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Os debates sobre a transição

idéias e intelectuais na controvérsia sobre a


origem do capitalismo

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Daniel de Pinho Barreiros

Os debates sobre a transição


idéias e intelectuais na controvérsia sobre a
origem do capitalismo

Editora da Universidade Federal Fluminense


Niterói, 2008

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Copyright © 2008 by Daniel de Pinho Barreiros
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B272 Barreiros, Daniel de Pinho.
Os debates sobre a transição: idéias e intelectuais na controvérsia sobre a
origem do capitalismo / Daniel de Pinho Barreiros — Niterói : EdUFF, 2008.
192 p. : il. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
Bibliografia. p. 187
ISBN 978-85-228-0477-1
1. Economia. 2. História das idéias econômicas. I. Título. II. Série
CDD 330

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Vânia Glória Silami Lopes

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Sumário

Prefácio, 7

Introdução
Transição para o capitalismo: momento e origem de um debate, 13

Capitalismo e servidão no pensamento marxista


contemporâneo, 29

Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição


para o capitalismo, 49

Capital mercantil e acumulação primitiva na transição para o


capitalismo, 73

Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o


capitalismo, 83

Capitalismo: oportunidade ou imperativo?, 103

A tese do capitalismo colonial brasileiro, 115

Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro, 145

Conclusão, 177

Posfácio
Uma palavra, um debate e um livro, 183

Referências, 187

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Prefácio

Os debates sobre a transição são, sem dúvida, algumas das mais


belas páginas da moderna historiografia do Ocidente. Com a força de
sua originalidade e abrangência, influenciaram, ao longo de décadas,
diversas gerações de historiadores e membros das demais ciências
sociais. Nesse percurso, contribuíram para colocar a pesquisa his-
tórica em um novo patamar de excelência e rigor, ao apontar para a
necessidade de explorar fontes inéditas e desafiadoras como recurso
fundamental do trabalho historiográfico.
Seu ponto de partida foi a obra de Karl Marx, sobretudo os
capítulos históricos apresentados nos vários volumes de O capital,
cuja potencialidade como hipóteses de trabalho não tinha sido ainda
explorada com toda a intensidade por aqueles que se interessavam
pela origem do capitalismo como questão histórica. Principalmente
no capítulo sobre a acumulação primitiva do capital, Marx delineou
os aspectos elementares do processo histórico que originou aquilo
que de fato, segundo sua visão, caracteriza o capitalismo — as suas
relações sociais.
Ao elaborar com clareza as instâncias fundamentais do modo
de produção capitalista, Marx realçou a natureza das relações sociais
no capitalismo, marcadas, de modo decisivo, pelo encontro entre
dois tipos distintos de possuidores de mercadorias: de um lado, os
proprietários dos meios de produção, de outro, os vendedores da
própria força de trabalho. A origem histórica do capitalismo, assim,
como sugerido por Marx, trata do processo que resultou nessa polari-
zação social fundamental. Compreender o nascimento do capitalismo,
portanto, significa compreender os mecanismos por meio dos quais
forjaram-se as relações sociais capitalistas.
O segredo da acumulação primitiva é a expropriação do cam-
pesinato. Ao examinar a experiência inglesa, sobre a qual deteve o
olhar em busca do entendimento dessas questões, Marx observou
que, na Inglaterra, diferentemente do que acontecera no restante do
continente europeu, a transformação da propriedade feudal em pro-
priedade capitalista foi muito mais veloz e dramática. Enquanto em
outras regiões européias o fim da servidão, no século XIV, não condu-
ziu, diretamente, ao desapossamento do camponês, no solo inglês, ao
contrário, a eliminação dos direitos consuetudinários do campesinato
sobre a terra foi muito mais rápida e definitiva. A progressiva perda de

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Prefácio

direitos, pelos camponeses, acabaria resultando na sua transformação


em proletariado sem outros meios de sobrevivência que não fossem
a venda de sua força de trabalho.
A supressão da pequena propriedade familiar na agricultura,
então, foi o passo inicial decisivo para a criação das relações sociais
capitalistas. Expropriado e isolado, o camponês se converteu em
“livre” vendedor de sua força de trabalho, incapacitado que estava
de obter outro meio de sobreviver. A propriedade capitalista, por sua
vez, veículo fundamental da acumulação do capital, se formava pela
apropriação dos meios de produção antes dispersos entre as famílias
camponesas. A aldeia, elo de comunhão entre os camponeses, perdeu
sua função socioeconômica e se esvaziou. Os campos e os cultivos se
transformaram com velocidade impressionante.
Um novo elemento regulador se interpôs entre os produtores —
o mercado. Cada vez mais, capitalistas e trabalhadores se submetiam
ao mercado como força reguladora de todas as relações sociais. Tudo
passou a ser mercadoria produzida para fins de troca, todos passaram
a depender do mercado para obter os seus meios de reprodução e de
subsistência. Isso não era uma escolha, era um imperativo inarredável.
De forma progressiva, as relações capitalistas foram se apossando de
todos os campos da vida social, ainda que, em alguns aspectos, essa
evolução pudesse levar muito tempo para se completar. Em certos
casos, houve mesmo uma grande resistência dos grupos envolvidos,
que lutaram para não perder suas posses e para não se sujeitar a
regulação tão perversa. No entanto, como ficou demonstrado, era
apenas questão de tempo.
A violência constituiu um dos pilares desse processo histórico
de expansão. Tanto no plano interno quanto no externo, ela exerceu
uma força extraordinária. A supressão dos direitos sociais e econô-
micos dos camponeses e demais trabalhadores não teve propria-
mente um curso pacífico e negociado. A conquista e a ocupação de
territórios no além-mar, por sua vez, também foram marcadas pelo
uso desmedido de métodos violentos de rendição dos resistentes,
fossem eles nativos americanos ou cativos aprisionados em terras
africanas para o trabalho forçado. As disputas e guerras travadas
entre potências rivais dentro da Europa se arrastaram para outros
continentes, deixando seu rastro de destruição e pavor em muitos
povos e territórios. Na liderança desse triunfo, encontravam-se as
forças capitalistas emergentes.

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Estudar a transição do feudalismo para o capitalismo, na pers-
pectiva marxista, significa optar pelos aspectos qualitativos, buscando
a elaboração de hipóteses construídas a partir dos vários elementos
socioeconômicos que convergiram para a configuração das relações
sociais capitalistas. É uma forma de construir generalizações e espe-
cificidades, posto que as combinações necessárias para a construção
do modo de produção capitalista não se restringiram aos limites
geográficos das experiências européias, e variaram. Neste sentido,
a pluralidade das formações sociais constitui um enorme desafio às
formulações teóricas baseadas em Marx, originando respostas ino-
vadoras e criativas, que visam dar aos estudos historiográficos uma
abrangência ainda maior e mais consistente.
Ao mesmo tempo, esse esforço realizado pelos marxistas ao
longo de décadas também representou um contraponto ao largo
predomínio das explicações apoiadas no modelo mercantil, essencial-
mente quantitativo. Nessa perspectiva, a origem do capitalismo era
fundamentalmente uma questão de escala e praticamente dispensava
o exame detalhado dos processos históricos. De fato, os elementos
capitalistas — aqui caracterizados como mercados, cidades e mercado-
res — sempre estiveram presentes na história do homem, em escalas
variadas. Inúmeros fatores de ordem política, religiosa, ideológica e
outros exerceram influência sobre a capacidade de expansão desses
mesmos elementos, impedindo sua generalização ou seu crescimen-
to contínuo. Assim, o alvorecer da era capitalista permanecia sendo
adiado.
No modelo mercantil, portanto, o capitalismo é geralmente
definido a partir dos elementos materiais ligados à difusão das tro-
cas mercantis, com destaque tanto para as cidades (espaços, por
excelência do comércio) quanto para os mercadores, agentes mais
importantes dessa transformação. Mais comércio, mais cidades, mais
comerciantes em ação — eis a fórmula do capitalismo no modelo
mercantil. As condições históricas para a emergência desse fenôme-
no se estabeleceram na Europa ocidental, em data próxima ao fim da
era feudal, identificada, esta também, pela ausência dessas mesmas
pressões mercantis e urbanas.
Nos debates sobre a transição, os historiadores marxistas não
se furtaram a discutir tais aspectos da grande transformação socio-
econômica que teve lugar na Europa, e originou o capitalismo. Ao
contrário, procuraram iluminá-los com novos enfoques explicativos,

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Prefácio

direcionando a pesquisa empírica para rumos ainda mais inovadores.


Um dos pontos altos da discussão é justamente o do papel desempe-
nhado pelas cidades no quadro de crise geral do feudalismo. Teriam
elas servido de abrigo e refúgio para camponeses rebelados, enfraque-
cendo, assim, o poder coercitivo senhorial? Teriam elas constituído
alternativas satisfatórias de sobrevivência aos trabalhadores rurais
empobrecidos pela exploração feudal? Teriam elas exercido pressão
diluidora sobre as instituições feudais, a ponto de colocar em risco a
sobrevivência das mesmas?
As explicações tradicionais, que opunham a aliança entre
o rei e a burguesia à nobreza rural, sofreriam um duro golpe com
a emergência dessas questões, que seriam respondidas por meio
de pesquisas aprofundadas e debates teóricos de alto nível. Desse
novo contexto intelectual animado pelos debates sobre a transição,
emergiria uma realidade histórica muito mais rica e dinâmica, nada
linear em sua representação, cheia de contradições dialéticas a serem
desvendadas. O método legado por Marx daria frutos abundantes e
vivos, marcando uma das páginas mais profícuas da historiografia do
Ocidente moderno.
As cidades e o mercado teriam significação bastante distinta na
análise marxista. Realçados em sua natureza qualitativa, destacaram-
se nessa vasta literatura gerada pelos debates sobre a transição como
elementos decisivos na história do capitalismo, responsáveis pelo
estabelecimento de condições essenciais ao desenvolvimento do novo
modo de produção. A cidade capitalista, portanto, tem especificidades
muito próprias, que a distinguem das demais cidades encontradas na
história. Não é simplesmente o meio urbano adaptado às condições
da acumulação do capital. Ela mesma é produto dessa acumulação, e
seu veículo, e não passa por uma evolução linear.
Marx também chamou a atenção para o fato de que nem sempre
as cidades cumpriram esse papel revolucionário no período de transi-
ção para o capitalismo. Deu destaque especial aos grandes centros ur-
banos italianos, que perderam importância socioeconômica juntamen-
te com o declínio das rotas mercantis mediterrâneas. Ali, em muitos
casos, as elites patrícias urbanas acabaram desempenhando um papel
histórico reacionário, ao colocarem os camponeses dos arredores sob
novas formas de exploração servil, como tentativa de recuperação de
sua renda outrora abundante. Ou seja, não é possível discriminar um
único processo de evolução urbana naquele período.

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Essa característica da análise marxista ficou bastante evidente
no livro Os debates sobre a transição. Não apenas em seu esforço de
apreender as contradições dialéticas que percorrem todo o processo
histórico em questão, mas também na iniciativa ousada de levantar
problemas e propor respostas que representaram rupturas com o sa-
ber convencional que dominava o seu ambiente intelectual e político.
Foi justamente daí que retirou sua força animadora, responsável pela
formação de diversas gerações de estudiosos. E que vemos retratada
nas páginas que seguem. Daniel de Pinho Barreiros armou-se dessa
mesma coragem para enveredar pelos caminhos nada fáceis desse
debate e nos proporcionar uma releitura crítica muito competente e
arrojada.
A sistematização de toda essa construção intelectual é muito
bem-vinda. Sem dúvida, sobretudo para as novas gerações, será de
grande utilidade poder contar com um trabalho assim tão sério e pro-
fundo que trata do tema. Além de dar aos leitores uma orientação com-
pleta acerca das discussões que foram levantadas pelos historiadores
marxistas, sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, o livro
que segue reavalia os seus aspectos mais importantes. Em especial
nos capítulos em que trata do caso brasileiro e das repercussões aqui
havidas desse debate, com todos os desdobramentos decorrentes, Da-
niel nos oferece uma contribuição teórica e historiográfica de grande
relevância. Merece ser lido com todo o cuidado.

Vânia Cury
Instituto de Economia – UFRJ
Março, 2008

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Introdução

Transição para o Capitalismo: momento e origem de um debate

Comunismo Primitivo, Escravismo, Feudalismo, Capitalismo,


Socialismo. Estágios de uma evolução histórica positiva, invariante,
quase que externa à ação do homem, universal e, sobretudo, repro-
dutível em todas as sociedades. Marx e Engels propuseram-nos como
chaves de compreensão da realidade histórica concreta, mas nunca
afirmaram sua rigidez ou inexorabilidade. As transformações ocorridas
no pensamento marxista mundial, decorrentes da ascensão de Stalin
e dos últimos momentos da Terceira Internacional, principalmente
naquele campo que se convencionou chamar de “marxismo sovié-
tico”, conduziram a uma compreensão positivista da teoria crítica
propugnada pioneiramente por Marx. Paralelamente a este processo,
desenvolveram-se correntes alternativas ao dogmatismo do marxismo
soviético. A influência do marxismo não-ortodoxo sobre a Escola de
Cambridge a partir da década de 1920, suas marcas deixadas no pen-
samento de decanos da economia mundial, como Piero Sraffa e Joan
Robinson, e, principalmente, no mesmo lugar e momento intelectual,
a interpretação de Maurice Dobb, na segunda metade da década de
1940, para o fenômeno da transição histórica dos modos de produ-
ção – especificamente falando, do modo de produção feudal para o
capitalista – serão nosso ponto inicial.
O grande debate que se inicia a partir da interpretação de Dobb
traria à tona novamente temas e abordagens que, ao seu tempo, pode-
riam ser considerados heréticos pelo “marxismo oficial”.1 A profunda
independência, altivez e criatividade manifestado por uma fração do
mundo acadêmico anglo-saxônico no que tange ao desenvolvimento
de um pensamento em bases marxistas ficariam sacramentadas com
a publicação de A Evolução do Capitalismo, em 1946.
Este, no entanto, não era um momento em que idéias dissonan-
tes seriam facilmente aceitas e discutidas por toda a comunidade de
pensadores marxistas ao redor do mundo. A revolução proletário-
camponesa de 1917 havia dado origem ao primeiro Estado nacional
da História a invocar os princípios de Marx e Engels como doutrina
de reformulação social, política e econômica. Tornando-se a União
Sovié­tica um verdadeiro farol da revolução proletária mundial, tendo
em vista que se concretizava na primeira experiência de tomada do

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Introdução

poder e construção de uma nova ordem duradoura pela classe operá-


ria e pelo campesinato, tal influência não poderia deixar de escapar
em direção ao pensamento científico, tão logo começasse a fase de
construção do Estado burocrático.
Pelas características da sociedade russa pré-revolucionária, o
marxismo encontrou campo de expansão somente em uma minoria da
população empregada na indústria moderna (de pequenas proporções
sob o czarismo) e em uma elite intelectual. Logo, a idéia de um partido
de quadros, que deveria levar ao proletariado em geral a boa nova
revolucionária, torna-se um fato. Mesmo que Lenin tenha considera-
do que sua abordagem teórica da prática revolucionária poderia ser
contestada e revista diante das evidências empíricas que se apresen-
tassem, a posterior evolução da sociedade soviética e a construção
da ordem política acabaram por solidificar tais concepções numa
verdadeira moldura dogmática, aniquilando o impulso transformador
e crítico que havia sido legado pelo próprio pensamento de Marx. Tal
fato expressava os problemas reais que envolveram a relação entre
uma teoria científica que tinha em seu fim, sobretudo, uma dimen-
são eminentemente prática – a própria transformação social – e as
alternativas históricas concretas tais como se apresentaram e foram
percebidas pelos edificadores do Estado soviético.
Tendo sido tornado, portanto, a doutrina oficial do Estado e
do partido, e certamente por isso fossilizado, o marxismo é imposto
de modo a enjaular a totalidade da sociedade, incluindo aí a própria
arte, que ganhava temas e representações próprios, e a ciência, cujo
dinamismo fora suprimido, tornando-se um elemento de legitimação
da nova ordem. Assim como Marx lembrava que a ciência burguesa –
especialmente a Economia – era fiel serva dos interesses de Estado da
classe que legitimava, o Estado soviético buscou também, por meio
de sua “nova ciência”, tornar verdadeiramente absoluta e natural a
direção que trilhava perante a sociedade, sepultando o próprio pen-
samento científico enquanto tal. Se por muitas vezes tal apropriação
da ciência como elemento de legitimação da sociedade no regime
soviético possa ter conduzido a um conflito direto com a classe que
deveria representar – o operariado e o campesinato – isso nos leva-
ria a discutir a própria natureza do Estado na União Soviética, o que
extrapola em muito os limites desse estudo.
Aquela contribuição que Marx buscou trazer para o desenvolvi-
mento de uma teoria crítica não foi aperfeiçoada, mas sim desprestigiada

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na medida em que foi incorporada a uma visão de mundo absolutizada
e apriorística. O dogmatismo do marxismo soviético sucumbiria, como
lembra Fetscher, à própria superação das estruturas políticas e sociais
burocráticas a que este pensamento servia (FETSCHER, 1988, p. 245).
Dessa forma pareceu ocorrer quando Marx flertou com Maquiavel: as
razões de Estado suprimiram o livre pensamento. Não cabe aqui uma
condenação ou absolvição, e sim a compreensão.
Cabe igualmente lembrar, assim como o fez Perry Anderson,
em uma série de palestras publicadas em português sob o título
sugestivo A Crise da Crise do Marxismo2 (ANDERSON, 1987), que a
grande distinção do materialismo histórico enquanto teoria crítica
está indiscutivelmente no seu caráter intrínseco de autocrítica. Em
sua própria dinâmica estaria a idéia de, além de reivindicar a cons-
trução de uma teoria da história, permitir a compreensão histórica da
própria teoria (portanto, do próprio marxismo), e compreender que a
formulação do conhecimento se efetua pela praxis, ou seja, nunca de
um modo desconexo do próprio desenvolvimento social. Um “marxis-
mo do marxismo”, como afirma Anderson, já estava configurado no
pensamento de Marx e Engels desde seus tempos mais primordiais,
tendo em vista que condicionaram seus próprios avanços em termos
de compreensão da realidade social à erupção das contradições de
classe da sociedade capitalista. As revoluções proletárias estariam
constantemente reavaliando seus avanços, parecendo retroceder
de um ponto já conquistado para uma situação instável, criticando
impiedosamente suas falhas, mesmo que, com isso, desse armas para
a reorganização do inimigo. “Tal concepção não envolvia nenhum
elemento de positividade complacente – como se a verdade, a partir
de então, estivesse garantida pelo tempo, o Ser pelo Devir, e sua
doutrina imune a erros graças à simples imersão na transformação”
(ANDERSON, 1987, p. 14). Não espanta, portanto, que a esterilidade
do marxismo soviético sob a hegemonia stalinista tenha vindo da
violação da própria teoria marxista.
Em oposição a esta versão objetivista, em sua vertente soviética,
surge, a partir das obras de Antonio Gramsci, György Lukács e Karl
Korsch, na década de 1920, portanto contemporaneamente à consoli-
dação do dogmatismo na URSS, a corrente do materialismo histórico
que ficaria conhecida posteriormente como Marxismo Ocidental. O
objetivo de tal corrente era oferecer uma alternativa crítica ao status
quo da teoria ditado por Moscou, neste processo deslocando a aten-

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Introdução

ção de suas análises da economia política e do Estado para questões


ligadas à cultura, artes e filosofia. Esses autores propuseram uma
releitura da obra de Marx, privilegiando a subjetividade e a questão
da consciência de classe na compreensão histórica das sociedades,
rompendo com um marxismo tradicional (no qual podemos incluir
de Kautsky a Stalin) que se definia como teoria materialista positiva
formuladora de leis de desenvolvimento. Entenderam ser o estatuto
epistemológico do marxismo problemático, na medida em que con-
testavam sua validade como uma ciência universal da história e da
natureza; concordavam que tais concepções aproximavam-no do
positivismo, reduzindo uma teoria social a uma ciência natural, não
dando margem, portanto, a uma concepção que parta da ação do
sujeito histórico e da consciência de classe do mesmo. A “dialética
da natureza” que Engels legitimara, principalmente após a morte de
Marx, defendendo a extensão do raciocínio materialista dialético para
além dos limites da história e da cultura, tocando o funcionamento do
mundo natural, dava bases para uma definição de dialética como lei
universal, apropriada ao marxismo ortodoxo. A vertente “ocidental”
rejeitava tais concepções.
O marxismo não se esgotaria na descoberta de novas leis de
desenvolvimento social, devendo comportar igualmente a crítica e a
luta intelectual contra as concepções burguesas da sociedade. Sua luta
deveria ser justamente a desconstrução da cultura burguesa, e para tal
lançaram mão dos conceitos de falsa consciência e hegemonia cultural,
por exemplo, além de atribuírem ao intelectual um papel fundamental
na preservação ou revolução das sociedades. Visões mais utópicas ob-
servaram ser o pensamento de Marx não somente uma contribuição à
economia política, mas sua crítica e superação; Lukács chegou a pensar
no marxismo como uma teoria destinada a extinguir a economia política,
entendendo que suas categorias expressariam uma dominação econô-
mica que deveria ser aniquilada, no intuito de emancipar o homem. A
matriz hegeliana de Marx é enfatizada (e, a meu ver, superestimada), e
em grande parte, o marxismo ocidental formou-se tendo como base o
idealismo alemão, afirmando-se preponderantemente onde esta influên­
cia permaneceu mais viva (JACOBY, 1988, p. 249-252).
Apesar das acusações de que o marxismo ocidental teria se
afastado por demais do marxismo clássico, principalmente por sua
indiferença para com o materialismo e para com a economia política,
denunciados como idealismo, Jacoby argumenta que até mesmo

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Marx havia se distanciado muitas vezes dos assuntos do dia-a-dia
(JACOBY, 1988, p. 252). Anderson, por sua vez, apresenta-nos idéias
mais interessantes no que tange aos próprios limites do marxismo
ocidental, e é sobre elas que edificaremos nossa argumentação acerca
da importância das discussões iniciadas por Maurice Dobb.

