos de Infraestrutura, sugere rocaba) que por si são dependentes de polos
um deslocamento conceitual do predomínio maiores e geograficamente próximos (São
da escola francesa de planejamento para a es- Paulo e Campinas). Mas, foram definidas a
cola americana. A ideia de difusão de desen- partir das relações de fluxos instituídos pelos
volvimento equilibrado, antes orientada pela seus principais eixos rodoviários (Dutra, Ayr-
geração de polos de crescimento, passa a ser ton Senna/Carvalho Pinto e Raposo Tavares/
orientada pela ideia de belts como regiões de Castelo Branco) que as interligam a esses po-
planejamento de setores produtivos que, nos los maiores e, consequentemente, aos portos
casos analisados, fundamentam-se pelos flu- de Santos e São Sebastião, condizentes à ur-
xos. Esse deslocamento é comprovado pela banização dispersa (Reis Filho, 2006) em fran-
pioneira experiência de Eliezer Batista (1995) co desenvolvimento. Na urbanização dispersa,
ao conceber seus eixos de infraestrutura a boa parte das atividades cotidianas regionali-
partir das experiências dos belts americanos e za-se ao longo das rodovias, ampliando a de-
pela larga predominância de agências e ban- pendência da mobilidade, a valorização de es-
cos sul-americanos (sob influência das políti- paços metropolitanos e intermetropolitanos, o
cas norte-americanas) na conceituação e no espraiamento residencial e de serviços, a di-
financiamento desses eixos. Essa filiação, em minuição de densidade das áreas urbanizadas,
diálogo com o contexto de reestruturação pro- o esgarçamento do tecido urbano e a consti-
dutiva, parece articular instituições, capital e tuição de uma “nebulosa” ou de uma conste-
trabalho na construção de um paradigma que lação de áreas urbanizadas interdependentes

690 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016
Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

e pouco compactas. Notáveis influências dos metropolitano fragmentado e com altos índi-
eixos como fator decisivo de mudança de um ces de problemas sociais e ambientais (Tava-
padrão de organização territorial. res, 2015, pp. 174-178).
A constatação desse paradigma parece Seria desejável que o debate regional
provocar um novo desafio que vai além da extrapolasse o viés setorial produtivista ma-
compreensão do papel do eixo no planeja- terializado pelas faixas infraestruturais que
mento regional. Trata-se da ausência da esca- constroem espaços exclusivamente econômi-
la local nesse debate. Embora o planejamento cos e se voltasse para os espaços de concen-
por eixos ocorra no âmbito interescalar, ele tração de pessoas, a rigor as redes urbanas.
não aborda a escala local. Menciona-a em al- No planejamento regional, a rede urbana tem
gumas ocasiões, mas as ações prioritariamen- relevante destaque por ser um espaço priori-
te não são a ela direcionadas. As condições de tário de relações interescalares e por reunir
urbanização que se identificam nas principais a dimensão regional e o aspecto local numa
cidades brasileiras, com maior evidência no tentativa de diálogo entre os espaços econô-
estado de São Paulo e nas capitais estaduais, micos e as demandas sociais, pois é a relação
apresentam um grau de metropolização irre- urbano-regional que se tem mostrado essen-
versível, sendo inevitável a inserção da escala cial para a construção de novos paradigmas do
local no debate regional. Sobretudo porque planejamento regional. Tentando sintetizar es-
essas ações de âmbito regional interferem nas se desafio e tendo em vista a consolidação dos
cidades a partir dos impactos sociais e am- eixos como nova prática do planejamento, pro-
bientais que recaem sobre os espaços urba- pomos o seguinte questionamento: quais de-
nos e seus usuários. Haja vista os conhecidos verão ser os novos paradigmas da organização
efeitos das decisões regionais exclusivamente territorial que, com foco na relação urbano-
setoriais sobre o ambiente urbano, nas déca- -regional, podem alavancar o desenvolvimento
das de 1960 e 1970, que legaram um modelo da rede urbana brasileira?

Jeferson Cristiano Tavares


Centro Universitário Faculdades Integradas Alcântara Machado-Faculdades de Artes Alcântara Ma-
chado, Planejamento Urbano e Regional. São Paulo, SP/Brasil.
jctavares@gmail.com

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 691
Jeferson Cristiano Tavares

Notas
(*) Este texto foi, em boa parte, mo vado pelos debates sobre planejamento regional com Laisa
Eleonora Stroher e Cin a de Souza Alves, a quem devo agradecimentos.

(1) O PPA (Plano Plurianual), a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e a LOA (Lei Orçamentária
Anual) são instrumentos de planejamento previstos na Cons tuição de 1988, no seu ar go 165,
cuja finalidade é garan r, à gestão pública administra va a ro na de planejamento e o controle
do inves mento dos recursos públicos. Atualmente, os três entes federados (níveis federal,
estadual e municipal) têm aplicado esses instrumentos.

(2) Disponível em: <h p://iirsa.org/Page/Detail?menuItemId=60>. Acesso em: 16 abr 2016.

(3) BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento; CAF: Corporação Andina de Fomento,


atualmente Banco de Desenvolvimento da América La na; e Fonplata: Fundo Financeiro para o
Desenvolvimento da Bacia do Prata.

(4) Disponível em: <h p://iirsa.org/Page/Detail?menuItemId=126>. Acesso em: 16 abr 2016.


(5) Art. 5°: O Plano Plurianual de que trata esta lei, ao longo de sua vigência, somente poderá ser
revisado, ou modificado, através de lei específica, sendo que o projeto de lei rela vo à primeira
revisão deverá ser encaminhado ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da Sessão
Legisla va de 1992(Vide lei nº 8.446, de 1992).
§ 1°: Revisões do Plano Plurianual 1991/1995, nas condições e limites de que trata o caput deste
ar go, deverão observar o seu ajustamento às circunstâncias emergentes no contexto social,
econômico e financeiro, bem como a continuidade do processo de reestruturação do gasto
público federal.
§ 2°: A reestruturação do gasto público federal terá como obje vos básicos:
a) assegurar o equilíbrio nas contas públicas;
b) aumentar os níveis de inves mento público federal, em par cular os voltados para a área
social e para infra-estrutura econômica;
c) ajustar a execução das polí cas públicas federais a uma nova conformação do Estado, que
privilegie as inicia vas e a capacidade gerencial do setor privado e, ao mesmo tempo, fortaleça
as inerentes ao Poder Público;
d) rever o papel regulador do Estado, com vistas à consolidação de uma economia de mercado
moderna, compe va e sujeita a controles sociais;
e) conferir racionalidade e austeridade ao gasto público federal;
f) elevar o nível de eficiência do gasto público, mediante melhor discriminação e maior ar culação
dos dispêndios efe vados pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios.
§ 3°: Para consecução dos obje vos referidos no parágrafo anterior, o Poder Execu vo adotará as
seguintes linhas de ação:
a) redução da par cipação rela va dos gastos com pessoal nas despesas públicas federais;
b) modernização e racionalização da Administração Pública Federal;
c) priva zação de par cipações societárias, bens ou instalações de sociedades controladas, direta
ou indiretamente, pela União, de conformidade com o Programa Nacional de Desesta zação,
criado pela lei n° 8.031, de 12 de abril de 1990;
d) alienação de imóveis e de outros bens e direitos integrados do a vo permanente de órgãos e
en dades da Administração Pública Federal direta, autárquica ou fundacional;
e) transferência de encargos públicos para os Estados, Distrito Federal e Municípios;
f) (Vetado)
(Lei no. 8.173, Art. 5º, § 1º, 2º e 3º)

692 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016
Eixos: novo paradigma do planejamento regional?

(6) As três diretrizes eram: “Construção de um Estado Moderno e Eficiente; a Redução dos
Desequilíbrios Espaciais e Sociais do País; e a Modernização Produ va da Economia Brasileira”
(Brasil, 1996b, sem página, item I. Diretrizes da Ação Governamental).

(7) Disponível em: <h p://www.fazenda.gov.br/no cias/1998/r980901anx3#wrapper, parágrafo


75>. Acessado em: 9 abr. 2016.

(8) “Principais desafios


• Aprofundar a compe vidade econômica e a integração funcional entre os territórios da MMP.
• Atrair investimentos e/ou negócios, nos setores industrial e de serviços de média e alta
intensidades tecnológicas. E inves r na qualificação da mão de obra e na ampliação da oferta de
educação tecnológica e técnica.
• Equacionar problemas de conec vidade territorial por meio de complementação e integração
dos principais sistemas de infraestrutura de suporte às a vidades produ vas e de atendimento
básico à população.
• Modificar a matriz dos deslocamentos de pessoas e mercadorias, por meio da ampliação
da intermodalidade e da expansão das infraestruturas, além da integração entre rodovias,
ferrovias, hidrovias, portos e aeroportos.
• Qualificar a MMP como o mais importante hub de transporte e comunicação do País.
• Tratar o território da MMP como “plataforma” de polí cas públicas, projetos e ações ar culadas,
capazes de oferecer resposta adequada à complexidade dos problemas existentes, bem como à
integração territorial e funcional entre suas unidades regionais.
• Implementar projetos ar culados no âmbito do princípio da coesão territorial e urbanização
inclusiva.
• Pactuar com os demais níveis de governo, os setores público e privado e com a sociedade a
definição e implantação da carteira de projetos da Macrometrópole Paulista.”
(Governo do Estado de São Paulo, 2014d, p. 11)

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Decreto n. 4.042 de 13 de dezembro de 2001 - PPA 2000-2003.

Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 671-695, set/dez 2016 695
La gentrificación en los estudios urbanos:
una exploración sobre la producción
académica de las ciudades
Gentrification in urban studies: an investigation
about the academic production of cities

Félix Rojo Mendoza

Resumen Abstract
Muchos de los procesos de transformación Many of the current urban transformation processes
urbana actuales se tratan a partir de la noción de are discussed based on the notion of gentrification.
gentrificación. Su definición tradicional implica Its traditional definition implies urban restructuring
reestructuración urbana y recambio de clases. Sin and replacement of social classes. However,
embargo, su aplicación en estudios urbanos ha its application to urban studies has led to a
derivado en varias temáticas ¿Cuál es la variedad debate focusing on various topics. What types of
de procesos a los que apunta la gentrificación processes are related to gentrification in current
en estudios actuales? Este artículo presenta los studies? This article presents the findings of a
resultados de una investigación bibliométrica bibliometric research concerning the use of the
respecto a la utilización del término gentrificación. term gentrification. We searched for documents
Considerando las bases Web of Science y Scielo published in the databases Web of Science and
de los últimos 5 años, se describe su tratamiento SciELO in the last five years containing the term in
en 159 artículos titulados con dicho término. their titles. A total of 159 articles was found. The
Los resultados indican tendencias al alza en su results indicate an increase in the use of the term,
uso, diversificación de los tipos de gentrificación, the establishment of diverse types of gentrification,
y diferencias académicas en la atribución de and academic differences in the attribution of the
consecuencias a este proceso. consequences of this process.
Palabras claves: gentrificación; transformaciones Keywords: gentrification; bibliometric analysis;
urbanas análisis bibliométrico; estudios urbanos. urban transformations; urban studies.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3704
Félix Rojo Mendoza

transformaciones que experimenta la ciudad


Introducción
actual. Entre los cuestionamientos que se
Desde el mundo académico es común hablar mencionan, destaca que su uso es altamente
hoy de transformaciones urbanas vinculadas, contextual al espacio urbano que se observa,
entre otros aspectos, a la aparición de nuevas por lo que las generalizaciones que muchas
formas de expansión metropolitanas, distintas veces se utilizan son producto del trabajo en
a las que se presentaba en el pasado. Se asume torno a las teorías urbanas tradicionalmente
que estos cambios son producto del reemplazo arraigadas en espacios anglosajones (Maloutas,
del Estado como organizador de la seguridad 2011; Lemanski, 2014). A raíz de lo anterior,
y los servicios urbanos, por un mercado cada la noción de gentrificación operaría con una
vez más activo en la privatización de uso del aparente diversidad analítica no aclarando con
suelo. Muchas de estas transformaciones ello, por ejemplo, el recambio generacional de
están siendo discutidas a par tir de un clase en los centro/pericentros de las ciudades,
concepto que ha tomado relevancia en los las particularidades de las distintas dinámicas
últimos años: gentrificación. Este término, de desplazamiento o la convivencia en un
acuñado en el contexto urbano londinense mismo espacio de procesos de tugurización
(Glass, 1964), hace referencia a procesos de y gentrificación. La mismo ocurre cuando
renovación urbana de viejas zonas céntricas se evalúa las funciones que cumple la
de las ciudades producto del arribo de estratos gentrificación en términos simbólicos, turísticos,
medios y altos, y el desplazamiento de sectores comerciales o residenciales (Janoschka et al.,
pobres que residen en ellos. Por lo tanto, 2014), o las consecuencias en el tejido social
la definición tradicional implica dos cosas: urbano (consolidación de la ciudad compacta
reestructuración urbana y recambio de clases versus integración social/funcional). Por otro
sociales. Así, y considerando sólo los aspectos lado, esta discusión en el contexto de las
materiales de estas transformaciones, la ciudades latinoamericanas ha conducido a
gentrificación implica dinámicas de extracción una aparente diferenciación respecto a los
de renta de suelo, y la distribución desigual espacios urbanos norteamericanos/europeos.
de las ganancias obtenidas en ello. Todo lo Mientras en los espacios urbanos de América
anterior tiende a ser conducido con mayor Latina la gentrificación tiene un amplio abanico
fuerza por agentes inmobiliarios, pero también de posibilidades en términos de renovación
el Estado actúa potenciando iniciativas urbana/recambio de clases sociales, en el
privadas, o siendo un agente gentrificador con contexto anglosajón este término pareciera
proyectos que buscan promover la “mixtura conservar las dimensiones originales de 1964.
social” en las ciudades. Fr e n t e a t o d o l o a n t e r i o r c a b e
Sin embargo, la aplicación de este preguntarse, ¿cuál es la variedad de procesos
término en los estudios urbanos ha derivado a los cuales apunta la gentrificación en el
en un gran debate en el último tiempo, quehacer científico actual? ¿es posible seguir
centrado fundamentalmente en la pertinencia utilizando este término según la dimensiones
y adecuación de este concepto a las originales, o es necesario renombrar procesos

698 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

de transformación urbana en contextos estos procesos es ardua en la actualidad, ya


diversos? Este trabajo presenta los resultados que mientras algunos ven la participación
de un estudio bibliométrico respecto a la activa del mercado inmobiliario a través de la
utilización del término gentrificación en los inyección de capital fijo e infraestructura para
estudios urbanos actuales. Tomando las bases el reemplazo de clases sociales (López-Morales,
de datos de Web of Science y Scielo de los 2013; Clark, 2005), otros ven que el Estado es
últimos 5 años, y generando una búsqueda de el principal agente gentrificador, a través de
artículos en base a la utilización del término en políticas orientadas a la mixtura social en las
los títulos de artículos empíricos y teóricos, el ciudades (Blomley, 2004; Uitermark, 2003).
estudio intenta identificar el tratamiento del En este sentido, y considerando el debate
concepto gentrificación en estudios aplicados. en torno a los agentes gentrificadores, suele
Los criterios de análisis están centrados en reconocerse en la literatura 3 tipos de actores
tres dimensiones: procesos de producción en relevantes: el Estado, el mercado y los nuevos
los que se enmarcan los artículos analizados, propietarios. En cuanto al Estado, su rol dentro
metodologías aplicadas para estudiar la de los procesos de gentrificación en las ciudades
gentrificación y los contenidos específicos es, por un lado, facilitar los procedimientos de
atribuidos a este proceso. aplicación de las reestructuraciones urbanas
El trabajo parte mostrando los por medio del mercado inmobiliario, y por
antecedentes conceptuales y empíricos de otro lado, funciona como el principal agente
la gentrificación en los trabajos académicos. dinamizador de zonas centrales y pericentrales
A continuación se presenta la metodología de las ciudades, a través de políticas de
utilizada en este estudio, para terminar con los integración social. Este rol diferenciador del
resultados, divididos en las tres dimensiones Estado en la gentrificación suele coincidir con
de análisis descritas en el párrafo anterior. Así, las dinámicas urbanas en países en desarrollo
este estudio pretende contribuir a la discusión (vinculado al mercado inmobiliario) y países
respecto a los procesos de transformación desarrollados (políticas de mixtura social),
urbana, y la adecuación conceptual para dar lo cual introduce un interesante debate en
cuenta de ellos en el trabajo académico actual. torno a la pertinencia del término en diversos
contextos (Davidson y Lees, 2005; Hamnett,
2009; Lees, 2008).
Antecedentes conceptuales Respecto al mercado, se asocia su
y empíricos de la gentrificación actuación como agente gentrificador en las
dinámicas de extracción de renta del suelo
La gentrificación es usualmente definida como por medio del sector inmobiliario. Esto ocurre
reestructuración espacial de una determinada fundamentalmente a partir de las brechas de
área urbana, lo cual implica el desplazamiento renta que se producen por distintos motivos,
de los residentes de bajos ingresos que los cuales son apropiados por ciertos sectores,
habían vivido en estos espacios (Glass, 1964; transformando estas rentas en un activo
Clark, 2005). La discusión de cómo ocurren monopólico de clase (Harvey, 2005).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 699
Félix Rojo Mendoza

Por último, los nuevos propietarios interdependencia entre el servicio requerido y la


corresponden a personas que se transforman fuente de trabajo, lo que genera oportunidades
en agentes gentrificadores en la medida que laborales para los sectores pobres que viven
llegan y reestructuran las dinámicas de un en dichas áreas (Sabatini y Cáceres, 2004;
espacio urbano determinado. Los más comunes Sabatini et al., 2009). De esta manera, la
en este tipo de agentes son artistas y nuevos gentificación representaría una oportunidad
comerciantes, los cuales tienden a generar para la población más pobres que habita
revitalizaciones estéticas y de negocios en las estos lugares, recibiendo con ello una serie
áreas ocupadas (Yoon y Currid-Halkett, 2015; de beneficios como nuevos trabajos, consumo
Wang, 2011). de bienes que venden los locales comerciales
Sin embargo, pareciera ser que el debate del sector, o la dignidad de sentir que viven en
más intenso respecto a la gentrificación no una comuna que se aleja de los parámetros
se concentra en el estatuto de los agentes de estigmatización clásicos vinculados a la
gentrificadores, sino más bien en las pobreza y delincuencia (Salcedo y Torres, 2004).
consecuencias que este fenómeno trae en los Incluso estos aspectos positivos de integración,
desplazamientos de población (Butler,1997). entre la población que llega y los sectores
En este sentido, los cambios vinculados a pobres residentes, se amplían a la consecución
reestructuraciones urbanas por acción del de un cierto nivel de identidad colectiva basada
Estado, mercado o nuevos propietarios no en la imagen positiva del barrio en general
representa una preocupación mayor en el (Campos y García, 2004).
mundo académico actual, ya que la evidencia Una postura totalmente distinta del
muestra que estas transformaciones materiales mundo académico es aquella en la cual la
ya están presentes en las ciudades. La pregunta gentrificación produce desplazamiento de la
central es si la gentrificación produce o no población más pobre, a raíz de la llegada de
desplazamientos de clases sociales. estratos sociales medios ascendentes. Respecto
Para una parte del mundo académico, a lo anterior, para Casgrain y Janoschka (2013)
la gentrificación no produce desplazamiento, la gentrificación está lejos de representar
y al contrario, crea las condiciones para la formas de integración moderna en las
constitución de ciudades más integradas. En ciudades, y más bien implica nuevas geografías
ese sentido, la gentrificación ayuda a fomentar de fragmentación, que consolidan los procesos
la sustitución de comunidades marginales tradicionales de segregación residencial. Esto
por población activa y responsable (Blomley, se grafica, por ejemplo, expulsando a sectores
2004), diluye la concentración de la pobreza de bajos recursos desde las zonas centrales de
en los centros de las ciudades (Sabatini et al., las ciudades, que han ocupado en las últimas
2009), y fortalece el tejido social en barrios décadas, a la periferia de los espacios urbanos.
desfavorecidos (Uitermark, 2003). Por otra Es decir, entre otras cosas, la gentrificación
parte, se fortalecen los vínculos de servicios representaría formas del funcionamiento del
entre los que llegan y los que viven en dichos capitalismo global para reubicar a sectores
espacios, combinando la polarización e ricos y pobres en las ciudades. Lo anterior

700 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

involucra la idea de una revaloración del mas difícil por la llegada de nuevos inquilinos
centro de la ciudad, a partir del cual funciona de estratos medios. Y por último, la presión
el capital comercial, resignificando las zonas de desplazamiento apunta a aquellos que en
de interés residencial (Contreras, 2011; López- el desplazamiento anterior (de exclusión) son
Morales, 2013). obligados directamente al desalojo por las
En este sentido, y a pesar del intenso dinámicas de reemplazo y revitalización urbana
debate respecto a si la gentrificación produce (Marcuse, 1985).
o no desplazamiento, segregación residencial Con todos los antecedentes de la
o polarización social, lo cierto es que desde el gentrificación mencionados anteriormente,
punto de vista de las políticas urbanas aún pareciera que no existe claridad en la
se promueven este tipo de transformaciones co munidad ac ad é mic a r e sp e c to a las
bajo el supuesto de lograr el establecimiento dimensiones que describe este término.
de comunidades más conectadas y menos En ese sentido, la gentrificación sería más
segregadas (Lees, 2008). En base a lo anterior, se bien un proceso dinámico, no susceptible de
plantea que la búsqueda de comunidades mixtas definiciones restrictivas, por lo que el desafío
a través de la gentrificación genera, a la larga, es considerar la amplia gama de elementos
comunidades socialmente más homogéneas que la constituye como concepto relevante
(Butler y Robson, 2003), y desplazamiento de en los estudios actuales (Smith, 1996). Esto
residentes de clase obrera y minorías (Hamnett, se puede evidenciar en las distintas formas
2009; Davidson y Lees, 2008). que toma la gentrificación, identificando
Contemplando esta dimensión de procesos de renovación urbana (esto implica
desplazamiento en la gentrificación, Marcuse la extracción de renta) sin expulsión y en la
(1985) introduce distinciones importantes periferia (Sabatini et al., 2012), renovación
para evaluar estas dinámicas en los espacios ur bana con ex pulsión y en el centro /
urbanos. Es así como menciona 4 tipos pericentro (Contreras, 2011; Swanson, 2007),
de desplazamientos, todos los cuales se y renovación urbana con expulsión y en la
diferencian por el grado de “presión” que periferia (López-Morales, 2013).
las personas viven en este proceso. Por un En base a lo anterior cabe preguntarse,
lado, describe el desplazamiento directo, el ¿cuál es la variedad de procesos a los cuales
cual corresponde a hechos contingentes que apunta la gentrificación en la producción
determinan el abandono de las personas de ese científica actual? La gentrificación, ¿se ha
espacio (incendios, inundaciones, desalojos por extendido como categoría analítica a distintas
alquiler). Un segundo tipo de desplazamiento, formas de transformación urbana, o aún
llamado de cadena directa, está asociado al conserva las dimensiones tradicionales de su
abandono de viviendas producto del aumento definición relacionados con el revitalización de
del alquiler en el tiempo y de los precios de espacios urbanos y el desplazamiento? ¿Cómo
construcción en esos espacios. Otro tipo de se produce académicamente este concepto
desplazamiento corresponde al de exclusión, en en la actualidad? Estas son las preguntas que
el cual el acceso a la vivienda se hace cada vez guían el desarrollo del presente trabajo.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 701
Félix Rojo Mendoza

las intenciones de lo que se quiere comunicar


Metodología
(Van Dijk 2009), la selección primaria de
artículos estuvo determinada por este criterio.
En términos del diseño metodológico, el De esta manera, los artículos preliminarmente
presente trabajo está sustentado en un estudio seleccionados fueron 188.
bibliométrico, cuyo objetivo es visualizar las 2) A partir de lo anterior, se seleccionó
tendencias actuales del término gentrificación los artículos de investigación teóricos y
en artículos científicos. La bibliometría es un empíricos. Esto excluyó a los capítulos y
subcampo de las ciencias de la información reseñas de libros, ya que no necesariamente
que ayuda, bajo procedimientos muchas veces presentan contenidos que den cuenta de la
estandarizados, a medir los resultados de aplicación actual del término gentrificación.
las ciencias en distintas disciplinas (Araújo y Bajo este criterio, el número de artículos
Arencibia, 2002), y a lo largo de una temática descendió a 176.1
y tiempo determinado. 3) Contemplando los dos criterios de
Bajo el diseño anterior, el objetivo del selección anteriores se realizó un tercer filtro,
estudio es describir y analizar la variedad de seleccionando los artículos que presentaran
procesos a los cuales apunta la gentrificación resumen en su estructura. Este resumen fue
en la producción académica actual, todo con el importante como unidad de información para
fin de evaluar el grado de pertinencia de este el análisis del contenido de los artículos. Con
término en los fenómenos urbanos actuales. este tercer criterio los artículos seleccionados
Para ello, se tomó la decisión de para el presente trabajo son 159.
trabajar con artículos científicos publicados El registro y procesamiento de los 159
entre los años 2010 y mayo del 2015, y artículos seleccionados se realizó en el software
registrados en dos bases de datos: Web of SPSS 22.0, y la base construida integró las
Science y Scielo. La decisión de trabajar bajo siguientes variables: año de publicación,
estos criterios fue, por un lado, contemplar la revista que publica, título del artículo,
producción reciente de este tipo de trabajos resumen, palabras claves, autores y afiliación
en los últimos 5 años, y por otro, contemplar institucional del primer autor (universidad y
contextos variados de producción como departamento académico). A partir de estas
América Latina en el caso de Scielo. variables primarias, fueron construidas otras
Considerando la selección anterior del a través de procedimientos de codificación y
periodo y bases de datos, las dimensiones de recodificación.
selección muestral de artículos estuvieron Las dimensiones centrales de análisis
determinados por tres criterios secuenciales: para este trabajo fueron tres:
1) Artículos que presentaran en sus títulos 1) Dinámicas de producción de la
el término gentrificación. Como el objetivo es gentrificación. Esto contempló el análisis
describir las formas de producción en torno a de contenido de los aspectos estructurales-
este concepto, y el supuesto es que los títulos materiales de los artículos analizados, como
comunican no sólo el contenido, sino también las revistas científicas, los departamentos

702 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

académicos y los contextos espaciales más De esta forma, y observando el Cuadro 1, las
comunes en esta temática. 20 revistas que más artículos presentan títulos
2) Metodologías aplicadas en su de gentrificación, que constituye cerca del 70%
producción. Esta dimensión se vincula al de los artículos analizados, tratan temáticas de
análisis de contenido de los resúmenes para geografía humana, urbanismo, planificación,
la determinación del tipo de metodología género, cultura y educación. Por otro lado,
utilizada y los contextos comparados presentes y en cuanto a los contextos de producción,
en los trabajos. de estas 20 revistas 9 corresponden al Reino
3) Contenidos asignados a la gentrificación. Unido y 7 a EE.UU, concentrando entre ambos
Este ámbito se relaciona con el análisis de contextos el 50% de todos los artículos
contenido de los resúmenes, que derivó en los revisados para este estudio. Dentro de esta
tipos de gentrificación, los conceptos centrales realidad de alta concentración en el contexto
utilizados, los agentes gentrificadores y las anglosajón, destacan revistas de producción
consecuencias explicitadas. latinoamericanas en Chile y Brasil, las cuales
Las técnicas de análisis utilizadas para representan cerca del 14% de la producción de
las dimensiones anteriores son el análisis de este tipo de artículos. En el caso de Chile, las
contenido y análisis estadístico-descriptivo, revistas Geografía Norte Grande2 y Eure son las
todo efectuado con el software SPSS 22.0. que destacan, concentrando entre ambas cerca
de un 8% de toda la producción de artículos en
el período analizado.
En cuanto a los departamentos
Resultados académicos que están publicando artículos
científicos con el término gentrificación en sus
Dinámicas de producción de la títulos, destacan 4 tipos que fueron construidos
gentrificación en artículos científicos. recodificando los departamentos de pertenencia
del primer autor: departamentos de geografía
Las dinámicas de producción de los artículos (incluye los departamentos de geografía
analizados se refiere a los contextos específicos social, humana y urbana), departamentos de
en los cuales se reproducen estos trabajos, ciencias sociales (sociología, antropología y
como las revistas que las publican, los ciencia política dentro de los más comunes),
departamentos académicos más destacados y departamentos de urbanismo y estudios
las regiones, países y ciudades que constituyen urbanos (arquitectura y planificación urbana),
los espacios estudiados. y departamentos de ciencias ambientales
Dentro de los ámbitos de desarrollo en y de la tierra (formado por departamentos
este tipo de trabajos, las revistas que mencionan de ciencias, ambiente y gestión ambiental).
gentrificación en sus títulos en los últimos 5 Como se puede apreciar en el Gráfico 1 y el
años son variadas desde el punto de vista de Cuadro 2, los departamentos académicos
las temáticas que tratan, pero concentradas en que más artículos con gentrificación en sus
cuanto a los países que generan su producción. títulos están publicando son los de geografía

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 703
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Cuadro 1 – Las 20 principales revistas con artículos


que contienen gentrificación en sus títulos, 2010-mayo 2015

Principales revistas País Nº de artículos Porcentaje

Urban Studies Reino Unido 16 10,1


International Journal of Urban and Regional Research EE.UU 10 6,3
Revista de Geografía Norte Grande Chile 10 6,3
Cadernos Metrópole Brasil 10 6,3
Environment and Planning A Reino Unido 8 5,0
Journal of Rural Studies Reino Unido 6 3,8
Journal of Urban Affairs EE.UU 6 3,8
Population, Space and Place Reino Unido 6 3,8
Antipode Reino Unido 5 3,1
Tijdschrift voor Economische en Sociale Geografie Holanda 5 3,1
Urban Geography EE.UU 5 3,1
City & Community EE.UU 5 3,1
Environment and Planning D Reino Unido 3 1,9
Critical Sociology EE.UU 2 1,3
Cultural Studies Reino Unido 2 1,3
Eure Chile 2 1,3
Gender, Place & Culture Reino Unido 2 1,3
J Hous and the Built Environ Holanda 2 1,3
Journal of Planning Education and Research EE.UU 2 1,3
Progress in Human Geography Reino Unido 2 1,3
Total artículos 109 68,8

Fuente: Elaboración propia.

Gráfico 1 y Cuadro 2 – Tendencias de producción de artículos titulados


con el término gentrificación en distintos departamentos académicos,
años 2010-2014

Departamentos de geografía
Departamentos de ciencias sociales
Departamentos de ciencias ambientales y de la tierra
Departamentos de urbanismo y estudios urbanos

Departamentos académicos Porcentaje

Departamentos de geografía 28,9


Departamentos de ciencias sociales 27
Departamentos de urbanismo y estudios 13,2
urbanos
Departamentos de ciencias ambientales y 6,3
de la tierra
Otros departamentos 14,5
Sin afiliación institucional 10,1

Total 100
Fuente: Elaboración propia.

704 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

(28,9%) y ciencias sociales (27%), seguidos 2010 y 2013 el número se mantuvo entre los
de urbanismo/estudios urbanos (13,3%) y 20 y 30 artículos por año, mientras que el año
ciencias ambientales/de la tierra (6,3). Los 2014 la producción supera los 40 artículos.
tres primeros departamentos mencionados Sin embargo, las tendencias en artículos
marcan, después de varias fluctuaciones por de este tipo deben ser analizadas desde el
año, una tendencia al alza en este tipo de punto de vista de los contextos espaciales de
3
publicaciones a partir del año 2013, mientras producción, ya que no se observan los mismos
que los departamentos de ciencias ambientales incrementos en distintas marco-regiones del
y de la tierra, después de ese año no registran mundo. De esta manera, y recodificando los
publicaciones con gentrificación en sus títulos. países más estudiados en macro-regiones, se
Cabe mencionar que un 14,5% de los artículos observa que si bien Norteamérica y Europa
analizados pertenecían a otros departamentos son los contextos con mayor presencia en los
de variadas temáticas (estudios culturales, artículos analizados, América Latina y Asia han
lenguas, criminología, etc.), mientras que en un aparecido con fuerza después del año 2012
10,1% no aparece una afiliación institucional como contexto de estudio (Gráfico 2). Esto
clara en el artículo. indicaría un mayor interés en tratar el tema
Existe, por tanto, una tendencia de de la gentrificación en los últimos contextos
incremento en la producción de este tipo de señalados, y la intención de anunciarlo
artículos en los últimos 5 años, en especial, directamente en los títulos de sus trabajos. Así,
después del año 2013. En este sentido, se los incrementos de este tipo de artículos en los
puede apreciar (Gráfico 2) que entre los años años analizados responde al interés en estudiar

Gráfico 2 – A la izquierda, tendencias por año y macro-región de estudio.


A la derecha, tendencia por año del total de artículos titulados
con el término gentrificación, 2010-2014

Fuente: Elaboración propia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 705
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y publicar dentro del contexto de América formas de producción de la gentrificación en el


Latina y Asia, mientras que Norteamérica y mundo académico. A este grupo de países del
Europa tienden a mantener la producción en norte anglosajón, les siguen otros de distintas
los últimos 5 años. macro-regiones como Chile, China, Brasil y
Más allá de las tendencias por macro- Holanda, los cuales representan más del 20%
región, cuando se observan los contextos del total de artículos contemplados en este
específicos estudiados en los artículos que estudio. En este sentido, es posible señalar que
titulan gentrificación en los últimos años, más de la mitad de la producción de artículos
los países que más concentran este tipo de bajo el título de gentrificación se producen
trabajos son Estados Unidos, Canadá y Reino en estudios cuyos contextos son países
Unido (Cuadro 3). Estos tres países suman más desarrollados y de influencia anglosajona,
del 50% de todos los contextos nacionales mientras que el resto de las áreas nacionales
que aparecen en los artículos analizados, y de estudios son variadas, incluyendo a América
representan los espacios más relevados en las Latina, Asía, resto de Europa y Oceanía.

Cuadro 3 – Los 15 países más estudiados bajo el título de gentrificación,


2010-mayo 2015

Países Nº de artículos Porcentaje Porcentaje acumulado

Estados Unidos 41 30,4 30,4


Canadá 16 11,9 42,2
Reino Unido 14 10,4 52,6
Chile 8 5,9 58,5
China 8 5,9 64,4
Brasil 7 5,2 69,6
Holanda 6 4,4 74,1
Francia 5 3,7 77,8
Australia 4 3,0 80,7
España 4 3,0 83,7
México 4 3,0 86,7
Colombia 3 2,2 88,9
Alemania 2 1,5 90,4
Suiza 2 1,5 91,9
Argentina 1 0,7 92,6
Total 125 92,6 92,6

Fuente: Elaboración propia.

706 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

Por otro lado, las ciudades más relevantes en un referente de estudio de los artículos que
como áreas de estudio para la gentrificación titulan gentrificación en América Latina. Las
en los artículos analizados presentan las hipótesis pueden ser variadas, incluyendo las
mismas tendencias de lo que ocurría a nivel representaciones de una ciudad ícono de la
de países. Así, y observando le Cuadro 4, de las desestructuración del mercado, las influencias
15 ciudades más estudiadas en los artículos, de la formación doctoral anglosajona de
9 corresponden a los tres primeros países de algunos académicos o las redes e influencias
producción de este tipo de trabajos (EE.UU, académicas internacionales. Sin embargo, es
Reino Unido y Canadá), y sólo dos a ciudades difícil responder la pregunta con este estudio,
en América Latina (Chile y México). El caso siendo necesario para ello una profundización
de Santiago de Chile rompe en parte con la en las dinámicas involucradas en la producción
tendencia anglosajona, ubicándose en segundo del término gentrificación.
lugar como área de estudio más citada, con En el Cuadro 4, además, se puede
un 5,9 % del total de artículos analizados. observar que sólo 4 de las 15 ciudades
La pregunta que esto genera es por qué esta corresponden a las capitales nacionales,
ciudad se ha transformado en el último tiempo mientras el resto se distribuye entre ciudades

Cuadro 4 – Principales 15 ciudades estudiadas en los artículos titulados


con gentrificación, 2010-mayo 2015

Ciudades País Capital nacional Nº de artículos Porcentaje

Chicago Chicago No 9 6,7


Santiago Santiago Si 8 5,9
Toronto Toronto No 8 5,9
Londres Londres Si 7 5,2
New York New York No 6 4,4
Vancouver Vancouver No 6 4,4
Ámsterdam Ámsterdam Si 5 3,7
Portland Portland No 4 3,0
Atlanta Atlanta No 2 1,5
Berlín Berlín Si 2 1,5
Guangzhou Guangzhou No 2 1,5
Houston Houston No 2 1,5
Juárez Juárez No 2 1,5
Leeds Leeds No 2 1,5
Melbourne Melbourne No 2 1,5
Total 67 49,7

Fuente: Elaboración propia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 707
Félix Rojo Mendoza

de gran relevancia nacional-global (New York, que se utilizó. De esta manera, un 25,2%
Chicago o Toronto) y ciudades intermedias de los artículos manifiestan la utilización de
menos influyentes (Guangzhou, Leeds y metodologías cualitativas, un 13,2% lo hacen
Juárez). Por otro lado, es interesante que en términos cuantitativos, y un 7,5% utilizan
Chicago sea la principal ciudad en los artículos métodos mixtos. La gran mayoría (54,1%) no
analizados, continuando una larga tradición de describe la metodología en el resumen, lo que
estudios urbanos que la ha tenido como área no implica ausencia de apartado metodológico
emblemática de estudio, por ejemplo, en la en dichos artículos (Cuadro 5).
corriente de la ecología urbana de la Escuela Dentro de los artículos que manifiestan
de Chicago. el trabajo con metodologías cualitativas,
destacan las entrevistas, focus groups y la
observación etnográfica como técnicas de
Metodologías aplicadas recolección de información, mientras que
en la producción de la gentrificación el análisis documental y de contenido son
en artículos científicos las técnicas de análisis más utilizadas. En
los artículos que trabajan con metodologías
Para la descripción de las metodologías cuantitativas, las fuentes de información son
utilizadas en los trabajos revisados en este bases censales, estadísticas de uso y precio de
estudio, se efectuó un análisis de contenido a suelo, y encuestas de opinión, mientras que
los resúmenes de los artículos, describiendo, las técnicas de análisis más destacadas son la
cuando correspondía, el tipo de metodologías estadística descriptiva e inferencial.

Cuadro 5 – Metodologías utilizadas en los artículos titulados


con el término gentrificación, 2014-mayo 2015

Metodologías utilizadas Nº de artículos Porcentaje

Metodologías cualitativas 40 25,2

Metodologías cuantitativas 21 13,2

Métodos mixtos 12 7,5

Sin especificación metodológica en resumen 86 54,1


Total 159 100

Fuente: Elaboración propia.

708 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

En términos de las tendencias por interdisciplinariedad y el desarrollo de


año en la utilización de metodologías, se áreas de estudios con enfoques críticos,
observa en el Gráfico 3 que las metodologías las tendencias en los trabajos que titulan
cualitativas han mantenido su importancia por gentrificación es hacia la baja en su utilización.
sobre las otras opciones, más allá de pequeñas En este sentido, esto abre el debate respecto a
fluctuaciones entre los años 2010 y 2012, y la coherencia del discurso integrador y crítico
una baja en su utilización el año 2013, que en las formas de abordar los problemas de
es compensada con un aumento significativo estudio, y la práctica investigativa que se
el año 2014. Las metodologías cuantitativas realiza en la actualidad.
tienen una leve tendencia al alza en estos En términos de los contextos de estudio,
años, destacando en especial el año 2013 que las estrategias metodológicas utilizadas en
supera en número al uso de las metodologías los artículos analizados dan cuenta de una
cualitativas. centralidad en la ciudad de contexto nacional
La utilización de las métodos mixtos como unidad de análisis. Esto implica que
es llamativo, ya que mientras muchos existen pocos estudios comparados que
en la comunidad académica abogan intenten contrastar las dimensiones analíticas
por la integración metodológica, la de la gentrificación en distintas ciudades al

Gráfico 3 – Tendencias del tipo de metodología descrita


en los resúmenes de artículos con gentrificación en los títulos, 2010-2014

Metodología utilizada
Metodología cualitativa
Metodología cuantitativa
Métodos mixtos
Nº de artículos selecionados

Año de publicación

Fuente: Elaboración propia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 709
Félix Rojo Mendoza

interior de un mismo país, y menos aún, que que tiene para contrastar el valor original del
lo hagan entre ciudades de distintos países. concepto de gentrificación en los diversos
En este sentido, y observando el gráfico 4, se contextos y procesos a nivel global. Y en este
puede observar que los estudios dentro de un sentido, una buena forma de profundizar
mismo contexto nacional han aumentado en en los debates actuales de la pertinencia
los últimos años, mientras que los estudios del término gentrificación en los estudios
que contrastan ciudades de distintos países urbanos (Maloutas, 2011; Lemanski, 2014),
también lo hacen, pero en una magnitud es precisamente la utilización de trabajos
mucho menor. La relevancia del estudio comparados entre distintas ciudades de países
comparado está dada por la potencialidad diversos.

Gráfico 4 – Tendencias de áreas de estudios en un mismo contexto o comparados,


artículos con gentrificación en los títulos, 2010-2014

Contextos de estudios
Dentro de un mismo país
Dos países distintos
Nº de artículos selecionados

Año de publicación

Fuente: Elaboración propia.

710 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

Contenidos asignados a la término está siendo utilizado para dar cuenta


gentrificación en artículos científicos. de procesos de transformación en contextos
variados como áreas rurales y costeras,
Respecto a los significados entregados a e incluso, está derivando en dimensiones
la noción de gentrificación en los artículos temáticas como la salud, el trabajo y la
contemplados en este estudio, con el análisis religión. Así, el tratamiento actual del
de contenido a los resúmenes se puedo término gentrificación traspasó las fronteras
determinar algunas tendencias importantes en espaciales de lo urbano, incluyendo una serie
términos de los tipos de gentrificación que se de categorías de transformación general en
están trabajando, los conceptos centrales a los las sociedades. Esto hace pensar el grado de
que hace referencia este término, los agentes especificidad del término gentrificación en los
gentrificadores y las consecuencias atribuidas a estudios actuales.
este fenómeno en las ciudades. Al analizar los contenidos de los
Considerando y recodificando los tipos de resúmenes, y categorizando los conceptos
gentrificación más estudiados en los artículos centrales a partir de los cuales adquiere
analizados, estos corresponden al residencial sentido los tipos de gentrificación descritos
y residencial-simbólico, los cuales representan anteriormente, los resultados indican que
más del 57 %, seguidos de la gentrificación los artículos analizados consideran en sus
comercial con un 9,4%, y la gentrificación trabajos tres conceptos centrales, que suman
rural con un 7,5% (Cuadro 6). La gentrificación el 78% del total: representaciones de la
residencial expresa la observación del mercado gentrificación (35,8%), revitalización urbana
de uso del suelo y sus modificaciones en (23,3%) y desplazamiento (18,9%) (Cuadro
términos materiales para uso residencial, 7). El primer concepto se relaciona con la
mientras que la gentrificación residencial- gentrificación residencial-simbólica, e implica
simbólica se concentra en las dinámicas de que la idea base del artículo es indagar en
percepción de los cambios a nivel residencial de las distintas representaciones sociales que
personas que llegan o las que son desplazadas se tiene de este fenómeno, y en los diversos
por estas transformaciones. Muchos de los actores sociales implicados en el proceso.
trabajos vinculados a la gentrificación de tipo Por otro lado, los conceptos de revitalización
simbólica están relacionados con las políticas urbana y desplazamiento se relacionan con
de mixtura social impulsados por el Estado en los dos procesos de la definición tradicional
el Reino Unido, Estados Unidos y Canadá. de gentrificación (Glass, 1964), e indican
Lo interesante de esta variedad de tipos que los artículos centran su mirada en los
de gentrificación presentes en los artículos cambios físicos de ciertos sectores centrales
analizados es el grado de desvinculación y pericentrales de las ciudades (restauración
con la definición tradicional del término, el de viejas casas, demolición y construcción de
cual está asociado a los contextos urbanos nuevas viviendas, obras públicas, etc), y en los
(Glass, 1964; Clark, 2005). En este sentido, desplazamientos que dichos cambios provocan
en el Cuadro 6 es posible observar que este en quienes llegan y se van.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 711
Félix Rojo Mendoza

Cuadro 6 – Tipos de gentrificación identificados en los resúmenes


de los artículos analizados, 2010-mayo 2015

Tipos de gentrificación Nº de artículos Porcentaje

Gentrificación residencial 52 32,7


Gentrificación residencial-simbólico 40 25,2
Gentrificación comercial 15 9,4
Gentrificación rural 12 7,5
Gentrificación como concepto 9 5,7
Gentrificación étnica 8 5,0
Gentrificación patrimonial 7 4,4
Gentrificación y arte 7 4,4
Gentrificación y educación 3 1,9
Gentrificación y transporte 2 1,3
Gentrificación costera 1 0,6
Gentrificación religiosa 1 0,6
Gentrificación laboral 1 0,6
Gentrificación y salud 1 0,6

Total 159 100


Fuente: Elaboración propia.

Cuadro 7 – Conceptos centrales desde donde se aborda la gentrificación,


identificados en los resúmenes de los artículos analizados, 2010-mayo 2015

Concepto central vinculado


Nº de artículos Porcentaje
a la gentrificación en los resúmenes

Representaciones de la gentrificación 57 35,8


Revitalización urbana 37 23,3
Desplazamiento 30 18,9
Protección contra la gentrificación 11 6,9
Gentrificación de nueva construcción 11 6,9
Políticas urbanas 8 5,0
Agentes gentrificadores 5 3,1

Total 159 100

Fuente: Elaboración propia.

712 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

Los otros conceptos centrales utilizados 11,5%, y el mercado con 9,6% (Gráfico 5). El
en los artículos analizados son: protección Estado aparece como gentrificador en la medida
contra la gentrificación (6,9%), relacionado que impulsa políticas sociales de mixtura
con los movimientos sociales urbanos que social, utilizando para ello mecanismos como
se oponen a este proceso; gentrificación de la construcción de nueva vivienda en zonas
nueva construcción (6,9%), vinculado con que intentan ser revitalizadas e integradas
las políticas públicas de integración y mexcla socialmente. Por otro lado, la relación Estado-
social; políticas urbanas (5%), que discute mercado se constituye como agente ya que el
respecto a los instrumentos de planificación primero posibilita la participación del segundo
urbana que permite la gentrificación; y agentes en los procesos de transformación de las
gentrificadores (3,1%), que pone el acento en ciudades. Los nuevos propietarios apuntam a
los ejecutores de este tipo de fenómenos en las la categoría que integra a aquellos artículos
ciudades (Cuadro 7). que hablan de las personas que se trasladan
En cuanto al último concepto central a espacios gentrificados, o aquellos que deben
m e n c i o n a d o a n t e r i o r m e n t e, a g e n t e s desplazarse de estos. Y el mercado como agente
gentrificadores, el análisis de los resúmenes es aquel vinculado en los artículos al sector
también permitió extraer y codificar los actores inmobiliario y todos los procesos de extracción
del proceso que son nombrados en los artículos de renta de suelo que ello implica. Es importante
que titulan gentrificación. Es así como los mencionar que no todos los artículos presentan
principales agentes mencionados son el Estado a los agentes gentrificadores en sus resúmenes,
con un 27,6%, seguidos de la relación Estado- lo que equivale al 39,5% de los trabajos
-mercado y los nuevos propietarios con un analizados (Gráfico 5).

Gráfico 5 – Agentes gentrificadores presentes en los resúmenes


de los artículos analizados, 2010-mayo 2015

Agentes gentrificadores
explicitados en el resumen
Estado
Mercado
Estado y Mercado
Nuevos propietarios
No se especifica

Fuente: Elaboración propia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 713
Félix Rojo Mendoza

En cuanto a las consecuencias de de ello, como se observa en el Gráfico 6, dan


la gentrificación, el análisis de contenido cuenta de una tendencia a presentar más
de los resúmenes permitió determinar su consecuencias negativas que positivas en los
existencia a partir de la explicitación de contenidos de los resúmenes. Esta dinámica
algún grado de valorización respecto a este implica que desde el año 2010, las formas
fenómeno. Es decir, por ejemplo, frases de explicitación de las consecuencias de la
como “la gentrificación está ampliando gentrificación son negativas, e incluso hay un
la brecha entre estratos sociales en las incremento de éstas el año 2014. Sólo el año
ciudades” o “la gentrificación representaría 2013 aparecen artículos que describen en sus
una posibilidad para la integración social resúmenes consecuencias positivas, marcando
en espacios urbanos”, fueron consideradas una tendencia al alza para el año 2014. Todo lo
como una constatación de la explicitación anterior gráfica que el término gentrificación
de las consecuencias en los resúmenes. está fundamentalmente asociado a una
En los artículos analizados cerca del 50% valoración negativa en términos de los
presentó alguna consecuencia explícita de impactos que generar este fenómeno en las
la gentrificación (Cuadro 8), y los resultados ciudades.

Gráfico 6 y Cuadro 8 – Consecuencias de la gentrificación


explicitadas en los resúmenes de los artículos analizados

Consecuencias de la
gentrificación
Consecuencias positivas
Consecuencias negativas
Nº de artículos selecionados

Consecuencias Nº de
Porcentaje
de la gentrificación artículos

Consecuencias negativas 71 44,7


Consecuencias positivas 7 4,4
No se explicita en el resumen 8 50,9

Total 159 100

Año de publicación

Fuente: Elaboración propia.

714 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

Asociando las consecuencias explicitadas de urbanismo y ciencias sociales presentan


en los resúmenes con los departamentos un 76,2% y 65,1% de explicitación
académicos que están produciendo artículos respectivamente, los departamentos de
bajo el término gentrificación en sus títulos, geografía y ciencias de las tierras lo hacen en
se puede observar algunas tendencias un 43,5% y 40% respectivamente (Cuadro 9).
interesantes. Existe una orientación de Esta relación incluso es
los departamentos de urbanismo/estudios estadísticamente significativa ( 0,031) al
urbanos y ciencias sociales a explicitar las momento de realizar una prueba del chi-
consecuencias de este fenómeno, tanto -cuadrado, lo que indica la existencia de
positivas como negativas, mientras que los tendencias por departamento al momento
departamentos de geografía y ciencias de de explicitar o no alguna consecuencia de
la tierra lo hacen con menor frecuencia. En la gentrificación en los resúmenes de los
este sentido, mientras los departamentos artículos analizados (Cuadro 10).

Cuadro 9 – Consecuencias de la gentrificación en los resúmenes


de los artículos analizados por departamentos académicos

Consecuencias No se explicita las


Total4
Departamentos académicos explícitas de la consecuencias de la
%
gentrificación – % gentrificación – %

Departamento de urbanismo y estudios urbanos 76,2 23,8 100


Departamentos de ciencias ambientales y de la tierra 40,0 60,0 100
Departamentos de ciencias sociales 65,1 34,9 100
Departamentos de geografía 43,5 56,5 100
Total 56,7 43,3 100

Fuente: Elaboración propia.

Cuadro 10 – Pruebas de Chi-Cuadrado para departamentos académicos


y consecuencias de la gentrificación

Sig. asintótica
Valor GI
(bilateral)
Chi-cuadrado de Pearson 8,9005 3 ,031
Razón de verosimilitudes 9,100 3 ,028
Asociación lineal por lineal 4,589 1 ,032
N de casos válido 120

Fuente: Elaboración propia.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 715
Félix Rojo Mendoza

una mirada crítica de los procesos observados


Conclusión
en el contexto de ciudades anglosajonas, ya
que muchas de las dinámicas que definen
La noción de gentrificación ha ampliado los la gentrificación en esos espacios, son muy
ámbitos de acción respecto a la definición distintas a lo que ocurre en América Latina.
tradicional que apuntaba a la revitalización Ejemplo de lo anterior, es que en países como
urbana y el desplazamiento de estratos Estados Unidos, Reino Unido y Canadá (los tres
sociales bajos. En este sentido, se puede países que más concentran artículos analizados
constatar que este término ya es utilizado en este estudio), los procesos de gentrificación
para dar cuenta de una serie de procesos de están más asociados a las políticas urbanas
transformación urbana y espaciales, muchos implementadas por el Estado para lograr la
de los cuales parecieran estar muy lejos de la mexcla e integración social en las ciudades.
idea convencional de gentrificación. Así, cabe Lo anterior ocurre bajo lo que se denomina
preguntarse si este término aún representa “gentrificación de nueva construcción”,
una buena alternativa dentro de los estudios concepto que aparece como uno de los más
urbanos, o por el contrario, se debe orientar destacados en los artículos analizados, y
los esfuerzos al establecimiento de una que apunta a actividades de demolición y
geografía urbana crítica, que restablezca los edificación de viviendas orientadas a grupos
principios investigativos en la observación sociales (generalmente de estratos medios),
de la producción dialéctica de los espacios que permitan equilibrar socialmente un
urbanos. determinado espacio urbano. Por otro lado, en
Para dilucidar lo anterior, este trabajo América Latina los estudios de gentrificación
representa un esfuerzo en la dirección se centran en las actividades del mercado
de discutir la aplicación actual de éste inmobiliario y las formas de extracción de
término en los estudios urbanos, e intenta renta del suelo. En este contexto, el Estado
instalar la necesidad de una mirada crítica es una agente indirecto de la gentrificación,
de los conceptos utilizados en la actividad ya que sólo funciona como un facilitador en
investigativa. todo el proceso. Desde este punto de vista,
Entre los resultados que se destacan y observando estas diferencias, ¿no es el
en esta investigación, están las tendencias al momento de revisar la noción de gentrificación
alza en la producción de artículos que titulan desde el punto de vista contextual? La
este concepto, en especial, en contextos como dialéctica de los espacios gentrificados ¿ocurre
América Latina. Esto implica una influencia de igual forma en todas las ciudades? Las
creciente de las dinámicas de problematización preguntas anteriores intentan dar el rumbo
provenientes de espacios con una fuerte de futuras investigaciones, las cuales deben
tradición en estos temas, como Norteamérica proponer trabajos comparados en distintos
y Reino Unido. Lo anterior, plantea un gran países, algo que aún es muy escaso como se
desafío para el futuro en cuanto a establecer pudo observar en este estudio.

716 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016
La gentrificación en los estudios urbanos

Un segundo punto relevante en este orientaciones teóricas particulares que siguen


trabajo, corresponde a las orientaciones que los departamentos académicos analizados en
toma el término gentrificación dependiendo este estudio? Sin duda, estas son preguntas
del departamento académico que lo produzca. interesantes de abordar, pero escaparon a los
En este sentido, existen departamentos objetivos de esta investigación. Sin embargo,
que tienden a explicitar en mayor medida deben considerarse para futuros estudios, ya
las consecuencias de la gentrificación, que que quizás, muchos de los desafíos de revisión y
en su gran mayoría son negativas para las restitución del término gentrificación pasen por
ciudades y sus habitantes ¿Es posible hablar de un diagnóstico que las propias disciplinas deben
fronteras epistémica-políticas en la producción hacer. Y en este esfuerzo de auto-observación,
del término gentrificación en los estudios la mirada interdisciplinar es fundamental para
actuales? ¿Se sustentan estas diferencias, de las formar perspectivas críticas respecto a las
consecuencias explicitadas, en metodologías u actuales transformaciones urbanas.

Félix Rojo Mendoza


Universidad Católica de Temuco, Departamento de Sociología y Ciencia Política. Temuco, Chile.
fsrojo@uc.cl

Notas
(1) Si bien los buscadores de Web of Science permite el filtro por ar culos, haciendo la dis nción con
los capítulos de libros y otras categorías, aún así la búsqueda arrojó ar culos que eran reseñas
o capítulos de libros. En este sen do, fue necesaria la revisión de cada unos de los ar culos
seleccionados preliminarmente.

(2) Esta revista destaca el año 2014 con la edición especial del tema gentrificación, en donde se
publican 8 ar culos. Esto sin duda determina su ubicación dentro de las tres revistas que más
han publicado trabajos bajo el tulo gentrificación en los úl mos años.

(3) Las tendencias por año que se muestran en este trabajo están construidas hasta el año 2014
para no alterar el análisis e interpretación. Es decir, si bien el estudio contempla hasta mayo del
2015, cuando se muestran gráficos de tendencias por año, sólo se llega hasta el 2014 para no
generar lecturas erradas de los 5 primeros meses de 2015.

(4) Nº válido, 120 casos (75,5%) y 39 casos perdidos, (24,5%).

(5) 1 casillas (12,5%) enen una frecuencia esperada inferior a 5. La frecuencia mínima esperada es
4,33.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 717
Félix Rojo Mendoza

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Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 697-719, set/dez 2016 719
Revendo o uso de dados do IBGE
para pesquisa e planejamento territorial:
reflexões quanto à classificação
da situação urbana e rural
Reviewing the use of IBGE data for research and land planning:
reflections on the classification of the urban and rural situation
Caroline Krobath Luz Pera
Laura Machado de Mello Bueno

Resumo Abstract
Este artigo discute a classificação dos setores cen- This article discusses the classification of census
sitários, segundo sua situação urbana ou rural, tracts, according to their urban or rural situation,
propostos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e proposed by the Brazilian Institute of Geography
Estatística. São exploradas as contribuições que es- and Statistics (IBGE). The contributions that
ta classificação traz para o planejamento urbano, this classification brings to urban planning are
pontuando os limites e possibilidades da utilização explored, and the limits and possibilities of the
desses dados para mapeamento da expansão urba- use of these data to map the contemporary urban
na contemporânea e na estruturação do território expansion and to structure the territory beyond
além da dicotomia urbano-rural. Pontuou-se a ne- the urban-rural divide are emphasized. Users of
cessidade dos usuários das informações censitárias census information should know the method used
conhecerem o método utilizado pelo Instituto para by the IBGE to construct cartographic databases
construção das bases cartográficas utilizadas du- utilized during collection. In addition, users should
rante a coleta, assim como refletir como dados do reflect on how IBGE data can be employed in the
IBGE podem ser utilizados na construção de políti- construction of public policies, highlighting the
cas públicas, destacando a relevância das informa- relevance of the collected information and stressing
ções coletadas e frisando o papel dos municípios the role of municipalities in initiatives to develop
em iniciativas para elaborar bases aprimoradas pa- improved databases in order to obtain better
ra melhores resultados no próximo censo. results in the next census.
Palavras-chave: variável “situação do setor cen- Keywords : variable "census tract situation";
sitário”; Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- Brazilian Institute of Geography and Statistics;
tística; dicotomia urbano-rural; planejamento da urban-rural divide; urban expansion planning.
expansão urbana.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 721-742, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3705
Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

a identificação e o auxilio na construção de po-


Introdução1
líticas públicas voltadas ao enfrentamento das
Há vasta bibliografia a respeito do que se con- equidades regionais em nosso território.
sidera urbano, rural, campo, cidade ou espaços Neste artigo se discutem as contribui-
além dessa dicotomia. Alguns autores empreen- ções que a classificação da situação, urbana
dem discussões a partir de conceitos legais e ou rural, dos setores censitários definidos pelo
político-administrativos. Outros estruturam suas IBGE pode trazer para o estudo da expansão
discussões por meio de estudos analíticos da urbana contemporânea, em especial quanto
situação real encontrada no território, tendo co- a limites e possibilidades desses dados para
mo base o uso e a ocupação instaurados. a compreensão da estruturação do território
O Instituto Brasileiro de Geografia e Es- além da dicotomia urbano-rural. Ressalta-se
tatística (IBGE), igualmente, possui uma defi- que este artigo não tem como enfoque a ela-
nição sobre o que considera rural ou urbano. boração de uma categorização a respeito do
E essa definição, por ser oriunda de uma ins- que se entende por rural ou urbano nem visa a
tituição governamental de pesquisa respon- questionar se o Brasil é mais ou menos urbano
sável pela coleta dos dados censitários no do que se imagina, como propõe Veiga (2003);
Brasil, muitas vezes, é tomada como definição mas, sim, a debater como a variável pode, ou
“oficial”, sendo amplamente utilizada em pes- não, ser utilizada para análise da expansão ur-
quisas e em planejamento urbano e regional, bana e para a identificação de espaços além
todavia, nem sempre sendo explorados, pelos da dicotomia urbano-rural.
usuários das informações censitárias, os crité- A pesquisa explorou o reagrupamento
rios e os métodos utilizados pelo Instituto na das tipologias de setores propostas pelo IBGE,
elaboração das bases cartográficas utilizadas cruzando-as também com variáveis do IBGE
para fins censitários e coleta de dados, mesmo relacionadas às características do entorno ur-
sendo tais informações fundamentais para ava- banístico dos domicílios, caracterizando desi-
liação dos limites e potencialidades dos dados, gualdades do espaço urbano por meio da es-
ponderando-se sua eficácia para as finalidades pacialização do acesso a serviços públicos de
propostas em cada pesquisa. infraestrutura urbana.
Tem-se no IBGE, criado em 1936, uma Buscou-se, com este estudo, verificar
referência internacional quanto ao sistema de como dados do IBGE podem ser utilizados pa-
informações estatísticas e demográficas na- ra auxílio na construção e gestão de políticas
cionais, especialmente no contexto dos países públicas, pontuando também os esforços e
latino-americanos. O Brasil – país continental, a relevância das informações coletadas pelo
de economia periférica e com múltiplos contex- Instituto, pois muito se menciona a respeito
tos socioambientais e generalizada desigual- da impossibilidade de utilização desses dados
dade – realiza censos demográficos decenais para estudo da expansão urbana contemporâ-
desde 1940, mapeando informações geográ- nea, porém poucas são as informações siste-
ficas e administrativas, além de outras impor- matizadas a respeito dos pros e contras de sua
tantes pesquisas e serviços que possibilitaram utilização. Este artigo, fruto de uma pesquisa

722 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 721-742, set/dez 2016
Revendo o uso de dados do IBGE...

que estudou o processo contemporâneo de Na publicação Metodologia do Censo


expansão urbana da Região Metropolitana de 2010 (IBGE, 2013), apenas se menciona que,
Campinas, por meio da análise da legislação para a elaboração das bases cartográficas que
urbanística e das lógicas de produção atuantes orientaram a delimitação dos setores do Censo
no espaço urbano (Pera, 2016), traz uma aná- 2010, houve reuniões periódicas das chamadas
lise crítica sistematizada acerca de um tema “Comissões Municipais de Geografia e Esta-
controverso que, apesar de já ter sido muitas tística”. Criadas por iniciativa do IBGE, essas
vezes debatido, desta vez detalha elementos comissões são constituídas por representantes
importantes para novas leituras sobre o uso de municipais, que têm a função de acompanhar
dados censitários. o preparo da base territorial municipal para o
censo e de minimizar questões polêmicas sobre
limites territoriais surgidas durante o processo,
A definição do IBGE a respeito tais como: a administração local considera que
da situação urbana ou rural a lei não reflete a realidade; o perímetro urba-
dos setores censitários no ultrapassa o limite municipal; e na ausência
de lei definidora de perímetro urbano.2
Segundo o IBGE, o que define um setor censi- Como as informações contidas nos ca-
tário como urbano ou rural é sua posição em dernos metodológicos do IBGE não são sufi-
relação ao perímetro urbano contido na legis- cientes para a compreensão do método para
lação urbanística municipal. Porém, caso o mu- traçar os perímetros utilizados para fins de co-
nicípio não possua legislação que regulamente leta censitária, fez-se contato, por e-mail, com
essas áreas, cabe ao próprio IBGE, com a de- o setor técnico do IBGE, na tentativa de obter
vida aprovação municipal, estabelecer um “pe- mais informações a respeito do método utiliza-
rímetro urbano para fins de coleta censitária”. do para classificação da situação urbana e rural
Por serem, os setores censitários, a unidade ter- dos setores censitários. Segundo o setor técni-
ritorial de coleta para fins censitários no Brasil, co de atendimento do IBGE (2015):
a quantificação dos domicílios e da população Ao classificar seus setores censitários
urbana segue esses mesmos parâmetros em conforme a condição urbana/rural, o IBGE
nosso País. leva em consideração alguns critérios:
O IBGE se pauta, portanto, principalmen- 1) O estado de direito, estabelecido atra-
vés de legislação municipal (de perímetro
te em definições legais para caracterizar a área
urbano, zoneamento ou macrozoneamen-
urbana e a rural dos municípios. Contudo, não to, tributos, etc.) quando for possível sua
foram encontradas informações na bibliografia efetiva representação cartográfica;
do Instituto que explicitem quais os critérios 2) O estado de fato , quando não existe
utilizados para delimitação do que denominam legislação ou quando a mesma se apre-
senta desatualizada em relação à expan-
“perímetro para fins de coleta censitária”, ne-
são da cidade ou da vila, tomando por
cessário nos casos de ausência de lei municipal base imagens, cartografia e observações
que regulamente o perímetro urbano. de campo (realizadas não pelo agente

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 721-742, set/dez 2016 723
Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

de coleta, mas pelos servidores do IBGE A utilização da variável


sob orientação das Supervisões de Base
“situação do setor censitário”:
Territorial nos estados), levando em con-
sideração o parcelamento, uso efetivo do limites para caracterização
solo e a densidade construtiva. Trata-se da expansão urbana contemporânea
de uma classificação para fins censitários
que também pode ocorrer em áreas ur-
banizadas que "extrapolam" o limite da Conforme verificado por esta pesquisa, pode-
zona urbana fixada em lei. -se utilizar a variável “situação do setor cen-
3) Elementos do meio físico de fácil per- sitário” de duas formas diferentes. A primeira
cepção em campo que facilitem a identi- forma de utilização estrutura o território em
ficação dos respectivos limites setoriais a
duas situações: a urbana e a rural, conforme
partir do percurso da coleta – esse critério
pode justificar algumas diferenças entre se observa no Mapa 1. A leitura desse primeiro
legislação municipal e limites de setores, mapa, desconhecendo-se as características das
especialmente quando aquela se vale de duas categorias de setores censitários utiliza-
linhas secas de difícil identificação em das, pode causar a impressão de que a região
campo. (E-mail da equipe técnica de aten-
estudada3 se apresenta muito mais urbana do
dimento do IBGE, 2015; grifos da autora)
que de fato é, além de indicar territorialmente
Diante do exposto, pode-se afirmar que a ocorrência de um processo de expansão ur-
o IBGE também utiliza informações sobre a bana, entre os anos 2000 e 2010, superior ao
rea lidade instaurada para delimitação da ocorrido na realidade.
situa ção urbana e rural, principalmente em A segunda possibilidade de utilização
municípios que não possuem legislação mu- da variável mapeia os setores a partir de oito
nicipal que regulamente o perímetro urbano. tipologias quanto à situação urbana ou rural.
Logo, a definição da situação rural ou urbana, A sistematização da definição das oito cate-
segundo o IBGE, é uma informação híbrida, gorias – segundo o Censo 2010, Banco Mul-
heterogênea, pois parte tanto de fontes le- tidimensional de Estatísticas-Relatório – e do
gais, quanto analíticas. É preciso ainda des- método utilizado pelo IBGE para delimitação
tacar que não fica claro, no banco de dados de cada tipo de situação de setor censitário en-
acessível aos usuá rios da informação, para contram-se no Quadro 1. Devido à ausência de
quais municípios o IBGE utiliza a lei de perí- informações na bibliografia do IBGE (2010), a
metro urbano e para quais utiliza o perímetro respeito do método utilizado para classificar os
traçado pelo próprio órgão. Seria essencial setores nas oito categorias, foram utilizadas,
que o IBGE passasse a incorporar esse conhe- novamente, as informações obtidas a partir
cimento ao banco de dados, possibilitando de contato direto com o IBGE por e-mail. Ou-
acesso pleno à fonte da informação. tra fonte utilizada foi o Manual de Delimitação

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Revendo o uso de dados do IBGE...

dos Setores do Censo 2000 (IBGE, s/d.) no qual IBGE para delimitação das situações urbanas e
constam informações a respeito da delimitação rurais, durante o processo de elaboração da ba-
4
das chamadas “áreas de apuração”. se cartográfica, para fins de coleta censitária,
Atualmente 5 há, na categorização do induzindo o leitor – gestor, pesquisador, estu-
Instituto, três tipologias de situação urbana: 1) dante – à falsa leitura sobre a realidade instau-
área urbanizada de cidade ou vila; 2) área não rada no território.
urbanizada de cidade ou vila; e 3) área urbana A leitura do Mapa 1, quando não asso-
isolada. As cinco categorias de situação rural ciada ao Quadro 1 – ou seja, se ambos forem
atuais são: 1) aglomerado rural de extensão ur- analisados de forma isolada, sem o conheci-
bana; 2) aglomerado rural isolado – povoado; mento a respeito das definições e dos métodos
3) aglomerado rural isolado –núcleo; 4) aglo- utilizados para coleta e sistematização dos
merado rural isolado – outros aglomerados; e dados pelo IBGE –, pode causar a impressão
5) zona rural, exclusive aglomerados rurais. de que a região analisada se apresenta muito
Assim como a distinção em duas situa- mais urbana do que de fato é, além de indicar
ções, urbana ou rural, a classificação a partir de a ocorrência de uma expansão da área urbana,
oito categorias também possui caráter híbrido entre os anos 2000 e 2010, superior à ocorrida
quanto à origem das informações – conforme na realidade. Por meio da comparação entre
pode ser analisado por meio das informações o Mapa 1 e o Mapa 2, nota-se que o primeiro
contidas no Quadro 1 –, pois pauta-se tanto mascara muitas informações relativas ao terri-
na legislação urbanística, quanto na realidade tório, que se tornam visíveis somente a partir
instaurada –, uma vez que se baseia no núme- do desmembramento da região em mais cate-
ro de domicílios e na contiguidade territorial gorias de análise, como no Mapa 2.
para mapear os aglomerados rurais. Utiliza Diante do exposto, apesar de ser mui-
também dados referentes ao tipo de uso do to comum a utilização dos setores censitários
solo para definição das áreas de apuração dos para mapeamento das áreas urbanas e rurais,
tipos: áreas urbanas, urbanas não urbanizadas este não é o método mais apropriado para
e aglomerados rurais. caracterização da expansão das áreas urba-
A espacialização das oito categorias pa- nizadas. Conforme vimos até aqui, os setores
ra a região estudada pode ser observada por censitários, divididos de acordo com sua situa-
meio do Mapa 2, que revela um quadro bas- ção: urbana ou rural, ilustram uma informação
tante diferente do encontrado no Mapa 1. híbrida, que tanto pode pautar-se no perímetro
Além da comparação dos mapas entre si, ao urbano municipal, representando a área legal-
se comparar esses mapas com outras fontes mente urbana, quanto em situações da realida-
de informação, como imagens de satélite da de instaurada, caracterizando um território de
região estudada, percebeu-se que o entendi- fato urbanizado. Entretanto, como o IBGE não
mento dos processos fica comprometido sem disponibiliza informações a respeito da fonte
o conhecimento da definição de cada uma das utilizada para traçar esse perímetro urbano
oito categorias e dos critérios utilizados pelo para fins de coleta censitária em cada um dos

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Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

municípios brasileiros, torna-se difícil utilizar a categoria 2 (área urbana não urbanizada) ter
tais dados para analisar a expansão urbana como objetivo mapear as áreas vazias inseridas
contemporânea, legal ou real. em área urbana legal, essa categoria só leva
Além disso, o método utilizado no Mapa em consideração as áreas ocupadas com ativi-
2, apesar de possibilitar uma leitura mais com- dades agropastoris (lavoura, pecuária e ativida-
plexa a respeito do território, também mascara des extrativas) e terras ociosas (sem qualquer
dados a respeito da realidade legal e de fato uso) quando não contíguas às áreas urbanas
instaurada. Isso ocorre, além das limitações de cidade ou vila intensamente ocupadas com
acima apontadas, devido a limitações oriundas edificações, ruas, praças, etc. (IBGE, s/d). Sendo
da chave de classificação proposta pelo IBGE e assim, nota-se que a categoria 2 não dá conta
do método utilizado para coleta de cada uma do mapeamento de todas as áreas urbanas não
das categorias. urbanizadas, o que dificulta a utilização desses
Por exemplo, a categoria 1 (área urbana dados pelo planejamento municipal para quan-
de cidade ou vila) mascara informações quanto tificação de vazios urbanos.
à presença de vazios urbanos, pois, apesar de

Quadro 1 – Definição das oito categorias de setor urbano e rural


e critérios utilizados pelo IBGE para sua para delimitação

Situação Definição da Situação do Setor Método para Classificar a Área de Apuração e/ou os Setores Censitários:
do Setor6 Censitário (Censo 2010)7 (IBGE, s/d-a) e e-mail do setor técnico de atendimento do IBGE (2015)

1. Área urbanizada “Setor urbano situado em áreas legalmente “Constituem áreas urbanizadas:
de cidade ou vila definidas como urbanas, caracterizadas I) Áreas intensamente ocupadas com edificações, ruas e praças, etc.;
(Urbana) por construções, arruamentos e intensa II) Áreas com uso do solo menos intenso que os da categoria I, onde se identifica
ocupação humana; áreas afetadas a presença de reservatórios d’água, áreas de lazer, cemitérios, estações
por transformações decorrentes do agrícolas experimentais, depósitos ligados à atividade industrial ou comercial,
desenvolvimento urbano e aquelas aterros sanitários, etc., formando um espaço contínuo com o da I.
reservadas à expansão urbana.” III) Áreas reservadas à expansão urbana, isto é, terras ociosas, sem qualquer uso
rural, ainda não ocupadas por construções ou equipamentos urbanos, contíguas
às áreas incluídas na categoria I e ou II.” (IBGE, s/d)

2. Área não “Área não urbanizada de vila ou cidade, “Constituem áreas não urbanizadas:
urbanizada de setor urbano situado em áreas localizadas I) Áreas ocupadas com atividades agropastoris (lavouras em geral, pecuária) e
cidade ou vila dentro do perímetro urbano de cidades atividades extrativas.
(Urbana) e vilas reservadas à expansão urbana II) Terras ociosas, sem qualquer uso, não contíguas às áreas urbanizadas dos
ou em processo de urbanização; áreas tipos I e II (IBGE, s/d-a).
legalmente definidas como urbanas, Nota: A situação 2 (área urbana não urbanizada) só é cadastrada na Base
mas caracterizadas por ocupação Territorial mediante existência de Lei Municipal. Quando esta não existe (fato
predominantemente de caráter rural” que se dá para aproximadamente 1/5 dos municípios, segundo a pesquisa
Munic), o IBGE não classificará setores segundo tal situação.” (E-mail da equipe
técnica de atendimento do IBGE, 2015)

3. Área urbana “Setor urbano situado em áreas definidas “A situação 3 (área urbana isolada) só é cadastrada na Base Territorial mediante
isolada (Urbana) por lei municipal e separadas da sede existência de lei municipal. Quando esta não existe (fato que se dá para
municipal ou distrital por área rural ou por aproximadamente 1/5 dos municípios, segundo a pesquisa Munic), o IBGE não
um outro limite legal.” classificará setores segundo tais situações. O IBGE toma o cuidado de cadastrar
a área urbana isolada apenas quando efetivamente ocupada, pois não são raros
os casos em que uma determinada área é reservada, através de lei, para um
determinado empreendimento que acaba não se efetivando.” (E-mail da Equipe
técnica de atendimento do IBGE, 2015)

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Revendo o uso de dados do IBGE...