A teoria marxista, aplicada à compreensão do mundo, sempre


pretendeu uma unidade assintótica com uma prática popular
capaz de transformá-la. Portanto, a trajetória da teoria tem sido
sempre determinada primariamente pelo destino desta prática.
Inevitavelmente então, qualquer comentário sobre o marxismo
da década passada será antes de tudo uma história política de
seu ambiente externo. (ANDERSON, 1987, p. 17)

Reiterando nosso comentário acerca dos reflexos da prática


sobre a teoria marxista, devido à sua natureza, aproveitemos a indi-
cação de Anderson para compreendermos de que maneira as vitórias
e derrotas no movimento proletário internacional imprimiram suas
marcas no desenvolvimento da teoria.
Após a vitória e o progressivo isolamento da Revolução Russa,
lançada aos seus próprios desafios de sobrevivência, e o fracasso
do movimento operário nas sociedades de capitalismo avançado,
conformar-se-iam a silhueta e a essência do marxismo ocidental.
As décadas de 1920 e 1930, com a ascensão do fascismo, a derrota
das frentes populares e a dispersão dos movimentos de resistência à
ameaça do Eixo em 1945-1946, impotentes para transformar seu pres-
tígio obtido em força política que viesse a ameaçar a antiga ordem
vigente, marcam o retrocesso das conquistas proletárias em direção
à revolução. Como saldo desta situação, temos, como uma das verten-
tes, a já citada fossilização do marxismo soviético na empreitada de
legitimar o status quo pós-revolucionário. Por outro lado, sociedades
como a alemã, a italiana e a francesa, que conservaram um potencial
de subversão da ordem capitalista bastante efervescente, mas com
poucas condições de realmente subjugar o poder do Capital, tiveram
em seu seio o desenvolvimento de uma nova corrente intelectual, que
ficaria claramente marcada por tais reveses. As sucessivas derrotas
de um arredio movimento operário nesses países conduziram a for-
mação de um pensamento marxista cujos laços com a luta popular
pelo socialismo estavam praticamente cortados. Ou seja, entre a

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Introdução

teoria revolucionária e a efetiva prática de renovação da sociedade por


meio da revolução havia, mais do que nunca, um fosso intransponível,
principalmente a partir do momento em que o locus por excelência do
debate marxista transplantara-se do sindicato e do partido para as
universidades e instituições de pesquisa.3 A partir da Escola de Frank-
furt, em finais dos anos 1920, formava-se o que viria a ser chamado
de “marxismo ocidental”, com suas características distintivas, dentre
as principais, o redirecionar das lentes:

Análises econômicas importantes do capitalismo, dentro de


um arcabouço marxista, sumiram aos poucos em larga escala
depois da Grande Depressão; o esquadrinhamento político do
Estado burguês decresceu desde o silenciamento de Gramsci;
a discussão estratégica das vias para um socialismo factível de-
sapareceu quase que inteiramente. (ANDERSON, 1987, p. 19)

As condições concretas do movimento operário nas socieda-


des que mais acolhedoramente aceitaram (e criaram) o marxismo
ocidental conduziam a um arrefecimento do debate sobre a economia
política – vide as próprias opiniões pioneiras de Lukács a respeito do
mesmo assunto – dando lugar à afirmação de um discurso tipicamente
filosófico, mais voltado para questões epistemológicas sobre o próprio
marxismo do que para estudos teóricos do desenvolvimento social.
Foi o momento de contato com outras correntes não-marxistas, de
síntese e busca de influências, fosse de uma herança teórica anterior
a Marx, ou mesmo posterior a ele, como parece ser o caso do contato
entre Sartre e as idéias de Heidegger, Gramsci e Croce, Lukács e Weber,
Althusser e Lacan. Esta foi ocasião importante para o debate sobre
temas tipicamente superestruturais, dando margem ao pioneirismo
dos estudos dos processos culturais, da arte e da ideologia, chegando
aos excessos de uma hipertrofia da estética nos momentos finais de sua
existência. Apesar de tudo, lembra Anderson, o marxismo ocidental
jamais capitulou diante da ordem estabelecida; tendo em vista que
os partidos comunistas se colocavam como adversários do capital e
ao mesmo tempo afirmavam o dogmatismo stalinista, eliminando em
grande parte as tendências ao debate e à divergência, parte de seus
principais pensadores permaneceu filiada formalmente aos partidos,
mas desenvolvendo uma crítica não-dogmática e, inclusive, de opo-
sição aos mesmos (ANDERSON, 1987, p. 18-21).

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Em que mãos ficava então a economia política marxista num
momento de refluxo desses estudos no cenário do pensamento euro-
peu? Os tempos dos ricos debates da Segunda Internacional, em que
Lenin e Rosa Luxemburgo definiam a natureza do capitalismo em sua
fase monopolista, pareciam realmente acabados e pertencentes a um
passado de riqueza intelectual. O Ocidente deveria contentar-se neste
momento, grosso modo, com as interpretações do marxismo soviético,
que, principalmente sob a vigência de Stalin, estabelecia a validade de
conceitos e teorias não pelo debate, mas por decreto. A “existência”
do modo de produção asiático, por exemplo, esteve condicionada ao
desfecho de uma calorosa luta no interior da academia soviética que
terminou pela refutação de sua validade, em 1931. Tal fato, a propósito,
serve como reforço à argumentação de Anderson acerca da ligação
entre os destinos da teoria marxista e a história política em seu en-
torno. Isto porque o modo de produção asiático serviu como fonte
de grandes transtornos para as mentes demasiadamente dogmáticas
desde sua concepção.
O debate acerca de sua natureza suscitou dúvidas, em primei-
ra mão, a respeito da aplicação de categorias da economia política
marxista a realidades não-européias. Mais importante ainda, se fosse
defendida a especificidade de uma “sociedade asiática”, de tendências
notadamente estáticas em seu desenvolvimento, senhora de um modo
de produção cuja propriedade privada da terra é ausente (sendo o
Estado o proprietário), perpetuadora de uma sociedade camponesa
auto-suficiente que dependia de um sistema de obras públicas, de irri-
gação e de um Estado burocrático centralizado para sobreviver, estaria
rompida a teleologia do dogmatismo marxista, dos cinco estágios de
desenvolvimento inexoráveis para quaisquer sociedades existentes
sobre o planeta. Tendo sido a Rússia considerada uma sociedade
“semi-asiática” por Marx e Engels, este problema representou um
papel importante nos debates sobre a estratégia revolucionária a ser
seguida antes de 1917, principalmente no que diz respeito à comuna
russa, e se esta poderia ou não servir como base para um futuro
socialismo. O modo de produção asiático permitia colocar frente a
frente, portanto, concepções deterministas unilineares e concepções
multilineares acerca do desenvolvimento histórico. Este conceito po-
deria servir para legitimar a idéia de que o marxismo não pressupõe
uma evolução mecanicista, em que leis históricas determinariam quais
estágios deveriam ser cumpridos até uma etapa final.

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Introdução

A Conferência de Leningrado de 1931, além de confirmar como


“verdade” os cinco estágios de desenvolvimento, desconsidera a exis-
tência de um modo de produção asiático como categoria explicativa
do desenvolvimento histórico das sociedades asiáticas, devendo, a
partir de então, serem classificadas como detentoras de um modo de
produção feudal ou um modo de produção escravista. As conclusões
da conferência foram plenamente fortalecidas pela adesão de Stalin
a elas. Estipulou-se posteriormente ao pós-guerra (com os estudos
de Wittfogel, baseados em Weber, sobre a sociedade chinesa) que
a liderança comunista russa teria aniquilado o conceito de modo de
produção asiático tendo em vista que o mesmo poderia dar margem
à idéia de que a Rússia stalinista guardava continuidades constrange-
doras com a Rússia czarista; como o conceito comportaria a noção de
uma classe dominante que controlava administrativamente mas não
deteria a propriedade dos meios de produção, ficaria configurada a
permanência, somente tendo ocorrido uma substituição da burocracia
czarista tradicional pela burocracia do partido comunista (TURNER,
1988, p. 348-351).
Sabemos que, empiricamente, tais afirmações contavam com
pouca sustentação, e, justamente por isso, a deslegitimação do modo
de produção asiático não ocorria pela superioridade explicativa da
teoria unilinear adversária. Ocorria, sim, como fruto de manobras e
interesses políticos, que visavam preservar o stalinismo de ser subme-
tido a uma possível crítica a partir do próprio aparato teórico marxista;
a retomada do interesse pelo estudo desse modo de produção, com a
desestalinização, é um elemento que nos leva nessa direção. Eviden-
temente nenhuma conclusão no âmbito das ciências humanas, tendo
em vista, de modo geral, seu próprio estatuto epistemológico, poderá
estar isolada da dinâmica da sociedade na qual está inserida, exceto
se pensarmos uma ciência das sociedades em termos de um positi-
vismo objetivista. No entanto, o que se objetiva apontar é o tamanho
grau de comprometimento em que se encontravam as conclusões do
marxismo soviético em relação aos interesses do Estado.
Em linhas gerais, portanto, tal era o estado de coisas no cenário
da teoria marxista entre as décadas de 1930 e 1960. Uma alternativa
“crítica” ao dogmatismo soviético poderia ser encontrada no marxismo
ocidental, na medida em que era favorável, entre outras coisas, a uma
crítica interna ao próprio marxismo, além de ressaltar a ação do sujeito
histórico concreto e da luta de classes como motores da História. No

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Daniel de Pinho Barreiros


entanto, por questões próprias ao desenvolvimento das sociedades
que deram origem ao marxismo ocidental, acabara abandonando os
estudos sistemáticos sobre a economia política, voltando-se para te-
mas como cultura, lingüística e as questões de método, abstendo-se
em larga medida de discutir questões que pudessem contribuir para
a definição de uma estratégia revolucionária.
A virada para a década de 70 do século XX, com as revoltas
de massa no centro do capitalismo mundial – a Europa ocidental – o
levante do movimento estudantil e a insurgência das massas traba-
lhadoras, marcaria, segundo Anderson, o esgotamento de uma tradi-
ção que, apesar de formidavelmente produtiva, vinha se mostrando
estéril na formulação de diagnósticos e propostas que respondessem
às necessidades do movimento operário em seu momento. A grande
tradição marxista ocidental dava lugar a um outro tipo de interpreta-
ção que se orientava precisamente na direção de questões de ordem
econômica, política ou social (ANDERSON, 1987, p. 24-25). Um novo
gosto pelo concreto passava a emergir ao longo da segunda metade
dos anos 1970 com estudos sobre questões econômicas e sobre a na-
tureza de classes do Estado, através da obra de Ernst Mandel, Harry
Braverman, Ralph Miliband, Nicos Poulantzas, Paul Baran e Paul Swe-
ezy. “Com trabalhos como estes, a discussão marxista do capitalismo
contemporâneo uma vez mais alcançou, e em alguns aspectos vitais
ultrapassou, o nível da época clássica de Luxemburgo e Hilferding”
(ANDERSON, 1987, p. 25).
O surgimento de um novo momento de mobilização popular,
alentando o marxismo enquanto uma concepção de revolução so-
cial, e de uma renovação intelectual nos seus temas e abordagens,
foram o culminar de um profundo desgaste do mito e das idéias que
circundavam a figura do “líder do proletariado mundial”; o impacto
por ele causado nas concepções deterministas da realidade social foi
significativo.4 A “crise do marxismo ocidental”, portanto, dizia res-
peito não ao pensamento marxista como um todo, mas à sua vertente
desenvolvida basicamente na Europa latina, que era desbancada nos
anos 1970 pelo dinamismo das interpretações próprias do mundo
anglo-saxônico.
Para o debate que pretendemos situar, é justamente esta confir-
mação do deslocamento do centro dinâmico geográfico da produção
marxista na direção dos países anglo-saxônicos que nos interessa em
primeira mão. Tal deslocamento ocorre, sobretudo, por intermédio da

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Introdução

intensificação da produção historiográfica marxista, por muito tempo


pouco considerada no panorama das idéias socialistas, que ganhou
escopo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Afirma Anderson:

Para alguns de minha geração, formados numa época em que a


cultura britânica parecia completamente destituída de qualquer
impulso marxista endógeno significativo – a retardatária da
Europa, como constantemente denunciávamos, sob risco de
acusação de “niilismo nacional” –, essa foi uma metamorfose
realmente espantosa. (1987, p. 29)

O caminho de afirmação do pensamento marxista anglo-


saxônico por meio dos estudos históricos não foi, todavia, nenhuma
novidade. O ano de 1946 é um momento chave para o início desse
processo, tendo em vista ser este o ano de publicação de Studies in
Development of Capitalism (A Evolução do Capitalismo) de Maurice
Dobb, economista de uma geração anterior e com formação distinta
daqueles que promoveriam de fato o sepultamento do marxismo oci-
dental, que alcançou maior destaque com este estudo sobre história
econômica do que com qualquer outro sobre a economia política
marxista. No entanto, foram pensadores mais jovens, reunidos no
Grupo de Historiadores do Partido Comunista Inglês, ligados a Dobb,
justamente através dele, que em fins dos anos 1940 e anos 1950
transformariam as interpretações a respeito da história econômica
mundial e européia, tendo publicado seus trabalhos nos anos 1960 e
alcançado o auge nos anos 1970 (justamente o momento em que se
situa a ruptura com o marxismo ocidental). Incluídos na relação dos
jovens pensadores apontados por Anderson, estão Edward Thomp-
son, Victor G. Kiernan, George Rudé, Eric J. Hobsbawm, Christopher
Hill e Rodney Hilton, estes três últimos protagonistas, juntamente
com Maurice Dobb, dos debates sobre a transição do feudalismo
para o capitalismo.
Não somente o cenário inglês é contemplado nessa nova safra
de marxistas, mas também o norte-americano. Da mesma forma, a
historiografia tem sido o setor mais dinâmico, contando com os no-
mes de Eugene Genovese e Eric Foner, além da sociologia histórica
de Immanuel Wallerstein, Theda Skocpol e da economia política de
James O’ Connor, continuador da obra de Harry Magdoff e de Paul M.
Sweezy, este último representando um dos mais importantes interlo-

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Daniel de Pinho Barreiros


cutores dos diálogos sobre a transição. Coube, talvez paradoxalmente,
às sociedades que se mantiveram a uma certa distância do turbilhão
do movimento operário e das revoluções sociais – Estados Unidos e
Inglaterra – iniciarem uma calorosa discussão não-dogmática sobre
temas clássicos da crítica da economia política.
Decorrentes do processo de desestalinização, a percepção da
necessidade de reformas no socialismo e um degelo teórico que permi-
tiu a retomada de questões há muito sepultadas foram inseridos num
momento intelectual que coincidia com a ruptura do monolitismo da
liderança soviética sobre o movimento operário internacional, permi-
tindo a muitos partidos comunistas discutirem questões próprias às
suas realidades nacionais, abrindo caminho para o abandono de uma
estratégia única e viabilizando debates sobre a questão da transição
para o socialismo partindo do conhecimento da história e da estrutura
de cada sociedade em particular.
No que tange ao assunto deste livro, ressalta-se o impacto dos
acontecimentos que traziam à tona o conjunto de sociedades impre-
cisamente compreendidas sob o termo “terceiro mundo”; parte das
atenções desviavam-se para os movimentos de libertação de povos
da Ásia e da África e para as discussões envolvendo o subdesenvolvi-
mento na América Latina. Além disso, deve-se lembrar que muitos dos
grupos dirigentes de novos regimes que haviam emergido de um pro-
cesso de descolonização interessavam-se pela alternativa marxista de
modernização de suas sociedades, tendo em vista que, depois de 1917,
os regimes comunistas do mundo haviam sido implantados em socie-
dades eminentemente pré-burguesas, ou com a preservação bastante
intensa de características desse tipo. As possibilidades de revoluções
sociais nos ditos “países atrasados” abria um flanco que teria notória
produtividade nas décadas de 1950-1970, que seriam os estudos sobre
a natureza das relações entre países dominantes e subordinados no
sistema econômico internacional (HOBSBAWM, 1989, p. 15-25).
Dessa forma, em consonância com Hobsbawm, compreendemos
a produção historiográfica sobre a transição do feudalismo para o
capitalismo, empreendida pelos importantes expoentes do marxismo
contemporâneo citados, como um momento fundamental da conjun-
ção entre uma realidade histórica específica – a presença de uma
maior diferenciação no cenário politico-econômico mundial com o
surgimento ou fortalecimento de Estados nacionais em luta pela sua
modernização e desenvolvimento – e os estudos marxistas.5

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Introdução

Um exemplo significativo dessa interação entre experiência


terceiro-mundista e teoria marxista se pode encontrar no cam-
po da historiografia e pode ser citado a título de ilustração. A
natureza da transição do feudalismo para o capitalismo havia
preocupado longamente os estudiosos marxistas, não sem in-
tervenção por parte de políticos marxistas, uma vez que, pelo
menos na Rússia, apresentava questões de interesse atual [...]
Mas, sem entrar na análise de tais discussões, basta recordar
a ambiciosa tentativa de Maurice Dobb no sentido de fornecer
delas um exame sistemático num volume que, com modéstia,
chamou de Studies in the Development of Capitalism (1946) e que
levou a um vivo debate internacional, sobretudo nos anos 50.
(HOBSBAWM, 1989, p. 23-24)

Existe uma unidade histórica e teórica entre a temática da


superação do modo de produção feudal/construção do modo de
produção capitalista na Europa e os estudos sobre o subdesenvol-
vimento na periferia (em especial a latino-americana). Em primeiro
lugar, como já comentado, a primeira ganha um novo impulso decor-
rente do movimento concreto de emergência do “terceiro mundo”.
Em segundo lugar, uma importante vertente de estudos sobre o
subdesenvolvimento que surge no final dos anos 1960 (aquela que
tem como expoentes mais ilustres Andrew Gunder Frank e Immanuel
Wallerstein) é tributária do debate engendrado pela publicação de A
Evolução do Capitalismo de Dobb; esta é considerada por Hobsbawm
como uma retomada do tema da gênese histórica do capitalismo em
bases distintas, sendo ligada aparentemente à posição sweeziana no
debate inicial e, além disso, articulada em torno da Monthly Review,
revista da qual Sweezy era editor-chefe (HOBSBAWM, 1989, p. 24-25).
Por fim, em linhas bastante gerais, a análise da transição na Europa e
as interpretações sobre o fenômeno do subdesenvolvimento tratam,
com cortes cronológicos e espaciais distintos, do desenvolvimento
histórico do capitalismo.
O esforço intelectual envolvido nas discussões marcou, efe-
tivamente, o processo de consolidação do mundo anglo-saxônico
como expoente hegemônico do marxismo, e mais ainda, dos estudos
históricos baseados na obra de Marx e seus seguidores. O ápice des-
te processo, que Anderson situou na década de 1970, foi o resultado
de mais de 20 anos de discussões envolvendo, entre outros temas, a

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questão da transição, que fora sumariamente eliminada da pauta pelo
marxismo soviético, e de seu dogmatismo das fases invariáveis; uma
vez que estas etapas eram inexoráveis e comuns a todo o tipo de so-
ciedade, dispensavam qualquer discussão acerca das pré-condições
e dos diferentes resultados de uma mudança de modo de produção
efetivada em bases sociais distintas.6
A recepção de A Evolução do Capitalismo nos anos seguintes à
sua publicação não fora das mais estimulantes. Rodney Hilton, histo-
riador, um dos participantes do debate, escreveria em sua introdução
à coletânea de artigos Transição do Feudalismo para o Capitalismo7
(HILTON, 1989, p. 9-30) que os comentários sobre a obra nas revis-
tas especializadas da Inglaterra haviam sido de pequeno interesse,
excetuando-se, certamente, no final da década de 1940, as opiniões
de Karl Polanyi e de R. H. Tawney, este último uma das principais re-
ferências de Dobb no mesmo trabalho. Tendo havido algum interesse
pela temática e pela abordagem, este pouco existiu no que tange a uma
discussão dos problemas teóricos do próprio marxismo. O diagnóstico
de Hilton, em 1976, para tal fato é preciso: a aceitação do pensamento
de Marx pelos historiadores britânicos nos anos 1950 seria muito pe-
quena, tendo os mesmos uma formação que não comportaria análises
explicativas sobre “agentes motores” de transformações históricas, e
sim abordagens pretensamente objetivas de acontecimentos de curto
prazo (o que indica uma forte influência positivista).

Os historiadores acadêmicos britânicos não gostam do marxis-


mo. De qualquer modo, a década que se seguiu ao fim da guerra
não era a mais propícia para um debate livre de preconceitos
sobre uma interpretação marxista do capitalismo. (HILTON,
1989, p. 10)

Somando-se ao quadro do desinteresse dos historiadores ingle-


ses, Hilton não perde a oportunidade de ressaltar a complexidade de se
tratar de análises marxistas no contexto histórico que se instaura no
pós-guerra. Em meados da década de 1970, Theo Santiago, apresentan-
do uma coletânea de artigos sobre a construção do modo de produção
capitalista por ele organizada, aponta igualmente os percalços por que
passa uma análise científica do fenômeno da transição do feudalismo
para o capitalismo tecendo considerações sobre a situação do conjunto
dos estudos sobre o tema realizados até aquele momento:

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26
Introdução

E então nos deparamos com o estado atual dos estudos realiza-


dos: ou são determinados pelo empirismo, ou por um evolucio-
nismo mecanicista que já nos assegura de antemão toda a história
passada, presente e futura. A transição (a questão da constituição
e da articulação de um modo de produção determinado com
outros) aparece então como um vazio no quadro dos conceitos
fundamentais da ciência da história, vazio que é preenchido por
postulações ideológicas: ou a transição não existe, porque a histó-
ria é um “todo” que não permite desarticulações, ou este conceito
não necessita ser construído porque a ordem de sucessão das
estruturas já nos está assegurada. (SANTIAGO, 1975, p. 9)

Ou seja, era entre abordagens empiricistas não-marxistas (à


moda dos historiadores ingleses dos anos 1950 aos quais refere-se
Hilton) e o determinismo mecanicista (o que nos remete de imediato
aos trabalhos formulados sob influência do “marxismo soviético”) que
patinavam os estudos sobre a transição até a publicação de A Evolu-
ção do Capitalismo e a condução do debate pelos demais autores, que
prosseguiram-no em bases teóricas eminentemente novas e renova-
doras (como bem lembrou Anderson, em comentário já apresentado).
Com isso, não encontrando interlocutores no contexto acadêmico
britânico, Dobb somente obteria uma resposta às suas provocações
do outro lado do Atlântico, do igualmente renovado cenário intelectual
norte-americano, no qual Paul Sweezy se apresentava como primeiro
crítico de peso às proposições realizadas pelo marxista inglês.
A barreira que confinava as principais escolas e polêmicas do
marxismo ocidental aos seus contextos nacionais, inicialmente fratu-
rada pelo ataque de Thompson contra Althusser em seu Miséria da
Teoria, havia realmente se desmanchado no ar, dando margem para a
superação de um silêncio e ignorância constrangedores no que tange
a um diálogo de perspectivas internacionais (e também, por que não
dizer, internacionalistas).

De modo semelhante, a discussão da teoria do valor na eco-


nomia marxista não possuía mais fronteiras nacionais, mesmo
provisórias: os circuitos argumentativos movem-se livremente
do Japão para a Bélgica, do Canadá para a Itália, da Inglaterra
para a Alemanha ou Estados Unidos, como provam recentes
simpósios. (ANDERSON, 1987, p. 31-32)

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Daniel de Pinho Barreiros


Mas a teoria do valor havia apenas sido agraciada por uma
perspectiva de debate internacional: esta pode ser considerada como
um primeiro qualificador dos diálogos sobre a transição do feudalismo
para o capitalismo, dadas as diferentes nacionalidades dos debatedo-
res, que via de regra buscaram contribuir através de uma análise que
buscasse a experiência histórica de suas respectivas sociedades.8
Em suma, nesta introdução foram apresentadas as principais
características que situam o debate em seu momento histórico e so-
cial. Passaremos agora a pontuar as principais questões apresentadas
pelos autores, questões que definiram suas concepções de construção
do modo de produção capitalista.

Notas
1
É bem verdade que, como lembra Iring Fetscher, Cambridge fora responsável pela
preservação, durante várias décadas, de um pensamento crítico sobre a economia
política em bases marxistas, partindo de um referencial neo-ricardiano, que, no
caso específico de nossa discussão, interessa apontar para o pensamento de Mau-
rice Dobb. Portanto, a interpretação da transição do feudalismo para o capitalismo
trazida por este economista inglês não inovava no sentido de reinaugurar o debate
marxista em termos não-ortodoxos, mas sim, na discussão acerca dos fenômenos
incorporados à idéia de transição entre modos de produção, sublimada pelo mar-
xismo soviético sob influência do stalinismo (FETSCHER, 1988, p. 243-254).
2
Trata-se da publicação de uma série de palestras proferidas a convite da Universida-
de da Califórnia, publicadas originalmente em 1983 sob o título In the Tracks of the
Historical Materialism. Nelas, Perry Anderson faz um balanço do desenvolvimento
do Materialismo Histórico do pós-Segunda Grande Guerra, reavaliando prognósticos
realizados em outra obra, Considerações sobre o Marxismo Ocidental.
3
A opinião de Anderson no que diz respeito à relação entre a prática revolucionária
e o pensamento acadêmico me parece totalmente descabida. Delegar ao partido
e ao sindicato a capacidade, por excelência, de produção de um pensamento e
prática de transformação social pode vir a sublimar uma tradição acadêmica de
formulação de estratégias e interpretações sobre as sociedades. Soa-me impossí-
vel uma ação revolucionária que não tenha como ponto de partida a compreensão
científica daquilo que se pretenda transformar. Aliás, Anderson é um dos que
também enfatiza a necessidade da estratégia, fundamentada em dados substan-
tivos, para a ação transformadora. Estando de acordo com o autor nesse ponto,
não me parece, entretanto, que no caso brasileiro os partidos tenham sido mais
eficazes na compreensão do funcionamento da sociedade que a universidade.
Ainda que teses demiúrgicas tenham surgido de membros do Partido Comu-
nista Brasileiro, como é o caso de Caio Prado Jr., entre outros, a parte mais
substancial do conhecimento sobre a sociedade brasileira que acumulamos
até este início de século XXI foi produzida em bancos universitários. Mesmo
que parte também significativa deste saber tenha advindo de quadros comuns
ao partido e à academia, ainda assim o papel da universidade ganha relevo.
No caso inglês, Hobsbawm e Thompson estiveram ligados ao Partido e à Universida-
de. Se é possível hoje traçar-se um quadro estrutural estratégico do capitalismo no
Brasil, com suas peculiaridades, isto se deve ao esforço de gerações de acadêmicos
nas últimas décadas. Não pretendo com isso reavivar concepções babovistas de
transformação social; não se espera que uma casta “ilustrada” tente, por si, trans-

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formar toda uma sociedade. Entretanto, não se pode esquecer a função histórica da
Introdução

universidade pública como abrigo dos intelectuais orgânicos da classe trabalhadora;


mesmo que nos dias de hoje uma parte significativa desses intelectuais (e das ge-
rações que a eles sucedem) tenha renunciado ao seu papel político-estratégico, no
caso dos historiadores, plantando-se nas terras salgadas da História Cultural e de
suas derivadas, o ofício acadêmico do cientista social, do historiador e do econo-
mista (esse, o mais problemático) ainda desempenha peça-chave neste processo.
Uma prova disso está na bibliografia do presente estudo. É louvável a sinceridade
de Ellen Meiksins Wood, militante e acadêmica, ao afirmar, acerca de A Origem
do Capitalismo: “O objetivo deste exercício é acadêmico e político [...] Pensar em
alternativas futuras ao capitalismo exige que exploremos concepções alternativas
de seu passado”. As palavras são encorajadoras, principalmente nestes tempos em
que muitos intelectuais escondem-se atrás de seus micro temas, acovardados diante
da possibilidade da polêmica (WOOD, 2001, p. 17).
4
Ainda assim, segundo V.G. Kiernan, na década de 1960, Glezermann, teórico sovié­
tico, defendia a possibilidade de um estágio de desenvolvimento ser saltado em
direção a um de maior evolução. Mesmo admitindo tal fato, nega a possibilidade
da violação das leis da história, afirmando que a ordem dos estágios é universal e
inalterável. Isso demonstra como o determinismo e o mecanicismo persistiram no
pensamento marxista soviético mesmo com as denúncias ligadas ao XX Congresso
do PCUS (KIERNAN, 1988, p. 137-138).
5
Mais uma vez lembramos a opinião de Perry Anderson no que diz respeito à inte-
gração entre a realidade político-econômica e o desenvolvimento do pensamento
marxista, já explicitado em outra ocasião neste capítulo.
6
Mesmo afirmando a fertilidade da renovação dos estudos marxistas empreendida
pelos pensadores anglo-saxônicos na década de 1970, ainda assim Anderson ressalta
que uma limitação do momento anterior não fora superada, que era a ausência de
formulações estratégicas para uma transição da democracia burguesa para uma
democracia socialista; ou seja, a renovação teórica não foi seguida de uma igual
renovação no tocante às alternativas concretas para a revolução, o que o leva a falar
de uma “miséria da estratégia”. Ao meu ver, a discussão da transição do feudalismo
para o capitalismo, que se aprumava em decorrência do impacto do “terceiro mun-
do” sobre o marxismo, tinha um caráter profundamente estratégico, tendo em vista
que buscava compreender justamente os mecanismos que levaram à formação da
sociedade capitalista no ocidente europeu (em especial na Inglaterra) e que a dife-
renciava do restante do mundo. É nesta direção que Hobsbawm parece apontar. De
qualquer maneira, esta é uma questão que extrapola os limites do presente estudo,
e seus resultados não influenciam no tratamento que buscamos para as discussões
sobre a transição (ANDERSON, 1987, p. 32; HOBSBAWM, 1989, p. 24-31).
7
Trata-se de uma famosa coletânea de artigos, publicada também pela editora Martins
Fontes, contendo a crítica de Paul Sweezy ao já citado trabalho de Dobb, bem como
as opiniões de vários autores acerca das posições de um e de outro economista.
8
Dentre os principais participantes das discussões, temos os ingleses Maurice Dobb,
Rodney Hilton, Eric Hobsbawm, o norte-americano Paul Sweezy, o japonês Kohachiro
Takahashi, os franceses Pierre Vilar e Charles Parain e o italiano Giuliano Procacci,
entre outros não menos importantes. Paul Sweezy realmente não tentou inserir o
capitalismo norte-americano nas discussões sobre a transição, tendo em vista que
permanecera estritamente preocupado em contra-argumentar Dobb tendo como
base sua proposta explicativa para o ocidente europeu medieval; poderia tê-lo feito,
mas para tal ênfase deveria ter caminhado num sentido ainda mais abstrato em busca
de discutir não a transição do feudalismo para o capitalismo especificamente, mas
o fenômeno da transição de sociedades pré-capitalistas para hegemonicamente
capitalistas. Já Takahashi, por exemplo, buscou contextualizar o fenômeno trazendo
as modificações decorrentes da reforma Meiji para seu país.

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista
contemporâneo

O ponto de partida de Dobb no esforço de situar seu pensamento


é definir justamente o que concebe como o termo “capitalismo”, e que
implicação sua escolha teórica terá no desenrolar de sua argumenta-
ção. Não tenta abordar o capitalismo como expressão de um espírito
empresarial nem tampouco como manifestação da disseminação das
trocas monetárias cujo objetivo é o lucro; conceitua-o, assim como o
fez inicialmente Marx, como um modo de produção específico (DOBB,
1986, p. 7). A multiplicidade de significados para um mesmo conceito
confere uma considerável dificuldade para o estabelecimento de um
trânsito entre as diversas matrizes teóricas.
As diferenciadas interpretações tiveram de superar em primeiro
lugar determinadas vozes que impunham limites ao próprio conceito
de capitalismo como uma realidade histórica concreta; da parte dos
economistas, vindas daqueles para os quais os fundamentos de seu pen-
samento tomam forma num âmbito que desconsidera fatores históricos
como definidores de um sistema econômico, e entre os historiadores,
daquela vertente que se baseia na idéia de que a História é formada por
um conjunto de acontecimentos tão variados, complexos e singulares
que não reconhece “quaisquer dessas categorias gerais formadoras da
tessitura da maioria das teorias de interpretação histórica e nega qual-
quer validade de linhas fronteiriças entre épocas históricas” (DOBB,
1986, p. 3). Em suma, da parte de teóricos que renunciam à História e
de historiadores que negam a Teoria, o capitalismo, quando muito, nada
mais seria do que um aspecto da vida humana que caracterizaria inúme-
ros períodos, sendo impossível a partir dele circunscrever um tipo de
organização social específica. Quando Santiago se referiu, no que tange
ao ambiente que circundava os debates sobre a transição, a estudos
empiricistas que viam a História como um “todo” sem descontinuidades
e Hilton a uma tradição historiográfica inglesa com ares objetivistas,
despreocupada com a análise das “forças motoras”, e dedicada ao estu-
do de períodos de curta duração, deparamo-nos com concepções que
o próprio Dobb afirmaria estarem vencidas pelo desenvolvimento da
historiografia econômica: “Hoje, após meio século de pesquisa intensa
na história econômica, tal atitude raras vezes é considerada sustentável
pelos historiadores econômicos, ainda que estes apresentem descon-
fianças quanto à origem do termo” (DOBB, 1986, p. 4).1

Livro.indb 29 16/10/2008 11:10:55


30
Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

Segundo Dobb, assumindo a existência histórica do capita-


lismo, ainda assim, tal condição não nos livraria de interpretações,
por exemplo, que o equiparam ao uso da técnica de modo a encurtar
tempos de produção. Da mesma forma, uma associação do fenômeno
do capitalismo ao sistema de empresa individual, regido por relações
contratuais, com liberdade dos agentes econômicos perante determi-
nadas restrições legais, seria diminuir a importância explicativa do
conceito, equiparando-o ao próprio laissez-faire. Outras experiências
de maior representatividade, como aquela empreendida, grosso modo,
por Werner Sombart e Max Weber, buscaram identificar o surgimento
do capitalismo a partir da formação de um “espírito” empreendedor
associado ao de racionalidade; este último autor em especial consta-
tava capitalismo em qualquer empreendimento que se voltasse para
prover as necessidades de um grupo e que fosse baseado num método
empresarial, sendo o espírito do capitalismo a atitude de busca pelo
lucro de um modo sistemático. Ou seja, o capitalismo em sua dimensão
econômica é a criação de um geist específico, um estado de espírito
que conduz os homens; o idealismo impregnado nesta concepção é
incapaz, entretanto, de explicar satisfatoriamente a partir de que bases
ocorreu o surgimento da própria ética capitalista anterior ao sistema
econômico (DOBB, 1986, p. 8-9).
Em afinidade com esta noção, algumas interpretações relaciona-
das ao legado deixado pela Escola Histórica Alemã acrescentariam ao
capitalismo a noção de uma economia monetária (em contraposição
a uma economia natural, típica do mundo medieval europeu) e da
presença de trocas de longa distância.

A tendência dos que assim concebem o termo é buscar as


origens do capitalismo nas primeiras invasões de transações
especificamente comerciais sobre os estreitos horizontes
econômicos e a suposta “economia natural” do mundo me-
dieval, e assinalar os principais estágios no crescimento do
capitalismo de acordo com estágios na ampliação do merca-
do ou com as formas variáveis de investimento e empresa
comercial às quais tal ampliação se ligava. (DOBB, 1986,
p. 7)

Tais categorias, grosso modo, apresentariam pouco valor para


a formulação de uma singularização histórica de uma sociedade e de

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Daniel de Pinho Barreiros


determinado fenômeno, tendo em vista que toda produção ao longo da
trajetória humana sobre o planeta, com exceção dos patamares mais
primitivos de progresso técnico, teria, nesses termos, uma dimensão
“capitalista” (DOBB, 1986, p. 5-7). Portanto, já nas primeiras páginas
de sua obra Dobb desfere um ataque às interpretações circulacionis-
tas, justamente estas que seriam a base para, posteriormente, Sweezy
realizar sua crítica.2

Tanto a concepção de Sombart do espírito capitalista quanto


uma concepção de capitalismo como sendo primariamente um
sistema comercial compartilham o defeito, em comum com as
concepções que focalizam a atenção no fato de uma inversão
lucrativa de dinheiro, de serem insuficientemente restritivas
para confinar o termo a qualquer época da História, e de pare-
cerem levar inexoravelmente à conclusão de que quase todos
os períodos da História foram capitalistas, pelo menos em certo
grau (DOBB, 1986, p.8).

Dessa forma, negando a validade integral de tais interpreta-


ções a respeito do capitalismo, Dobb retoma Marx para afirmar que
o modo de produção capitalista não se refere exclusivamente ao de-
senvolvimento técnico (no caso, das forças produtivas) mas também
– e principalmente – à maneira pela qual as relações de propriedade
sobre os meios de produção e de trabalho estão fundadas. Não seria
simplesmente um sistema de produção de mercadorias, muito embora
não pudesse deixar de sê-lo: nele, a própria força de trabalho torna-se
mercadoria, sendo comprada e vendida em um mercado na mesma
medida que qualquer outro bem. Sua pré-condição seria a concen-
tração da propriedade dos meios de produção sob uma determinada
classe minoritária que compraria a força de trabalho vendida por uma
parcela majoritária da sociedade, composta de indivíduos privados de
qualquer propriedade, exclusivamente dependentes da venda desta
força (trocada por salários) para realizar sua subsistência.
Dessa forma, a coerção extra-econômica, oriunda de fatores
superestruturais, seria desnecessária, sob o modo de produção ca-
pitalista, para manter as massas expropriadas inseridas na atividade
produtiva; enquanto o produtor direto consiste majoritariamente no
camponês e artesão, tendo posse (ou propriedade) dos seus meios
de produção, o sobretrabalho só poderia ser extraído por uma classe

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

proprietária por intermédio de coerção direta, sendo esta uma marca


que conferiria unidade aos modos de produção pré-capitalistas. Ex-
propriados dessa base econômica urbana ou rural e transformados
em proletários, as chibatas tornar-se-iam desnecessárias: a fome
advém como um feitor etéreo mas sagaz, invisível como a “mão” do
mercado smithiana.

O que diferencia o uso dessa definição em relação às demais é


que a existência do comércio e do empréstimo de dinheiro, bem
como a presença de uma classe especializada de comerciantes
ou financistas, ainda que fossem homens de posses, não basta
para constituir uma sociedade capitalista. Os homens de ca-
pital, por mais ambiciosos, não bastam – seu capital tem  de
ser usado na sujeição do trabalho à criação da mais-valia no
processo de produção. (DOBB, 1986, p. 8)

Portanto, economia monetária, trocas comerciais, extração de


excedente e atividade empresarial, mentalidade de lucro e raciona-
lidade econômica, nenhum desses elementos seria suficiente para
configurar a existência histórica de um modo de produção capitalista:
este dependeria fundamentalmente da concentração de capital nas
mãos de uma classe empregadora de mão-de-obra assalariada e a
existência de uma oferta de força de trabalho a partir de uma classe
expropriada formando, assim, a extração de excedente por meio da
mais-valia. Mercado, empresários e mentalidade de lucro não foram
necessariamente incompatíveis com modos de produção pré-capita-
listas, e mesmo que o tenham sido em determinadas situações, sua
presença não nos autoriza a falar em capitalismo.
Dobb parte do pressuposto de que os modos de produção nunca
se manifestam na realidade concreta de um modo absoluto e exclu-
dente em relação a outros modos de organização socioeconômica. Os
sistemas econômicos jamais podem ser encontrados, na visão desse
autor, em uma modalidade pura, havendo sempre a interpenetração
entre modos de produção diferenciados, representando uma perma-
nência ou um pioneirismo em relação àquele determinado contexto
social. Exceto pelos breves momentos de transição, cada período
histórico seria marcado pela predominância de uma determinada
forma econômica relativamente homogênea, e deve ser classificado
a partir dela.

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Daniel de Pinho Barreiros


Dessa forma, Dobb afirma que seu interesse com o estudo da
transição não está na análise do surgimento de uma forma econô-
mica específica, tendo em vista que o mero aparecimento de novas
relações de trabalho e propriedade no seio de um determinado modo
de produção não implica na sua transformação; seu interesse reside,
na verdade, em identificar o momento em que essas novas relações
atingem uma preponderância de tal monta que passam a imprimir
a uma determinada sociedade suas características e que, portanto,
sejam capazes de conduzir o desenvolvimento econômico segundo
seus fundamentos. A implementação da hegemonia de um determi-
nado modo de produção sobre outros tem como pontos cruciais os
momentos de uma mudança brusca na direção da sociedade, por
meio de uma revolução social; apesar de reconhecer que todo pro-
cesso de mudança histórica acontece gradualmente, Dobb não abre
mão de verificar nos processos revolucionários os catalisadores das
transformações e das reais mudanças qualitativas, rejeitando uma
perspectiva de desenvolvimento econômico baseada em variações
quantitativas de determinados índices crescentes (DOBB, 1986,
p. 10-11).

Um dos principais defeitos destas últimas [análise do de-


senvolvimento restrita a uma abordagem quantitativista] é
sua tendência a ignorar, ou pelo menos a minimizar, aque-
las cruciais novas propriedades que, em certos estágios,
podem surgir e transformar radicalmente o resultado [...]
e o caráter tendencioso que há em sua vocação para inter-
pretar situações passadas e para estabelecer “verdades
universais” super-históricas, modeladas no que dizem ser
traços imutáveis da natureza humana ou certos tipos inva-
riáveis de “necessidade” econômica ou social. (DOBB, 1986,
p. 11)

Buscando superar as análises sobre a história econômica e so-


bre a própria economia que visam observar mais pontos em comum
entre as sociedades do que buscar seu caráter plural, Dobb afirma:

A teoria econômica, pelo menos desde Jevons e os austríacos,


tem sido modelada cada vez mais em termos de propriedades
comuns a qualquer tipo de sociedade de trocas; e as leis econô-

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

micas principais têm sido formuladas nesse nível de abstração.


[...] Uma esfera autônoma de relações de troca, cujos conceitos
ignoram a diferença qualitativa na ligação de diversas classes
com a produção e, portanto, entre si, para concentrar-se em
sua semelhança como fatores quantitativos num problema abs-
trato de determinação de preços, não pode claramente revelar
muita coisa sobre o desenvolvimento econômico da sociedade
moderna. Além disso, a alegada autonomia dessa esfera entra,
ela própria, em questão. (DOBB, 1986, p. 21-22)

Um dos princípios mais caros ao pensamento de Marx permite


a Dobb verificar no caráter classista da sociedade e na luta de classes
o fator de preservação ou de destruição da hegemonia de um determi-
nado modo de produção. A natureza de uma classe dominante teria o
poder de impor a um determinado período histórico uma característica
típica, tendo em vista que essa classe lançaria mão de sua dominân-
cia, através dos recursos possíveis, para preservar aquele modo de
produção que garantiria sua renda. O interesse comum que une um
determinado setor da sociedade como uma classe se dá justamente
no sentido de preservar e expandir um tipo de mecanismo de extra-
ção e distribuição do produto do trabalho. No momento em que as
modificações no interior desta sociedade conduzissem a uma ruptura
da hegemonia da classe dominante, a nova classe (ou aliança de clas-
ses) teria o poder de ocupar uma posição estratégica de acelerar a
transição e minar a força de sua adversária, atuando para que o modo
de produção a ela ligado fosse deslocado para uma posição de menor
representatividade no conjunto da sociedade (DOBB, 1986, p. 12-13).
O capitalismo como um modo de produção, premissa de que
parte Dobb para sua análise da transição, não pode ter sua origem
identificada a partir dos primeiros indícios do aparecimento do co-
mércio de grande escala e de uma classe mercantil; estaria, sim, no
momento em que o produtor direto é privado de sua base econômica
e passa a ser subordinado a um detentor de propriedade capitalista.
Tratando da gênese do capitalismo europeu, situa-a não nos séculos
XII como o faz Henri Pirenne pensando no exemplo holandês (principal
referência de Paul Sweezy) ou no século XIV, a partir do artesanato
e do comércio urbano, mas sim na Inglaterra dos séculos XVI-XVII,
período este em que o capital começa sua conquista do processo pro-
dutivo. Mesmo que bem antes desses marcos fosse possível encontrar

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Daniel de Pinho Barreiros


rudimentos do modo de produção capitalista (dependência do artesão
diante do grande comerciante detentor de capital, diferenciação social
no campo, produzindo camponeses ricos empregadores em pequena
escala de mão-de-obra assalariada), Dobb nos alerta para que não os
tomemos pelo que não são:

Estes, no entanto, parecem ter sido pouco numerosos e in-


suficientemente amadurecidos, para serem tomados como
muito mais do que um capitalismo adolescente, não chegando
a justificar que situemos a existência do capitalismo, já nessa
altura, como novo modo de produção, suficientemente claro
e extenso a ponto de constituir um desafio sério a outro mais
antigo. (DOBB, 1986, p. 15)

Em resumo, tendo sido estabelecidos os parâmetros a partir


dos quais Dobb desenvolve seu raciocínio, poderíamos afirmar que
seu objeto de estudo – a economia capitalista – não difere em maior
grau daquele relacionado às pesquisas criticadas pelo autor. O que
ele propõe, no entanto, é mudar o ângulo de análise, deixando de
investigar as sociedades de trocas de um modo geral (como se estas
fossem necessariamente capitalistas pela sua atividade comercial),
passando a ter como preocupação a gênese, a estrutura e o cresci-
mento de uma sociedade verdadeiramente capitalista, distinta das
demais pelos elementos que conferem especificidade a este modo
de produção.
Dobb renuncia a interpretações jurídicas ou ligadas à relação
produção-destino do produto para conceber a realidade econômica,
lançando mão do conceito de modo de produção. Definições que bus-
cassem identificar o fenômeno do feudalismo a uma relação jurídica
entre vassalos e suseranos, ou condicionado à existência ou não de
produção destinada a trocas mercantis são desprestigiadas. O que
busca o economista inglês para definir o modo de produção feudal é
justamente a natureza das relações de trabalho e propriedade, entre
o produtor direto urbano ou rural (o artesão e o camponês) e a classe
de proprietários.
Na Grã-Bretanha, os debates sobre o significado do feudalismo
vinham mostrando-se pouco produtivos, considerando que, sob os
olhos do historiador constitucional, do jurista ou do historiador eco-
nômico, a questão da essência das sociedades compreendidas sob

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

esta definição não escapava a uma dimensão político-jurídica. Dobb,


ao utilizar-se do exemplo das discussões entre eslavófilos e ocidenta-
listas na Rússia do século XIX acerca da existência de um feudalismo
ocidental na história deste país, afirma que esta teria sido a ênfase ini-
cial predominante. Somente o progressivo avanço do marxismo sobre
estudos de história agrária teria feito com que as relações econômicas
passassem a ganhar maior destaque analítico que as jurídicas; ainda
assim, não ofereciam uma alternativa convincente, uma vez que, por
mais que abandonada a velha ênfase, esta mesma insistiria na dico-
tomia economia natural-economia comercial; ou seja, definir-se-ia o
feudalismo como um sistema econômico pouco monetarizado, auto-
suficiente e voltado para a subsistência, divergindo radicalmente de
uma economia de trocas monetárias, cujo objetivo da produção é ter
como finalidade o comércio (DOBB, 1986, p. 25-27).