4. Aglomerado rural “Setor rural situado em assentamentos em “[...] Por constituírem uma simples extensão da área efetivamente urbanizada,
de extensão urbana área externa ao perímetro urbano legal, atribui-se, por definição, caráter urbano aos aglomerados rurais desse tipo.
(Rural) mas desenvolvidos a partir de uma cidade Tais assentamentos podem ser constituídos por loteamentos já habitados,
ou vila, ou por elas englobados em sua conjuntos habitacionais, aglomerados de moradias ditas subnormais ou núcleos
extensão”. desenvolvidos em torno de estabelecimentos industriais, comerciais ou de
serviços.
Na sua identificação, deve-se obedecer, além dos critérios de tamanho e
densidade,8 a um critério a eles específico: o de contiguidade, que estabelece
que a distância entre este e o núcleo principal da cidade ou vila deve ser inferior
a 1 km. Serão considerados, também, os aglomerados rurais cuja contiguidade
se estabeleça em relação a outros aglomerados rurais do tipo extensão urbana,
desde que pelo menos um desses aglomerados tenha sido definido como
contíguo a uma cidade ou vila, não sendo necessário que a cidade ou vila e
os aglomerados rurais a elas contíguos estejam situados na mesma unidade
administrativa.” (IBGE, s/d-a)

5. Aglomerado rural “Setor situado em aglomerado rural isolado “Povoado é o aglomerado cujos moradores exercem atividades econômicas,
isolado9 povoado sem caráter privado ou empresarial, ou quer primárias (extrativismo vegetal, animal e mineral, e atividades
(Rural) seja, não vinculado a um único proprietário agropecuárias), terciárias (equipamentos e serviços) ou, mesmo, secundárias
do solo (empresa agrícola, indústria, usina, (indústrias em geral) no aglomerado ou fora dele. É caracterizado pela existência
etc.), cujos moradores exercem atividades de serviços para atender aos moradores do próprio aglomerado ou de áreas
econômicas no próprio aglomerado ou rurais próximas. Devendo possuir:
fora dele. Caracteriza-se pela existência - Pelo menos 1 estabelecimento comercial de venda de bens de consumo
de um número mínimo de serviços ou frequente e pelo menos 2 dos 3 serviços ou equipamentos abaixo:
equipamentos para atendimento aos - um estabelecimento de ensino de 1º grau com turmas de 1º segmento com
moradores do próprio aglomerado ou de funcionamento regular.
áreas rurais próximas”. - um posto de saúde, com atendimento regular e em funcionamento e/ou,
- um templo religioso de qualquer credo. Além dos critérios de tamanho e
densidade comuns a todos os aglomerados rurais”.10 (IBGE, s/d-a)

6. Aglomerado rural “Setor rural situado em aglomerado rural “É considerado, como característica definidora desse tipo de aglomerado rural
isolado11 núcleo isolado, vinculado a um único proprietário isolado, seu caráter privado ou empresarial. Além dos critérios de tamanho e
(Rural) do solo (empresa agrícola, indústria, usina, densidade comuns a todos os aglomerados rurais”.12 (IBGE, s/d-a)
etc.), privado ou empresarial, dispondo
ou não dos serviços ou equipamentos
definidores dos povoados”.

7. Aglomerado rural “Setor rural situado em outros tipos de “São aqueles que não dispõem, no todo ou em parte, dos serviços ou
isolado13 aglomerados rurais, que não dispõem, equipamentos definidores dos povoados e que não então vinculados a um único
Outros aglomerados no todo ou em parte, dos serviços ou proprietário. Serão classificados como aglomerados rurais somente aqueles que
(Rural) equipamentos definidores dos povoados apresentarem mais de 10 e menos de 51 domicílios, não constituindo, portanto,
e que não estão vinculados a um único área de apuração. Além dos critérios de tamanho e densidade comuns a todos
proprietário (empresa agrícola, indústria, os aglomerados rurais”.14 (IBGE, s/d)
usina, etc.).”

8. Zona rural
exclusive aglomera- “Área externa ao perímetro urbano, exclusive as áreas de aglomerado rural.” (IBGE, s/d)
dos rurais (Rural)

Elaboração: Pelas autoras, 2016. A fonte das informações de cada coluna encontra-se em nota de rodapé.

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Mapa 1 – Sobreposição dos setores urbanos e rurais da RMC

Fonte: IBGE (2000 e 2010). Elaboração: Caroline Pera (2016).

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Mapa 2 – RMC- Setores urbanos e rurais subdivididos em oito categorias

Fonte: Vide mapa. Elaboração: Caroline Pera (2016).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 721-742, set/dez 2016 729
Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

A utilização da variável “situação Quanto ao método utilizado para iden-


do setor censitário”: potencialidades tificar esses “padrões espaciais de análise da
para caracterização da expansão expansão urbana contemporânea”, parte-se
urbana contemporânea da análise conjunta do Mapa 3 e do Quadro 2.
Os dados das colunas 1 e 2 do Quadro 2 fo-
Apesar das fragilidades apontadas no item ram cruzados a partir da compreensão das de-
anterior, buscou-se nesta pesquisa verificar a finições teóricas sobre cada um dos oito tipos
possibilidade de utilização dos dados da situa- de situação urbana ou rural sistematizadas no
ção dos setores censitários por meio do cruza- Quadro 1. Identificaram-se, com esse cruza-
mento de informações. Desenvolveu-se, então, mento das colunas 1 e 2, possíveis caracterís-
um método para caracterizar o processo de ticas a respeito de transformações espaciais
expansão urbana no contexto metropolitano, ocorridas entre os Censos 2000 e 2010. Essas
encontrando “padrões espaciais de análise da características foram sistematizadas na coluna
expansão urbana contemporânea”, por meio 3 do Quadro 2.15 Na coluna 4 estão elencados
da sobreposição de dados de dois diferentes os municípios nos quais se verifica a ocorrência
censos demográficos, conforme o Mapa 3. dos padrões espaciais identificados. Por último,

Mapa 3 – RMC – Sobreposição dos setores urbanos e rurais


em oito categorias em 2000 e 2010

Fonte e elaboração: Vide mapa.

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Quadro 2 – Utilização da variável Situação do Setor Censitário para caracterização de padrões espaciais
de análise da expansão urbana contemporânea

Situação do Setor Censitário Situação do Setor Censitário Característica da transformação espacial ocorrida no período estudado: Município onde O que pode representar esse padrão
em 2000 em 2010 2000/2010 ocorre (ver Mapa 3) de expansão urbana?

8- Zona rural, exclusive aglomerado 1- Área urbanizada de cidade Crescimento da área urbana, podendo ser só um aumento na área urbana legal 2, 3, 4, 6, 8, 9, 10, 11 - Expansão do perímetro urbano
rural – Situação Rural ou vila – Situação Urbana ou com respectivo crescimento da área urbanizada 12, 13, 16, 17, 18, 19 - Expansão da área urbanizada contígua a
cidade ou vila

8- Zona rural, exclusive aglomerado 2- Área não urbanizada de cidade Aumento da área urbana legal, porém ainda não urbanizada. Representa 3, 6, 10, 11, 9, 12 - Expansão do perímetro urbano
rural –- Situação Rural ou vila – Situação Urbana. aumento no estoque de terra vazia e passível de urbanização no interior do 15 e 16
município

8- Zona rural, exclusive aglomerado 3- Área urbana isolada -- Crescimento da área urbana de forma fragmentada. Expansão de perímetro 2, 4, 8, 9, 10, 12, 13 - Expansão do perímetro urbano
rural –- Situação Rural Situação Urbana urbano com respectiva urbanização de uma área antes rural, de forma 14, 15, 19, 17 - Expansão ou implantação de uma área

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 721-742, set/dez 2016
fragmentada urbanizada, fragmentada da cidade ou vila

8- Zona rural, exclusive aglomerado 4- Aglomerado rural de extensão Implantação de um aglomerado rural de extensão urbana com menos de l km 2, 3, 4, 9 - Expansão ou implantação de um
rural – Situação Rural urbana – Situação Rural de distância da área urbanizada de uma cidade ou vila ou de um Aglomerado 11 e 20 aglomerado de caráter urbano em área
Rural já definido como de Extensão Urbana. Constitui um crescimento da legalmente rural e fragmentada da cidade
extensão da área urbanizada com loteamentos já habitados, conjuntos ou vila
habitacionais, aglomerados de moradias ditas subnormais ou núcleos
desenvolvidos em torno de estabelecimentos industriais, comerciais ou de
serviços

8- Zona rural, exclusive aglomerado 5, 6, e 7- Aglomerados rurais Implantação de um aglomerado rural isolado em área legalmente rural 1, 2, 3, 5, 9 - Expansão ou implantação de um
rural – Situação Rural isolados –Situação Rural 11, 16 e 19 aglomerado rural fisicamente fragmentado

8- Zona rural, exclusive aglomerado 8- Zona rural, exclusive aglomerado Áreas legalmente rurais mantidas como rurais Todos –
rural – Situação Rural rural – Situação Rural

2- Área não urbanizada de cidade 1- Área urbanizada de cidade Áreas legalmente urbanas, vazias em 2000, mas que se urbanizaram em 2010 03, 07, 09, 14, 15 - Expansão da área urbanizada contígua a
ou vila – Situação Urbana ou vila – Situação Urbana 18, 19 e 20 cidade ou vila

2- Área não urbanizada de cidade 2- Área não urbanizada de cidade Áreas legalmente urbanas não urbanizadas em 2000 e mantidas como vazias 03, 05, 07, 09, 14 –
ou vila – Situação Urbana ou vila – Situação Urbana até 2010 15, 18, 19 e 20

2- Área não urbanizada de cidade 3- Área urbana isolada – Áreas legalmente urbanas e não urbanizadas até 2000, mas que foram – - Expansão ou implantação de uma área
ou vila – Situação Urbana Situação Urbana urbanizadas de forma fragmentada à cidade ou vila urbanizada, fragmentada da cidade ou vila

3- Área urbana isolada – 1- Área urbanizada de cidade Área urbana isolada até 2000, mas que, ao se expandir, passou a ser contígua 9, 10, 11 e 13 - Expansão da área urbanizada contígua a
Situação Urbana ou vila – Situação Urbana. a cidade ou vila cidade ou vila

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Revendo o uso de dados do IBGE...
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Situação do Setor Censitário Situação do Setor Censitário Característica da transformação espacial ocorrida no período estudado: Município onde O que pode representar esse padrão
em 2000 em 2010 2000/2010 ocorre (ver Mapa 3) de expansão urbana?

3- Área urbana isolada – Situação 3- Área urbana isolada – Situação Áreas urbanas isoladas em 2000 e que se mantiveram isoladas da cidade ou 4, 6, 11, 12, 13, 16, –
Urbana Urbana vila até 2010 17, 18, 19

4- Aglomerado rural de extensão 2- Área urbanizada de cidade Aglomerados rurais de extensão urbana que passaram a fazer parte do – - Expansão do perímetro urbano
urbana – Situação Rural ou vila – Situação Urbana perímetro urbano e da área urbanizada da cidade ou vila - Expansão da área urbanizada contígua a
cidade ou vila

4- Aglomerado rural de extensão 3- Área urbana isolada – Aglomerados rurais de extensão urbana que passaram a fazer parte do 14 - Expansão do perímetro urbano
urbana – Situação Rural Situação Urbana perímetro urbano e da área urbanizada, porém fragmentada, da cidade ou vila - Expansão ou implantação de área
urbanizada, fragmentada da cidade ou vila

4- Aglomerado rural de extensão 4- Aglomerado rural de extensão Aglomerados rurais de extensão urbana em 2000 e mantidos como tais até 3, 9 e 18 –
urbana – Situação Rural urbana – Situação Rural 2010.

5, 6, e 7- Aglomerados rurais 1- Área urbanizada de cidade ou vila Aglomerados rurais isolados que passaram a fazer parte do perímetro urbano e – - Expansão do perímetro urbano
isolados – Situação Rural. – Situação Urbana da área urbanizada - Expansão da área urbanizada contígua a
cidade ou vila
Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

5, 6, e 7- Aglomerados rurais 3- Área urbana isolada – Situação Aglomerados rurais isolados que passaram a fazer parte do perímetro urbano e – - Expansão do perímetro urbano
isolados – Situação Rural Urbana da área urbanizada, porém fragmentada, da cidade ou vila. - Expansão ou implantação de área
urbanizada, fragmentada da cidade ou vila

5, 6, e 7- Aglomerados rurais 4- Aglomerado rural de extensão Aglomerados rurais isolados que se tornaram aglomerados rurais de extensão 9 - Expansão ou implantação de aglomerado
isolados – Situação Rural urbana –Situação Rural urbana, pois expandiram-se até ficarem a l km de distância da área urbanizada de caráter urbano em área legalmente rural
de uma cidade, ou vila, ou de um Aglomerado Rural já definido como de e fragmentada da cidade ou vila
Extensão Urbana. Constituem crescimento da extensão da área urbanizada com
loteamentos já habitados, conjuntos habitacionais, aglomerados de moradias
ditas subnormais ou núcleos desenvolvidos em torno de estabelecimentos
industriais, comerciais ou de serviços.

5, 6, e 7- Aglomerados rurais 5, 6, e 7- Aglomerados rurais Aglomerados rurais isolados que se mantiveram como tais. 5, 9 e 19 –
isolados- Situação Rural isolados – Situação Rural.

1- Área urbanizada de cidade ou 1- Área urbanizada de cidade ou vila Área urbanizada de cidade e vila que se manteve como tal. Todos –
vila- Situação Urbana – Situação Urbana

Fonte: Autoras, 2016.

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Revendo o uso de dados do IBGE...

da coluna 5, constam os “padrões espaciais de a cida de ou vila; 3) aumento da área urba-


análise da expansão urbana contemporânea” na legal através do aumento do perímetro
identificados. Por meio desse método, foi pos- urbano; 4) expansão de aglomerados rurais; e
sível mapear se houve: 5) expansão de aglomerados rurais de caráter
• aumento da área urbanizada contígua à ci- urbano em área rural.
dade ou vila; Como pode ser observado no Quadro 2,
• expansão da área urbanizada de forma por meio de sete tipos de cruzamento, pode-se
fragmentada em relação à cidade ou vila; mapear a expansão de perímetro urbano; por
• aumento da área urbana legal através do quatro tipos de cruzamento, a expansão das
aumento do perímetro urbano; áreas urbanizadas contíguas a cidade ou vila.
• expansão de aglomerados rurais; Outros quatro tipos mapeiam tendências de
• expansão de aglomerados rurais de caráter urbanização fragmentada – um tipo mapeia a
urbano em área rural. expansão de aglomerados rurais, e, por meio
É importante mencionar que as informa- de dois tipos de cruzamento, é possível mapear
ções contidas na coluna 5 podem ilustrar uma a expansão de aglomerados de caráter urbano
hipótese acerca do real ou uma informação em área rural. Os dois últimos padrões citados
espacial concreta. As células com coloração também podem ser utilizados para caracterizar
branca na tabela representam situações que expansão da urbanização fragmentada.
de fato se consolidaram no território, enquanto Frisa-se que este é um estudo comple-
as células em cinza representam uma situação mentar, realizado com o intuito de caracterizar,
hipotética, ou seja, que precisa ser comprovada demograficamente ou a partir de aspectos so-
através de outras fontes de informações, como, cioeconômicos, as áreas de expansão urbana
por exemplo, imagens de satélite ou legislação e/ou recentemente urbanizadas, contribuindo
urbanística. para o mapeamento de situações, tais como:
Através do Quadro 2 e do Mapa 3, cons- identificação do crescimento das áreas urbani-
tata-se que é possível traçar padrões espaciais zadas contíguas a cidade ou vila; identificação
de análise da expansão urbana utilizando a do crescimento de áreas urbanizadas fragmen-
variável “situação do setor” e dados de dife- tadas do tecido urbano consolidado; identifica-
rentes censos demográficos. A partir desse es- ção da expansão de aglomerados rurais e de
tudo, pode-se mapear tanto expansões da área aglomerados de caráter urbano em área rural.
urbanizada, quanto o crescimento das áreas Caso o intuito da pesquisa fosse caracterizar o
legalmente urbanas. processo de expansão urbana contemporâneo,
Há cinco tipos de definições espaciais o mais indicado seria pautar-se por imagens
de expansão urbana possíveis de serem ma- de satélite – para o estudo do crescimento das
peados: 1) aumento da área urbanizada con- áreas urbanizadas – e por legislação urbanísti-
tígua a cidade ou vila; 2) expansão da área ca municipal se o objetivo fosse mapear a ex-
urbanizada de forma fragmentada em relação pansão das áreas legalmente urbanas.

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Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

A utilização da variável “situação sendo maiores os conflitos da divisão social do


do setor censitário”: estruturação trabalho na cidade do que no campo. A terceira
do espaço além da dicotomia vertente relaciona campo e cidade a partir da
urbano-rural diferenciação entre unidade espacial. A última
vertente caracteriza campo-cidade a partir das
descontinuidades territoriais, como dispersão e
Segundo Souza (2005), espaços além da dico-
fragmentação urbana, configuradoras de espa-
tomia urbano-rural podem ser chamados de
ços mais extensos e com alterações considerá-
“faixa de transição” entre o uso da terra tipi-
veis na morfologia, tornando ainda mais difícil
camente rural e urbano ou ainda de espaço pe-
distinguir, no plano das formas espaciais, a ci-
riurbano e franjas da cidade.
dade e o campo.
Essa faixa de transição é chamada, en- A atual categorização dos setores para
tre os geógrafos anglo-saxões, de franja fins censitários no Brasil, apesar de dividida em
rural-urbana, e, entre os franceses, comu-
oito categorias, orienta uma leitura do espaço
mente, de espaço periurbano. No Brasil
ambas as expressões são empregadas em apenas duas realidades, a urbana e a rural.
pelos estudiosos. Quanto maior a cida- Não sendo mencionada a existência de espaços
de, em geral, mais complexo tende a ser além dessa dicotomia. Entretanto, quando se
o espaço periurbano. Nele se encontram analisam as definições (Quadro 1) e se realiza a
misturadas duas “lógicas”, por assim di-
análise espacial (Mapa 3), é possível encontrar
zer, de uso da terra: a rural e a urbana.
(Ibid., p. 27) situações que rompem essa dicotomia nas ca-
tegorias 2, 3 e 4, (conforme os setores hachura-
Spósito (2013), tomando como referên- dos no Mapa 3).
cia os estudos urbanos, menciona a existên- Na categoria 2 são mapeadas as áreas
cia de quatro tipos de vertentes que estudam legalmente urbanas ainda com uso do solo ru-
o espaço urbano e rural. A primeira vertente ral. Na categoria 3 são mapeadas as áreas ur-
relaciona a questão cidade-campo a partir da banas isoladas, portanto, áreas urbanas inseri-
concentração demográfica, por uma análise das em contexto de entorno rural. Na catego-
que caracteriza o que é campo e o que é ci- ria 4, há as áreas que, mesmo caracterizadas
dade pela diferenciação entre esses espaços, como aglomerados de extensão urbana, por
sendo o campo o local onde a concentração estarem fora do perímetro urbano, são enten-
demográfica é inferior à encontrada na área didas pelo IBGE como rurais, sendo áreas que
urbana. A segunda vertente articula a relação constituem loteamentos habitados em áreas
campo-cidade a partir da diferenciação social, rurais, conjuntos habitacionais, aglomerados
ou seja, identifica que a divisão social do tra- subnormais ou núcleos desenvolvidos em tor-
balho existe nos dois espaços, compreendendo no de estabelecimentos industriais, comerciais
o campo e a cidade como par dialético, mesmo ou de serviços.

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Revendo o uso de dados do IBGE...

Espacialização de dados do Censo 2010 na área urbana, não contam com grau de urba-
para compreensão de desigualdades nização completo, representadas no mapa por
no espaço intraurbano
meio de pontos.17
A partir da sobreposição de dados refe-
A cidade brasileira apresenta fortes diferenças rentes às redes de infraestrutura e reagrupa-
no padrão de urbanização, refletindo o histó- mento dos setores, é possível chegar a uma
rico dos investimentos públicos, dos processos leitura mais precisa do território, rompendo
informais de urbanização e do perfil socioe- o padrão de território bipartido em urbano e
conômico da população. O Mapa 4 represen- rural. Salienta-se, contudo, que, como só fo-
ta uma leitura da região estudada a partir do ram coletados pelo IBGE dados do entorno
reagrupamento das oito categorias de setores de domicílios localizados em situação urbana,
censitários, como discutido nos itens anteriores, não foram coletadas informações da categoria
em três grupos: urbano, rural e além da dicoto- 4 por estar fora da área urbana legal, apesar
mia urbano-rural. de abrigar regiões notórias por alto índice de
O espaço urbano é representado apenas áreas com urbanização incompleta, tais como
pela classificação 1 – setores urbanos de cida- loteamentos já habitados e localizados em
de e vila; o espaço rural é representado pelo áreas rurais, conjuntos habitacionais e núcleos
agrupamento das categorias 5, 6, 7, 8; o espaço desenvolvidos em torno de estabelecimentos
com dinâmicas híbridas, relacionadas a novas industriais, comerciais ou de serviços.
espacialidades além do urbano ou rural, é com- Sabe-se que o IBGE faz a classificação
posto pelas categorias 2, 3, 4, respectivamente: dos setores censitários para 5.565 municípios
área não urbanizada de vila ou cidade, área ur- antes da coleta dos dados. Esta análise aqui
bana isolada e área rural de extensão urbana. desenvolvida com os resultados das informa-
Para incorporar a problemática da desi- ções sobre as características do entorno não
gualdade ao acesso às redes de infraestrutura caminha no sentindo de demandar do IBGE
urbana no espaço intraurbano, agregaram- uma reclassificação dos dados a posteriori da
-se nessa cartografia informações sobre as coleta. Apenas intenciona-se caminhar por
características urbanísticas do entorno dos meio de uma análise que estrutura o território
16
domicílios urbanos, mapeando a presença além da dicotomia urbano-rural, utilizando-
de pelo menos duas redes de infraestrutura -se do acesso a redes de infraestrutura urbana
implantadas, como abastecimento de água via como um indicador que demonstra a inserção
rede geral e presença de esgoto a céu aberto de uma dinâmica urbana, o acesso a redes de
e abastecimento de água via rede geral e ilu- infraestrutura, em situações tidas conceitual-
minação pública. Na cartografia 4, portanto, mente como rurais, demonstrando a comple-
cada ponto representa 25 domicílios. Pode-se xificação do espaço, como referida por Spósito
assim detectar áreas que, apesar de inseridas (2013), sendo necessário superar a dicotomia.

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Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

O papel do IBGE para o planejamento censitários, bairros e faces de quadras, apesar


intraurbano, urbano e regional dos esforços empreendidos pelo IBGE, no últi-
mo censo, para atualização da base territorial
Em primeiro lugar é importante disseminar a municipal com representantes das municipa-
relevância das informações colhidas pelo IBGE lidades. Entretanto, diversos municípios não
sobre os locais de fato ocupados por população enviam informações atualizadas em tempo de
e com características urbanas dentro ou fora construir uma base mais aprimorada para o
do perímetro municipal, dada a importância da próximo censo.
informação demográfica e de condições de ur- Diversos municípios brasileiros18 estão
banização especializadas para uma cultura de aprovando Lei de Abairramento, apoiados pelo
planejamento territorial não só em metrópoles, IBGE, com a finalidade de melhorar o planeja-
mas nos 5.565 municípios brasileiros. mento territorial e do orçamento, pois, tendo
Há uma grave ausência da política públi- essa lei, o IBGE passa a utilizá-la para delimi-
ca do planejamento territorial municipal, atual- tação dos setores censitários municipais, tor-
mente com equipes e estruturas muito frágeis. nando os dados estatísticos mais acessíveis ao
A execução decenal do censo demográfico é planejamento municipal na escala do bairro. A
um esforço técnico-operacional e financeiro disseminação da Lei Municipal de Abairramen-
nacional extremamente importante e, como to apresenta-se como instrumento importante
engloba todos os municípios, apresenta-se co- para que dados produzidos pelo IBGE sejam
mo poderosa ferramenta para implementação disponibilizados para diagnóstico, planejamen-
de uma cultura de planejamento com base to e monitoramento dos resultados das políti-
científica constante, com enormes avanços na cas públicas municipais em escala adequada.
evolução dos indicadores de sustentabilidade,
condições e qualidade vida.
Não se pode deixar de mencionar que, Conclusões
muitas vezes, seus dados são, em muitos
municípios, a única ferramenta existente. Por A respeito das principais potencialidades da
isso o Censo de 2020 já precisa ser pensado utilização da variável “situação do setor” para
de forma integrada territorial e setorialmente. estudos urbanos, destacamos que:
Sendo relevante este artigo pontuar a necessi- ● a variável “situação do setor” a partir das
dade de integração entre a comunidade aca- oito classificações contribui no estudo da ex-
dêmica, o IBGE e os municípios em iniciativas pansão urbana contemporânea quando utiliza-
para elaborar as bases para um bom resulta- da de forma comparativa com dados de outros
do no próximo censo. Um bom exemplo disso censos após 1991. Este estudo contribui para
é a construção de bases nas quais os setores o mapeamento de situações como: a expan-
censitários sejam compatíveis com as unidades são do perímetro urbano; o crescimento das
de planejamento municipal existente. Sabe-se áreas urbanizadas contíguas a cidade ou vila;
da dificuldade de utilização de dados censitá- o crescimento de áreas urbanizadas de forma
rios devido à incompatibilidade entre limites fragmen tada; a expansão de aglomerados

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Revendo o uso de dados do IBGE...

rurais; e a expansão de aglomerados de cará- como urbana, mesmo quando não contemplada
ter urbano em área rural. Frisa-se, contudo, que por redes de infraestrutura, caracterizando uma
este é um estudo complementar, realizado com forma de urbanização incompleta.
o intuito de caracterizar, demograficamente ou A respeito das fragilidades, pode-se elen-
a partir de aspectos socioeconômicos, as áreas car algumas indicações de como superá-las,
de expansão urbana. Caso o intuito da pesqui- tais como:
sa seja caracterizar o processo de expansão ur- ● o IBGE poderia passar a disponibilizar, em
bana, o mais indicado é pautar-se por imagens seu banco de dados, informações quanto à fon-
de satélite, para estudo do crescimento das te do perímetro urbano utilizada para fins cen-
áreas urbanizadas, e pela legislação urbanística sitários em cada município brasileiro, se legal
quando o objetivo for mapear a expansão das ou se baseado na realidade instaurada, para os
áreas legalmente urbanas. municípios que não possuem lei municipal de
● A utilização das características do entorno perímetro urbano.
urbanístico dos domicílios fornece informações ● Faltam informações nas publicações do
espacializadas a respeito da qualidade das re- IBGE a respeito dos critérios utilizados para
des de infraestrutura nas áreas urbanas, possi- definição do que o órgão chama de “perímetro
bilitando o cruzamento de variáveis do entorno utilizado para fins de coleta censitária”, neces-
urbanístico com características socioeconômi- sário quando a municipalidade não conta com
cas e demográficas da população e do domi- legislação referente ao perímetro urbano.
cílio, podendo contribuir para a elaboração de ● De acordo com a forma definida pelo Ins-
políticas públicas municipais e metropolitanas. tituto, mesmo que a administração municipal
● A variável “situação do setor” pode tam- constate que a lei de perímetro não reflete a
bém ser utilizada a partir do reagrupamento realidade municipal, enquanto este não apro-
de suas oito categorias de setores censitários, var alterações em sua legislação municipal, o
estruturando o território além da dicotomia ur- IBGE continuará praticando os limites definidos
bano-rural. O espaço urbano pode ser represen- em lei. Seria necessário estabelecer parâmetros
tado pela classificação 1 – setores urbanos de quanto à participação da administração muni-
cidade e vila; o espaço rural, pelo agrupamento cipal na delimitação das áreas urbanas e rurais,
das categorias 5, 6, 7, 8; e o espaço além di- mas fica claro que, pautar-se apenas em aspec-
cotomia, pelas categorias 2, 3, e 4, respectiva- tos legais, deixando de lado demandas admi-
mente: área não urbanizada de vila ou cidade; nistrativas municipais, torna a coleta censitária
área urbana isolada e área rural de extensão aquém das reais possibilidades de utilização
urbana. Apesar de esse tipo de mapeamento dos dados pelo planejamento municipal.
proporcionar uma leitura que rompe com o pa- ● Frisa-se que um território, mesmo dividido
drão de território bipartido entre urbano e ru- em oito categorias – muitas vezes abrangen-
ral, essa estruturação não deve ser utilizada de tes em sua caracterização, como a catego-
forma isolada, pois, igualmente, possui dados ria 1, área urbana de cidade ou vila –, acaba
mascarados por trás de algumas das oito situa- tendo informações mascaradas. Citam-se, por
ções, como a categoria 1, que define uma área exemplo, as informações quanto à presença

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Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

de vazios urbanos, pois, apesar de a categoria como de situação rural – afinal, são espaços
2 (área urbana não urbanizada) ter como obje- que também dialogam com a realidade urba-
tivo mapear as áreas vazias inseridas em área na, sendo, portanto, áreas além da dicotomia
urbana legal, as áreas não urbanizadas são urbano-rural.
constituídas apenas pelas áreas ocupadas por Ao longo deste artigo foram pontuadas
atividades agropastoris (lavouras, pecuária, ati- tanto as potencialidades quanto as fragilida-
vidades extrativas) e pelas terras ociosas (sem des decorrentes do uso de dados oriundos do
qualquer uso) quando não contíguas às áreas IBGE. Cabe relativizar que os limites dos dados
urbanas de cidade ou vila intensamente ocupa- muitas vezes se devem à impossibilidade de
das com edificações, ruas e praças, etc. uma análise mais detalhada antes da coleta
● Quanto aos dados do entorno urbanístico por parte do IBGE para os mais de 5 mil mu-
dos domicílios, salienta-se que só foram cole- nicípios brasileiros, bem como à incapacidade
tados pelo IBGE dados do entorno de domi- técnico-operacional de muitas gestões muni-
cílios localizados na área urbana. É necessá- cipais e pesquisadores de utilizá-los. Não se
rio incluir na coleta a categoria 4, que possui pretendeu com este trabalho desqualificar as
caráter urbano mesmo estando inserida em informações censitárias, mas sim pontuar a ne-
situação rural. Essa categoria, apesar de estar cessidade de os usuários das informações cen-
fora da área urbana legal, possui muitas vezes sitárias entrarem em contato com os limites e
regiões notórias por alto índice de áreas com as potencialidades dos dados para sua utiliza-
urbanização incompleta, tais como loteamen- ção em pesquisas e para o planejamento terri-
tos já habitados e localizados em áreas rurais, torial, sendo fundamental, para isso, conhecer
conjuntos habitacionais, assentamentos pre- igualmente o método utilizado pelo Instituto
cários e núcleos desenvolvidos em torno de para coleta dos dados.
estabelecimentos industriais, comerciais ou de Ao serem apontadas potencialidades,
serviços. Assim, o uso desses dados será mais caminha-se para a construção de indicadores
efetivo para construção e avaliação de políticas mais complexos. E, ao serem apontadas fragi-
públicas municipais e metropolitanas com a in- lidades, pretende-se apenas pontuar questões
clusão dessa categoria na coleta. que podem, em algum momento, serem supe-
● Mostra-se frágil, igualmente, a inclusão radas, possibilitando um uso ainda mais inten-
das áreas de extensão urbana, categoria 4, so dos dados censitários em nosso País.

738 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 721-742, set/dez 2016
Revendo o uso de dados do IBGE...

Mapa 4 – RMC – Reagrupamento dos setores e implantação


de infraestrutura: água e esgoto

Fonte: IBGE (2010). Elaboração: Caroline Pera (2016).

Caroline Krobath Luz Pera


Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de
Pós-Graduação em Urbanismo. Campinas, SP/Brasil.
carolinepera@gmail.com

Laura Machado de Mello Bueno


Pontifícia Universidade Católica de Campinas, aculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de
Pós-Graduação em Urbanismo. Campinas, SP/Brasil.
laurabueno500@gmail.com

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Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

Notas
(1) Uma versão deste artigo foi apresentada durante o III Seminário Nacional do GT População,
Espaço e Ambiente, da Abep, realizado na sede do IBGE no Rio de Janeiro. As autoras agradecem
as contribuições dos par cipantes e do corpo técnico do IBGE, além da Capes e do CNPq pelo
apoio a esta pesquisa.

(2) Conforme IBGE (2013, pp. 354-355), para os casos em que a administração local considere que
a lei não reflete a realidade e enquanto não houver alteração da legislação, o IBGE con nuará
pra cando os limites definidos em lei. Nos casos em que o perímetro urbano ultrapassa o limite
municipal, o IBGE privilegia a legislação estadual sobre a legislação municipal. E, na ausência
de lei definidora de perímetro urbano, o IBGE estabelece um perímetro urbano para fins
esta s cos, como forma de definir as áreas urbanas e as rurais do município.

(3) U lizou-se como estudo de caso a Região Metropolitana de Campinas (RMC), ins tucionalizada
pela lei estadual n. 870/2000. A região apresenta hoje, após a recente inclusão de Morungaba,
vinte membros: Americana, Artur Nogueira, Campinas, Cosmópolis, Engenheiro Coelho,
Holambra, Hortolândia, Indaiatuba, Ita ba, Jaguariúna, Monte Mor, Morungaba, Nova Odessa,
Paulínia, Pedreira, Santa Bárbara d’Oeste, Santo Antônio de Posse, Sumaré, Valinhos e Vinhedo.

(4) As áreas de apuração são “áreas geográficas delimitadas nos mapas e cadastradas para servir de
unidade especial de apuração de dados censitários”, como, por exemplo: os aglomerados rurais
(os quatro pos), as áreas urbanizadas, as áreas não urbanizadas, os aglomerados subnormais,
as aldeias indígenas, etc. A iden ficação das áreas de apuração é um dos elementos que auxilia
a elaboração do traçado dos setores censitários, havendo ainda outros elementos (IBGE, s/d).
Na ausência de outras informações quanto ao método u lizado pelo IBGE, o conhecimento da
informação a respeito da definição das áreas de apuração ajuda, em partes, a compreender
a par r de quais critérios o IBGE trabalha. Mas vale frisar que seria fundamental que o IBGE
passasse a detalhar tal informação em seus manuais e textos metodológicos.

(5) Essa classificação passou a ser aplicada pelo IBGE a par r do Censo de 1991. Antes, a variável
“situação de setor” era dividida em apenas quatro situações: 1) cidade ou vila; 2) área urbana
isolada; 3) aglomerado rural; e 4) zona rural.

(6) Para o Censo 2010, o tamanho es pulado para cada setor em áreas urbanas urbanizadas prevê
de 250 a 400 domicílios; para os setores urbanos não urbanizados, o critério prevê de 150 a
250 domicílios ou de 100 a 200 estabelecimentos agropecuários. Quanto aos setores rurais,
categorias 4, 5, 6, 7 e 8, o tamanho é, em média, de 200 domicílios ou 150 estabelecimentos
agropecuários, admitindo-se faixa de variação de 150 a 250 domicílios e de 100 a 200
estabelecimentos agropecuários. Além disso: “[...] em área rural, o critério de tamanho está
associado também à extensão territorial, além do quantitativo de estabelecimentos ou
domicílios par culares, não sendo admi dos setores rurais cujas extensões territoriais fossem
maiores que 500 km2 além do limite máximo de tempo de coleta ser de 60 dias” (IBGE, 2013).

(7) Segundo caracterização proposta pelo Censo 2010 (IBGE, s/d-c).

(8) Critério de tamanho e densidade, conforme citado na nota 6, comum a todos os tipos de
aglomerados rurais.

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Revendo o uso de dados do IBGE...

(9) “Definem-se, como aglomerado rural isolado, os assentamentos situados em área legalmente
definida como rural, que atendam aos critérios de tamanho e densidade anteriormente
es pulados e que se encontrem separados do perímetro urbano legal de uma cidade ou vila,
ou de um aglomerado do po “extensão urbana” por uma distância igual ou superior a 1 km
[...]. Os aglomerados isolados de natureza rural correspondem a formas de hábitat concentrado
de população rural e, geralmente, reúnem um número mínimo de serviços que servem como
elementos básicos de interação social.” (IBGE, s/d-a, p. 14).

(10) Critério de tamanho e densidade, conforme citado na nota 6, comum a todos os tipos de
aglomerados rurais.

(11) Idem nota 9.

(12) Critério de tamanho e densidade, conforme citado na nota 6, comum a todos os tipos de
aglomerados rurais.

(13) Idem nota 9.

(14) Critério de tamanho e densidade, conforme citado na nota 6, comum a todos os tipos de
aglomerados rurais.

(15) Foram inseridas, no Quadro 2, todas as possibilidades de cruzamento, mesmo quando não
encontradas no estudo de caso proposto, pois, além de caracterizar a Região Metropolitana
de Campinas, pretende-se averiguar quais informações espaciais podem ser extraídas da
espacialização da variável “situação do setor”.

(16) O Censo 2010 apresentou, pela primeira vez, um perfil das características dos logradouros
onde se localizam os domicílios urbanos do País, em nível municipal, abrangendo informações
sobre presença de iluminação pública, pavimentação, arborização, bueiro/boca de lobo, lixo
acumulado, esgoto a céu aberto, meio-fio ou guia, calçada e rampa para cadeirante no entorno
dos domicílios considerados. Tais informações foram levantadas, em sua quase totalidade,
durante a pré-coleta, etapa preparatória do Censo Demográfico 2010, e refletem a observação
direta do agente censitário sobre o contexto urbanís co no que diz respeito a duas importantes
dimensões de infraestrutura: a circulação e o meio ambiente. Disponível em: <h p://biblioteca.
ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/96/cd_2010_entorno_domicilios.pdf>. Acesso em: set
2015.

(17) Cada ponto preto representa 25 domicílios, cujo entorno urbanís co não possui ambas as redes
de infraestrutura. Cada ponto em cinza claro, ou em cinza escuro, representa 25 domicílios com
pelo menos uma das redes de infraestrutura instalada. Os pontos em cinza médio representam
25 domicílios com ambas as redes de infraestrutura instauradas em seu entorno urbanís co,
ou seja, situações que representam formas de urbanização completa. Há necessidade de
transparência de informações sobre a desigualdade, de forma a que as políticas púbicas se
voltem para enfrentar a equalização do acesso da população aos serviços urbanos. O IBGE tem
um rico sistema de dados e suas ferramentas de georreferenciamento, além dos escolhidos, por
serem relacionados a saúde pública e saneamento.

(18) Alguns dos municípios que aprovaram abairramento no estado de São Paulo são: Vinhedo,
Barueri, Cubatão, Cajamar e Mongaguá.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 721-742, set/dez 2016 741
Caroline Krobath Luz Pera, Laura Machado de Mello Bueno

Referências
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Série Relatórios metodológicos. Rio de Janeiro.

______ (s/d-b). XI Recenseamento geral do Brasil – Manual de delimitação dos setores 2000.

______ (s/d-c). Banco Mul dimensional de esta s ca. Disponível em: h ps://www.bme.ibge.gov.br.
Rio de Janeiro. Acesso em: 12 set 2015.

______ (2002). Censo Demográfico 2000: agregado de Setores Censitários dos Resultados do Universo.
Rio de Janeiro.

______ (2003). Metodologia do Censo Demográfico 2000. Vol. 25 da Série Relatórios metodológicos.
Rio de Janeiro.

______ (2013). Metodologia do Censo Demográfico 2010. Vol. 41 da Série Relatórios metodológicos.
Rio de Janeiro.

NASCIMENTO, E. (2013). As desigualdades socioespaciais urbanas numa metrópole interiorana: uma


análise da RMC (SP) a par r de indicadores de exclusão social. Tese de Doutorado. Campinas,
Universidade Estadual de Campinas.

PERA, C. K. L. (2016). Processo contemporâneo de expansão urbana: legislação urbanís ca e lógicas


de produção do espaço urbano – Estudo da Região Metropolitana de Campinas. Dissertação de
Mestrado. Campinas, Pon cia Universidade Católica de Campinas.

SOUZA, M. L. de (2005). ABC do desenvolvimento urbano. Rio de Janeiro, Bertrand.

SPÓSITO, M. E. B. (2013). “A questão cidade-campo: perspec vas a par r da cidade”. In: SPÓSITO,
M. E. B. e WHITACKER, A. M. (orgs.). Cidade e campo: relações e contradições entre o urbano e o
rural. São Paulo, Expressão Popular.

VEIGA. J. E. (2003). Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. São Paulo, Autores
Associados.

Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

742 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 721-742, set/dez 2016
Planeamiento territorial sostenible:
un reto para el futuro de nuestras
sociedades; criterios aplicados
Sustainable spatial planning: a challenge
for the future of our societies; applied criteria

Adrián Ferrandis Martínez


Joan Noguera Tur

Resumen Abstract
En buena parte de los 17 objetivos de desarrollo In a large part of the 17 sustainable development
sostenible marcados como metas de la humanidad objectives set as goals for humanity by the UN,
por la ONU se deja entrever la sostenibilidad. sustainability can be glimpsed. As a result of the
Debido al modelo socioproductivo dominante, dominant socio-productive model, the only way
el único modo de avanzar hacia territorios más to head towards more sustainable territories that
sostenibles que permitan alcanzar y mantener allow achieving and maintaining the well-being
el bienestar de la población mundial, es tener of the world’s population is to bear in mind the
presente la necesidad de planificar adecuadamente need to properly plan territorial development.
el desarrollo territorial. Este trabajo reflexiona sobre This work refl ects on this need and takes a step
esta necesidad y avanza en la definición de los forward in the definition of the main criteria to
principales criterios para alcanzar la sostenibilidad achieve territorial sustainability at regional and
territorial en las escalas regionales y locales. local scales.
Palabras clave: criterios de sostenibilidad; Keywords: sustainability criteria; spatial planning;
planeamiento territorial; desarrollo sostenible; sustainable development; sustainable societies and
sociedades sostenibles y planificación urbana. urban planning.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 743-763, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3706
Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

de sostenibilidad fundamentales para su


Introducción
implementación práctica.

La mejora del grado de sostenibilidad de los


territorios y en especial de los espacios urbanos El reto del desarrollo
y metropolitanos, es uno de los principales sostenible
retos para el futuro de las sociedades actuales.
De la medida en la que esta mejora resulte La consecución de aquello ha venido a
una realidad plausible, dependerá el conseguir denominarse como DS, es presentado por
salvaguardar el equilibrio del sistema ecológico numerosos autores como uno de los retos más
de nuestro planeta, y con él, las condiciones de importantes para salvar la Tierra de los males
vida que hoy conocemos (Rueda et al., 2012). que la aquejan. Males causados, y sobre todo
Los principios establecidos en la teoría acelerados, por la acción antrópica sobre el
del Desarrollo Sostenible (DS), representan Planeta, y en especial sobre su sistema natural
el modelo de desarrollo de referencia para o ecológico (Ramonet, 2003). La pérdida de
conseguir estas mejoras sustanciales. A pesar Biodiversidad, las alteraciones climáticas, la
de esto, la importante carga de ambigüedad contaminación atmosférica, la intensificación
que rodea al concepto del DS, requiere avanzar de los procesos de desertización o el aumento
hacia planteamientos más prácticos que de la pobreza humana, son algunos de esos
permitan caminar hacia aquello que ha venido males que lo afectan y pueden provocar
a denominarse como sostenibilidad fuerte su transformación, alterando por tanto las
(Naredo, 1996). Es decir, concretar en mayor actuales condiciones de vida.
medida los criterios de acción necesarios para El término sostenibilidad tiene que ver
aplicar políticas de desarrollo territorial que con la garantía de continuidad en el tiempo de
resulten lo más sostenibles posibles, desde un las características estructurales y funcionales
punto de vista global en el que se integren los de los valores y de los atributos de aquello
ámbitos sociales, ambientales y económicos. a lo que hace referencia, ya sea un sistema,
Este artículo tiene como objetivo un recurso o una actividad (Gómez Orea,
resaltar la importancia de la Planificación 2007). Etimológicamente la palabra contiene
Territorial como instrumento fundamental connotaciones interesantes e importantes, pues
para la aplicación del DS, y mejorar el grado se puede referir al hecho de apoyar un estado
de sostenibilidad de los territorios, con una deseado, o por el contrario, a soportar un estado
relevancia especial en las escalas regionales y no deseado. En términos generales, cuando se
locales. A continuación se presentan diferentes hace referencia a algo que es sostenible, se
apartados que irán desgranando cada uno de quiere identificar una acción o proceso que es
los conceptos clave para su interpretación, y en capaz de ser mantenido o defendido. Al mismo
los que, finalmente, a partir de una minuciosa tiempo, si se utiliza como un elemento más
revisión bibliográfica, se definen los criterios activo, sugiere una disposición hacia algo, que

744 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 743-763, set/dez 2016
Planeamiento territorial sostenible

trasmite un mensaje prescriptivo de que algo Al final del proceso, las diferentes
hay que hacer, y que de hecho puede hacerse cuestiones acordadas se plasmaron en una
(Redclift, 2000). serie de principios legales generales en pro
Por su parte, el término desarrollo de la protección del medio ambiente y el DS.
está vinculado al hecho de acrecentar o dar Desde el punto de vista del interés que suscitan
incremento a algo de orden físico, intelectual por la temática de este artículo, se considera
o moral, así como también al concepto importante destacar los siguientes:
de progresar o crecer económica, social o • Los derechos de todos los seres humanos
culturalmente (RAE, 2014). a tener un medio ambiente adecuado para su
En el año 1987, como resultado de los salud y bienestar.
trabajos realizados por la Comisión Mundial • La conservación y utilización del medio
del Medio Ambiente y del Desarrollo, presidida ambiente y los recursos naturales para el
por la entonces ministra de medio ambiente beneficio de las generaciones presentes y
noruega Gro Harlem Brundtland, se elaboró el futuras.
informe denominado Nuestro Futuro Común, • El mantenimiento de los ecosistemas y los
más conocido como Informe Brundtland. procesos ecológicos indispensables para el
Sin duda alguna, este es el documento de funcionamiento de la biosfera y la conservación
referencia a la hora de hablar y profundizar en de la diversidad biológica.
el conocimiento y definición del DS, y el que • La incorporación del concepto de "óptimo
le otorgó su acuñación oficial. En una de las rendimiento sostenible" en la utilización
partes del informe se desmenuza el concepto de los recursos naturales vivos y de los
de DS, y se indican todas y cada una de las ecosistemas.
connotaciones y campos a los que afecta, • El requerimiento de evaluaciones previas
definiéndolo en suma de la siguiente forma: de las actividades que se propongan y puedan
afectar considerablemente el medio ambiente
El DS es el proceso de cambio en el
o a la utilización de recursos naturales.
cual la explotación de los recursos, la
orientación de la evolución tecnológica y • La pretensión de asegurar la conservación
la modificación de las instituciones, están como parte integrante de la planificación y
acordes y acrecientan el potencial actual ejecución de las actividades de desarrollo.
y futuro para satisfacer las necesidades • La proporción de asistencia especial a los
y aspiraciones humanas.( Informe
países en desarrollo en apoyo a la protección
Brundtland, 1987, p. 19)
del medio ambiente y el DS.
Otra definición más sintética, es aquella • La utilización de los recursos naturales
que lo define como: transfronterizos de manera razonable y
equitativa.
La posibilidad de satisfacer las
• El requerimiento de una evaluación
necesidades del presente sin
comprometer la capacidad de las futuras ambiental de las actividades proyectadas
generaciones para satisfacer las suyas. que pudieran tener importantes efectos
(Informe Brundtland, 1987, p. 21) transfronterizos.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 743-763, set/dez 2016 745
Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

En definitiva, el informe asentó las bases Como principio general, el concepto


para la definición de una teoría alternativa del DS se clarifica en esencia mediante
a las teorías económicas predominantes, una triple dimensionalidad; la económica,
enmarcadas en el crecimiento ilimitado la social y la medioambiental o ecológica
(Goodland, 1997). El consumo descontrolado (Douglas Muschett, 1999; Lee Cambell y
e intensivo de los recursos naturales había Heck, 1999; Gómez Orea 2007). El espacio
provocado una degradación de los activos ocupado por la sostenibilidad, dentro de esa
naturales, por lo que, mientras el imparable triple dimensión, es justo la zona de contacto
crecimiento económico aumentaba, el sistema en la que se superponen las tres a la vez
natural, se empobrecía. Además, junto a estas (observar la Figura 1). Si las actividades o
actividades de consumo de recursos de forma líneas de crecimiento quedaran fuera de ese
ilimitada, se le sumaba otra, vinculada a la espacio de superposición, pasarían a situarse
generación de residuos, como resultado de en las zonas del desarrollo no sostenible. Se
las actividades productivas de transformación, puede argumentar que la zona de contacto
causantes de la contaminación del aire urbano, representa el punto de equilibrio en el que se
las aguas, así como el efecto invernadero puede combinar el crecimiento económico,
y la disminución del ozono de las capas el progreso social y el respeto al medio
estratosféricas. ambiente.

Figura 1 – Intersección de los elementos clave que engloba el DS

Ecológicamente
viable

Solución
desarrollo
sostenible

Socialmente Económicamente
viable viable

Fuente: Elaboración propia, a partir de Lee Cambell y Heck (1999).

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Planeamiento territorial sostenible

Esa triple identificación conduce a Cambell y Heck, 1999). Reducir la generación


interpretar el DS en términos de calidad de de residuos y prevenir posibles proceso de
vida y, valorada dentro del plano individual, se contaminación mediante su tratamiento
puede traducir en tres componentes: el nivel de adecuado (Douglas Muschett, 1999; y Shen,
renta, las condiciones de vida y de trabajo y la 1999). La necesidad de provocar cambios
calidad ambiental de cada individuo, junto a los sociales y culturales, especialmente en la forma
que forman la sociedad (Gómez Orea, 2007). de interpretar la relación del hombre con el
En definitiva, el concepto de DS se inscribe medio natural que le rodea (Douglas Muschett,
dentro de la idea optimista que considera que 1999; y Vilches y Gil, 2003). Esto último se
es compatible el desarrollo económico y la podrá conseguir incidiendo en los procesos
conservación del medio ambiente, o lo que es educativos. Controlar el hiperconsumo e
lo mismo, del medio/recurso natural sobre el intentar desconectarlo de su asociación
que se asientan las sociedades. directa con la mejora de la calidad de vida
A partir de estas aproximaciones iniciales, (Goodland, 1997; Vilches y Gil, 2003). Fomentar
el concepto del DS ha sido evolucionado el desarrollo en base a elementos cualitativos,
mediante la concreción de sus principios. Como como puede ser todo lo que tenga que ver con
se puede interpretar en la figura que se muestra las energías renovables, las comunicaciones
a continuación (Figura 2), tomando como y otros sectores estratégicos (Von Droste
referencia el análisis elaborado por Ferrandis y Dogsé, 1997; Shen, 1999; Lee Cambell y
(2016), a partir de los principales argumentos Heck, 1999; Vilches y Gil, 2003). Instaurar la
defendidos por distintos autores de referencia, universalización de los Derechos Humanos
el DS queda definido desde una perspectiva y la democratización institucional a nivel
integral. Destacan principios y objetivos como planetario (Lee Cambell y Heck, 1999; Vilches
los relacionados con la necesidad de instaurar y Gil, 2003). O reducir el hambre, la pobreza y
procesos productivos que primen la eficiencia, la exclusión social, mediante la redistribución
la conservación de los recursos, el reciclaje o la de los recursos en base a elementos de índole
necesidad de invertir en sectores relacionados temporal (solidaridad intergeneracional) y
con el medio ambiente (Goodland, 1997; espacial (Norte/Sur) (Redclift, 2000; Vilches y
Von Droste y Dogsé, 1997; Shen, 1999; Lee Gil, 2003).

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Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

Figura 2 – Tabla de síntesis de los principios y objetivos de la evolución


del concepto del D.S.
Autores y año de publicación

Principios y objetivos fundamentales de la B. Von Lee


Douglas Vilches Gómez
evolución conceptual del D.S. Goodland Droste y Shen Cambell Redclift
Muschett y Gil Orea
(1997) P. Dogsé (1999) y Heck (2000)
(1999) (2003) (2007)
(1997) (1999)
Producir más con menos (conservación,
eficiencia, reciclaje y inversión en sectores X X
meioambientales)

Reducir la explosión demográfica X X X

Reducir el sobreconsumo o hiperconsumo X X

Fomentar el desarrollo en base a elementos


X X X X X
cualitativos (nuevas tecnologías)

Inversiones en investigación y produción


ámbito biotecnología (energias renovables, X X X X
comunicaciones, etc.)

Redución resíduos y prevención


X X
de la contaminación

Formación (educación) y cambios sociales


X X
y culturales

Reducir el hambre, la pobreza y la exclusión


X X
social

Universalización de los DDHH y


X X
democratización institucional a nivel planetario

Redistribución de los recursos en base


a elementos como el tiempo (ahora/luego:
X X
igualdad intergeneracional y el espacio
Norte/Sur)

Triple dimensionalidad del D.S.: económica,


X X X
social y ambiental

Fuente: Ferrandis (2016).

En los años posteriores a los indicados en DS (Decrecimiento, Ecodesarrollo, etc.), pero


la figura de síntesis de los principios y objetivos que como ya se ha indicado, distan poco de
del DS, se puede destacar que pocos autores sus principios fundamentales y centran sus
han aportado modificaciones sustanciales a sus propuestas de cambio en elementos clave,
planteamientos, por lo que han centrado sus como puede ser la necesidad de implementar
críticas y valoraciones en la forma en la que se un cambio cultural en nuestras forma de
está intentando aplicar el DS y, especialmente, vida, en la que la felicidad y el bienestar
en el enfoque exageradamente desarrollistas no dependa única y exclusivamente de la
de los principales agentes implicados (Besset, posesión de determinados bienes materiales
2005; Latouche, 2008; Urteaga, 2011). Esta (Latouche, 2008), o en la necesidad de
situación ha derivado en la propuesta de sobreponer los intereses del bien común (del
teorías o planteamientos alternativos al propio conjunto de ciudadanos del Planeta) sobre los

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Planeamiento territorial sostenible

interés particulares de los grandes poderes afectasen a los territorios y a las sociedades
económicos del Mundo y del capitalismo en que se asientan en ellos.
general (entendido este como aquella parte Sin embargo, un siglo después, la OT
del engranaje del sistema capitalista que sólo no se encuentra completamente consolidada,
prima la vertiente económica, menospreciando y todavía se discute el contenido específico
la social y la ambiental). En definitiva, bajo de la planificación territorial, cuáles son los
1 instrumentos propios de la OT y la escala o
estos “nuevos” enfoques, lo que se intenta es
hacer valer la incapacidad de la clase política ámbito de aplicación (Cruz Villalón, 2006).
actual para liderar ese cambio tan necesario, L a Planif ic ació n Te r r ito r ial ( P T ) ,
que sucumbe bajo el interés de unos pocos, los entendida como un instrumento de acción
acumuladores de capital. de la OT, se justifica porque la conflictividad
inherente a cualquier sistema territorial,
dejado a su evolución espontánea, se resuelve
en beneficio del interés privado del más
La Planificación Territorial; fuerte, con objetivos a corto plazo, lo que
un instrumento político conduce a un sistema territorial insatisfecho.
de acción necesario para Este hecho es el que justifica la intervención
planificada sobre el denominado sistema
alcanzar el desarrollo
(Gómez Orea, 2007).
sostenible El territorio es el resultado de la
construcción sociológica que los humanos
Durante el siglo XIX, como consecuencia han levantado sobre la matriz biofísica
de la revolución industrial y del crecimiento p r e e x is t e n t e , c r e a n d o u n e s p a c i o d e
demográfico, en los países occidentales, se artificialidades oportunas, en ocasiones, y no
produjeron unas décadas de convulsión urbana, tanto en otras (Folch, 2003). Este territorio
que pusieron de manifiesto la necesidad debe ser entendido como algo más que
de ordenar el crecimiento de las ciudades un mero escenario, ya que cuenta con una
mediante políticas, normativas, instrumentos naturaleza sistémica y compleja que se resiste
y competencias públicas (Cruz Villalón, 2006). a toda percepción reduccionista. El territorio
Evolucionado dicho proceso urbano, ya a está compuesto por la ocurrencia de elementos
principios del siglo XX, se constató, que ni los y fenómenos interrelacionados que configuran
problemas urbanísticos, ni los derivados de su realidad, es decir, la realidad territorial de
la expansión urbana, podían ser resueltos, ni cada una de las sociedades.
abordados, exclusivamente desde la escala Otro elemento importante, que también
local. Correspondería entonces a lo que ha se debe considerar, es que el territorio tiene un
venido a denominarse Ordenación del Territorio carácter limitado, y por tanto es un bien escaso
(OT), la responsabilidad de afrontar en la escala y finito, por lo que resulta de gran relevancia
supralocal, la resolución de los problemas su adecuada planificación y ordenación,
urbanísticos y de cualquiera otros que de tal forma que se maximicen los efectos

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Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

potenciales de su buena gestión (Pujadas abajo), implica una especie de justicia social,
y Font, 1998; Farinós, 2006; Esteban, 2006; que concilia los intereses conflictivos de los
Gómez Orea, 2007). diferentes agentes socioeconómicos y hace
La PT se debe aplicar a todos los niveles prevalecer el interés de la comunidad sobre
territoriales: nacional, regional y local, mediante los intereses privados. A su vez el elemento de
un conjunto de planes, cuyas determinaciones funcionalidad, vinculado con la optimización
tienen que corresponder con las estructuras de las relaciones entre las actividades a través
territoriales atribuibles a cada nivel. Estas de los flujos de relación que se producen entre
estructuras se desarrollan en cascada, según ellas, implica una organización espacial, un
un proceso de arriba abajo, en el que el nivel control del uso del suelo, una accesibilidad de
superior, y ámbito más extenso, se adopta la población a la explotación de los recursos
como referencia para los niveles inferiores territoriales, a los lugares de trabajo y a los
(Pujadas y Font, 1998; Gómez Orea, 2007; equipamientos y servicios públicos (Gómez
Noguera, 2009). Tal desarrollo en cascada no Orea, 2001).
implica la imposición de los niveles superiores Según Gómez Orea (2007), se identifican
sobre los inferiores, sino una correlación entre 3 conceptos clave para la aplicación de la
las estructuras territoriales asociadas a cada sostenibilidad en la acción y el cometido de las
nivel y el tipo de plan correspondiente. De políticas de PT. En primer lugar la utilización
acuerdo a ello, toda población participa en la racional del territorio y gestión responsable
elaboración de todo plan. de los recursos naturales, implicando como
El objetivo final de la PT es el desarrollo principio general la conservación de los
global de los sistemas territoriales a los que se procesos ecológicos esenciales, de tal forma
aplica, entendido éste en términos de calidad que se consiga mantener a largo plazo el
de vida. El desarrollo integral implica equilibrio, potencial de utilización del suelo y los recursos
integración, funcionalidad, uso racional de que contiene. En segundo lugar la calidad
los recursos, calidad ambiental, calidad de la ambiental, vinculada al objetivo de mejorar la
gestión pública y coordinación administrativa. calidad de los vectores ambientales (aire, agua y
Cuando se habla de equilibrio territorial, suelo), y la conservación de los ecosistemas y de
lo que se pretende es prevenir y corregir los los procesos ecológicos esenciales, del paisaje,
desequilibrios territoriales, ya que el equilibrio del patrimonio cultural... etc. Finalmente, en
entre las diferentes unidades territoriales es tercer lugar, la calidad de la gestión pública y
garantía de progreso y estabilidad. Por tanto, la coordinación administrativa, tomando como
la PT debe controlar el crecimiento de las punto de partida la planificación integrada y
regiones demasiado dinámicas y estimular la coordinación intersectorial e interterritorial
el de las retrasadas o las que entren en entre los diferentes entes administrativos,
decadencia (Carta Europea de Ordenación del destacando los que se deben producir
Territorio, 1983). entre entes del mismo nivel competencial
Por su parte la idea de la integración (intercambio de información y cooperación
(territorial y sectorial, hacia arriba y hacia activa).

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Planeamiento territorial sostenible

umbrales admisibles de impacto sobre el medio


La sostenibilidad
ambiente, más que sobre la disposición de las
en la planificación territorial actividades en el espacio; sobre los ritmos y
los procesos de transformación, más que sobre
El paradigma de la sostenibilidad está el tipo de transformación; sobre el control de
obligado a tener una nueva mirada sobre las redes de interrelación, además del control
la realidad territorial. Se debe apostar por de los elementos individuales; sobre diferentes
un nuevo concepto territorial, basado en la escalas geográficas, ámbitos sectoriales y
contención en el consumo de materiales y horizontes temporales; y sobre la participación
energía, en el vertido mesurado de residuos y de los agentes socioeconómicos y políticos que
el mantenimiento de la biodiversidad (Folch, intervienen en los procesos de transformación
2003). El espacio libre es un bien, sobre todo del territorio (Folch, 2003).
cuando se vuelve escaso. Este bien ha sido Además, también aparecen prioridades
excluido durante décadas de la ecuación espaciales, ligadas a los impactos que pueden
territorial, lo que ha permitido su consumo sin derivarse a nivel territorial. Sus principales
freno. Un abordaje sistémico y sostenibilista ideas a tener en cuenta son: la gestión socio-
del territorio, no puede admitir que el concepto ambiental moderna y sostenible que se hace
espacio sea apartado de la hoja de cálculo a a una escala que sobrepasa la de los actuales
la hora de valorar situaciones territoriales. En municipios; el planeamiento que hay de tener
general, no se puede admitir que se deseche de en cuenta el heteromorfismo territorial y debe
la imprescindible matriz biofísica. aplicarse sobre el espacio como una piel, más
Como nos indica Gómez Orea (2007, que como un corsé; el crecimiento, que no
p. 101), tomando sus palabras textuales: “el debe entenderse como un mero incremento del
DS pasa ineludiblemente por la consecución tamaño de las cosas; la estructura territorial,
de un modelo territorial sostenible. La que debe permitir la gradual disminución de la
consecución de tal modelo es indisociable de movilidad obligada, confiándola más hacia los
la OT”. La OT es una función que deben asumir sistemas colectivos que los individuales; y el
las Administraciones Públicas, orientadas a mantenimiento del espacio libre, normalmente
conseguir el DS y equilibrado de la sociedad como mejor opción para territorios de gran
mediante la previsión de sistemas territoriales congestión (Folch, 2003).
armónicos, funcionales y equilibrados capaces Si se considera aquello que ha venido a
de proporcionar a la población una calidad de denominarse como Nueva Cultura del Territorio
vida satisfactoria (Gómez Orea, 2007). (Tarroja, 2006), que hace referencia al desarrollo
La implementación del proyecto socio-ambiental del territorio, como una nueva
territorial sostenibilista, debe centrar su aproximación de base territorial al concepto de
atención en actuaciones de especial relevancia DS, en la que se destacan las esferas sociales y
funcional, con el objetivo de maximizar ambientales, en un mayor grado que la esfera
la eficiencia de sus inversiones. Por eso, económica, existen siete conceptos básicos
es conveniente poner el énfasis sobre los para el desarrollo socio-ambiental del territorio.