Tal noção de que o feudalismo se apoiava na economia natural


como sua base econômica parece partilhada, pelo menos im-
plicitamente, por uma série de historiadores econômicos do
Ocidente, e poder-se-ia dizer que tem maiores afinidades com
as concepções de autores da Escola Histórica Alemã, como
Schmoller, de que com as de Marx. (DOBB, 1986, p. 26)

Um dos pontos mais polêmicos da controvérsia que se iniciaria


está na afirmação de Dobb de que as relações de trabalho sob um
modo feudal de produção confundir-se-iam com a noção de servidão.
Ou seja, diferentemente do modo de produção capitalista, em que a
extração do sobretrabalho pelo proprietário dos meios de produção
não depende exclusivamente de meios extra-econômicos, sob o modo
de produção feudal esta transferência de trabalho ocorreria por meio
da imposição de força, que resultaria na prestação de serviços e tra-
balho nas terras do senhor, ou no pagamento de taxas em dinheiro ou
em espécie. Diferencia-se do capitalismo e do escravismo na medida
em que o produtor direto permanece de posse dos meios de produção
e de sua base de sustentação econômica; aproxima-se do segundo no
ponto em que tanto um quanto outro se baseiam na coerção, ao pas-
so que, sob o modo de produção capitalista, o trabalhador disporia
de liberdade sobre seu próprio corpo e na escolha do empregador,
configurando-se uma relação tipicamente contratual, não tendo obri-
gações para além do contratado. Além disso, este modo de produção

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Daniel de Pinho Barreiros


teria sido associado historicamente a um baixo desenvolvimento das
forças produtivas, à pouca divisão do trabalho e à pequena presença
do trabalho enquanto processo social integrado (sendo este, em sua
maioria, exercido de modo individual). Embora tenha sido associado
a “economias naturais”, Dobb ressalta que servidão e subsistência
não são pares necessários. O modo de produção tem sido também
associado a formas de fragmentação política e de propriedade da terra
condicionada à prestação de serviços ou à dependência pessoal por
senhores detentores de poderes jurídicos. No entanto, Dobb lembra
não ser esta uma configuração invariável, tendo em vista que a servi-
dão também teria sido encontrada sob sistemas políticos centralizados
e com posse de terra hereditária.3
O ponto de partida do debate estava portanto lançado. Em 1950,
quatro anos depois da primeira edição de A Evolução do Capitalismo,
o norte-americano Sweezy publicaria pela primeira vez sua instigante
crítica na revista Science and Society. Nela, o primeiro ponto a ser
questionado seria justamente a idéia de que feudalismo e servidão
expressam uma mesma realidade. Sweezy aponta que, com esta
afirmação, Dobb não teria definido o feudalismo/servidão como um
sistema de produção,4 ou seja, teria perdido de vista critérios mais
vastos como a questão da circulação de moedas e mercadorias, e
fatores superestruturais. Lembra Sweezy que a servidão pode existir
em sistemas sem qualquer traço de feudalismo, e pode mesmo ser uma
relação de produção hegemônica prescindindo de uma organização
econômica necessária para comportá-la. Ou seja, a servidão pode ser
dominante numa sociedade sem que esta deva ser necessariamente
feudal.5 Acontece, portanto, que para este autor, o conceito cunhado
por Dobb (feudalismo como sinônimo de servidão) tornou-se amplo
demais, e, dessa forma, inviável para explicar um sistema econômico
determinado. Por não definir simplesmente um sistema social (aquele
ligado ao modo de produção feudal europeu ocidental), mas buscar
conceitualizar todos os sistemas sociais baseados na servidão, Sweezy
criou um aparato conceitual de abrangência tão vasta que perderia
poder explicativo para de fato oferecer respostas para problemas
históricos específicos (SWEEZY, 1977b, p. 19-20).
Além disso, como Sweezy considera ser o principal interesse
de Dobb o estudo do feudalismo em sua versão européia ocidental,
critica o fato deste último não ter definido em primeira mão quais
seriam as características desse tipo de feudalismo, para que somente

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

depois disso tenha começado a buscar uma compreensão das leis e


tendências desse sistema em geral; ou seja, antes de definir que toda
servidão é sinônimo de feudalismo, deveria ter compreendido em
primeira mão o significado do feudalismo europeu ocidental, para
depois ter tentado extrapolá-lo para outras realidades – e, certamente
falhado, se assumirmos o raciocínio do economista norte-americano
(SWEEZY, 1977b, p. 20-21).
Sweezy estabelece sua definição de feudalismo europeu ociden-
tal tendo como base, segundo afirma, a própria descrição de Dobb.
Dessa forma, defende que segundo esta mesma descrição, nos é possí-
vel defini-lo como um sistema cuja relação de produção dominante é a
servidão, e que é organizado em torno da propriedade senhorial; não
estariam implícitas as noções de “economia natural” ou a total falta
de circulação monetária. Mesmo considerando a presença de algum
comércio local, Sweezy baseia-se no marxista inglês para afirmar que
a característica definidora do feudalismo europeu ocidental foi a na-
tureza de sua produção, voltada para o consumo, e não para a troca.
Uma das conseqüências desse fato seria a diminuta tendência para a
inovação dos métodos e das forças produtivas, redundando todos os
mecanismos sociais em torno da tradição, do costume e da falta de
dinamismo. Isto não implicaria em falar de uma sociedade estática,
tendo em vista que o feudalismo europeu ocidental comportou em seu
seio fatores de instabilidade intensos, como foi o caso das lutas entre
senhores feudais; esse estado de competição, entretanto, ao contrário
da concorrência capitalista, pouco contribuiria para atenuar a carência
de impulso de transformação interno à sociedade, tendo em vista que
a insegurança seria um fator de reforço das dependências feudais e
da imobilidade do progresso técnico. Além disso, a pequena capaci-
dade de expansão da estrutura produtiva estabelecia um limite para a
margem de absorção de trabalhadores; um crescimento demográfico
surgia como fator de instabilidade, embora o excedente populacional
daí derivado pouco tivesse contribuído para a transformação do sis-
tema de produção feudal (SWEEZY, 1977b, p. 22-24).

Poderíamos concluir então que o feudalismo europeu ocidental,


a despeito da instabilidade e insegurança crônicas, foi um siste-
ma de tendência fortemente acentuada a favor da manutenção
de determinados métodos e relações de produção [...] Penso
que se Dobb tivesse levado em consideração este caráter emi-

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Daniel de Pinho Barreiros


nentemente conservador e resistente à mudança do feudalismo
da Europa ocidental teria sido obrigado a alterar a teoria que
apresenta para melhor considerar a sua desintegração e declí-
nio nos finais da Idade Média. (SWEEZY, 1977b, p. 24)

No mesmo ano e periódico científico em que fora veiculada esta


crítica, Dobb publicaria a réplica. Ainda que não tenha aceitado a re-
provação de sua interpretação sobre o feudalismo como um conceito
equiparado à servidão, concorda que, uma vez tendo uma amplitude
considerável, a noção de feudalismo deveria ser contemplada com
estudos aplicados às suas diversas modalidades.
Entretanto, Dobb afirma ter dúvidas a respeito da verdadeira
renúncia do norte-americano em aceitar o feudalismo como noção
equiparada à de servidão. Sweezy afirmou ser impossível utilizar-se
da noção de feudalismo/servidão para compreender um momento
histórico específico, tendo em vista sua demasiada amplitude; uma vez
que a servidão teria acontecido em vários momentos e lugares, afirmar
simplesmente a sua paridade com a noção de feudalismo seria um re-
ducionismo impraticável. Ou seja, relações de produção servis teriam
existido em muitos lugares e momentos sem que fossem acompanhadas
de uma economia voltada para o consumo, entendida como feudalismo.
Assim sendo, Dobb sugere que o argumento de Sweezy pouco supera
suas afirmações: mesmo que este último negue a validade de um con-
ceito amplo de “feudalismo”, entendendo que o mesmo comportaria
certos fatores para além das relações de produção e propriedade, ainda
assim considera que a servidão é uma relação social que se manifesta em
tempos e locais bastante distintos (DOBB, 1977, p. 61-62). Em resumo, o
que realmente está em jogo não é a definição e a aplicação do conceito
de servidão para caracterizar um sem número de relações sociais ao
longo do tempo, e sim a própria noção de feudalismo.
Dobb demonstra ter consciência deste fato e buscará fragilizar a
legitimidade dos argumentos levantados por Sweezy indicando justa-
mente a relativa incompatibilidade entre seus pressupostos teóricos.
Mostra a imprecisão da idéia de sistema de produção, proposta pelo
seu crítico, contrastando com a de modo de produção, afirmando que
a mesma abarcaria as relações entre e o produtor e o mercado, para
além das relações de produção e pelas forças produtivas, supondo
que nessas primeiras relações estariam o foco de sua interpretação
histórica. E conclui:

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

A definição que usei nos meus Studies era deliberadamente


em termos das relações de produção características do feu-
dalismo: a saber, as relações entre o produtor direto e o seu
suserano (overlord) [...] Em meu entender, reside aqui a sua
definição crucial; e quando diferentes formas econômicas têm
esta característica em comum, este elemento comum que elas
compartilham é de maior significado do que outros aspectos
em que possam diferir (por exemplo, na relação de produção
para o mercado). (DOBB, 1977, p. 62-63)

Esta relação de produção, que Dobb assume como fundamental


na definição do conceito amplo de feudalismo, apresentou variações
inúmeras, principalmente na forma de extração do sobretrabalho
do produtor direto pela classe proprietária (prestação de trabalho
compulsório ou pagamento de tributos, in natura ou em dinheiro).
Entretanto, a mudança da forma de apropriação do excedente, do
trabalho obrigatório nas terras do senhor para o pagamento de uma
renda monetária, não seria suficiente para conferir especificidade ao
feudalismo europeu ocidental em relação à sua variante oriental, já
que o modo pelo qual este trabalho é apropriado permanece igual
(por meio da coerção extra-econômica).
Quanto à eminente tendência à estabilidade e conservação apon-
tada por Sweezy, que privaria o dito “feudalismo europeu ocidental”
de um impulso interno para a mudança, Dobb mostra-se avesso, tendo
em vista que assumir tais idéias seria conferir ao modo de produção
feudal (para Sweezy, sistema de produção) um caráter excepcional no
conjunto da teoria marxista, que propõe como motor de transformação
as próprias contradições internas de uma sociedade. Ele condena a
posição de Sweezy de cancelar o papel revolucionário da luta de clas-
ses no “feudalismo”; se é verdade que o simples enfrentamento entre
o campesinato e o proprietário não deu origem por si ao capitalismo,
será o mecanismo que permitirá a emancipação do produtor direto
da dependência feudal, além da diferenciação interna que formará o
capital industrial tipicamente revolucionário e o proletariado (DOBB,
1977, p. 64-65). Dobb conclui suas considerações sobre o conceito de
“feudalismo” sweeziano de um modo instigante:

[...] e é crença minha que o desejo de apresentar o “feudalismo


europeu ocidental” como um genus distinto e só a ele brindar

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Daniel de Pinho Barreiros


com o título de “feudal” se trata de um produto dos historia-
dores burgueses e da sua tendência para se concentrarem
apenas sobre differentia e características jurídicas. (DOBB,
1977, p. 64)

Em 1952 o debate prossegue, agora com a participação de H.


Kohachiro Takahashi, que em um artigo na mesma Science and Society,
busca realizar um balanço das três rodadas então realizadas. O histo-
riador japonês esclarece desde as suas primeiras palavras a adesão
aos princípios enunciados por Dobb, embora também não o poupe de
críticas. Sobre a questão da natureza do modo de produção feudal (ou,
antes ainda, do “feudalismo”), afirma que não se pode prescindir em
nenhum momento, se pretende realizar uma análise referendada no
marxismo, da forma com que se dá a existência da força de trabalho
numa determinada sociedade para que seja possível determinar sua
natureza. Considerando a existência de três modalidades básicas de
trabalho – a escrava, a servil e a assalariada –, assegura ser impossí-
vel, em linhas gerais, dissociar o feudalismo da servidão. E conclui da
seguinte maneira: “A questão da transição do feudalismo para o capita-
lismo não é meramente uma questão de transformação nas formas das
instituições econômicas e sociais. O problema básico será o da mudan-
ça na forma existencial social da força de trabalho” (TAKAHASHI, 1977,
p. 84).
O historiador japonês reitera a réplica de Dobb afirmando que o
fator definidor da natureza do feudalismo reside na exploração do produ-
tor direto pelo proprietário, por intermédio de uma obrigação de caráter
político-jurídico, configurando-o como um modo de produção, à maneira
de Marx. Uma vez que Sweezy teria tentado desmontar a argumenta-
ção de Dobb, desconsiderando a relação entre feudalismo e servidão
e minimizando o papel das relações de trabalho tipicamente feudais
na caracterização desse modo de produção, depositara a natureza da
sociedade feudal em suas trocas locais, pela pouca representatividade
do comércio de longa distância nos objetivos e métodos produtivos,
sendo, portanto, um sistema voltado tipicamente para a produção de
valores de uso; mesmo considerando a existência de mercado dentro
do sistema econômico feudal, ambos seriam excludentes.
Com isso, Takahashi aponta ser impossível sustentar-se a
proposição de Sweezy; remetendo-se a Marx (como os dois lados do
debate vinham fazendo), afirma que o “valor de troca”, o dinheiro e o

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

comércio possuem uma existência muitíssimo anterior ao capitalismo,


tendo coexistido e participado ativamente de modos de produção va-
riados, não podendo configurar-se como parâmetros adequados para
a definição de uma determinada estrutura socioeconômica. “Portanto,
a questão a formular para uma determinada estrutura social não é
se as mercadorias e a moeda estão presentes mas antes como são
produzidas estas mercadorias e de que modo serve a moeda como
intermediário na produção” (TAKAHASHI, 1977, p. 85-86).
A dita contradição entre o feudalismo e o capitalismo não resi-
diria, absolutamente, numa questão de produção de valores de uso ou
de valores de troca, e sim na contradição entre a propriedade feudal
do solo e o capital industrial. Uma vez que sob um modo de produção
feudal a posse dos meios de produção fica sob o controle do produtor
direto, não há um processo hegemônico de formação de força de traba-
lho como mercadoria, e, portanto, o meio mais adequado de extração
de sobretrabalho por parte da classe dominante não reside nas leis
de mercado, mas sim na coação. Sob o capitalismo, a necessidade de
aplicação de força não-econômica desaparece e a força de trabalho
mercantiliza-se. Dessa forma,

Os processos fundamentais de passagem do feudalismo ao ca-


pitalismo são, portanto: mudança na forma social de existência
da força de trabalho, consistindo na separação dos meios de
produção dos produtores diretos; mudança no modo social
de reprodução da força de trabalho (que vem a dar a mesma
coisa); polarização dos produtores diretos ou dissociação do
campesinato. (TAKAHASHI, 1977, p. 87-88) 6

Rodney Hilton, em comentário posterior ao momento de auge


do debate, já citado neste capítulo, realiza um balanço das discussões
e também se posiciona de um modo mais favorável aos argumentos
de Dobb na polêmica acerca da natureza do feudalismo (modo ou
sistema de produção). Segundo ele, o termo “servidão” vinha susci-
tando nas discussões contemporâneas uma confusão desnecessária,
tendo em vista que, se havia realmente alguma base para tal impre-
cisão, ela seria decorrente de uma influência da pesquisa histórica
não-marxista. Isto o leva a ratificar os argumentos de Takahashi,
afirmando ser a servidão a forma de trabalho e de existência no
feudalismo, compreendido como um modo de produção, em que se

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Daniel de Pinho Barreiros


processa uma transferência forçada de trabalho excedente para as
mãos de uma classe proprietária.
Sendo assim, é possível que a servidão (e, portanto, uma relação
feudal) se manifeste nas mais diferentes realidades político-sociais
e que seja portadora de existências jurídica e institucional as mais
variadas; definir, dessa forma, feudalismo tendo como base a realida-
de superestrutural do ocidente europeu medieval seria ignorar que,
enquanto modo de produção, prescinde e está muito além da maneira
como se organizou especificamente o sistema político e de representa-
ções ligado à realidade histórica da Europa no período citado. Hilton
lembra ainda, em suporte aos seus argumentos, que muitos tipos de
relações sociais de servidão, embora de fato o fossem, não eram inter-
pretados pelo sistema legal como servis, levando muitos historiadores
a partirem de pressupostos errados acerca de modalidades de trabalho
surgidas, por exemplo, a partir do século IX na Europa. Referindo-se
a estudo de Marc Bloch sobre a história rural da França, Hilton afir-
ma ter este autor constatado que, no século IX, o número de famílias
consideradas servis nas aldeias em propriedades eclesiásticas no
norte desse país era menor do que o número de famílias emancipadas
nesta mesma localidade, no século XIII, o que teria levado o francês
a apontar a existência de um processo de “servilização” ao longo do
período. Já o belga L. Verriest mostrara que a proporção de famílias
consideradas servas permanecera estática, sendo a maior parte do
contingente liberado no século XIII composta por camponeses juri-
dicamente livres, mas submetidos a obrigações semelhantes àquelas
impostas aos “servos” legais (HILTON, 1989, p. 14-15).
Reconhecendo a contribuição de ambos, Hilton defende que algo
mais deve ser dito. De fato, os séculos em questão teriam constituído
um momento de transformação na natureza da servidão no ocidente
europeu; seu ponto inicial seria marcado pela predominância das
prestações de trabalho (fosse ele juridicamente servil ou livre) como
forma de apropriação de excedente por parte da classe proprietária.
Mudanças econômico-sociais durante os séculos X e XI, envolvendo
também a resistência camponesa ao trabalho compulsório, levaram o
modo de produção feudal na direção de uma extração de mais-trabalho
baseada em renda calculada sobre a tamanho da terra ocupada pela
família camponesa, fosse em dinheiro, produtos ou serviços, impostos
e outras formas de rendimentos, todas baseadas no privilégio e na
coação extra-econômica. Ou seja, a renda-trabalho não se conformava

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

como modo por excelência de relação servil, embora, segundo o autor,


muito tenha sido produzido considerando-se o contrário (HILTON,
1989, p. 14-17).

Mas a história geral do feudalismo europeu mostra com cla-


reza que a renda-trabalho não era um elemento essencial nas
relações feudais de produção, ainda que o caráter coercitivo
dessas relações transpareça talvez mais nitidamente na organi-
zação do trabalho obrigatório no domínio senhorial. (HILTON,
1989, p.15)

Preocupado com a vigorosa confusão de conceitos instaurada


acerca da natureza do feudalismo, e que foi um dos elementos motores
da discordância entre Dobb e Sweezy, Hilton oferece-nos um rico comen-
tário que pode sintetizar uma das dimensões da problemática. Trazendo
mais uma vez a questão dos múltiplos sentidos assumidos pelo termo
ao longo do tempo e das abordagens teóricas, afirma o autor que Marx,
apesar de calcar sua concepção de feudalismo nas forças produtivas
e relações de produção a ele relacionadas, certamente seria entendido
pelos seus contemporâneos que não partilhassem do seu ponto de vista,
uma vez que a utilizava com o objetivo de analisar integralmente uma
ordem social baseada na oposição entre camponeses e senhores. Histo-
riadores não-marxistas, desde então, conduziram o sentido do conceito
na direção do afastamento de uma concepção totalizante, reduzindo-o
às relações de suserania e vassalagem intra-classe dominante. Dessa
maneira, tornada comum tal associação, imbrica invariavelmente o feu-
dalismo à realidade histórica do ocidente europeu medieval (HILTON,
1989, p. 29-30). Por mais que tais idéias tenham sido abandonadas por
muitos que estavam fora do marxismo, sua influência persiste na me-
dida em que ainda permite oferecer uma tenaz resistência a qualquer
relativização da invalidade do conceito de feudalismo/servidão para a
análise de realidades extra-européias.
Charles Parain, em artigo publicado originalmente em 1971 in-
titulado “A Evolução do Sistema Feudal Europeu”, embora não o diga
textualmente, retoma uma crítica feita por Sweezy e aceita por Dobb:
a imprecisão de se associar a servidão ao modo de produção feudal. O
que propõe o autor é que se deve verificar que modalidade ou “nível”
de servidão está sendo tratado quando for realizada tal associação
com o feudalismo, e apresenta, em linhas bem gerais, alguns elementos

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Daniel de Pinho Barreiros


de compreensão desta distinção. A servidão medieval clássica não
seria originária, como diz, de uma obrigação imposta por conquista
militar nem da evolução de algum tipo de servidão antiga, resultando,
na verdade, de uma convergência de situações e da ação paulatina de
uma classe dominante resoluta. Em seu momento de declínio, a dita
servidão medieval clássica não daria origem imediata a uma situação
de liberdade do produtor direto, tendo sido este um fenômeno com
resultados variados de acordo com as sociedades, locais em que se
processou, e da luta de classes. Seria decorrente do desenvolvimento
dos estatutos pessoais de dependência originários de uma situação
histórica específica, e não uma criação legal; o autor inclusive dá in-
dícios de que minimiza a fundamentalidade das relações jurídicas no
processo de desenvolvimento e criação da “servidão clássica”, sendo
esta fruto do fortalecimento de uma situação de fato, historicamente
construída (PARAIN, 1975, p. 21-23). Porque, em suas palavras, “O
Direito segue o fato. Cristaliza-o, não o cria” (PARAIN, 1975, p. 21).
O ponto de vista de Parain é interessante na medida em que tenta
oferecer uma solução introdutória para o problema da especificidade
do sistema feudal europeu ocidental diante dos demais níveis e formas
de servidão. De fato, nega a assertiva de Dobb sobre a unidade simples
entre servidão e feudalismo a partir de termos muito próximos aos
de Sweezy, sem, no entanto, a ênfase circulacionista; Parain também
considera que a associação forma um termo vago e sem capacidade
explicativa para uma determinada realidade histórica. Dissociando,
portanto, o modo de produção feudal da servidão em si, afirma que a
degradação da segunda não pôs fim ao primeiro, tendo este perdurado
uma vez mantidos os direitos feudais. Dessa maneira, o autor reco-
nhece como “servis” apenas aquelas relações definidas juridicamente,
e não as demais formas de extração de sobretrabalho não-baseadas
na renda-trabalho. Parain atesta a existência do modo de produção
feudal mesmo num momento em que este estaria desacompanhado da
“servidão clássica”, quando a prestação de trabalho direto nas terras
do senhor daria lugar a outras formas de transferência de renda para
a classe dominante. Estas outras modalidades são consideradas como
“livres” e não servis, tendo-se que não implicariam, por exemplo, em
total limitação do direito de mobilidade espacial do camponês e nem em
vínculo pessoal. Ainda assim, comportando “liberdade” ou “servidão”,
o modo de produção poderia ser mantido, até que os privilégios das

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Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

classes dominantes feudais fossem minados. Vejamos este comentário


do autor:

Por isso, da mesma forma que a escravidão não apresentou


sempre e em toda a parte um caráter de coação e desumanidade
tão acentuados como na época de seu maior desenvolvimento,
sem que por isso deixemos de falar em escravismo, da mesma
forma seria abusivo considerar que o desaparecimento da for-
ma clássica, típica da servidão, significa uma transformação
fundamental no modo de produção feudal. Ainda que algumas
guerras camponesas consigam suprimir a servidão feudal, nem
por isso terminam com os direitos feudais (Catalunha, século
XV). (PARAIN, 1975, p. 22)

Em outras palavras, o modo de produção feudal não deixaria de


ser mais ou menos feudal se o caráter coercitivo de suas relações
de produção fossem mais brandos ou mais violentos; Parain, conside-
rando como “servis” somente aquelas relações baseadas na extração
de renda-trabalho e juridicamente definidas como tal, afirma que o
modo de produção estaria preservado mesmo com a transformação
de tais formas de trabalho em modalidades mais “livres”, uma vez que
sua sobrevivência dependeria ainda de outros fatores. Tal diferencia-
ção entre “servo” e “livre” a partir da comutação da renda-trabalho
em renda-espécie e renda-dinheiro não parece se sustentar, tendo em
vista a opinião de outros autores.
Neste sentido, as conclusões de Parain aproximam-se daquelas
expressadas pela maior parte das opiniões até aqui tratadas, embora
algumas considerações (como as demonstradas acima) indiquem outro
caminho. Acerca da natureza da servidão, Hilton lembrara que mesmo
as relações de produção consideradas como “livres” não deixavam de
guardar uma dimensão coercitiva de grande monta; não seria possível
considerar a renda-trabalho como uma manifestação “clássica” de
relação servil, tendo em vista que as relações de trabalho decorren-
tes do processo de transformação da forma das obrigações feudais
não eram mais nem menos livres. Mesmo que o caráter impositivo da
relação de trabalho servil seja mais evidente quando seu excedente é
extraído por trabalho obrigatório nas reservas senhoriais, a tributação
e outras obrigações que fujam a essa regra não são menos “servis”
(HILTON, 1989, p. 14-17).
A idéia do feudalismo como uma categoria universal para Parain
fica comprometida uma vez que dissocia a noção de servidão da de

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modo de produção feudal; este último, como se expressou na Euro-

Daniel de Pinho Barreiros


pa, teria guardado em seu seio, durante um determinado número de
séculos, uma “versão clássica” de relações servis, que não se confun-
diriam integralmente com outros tipos de servidão historicamente
manifestados. A colonização espanhola na América servia de exemplo,
tendo no sistema de encomiendas uma forma de servidão, mas situado
em uma superestrutura tipicamente distinta daquela pertencente ao
ocidente europeu medieval – a monarquia absoluta espanhola e seu
aparelho burocrático como comissionadores dos encomienderos – e
sendo originada por meio da imposição militar (PARAIN, 1975, p.
22-23). O autor não parece muito preocupado em definir o modo de
produção feudal fundamentalmente a partir das relações de produção
estabelecidas entre proprietários e produtores diretos, e por mais que
diga o contrário, confere um papel importante às questões superestru-
turais (tal como a preservação do modo de produção feudal por meio
da sobrevivência dos “direitos feudais”, por exemplo). Estando este
modo de produção ligado a outros fatores que não somente o trabalho
servil, sua universalidade não é considerada verificável.
Por fim, a interpretação proposta por Hobsbawm, em seu bre-
ve artigo intitulado “Do Feudalismo para o Capitalismo”, publicado
pela primeira vez em Marxism Today, de agosto de 1962, parece-nos
muito apropriada para um balanço dos avanços acerca da questão
da amplitude do conceito em pauta. Atestando uma propensão nos
debates marxistas daquele momento a aceitarem a universalidade do
feudalismo, expandindo-o como conceito de análise para sociedades
antes entendidas a partir de outras categorias (tais como “asiáticas”,
por exemplo), dá seu voto de confiança, mas o faz com ressalvas:

Sem concordar necessariamente que o atual vasto âmbito de


“feudalismo” esteja inteiramente justificado, é claro que se
trata de uma formação social muitíssimo difundida. O mais
próximo paralelo da versão européia integral sem dúvida é o
encontrado no Japão – as semelhanças são extraordinárias –
enquanto em outras áreas o paralelismo é menos acentuado, e
em outras ainda os elementos feudais constituem apenas uma
parte de uma sociedade constituída de modo muito diferente.
(HOBSBAWM, 1989, p. 160) 6

Em outras palavras, mesmo questionando a universalidade do


conceito nos termos em que tem sido defendida, Hobsbawm não nega
que ele pode ser utilizado como um instrumento de compreensão

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para muitos tipos de sociedade, sejam aquelas mais aproximadas do


Capitalismo e servidão no pensamento marxista contemporâneo

caso europeu (como a japonesa) ou aquelas que trazem em seu seio


alguns elementos feudais, mesmo não sendo em sua totalidade uma
formação econômico-social de caráter feudal.
A título de conclusão, a polêmica sobre a natureza do feuda-
lismo centrou-se na discussão da paridade deste conceito com o de
servidão. A semelhança entre os conceitos defendida por Dobb, na
medida em que entendeu o feudalismo como um modo de produção
feudal – definido, portanto, a partir das forças produtivas e das rela-
ções de produção – e a diferença entre tais conceitos apontada por
Sweezy, que interpretou o feudalismo não somente como um modo de
produção, mas como um sistema de produção, definido pelas caracte-
rísticas do comércio e do destino da produção (consumo ou troca), foi
o carro chefe nos diálogos sobre a transição. De um modo mais geral,
foram contrapostas interpretações que evidenciaram, dentro de um
aparato conceitual marxista, o “modo de produção” como definidor
máximo do caráter de uma sociedade, e outras – em grande parte in-
fluenciadas por abordagens não-marxistas – que ressaltaram fatores
superestruturais e externos às relações de produção (como as trocas
e monetarização), buscando ver nestes os que de fato imprimiriam a
uma formação econômico-social suas características básicas.

Notas
1
Note-se que o “hoje” de Dobb diz respeito ao final dos anos 1940, o que significa
dizer que se refere aos estudos realizados na primeira metade do sécilo XX.
2
No momento nos centraremos na concepção de capitalismo a que se afilia Dobb,
tendo em vista ser esta a mais importante para estabelecermos os pilares do de-
bate. Ao longo do capítulo definiremos as idéias e argumentos de Sweezy a este
respeito.
3
Noção esta que seria criticada posteriormente pelo próprio Dobb, por ser teorica-
mente imprecisa.
4
Em determinados momentos podemos afirmar que o debate conceitual entre Dobb
e Sweezy aproxima-se de um diálogo de surdos. Apesar de ambos, com maior ou
menor precisão, invocarem as palavras de Marx para sustentarem seus argumentos,
lidam com os mesmos conceitos a partir de significados bastante distintos, o que
acaba levando a um impasse. Um exemplo disso é a própria definição de “feudalismo”
para um e outro: Sweezy associa “feudal” a uma economia pouco mercantilizada e
Dobb entende como sinônimo de “servil”. Mais adiante traremos uma apreciação
crítica sobre este choque de concepções.
5
Esta questão será mas bem desenvolvida adiante.
6
Apesar de entender como positiva a iniciativa de extrapolação do conceito de feuda-
lismo para realidades extra-européias, ainda assim Hobsbawm indica considerar a
validade do modo de produção asiático como uma categoria de análise, uma vez que
inicia seu artigo invocando a enumeração dos modos de produção historicamente
verificados feita por Marx no prefácio à Crítica da Economia Política.

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da
transição para o capitalismo

Nessa etapa do confronto entre os diferentes pontos de vista


teóricos, discute-se a natureza do agente motor das transforma-
ções históricas, em especial aquela que diz respeito à passagem
do feudalismo ao capitalismo na experiência européia. Podendo
ser considerado o elemento central na polêmica, a definição do
propulsor da transição é de crucial importância para os objetivos
deste estudo, já que, por intermédio dela, podemos ter acesso a uma
síntese de toda a estratégia de argumentação dos dois contendores
principais, bem como de seus críticos e apologistas. Em outras
palavras, a base conceitual a partir da qual cada um dos autores
pretende interpretar o fenômeno da transição é evidenciada através
da posição assumida por eles no entendimento do agente motor.
Identificando-o com a evolução da luta de classes entre senhores
e camponeses ou com a ação transformadora do mercado sobre
as comunidades auto-suficientes, os debatedores lançar-se-iam ao
segundo ataque.
Dobb inicia sua argumentação considerando verdadeira a im-
portância das transformações sociais ocorridas ao longo dos séculos
XII-XIII, no que diz respeito ao modo pelo qual a classe dominante
feudal conduziria a apropriação do excedente econômico produzi-
do pelo campesinato. O reaquecimento das atividades comerciais
européias, em princípios do 12º século, teria produzido uma comu-
nidade comercial dinâmica atuando de modo anômalo no interior
da sociedade feudal, de tal maneira que a intensificada circulação
monetária, infiltrando o tecido da economia rural auto-suficiente, o
teria esgarçado, promovendo alterações radicais em sua estrutura.
Verificava-se o desenvolvimento de interesses comerciais por parte
da classe senhorial; o progressivo impulso à mercantilização do
excedente acompanhou a comutação das obrigações feudais pagas
por meio de serviços para o pagamento em dinheiro, além de ser
contemporâneo às tendências ao arrendamento das terras senhoriais
e ao início do emprego de mão-de-obra assalariada no campo. Num
primeiro momento, todos os fatores representativos desta situação
histórica conduzem a uma associação entre eles, o desenvolvimento
dos mercados e das trocas em dinheiro; afinal, somente poderia exis-
tir um impulso ao assalariamento, à produção de mercadorias e ao

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

arrendamento na medida em que a sociedade já demonstrasse uma


face mercantil suficientemente forte.

Não tem sido incomum atribuir ao efeito solvente da troca e


do dinheiro não só uma influência excepcional, mas singular,
na transformação da sociedade feudal em capitalista [...] A
“economia natural” e a “economia de troca” são duas ordens
econômicas que não se podem misturar e a presença da última,
ao que nos dizem, é bastante para fazer a primeira dissolver-se.
(DOBB, 1986, p. 29)

O autor nos alerta, entretanto, que uma tal associação direta


pode conduzir a conclusões falsas acerca da relação entre mercado
e transição, uma vez que a ampliação das trocas não poderia ser con-
siderada em nenhuma hipótese como uma condição suficiente para a
dissolução do feudalismo (DOBB, 1986, p. 28-29).
Se de fato as trocas comerciais produzissem um impacto tão
decisivo sobre o conjunto das relações sociais de tipo feudal, a trans-
formação do pagamento em trabalho para o pagamento em dinheiro
bem como o arrendamento e o assalariamento deveriam ter-se dado
em regiões cuja proximidade com importantes centros comerciais
fosse maior, ao passo que a conservação da extração de excedente
por meio de prestação de serviços e os demais elementos em maior
consonância com o modo de produção feudal deveriam ter ocorrido em
regiões à parte dos fluxos comerciais. Dobb verifica, entretanto, que a
experiência histórica européia, e principalmente a inglesa, nos conduz
a uma conclusão inversa. As unidades produtivas mais afastadas dos
grandes mercados foram as que primeiro sofreram a transformação
da extração de renda feudal, ao passo que aquelas que nos séculos
XII e XIII estiveram mais intimamente ligadas à dinâmica mercantil
tenderam a preservar a antiga renda-trabalho.
Ligar o renascimento comercial ao declínio da servidão é igual-
mente uma afirmação controversa, que apesar de ser amparada por
bons exemplos, é negada por outros igualmente importantes: o século
XV foi palco da “segunda servidão” na Europa oriental, na qual uma
conjuntura favorável para a exportação de cereais foi acompanhada
não da dissolução dos laços feudais, mas do violento ressurgir da
exploração servil em grandes propriedades voltadas para a produção
de mercadorias. O comércio não teria sido o responsável pela comu-

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Daniel de Pinho Barreiros


tação das obrigações feudais na Inglaterra, já que, durante o século
XII (período de transição para a renda-dinheiro) não se verificou um
surto mercantil, que foi constatado apenas no século XIII, justamente o
momento de uma reação feudal às transformações do século anterior.
Dobb conclui, deixando em aberto suas proposições: “Na verdade,
parece haver tanta evidência de que o crescimento de uma economia
monetária per se levou a uma intensificação da servidão como há evi-
dência de que foi a causa do declínio feudal” (DOBB, 1986, p. 28-30).
Embora não identifique no senhor feudal uma propensão a
abrandar as obrigações tradicionais em prol de relações contratuais
somente pelo crescimento de uma economia monetária, Dobb reco-
nhece que, pelo menos, o uso do dinheiro deve ter chegado a um
determinado patamar para que justificasse o interesse do proprietário
em receber uma renda desse tipo, e aí sim, o mercado teria um papel
neste processo. Mas disso não se pode tirar que a mera expansão
mercantil tenha levado inexoravelmente à comutação da modalidade
das obrigações servis. “Não existe igualmente um bom fundamento
para supor que o crescimento do comércio ocasionasse intensificação
da servidão, para fornecer trabalho forçado ao cultivo da propriedade
para fins de mercado?” – provoca Dobb (1986, p. 31).
Interpretações circulacionistas, como as criticadas, seriam
carentes, segundo o autor, de uma visão clara a respeito da própria
dinâmica interna às sociedades feudais européias, ou seja, da com-
preensão do feudalismo como um modo de produção feudal; a luta
de classes entre o produtor direto e o proprietário dos meios de
produção seria o legítimo motor da transição para o capitalismo,
ainda que contasse com a influência “externa” ao sistema, composta
pela ação do mercado. A insuficiência do feudalismo – de suas forças
produtivas e relações de produção –, associada à crescente demanda
de renda por parte da classe proprietária, teria levado a um desgaste
irredimível do campesinato, tornando impraticável a sustentação do
modo de produção. O incentivo ao progresso técnico era tênue; dada
a relação de exploração entre o senhor feudal e o camponês – sendo o
último o responsável direto pelo processo produtivo, e, portanto, pelos
possíveis avanços da técnica, estando o primeiro em uma condição de
usufruto de propriedade e do produto do trabalho alheio –, qualquer
melhoria desse tipo não se reverteria em ganhos para o camponês,
e sim em mais uma “exigência nova” que beneficiasse o proprietário.
Dessa forma, as novas demandas de renda pela classe dominante feu-

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

dal somente poderiam ser atendidas por intermédio da exacerbação


da exploração absoluta do camponês.1

Com o estado baixo e estacionário da produtividade do trabalho


nessa época, pouca margem restava para que esse produto ex-
cedente pudesse ser aumentado, e qualquer tentativa de fazê-lo
seria certamente à custa do tempo dedicado pelo produtor ao
cultivo de sua própria e modesta terra, levando logo a sobre-
carregar sua força além de limites humanos, ou então reduzir
sua subsistência abaixo do nível de uma simples existência
animal. (DOBB, 1986, p. 32)

A crise da economia feudal nos séculos XIV e XV seria, portan-


to, resultado da exploração exacerbada da classe dominante sobre o
produtor, pressão esta que não foi suportada pelo nível técnico das
forças produtivas vigentes, levando, assim, à progressiva ruptura
das relações de produção de tipo feudal. A reação do campesinato
às iniciativas de seus senhores envolveu o abandono em massa das
propriedades rurais, levando à desestruturação do processo produ-
tivo, ao incremento – muitas vezes danoso – da população urbana e
da criminalidade no campo e na cidade. Os senhores feudais, atuando
como classe social, respondiam à ameaça camponesa realizando
alianças para capturar fugitivos; mas mesmo assim, devido à inten-
sidade do problema e da cada vez maior escassez de mão-de-obra,
iniciara-se uma disputa intraclasse para atrair ou conquistar servos. A
situação engendrada pela resistência camponesa leva muitos senhores
a realizarem concessões para atrair trabalhadores, abrindo brechas na
estrutura social feudal. “Em alguns casos, um senhor, para repovoar
sua terra, abandonada devido à sua própria opressão, era forçado a
vender imunidades, pondo limites às exações senhoriais, em troca de
um arrendamento ou pagamento em dinheiro” (DOBB, 1986, p. 35).
Embora seja conhecido um aumento populacional durante
o século XII e XIII, o que permitia remediar os sintomas de crise,2 o
século XIV foi marcado por um novo declínio demográfico, ameaçan-
do, através da retração de renda, a sociedade feudal. As guerras e a
peste, incidindo sobre uma estrutura econômica débil, e uma classe
camponesa vivendo em situação de penúria desde a intensificação
das obrigações feudais contribuíram para o despovoamento rural.
Devido à falta de mão-de-obra, na Inglaterra segue-se a tendência a

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Daniel de Pinho Barreiros


reduzir-se as propriedades senhoriais por meio de arrendamentos aos
camponeses sobreviventes. Dobb lembra que, ao contrário da afirma-
ção de que o arrendamento surge em função de prosperidade comer-
cial, sua gênese estaria numa situação de flagelo econômico. “Hoje,
parece claro que esse arrendamento das propriedades foi mais uma
expressão de crises econômicas do que fruto da crescente ambição
de comerciar e desenvolver a que comumente se o tem atribuído no
passado” (DOBB, 1986, p. 36). Verifica-se, portanto, que a prática do
arrendamento e da comutação das obrigações feudais ocorreu num
momento de tentativa de manter o trabalhador na terra, evitando o
despovoamento e a ruptura do modo de produção.
A maneira específica por meio da qual a classe senhorial buscou
combater a evasão de mão-de-obra provocadora da crise econômica
dos séculos XIV-XV caracterizará o segundo conjunto de fatores dos
quais Dobb lança mão para a sua interpretação da gênese do capi-
talismo; mais ainda, a intensificação ou a atenuação das relações de
produção feudais, ocorridas em diferentes regiões da Europa, em face
das acrescidas exigências de renda, contribuiriam para imprimir ao
desenvolvimento futuro do capitalismo particularidades que confor-
mariam variantes nacionais deste mesmo modo de produção. Dessa
maneira, depois de analisar num primeiro conjunto de elementos as
relações entre mercado, renda-dinheiro, arrendamento e assalariamen-
to no contexto de crise feudal, Dobb buscará definir as circunstâncias
que levaram a classe terratenente à transformação ou à conservação
das relações de produção feudais num momento de ameaça à sua
sobrevivência.
Os rumos da luta de classes nas diferentes partes da Europa
seriam responsáveis pelo destino do modo de produção feudal. Em
determinadas regiões, como em parte da França e na Inglaterra, a ini-
ciativa de abandono do campo por parte do campesinato forçara os
senhores feudais a abrirem mão de privilégios: as obrigações servis
foram abrandadas em muitas partes, existindo até mesmo a comuta-
ção de relações compulsórias entre proprietários e trabalhadores por
outras de caráter monetário-contratual. Já a Europa oriental, a região
do Báltico e a Península Ibérica foram palco de uma reação feudal,
com o fortalecimento dos laços servis, medidas de recaptura e fixação
de camponeses à terra, mesmo em locais em que antes tais relações
haviam sido abaladas. Dobb fala, também, de um renascimento do
comércio de escravos no Mar Mediterrâneo para atender a uma de-

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

manda por mão-de-obra decorrente dessas regiões em que, mesmo


intensificada a servidão, a carência de braços tornava-se crítica.
Dessa forma, foi o resultado da queda de braço entre senhores
e camponeses que definiu os destinos do feudalismo: nas regiões em
que a resistência da classe camponesa à intensificação da exploração
pôde conter o poderio político-militar dos senhores feudais, a resposta
destes últimos ao esvaziamento do campo caminhou na direção da
concessão. Por outro lado, nas regiões em que a classe dominante teve
força suficiente para subjugar o campesinato, nota-se a renovação da
coerção extra-econômica como método de extração de excedente. A
presença do Estado é apontada como um fator de desequilíbrio, em
alguns casos favorável à classe senhorial (quando a máquina estatal
não dispõe de instrumentos de ação para deter os poderes locais,
por exemplo), e, em outros, como enfraquecedora da resistência de
setores da nobreza a ela adversos. Entretanto, apesar de sugerir a
influência de elementos políticos na transformação/conservação
do modo de produção feudal, Dobb reafirma sua insuficiência como
determinadores da mudança. Por exemplo, a centralização do Estado
russo e a diminuição do poder dos senhores locais não atuaram para a
transformação do campo no caminho do arrendamento e do assalaria-
mento; ao contrário, este é um momento de reafirmação da servidão.
Segundo o autor, tudo parece indicar que os fatores econômicos foram
os determinantes nesta questão (DOBB, 1986, p. 38-39).
Acima de tudo, a chave para a compreensão da questão está
depositada na oferta de mão-de-obra assalariada, e, como conseqüên-
cia, no preço do trabalho livre disponível numa determinada região,
fundamental no direcionamento do comportamento do senhor rural
para comutar as prestações de serviço de seus servos pelo recebimen-
to de renda-dinheiro. Se considerarmos os casos em que a prestação
de serviço compulsório dos camponeses fora descartada, podemos
dizer que as terras senhoriais ficariam sem trabalhadores disponíveis,
tendo em vista que dependiam dessa mão-de-obra para que fossem
aradas e produzissem. Portanto, restava aos senhores feudais incapa-
zes (ou desestimulados) de procederem ao fortalecimento dos laços
de servidão, duas alternativas: ou empregavam o trabalho assalariado
de camponeses arruinados para produzirem em suas terras, ou ar-
rendavam a mesma terra, passando o problema da obtenção de força
de trabalho e da produção para outros.