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Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

Estos son los siguientes: 1) caminar hacia una Esta realidad se genera por las características
estructura territorial articulada a través de que ofrece este tipo de suelo, es decir, mayor
una red policéntrica de sistemas urbanos que calidad (tejidos de baja densidad, entornos
se reproduzca a distintas escalas; 2) articular espacialmente amplios, ajardinados, incluso
un modelo urbanístico-territorial que evite la con interés paisajístico), menor coste del suelo,
dispersión y la fragmentación urbana; 3) una exigencias dimensionales, posibilidades de
nueva cultura de la movilidad; 4) una gestión implantación de instalaciones que requieran
prudente de los recursos ambientales, que de amplias zonas, equipamientos deportivos,
reduzca el impacto ecológico y la gestión de centros comerciales y recreativos, exigencias
la matriz de espacios abiertos y del paisaje; funcionales (alojamiento de actividades
5) la integración de las políticas de equidad y especialmente molestas o peligrosas), acciones
cohesión social en el modelo territorial; 6) la de tipo cultural o de estatus social, mayores
potenciación de los factores de competitividad expectativas de nivel de vida, o de políticas de
del territorio, como son el capital humano, el tipo fiscal.
social y el territorial; y 7) el establecimiento Para poder evitar la demanda de
de redes de gobernabilidad de las políticas suelo disperso no vale únicamente con
territoriales, basadas en la formulación establecer medidas restrictivas o limitativas
participativa, el diálogo y la gestión concertada. en el planeamiento. Es necesario partir de un
Por otra parte, si se consideran consenso social amplio, cosa que se puede
elementos más específicos de la PT, se puede conseguir cuando el planeamiento contribuya
indicar como por ejemplo Esteban (2006), a facilitar otras opciones espaciales que
destaca la necesidad de que los procesos pueden satisfacer algunos componentes de
de PT inicien dinámicas de contención de la esa demanda. Entre estos, se puede destacar la
dispersión urbana. En esta línea, resalta que el calificación de suficiente cantidad de suelo de
desarrollo urbanístico sostenible, dado que el desarrollo urbano con buenas condiciones de
suelo es un recurso limitado, comporta también conectividad con las áreas urbanas existentes,
la configuración de modelos que eviten la el asegurar buenos estándares de calidad
dispersión en el territorio. Las razones por las ambiental (refuerzo de espacios con vegetación
que la dispersión es un fenómeno negativo, y establecimiento de densidades medias), la
se centran en: 1) el incremento del consumo potenciación de la accesibilidad en transporte
de suelo; 2) la degradación del paisaje; 3) público para esos nuevos crecimientos urbanos,
el impacto sobre los ecosistemas naturales; y el propiciar la construcción de viviendas, en
4) la potencialización del uso del vehículo especial asequibles, en las áreas donde haya
privado; y 5) el encarecimiento de la dotación y o se prevea mayor proporción de puestos de
prestación de servicios. Resulta evidente pensar trabajo, y viceversa (Esteban, 2006).
que la dispersión se produce porque existe Desde este punto de vista de base
una demanda para acceder a ese tipo de suelo territorial, como nos apuntan Elorrieta et al.
más aislado o más periférico respecto de las (2016), la sostenibilidad está estrechamente
zonas puramente urbanas (centros urbanos). relacionada con la capacidad de carga del

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Planeamiento territorial sostenible

propio territorio, y puede entenderse como “el necesidades de crecimiento, sólo pueden
desarrollo acorde con los rasgos ambientales hacerse desde un enfoque territorial amplio.
del medio donde se plantean cambios en el También es imprescindible este enfoque para
uso del suelo. Esos rasgos ambientales incluyen valorar las mejores opciones de implantación
cuestiones del medio físico, pero también urbana en función de las condiciones físicas del
aspectos socioeconómicos y culturales” suelo disponible. El criterio de que cada plan
(Elorrieta et al., 2016, p. 152). municipal debe dar respuesta a la demanda
Si se tienen en cuenta todas estas interna de crecimiento del municipio, que
consideraciones planteadas en este apartado, se desprende de la legislación urbanística
el Plan se convierte un elemento fundamental actual, únicamente tiene sentido en casos
para procesos importantes como; la de municipios con disponibilidad de suelo y
participación y la concertación de los agentes al margen de fenómenos metropolitanos. El
socioeconómicos; la coordinación entre todos grado de continuidad del crecimiento urbano
los agentes, de forma particular entre los con las áreas existentes y las densidades del
numerosos organismos de la compartimentada mismo, sí son materia específica de los planes
administración pública; el establecimiento de la municipales, aunque dada la transcendencia
cultura de la previsión frente a la improvisación, territorial de estas decisiones cabe exigir
en una forma de hacer operativo el principio criterios coherentes en todo el ámbito
relativo a la función social de la propiedad; y territorial significativo, los cuales sólo pueden
finalmente, en un objetivo que permite orientar ser aportados por un planeamiento con la
los esfuerzos de todos en una misma dirección, suficiente amplitud (Esteban, 2006).
cuyos resultados sólo se manifiestan y perciben Desde una visión más práctica, si se
a medio plazo (Gómez Orea, 2007). toma en consideración las implicaciones de
En lo que respecta a la posición frente a los principios de la sostenibilidad en la PT,
las distintas modalidades de dispersión urbana, según el Libro Blanco de la Sostenibilidad
una de las cuestiones clave es conocer si a en el Planeamiento Urbanístico Español
través de los planes urbanísticos municipales (2010), el planeamiento urbanístico define un
se puede actuar eficazmente o se necesitan modelo y una estructura de ciudad sobre la
instrumentos de mayor ámbito territorial. En que posteriormente se instalan y desarrollan
relación con la dispersión y el crecimiento, los distintos usos urbanos. En este modelo,
además de las tres variables básicas, como son aspectos, como las tipologías edificatorias y
la localización, la morfología y la intensidad, su relación con los espacios abiertos como
resulta muy importante también identificar viario, espacios de convivencia, zonas verdes,
las necesidades de suelo y la aptitud de ese etc., la distribución de los distintos usos y
suelo en disposición de ser ocupado. Resulta su convivencia o separación de viviendas,
bastante claro que las consideraciones equipamientos públicos y privados, usos
sobre cuáles son los municipios con mejores terciarios e industriales). Así como su mayor
condiciones, por su población, usos urbanos o menor concentración en el espacio, pueden
y conectividad, para dar respuesta a las apoyar, e igualmente dificultar, determinados

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 743-763, set/dez 2016 753
Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

estilos de vida más o menos sostenibles. Por del presente artículo, la ambigüedad que rodea
supuesto, en las sociedades democráticas al concepto del DS, complica en gran medida
la decisión última debería corresponder a su aplicación práctica, en especial a la hora de
los ciudadanos particulares, pero es labor implementarlo en las políticas de actuación
de las administraciones públicas, tanto territorial. Por este motivo, resulta fundamental
desde el planeamiento como desde otros avanzar en la definición de criterios para poner
ámbitos de su competencia, fomentar los en marcha este tipo de políticas territoriales, tan
hábitos individuales más beneficiosos para la necesarias para alcanzar los ya mencionados
colectividad, y que se ofrezcan los incentivos objetivos del DS, haciendo especial referencia a
y desincentivos más apropiados para cada las escalas regionales y locales.
caso. Así pues, se ponen en juego una serie En los siguientes subapartados, tras
de elementos interrelacionados, como son: una minuciosa revisión bibliográfica, y con el
el territorio o soporte físico sobre el que objetivo de aportar una base teórica amplia que
funciona la ciudad, que ofrece un abanico de facilite la aplicación práctica de la Planificación
posibilidades de uso; la sociedad que hace un Territorial Sostenible, se definen de forma
uso específico del soporte del que dispone, y concreta los criterios que deben considerar. En
que incluye su modificación; y el metabolismo el primero de estos subapartados, los criterios
urbano, con su correspondiente consumo de se describen desde un punto de vista general,
recursos y producción de residuos. Por tanto, mientras que en el segundo, se realiza una
el planeamiento urbanístico está encargado aproximación más específica, dividida por
de conformar el soporte físico de la ciudad, ámbitos funcionales de actuación, con una
pero al hacerlo influye necesariamente en las mirada más localista.
otras dos esferas. Desde la conciencia de esta
capacidad de influencia pueden integrarse en
el planeamiento estrategias de sostenibilidad. Criterios generales

El objetivo principal para que la PT contribuya a


alcanzar el DS, tiene que pasar inevitablemente
Criterios de aplicación
por construir un modelo territorial sostenible.
práctica para la Planificación Para poder alcanzar dicho modelo territorial,
Territorial Sostenible se debe partir de la consideración de una
serie de principios o criterios generales, como
Debido al modelo socioproductivo dominante, elementos básicos para su consecución. A
el único modo de avanzar hacia territorios continuación se irán detallando aquellos que se
más sostenibles que permitan alcanzar y consideran más importantes.
mantener el bienestar de la población mundial, Una de las recomendaciones más
es tener presente la necesidad de planificar relevantes para alcanzar la sostenibilidad
adecuadamente el desarrollo territorial. Como es la de considerar el territorio como un
ya se ha indicado en el apartado introductorio elemento esencial para el desarrollo, teniendo

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Planeamiento territorial sostenible

que aceptar con ello su naturaleza sistémica El heteromorfismo territorial, entendido


y compleja (Folch, 2003). La políticas de PT como la g ran varie dad d e realidad e s
deben fundamentarse en buenas políticas de territoriales existentes en el planeta, necesita
gobernabilidad, basadas en la participación soluciones espaciales distintas, por lo que
ciudadana, el diálogo y la gestión concertada las políticas de PT deberán adaptarse a cada
(Tarroja, 2006). una de esas realidades y que se propicie
La PT, como política de intervención la flexibilización en la aplicación de sus
planificada previsible, debe valorarse como procesos (Folch, 2003). En esta línea, también
la mejor opción ante la posible evolución se deberá ayudar a conseguir el equilibrio
espontánea (imprevisible) en la transformación territorial, entendido éste como la igualdad
del territorio. En este sentido se reforzarán los de posibilidades entre territorios, con
criterios de igualdad, proporcionalidad y de independencia de la escala territorial a la que
mejora de las condiciones de calidad de vida se quiera hacer referencia (Carta Europea de
en general. (Pujadas y Font, 1998; Gómez Orea, la OT, 1983). Preservar los espacios naturales
2007; Noguera et al., 2011). Al mismo tiempo, heredados (Pujadas y Font, 1998), y conservar
las políticas de PT deben aplicarse desde las el territorio en su estado original debe
diferentes escalas territoriales (nacionales, considerarse siempre como la primera opción,
regionales y locales), mediante un desarrollo por lo que se tiene que justificar plenamente su
en cascada donde queden bien diferenciadas necesidad de transformación. El espacio libre
las estructuras correspondientes a cada nivel o espacio disponible es un bien a preservar
(Pujadas y Font, 1998; Gómez Orea, 2007; (Pujadas y Font, 1998; Folch, 2003; Esteban,
Noguera, 2009). También se debe partir de 2006; Farinós, 2006; Gómez Orea, 2007).
una concepción en la que se considere la La utilización racional del territorio
necesaria integración de las políticas de PT con y practicar una gestión responsable de los
las políticas de equidad y cohesión social, con recursos naturales en pro de la conservación de
el objetivo de evitar la exclusión de sectores los procesos ecológicos (Folch, 2003), así como
de la sociedad dentro del modelo territorial mejorar la calidad ambiental, a partir de tomar
acordado (Tarroja, 2006). como base sus principales vectores (aire, agua y
La aplicación de la PT tiene que partir suelo) se consideran elementos fundamentales
de la consideración inicial de los recursos (Gómez Orea, 2001). Del mismo modo, es
endógenos de cada realidad territorial local, igualmente muy importante desarrollar
para que se promuevan actividades acordes una buena gestión pública y coordinación
con los problemas, aspiraciones, actitudes y administrativa, traducidas éstas como el
aptitudes de su población (Gómez Orea, 2007). resultado de ejercicios de planificación integral
Los procesos de PT deben iniciarse desde y coordinación intersectorial e interterritorial
la implicación de las comunidades locales, (Gómez Orea, 2001; Farinós, 2006).
de modo que se movilice a sus agentes, y se En los ámbitos más urbanos o
facilite así el equilibrio territorial (Pujadas y metropolitanos, se tienen que tener en
Font, 1998; Benabent, 2006). cuenta algunos principios más específicos.

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Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

Este puede ser el caso de la asignación de específicos de aplicación. Este objetivo resulta
usos del suelo concretos y diferenciados en fundamental para la aplicación sostenible
función de las actividades desarrolladas por de la PT. Para que dicha aproximación pueda
el hombre y sus necesidades (Pujadas y Font, ser entendida con mayor detalle, en este
1998). La armonización de la ordenación apartado los criterios se clasifican por ámbitos
de los diferentes usos del suelo, a partir de funcionales. Estos ámbitos son los que se
un enfoque territorial amplio, en el que la consideran como los más relevantes para
escala local encaje con el conjunto de usos la implantación de actuaciones territoriales
establecidos en el área territorial superior en arraigadas en la escala local. A continuación, se
la que se integra (Esteban, 2006). Del mismo van describiendo los criterios específicos que se
modo, se debe intentar evitar la dispersión y la consideran más importantes.
fragmentación urbana (Tarroja, 2006; Esteban,
2006; Rojas et al., 2011), mejorar la calidad Suelo urbano y suelo urbanizable
de los entornos urbanos existentes y de las Para poder hacer frente a la dispersión
nuevas zonas urbanas anexas a esos mismos urbana y propiciar procesos de contención,
entornos urbanos ya existentes, con el objetivo resulta necesario evaluar las variables básicas
de equiparar sus condiciones de calidad, en asociadas a la planificación urbana. Estas son
comparación con las urbanizaciones aisladas la localización, la morfología y la intensidad
(dispersas) y de baja densidad (Esteban, 2006), de las propuestas urbanas, las necesidades
y, por último, disminuir la movilidad urbana de suelo y la aptitud de los suelos (Esteban,
obligada que esté necesariamente vinculada 2006; Utz et al., 2008; Rojas et al., 2011). En
a la utilización de medios de trasporte relación con lo anterior, también se considera
particulares (Folch, 2003). muy importante analizar las tipologías
Finalmente, desde esta aproximación edificatorias propuestas y su relación con
más general, destacar de nuevo la necesidad de los espacios abiertos planificados (viarios,
alcanzar el consenso del conjunto de agentes zonas verdes, corredores ecológicos) (OSE,
sociales en la toma de decisiones, mediante la 2009; Libro Blanco de la Sostenibilidad de la
consideración como punto de partida de los Planificación Urbanística Española, 2010). Por
procesos de participación ciudadana, en los que su parte, es igualmente necesario analizar la
la población pueda expresar sus necesidades, distribución (mezcla) de los usos del suelo, y su
siempre en beneficio del bien común (Gómez necesaria convivencia o separación, en función
Orea, 2007; Libro Blanco de la Sostenibilidad de sus características. Se considera como muy
de la Planificación Urbanística Española, 2010). relevante la coexistencia espacial de usos, en
especial de la mezcla de usos residenciales
Criterios específicos con usos funcionales o no residenciales útiles
por ámbitos funcionales (servicios públicos, comercio y otros), con el
objetivo de facilitar su integración espacial
La puesta en práctica de los criterios generales (Díaz et al., 2007; Utz et al., 2008; Salado et
indicados pasa por la definición de criterios al., 2008; Libro Blanco de la Sostenibilidad de

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Planeamiento territorial sostenible

la Planificación Urbanística Española, 2010; patrimonio cultural, entendido éste como los
Rojas et al., 2011). bienes de interés general que deben estar
Otro criterio fundamental, es el vinculado reconocidos con figuras de protección legal, es
a la valoración del grado de concentración otra de las claves a tener en cuenta para una
urbana propuesto, para garantizar un nivel sociedad sostenible y con arraigo cultural (Utz
mínimo de calidad ambiental urbana. Este et al., 2008; Salado et al., 2008).
elemento está directamente relacionado con la En lo que respecta a los nuevos espacios
intensidad de las propuestas y la planificación propuestos para el crecimiento de los entornos
de los espacios abiertos. Las densidades urbanos, por las necesidades de la población,
edificatorias son muy importantes, en el deben permitir un crecimiento permeable,
sentido que establecen los límites edificativos, que evite la formación de barreras y genere
y por tanto las capacidades máximas de un sistema de espacios abiertos continuos
albergar viviendas y en definitiva de población. (corredores verdes o infraestructura verde)
En este sentido resulta también importante el (Díaz et al., 2007; y Utz et al., 2008; CITMA,
grado de consolidación realmente aplicado, 2012). Evitar la ocupación de los nuevos
por cuanto marcará la densidad de ocupación crecimientos en zonas consideradas de riesgo
o de habitantes por sectores o zonas. Los (naturales y posibles riesgos tecnológicos),
niveles de masificación de la población urbana así como respetar las tierras de uso agrícola y
guardan una relación directa con el grado de forestal de interés o gran fertilidad, a efectos
cumplimiento de los parámetros de calidad de mantener los valores paisajísticos sin
ambiental urbana ya mencionados (Parrado, degradarlos y que se propicie espacios de
2001; Díaz et al., 2007; OSE, 2009; Libro transición entre el tejido urbano y los espacios
Blanco de la Sostenibilidad de la Planificación rurales, son otros criterios significativos (Utz et
Urbanística Española, 2010; Rojas et al., 2011). al., 2008; Rojas et al., 2011).
La optimización del suelo urbano
consolidado, la reutilización y renovación Suelo protegido
urbana, así como la recuperación de zonas En este ámbito, resulta importante mantener
degradadas y abandonadas, son otras claves los niveles de protección y la superficie de los
importantes. En esta línea también resulta espacios que previamente ya contaban con
significativo conocer la proporción de espacios algún nivel de protección espacial. De forma
urbanos destinados a equipamientos y a zonas singular se deben respetar las afecciones
verdes urbanas (espacios abiertos) de estos identificadas en los estamentos territoriales
espacios consolidados. Un criterio a seguir superiores, ya sean desde las instancias
sería tener una zona verde accesible en un Supranacionales (Unión Europea), de las
radio de 500 metros (Salado et al., 2008; Utz nacionales o de las regionales (Pujadas y Font,
et al., 2008; Libro Blanco de la Sostenibilidad 1998; Folch, 2003; OSG, 2007; Salado et al.,
de la Planificación Urbanística Española, 2010). 2008; Utz. et al., 2008; y OSE, 2009). Del mismo
Dentro del ámbito de actuación de los espacios modo, intentar identificar espacios merecedores
urbanos ya consolidados, la conservación del de protección de un interés especial en la escala

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Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

local, tanto por su arraigo social y cultural, como Calidad ambiental


por sus valores ecológicos, resulta fundamental. Se tiene que consideración de la calidad
Atención especial merecen aquellos usos de ambiental, en términos de calidad del aire, del
carácter agrario o agroforestal, en los que la agua y del suelo. En este sentido es importante
degradación de su mantenimiento y uso pudiera conocer tanto la capacidad de suministro de
tener importante repercusiones ambientales los recursos hídricos necesarios para los usos
(Gómez Orea, 2007; Rojas et al., 2011). planificados, como el sistema de gestión de
Otro criterio que se debe considerar aguas residuales resultantes del proceso de
en los suelos o espacios protegidos, son los utilización (Gómez Orea, 2007; Rojas et al.,
relacionados con el mantenimiento y mejora o 2011; CITMA, 2012). La calidad ambiental,
establecimiento de corredores ecológicos, que tiene igualmente una relación directa con el
doten de sentido a la planificación territorial. grado contaminación acústica de los espacios
También se deben incluir los espacios urbanos, del territorio que sufren un alto grado de
para la creación de un sistema de espacios de saturación. (Gómez Orea, 2007; CITMA, 2012).
abiertos infraestructura verde local y con una La gestión de los vertidos o desechos
correcta integración en las escalas territoriales urbanos es también una pieza clave. Es
superiores (Rojas et al., 2011; CITMA, 2012). necesario identificar espacios para el tránsito
y clasificación de los desechos. Estos sistemas
Ámbito social
requieren de una integración territorial superior,
Evaluar los procesos de participación pública
especialmente en los niveles comarcales/
desarrollados, mediante la consideración de
regionales, que se estiman como los más
los ciudadanos como agentes que toman
apropiados para estos menesteres, aunque no
decisiones sobre el espacio en el viven y el
deben quedar desconectados de sus sistemas
tipo de entorno donde quieren vivir. Resulta
territoriales superiores (Folch, 2003; Libro
interesante evaluar tanto la cantidad, como
Blanco de la Sostenibilidad de la Planificación
la calidad de los procesos realizados (Libro
Urbanística Española, 2010; CITMA, 2012).
Blanco de la Sostenibilidad de la Planificación
Urbanística Española, 2010; CITMA, 2012). Movilidad sostenible e infraestructuras
Si se entiende que la vivienda es un de transporte
derecho de todos los ciudadanos, es necesario En este ámbito funcional, uno los elementos
disponer de viviendas de carácter asequible más importantes a considerar, es el que tiene
para mejorar las condiciones de acceso al que ver con la identificación de las necesidades
conjunto de la población. Se deben considerar de movilidad diaria de la población, vinculadas
tanto la cantidad de viviendas de protección a los desplazamientos a los lugares de trabajo
oficial identificadas, como la localización de o de estudio, y en función del colectivo social
las mismas, con la idea de cumplir con los al que se pertenezcan. (Parrado, 2001; Díaz
objetivos de integración social y reducción de et al., 2007; OSG, 2007; Libro Blanco de la
la desigualdades sociales (Rojas et al., 2011; Sostenibilidad de la Planificación Urbanística
OSG, 2007; OSE, 2009). Española, 2010). Resulta también, muy

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Planeamiento territorial sostenible

importante analizar los parámetros de vital a considerar para propiciar políticas de


accesibilidad considerados, que deben primar desarrollo, no incorporar esta matriz de carácter
la implantación de sistemas de transporte biofísico en las fórmulas del desarrollo, sería un
públicos, a partir de una perspectiva territorial error de gran magnitud y de difícil resarcimiento.
de amplitud de miras, con la integración de En línea con este planteamiento, y como
los servicios en las escalas supralocales (Libro conclusión, resulta importante identificar
Blanco de la Sostenibilidad de la Planificación como protagonista principal de los procesos
Urbanística Española, 2010; y Rojas et al., de Planificación Territorial Sostenible, al
2011). Esta circunstancia lleva a la necesaria mencionado factor territorio, reconociendo su
integración de la movilidad y el transporte funcionamiento como un sistema, y en el que
público en la planificación de los usos de suelo el espacio libre debe ser un bien a preservar.
finalmente propuestos (Rojas et al., 2011). Así mismo, se tiene que destacar igualmente la
Para poder aplicar correctamente los necesidad de apostar por modelos de ciudades
criterios de movilidad sostenible definidos, es compactas, evitando la fragmentación y la
crucial contar con un buen conocimiento de dispersión urbana como factores clave para
la distribución espacial de la red de carreteras, mejorar los grados de sostenibilidad. En
la superficie ocupada y de su predisposición a estos espacios urbanos, resulta igualmente
ejercer de barreras ecológicas y ciudadanas. importante posibilitar la mezcla de usos
(Díaz et al., 2007; OSE, 2009; Rojas et al., residenciales con usos funcionales o no
2011). Por último, también resulta fundamental residenciales útiles (servicios públicos,
evaluar la distribución de los espacios comercio y otros), con el objetivo de facilitar su
especiales para la práctica del desplazamiento integración espacial.
o la movilidad personal sostenible. Cabe To d a s e s t a s p a u t a s o c r i t e r i o s,
destacar el papel de los carriles de bicicletas y contribuirán a la disminución de la movilidad
de peatones, con una clara diferenciación por urbana obligada, otro de los condicionantes
uso, para evitar accidentes.(OSG, 2007; OSE, más importantes en los parámetros de
2009; CITMA, 2012). insostenibilidad de las ciudades. Además,
también es crucial primar la permeabilidad
territorial para un mejor funcionamiento del
ecosistema natural y ofrecer una función más
Conclusiones sostenible a los espacios urbanos, mediante la
generación de sistemas de espacios abiertos
Como se ha podido observa a lo largo del que actúen de corredores verdes urbanos.
presente artículo, la Planificación Territorial Finalmente, hay que destacar la importancia
Sostenible resulta crucial para que nuestras de los procesos de gobernanza territorial y
sociedades afronten el reto del DS, y de forma la aplicación de procesos de participación
especial desde su interpretación en las escalas ciudadana para mejorar la concertación de las
regionales y locales. El territorio es un factor actuaciones y facilitar la participación pública.

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Adrián Ferrandis Martínez, Joan Noguera Tur

Adrián Ferrandis Martínez


Universitat de València, Instituto Interuniversitario de Desarrollo Local, Departamento de Geografía.
Valencia, Espanha.
adrian.ferrandis@uv.es

Joan Noguera Tur


Universitat de València, Instituto Interuniversitario de Desarrollo Local, Departamento de Geografía.
Valencia, Espanha.
joan.noguera@uv.es

Nota
(1) En realidad la mayoría de estos nuevos planteamientos parte de viejas propuestas que han sido
retomadas y reformuladas, como las teorías clásicas del estado estacionario o crecimiento cero,
entre otras.

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Texto recebido em 29/abr/2016


Texto aprovado em 21/ago/2016

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 743-763, set/dez 2016 763
O fim das favelas? Planejamento,
participação e remoção de famílias
em Belo Horizonte
The end of slums? Planning, participation
and removal of families in Belo Horizonte
Clarice de Assis Libânio

Resumo Abstract
Ao contrário do observado em várias partes do Unlike what has been observed in various parts
mundo, Belo Horizonte apresentou decréscimo no of the world, the city of Belo Horizonte has
número de favelas e de seus moradores, indicando presented a decrease in the number of slums and
intenso processo de remoção de famílias e desfave- their residents, which indicates an intense process
lização, levado a cabo pelo próprio Estado. Este ar- of removal of families, conducted by the State
tigo foca as políticas públicas e o planejamento pa- itself. The article focuses on public policies and
ra as favelas em Belo Horizonte nos últimos anos, planning for slums in Belo Horizonte in recent
apontando inflexão nas práticas governamentais years, showing that the governmental practices in
nas favelas, no sentido inverso das lutas dos movi- slums have moved in the opposite direction of the
mentos sociais e das conquistas históricas de suas social movements’ struggles and of the historical
populações: de um lado, na garantia do direito de achievements of their populations: first, regarding
permanência das famílias no local e, de outro, no the guarantee of the families’ right to remain at the
direito de participação cidadã. Se houve avanços place and, second, concerning the right of citizen
na consolidação urbanística das favelas e nos ser- participation. If progress has been made in the
viços públicos, a apropriação e o uso do espaço urban consolidation of slums and public services,
urbano como direito avançaram pouco, apesar da what least advanced was the appropriation and
Constituição Federal e do Estatuto da Cidade ga- use of urban space as a right, although the Federal
rantirem o direito à moradia como um dos direitos Constitution and the City Statute guarantee the
fundamentais, buscando-se a efetivação da função right to housing as a fundamental right, in an
social da terra urbana. attempt to fulfil the social function of urban land.
Palavras-chave: Belo Horizonte; favelas; remo- Keywords : Belo Horizonte; slums, removals;
ções; Vila Viva; gentrificação; direito à moradia; Vila Viva; gentrification; housing rights; citizen
participação cidadã. participation.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 765-784, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3707
Clarice de Assis Libânio

A segregação urbana não é um status quo inalterável, mas sim uma guerra social incessante,
na qual o Estado intervém regularmente em nome do “progresso”’, do “embelezamento”
e até da “justiça social para os pobres”, para redesenhar as fronteiras espaciais em prol
de proprietários de terrenos, investidores estrangeiros, a elite com suas casas próprias e
trabalhadores de classe média. (Davis, 2006, p. 105)

Introdução de ocupação irregular.3 Além disso, transborda


para os 33 municípios metropolitanos, uma
O artigo que ora se apresenta pretende refletir vez que não tem mais zonas de expansão ou
a respeito do direito à cidade e à participação terrenos a baixo custo para habitação popular,
cidadã, focando políticas públicas e ações de criando e adensando cidades-dormitório em
1 seu entorno, formadas por populações pobres.
planejamento para as áreas de favelas na ci-
dade de Belo Horizonte, em especial nos últi- Em linhas gerais, o texto defende que
mos anos. tem havido uma inflexão nas práticas governa-
A cidade de Belo Horizonte, capital do es- mentais nesses territórios, caminhando no sen-
tado de Minas Gerais, conta com cerca de 2,5 tido inverso das lutas dos movimentos sociais
milhões de habitantes (IBGE – Censo 2010 e e das conquistas históricas das populações aí
Contagem da população 2015), sendo a sexta residentes. Essa inflexão tem duplo caráter,
em população do País. Em sua Região Metro- notadamente no que se refere aos aspectos de
politana residem 5,5 milhões de pessoas, a ter- garantia do direito de permanência das famí-
ceira maior do País. lias no local e do direito de participação nas
Fundada em 1897, foi a primeira cidade decisões a elas afetas.
planificada do Brasil. Entretanto, junto com a Nesse sentido, percebe-se, na cidade, a
cidade, nasceram as favelas, visto que, no pla- configuração de um novo marco do planeja-
no original da nova capital, não havia setores mento urbano para as favelas, com o uso cres-
destinados à residência dos trabalhadores que cente das práticas de remoção de famílias para
a construíram. Com crescimento rápido e de- fins de obras públicas, tendo como consequên-
sordenado, em 1912 (apenas 15 anos depois da cias o agravamento dos processos de gentrifi-
fundação) já havia 60% da população vivendo cação e uma série de impactos de ordem social,
em zonas denominadas rurais ou suburbanas. urbana e econômica.
Em 1955, eram 36,4 mil pessoas nas favelas, Após apresentar as principais diretrizes
número este que chegou a 120 mil em 1965. e discutir as trajetórias das políticas públicas
Nos dias atuais, a Capital conta com para as favelas em Belo Horizonte, o artigo
mais de 450 mil pessoas vivendo nas favelas, traz um breve olhar sobre o Programa Vila
2 Viva e seu significado no contexto da cidade.
como se verá a seguir, em mais de 200 áreas

766 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 765-784, set/dez 2016
O fim das favelas?

Considerado como um dos projetos sustenta- da violência e a riscos associados às mudan-


dores da Prefeitura de Belo Horizonte – PBH, ças climáticas.
prevê em seu escopo a remoção de quase seis No caso específico das favelas, em pouco
mil famílias entre 2014 e 2017, atingindo os mais de um século de sua existência, é possí-
principais aglomerados da cidade. vel perceber que têm sido objeto de políticas
Com base no exposto, vale perguntar: no públicas que oscilam entre dois polos e suas
contexto da cidade empreendedora, estado e variantes: de um lado, concepções e propostas
mercado têm se aliado contra a população e que têm como foco e prioridade a retirada das
os cidadãos? Como as políticas públicas contri- famílias; e, de outro, projetos de melhorias das
buem nesse sentido? O objetivo implícito seria comunidades, garantida sua permanência no
o “fim” das favelas e de sua particular forma mesmo local.
de ocupação do espaço, jogando os pobres ca- Seguindo esse movimento pendular, em
da vez mais para a periferia? Belo Horizonte pode-se afirmar que até 1980
predominou uma visão “remocionista”, tendo
o desfavelamento como seu principal método
de ação nesses territórios. Nesse escopo, cita-
As políticas públicas -se a criação do Departamento de Bairros Po-
e as favelas: trajetórias pulares – DBP, em 1955,6 e da Coordenadoria
e experiências de Habitação de Interesse Social de Belo Ho-
rizonte – Chisbel, em 1971.7 Ambos os órgãos
O crescimento das favelas está historicamente entendiam as ocupações como problema de
ligado ao processo de urbanização, acelerado polícia e tinham na remoção de famílias seu fo-
no Brasil a partir das décadas de 1960-1970. co, buscando liberar as áreas centrais das cha-
Entretanto, vale lembrar que seu surgimento madas invasões, enviando para longe do centro
remonta ao final do século XIX, tanto no Rio de as populações que ali residiam.
4
Janeiro quanto em Belo Horizonte, onde as pri- Nas diversas administrações que se se-
meiras áreas faveladas se constituíram desde a guiram, entre 1971 e 1982 foram removidas
construção da nova Capital. quase 10 mil famílias assentadas em 422 áreas,
Em períodos mais recentes, a literatura totalizando cerca de 68 mil pessoas afetadas
aponta o agravamento da questão habita- (Lopes, 2010). Quando havia alguma com-
cional no País, muitas vezes impactada pelas pensação, predominavam as indenizações em
próprias políticas urbanas e suas prioridades dinheiro, em valores irrisórios, o que acabava
5
ao longo do tempo. De acordo com Marica- por contribuir para o adensamento de outras
to (2011, p. 76), “as cidades estão piorando favelas já existentes ou para o surgimento de
e muito”, já que as políticas de incremento do novas invasões.
consumo e de aceleração do crescimento (de- A década de 1980 mudou a visão sobre
sordenado) têm trazido graves crises urbanas, as favelas, principalmente pela ação dos movi-
relacionadas à mobilidade, à poluição ambien- mentos sociais. Importante, nesse sentido, foi a
tal, à ampliação da segregação, ao aumento invasão da Prefeitura (1981) pelo movimento

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 765-784, set/dez 2016 767
Clarice de Assis Libânio

de favelados, para que as favelas fossem reco- de particulares ou mesmo terras devolutas de
nhecidas. A partir desse momento, é possível propriedade da União e do Estado.
afirmar que a “era da remoção” foi substituída Durante os anos de 1990 e 2000, viu-
(temporariamente) pela “era da urbanização”, -se o processo participativo se fortalecer com
com a implantação do Programa de Desen- a Constituição Federal, o Estatuto das Cidades
volvimento de Comunidades – Prodecom, em e os novos instrumentos de planejamento ur-
1981 (GTZ/Seplan); da Lei do Programa Muni- bano. Aprofundaram-se as ações em favelas,
cipal de Regularização de Favelas – Profavela, em direção a uma visão do direito à cidade e
8
em 1983, e na criação da Companhia Urbani- da necessidade de se trabalhar de maneira in-
9
zadora de Belo Horizonte – Urbel em 1986. tegrada as intervenções no território, casando
A visão dominante, bem como a orienta- urbanização, regularização fundiária, serviços
ção dentro do poder público, passa a ser a da públicos, programas de acesso a trabalho e
necessidade de se reconhecer esses territórios renda e fortalecimento da organização e da
como parte integrante da cidade e que deve- participação comunitária em todo o processo.
riam ser consolidados do ponto de vista tanto Essa visão “estrutural” teve seu marco inicial
urbanístico quanto jurídico. De fato, é possível com o Programa Alvorada (PBH/Urbel/AVSI)11
afirmar que houve avanços significativos nes- e culminou na obrigatoriedade de elaboração
se período, com a mudança de paradigmas nas dos Planos Globais Específicos – PGE antes da
políticas públicas para favelas. Ao contrário das realização de qualquer intervenção em áreas
visões remocionistas, higienistas e civilizatórias decretadas como Zonas de Especial Interesse
até então em voga, construiu-se, com o apoio Social – Zeis 1.
da Igreja e mobilização dos movimentos so- Apesar de seus avanços, a chamada in-
ciais, uma visão da importância de se manter tervenção estrutural foi atropelada por uma sé-
as famílias em seu local de moradia, garan- rie de fatores que ainda merecem maior apro-
tindo o direito de permanência (regularização fundamento e análise. Entre estes se pode citar:
fundiária) e melhorando as condições de vida falta de agilidade na implementação das ações,
nesses locais (urbanização). especialmente considerando que cada uma
A partir do início da década de 1990,10 das obras precisava ser aprovada no orçamen-
a Urbel concentrou sua ação apenas na urba- to participativo, em anos sucessivos; pequena
nização de favelas, diminuindo drasticamen- escala para atendimento ao grande número de
te sua atuação na legalização de terras, uma favelas existentes na cidade; falta de recursos
vez que não restavam mais terrenos públicos ou de vontade política das diversas administra-
municipais para regularizar. Assim sendo, no ções que se sucederam à frente da Prefeitura e
cômputo geral, é possível afirmar que, em Be- da Urbel nesse período. Como resultado, pode-
lo Horizonte, avançou-se mais na urbanização -se perceber a fragmentação das intervenções,
do que na regularização fundiária, visto que o descompasso entre o que foi previsto e o que
havia poucas áreas de domínio da Prefeitura foi realizado, o desvio progressivo das concep-
de Belo Horizonte, não se implantando um ins- ções originais dos PGEs e, em alguns casos,
trumento eficaz para a regularização de áreas até mesmo a completa desconsideração das

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O fim das favelas?

demandas da população residente em cada de integração viária e mínimo investimento na


área trabalhada. real melhoria das comunidades atingidas.
Infelizmente, nos últimos 10 ou 15 Conforme “Manifesto Vila Viva ou Vila
anos,12 a cidade tem visto o retrocesso da Morta?”, o programa vem realizando a “des-
atenção integrada e participativa nas favelas. favelização forçada”, “orientada pelo interesse
A prática do desfavelamento, ainda que não do capital imobiliário”, prevalecendo “a lógica
assumida como filosofia e prioridade, vem sen- da exclusão urbana levada às últimas conse-
do realizada com grande frequência pelo po- quências pela Prefeitura de Belo Horizonte”
der público na capital e região metropolitana. (Movimentos Populares, 2008, p. 1). A crítica
Inicialmente essas práticas foram incrementa- vem principalmente do fato de que estão sen-
das com a criação do Programa de Reassen- do retiradas das comunidades muitas famílias,
tamento de Famílias em Decorrência de Obras das quais apenas pequena parte é reassentada
Públicas ou Vítimas de Calamidades – Proas, no próprio local e, ainda assim, em unidades
estendendo-se para as obras de implantação verticais com duvidoso padrão habitacional e
das propostas dos novos PGEs, que acabam tipologia inadequada para a reprodução da fa-
por trazer de volta o fantasma da Chisbel e do mília (impossibilidade de expansão) e de sua
desfavelamento. subsistência (impossibilidade de realização de
Vêm sendo executadas várias interven- atividade produtiva ou para consumo alimen-
ções com significativo número de remoções, tar próprio).16
que privilegiam as grandes obras, especial- À maioria dos removidos, tendo recebido
mente para implantação de eixos viários de in- indenizações insuficientes para adquirir imó-
13
tegração urbana. É importante perceber que veis impactados pela especulação imobiliária,
as ações de remoção de famílias na cidade pa- resta a compra de casas em regiões distantes
recem não ser contingentes, mas cada dia mais do centro, em municípios na periferia da Re-
indicam a tendência e o pensamento que vem gião Metropolitana de Belo Horizonte, sem
norteando as políticas urbanas. Entre 1995 e infraestrutura adequada e longe das fontes de
2005, foram realizadas 2.866 remoções em vir- trabalho e de renda. Ao contrário da filosofia
tude de obras públicas na cidade, ao passo que original das intervenções estruturais, que de-
somente no ano de 2006 esse número foi de ram origem aos PGEs e mesmo ao Programa
14
2.133 famílias removidas (Lopes, 2010). Vila Viva, os movimentos apontam que a favela
No ano de 2009, foi criado pelo então não é pensada como um todo integrado para
prefeito Fernando Pimentel15 o Programa Vila o benefício de seus cidadãos. Ao contrário, na
Viva, trazendo em sua concepção o objetivo era do “desfavelamento de novo tipo” (Lopes,
(evolucionista) explícito de transformar a fa- 2010), a favela agora é uma área que atrapalha
vela em vila (através de sua urbanização) e, a cidade e está no caminho do desenvolvimen-
depois, em bairro (através da regularização to, sendo necessário, portanto, ser removida
fundiária). Entretanto, os movimentos sociais como qualquer outro entrave à modernização.
têm denunciado o uso indevido do Programa, Nesse sentido, é importante questio-
com grandes investimentos focados em obras nar se está havendo um retrocesso em Belo

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Clarice de Assis Libânio

Horizonte, que lança por terra as lutas de déca- (direito) de permanência em seus locais de
das, as conquistas e os avanços dos movimen- moradia e a garantia (direito) de participação
tos sociais, ou, simplesmente, se a Lei do Pro- na tomada de decisões que lhes afetam dire-
favela e as intervenções estruturais não foram, tamente. A seguir cada uma dessas inflexões
ao contrário, um pequeno hiato temporal na será discutida.
prática remocionista e higienista que se man-
tém na cidade.
Direito à moradia e garantia
de permanência
As duas inflexões no caso
Em primeiro lugar, faz-se necessário refletir
de Belo Horizonte: garantia
que, de fato, tanto no Brasil quanto em escala
de permanência e garantia mundial, as práticas remocionistas não foram
de participação totalmente eliminadas, em nome de uma su-
posta tendência urbanizadora das comunida-
Não será possível, no âmbito deste artigo, des periféricas. O que se vê é que ambas as
concluir se afinal o que está havendo é um posturas são conviventes no tempo e mesmo
retrocesso ou apenas a retomada das tradi- no espaço e se alternam, de acordo com os in-
cionais práticas remocionistas e higienistas na teresses da hora e da vez.
cidade, informadas e sustentadas por novos Ao que tudo indica, a situação vivida
discursos. O fato é que houve uma inflexão atualmente em Belo Horizonte não é um caso
nas políticas públicas para as favelas, que de- isolado. Ao contrário, desde o anúncio de que
ve ser apontada. o País seria sede da Copa do Mundo de 2014
Ao final, entende-se que tem sido perdi- e das Olimpíadas de 2016, várias cidades bra-
do o direito à cidade, nos termos de Lefebvre sileiras assistiram a uma escalada de remoções
(2001), entendido não apenas como o direito em virtude de grandes obras. É importante
de acesso à infraestrutura e aos serviços urba- destacar que tais obras apenas intensificaram
nos, mas antes, e principalmente, como o direi- um movimento que já vinha sendo sentido an-
to à vida urbana, à centralidade renovada, aos teriormente, não podendo, portanto, ser-lhes
locais de encontro e trocas, à festa, ao poder, à atribuída responsabilidade exclusiva.
riqueza, ao uso pleno e inteiro do espaço urba- Na declaração “O que é a Favela Afi-
no e à tomada de decisões. Nessa perspectiva, nal?”, fruto de seminário conduzido pelo Ob-
percebe-se um significativo hiato entre o con- servatório de Favelas do Rio de Janeiro (2009),
ceito de direito à cidade e sua efetivação. a fragilidade das favelas e de seus moradores
A inflexão percebida em Belo Horizon- na garantia de seus direitos aparece em mais
te – e que também é sentida em outras par- de uma passagem; é vista como território onde
tes do País – parece ter dois elementos cen- as políticas e as ações do Estado são incom-
trais. Os moradores das favelas têm perdido pletas, a soberania da população é baixa e os
duas garantias ao mesmo tempo: a garantia direitos sociais não são efetivados.

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O fim das favelas?

A regularização fundiária tem sido vista tanto social quanto urbano e mesmo eco-
apontada por diversos autores como um dos nômico. Entre diversos outros, citam-se como
elementos mais importantes na garantia do impactos da remoção de famílias:
direito de permanência das famílias morado- ● do ponto de vista social: desagregação das
ras de favelas. Em seu oposto, a falta de ga- relações de parentesco e vizinhança e, conse-
rantia legal da propriedade tem facilitado a quentemente, dos mecanismos de proteção
violação dos direitos dos moradores e aumen- social contra as principais vulnerabilidades das
tado sua vulnerabilidade quando sob ameaça famílias (inclusive a segurança);
de remoção. ● do ponto de vista urbano: sobrecarga das
Conforme bem apontam Fernandes e redes de abastecimento de água, esgotamento
Pereira (2010), no caso de Belo Horizonte tem sanitário, drenagem e energia elétrica nos lo-
havido dois graves movimentos. De um lado, a cais de destino; impactos sobre o atendimento
precariedade dos processos de regularização já precário dos serviços de transporte e mobili-
fundiária, que até o momento atingiram núme- dade urbana, saúde e educação, entre outros;
ro pequeno de famílias beneficiadas, agravan- ● do ponto de vista econômico: desestru-
do a insegurança com relação à posse da terra turação das alternativas de empregabilidade
e à permanência no local. E, de outro, a visão das famílias, notadamente a proximidade com
arcaica, restritiva e arbitrária da Prefeitura de os locais de emprego; aumento dos custos de
Belo Horizonte, agravada pela utilização de deslocamento e, consequentemente, redução
recursos do Programa de Aceleração do Cres- das chances de empregabilidade e aumento
cimento – PAC para a urbanização de favelas, do desemprego.
com uma visão remocionista, impactando gra- Em suma, tem-se, como resultado, a am-
vemente as comunidades (notadamente da zo- pliação da segregação social no espaço urbano,
na sul e áreas centrais) e contribuindo para os uma vez que são adotados como padrão de im-
processos de expulsão velada e gentrificação plantação os grandes conjuntos habitacionais
na cidade. distantes das áreas centrais, modelo este que já
De fato, a expulsão dos pobres das áreas mostrou sua precariedade em outras experiên-
“nobres”, até então desconsideradas pelo ca- cias (por exemplo: Cidade de Deus – Rio de Ja-
pital imobiliário, tem sido processo constante neiro; Cingapura – São Paulo).
e que vem se intensificando no Brasil, apoiada No caso das favelas de Belo Horizonte, o
17
pela ação dos poderes públicos. Os principais mesmo processo tem sido levado a cabo pelo
argumentos para a remoção das favelas têm Programa Vila Viva, afetando negativamente as
sido para implantação de melhorias urbanas, famílias removidas, tanto as que recebem inde-
integração viária, favorecimento da convivên- nizações e vão cada vez mais para longe quan-
cia na cidade com a implantação de parques to as que ficam nos prédios construídos na
lineares e áreas de lazer, benefício coletivo, o própria comunidade. À expulsão pelo mercado
bem comum, etc. soma-se a expulsão pelo Estado. Os moradores
Nesse processo, grandes impactos vêm têm perdido seus direitos diante de uma inter-
sendo gerados e desconsiderados, do ponto de pretação da lei que os considera “ocupantes

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Clarice de Assis Libânio

de má-fé” (ver Fernandes, 2008 e Fernandes e aumento no número de favelas e áreas ocupa-
Pereira, 2010). das, bem como, e principalmente, de adensa-
De acordo com Davis (2006), em todo o mento das áreas já existentes, aumentando-se
mundo há processos em andamento de remo- o número de famílias e de pessoas residentes
ção dos “entraves humanos”, e as práticas re- nesses locais.
mocionistas continuam acontecendo em escala Entre 2000 e 2010, por outro lado, rela-
global e ampliadas em todo o Terceiro Mundo. tório da ONU-Habitat (2010) aponta que hou-
“Em consequência, os pobres urbanos são nô- ve mudanças relevantes, no sentido de melho-
mades, ‘moradores transitórios num estado ria das condições de vida nas favelas em todo
perpétuo de realocação’” (ibid., p. 106). Em pa- o mundo, o que indicaria que “os governos
ralelo, vem sendo registrado o crescimento das conseguiram superar de forma coletiva a Meta
áreas de pobreza urbana em todo o mundo, le- 7 do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio
vando a perspectivas de um futuro preocupan- em pelo menos 2,2 vezes e 10 anos antes de
te para as megacidades: 2020, o prazo final estabelecido” (p. 6). Tal
melhoria, entretanto, não foi suficiente para
[...] em vez de feitas de vidro e aço, como
conter o avanço demográfico em tais territó-
fora previsto por gerações anteriores de
rios informais, que tiveram sua população am-
urbanistas, serão construídas em grande
parte de tijolo aparente, palha, plástico pliada de 776,7 milhões em 2000 para 827,6
reciclado, blocos de cimento e restos de milhões em 2010. Conforme o citado relatório,
madeira. Em vez das cidades de luz arro- “os esforços para reduzir o número de morado-
jando-se aos céus, boa parte do mundo
res de favelas não são nem satisfatórios nem
urbano do século XXI instala-se na mi-
adequados” (p. 10).
séria, cercada de poluição, excrementos
e deterioração. Na verdade, o bilhão de Apesar de os estudos indicarem a ten-
habitantes urbanos que moram nas fave- dência de crescimento do número absoluto de
las pós-modernas pode mesmo olhar com moradores em favelas no mundo,18 no caso
inveja as ruínas das robustas casas de
brasileiro foi registrado decréscimo na popula-
barro de Çatal Huyuk, na Anatólia, cons-
ção favelada na última década, em termos tan-
truída no alvorecer da vida urbana há 9
mil anos. (Ibid., pp. 28-29) to percentuais (10,38% em relação à popula-
ção total) quanto absolutos (cerca de 3 milhões
Ainda que a situação das favelas brasi- de pessoas a menos morando em favelas). Tal
leiras não seja tão alarmante, em sua maioria, mudança é atribuída à implantação de políticas
como as estudadas pelo autor na África, Ásia sociais, econômicas, urbanas e habitacionais
e partes da América Latina, por exemplo, tam- nos governos Lula (PT – 2002-2010) e Dilma
bém vem apresentando crescimento desorde- (PT – 2011-2016), em paralelo à redução das
nado e, em consequência, perda da qualidade taxas de natalidade e migração rural-urbano.
de vida em alguns locais, conquistada a du- Também em Belo Horizonte os dados da
ras penas. No caso brasileiro, estudos do final PBH apontam um decréscimo no número de fa-
da década de 1990 (ver, por exemplo, PBH/ velas e de seus moradores. Entretanto, a hipó-
Ceurb/UFMG, 1999) indicaram processo de tese aqui é que tal redução está condicionada

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O fim das favelas?

não apenas pelos motivos acima apontados no de um lado, o legalismo liberal, hegemônico,
caso brasileiro, mas também, e principalmente, individualista, mercantilista e patrimonialista;
por um contínuo e intenso processo de remo- e, de outro, movimentos que afirmam o direi-
ção de famílias e de políticas de desfavelização. to à cidade e a função social da propriedade.
Segundo dados oficiais da Urbel/PBH, No presente momento do pêndulo das políticas
em 2002 a cidade tinha 232 vilas, favelas e públicas na cidade, a visão legalista e patrimo-
conjuntos habitacionais implantados pela PBH nialista tem triunfado.
(incluindo Zeis 1 e Zeis 3), com 498.656 pes-
soas residentes em 121.132 domicílios, o que
correspondia a 22% dos habitantes da Capi- Direito à tomada de decisões
tal. Já os dados para 2012 apontam que são e participação cidadã
215 áreas (17 a menos), 451 mil habitantes
(47 mil a menos) e apenas 19% do total da Quanto à segunda inflexão percebida em Belo
cidade. Em que possam pesar diferenças de Horizonte, relacionada ao direito à participação
metodologia para apurar o número total de dos moradores nas decisões que lhes afetam
habitantes nas favelas, não é possível mais diretamente, o que se tem visto, segundo apon-
negar que o desfavelamento causou impacto e tado pelo movimento popular, é a completa fal-
tem sido usado como instrumento da política ta de diálogo e de respeito às demandas dos
pública na Capital. moradores. Muitas vezes a população é somen-
Se, por um lado, houve avanços, no res- te chamada para validar decisões que já foram
tante do País e em Belo Horizonte, no que se tomadas, sem consulta prévia ou consideração
refere à consolidação urbanística das áreas de de suas prioridades ou sugestões.
favelas, ao provimento de infraestrutura ur- Alguns autores avaliam que as próprias
bana, ao saneamento e aos serviços públicos; regras da democracia representativa contri-
por outro, “[...] o item no qual menos se avan- buem muitas vezes para inibir a participação
çou foi justamente o que coloca em questão real dos cidadãos nos governos e nas políticas
a presença da favela nas cidades, a apropria- públicas.19 Seja pela apropriação do Estado
ção e uso do espaço urbano em seu conjunto pelo poder econômico e/ou pelas elites, seja
como direito social” (Observatório de Favelas, pelo esvaziamento do próprio sentido da coisa
2009, p. 16). pública, vê-se muitas vezes o afastamento de
Finalizando esta discussão, é fundamen- indivíduos e grupos sociais das esferas de de-
tal lembrar que tanto a Constituição Federal de cisão e de poder coletivo. Para Daniel (1988),
1988 quanto o Estatuto da Cidade, aprovado no Brasil o esvaziamento da participação na
em 2001, incluem o direito à moradia como tomada de decisões não é recente, ao contrá-
um dos direitos fundamentais, buscando-se, rio, visto que os governos militares, através das
ademais, a garantia da efetivação da função restrições à liberdade de expressão e de asso-
social da terra urbana. Nesse sentido, Fernan- ciação, levaram à despolitização da sociedade
des (2008) aponta que há um embate de déca- e transformaram o próprio Estado em instância
das no Brasil entre dois paradigmas jurídicos: puramente administrativa.

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Clarice de Assis Libânio

A Constituição Brasileira de 1988 buscou participativas. Entretanto, na prática, ainda pre-


reverter o afastamento da população do fazer dominam os interesses das elites e dos setores
político e introduziu, em seu artigo primeiro, o médios na elaboração dos planos, com baixa
modelo que mescla representação e ação dire- participação dos setores populares, que não
ta do cidadão, fortalecendo os movimentos so- conseguem contemplar suas demandas nas
ciais e ampliando os espaços de participação. agendas da política urbana.
Entretanto, ainda que as instâncias de partici- No caso de Belo Horizonte, a participa-
pação tenham sido ampliadas, não há consen- ção direta foi sendo gradativamente substi-
so e garantias de que a democracia participa- tuída pelas decisões colegiadas, através dos
tiva predomine e caminhe rumo a maior auto- conselhos de políticas públicas, bem como por
20
nomia da população. Nesse sentido, vê-se a mecanismos de consulta pontual à população,
descaracterização de processos participativos, notadamente o Orçamento Participativo – OP e
cooptação, esvaziamento e desqualificação o OP digital. Mesmo nos casos em que se espe-
das competências das populações na tomada ra a participação direta do cidadão, como o das
de decisões. Além disso, há uma recusa formal conferências e dos fóruns, não há um trabalho
de partes da população em participar do jogo prévio de informação e instrumentalização da
político e de suas regras, o que se traduz no população para que possa se apropriar dos
21
absenteísmo às eleições, no repúdio público, conteúdos e processos e exercer de forma au-
nos meios de comunicação, às instâncias de re- tônoma seu direito à voz e ao voto.
presentação e nas práticas de mobilização co- O que se vê é a incorporação do discur-
letiva via redes sociais e tomada das ruas pelos so da participação em todas as esferas, sem
movimentos (organizados ou não). significar verdadeiramente um caminho rumo
Outro processo é o escalonamento na ca- à emancipação do cidadão como sujeito de
pacidade de influenciar decisões, condicionado direitos. O Plano Plurianual de Ação Gover-
à estratificação socioespacial. Para Santos Jú- namental – PPAG 2014-201722 reafirma a su-
nior (2008), a segregação espacial nas cidades premacia da participação no planejamento da
(fruto da desigualdade) é fator determinante cidade, realçando que essa é (ou deveria ser) a
para a segregação da participação, fragiliza- base de todas as ações desenvolvidas pela ad-
ção do tecido associativo e, finalmente, para a ministração municipal.23
“repartição do espaço político brasileiro entre Realça-se, ainda, que alguns mecanismos
hipercidadãos e subcidadãos” (Santos Júnior, considerados como exemplos bem-sucedidos
2008, p. 150). Apesar de crítico quanto à su- de incorporação de demandas da população
pervalorização dos planos diretores como ins- através da participação direta apresentaram
trumentos de mudança, considera que os me- redução de sua importância em Belo Horizonte
canismos de planejamento trouxeram ganhos, nos últimos anos. Exemplo é o Orçamento Parti-
como a incorporação das demandas populares cipativo, implantado em 1993 na administração
na agenda de discussão; a instauração de uma de Patrus Ananias,24 que vem sofrendo críticas,
nova concepção de planejamento, focado na entre elas: a excessiva tecnicização e burocrati-
participação popular; e a criação de instâncias zação dos processos de escolha de prioridades,

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O fim das favelas?

limitando, direcionando e até inviabilizando as de políticas públicas, não há trabalho prévio de


demandas da população; a disponibilização de informação e instrumentalização da população
pequeno percentual do orçamento para as de- para que possa se apropriar dos conteúdos e
cisões via OP (em média 3% da arrecadação); a processos e exercer de forma autônoma seu
morosidade e atrasos na execução das obras; e direito à voz e ao voto. Ao final, são tomadas
a criação do OP Digital, esvaziando ainda mais decisões sem se saber em que se está votando,
as esferas de participação da comunidade. conforme depoimentos dos próprios moradores
Outro processo verificado foi a institucio- participantes desses encontros.
nalização da prática participativa e do controle Em especial, quando se trata das inter-
social, sendo a interferência direta dos cida- venções urbanas nas comunidades de baixa
dãos fortemente direcionada para os conse- renda, reafirma-se que houve retrocesso nos
lhos de políticas públicas, que hoje são 23 na últimos anos nos espaços de decisão e parti-
cidade, além dos nove conselhos tutelares, um cipação dos moradores. Ao analisar as obras
para cada regional. Avritzer (2010) aponta pro- da Linha Verde, Lopes (2010) mostra que a co-
blemas nas instâncias colegiadas em Belo Ho- munidade não foi consultada nem quanto aos
rizonte, principalmente: o monopólio da repre- objetivos dos projetos, nem quanto aos meios
sentação (indicação dos membros dos conse- para atingi-los. De fato, foi feita a mera apre-
lhos por entidades); a predominância de idosos sentação de decisões já tomadas para que a
e aposentados (que têm tempo para participar) população as validasse; uma “participação
nos conselhos; a especialização da representa- orientada”, direcionada para objetivos do po-
ção (pessoas que se tornam “profissionais” em der público e sem espaço para que se alteras-
serem conselheiros); a baixa intersetorialidade sem os rumos do projeto.
entre os conselhos/políticas; as fragilidades da Rolnik (2012) aponta situação semelhan-
capacitação dos conselheiros para exercer seu te ligada aos grandes projetos nas favelas em
papel; e a falta de estrutura dos conselhos para outros locais do País. Segundo ela,
funcionamento mínimo, entre outros.
Finalmente, quando recursos públicos
No caso das intervenções em favelas,
vultosos estão disponíveis para investi-
tem-se adotado um modelo consultivo, com a mentos na urbanização das favelas do
criação de instâncias e de momentos de ouvi- país – com o PAC das favelas –, o que se
doria das demandas da população, sem que se observa é a desconstituição dos processos
traduza em real poder de decisão dos cidadãos e fóruns participativos, uma geografia se-
letiva de favelas a serem urbanizadas e
na condução da coisa pública. Ao contrário,
[...] processos massivos de remoção em
são frequentes os embates entre a Prefeitura decorrência da implementação de pro-
e a sociedade civil, que tem buscado o apoio jetos e obras, muitas vezes com uso da
e a interferência do Ministério Público para violência. Mais grave ainda é o generali-
garantir espaços mínimos de discussão e revi- zado não reconhecimento por parte das
autoridades municipais – dos juízes, pro-
são de decisões tomadas unilateralmente pela
motores e procuradores envolvidos – da
administração. Mesmo nos casos em que se regularização fundiária como um "direi-
convocam assembleias, conferências e fóruns to" dos moradores, tratando o tema como

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 765-784, set/dez 2016 775
Clarice de Assis Libânio

"questão social" e, portanto, dependente da prática política que é possível realizar essa
da discricionariedade e, na maior parte transformação rumo à emancipação social dos
dos casos, do não equacionamento des-
indivíduos. Para tanto, além das condições es-
se direito através da implementação de
truturais e legais para o exercício do jogo de-
alternativas sustentáveis à remoção. (Rol-
nik, 2012, p. 92) mocrático, é necessário que os diversos atores
em convivência na cidade tenham ativos, ca-
Por outro lado, Santos Júnior (2008) é pitais de diversas ordens que lhes permitam
otimista ao constatar que parte importante das participar e influir nesse jogo, para além dos
lideranças que participam nos conselhos e de simulacros de participação vazia e que já não
outras instâncias formalizadas também integra mais convencem ninguém.
os movimentos sociais, em suas diversas mo-
dalidades de luta e ativismo. Nessa perspecti-
va, resta uma esperança de que a participação Empreendedorismo urbano
também se construa nas cidades através da
ação cotidiana dos cidadãos, para além das
e a “Nova Belo Horizonte”:
instâncias formalizadas e do aparato burocrá- estado e mercado juntos
tico e administrativo que acabam por impedir, contra a população
mais do que favorecer, a inclusão dos pobres e os direitos de cidadania?
na política urbana.
Em Belo Horizonte, tem-se avançado Nesse contexto, é possível afirmar que plane-
para novas formas de ativismo, através dos re- jamento urbano no Brasil já nasceu sob a égi-
centes movimentos de rua (Jornadas de Junho, de do embelezamento e do melhoramento das
2013), que recolocam no centro das discussões cidades, sob inspiração do urbanismo europeu
o direito à cidade, à participação e à tomada de (leia-se francês) (Maricato, 2000). Apesar de
decisões. Trazem como estratégia, entre outras, não ser novidade na vida das cidades o plane-
a ocupação dos espaços públicos e o uso da jamento estruturado sobre os desejos de em-
cultura como mote para a retomada da cida- belezamento e de civilização das elites, novas
dania e da sociabilidade nos espaços urbanos tendências vêm se impondo no contexto das
(Libânio, 2015). cidades mundiais.
Finalizando com Harvey (2013, p. 1), “o Castells e Borja (1996) apontam o prota-
direito à cidade é [...] um direito de mudar a gonismo econômico como uma das principais
nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é ferramentas para a sobrevivência das cidades
um direito coletivo, e não individual [...]”.Ao na sociedade globalizada. Para eles, o governo
final, espera-se que o direito à cidade signifi- municipal deve ser empreendedor, tomando co-
que, de fato, a capacidade de os indivíduos e de mo norteadores seu planejamento estratégico
grupos sociais incidirem nas políticas, a efetiva e o “plano de futuro” para a cidade. Reforçam
participação nas decisões que lhes afetam dire- a tese de que os governos (principalmente em
tamente na gestão pública do território. Se o ci- âmbito local) podem (e devem) agir na cidade
dadão não nasce, faz-se; é através do exercício por conta própria, fazendo eles mesmos – ou

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O fim das favelas?

através de concessão ou associação com a ini- uma visão administrativista das cidades para
ciativa privada – grandes obras, empresas mis- outra empreendedora.
tas, investimentos tecnológicos, etc. Para ele, o empreendedorismo urbano
O protagonismo urbano – a cidade em- tem como pano de fundo as crises econômi-
preendedora – teria principalmente dois ob- cas mundiais, bem como a alta mobilidade do
jetivos: a) seu posicionamento no mercado capital multinacional, liberto das barreiras es-
mundial, atratividade, competitividade; e b) o paciais para as decisões locacionais. Nesse pa-
bem-estar dos cidadãos, gerando maior qua- norama, cidades passam a disputar entre si os
lidade de vida. De acordo com os autores, as capitais, empresas e consumidores individuais,
grandes cidades devem responder a cinco tipos oferecendo, cada qual, diferenciais competiti-
de objetivos: nova base econômica, melhoria vos, inicialmente relacionados a infraestrutura
da infraestrutura urbana, qualidade de vida, in- e serviços urbanos, além de benefícios econô-
tegração social e governabilidade. Somente ge- micos, fiscais e outros subsídios aos empreen-
rando uma capacidade de resposta a esses pro- dimentos produtivos.
pósitos, elas poderão, por um lado, ser compe- Diferentemente da visão apresentada por
titivas para o exterior e inserir-se nos espaços Castells e Borja, Harvey afirma que a ênfase no
econômicos globais; e, por outro, dar garantias empreendedorismo tem trazido graves conse-
a sua população de um mínimo de bem-estar quências (tanto em âmbito macroeconômico
para que a convivência democrática possa se quanto territorial e social, por exemplo), entre
consolidar (ibid.). outras: o desenvolvimento desigual do terri-
Os principais desafios seriam no sentido tório; o empobrecimento da população local
da modernização da infraestrutura urbana, da (criação de uma “subclasse”); a oneração das
criação de centralidades e de espaços públi- administrações (poder público assume os riscos
cos qualificados e da geração de competiti- e ônus do investimento); e, por fim, a própria
vidade econômica. Nesse sentido, os autores instabilidade do sistema urbano.
apontam a necessidade de mais autonomia Em suma, o empreendedorismo urbano
municipal; implantação de novas formas de traria uma solução temporária e perversa para
gestão; ação baseada na inovação; reforma o crescimento das cidades, em especial porque
política e administrativa. o próprio processo de competição interurbana
Em contraponto, Harvey (2006) correla- acabaria por eliminar seus diferenciais, todas
ciona empreendedorismo urbano e empobre- estariam submetidas à mesma lógica da espe-
cimento. O autor discute como o capitalismo, tacularização e dos fluxos econômicos no capi-
com seus processos econômicos, produz o talismo mundial.
espaço urbano. A urbanização como processo Belo Horizonte não foge a essa lógica do
social produz artefatos (formas construídas, es- empreendedorismo urbano, ao contrário. Da
paços produzidos, etc.), arranjos institucionais, mesma forma que verificado em outras partes
sistemas políticos, formas legais, etc. Aponta do Brasil e do mundo, a cidade vem perse-
uma mudança de postura dos governos, de guindo o embelezamento, a competitividade e

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Clarice de Assis Libânio

a visibilidade internacional. No planejamento Aglomerado da Serra, o Morro das Pedras


estratégico e plano de futuro da PBH, base e a Pedreira Prado Lopes, serão afetadas.
Ora, por que as áreas mais distantes da
para as diversas políticas públicas, constam
cidade, que apresentam índice de vulne-
seis Objetivos Estratégicos de Longo Prazo,25
rabilidade social igual ou, muitas vezes,
desafios a serem enfrentados até 2030. 26 En- superior aos das vilas predefinidas, não
tre eles, a competitividade na rede mundial foram contempladas no programa?[...] A
de cidades está em primeiro lugar, e, ironica- verdade é que o esgotamento das áreas
edificáveis nas regiões mais valorizadas
mente, a gestão democrática e participativa e
da cidade chamou a atenção do capital
o ambiente social saudável ocupam as duas
imobiliário para as vilas e favelas, tidas,
últimas posições. até então, como capital morto. (Movimen-
Fazem parte dessa visão de cidade em- tos Populares, 2008, p. 1)
preendedora projetos como a Linha Verde, que
liga o centro ao aeroporto de Confins; o Pro- Além da valorização imobiliária, outro re-
grama Vila Viva, responsável pela abertura de sultado da remoção de favelas é a ampliação
grandes eixos viários dentro das favelas; e a da sensação de segurança para os moradores
Operação urbana consorciada Nova BH, recen- de suas áreas vizinhas. Davis (2009), ao anali-
temente questionada pelo Ministério Público. sar Los Angeles, discute o fenômeno do medo
Todos com grande impacto social e remoção de nas cidades como indutor de novas formas de
significativo número de famílias de baixa renda convivência urbana e mesmo de configuração
dos territórios centrais e mais valorizados.27 espacial. O autor mostra como a sociedade
Os movimentos populares em Belo Hori- contemporânea usa, como mecanismos de ex-
zonte consideram as ações de remoção de fa- clusão, elementos como o traçado urbano, as
mílias levadas a cabo pelo poder público como soluções arquitetônicas e a semiótica do espa-
um processo de agravamento da segregação ço, através de “sinais invisíveis que impedem
social na cidade, com a expulsão dos pobres a entrada do “Outro” da subclasse” (Davis,
das áreas valorizadas, em benefício do merca- 2009, p. 237).
do imobiliário. Se remover uma favela pode, se- Para manter pobres separados dos ricos,
gundo estimativas do mercado, valorizar toda os elementos de separação física (e todo o apa-
uma região de classe média e média-alta em rato de repressão acoplado) são precedidos e/
cerca de 30%, não por coincidência os primei- ou justificados por toda uma retórica construí-
ros programas Vila Viva foram implantados no da socialmente, baseada no que Davis (2009)
Aglomerado da Serra, Morro das Pedras e Bar- chama de Ecologia do Medo. Caldeira (1997),
ragem Santa Lúcia, zona sul da Capital. Confor- analisando o caso paulista, também reforça
me Manifesto Vila Viva ou Vila Morta?: essa ideia, segundo a qual o crescimento da
violência trouxe consigo mudanças tanto nas
As intervenções estão orientadas pelos
formas de morar quanto nos hábitos e no uso
interesses do capital imobiliário, pois
apenas as vilas mais valorizadas da ci- coletivo das cidades. A segregação social, nes-
dade, bem servidas de equipamentos so- se âmbito, passa a ser valorizada e reafirma-
ciais e com excelente localização, como o da como símbolo de status. “A construção de

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O fim das favelas?

símbolos de status é um processo que elabora desses territórios. A mobilização e a postura


distâncias sociais e cria meios para a afirmação ativa da sociedade civil se fazem urgentes nes-
de diferenças e desigualdades sociais” (Caldei- se quadro. Finalizando com Fernandes,
ra, 1997, p. 159), contribuindo para o desapare-
É imprescindível que os moradores de
cimento da vida coletiva nos espaços públicos.
vilas e favelas e seus parceiros atuem
O Plano Estratégico de Belo Horizonte quer preventivamente, buscando o reconheci-
“Todas as Vilas Vivas”. Quer uma cidade com- mento dos seus direitos. Outro aspecto
petitiva, bonita e segura. Mesmo que o preço importante a ser ressaltado é que a mo-
seja a expulsão crescente dos pobres das áreas bilização social tem que ser constante e
tem que buscar também a participação
centrais, seja pelo mercado, seja pela remoção
nos processos de decisão desde o iní-
em virtude das obras públicas. cio da formulação das políticas, e não
O destino das comunidades não conta apenas quando da sua implementação.
mais, nos dias atuais, com a força do movimen- (2010, p. 195)
to favelado organizado, como na época da luta
que culminou com a implantação do Profavela. Para Vainer (2001), um governo local
Hoje, os argumentos do crescimento urbano e que, de fato, inclua a participação cidadã e a
da melhoria da qualidade de vida (para quem?) garantia de direitos em sua atuação e que se-
não permitem mais a existência de vozes dis- ja comprometido com os grupos subalternos,
cordantes. Aos poucos, as favelas vão dando deve ter três objetivos centrais: a) a redução
espaço a grandes obras viárias e, junto com a das desigualdades e a melhoria das condições
vitória do urbanismo, vão-se as histórias e a materiais e imateriais dos explorados; b) a
cultura das favelas na cidade. Mais um capítulo constituição de sujeitos políticos coletivos,
que se escreve sobre a luta pela ocupação e so- através da organização e da luta popular; e c)
bre a resistência à desocupação das favelas de a desmontagem dos mecanismos tradicionais
Belo Horizonte. de poder, tais como o clientelismo, a corrup-
A temática demanda uma discussão mais ção, a troca de favores e a privatização dos
aprofundada a respeito das alternativas e dos recursos públicos.
caminhos que devem ser seguidos para rever- Nesse panorama, para onde vai Belo
ter esse quadro perverso em andamento nas Horizonte? Infelizmente, há que se concor-
cidades brasileiras. Seja o Programa Vila Viva dar que “Belo Horizonte é um dos exemplos
em Belo Horizonte, sejam as UPPs no Rio de Ja- mais contundentes da natureza perversa das
neiro ou os “cheques-despejo” e incêndios cri- relações historicamente estabelecidas no País
minosos em São Paulo, fato é que está havendo entre direito, planejamento territorial e mer-
uma inflexão nas formas de pensar e lidar com cado imobiliário” (Fernandes, 2010, p. 178).
as favelas brasileiras, que desconsidera os di- E agora, mais uma vez, ajudado pela adminis-
reitos e as conquistas históricas dos moradores tração pública.