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Considerando em primeiro lugar a substituição da prestação
de trabalho compulsório pelo trabalho assalariado, é necessário
esclarecer que não se tratava, nesse momento, de uma completa
eliminação dos servos e da substituição total por proletários rurais.
Nesse caso, o emprego de trabalhadores por meio de salário cami-
nharia lado a lado com a comutação da extração de renda-trabalho
em renda-dinheiro ou espécie. Em outras palavras, os camponeses,
em vez de terem de deslocar-se das pequenas unidades produti-
vas, nas quais produziam sua subsistência e algum excedente, em
direção à reserva senhorial, na qual trabalhariam em benefício do
senhor, passavam agora a permanecer todo o tempo trabalhando
nas “suas” terras,3 devendo ao senhor não mais serviços forçados,
mas parte do produto que fosse nelas realizado (ou a soma em
dinheiro correspondente à comercialização desta fração) (DOBB,
1986, p. 40-41). Dessa maneira, o proprietário de terras convertia
este trabalho excedente, extraído do campesinato, em salários
usados para pagar a mão-de-obra empregada na reserva senhorial;
o que fazia era converter parte do excedente feudal em excedente
capitalista: utilizava-se da renda extorquida extra-economicamente
para comprar força de trabalho e realizar mais-valia, que servia de
complemento à própria renda feudal.
Entretanto, a transformação para a renda-dinheiro ou espécie
e o assalariamento rural não poderiam prescindir de determinadas
condições: em primeiro lugar, a oferta de braços e o preço dos salários
deveriam compensar a substituição do trabalho compulsório pelo
livre. Para tal, as reservas de mão-de-obra deveriam estar num pata-
mar significativo, que garantisse sua disponibilidade e que mantivesse
baixos os seus preços. Sob um regime de prestação compulsória de
serviços, todo o tempo de trabalho despendido pelo camponês nas
terras do senhor constituía-se em excedente apropriado integral-
mente, considerando que a subsistência do trabalhador dependia do
trabalho adicional que realizasse nas terras sob sua posse, e não de
um pagamento realizado pelo proprietário. Por isso, mesmo um tra-
balho com baixos níveis de produtividade nas terras senhoriais seria
vantajoso para o proprietário; por menores que fossem seus frutos,
seriam possuídos na totalidade pelo senhor feudal. Já sob um regime
de assalariamento, o produto do trabalho deveria ser suficiente para
que pagasse a força de trabalho comprada e ainda deixar algum exce-
dente. Dessa forma, as pré-condições para que houvesse a comutação

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

das prestações de serviço para renda-dinheiro e para o emprego


de assalariados nas reservas senhoriais envolviam a existência de
um contingente de trabalhadores sem-terra (ou dispondo de terras
insufi­cien­tes para suas necessidades) que precisasse vender sua força
de trabalho para garantir subsistência, e uma produtividade mínima do
trabalho necessária para pagar os salários e deixar um excedente que
fosse atraente para os proprietários.4
Para satisfazer tais condições, ou seja, para que o senhor es-
tivesse predisposto a realizar a comutação na forma de extração de
renda e empregar mão-de-obra livre, o custo da força de trabalho
deveria ser bastante baixo; nesse caso, a mão-de-obra livre deveria
ter um nível de rentabilidade muito maior do que o trabalho servil e
deveria ter mobilidade suficiente para estar satisfatoriamente dispo-
nível para o empregador. Com isso, Dobb sugere uma tendência ao
assalariamento em propriedades cujas culturas tivessem alto nível de
produtividade (que tornassem viáveis as vantagens do trabalho livre),
ao passo que a servidão teria sido reforçada naquelas propriedades
em que as culturas tivessem produtividade bastante baixa, tendo de
ser reforçada pelo emprego extensivo da força de trabalho. A miséria
camponesa foi outro fator importante na formação dos embriões de
capitalismo rural: verificou-se que a ameaça de esvaziamento das
unidades produtivas em função do grau de pauperismo alcançado no
campo, engendrado pelo acirramento da exploração feudal nos séculos
XII a XIV, teria tornado os senhores mais propensos a amenizarem as
obrigações servis e a arrendarem terras para evitar o êxodo; e, além
disso, a própria miséria era a principal responsável pela formação de
uma reserva de força de trabalho contratável. Por sua vez, nas regiões
em que a quantidade de terras disponíveis por camponês era maior
ou nas quais a disponibilidade de braços para o trabalho era pequena
em razão do despovoamento, apresentou-se a tendência em preservar
as prestações de serviços, além de intensificá-las.5
Ainda restava uma segunda alternativa ao senhor feudal que
buscava uma solução para o problema da mão-de-obra: o arrenda-
mento de sua reserva senhorial, utilizando-se do aluguel como um
acréscimo à renda extraída do campesinato. Ou seja, em vez de arcar
com o ônus de buscar repovoar suas terras de almas disponíveis a
serem contratadas para o trabalho, o proprietário – em determinadas
condições – dispunha da opção de arrendar essas mesmas terras para
indivíduos que tivessem condições mais propícias para nela tratar dos

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assuntos referentes à produção. Alguns fatores contribuiriam para a
opção de arrendar e não produzir na terra com trabalho assalariado,
tais como a eliminação dos custos com a administração e a relação
entre os preços dos produtos agrícolas e os artesanais e importados.6
Já os elementos que se colocariam entre a opção de arrendar ou de
utilizar a velha extração de renda por trabalho direto seriam os mes-
mos relativos ao emprego de mão-de-obra assalariada:

Quanto mais escassa a terra com relação à mão-de-obra em


qualquer momento e lugar dados, mais alta deveria ser a ren-
tabilidade da terra e, por isso, tanto maior o incentivo a adotar
uma política de arrendamento, em vez do cultivo de proprie-
dades com prestação de serviços, enquanto o oposto deveria
aplicar-se onde a terra fosse abundante e os seres humanos
fossem escassos.7

A diferenciação econômica no seio do próprio campesinato foi


um fator crucial para que ao longo dos séculos XIV e XV a atividade de
arrendamento e o trabalho livre assalariado fossem progressivamente
ganhando maior destaque. O aparecimento de uma fração camponesa
capaz de reter uma modesta riqueza e possibilidades de acumulação,
e ainda uma propensão ao investimento, evidenciou um setor social
fundamental na configuração do capitalismo rural. Influenciados pela
emergência dos mercados locais, certamente ganharam em eficiência
produtiva; a situação favorável os levava a aproveitar-se da propensão
dos senhores em alugar suas terras e expandir suas posses por meio
do arrendamento, contratando algum trabalho livre dos agricultores
mais pobres ou sem terras (DOBB, 1986, p. 44-45).
Concluindo, Dobb ressalta que não podemos confundir a trans-
formação da extração de renda-trabalho para a renda-dinheiro e as
práticas de arrendamento com a libertação do camponês e a instau-
ração de relações contratuais em substituição às obrigações feudais.
O declínio das prestações de serviço não é um sinônimo do fim da
servidão; embora a tributação tomasse seu lugar, ainda assim persistia
o caráter compulsório de obrigação extra-econômica, tendo em vista
que a mobilidade do produtor permanecia vedada e sua dependência
para com o senhor feudal persistia. Se em muitos casos a comutação
realmente resultou numa mudança nas antigas obrigações – principal-
mente nos casos em que a transformação vinha como uma conquista

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

do próprio campesinato –, em outros, foi uma forma de extrair ainda


mais excedente do que através da prestação de serviços, sendo este
caso mais comum nos exemplos em que a transformação parte da
iniciativa do senhor.

[...] vimos que a escassez de mão-de-obra (comparada à terra


que o senhor tinha disponível para cultivo e às necessidades
dos modos de cultivo predominantes) em geral conferirá grande
valor às medidas de compulsão para prender a mão-de-obra à
terra e aumentar as obrigações a que ela está sujeita, ao passo
que, se o cultivo da reserva senhorial for praticado pelo senhor,
a escassez de mão-de-obra conferirá ao mesmo tempo grande
valor ao cultivo daquela terra pelas prestações de serviço
diretas, em vez de trabalho assalariado. Fartura e barateza da
mão-de-obra, em qualquer caso, tenderão a ter efeito contrário.
(DOBB, 1986, p. 49)

É verdade que todo o quadro formado pela crise feudal dos sé-
culos XIII e XIV não foi suficiente para fazer valer o modo de produção
capitalista, embora tenha dado os primeiros passos para o enfraqueci-
mento do feudalismo. Mesmo tendo sido as revoltas camponesas der-
rotadas ou neutralizadas pelas concessões, verificava-se um quadro
em que a nobreza encontrava-se enfraquecida, desprovida de suficiente
trabalho compulsório, arrendando terras ou contratando assalariados,
formados pelas frações miseráveis do campesinato. Esta nobreza já
disputava espaço com uma burguesia mercantil compradora de terras
e uma fração de camponeses prósperos – semelhantes aos kulaks
russos, como lembra Dobb –, que ofereciam concorrência imponente
nos mercados e como empregadores de trabalho livre assalariado.
No caso inglês (a que se refere a quase totalidade das considerações)
esse período de acumulação primitiva iria perdurar até o século XVII,
com a avalanche produzida pela Revolução burguesa modificando
estruturalmente a sociedade (DOBB, 1986, p. 48-51).
A contribuição de Sweezy à questão do agente motor inicia-se
com um breve apanhado dos argumentos de Dobb acerca dos fatores
que levaram à maior necessidade de renda por parte da classe domi-
nante feudal. Detendo-nos no crescimento da classe parasitária como
elemento principal, o economista norte-americano questiona a valida-
de desse pressuposto como fator explicativo. A suposta pressão sobre

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o campesinato que teria sido produzida por este aumento demográfico
na classe senhorial (e seus agregados) seria relativizada, uma vez que
este mesmo crescimento teria sido acompanhado de uma expansão
da população servil e da fronteira agrícola cultivável na Europa, que
parecia longe de encontrar um limite que funcionasse como um elemen-
to de pressionamento. Além disso, a natureza conflitiva da sociedade
feudal ocidental, de grande instabilidade entre a nobreza terratenente,
detentora do direito da atividade guerreira, lançaria dúvidas sobre um
verdadeiro aumento populacional na classe dominante.
Já a incrementada extravagância da classe dominante, com
seus gastos supérfluos, é um elemento considerado por Sweezy como
pleno de provas satisfatórias; entretanto, ainda ficaria a dúvida se a
mesma tendência poderia ser explicada pela própria natureza interna
do sistema feudal (como Dobb indicava) ou se, ao contrário, foi fruto
de acontecimentos externos a ele. A expansão do comércio de longa
distância, principalmente a partir do século XI, levando ao aumento
da oferta de produtos de origens longínquas e de alto preço, seria um
elemento suficiente para defender a idéia de que o consumo de merca-
dorias extravagantes teria origem em influências externas ao feudalis-
mo.8 O impacto da atividade comercial sobre a economia feudal teria
sido fatal, e não se resumia na aceitação do caráter intrinsecamente
dissolvente da economia monetária; a realidade seria mais complexa. A
existência de um comércio local, de produtos de pequeno valor, havia
feito pouco em ameaçar a ordem feudal. A superação do “estágio bufari-
nheiro”, como diz Sweezy, resultando no estabelecimento de centros de
comércio de longa distância, trazia implicações qualitativas, gerando
um impulso para o estabelecimento de uma região circundante rural,
produtora de mercadorias para abastecer esses pólos mercantis. O
artesanato constituído nestes centros de comércio, com divisão do
trabalho e especialização,9 sustentava a cidade e fornecia mercadorias
para a população do campo, que as podia consumir com o lucro de
suas vendas de víveres. Posteriormente, a importância do comércio
de longa distância seria sublimada no contexto da economia urbana,
mas já teria cumprido sua missão de criar uma economia de trocas,
superando a esterilidade da produção de valores de uso (SWEEZY,
1977b, p. 33-35).
Sobre o terceiro importante fator levantado pelos dois autores,
Dobb afirma ter sido a fuga dos camponeses das propriedades o princi-
pal elemento de provocação da crise feudal dos séculos XIV-XV. Sweezy

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

prossegue sua crítica questionando a realidade de tal afirmação. Seria


de pouca probabilidade a tese de que os servos teriam abandonado
livremente suas terras ocupadas, mesmo que a extorsão fosse insu-
portável. A posse dos meios de produção no feudalismo europeu, por
parte do produtor direto – ou seja, o direito de ocupar uma fração
de terra e nela produzir para seu sustento–, caracterizava um fator de
inclusão na sociedade; a população errante gerada por esta mesma
sociedade, impossibilitada de ser incorporada às unidades produtivas
feudais por ser excessiva, constituía a escória social. Seria muito pouco
provável que os camponeses estabelecidos optassem por abandonar
suas terras e ingressassem em uma condição social inferior àquela por
eles desfrutada, a não ser que existisse no horizonte uma oportunidade
de melhores condições. O desenvolvimento das cidades é a resposta
mais verossímil dada por Sweezy para o problema. “Não há dúvidas
de que o rápido desenvolvimento das cidades – oferecendo, como
ofereceu, liberdade, emprego e melhoria de condição social – atuou
como um poderoso imã à oprimida população rural” (SWEEZY, 1977b,
p. 30). Dessa forma, o autor considera ser importante o aumento da
opressão ao camponês, mas deposita no renascimento urbano a prin-
cipal causa do relativo êxodo rural. Uma vez que Dobb teria tentado
e falhado em explicar a expansão das cidades como um elemento
interno ao modo de produção feudal, mais uma vez seriam causas
externas ao sistema que seriam determinantes de sua transformação
(SWEEZY, 1977b, p. 29-31).
O avanço paulatino de um sistema de produção para trocas
provocaria ainda alterações na própria concepção de riqueza dos
produtores. A monetarização da economia levaria ao abandono
da noção de enriquecimento como retenção de produtos in natura
(com dado grau de perecibilidade e de mobilidade) em prol de
uma riqueza móvel e preservável, personificada no dinheiro, que
transformaria o pensamento não só daqueles diretamente envolvi-
dos, mas de todo aquele que entrasse em contato com a economia
mercantil. A conseqüência seria a formação de uma “atitude de
homens de negócios” no seio da sociedade feudal, na qual o lucro
e a posse de riquezas seriam um fim em si mesmos. Tal fato ainda
forneceria uma resposta à proposição de Dobb sobre o acirramento
da extorsão dos camponeses por parte das classes proprietárias
(SWEEZY, 1977b, p. 35-36).

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Sweezy está de acordo com a afirmação de que uma economia
comercial não leva automaticamente à extinção da servidão, não exis-
tindo motivos que justificassem tal hipótese; admite que a atividade
comercial não reserva qualquer antagonismo em relação às diversas
modalidades de trabalho historicamente verificadas. Entretanto, a
expansão do comércio teria sido de fato acompanhada pelo declínio
do trabalho servil, fato que mereceria explicação. Dobb relativizara
este processo, indicando uma tendência ao recrudescimento da ser-
vilização com o avançar do comércio; o norte-americano afirma, por
sua vez, que mesmo assumindo estes momentos de fortalecimento
dos velhos modos de extração de renda do campesinato, poderia ser
verificada uma tendência a longo prazo que conduzia à substituição
do trabalho compulsório nas terras senhoriais pelo arrendamento,
em que se utilizava o serviço de camponeses independentes ou de
assalariados rurais. Mesmo com a atração das cidades, poucos teriam
sido os servos que abandonaram suas terras. O efeito proporciona-
do pela urbanização e seu impacto em parte da mão-de-obra rural
seria o de uma ameaça permanente de esvaziamento populacional,
perigo este que funcionaria como o propugnador de reformas para
preservarem-se os braços a serviço no campo (SWEEZY, 1977b, p.
37-38).
Sweezy contribui, ainda, com uma temática não abordada de
modo significativo por Dobb, que diz respeito a uma ineficiência do
manor senhorial que produzisse para atender aos mercados. As téc-
nicas e a divisão do trabalho aplicadas seriam inadequadas para os
propósitos em questão, tendo muito baixa produtividade.

Do ponto de vista particular, tudo no manor era canhestro:


em particular, não havia separação nítida entre produção e
consumo, de modo que os preços de custo dos produtos eram
quase impossíveis. Além disso, tudo no manor estava regulado
pela tradição. (SWEEZY, 1977b, p. 39)

O tipo de divisão do trabalho que traçava uma linha divisória


entre o que era trabalho necessário e o que era trabalho excedente
apropriado pelo senhor (lembrando ser este o caso de preservação
das prestações de serviços) garantia ao servo não somente deveres,
mas também direitos, o que obstaculizava a exploração racional com
o objetivo de lucro.

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

No que diz respeito à “segunda servidão”, Sweezy responde


que o fenômeno se verificou com maior intensidade à medida que
afastamos nosso olhar em direção ao leste europeu, longe dos circui-
tos mais dinâmicos do comércio. No centro do turbilhão mercantil,
as classes proprietárias sentir-se-iam estimuladas a substituir seus
métodos de exploração por outros mais eficientes, além de sofrerem
a ameaça de perderem sua mão-de-obra para as cidades, sendo ainda
mais incitadas a abrandarem a antiga coerção. Já nas áreas periféri-
cas do centro mercantil da Europa, os camponeses teriam poucas
opções para migrarem (dado o parco desenvolvimento urbano) e os
proprietários pouco contato com as “influências civilizantes” do am-
biente citadino: quando insuflados pelo comércio, respondem a este
estímulo através da intensificação das velhas formas de exploração
para atenderem ao desejo do lucro. O declínio do feudalismo teria sido,
por sua vez, não fruto da superexploração do trabalho do camponês,
mas da incapacidade da classe senhorial em determinadas áreas da
Europa em manter o controle dessa mesma exploração (SWEEZY,
1977a, p. 40-41).
Por fim, discute-se a natureza da sociedade européia entre os
séculos XV e XVI, período este de desagregação das relações feudais e
de ausência de relações capitalistas hegemônicas. Dobb, apesar de reco-
nhecer todas as transformações do período, relativiza-as antes de afir-
mar a existência de um modo de produção capitalista já nesse período,
preferindo afirmar que este ainda é um momento de sobrevivência do
modo de produção feudal, tendo em vista que o camponês permanece
com sua mobilidade espacial limitada e dependente do senhor. Sweezy
contra-argumenta, dizendo que se realmente considerarmos o período
como feudal, ele deveria então ser marcado pela predominância da
servidão na Europa ocidental, o que não teria sido o caso.
E, além disso, Sweezy é contrário a um alargamento do conceito
de feudalismo, concluindo que, se a dependência pessoal de um traba-
lhador para com um senhor de terras seria suficiente para caracterizar
uma relação feudal, então muitas regiões dos Estados Unidos em seu
tempo teriam de ser classificadas a partir desta categoria. Demonstra-
se satisfeito com a opção de Dobb ao atribuir ao período o caráter de
“transição”, mas não com o desenvolvimento assumido pelo autor.
Esta passagem não comportaria em si elementos dos dois modos de
produção: “Segue-se que o período intermediário não foi uma simples
mistura de feudalismo e capitalismo: os elementos predominantes não

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foram feudais nem capitalistas” (SWEEZY, 1977b, p. 46). Sweezy prefere
atribuir a este momento a classificação de “produção pré-capitalista
de mercadorias”, tendo em vista que primeiro a produção voltada
para troca destruíra o arcabouço feudal, e, depois de completado o
processo, criara condições para o capitalismo.

Bastante poderoso para minar e desintegrar o feudalismo, mas


demasiado fraco para desenvolver uma estrutura independente
da sua: tudo o que pôde realizar em um sentido positivo foi
preparar o terreno para o avanço vitorioso do capitalismo nos
séculos XVII e XVIII. (SWEEZY, 1977b, p. 50)

Dobb replica as proposições de seu crítico desenvolvendo a


questão do caráter inercial da sociedade feudal européia ocidental. Se
acredita que, comparado ao funcionamento das sociedades capitalis-
tas, o modo de produção feudal parece de fato menos dinâmico, não
concorda ser legítimo afirmar que, por isso, foi carente de um impulso
interno de transformação. E, comparando-se as diversas manifesta-
ções desse modo de produção, nota-se que as tendências conserva-
doras se concretizaram com maior evidência na Europa oriental, e,
mais ainda, naquelas regiões em que vigeram, na definição do autor,
“formas asiáticas de servidão tributária” (DOBB, 1977, p. 64).10
Ao responder ao comentário a respeito de desconsiderar o papel
hegemônico do comércio na transição, o economista inglês afirma ser
esta uma acusação reducionista, na medida em que expressaria pouca
verossimilhança conceber um processo histórico como algo movido
por uma única força. Reafirma sua ênfase nas contradições internas
ao modo de produção feudal, embora lembre que, em sua concepção,
o agente motor seria composto pela interação interno-externo. Sem
negar o papel das trocas e das cidades – desse modo incorporando,
guardadas as proporções, a própria crítica de Sweezy ao seu argu-
mento – reinsere o renascimento comercial em seu modelo teórico
afirmando que o mesmo teria atuado como um catalisador, ativando
os reagentes revolucionários presentes em determinadas sociedades.
Sua função seria, portanto, a de acelerar o movimento de determinadas
forças internas; nos lugares em que elas não existiram, o comércio
teria sido incapaz de promover a transformação. Por exemplo, a in-
tensificação das trocas teria acelerado o processo de diferenciação
social no campo nas regiões em que este tivesse condições de existir.

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

Realizado este movimento retórico, voltava à tese da fundamentali-


dade do agente interno ao modo de produção feudal. “Como acentua
Sweezy, as cidades atuaram como imãs à fuga dos servos. [...] Mas o
efeito especial que tal fuga teve deve-se ao caráter específico da relação
entre servo e explorador feudal” (DOBB, 1977, p. 66-67).
Dobb considera falsa a relação entre a desagregação do modo
de produção feudal e a atividade mercantil,11 e, para tal, lança mão dos
mesmos argumentos utilizados em A Evolução do Capitalismo, como o
exemplo do norte da Inglaterra, mais afastado dos centros dinâmicos
de comércio, sendo palco do desaparecimento da servidão antes de
regiões mais próximas e integradas aos mercados. Afirma que seu
interlocutor tomou ciência desses fatos e até mesmo os atestou, mas
mesmo assim isto não fora suficiente para o impedir de repetir a tese
de que na periferia do comércio europeu é que se haveria preservado
a economia feudal por excelência. Pela ênfase em uma abordagem
circulacionista, acusa-o de negligenciar indicações mais importantes
que o comércio, como, por exemplo, o papel da oferta de mão-de-obra
livre na comutação das prestações de serviço para o pagamento de
renda-dinheiro ou espécie (DOBB, 1977, p. 67-68).
Finalmente, sobre a questão da natureza da sociedade oci-
dental européia no momento específico de transição (séculos XIV a
XVI), Dobb considera pouco apropriado defini-lo como um momento
“nem capitalista, nem feudal”, ou como “produção pré-capitalista de
mercadorias”, tendo em vista a imprecisão gerada por tal iniciativa.
Oferecendo novos elementos para sua classificação, indaga a respei-
to da classe governante que teria ocupado o comando dos Estados
nacionais no mesmo período. Ambos assumem não estar no poder
uma classe capitalista, tendo em vista que este modo de produção
não era hegemônico; se se admitisse a preponderância do poder de
uma burguesia mercantil desligada do processo produtivo em si, isto
caracterizaria a formação de um tipo de Estado burguês. Se assim o
fosse, o processo revolucionário na Inglaterra no século XVII teria sido
de fato uma revolução burguesa, ou apenas a reação de uma burguesia
no poder em combate à contra-revolução aristocrática?
Rejeitando tais alternativas, Dobb pensa ser este Estado de
transição ainda feudal, dado que funcionava como instrumento polí-
tico de uma classe feudal, aliada a determinados setores da burguesia
mercantil em função do papel cada vez mais importante do comércio
e do interesse da aristocracia pelo mesmo. A presença do Estado e

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das trocas já corroíam aos poucos o feudalismo, que se agüentava de
pé mesmo desgastado em alguns pontos. Ainda assim, as relações
econômicas permaneciam baseadas na coação e no costume, além
de um mercado de mão-de-obra livre estar longe de ser constituído
(DOBB, 1977, p. 70-71).
Takahashi corrobora com a maior parte da réplica de Dobb.
Aponta a insuficiência da abordagem sweeziana ao restringir suas
considerações sobre o agente motor e sobre a natureza do feudalismo
ao exemplo europeu ocidental, tendo negligenciado a existência do
modo de produção feudal igualmente na Europa oriental e na Ásia.
Sobre o caráter conservador do feudalismo ocidental, este seria rela-
tivo se comparado não só ao capitalismo moderno, mas também aos
exemplos extra-europeus; ainda, Sweezy não teria considerado como
fator explicativo para o maior ou menor reacionarismo a estabilidade
da propriedade feudal do solo, maior no oriente. Se este teria razão
em interpretar a crise do fim da Idade Média como tendo sido gerada
pela ação do comércio, o mesmo não ocorreria quando afirma ser este
o desintegrador do feudalismo em si. Assim como o marxista inglês,
Takahashi sugere que a diferenciação social acelerada pelo comércio
tem origens internas na sociedade feudal (no caso em especial, na
inglesa).
Critica ambos os precursores do debate por não terem mostr do
com maior precisão as condições através das quais a devastação
do comércio atuara sobre a autonomia do camponês como produtor
direto, levando ou à produção capitalista ou à reação feudal. Na Fran-
ça, por exemplo, o impacto das trocas sobre o campo, em vez de ter
conduzido à formação de uma elite campesina e de uma massa de
assalariados, teria dado origem à propriedade usurária. A economia
de trocas não teria expulsado o camponês da terra, mas o mantivera
ali por ação dos novos donos; cultivavam o solo em associação (cul-
tivo das “meias”) e apertavam ainda mais os seus laços de submissão
uma vez que sobreviviam pela venda antecipada da colheita ou pela
contração de empréstimos de sementes ou moeda junto aos proprie-
tários. Era o capital mercantil-usurário atuando na preservação da
dependência do produtor direto para com o detentor de propriedade
(TAKAHASHI, 1977, p. 91-100).
Sweezy dá prosseguimento às discussões na publicação de sua
tréplica pela mesma Science and Society, no ano de 1953. Afirma terem
Dobb e Takahashi realizado uma defesa da tese do motor interno da

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

transição sem acrescentarem novos dados significativos. A irredutibi-


lidade em diminuírem o papel do comércio como um fator de declínio
do feudalismo não estaria sendo amparada por argumentos concretos;
além disso, se realmente tais autores tinham em mente um processo
de interação entre o interno e o externo, o desprestígio conferido à
ação das trocas mercantis poderia comprometer este posicionamento.
Como exemplo, o norte-americano cita a reiterada questão da comu-
tação das prestações de trabalho pelo pagamento em dinheiro: seus
interlocutores teriam sido omissos ao esquecerem que tal transição
somente poderia ter-se consubstanciado em uma sociedade detentora
de um determinado nível de produção de mercadorias. Dessa forma,
o comércio representaria o fator de viabilidade para a ação das forças
internas (SWEEZY, 1977a, p. 145-146).
No mesmo ano, Rodney Hilton tomaria parte na discussão do
agente motor, propondo uma crítica aos pressupostos de Sweezy
não a partir de seus próprios escritos, mas do questionamento dos
dados fornecidos por sua fonte mais importante, o pensamento de
Henri Pirenne. Se estes não fossem confirmados por pesquisas em-
píricas posteriores, encontrar-se-iam brechas suficientes no sistema
sweeziano para obliterá-lo. Sobre o declínio do comércio durante a
Idade Média ocidental, Pirenne defenderia a idéia de que até os sé-
culos VII-VIII, momento das invasões islâmicas e do corte dos fluxos
comerciais mediterrânicos, uma economia de troca de mercadorias
teria sido vigente, como herança romana. A interrupção do expediente
mercantil com o oriente teria levado a uma contração do comércio
local e, com ela, às transformações no caminho da servidão e da
produção de valores de uso. A produção de mercadorias teria um
retorno na Europa apenas com a reabertura das veias de trocas de
longa distância; a partir de uma fração de indivíduos situados na ex-
trema base da estrutura social, dedicados à atividade comercial, e do
ressurgimento das cidades é que se teria fortalecido mais uma vez os
mercados locais. Pesquisas posteriores, por sua vez, deslegitimaram
tal interpretação. O declínio da produção para troca e a contração da
vida urbana seriam muito anteriores ao afirmado por Pirenne, datando
do século III, e não estariam ligados ao corte das rotas de comércio
de longa distância (HILTON, 1977, p. 153-156).
Hilton direciona-se para o interior da sociedade feudal ao aban-
donar os pressupostos circulacionistas. Examinando o feudalismo
como modo de produção, definiu como uma de suas características

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Daniel de Pinho Barreiros


a busca incessante, por parte da classe proprietária, da apropriação
integral do excedente produzido pelo campesinato. Mediante direitos
particulares ou por intermédio de uma força pública – personificada
no Estado –, a essência do modo de produção esteve na luta pelo
aumento progressivo da renda feudal.
As razões para tal ímpeto não estariam, como supôs Sweezy, na
transformação deste excedente apropriado em mercadorias, embora
este expediente tenha sido usado para, justamente, converter renda
feudal absorvida em forma de produtos em dinheiro. Estariam, sim,
em questões eminentemente ligadas ao poder; Dobb não fora convin-
cente ao tentar esclarecer os motivos da intensificação da exploração
feudal, e Sweezy tem plena razão ao acusá-lo disso. Hilton vem, por-
tanto, contribuir para completar uma lacuna deixada em A Evolução
do Capitalismo.
Se por volta do século IX carolíngio eram visíveis os grandes
senhores que mantinham sob o sustento de sua villa um séqüito vul-
toso de seguidores, a desagregação do império e a criação de Estados
menores foram seguidas pelo enfeudamento dos antigos nobres, antes
dependentes da produção de seu suserano, com dádiva da terra em
troca de serviço militar. Ainda que se alivie a carga sobre os ombros
dos senhores, o campesinato passa a ser explorado ainda mais por
um contingente inflacionado de senhores (HILTON, 1977, p. 158-160).
Segundo o autor:

Fundamentalmente, procuraram aumentar a renda feudal a fim


de manter e fomentar a sua posição como governantes quer
contra os seus inumeráveis rivais, quer contra os serviçais
explorados. A conservação do Poder e a sua extensão, se pos-
sível, é a força motriz na economia e na política feudais. Por
esta razão, a renda teve de ser aumentada ao máximo. (HILTON,
1977, p. 161)

Afirmada a luta pela renda como uma marca do feudalismo


europeu, Hilton aprofunda sua análise, considerando os efeitos dessa
mesma luta sobre a produção camponesa. Neste sentido, aponta que,
se por um lado verificou-se exaustão da capacidade produtiva em
determinados casos, em outros as constantes e maiores exigências
viabilizaram a expansão desta economia camponesa, conseguindo
aumentar o montante de excedente, fosse lutando pela redução das

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

rendas feudais, pelo aumento da produtividade ou pela ocupação de


novas terras sem prerrogativa de tributação.
Sobrepujando-se paulatinamente as necessidades de subsistên-
cia pela produção retida, gerava-se aí o impulso para a produção de
mercadorias. Os momentos de maior presença da economia natural
seriam aqueles a gerar maior excedente, levando o autor a afirmar que
a produção simples de mercadorias fora o impulsionador da expansão
comercial e urbana, que conduziria por sua vez à diferenciação social
no campo. A luta pela renda feudal incidiria de um modo duplo sobre
o produtor: os camponeses prósperos, empregadores de mão-de-obra
assalariada e voltados para o mercado, lutariam por sua diminuição,
uma vez que incidiria negativamente sobre seu progresso econômico;
os camponeses sem-terra ou com terra insuficiente teriam motivos de
sobra para se levantarem contra os direitos feudais, tendo em vista
que, mais do que os negócios, estava em jogo sua sobrevivência.
A luta pela renda, portanto, formava um quadro de revolta ge-
neralizada que houve de encontrar seu ápice no século XIV, momento
da crise feudal. Tendo sido fruto de fatores eminentemente internos na
visão de Hilton, é uma perspectiva que contradiz fundamentalmente
as afirmações de Sweezy e Pirenne sobre a importância dos fluxos
comerciais internacionais.12
Mais um ataque, ainda que moderado, aos pressupostos cir-
culacionistas partiria da iniciativa de Charles Parain. Ao analisar os
motivos para a crise da sociedade feudal, considera como principal a
questão do agravamento da exploração do campesinato. Entende que
as forças produtivas, instigadas pelas maiores exigências de renda por
parte da classe senhorial, haviam encontrado seu limite de expansão
dentro das possibilidades oferecidas pelo modo feudal de produção,
aproximando-se aí das interpretações de Dobb, Takahashi e Hilton;
entretanto, esta mesma demanda seria proveniente de um “gosto
pelo luxo” e do desenvolvimento da atividade comercial no interior
das classes dominantes, o que o aproxima do diagnóstico de Sweezy.
A diferenciação social somada à organização dos Estados feudais
levariam a uma penúria ainda maior.
Confere menor importância aos resultados das revoltas cam-
ponesas na destruição do velho modo de produção e na construção
de um novo. Afirma que, se todas tiveram resultados bastante dis-
tintos, nenhuma teve a capacidade de provocar uma transformação
que alterasse os alicerces estruturais das sociedades. Cita exemplos

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Daniel de Pinho Barreiros


referentes às regiões em que se preservou o velho arcabouço após
a crise dos séculos XIV-XV para indicar que, apesar de resultados
favoráveis para parte do campesinato, ainda assim era deixada
funcionando a estrutura feudal. A insurreição camponesa de 1525
na Europa germânica, provocada pela concentração de poderes nas
mãos dos príncipes, seus gastos com luxo e pela manutenção de
exércitos permanentes, fora esmagada pela coalizão entre os nobres
e as cidades.
O exemplo análogo na Catalunha diferenciar-se-ia pela obten-
ção de um compromisso vantajoso para os camponeses, decorrente
do declínio dos senhores provocado pelo despovoamento das terras
senhoriais e da linha de choque entre esta nobreza e a monarquia.
Ainda assim, somente uma fração da classe camponesa, que se cons-
titui em uma aristocracia campesina teria obtido vantagens, deixando
vivas as instituições mais caras ao modo de produção feudal (renda-
trabalho, concentração de propriedade territorial etc.). A verdadeira
transformação, na concepção do autor, ficaria a cargo de outras
classes e fenômenos que não estes presentes no momento da crise
feudal e das guerras camponesas: ainda seria necessário esperar as
revoluções burguesas dos séculos XVII-XVIII a fim de que fosse possí-
vel verificar a hegemonia do modo de produção capitalista (PARAIN,
1975, p. 29-31).13
Apontando na direção de uma síntese parcial, a questão da na-
tureza do agente motor dividiu-se entre o circulacionismo e a busca
dos fatores internos determinantes da transformação. Mais ainda, foi
posto em discussão o papel do comércio neste processo, e paralelo a
isso, a polêmica entre o agente transformador “interno” ou “externo”
à sociedade feudal.
Dobb não nega a possibilidade de o comércio ter desempenhado
um efeito corrosivo sobre o tecido social feudal, ainda que, mesmo
admitindo tal fato, não credite a ele o valor explicativo que Swee-
zy insiste em afirmar. É a luta de classes mais uma vez que definirá
a extensão do papel do comércio na transformação: como afirmara, a
proximidade com os pólos mercantis não contribuíra para a transição
em determinadas regiões da Inglaterra, ao passo que se verificou a
comutação das prestações de serviço para a renda em dinheiro em
locais afastados dos centros comerciais; na Alemanha oriental, a res-
posta ao impulso das trocas teria sido dada através do fortalecimento
da servidão, e não pelo seu abrandamento. Seriam condições internas

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Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

a cada sociedade, portanto, que abririam espaço para a corrosão do


modo de produção feudal.
Já Sweezy atribui a extinção do modo de produção feudal à
infiltração de uma economia de produção de mercadorias no seio
de uma economia tipicamente de consumo direto (insistindo em que
não se confunda “economia monetária” com “economia natural”). O
comércio é, portanto, um objeto presente em ambas as argumenta-
ções, o que nos permite dizer que, em determinada perspectiva, o
debate circulou em torno da magnitude de seu papel: se para o norte-
americano ela foi irrestrita, por ter sido único fator de mudança, para
Dobb ela pode ter sido notada nas sociedades em que a correlação de
forças das classes sociais fosse favorável a uma superação do modo
de produção feudal.

Notas
1
A extração de renda feudal por parte da classe proprietária acentuou-se em razão
de alguns fatores específicos. Em primeiro lugar, com o intuito de ampliar a força
militar dos senhores feudais, manifestava-se uma tendência para o aumento do
número de seus vassalos, que somada à expansão demográfica das próprias fa-
mílias dominantes (e de seus agregados), aumenta em muito as necessidades da
fração parasitária da sociedade, incidindo sobre o produto do trabalho camponês.
As guerras e o banditismo, além de ameaçarem diretamente o funcionamento do
processo produtivo, impunham mais requisições, incidindo igualmente sobre o
produtor direto. O comércio de produtos exóticos e a pressão para a produção de
mercadorias fechavam o somatório que tornava o vetor incidente sobre a classe
camponesa feudal insuportável (DOBB, 1986, p. 33-34).
2
O aumento populacional verificado nos séculos XII e XIII somente teve possibili-
dade de surtir um efeito positivo sobre os sintomas de crise na medida em que foi
acompanhado por um compatível crescimento na oferta de terras para comportar
a população camponesa em ascensão. Nas regiões em que tal fato não se procedeu,
o impacto de um aumento demográfico sobre uma disponibilidade de terras menos
dinâmica refletiu-se no agravamento das condições de vida do campesinato (DOBB,
1986, p. 35-36).
3
Evidentemente os camponeses detinham somente a posse tradicional das terras que
ocupavam e trabalhavam para obterem sustento e alguma reserva. A propriedade
estava nas mãos dos senhores feudais, e por meio desse direito, obtinham o trabalho
compulsório dos servos em troca da permissão de uso dessas mesmas terras.
4
Nos casos de propriedades com problemas de abastecimento de mão-de-obra servil,
o uso de trabalho assalariado, mesmo que formasse um excedente muito modesto,
seria mais vantajoso. Se os trabalhadores dispusessem na região de mobilidade
suficiente para suprirem de braços essas unidades de produção, mesmo que a efi-
ciência do trabalhador livre fosse menor que a de um hipotético trabalhador servil,
ainda assim a sua viabilidade estaria garantida (DOBB, 1986, p. 40-41).
5
Pelas indicações que fornece, Dobb dá a entender que o que está em jogo na con-
formação das tendências à comutação ou ao fortalecimento da servidão é a razão
entre força de trabalho disponível e terras cultiváveis. Nas regiões em que a penúria
camponesa foi maior, esta se dava principalmente pela pressão exercida pela menor
quantidade de terras aráveis sobre a população existente; um contingente de mão-
de-obra assalariável se formava a partir de indivíduos sem acesso à terra ou com

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acesso a uma parcela insuficiente – fosse pequena ou pouco produtiva – para garantir

Daniel de Pinho Barreiros


sua subsistência. Nesses casos, fora possível e vantajosa, quando não necessária, a
extração de renda-dinheiro e o assalariamento. Já em condições inversas, de uma
menor oferta de mão-de-obra comparada a de terras, a possibilidade de formação
de um excesso populacional dependente da venda de sua força de trabalho era
menor, com prováveis níveis altos em função da escassez, portanto incentivando
a preservação das prestações de trabalho e baseando aumentos de produtividade
no incremento da exploração absoluta (DOBB, 1986, p. 41-42).
6
Ou seja, a alta de preços dos artesanais e importados comparados aos agrícolas
faria com que os proprietários de terras tendessem ao arrendamento e não ao
investimento produtivo, sendo mais vantajoso obter uma renda fixa a partir do
aluguel da propriedade do que disputar num mercado desfavorável a venda dos
artigos produzidos.
7
DOBB, 1986, p.43. O autor esclareceque que a proporção entre terras e mão-de-obra
mencionada não diz respeito a “terra” de um modo geral e abstrato, mas sim aquelas
de posse direta da classe proprietária e, principalmen te, disponibilizada para o
cultivo. Além disso, não somente a oferta de força de trabalho seria necessária para
o arrendamento e o assalariamento, mas também o seu grau de explorabilidade – o
consentimento em receber salários baixos ou pagar arrendamentos elevados por
pequenas extensões de terras. Este grau relaciona-se diretamente com a quantidade
de terra disponível para os camponeses, se o trabalhador rural tem acesso à posse
dos meios de produção, seu nível de explorabilidade por meio de trabalho assala-
riado e pequeno, ao passo que a privação da terra e dos instrumentos de trabalho
(além de animais) levariam a uma maior aceitação da exploração e, portanto, a
maiore lucratividade com o uso desta mão-se-obra.
8
SWEEZY, 1977a, p. 27-29. Não devemos esquecer que Sweezy concebe o feudalismo
como um sistema econômico e mque o trabalho é voltado para a produção de va-
lores de uso, ou seja, para o consumo, e mão para a submissão ao mercado. Difere
da posição de Dobb, como já explicitado, que associa o feudalismo diretamente as
relações de produção de tipo servil, calcadas em coerção extra-econômica para
seu funcionamento. sobre a questão da relação entre a expansão mercantil e a
pressão sobre os camponeses, Dobb reconheceu que o comércio teve importantes
repercursões sobre as acrescidas necessidades da classe dominante. “De início,
o crescimento do comércio, com a a tração de artigos ex´[oticos que ele tornava
disponíveis e com as possibilidades que ele abria de produzir um excedente para o
mercado, reforçava a tendência a intensificar a pressão feudal sobre o campesinato”.
entretanto, Sweezy parece correto ao afirmar que Dobb reconheceesta influência,
mas passa por ela muito superficialmente. (DOBB, 1986, p. 34; SWEEZY, 1977a, p.
27-29)
9
Segundo Sweezy, a especialização e a divisão do trabalho, que verifica no artesanato
urbano, permitiriam a produção de mercadorias com menor custo que aquelas pro-
duzidas domesticamente nas propriedades rurais para atender às suas necessidades.
Com isso, criava um impulso às trocas comerciais e dissolvia a produção artesanal
rural, integrando o domínio feudal num circuito mercantil (SWEEZY, 1977b, p. 35).
10
Aquilo que o autor definiu como “formas asiáticas de servidão tributária” diz respeito
aos exemplos históricos incutidos no conceito de modo de produção asiático, que
o autor considera como uma variação feudal. Apesar do caráter de ruptura de sua
obra, seu pioneirismo e, certamente, o fato de preceder a publicação dos Grundisse
de Marx, impediram Dobb de uma quebra integral com os preceitos enraizados no
marxismo soviético. Tal fato, entretanto, não diminui o papel de divisor de águas
de A Evolução do Capitalismo.
11
O desenvolvimento da questão envolvendo o caráter “interno” ou “externo” do sur-
gimento das cidades, mais uma rodada na discussão da desagregação do feudalismo
como produto do comércio, é desconsiderado por Dobb. Deixa a indicação de que,
mesmo com todos os argumentos de seu crítico, ainda se pode considerar a ascensão
das cidades como um fenômeno “interno” ao feudalismo, dado que o mesmo nunca
havia sido uma economia natural, e que haveria um impulso em seu interior para
que se delegasse às cidades a responsabilidade de gerenciar o comércio de longa
distância. Como já foi dito anteriormente, o autor não vincula a idéia de modo de
produção feudal à de “produção para uso”, e, sim, às relações de produção servis;

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dessa forma, o comércio seria totalmente compatível consigo. Já Sweezy conceitua


Trocas comerciais e luta de classes na teoria da transição para o capitalismo

feudalismo como um sistema voltado para o consumo (antagônico à produção de


mercadorias), com uma certa independência no que diz respeito às relações de
produção nele presentes.
12
Ainda assim o autor não descarta o desenvolvimento do mercado interno e externo
como um dos fatores para a intensificação da exploração do campesinato, mesmo
que o faça através de argumentos que se distanciam da posição de Sweezy. A espe-
cialização das cidades na produção de bens manufaturados fazia com que as trocas
fossem mais vantajosas para as cidades, tendo em vista o alto preço dos produtos
artesanais, decorrente de privilégios conquistados pela burguesia urbana. Ainda, a
necessidade de empréstimos para sustentar o consumo ostentatório e as despesas
com armamento criavam um circuito de dívidas da classe senhorial com o usurário
(HILTON, 1977, p. 162-166).
13
Ver discussão sobre o fenômeno da revolução burguesa e da acumulação primitiva
mais adiante, nos próximos capítulos.

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Capital mercantil e acumulação primitiva na
transição para o capitalismo

Na intenção de definir o modo de produção feudal e o agente


motor das transformações socioeconômicas na Europa dos séculos
XIV-XV, Sweezy, Dobb e os demais debatedores trouxeram à tona, em
maior ou menor grau, o tema das trocas comerciais. Entre as teses
“internas” ou “externas” sobre a transição, um elemento unificador
esteve na compreensão de que a intensificação da atividade mercan-
til é um fator de explicação para a dissolução do feudalismo – seja
ela condicionada ou não à existência de outros fatores. Entretanto,
o posicionamento dos autores acerca das trocas comerciais como
um fenômeno social não explica suas concepções sobre o papel do
capital mercantil e da burguesia comercial. Tendo sido traçadas até
o momento concepções mais amplas sobre o processo de transição,
passam os autores a debatê-lo sob a perspectiva das classes sociais
envolvidas.
As considerações de Dobb acerca do capital mercantil e da acu-
mulação primitiva são perpassadas por uma questão que as unifica:
onde estariam as origens da acumulação de capital, especialmente no
que tange à Inglaterra entre os séculos XII e XVIII? Nas etapas iniciais
do processo, a base da economia urbana estava depositada no dito
“pequeno modo de produção”, em que o trabalhador dispunha da
propriedade dos meios de produção e possuía liberdade de comerciar.
Em tais condições, a produtividade e o nível de poupança eram por
demais baixos, sendo insuficientes para a promoção da acumulação.
Assim sendo, não podemos esperar neste momento, efetivamente,
que o processo de concentração de riquezas ocorra com base na
produção. A fonte de acumulação deve ser buscada, portanto, fora
do pequeno modo de produção, nas condições socioeconômicas que
viabilizaram a formação de uma privilegiada classe mercantil que,
tendo se afastado do processo produtivo, devotara-se ao exercício
das trocas por atacado; somente em um mercado de amplitude con-
siderável estavam as possibilidades de enriquecimento, dificilmente
verificáveis num contexto de quase subsistência e de mercado local
em que estava inserido o artesanato (DOBB, 1986, p. 63).
Qual era a origem da renda que compunha o capital mercantil?
Tratava-se de fruto da elaboração de novos valores ou da apropriação
de excedente criado pela classe de produtores diretos? Afastada do

Livro.indb 73 16/10/2008 11:11:00


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Capital mercantil e acumulação primitiva na transição para o capitalismo

processo produtivo, investindo seu capital em atividades não ligadas


ao emprego de mão-de-obra, nem dispondo de uma massa de traba-
lhadores compulsórios passíveis de terem seu trabalho excedente
extorquido, a burguesia mercantil obtinha sua renda através da apro-
priação de parte da renda de outras classes; por não agregar valor de
nenhuma espécie às mercadorias que trafica, limita-se a obter riqueza
por meio da diferença entre preços de compra e venda.