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Clarice de Assis Libânio

Clarice de Assis Libânio


Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura. Belo Horizonte, MG/Brasil.
claricelibanio@gmail.com

Notas
(1) O conceito de favela tem sido alvo de grandes discussões no Brasil nos últimos anos, visto a
significa va mul plicidade e diversidade de territórios urbanos que apresentam caracterís cas
diferenciadas da chamada “cidade formal”, seja por sua conformação sico-espacial e pelas
formas de ocupação do espaço, seja pela situação fundiária dos terrenos e mesmo pelo perfil
socioeconômico de sua população. Para acompanhar tal debate, ver Observatório de Favelas
do Rio de Janeiro (2009). No presente ar go, optou-se por u lizar ora o termo favela, ora vila
(mais comumente adotado pelos técnicos da administração municipal em Belo Horizonte)
para designar aqueles locais que o IBGE classifica como aglomerados subnormais, com suas
picidades na conformação do território. No caso de Belo Horizonte, tais áreas são distribuídas
entre as Zeis – Zonas de especial interesse social – 1 e a Zeis 3, como se verá a seguir.

(2) Tais números incluem as chamadas Zeis – Zonas de Especial Interesse Social, sendo a Zeis 1
rela va às áreas de favelas ou ocupação ilegal e a Zeis 3 rela va às habitações de baixa renda
construídas pela municipalidade, seja para suprir o déficit habitacional de Belo Horizonte, seja
para realocar famílias removidas de projetos e grandes obras urbanas. No presente trabalho,
está-se tratando de ambos os pos de territórios, ainda que a vulnerabilidade na Zeis 1 seja
maior, pela insegurança da posse da terra.

(3) Ver dados em www.favelaeissoai.com.br.

(4) Sobre o surgimento das primeiras favelas e polí cas públicas no Rio de Janeiro, ver Silva (2005) e
Zaluar (2004).

(5) Sobre o déficit habitacional no Brasil, ver Fundação João Pinheiro (2015). A nova metodologia
adotada inclui o déficit habitacional stricto sensu (habitação precária – domicílios rústicos
e domicílios improvisados –, coabitação familiar – famílias conviventes ou cômodos –, ônus
excessivo com aluguel urbano e adensamento excessivo de domicílios alugados) e o déficit
habitacional relativo (domicílios com carência de infraestrutura – energia elétrica, água,
esgotamento sanitário, banheiro exclusivo –, adensamento excessivo de domicílios próprios,
ausência de banheiro exclusivo, cobertura inadequada ou inadequação fundiária). Em Belo
Horizonte, o déficit, em 2012, era de 136.641 moradias, das quais 8,2% de déficit rela vo. A
grande maioria delas está situada na faixa de renda de 0 a 3 salários mínimos (76,1%). Por outro
lado, há no município cerca de 132.284 domicílios vagos em condições de serem ocupados, um
estoque de moradias muitas vezes des nado à especulação imobiliária ou inadequado para as
faixas de renda em que o déficit habitacional é maior.

(6) Administração Celso Mello de Azevedo, coligação UDN-PR-PDC-PTN-PL, 1955-1959.

(7) Administração Oswaldo Pierucce , prefeito designado por Magalhães Pinto, 1971-1975.

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O fim das favelas?

(8) A lei do Profavela reconhecia as favelas instaladas no município até 1980 como áreas especiais
de zoneamento – Setor Especial 4 (SE-4), que deveriam 1) ter legislação específica; 2) ser
urbanizadas respeitando a picidade da ocupação local e 3) receber processos de regularização
fundiária, cabendo ao Estado transferir para os moradores a propriedade da terra.

(9) Entre 1983 e dezembro de 1985, três prefeitos sucederam-se à frente da administração municipal:
Hélio Garcia, Antônio Carlos Carone e Rui Lage. Em 1986 foi eleito Sérgio Mário Ferrara – PMDB,
1986-1988.

(10) Gestões Pimenta da Veiga – PSDB, 1989-1990 e Eduardo Azeredo – PSDB, 1990-1992.

(11) Administrações Patrus Ananias - PT, 1993-1996 e Célio de Castro – PSB, 1997-2002.

(12) Período que inclui parte da administração Fernando Pimentel – PT, 2002/2004; 2005-2008 e toda
a gestão de Márcio Lacerda – PSB, 2009-2016.

(13) Um exemplo recente é a Linha Verde, que liga o centro de Belo Horizonte ao aeroporto de
Confins. Levada a cabo em convênio entre DER, Codemig / Governo do Estado e Prefeitura
de Belo Horizonte, a Linha Verde foi responsável por remover do mapa da cidade as vilas São
Paulo/Modelo, Carioca, Real, Maria Virgínia e São Miguel/Vietnã, além de grande parte da vila
Suzana I, situadas na confluência das regionais Nordeste e Pampulha, Belo Horizonte.

(14) Apenas a obra da Linha Verde, sozinha, foi responsável pela remoção de cerca de 1.000 famílias
entre 2006 e 2007.

(15) PT, 2002-2008.

(16) Atualmente as unidades habitacionais construídas para reassentamento têm se enquadrado


no Programa Minha Casa, Minha Vida, sobre o qual não será possível discorrer neste ar go,
mas que tem sido alvo de inúmeras críticas pelo modelo adotado – urbanístico, financeiro,
arquitetônico – e seus impactos sociais nega vos significa vos (ver, por exemplo, Cardoso e
Aragão, 2012).

(17) Ainda que os dados sobre a valorização imobiliária em Belo Horizonte sejam de difícil
mensuração, pela precariedade e limitação de acesso às fontes – o próprio capital imobiliário e
seus agentes –, pesquisas informais e consulta a publicações em jornais locais apontam que a
proximidade com uma favela pode depreciar um imóvel da zona sul de Belo Horizonte em cerca
de 30%. Nessa perspec va, não seria de se estranhar o fato de que as maiores intervenções
do Vila Viva estão justamente localizadas na zona sul da Capital, onde bairros “nobres” fazem
fronteira com as favelas.

(18) Ver Davis (2006), Maricato (2006) e ONU-Habitat (2010).

(19) Ver, por exemplo, Santos (2002), Souza (2010) e Daniel (1988).

(20) Exemplo recente foi a não aprovação, no Congresso Nacional, da Polí ca Nacional de Par cipação
Social e do Sistema Nacional de Par cipação Social – decreto 8.243, de 23/5/2014, que propunha
ampliar e fortalecer os mecanismos e instâncias de par cipação direta da população no Estado,
nos mesmos moldes ins tucionalizados que já ocorrem.

(21) Nas eleições presidenciais de 2014, a abstenção média foi de 20% entre os dois turnos, cerca de
30 milhões de eleitores.

(22) Administração Márcio Lacerda – PSB, 2009-2016.

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Clarice de Assis Libânio

(23) “Belo Horizonte é a cidade das organizações comunitárias, dos movimentos de base e de
anistia, dos movimentos de moradia e de saúde, das diversas expressões culturais e das
novas tecnologias, enfim, é também a cidade de territorialidades solidárias, sociais e polí cas.
São referências que orientam a prática de gestão social, urbana e econômica da cidade, a
par cipação popular, a democra zação das relações de poder, a descentralização dos serviços,
a inversão de prioridade na alocação de recursos públicos, o investimento na qualidade do
espaço urbano, com suas dimensões sociais e ambientais, e o fomento, apoio e legi mação das
prá cas de organização popular e controle social” (PBH, 2013, p. 10).

(24) PT, 1993-1996.

(25) São eles: “I) Mul plicar oportunidades de trabalho e promover ambiente favorável à criação
e ao desenvolvimento de negócios, impulsionados por serviços de valor agregado, capital
humano qualificado e inserção compe va nas redes nacional e mundial de cidades; II) buscar
qualidade de vida para todos, sustentada na eficiente organização do espaço urbano e em
redes colaborativas de serviços que se estendem pela região metropolitana; III) promover
a sustentabilidade ambiental, resultante da universalização do saneamento básico, da
preservação de áreas verdes, da recuperação de áreas degradadas, da redução das emissões de
poluentes, da eficiência energé ca e da boa capacidade de prevenção, mi gação e adaptação
diante de ocorrências adversas de grande escala; IV) assegurar as melhores condições de
mobilidade, acessibilidade e conec vidade em todo o espaço urbano e contribuir para a sua
melhoria em âmbito metropolitano; V) consolidar ambiente polí co-ins tucional de qualidade,
baseado na integração metropolitana e em gestão pública democrá ca e par cipa va; e VI)
propiciar ambiente social que es mule a convivência alegre e saudável entre as pessoas”. (PBH,
2013, p.11).

(26) Administração Márcio Lacerda – PSB, 2009-2016.

(27) Para o período 2014-2017, a es ma va é de 6.000 novas remoções nas favelas em virtude de tais
programas, excluídas as 8.000 famílias que ocuparam a região da Isidora e estão sob ameaça
constante de re rada por força policial.

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Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

784 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 765-784, set/dez 2016
Planejamento urbano empresarialista
em complexos imobiliários,
residenciais e de serviços:
a Reserva do Paiva em análise
Entrepreneurial urban planning in real estate, residential
and service complexes: Reserva do Paiva under analysis
Adauto Gomes Barbosa

Resumo Abstract
Os Complexos Imobiliários, Residenciais e de Ser- The Real Estate, Residential and Service Complexes
viços (Cirs) são empreendimentos plurifuncionais (CIRS) are plurifunctional enterprises that require
que demandam longo lapso temporal para serem a long period of time to be completed and whose
concluídos, e sua produção envolve um processo production involves inter-scaled actions. They
de interescalaridade das ações. São concebidos sob are designed under a global-local logic in which
uma lógica global-local em que o lugar se ajusta the place adjusts itself to monetary requirements
aos ditames do capital como condição para se mol- as a condition to fit new modernizing standards.
dar aos novos padrões modernizantes. A governan- Governance evidences the leading role of private
ça evidencia o protagonismo privado, ainda que o capital, although the State is a fundamental agent
Estado seja fundamental como agente regulador e that regulates and ensures the viability of the
viabilizador do negócio. Com base nisso, este arti- business. Based on this, this article analyzes the
go analisa a governança urbana desse planejamen- urban governance of this entrepreneurial type of
to urbano empresarialista que resultou na concep- urban planning that resulted in the design of the
ção do Cirs Reserva do Paiva, na Região Metropo- CIRS Reserva do Paiva, in the Metropolitan Region
litana do Recife. A principal crítica que se coloca é of Recife. The main criticism that arises is that these
que esses complexos imobiliários são uma resposta real estate complexes are a conservative response
conservadora do planejamento urbano aos proble- of urban planning to current urban problems and,
mas urbanos atuais e, ao serem concebidos e pro- when they are designed and produced under the
duzidos sob a tônica do exclusivismo socioespacial, keynote of socio-spatial exclusiveness, they deny
negam a cidade como totalidade e não contribuem the city as a whole and do not contribute to the
para a superação de seus problemas. overcoming of its problems.
Palavras-chave: complexos imobiliários, residen- Keywords: real state; residential and service
ciais e de serviços; planejamento urbano empresa- complexes; entrepreneurial urban planning ;
rialista; governança urbana; interescalaridade das urban governance; inter-scaled actions; Reserva
ações; Reserva do Paiva. do Paiva.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 785-802, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3708
Adauto Gomes Barbosa

campos de golfe, de complexo náutico e hote-


Introdução
leiro. Com essa diversidade de funções, busca-
No atual período, são cada vez mais comple- -se contemplar uma gama de serviços e de ati-
xas as articulações entre o capital privado e vidades comerciais que em pouquíssimos casos
o poder público no processo de planejamen- é ofertada em bairros nobres, porém, nesses
to urbano. Com base nisso, a implantação de complexos, resguarda uma perspectiva socioes-
megaprojetos imobiliários exige estratégias pacial ainda mais exclusivista.
bastante arrojadas por parte dos agentes capi- Em vários casos, a exemplo do que ocor-
talistas, contando com o Estado como agente re na Reserva do Paiva, no litoral sul da Região
garantidor de certas condições para a realiza- Metropolitana do Recife (RMR), objeto empíri-
ção do negócio. Esses megaempreendimentos co desta reflexão, os Cirs são desprovidos dos
são plurifuncionais e, via de regra, demandam tradicionais muros que caracterizam os lotea-
algumas décadas para serem concluídos. Pro- mentos fechados, o que sugere, ao menos na
curando melhor defini-los neste trabalho, uti- aparência, que apresentam maior integração
liza-se a terminologia Complexos Imobiliários, com a malha urbana circundante. Porém, fre-
Residenciais e de Serviços (Cirs), com base em quentemente, os muros se impõem de forma
empreendimentos de natureza e de compo- imaterial, por meio de sistemas de monitora-
sição semelhantes, na área metropolitana de mentos e por seletividades espaciais que indu-
Belo Horizonte, que foram estudados e assim zem restrições tanto explícitas quanto veladas
denominados por Costa (2006). Os promotores a todos que sejam considerados indesejados ou
imobiliários em geral os chamam de “bairros taxados como socialmente incompatíveis com
planejados” (ou ainda “cidades planejadas”), o perfil de morador predefinido.
num evidente apelo mercadológico que busca Assemelhando-se à lógica dos shopping
vender a ideia de uma “nova” cidade ou de centers, não obstante sejam muito distintos
uma suposta “nova” realidade urbana em face deles, os Cirs também possuem investimentos-
dos diversos problemas urbanos brasileiros. -âncora que até certo ponto lhes conferem
Isso posto, os Cirs são plurifuncionais na centralidade urbana em termos de oferta de
medida em que reúnem, no mesmo local, vários comércio e de certos serviços especializados
usos do solo e não devem ser confundidos com para os próprios moradores e usufrutuários,
os loteamentos residenciais fechados (também constituídos por clientes bem-segmentados,
conhecidos por condomínios residenciais fe- sejam eles empresários, sejam profissionais
chados horizontais) nem com os condomínios liberais com seus escritórios e consultórios.
industriais e de logística, os complexos de es- Entre as atividades contempladas pelos inves-
critórios empresariais e os de equipamentos tu- timentos-âncora, destacam-se centros empre-
rísticos. Conquanto se notabilizem pela prevale- sariais, escritórios, clínicas particulares, res-
cente função residencial de alto padrão, os Cirs taurantes, lanchonetes, casas noturnas, hotéis,
também comportam centros empresariais, de resorts, marina, galerias de arte, supermerca-
compras, de gastronomia e de lazer ou, ainda, dos, escolas e faculdades privadas, dentre ou-
assumem a função turística, constituindo-se de tros equipamentos (Figura 1).

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Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários...

Figura 1 – Esboço da planta do Cirs Reserva do Paiva,


com base no seu plano máster

Fonte: Odebrecht Realizações Imobiliárias.

Buscando compreender melhor a lógica senão como um importante meio do processo


que perpassa a consolidação desses produ- de acumulação capitalista, pois não é vista na
tos imobiliários, é interessante frisar que, se sua totalidade, constituída que é por realida-
a vida nas cidades brasileiras impõe inúmeras des sociais multifacetadas.
dificuldades relacionadas com o agravamen- Isso significa que, ao assumir o protago-
to de problemas urbanos reais ou potenciais, nismo do planejamento e da governança dos
como sensação de insegurança, congestio- Cirs, o capital privado vai muito além de ape-
namentos frequentes, problemas ambientais nas construir empreendimentos segmentados
e um sem-número de precariedades urbanís- para o mercado de alto padrão (residencial,
ticas, os Cirs são planejados pelo capital co- comercial ou de serviços). Na verdade, ele cada
mo uma solução ainda que pontual para toda vez mais passa a atuar no ramo que os promo-
essa sorte de iniquidades. No plano da vida tores imobiliários denominam “desenvolvimen-
urbana, esses complexos se traduzem como to urbano”, ou seja, também assume a gestão
uma resposta conservadora aos problemas ur- condominial e planeja meticulosamente os ser-
banos e se tornam “a solução” sob o olhar do viços e os produtos que serão oferecidos nes-
mercado. Nesse sentido, a cidade é encarada ses espaços, numa busca de estabelecer uma

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Adauto Gomes Barbosa

relativa autossuficiência diante do restante de diferenciação na homogeneização, mor-


da cidade. Além disso, devido ao longo tempo mente em cidades historicamente marcadas
que leva a implantação de um Cirs (que pode pelo signo da desigualdade, tal como o caso do
transcorrer 30 anos ou mais), há inúmeros ris- Recife e sua área metropolitana. Em termos es-
cos aos quais os capitalistas se expõem. Nesse paciais, a diferenciação pela homogeneização
caso, assegurar o controle urbano e ambiental, tem a ver com posturas, hábitos de consumo
a gestão condominial e os serviços de alto nível e visões de mundo que se relacionam com pro-
que vão ser oferecidos na área interna do Cirs e cessos de autossegregação em espaços nitida-
atrair parceiros qualificados para assumirem os mente exclusivistas.
investimentos-âncora são condições essenciais Considerando o quadro de referência ex-
para a perenidade do negócio. posto até aqui, neste trabalho se opta pelo uso
Desse modo, nos Cirs é adotado um per- da expressão planejamento urbano empresa-
fil de governança que evidencia o protagonis- rialista, sem ter com isso qualquer compromis-
mo privado, em que os valores e os preceitos so de propor uma nova modalidade de planeja-
do mercado se tornam absolutamente funda- mento urbano. Na verdade, a opção aqui feita
mentais. Porém, é importante frisar que, em por tal adjetivação é uma menção à crítica feita
nenhum momento, o Estado se coloca como por Harvey (1996 e 2006), ao discutir sobre o
mero coadjuvante. Há, ao mesmo tempo, um planejamento e a produção do espaço sob o
protagonismo privado e público, sendo o pri- signo do empresariamento urbano. Tendo co-
meiro o usufrutuário e o segundo viabilizador mo pano de fundo o empresarialismo, o autor
do negócio, ao fornecer um conjunto de condi- adverte que a parceria público-privada signifi-
cionantes no campo da regulação urbana e do ca que o público fica com os riscos, enquanto
financiamento e da oferta de serviços públicos. o privado fica com os benefícios, o que deno-
Nesse caso, a falsa ilusão de que o Estado está ta o caráter privado do planejamento, em que
fora e de que quanto menos Estado melhor é valores e preceitos do mercado são colocados
puro jogo de cena, algo bastante funcional pa- em primeiríssimo plano. A despeito desse viés
ra os interesses dos promotores imobiliários e empresarialista, é sempre válido ressaltar que
dos investidores com negócios no interior des- o papel do poder público é absolutamente es-
ses complexos. tratégico para que os promotores imobiliários
Vale frisar o pensamento de Lefebvre atinjam seus fins.
(2007 e 2008) de que, sendo o espaço uma A par dessas reflexões iniciais, este arti-
instância da sociedade, a sua produção não go analisa o processo de planejamento urbano
constitui um processo inocente, pois ela é re- empresarialista que resultou na concepção do
veladora de muitas contradições que permeiam Cirs Reserva do Paiva, cujos primeiros investi-
a sociedade. Desse modo, a concepção do es- mentos iniciaram-se em 2007 e a última etapa
paço da Reserva do Paiva é a de um lugar di- está prevista para ser concluída somente em
ferenciado pelo exclusivismo e, de certo modo, 2042 (isso, obviamente, vai depender dos ven-
evidencia a tentativa de diferenciação pela ho- tos soprados pelo mercado). Projeta-se que o
mogeneização, pois não parece razoável falar complexo tenha uma população fixa de 40 mil

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Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários...

pessoas e uma população flutuante de 50 mil Por sua vez, a localização em área li-
pessoas, o equivalente a uma cidade de porte torânea sul, no município metropolitano do
médio. Até o presente, a Reserva do Paiva conta Cabo de Santo Agostinho, e ao mesmo tempo
com quase duas dezenas de empreendimentos relativamente próxima do Recife, dá uma boa
lançados, tendo sido concluídos o complexo medida da localização estratégica desse Cirs
viário construído por meio de parceria público- (Mapa 1), como parte do processo de valori-
-privada, um hotel da rede Sheraton, um centro zação imobiliária que ocorre nessa periferia
de gastronomia e conveniências e um comple- de amenidades.
xo empresarial. Três de oito condomínios resi- Faz-se um esforço aqui para demonstrar
denciais lançados também já foram concluídos. que esse planejamento empresarialista se dá
Os empreendimentos-âncora servem de base de forma associada a uma concepção de gover-
para atrair investidores e propiciar a valoriza- nança urbana que dá salvaguarda ao Cirs como
ção do megaprojeto como um todo, oferecendo se fosse uma cidade à parte, com suas próprias
atividades de comércio e serviços para quem lá regras e códigos. Um pressuposto aqui defendi-
morar ou trabalhar. do é que o planejamento urbano condicionado

Mapa 1 – Localização do Cirs Reserva do Paiva

Fonte: Google Earth.

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Adauto Gomes Barbosa

e promovido pelo mercado constitui expres- e por vezes exaltar apenas a atuação do pla-
são do protagonismo privado, mas, ao mesmo nejamento privado e suas supostas vantagens
tempo, está intrinsecamente articulado e de- comparativas. Porém, é igualmente necessário
pendente do Estado e é fruto de um proces- constatar que, devido às implicações dos Cirs
so de interescalaridade das ações, em que se em termos temporais e espaciais, os investi-
articulam a ordem próxima e a ordem distante. mentos públicos e certas ações do Estado se
Mostra-se ainda como são espaços assépticos, tornam peça fundamental para a viabilização
nos quais a dimensão ambiental é parte do jo- do negócio.
go de interesses mercadológicos. Não se trata de um planejamento urba-
no sob a perspectiva estado-centrista. Vale di-
zer que numa sociedade capitalista a ação do
Estado é, via de regra, direcionada para a re-
O planejamento urbano produção da ordem vigente e, nesse contexto,
empresarialista num contexto mesmo o planejamento urbano empresarialista
prático é permeado pela ação do Estado. Em outras
palavras, o Estado constitui uma relação de
Como já salientado, o planejamento dos Cirs condensação de forças (Poulantzas, 1980), e o
conta, não só com a ação do grande capital capital é forte o suficiente para fazer valer seus
privado, mas também com a ação do Estado, interesses. Nesse quadro de referência, Souza
por vezes com a benevolência das prefeituras (2002) adverte que o planejamento se subor-
municipais em aprovar instrumentos urbanísti- dina às tendências do mercado, e o papel es-
cos que lhes dão tratamento específico ante sencial do Estado é o de facilitação do próprio
os demais fragmentos da cidade. Como advoga mercado, oferecendo-lhe vantagens e regalias
Reis (2006, p. 146), “Esses empreendimentos que vão de isenções tributárias a suspensão ou
complexos apresentam em geral uma diversifi- imposição de restrições de uso por meio do zo-
cação de tratamento urbanístico que os desta- neamento, como forma de privilegiar incorpo-
ca do tecido urbano próximo”, o que, a nosso radoras em áreas específicas.
ver, por si só não é razoável para justificativa Isso posto, vale tomar a implantação da
de tal fato. Reserva do Paiva como um caso deveras re-
Nesse processo, o Estado legitima e dá velador desse planejamento empresarialista.
total permissividade às ações do capital priva- Nesse sentido, política e institucionalmente é
do, colocando-se como agente direto na provi- criado um ambiente de amplo favorecimento
são de infraestruturas e na criação do ordena- dos investidores privados. De forma prática, o
mento legal. A despeito da recorrente apologia Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e
aos benefícios gerados pela ação da iniciativa Ambiental do Cabo de Santo Agostinho, mu-
privada substituindo o Estado, nesses comple- nicípio metropolitano onde se localiza esse
xos imobiliários, onde termina um e começa o complexo imobiliário, prevê a criação de novas
outro é, à primeira vista, pura ilusão de ótica. zonas especiais sempre que algum empreendi-
Um olhar apressado até tenderia a enxergar mento econômico precise de ajuste no marco

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Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários...

urbanístico para ser implantado no território mais restritiva, quando se trata de agre-
municipal. Isto está previsto no art. 46, § 2º, que gar fatores ambientais na melhoria da
qualidade de vida para moradias de alto
textualmente prescreve: “Fica autorizado o Po-
padrão, e, portanto, moradores especiais
der Executivo a declarar outras áreas, como es-
de Zonas Especiais.
peciais, sempre que a dinâmica territorial assim
o exigir ou para atender a diretrizes de planos Em meio a essas contradições, desde o
específicos” (Cabo de Santo Agostinho, 2006). início da vigência do Plano Diretor, em dezem-
Para Vainer (2013), ao invés da regulação esta- bro de 2006, até o ano de 2013, já haviam si-
tal, prevalece a negociação caso a caso, projeto do criadas 6 zonas especiais e 11 leis, algumas
a projeto, na concretização do que o urbanista delas feitas para atender a interesses das cor-
francês François Ascher (2001) nomeou com a porações empresariais, voltados para a implan-
feliz expressão de urbanismo ad hoc. tação de complexos residenciais, industriais e
Como na prática são os próprios lotea- logísticos. Nesse contexto, foi criada a Zona Es-
dores que propõem a criação das novas zonas pecial de Turismo, Lazer e Moradia Reserva do
especiais, cabe ao Executivo Municipal apenas Paiva, a partir da lei municipal nº 2.387/2007,
referendar e passar para o Legislativo subscre- e, tão logo tal projeto foi redimensionado para
vê-la. Com isto, cada um desses novos recortes se adaptar a uma nova demanda do mercado
territoriais tende a conter parâmetros urba- imobiliário, o marco jurídico foi alterado, em
nísticos que atendam às especificidades e aos 2012, para permitir o aumento do gabarito das
interesses bem localistas dos empreendedores edificações e da taxa de ocupação do solo. Pa-
privados, sem expressar a cidade em sua tota- ralela a essa postura do Estado, a iniciativa pri-
lidade. Aliás, como bem afirma Padua (2015), vada pauta suas ações no imediatismo respal-
vista sob a perspectiva unicamente de negócio, dado na obtenção célere de retorno financeiro.
a cidade deixa de ser totalidade e se torna to- Essa crítica se estende ainda à implan-
talitária. Dessa forma, as zonas especiais en- tação de empreendimentos logísticos e indus-
quanto tais parecem não “dialogar” com a ci- triais, cujos projetos de loteamento têm sido
dade como um todo, pois são concebidas para elaborados e aprovados pelas incorporadoras,
dentro dos empreendimentos imobiliários. Para referendados pelo Executivo e subscritos pela
Amorim (2013, p. 95), Câmara de Vereadores, valendo-se dessa per-
missão contida no Plano Diretor e, claro, da fra-
As Zonas Especiais não são apenas cria-
gilidade institucional. Os discursos dos gestores
das, mas realmente implementadas e revi-
sadas de acordo com as necessidades dos públicos sempre deixam implícito o imperativo
empreendedores. O tratamento diferente de que o município tem que prover todas as
que recebe vale-lhe o nome de “espe- condições que julgam vitais na atração de in-
cial”, pois se trata de áreas destacadas do vestimentos privados, em nome do tão propa-
restante do território pelo planejamento
lado crescimento econômico local. Fica muito
municipal, incluindo aí uma política am-
biental mais permissiva quando se trata claro “[...] um contexto de subordinação da po-
do lançamento de matéria ou energia em lítica dos governantes aos interesses econômi-
desacordo com os padrões ambientais, ou cos e o engendramento manipulado da técnica

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Adauto Gomes Barbosa

como redenção, nos moldes atuais em que ela Na verdade, há uma decisão política de
se encontra gestada” (Gomes, 2006, p. 73). esvaziar o planejamento dessas agências, nu-
Nisso tudo, o papel exercido pela Câma- ma clara opção da administração pública pe-
ra de Vereadores é de total subserviência ao lo favorecimento dos grandes investimentos
Executivo e este, por seu turno, às corpora- econômicos, sem maiores entraves para sua
ções privadas. No final, é instituído o que os instalação no território. Por sua vez, a falta de
agentes privados decidem desde o início. Isto articulação com as prefeituras e os atores so-
significa que a Prefeitura já recebe o “pacote ciais resulta num quadro em que as anuências
pronto”, e os servidores do quadro técnico- são meras peças burocráticas e não têm qual-
-administrativo ficam com a difícil missão de quer sentido prático de fiscalização. Conforme
apenas referendar, por meio de argumentos afirmou a Coordenadora Técnica do Programa
técnicos e jurídicos, o que já foi decidido pelo Especial de Controle Urbano-Ambiental do
empreendedor privado. Território Estratégico de Suape, da Condepe-
Se, no âmbito municipal, há tal submis- -Fidem, não há o momento “[...] pós, ou seja, o
são, no nível estadual o poder público também monitoramento e o acompanhamento de tudo
se faz presente, mas igualmente para favorecer o que foi anuenciado e [...] acompanhar isso
os interesses hegemônicos dos grupos econô- de perto com as prefeituras, para saber se está
micos e, desse modo, sem qualquer participa- realmente sendo implantado aquilo” (Entre-
ção efetiva da sociedade civil organizada. A vista em ago/2013). Isto é uma demonstração
Agência Condepe-Fidem, órgão metropolitano cabal da crise do sistema de planejamento ur-
de planejamento, chega até a sugerir altera- bano metropolitano, justamente num momento
ções na fase de análise do projeto para conce- em que os grupos econômicos cada vez mais
der a anuência aos empreendimentos imobiliá- tomam a frente e fazem valer seus interesses
rios, para verificar se estão ou não em confor- no planejamento urbano, dando-lhe um caráter
midade com a legislação vigente, porém só vai essencialmente empresarialista.
até esse ponto. As alterações que ela sugere Assim, nessas Zonas Especiais do Cabo
não são fiscalizadas em campo, nem por ela, de Santo Agostinho, os próprios investidores
que não tem equipe e estrutura operacional su- teriam que fazer a implantação da infraestru-
ficiente, nem pelas prefeituras, que não querem tura urbana. Mas, isso sempre vai depender
afugentar os investidores. Aliás, diga-se de pas- da negociação direta com o Poder Executivo,
sagem, há um claro esvaziamento dessa agên- sem qualquer interlocução da sociedade civil
cia, que está cada vez mais sendo substituída organizada, sem falar da tradicional debilida-
pela Secretaria de Estado de Governo (Segov) de do Legislativo municipal, que se limita a
e pela Secretaria de Desenvolvimento Econômi- aprovar os projetos do Executivo e quase não
co (Sdec), pastas do governo estadual que não se atém ao seu papel de legislar e tampou-
têm o papel de fiscalização e controle, mas tão co de fiscalizar. Por isso que, estranhamente
somente o objetivo de pactuar e promover a apenas cumprindo decisão superior, gestada
atração de grandes investimentos para alavan- nos escritórios de consultorias nacionais e es-
car o crescimento econômico do estado. trangeiras, muda-se o zoneamento do uso do

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Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários...

solo, permitindo-se o aumento do gabarito da vista as tendências globais. Se, como diz San-
Reserva do Paiva, e isto logo vira lei, num pro- tos (1997, p. 37), “é pelo lugar que revemos
cesso em que o Legislativo Municipal apenas o Mundo e ajustamos nossa interpretação
cumpre uma formalidade legal. [...]”, também é, por meio do mundo, possí-
Conquanto não seja parâmetro para vel entender a realidade local. Aliás, procurar
analisar a realidade de qualquer recorte urba- ser global com ares locais e ser local com ares
no, o fato é que, no contexto do espaço me- globais se constituem em mais um traço da
tropolitano do Recife, o planejamento urbano produção desses megaprojetos imobiliários.
empresarialista ocorre pari passu com um qua- Isso atesta o papel do setor imobiliário
dro de clara fragilidade institucional. Isso se no aporte de capitais de outros segmentos
torna ainda mais grave, pois o poder público econômicos, ao mesmo tempo que atua não
assume de fato a condição de mero facilitador mais restritamente à escala local e à nacional.
do capital privado, sem qualquer disposição de É mais uma função do imobiliário associado ao
apontar outras possibilidades de ação. Parafra- capital financeiro no contexto de produção es-
seando Vainer (2013), trata-se da clara expres- pacial por meio de megaprojetos em distintos
são da democracia direta do capital, em que a espaços, estejam eles situados no interior das
cidade é colocada como um formidável campo cidades, nas suas bordas, ou ainda em áreas
de investimento imobiliário, sem maiores preo- descontínuas conectadas às metrópoles por
cupações sobre que cidade se quer para as ge- modernos eixos viários, assim como ocorre no
rações futuras. interior do estado de São Paulo, cujas implica-
ções urbanísticas e espaciais foram diligente-
mente estudadas por Reis (2006).
Incorporado aos estudos urbanos, o ter-
Escalas e agentes mo governança está relacionado com as mu-
da governança urbana danças em curso no mundo atual e com seus
nos complexos imobiliários rebatimentos na produção e na gestão das
cidades, em vista da atuação de distintos ato-
Outra clara acepção do planejamento urba- res sociais, políticos e econômicos que passam
no empresarialista está relacionada com a a participar cada vez mais do planejamento
concepção e a governança dos Cirs. Elas tra- urbano. A governança urbana envolve a coor-
duzem um processo de interescalaridade das denação de interesses e a tomada de decisões
ações, num movimento global e local, sendo de agentes públicos e privados afetas à produ-
também permeado por níveis intermediários. ção espacial e à gestão urbana. Desse modo,
Em outras palavras, o planejamento desses governança tem a ver com a coordenação de
megaprojetos envolve consultorias estrangei- atores, de grupos sociais e de instituições, com
ras em parceria com renomados escritórios vistas a atingir objetivos comuns coletivamen-
nacionais que fazem adaptações para a rea- te (Le Galés, 1995). Como já destacado, gran-
lidade local, combinando ingredientes locais des empreendimentos imobiliários do tipo Cirs
de arquitetura e urbanismo, sem perder de tornam-se expressão desse contexto de uma

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complexa articulação de agentes privados e articulam o público e o privado e, ao mesmo


públicos, sendo isso parte indissociável da go- tempo, pleiteia a participação de distintos ato-
vernança urbana. res, com a descentralização das ações. Ela tam-
De acordo com Harvey (2005), a gover- bém busca o financiamento das políticas públi-
nança se distingue e vai além da noção de go- cas, mormente quando isso é conveniente ao
verno urbano. Ela se relaciona com o intricado setor privado (leia-se: lucrativo). Utilizando tal
jogo de interesses que perpassa os agentes lo- enfoque, Rabelo (2012) ressalta que a gover-
cais, nacionais e internacionais. Como assevera nança constitui um meio e um processo volta-
esse autor, no contexto atual, “[...] o neolibera- dos para produzir resultados eficazes mediante
lismo transformou as regras do jogo político. A a participação dos diferentes agentes em sua
governança substituiu o governo” (ibid., p. 32). realização. O tom empresarialista torna-se o
Logo, governança é uma noção mais ampla e mote de todas as ações, e não é apenas a ques-
envolve uma coalizão de forças, em que o go- tão do custo elevado do empreendimento que
verno e a administração pública exercem papel a priori afasta o capital privado, mas, também,
importante na condição de facilitadores e co- a desconfiança ou a certeza de que ele poderá
ordenadores, mas estão longe de ser os únicos não dar lucro.
agentes envolvidos no processo, tampouco Nesses complexos, é bastante comum a
seus únicos protagonistas. estratégia de as incorporadoras imobiliárias as-
Conforme ocorre na Reserva do Paiva, sumirem a governança urbana e ambiental e,
trata-se da governança para o empresariamen- paralelamente, delegá-las a outras empresas
to, que tem como uma de suas expressões as privadas especializadas em gestão condomi-
ações coordenadas pela Associação Geral da nial, que assumem funções outrora típicas do
Reserva do Paiva (AGRP), entidade de direito poder público. É preciso frisar que a gestão
privado e sem fins lucrativos que funciona co- condominial, nesse caso, não está associada
mo se fosse uma subprefeitura (no município apenas com as clássicas atribuições da admi-
do Cabo de Santo Agostinho), ao menos extra- nistração dos condomínios prediais. Tendo em
oficialmente, para pactuar a governança desse vista a constituição plural e o escopo exclusivis-
Cirs de forma relativamente autônoma e ao ta desses megaprojetos, os Cirs possuem uma
mesmo tempo dependente do poder público. regulamentação e gestão próprias para cons-
Isso ocorre em um contexto político-institu- trução e reformas, uso dos espaços coletivos
cional marcado por um processo de crescente (incluindo ruas, praças, parques e praia); ações
fragmentação da gestão pública e pelo prota- relativas à provisão e/ou ao monitoramento
gonismo dos agentes capitalistas privados que, dos serviços públicos, como coleta, seleção e
em aliança com o Estado, capturam investi- tratamento dos resíduos sólidos e efluentes;
mentos e transformam cada vez mais a cidade limpeza, paisagismo e manutenção das áreas
e seu espaço em mercadoria, aliás, diga-se de de uso comum; além da gestão da segurança
passagem, um negócio bastante lucrativo. e das ações de responsabilidade e de investi-
Segundo essa concepção, a governança mento social, sobretudo junto às populações
pressupõe arranjos político-institucionais que pobres que residem no entorno. Assim, mesmo

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Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários...

que muitos serviços continuem a ser assegura- assinatura. Nesse caso, vale dizer que a concre-
dos pelo Estado, no interior dos Cirs eles estão tização da governança se dá no entrelaçamen-
sob a coordenação da associação geral (ou o to dessas duas ordens da ação.
equivalente) e a gestão de consultores privados Nesse quadro de referência, na concep-
com vistas a garantir a eficácia e a excelência ção e planejamento urbanos da Reserva do
na qualidade dos serviços prestados. Na verda- Paiva, diversos escritórios extralocais estão
de, a governança entra como mais um item do encarregados de conceber o espaço. Eles têm
pacote do negócio. sede em outros países: Estados Unidos, Reino
No fundo, está em jogo um novo dife- Unido, Dinamarca, Austrália e Argentina. Al-
rencial para o processo de valorização que guns atores são consultorias nacionais, com
objetiva, em último caso, assegurar a pere- escritórios-sede localizados nas metrópoles
nidade do negócio. Este é um elemento ab- do Rio de Janeiro e São Paulo. Há, ainda, as
solutamente essencial para que os agentes consultorias sediadas no Recife, e parte delas
capitalistas invistam elevadas somas de re- tem atuação nacional, por isso, essas consul-
cursos financeiros em empreendimentos cuja torias, ainda que sejam vistas como agentes
implantação compreende diversas etapas e locais, dependendo do caso, também podem
que, por essa razão, leva algumas décadas pa- ser consideradas agentes nacionais, pois as-
ra a sua conclusão. Não ter essa preocupação sinam projetos e estudos técnicos de empre-
de longo prazo pode significar dar um tiro no endimentos de grande envergadura em vários
escuro, em relação ao capital investido. Em estados do país.
outras palavras, os Cirs são capitalisticamente Agentes de considerável importância são
concebidos como complexos plurifuncionais ainda as instituições financeiras e os investido-
de empreendimentos de alto padrão, sendo, res, que, em certa medida, também expressam
por isso, expressão do que se coloca como o par dialético ordem próxima e distante. De
mainstream no setor imobiliário. um lado, há bancos públicos federais que se
A concepção de um Cirs compreende inserem como financiadores da implantação
tanto o plano da ordem próxima, quanto da da infraestrutura, como o BNDES e o Banco do
ordem distante, permitindo concluir que o cam- Nordeste; e, de outro, estão megainvestido-
po do planejamento urbano empresarialista res privados, como a Promovalor Investimen-
está cada vez mais sob a responsabilidade de tos, de Portugal; a Starwood Hotels & Resorts
agentes locais e extralocais e envolve atores Worldwide, dos Estados Unidos, proprietária
e processos que se manifestam em diferentes da bandeira Sheraton; e a Four Seasons Ho-
escalas e correspondem a consultorias especia- tels and Resorts, do Canadá. Em parceria com
lizadas no segmento de paisagismo, arquitetu- esses agentes estrangeiros e em coalizão com
ra, urbanismo, assessoria jurídica e ambiental. os proprietários fundiários, a Odebrecht Rea-
Elas são tanto nacionais quanto estrangeiras lizações Imobiliárias (OR) é a timoneira do
e, além de deterem um instrumental técnico Cirs, assumindo, assim, o papel de master
especializado, constituem grifes que agregam developer. A Figura 2 constitui uma síntese da
valor aos produtos cujos projetos recebem sua inserção desses esses agentes.

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Adauto Gomes Barbosa

Figura 2 – Interescalaridade das ações para a realização


da Reserva do Paiva

Fonte: Elaboração própria.

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Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários...

Em parceria com a OR estão os dois gru- Ressalta, ainda, dentre os seus objetivos, apro-
pos empresariais proprietários fundiários (au- var previamente os pedidos de licença para
todenominados terrenistas), além da AGRP, que exercício de atividades de comércio e de pres-
na prática é a responsável pela gestão condo- tação de serviços, mesmo as que funcionem
minial e o controle urbano e ambiental do Cirs, apenas temporariamente na área ocupada por
com total permissividade da gestão pública esse complexo imobiliário e a faixa de praia.
municipal e estadual para sua atuação. Esse ca- Considerando as diversas de ações to-
so pontual é uma evidência de que a interesca- madas na gestão desses espaços, Reis (2006,
laridade das ações constitui uma realidade bas- p. 147) defende que “Condomínios com siste-
tante presente no planejamento de fragmentos mas de serviços complexos exigem sistemas de
dos espaços metropolitanos, o que só reforça gestão complexos”. Porém, isso também acaba
as reflexões sobre o caráter empresarialista do por servir de apanágio para muitas vezes se co-
planejamento urbano. locar o interesse privado acima do público ou,
em outros casos, cobrar do poder público uma
atenção especial. No caso da Reserva do Paiva,
ao mesmo tempo que a AGRP se responsabi-
Alguns alcances liza pela coordenação dos serviços nas áreas
da governança urbana de interesse comum, cláusulas do seu estatuto
da Reserva do Paiva deixam em aberto a possibilidade de ação do
poder público, mostrando que o Estado é sem-
Ante o que foi exposto até aqui, vê-se clara- pre chamado a contribuir quando isso for con-
mente que a Reserva do Paiva se posiciona co- veniente aos investidores privados. Na prática,
mo o mainstream da produção imobiliária do o Estado compartilha com a AGRP a condição
espaço metropolitano do Recife. Para melhor de agente regulador do uso do solo e, ao fazer
compreender isso, aprofunda-se a apreciação isso, fragmenta a gestão pública e, muitas ve-
da atuação da AGRP, como forma de corrobo- zes, limita-se a dar legalidade ao que é definido
rar com os pressupostos já explicitados sobre previamente pelos promotores imobiliários.
o planejamento empresarialista e a governança De certa maneira, tem-se uma autono-
urbana da Reserva do Paiva. mização que não pode e não deve prescindir
Um marco da ação da AGRP é o vasto do poder público, mas tomá-lo como parceiro
conjunto de atribuições que exerce na gestão no processo, até como estratégia para adquirir
da Reserva do Paiva. Desse modo, o estatuto legalidade e maior legitimidade perante a pró-
social estabelece como de sua incumbência pria sociedade e, sobretudo, para garantir a re-
aprovar projetos para a execução de obras produção do capital. Ademais, seguindo a tradi-
de construção, acréscimo e/ou modificação, ção americana, por meio desse perfil de gestão
previamente à obtenção de alvará na Prefei- condominial, as normas para o controle do di-
tura Municipal, devendo também observar as reito de construir e para a conservação do meio
normas urbanísticas convencionais que foram ambiente são muito mais garantias do direito
estabelecidas no âmbito da Reserva do Paiva. privado que propriamente do direito público

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 785-802, set/dez 2016 797
Adauto Gomes Barbosa

(ibid.). Desse modo, a lei é criada notoriamen- ano, identificando pontos fortes, fraquezas e
te para atender aos propósitos dos promotores oportunidades. O PA torna-se, assim, um ins-
imobiliários e se põe como um instrumento, ora trumento da gestão condominial. A estrutura-
de legalização (se se permite a redundância), ção de cada PA começa com o item “cenário”,
ora de coerção de práticas indesejadas nesses fazendo-se menção à situação do empreendi-
espaços exclusivistas. mento em sua totalidade; depois vem a iden-
É importante frisar que também há ações tificação de quais etapas serão concluídas e os
desenvolvidas pela AGRP junto a populações próximos lançamentos; e a citação, ainda, do
pobres do entorno da Reserva do Paiva, sob provável quantitativo de famílias que devem
a argumentação de serem instrumentos para passar a residir no complexo para o devido re-
a promoção do desenvolvimento local. Essas dimensionamento dos serviços ofertados con-
ações são parte do Programa de Desenvolvi- forme o aumento da demanda.
mento Local Sustentável da Reserva do Paiva e Por sua vez, pelo alto custo de instalação
seu entorno, o qual foi habilmente construído da infraestrutura e por não darem elevado re-
por uma consultoria contratada. Serve de base torno econômico, os serviços de abastecimento
para a incubação de projetos, a oferta de cursos d’água, coleta e tratamento de esgoto ficam a
de capacitação e a orientação de ações do po- cargo do poder público ou das respectivas em-
der público na provisão de infraestrutura nos presas concessionárias. Longe do propalado
bairros vizinhos, dentre outras atividades junto discurso de “quanto menos Estado melhor”,
aos moradores pobres do entorno da Reserva esse fato mostra quão presente é esse agente
do Paiva. Uma questão de fundo é que, para para a viabilização dos projetos privados, por
além dessa retórica, visa-se estabelecer uma meio de suas políticas e ações que possibili-
relação mínima de confiança e, na medida do tam a implantação dessa infraestrutura, além
possível, gerar alguns benefícios ou compensa- de ser, ao mesmo tempo, peça fundamental na
ções para tais vizinhos. Isso pode até ser vis- valorização do espaço.
to como uma forma de buscar evitar possíveis Vale destacar a incorporação do campo
externalidades negativas para o Cirs em longo ambiental como uma pretensa ou por vezes
prazo, como um eventual risco de aumento da real preocupação com os problemas relaciona-
criminalidade ou a sensação de insegurança no dos com o meio ambiente urbano, mesmo que
interior do Cirs. quase sempre restrito ao perímetro e entorno
No que toca à questão urbano-ambien- imediato desses espaços. É válido frisar que,
tal, há um trabalho meticuloso da AGRP. Pa- diante do recrudescimento das contradições
ra o devido planejamento e encaminhamento socioespaciais envolvendo a produção e repro-
das ações nesse campo, sempre no fim do dução do espaço da cidade na atual fase do
segundo semestre, é feito o alinhamento com processo de acumulação capitalista, evocar tal
a definição dos itens do Plano de Ação (PA) preocupação é parte da retórica das grandes
para o ano fiscal seguinte. A AGRP trabalha corporações, e isso logo se converte em ação
com o planejamento estratégico e estabelece da governança urbana. A propósito, segundo
metas e objetivos a serem atingidos a cada (Campos, 2009 apud Rabelo, 2012, p. 9),

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Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários...

[...] o discurso oficial para conservação e gera resultados benéficos para a imagem das
preservação ambiental nas cidades passa corporações patrocinadoras. Há ainda o bene-
a ser símbolo de uma ordem ambiental
fício gerado do ponto de vista da percepção
imposta pelo mercado capitalista, visan-
positiva da sociedade em geral, sendo isso um
do seduzir e incorporar uma consciência
ambiental na sociedade para neutralizar importante produto do marketing, não raro dili-
opções da luta política contra a desigual- gentemente veiculado pela mídia mais segmen-
dade de classes provenientes da hegemo- tada para seus investidores e clientela-alvo.
nia de grupos dominantes, principalmente
Outro elemento crucial nessa questão
oriundas do setor imobiliário nas grandes
da incorporação da dimensão ambiental se
metrópoles brasileiras. As campanhas
alternativas de consumo da natureza refere à obtenção de selos verdes. Esse é um
representam também uma nova forma segmento ainda bastante distante da realidade
empreendedora de capitalizar a consciên- do negócio imobiliário de muitas cidades, devi-
cia ambiental de indivíduos através de
do ao alto custo envolvido. Esses selos custam
símbolos ambientais.
caro e, ao menos para o setor residencial, mes-
Desse modo, não é de hoje que a natu- mo se tratando de clientela de alto padrão,
reza e seus elementos são apropriados simbó- quem arcaria com o investimento não seria o
lica e materialmente na cidade para evocar sua cliente, e sim a construtora. Em um contexto
crescente escassez no espaço urbano (Lefebvre, “de periferia da periferia” do capitalismo (essa
2001 e 2007). Na esteira de intervenções urba- é a inserção da RMR), até mesmo o mercado
nas comandadas pelo capital, elementos como imobiliário voltado para residências de mais
a segurança, o contato com uma natureza su- alto padrão construtivo ainda não incorporou
postamente conservada e a homogeneidade essas práticas. Por outro lado, quando se trata
social interna são vendidos como raridades. A de empreendimento não residencial de gran-
todo tempo, os promotores imobiliários anun- de porte, como é o caso do hotel Sheraton na
ciam seus produtos como se fossem uma es- Reserva do Paiva, é compensador investir num
pécie de contraponto da realidade em que se selo ambiental. Portanto, enquanto os benefí-
inserem, fazendo uso da lógica de morte para cios ficarem para o cliente final e os custos ar-
matar outros fragmentos da cidade e, para de cados pelo construtor, não vale o raciocínio da
forma contraditória, dar vida ao que é propala- modernização ecológica (Escobar, 1996), que,
do como o novo. a despeito da sensibilização para com a ques-
Além da inserção do discurso ambien- tão ambiental, age em função de obter algum
tal, a governança amplia os horizontes para ganho financeiro.
a questão social que, correlacionada com a O que está em jogo é até onde o selo
questão ambiental, resulta em uma propositu- proporciona ao capital algum ganho financei-
ra de cunho socioambiental, com intervenções ro efetivo. Em certos imóveis corporativos, o
de empoderamento de moradores por meio custo do selo se paga pelo próprio negócio.
de ações de investimento social ou de respon- Logo, como quem arca com os custos com
sabilidade socioambiental, sobretudo se isso consumo de água e energia elétrica é o seu

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Adauto Gomes Barbosa

investidor, para ele compensa buscar a certi- interescalaridade das ações, os Cirs resultam
ficação. Essa é mais uma face da governan- da ação de distintos agentes e de luma eficien-
ça que tem claro apelo empresarialista, pois, te articulação com o poder público. De forma
apesar dos propalados discursos de suposta contraditória, quanto mais esses complexos
preocupação com a conservação dos recur- são habilmente concebidos e gerenciados e
sos naturais, o ambiental ainda está muito com algumas melhorias pontuais no seu en-
condicionado pelas possibilidades de retorno torno imediato, mais a cidade como direito de
financeiro. Nesse caso, o que à primeira vista todos é negada.
parece se colocar como algo de vanguarda, na Assim, sob a tônica do exclusivismo, as
prática falta muito a se avançar, mesmo nes- articulações do grande capital privado com o
ses espaços exclusivistas. Estado são feitas para converter certos frag-
Fica bastante claro, ao longo da exposi- mentos da metrópole em “ilhas” de seguran-
ção aqui desenvolvida, o quanto a produção ça, bem-estar, beleza cênica, e, justamente por
do espaço sob a lógica capitalista configura isso, esses complexos imobiliários são anun-
um processo nada inocente, tal como aponta ciados como detentores de rara beleza, segu-
Lefebvre (2007 e 2008), uma vez que a Re- rança, limpeza e conservação ambiental, que
serva do Paiva contribui para a segregação se repetem em poucos fragmentos urbanos.
socioespacial e, de certo modo, induz a um Na verdade, nesses empreendimentos de alto
descolamento da frente à vizinhança pobre. A padrão, a iniciativa privada busca oferecer ser-
despeito da tônica do discurso do desenvolvi- viços que são reclamados pela população em
mento local sustentável para os vizinhos po- geral, por isso justificaria a quem pode pagá-
bres, fica evidente que promover a separação -los ter o “direito de ser exclusivo”. Contudo,
e a segregação ainda é a prática dominante, tanto mais se imponha o exclusivismo para
sendo isso habilmente feito sem os muros. Ve- alguns, mais ficam expostas as carências e os
rifica-se que as transformações que marcam a problemas da cidade real.
atual produção desse espaço são reveladoras Por fim, é preciso reconhecer que o ca-
de novas faces do processo de desigualdade pital age dessa maneira com a plena anuência
socioespacial, o qual, sob o manto do empre- e participação do poder público e, pior ainda,
sarialismo, é concebido e planejado em bases com o apoio de grande parte da opinião pú-
ainda mais complexas. blica, de segmentos importantes da mídia e,
sobretudo, daqueles que se tornam seus clien-
tes. As ações dos agentes capitalistas não se
Considerações finais realizam no vazio ou sem nenhum sentido ou
respaldo social. No fundo, sem querer aqui jus-
Como discutido aqui, o planejamento urbano tificar suas estratégias, tais contradições per-
empresarialista se traduz num instrumento pa- passam a sociedade como um todo, sendo o es-
ra o exclusivismo socioespacial. Frutos de uma paço, pela via da ação dos agentes capitalistas,

800 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 785-802, set/dez 2016
Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários...

tão somente produto, meio e condição desse diferencial e um instrumental do contraditório


amplo e complexo movimento de reprodução processo de produção e reprodução do espaço
capitalista. O planejamento e a governança metropolitano do Recife e tantos outros espa-
de viés empresarialista tornam-se mais um ços urbanos brasileiros.

Adauto Gomes Barbosa


Instituto Federal de Pernambuco, Licenciatura em Geografia. Recife, PE/Brasil.
adautogb@gmail.com

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Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

802 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 785-802, set/dez 2016
O espaço na geografia
e o espaço da arquitetura:
reflexões epistemológicas
Space in geography and the space
of architecture: epistemological reflections
Lucia Leitão
Norma Lacerda

Resumo Abstract
A geografia e a arquitetura constituem duas áreas Geography and architecture are two areas of
do conhecimento, cujos respectivos corpos discipli- knowledge whose respective subject corpora
nares se debruçam, aparentemente, sobre o mesmo apparently focus on the same object – space. This
objeto – o espaço. Esse é o ponto de partida destas is the starting point of these theoretical notes, the
notas teóricas, cujo objetivo é chamar a atenção objective of which is to draw attention to certain
para certas distinções epistemológicas nas aludi- epistemological distinctions between the above-
das áreas. Para tanto, na primeira parte, ressalta-se mentioned areas. Therefore, in the first part, it is
que, apenas a partir da década de 1970, o conceito noted that it was only in the 1970s that the concept
de espaço se tornou alvo de análise crítica explícita of space became a key concept of geography.
por parte dos geógrafos, e anunciam-se possíveis Moreover, possible differentiations of this concept
diferenciações desse conceito, em confronto com a are announced in comparison with the theoretical
formulação teórica do espaço arquitetônico. Na se- formulation of architectonic space. In the
gunda parte, indicam-se as especificidades teórico- second part, the theoretical and methodological
-metodológicas que definem o espaço arquitetural. specificities that define architectural space are
Espera-se que as reflexões ora apresentadas contri- indicated. It is hoped that the reflections presented
buam para a minimização de possíveis confusões in this article will contribute to minimize possible
epistemológicas. instances of epistemological confusion.
Palavras-chave: espaço; teoria; geografia; Key words : space ; theor y; geography;
arquitetura. architecture.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 803-822, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3709
Lucia Leitão, Norma Lacerda

claramente expressa e, à conta disso, “a pró-


Introdução
pria geografia tem dificuldade para participar
Estas notas resultaram da percepção da ocor- em um debate filosófico e interdisciplinar”
rência de certa “confusão” conceitual, relativa- (Santos, 2006, p. 28).1
mente ao emprego do termo espaço, quando Talvez essa dificuldade explique parte da
se trata de refletir à luz da geografia ou da confusão teórica, aqui mencionada, notada-
arquitetura. Essa “confusão” vem-se manifes- mente quando a geografia “se encontra” com
tando, com frequência, na produção acadêmi- campos disciplinares de interfaces comuns, a
ca recente, de modo especial em dissertações exemplo da arquitetura. Por sua vez, do pon-
e teses apresentadas em programas de pós- to de vista da arquitetura, no que diz respeito
-graduação, ao se debruçarem sobre esses a lacunas ou a inconclusões teóricas – em que
dois campos disciplinares. pesem a contribuição de tratadistas célebres e
Como disciplinas autônomas, pressupõe- dois milênios de prática disciplinar2 –, é ainda
-se que cada uma delas detenha o necessário recente a percepção de que o espaço é o prota-
domínio de conceitos, categorias e métodos gonista da arquitetura (Zevi, 1977).
de abordagem específicos, de modo a permitir- É, pois, nesse contexto de imprecisões
-lhes, com a necessária precisão epistemológi- teó ricas que se delineiam aqui, embora de
ca, a constituição do próprio objeto de investi- modo sucinto, especificidades teórico-meto-
gação. Afinal, como bem anota Santana (2008, dológicas dessas duas áreas do conhecimento,
p. 1), “mesmo que várias ciências tenham o cujos respectivos corpos disciplinares se debru-
mesmo objeto material, cada uma delas tem çam, aparentemente, sobre o mesmo e único
seu exclusivo objeto formal e, portanto, a sua objeto – o espaço. Espera-se, com isso, con-
marca individualizadora”. tribuir para a minimização de possíveis confu-
A empreitada intelectual de delimitação sões epistemológicas.
de marcas distintivas da geografia, em relação O trabalho está organizado em duas par-
à arquitetura – e vice-versa –, é seguramen- tes. Na primeira, recapitulam-se a constituição e
te desafiadora e excede os limites e objetivos a evolução da geografia, enquanto campo dis-
do presente texto. Com efeito, ela implicaria ciplinar. O intuito é mostrar que, só a partir da
demarcar precisamente o arcabouço teórico- década de 1970 – sobretudo com a emergência
-metodológico de cada uma dessas disciplinas, da geografia crítica –, o espaço, até então obje-
tarefa ainda inconclusa, mesmo para impor- to meramente implícito dessa disciplina, passou
tantes teóricos desses dois campos do conhe- a ser analisado, de forma expressa e direta, na
cimento. Nesse sentido, Milton Santos, sabi- sua natureza de conceito central da atividade
damente um dos maiores expoentes da geo- dos geógrafos. Na segunda parte do texto, vol-
grafia brasileira, registra, com razão, que essa ta-se a atenção para as especificidades teóricas
disciplina se ressente de uma epistemologia e metodológicas do espaço da arquitetura.

804 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 803-822, set/dez 2016
O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

o conceito de paisagem, uma vez que, além


O espaço da geografia:
de incisivamente retomado pela geografia,
construção histórica reporta-se à materialidade do espaço, aspecto
e epistemológica também considerado pela arquitetura, muito
embora de modo distinto.
A origem etimológica do vocábulo geogra- Para Corrêa (2001, p. 17), “a abordagem
fia – contrariamente à gênese da palavra ar- espacial, associada à localização das atividades
quitetura, como se verá adiante – não ajuda a humanas e aos fluxos, era muito secundária en-
aclarar o conceito de espaço, no âmbito dessa tre os geógrafos (...)”. Significa isso que o es-
disciplina. Geografia é termo derivado de dois paço não constituía conceito-chave para a geo-
radicais gregos: geo (terra) e graphein (des- grafia, fazendo-se presente apenas de forma
crever). Sob esse aspecto, ela se restringiria a implícita. Soja (1993), por sua vez, ao refletir
fazer a descrição da superfície da Terra. Como sobre as origens das geografias pós-modernas,
tal, dificilmente poderia ser alçada ao status considera que era sempre o tempo e a histó-
de atividade científica. Todavia, a evolução ria que forneciam os “continentes variáveis”
das correntes do pensamento geográfico, na primordiais nessas geografias. Segundo suas
era contemporânea, oferece um caminho para próprias palavras:
entender como o espaço passou a constituir
um conceito-chave nessa área do saber. Isso parece igualmente claro, quer a
Corrêa (2001) identifica, nessa evolução, orientação crítica seja descrita como so-
ciológica, quer como política ou antro-
três períodos. O primeiro tem início nos anos
pológica – ou, a rigor, fenomenológica,
de 1870 – quando a geografia foi institucio- existencial, hermenêutica ou materialista
nalizada, enquanto disciplina, nas universida- histórica. As ênfases específicas podem
des europeias – e se estende até a década de diferir, mas a perspectiva geral é compar-
1950. Os trabalhos de Alexandre von Humboldt tilhada. Uma geografia já pronta prepara
o cenário, enquanto a construção inten-
e Karl Ritter foram decisivos nesse processo de
cional da história dita a ação e define o
formalização (Andrade, 2006). Tal período cor- roteiro. (p. 22)
responde ao que se convencionou denominar
geografia tradicional, cujos conceitos centrais Era, portanto, uma geografia reduzida à
eram o de paisagem e o de região. descrição da disposição dos elementos dos ce-
O trabalho de Humboldt tinha por fun- nários, onde os atores sociais se empenhavam
damento a descrição e a representação das em fazer a história. A geografia não participa-
estruturas naturais. A vegetação era valorizada, va, então, do competitivo embate da constru-
como fonte de interpretação e entendimen- ção teórica.
to da paisagem. Esta, porém, não se limitava Para esse autor, o historicismo – defini-
ao universo natural. O estudo da Terra deveria do como “uma contextualização histórica hi-
incorporar o elemento humano. Foi assim que, perdesenvolvida da vida social e da teoria so-
segundo Vitte (2007), originou-se o conceito de cial” – obscurece a imaginação espacial. Mais
paisagem geográfica. Mais adiante se retomará ainda, representa uma subordinação implícita

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 803-822, set/dez 2016 805
Lucia Leitão, Norma Lacerda

do espaço ao tempo, uma subordinação que presente e, por extensão, relegavam a segun-
tolda as interpretações geográficas da mutabi- do plano as transformações, as contradições e
lidade do mundo e se intromete, segundo o ele, os conflitos. A geografia restringia-se, assim,
em “todos os níveis do discurso teórico, desde ao campo do mensurável, “morto, não dialé-
os mais abstratos conceitos ontológicos do ser tico, imóvel”, nas palavras do filósofo francês
até as explicações mais detalhadas dos acon- Michel Foucault (1976, p. 159). Conformava,
tecimentos empíricos” (ibid., p. 23). Em suas desse modo, um conhecimento aplicado a ser-
linhas essenciais, Soja questiona a hegemonia viço do Estado, ou seja, uma forma coadjuvante
do historicismo no pensamento crítico e não a da ciência da administração e do planejamento
importância da história, naturalmente. estatais e das empresas privadas. Dessa forma,
O segundo período abrange as décadas isolou-se da história, das ciências sociais e do
de 1950 e 1960. Corresponde ao surgimento “marxismo ocidental”.5
da geografia teorético-quantitativa. É quando Por “marxismo ocidental”, entenda-se
ela passa a ser considerada uma ciência social uma corrente de pensamento que se afastou
3
e a ser vista como uma ciência espacial. “O das ortodoxias centrais do marxismo-leninis-
espaço aparece, pela primeira vez na história ta.6 Segundo Soja (1993), muito embora es-
do pensamento geográfico, como o conceito- se marxismo abordasse o espaço como um
-chave da disciplina” (Corrêa, 2001, p. 20). Da receptáculo e um espelho da sociedade, foi a
geografia tradicional – praticamente ateórica – partir dessa corrente que o espaço e a crítica
despontava uma nova versão, crescentemente ao historicismo acabaram por firmar-se, ao
técnica e matematizada, da descrição geográ- inaugurarem o terceiro período da geografia –
fica. Fundamentada primordialmente “na física o da geografia crítica, de 1970 em diante.
social, nas ecologias estatísticas e em apelos Fundamentada no materialismo históri-
acanhados à onipresente fricção de distância” co e na dialética, essa nova corrente do pen-
(Soja, 1993, p. 67), as análises geográficas de samento geográfico rompeu com a geografia
então consideravam a distância – e não o espa- tradicional e com a teorético-quantitativa. O
ço – como a variável mais importante. Apesar espaço (re)apareceu como conceito-chave.
da introdução da variável localização, a reali- A partir do pensamento de Henri
dade continuava a ser explicada por fatores Lefebvre, passou o espaço a ser abordado co-
físicos. Tal sistema de pensamento se tornou mo o lócus da reprodução das relações sociais
conhecido como determinismo geográfico, há e, portanto, da sociedade. Filósofo e sociólogo
muito abandonado. por formação, a concepção de “produção do
Como fruto desse pensamento, surgi- espaço” de Lefebvre derivou do “jogo de for-
ram a noção de centro-periferia – nas escalas ças”, econômica, política e socialmente defini-
intraurbana, nacional e internacional – e a de do. Consoante o autor:
espaço relativo, apontada por Harvey (1969,
Quando o espaço social deixa de se
apud Corrêa, 2001).4 Não sem razão, foram de- confundir com o espaço mental (defi-
senvolvidos, nesse período, inúmeros modelos nido pelos filósofos e pelos matemáti-
de organização espacial, que privilegiavam o cos), com o espaço físico (definido pelo

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O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

prático-sensível e pela percepção da mão de quatro categorias: função, forma, estru-


“natureza”), ele revela sua especificida- tura e processo.
de. Será preciso mostrar que esse espa-
A função diz respeito à atividade desem-
ço social não consiste numa coleção de
penhada pelo objeto e está tradicionalmente
coisas, numa soma de fatos (sensíveis),
nem tão somente num vazio preenchido, associada à forma. Ambas as categorias – for-
como uma embalagem, de matérias di- ma e função –, por sua vez, não podem, nem
versas, que ele não se reduz a uma for- devem ser dissociadas da estrutura social e
ma imposta aos fenômenos, às coisas,
econômica, sob o risco de impossibilitar-se a
à materialidade física. O caráter social
apreensão da natureza do espaço. Afinal, essa
do espaço, afirmado aqui como prévia
(hipótese), será confirmado durante a estrutura é a matriz em que as formas e as fun-
exposição [que o autor faz em seguida]. ções se justificam. Acontece que essa estrutura
(1986, p. 36) se encontra em constante mutação, ou seja, em
movimento contínuo, conformando-se, por isso
Assim, o espaço de que trata Lefebvre é
mesmo, como processo.
socialmente definido e, portanto, abstrato, em
Para Santos, a forma é um elemento
termos materiais, embora se assente no territó-
analítico na apreensão socioespacial de um
rio e se expresse na materialidade do ambiente
dado ambiente construído. Ela não tem, por-
construído, com desdobramentos metodológi-
tanto, autonomia em si mesma, com relação
cos específicos. Dito de outra forma, o espaço
à produção espacial desse ambiente, o que a
lefebvriano é metodologicamente analítico
distingue, conceitualmente, da forma arquite-
e fisicamente abstrato, conquanto, repita-se,
tônica, conforme se verá na segunda parte do
assentado no território – uma especificidade
presente texto.
epistemológica do espaço social, em tudo dis-
Comentando a respeito da categoria for-
tinta do espaço da arquitetura, como se anali-
ma, e citando Santos, Corrêa anota que ela
sará adiante.
Milton Santos, cuja obra foi fortemente [...] não deve ser considerada em si mes-
inspirada no autor acima aludido, defende o ma, sob o risco de atribuir a ela uma au-
tonomia de que não é possuidora. Se as-
conceito de formação socioespacial ou, sim-
sim fizermos, estaremos deslocando, para
plesmente, formação espacial, calcado na ideia a esfera da geometria, a linguagem da
de não ser plausível conceber uma determina- forma, caindo em um especialismo estéril.
da formação socioeconômica, sem se recorrer à Por outro lado, ao considerarmos isolada-
noção de espaço. Esse eminente estudioso con- mente a forma espacial, apreenderíamos
apenas a aparência, abandonando a es-
sidera que, por um lado, qualquer sociedade se
sência e as relações entre esta e a aparên-
revela, concretamente, por meio do espaço pro- cia. (2001, p. 28)
duzido. Mas também que, por outro, o espaço
é inteligível por meio da sociedade, porquan- Nesse ponto, importa não confundir a
to não se trata de realidades sociais distintas. autonomia da forma, enquanto expressão vo-
Nessa perspectiva, a abordagem analítica do lumétrica que, na verdade, seria de um campo
espaço exige, ainda segundo Santos, lançar-se disciplinar específico – a arquitetura –, com

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Lucia Leitão, Norma Lacerda

os atributos indispensáveis à definição dessa conhecimento, só podem ser apreendidos, de


forma, necessariamente geométricos. Afinal, modo adequado, sob um enquadramento epis-
o espaço edificado se define por linhas (retas temológico distinto, conforme se pretende evi-
e curvas), comprimentos, larguras, alturas e denciar com estas notas.
profundidades, inescapáveis à construção do Retomando-se a sequência evolutiva do
ambiente concreto. Em outras palavras, longe pensamento geográfico, registre-se que a dé-
de constituir um especialismo estéril, a com- cada de 1970 também assistiu à emergência
posição geométrica, na constituição da forma, da geografia humanística e cultural, calcada
desta feita arquitetônica, é condição indispen- nas filosofias do significado, especialmente
sável para que sejam materializados os objetos na fenomenologia e no existencialismo. Ela se
socioespaciais a que ela se referem (ver Figuras assenta na subjetividade, nos sentimentos, no
5, 6, 7, 9 e 10). simbolismo e privilegia o singular, em detri-
Na verdade, o que Santos deixa à mos- mento do universal. Para ela, a compreensão
tra, no texto citado, é a forma do espaço so- constitui a base de inteligibilidade do mundo.
cial, (geográfica, portanto), isto é, forma ter- No âmbito dessa geografia, a ideia de paisa-
ritorialmente localizada, que explicita valores, gem passa a ser revalorizada, e as noções de
demandas e reclamos socialmente produzidos. território e de lugar transformam-se em ele-
Essa forma, porém, materializa-se por meio mentos fundamentais.
da arquitetura, que cada sociedade edifica. O conceito de paisagem refere-se à ma-
Como se vê, embora a expressão vocabular terialidade, ao conjunto das formas que, em
seja a mesma – forma –, trata-se de duas ex- dado momento, revelam as heranças decorren-
pressões epistemologicamente distintas, ou tes das sucessivas relações localizadas entre o
seja, enquanto, na perspectiva geográfica, “a homem e a natureza (Santos, 2006).7 Sobre o
forma não deve ser considerada em si mesma, conceito de paisagem cultural, geógrafos, co-
sob o risco de atribuir-se a ela uma autonomia mo Ducan (2000) e Corrêa e Rosendalh (2000),
de que não é possuidora”, do ponto de vista afirmam ter sido essencial, no seu processo de
arquitetônico, a forma é autônoma em si mes- construção, a interdisciplinaridade. Aliás, é con-
ma – no tanto em que delimita e, com isso, cria senso, entre os geógrafos, que a abordagem da
o espaço arquitetônico. geografia cultural se encontra cada vez mais
Assim, é possível que uma leitura apres- envolvida com questões políticas, econômicas
sada de Lefebvre e, posteriormente, de Santos e sociais, demandando uma abordagem inte-
tenha fomentado a “confusão” entre esses dois gradora (Haesbaert apud Barbosa, 2014). Não
campos disciplinares – arquitetura e geografia. fazem, porém, qualquer alusão à arquitetura,
Por isso, quando se pensa a noção de espaço, como se essa disciplina nada tivesse a oferecer
importa precisar – no sentido que os franceses à análise do espaço geográfico. Eles desconhe-
atribuem a esse termo –, conceitualmente, de cem, ou desconsideram, aparentemente, pelo
que espaço se está tratando, ocorrendo o mes- menos dois mil anos de sistematização teórica
mo com forma e função, conceitos e categorias e de intervenção projetada da arquitetura, na
que, embora comuns a esses dois campos do conformação do ambiente construído.

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O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

Esse conceito de paisagem cultural cor-


O espaço da arquitetura
responde, em suas linhas essenciais, “à forma,
aos aspectos visuais de um território, mas tam-
e suas especificidades
bém ao conjunto de narrativas e qualidades epistemológicas
discursivas, que falam e constroem essa porção
territorial” (Barbosa, 2014), sendo edificada a Evaldo Coutinho, em texto hoje clássico (1977),
partir de relações de poder, sociais, econômi- vê a arquitetura como sendo a composição de
cas, políticas e culturais, dentre outras. Dunlop um vazio.8 Com isso, oferece um bom ponto de
(2010, p.18) afirma que a geografia mantém partida para as notas que se esboçam aqui a
uma relação paradoxal com a noção de paisa- respeito da natureza do espaço da arquitetura.
gem: “Ela [a geografia] a define como uma per- Diferentemente da concepção de espa-
cepção subjetiva e instantânea, bem diferente ço em outros campos disciplinares, o espaço
de uma porção do espaço terrestre objetivo, e arquitetônico se define por um vazio que o
também como um dos seus objetos de estudo constitui em consequência de uma ação huma-
enquanto ciência”. na compositiva. Em outras palavras, o espaço
Segundo esse autor, os geógrafos se in- da arquitetura é necessariamente projetual.
teressam pelas paisagens de duas maneiras Não se confunde, portanto, teoricamente, com
distintas: 1) por meio de fotografias, vídeos, o espaço preexistente que dá suporte físico-
ilustrações, mapas, cartogramas, etc., por eles -ambiental a essa ação projetual, tampouco se
produzidos, quando tais elementos constituem confunde com o espaço social – essencialmen-
parte dos seus discursos científicos sobre o te analítico, como se anotou antes –, promotor
seu objeto de estudo: o espaço geográfico; 2) dessa ação.
e mediante a análise de paisagens trabalhadas A etimologia do vocábulo arquiteto –
por outros profissionais (artistas, publicitários, architektôn – oferece um caminho a seguir
urbanistas, etc.), quando visam compreender quando se busca mostrar a especificidade pro-
como as sociedades veem, julgam e imaginam jetual do fazer arquitetônico, objetivo destas
seu entorno espacial. notas, uma vez que, ao se ter em mente o senti-
A reflexão de Dunlop é essencial para a do etimológico desse vocábulo, têm-se também
compreensão das motivações dos atores que as primeiras indicações do que é especifico da
constroem os territórios. Nessa perspectiva, fi- arquitetura como campo disciplinar.
ca claro que os geógrafos se debruçam sobre Ao refletir sobre o que é arquitetura, Sa-
o seu objeto de estudo – o espaço – de modo lignon anota que “princípio, em grego, se diz
analítico (interpretativo e crítico), mas não pro- arkhê, prefixo presente na palavra (arqui)tetu-
jetado. Por seu turno, o espaço projetado cons- ra”. Assim, na palavra arquitetura, continua o
titui o objeto próprio do fazer arquitetônico, autor, “[...] devemos compreender arkhê co-
como se verá a seguir. mo sendo a um só tempo princípio originário,

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Lucia Leitão, Norma Lacerda

[ideia] e a [ação] que faz surgir, [pela vez Nessa perspectiva, o ambiente natural
primeira] algo que não existia [...]” (2001a, que dá suporte ao fazer arquitetônico é um
9
p. 161). Tektôn , por sua vez, indica, em espaço “[...] que se dá como espaço para o
grego, o construtor, o “mestre carpinteiro”, homem” (Salingon, 1997, p. 92). Um espaço
aquele que, no exercício do seu ofício, com- existente antes de qualquer gesto originário –
põe e, como consequência dessa ação com- arkhê – humano, e não um espaço que surge
positiva, ergue a edificação, donde se tem, em decorrência desse gesto. Nesse sentido,
em português, a palavra tectônica, a arte de continua o autor, a criação do espaço da ar-
construir edifícios, como ensina o Houaiss. quitetura “[...] é negação do espaço [natural]
Arquitetar é, pois, nesse sentido, uma e afirmação [proposição, criação] de lugar”
ação humana criadora, “[...] que faz aparecer (1997, p. 93) projetualmente humano.
o que não existia em nenhuma parte”, escre- Edificar, ou arquitetar,10 é, portanto, nes-
ve Hannah Arendt, conforme registra ainda se sentido, a expressão de uma habilidade hu-
Salignon (2001b, p. 83), como resultado de mana, análoga à da linguagem, manifesta num
uma atividade projetiva a um só tempo pessoal ato fundador próprio da condição humana,
e coletiva. Uma ação que faz surgir, no contex- como bem assinala Choay (2006). Uma ação
to destas notas, o ambiente construído, inexis- que realiza “[...] o imperativo de passar entre
tente até o momento em que se deu justamen- o que há [o espaço que se dá como espaço pa-
te essa ação projetual originária. ra o homem] e o que não há ainda [o espaço
Assim, perseguindo-se o sentido etimo- composto, edificado pelo homem]” (Salignon,
lógico do vocábulo architektôn, tem-se anun- 1997, p. 96).
ciada uma primeira indicação da natureza do Talvez se tenha aqui – nesse impera-
espaço arquitetural. O espaço da arquitetura se tivo – uma resposta plausível a uma questão
constitui em consequência de uma proposição importante para a Teoria da Arquitetura, em
humana (arkhê) compositiva (tektôn) que o faz especial para aqueles que se dedicam a inves-
surgir, proposição esta teórica e metodologica- tigar as razões da construção d’A casa de Adão
mente definida, conforme se verá adiante. no paraíso (Rykwert, 1997), isto é, as motiva-
O espaço arquitetural não se confunde, ções primeiras presentes na edificação do es-
portanto, com o espaço natural preexistente à paço humano.
ação humana criadora, propositiva, ainda que Olivier Marc formula essa questão nos
o espaço preexistente se modifique pela pre- seguintes termos: “Por que o homem primiti-
sença humana. Em outras palavras, embora vo foi levado a construir sua casa, rejeitando o
fundamental à composição do vazio, o espaço abrigo que a natureza lhe oferecia sob a forma
natural não se confunde, teoricamente, com o de uma gruta ou caverna?” (1972, p. 19). A
espaço da arquitetura, uma vez que o espaço resposta parece surgir desse imperativo huma-
natural é um espaço modificado, mas não ori- no de afirmar um lugar como criação. Afinal,
ginado, menos ainda composto, por uma ação a caverna não é algo originário de nenhuma
humana propositiva. ação humana propositiva. Não é, portanto,

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O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

Figura 1– A caverna de Lascaux (Mumford, 1982) –


o espaço que se dá como espaço para o homem

Figuras 2 e 3 – Construções megalíticas – o espaço criado pela ação humana

uma composição humana nem se destina ao Importa, pois, chamar a atenção do leitor
uso humano. Menos ainda realiza o imperati- para o fato de que esse ato fundador originá-
vo humano de passar do estado de natureza rio – arkhê –, começo de todos os começos da
ao estado de cultura (Lévi-Strauss, 2009, e história humana, embora manifesto no fazer
Argan, 1966). arquitetônico em sua expressão tectônica, é
Nesse ponto, tem-se, precisamente, a pri- irredutível ao objeto arquitetural em sua ma-
meira distinção epistemológica do espaço da terialidade. É possível que resida, nesse ponto,
arquitetura. O espaço arquitetural é um espaço parte da “confusão” que se vê em alguns auto-
criado, originado – e não apenas modificado ou res quando eles se debruçam sobre a questão
transformado – pela e para a ação humana, an- do espaço edificado. Ao não perceberem essa
te um ambiente natural que se dá como espaço distinção teórica fundamental entre o evento
para o homem, preexistente, portanto, a qual- criador do ambiente construído e os elemen-
quer ação humana. tos arquitetônicos que lhe dão materialidade,

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Lucia Leitão, Norma Lacerda

alguns confundem o espaço da arquitetura, em irredutibilidade à tectônica, ainda que dela


sua especificidade teórica, com o objeto cons- não prescinda, surge no célebre tratado De re
truído, materializado pela tectônica. aedificatoria, de Leon Battista Alberti, publica-
Em outras palavras, perdeu-se de vista, do originalmente em 1485.
nesse modo de ver a criação do espaço edifi- Nesse texto clássico, Alberti atribui
cado, que o ato que instaura o fazer arquite- à construção do teto e do muro, ao ato de
tônico como expressão da condição humana edificar, portanto, a instituição da vida em
não é redutível à edificação, mister do tektôn, sociedade, a ponto de considerá-los – o teto
no exercício do seu ofício. Precisamente por e o muro – “[...] fatores certamente mais im-
isso, por ter consciência dessa irredutibilidade portantes do que a água e o fogo para reunir
teórica, Salignon, uma vez ainda, adverte: “É a e manter unidas as comunidades humanas”
arquitetura que se impõe ao arquiteto, e não (2011, p. 138, grifos meus).11 Afinal, diferen-
o contrário” (2001a, p. 158). Tanto quanto é a temente da água, fluida, e do fogo, volátil, o
linguagem que se impõe ao “animal falante”, e arquitetar propiciou as condições espaciais
não o oposto. indispensáveis à permanência humana na face
Uma “confusão”, nesse sentido, aparece da Terra.
na obra de Henri Lefebvre, Espace et politique. Choay (2006), muito apropriadamente,
Nessa obra, Lefebvre critica: apreende desse texto seminal do erudito tra-
tadista da arquitetura na Renascença a dimen-
[...] certos arquitetos [que] se veem ou se são antropológica do ato de edificar – donde
fazem ver como demiúrgicos [...], capa-
sua irredutibilidade ao objeto construído, isto
zes de impor à sociedade sua concepção
e sua definição de espaço. O demiúrgico é, foi o ato criador, essencialmente humano,
platônico se encarnou na matéria, nos insistimos, que, uma vez desencadeado com a
números e nas proporções, nos idealis- edificação do teto e do muro, fez surgir o am-
mos transcendentes. Esse espaço tem as biente construído e, com ele, as condições edi-
seguintes características: vazio e puro lu-
lícias essenciais à organização das sociedades
gar dos números e das proporções, ele é
visual, desenhado [...]. (1972, p. 172) humanas – reunir e manter unidos os homens,
como escreveu Alberti –, donde se infere, preci-
Ao creditar ao tektôn a pretensão de uma samente, sua expressão antropológica.
ação demiúrgica, Lefebvre parece confundir o Mumford (1982) ratifica essa ideia quan-
evento que origina o espaço humano – arkhê do registra a importância do surgimento da al-
ação demiúrgica, sim, porque criadora, origi- deia neolítica como composição espacial para
nária –, manifesto na arquitetura, mas irredu- a organização das sociedades humanas então
tível a ela, com o ofício de um profissional em embrionárias. De fato, se a água e o fogo ga-
particular. Esse, sim, manifesto por meio de um rantiam a vida do indivíduo e de pequenos
vocabulário tridimensional, proposto, necessa- grupos nômades no espaço que se dava para
riamente, a partir de números e proporções. o homem de modo natural, a (arqui)tetura, fa-
Na Teoria da Arquitetura, a força des- zendo surgir o que não existia ainda – o espa-
se ato criador originário, assim como sua ço edificado –, possibilitou a permanência dos

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O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

grupos humanos num determinado ambiente, diferente das demais artes visuais, apesar do
agora construído. Consequentemente, possi- que as assemelha. Anota Zevi:
bilitou a instituição da vida social, incipiente
àquela altura. A pintura realiza as quatro dimensões do
espaço representando-se na superfície
Mas, para além dessa dimensão an-
[...]. A escultura não só representa as
tropológica, cuja abordagem extrapola, evi- quatro dimensões no plano e no volume,
dentemente, os objetivos deste texto, qual é mas valoriza o movimento do observador
a natureza desse vazio originário, próprio de que anda à sua volta [...]. Mas o fenôme-
uma composição projetual, ante outros possí- no interno é substancialmente original:
as cavidades, os vazios arquitetônicos,
veis vazios igualmente compostos pela ativi-
são indefiníveis no âmbito das quatro
dade humana? dimensões da pintura e da escultura.
A composição do espaço interior que (1979, p. 56)
acolhe o humano, definido por Bruno Zevi co-
mo sendo o fator distintivo da arquitetura dian- Assim, se a arquitetura compartilha, com
te das outras artes, indica uma segunda especi- a pintura, a habilidade de lidar com as dimen-
ficidade epistemológica do espaço da arquite- sões geométricas e, com a escultura, a produ-
tura. Em outras palavras, em termos edilícios, o ção de um vazio presente num vaso ou taça
que surge a partir da ação originária, arkhê, é, qualquer, somente da arquitetura se espera a
precisamente, o espaço “[...] interior [no qual] produção do espaço interno que inclui o hu-
o homem entra e caminha”, como escreve Zevi mano, indefinível e inexistente no âmbito das
(1977, p. 17). dimensões presentes na pintura e na escultura.
No entanto, se, a um olhar apressado do É nessa perspectiva, ou sob esse modo
leigo, a ideia de espaço interior como resultan- de ver, que Zevi define a criação do espaço in-
te da composição do vazio próprio da arquite- terior – composto, projetado, criado pela ação
tura pode ser vista como óbvia, essa ideia ain- humana de arquitetar, ressalte-se uma vez
da não é suficiente para a compreensão precisa ainda – como sendo o protagonista da arqui-
do que é o espaço da arquitetura. Afinal, a es- tetura, como aquilo que a distingue em relação
cultura também produz espaços internos, que, às outras artes, às artes visuais, notadamente.
no entanto, não se confundem com o espaço Assim, diz Zevi categoricamente: “Tudo o que
da arquitetura, uma vez que o espaço escultó- não tem espaço interno não é arquitetura”
rico não se destina ao acolhimento humano em (1977, p. 24).
sua experiência cotidiana. Entender a arquitetura como a criação
Desse modo, a inclusão do humano é do espaço interior que inclui o humano impli-
condição inescapável para a demarcação con- ca rever a noção de interno (dentro) e externo
ceitual do espaço da arquitetura. Por isso, Zevi, (fora) tal como a apreende o senso comum. Do
amparado em Kant e Hegel, assinala que o es- ponto de vista estritamente arquitetônico, há
paço interno que acolhe o humano se apresen- que se distinguir o espaço interno (o dentro),
ta como fator distintivo da arquitetura, isto é, composto pelo arquitetar, onde os homens en-
como aquilo que faz da arte de arquitetar algo tram e vivem, especificidade epistemológica do

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fazer arquitetônico, do espaço externo (o fora), Afinal, “Assim como as paredes, as co-
alheio à arquitetura, uma vez que esse espaço lunas, etc. são elementos de que se compõem
externo é o espaço que se dá como espaço pa- os edifícios, os edifícios são os elementos de
ra o homem, e não o espaço criado, composto, que se compõem as cidades”, escreveu Rossi
pelo homem. (1995, p. 24), citando Durand.13 Desse modo,
Assim, se a composição do vazio cons- o espaço da rua, exterior em relação a um
tituinte do espaço interno, das cavidades, edifício em particular, conforma, ele próprio,
como escreve Zevi, distingue a arquitetura em em composição com cada uma das outras edi-
relação às demais artes visuais, a destinação ficações da rua, um outro espaço interno, e
desse espaço – a inclusão do humano – distin- assim sucessivamente.
gue igualmente o espaço da arquitetura dian- Do ponto de vista metodológico, igual-
te de outros possíveis espaços existentes na mente, tanto na construção do edifício quanto
natureza e dos quais se ocupam outros cam- na construção da cidade estão presentes os
pos disciplinares. atributos próprios e específicos do espacejar
Em outras palavras, em termos epistemo- (Argan, 2000), a saber: a questão das propor-
lógicos, o espaço da arquitetura é necessaria- ções – o vocabulário tridimensional de que
mente interno, interior. Ao discutir justamente se vale o tektôn em seu ofício projetual –, da
esse ponto, o autor citado anota: escala – inescapável na construção do espa-
ço humano14 –, da forma plástica – expressão
[...] a “distinção” entre o “espaço inter-
material do ato de espacejar15 –, dentre outros
no” próprio da arquitetura e o “espaço
exterior” que define a urbanística é justifi- atributos projetuais próprios da arquitetura.
cada só num ponto de vista didático, pois Destarte, ambas, a casa e a cidade, re-
o vazio de uma praça ou de uma estrada, sultam da criação humana (arkhê ); ambas são
exterior em relação aos edifícios que o espaços construídos a partir de uma ação pro-
ladeiam, é interior em relação à cidade.
jetiva; ambas, ainda, compõem vazios, espa-
[E mais:] Os métodos que caracterizam
[o projeto de] uma praça ou uma rua não ços internos que incluem o humano. A sequên-
são diferentes daqueles que se usam para cia de fotos a seguir ajuda a entender melhor
definir as salas, as galerias, os pórticos ou essa ideia.
os pátios de um salão. (1979, pp. 72-73; Por fim, a composição do vazio constitui
grifos meus)
a terceira especificidade do espaço da arqui-
Zevi ratifica, portanto, o que escreveu Al- tetura. É essa a palavra-chave para a última,
berti quatro séculos antes dele. Não há distin- dados os limites deste texto, distinção episte-
ção, no que diz respeito à concepção do espaço mológica a ser assinalada no que diz respeito
arquitetônico, entre a construção da casa e a ao espaço da arquitetura.
edificação da cidade,12 razão pela qual, na ar- Compor, convém lembrar, é criar um to-
quitetura, podemos falar de espaços abertos e do juntando, associando, diferentes partes –
de espaços fechados, mas o espaço externo é precisamente esse o ofício do tektôn. Assim
alheio à arquitetura, quer teórica, quer meto- como o poeta compõe o poema ligando pa-
dologicamente falando. lavras distintas de uma língua, assim como

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O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

Figuras 4, 5 e 6 – O espaço interno, ainda que externo à edificação,


composto por larguras, alturas e profundidades

Fontes: Acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Figura 4); Norberg-Schulz (1998, p. 200, Figura 5) e Murillo Marx (1980, p. 56,
Figura 6).

o músico compõe sua melodia associando quer na gleba. O espaço arquitetônico resulta
acordes diversos entre si, o tektôn lança mão de uma ação projetiva que necessariamente li-
de um vocabulário tridimensional, próprio do mita e, nessa ação de limitar, constitui e define
fazer arquitetônico, para compor o espaço da o espaço da arquitetura. Sem essa delimitação
arquitetura. espacial, ter-se-ia ainda, tanto vertical quanto
Como composição, o principal ponto a horizontalmente, o espaço natural, o espaço
destacar ante a especificidade do espaço da que se dá como espaço para o homem, vasto
arquitetura é a ideia de limite, quer no lote, e indefinido.

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Lucia Leitão, Norma Lacerda

Figuras 7 e 8 – O espaço da arquitetura claramente delimitado em duas dimensões:


projeto de casa, Mies van der Rohe (Figura 7), e no desenho esquemático de
Borromini para a Igreja de Sant’Ivo (Figura 8)

Fontes: Norberg-Schulz (1998, pp. 216 e 191), respectivamente .

É essa ação de limitar, de demarcar o es- Essa ideia de composição espacial como
paço preexistente para então criar o espaço da consequência da habilidade do tektôn no ma-
arquitetura, o ponto de partida – e de chega- nuseio do vocabulário tridimensional próprio
da – na composição do espaço arquitetônico. do fazer arquitetônico, como especificidade,
Nessa ação de limitar, explicitam-se alguns dos portanto, da criação do espaço da arquitetura,
principais elementos compositivos do fazer ar- aparece, por exemplo, claramente, na proposi-
quitetônico, isto é, o vocabulário do qual lança ção e na construção da Ringstrasse, a famosa
mão o tektôn em seu ofício cotidiano. rua em anel vienense do fim do século XIX.
Larguras, alturas e profundidades, por Comentando a construção dessa rua célebre
exemplo, são definidas nessa atividade projetiva da arquitetura europeia, Schorske anota preci-
de estabelecer limites. Com isso, são igualmente samente esse ponto ao assinalar “[...] o poder
definidas a proporção, a simetria – que indica linear da rua” [largura e profundidade], um
harmonia, equilíbrio entre os elementos com- espaço onde “a massa vertical [altura] está
positivos da edificação, e não necessariamente subordinada ao movimento plano, horizontal,
repetição –, a escala, dentre outros elementos a da rua” (1988, p. 54; grifos meus).
partir dos quais se obtém a composição de um A demarcação do limite físico – quer
vazio onde os homens entram e vivem. horizontal, quer vertical – é, pois, um ponto

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O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

essencial para a composição do espaço interno cotidianamente pratica, que provém o espaço
que acolhe o humano, para a criação e para a interno, o vazio que acolhe o humano. A com-
especificidade do espaço da arquitetura. Ele- posição do espaço, isto é, de um vazio resultan-
mentos fundamentais do fazer arquitetônico, a te de uma associação de elementos próprios e
exemplo da plástica – a forma regular, irregular, específicos da arte de edificar, constitui-se, pois,
geométrica, orgânica, retilínea, curvilínea, etc. na terceira e última distinção epistemológica a
que esses limites assumem –, isto é, da expres- anotar neste texto.
são volumétrica do espaço da arquitetura, deri- Diante do exposto, tem-se que o espaço
vam precisamente desses limites compositivos da arquitetura, a exemplo do nó borromeu,
(Tedeschi, 1976). De igual modo, a escala, cuja constitui-se necessariamente a partir de uma
referência na arquitetura é o corpo humano – inter-relação de três nós, ou três eixos, que
e não o território –, deriva do estabelecimento atuam de modo associado. Em outras palavras,
desses limites projetuais, bem como da forma a definição do espaço da arquitetura exige, de
que eles adquirem. modo simultâneo, a criação de um espaço in-
Enfim, é justamente do conjunto des- terno destinado a acolher o humano, compos-
ses atributos, da demarcação volumétrica, to, necessariamente, a partir de um vocabulário
da explicitação do vocabulário do qual lança projetual específico, indispensável à construção
mão o tektôn no exercício compositivo que do teto e do muro.

Figuras 9 e 10 – O vazio, espaço interno, composto a partir das proporções,


da escala e da sua expressão plástica – a forma

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 803-822, set/dez 2016 817
Lucia Leitão, Norma Lacerda

O primeiro desses três eixos, mais perto para os três eixos anotados – étimo-filosófico,
da filosofia, diz respeito à edificação de um teórico -metodológico e compositivo (tectôni-
espaço cuja origem, concepção e apropriação co) –, de modo a possibilitar àqueles menos
se assentam na condição humana. Assim, o familiarizados com a Teoria da Arquitetura
que a arquitetura principia, origina – arkhê uma aproximação conceitual das especificida-
–, com a composição do vazio é a própria des epistemológicas próprias do espaço que
construção do espaço humano. Em outras se constitui, e assim se define, como sendo a
palavras, essa construção espacial é a um só composição do vazio.
tempo expressão e condição da aventura hu-
mana em sua experiência errante na face da
Terra. Em outras palavras, ainda, esse espaço Anotações finais
composto é a morada humana no sentido hei-
deggeriano do termo, irredutível, portanto, à
É inquestionável que a interdisciplinaridade foi
construção (tectônica) do edifício, conforme
imprescindível para o processo de construção
se anotou antes.
teórica da geografia, o que gerou, inclusive,
O segundo eixo, de natureza teórico-me-
duas grandes divisões (geografia física e geo-
todológica, aponta para o fato de que, como
grafia humana) e inúmeras subdivisões: geo-
morada humana, o espaço da arquitetura tem
morfologia, geopolítica, geoeconomia, biogeo-
concepção, destinação e função específicas –
grafia, geo-história, etc. De forma semelhante,
incluir, e nisso acolher, o humano. Para isso,
a arquitetura e o urbanismo vêm buscando
tem especificidade teórica também especí-
aportes complementares nas ciências sociais e
fica – a construção do espaço interno –, cuja
humanas (geografia, sociologia, história, antro-
implicação mais evidente em termos epistemo-
pologia, psicanálise, dentre outras), de modo a
lógicos é fazer do espaço externo algo alheio à
ampliar possíveis interações conceituais entre
arquitetura enquanto campo disciplinar.
elas. Com isso, possibilita a ampliação do de-
O terceiro eixo, mais próximo da arte,
bate conceitual no âmbito dessas ciências. No
aponta para a composição do vazio como sen-
entanto, muito há ainda por se fazer nessas
do, a um só tempo, objeto e objetivo da arte de
aproximações disciplinares.
edificar o ambiente construído. Assim, diferen-
A esse respeito, cabe registrar o que diz o
temente de outros campos disciplinares, nota-
geógrafo Marcelo Lopes de Souza: “O aprendi-
damente nas ciências sociais, o arquitetar não
zado mútuo entre cientistas sociais e arquitetos
tem como objeto, tampouco como objetivo,
precisa ser aprofundado” (2006, p. 58). E Souza
quantificar, avaliar ou analisar o espaço edifica-
vai mais além ao afirmar:
do, ou seja, o espaço da arquitetura é necessa-
riamente projetual. Os cientistas sociais envolvidos com pes-
quisa urbana precisam superar sua usual
É evidente que não se esgota aqui a
ignorância em matéria de arquitetura. A
questão da natureza do espaço da arquitetu- consciência da necessidade de maior in-
ra. Não é esse o objetivo destas notas sumá- timidade com a dimensão estética e de
rias. O que se pretendeu foi chamar a atenção funcionalidade dos objetos geográficos

818 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 803-822, set/dez 2016
O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

deve disseminar-se entre eles, que vão suficientes para entender, planejar e controlar
desde estilos arquitetônicos até a histó- a paisagem urbana”.
ria do urbanismo, passando por análises
Como se vê, muito há ainda por fazer
morfológicas e visual. (Ibid.)
com vista à construção de referências teó-
No campo da arquitetura, Lootsma ricas e de método que nos permitam, de um
(2000, p. 471) sublinha que “os arquitetos, lado, explicitar as distinções epistemológicas
com sua fixação em sua própria disciplina e quanto à noção de espaço na geografia e na
suas soluções físicas, tendem a pôr o carro arquitetura e, de outro, estabelecer as premis-
na frente dos bois [...]. [Desconhecem, assim, sas conceituais que emergem do diálogo entre
que] a arquitetura e o urbanismo já não são essas disciplinas.

Lucia Leitão
Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-
-Graduação em Desenvolvimento Urbano
leitaolu@gmail.com

Norma Lacerda
Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-
-Graduação em Desenvolvimento Urbano
norma_lac@yahoo.com.br

Notas
(1) Segundo Santos, “essa é a razão pela qual especialistas de outras disciplinas, não sabendo
claramente o que fazem os geógrafos, renunciam a incluí-los nos seus próprios debates” (2006).

(2) O primeiro Tratado de Arquitetura, de Vítruvio, remonta aos anos 20 a. C. aproximadamente.

(3) Curiosamente, é nessa década que o espaço se torna o elemento protagonista da arquitetura a
par r da contribuição notável de Bruno Zevi (1977).

(4) O espaço rela vo é entendido por Harvey a par r de relações entre os objetos – o que implica
custos, energia e tempo –, para vencer a fricção imposta pela distância.

(5) Para Soja, “o historiador, como crítico e observador social, e a história, como perspectiva
interpreta va privilegiada, tornaram-se conhecidos nos círculos acadêmicos. Em contraste, a
geografia e os geógrafos foram deixados com pouco mais do que descrição pormenorizada dos
resultados, aquilo que passou a ser chamado pelos cronistas da disciplina de ‘diferenciação de
área dos fenômenos” (1993, p. 48).

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 803-822, set/dez 2016 819
Lucia Leitão, Norma Lacerda

(6) O marxismo dos fins de século XIX caracterizava-se por sua forte vinculação ao historicismo e,
desse modo, o espaço era aniquilado pelo tempo.

(7) Para Santos (2006, p. 67), “a palavra paisagem é frequentemente u lizada em vez da expressão
configuração territorial. Esta é o conjunto de elementos naturais e ar ficiais que fisicamente
caracterizam uma área. A rigor, a paisagem é apenas a porção da configuração territorial que
é possível abarcar com a visão. Assim, quando se fala em paisagem, há, também, referência à
configuração territorial e, em muitos idiomas, o uso das duas expressões é indiferente”.

(8) Ver, a propósito, A composição do vazio (2001), documentário de Marcos Enrique Lopes sobre a
vida e a obra de Evaldo Cou nho.

(9) “Si dans le mot architecture, commence avec le commencement ce qui détermine l´œuvre, nous
devons comprendre arkhê à la fois comme príncipe originaire et comme ce qui ent en main le
devenir de la réalisa on du projet [...]”. Tradução livre.

(10) Françoise Choay, a par r da leitura que faz do texto de Alber , dis ngue, muito apropriadamente,
o termo arquitetar do ato de edificar, atribuindo a este úl mo um sen do antropológico. Neste
texto, considerando os seus obje vos, os dois vocábulos são usados como sinônimos.

(11) “Houve quem dissesse que a água ou o fogo proporcionaram os princípios que fizeram com
que se formassem as comunidades humanas. Nós, todavia, se considerarmos a u lidade e a
necessidade de uma cobertura e de uma parede [um teto e muro] para reunir e manter em
grupo os seres humanos, ficaremos convencidos de que foram certamente estes [o teto e o
muro] os fatores mais importantes [para a formação das comunidades humanas]” (Alberti
[1485], 2011, p. 138).

(12) Em pelo menos três momentos em De re aedificatoria, Alber assinala que não há dis nção
teórico-metodológica na edificação do espaço humano. A saber, (i) “[…] a cidade é, na opinião
dos filósofos, uma casa em ponto grande e, inversamente, a casa é uma cidade em ponto
pequeno” (Livro I, cap. IX, p. 170); (ii) e, assim como na cidade há fórum e praças, assim nas
casas haverá átrio, salão e outras divisões do mesmo gênero [...]” (Livro V, cap. II p. 321); e (iii):
“Dissemos que a casa é uma pequena cidade. Por isso é necessário, na sua construção, ter em
conta quase tudo aquilo que se aplica à construção da cidade” (Livro V, cap. XIV, p. 352), na
edição consultada.

(13) DURAND, Jean-Nicolas-Louis (1802-5). Précis des leçons d´architecture données à l´École
Polytechnique. Paris.

(14) “Enquanto o homem ver duas mãos para usar e dois pés para caminhar, a escala humana é
inescapável na arquitetura”, escreveu Krier (1975).

(15) A habilidade de espacejar é aqui entendida como sendo a habilidade humana para construir sua
habitação. Uma habilidade presente em todas as culturas e em todos os tempos.

820 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 803-822, set/dez 2016
O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas

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Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

822 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 803-822, set/dez 2016
Quando o projeto disfarça o plano:
concepções de planejamento
e suas metamorfoses em Belém (PA)
When the project disguises the plan: conceptions of planning
and its metamorphoses in the city of Belém, state of Pará

Ana Cláudia Duarte Cardoso


Taynara do Vale Gomes
Ana Carolina Campos de Melo
Luna Barros Bibas

Abstract
Resumo The recent initiative of the municipal government of
Uma recente iniciativa da Prefeitura Municipal de Belém to renovate the Ver-o-Peso open market, the
Belém de reformar a feira do Ver-o-Peso, principal main symbol of the capital’s historic downtown, is
símbolo do centro histórico da capital é tomada, taken, in this paper, as a starting point to discuss
neste artigo, como referência para discussão sobre conceptions of city and interventions conducted
as concepções de cidade e intervenções, conduzi- by local political groups based on coalitions
das por grupos políticos locais, a partir de coalizões with the private sector and the local media. The
com o setor privado e a mídia local. Abordam-se, paper approaches, particularly, the contradictions
particularmente, as contradições presentes na ten- observed in the attempt to internationalize
tativa de internacionalização da cidade e o caráter Belém and the selective nature that strategic
seletivo que o planejamento estratégico oferece, planning offers when the political sphere does
quando a esfera política não considera o ambiente not consider the complexity of the Amazonian
urbano amazônico em sua complexidade. O texto urban environment. The text argues that it would
alerta que seria possível criar mediações para as be possible to create mediations for exogenous
concepções exógenas de planejamento para propor conceptions of planning in order to propose a
uma base filosófica para a modernização de Belém philosophical basis for the modernization of Belém
atenta à participação popular, à festa inclusiva e à that takes into account popular participation, the
sociobiodiversidade local. inclusive party and the local socio-biodiversity.
Palavras-chave: Belém; políticas públicas; cidade Keywords: Belém; public policies; creative city;
criativa; gentrificação; sociobiodiversidade. gentrification; socio-biodiversity.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 823-844, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3710
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.

de concepção de planejamento estratégico as-


Introdução
sumidas, nos países do Norte, de revitalização
Este artigo adota uma iniciativa da Prefeitura de áreas portuárias, abandonadas após a fuga
Municipal de Belém de reformar a feira do Ver- de estruturas industriais para os países do Sul,
-o-Peso, principal símbolo do centro histórico e de sua transformação em espaços de entre-
de Belém, como mote para discussão de con- tenimento. Em que pese o sucesso econômico
cepções para a cidade, nem sempre explicita- de experiências como as de Baltimore, Boston,
das, mas conduzidas pelos grupos políticos no Londres e Barcelona, é inegável que mesmo
poder a partir de coalizões com segmentos do nesses contextos houve agravamento de desi-
setor privado e do suporte da mídia local. Após gualdades e de vulnerabilidade de grupos so-
três meses de sua divulgação, as críticas pre- ciais de menor renda (Hall, 1998). A diferença
valeceram, e a iniciativa foi suspensa sob ale- de formação econômica e social entre essas
gação do Prefeito de que fantasmas político- cidades e Belém é enorme, e assumir que mar-
-ideológicos pairavam sobre os feirantes, em gens de rios (repletas de diversos usos e arran-
alusão à resistência e à evocação de outras jos sociais) possam ser transformadas em espa-
concepções de gestão da cidade. O processo te- ços de entretenimento, em orlas espetaculares,
ve início em 2014, a partir da abertura do edital demanda inúmeras mediações.
de licitação do projeto para a feira, que foi efe- A concentração de monumentos e a ex-
tivamente contratado em setembro do mesmo cepcionalidade do conjunto urbanístico e arqui-
ano e entregue em abril de 2015. A apresenta- tetônico da área histórica de Belém (assumida
ção à população foi feita no dia do aniversário como metrópole desde o período Pombalino),
de 400 anos da cidade, em 12 de janeiro de sempre ensejaram uma expectativa de reco-
2016, sem debate prévio. Diversas audiências nhecimento desse acervo como patrimônio da
foram realizadas por determinação do Ministé- humanidade, alimentando projetos de inserção
rio Público Estadual, com mobilização de vários da cidade nas rotas do turismo nacional e in-
setores da sociedade para evidenciar que, mais ternacional. Muitas entregas foram feitas pela
do que fantasmas, há desinteresse pelo diálogo equipe do governo estadual, durante os primei-
e pela construção de uma pactuação coletiva a ros 12 anos no poder sob essa diretriz, com fo-
respeito de como tratar as áreas históricas e a co no consumo, tais como a Estação das Docas
orla da cidade. (2000), o Complexo Feliz Lusitânia (2002) e o
Procura-se situar esse episódio como Parque Mangal das Garças (2005), ao mesmo
uma etapa de um processo mais amplo, no tempo que a Prefeitura Municipal de Belém, no
qual o projeto da feira seria apenas a ponta decorrer de 8 anos de gestão de oposição a es-
do iceberg, um elemento de um conjunto mui- sa equipe de governo, desenvolveu um plano
to maior de iniciativas que há tempos procura estratégico para a orla de Belém com ênfase na
associar a recuperação de monumentos e a criação de novos espaços públicos (concurso
criação de novos equipamentos públicos com público para projeto e reforma de Ver-o-Peso,
um processo de abertura das orlas de Belém urbanização da área do Ver-o-Rio, urbanização
para o Rio. Isso, de acordo com as diretrizes da orla de Icoaraci). Apesar da concorrência

824 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 823-844, set/dez 2016
Quando o projeto disfarça o plano

entre níveis do setor público, a área histórica contradições entre as estratégias de invisibili-
foi prioritariamente tratada pelo viés da preser- zar segmentos da população que vivem ou tra-
vação de suas estruturas físicas e da restaura- balham nas áreas-alvo da espetacularização da
ção de edifícios históricos, representativos da cidade e da necessidade de explorar cultura e
memória coletiva e de forte apelo simbólico e tradição e mesmo marcas e símbolos, construí-
estético, mas ainda alienados do acúmulo de dos através de séculos de trabalho pelas pes-
práticas sociais e culturais do lugar e dos pro- soas que agora representam o ambiente hostil
cessos globais a que as cidades estão sujeitas e, e selvagem, a decadência urbana, o perigo e
particularmente, do modo como Belém assimi- a desordem, identificados e ainda não contro-
lou as transformações ocorridas na Amazônia lados, com forte risco de “jogar a água com a
desde os anos 1960. Em que pese a motivação criança junto”.
econômica de alavancar o turismo, na escala Em 29 de agosto de 2015, uma série de
local, o debate sobre possíveis antídotos para reportagens foi veiculada na mídia impressa,
processos de gentrificação, alienação social e televisiva e digital local, sobre a orla da cida-
museificação foi deixado em segundo plano. de, com a manchete “Favelização toma conta
Após um intervalo de 4 anos, em 2011 da orla de Belém” (ver Figura 1), destacando
a mesma equipe retorna ao Governo Estadual, o quanto portos clandestinos e cemitérios de
dessa vez com total alinhamento político com a barcos degradam a orla e estimulam constru-
equipe da Prefeitura de Belém a partir de 2013, ções ilegais, bloqueando o contato da cidade
o que favoreceu a retomada da antiga propos- com o rio, na contramão das providências, em
ta de projetar Belém no cenário internacional, curso no País, de desocupação de áreas de
agora não mais baseada na revitalização de preservação permanente, citando o exemplo
estruturas históricas, mas no potencial de bio- das demolições ocorridas na orla do Lago Pa-
diversidade, sustentabilidade e turismo, este ranoá, em Brasília.
último fortemente apoiado na cultura, gastro- O maior destaque foi dado para a área
nomia, música e saberes populares e ancorado do Porto do Sal – repleta de estivas, palafitas,
em Belém, demonstrando inspiração no ideá- oficinas, estaleiros e inúmeras embarcações,
rio da sociedade criativa, difundido nas últimas com usos e formas de apropriação orientados
décadas, por economistas norte-americanos e por uma população ribeirinha, que historica-
canadenses (Florida, 2010 e Glaser, 2011). mente reconhece a orla e o rio como espaços
Uma mistura dessas duas “escolas” fun- de produção e reprodução da vida – completa-
damenta as propostas para a capital – planeja- mente diversa da ocupação recente (e crimino-
mento estratégico catalão e sociedades criati- sa) de Área de Preservação Permanente da orla
vas –, viabilizadas pela euforia do alinhamento do Paranoá.
político dos dois níveis da administração públi- A localização desse porto popular pode
ca e pela simpatia de setores privados pelos te- explicar a atenção especial para essa fração da
mas, reeditou os antigos projetos de interven- orla de Belém. O Porto do Sal foi construído nu-
ção tendo em vista o aumento do volume de ma época em que o Ver-o-Peso era dominado
turistas internacionais, acentuando, contudo, pela elite comercial da cidade, na divisa entre

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 823-844, set/dez 2016 825
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.

Figura 1 – Capa do Jornal O liberal sobre a precariedade da orla de Belém

Fonte: http://www.ormnews.com.br/oliberal.

a orla urbanizada e repleta de monumentos completa conexão entre o Conjunto Feliz Lusi-
históricos da Baía do Guajará e a orla do rio tânia e o Mangal das Garças (já apoiado por
Guamá ocupada por usos industriais regionais, hotéis de charme) e o Portal da Amazônia.
pequenos portos e palafitas, mais precisamen- Em outubro de 2015, o Pavilhão do Brasil
te entre o complexo Feliz Lusitânia, o Mangal na ExpoMilão, realizada na Itália sob o tema
das Garças e o Portal da Amazônia. O Portal “Alimentado o mundo com soluções”, contou
consiste em aterro realizado pela Prefeitura com a culinária paraense como estrela da festa.
Municipal de Belém para implantação de uma Foram 20 milhões de visitas e auditórios lota-
via beira-rio que, associada a uma ação de ma- dos com audiência interessada em frutas, ervas
crodrenagem na bacia da Estrada Nova, conec- e pratos típicos do Pará. Como desdobramento
tará a área histórica à cidade universitária da desse evento, o Governo do Pará e a Prefeitura
Universidade Federal do Pará, a partir de onde Municipal de Belém promoveram os “Diálogos
seria possível sair da cidade por eixos que há Gastronômicos”, com a presença de chefs de
vinte anos estão em processo de duplicação e/ renome internacional e, no decorrer do evento,
ou extensão. O Porto do Sal é um espaço po- foi apresentado o projeto do Centro Global de
pular, com usos genuínos, mas de população Gastronomia e Biodiversidade da Amazônia.
não controlada o suficiente para viabilizar a Essa notícia1 foi veiculada pela mídia nacional,

826 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 823-844, set/dez 2016
Quando o projeto disfarça o plano

informando que o complexo Feliz Lusitânia (on- cada comerciante era disposta permitia a am-
de são localizados o Forte do Castelo, a Cate- pla visibilidade do espaço de comercialização
dral da cidade e o conjunto jesuítico composto e, com isso, favorecia o controle visual de ven-
pelo arcebispado e pela Igreja de Santo Alexan- dedores e consumidores, dificultando a prática
dre) abrigaria o centro de gastronomia, a esco- de atividades ilícitas no local (tráfico de dro-
la de gastronomia, o laboratório de alimentos, gas, furtos, etc.) e permitindo que os feirantes
o barco cozinha, o museu e restaurantes. negociassem produtos rapidamente para aten-
Em 11 de dezembro de 2015, Belém rece- der a um freguês. Esse arranjo espacial vem
beu título de Cidade Criativa da Gastronomia, mudando e, na nova proposta, seria completa-
2 mente eliminado.
concedido pela Unesco, conquista de uma
articulação entre Governo Estadual, Prefeitu- Por outro lado, as novas propostas in-
ra e instituições que promovem e divulgam a corporam estruturas próximas, algumas já re-
gastronomia paraense, defensores de gastro- cuperadas como o Palacete Pinho que, após a
nomia sustentável e entidades envolvidas com restauração, em 2011, não teve destinação de
empreendedorismo regional. Nesse mesmo uso, e também reclamam a revisão dos espaços
ano, foram abertos os boxes gourmet no Mer- tradicionalmente ocupados por práticas popu-
cado de Carne, edifício histórico restaurado e lares, como a Feira do Açaí, o Porto do Sal, os
entregue à população em 2011, que marcam a galpões abandonados do Porto (ampliação da
tendência de mudança de uso desses equipa- Estação das Docas)3 e os edifícios históricos da
mentos (mercados de carne, mercado de peixe Avenida Boulevard Castilhos França, que dá
e feira do Ver-o-Peso) manifesta na concepção acesso a muitos desses equipamentos. De um
do projeto da feira, apresentado em janeiro de modo geral, observa-se que alguns setores da
2016, e nas novas regulamentações sobre a sociedade contam com acesso privilegiado à
criação do “Espaço Gastronômico Cultural da informação, o que tem viabilizado a aquisição
Amazônia” (decreto municipal n. 84.986/2016) de imóveis que necessitam de obras de res-
e sobre operação de feiras e mercados em Be- tauração por grupos seletos de empresários,
lém (decreto municipal n. 84.927/2016). Estas visando a sua adaptação para acomodação de
últimas alteram as formas de concessão e jus- visitantes (pousadas e albergues), restaurantes
tificam a mudança das estruturas físicas dos e bares, que, do ponto de vista físico, tendem a
boxes com base nas exigências de condiciona- não realizar o restauro, mas a criar cenários e,
mento dos alimentos estabelecidas pela Anvi- do ponto de vista social, tendem a promover a
sa. Vale ressaltar que, além de dificultar a ade- gentrificação da área, caindo na contradição de
quação dos antigos feirantes, as novas regula- remover os elementos que compuseram a pai-
mentações rompem com o modus operandi já sagem sociocultural responsável pela ascensão
estabelecido em feiras e mercados da cidade, de Belém como um destino turístico. As Figuras
de exploração dos boxes por famílias há gera- 2 e 3 mostram algumas das áreas/estruturas
ções. Espacialmente, novas soluções tecnológi- citadas para melhor compreensão do entrela-
cas induzem mudanças no modo de operação çamento existente entre espaços monumentais
na feira. Por exemplo, a forma como o box de e de valor históricos e espaços populares na

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Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.

Figura 2 – Tipos de usos da orla de Belém


LEGENDA
Ver-o-Peso
Porto do Sal
Porto do Açaí
Porto da Palha
Estação das Docas
Mangal das Garças
Portal da Amazônia

Fonte: Figura elaborada por Luna Bilbas, a partir de imagem do Google Earth, 2016.

Figura 3 – Projetos na orla do centro histórico

Terminal hidroviário

Estação das Docas

Casario (especulação)
Ver-o-Peso corredor gastronômico
Mercado de carnes-quiosques

Casa das Onze Janelas -


restaurante

Porto do Sal - Porto


turístico
Palacete Pinho -
escola de gastronomia
Boteco Arsenal
Novo Hotel Atrium -
Quinta de Pedras

Mangal das Garças

Portal da Amazônia

Orla da Estrada Nova

Continuação
até a Universidade
Federal do Pará

Fonte: Figura elaborada por Luna Bilbas, a partir de imagem do Google Earth, 2016.

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Quando o projeto disfarça o plano

orla do centro histórico de Belém, e que agora Diante do acervo arquitetônico e da so-
extrapola para a orla do Rio Guamá, tradicio- ciobiodiversidade existente em Belém, são ine-
nalmente ocupada por população de baixa ren- gáveis a vocação e a pertinência da proposta
da e por usos produtivos.4 de torná-la um destino turístico, sob a perspec-
tiva da busca de fortalecimento da competiti-
vidade das cidades no cenário internacional e,
sobretudo, como possibilidade de valorização e
Revelando as distorções sofisticação do saber tradicional e dos recursos
das fórmulas externas da floresta (Silva, 2015). Contudo aspectos re-
lacionados com o exercício da liderança políti-
Vinte anos após a conferência da ONU Habitat, ca promotora do projeto estratégico (o prefeito
em 1996, quando Borja e Castells prepararam carismático)5 ou com as possíveis inovações
um documento sobre como construir o pro- administrativas e práticas de governança com-
tagonismo político de cidades, com base em prometidas com a diversidade e cooperação
exemplos de cidades europeias, norte-ameri- social são fundamentais para a discussão de
canas, asiáticas e sul-americanas consideradas uma concepção do gênero para Belém, para a
bem-sucedidas no enfrentamento da crise eco- construção de mediações necessárias entre as
nômica iniciada nos anos 1970, seus princípios recomendações dos autores catalães e a sua
fundamentam a concepção de cidade que gru- assimilação no contexto paraense, conforme
pos da elite política e econômica local esperam exposto a seguir.
tornar hegemônica em Belém. A localização Borja e Castells (1996) abordam contex-
do mercado em área histórica, constituída por tos metropolitanos, nos quais há concorrência
conjuntos de praças, palácios, igrejas monu- de diversas cores políticas (prefeituras dos
mentais, parque botânico, museus e espaços de municípios constituintes) e necessidade de
consumo adaptados em estruturas históricas ação em diversas áreas de política pública pelo
(antigos galpões portuários), tem contribuído governo local (gestão urbanística, economia,
para a terceira colocação da cidade no ranking segurança, seguridade social), que no caso de
dos destinos turísticos nacionais. Até a primeira Belém estão longe de serem equacionadas. A
metade do século XIX, o atual centro histórico expectativa de melhorar a atuação do governo
abrangia toda a cidade e abrigava espaços po- local através do fomento de parcerias público-
pulares na orla do Guamá e as elites na orla da -privadas em situações de disputa com gover-
Baía do Guajará. A Figura 4 ilustra a distribui- nos nacional e regional, também é relativizada
ção de monumentos (palácios, equipamentos no caso de Belém, metrópole terciária que sem-
públicos, igrejas, conventos, um conjunto de pre sofreu forte impacto das ações federais.
praças monumentais, algumas viabilizadas por Outra inovação política proposta foi
aterros de várzeas e sobre a Baía do Guajará) e a construção de uma identidade coletiva,
destaca os símbolos do poder histórico da elite que Vainer (1999) traduz como patriotismo,
sobre esse território. manifesta em termos concretos na adoção

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Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.

Figura 4 – Mapa do centro histórico de Belém,


com a marcação de praças, palácios, igrejas.
Ao lado, dois dos principais pontos turísticos da capital de Belém:
o Teatro da Paz e a Praça do Relógio

Fonte: http://noticias.orm.com.br/praçadarepublica

LEGENDA
Praças
Palácios e palacetes
Igrejas e capelas
Malha urbana

Fonte: Elaborado por Luna Bibas a partir de imagens do Fonte: http://www.diarioonline.com.br/noticias/praçadorelogio


Google Earth, 2016.

simbólica de zonas de investimentos como re- populações de risco, combate de diversas for-
presentativas do conjunto da cidade e do uso mas de racismo, discriminação social, étnica
de publicidade turística para a atração de in- ou religiosa, xenofobia, etc. (Borja e Castells,
vestidores estrangeiros e parceiros privados. 1996), de sucesso discutível mesmo nos países
Na concepção catalã, admite-se o destaque do Norte, e que, no caso brasileiro, gerou toda
de áreas a serem tratadas de modo excep- uma literatura sobre a espetacularização de ci-
cionalizado, merecedoras de patamares mais dades que sediaram os eventos internacionais
elevados de segurança e qualidade de pro- recentes no País, abordando o impacto sobre
jeto, com áreas objeto de operações urbanas a população local das intervenções públicas e
coordenadas pelo setor público, que articulem privadas realizadas de modo seletivo para ala-
transformação física e ação de reintegração de vancar o turismo.

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Quando o projeto disfarça o plano

No caso do projeto em tela, observa-se ação estatal em áreas estratégicas de mobi-


que não há tentativa de integração de popu- lidade, comunicações, inclusão digital, para
lação marginalizada ou excluída, mas de co- fortalecimento da cidadania (Borja e Castells,
optação do habitante por uma plataforma de 1996), e não há destaque para esses elementos
cidade importada de um contexto industrial (ou na concepção estratégica em tela para Belém,
a ele adaptada), voltada para o mercado inter- nem indício de fortalecimento da capacidade
nacional, com apropriação da diversidade de de planejamento municipal, ponto-chave para
sabores, aromas, sons, desenvolvida e difundi- que haja alguma capacidade de protagonis-
da por séculos através da sociobiodiversidade mo do poder público municipal na condução
local, que, ao fim e ao cabo, finda na exclusão das transformações desencadeadas pelos in-
do habitante original por força da gentrifica- vestimentos oficiais. Nesse aspecto, deve-se
ção, como foi o caso em tantos outros casos esclarecer que as ações de planejamento diri-
brasileiros (Recife, Salvador, Rio de Janeiro). gidas à cidade são historicamente setoriais e
Os autores catalães recomendam tam- de caráter incremental. O Quadro 1 ilustra a
bém ações que articulem produção de habita- desarticulação histórica entre políticas de pre-
ção, geração de emprego e renda, integração servação, planejamento setorial de transporte,
cultural, articulação entre centro e periferia e saneamento e habitação. Iniciativas da gestão

Quadro 1 – Sumário da prática desarticulada de intervenções setoriais


em Belém e suas implicações para a gestão do centro histórico

O Centro Histórico de Belém passou por inúmeros aterros e intervenções relacionadas aos rios
e várzeas internas. O primeiro aterro aconteceu na metade do século XIX, e deu origem à praça
em frente ao Palácio da Prefeitura e à Doca do Ver-o-Peso. Na virada do século XX o igarapé do
Reduto foi canalizado e a doca do Reduto construída, esta última fechada poucos anos depois com a
construção do Porto de Belém. Nos anos 1970 uma grande macrodrenagem realizada pelo governo
federal viabilizou a construção da Av. Visconde de Souza Franco, que delimita a área protegida como
entorno do centro histórico. Nos anos 1980 a Prefeitura Municipal de Belém e o Governo do Estado
do Pará tomaram empréstimo no Banco Mundial para realizar grande ação de macrodrenagem na
Bacia do Una, distante do Centro Histórico, mas cuja experiência manteve a visão setorial histórica do
saneamento e não previu controle de transformação de uso e ocupação do solo nas áreas afetadas.
Novo contrato com o Banco Mundial foi assinado em 2007, e operado nos mesmos termos, para a
macrodrenagem da Bacia da Estrada Nova, adjacente ao Centro Histórico, ação que ainda está em
andamento e é casada com a construção do aterro do Portal da Amazônia, entregue em 2012. Cada
ação foi implementada de forma desarticulada em relação à política de gestão do Centro Histórico,
que é tratada como uma zona especial pela Lei Complementar n. 2/1999 que incorporou a regulação
estabelecida por lei específica (Lei n. 7.709/1994), que tombou o Centro Histórico, delimitou sua área
de entorno e estabeleceu incentivos fiscais para a preservação de seus bens imóveis. O Plano Diretor
de Transporte Urbano prevê articulações globais mas não detalha soluções específicas para o Centro
Histórico. Da mesma forma os Planos de Saneamento e Habitação não contam com escalas de atuação
que contemplem o Centro Histórico. Assim foram constituídas lacunas que facilitam a atuação a partir
de projetos, que independem das premissas das políticas urbanas ou instrumentos de gestão em vigor

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Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.

municipal na última década procuraram abor- que houve acúmulo de investimentos no de-
dar as orlas da cidade de forma sistêmica, mas correr de décadas e em que muito das provi-
não foram consolidadas como um instrumento sões para suporte à vida já tinham sido garan-
de gestão (Belém, 2004). Apesar disso, a vita- tidos, e a administração pública está prepara-
lidade da região sempre foi mantida, dada a da para atuar de forma inteligente em prol do
localização estratégica para os segmentos po- interesse coletivo.
pulares e ribeirinhos, pouco exigentes quanto O discurso da “cidade criativa” também
à modernização de infraestrutura de portos, foi assumido como slogan publicitário de le-
feiras e espaços em geral. gitimação das intervenções estratégicas em
A continuidade de gestão (reeleição, ex- andamento no centro histórico de Belém. É
tensão de mandato) não tem sido um proble- interessante recuperar que o conceito de cida-
ma, nem o alinhamento político de diferentes des criativas, popularizado por Richard Florida
níveis de governo, e talvez por isso pouco es- (2010), sugere três pilares básicos (3 T’s) para
forço seja feito para potencializar o diálogo construção de uma economia urbana dinâmica:
com a população e construir processos de mo- tecnologia, talento e tolerância. Para o autor,
do coletivo. A gestão local não inova ou apro- estes são conceitos-chave para promover o de-
veita novas tecnologias para potencializar os senvolvimento criativo e inovador, apoiado nu-
canais de comunicação interna, na mesma pro- ma sociedade culturalmente tolerante e diver-
porção que investe nas negociações técnicas e sa. Essa abordagem enxerga o ambiente urba-
comerciais voltadas para a articulação com re- no como nó gerador de energia criativa e pro-
des internacionais (eventos e voos regulares in- dutiva e suas especificidades como elementos
ternacionais). Existem assimetrias de poder na potenciais para dinamização da economia local
sociedade que inviabilizam a ampla discussão e regional. Segundo Furtado e Alves (2012), a
democrática e a construção de um plano estra- combinação entre cidades e criatividade repre-
tégico efetivo e viável, que considere e poten- senta uma estratégia poderosa para a reutiliza-
cialize o potencial do mercado interno. ção dos ativos urbanos (sociais, culturais, natu-
Por vezes, ações de recuperação são rais) em benefício da sua população.
fundamentadas no valor histórico da edifica- No entanto, apesar dos fundamentos po-
ção e não contam com uma proposta firme líticos e da perspectiva progressista do concei-
de uso que articule a intervenção urbanística; to, alguns autores têm questionado as tensões
noutros casos a sofisticação excessiva cria es- presentes entre a forma como as cidades criati-
paços de consumo que tendem a gerar exclu- vas são concebidas nos países do Norte e o que
são social e “disneyficação” (espaços contro- elas realmente se tornam quando o discurso é
lados para turistas). colocado em prática, especialmente no hemis-
As recomendações do documento elabo- fério Sul (Pratt, 2010 e Mendes, 2012). Em mui-
rado pelos catalães, em 1996, são compreen- tos casos, a implantação de planos estratégicos
síveis a partir do contexto que o gerou. Inicia- com esse enfoque resultou em verdadeiros
tivas de flexibilização de práticas clássicas de retrocessos sociais e impactou negativamente
planejamento são plausíveis em contextos em os espaços de intervenção e seus entornos, na

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Quando o projeto disfarça o plano

medida em que renovou estruturas e implantou populares e tradicionais (feira, porto, estivas)
usos que diferenciam áreas urbanas sob a pers- que hoje dão sentido à originalidade do lugar.
pectiva do setor imobiliário. É digno de nota que a crise que motivou a for-
A cidade criativa emerge como possi- mulação da cidade criativa nos países do Norte
bilidade de recomeço para as cidades, após a também transformou a própria cidade em ob-
flexibilização produtiva e a desindustrialização jeto de acumulação, de tal modo que as áreas
generalizada de grandes centros urbanos do requalificadas são facilmente incorporadas co-
mundo capitalista, na década de 1970 (Harvey, mo fronteira de expansão do capital pelo setor
2011). Num contexto de acirramento da com- imobiliário, ampliando as desigualdades socio-
petição interurbana e de ascensão do plane- espaciais históricas.
jamento estratégico e empresarial, as cidades Além das críticas lançadas à ideia de cida-
passaram a buscar novas alternativas para de criativa, há outras nuances em questão quan-
atração e reprodução do capital. No entanto, do se trata de transpor para a cidade periférica
se, de um lado, a abordagem de Richard Flori- abordagens hegemônicas do Norte global.
da enfatiza a relação entre cidade, criatividade Os novos usos e empreendimentos as-
e inovação como estratégia para promover o sociados ao fortalecimento da identidade de
crescimento econômico e a vitalidade urbana e cidade criativa, como os museus e os espaços
a elevação do bem-estar da vida de seus habi- culturais e gastronômicos, são traduzidos como
tantes; de outro, existe também nessa vertente uma intervenção estratégica em uma determi-
a expectativa de tornar a cidade objeto de es- nada área, que acaba se tornando representati-
peculação e de orientar as ações de renovação va do todo em termos simbólicos, para efeito do
urbana em favor do mercado. Essa dinâmica processo de internacionalização. Isso converge
se reproduz de forma mais perversa em paí- para o caráter seletivo que o planejamento es-
ses periféricos, pois nesses contextos os espa- tratégico oferece. Nessa via, o potencial criativo
ços interessantes para o setor imobiliário são genuinamente popular, como é o caso das prá-
mais restritos, criando a necessidade de aber- ticas sociais que se manifestam no Ver-o-Peso,
tura de novas fronteiras. No caso de Belém, o tende a ser apropriado pelas elites locais e usa-
centro histórico surge como uma fronteira de do para intensificar as assimetrias sociais.
acumulação, na medida em que os novos in- Quando observados com mais detalhe,
vestimentos são capturados rapidamente pelo os desdobramentos desse processo nos países
setor imobiliário. Embora essa resposta pos- do Sul global são bastante diferentes dos seus
sa combinar temporariamente os novos usos congêneres, manifestos nos centros irradiado-
(hotéis, bares, restaurantes, museus) à diversi- res do Norte. Na raiz do conceito, há um pres-
dade e à vitalidade da dinâmica sociocultural suposto da existência de um grande potencial
já existente, é muito provável que o resultado de mercado consumidor, que não se aplica ao
final redunde num processo de gentrificação contexto de Belém. Há a exclusão deliberada
e homogeneização do espaço, assim como é de uma parcela significativa da população, que
sintomática a destruição criativa (fenômeno opera no âmbito da economia popular e que
explicado por Shumpeter, 1988) das estruturas domina os saberes, ofícios e modos de fazer

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tradicionais articulados à base natural da re- Há divulgação, para a população, de


gião, com alta capacidade criativa e de resiliên- que os investimentos alavancarão o turismo,
cia, em oposição à forma de operar do circuito dinamizarão economicamente a cidade, mas
superior, como definido por Santos (1979); este a maneira como o processo tem sido condu-
último é pautado pelos impulsos externos de zido (acesso à informação, tipo de empreen-
modernização e pelas relações que mantém fo- dimentos e temas destacados) não assume as
ra da cidade e da região em que atua. rédeas das mudanças de uso nas estratégias
A proposta de requalificação do comple- de apropriação do espaço público ou da valo-
xo do Ver-o-Peso (ver Figuras 5 e 6) apresen- rização imobiliária e de sua captura por uma
ta vários elementos dessa fórmula: traça uma minoria que adquiriu imóveis na região, antes
abordagem que se preocupa particularmente que o projeto dos investimentos oficiais fos-
com as possibilidades de rentabilidade finan- sem tornados públicos.
ceira e de projeção nacional e internacional da O posicionamento filosófico assumido
culinária local em favor de grupos empresariais por ações já executadas em Belém demonstra
e de interesses privados, desconsidera a ela- que há duas formas bastante diversas de arti-
boração de estratégias que promovam socia- culação com essas concepções internacionais
lização e redistribuição dos benefícios para a sobre o protagonismo das cidades. O Quadro
coletividade e, sobretudo, para aqueles grupos 2 contrasta duas trajetórias de ação baseadas
sociais que, ao longo de gerações, têm sido em concepções orientadas para o consumo
responsáveis pela sobrevivência, reprodução e o turismo e para a melhoria das condições
e difusão das práticas coletivas e dos saberes de apropriação do espaço público e de condi-
populares e que tornam essa feira um espaço ções de vida da população, que revelam que é
singular; uma festa dos sons, sabores, ritmos e inevitável embarcar nas ondas de moderniza-
cores que sintetiza a autenticidade da sociobio- ção e que há a possibilidade de escolha de a
diversidade amazônica. quem colocá-las a serviço.

Figura 5 – Atual feira Figura 6 – Projeto


do Ver-o-Peso de requalificação do Ver-o-Peso

Foto: Cezar Magalhães/DOL Fonte: http://avozdoxingu.com.br/page/5/

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Quando o projeto disfarça o plano

Quadro 2 – Estratégias de planejamento urbano empresarial e popular

Planejamento Estratégico Empresarial Planejamento Estratégico Popular


No planejamento estratégico empresarial os No planejamento estratégico popular os projetos
projetos implantados apresentam um alto grau de tem como objetivo dar visibilidade para os
sofisticação e modernização que descaracteriza elementos peculiares da cidade, integrando ao
a identidade e as práticas tradiconais do lugar. convívio da população, ordenando as atividades
Os projetos são viabilizados para atrair turistas, culturais, de lazer, de tráfego e transportes e
empresários e um público específico com recuperando a paisagem urbana, bem como a
capacidade de consumir essa nova modalidade. qualidade ambiental reconhecendo os espaços
As etapas de elaboração e implantação dos de usos tradicionais da orla, como os portos,
projetos não apresentam diálogos abertos com terminais, praças, apresentando diretrizes para
a população e nessa lógica se sobressai os consolidar, ampliar e requalificar esses espaços
interesses privados em detrimento dos interesses partindo dos interesses coletivos e viabilizando
coletivos, acentuação a segregação social. ações pontuais que geram inclusão social.

Figura 7 – Mangal das Garças Figura 8 – Ver-o-Rio

Fonte: https://beirouth.files.wordpress.com/2014/04/man- Fonte:http://1.bp.blogspot.com/-miBUMHgk8jQ/UnbYDGO-


gal_panoram.jpg EkvI/AAAAAAAAIeM/WBirslnYGy8/s1600/Ver-o-rio-4.jpg

Figura 9 – Estação das Docas Figura 10 – Orla de Icoaraci

Fonte: https://c1.staticflickr.com/6218744044_732dd29e45_b. Fonte:https://media-cdn.tripadvisor.com/photo-s/09/29/3d/a7/


jpg orla-de-icoaraci.jpg

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Cidade Criativa Empresarial Cidade Criativa Popular


Na cidade criativa empresarial está presente a Na cidade criativa popular encontra-se os apectos mais
tecnologia e a inovação a partir da sofisticação, humanos do conceito base de Florida (2010), o talento, a
o aspecto humano surge com o consumo e a tolerância, a diversidade, a boemia, os profissionais das áreas
contemplação. É um capitalismo criativo, que absorve criativas (artistas, dançarinos, músicos, cozinheiros, pintores,
as estratégias que emergem com as cidades criativas, performers) e é a partir desse contexto social que surge a
mas tem como base o desenvolvimento econômico possiblidade de atrair essa nova economia. É um contexto
e ignora o capital humano. A cidade criativa inclusivo, que se apropria e dá vida a determinados espaços
empresarial cria novas fronteiras imobiliárias a partir da cidade através de sons, sabores, ritmos e cores. No popular
dessas novas atrações, intensifica as assimetrias, cria os espaços passam a ter um uso coletivo, comunitário,
uma “marca” e tem o foco na geração de valor. colaborativo, é um espaço que emerge a partir da criatividade.

Figura 11 – Boteco do Arsenal Figura 12 – Bar do Rubão

Fonte:https://www.tripadvisor.com/Boteco_Arsenal.html Fonte:https://imagesapt.apontador-assets.com/fit-
-in/640x480//bar-do-rubao.jpg

Figura 14 – Encontro Cultura


Figura 13 – BoulevArte na Praça das Mercês

Autor: Renato Reis (2015). Autor: Arlem Araújo (2015).

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Quando o projeto disfarça o plano

Nos últimos anos instituições públicas recupe-


Por uma nova base filosófica
raram alguns imóveis (Sesc Boulevard), mas,
para a modernização em 2015, aumentou a procura por tais edifica-
de Belém ções pelo setor empresarial (ver Figuras 15, 16,
17 e 18).
O entrelaçamento entre a base natural da re- A feira é elemento típico do ambiente
gião (o rio, a floresta) e o conhecimento tradi- urbano amazônico, que normalmente ocupa
cional tem sustentado as atividades econômi- vários quarteirões no centro de qualquer ci-
cas nucleadas em Belém, desde a sua funda- dade tradicional, nas proximidades do rio. No
ção, sobretudo aquelas ligadas à exportação de caso de Belém, também é o ponto de contato
matérias-primas oriundas da floresta amazôni- entre produção popular (o pescado, as frutas,
ca. A economia mercantil fortemente apoiada a farinha, as ervas) e a empresa capitalista
nas práticas extrativistas foi favorecida pela (cadeias de supermercado, indústrias de ali-
miscigenação entre europeus e índios duran- mentos), graças ao crescimento do mercado
te o século XVIII, constituindo uma população interno na Região Metropolitana de Belém
cabocla que reteve o conhecimento da floresta, ocorrido nas últimas décadas (Araújo, Souza e
ao mesmo tempo que se se integrou à racio- Rodrigues, 2015).
nalidade produtiva (Costa, 2009) e que gerou Infelizmente, a especialização no forne-
o potencial criativo da capital paraense e seu cimento de matérias-primas não viabilizou a
vínculo com a matriz popular. divisão social do trabalho tão necessária para a
Esse processo contribuiu para que, no de- promoção de desenvolvimento em Belém ou na
correr de quatro séculos, o Ver-o-Peso se trans- região. Belém nunca contou com a dinâmica de
formasse na maior feira livre do País e nucleas- pleno emprego e a de assalariamento, típicas
se um complexo que abrange a Feira do Açaí, do contexto industrial central, embora sempre
a Pedra do Peixe, os Mercados do Peixe e de tenha havido abundância de alimento e condi-
Carne, o Solar da Beira e as Praças do Pescador ções de improviso para viabilizar a reprodução
e do Relógio. O reconhecimento do valor histó- da vida. Essa “contradição” sempre gerou, na
rico e arquitetônico desse espaço levou ao seu visão do migrante, uma interpretação de indo-
tombamento e também do conjunto arquitetô- lência por parte do caboclo, nativo e detentor
nico adjacente, que incorpora mais praças, pa- do conhecimento necessário para tirar o sus-
lácio e o casario antigo. Os imóveis particula- tento do bioma.
res têm sido mal-preservados, alguns estão em A instauração de uma nova ordem
ruínas, e muito pouco avanço foi observado nas mundial, segundo a qual cidades dos países
tentativas de articular políticas naquela área, do Norte perderam postos de trabalho indus-
aproveitando o acúmulo de infraestrutura e triais, foram despoluídas, renaturalizadas,
suas vocações econômicas, assim como as li- vem destacando oportunamente infraestrutu-
mitações de acessibilidade em relação à cidade ra e camadas técnicas de suporte às ativida-
como um todo (por exemplo habitação de in- des e o capital cultural e humano acumula-
teresse social, geração de renda, mobilidade). dos, como recurso para inaugurar uma era de

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Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.

Figura 15 – Complexo do Ver-o-Peso

LEGENDA
01 - Mercado de Peixe
02 - Solar da Beira 06 - Área de estacionamento
03 - Feira do Ver-o-Peso 07 - Docas
04 - Mercado de Carne 08 - Feira do Açaí Complexo Ver-o-Peso
05 - Praça do Pescador 09 - Praça do Relógio Elementos constituintes do Ver-o-Peso

Fonte: Carvalho, Lima e Leitão (2010).

Figura 16 – Conjunto arquitetônico e paisagístico do Ver-o-Peso

LEGENDA
Complexo Ver-o-Peso

Conjunto arquitetônico e paisagístico Sobreposição do Complexo Ver-o-Peso


do Ver-o-Peso – Tombado com o conjunto tombado

Fonte: Carvalho, Lima e Leitão (2010).

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Quando o projeto disfarça o plano

Figura 17 – Feira do Açaí Figura 18 – Pedra do Peixe

Fonte: http://www.matraqueando.com.br/feira-do-acai Fonte: https://expodoslados.wordpress.com/page/2/

concorrência por segmentos de economia cria- (CGEE, 2009), novamente, recorrendo, quan-
tiva ou de busca do bem viver, fomentada por do muito, à adaptação seletiva de espaços
investimentos públicos e oferta de qualidade para melhorar a oferta de condições de vida
de vida (Hall, 2014). desse público-alvo, na esteira do processo
Durante a maior parte desse mesmo de produção de novas áreas pelo setor imo-
período (meados dos anos 1970 e anos 1980), biliário, que na última década assumiu tais
houve outro movimento nas cidades dos paí- cidades como locais privilegiados para inves-
ses do Sul, o da concorrência para receber timentos, em face das maiores oportunidade
indústrias clássicas ou para assumir uma po- de acumulação primitiva que estas oferecem,
sição na rede mundial a partir do potencial quando comparadas às metrópoles e cidades
turístico (de lazer, negócios ou eventos) (Hall brasileiras de outras regiões, onde há maior
e Pfeiffer, 2000). No caso de Belém, em um incidência de um espaço intraurbano, e ele é
primeiro momento, observou-se ligeira ação mais organizado (Brasil, 2007).
de industrialização no município vizinho de Nos países do Norte, a redução de es-
Barcarena, criação de distritos industriais que truturas de planejamento, a flexibilização de
não deslancharam em Belém e Ananindeua e normas e a negociação entre setores público
um fortalecimento das atividades de comércio e privado ocorreram em uma correlação de
e serviço decorrentes das ações do grande ca- forças equilibrada pelas formas de organiza-
pital e do Governo Federal, pulverizadas pe- ção social estabelecidas desde a fase indus-
lo interior do estado (Cardoso e Lima, 2015). trial, pelo acúmulo de serviços e infraestru-
Recentemente, as cidades amazônicas têm tura decorrentes de décadas de existência de
pleiteado a instalação de parques de ciência e um estado de bem-estar social (Hall, 1998).
tecnologia, na expectativa de atração de insti- No contexto amazônico, a chegada de novas
tuições e pesquisadores interessados na pes- possibilidades produtivas ou da referência à
quisa de ativos amazônicos (biodiversidade) simplificação da ação de planejamento chega

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Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.

sem nenhuma dessas credenciais. Ainda não isso, há de se ter cuidado com a explicitação de
houve mínima estruturação técnica para que seus posicionamentos filosóficos e as formas
a administração pública desenvolvesse as pro- de operação.
postas e se apropriasse dos instrumentos de Diante do exposto, é evidente que exis-
planejamento disponibilizados pela legislação te uma lógica ou um “projeto” para Belém,
federal, passíveis de serem utilizados quando baseada(o) em concepções importadas, que
houvesse interesse de ação coordenada entre não são necessariamente boas ou ruins, mas
os setores público e privado. que, nesse caso particular, conta com a inten-
Observa-se em outras orlas de Belém e ção de distanciamento e ruptura em relação
Ananindeua (orla do Rio Arari, por exemplo; ver às matrizes populares. Contudo, ainda há
Figuras 19 e 20), nas quais o setor imobiliário tempo de reexaminar essa plataforma à luz
vem atuando de modo semelhante ao combati- das recomendações de Santos (1979) sobre as
do no Lago Paranoá (em Brasília), sem que haja necessidades de articulação entre os circuitos
nenhuma atenção ou reclamação. A discussão superior e inferior da economia, para que ha-
colocada de forma muito sedutora para tornar ja desenvolvimento em contextos periféricos,
o centro histórico de Belém um espaço turístico sujeitos às modernizações seletivas, de modo
de apelo internacional afetará todo o perímetro que a internacionalização possível não seja
de orla do município de Belém, para suas mais predatória e ocorra em favor do que é genuí-
de quarenta ilhas, e as tantas orlas das cidades no do urbano amazônico, especialmente da
do interior do Pará, em um efeito dominó. Por sociobiodiversidade.

Figura 19 – Condomínio na margem Figura 20 – Renderização


do rio Ariri do Condomínio

Fonte: Elaboração de Patrick Rocha a partir de imagem do Fonte: rodrigobrasilbrokers.blogspot.com.br/2011/11/neoco-


Google Earth, 2016. lori.html

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Quando o projeto disfarça o plano

Nessa via, é importante destacar um mo- são as iniciativas intensivas em pessoas, tais
vimento constituído por artistas, artesãos, pro- como o Projeto Circular (ver Figura 21), que,
fissionais liberais e estudantes, que busca se ao partir de uma agenda de eventos, constitui
articular à matriz popular através do fomento oportunidade efetiva de aproximação dos cir-
de uma rede de economia solidária e criativa e cuitos superior e inferior da economia urbana,
da valorização da identidade local, com o res- ao dar sentido para aquele que talvez seja o ei-
gate de manifestações tradicionais e culturais. xo central da proposta de cidade criativa para o
É criado um ambiente de “festa”, mas também contexto urbano amazônico: o espaço de tole-
de resistência à “disneyficação” ou transforma- rância, de valorização da diversidade, de parti-
ção do espaço para fins exclusivamente turísti- cipação coletiva, da festa (e não do espetáculo)
cos. Tão importantes quanto as intervenções fí- e da cidade vivida, como lócus de emancipação
sicas, que alimentam a especulação imobiliária, e cidadania.

Figura 21 – Mapa com os lugares que participam do Projeto Circular.

Fonte: www.projetocircular.com.br

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Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.

Espera-se, com esse documento, ter mais defensável, do ponto de vista coletivo:
lançado elementos para aprofundamento do o fortalecimento das formas de apropria-
debate com foco em prioridades, sinergias e ção da paisagem e dos espaços públicos ou
parcerias. O que mais importa, no caso do a mercadificação das orlas e dos espaços
conjunto arquitetônico do Ver-o-Peso, são verdes? Em última análise, para que inves-
as obras físicas ou as estruturas sociais? Ou timentos públicos devem acontecer? Para a
como adicionar camadas técnicas que melho- melhoria da vida cotidiana das pessoas do lu-
rem os usos historicamente bem-sucedidos gar ou para a produção do espaço artificial e
na área em discussão, aproveitando quem espetacularizado de deleite do visitante, sob
já vive e trabalha no lugar, suas experiências o preço da alienação e subordinação de gru-
e capacidade criativa? Além disso, o que é pos sociais locais?

Ana Cláudia Duarte Cardoso


Universidade Federal do Pará, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programas de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo e em Economia. Belém, PA/Brasil.
aclaudiacardoso@gmail.com

Taynara do Vale Gomes


Universidade Federal do Pará, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo. Belém, PA/Brasil.
taynaragomes@gmail.com

Ana Carolina Campos de Melo


Universidade Federal do Pará, Programa de Pós-Graduação em Economia. Belém, PA/Brasil.
carolmelo08@gmail.com

Luna Barros Bibas


Universidade Federal do Pará, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo. Belém, PA/Brasil.
lbbibas@gmail.com

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Quando o projeto disfarça o plano

Notas
(1) Sobre a reportagem alusiva à criação do Centro Global de Gastronomia e Biodiversidade da
Amazônia, acessar o link h p://www.agenciapara.com.br/no cia.asp?id_ver=118484.

(2) Sobre o título de Cidade Criativa da Gastronomia recebido por Belém, acessar o link http://
g1.globo.com/pa/para/no cia/2015/12/belem-e-eleita-cidade-cria va-da-gastronomia-pela-
unesco.html.

(3) Sobre a revitalização de novos galpões do Porto de Belém com sua integração a equipamentos já
existentes e transformação de uso de prédios históricos próximos, acessar o link h p://www.
diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-365192-helder-lanca-projeto-de-revitalizacao-do-
porto.html.

(4) Todo esse debate também é de interesse para a área existente entre o Portal da Amazônia e
a Cidade Universitária, visto que está em curso, na região, uma ação de macrodrenagem que
duplicará a Avenida. Bernardo Sayão, que conta com uma faixa de áreas da União ocupada com
grandes usos entre a avenida e o rio Guamá, que tenderão a ser subs tuídos por usos mais
nobres silenciosamente se não houver debate público sobre o projeto estratégico subjacente
para toda essa área.

(5) Borja e Castells usam como exemplo de líder empreendedor carismático Pasqual Maragall,
responsável pela modernização de Barcelona para os jogos Olímpicos de 1992, figura polí ca
que ocupou outras comissões importantes na Comunidade Europeia e na Rede Internacional de
Gestores de Regiões e Prefeitos.

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Texto recebido em 29/abr/2016


Texto aprovado em 24/ago/2016

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Habitação em centros históricos:
um desafio à integração
das políticas públicas
Housing in historic downtowns: a challenge
to the integration of public policies

Lucia Maria Machado Bógus


António Miguel Lopes de Sousa

Resumo Abstract
O artigo parte do suposto de que a habitação, en- The paper assumes that housing, understood as
tendida como política pública integrada, constitui an integrated public policy, is a key component
um componente central nos processos de reabili- in the rehabilitation process of the central areas
tação das áreas centrais das cidades e, principal- of cities, including their historic downtown. It
mente, de seus centros históricos. Propõe estudar, proposes to study, through the examples of
por meio dos exemplos das cidades de Salvador, no the cities of Salvador, in Brazil, and Porto, in
Brasil, e do Porto, em Portugal, os condicionantes Portugal, the sets of conditions that have enabled
que permitiram estruturar programas ou políticas to structure ongoing public programs or policies,
públicas continuadas, com significativos resulta- with significant results in rehabilitation and
dos nos processos de reabilitação e preservação. preservation processes. Furthermore, the paper
Pretende, ainda, contextualizar as formulações aims to contextualize programmatic formulations
programáticas e os fundamentos conceituais a elas and conceptual foundations associated with them
associados, de forma a compreender a relevância in order to understand the relevance of the urban
das práticas de planejamento urbano que integram planning practices that make up the housing
a questão habitacional, suas formas de articulação issue, their forms of articulation, and impacts on
e impactos nos processos de sociabilidade e de re- processes of sociability and functional revitalization
vitalização funcional dos centros históricos. of historic downtowns.
Palavras-chave: centro histórico; habitação; polí- Keywords: historic downtown; housing; urban
ticas urbanas; revitalização funcional. policies; functional revitalization.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 845-861, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3711
Lucia Maria Machado Bógus, António Miguel Lopes de Sousa

a seu significado na constituição e qualificação


Introdução
da entidade “cidade” têm proporcionado vas-
As consequências da modernidade, conforme to conjunto de experiências, contextualizadas
as reflexões e críticas de Giddens (2002) e de quer em uma perspectiva de “reabilitação ur-
Bauman (2001), são marcadas por contradi- bana” – que entende as áreas centrais como
ções, paradoxos e conflitos, que interferem potencial indutor de atividades estratégicas
nos processos de configuração da memória e (serviços, comércio, cultura ou turismo), segun-
na construção das representações sobre as ci- do processos de adequação espacial e funcio-
dades, influenciando os modos de olhar, com- nal –, quer em uma perspectiva de preservação
preender e explicar os processos constitutivos do patrimônio histórico – que reconhece nos
da organização social em sentido amplo ou das espaços existentes potencialidades indutoras
vivências urbanas, em sentido mais estrito. dos mecanismos de construção da identidade
Com efeito, o “pensar a cidade” – en- social e recuperação das tradições culturais, co-
tendido nos mecanismos da sua “produção” e mo fatores de articulação e de coesão da orga-
nos instrumentos de “planejamento e gestão nização sociocultural.
urbanística” – tem sido objeto de permanente Em muitas dessas práticas experimenta-
busca de referenciais do processo civilizatório das, tem sido recorrente o princípio de que os
anunciado pela modernidade, cujas consequên- grupos sociais instalados, ou seja, a população
cias tornam-se evidentes na contínua revisão residente, se não constituem, eles mesmos, o
de “princípios”, “cartas”, “tratados” ou pro- “problema”, constituem, no mínimo, um obs-
postas conceituais para um viver moderno. táculo decisivo à implementação de determina-
Um dos objetos dessa contínua revisão das “políticas urbanas”.
de estratégias de “fazer cidade” tem sido os Nesse sentido, trataremos de compreen-
“centros históricos” ou, se quisermos ser mais der como o habitar e a habitação, constituem
abrangentes na abordagem analítica, os cen- os elementos fulcrais de sustentabilidade dos
tros urbanos, enquanto espaços diferenciados centos históricos, considerando o caráter deter-
nos processos de formação e desenvolvimento minante do abrigo e do domínio territorial para
das cidades. a estabilização dos mecanismos de assenta-
Esses espaços centrais, claramente mento humano e de estabilização das relações
identificados na memória e no discurso dos entre os seres humanos e os lugares.
habitantes da cidade, independentemente do Subentende-se, em muitas das propos-
referencial cognitivo e simbólico a eles asso- tas e intervenções, um desajuste programá-
ciado, têm sido objeto de diferenciados enten- tico entre os objetivos anunciados, muitas
dimentos no âmbito do processo histórico do vezes expressos no discurso dos agentes, e
urbanismo moderno, como têm sido, também, os instrumentos de atuação implementados.
distintos os campos de análise, marcados pela Ou seja, em raras circunstâncias, os grupos
interdisciplinaridade. sociais estabelecidos são considerados, no âm-
Os diferentes entendimentos quanto à bito das estratégias de planejamento urbano,
importância desses espaços centrais ou quanto como elementos indutores dos processos de

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Habitação em centros históricos

reabilitação, ou revitalização, das áreas cen- que os agentes são efêmeros –, as políticas
trais das cidades. urbanas que se estruturam em ações articula-
Entretanto, outras, e mais raras, experiên- das assumem a política habitacional – ou seja,
cias entendem como determinante o papel das a necessidade de manutenção de uma massa
populações estabelecidas nas áreas centrais, de residentes em situação estável – como um
bem como o fomento de ações de ocupação elemento fundamental para sustentação dos
de espaços residenciais abandonados, nos pro- mecanismos de reabilitação urbana. Assume-se
gramas de reabilitação urbana. Essas práticas, aí a importância da preservação das estruturas
ainda que sob mecanismos operacionais e mé- identitárias, bem como da construção de repre-
todos diversos, assumiram, como estruturante, sentações simbólicas reconhecidas e assimila-
a questão habitacional no âmbito das ações das por um conjunto bem determinado de gru-
programadas de política urbana. A questão ha- pos sociais que possam legitimar, por exemplo,
bitacional, nessas experiências, não se resume as ações de preservação patrimonial e/ou as
apenas à residência, ao morar, mas ao conjunto manifestações culturais coletivas.
de atividades que lhe estão associadas, como Assim, o presente artigo entende que
o trabalho, a produção, o comércio e o lazer – a habitação, como política pública integrada,
enfim, o viver. constitui um componente determinante para os
Entre umas e outras experiências, mais processos de reabilitação das áreas centrais das
do que as diferenças nos detalhes operativos, cidades, especialmente dos centros históricos.
observa-se significativa compreensão de “po- Pretende, assim, analisar, tomando co-
lítica urbana” e até de entendimento do que é mo exemplos dois casos emblemáticos de in-
a “cidade”. tervenção em centros históricos, notadamente,
Por um lado, torna-se explícito o argu- as cidades de Salvador, no Brasil, e do Porto,
mento da “mudança” como fator determinan- em Portugal, os conjuntos de condicionantes
te – mudança que, mesmo não sendo explícita, que, em diversas experiências, permitiram es-
intui-se nos instrumentos de intervenção e que truturar programas ou políticas públicas con-
implica, não raramente, o deslocamento dos tinuadas, com significativos resultados nos
habitantes em determinados locais da cidade. processos de reabilitação e preservação dos
Por outro lado, é relevante a preocupa- centros históricos.
ção de preservação e qualificação de vivências Importa, ainda, contextualizar não ape-
urbanas instaladas, como fator estruturante do nas as formulações programáticas, mas, tam-
processo de reabilitação funcional e espacial bém, os fundamentos conceituais que lhes
das áreas centrais. estão associados, de modo a compreender, em
Entre umas e outras experiências decor- um sentido mais amplo, a relevância das prá-
rem, também, as diferenças, em longo prazo, ticas de planejamento urbano que integram a
do impacto das distintas estratégias. Ao con- questão habitacional e a verificar as formas de
trário das operações de reabilitação urbana articulação e os respectivos resultados nos pro-
pontuais e esporádicas – instituídas de acordo cessos de sociabilidade e revitalização funcio-
com programas de intervenção localizados, em nal dos centros históricos.

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Lucia Maria Machado Bógus, António Miguel Lopes de Sousa

Desse modo, pela análise e avaliação do- a produção do espaço urbano agrega dimen-
cumental e pela verificação local de um conjun- sões estruturantes que não se resumem ao do-
to de experiências inovadoras que precederam mínio espacial, do qual a arquitetura e o urba-
a configuração de políticas de habitação para nismo se apropriaram, muitas vezes, enquanto
os centros históricos nas duas cidades conside- monopólio de conhecimento, nem apenas ao
radas, pretende-se apontar as transformações domínio econômico, como muitas teorias asso-
ou os desenvolvimentos conceituais dos quais ciadas ao “desenvolvimento” e ao “progresso”
resultaram significativas contribuições para a têm enfatizado.
formulação de políticas urbanas que enfrenta- A abordagem dialética dos fenômenos
ram as carências habitacionais, sintomáticas urbanos, no caminho iniciado por Hegel e Marx
das áreas centrais. para a explicação da natureza contraditória das
Além disso, como evidência do oposto, relações sociais e da relação entre indivíduo,
importa também verificar as circunstâncias natureza e sociedade, foi largamente desen-
em que não têm ocorrido as referidas práticas volvida por Quijano, Castells, Lefebvre, Lojkine,
e onde o processo histórico evidencia o desa- Gottdiener e Harvey, entre outros que trouxe-
juste ou a não concretização dos pressupos- ram, para compreensão e explicação das ques-
tos programáticos. tões urbanas, uma complexidade metodológi-
Ainda que se baseando em informações ca e de referenciais analíticos que permitiram
empíricas pouco mensuradas, pretende-se sus- alargar e diversificar o olhar sobre a cidade.
tentar essa proposta analítica com base no A noção de “produção social do espa-
conhecimento dos diversos instrumentos, pro- ço”, na acepção desenvolvida por Lefebvre,
jetos e análises oriundos de várias áreas do co- por exemplo, agrega ao “espaço concebido” –
nhecimento, como a sociologia, a antropologia aquele que o planejamento urbanístico prima
e a geografia, de forma a configurar um qua- por se apropriar – o “espaço vivido” e o “espa-
dro de referência operativo que contribua para ço percebido”. Essa recolocação metodológica,
uma eventual construção de programas de in- fruto de uma aproximação analítica ao processo
tervenção em centros históricos. histórico de “fazer cidade”, induz à noção de
Mesmo não sendo o objetivo da dis- que o espaço contém e está contido, nas rela-
cussão a proposição de políticas de habitação ções sociais, e, por inerência, a sua produção
para os centos históricos, importa estabelecer, associa-se aos mecanismos da reprodução so-
com base na análise das experiências, alguns cial, que, em si, contêm estruturas de múltipla
caminhos de formulação metodológica que per- dependência e influência que incluem as dimen-
mitam, de algum modo, configurar processos sões econômica, política e cultural.
de análise dos impactos das ações implemen- No âmbito dessa abordagem dialética da
tadas e que integrem, pelo menos como com- produção do espaço, este não se constitui como
ponente de avaliação, a questão habitacional. um produto dessas relações, e inter-relações,
Os questionamentos determinantes que mas antes como um processo – de apropriação
envolvem a questão que se pretende sustentar e construção, individual e coletiva – que não se
se relacionam, especialmente, com ideia de que esgota em momentos determinados como uma

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Habitação em centros históricos

construção, mas que se constitui, no cotidiano, criativa e estética, às cidades que se desenha-
como um direito que se conquista – o “direito ram e produziram, sob o manto do capitalismo
à cidade”– nas palavras de Lefebvre. tardio: homogêneas, diferentes, indiferentes,
É no contexto dessa estrutura metodo- sem identidade.
lógica, de análise dos fenômenos e dos fatos Perante essas cidades, brotam as figu-
urbanos, que nos propomos entender a relação ras de cidades outras: que se reclamam nô-
“habitação” e “centros históricos”, não ape- mades, ambíguas, ambivalentes, com espaços
nas no sentido da incorporação de mais uma heterogêneos, mutantes e fraturados, rompi-
dimensão analítica ou programática que se dos e esgarçados.
soma de forma avulsa, mas como uma circuns- Existe uma oscilação de imagens, de
tância unitária enquanto processo de produção conteúdo, ou de substância, entre o legado
do espaço – a produção social do espaço. visível e invisível, expressa na tensão entre a
cidade experimentada fisicamente e a cidade
imaginada em narrativas ficcionadas: aque-
las descritas em Yoknapatawpha, de William
Da produção e reprodução Faulkner; Comala, de Juan Rulfo; Santa Maria,
da cidade; a sociedade de Juan Carlos Onetti; ou Macondo, de Gabriel
urbana e o urbanismo García Márquez.
As cidades contemporâneas contêm, e
Quantas vezes se afirmou, e se escreveu, que geram, os signos da falência da modernidade e
muitas são as cidades que se pode encontrar do capitalismo industrial – fragmentos das an-
em uma cidade? tigas fábricas, pedaços de comércio decadente,
Essa paradoxal justaposição de tempos complexos habitacionais operários e de classe
e espaços, de vivências em diferentes tempo- média degradados, escolas e hospitais públicos
ralidades no mesmo lugar e de distintos espa- dilapidados –, ocultos pela presença e domínio
ços num mesmo momento é motivo para que do pós-moderno sofisticado e pelo asséptico
se questione: como nos posicionarmos para aço, vidro espelhado e viadutos estaiados, que
viver, ao mesmo tempo, a cidade real e a ci- renovam outra nova promessa, sem discursos
dade imaginada? Ainda que todas as cidades, eloquentes, mas com imagens irresistíveis no
historicamente, apresentem uma tensão entre apelo ao imaginário, ao novo.
o visível e o invisível, entre o que se sabe e o Considerando, na acepção de Lefebvre
que se suspeita ou conjectura, o que mudou (2001), que o indivíduo usa o espaço para
com a cidade contemporânea é a complexida- viver de acordo com as condições naturais e
de das experiências que permitem responder históricas específicas, tal circunstância exige
àquela pergunta. definições mais exatas dos níveis de análise, os
Diversas formas de imaginar as cida- quais não devem separar-se nem confundir-se,
des – desde a literatura até o cinema e a mú- mas agregar-se à reflexão. Segundo o autor, é
sica – permitem, mesmo, transgredir os este- possível seguir dois procedimentos, tanto do
reótipos e as narrativas e responder, de forma geral para o específico, quanto partindo do

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Lucia Maria Machado Bógus, António Miguel Lopes de Sousa

singular para alcançar o geral, recorrendo a relevante quando os sistemas os pretendem


informações e significações do observável nas “integrar”, ou seja, dissolvê-los.
singularidades. O segundo caminho reúne teo- Nessa reflexão, que fundamenta este
ria e prática, apropriando-se das alteridades e trabalho, destacam-se dois campos de análise
das representações. centrais, sem, no entanto, fragmentar e isolar a
O termo “direito à cidade”, indepen- análise dos processos que compõem o núcleo
dentemente do sentido conceitual e dialógico de discussão em torno do “direito à cidade”:
atribuído por Lefebvre, transforma-se na chave os centos urbanos, ou, mais especificamente, os
para grande parte das propostas de revisão centros históricos, e a habitação. Trata-se, não
das metodologias de análise da cidade, bem de temas ou pedaços da cidade, mas do cerne
como das experiências de planejamento e ges- das práticas cotidianas que formam o lastro de
tão urbana. Trata-se de um despertar para as consolidação das cidades e lhe atribuem o ca-
possibilidades que a cidade, como produção ráter de permanência.
social, contém de potencial de manifestação e Não por acaso, as representações e o
exercício da cidadania, considerada em ampla imaginário sobre a cidade passam pelo seu
acepção: não só de expressão de direitos indi- centro, independentemente da sua atualidade
viduais e coletivos, mas de criação, produção, funcional, da sua qualidade ambiental e, até,
participação e transformação da realidade. da sua efetiva ocupação. Como, também, a
Ainda que com dificuldades de apro- “identidade” dos seus moradores passa pelo
priação por parte do “urbanismo”, aquele “bairro” onde residem, ainda que lá não pos-
movimento que reivindica o direito à cidade, sam ocorrer a sua rotina diária, as suas ativida-
vê-se obrigado a estabelecer, não apenas ou- des laborais ou lúdicas. Existem, portanto, va-
tro olhar, mas nova plataforma ou ponto de lores associados a essas categorias socioespa-
partida, para a questão urbana. O que distin- ciais que superam o mero caráter do lugar geo-
gue, então, essa abertura da cidade aos seus gráfico ou da acepção funcionalista do habitar.
usuários, com eventos que apelam à livre ex- Trata-se da construção de significados que
pressão de práticas e desejos e ao “direito à compõem as representações e os referenciais
cidade” de Lefebvre? coletivos e individuais, aglutinando o sentido
As proposições de Lefebvre não se di- público e privado do viver, assumindo um papel
rigem à cidade formal, mas ao espaço social integrador, unânime, quase inquestionável.
no âmbito da formulação filosófica que en-
tende a totalidade dos indivíduos, ou o ho-
mem total. Enquanto os eventos urbanos são,
correntemente, compreendidos no campo dos
Habitação e centro histórico:
sistemas – científicos, técnicos, teóricos, prá-
morar e habitar em Salvador
ticos, políticos –, persistem, para além destes, e Porto
resíduos que não são reconhecidos pelos siste-
mas, mas que possuem as faculdades de per- O “patrimônio” que frequentemente se asso-
manência e resistência, interferindo de forma cia, também, aos centros históricos e que se

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Habitação em centros históricos

vulgariza na ideia de que os centros históricos histórico”, abre-se espaço para o surgimento
são, essencialmente, patrimônio, vê-se frequen- de equívocos conceituais que redundam em
temente destituído da dimensão social con- contradições na prática cotidiana.
creta, do cotidiano, relacionando-se com ele, Por um lado, o termo “centro históri-
muitas vezes, de forma conflituosa. Não rara- co” aparece codificado por vários campos
mente, atribui-se a certo uso social da cidade do conhecimento – arquitetura, urbanismo,
o desvirtuamento do patrimônio, acusando-se história, geografia, sociologia, antropologia,
os moradores de não respeitar, não preservar e etnografia –, que tendem a conotá-lo, de for-
não conservar aqueles símbolos da memória e ma abrangente, com o termo patrimônio. Por
da identidade coletiva. Entretanto, são aqueles outro lado, essa generalização conduz mais à
poucos moradores, senão os agentes de sus- representação de alguma coisa do que à coisa,
tentação daqueles modos de vida de que se fa- pois nem sempre esses “centros” são centros
la, pelo menos os resistentes sobreviventes dos históricos enquanto lugares simbólicos.
processos de desestruturação e transformação Se o discurso preponderante é o “retor-
dos centros. no ao centro”, como também já existiu o “re-
Assim, aparentemente, é entre imaginá- torno à cidade” no passado recente, os meca-
rios e representações que se formula grande nismos de construção da narrativa permane-
parte dos discursos, estejam eles orientados cem idênticos: a necessidade de realimentar o
para uma perspectiva mais social, que se re- apelo à cidade, formando marcos referenciais,
fere a hábitos, usos, costumes, tradições e ilusórios ou não, fortalecendo os processos de
modos de vida, ou mais espacial, enaltecendo dominação pela manipulação dos símbolos e
qualidades estéticas, paisagísticas, morfoló- dos valores em torno de interesses econômi-
gicas, construtivas e históricas dos edifícios e cos e políticos concretos. Se, há poucos anos,
dos tecidos urbanos. a imagem da tecnologia, da inovação, da es-
Nessa perspectiva, o retorno aos centros pecialização de serviços compunha a compe-
das cidades comporta uma dimensão alienan- tição entre as cidades globais, atraindo e fa-
te da questão urbana. Por um lado, introduz zendo movimentar o capital global, os centros
uma fratura territorial, muitas vezes geográfi- históricos configuram hoje um nicho, ora com-
ca, isolando o centro e separando-o da cidade; plementar, ora concorrente, nesse renovado
e, por outro lado, faz esquecer a cidade, a sua combate pela hegemonia dos negócios, que
construção, retendo um tempo, passado, ainda sempre se referencia às cidades. O turismo en-
que se desconheça a sua verdadeira dimensão, contra, nesse espaço urbano, especificidades
resumindo-a “àquela” cidade e transformando que só as cidades “tradicionais” – ditas histó-
a “outra” em espaço amorfo do ponto de vista ricas – conservam e que já não se restringem
da geração de valores e significados. aos monumentos, formatando um ambiente,
Com efeito, misturando-se na narrati- ou uma vivência, que agrega atributos histó-
va a cidade e o patrimônio, não que isso seja ricos, gastronômicos, tradições, usos e costu-
uma impossibilidade, mas formulando-se uma mes pitorescos, além de outros eventos desig-
figura retórica de síntese denominada “centro nados como “culturais”.

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Lucia Maria Machado Bógus, António Miguel Lopes de Sousa

Instituir uma dinâmica de produção e re- dinâmica e interdisciplinar dos processos socio-
produção do espaço urbano em um tecido que espaciais, mas, também, a inclusão da “cidade”
já não reunia condições para acolher as ativi- na cidade, em face da fragmentação e da se-
dades econômicas e produtivas dominantes (e, gregação que esta apresentava.
por isso, tinha sido paulatinamente abandona- Poucas experiências em grandes inter-
do) constituía o grande desafio para a susten- venções urbanas foram além de abordagens
tabilidade dos centros históricos. Enquanto o temáticas, embora afetassem áreas extensas
restante da cidade é movido por mecanismos das cidades e com repercussões estruturais re-
de reprodução do capital, e as relações sociais levantes. O patrimônio histórico, ou os centros
orientam-se em torno da satisfação das neces- históricos, constituíram, nesse contexto, tam-
sidades materiais baseadas no valor de troca, bém um tema isolado, ou, de forma perversa,
uma parte da cidade parece querer persistir em o pretexto, ou a imagem de propaganda, para
sobreviver em função do valor de uso fundado abrigar, no seu entorno, outras intervenções
em suposto quadro socioespacial. Essa oposi- que se mostraram inconsequentes no processo
ção de tendências gera desequilíbrios entre a de qualificação do urbano. Ao ponto de os im-
cidade dita autossustentável, de acordo com as pactos mais visíveis se verificarem em um pro-
regras e dinâmicas dos “mercados”, e a cidade cesso de reprodução de modelos formais, e até
que ainda, ou já, não possui os atributos ne- econômicos, por diversas cidades do mundo,
cessários para participar da mesma lógica da em vez de gerarem, localmente, experiências
produção urbana. de extensão de programas ou de renovação
Parece, assim, mais compreensível falar dos modos de fazer cidade.
de patrimônio histórico suportado pelas expe- Um dos elementos-chave para a com-
riências que ocorrem no campo simbólico e das preensão da inconsistência dessas intervenções
representações sociais, amplamente reconheci- de reabilitação urbana em áreas centrais é, pre-
das pelo grupo social, às quais se adere de for- cisamente, a habitação.
ma qualificada, com conhecimento e apropria- Não se trata de ausência do tema na
ção dos valores, identificando as possibilidades equação da estratégia nem, tampouco, de ca-
de construção da memória e da identidade. rência de estudos estatísticos, de dados socioe-
Embora se vislumbrem diversos caminhos conômicos da população, de caracterização da
para a revisão conceitual do patrimônio histó- situação habitacional desses lugares. Entende-
rico, sobretudo no desenho da política do patri- mos que se trata de ausência de entendimento
mônio, a sua discussão fundada em outras pos- sobre o que significa o “habitar”. Em muitos
sibilidades de gestão pode ser identificada no dos posicionamentos sobre a preservação dos
âmbito das experiências urbanísticas dos anos centros históricos, mesmo os mais recentes, a
de 1970 e 1980. Os modelos de “reabilitação participação social, como fator decisivo no fo-
urbana”, então também denominados “requa- mento e consolidação dos valores simbólicos e
lificação urbana”, traziam como proposta, não de uso, é entendida como relação externa aos
apenas a releitura do urbano a partir dos inte- objetos, considerando apenas a dimensão pú-
resses e conflitos instalados e da compreensão blica como campo das práticas de sustentação

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Habitação em centros históricos

da memória e da identidade. A habitação apre- estruturante. Todavia, registra-se a formulação


senta-se, naquelas circunstâncias, apenas como de modelos que tendem a aproximar-se da
função urbana e, raramente, como dimensão ideia de hábitat, enquanto complexo ambiental
da existência dos indivíduos. da vida humana, onde se consolidam princípios
Tal acepção emerge, paradoxalmente, e formas de “viver”, considerando fatores de
nos fenômenos de gentrification decorren- equilíbrio e sustentabilidade do meio ambiente,
tes das grandes intervenções urbanas, onde na sua articulação com o desenvolvimento das
a valorização dos recursos locais – simbóli- atividades humanas.
cos, culturais, monumentais, artísticos, entre Nessa perspectiva, o “habitar” era com-
outros –, por via da especulação turística e ponente importante do cotidiano e compunha
imobiliária, inviabiliza a permanência de al- o ciclo das atividades de trabalho, de lazer e
guns grupos sociais de baixa renda e suas res- das outras práticas de vida coletiva. A compo-
pectivas atividades, embora esses empreen- sição do lugar de “habitar” – o alojamento, a
dimentos urbanos contenham uma vertente habitação, no modelo de viver burguês – não
habitacional e considerem ações e mecanis- era apenas determinada pelas atividades pri-
mos de participação social, mas que se apre- vadas, mas concentrava muitas das práticas
sentam, desde o início, desvirtuados. que definiam certo conceito civilizacional – os
Os centros históricos, como representa- comportamentos, os mecanismos de relação
ções amplas do patrimônio, requerem que os familiar, os hábitos e os costumes e, mesmo,
seus habitantes, para além de moradores, tam- as formas de sociabilidade, considerando que,
bém ali “vivam”, ali constituam “lar”, no senti- em determinados momentos e para alguns
do de efetivar a produção do espaço e, enfim, o grupos sociais, a habitação era uma extensão
direito à cidade. da vida pública.
Os elos na cadeia dos processos de pro- Na Paris de Haussman, na Barcelona
dução do espaço foram, como já observamos, de Cerdá, na cidade-jardim inglesa, na ville
fragilizados com a mudança do valor de uso radieuse de Corbusier ou na Brasília de Lúcio
dos espaços para o valor de troca ou por sua Costa, a habitação constitui não apenas a mas-
construção a partir da lógica do mercado, frag- sa edificada da cidade, como, também, corres-
mentando, e por vezes dissolvendo, os meca- ponde à proposta de hábitat e determina a for-
nismos de relação entre os sujeitos, individuais ma urbana marcando a linguagem arquitetôni-
e coletivos, remetendo-os a processos de pro- ca. No entanto, apesar de o projeto pressupor
dução isolados, autonomizados e localizados modelos de indivíduos, grupos e classes e seu
no território, impedindo sua leitura e apropria- respectivo comportamento, no tempo, prevale-
ção como totalidade. ceu o anonimato dessa massa de sujeitos, qua-
Não se trata, no entanto, de ausência se se desconhecendo a sua efetiva relação com
de conceitos, modelos e experiências. Desde as habitações então projetadas e construídas.
o século XVIII, as transformações urbanas, e Instala-se, assim, um paradoxo: ao mes-
as respectivas propostas e projetos urbanísti- mo tempo que o planejamento da cidade ten-
cos, tinham no “habitar” um foco referencial de a configurar conceitualmente modelos de

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Lucia Maria Machado Bógus, António Miguel Lopes de Sousa

hábitat que determinam formas precisas de A recomposição dessas relações, subja-


organização social e da atividade humana, de- cente em muitos dos discursos dos “projetos
finindo minuciosamente tipos e padrões – de urbanos”, que tem por objetivo “revitalizar” –
trabalho, de mobilidade, de lazer, de cultura –, tornar a “dar vida” à cidade –, não considera,
constata-se a desmobilização dos indivíduos frequentemente, a dimensão e a extensão das
na formulação e realização desses processos. relações que importa “restabelecer”. Enten-
Ao mesmo tempo que o “projeto” parece in- demos que sem envolver a habitação, como
serir os indivíduos em uma totalidade provida prática urbana de sustentação do “estar” e do
de ordem e sentido, dando significado ao seu “permanecer”, perdem substância e sentido al-
“ser no mundo”, relacionando-os por meio de gumas expressões como “participação social”,
mecanismos de sociabilidade com outros indi- “apropriação”, “ressignificação do espaço pú-
víduos e com as instituições inseridas nos mes- blico” e outras que formam o léxico do urba-
mos processos, aparentemente os destituiu da nismo e da gestão urbana contemporânea.
oportunidade de “criarem” o seu “lugar”. Poderá parecer paradoxal invocar, hoje, a
Entendemos que estamos em face de habitação como requisito decisivo para “resol-
contextos em que as transformações inscritas ver” a cidade, quando o projeto modernista ti-
na cidade moderna capitalista alteraram tam- nha, aparentemente, nas unidades residenciais,
bém os sujeitos e, assim, as possibilidades o elemento estruturante de certo “viver” mo-
de operar mecanismos de sociabilidade, de derno, do novo habitat.
relação com os lugares, de pertencimento e Todavia, não se avaliou, pelo menos no
de identidade. campo do conhecimento do urbanismo, o im-
Um dos elementos centrais dessa mu- pacto do viver moderno sobre a organização
dança é a habitação. A perda de “competên- das relações sociais. Essa desvinculação, ditada
cias” pelo núcleo familiar, estrito ou alargado, pela produção dos novos modos de produção,
enfraqueceu não apenas as relações que se entre os consumidores dos bens e os seus pro-
desdobravam a partir das atividades exercidas dutores, conduz, por indução do “espírito” de
pelos seus membros, mas o significado do lu- mercado, à coisificação dos espaços construí-
gar edificado, entendido como o centro do es- dos: do mesmo modo que automóvel é uma
paço do habitar, a casa. “coisa” que serve à mobilidade, a “casa” serve
A redução do âmbito de influência da ca- para morar, o parque serve para brincar, a igreja
sa, antes composto por conjunto de atividades para rezar. Os artefatos urbanos encontram-se,
e relações sociais em torno de um campo espa- então, desencarnados da cultura, desvincula-
cial, mais ou menos amplo, centrado na edifi- dos dos sujeitos individuais e coletivos e ten-
cação que abrigava a família, ao mero “morar” dem a ser destituídos de referência simbólica
em uma construção localizada em certo bairro no âmbito do conjunto.
da cidade, extinguiu o espaço social das arti- Assim, quando, antes, referimo-nos ao
culações funcionais, simbólicas e afetivas que potencial equívoco que poderá estar presente
caracterizavam determinados, e diversificados, no discurso que acompanha muitas das recen-
modos de viver na cidade. tes experiência e projetos de “revitalização”

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Habitação em centros históricos

urbana, pretendemos explicitar algumas in- como o tecido mais degradado da cidade,
congruências que podem decorrer da imprecisa mas que possuía uma elevada densidade de
leitura do processo histórico. Frequentemente, ocupação dos imóveis que poderiam ser ain-
as propostas e os projetos apoiam-se em “so- da habitados, onde se amontoavam famílias
luções” prontas e dadas, como “coisas” facili- inteiras de baixa renda e de desempregados.
tadoras ou dinamizadoras de práticas coletivas, Tal circunstância decorria de prolongado enfra-
considerando a faceta da vida pública dos indi- quecimento da estrutura produtiva que susten-
víduos. O “envolvimento” social, uma espécie tou a cidade desde o final do século XIX – a
de apelo à participação da sociedade, dá-se pe- indústria – e que se acentuou nas últimas duas
la oferta, ainda que se reconheça a existência décadas da ditadura.
de potencial procura, e, raramente, pela produ- O slogan popular dos primeiros dias da
ção, pela criação, gerada pelos sujeitos. revolução – “casas sim, barracas não” – re-
As experiências de restabelecimento do trata com clareza a situação do alojamento na
uso do espaço público com atividades qualifi- cidade do Porto. Não se tratava de carência
cadas não têm implicado, necessariamente, a de unidades, mas de carência de “dignidade”
reconstituição de práticas, de códigos, de con- nas condições das habitações. A cidade anti-
dutas, que se pressupõem naturais aos sujeitos, ga, ainda não denominada histórica, denota-
como se a “tradição” e a “memória” se perpe- va aquelas características contraditórias: um
tuassem sem a experiência concreta. parque habitacional que, pelo seu estado de
Nem nas casas dos centros históricos das conservação e paulatino abandono, já não
cidades se realiza um viver antigo, aristocrata, correspondia a requisitos de habitabilidade
burguês ou das classes dos mestres de ofícios condigna, e uma população residente, que
e comerciantes; nem nas unidades residenciais sem alternativas se mantinha refém daquela
modernistas se cumpre o padrão funcionalista; condição. Inicialmente o Saal – Serviço Ambu-
em ambas, persistem tentativas de concretizar latório de Apoio Local – e, posteriormente, o
um imaginário, por vezes contraditório com as Cruarb – Comissariado de Renovação Urbana
características daqueles espaços concebidos, da Área da Ribeira/Barredo – estabeleceram
mas buscando, apesar dos conflitos, estabili- uma abordagem, em conjunto com as associa-
zar as referências que determinam certa cen- ções de moradores formadas para esse fim e
tralidade daqueles lugares: o ponto de onde com os proprietários dos imóveis, a qual bus-
se parte e, em algum momento da rotina, se cava a conservação do patrimônio e dos bens
retorna, e, em alguns casos, o lugar de onde culturais, a renovação do ambiente urbano da
já não se sai. área, a reinserção da população residente, a
Aquele poderia ser o retrato do deno- consolidação e desenvolvimento do turismo, a
minado centro histórico da cidade do Porto expansão e renovação da atividade comercial
em 1974, momento em que ocorre a Revolu- e a implementação de uma rede de parcerias
ção dos Cravos. A Ribeira, o Barredo e a Sé, de agentes sociais. A sustentação do realoja-
os bairros que formam o núcleo de formação mento das populações nos imóveis reabilitados
da cidade, apresentavam-se naquele momento dava-se em regime de aluguel apoiado pelo

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Lucia Maria Machado Bógus, António Miguel Lopes de Sousa

município e previdência social, buscando fixar conservação, alguns deles incapazes de aco-
o maior número de famílias nas antigas áreas lher qualquer uso, levando a gestão municipal
de residência, ao mesmo tempo que permitia a reconhecer o fracasso dos mecanismos de
garantir aos proprietários as rendas adequadas mercado na produção e sustentação do espaço
à manutenção daquele patrimônio. urbano. Em 2003, foi criada pelo município a
Se aquele processo se estabeleceu sob Sociedade de Reabilitação Urbana de capitais
a influência dos programas socialistas, que públicos – Porto Vivo – que visava instituir me-
formaram a maior parte dos executivos muni- canismos de financiamento com a participação
cipais desde a revolução de 1974, com a che- de fundos privados de investimento no senti-
gada da gestão municipal neoliberal de 2001 do de configurar atuação em larga escala e,
a 2013, assistiu-se ao desmantelamento da ao mesmo tempo, formatar abordagens mais
política habitacional, não só para o centro his- integradas à questão da reabilitação urbana,
tórico como para a restante da cidade do Porto. considerando os problemas de propriedade,
O argumento assentava no fato de não existir de reinserção de populações, de instalação de
retorno dos investimentos públicos, e, portanto, serviços públicos, sociais e educacionais, de fo-
o “mercado” deveria encontrar os mecanismos mento ao comércio local e de diversificação de
adequados à sustentabilidade, tendo como usos e de utilizadores.
mecanismo de fomento os investimentos em Não sendo perceptível, hoje, o “repovoa-
equipamentos e no espaço público como moto- mento” expressivo do centro, é notória a rever-
res para a geração de incentivos às atividades são do quadro do estado de conservação dos
relacionadas à exploração dos negócios do tu- imóveis em setores específicos, anunciando-se
rismo – lojas de artesanato e de recordações, que só menos de 50% destes se encontram
restaurantes, bares, salas de exposições. em mau estado de conservação, sendo cons-
Apesar do progressivo abandono das po- tatável a reformulação de mecanismos de so-
pulações residentes – porque deixaram de ter ciabilidade entre os diversos sujeitos sociais –
apoio no aluguel social e porque o estado de individuais e coletivos – que permitem mediar
conservação dos imóveis piorava com a ausên- interesses e potenciais conflitos. Reconhece-se
cia de manutenção pelos proprietários e pelo também, ainda que esporadicamente, a rea-
município –, os poucos que permaneceram não propriação pela população da cidade, bem
dificultaram a possibilidade de intervenção em como pelos residentes, do seu centro histórico.
larga escala pelos agentes imobiliários a ponto Entende-se que a mudança está sendo opera-
de inviabilizar a atuação pontual, edifício a edi- da, precisamente, pela reintrodução do tema
fício, que pudesse gerar um cenário de mudan- da habitação nas estratégias de intervenção,
ça apelativo à reocupação do centro histórico embora não sejam ainda claros os mecanismos
por outro “tipo” de moradores. da política pública que irão compensar os dese-
Mas o impasse e a desmobilização do quilíbrios da capacidade financeira dos poten-
setor imobiliário e também o baixo investi- ciais moradores, nem garantir, em médio prazo,
mento público conduziram a um cenário de a viabilidade de conservação dos imóveis hoje
cerca de 75% dos imóveis em mau estado de restaurados. Entretanto, o debate instalado traz

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Habitação em centros históricos

a questão habitacional como desafio à recons- novos usos – viu-se claramente definida quan-
tituição da política habitacional, estimulando a do apresentou aos moradores as alternativas
realização de estudos que contemplem diver- de serem indenizados e realojados provisoria-
sificadas modalidades de ação, tendo em vis- mente em outro local ou realocados em imóvel
ta integrar mecanismos de financiamento com recuperado, mediante novo contrato de alu-
programas sociais complementares, levando guel. A aparente sedução da indenização para
em conta a estruturação das práticas culturais indivíduos de baixa renda e a forma autoritária
da cidade. como o poder público lidou com as desocupa-
Se é possível identificar nos processos de ções resultaram no abandono do local, por par-
intervenção no centro histórico da cidade do te de residentes, e o residual retorno de alguns
Porto um ciclo, que se inicia com a efetiva par- após as intervenções. A questão habitacional
ticipação da população do centro histórico na não fazia parte da equação do Programa de
formulação dos programas e projetos de inter- Reabilitação do Centro, e as unidades residen-
venção que agregavam a questão da habitação ciais disponíveis após a intervenção entraram
à reabilitação dos imóveis, para além do mode- no circuito do mercado imobiliário, proceden-
lo da cidade turística monofuncional, típico das do-se, assim, à renovação do tecido social do
cidades históricas globais – retoma-se , hoje, a centro histórico. Nesse contexto, a maioria dos
questão da habitação como fator decisivo de novos moradores, comerciantes e outros resi-
sustentabilidade não só do centro, mas de todo dentes não possuía com aquele espaço qual-
o tecido urbano. quer vínculo em relação a vivências anteriores,
Na cidade de Salvador, por contraste, nem participou de forma ativa no processo.
registra-se o ciclo oposto, com impactos tam- O Programa de Recuperação do Centro
bém diversos. A intervenção mais estrutura- Histórico de Salvador não sofreu, ao longo das
da no centro histórico de Salvador, no Brasil, suas seis primeiras etapas, mudanças significa-
inicia-se em 1992, tendo como foco das ações tivas na estratégia de atuação e só em 2002,
a área do Pelourinho e tendo como gestores já na vigência do Programa Monumenta, do
a Conder – Companhia de Desenvolvimento Ministério da Cultura, estabeleceu-se, na deno-
Urbano do Estado da Bahia – e a Sedur – Se- minada sétima etapa, a reavaliação dos proces-
cretaria de Desenvolvimento Urbano do muni- sos e instrumentos de atuação, fruto da consti-
cípio de Salvador. Tratava-se de um Programa tuição de movimento de moradores e da ação
que visava fundamentalmente à criação de do Ministério Público que, entretanto, acusava
um polo de atividade turística, do qual decor- o governo do Estado da Bahia de promover a
ria ampla e sistemática intervenção no edifica- “assepsia social” fomentando a expulsão das
do existente que se encontrava, à época, em famílias residentes.
mau estado de conservação, alojando grupos Assim, a sétima etapa, por meio da
sociais de baixa renda. criação de um Comitê Gestor, revestia-se da
A estratégia adotada – que passava pela intenção de mediar interesses, reverter mé-
desocupação integral dos imóveis por setores todos de intervenção urbana e, fundamental-
e por etapas, sua restauração e adequação a mente, propiciar condições de permanência às

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Lucia Maria Machado Bógus, António Miguel Lopes de Sousa

populações residentes, tendo como referência de produção da cidade , que se vê refletido em


a manutenção dos agrupamentos familiares. cenário de abandono de imóveis e no baixo ín-
Nesse sentido, foi definida estratégia de rema- dice de reocupação do centro.
nejamento e alojamento provisório durante as
intervenções de reabilitação dos imóveis, ao
mesmo tempo que se estruturavam esquemas Conclusões
de financiamento, mais ou menos subsidiados,
que permitissem às famílias obter o equilíbrio Como principal motivação para o presente ar-
financeiro adequado ao investimento nas obras tigo, apresentou-se a circunstância de que o
de intervenção. Também foram desenhadas ar- “pensar a cidade” – entendido nos mecanis-
ticulações com outras fontes de recursos que mos da sua “produção” ou nos instrumentos
prometessem sustentar a geração de renda a de “planejamento e gestão urbanística” – tem
partir de atividades produtivas e comerciais sido objeto de permanente busca de referen-
instaladas nos respectivos imóveis, bem como ciais do processo civilizatório anunciado pela
a instalação de serviços comunitários de apoio modernidade, cujas consequências tornam-se
e requalificação do espaço público. evidentes na contínua revisão de “princípios”,
A sétima etapa, à qual não se seguiu “cartas”, “tratados” ou propostas conceituais
qualquer outra, permitiu, ainda que com di- para um viver moderno.
ficuldades operacionais e de mediação entre Pode parecer paradoxal invocar, hoje, a
os interesses do governo do Estado, dos pro- habitação como requisito decisivo para “resol-
motores imobiliários e dos moradores, instituir ver” a cidade, quando o projeto modernista ti-
dinâmica de participação que implicou consi- nha, aparentemente, nas unidades residenciais,
derar uma estratégia para a questão habitacio- o elemento estruturante de certo “viver” mo-
nal, ainda que não se possa deduzir dela uma derno, do novo habitat.
política de habitação. No entanto, o processo Todavia, não se avaliou, pelo menos no
reverteu a, aparentemente inevitável, perda de campo do conhecimento do urbanismo, o im-
apropriação dos mecanismos de produção da pacto do viver moderno sobre a organização
cidade e a perda dos mecanismos de constru- das relações sociais. Essa desvinculação, ditada
ção das representações coletivas e da identida- pela produção dos novos modos de produção,
de do lugar. entre os consumidores dos bens e os seus pro-
O abandono do Programa, desde 2010, dutores, conduz, por indução do “espírito” de
por parte do governo do Estado e do Município, mercado, à reificação dos espaços construídos.
bem como o encerramento do Programa Mo- Os artefatos urbanos encontram-se, então, des-
numenta, com a decorrente indefinição de en- vinculados da cultura, dos sujeitos individuais
tendimentos sobre a intervenção no centro his- e coletivos, e tendem a ser destituídos de refe-
tórico da cidade de Salvador e a consequente rência simbólica no âmbito do conjunto.
ausência de consolidação de iniciativas e inves- Nesse contexto, a valorização dessas
timentos já realizados, indicam, provavelmente, produções e o seu sentido nas representa-
o fim de um ciclo de qualificação dos processos ções sociais desses espaços têm como base o

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Habitação em centros históricos

“estranhamento”, ou a novidade, e não a iden- a reconstituição de práticas, de códigos, de


tidade. O reconhecimento dos valores, que não condutas, que se pressupõem naturais aos su-
está desligado das estratégias de produção das jeitos, como se a “tradição” e a “memória” se
“coisas” – artefatos e espaços urbanos –, en- perpetuassem sem a experiência concreta.
volve sujeitos, instituições e práticas em torno A habitação, enquanto espaço de per-
do mercado; o valor de troca, que agrega os manência e não apenas de moradia, instiga ao
símbolos e o imaginário social na mesma for- “habitar”; poderá ser compreendida na escala
mulação, ou ordem ideológica. da produção e do viver a cidade e costurar as
Em todos esses “cenários”, independen- práticas dispersas que hoje se fomentam para
temente da categorização dos lugares – espa- a dinamização – revitalização ou humaniza-
ços centrais ou centos históricos –, tem preva- ção – do espaço e vida pública e das represen-
lecido a ideia de que se trata de espaços que tações coletivas.
requerem uma abordagem diferenciada. Eles Tal como se pode constatar no estudo
têm se constituído, sempre, como um “proble- dos centros históricos das cidades de Salvador
ma”, no qual se condensam muitos conflitos de e do Porto, a habitação não deverá ser toma-
interesses e, sobretudo, muitas das contradi- da somente pela sua vertente de fixação de
ções no âmbito dos processos sociais da apro- residentes, assumindo, nessas circunstâncias,
priação e uso deles mesmos. o caráter de programa de moradia, mas deve
A partir da leitura dos processos de in- alcançar o patamar de política urbana para que
tervenção nos centros históricos das cidades os sujeitos sociais e institucionais integrem um
de Salvador e do Porto, verificou-se que tem âmbito alargado de ações, das quais partici-
sido recorrente o princípio de que os grupos pam, não como protagonistas esporádicos, mas
sociais instalados (a população residente), se como cidadãos e agentes de cidadania em uma
não se constituem o “problema”, constituem, perspectiva universalista de direitos,
no mínimo, um obstáculo importante à imple- Entende-se, por fim, que o que a habi-
mentação de determinadas “políticas urba- tação traz de relevante para os centros his-
nas”. Em muitas das propostas e intervenções, tóricos, enquanto habitar, e não apenas co-
existe um desajuste programático entre os mo uso entre as funções da cidade ou como
objetivos anunciados, muitas vezes expressos mercadoria valorizável no processo imobiliário
no discurso dos agentes, e os instrumentos especulativo é, precisamente, a permanência
de atuação implementados. Ou seja, em raras de pessoas, a continuidade ou a constitui-
circunstâncias, os grupos sociais estabelecidos ção de cotidianos e, assim, a possibilidade de
são considerados, no âmbito das estratégias formar as representações coletivas, instituir
de planejamento urbano, como indutores dos valores e ressignificar memórias. Ao mesmo
processos de reabilitação ou revitalização das tempo, a reutilização dos imóveis dos centros
áreas centrais das cidades. históricos, habitando-os e atualizando-os na
As experiências de restabelecimento do sua capacidade de uso, qualifica a habitação,
uso do espaço público com atividades quali- inserindo-a em um habitar, em um lugar espa-
ficadas não têm implicado, necessariamente, cialmente qualificado que carrega memórias

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Lucia Maria Machado Bógus, António Miguel Lopes de Sousa

que instigam à construção de mecanismos de processo histórico; dando-lhe prosseguimento,


pertencimento e sociabilidade, fortalecendo as não como mera transmissão, mas como trans-
identidades, a autoestima e a apropriação do formação da realidade urbana.

Lucia Maria Machado Bógus


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Ciências Sociais, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais. São Paulo, SP/Brasil.
lubogus@uol.com.brLe

António Miguel Lopes de Sousa


Ministério da Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, DF/Brasil.
sousa.miguel@uol.com.br

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Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

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Em busca do sentimento
da paisagem
In search of landscape feeling
Margareth Afeche Pimenta

Resumo Abstract
Entre aproximações e distanciamentos, o senti- B e t w e e n p r ox i m i t i e s a n d d is t a n c e s , t h e
mento da paisagem ( stimmung ) resulta de um landscape feeling (stimmung) is the result of
longo debate que coloca em questão a racionalida- a long debate about the fi nal rationality of the
de definitiva do mundo. A conflitualidade latente world. The latent conflict between reason and
entre razão e emoção leva Kant a admitir a possi- emotion leads Kant to admit the possibility
bilidade da apreensão suprassensível da natureza. of apprehending nature beyond the sensitive.
Sulzer e Herder alinham-se com ressalvas nessa di- Sulzer and Herder align with caveats in this
reção, reconhecendo a existência de prazer ou ex- direction, recognizing the existence of pleasure
citação, provocados a partir da interação exterior. or excitement caused by external interaction.
Carus, a partir de então, refere-se diretamente ao Carus, from there, refers directly to the landscape
sentimento da paisagem, apoiado em influências feeling, supported by cross-influences of Goethe
cruzadas de Goethe e Humboldt. Este artigo pre- and Humboldt. This article intends to follow this
tende acompanhar essa trajetória de elaboração path of conceptual elaboration, recognizing that
conceitual, reconhecendo à pintura a capacidade painting has the ability to arouse, in Carus, the
de suscitar, em Carus, o estímulo para a apreensão stimulus for the sensitive apprehension of the
sensível do mundo. world.
Palavras-chave: paisagem; sentimento; natureza; Keywords: landscape; feeling; nature; Humboldt;
Humboldt; Carus. Carus.

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h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3712
Margareth Afeche Pimenta

Introdução se pertence, do qual se é originário2 (CNRTL,


2015). Aparece, portanto, a relação com o meio
em que se vive.
A ideia de paisagem relaciona-se diretamente Pays ter-se-ia originado de pagus,
com a era moderna. Quando o homem passa a canton, ager pagensis ou pagesius, território
se reconhecer como o centro da vida na terra, de um cantão, de onde, por extensão, decor-
vê-se espacialmente circunscrito. Constrói-se rem os sentidos de região e de pátria (Littré,
como humanidade, inserindo-se na paisagem. 1874, p. 1021). As línguas latinas derivariam a
Até então, as cenas religiosas faziam parte da palavra paisagem do francês paysage. Existe,
esfera do imaginário. Importava-se pouco com no entanto, uma controvérsia quanto a sua ori-
a representação social. Na transição do mun- gem advir de pays ou da palavra italiana paese
do medieval, transformam-se as relações e os (Richelet, 1728, p. 10). Reconhece-se, contudo,
conceitos advindos das ancoragens espaciais. tanto num caso como no outro, a sua forma-
O homem reconhece-se como livre, indivíduo ção a partir da raiz latina pagus, que designa-
social, destacado das estruturas feudais, em ria uma circunscrição territorial rural na época
processo de construção de novas relações com galo-romana. Significaria, então, “cantão ru-
o ambiente. A ruptura com o antigo regime ral” ou “território definido por seus limites”,
coloca em jogo a distinção entre vida rural e este último podendo ser decorrente do verbo
urbana. O espaço passa a ser elemento-chave pangere que corresponde a fincar um marco na
e torna-se objeto de indagações. O homem terra (tradução nossa) (CNRTL, 2015). Na Idade
reconhece-se contextualizado. Observa o mun- Média, pagus adquire o significado de territó-
do exterior no qual se insere. Inicia-se, então, rio de uma civitas. Posteriormente, na Gália se
um longo processo de construção da ideia de define como uma circunscrição inferior a civitas
paisagem e da relação que os homens estabe- (ibid.), com a conotação de burgo, vila, parte de
leceriam com ela. um território (Bréal e Bailly, 1885, p. 241).
Paisagem ter-se-ia originado de pays, no- O termo paisagem é atestado pela pri-
ção já encontrada no século X, que significaria meira vez em francês somente no século XV,
então “região habitada”, podendo ser, ou não, em 1493, quando Jean Molinet a utiliza para
claramente delimitada. Aparece dessa forma, designar um quadro com a representação de
na obra A vida de Saint Léger, escrita em 980.1 um cenário natural (Filleron, 2005). Em 1606,
No início do século XII, novos sentidos são adi- aparece uma pequena definição de paisagem
cionados a essa concepção original. Insere-se a como “palavra comum entre os pintores”
ideia de divisão territorial ou região geográfi- (Nicot, 1606, p. 453; tradução nossa). Até o
ca, considerada tanto do ponto de vista físico início do século XVII, portanto, a paisagem
como climático, que se acrescentam à defini- está ligada ao âmbito pictural. A partir de
ção anterior de povoamento. Acrescenta-se, então, desde a primeira versão (1694) dos di-
também, o sentido de pertencimento, e pays cionários da Academia Francesa até a última
passa a ser considerado o território ao qual (1992), a paisagem adquire duplo sentido, por

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Em busca do sentimento da paisagem

um lado como extensão ou pedaço de terra objetividade seria questionada pela capacida-
e, por outro, como representação pictórica de de estupefação da obra pictural, de onde
(FR, 1694,1762,1798,1832-5, 1932-5, 1992; decorre a elaboração do sentimento da paisa-
Féraud, 1788). gem ( stimmung ).
O sufixo age, acrescido então a pays, que Entre aproximações e distanciamentos,
conforma paisagem (paysage), designa, quan- o sentimento da paisagem (stimmung) resulta
do vem depois de um verbo, uma ação; quando desse longo processo histórico que coloca em
colocado depois de um nome de pessoa, um es- questão essa dualidade conflituosa na apreen-
tado; e, depois de um nome de coisa inanima- são do real. Elabora-se a partir das reflexões de
da, uma coleção (Filleron, 2005). Parece haver, Carus sobre a evocação sensível da obra pic-
atualmente, uma inclinação pela última acep- tural. Contemporâneo de Goethe e Humboldt,
ção e a generalização da noção de paisagem pôde ser mandatário de influências cruzadas,
como coletânea de objetos naturais e culturais. mas, contrariamente aos demais, direciona o
Numa época em constante intervenção foco diretamente à paisagem cuja reflexão se
do homem sobre a natureza, em que as técni- desenvolve a partir da obra pictural. A vida
cas se desenvolvem rapidamente, a compreen- mais uma vez imitaria a arte. Dessa associação,
são do mundo estaria associada à objetividade depreende-se a capacidade de fascínio do be-
da observação racionalista. Assim, a paisagem lo, que poderia ser capaz de suscitar interações
como conjunto de objetos seria analisada com emocionais. Stimmung não pode se restringir,
o distanciamento do investigador, em sua ex- no entanto, a algo similar a alguma alteração
terioridade. Ela apareceria, dessa forma, sob e de humor (Oxford Research Encyclopedias,
para o olhar inquisitivo. Não haveria lugar, por- 2015). Seu debate circula entre os diversos sig-
tanto, para um relacionamento variável entre o nificados de “vocação, ressonância, tonalidade,
sujeito e o objeto a ser analisado. Somente no ambiência, acordo afetivo subjetivo ou objeti-
âmbito artístico haveria a permissão à contem- vo” (Richir, 2015). Resulta, no entanto, de um
plação evasiva. embate conceitual que tem por objetivo colo-
O conflito entre conhecimento e intuição car em dúvida a racionalização do mundo. A
perpassaria grande parte da história da filoso- tessitura dessas reflexões modernas apoia-se,
fia, sobretudo alemã, como se pudesse haver, historicamente, sobre a relação que se estabe-
até mesmo, o risco de uma certa perversão lece entre razão e sentimento.
da razão, provocada pela emoção. Uma longa Este artigo pretende acompanhar essa
trajetória de reações e argumentações promo- trajetória de elaboração conceitual, colocan-
ve a diluição de algumas barreiras e mesmo, do em destaque os debates realizados a partir
em alguns momentos, um convívio entre os do século XVII que culminariam, aqui, na ela-
dois termos que pareciam historicamente an- boração do sentimento da paisagem. Numa
tagônicos. A apreensão do real pelo conheci- época em que as contextualizações parecem
mento traz à luz o questionamento do próprio perder ressonância, talvez se tornem ainda
objeto “externo”, então natureza e, com ela, mais necessárias para a construção de um de-
a natureza transformada (Lefebvre, 1974). Sua bate intelectual profícuo, quando se pretende

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Margareth Afeche Pimenta

a elaboração da complexidade (Morin, 2003). explicadas com a ajuda do conceito de enten-


Procura-se, assim, iniciar, aqui, uma reflexão dimento da realidade sensível. A faculdade de
sobre a trajetória que poderia ter conduzido à julgar estabeleceria um princípio de relação da
elaboração do sentimento da paisagem. Tece- “natureza com o inacessível mundo do supras-
-se, portanto, neste momento, um percurso his- sensível” (ibid., p. 7). O entendimento estabe-
tórico que procura demonstrar as dubiedades lece-se a partir de leis gerais da natureza, que
necessárias às formações conceituais, o que estão dadas a priori, sem as quais não se pode-
poderia nos permitir desvendar o mundo de ria aproximar do objeto da experiência. Existe a
forma mais sedutora. necessidade de certo ordenamento da natureza
nas suas regras particulares, que somente são
conhecidas empiricamente e que são contin-
gentes (ibid., p. 36). A concordância da nature-
Construindo o sentimento za, considerada na variedade de suas leis parti-
da paisagem (stimmung) culares, deve ser julgada como contingente em
nosso espírito, mas, ao mesmo tempo, como
O conceito de stimmung teria surgido no últi- inevitável para o nosso entendimento e, assim,
mo terço do século XVIII, com várias nuances, a como uma finalidade pela qual a natureza se
partir do debate de ideias que se interagiam na justifica ao nosso olhar, quando se trata do pro-
Alemanha. As tônicas efetuadas variavam se- cesso de conhecimento (ibid., p. 40).
gundo os diversos autores. O debate filosófico A natureza teria para Kant duas finalida-
centrado na sensibilidade alemã da era român- des (forma finalis), formal ou real. A primeira
tica aporta, entretanto, grandes inovações. O seria julgada pelo gosto; a segunda, pela razão.
significado estético e teórico dos sentidos, que A existência de um substrato suprassensível
tradicionalmente foram considerados menos da natureza estabeleceria a possibilidade de
relevantes na apreensão do real, é reavaliado "ser determinado pela nossa capacidade inte-
a partir das novas perspectivas antropológicas. lectual" (ibid., p. 58). Na apreciação da beleza,
O sentir vem se acrescentar às faculdades da qualidade universal, o “julgamento do gosto
alma, compreendido então quase como um é puro; não supõe o conceito de finalidade, à
contato direto com o objeto do conhecimento qual se reportariam os diversos elementos do
(Martinelli, 2010, p. 1). objeto” (ibid., p. 112). Colocando em questão
Uma longa história de indagações sobre o julgamento do gosto, Kant enaltece as pos-
as relações entre o pensar e o sentir vai ser te- sibilidades da apreensão suprassensível da
cida até o reconhecimento da apreensão sen- natureza, chegando mesmo a detectar uma
sível do real. Para Kant, considerado o prede- certa perversão da razão pela paixão. Haveria,
cessor do debate entre razão e sensibilidade, portanto, uma espécie de bloqueio da capaci-
o homem, em condições de universalidade, é dade de racionalização, decorrente da sobre-
chamado a formar juízos, a partir do enten- posição da emoção (Richir, 2015). Essa confli-
dimento e do sentido reunidos (Kant, 1846, tualidade em nada contribui para diminuir o
p. 94). Procura estabelecer leis que possam ser papel que desempenha o sensível no processo

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Em busca do sentimento da paisagem

de conhecimento, enquanto método de atingir da própria alma. A natureza da atividade da


o entendimento a partir da experiência, mas alma estaria fortemente relacionada ao objeto
também diferenciação entre o entendimento e percebido. O prazer seria um estado qualitativo
a sensação, elemento puramente subjetivo da dos sentidos ou do intelecto, provocado pelas
relação com o real. O sentimento do prazer é "qualidades gerais que os objetos devem ter
também determinado por uma razão a priori, para estimular naturalmente esses sentimen-
que lhe atribui um valor universal, referente à tos" (Sulzer apud Mondzain-Baudine, 2015).
relação do objeto com a faculdade de conhe- O fator supremo do prazer estaria na unidade
cer, sem que o conceito de finalidade se refi- resultante da harmonia convergente das partes
ra à faculdade de desejar, diferenciando-se, para a formação do todo.
portanto, da finalidade prática da natureza O belo provocaria o efeito de estimular,
(Kant, 1846, p. 41). O debate estético introdu- com intensidade particular, as faculdades da
zido por Kant em 1790 constitui uma primei- alma. Todo objeto reconhecido por belo teria
ra definição de Stimmung, quando coloca em “a virtude de excitar a vivacidade do espírito”
“acordo proporcional” os diferentes instru- (Sulzer apud Décultot, 2006, p. 98). Acima de
mentos de julgamento entre o gosto pela bele- qualquer outra experiência, aquela exercida
za, o entendimento e o sentido (Wellbery apud pelo belo teria o privilégio de fazer experimen-
Pierlot, 2015). tar a essência do prazer, essa “impulsão da
A preocupação de Kant com a apreen- alma” a “abraçar uma infinidade de ideias”, a
são estética encontra eco em Sulzer, mas este fazer com que se relacionem entre elas (ibid.).
privilegia a metáfora musical e a experiência Seriam as qualidades de ordem e de comple-
emocional. Pela falta de tradução e de difusão, xidade que provocariam o prazer. A multipli-
sua obra é pouco conhecida, sobretudo no que cidade dos gostos e de prazeres, resultado da
concerne às relações que estabelece entre pra- desigualdade de conhecimentos, não poderia
zer e conhecimento. Segundo Sulzer, as ideias originar a universalidade fundamental da bele-
seriam produzidas pela força da alma, que op- za. O belo, o julgamento de gosto, se aprende.
taria pelas ideias claras ante as obscuras. Os A única condição para que o belo provocasse
homens prefeririam, então, uma representação seu efeito seria conhecê-lo. O caráter universal
distinta a uma confusa, porque a primeira po- da beleza não pressupõe, entretanto, sua unici-
deria ensinar mais e, portanto, satisfazer me- dade. A obra provoca o sentimento, mas este se
lhor “as necessidades da alma” (Sulzer apud educa (Mondzain-Baudine, 2015).
Décultot, 2006, p. 94). O mais simples objeto, No entrecruzamento das posições, Herder
que em si é incapaz de estimular um sentimen- alinha-se ao pensamento de Sulzer, atribuindo-
to de prazer, poderia “suscitar um sentimento -lhe o papel de precursor nesse debate, o que
agradável, quando a imaginação ou o entusias- é coerente com sua própria visão da relação
mo impulsiona a procura do belo" (ibid., 2012, entre os sentidos e a razão, explicitada sobre-
p. 96). Em sua Nouvelle Théorie des Plaisirs de tudo na obra Plastik de 1778 (Decultot, 2006,
1767, a fonte do prazer residiria no objeto, que p. 103). Contemporâneo de Kant, estabelece
detém a perfeição, mas também na dinâmica com este uma polêmica sobre a capacidade

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Margareth Afeche Pimenta

de julgar,3 afirmando que é a mesma mente acolhesse “o mar de estímulos e sentimentos


que percebe, imagina, pensa ou legisla. Existe, [ Gefühl ] que provêm do exterior”, mas, ao
portanto, uma mesma capacidade com várias mesmo tempo, teceu um sistema nervoso para
atribuições. A razão aparece na mente huma- receber os estímulos provenientes do interior
na sem estar separada de outras “faculdades” (ibid., p. 31). Esse “éter interior” não tem ne-
(Clark, 1955, p. 400). Haveria, portanto, um cessidade de luz, som ou odor, mas “pode tu-
único âmbito de pensar e sentir. Kant conside- do acolher e transformar em si”. Todos esses
ra a sensação como uma percepção objetiva, elementos compõem o “jogo de cordas da di-
enquanto o sentimento é sempre e somente vindade”, que pode demonstrar que “nenhum
subjetivo, sem constituir uma representação do pequeno elo possa ser sem razão” (ibid., p. 38).
objeto. Herder se opõe à objetivação das sen- Os sentidos estão, então, em estreita co-
sações, porque não admite a separação kantia- nexão e são unificados interiormente. A vista
na entre sensibilidade e intelecto (Martinelli, e o olfato se decifram mutuamente; o olfato
2010, p. 6). parece ser o espírito do gosto, ou é um irmão
A razão não prescinde, no entanto, da ex- próximo para o paladar. Sente-se aquilo que
periência. Quanto mais se observa e se procura os nervos permitem (ibid., p. 37). “A partir de
compreender o grande espetáculo das forças tudo isso, a alma tece e se confecciona um ves-
da natureza, menos se pode evitar de sentir tido, seu universo sensível” (ibid., p. 36; grifos
[fühlen] em todos os lugares uma certa afini- nossos). Atribui, entretanto, um papel diferen-
dade e de tudo animar com a nossa sensação ciado ao tocar, o órgão da copresença. Somen-
4 te o tocar restitui a “forma”, um conceito es-
[empfindung] (Herder, 2009, p. 99). O ser hu-
mano que sente, “se sente em tudo e ali im- sencial em estética, enquanto a vista só revela
prime sua imagem e sua marca” (ibid., 2013, a “superfície” (Martinelli, 2010, p. 3).
p. 10). A excitação seria a primeira faísca em A vista possibilitaria o sonho, o toque re-
direção à sensação. O pensamento não pode- velaria a verdade, em termos da passagem da
ria emergir se a sensação não se produzisse fantasia à realidade, da representação à coisa
anteriormente, considerando que nada pode (ibid.). É preciso ter em conta a ambiguidade
ser separado na natureza, mas que tudo flui do termo Gefühl que “designa ao mesmo tem-
através e por meio de transições imperceptíveis po o tocar (sentido externo) e o sentimento,
(Herder, 2013, p. 22). em seu duplo sentido ético e estético” (ibid.,
Apesar das divergências salientadas, p. 1). Isso se faz presente em todo o Século
existem muitas aproximações ou suportes que das Luzes alemão, sem que as implicações de
resultam no desenvolvimento do pensamen- seu valor semântico sejam totalmente explora-
to posterior sobre o papel das sensações no das, mas com consequências sobre a maneira
processo de conhecimento. Como Kant, Herder de pensar as relações entre o mundo exterior e
reconhece que existe uma excitação da alma o sentimento.
provinda do exterior e, para isso, os homens Pela experiência, reconhecer-se-ia que
foram dotados de sentidos. A divindade teria tudo está cheio de excitação e de vida, o que
dotado os homens de sentidos para que a alma formaria em nós uma unidade, “uma alma

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Em busca do sentimento da paisagem

humana , que todas as obras e impulsões e literário, mas foi um importante precursor do
todos os membros mecânicos servem volunta- Romanticismo em seu experimentalismo for-
riamente”. Enquanto presença, “essa unidade mal, seu entusiasmo pela cultura popular e o
convergente e animada em nós se chama ima- primitivo, sua aceitação do poder do incons-
ginação”, quando se lhe atribui seu próprio ciente, forças irracionais e, acima de tudo, sua
alcance. “No contexto das forças intelectuais, relação com a experiência individual (ibid.).
espaço e tempo, que parecem existir somente Enquanto Herder erige Sulzer no verdadeiro
para o mundo robusto dos corpos, desapare- mentor de uma verdadeira ciência do sentir,
cem” (Herder, 2013, p. 39). Goethe o considera gestor de uma concepção
Herder exerceu uma enorme influên- moralizadora e insensível da arte (Décultot,
cia sobre a antropologia, geografia, filosofia 2006, p. 106). O debate seguia, portanto, entre
da história, tal qual sua obra Ideen que junta convergências e dissonâncias, elaborando de
muitos assuntos – história natural, história da forma cada vez mais complexa a relação entre
humanidade, literatura, filosofia – sem seguir ideia e sensações.
uma classificação enciclopédica, mas segundo A apreensão do real pela sensação, ela-
o duplo processo de progressão e de antologia borada pela razão, demonstra-se insuficiente
(Pénisson, 1996, p. 63). para responder à elaboração artística. Em uma
Herder, assim como Rousseau, acreditava carta endereçada a Goethe, em 1794, Schiller
que a evolução da civilização tinha alienado a desenvolve a ideia da interação entre intuição
humanidade da natureza – ou seja, da própria e abstração como via de mão dupla (Schiller e
natureza inerente à humanidade e do meio am- Goethe, 1923). Assinala que existe uma tarefa
biente. Ele advogava que as diferentes formas a mais, porque, depois de ter passado da intui-
de arte tiravam sua energia da experiência di- ção concreta à abstração, ter-se-ia que tomar
reta e não da correção das normas impostas, o caminho inverso, “traduzir de novo as ideias
recusando os modelos universais do classicis- abstratas em intuição” e transformar pensa-
mo francês (Hill, 2013, p. 1101). Atribui, como mentos em sentimentos, já que somente “as
os mais importantes autores alemães da época, intuições concretas fornecem a matéria prima à
a primazia à experimentação e ao sensível no produção criadora do gênio” (Herr, 1923, p. 7).
processo de elaboração artística. Entre sentimento, arte e razão vão se
Herder foi o pai intelectual do movimen- desenvolver as primeiras impressões que per-
to romântico Sturm und Drang (Tempestade e mitem posteriores reflexões sobre a paisagem
Paixão) que teve em Goethe sua figura central. como percepção e sensações. Elaboram-se,
O encontro com Herder em Estrasburgo, em portanto, as primeiras ideias da apreensão da
1770, permitiu a Goethe descobrir seu próprio paisagem como preocupação primordial, pole-
potencial como escritor original. O Sturm und mizando entre as expectativas de compreensão
Drang teve curta duração como movimento e os sentimentos suscitados.

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interior” (ibid., p. 65). Sensação e pensamento


A paisagem como stimmung
caminham, portanto, de forma indissociável.
Do embate cooperativo e ao mesmo tempo con- Para atingir a beleza e a grandeza, o ho-
flituoso entre razão e sensações, a paisagem mem precisa se sentir “em harmonia consigo
parece, pela primeira vez, ser o alvo de preo- mesmo”. O homem íntegro apreende a beleza
cupação, mas também um ponto de referência em sua interioridade, desde que seja abordada
para a harmonia entre essas duas percepções “com toda a sua alma” (ibid., p. 58). A inte-
aparentemente contraditórias. Esta se revela gridade humana somente pode ser atingida
em estreita associação com a arte, porque am- na aproximação com a beleza que não é nada
bas pressupõem a cooptação sensitiva. A pai- além “daquilo que provoca a sensação da es-
sagem provoca sensações. São elas que devem sência divina na natureza, quer dizer no mundo
ser transmitidas pela arte e pela pintura. Em dos fenômenos sensíveis” (ibid., p. 77).
sua Nove cartas sobre a pintura da paisagem Nada pode ser belo sem a interpretação
(Neun Breife über Landschafsmalerei), Carus e “perfeita da razão e da natureza”, como uma
Friedrich (1983) colocam em destaque a paisa- revelação divina que se expressa através des-
gem enquanto sentimento. Aparece, portanto, sas formas. A ideia aparece ao mesmo tempo
pela primeira vez, de forma clara, o estabele- que a natureza, que é penetrada pela razão.
cimento de uma ligação sentimental com o O eu entra, então, “em relação com essa in-
ambiente. Até então, sensação e conhecimento finidade aparente, e a sensação, o sentimento
estavam entre os questionamentos primordiais. [fundado sobre a orientação para o infinito...],
Agora, é a paisagem que se vincula diretamen- será determinado como sentimento de beleza”.
te à arte e à pintura. Paisagem e beleza então Esta é decorrente desse triplo acordo entre
se confundem, considerando as perturbações Deus, a natureza e o homem (ibid.). A paisa-
emocionais que advêm dos estímulos provoca- gem desperta, portanto, esse sentido do belo,
dos pela contemplação. A paisagem associa-se cuja contemplação procede da consciência.
diretamente à beleza e, portanto, à arte. As impressões retidas na observação de
A paisagem imediatamente percebida uma paisagem permitem julgar os efeitos que
transmite sensações, como a neve nos reporta podem ser produzidos em um quadro. Seriam
à calma e à tranquilidade (Carus e Friedrich, relações similares. Somente o que está “em
1983, p. 57). O espírito se abandona, então, à ligação estreita” pode emocionar pelo olhar,
paz e aos pensamentos. Existe, dessa forma, mas também pelo “perfume das flores” (ibid.,
uma relação positiva entre razão e emoção. Os p. 65). A percepção não se restringe, portan-
pensamentos se realizam nesse abandono em to, à aparência. Além do aspecto visual, a
um clima de paz, que advém do contato que se paisagem propaga um complexo de pertur-
estabelece com a paisagem. A paisagem passa bações estimuladas pelo contato sensorial. A
a ser a estimuladora de um processo complexo arte da paisagem significa, então, uma “re-
de elaboração artística e intelectual. A paisa- presentação de uma certa tonalidade da vi-
gem retratada transmite, assim, esse sentimen- da afetiva (sentido) pela reprodução de uma
to “reconfortante de tranquilidade e de clareza tonalidade da vida natural (verdade)” (ibid.,

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Em busca do sentimento da paisagem

p. 70). De novo, a natureza se manifesta esti- A arte aparece, então, como apogeu da
mulando emoções, por uma relação afetuosa ciência. Torna-se mítica “no verdadeiro sentido
estabelecida com o observador. do termo, ou órfica, como Goethe a qualificou
Carus aceita o romantismo de Schelling, igualmente” (Carus e Friedrich, 1983, p. 103).
Schlegel e Friedrich, visando, no entanto, uma A poesia, que surge anteriormente à pintura
restituição exata do real, pouco compatível da paisagem e que a ultrapassa em termos
com a abordagem subjetiva e mística do uni- de espiritualidade, daria os exemplos “mais
verso. Seria Goethe quem teria alcançado o nobres” às tarefas dos tempos modernos. Nin-
encontro harmonioso entre arte e ciência, ou guém seria, assim, melhor que Goethe para ser
seja, a ”visão poética da natureza com as exi- seguido, já que “através de suas descrições [...]
gências do saber cientifico” (Décultot, 2015). se sente [...] que o poeta tem da natureza des-
Reportando-se aos estudos sobre as nuvens ses fenômenos um conhecimento íntimo e uni-
(longos estudos sobre as leis da atmosfera) versa” (ibid., p. 108). Universalidade esta que
no Terceiro Caderno da Naturwissenschaft poderia ser compreendida em relação tanto à
(Ciências Naturais) e aos seus belos poemas abrangência quanto à generalização a outros
Howard’s Ehrengedächtnis ( Memória de Hon- campos do conhecimento.
ra de Howard ) de Gothe, Carus destaca que a Em sua visão, Goethe teria aberto a via
pureza da vida existe somente em duas situa- à regeneração da paisagem pictórica, o que
ções: 1) no ingênuo estado original, onde o se fundamentava em dois processos de co-
divino indica o que é verdadeiro e justo, sem nhecimento: 1) a decomposição científica dos
necessidade de reflexão; e 2) num estágio fenômenos naturais em conformidade, princi-
mais adiantado da vida quando se descobre palmente, com as leis da geologia e da meteo-
“claramente quais são as relações com Deus rologia; e 2) recomposição da unidade estética
e com o mundo”. Nesse momento, essa “pu- pelo olhar poético do artista (Décultot, 2015).
reza interior, inconsciente dela mesma, recebe Assim, a paisagem deveria representar a “vi-
na vida seu carimbo de clareza e consciência” da da terra”, em sua “diversidade de figuras e
(Carus e Friedrich, 1983, p. 102). Tal dualidade fenômenos variados” (Carus e Friedrich, 1983,
na perfeição interior pode ser imaginada igual- p. 63). A realidade seria, portanto, determi-
mente na arte. nada pelos mecanismos físicos que regem o
Os estudos sobre a formação das nuvens, globo terrestre, sendo insuflada de vida pelas
tal como são oferecidas pela simples intuição formas artísticas. A paisagem torna-se, assim,
sensível, requisitam a inteligência que é fruto geognose, conceito que se desenvolve a partir
exclusivo da pesquisa científica. As passagens do contato com Humboldt, complementando
das nuvens “não são desprovidas de lei”. A os aportes efetuados por Goethe.
visão romântica da paisagem pictural conduz, A natureza considerada racionalmente,
assim, a uma abordagem científica da natu- ou seja, submetida ao pensamento, seria “a
reza, “o que não nega, entretanto, sua matriz unidade na diversidade dos fenômenos, a
subjetiva e poética” (Décultot, 2015). harmonia entre as coisas criadas”, que diferem

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pelas formas, pelas suas constituições e pelas de outra forma, “tudo aquilo onde a natureza
forças que as animam (Humboldt, 1855a, p. 4). se revela conforme sua essência mais íntima”
A natureza não perderia “seu charme e o pres- (ibid. p. 123). O “todo penetrado pelo sopro
tígio de seu poder mágico” na medida em que de vida” (Humboldt, 1855a, p. 4). Por isso, os
se “penetre em seus segredos” (ibid., p. 20). desenhos dos geognosistas são animados de
Descobri-la, portanto, seria a revelação de sua vida interior. O mesmo aconteceria com os tra-
magia, a “influência do mundo exterior” se balhos dos intelectuais, já que a apreciação da
exercendo “sobre a imaginação e o sentimen- beleza depende da formação e do aprendizado
to” (ibid., p. 50). do gosto.
Humboldt desvenda um sentimento de O estudo dos objetos naturais deveria,
natureza, “desenha com palavras, para os também, ensejar um aspecto exterior e um as-
olhos de nossa alma”, inspirando, para Ca- pecto interior; o primeiro daria uma ideia intui-
rus, o “ideal da paisagem artística moderna” tiva do todo, enquanto o segundo apresentaria
(Carus e Friedrich, 1983, p.108). Seria neces- as suas partes. Somente os dois aspectos reuni-
sário, então, precisar o termo paisagem como dos poderiam dar a “ideia completa da essên-
“a representação da vida da terra, a arte da cia geral do objeto natural”. Da mesma forma,
representação da vida da terra (Erdlebenbild, a compreensão do “verdadeiro caráter” de um
Erdlebenbildkunst)”, o que evocaria mais preci- animal não supõe somente “a reprodução iner-
samente seu pensamento (ibid., p. 109). te de seus contornos, mas a apreensão viva do
Todo o objeto na terra, por mais simples, olho do artista”. Também parece impossível
seria um “digno e belo objeto de arte”, desde detectar a verdadeira particularidade de uma
que fosse apreendido com a “alma”, desvelan- montanha, a não ser pela figuração artísti-
do, exatamente, “todo o seu sentido próprio ca, ou seja, “uma paisagem verdadeiramente
e a ideia divina que se esconde nele mesmo” geognósica” (Carus e Friedrich, 1983, p. 136).
(ibid., p. 109). A imagem da vida na terra de- Apreende-se o mundo sensível em seu
veria acolher, não somente a paisagem natural, conjunto, similar ao prazer da contemplação
mas também a vida humana, já que o homem é que se tem, avistando-se a paisagem a partir
o seu “mais belo produto” (ibid., p. 110). de uma montanha. Carus ressalta essa exulta-
Os artistas de “corações puros e leais” ção, quando se intensifica a impressão de con-
deveriam reconhecer o caráter “sagrado” de junto dessa apreciação. Todo estudo verdadei-
tudo o que devem representar (ibid., p. 122). ro da natureza conduziria o homem ao limite
Seria necessário, então, a formação do senti- dos “mistérios superiores” que lhe preenche-
do do artista pela “bela forma”, assim como riam de “um horror o mais sagrado” (Carus e
a formação do gosto no povo. Aproxima-se de Friedrich, 1983, p. 59). Habituando-se a ver nas
seus antecessores, sobretudo de Sulzer, quanto características das montanhas e das nuvens
à necessidade de um processo de elaboração e os estados diversos da totalidade orgânica da
desenvolvimento do gosto. O belo estaria em terra e de sua atmosfera, Carus afirma ter de-
“tudo aquilo que exprime puramente uma es- senvolvido um profundo “respeito pela parti-
sência divina nas coisas naturais”, ou seja, dito cularidade da natureza”, o que lhe conduziria

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Em busca do sentimento da paisagem

para uma pesquisa rigorosa da verdade (ibid., Trazida ao primeiro plano por Carus, a
p. 135). Considera, portanto, como Humboldt, função do gênero paisagístico seria de repre-
que as atividades artísticas e a ciências intera- sentar, então, uma certa tonalidade (stimmung)
gem de forma benéfica. da vida interior, em correspondência com a vida
Os amplos painéis geográficos descritos natural, uma formulação próxima de Schlegel
em Viagem às regiões equinociais do novo em Leçons sur l'art (Décultot, 2015). Schlegel
continente (1845-1862), de Humboldt, pre- segue a visão total da obra que ultrapassa a
tendem o maravilhamento com as particulari- soma dos elementos que a compõem. Detectar
dades naturais, assimilando o olhar inquisidor uma verdadeira característica implica essa pe-
do cientista ao campo artístico (Humboldt e netração da ideia geral que permite à literatura
Bonpland, 1814). Torna-se clara sua intencio- e ao quadro “viver organicamente”. A ideia so-
nalidade em Tableau de la Nature, quando se mente valeria “dentro do espírito de sua épo-
propõe a “contemplar a natureza do alto, colo- ca” (Korinman, 2015). Carus, herdeiro de forte
car em evidência a ação combinada das forças tradição conceitual e afinado com seu tempo,
físicas”, oferecendo, ao “homem sensível”, os destaca a paisagem como objeto de reflexão
prazeres sempre renovados pela “pintura fiel das sensações no processo de conhecimento
das regiões tropicais”(Humboldt, 1850, p. 2; e percepção da realidade que o circunda, mas
grifos nossos). também a própria capacidade da natureza de
Para Humboldt, um estudo da natureza suscitar emoções. A pintura da paisagem, repe-
não seria completo quando não fosse consi- tindo o real, deveria envolver os mesmos senti-
derado o reflexo do mundo exterior no pensa- mentos de uma apreensão imergente. Somente
mento e na imaginação das impressões poéti- um homem alerta, que desenvolveu suas capa-
cas, ou seja, a revelação de um mundo interior cidades, aproximando-se do belo, seria capaz
(Humboldt, 1855b). A pintura da paisagem de captar a interioridade do campo externo.
seria uma descrição animada do mundo, que Um estado poético requereria, portanto, todas
propagaria o estudo da natureza. Ela mostra- as potências da alma para a apreensão da rea-
ria o mundo exterior, mas poderia relacionar o lidade exterior. Ratifica, assim, “a afinidade do
mundo visível ao mundo invisível, dependendo homem com o espírito do mundo” (Carus e
de sua qualidade. Friedrich, 1983, p. 59).
Para compreender a natureza em sua
totalidade, não se poderia reter no fenômeno
exterior, mas seria necessário “fazer entrever Paisagem e arte: identidade
algumas dessas analogias misteriosas e harmo-
nias morais” que o vinculam ao mundo exte-
na busca do sublime
rior, mostrando como a natureza pode envol-
Que ninguém é o igual ao outro, que seja
ver num “véu simbólico que deixava entrever de preferência igual ao Supremo; E de que
imagens graciosas”, como faz eclodir o “nobre maneira? Sendo perfeito em si mesmo.
germe das artes” (Humboldt, 1855b, p. 3). (Ibid., p. 103; grifos nossos)

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Margareth Afeche Pimenta

Talvez o critério da paisagem seja a bus- estimularia, com intensidade particular, as


ca da perfeição. Cabe, no entanto, ao observa- faculdades da alma. Alinhando-se com Sulzer
dor ou ao pintor a extração do sublime. A ma- nesse sentido, Herder contesta a distinção kan-
terialidade contida no ambiente pode ser com- tiana e identifica um único âmbito para o pen-
preendida de diversas formas. É resultado de sar e o sentir. Filia-se, no entanto, à linha de seu
relações sociais historicamente determinadas pensamento quando reconhece que os homens
(Santos,1982 e 1985). Apesar da justeza des- podem experimentar certa excitação da alma
sa concepção, ela não esgota o potencial das pelo contato com o mundo exterior, pois são,
interações que se estabelecem entre o cotidia- para isso, dotados de sentidos. As diferentes
no das pessoas com o seu entorno. A paisagem formas de arte seriam, portanto, impulsionadas
pode estimular sentimentos, criar identidades, pela aproximação com o real, devido ao papel
fazer sonhar. primordial desempenhado pela experimenta-
Despertar o devaneio aparece hoje como ção no processo de elaboração artística.
uma qualidade simples e corriqueira, quando Estariam desvendadas, até então, as
se estabelece uma relação com uma paisagem correlações complexas estabelecidas entre
que se considera distintiva ou especial. A pai- sentimento e arte, mas seria de Humboldt a
sagem passa a ser única e inconfundível e, ao iniciativa de fazer despertar o olhar para a na-
mesmo tempo, capaz de provocar alterações tureza, indo além das características formais.
sensíveis. Essa assimilação cultural, que au- Reconhece, portanto, um aspecto exterior e
tomatiza ideia e comportamentos, deve-se, um interior nos objetos naturais. O primeiro
no entanto, a um longo processo histórico proporcionaria uma ideia intuitiva do todo, en-
de contestação da onipresença da razão na quanto o segundo apresentaria as suas partes.
apreensão do mundo exterior. A conflitualida- Até então, retrata-se a intenção de uma análi-
de entre razão e emoção passa a ser centro de se da totalidade do objeto, mas vai mais além.
inquietações ao menos a partir de Kant, o que O estudo da natureza jamais poderia ser pleno
traria consigo incertezas quanto à problemáti- sem que fosse considerado o mundo exterior e
ca da relação entre sujeito e objeto da obser- seu reflexo no pensamento e na imaginação,
vação. Kant se interroga se o sentimento de ou seja, sua influência em um mundo interior
prazer precede, ou não, a consideração do ob- (Humboldt, 1855b). A ideia da “essência geral
jeto no julgamento do gosto (Pierlot, 2015). A do objeto natural” somente poderia resultar
universalidade do sentimento de prazer seria da combinação dessas duas dimensões. Trata-
determinada por uma razão a priori, referente va-se de revelar interiormente a magia contida
à relação do objeto com a faculdade de conhe- na natureza.
cer. Quando se refere ao gosto e à capacidade Uma vez delimitada, a natureza trans-
de julgar, Kant coloca em relação entendimen- forma-se em paisagem. O olhar seletivo de um
to e sentimento. recorte efetuado pelo artista atrairia a atenção
A partir de então, Sulzer reconheceria para o significado do sublime que se pode ob-
a capacidade de o belo excitar o espírito, ao servar na natureza. O belo seria uma revelação
menos, aquele que possui vivacidade. O belo divina expressa através das formas. A pintura

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Em busca do sentimento da paisagem

da paisagem teria sido o mote de incitação da entanto, são longínquos. De quando em quan-
observação do belo que se interioriza, a partir do, precisa-se negligenciar o presentismo, lem-
da aproximação com a natureza. O eu entraria brando que a elaboração teórica é resultado de
em contato consciente com as sensações, de um longo processo reflexivo. Os conceitos se
onde se depreenderia o sentimento de beleza. reelaboram constantemente. De Kant a Carus,
Carus, entremeando as visões mais passou-se das dúvidas propositivas entre razão
científicas e as mais naturalistas de Goethe e e emoção na apreensão do mundo exterior, até
Humboldt, desenvolve uma percepção original o desenvolvimento da interação entre senti-
de paisagem, que aparece associada direta- mento e ambiente.
mente à alma e ao sentimento. Esse foi um pri- A natureza não existe somente em ex-
meiro passo que seria seguido, posteriormente, terioridade. Interage com o olhar inquisidor. A
por diversas versões controversas e criativas, postura contempladora se responsabiliza pela
o que não é objetivo deste texto desenvolver. indução de diversas sensações. Se os homens
Cabe somente destacar a importância do de- são diferentes, revelam, contudo, uma identi-
bate contraditório como método de formação dade comum na busca daquilo que possuem
conceitual. As novas tecnologias fizeram obli- de divino. Perseguir a perfeição torna-se pos-
terar a duração como elemento fundamental sível no reconhecimento do belo. E daí deriva
da compreensão da realidade. Os conceitos, no a paisagem.

Margareth Afeche Pimenta


Universidade Federal de Santa Catarina, Curso de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-
-Graduação em Geografia. Florianópolis, SC/Brasil.
afeche@arq.ufsc.br

Notas
(1) “Tuit li omne de ciel païs, trestuit apresdrent a venir; Et sancz Lethgiers lis predïat”, extraído de La
Vie de Saint Léger, escrito por volta de 980, publicado por J. Linskill (Paris, 1937). Disponível em:
www.hs-augsburg.de/~harsch/gallica/Chronologie/10siecle/Leger/leg_text.html. Acesso em: 13
fev 2014.

(2) Benedei, monge que teria vivido na Corte de Henrique I, no início do século XII, é autor da
vulgarização da Viagem do Santo Brendan, um poema edificante em octossílabas, traduzido por
Ian Short (Guidot, 2015).

(3) A polêmica com Kant explicita-se em sua obra Kalligone (contre la cri que du jugement de Kant),
publicada em 1800.

(4) Preferiu-se, aqui, o texto em italiano, porque explicita os termos empregados em alemão.

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1. Collec on d’Auteurs Étrangers, publicada sob a direção de Charles du Bos. Paris, Librairie Plon.

Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 863-877, set/dez 2016 877
Artistas de rua:
trabalhadores ou pedintes?
Street performers: workers or beggars?

Bruno Buscariolli
Adele de Toledo Carneiro
Eliane Santos

Resumo Abstract
O presente trabalho apresenta as principais ca- This paper presents the main features of the
racterísticas da interação entre artistas de rua interaction between street performers and the
e o público em diferentes horários, localizações audience at different times, locations, and types
e tipos de arte, utilizando-se do método da ob- of art, using the observation method. The results
servação. Com os resultados, foi possível verifi - enabled us to note relationships among the
car relações entre os códigos observados, como observed codes, such as the spectators’ social
o perfil social dos espectadores e o tipo de arte profile and the kind of art they appreciate and to
que apreciam e a contribuição financeira. Outros which they contribute financially. Other aspects
aspectos que influenciam na interação com o ar- that influence the interaction with the artist are the
tista são a faixa etária do público e a localização age group of the audience and the geographical
geográfica da atuação. A pesquisa evidenciou location of the performance. The research showed
que a performance dos artistas de rua é um fe- that these artists’ performance is a democratic
nômeno democrático, porém de modo geral es- phenomenon but, generally speaking, these
ses profissionais são ainda vistos pela população professionals are still seen by the population as
como pedintes, e não como pessoas de carreira beggars, not as people whose artistic career is
artística em construção. under construction.
Palavras-chave: artistas de rua; performance ar- Keywords: street performers; urban artistic
tística urbana; etnografia urbana. performance; urban ethnography.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 879-898, set/dez 2016
h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3713
Bruno Buscariolli, Adele de Toledo Carneiro, Eliane Santos

Essa pesquisa se baseia nessas pergun-


Introdução
tas e tem como objetivo analisar quais são as
principais características que envolvem a in-
A arte de rua abrange inúmeros tipos de diver-
teração entre artistas de rua e o público. Para
são, como música, circo, teatro, dança, estátua
isso, foram realizadas mais de 100 horas de
viva e grafite. Cerca de 450 artistas de rua de
observação de performances ao vivo de artistas
São Paulo estão cadastrados, divulgam perfil e
de rua, principalmente na cidade de São Paulo.
programação de apresentações apenas no site
Cerca de 40 notas de campo foram elaboradas
www.artistasnarua.com.br (Artistas na Rua,
pelos pesquisadores e serviram de base para
2015). A atuação desses indivíduos ganhou
codificação e posterior análise dos dados. As
maior notoriedade a partir da sanção da lei
principais categorias da pesquisa foram: artis-
municipal 15.776,1 que dispõe sobre apresen-
ta, arte, ambiente, público e interação.
tações de artistas de rua nos logradouros públi-
Os resultados são instigantes. Eles in-
cos do município de São Paulo.
dicam que a reduzida visão para negócios e
Os números e novas leis parecem legi-
comportamentos ostensivos para arrecadar di-
timar o artista de rua como profissional, im-
nheiro são alguns dos fatores que levam parte
portante para a promoção artística e cultural
da população a enxergar artistas de rua como
do País. No entanto, “o artista de rua já está
pedintes. Parece haver um choque de classes
numa condição marginalizada no Brasil” Esta é
econômicas e sociais nos ambientes de apre-
a opinião de Isadora Faro, artista circense que
sentação dos artistas de rua, dominados por
se apresenta nas ruas de São Paulo há quase
profissionais com status já adquirido e incenti-
dez anos.2
vado pelo público de baixa renda. Existe tam-
A realidade é dura. Artistas de rua pro-
bém um caráter democrático do trabalho dos
curam demonstrar seu valor como trabalha-
artistas de rua, em decorrência da diversidade
dores, mas boa parte da população ainda os
de pessoas e de situações que permeiam o co-
enxerga como pedintes. Duas faces da mesma
tidiano deles.
moeda? Difícil dizer. Trata-se de um fenômeno
Serão apresentados a seguir o referen-
dinâmico e complexo, que poderia encontrar
cial teórico, a metodologia, a análise dos da-
respostas em aspectos históricos, culturais,
dos, as conclusões e as considerações finais
políticos e econômicos do Brasil. Talvez, além
da pesquisa.
do contexto amplo, um bom ponto de partida
para investigar essa questão seja em um olhar
minucioso, orientado para as particularidades e
para o cotidiano dos artistas de rua. Quem são Referencial teórico
eles? Como se apresentam? Em que lugares?
Para quem? Como se relacionam com o públi- Este trabalho se baseou nas técnicas da etno-
co? Como o público se relaciona e avalia as grafia para levantar dados e realizar as análi-
atuações deles? ses. Sabe-se que a etnografia tem fundamentos

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Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?

na antropologia e que, ao longo do tempo, foi O fundador do método etnográfico foi


incorporada aos estudos no campo da sociolo- Malinowski, que desenvolveu o método para
gia e dos estudos organizacionais. seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand, com
A palavra “etnografia” tem origem gre- duração de dois anos, ainda na primeira meta-
ga e apresenta na sua etimologia o radical de do século XX. Malinowski (1976) destaca, a
etno, que significa “cultura de um povo”, e o partir de seus estudos, a importância da obser-
sufixo grafia, que significa “escrita, descrição”. vação participante como forma de conhecer in-
No Dicionário Aurélio da Língua portuguesa tensamente a cultura de um determinado gru-
(2005) a definição é apresentada como “um po social através do entendimento da sua tota-
estudo descritivo de um ou vários aspectos lidade (biologia, psicologia e relações sociais).
culturais e sociais relacionados a um povo ou Dessa forma, o método etnográfico se
grupo social”. Nesse aspecto, a abordagem apresenta como inovador no campo da antro-
metodológico-teórica se propõe a compreen- pologia por instigar os pesquisadores a intera-
der a cultura de um determinado grupo social gir com o objeto pesquisado mediante obser-
mediante a observação e o registro do observa- vação participante, rompendo com paradigmas
dor-pesquisador. racionalistas. Na sua obra, fica clara a impor-
A etnográfica surge no século XIX, em tância da abordagem interpretativista pautada
um momento marcado por mudanças episte- no diálogo entre a observação participante e o
mológicas do conhecimento, especificamen- texto etnográfico.
te relacionadas à reação de historiadores e A obra de Malinowski, intitulada Os ar-
sociólogos quanto à filosofia positivista do- gonautas do Pacífico Ocidental, publicada em
minante. Os interpretativistas compreendiam 1922, apresenta as reflexões e as críticas me-
que o objetivo das ciências humanas era a todológicas do autor, especificamente no pro-
compreensão da ação humana e defendiam a cesso coleta e análise dos dados da pesquisa.
relevância do conteúdo intencional e significa- Trata-se de importante leitura aos interessados
tivo dessas ações sociais (Schwandt, 2006). pelo método, pois apresenta abordagem críti-
Nesse processo, o papel do pesquisador pas- ca do autor, além de apresentar os princípios
sa a ser de analisar e de compreender a ação básicos para a realização de pesquisa etnográ-
social dos indivíduos através de uma rede de fica: a) conhecimento da literatura etnográfica
representações sociais complexas e subjetivas relacionada ao objeto de estudo; b) prática da
da realidade da qual ele mesmo faz parte. Lo- observação participante a partir da vivência
go, a partir dessa abordagem, a experiência com os nativos; c) utilização de outros méto-
vivida pelo pesquisador é uma extensão desse dos, tais como genealogia, diários de campo
processo de análise, pois não é possível um entre outros.
completo distanciamento entre o pesquisador Malinowski (1976, p. 25) considera como
e o objeto pesquisado. A etnografia vai ao etapa fundamental da pesquisa etnográfica
encontro dessa abordagem, pois propõe uma a formação de um esquema claro e firme de
compreensão mais profunda sobre a vida so- constituição social, bem como o destaque de
cial dos indivíduos. leis, normas e fenômenos culturais relevantes.

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Bruno Buscariolli, Adele de Toledo Carneiro, Eliane Santos

Esse esquema é importante para organizar as apoio de grande diversidade de técnicas para
informações coletadas e contribuir para a cons- levantamento de dados. Entre as mais utiliza-
trução “de um todo coerente”. das, estão entrevistas estruturadas, entrevistas
Para Czarniawska (2007), o método et- com informantes-chave e questionários. Uma
nográfico possibilita compreensões mais am- definição bastante adequada a esse trabalho
plas quanto às atividades realizadas pelos in- é a de Hammersley e Atkinson (1995) sobre o
divíduos no ambiente em que atuam e intera- termo etnografia como método específico, ou
gem. Requer, no entanto, o estabelecimento de grupo de métodos, que requer a presença de
relações entre o pesquisador e o pesquisado, um pesquisador participante no cotidiano dos
palco em que as diferenças e as similaridades observados por um longo período, registrando
de cada um vêm à tona. tudo o que acontece no local e o que é dito pe-
Nesse aspecto, o método contribui na las pessoas próximas.
construção de análises e, também, na compre- Para Godoi, Bandeira-de-Mello e Silva
ensão do fenômeno observado, principalmente (2006), a pesquisa etnográfica é composta por
com base em questionamentos pertinentes ao três momentos fundamentais. O primeiro mo-
meio investigado e da lente teórica do pesqui- mento refere-se à “concepção do campo temá-
sador. Assim, as diferenças e as similaridades tico de estudo”, em que o pesquisador deve co-
encontradas em campo tornam a etnografia nhecer os estudos teóricos já realizados sobre o
uma experiência única ao pesquisador, não po- objeto que será estudado. O segundo momento
dendo ser transferida para um assistente/auxi- é o da “realização do trabalho em campo”.
liar de pesquisa, pois as inferências mais signi- Nesse momento, os autores apontam a impor-
ficativas emergem a partir dessa aproximação tância da observação atenta, tanto aos eventos
entre o pesquisador e o objeto pesquisado. facilmente identificáveis, quanto àqueles que
A importância da convivência entre requerem maior atenção do pesquisador para
o pesquisador e o nativo é justificada por identificação. Por fim, a fase de “elaboração
Malinowski como oportunidade de aproxi- do texto etnográfico”, que tem como objetivo
mação da cultura do outro. Dessa forma, o narrar de forma minuciosa as percepções do
pesquisador deixa de ser visto como um estra- pesquisador quanto ao objeto pesquisado, bem
nho e como elemento perturbador diante do como suas reflexões e análises dos resultados à
grupo pesquisado, tornando possível captar luz de um referencial teórico.
percepções, memórias, crenças, experiências Esse método de pesquisa também apre-
e costumes. senta dificuldades, muitas vezes intranspo-
Um dos meios mais utilizados para a níveis. Como discute Van Maanen (1979), as
realização das etnografias é a observação par- observações em campo podem apresentar in-
ticipante, porém outras abordagens, como a formações empíricas bastante variadas, cujas
observação não participante, também são utili- causas são difíceis de identificar e podem gerar
zadas. Sobre a teoria dos estudos etnográficos, barreiras para os pesquisadores, no que se re-
Sanday (1979) aponta que a observação parti- fere tanto às informações levantadas empirica-
cipante em estudos etnográficos conta com o mente quanto à utilização do método teórico

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Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?

mais adequado para analisar essas observa- importante sobre esse tipo de trabalho é como
ções. Além dos aspectos conceituais, existem garantir que os aspectos textuais entre diferen-
aspectos práticos que podem dificultar a rea- tes pesquisas etnográficas seja o mesmo. Essa
lização de uma etnografia, como o acesso ao questão é fundamental para a textualidade e
fenômeno que se busca estudar, o acesso ao lo- veracidade dos fatos e dos textos etnográficos.
cal, o contato ou a falta de confiança dos infor-
mantes e o tempo necessário para a ocorrência
do fenômeno a ser estudado. Metodologia
A elaboração de um estudo etnográfico
exige que o pesquisador considere a oralidade O método de pesquisa utilizado neste traba-
das pessoas observadas ou entrevistadas, por lho é a etnografia. Trata-se de uma abordagem
meio da descrição das falas dos indivíduos en- bastante adequada à investigação sobre os ar-
trevistados, sem intervir ou realizar julgamen- tistas de rua e à interação deles com o público,
tos no que se está observando. Esse procedi- apesar de não ser a única possível. A coleta de
mento de registro do discurso oral dos indiví- informações ocorreu entre os meses de março
duos estudados deve sofrer o mínimo possível e maio de 2015. Nela, quatro pesquisadores
de influência do pesquisador, pois os detalhes e utilizaram técnicas de observação e elabora-
as peculiaridades das diferentes formas de co- ram notas de campo e o posterior arquivo das
municação também apresentam características principais informações coletadas. Para a análise
que podem ser relevantes para a análise poste- dos dados, foram utilizados o processo de codi-
rior. Segundo Flores-Pereira e Cavedon (2009), ficação e a categorização, tendo como base as
em uma pesquisa etnográfica, o pesquisador técnicas da teoria fundamentada.
deve considerar o significado das narrativas É possível encontrar artistas de rua em
dos indivíduos observados, uma vez que, du- praticamente todos os dias da semana em ci-
rante a realização desse tipo de pesquisa, exis- dades grandes, não somente em performance,
te um relativo conflito entre a cultura própria mas também divulgando o próprio trabalho. No
e a cultura investigada, e as diferentes pers- caso de São Paulo, a lei municipal n. 15.776 de
pectivas não devem se misturar. A observação 2013 regulou a apresentação desses artistas,
deve ser livre de julgamentos ou de conclusões permitindo, inclusive, a venda de produtos de
antecipadas sobre o fenômeno observado. sua autoria nas ruas. Além disso, desde 2012
Como afirma Van Maanen (2006), as evi- está disponível o site “Artistas na Rua”3 que,
dências que resultam da pesquisa etnográfica, com o auxílio da empresa de turismo de São
assim como o estilo e a interpretação delas, Paulo (SpTuris), divulga o horário, os locais de
apresentaram mudanças ao longo do tempo, apresentação e outras informações sobre cada
mas as descobertas e a abordagem de qual- artista cadastrado.
quer trabalho ainda continuam relacionadas Foi, a partir desse site, que o grupo de
diretamente com os argumentos presentes em pesquisa selecionou a maior parte dos artistas
algum texto e referenciados a aspectos narra- observados. Em um primeiro momento, as ob-
tivos específicos e não gerais. Uma discussão servações se concentraram na avenida Paulista,

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Bruno Buscariolli, Adele de Toledo Carneiro, Eliane Santos

no bairro Cerqueira César em São Paulo, em de uma vez, por diferentes pesquisadores. Es-
função da facilidade de acesso. Entretanto, ao sa prática é considerada válida pela pesquisa,
perceber pouca variedade nos relatos, os pes- porque, ainda que seja o mesmo profissional, a
quisadores decidiram realizar as observações performance poderia ser diferente, em função
em outros locais, abrangendo não apenas a re- de fatores internos e externos.
gião central de São Paulo, mas também regiões Foram observadas, ao todo, 44 artistas,
populosas das cidades de Belo Horizonte e Em- totalizando 37 artistas solo e 7 artistas em
bu das Artes. Com esse aumento de abrangên- conjunto, tanto em dupla como em grupos nu-
cia, o grupo conseguiu maior diversidade de in- merosos. A maioria das performances observa-
formações sobre os artistas e sobre a interação das era de musical (ao todo, 28 observações),
deles com o público. mas também foram realizadas observações
Foram realizadas 102 horas de obser- sobre pinturas (3 observações), dança (4 ob-
vação de performances de artistas de rua ao servações), artes cênicas, como estátuas vivas
vivo. Nas três cidades, procurou-se realizar as (5 observações), e outras designações, como
observações de pesquisa em locais movimen- malabarismos, mágicos e entretenimentos ao
tados e, na maioria das vezes, já previamente vivo (8 observações). Sobre estes últimos, hou-
mapeados por meio da internet. Houve, entre- ve dúvida quanto à consideração deles como
tanto, observações realizadas sem planejamen- artistas, isto é, como profissionais de arte. En-
to, iniciadas quando algum dos pesquisadores tretanto, foram incluídos no conjunto de dados
encontrou, por casualidade, um artista de rua para a pesquisa não só por estarem na rua,
exercendo a arte. mas por apresentarem também características
As observações não seguiram roteiro peculiares de artistas desses locais: improvisos
preestabelecido, o que possibilitou uma aná- e um nível mínimo de preparo ao oferecerem
lise primária geral e abrangente de diversos entretenimento ao público transeunte.
aspectos. A forma de elaboração das notas de As observações, de forma mais direta ou
campo ficou a critério de cada pesquisador, indireta, contribuíram para uma mudança da
sendo utilizadas anotações diretas à mão ou atitude de grande parte dos artistas: em vários
narração com gravadores. O conteúdo dos rela- casos, os artistas modificavam a maneira de
tórios também não seguiu um ritual específico, atuar quando notavam a presença constante
contendo, assim, tudo o que os observadores do observador, possivelmente para impressio-
tiveram alcance no momento da observação e, nar ou arrecadar mais dinheiro. Dessa manei-
por isso, foram redigidos em caráter confessio- ra, ainda que seja um limite de pesquisa, essa
nal. Ao todo, foram escritos 39 diários, cada um influência foi considerada metodologicamente
associado a um exercício de observação junto a aceitável durante a descrição dos acontecimen-
artistas de rua, atuando sozinhos ou acompa- tos e na redação dos diários de campo.
nhados. Cada relatório correspondeu em média Após a condução de aproximadamen-
a 3 horas de observação em campo. te vinte observações, foi feito o exercício de
No total, foram observadas 48 apresen- codificação dos relatórios produzidos. A co-
tações, sendo alguns artistas observados mais dificação representou uma releitura dessas

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Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?

observações, buscando encontrar, a partir de interação dos artistas com o público caracteri-
fatos relevantes e em comum, palavras-chave zado no ambiente.
que definissem os fenômenos observados. Dessa forma, os relatórios especificavam
Trata-se de um amplo processo de reanálise: o público presente no ambiente, ou seja, des-
primeiramente selecionando temas primários crevia as pessoas que estavam passando pelo
em comum para, em seguida, elencar grandes local no momento da apresentação e aquelas
temas, que seriam associados aos trechos dos que, além disso, interagiam de alguma forma
relatórios de pesquisa. com o artista. A forma de interação poderia ser
Ao observar as anotações obtidas após negativa, demonstrando reprovação, indiferen-
as primeiras observações, foram percebidos al- te (maioria absoluta dos casos) ou amistosa
guns elementos frequentes e comuns a todos e simpática. Esta última foi a mais detalhada,
os relatórios. A partir dessas recorrências, o pois frequentemente implicava a contribuição
grupo formou códigos de análise para a gene- financeira do espectador. Nem toda relação po-
ralização dos dados, fundamentais para a aná- sitiva era acompanhada de contribuição em di-
lise do fenômeno como um todo. Durante a co- nheiro para o artista como “pagamento” pela
dificação, notou-se a preocupação inicialmente apreciação da sua arte.
em percepções sobre o artista e na descrição Assim, de maneira geral, a partir dos re-
da arte. Foram relatadas características físicas, latórios de campo foram extraídos os códigos
como idade, gênero e vestuário. Foram também principais que direcionaram a análise da pes-
descritos a maneira como o artista conduzia a quisa: “Artista”, “Arte”, “Ambiente”, “Público”
arte, o tipo de arte executada, a infraestrutura e “Interação”. Junto às dimensões de cada có-
(ou a falta dela) para a apresentação, o nível de digo, foi possível estabelecer as relações entre
profissionalização ou experiência com a condu- as variáveis da pesquisa.
ção da performance, entre outros. O grupo teve como base as categorias
Houve ainda uma preocupação em rela- expostas no Quadro 1, que orientaram as co-
tar o ambiente da apresentação observada, ou dificações mais frequentes nas observações dos
seja, quais os locais escolhidos, se eram movi- artistas em campo. Conforme exposto no qua-
mentados e propícios para a arte em execução dro, os relatórios foram divididos em grandes
e, até mesmo, detalhes, como horário, clima e categorias e subcategorias para especificar as
fluxos de pessoas. Outro elemento muito re- dimensões e os níveis de variação.
corrente nos relatórios diz respeito as pessoas A partir da formação dos códigos, foi es-
que passavam próximo ao artista durante a tabelecido, sempre com base na frequência dos
apresentação, além da descrição desse público: acontecimentos, relações entre essas variáveis,
idade, gênero, vestuário, se estavam em horário para elaboração de uma teoria sobre as apre-
de trabalho ou não. A partir dessas considera- sentações dos artistas de rua e suas respectivas
ções, foram percebidas notas de campo sobre a interações com o público.

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Quadro 1 – Principais categorias de análise

Categoria Subcategoria Dimensão Variações da dimensão

Exemplos: Gênero, Faixa Etária,


Exemplos: Masculino / Feminino;
Características pessoais Classe Econômica / Social
Acima de 65 anos; Alta / Baixa; etc.
Aparente, etc.
Artista
Companhia Sozinho / Acompanhado
Como ele está na hora
Vestuário Casual / Artístico

Exemplos: Gênero, Faixa Etária,


Exemplos: Masculino / Feminino;
Características pessoais Classe Econômica / Social
Acima de 65 anos; Alta / Baixa; etc.
Aparente, etc
Público
Companhia Sozinho / Acompanhado
Como ele está na hora
Vestuário Formal / Informal

Nível macro Próprio para Arte / Movimentado

O artista prepara / O artista não


Nível micro
prepara
Ambiente Local de atuação
Infraestrutura Mais elaborado / Menos elaborado

Horário Manhã / Tarde / Noite

Exemplos: Musical, Cênica, Pintura,


Tipos de arte Exemplos: MPB / Jazz / Rock, etc.
etc.

– Profissionalização Boa / Ruim


Arte
– Performance Boa / Ruim

Orientação do artista Público / Arte

– Maneira como o artista arrecada


Ativa / Passiva
dinheiro

– Amistosa – com dinheiro /


Interação
Reações do público Amistosa – sem dinheiro /
Indiferente / Reprovação

– Audiência Numerosa / Vazia

Fonte: Elaborado pelos autores.

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Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?

dificuldades fisiológicas, como o tempo, calor


Análise dos dados
ou frio, os longos períodos sem ingestão de
água ou mesmo a ausência de banheiros públi-
Os dados recolhidos foram analisados a partir
cos próximos, foram notadas em quase todas as
de cada categoria principal: Artista, Arte, Am-
observações. As dificuldades de execução nas
biente, Público, Interação. Posteriormente, foi
apresentações também foram relatadas com
possível verificar quais as relações entre as va-
frequência, principalmente com os instrumen-
riáveis e, assim, inferir conclusões gerais sobre
tos de trabalho, como a afinação de guitarras,
o fenômeno.
o alto nível de ruído das vias, rouquidão dos
cantores e até queimaduras com malabares em
Artista chamas. Também foi relatada, com frequência,
a falta de segurança durante a performance
A questão que prevaleceu nas observações dos artistas de rua, pois todos eles estavam
dos pesquisadores sobre os artistas de rua é expostos a ameaças voluntárias ou involuntá-
o fato de a maioria absoluta deles ser do sexo rias, intrínsecas ao ambiente escolhido para a
masculino. Ao todo, somente foram relatadas apresentação. A principal dificuldade observa-
apresentações de quatro mulheres, sendo duas da foi a escassez de contribuições em dinheiro,
acompanhadas de homens, como no exemplo pois o artista não tem controle sobre do fluxo
de um casal de músicos bolivianos e de uma ou montante de contribuições, mesmo quando
dupla musical. Essa constatação suscita grande a caixa para a colocação de dinheiro está bem
curiosidade, pois trata-se de um fenômeno po- à sua frente. No trecho abaixo foi descrito um
pular, que inclui diversos tipos de arte e locais momento de vulnerabilidade de um ator reali-
de atuação, mas que apresenta uma limitação zando performance de estátua viva.
de gênero.
Outras pessoas cutucavam o ombro dele
Avaliando outras dimensões da catego-
e faziam caretas para provocar alguma
ria, foi possível constatar considerável diversi- risada ou movimento no artista. Na maior
dade na faixa etária e no vestuário dos artistas. parte das ocasiões em que isso ocorreu, o
Entre os observados, havia desde um menino artista manteve-se imóvel e sem respon-
muito jovem, um malabarista de rua em Belo der aos estímulos externos, dirigindo o
olhar para a caixa de moedas. Com a falta
Horizonte, até homens de idade avançada, co-
de reação, as pessoas que o provocavam
mo o senhor que toca clarinete próximo à Li- desistiam e iam embora, algumas até dei-
vraria Cultura em São Paulo. Além disso, alguns xaram alguma pequena contribuição para
profissionais vestiam fantasias e acessórios pa- o artista. Além disso, existem pessoas que,
ra a apresentação, apesar de a maioria vestir ao ver a estátua viva, mudam o caminho
pela calçada para distanciarem-se dela.
roupas casuais e não apresentar um figurino
Isso provavelmente decorre do medo de
especifico para a ocasião. levar algum susto.
A partir das observações, constatou-se
que os artistas de rua enfrentam dificuldades Pode-se afirmar que a atuação dos ar-
constantes, tanto pessoais como artísticas. As tistas está sujeita a vários riscos, devido à sua

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Bruno Buscariolli, Adele de Toledo Carneiro, Eliane Santos

exposição ao ambiente. Uma inferência possí- Art. 2º: Compreendem-se como ativida-
vel é que os artistas do gênero masculino são des culturais de artistas de rua, dentre
menos suscetíveis a violência física ou abusos, outras, o teatro, a dança individual ou
em grupo, a capoeira, a mímica, as ar-
e essa é uma possível razão para a grande desi-
tes plásticas, o malabarismo ou outra
gualdade de gênero observada. Nos relatos, as atividade circense, a música, o folclore,
mulheres observadas demonstraram um com- a literatura e a poesia declamada ou em
portamento mais tímido do que os homens. exposição física das obras.
A única exceção foi a cantora Rocio, que se
apresenta na avenida Paulista, e foi observada Embora os pesquisadores tenham rea-
em duas ocasiões diferentes, porém em compa- lizado esforços para explorar todas as formas
nhia de um saxofonista. A artista mostrou-se de arte disponíveis nas ruas, a maioria absolu-
bastante experiente e comunicativa, procuran- ta de observações foi de apresentações musi-
do constantemente o contato com público, ao cais. Foram observados tanto artistas atuando
contrário das demais mulheres observadas, que sozinhos quanto em conjunto. Essa forma de
se apresentavam de maneira coadjuvante no arte não é realizada apenas por cantores, mas
acompanhamento de artistas homens. também por instrumentistas como relatado na
Em relação ao vestuário, o caso que mais dupla de percussionistas na avenida Paulista.
chamou a atenção dos pesquisadores foi o de Uma possível explicação para o grande número
um menino malabarista em faróis da cidade de artistas de rua dedicados à música é a me-
de Belo Horizonte. Diferentemente de outros lhor aceitação pelo público dessa forma de arte
profissionais que trocavam de roupa e vestiam como atração gratuita.
algum tipo de fantasia ou roupa estilizada, o Uma das grandes questões levantadas
malabarista mirim transformou-se, para a sua pela pesquisa é a importância do nível de
performance, em um “morador de rua”, pos- profissionalização dos artistas. Essa questão
sivelmente um meio de aumentar a arrecada- foi suscitada pelo contraste entre a qualida-
ção dos motoristas que passavam pela rua. de das apresentações dos artistas. Em várias
Ao acompanhá-lo até o fim da apresentação, observações, os artistas demonstravam bas-
foi possível notar que as roupas puídas eram tante experiência e habilidade nas tarefas que
a “fantasia”, pois, ao finalizar as atividades, desempenhavam. Muitos são relativamente
ele dirigiu-se a uma rua próxima para vestir famosos em redes sociais e reconhecidos pelo
roupas casuais e em bom estado que trazia em público, como por exemplo o cantor e guitar-
uma mochila. rista William Lee. No entanto, em alguns ca-
sos curiosos, os protagonistas desempenha-
Arte vam performances teatrais que atraíam uma
grande quantidade de pessoas e demoravam
O artigo segundo da lei municipal n. 15.776, bastante até atingirem o ápice da exibição, ou
que legaliza o trabalho dos artistas nas ruas de seja, o momento em que o artista realmente
São Paulo, define esse fenômeno de forma rela- realiza alguma tarefa que mereça a atenção
tivamente abrangente: do público.

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Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?

A atuação de um artista que realiza sal- que segura o círculo de facas aumenta os
tos acrobáticos na Praça da Sé, em São Paulo, gritos de desafio, e o homem finalmente
pula pelo círculo de facas, aterrissando
é um bom exemplo desse tipo de apresentação.
com uma cambalhota do outro lado. A
O protagonista atuava inicialmente sozinho,
conclusão da performance traz euforia
porém, ao longo de sua apresentação, uma mu- a muitos que o observam, muitos gritos
lher passou a ajudá-lo, e tinha uma aparência e aplausos se seguem à apresentação. O
pitoresca. Ele se apresentava com roupas apa- homem abre os braços e agradece ao pú-
blico. Alguns se aproximam para abraçá-
rentemente sujas, sem camisa nem sapatos e
-lo e tocá-lo. Ele tira algumas facas do
com o cabelo despenteado. Faltavam-lhe diver-
círculo de facas e introduz novamente
sos dentes. À sua frente, havia um arco de me- no nariz. Nesse momento, a mulher que
tal apoiado na vertical sobre um pedestal com o acompanha pega uma sacolinha de
facas de cozinha apontadas para o centro. Ele pano e passa no meio dos observadores
pedindo dinheiro, e a grande maioria das
chamava as pessoas ao seu redor anunciando o
pessoas deposita alguma coisa para o ho-
tempo todo que, a qualquer momento, ele iria
mem, moedas e notas de pequeno valor.
pular e atravessar o obstáculo. Entretanto, o ar-
tista demorava muito mais tempo para entreter Outro exemplo desse estilo de apresenta-
o público e atiçá-lo pela curiosidade sobre qual ção é o do grupo de mágicos no centro de São
seria o final da sua apresentação. Conforme o Paulo. Nesse caso, três homens se revezavam
diário de campo, pode-se perceber a demora para atrair o máximo possível de pessoas ao
em concluir uma apresentação aparentemente redor do palco improvisado, executando tru-
simples, mas o quanto isto atrai e causa euforia ques de ilusionismo. Somente um deles parecia
no público espectador: realmente ser experiente com as performances,
cuja apresentação era o clímax do grupo e res-
Os gritos dos observadores começam a ponsável pela grande concentração do público.
aumentar, mais pessoas gritam para in- A apresentação do grupo era cíclica; o artista
centivar o artista, alguns gritam para de-
habilidoso se revezava com os outros dois me-
safiá-lo, outros gritam para que ele com-
plete logo o espetáculo por já estarem nos experientes para atrair a massa durante
cansados de esperar. O homem pede mais a “troca” de plateia, já que, passado algum
espaço, pede para os observadores darem tempo, o grupo repetiria os mesmos truques
um passo atrás. Ele pega novamente uma de mágica. Assim como o artista que pulava as
faca e introduz no nariz, fazendo caretas
facas, os mágicos demoravam bastante tempo
e movimentos amplos e espalhafatosos.
Tira a faca do nariz e se posiciona como nas suas performances, aproveitando ao máxi-
se fosse saltar. O homem já está a 10 mi- mo a curiosidade do público para o desfecho
nutos posicionado como se fosse saltar, e da apresentação.
o público demonstra impaciência. Alguns Assim, ainda que esses artistas “sensa-
vão embora, e outros que estão passando
cionalistas” apresentem uma profissionaliza-
se aproximam. Nesse momento, atinge-
-se o número máximo de espectadores
ção adaptada, principalmente se comparada
desde o início do relato, aproximadamen- aos artistas mais experientes, eles conseguiam
te 25 pessoas cercam o artista. A mulher atrair uma enorme quantidade de espectadores.

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Muitas vezes, os artistas mais populares conse- Ao voltar às atividades, o imitador de El-
guiam públicos significativamente maiores que vis deixou de lado as músicas clássicas do
Rei do Rock e passou a tocar algumas mú-
os músicos de alto nível de profissionalização
sicas populares, que tocam com frequên-
e grande qualidade de execução técnica. Des-
cia nas rádios e que têm grande apelo
sa maneira, pode-se inferir que, no fenômeno popular. As músicas sertanejas passaram
dos artistas de rua, o nível de profissionaliza- a dominar o repertório do artista. Junta-
ção não interfere necessariamente no aumento mente com as letras, o artista incorporava
as danças típicas. Aparentemente, com
da audiência e, consequentemente, na maior
essas músicas populares as pessoas fica-
arrecadação financeira. Essas evidências tam-
ram mais interessadas na apresentação
bém trazem dúvidas sobre a definição do que ou mesmo dedicavam maior atenção ao
é ser um artista profissional. Se, por definição, a artista. Percebe-se que algumas pessoas
profissionalização implica a habilidade, na ex- até dançavam as músicas cantadas por
ele, alguns de maneira mais tímida e ou-
periência e na arte como meio de subsistência
tros de maneira mais ousada, geralmente
do indivíduo, esses artistas podem ser conside-
garotas jovens em grupo.
rados profissionais, embora a sua arte não seja
compreendida dessa forma pelo público. Essas Apesar de a maioria dos artistas observa-
performances não somente são consideradas dos utilizar essa estratégia de chamar a aten-
amadoras, como os artistas são popularmente ção, foram relatados alguns que não realiza-
definidos como “loucos”, conforme os comen- vam nenhum esforço para se comunicar com o
tários de algumas pessoas do público anotados público. Eles tinham orientação exclusiva para
nos diários de campo. a própria performance e execução e, mesmo
A última consideração sobre a catego- assim, muitos conseguiam arrecadar tanto di-
ria “Arte” envolve a tendência de os artistas nheiro quanto os artistas de comportamento
de rua dirigir sua atenção para o público, in- proativo. Em resumo, esse fenômeno evidencia
teragindo constantemente com as pessoas no uma das observações mais relevantes deste
intuito de ter maior audiência. Em uma leitura trabalho: a comunicação verbal direta com o
preliminar, pareceu óbvio encontrar a causali- público utilizada por vários artistas tem uma
dade para esses aspectos: interagir com o má- contrapartida negativa. O ato de pedir uma
ximo de carisma para arrecadar o máximo pos- contribuição em dinheiro reforça uma percep-
sível de dinheiro. Um exemplo dessa atuação ção comum nos relatos de que esses trabalha-
foi o imitador de Elvis Presley que se apresenta dores são pedintes e não artistas de fato.
na avenida Paulista. Em um certo momento da
apresentação, ele modifica o repertório exclu- Ambiente
sivo de músicas do Rei do Rock para cantar
músicas mais populares, como a música Cama- Todos os ambientes das apresentações obser-
ro Amarelo da dupla Munhoz e Mariano, para vadas eram locais bastante movimentados, so-
chamar a atenção das pessoas que passavam bretudo as regiões centrais das cidades. Muitas
no local. Conforme descrito no relatório: das vias, como por exemplo a avenida Paulista,

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Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?

eram bastante barulhentas, atrapalhando prin- no entanto, a disponibilidade do público para


cipalmente os artistas musicais. Muitas vezes, apreciar algum artista era muito mais natural.
com a passagem de carros e ônibus pela via, É possível supor que nesse horário a maior
era impossível ouvir o som produzido pelos ar- parte do público já havia cumprido seus com-
tistas, mesmo aqueles que utilizavam amplifi- promissos de trabalho e, portanto, estaria mais
cadores de som como infraestrutura principal. relaxada e propensa a apreciar a performance
Os ruídos atrapalhavam ainda mais os artistas dos artistas. Sendo assim, o horário de atuação
que utilizavam o playback de melodia, normal- dos artistas de rua influencia, de alguma ine-
mente a parte instrumental de uma música co- quívoca, a atenção da audiência.
nhecida tocada em uma caixa de som para o Também foram identificadas algumas
artista cantar ao vivo por cima. estratégias dos artistas de rua para atrair mais
Muitos dos artistas improvisavam palcos público. Um caso de destaque foi o dos mági-
para suas apresentações, utilizando geralmente cos do Centro de São Paulo. Por se tratar de
um pano grande no chão ou um tapete demar- truques de “ilusionismo”, essa arte dependia
cando o espaço da performance. Naturalmente, da proximidade do público ao redor dos artis-
alguns tipos de arte demandavam uma prepa- tas. Assim, cada vez que os artistas precisavam
ração de ambiente maior do que outras. Por aproximar a plateia para si, eles demarcavam
exemplo, a localização de uma bateria e de am- com um jato de água disparado por uma gar-
plificadores de uma banda de quatro integran- rafa plástica o local onde as pessoas deveriam
tes demandava um preparo muito maior do se localizar. Essa prática era acompanhada de
que o espaço demarcado para a atuação de um gritos de incentivo dos artistas, pedindo a apro-
artista que se apresenta como estátua viva ou ximação de todos para melhor observar os tru-
para a exposição de quadros de um pintor. Ain- ques, conforme descrito no relatório de campo:
da assim foi possível notar uma preocupação
Os mágicos utilizam jatos de uma gar-
grande de vários artistas em detalhar o am-
rafa com água para demarcar o espa-
biente escolhido para a apresentação. Quadros, ço que as pessoas devem ocupar para
placas, altares, dentre outros objetos, compu- formar o círculo de espectadores. É um
nham os espaços observados, embora a maio- meio que eles usam para aproximar ou
ria não dedique muitos esforços cenográficos. distanciar o público, de acordo com a
quantidade de pessoas que está obser-
Os pesquisadores relataram que o horá-
vando em cada momento.
rio das apresentações interferia de algum mo-
do na atenção do público para com o artista. Esse exemplo mostra a importância da
Durante o dia, muitas pessoas que passavam escolha do ambiente para uma boa execução
pelos locais escolhidos pelos artistas estavam do artista. Ainda assim, a questão mais im-
em horário de trabalho ou de almoço. Presume- portante evidenciada pelas observações sobre
-se que, por estarem ocupadas ou preocupadas a categoria de análise “Ambiente” envolve a
com outras questões, não prestavam muita diferença das performances em regiões mais
atenção nos artistas de rua, demonstrando populares e em regiões mais nobres das cida-
indiferença à presença deles. Durante a noite, des observadas. Um exemplo clássico dessa

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constatação foram as comparações entre as jovem se mostra mais receptivo às performan-


apresentações da avenida Paulista e do Centro ces dos artistas, as pessoas idosas rejeitam as
histórico de São Paulo e os respectivos perfis atividades dos profissionais, por vezes de ma-
do público nesses locais, independentemente neira ostensiva.
do tipo de arte apresentada. Nas regiões mais Sobre a atitude dos mais jovens, quase
populares, percebe-se um envolvimento maior todos os relatos abordam a grande admiração
do público com o artista. O público aparenta e o entusiasmo das crianças com os artistas,
ser de classe de menor poder aquisitivo e tem o que pode ser entendido como uma demons-
maior propensão a contribuir financeiramente tração da curiosidade típica da idade. Como
com os artistas. É possível supor que existe, foram frequentes o relato da interação das
nesse contexto, uma relação de identidade des- crianças com os artistas e a atitude dos pais
sas pessoas com os artistas. Na observação do que encorajavam o divertimento das crianças,
cantor William Lee, a cada vez que o intérprete os pesquisadores concluíram que se tratava de
discursava sobre a história de sua vida e as di- um fato importante. Esse fenômeno ocorreu
ficuldades que enfrentou, o público, já atraído nos diferentes tipos de arte, inclusive nas es-
pela sua habilidade artística, mostrava-se mais tátuas vivas, apesar de boa parte das crianças
interessado e sensibilizado com o artista. se assustar ao primeiro contato com esses in-
Essa dedicação, no entanto, não era per- térpretes. Nas apresentações musicais, notou-
cebida em regiões mais nobres ou empresariais, -se com maior intensidade essa relação, com
como a da avenida Paulista. Embora também crianças frequentemente dançando bem na
houvesse músicos que discursassem para os es- frente dos artistas.
pectadores entre uma música e outra, poucas O público jovem não se resumiu apenas a
pessoas pareciam prestar atenção no que eles crianças, já que foram notados muitos adoles-
diziam. Além disso, nas regiões mais ricas, era centes e jovens adultos, na faixa dos vinte anos
muito maior o contraste entre a aparência do de idade, nas observações. Muitos deles pas-
público e a do artista. Esta é, provavelmente, savam pelos locais devido à proximidade com
uma das causas do nível maior de profissiona- shoppings e outros estabelecimentos de entre-
lização dos artistas da avenida Paulista, como tenimentos próximos dos locais de observação.
a preparação de vestuário e de acessórios. Isso Apesar de muitos dos jovens não contribuírem
traz indícios de que os artistas têm maior cui- financeiramente, a maioria absoluta desse pú-
dado com os detalhes cênicos nos locais mais blico tinha apreço e parecia reconhecer o tra-
ricos da cidade. balho dos artistas.
Em oposição, os mais idosos pareceram
Público ter uma aversão às apresentações dos artistas
de rua, já que muitos não foram apenas indi-
O aspecto mais intrigante das observações ferentes às performances, mas demonstraram
com referência à categoria “Público” é a dife- estar incomodados com elas. Isto era muito
rença de comportamento nas diversas faixas comum, por exemplo, em apresentações próxi-
etárias. Ao mesmo tempo que o público mais mas a pontos de ônibus ou cafés, localizações

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onde as pessoas tinham dificuldade de se afas- Além do público mais jovem, as opiniões
tar do som dos artistas e eram obrigadas a ou- e os gestos mais amistosos foram observados
vir a apresentação contra a própria vontade. nos horários noturnos, conforme já menciona-
Para identificar a opinião do público com do no tema ambiente. Na apresentação de uma
relação aos artistas, era muito mais fácil para dupla musical na avenida Paulista por volta
os pesquisadores avaliar as pessoas e os tran- das 19h, os artistas pareciam apresentar-se em
seuntes que estavam acompanhados, pois eles um show aberto, algo semelhante a um happy
expressavam, aos seus pares, suas opiniões a hour, já que grande parte dos espectadores es-
respeito da arte, verbal e gestualmente. Esses tava conversando em rodas de amigos e como
casos foram fundamentais para a identifi- se estivesse em um bar. Eram também nessas
cação de interações muito amistosas e muito ocasiões que os artistas mais aproveitavam
negativas do público em relação aos artistas. para divulgar o seu trabalho, geralmente ven-
As reações das pessoas mais idosas, em sua dendo produtos da sua arte. Esta é uma prática
maioria de reprovação, foram percebidas dessa recentemente regularizada pela lei dos artistas
maneira, ao afirmarem umas para as outras de rua, conforme o artigo terceiro:
sobre a hipótese de que os artistas tinham
demasiado tempo ocioso ou mesmo que eles Art. 3º Durante a atividade ou evento,
fica permitida a comercialização de bens
deveriam procurar algum outro tipo de traba-
culturais duráveis como CDs, DVDs, li-
lho ou ocupação mais útil. Conforme descrito vros, quadros e peças artesanais, desde
no Relatório 18: que sejam de autoria do artista ou do
grupo de artistas de rua em apresenta-
No meio da observação, entrei na droga- ção e que sejam observadas as normas
ria bem na frente da apresentação dos que regem a matéria. 4
artistas para comprar um medicamento.
A atendente me disse boa tarde e me A venda desses produtos era, na maioria
perguntou o que eu desejava. Mostrei a
dos casos, a maior fonte de renda nas apresen-
receita, e ela pediu licença para ir buscar
o medicamento. Enquanto ela anotava tações dos artistas de rua, não somente com
os códigos dos remédios que eu ia com- produtos físicos como CD´s e pinturas, mas
prar, ela comentou com a farmacêutica também na divulgação de cartões para even-
do lugar: tos. Constatou-se que, embora muitos artistas
– Aí, trabalhar com esse barulho tá di-
pedissem contribuições financeiras ao públi-
fícil hein... Esses caras não têm o que
fazer não? co durante a sua performance com uma caixa
A farmacêutica parecendo concordar com ou um chapéu destinado para a arrecadação,
a atendente, somente comenta: grande parte da renda deles era originada da
– “Batucada, né?” venda de produtos. O fenômeno dos artistas na
Na fila para o pagamento, percebo que as
rua mostrou-se como uma “amostra grátis” ou
pessoas que esperam junto a mim tam-
bém ficam observando os artistas, mas propaganda de seus trabalhos, que poderiam
não mostram nenhuma reação. ser contratados futuramente.

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Um último ponto observado pelos pes- questões envolvendo a “Arte” e /ou o “Ambien-
quisadores no que se refere à categoria “Pú- te” também estão presentes.
blico” tem relação com aparente classe econô- Ao final das observações e das análises,
mica e social. É importante relatar a existência constatou-se que a maioria do público tem uma
de uma relação de identidade entre o público reação indiferente quanto às performances dos
que aparenta ter menor renda e o artista que artistas de rua. É possível supor que isso se de-
expõe as histórias pessoais de vida e de difi- va, em parte, ao fato de os artistas de rua se
culdades. É bastante relevante o fato de que apresentarem regularmente nos mesmos locais,
é o público com perfil mais simples que mais ambientes em que o público também frequenta
contribui financeiramente com o fenômeno diariamente. A partir dessa constatação, as ob-
“artistas de rua”, isto é, dá contribuições pe- servações dos pesquisadores concentraram-se
las performances ao vivo desses profissionais. nas pessoas que tinham alguma reação obser-
Foi observada, inclusive, a participação ativa vável, fosse ela positiva ou negativa, sobre as
de moradores de rua, que pareciam desfrutar apresentações dos artistas.
das apresentações, por se tratar de uns dos A interação entre artista e público ocor-
poucos entretenimentos disponíveis gratuita- ria de diversas maneiras, algumas mais explí-
mente na cidade. Os artistas de rua, por sua citas, como no caso da dupla de cantores da
vez, pareciam bastante familiares com esse avenida Paulista, que saía de seus locais de
tipo de público, até mesmo mantendo conver- performance e ia falar pessoalmente com pes-
sas com eles. soas que a assistiam, ou na movimentação e no
Em contrapartida, além dos mais idosos, oferecimento de flores de uma estátua viva ao
o público que teve mais atitudes de reprovação receber alguma contribuição em dinheiro. En-
foi o as pessoas que aparentava ter maiores tretanto, ao final das análises, foram relatadas
níveis de renda, considerando, dentre outros, várias ocasiões em que o comportamento ativo
seu vestuário. Além de não contribuírem fi- por parte do artista não resultou em maior ar-
nanceiramente, muitos mostravam desaprovar, recadação de dinheiro. Foi possível observar ar-
verbal ou gestualmente, a atitude de se apre- tistas bastante introvertidos, inclusive músicos,
sentar nas ruas, gratuitamente e em horário que recebiam muitas contribuições financeiras
comercial. Dessa maneira, além de possuir uma do público devido à admiração pela performan-
relação direta com o local de performance do ce. As reações tímidas dos artistas eram nítidas
artista, a renda do público também possui uma até nos agradecimentos pelas “gorjetas” re-
relação com o tipo de arte apresentada pelos cebidas. Em alguns momentos, a falta de uma
artistas na rua. expressão mais clara era compreendida como
ingratidão por parte do público que contribuía.
Interação A passagem a seguir exemplifica essas reações:

O artista retribuía algumas vezes com um


A categoria “Interação” abrange, de certa sonoro “Obrigado!”, ou com um gesto
forma, todos as categorias anteriores, pois positivo com a cabeça. Entretanto, para

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Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?

alguns espectadores, o artista não esbo- divulgação de fotos e vídeos realizados durante
çava nenhum gesto ou palavra de agra- as apresentações. Dessa maneira, a interação
decimento. Muitas vezes, as gorjetas eram
virtual demonstrou ser uma estratégia bastante
depositadas com bastante frequência e
utilizada para a divulgação dos trabalhos dos
rapidez, e o artista nem tinha tempo de
olhar para todos que contribuíam. Isso artistas de rua.
não aparentava ser desconsideração, mas Em relação à percepção do público sobre
uma característica da performance, pois as dificuldades enfrentadas pelos artistas de
em alguns momentos tocava de olhos
rua, as pessoas aparentemente mais humildes
fechados ou concentrado na execução da
música. Ainda assim, era possível perce- eram as que mais contribuíam financeiramente
ber um leve sinal de desaprovação ou de pela performance a que assistiam. Entretanto,
desapontamento daqueles que não rece- foi possível identificar outros perfis de público
beram um agradecimento claro por parte que demonstraram maior propensão a dar gor-
do músico.
jetas para os artistas. Primeiramente, os turis-
Ainda sobre a contribuição financei- tas, sobretudo em grande concentração na ave-
ra, foi possível perceber um certo ritual das nida Paulista, surpreendiam-se facilmente com
pessoas ao assistirem à apresentação de um os artistas de rua, talvez pela novidade ou pelo
artista de rua. A maioria dos contribuintes pa- caráter exótico de alguns deles. A maioria pa-
rava de caminhar ao notar a performance do rava para prestar atenção nas apresentações e
artista, prestava atenção na arte e somente contribuía com dinheiro. Outro perfil muito co-
deixava a gorjeta na hora de ir embora. Foram mum de interação amistosa e com dinheiro foi
raríssimas as pessoas que deram dinheiro logo de outras pessoas que aparentavam também
no início de sua observação ou que deixaram praticarem alguma forma de arte. Essa suposi-
o dinheiro no local destinado sem parar para ção foi baseada nas roupas, nas longas conver-
assistir à apresentação. sas que tinham com os artistas ou no fato de
Outro ponto importante na interação carregarem consigo um instrumento musical.
entre artista e público foi o uso de celula- Foi o que aconteceu com a dupla de percussio-
res smartphones por parte dos espectadores nistas que tocava na avenida Paulista e foi in-
para gravar, por meio de fotos ou vídeos, as terrompida por um saxofonista que, ao passar
performances dos artistas. Os artistas reagiram diante da apresentação, abriu a mochila e co-
de maneira bastante natural a esse comporta- meçou a tocar músicas juntos. Por fim, o último
mento. Muitos dos artistas faziam poses para perfil de pessoas que mais contribuíam era o
o público nessas circunstâncias. Alguns deles das que aparentavam estar fora do horário de
chegaram a manifestar diretamente a recepti- trabalho ou em horário de intervalo. Os fuman-
vidade a esse tipo de interação, informando as tes eram um público relativamente frequente,
hashtags para encontrá-los nas redes sociais: pois são obrigados a sair dos prédios em que
Twitter, Facebook e Instagram, para estimular a trabalham e ficar na calçada para fumar.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 879-898, set/dez 2016 895
Bruno Buscariolli, Adele de Toledo Carneiro, Eliane Santos

desenvolver novas estratégias para atrair mais


Conclusões
audiência e ganhar mais dinheiro.
e considerações finais O ambiente de apresentação dos artistas
de rua sugere um choque de classes econômi-
Conforme a análise dos códigos extraídos das cas e sociais, na medida em que pessoas que
observações, percebe-se, em geral, a presença aparentam ser de classes de menor poder aqui-
das seguintes relações dos artistas de rua: sitivo são mais atenciosas com as performances
• Ambiente versus Tipo de profissionalização e, inclusive, dão mais dinheiro para os artistas.
do artista Essa questão socioeconômica parece ser muito
• Ambiente (horário) versus Interação (como influente na vida dos artistas de rua, pois rela-
arrecadação de dinheiro) ciona-se também com o público de maior po-
• Reação do público versus Pessoas em gru- der aquisitivo. Aqueles que são aparentemente
pos e Faixa etária mais “ricos”, vestidos com trajes sociais ou
• Infraestrutura versus Profissionalização com roupas de marcas conhecidas, raramente
• Dificuldades de execução versus Profissio- oferecem atenção aos artistas. Algumas hipó-
nalização teses para explicar esse comportamento são a
• Tipos de arte versus Perfil da audiência pressa em locomover-se nas ruas da cidade, o
• Perfil de renda do público versus Forma co- medo de ficar parado na calçada e ser furtado,
mo os artistas arrecadam dinheiro (ou perfil da a dificuldade em apreciar a performance por
audiência) causa do ruído ou mesmo a não percepção da
O fato de a maioria das observações ter apresentação dos artistas como um trabalho e
sido feita com músicos demonstra o quanto o sim como um pedido de esmola.
termo “artistas de rua” ainda é considerado si- A questão de classe também atinge os
nônimo de “músico que busca a fama” ou de próprios artistas, pois existe uma certa eliti-
indivíduos que se apresentam nas ruas para zação daqueles que já possuem alguma fama
complementar a renda. Como muitos artistas ou têm o trabalho divulgado em redes sociais
ainda utilizam a interação ativa como estraté- e na mídia televisiva. Os artistas mais famo-
gia para arrecadar dinheiro, muitos são vistos sos apresentam um comportamento diferente
pela maioria da população como pedintes ou, daqueles que são completamente desconheci-
no mínimo, como artistas pouco profissionais. dos. Alguns exibem, durante a apresentação
Mesmo aqueles que adquiriram algum tipo nas ruas, reportagens, recortes de jornal e
de notoriedade, sobretudo nas redes sociais, entrevistas impressas das quais participaram.
não são vistos pelo público como verdadeiros Além disso, o fato de terem alguma visibilida-
profissionais, mas, no máximo, como pessoas de prévia parece influenciar a escolha do local
construindo uma carreira artística. Pode-se de sua performance.
dizer, portanto, que os artistas de rua, inten- Percebem-se, assim, duas grandes carac-
cionalmente ou não, possuem pouca visão de terísticas que interferem diretamente na apre-
negócios, já que não aproveitam o potencial de sentação do artista e no perfil da audiência:
visibilidade que possuem com o público para o local de atuação (se é movimentado ou não

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Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes?

e principalmente se é popular ou não) e uma pois abrange constantemente diversos perfis


adaptação da arte para o gosto popular (como de pessoas, em situações cotidianas variadas
o exemplo citado do “Elvis da Paulista” can- e pode ocorrer em diferentes horários e locais
tando músicas sertanejas). Alguns artistas utili- da cidade. Para o artista, essa diversidade é
zam estratégias para chamarem mais atenção, importante para enriquecer o trabalho, quase
como o suspense, a construção de uma grande intrinsicamente permeado por dificuldades.
expectativa para o ápice da apresentação ou Conclui-se que a grande preocupação desses
mesmo a conversa direta com o público. De artistas não é somente trabalhar para obter
modo geral, essas ações ativas parecem ter co- uma renda de subsistência, mas utilizar as ruas
mo objetivo mais prender a atenção do público como experiência para apresentações e, con-
do que obter uma contribuição financeira. sequentemente, para oferecer algum tipo de
O trabalho dos artistas de rua se apre- entretenimento para o público, ainda que este
senta como uma manifestação democrática, não o reconheça ou não aprecie o seu trabalho.

Bruno Buscariolli
Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Departamento de
Administração de Empresas. São Paulo, SP/Brasil.
bruno.buscariolli@gmail.com

Adele de Toledo Carneiro


Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Departamento de
Administração de Empresas. São Paulo, SP/Brasil.
carneiro.at@gmail.com

Eliane Santos
Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Departamento de
Administração de Empresas. São Paulo, SP/Brasil.
efseliane@yahoo.com.br

Notas
(1) Disponível em: http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/
cadlem/integra.asp?alt=30052013L+157760000. Acesso em: 31 de jul 2015.

(2) Brasil de Fato, 11 de março de 2014.

(3) Disponível em: www.ar stasnarua.gov.br. Acesso em: 31 jul2015.

(4) Disponível em: http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/


cadlem/integra.asp?alt=30052013L+157760000. Acesso em: 31 jul 2015.

Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 879-898, set/dez 2016 897
Bruno Buscariolli, Adele de Toledo Carneiro, Eliane Santos

Referências
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BRASIL DE FATO (11/3/2014). Disponível em: h ps://an go.brasildefato.com.br/node/28117/. Acesso


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______ (2006). Ethnography then and now. Qualita ve Research in Organiza ons and Management,
v. 1, n. 1, pp. 13-21.

Texto recebido em 14/jan/2016


Texto aprovado em 31/mar/2016

898 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 879-898, set/dez2016
Caosgrafias cidade*
Chaosgraphies city

Frederico de Araujo

Resumo Abstract
Caosgrafias nomeia um modo de construção cole- Chaosgraphies refers to a means of collective
tiva de discursos que navega entre ciência, arte e construction of discourses that navigates among
filosofia. Aciona a prática cartográfica enquanto science, art and philosophy. It uses cartographic
trama de afectos, associada à noção de caos co- practice as affective plotting, associated with the
mo possibilidade do devir. Pode ser dita, então, notion of chaos as a possibility of “becoming”.
como modo “caótico” de composição de grafias It can be understood as a “chaotic” means of
enquanto potência a criação de discursos; como graphical composition towards the creation of
uma aventura corpóreo-palavreira, que busca ins- discourses, or as a corporeal/word-based adventure
taurar tensionamentos no processo de instituição e that seeks to establish tensions in the process of
narrativa do objeto experienciado. As caosgrafias instituting and narrating experiences of objects.
são, assim, inventadas como “acontecimentos des- Chaosgraphies, therefore, are “deconstructed
construção”, não no sentido de “terra arrasada”, happenings:” rather than being “scorched earth”
mas sinalizando o intuito de que o experienciar practices, they signal an intention in which
problematize o dizer logocêntrico, em termos tanto experience problematizes logocentric speech by
de derrubamento de absolutos, quanto de trans- overturning absolutes and also through poietic
gressão poiética. Este trabalho – Caosgrafias cida- transgression. Chaosgraphies city exercises this
de – exercita esse modo caosgráfico de construção chaosgraphical means of constructing discourses
de discursos com o tema “cidade”. whose theme is “the city.”
Palavras-chave: experiência; narrativa; cidade; Keywords: experience; narrative; city; discourse;
discurso; escritura. written word.

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h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3714
Frederico de Araujo

A cidade com seus olhos enormes, onde tudo pode acontecer, aberta ao aleatório,
carrega, no vão aberto entre a noite e o dia, a fuga imaginada para as estrelas.
Ninguém conhece seu começo ou fim, nem as placas que anunciam a chegada nem
o rio que corta sua silhueta. Dizem que o caminho para Pasárgada passa por entre
seus becos e vielas e arcos e chuvas finas e tascas e avenidas.1

essas experienciações (não são todos entre nós


e introdução e aproximações
que se convenceram disso). Será, no entanto, a
e (des)norteamentos e própria escritura deste texto, o próprio ato de
fazer do texto não uma re-apresentação, mas
Como pôr em palavras/escrever sobre algo que uma tradução como reinvenção, capaz de fazer
foi pensado enquanto estratégia, dispositivo de saltar esse(s) motivo(s)? Será a leitura das pa-
experimentação corpóreo-discursivo-performá- lavras que por fim ficam grafadas na superfície
tico ou prática de um dizer? Algo que não quer do papel ou da tela o movimento que pode nos
ser visto como uma coisa objetiva no mundo reenviar à pertinência de fazer da caosgrafia
para ser explicada nem como uma possibilida- texto? Movimento que encontrará alguma ra-
de metodológica de separação subjetiva desse zão para essa tentativa? Não esperamos con-
mundo, capaz de explicar ou cartografar algo cordância nem pretendemos convencer, muito
aí? Como dizê-lo, portanto? Melhor não seria, menos responder. Nisso concordamos. E, ao
então, simplesmente contar sem receio de pro- menos – assim também estamos de acordo –,
sear por demais (ou até gaguejar) sobre o que esperamos que a textura que aqui ganha caos-
ali se viu, se produziu, aconteceu? grafia nos acosse, inquiete questões, desassos-
Pois é o que viemos fazendo com as segos –, isto já nos dará motivos. Ainda que de
caosgrafias: dar notícias de algo que resta do pequenas alegrias. Segue, pois, a tentativa.
que temos experimentado, de modo coletivo, O que denominamos caosgrafias resul-
a partir de um exercício de desconstrução de ta da posição ético-estética por navegar no
dizeres existentes que se querem absolutos, limiar entre ciência, arte e filosofia, articulan-
necessários. O que é sempre um exercício de do teorias e práticas com a experiência estéti-
afirmação de dizeres outros e de dizeres múlti- ca envolvida nos atos de dizer (e criar) cidade
plos – expondo-os, dispondo-os. Incitando-os através de múltiplas linguagens em meio a
a um jogo, a uma arena. atividades que proferem temas e problemas
Talvez não possamos dizer com toda pre- da cidade contemporânea. Associamos essa
cisão ou certeza do por que, hoje, do desejo prática à noção de caos,2 acionado não como
de tomar a escrita como forma de dar lugar a sinônimo de desordem, mas como o meio de

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Caosgrafias cidade

todas as possibilidades do devir, habitado por Cartografar aí consiste em decodificar, desar-


fluxos de intensidades e afectos. Concebemos, ranjar e embaralhar as variações de códigos
assim, “caosgrafias cidade” como modo “caó- enraizadas em nossos territórios existenciais
tico” de constituição de grafias como potência para poder experimentar e dar corpo e língua a
máxima às possibilidades de criação de narra- intensidades, fluidificações, poiésis3 e reprodu-
tivas cidade. ções inerentes às polifonias geradoras de terri-
Optamos, neste ensaio, pela forma de tórios singulares.
fragmentos caosgráficos (aforismos), a fim Esse modo de cartografar tem também
de evidenciar posição que visa a romper com inspiração no princípio antropofágico da deglu-
linearidades, causalidades e hierarquia tão re- tição do outro, sobretudo o admirado, de for-
correntes nos discursos que queremos descons- ma que partículas do universo desse outro se
truir, mas também porque assumir uma estética misturem às que já povoam a subjetividade do
do fragmento e uma ética do paradoxo, parece- antropófago produzindo transmutação. Nesse
-nos a melhor condição a um processo de fei- sentido, é importante destacar que, para se rea-
tura realizado por muitas pessoas que não pre- lizar uma cartografia com pitadas de antropo-
cisam e/ou não desejam concordar ou chegar fagia, os procedimentos são sempre inventados
a uma síntese totalizadora, ou conclusão, ou de acordo com o contexto em que o cartógrafo
verdade. Dessa forma, autorizamo-nos a dizer se inventa, pois não se segue nenhuma espé-
das caosgrafias como prática política coletiva cie de protocolo normalizado. Busca-se abrir
que, quando produz reverberações potentes, as condições para que o desejo possa ganhar
pode contribuir enquanto provocação, tensio- expressão e atuar como entidade no jogo, pois
namento e/ou desestabilização no debate do entendido ali como vetor ativo no processo de
fazer, instituir e pensar cidade. produção de subjetividades. Concepção de de-
Com caosgrafias nos aproximamos do sejo que não se liga à representação, à lei, à
aporte teórico desenvolvido por Suely Rolnik, carência, à reatividade; ele é processo de pro-
que propõe uma cartografia cuja realização de- dução, remete à vontade de criar, ao devir, pois
manda a ativação de um corpo vibrátil, são as necessidades que derivam do desejo e
não o contrário (Deleuze e Guattari, 2004).
capaz de apreender a alteridade em sua Dizemos, então, que o dizer-cidade é
condição de campo de forças vivas que
conjunto heterogêneo e trama tensa e polê-
nos afetam e se fazem presentes em
nosso corpo [...]. O exercício dessa capa- mica, campo (político) de disputas discursivas
cidade está desvinculado da história do pelo que “é” cidade em determinado mo-
sujeito e da linguagem. Com ela, o outro mento, o que, por si, evidencia a relevância
é uma presença que se integra à nossa do refletir criticamente sobre as bases, as es-
textura sensível, tornando-se assim par-
tratégias e os modos de agenciamento desse
te de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as
figuras de sujeito e objeto, e com elas campo, interpelando-o de um lugar outro, que
aquilo que separa o corpo do mundo. não é mais do que o mesmo lugar rasurado 4
(Rolnik, 2006, p. 12) por um agenciar opaco. 5 Dizê-lo campo de

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Frederico de Araujo

disputas é, para nós, relevante, pois permite nem como crítica (em sentido geral, ou mesmo
fazer emergir concepções de cidade que irão nos termos kantiano ou marxiano), nem, ain-
substanciar desde grandes ações estatais (pla- da, como meios para alguma coisa (uma fala,
nos, políticas, normatizações, ações policiais, um gesto, um escrito, uma fotografia), mas
etc.) até as mais aparentemente desimportan- como o que denominamos “acontecimentos
tes práticas cotidianas. desconstrução”. 8 O atributo “desconstrução”
Instituindo esse campo da maneira deli- sinaliza, ao modo de Derrida (1975), o intuito
neada e desviando de qualquer intuito de juízo de que o experienciar/acontecer se realize pro-
sobre o que seria, aí, a formulação correta, jus- blematizando o dizer ontológico, logocêntrico,
ta ou científica, interessa-nos problematizar a em termos tanto de derrubamento – de estru-
própria linguagem como modo de pensamento turas, absolutos, totalidades, origens, desti-
que permite a construção dos diversos tipos de nos, relações causa-efeito, funcionalidades –,
discursos cidade. Não com a pretensão de que quanto, no mesmo movimento, de transgres-
inventaríamos uma outra linguagem, um outro são poiética.
campo e, portanto, outros, agora sim “verdadei-
ros”, dizeres-cidade. Mas com a perspectiva de
nos apropriarmos dos dizeres predominantes
rasurando-os e expondo esse rasurar, através
e trajetórias e percursos
de narrativasexperiência coletivas construídas
e caosgrafias e
como jogo (caosgrafias) com escrituras ditas
dizendo cidade.6 Experiências que se instituem A trajetória que chega às práticas caosgráficas
enquanto poiéticos dizeres-cidade no ensejo de é traçada com linhas tortas, intermitentemen-
traspassar seu tradicional traço empirista ou te de fuga e de territorialização, num zigue-
transcendental.7 -zague rasurante, sobre um dito percurso de
O caráter de jogo, predicado como modo pesquisas no qual a problematização da lin-
às narrativasexperiência, expressa nossa apos- guagem e a dos discursos presentes no campo
ta processual à possibilidade de explicitação de do planejamento urbano e regional e, de ma-
nossa interferência enquanto agentes provoca- neira mais ampla, da produção de cidades e
dores ou narrantesjogadores, ao mesmo tempo territórios sedimentavam-se como elementos
que essa interferência fica posta à prova pela centrais. O jogo de linguagem, que é indisso-
imprevisibilidade e pelo caráter errático do jogo. ciavelmente produtor e produto dos processos
Tal jogo se configura, então, como um adentrar de produção de cidade, mobilizava-nos a per-
com “passo” próprio – operando em desvio – guntar: quais agentes, sujeitos, instituições,
uma discursividade cidade constituída como tomam parte desse processo e quais os efeitos
movimento interdiscursivo de dizeres-cidade, gerados por modos e formas como cada di-
sendo interpelado por ele e interpelando-o. zer cidade particular e determinado conjunto
Propomos, então, essas narráticas expe- agenciado – em aliança ou em disputa con-
riências cidade não como processos analíticos, flitiva – é produzido. Mas também, em sinal
etimológicos, semiológicos ou hermenêuticos, invertido: tais dizeres não produzem também

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Caosgrafias cidade

seus próprios enunciadores, contextos, inter- urbano. Utilizamos “dita” e não “descrita”,
locutores e objetos? pois constitui questão central das caosgrafias
Nos percursos trilhados lá pelos idos de pensar (a/ uma/ um projeto de) cidade enquan-
um incerto 2013, as caosgrafias se produziam to produção discursiva, posição que problema-
diretamente em tensão aos dizeres-cidade que tiza a ideia de que os discursos sejam “sobre a
se afirmam absolutos, postulando-se como cidade”, ou seja, representações de uma cida-
discurso verdadeiro, e tentam solapar a possi- de “real” que já está aí e restaria dela falar. A
bilidade de uma política. Naquele, então, 2013, cidade seria, nessa perspectiva, produção con-
referíamo-nos, sobretudo, àqueles que funda- tinuada a partir do que dela se fala (recorren-
mentam e são explicitados pelo denominado do a diferentes formas de linguagem), em que
“Planejamento Estratégico”, discurso que vem uma disputa política eminentemente discursiva
sendo assumido por diversas administrações emerge do encontro conflituoso de diferentes
municipais, principalmente a partir da década modos de dizer, de ver, de pensar, de instituir
de 1990, cujos postulados básicos concebem a seus processos cotidianos. Evidentemente não
cidade como algo a ser gerenciado em moldes se trata de movimento de mão única, pois os
empresariais, apontando para a necessidade supostos sujeitos do discurso não estariam
de definir sua “vocação” e seu “diferencial”. separados de um suposto objeto cidade, mas
Subjaz a isso um pressuposto que despolitiza da construção de agenciamentos complexos,
as dinâmicas de planejamento e gestão urba- situados num espaço-tempo atual do qual par-
na, em nome da construção de consensos e ticipam fluxos transescalares, de geografias das
de um projeto de cidade cuja meta é torná-la mais locais às mais globais.
mais atrativa para empresas, investidores, mão Esses agenciamentos vão constituindo
de obra qualificada e turistas. Como hegemonia “resultados parciais”, rastros de rastros nos
que se faz, desqualifica vozes ou discursos dis- termos propostos por Derrida (2004), a partir
sonantes ao seu dizer-cidade. Não os reconhece de eventos cotidianos, de práticas ordinárias,
enquanto dizeres outros que podem disputar de políticas públicas, de investimentos e es-
qualquer possibilidade de dizer-cidade porque peculações privados, de interações sociais no
não há, nesse dizer, a disputa mesma. Diante espaço público, de transformação das arqui-
desse problema, o viés motivador das caosgra- teturas e dos espaços abertos, que compõem
fias, afectando-se por um certo modo combati- – individualmente e em suas relações – escri-
vo de multidões que narramexperienciam rua, turas, sobre as quais novas escrituras se pro-
territorializa-se no dizer que essa disputa existe. duzem: escrituras-cidade, ou dizeres-cidade.
Nesse sentido, deixa rastros nas caosgra- Esse processo, é preciso ressaltar, será sempre
fias uma cidade do Rio de Janeiro dita como entrecruzado pelas tramas de dizeres que orga-
arena de disputas discursivas diretamente arti- nizam o social, onde os diferentes sujeitos que
culadas aos processos recentes – autoritários/ colocam, ou não, uma disputa certamente não
espetaculares – de transformação do território fazem em posição de igualdade.

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Frederico de Araujo

fragmento caosgráfico 19

âmbito das lutas contra os poderes constituí-


e caos e escritura e disputas e
dos – exoconsistência do dizer –, mas também
A trama discursiva e heterogênea que compõe no âmbito circunscrito à produção de resistên-
o campo de disputas entre dizeres-cidade pode cias e contra-hegemonias – endoconsistência
ser vislumbrada à luz de um tipo de agencia- do dizer. Dizer cidade a n-1 como modo de ex-
mento proposto por Deleuze e Guattari (1996a) pressar nesse dizer a inescapável tensão multi-
como produção a n-1, onde n diz respeito à plicidade/unicidade.
multiplicidade heterogênea e 1 diz respeito Nas bordas, interstícios e zonas de som-
ao uno totalizante. No que viemos expondo bra do dizer-cidade hegemônico, é produzida
até este ponto, o uno seria o discurso que se uma miríade de discursos outros que, ocupan-
pretende instaurar consensualmente como úni- do a hegemonia com outros componentes
co e verdadeiro, em meio à multiplicidade de (subjetivos, materiais, semióticos, afetivos),
discursos-outros, heterogêneos entre si e ditos dizem resistir, desviar, produzir linhas de fuga
minoritários em relação ao uno. Essa proposi- ou simplesmente garantir existência. Minorias
ção provoca a necessidade contínua da opera- criadoras, diria Deleuze, que não se distinguem
ção de conjurar o uno, ainda que sem a possi- da maioria pelo número, mas por não se con-
bilidade de escapar dele, a favor do múltiplo, formarem ao modelo, e sim serem tomadas por
da diferença e do heterogêneo, não apenas no um devir, um processo.

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Caosgrafias cidade

Ilustração 1 – Corpo-caosgráfico

Fonte: Elaboração própria, 2014.

Quando uma minoria cria para si modelos, esses dizeres-cidade descontínuos e minori-
é porque quer tornar-se majoritária, e sem tários sob uma aura de pureza que os mante-
dúvida isso é inevitável para sua sobrevi-
ria imunes à feitiçaria capitalista (Pignarre e
vência ou salvação (por exemplo, ter um
Stengers, 2011). A produção de subjetividade
Estado, ser reconhecido, impor seus direi-
tos). Mas sua potência provém do que ela urbana ocorre em meio a fluxos em disputa,
soube criar, e que passará mais ou menos instaurando-se em processos de atualização
para o modelo, sem dele depender. O po- incessante. Nesse movimento, uns e outros,
vo é sempre uma minoria criadora, e que agentes em agenciamentos, são atravessados
permanece tal, mesmo quando conquista
por novos acontecimentos que produzem para-
uma maioria: as duas coisas podem coe-
xistir porque não são vividas no mesmo doxos e exigem um contínuo redizer(-se). Dian-
plano. (Deleuze, 1992, p. 214) te disso, faz-se necessário desconfiar de nossos
dizeres e ter precaução no âmbito da produção
Importa, assim, construir dizeres arrasta- discursiva, ou seja, problematizar a própria
dos por devires de resistência, mas igualmente linguagem enquanto campo de conflitos a ser
tomar cuidado contra a sedução em envelopar permanentemente tensionado.

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Ilustração 2 – Disputas

Fonte: Elaboração própria, 2014.

prazer. penso: até o momento tenho consegui-


fragmento caosgráfico 2
do não matar; com um pouco de sorte, seguirei
evitando. falo: cidade.
“Manifestações ou sete atos e um desatino” –
[com efeito]
Ato Gordo Elias 10
[assim também]
palavras haviam feito seu trabalho, sul-
cando como imprecisos arados o que outras
e modo operativo-reflexivo
palavras dizem ser minha mente revolta. os e jogo e
rastros que aí deixaram, trazem ao lume cida-
des e impérios grandiosos, mas também esqui- Como modo a essa aventura poiética, conside-
nas escuras, postes tortos e enferrujados, ruí- ramos a condição da não suposição prévia e
nas de pequenas casas tristes, prédios que se necessária do caráter dicotômico entre distin-
dizem inteligentes, luzes insuportáveis, sorrisos ções clássicas do pensar hegemônico moderno,
sem rosto, euforias carnavalescas, peixes mor- como aparência / essência, totalidade / parte,
tos a olhar o vazio, um pão mordido no chão de etc. Todo o trabalho tem como referências uma
uma calçada imunda, perguntas sem resposta, postura desconstrucionista derridiana, uma po-
esquecimentos de coisas que não se sabe, ter- lítica dos afectos inspirada em conceitos como
renos baldios em meio a milharais de prédios, potência, devir e rizoma, de Deleuze e Guattari,
avessos, meninas feinhas, milharais de espigas e o método de montagem de Walter Benjamin.
douradas, uma pequena chave que não sabe Essas referências não são objeto de apresenta-
sua fechadura. esqueço, seleciono, rememo- ções apriorísticas, mas acionadas e discutidas
ro, teço tramas, violento que me agencio. ajo: na medida de necessidades surgidas durante o
pego do chão o pão mordido e o devoro com processo prático.

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Caosgrafias cidade

A construção, enquanto agenciamento (a-)regras do jogo


coletivo de enunciação (Deleuze e Guattari, Se jogos se efetuam pela definição
1996a; Guattari e Rolnik, 2005), de dizeres- prévia de regras, nas caosgrafias sua pró-
-cidade, sem formato ou modalidade de ex- pria formulação, revisão, descarte e reela-
pressão predefinidos, tem por fundamento boração constituem questão central ao que
a tensão / interpelação entre fragmentos consideramos uma investigação teoricoprá-
tempo-espaciais originários de agenciamen- tica de criação coletiva de narrativasexpe-
tos díspares do cotidiano tomados a partir riência voltadas ao pensar cidade, política,
de determinado(s) dispositivo(s), fragmentos linguagem. Dizemos, então, de cada caos-
por vezes funcionais, por vezes desúteis (isto grafia como narrativaexperiência singular,
é, que colocam em xeque o primado da utili- mas também podemos dizer de momentos
dade), e totalizações hegemônicas, em geral que, por potência de fazer jogar, ganharam
auto-assumidas eficazes pelo poder instituído. condensação e territorialidade no jogo e
Um dos pontos-chave do jogo é o mo- também um nome, que possivelmente já diz
mento no qual os fragmentos (sejam imagens, algo. Indicados a seguir em sequência, num
objetos, escritos, gestos, etc.) são produzidos propositado acidente pedagógico, podem,
pelos jogadores para compor arranjos e mon- entretanto, trocar de posição, se misturar ou
tagens sobre um tabuleiro que só passa a exis- mesmo sumir em cada jogo, com exceção do
tir, que só se dá a ver, na própria dinâmica das último – despacho – que só acontece quan-
composições, desvios, provocações e interpe- do há necessidade e desejo produzidos no
lações de cada jogada. Esse jogo, denominado jogo para desdobrar o agenciamento coletivo
“cartografia de afectos”, opera na perspectiva de enunciação ali elaborado em expressões
da construção de dizeres que afirmam cidade que podem ser partilhadas além dos limites
enquanto enunciado(s) a n-1, tramados rizo- espaço-temporais do jogo (um evento, uma
maticamente. Isto é, um jogo que se propõe publicação, um ato público, etc.).
espaço de narrativaexperiência coletiva com Enrosco: onde são definidos coleti-
a palavra cidade sem desta procurar decantar, vamente dispositivos provocadores de uma
sejam os modos mais completos ou complexos deriva que pode, contudo, ocorrer tanto em
de se dizer / tomar / entender cidade – aquilo espaços considerados abertos como também
que faria una, idêntica a si mesma, realidade fechados (afinal onde começa e termina ci-
que preexiste aos discursos, às práticas que a dade?). São utilizados exercícios livremente
dizem –, mas, antes, narrativaexperiência que adaptados do teatro e da dança para mobi-
toma a palavra, ela mesma, como território de lizar o corpo inteiro ou os corpos-corpo co-
disputa, matéria plástica que se faz e refaz in- letivo, a potencializar-se enquanto máquinas
cansavelmente nos jogos discursivos, nas indis- expressivas que maquinam(-se) (n)o jogo
sociáveis micro e macropolíticas cotidianas. caosgráfico.

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Imagem 1 – Momento Enrosco em oficina


com estudantes de arquitetura na UFF

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Caosgrafias cidade

Imagens 2 e 3 – Momento Enrosco com estudantes grevistas na UFRJ

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Deriva / produção de fragmentos : âmbito do jogo, fragmentos são qualquer tipo


onde Deriva é provocada como movência e de matéria de expressão – encontros e garim-
delírio e composição de corpos e coisas em pos, emergências, devires e atravessamentos
deslocamento (pela cidade, pelo espaço, pelos significativos e apropriados pelos participantes
dispositivos, pelos sentidos, pelas sensações, para constituir a matéria bruta a ser agenciada
pelos sujeitos e pelas ideias ligadas a essas pa- numa cartografia de afectos. Podem ter diver-
lavras), visando a ativar o sensível mobilizado sos formatos: imagens, textos, fotografias, fa-
pelo dispositivo disparador do jogo, a fim de las, gestos, objetos, vídeos, sons, gente, bicho,
produzir (coletar, compor, criar) fragmentos. No planta, etc.

Imagens 4 a 7 – Exemplos de Fragmentos e Derivas


e dispositivos de produção de fragmentos

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Caosgrafias cidade

Ta b u l e i r o : onde os f ragmentos de uma cartografia de afectos, em que cada


produzidos são apropriados e atualizados li- jogada é provocada por afectações de ou-
vremente como peças para constituir jogadas tras jogadas, e dizeres cidade fragmentários
elaboradas por um ou vários jogadores, de passam a compor também outro dizer cida-
modo sucessivo ou simultâneo, a depender de múltiplo, um agenciamento coletivo de
da própria dinâmica que se instaura em ca- enunciação, a partir de conjunções, conexões,
da jogo. Um plano de composição se produz, disjunções, proximidades, distâncias, intensi-
no qual as jogadas podem se espacializar e dades, marcas, colisões, rasuras e sobreposi-
tempo rizar, constituindo o que chamamos ções entre jogadas.

Imagem 8 – Momento Tabuleiro em oficina com participantes do XIX Congresso


Iberoamericano de Geografia, Universidade do Minho, Portugal

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Despacho: quando o jogo, pela potência disponíveis encontrados e passíveis de serem


de afectações, não se deixa terminar e os par- operarados pelos jogadores. Já foram feitos
ticipantes elaboram estratégias e/ou táticas a despachos em meios diversos, como audiovi-
fim de estendê-lo além das próprias fronteiras sual, material gráfico, textos publicados, apre-
de seu acontecimento. São, então, produzidos sentações em eventos, instalação de estruturas
desdobramentos da cartografia de afectos em não permanentes e performances em espaço
linguagens múltiplas, com recursos e suportes público.

Imagens 9 a 11 – Despachos executados em meios diversos.


Na ordem em que aparecem: trecho de um material gráfico;
intervenção em uma praça pública de Porto Alegre;
instalação na UFRJ

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fragmento caosgráfico 3 breve apontamento


Estado-jogo11 experenciaragenciarnarrar

Esse movente caos palavrório, não obstante, Caosgrafias são também concebidas na trama
tem a potência de individuar por afectação, não imbricada dos termos experenciar-agenciar-
aquela supostamente determinada por alguma -narrar, na qual a experiência não é conside-
essência imaginada, mas a afectação possibili- rada fora do processo narrativo. Experiência e
tada pelos planos de intensidades que fazem o narrativa se instituem, assim, na própria rela-
jogo. Essa individuação – como aqui assumida, ção, como agenciamento coletivo de enuncia-
uma ecceidade rasurada, se tivermos em conta ção. Experienciar como agenciarnarrar.
os termos em que Deleuze e Guattari (1997a) a
formulam.12 No acontecimento constituído pe-
lo presente indefinido da escrita, instituo e me
afecto por outro acontecimento, aquele de um
fragmento caosgráfico 413
fluxo de ecceidades – que designo como sons
e formas e durações e odores e texturas e vo- ● “Isaura experiencia”. Tomar essa escritura
lumes e cores e temperaturas e distâncias – a ao modo diabólico enunciado, no intuito de
se mover aceleradamente, desenhando e desfa- dizer um sentido a ela, por efêmero que pos-
zendo figuras doces ou ameaçadoras e outras sa ser o que possa ser dito, enquanto também
nem tanto. um (outro) experienciar, quer dizer considerar
Interpelado e definitivamente arrebatado que o nome Isaura não indica um sujeito ex-
por essa afectação, jogador desejante que me perienciador (uma presença), nem que o verbo
faço, desdobro-a em jogo movente de outras experienciar significa previamente qualquer
ecceidades [...] cujas intensidades se agenciam coisa, especialmente o confrontar sensorial /
por e como errância e reverberação e frequên- racional / subjetivo de uma suposta presença
cia e insistência e contração e curto-circuito e com alguma alteridade, também presença em
amplificação e multiplicidade e aceleração e si e por si. Quer dizer, como rasura a esse ex-
adensamento e agregação e simultaneidade e perienciar como relação de presenças, que a
intercalação e acréscimo e eliminação e violên- escritura “Isaura experiencia”, entendida como
cia e difusibilidade e superposição e, a consti- narrativa a (n-1), não dizendo então de coisas
tuir “plano de consistência”, é agenciamento, ou estados de coisas autônomas e independen-
redobra explodida em multiplicidade de pala- tes a esse dizer, ainda que assustada por esses
vras, elas também redobras de redobras, eccei- fantasmas e por vezes incorporando-os conci-
dades de ecceidades de outras palavras na infi- liadoramente, sugere um agenciar múltiplo de
nitude do jogo enquanto potência de negação palavras que constitui como trama de intensi-
do mesmo. dades ao mesmo tempo um si mesmo, outros

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Caosgrafias cidade

desse si, os modos de tecedura ou jogo entre possibilitam que muitas delas concordem que
eles (a-regras do jogo) e o devir desse jogo. esta foi a versão mais “dura” das caosgrafias.
● Narraragenciarexperienciar Isaura é como Apesar de muitos fatores estarem relacionados
narraragenciarexperienciar deserto, ou como a essa questão, o principal deles é que, naquele
desertar ou deserdar. Abandono. Solidão de momento, estávamos caosgrafando para atin-
abismo. Nenhuma referência pra frente ou pra gir um objetivo.
trás, ainda que se siga ao mesmo tempo pra Porém, não precisou muito para que ti-
frente e pra trás, nenhum norte identificável a véssemos a sensação que o modo caosgráfico
priori, nenhum dia, nenhuma noite a pontuar era muito mais potente do que sua capacidade
de saída os dizeres. Dizeres escrituras, agencia- de gerar um produto. Ainda assim (porque é
mentos comerfalarcomerfalar. complicado descer das árvores para as raízes),
● Experienciar como territorializar. Nem sempre, pensamos que o que tínhamos criado era real-
mas algumas vezes capitais. Territorializar co- mente uma “metodologia”, capaz de ajudar
mo experienciar, como um incorporal acontecer a fazer um filme com tais características.14 Já
experienciaragenciarnarrar. naquela narrativaexperiência havia surgido o
incômodo do contraste no momento em que
passávamos da etapa denominada “cartografia
relato 1 … narrativasexperiência de afetos” para a montagem dos fragmentos
caosgráficas em uma timeline, que comumente enseja certa
linearidade no tempo.
Pode-se dizer que o que chamamos caosgra- Esse incômodo vinha da sensação de que
fias se constitui tanto ou mais no campo das submeter a caosgrafia à função de organizar
práticas e das técnicas que dos conceitos e uma montagem em linha era por demais disso-
mesmo da metodologia. O mais profundo é a nante com a abertura provocada pelo proces-
pele. No entanto, a primeira narrativaexperiên- so. Não pela montagem do filme em si mesmo,
cia caosgráfica (que só pode existir como tal mas porque este nos parecia acabar sempre,
no presente incerto desta escrita) distingue-se mesmo com todas as advertências, tomando o
das demais por ter sido concebida a partir do caráter de resultado, de produto e mesmo de
propósito de dar conta da montagem de um objetivo, ao qual todo o processo anterior pare-
filme, cuja principal pretensão era a completa cia subordinado.
horizontalidade na sua produção. Uma criação Tal desconforto se tornou mais intenso
coletiva e horizontal, ao menos quanto às “re- em outra ocasião, na qual o método tomou o
gras” do jogo, foi o que motivou o desenvolvi- formato de oficina e, assim, evidenciava fissu-
mento de caosgrafias. Assim, o processo tinha ras que deslocariam o núcleo do trabalho para
um caráter mais instrumental. Até então, pode- o processo, muito mais do que para sua finali-
-se dizer que as pessoas implicadas buscavam zação. Ainda assim mantivemos a produção de
uma ferramenta capaz de garantir a abertura e um filme como etapa final do processo.15
a simetria na criação e na montagem do filme. Foram dois dias povoados de encontros
Hoje, as virtudes de uma mirada retrospectiva intensos. Pessoas de diferentes partes do País,

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de diferentes formações, idades e vontades cosmopolítica, quando a filósofa se pergunta e


se inscreveram na oficina. Uma conversa ini- lança sua provocação:
cial marcou as primeiras impressões sobre o
Como apresentar uma proposição que
que se desenrolaria nos momentos posterio-
não pretende dizer o que é, ou o que de-
res. A etapa que propusemos em seguida foi veria ser, mas que provoque pensamento;
de nos dividirmos em grupos para recolher e que não exige outra verificação além
“fragmentos” (os elementos a serem agencia- de ser capaz de desacelerar o raciocínio e
dos na experiência da “cartografia de afetos”) criar a ocasião para a emergência de uma
sensibilidade ligeiramente diferente rela-
da cidade de Salvador. As etapas seguintes
tiva aos problemas e situações que nos
se constituíram por distintas formas de reali- mobilizam?16 (Stengers, 2007, p. 45)
zação de tarefas, que cada “grupo” passou a
considerar como um caminho para aquilo que Não faz sentido, portanto, ter a expec-
pretendia constituir. tativa de que estamos diante de um novo mo-
Inicialmente o modelo de funcionamen- delo de fazer política ou planejamento, não
to era o mesmo que o da primeira caosgrafia. porque a caosgrafia exclua qualquer política
Compusemos cartas que se referiam às cenas ou planejamento de si mesma, assim como
que constituímos a partir de uma seleção pré- não exclui um modelo, mas porque nela tudo
via das imagens trazidas pelos grupos. Assim, é jogo de corpolinguagem. Não tem por obje-
era como se as “cartas” pudessem fazer refe- tivo nem explicar e menos ainda solucionar os
rência a algo dado. Completo equívoco. Que problemas que se apresentam no cotidiano da
se tornou evidente quando os participantes cidade. O que está em jogo nesta proposta de
começaram a fazer jogadas com seus próprios experiência é a criação de práticas que tenham
corpos, rompendo primeiro com a "bidimen- como consequência a abertura do campo de
sionalidade" das conexões que propúnhamos enunciações, ou seja, das possibilidades de
e especialmente com uma referencialidade dizer-cidade.
ingênua, que acabamos por reproduzir inter-
namente no processo. Ao jogar seus corpos
sobre o nosso “tabuleiro”, as pessoas caos- relato 2 … narrativasexperiência
grafaram a cartografia, o jogo e, logicamente, caosgráficas
toda a oficina.
Permitimo-nos, naquele então, pensar Desde as primeiras caosgrafias até as mais re-
que não são as regras ou as formulações a centes, pode se dizer que partiram de um certo
priori que definem o processo, ainda que par- roteiro, que continha em si determinada expec-
ticipem dele. Caosgrafar é uma prática, que tativa. Almejava-se um produto: um texto aca-
se instaura como modo de experenciarnarrar dêmico, uma apresentação em congresso, um
coletivo. Distanciando-se de certas motiva- filme ou vídeo. Então, passou-se à ocupação
ções iniciais, o principal para nós tornou-se do espaço, o interior de um edifício moderno,
“provocar pensamento”, no sentido proposto a feitura de uma instalação, uma praça públi-
por Isabelle Stengers em relação à noção de ca, e demo-nos conta de que bastava estarmos

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Caosgrafias cidade

reunidos em modo-jogo para dizer da situação espaço-tempo. Seria errado, por isso, dizer de
como caosgráfica. A caosgrafia deixava de uma troca do racional pelo afetivo, pois as duas
ser dita como metodologia para desenvolver formas podem ser ao mesmo tempo percep-
produtos e passava a ser dita como processo ções e afectações e costumam mesmo ocorrer
movente, podendo acontecer nas mais diversas simultaneamente. Além disso, talvez se possa
formatações e contextos e instaurar-se entre dizer que é preciso prestar mais atenção aos
nós (porque um entre e um nós são pré-re- afectos e levá-los a sério, ao passo que pode
quisitos fundamentais) sem planejamento, de ser libertador não conferir um protagonismo
surpresa. O modo-jogo não precisava ser acio- permanente ao racional. Não achamos que in-
nado, mas ele acionava-nos a jogar a partir de ventamos algo novo ou descobrimos algo que
algo que se instaurava entre nós. não existia, mesmo porque não nos parece
Aos poucos, começamos a ver caosgrafia possível dar conta de alguma totalidade que
em muitas situações, algumas bem comuns. seja essência ou aparência de que tentamos
Músicos improvisando uma música juntos sem falar. Apenas escolhemos um nome para dizer
terem ensaiado, uma jogada perfeita em uma algo que acontece. Esse nome, entretanto, mo-
pelada de futebol, a coreografia astuciosamen- biliza-nos, gera desentendimentos entre nós,
te funcional, ainda que lenta, de uma sarjeta convoca-nos a jogar e estimula um contínuo
ocupada em movimento ao mesmo tempo por redizer de certezas e exploração dos limites da
gente, carros, motos, bicicletas, carroceiros, li- linguagem. Por isso tudo, e por muito menos,
xos, buracos, poças d’água e exus. E por que as caosgrafias são atualmente plurais no plural.
não capoeira angola, o jogo de olhares do
flerte, embriagar-se e pular carnaval? Há algo Entrando por uma porta,
comum a essas narrativasexperiência da ordem saindo por outra,
de uma desracionalização ou desatenção; não quem quiser que vá
completas, mas rasuradas pelos circuitos de narrandoagenciandoexperienciando
afectos que cruzam a narrativaexperiência de outra.17

Frederico de Araujo
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional,
Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura. Rio de Janeiro, RJ/Brasil.
fredaraujo@uol.com.br

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Frederico de Araujo

Notas
(*) Texto elaborado pelo Grupo de Pesquisa Modernidade e Cultura do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado por
Frederico Guilherme Bandeira de Araujo, com agenciamento de Amanda Rose da Silveira,
Ana Cabral Rodrigues, Flávia de Sousa Araújo, Frederico Guilherme Bandeira de Araujo, Gabriel
Schvarsberg, Heitor Levy Ferreira Praça, Iaci D´Assunção Santos, Laura Souza Rêdes, Letícia
Cas lhos Coelho, Natalia Velloso Santos, Priscila Medeiros de Oliveira, Raphael Soifer, Ricardo
José de Moura, Ronieri Gomes da Silva Aguiar e Samuel Thomas Jaenisch.

(1) Fragmento-epígrafe, autoria própria.

(2) Caos enquanto lugar da criação de todas as formas e que desconhece, também, os diferentes
níveis de enfrentamentos que com ele mantêm as três formas de pensar e criar: filosofia, ciência
e arte (Magnavita, 2012, p. 210).

(3) O termo poiésis está aqui relacionado aos conceitos de heterogênese ou multiplicidade, no
sentido das construções conceituais de Deleuze e Guattari (2004), os quais afirmam que a
realização de uma poié ca (ou poé ca – originária da palavra grega poiésis) significa fabricar,
criar, confeccionar.

(4) Rasura assumida aqui em termos derridianos, como borrar fronteiras, tachar palavras, abalar
estruturas, desdobrar e riscar essências, reescrever naturezas, devir sem fim, instaurar errâncias,
esvanecer origens, tornar des nos brumosos, arguir verdades, mul plicar interpelações, desviar
de rota, fazer espaço do tempo, fazer tempo do espaço, etc. “A rasura instaura uma economia
vocabular. O entre-aspas, o po gráfico da impressão, as letras riscadas e as expressões irônicas
devem ser entendidas como manifestações da estratégia desconstrutora em Derrida. Usando
termos de uma linguagem que quer desconstruir, Derrida abala essa linguagem e inscreve
um sen do outro além dela [...]. Sendo a rasura uma modalidade de solicitação e estratégia,
funciona como elemento regulador da polissemia e estabelece uma lógica de suplementaridade
na própria sintaxe em que se inscreve” (San ago, 1976, p. 71).

(5) O termo “opaco”, neste projeto, usado no sen do usual na literatura teórica sobre cinema, de
desnudar o caráter fílmico do filme, em oposição ao termo “transparente” que, ao inverso,
corresponderia ao sentido de ocultamento desse fato. Com essa perspectiva, então, a
expressão “agenciar opaco” indica um modo reflexivo/exposi vo marcado pela preocupação
em explicitar que se trata de um processo operado a par r de específicas questões, estratégias
e procedimentos.

(6) “Escritura”, em perspectiva derridiana, enquanto jogo (Derrida, 2008), como modo, e
enquanto marca (notação e conteúdo respectivamente diferidos) como forma, de qualquer
tipo ou natureza: orto-gráfica, imagética, geo-gráfica, arquitetural, urbanística, gestual,
comportamental, sonora.

(7) Só é possível usar aqui essa noção sob rasura, na medida em que pertence à história da meta sica.
Como afirma Derrida, “‘Experiência’ sempre designou a relação a uma presença, tenha ou
não esta relação a forma da consciência. Devemos, todavia, de acordo com essa espécie de
contorção e de contenção à qual o discurso é aqui obrigado a esgotar os recursos do conceito
de experiência antes e com o fim de alcançá-la, por desconstrução, em sua úl ma profundeza”
(2004, p. 74).

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(8) “Acontecimento” considerado em primeira inspiração ao modo da noção deleuzeana homônima


(cf. Deleuze, 1974), todavia, efetivamente operado aqui através de rasura dessa noção. Diz
Deleuze: “Inseparavelmente o sen do é o exprimível ou o expresso da proposição e o atributo
do estado de coisas [...] É, exatamente, a fronteira entre as proposições e as coisas [...]. É
nesse sen do que é um ‘acontecimento’: com a condição de não confundir o acontecimento
com sua efetuação espaço-temporal em um estado de coisas. Não perguntaremos, pois, qual
é o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio sentido. O acontecimento
pertence essencialmente à linguagem, ele mantém uma relação essencial com a linguagem;
mas a linguagem é o que diz das coisas” (p. 23). A rasura que fazemos desse dizer inspirador
corresponde ao entendimento de que o que pode ser dito como “proposição”, “fronteira” e
“estado de coisas” não excede, e não há como exceder, à própria linguagem. Assim assumindo,
“acontecimento”, diz de, uma ocorrência linguística plena, envolvendo ditos objetos,
significantes, significados e sen dos.

(9) Trecho do trabalho “e remoinhos e cidades de leva e traz y Dolores e” (GPMC, 2013).

(10) Trecho do trabalho “Manifestações ou sete atos e um desa no” (GPMC, 2014a), autoria própria.

(11) Trecho do trabalho “Manifestações ou sete atos e um desa no” (2013), autoria própria.

(12) “Uma ecceidade não tem nem começo nem fim, nem origem nem des nação; está sempre no
meio. Não é feita de pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma” (Deleuze e Guatarri, 1997, p. 50).

(13) Trechos do trabalho “Rastros do sem-nome que o diga” (GPMC, 2014b), autoria própria.

(14) O filme “Perlenga Cangaço” foi realizado com apoio do Ministério da Cultura – Secretaria do
Audiovisual – Edital de concurso n. 1, de 29 de janeiro de 2010: Concurso de Apoio à Produção
de Obras Cinematográficas Inéditas, de curta metragem, de ficção ou documentário.

(15) O trabalho cole vo realizado pelos par cipantes da referida oficina foi o filme “Talvez Salvador”
(2011).

(16) Livre tradução a par r do original: “Comment présenter une proposi on dont l’enjeu n’est pas
de dire ce qui est, pas non plus de dire ce qui doit être, mais de faire penser, et qui ne demande
pas d’autre vérifica on que cela: la manière dont elle aura «ralen » les raisonnements, créé
l’occasion d’une sensibilité un peu différente par rapport aux problèmes et aux situa ons qui
nous mobilisent?”.

(17) Trechos do trabalho “Rastros do sem-nome que o diga” (GPMC, 2014b), autoria própria.

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Texto recebido em 5/jun/2016


Texto aprovado em 25/jul/2016

920 Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 899-920, set/dez 2016
Instruções aos autores

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questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume
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especialmente às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Geografia,
Demografia e Ciências Sociais.
A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam
com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema
político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão, baseados na
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, pp. 921-924, set/dez 2016
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Capítulos de livros
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(org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em
Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
Artigos de periódicos
AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do
periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo.
Exemplo:
TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos
Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28.

Trabalhos apresentados em eventos científicos


AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, local de
realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final.
Exemplo:
SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle
social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL
ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília,
MPAS/ SAS, pp. 193-207.

Teses, dissertações e monografias


AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição.
Exemplo:
FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de
gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de
mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.

Textos retirados de Internet


AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso.
Exemplo:
FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Dis-
ponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005.
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