Sua renda, em qualquer forma que fosse imediatamente adqui-


rida, representava necessariamente uma parcela do produto
do cultivador camponês ou do artesão urbano – uma dedução
feita ao produto que, de outra forma, teria ido para os próprios
produtores ou então como renda feudal para a aristocracia.
(DOBB, 1986, p. 64)

Por sua vez, condições especiais haviam de estar reunidas para


que a burguesia mercantil pudesse ter atraído para si uma fortuna tão
considerável. Mais do que o jogo das forças econômicas, dependeu de
fatores institucionais e políticos para seu sucesso. Ainda que o comér-
cio fosse remunerado pelo aumento global da produção, na medida
em que sua ação expandia mercados e disponibilizava mercadorias
em regiões desprovidas delas, incentivando a divisão do trabalho, tal
fato seria incapaz de esclarecer as origens de um ganho diferencial
tão grande em relação à atividade artesanal e agrícola. A atividade
mercantil, principalmente a concernente ao comércio externo, esta-
va em larga medida calcada no usufruto de privilégios políticos que
garantissem mercados e controlassem a concorrência. As práticas
monopolistas faziam a balança entre o produtor e o comerciante
sempre pender para o lado do segundo, na medida em que permitiam
o controle do nível de preços.
Portanto, era a atrofia no próprio desenvolvimento do mercado
que conferia ao capital mercantil as condições de seu enriquecimen-
to: ao passo que o produtor direto estava impossibilitado de manter
maior contato com os circuitos mercantis de alcance supra-local,
dado seu parco potencial de acumulação, tendo com isso dificuldades
em realizar suas mercadorias e obter matérias-primas, a figura do
intermediário ganha destaque. O baixo nível de desenvolvimento das
comunicações impedia a integração dos diversos mercados locais,
que ficavam ainda mais suscetíveis à escassez e à superabundância,

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Daniel de Pinho Barreiros


ocasionando carestias e deflações intensas. Jogando com as diferenças
de preços, de difícil solubilidade decorrente da falta de mobilidade
das mercadorias, comprando onde há excesso e vendendo onde há
falta, a burguesia mercantil firmava suas fontes de acumulação (DOBB,
1986, p. 65). Assim, era na debilidade dos mercados, em vez de na
sua vitalidade, que o capital mercantil prosperava. Distinguindo o
comércio (entendido como fenômeno social) da burguesia mercantil,
ainda que o primeiro funcione em determinadas condições como um
solvente das relações feudais, a segunda se beneficia dessas mesmas
relações, a partir dos lucros comerciais citados, da usura praticada
contra o pequeno produtor direto, contra as classes senhoriais em
decadência e contra as monarquias feudais. A ausência do modo de
produção capitalista viabilizou de várias maneiras a acumulação do
capital mercantil, e, por isso, este desempenharia posteriormente um
papel reacionário quando do momento histórico de transição integral
(DOBB, 1986, p. 65-66).
A organização da burguesia comercial urbana como classe
social tem, segundo Dobb, origem em dois fenômenos paralelos: a)
seu surgimento a partir de artesãos mais prósperos, separando-se
do processo produtivo e monopolizando um determinado setor do
comércio atacadista; b) a luta das organizações comerciais, formadas
por membros desta classe, pelo domínio das cidades, por meio da
conquista do governo, resultando na utilização da máquina política
para a instauração e manutenção de privilégios e da subordinação
do produtor urbano direto. Sobre as guildas mercantis, afirma: “A
concentração de direitos comerciais em tais órgãos significava que
o artesão comum, para fins outros que não a venda a varejo em sua
banca ou loja na cidade, era obrigado a negociar exclusivamente com
os membros da guilda mercantil apropriada” (DOBB, 1986, p. 74).
O poder nas cidades inglesas concentrava-se nas mãos de
uma plutocracia que era o mesmo grupo monopolizador do mercado
atacadista e de longa distância, indicando que os dois processos se in-
fluenciavam mutuamente (DOBB, 1986, p. 76-77). E tão logo obtidos os
privilégios que fortaleciam seu poder, a classe entrou em acordo com
a sociedade feudal, revelando sua face conservadora; a prosperidade
do capital mercantil em qualquer sociedade nesse momento histórico-
social não revela qualquer índice de sua transição para o modo de
produção capitalista. Embora tenha exercido uma ação dissolvente
na medida em que foi propulsora das trocas comerciais, ainda assim,

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Capital mercantil e acumulação primitiva na transição para o capitalismo

sua realidade de classe permitiu que se instalasse nos interstícios do


tecido feudal. Seu posicionamento no processo produtivo faz com que
tenha pouco interesse no modo pelo qual as mercadorias estão sendo
criadas, uma vez que atua e obtém renda por meio do jogo de preços
no mercado; tal fato reforça ainda mais seu caráter reacionário:1

Como eram essencialmente parasitas da antiga ordem econô-


mica, embora pudessem exauri-la e enfraquecê-la, seu sucesso,
em última instância, estava ligado ao do corpo que os nutria
[...] No final do século XVI, essa nova aristocracia, ciosa de suas
prerrogativas recém-adquiridas, tornara-se uma força mais
conservadora do que revolucionária, e sua influência, bem como
a das instituições que fomentaram como as companhias paten-
teadas, iria, em vez de acelerar, retardar o desenvolvimento do
capitalismo como modo de produção. (DOBB, 1986, p. 88)

Se pela análise marxista de Dobb não podemos esperar do pro-


cesso de acumulação mercantil e da atuação da burguesia comercial
a chave da transição para o capitalismo, em que elementos estaria
depositada, afinal, a origem desse processo? De que condições depen-
deu a sociedade inglesa, assumida como um exemplo clássico, para
superar definitivamente os limites feudais de sua economia e sociedade
e ingressar no universo do investimento capitalista e da apropriação
de mais-valia? O conjunto de fenômenos apontados por Marx como a
“acumulação primitiva” é o diferencial nesta questão.
Dessa forma, qual seria o significado da acumulação primitiva,
segundo Dobb, apoiado plenamente em Marx? Convencionando tratar-
se de um momento historicamente anterior à hegemonia do modo de
produção capitalista e que cria condições para sua implementação,
seu primeiro significado, e mais evidente, é o de uma acumulação de
valores. Não se trata de uma mera acumulação de meios de produção
de maneira que, alcançado um certo nível quantitativo, desse origem
à indústria. Isso seria descaracterizar a transição, compreendendo a
implantação da economia fabril como um processo gradativo de expan-
são das unidades produtivas até atingirem o patamar de indústrias.

Não há evidência histórica de que capitalistas tenham acumu-


lado teares, máquinas de fiar, tornos ou estoques de matéria-
prima, em armazéns gigantescos, durante décadas, até que,

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Daniel de Pinho Barreiros


com o tempo, tais reservas se mostrassem suficientes para o
desenvolvimento da indústria fabril. (DOBB, 1986, p. 127)

Tratar-se-ia, em vez disso, de uma acumulação de valores de


capital, que consistiriam em investimentos improdutivos (como
terras, imóveis, jóias etc.), nas mãos de uma classe que, ocupando um
espaço determinado na sociedade, estaria em condições, no momento
oportuno, de converter esta mesma riqueza entesourada em meios
de produção. O primeiro sentido seria, portanto, o de transferência de
riqueza para a classe burguesa, e não de acúmulo de bens de capital
a longo prazo. Por sua vez, se a mera transferência de recursos fosse
o bastante para a geração do capitalismo, o desenvolvimento do cré-
dito teria sido suficiente para fazer transitar recursos de uma classe
parasitária para uma empreendedora. O segundo sentido evidencia-
se quando consideramos a acumulação primitiva também como um
processo de concentração da riqueza social sob menor número de
proprietários (DOBB, 1986, p. 128).
E no que tange às maneiras de tal transferência e concentração
se processarem, apresenta-se outro problema. Dentre as vias possí-
veis, Dobb destaca aquela que envolveu um movimento descendente
e ascendente no valor das propriedades: a burguesia teria acumulado
riquezas a partir da compra de terras e de outras reservas de valor
improdutivas num momento de baixa de preços, e da venda desses
mesmos bens numa fase posterior, em que seu preço estivesse mais
alto e o da força de trabalho assalariada e dos bens de produção
mais baixos. Duas etapas estariam presentes, portanto, no processo:
a) uma fase de aquisição de bens pela burguesia, em que os preços
destes mesmos bens fossem baixos em função de uma situação
histórica: a crise feudal dos séculos XIV e XV que na Inglaterra, por
exemplo, lançou a classe proprietária feudal em situação de penúria
pela falta de braços e consecutiva queda nos seus níveis de renda,
teria sido acompanhada pela alienação de parte significativa das
propriedades da classe terratenente feudal; b) uma fase de reali-
zação, em que estes mesmos bens apresentassem maiores preços
e que estivessem disponíveis em abundância trabalhadores livres e
bens de produção.
A chave para a acumulação primitiva estaria nas circunstâncias
promotoras desta variação de preços a longo prazo. E tais condições
raramente teriam se apresentado em um quadro de concorrência e

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Capital mercantil e acumulação primitiva na transição para o capitalismo

livre mercado; Dobb considera a presença do Estado como um fator


inescapável no processo.

Poderia ocorrer como resultado de uma política deliberada


pelo Estado, e como incidente na queda de uma ordem antiga
da sociedade, o que tenderia a apresentar o efeito duplo de
enfraquecer e empobrecer os associados ao antigo modo
de produção e proporcionar à burguesia uma oportunidade de
ganhar certa medida de poder político, graças ao qual poderia
influenciar a política econômica do Estado [...] Era preciso que
decorresse um intervalo, durante o qual o pequeno modo de
produção, legado da sociedade feudal, estivesse sendo, ele
próprio, parcialmente rompido ou então subordinado ao capi-
tal, e a política do Estado se modelasse por novas influências
burguesas num sentido favorável aos objetivos burgueses.
(DOBB, 1986, p.129-130)

Ainda sobre a questão, o Estado desempenhou importante papel


na acumulação primitiva por meio das requisições de empréstimos
atendidas pela classe burguesa; era na dívida pública e no cresci-
mento das instituições bancárias que residia boa parte do potencial
de enriquecimento burguês. Tal oportunidade não estava restrita ao
grande capital mercantil: dela também usufruía a pequena burguesia
industrial provinciana, demonstrando que, apesar de sua atuação no
processo produtivo, este era um momento em que as mais efetivas
fontes de acumulação estavam situadas em outra atividade que não a
fabril. A nova hegemonia, exercida pelo capital mercantil, amparada
pelo novo poder estatal, também se personificava, em casos especí-
ficos, no favorecimento direto das manufaturas e no protecionismo,
típicos do mercantilismo, marca indelével do período de acumulação
primitiva europeu.
Não existindo a criação de um valor novo neste processo, a
transferência e a concentração, próprias da acumulação primitiva,
manifestar-se-iam através da redistribuição do montante da riqueza
social existente, privilegiando a classe burguesa. Colocados os ter-
mos dessa forma, se a burguesia, através do processo descrito, teria
conseguido reunir em suas mãos uma parte majoritária da riqueza,
uma outra fração da sociedade teve de perder propriedade para que
isso ocorresse. É o que igualmente ressalta Pierre Vilar, em seu arti-

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Daniel de Pinho Barreiros


go intitulado “A Transição do Feudalismo ao Capitalismo”, publicado
originalmente em 1971:

Marx demonstrou magistralmente que, se o capital se reproduz


e se acumula somente pelo livre jogo das forças econômicas,
foi preciso, entretanto, que sua acumulação primitiva se fizesse
graças às crises, às violências, aos desequilíbrios, aos açambar-
camentos e às usuras que marcaram o fim do regime feudal e a
expansão dos europeus através do mundo. [...] Expropriação-
proletarização: são os dois termos da “acumulação primitiva”
no estado puro, a perfeita separação, mediante a violência
legalizada, do produto com seus meios de produção. (VILAR,
1975, p. 39-40)

No século XVII inglês residiria a mudança de rumo. As condi-


ções que seriam antes propícias para a acumulação burguesa não
mais se apresentavam. Ou seja, o mercado para a compra por preços
baixos de terras e de outras reservas de valor já não se apresentaria
favorável ao movimento até então realizado pela classe burguesa. As
oportunidades de investimento pareciam, nesse momento, migrar
para o investimento produtivo com base na indústria fabril. Verificar-
se-ia maior aplicação de capital no melhoramento de terras e as so-
ciedades por ações floresceram, ainda que estivessem voltadas, em
maior parte, para o comércio externo. E muito embora esta última
atividade tenha exercido um fator de atração de capitais quase irresis-
tível, devido à sua vasta lucratividade, não se deve perder de mente
as bases monopolistas em que se assentava a atividade mercantil da
etapa da acumulação primitiva. Ainda que as oportunidades fossem
vastas, elas estavam restritas, jurídico-politicamente, a uma deter-
minada fração da burguesia. A parte majoritária da classe burguesa,
excluída do sistema de privilégios estatais que garantia o comércio
externo, devia atuar no mercado interno e na atividade manufaturei-
ra; desta burguesia provinciana emanara o impulso revolucionário
para a industrialização, e não da grande burguesia comercial, na
interpretação de Dobb.
Mesmo que o comércio externo oferecesse mercado para a
atividade industrial, as limitações legais para o número daqueles que
poderiam realizar comércio e as constantes exigências da burguesia
mercantil em criar condições favoráveis para seus lucros especulati-

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Capital mercantil e acumulação primitiva na transição para o capitalismo

vos – para tal, comprometendo o volume de produção e prejudicando


o investimento fabril – despertavam na burguesia industrial uma
linha de resistência ao monopólio e à prática do privilégio estatal em
benefício do capital mercantil. No momento da Revolução Industrial,
as necessidades de mercado para a produção, de alimentos para
a mão-de-obra fabril e de matérias-primas tornavam o laissez-faire
uma diretriz de primeira linha. Países como a Alemanha e os Estados
Unidos, que buscaram mercado para sua produção fabril no interior
de suas fronteiras e que eram suficientemente amparados por sua
própria agricultura, manifestaram tendência ao protecionismo como
meio de implementar suas transformações industriais (DOBB, 1986,
p. 135-141).
Todos os fatos nos permitiram afirmar que, ao contrário das
opiniões que vêem o processo de implantação do capitalismo como
uma evolução gradual, de fato duas fases teriam sido plenamente
distintas, apesar de ao longo dos séculos XVI-XIX terem ocorrido si-
multaneamente a compra e a venda de valores de capital. Entretanto,
por mais que frações da burguesia tenham muito cedo concentrado
valores de capital, as condições favoráveis ao investimento na indús-
tria só estariam plenamente desenvolvidas nos séculos XVII-XVIII,
ficando em maior parte restritas as oportunidades de investimento,
antes desse momento, ao financiamento do comércio e da indústria
doméstica. Em outras palavras, a segunda fase da acumulação primi-
tiva – a da realização dos valores adquiridos e sua transformação em
bens de produção e salários – só teria se tornado possível depois de
plenamente consolidada a primeira; além da transferência de bens
para a burguesia, era imprescindível que os níveis de concentração
chegassem a um ponto tal que tivessem causado a expropriação dos
proprietários anteriores, e, com isso, a criação de um contingente
de despossuídos que se constituíssem em vendedores de força de
trabalho. Por isso, apesar dos indícios de que as fases teriam ocor-
rido simultâneamente – como de fato o fizeram –, a consolidação da
segunda etapa apenas foi possível depois da resolução da primeira
(DOBB, 1986, p. 128-133). “Em certa medida, uma transformação de
todas essas condições dependeu de uma dissolução do modo de pro-
dução anterior, centralizado no pequeno produtor e no mercado local”
(DOBB, 1986, p. 133).
Sweezy discorda da interpretação da acumulação primitiva
baseada em uma fase de aquisição e em uma de realização de valo-

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Daniel de Pinho Barreiros


res de capital e sua conversão em meios de produção. Afirma que
Dobb não teria oferecido qualquer tipo de prova da veracidade de
sua hipótese. Como o dito “período de aquisição” teria coincidido
com a criação de instituições de crédito que viabilizavam a con-
versão de valores congelados em valores realizáveis, ficaria a dú-
vida acerca dos motivos que teriam levado, portanto, esta mesma
burguesia a converter os valores acumulados e sobre que classe
teria condições de adquirir estes mesmos bens da classe burguesa,
já que a riqueza concentrava-se paulatinamente nas mãos desta
última. Assumindo que seria possível que determinados membros
da burguesia permanecessem voltados para a acumulação especu-
lativa, enquanto outros estivessem interessados no investimento
industrial, seria improvável a existência de uma classe com dispo-
nibilidade de recursos para despender na compra destes valores.
Dobb ainda teria dado provas de sua imprecisão quando sublimou a
importância de uma “fase de realização” para o modo de produção
capitalista, elegendo a proletarização como condição fundamental,
fator este que não advinha em primeira mão da ação da burguesia,
e sim do colapso da velha ordem (SWEEZY, 1977b, p. 55-57).
Dobb, em sua réplica, cede aos ataques do norte-americano,
reconhecendo a fragilidade da noção de uma “fase de realização” sepa-
rada de uma anterior, ainda que reafirme que os argumentos centrais
de sua tese permanecem íntegros. A venda de valores de capital em
propriedade da classe burguesa não teria contribuído significativa-
mente para a prosperidade da exploração capitalista; a criação do
proletariado seria a condição principal para tal fenômeno. Entretanto,
a realidade de setores dessa mesma burguesia com menores condições
de financiamento para que investissem na produção fabril, somada à
existência de uma burguesia devotada à acumulação pré-capitalista,
pode nos levar em direção à importância – ainda que mediana – da
dita fase de realização. Se for ainda considerada a inadequação do
sistema de crédito para atender às necessidades da indústria, mais
indícios surgiriam em apoio à hipótese. Por fim, Dobb justifica sua
afirmação de uma segunda fase no processo de acumulação, uma
vez que ao menos se teria verificado uma transformação progressiva
no alvo dos investimentos da classe burguesa, ainda que não tivesse
existido um movimento extenso de vendas nessa etapa de realização
(DOBB, 1977, p. 55-57).

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Capital mercantil e acumulação primitiva na transição para o capitalismo

Ainda que não expresse textualmente tal intenção, Vilar parece


compreender o processo de acumulação primitiva também através da
noção de duas etapas. As tendências especulativas do capital foram
beneficiadas pela alta de preços, sobretudo durante o século XVI, pelo
aumento da carga tributária dos Estados e pelos empréstimos. Trazen-
do em si a própria contradição, a acumulação primitiva esgotar-se-ia
pelo seu próprio funcionamento: a afirmação do mercado mundial
tenderia a estabilizar o nível dos preços, dificultando a ação especu-
ladora e a progressivamente maior circulação de moeda tornava os
lucros usurários cada vez menores. A tendência das taxas de juros e
de lucros é diminuir ou se nivelar.
Em tais circunstâncias, processar-se-ia uma transformação nos
objetivos de uma fração da burguesia que passaria a buscar novas
oportunidades de lucro, para tal violando o espaço das relações eco-
nômicas feudais de modo a lançar mão sobre o processo produtivo.
Vilar insiste exatamente no que Dobb considera crucial: existiria uma
primeira fase, que sendo um momento propício para o lucro especula-
tivo, teria atraído para este a maior parte dos capitais disponíveis. O
próprio funcionamento e desgaste teria condenado as engrenagens da
acumulação primitiva: podemos supor que a fração da burguesia que
abandona o lucro especulativo e migra para a extração de mais-valia
o fez justamente pelas condições propícias (no que tange à mão-de-
obra) e por um estreitamento das possibilidades de investimentos nas
velhas atividades (VILAR, 1975, p. 43-44) .

Notas

1
Hilton corrobora com a opinião de Dobb. Em suas palavras: A capacidade técnica dos
métodos de comercialização, a capacidade de concentrar recursos para financiar (a
taxas de juros usurários) governos e aristocratas donos de terras sempre carentes de
recursos facilmente realizáveis, o mecenato cultural desses mercadores medievais
capitalistas conquistou-lhes de seus historiadores um coro de admiração. Nenhum,
porém, foi capaz de modificar a avaliação feita por Marx do papel histórico desses
mercadores, isto é, que seu capital permaneceu sempre na esfera da circulação, e
nunca se aplicou à produção agrícola ou industrial de maneira inovadora. A chamada
revolução comercial em nada alterou o modo feudal de produção (HILTON, 1989, p.
22-23).

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Capital industrial e revolução burguesa nos
caminhos para o capitalismo

Sendo menores as divergências sobre a acumulação primitiva,


as argumentações anteriores centraram-se na discussão do papel
conservador ou revolucionário do capital mercantil. Estas conside-
rações incidiriam sobre a última etapa das discussões, referente ao
surgimento do capital industrial e à sua interseção com o fenômeno
da revolução burguesa. Centrando-se na questão da formação do capi-
talismo por uma ruptura revolucionária, associada à ação do burguês
industrial oriundo das fileiras da classe produtora, os autores defini-
riam suas posições acerca das “duas vias” de transição do feudalismo
para o capitalismo.
Dobb afirma que, se em uma primeira etapa de sua existên-
cia, o capital mercantil encontra-se numa posição de externalidade
ao modo de produção feudal, este passa, ao longo dos séculos de
acumulação primitiva, a penetrar no processo produtivo em si: as
dimensões da ação desintegradora desse processo, no entanto,
iriam depender do caminho seguido entre duas vias historicamente
verificadas. Na primeira, que seria a genuinamente revolucionária, a
classe de mercadores-capitalistas que investiria no trabalho assala-
riado e na indústria surge diretamente dos produtores diretos, após
terem ascendido num processo de diferenciação social já analisado
no item anterior. Na segunda, a antiga burguesia mercantil assumiria
o controle sobre o artesanato urbano e sobre a indústria doméstica
rural, atuando como financiadora e monopolizadora da realização das
mercadorias produzidas por estes; ainda que provocasse uma ação
transformadora, engendraria uma série de entraves ao modo de pro-
dução capitalista; no caso inglês, que será o objeto da exposição de
Dobb, esta segunda via entraria em declínio com o desenvolvimento
da primeira (DOBB, 1977, p. 89).
A primeira fase de constituição do capital industrial na Ingla-
terra, ao longo dos séculos XV-XVI, teria sido marcada pelo desenvol-
vimento da segunda via, ou seja, da submissão do produtor direto ao
capital mercantil. Sua prática consistiu na organização do trabalho de
artesãos nas áreas periféricas das cidades e nos campos, nos quais
se poderia escapar das regulações corporativas das guildas com
maior sucesso. A prática do domínio sobre a produção ficava clara
através da ação dos mercadores nas Livery Companies de Londres:

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

aquelas que tinham uma predominância de artesãos passaram a ser


comandadas pelo capital mercantil, que ainda assim mantinha seus
interesses voltados em maior parte para o comércio externo. Através
do financiamento da compra de matérias-primas e da pequena liber-
dade de venda imposta ao artesão, o mercador apertava os laços de
dependência e pouco alteraria os métodos e técnicas de produção. “O
papel progressista do mercador-fabricante limitou-se aqui a estender
a produção artesanal e romper os limites impostos pelo monopólio
urbano tradicional” (DOBB, 1977, p. 94).
Concomitantemente ao controle do trabalho artesanal urbano,
através do domínio das guildas, a oligarquia mercantil londrina orga-
nizava a indústria doméstica no campo, entrando em choque com os
fabricantes e comerciantes das cidades provincianas, prejudicados
pela extensão dos negócios de sua rival para áreas não limitadas pelos
regulamentos corporativos. Nesse momento, estes exerciam um papel
reacionário, na medida em que lutavam contra o estabelecimento da
indústria rural – passo importante para a superação do artesanato
corporativo feudal – e contra a expansão da divisão do trabalho.
O século XVII foi marcado por uma virada no processo,
verificando-se um interesse igualmente ativo do artesanato urbano
em escapar às restrições corporativas que entravavam o livre exer-
cício de suas atividades. É perceptível o crescente predomínio de
mercadores-empresários vindos diretamente do seio dos artesãos
e da yeomanry, fato este que muito provavelmente ocorreu devido a
uma transferência da oligarquia mercantil para as atividades ligadas
ao comércio externo, no qual poderiam usar seu prestígio e poder
para alcançarem posições privilegiadas, e pelo desinteresse desta oli-
garquia na expansão da atividade artesanal, já notado desde o século
XVI. Tais condições teriam aberto espaço para a afirmação de uma
fração de classe emergente do artesanato que ameaçaria o predomínio
corporativista da burguesia mercantil já consolidada. O canal utilizado
por esta yeomanry mercantil-industrial para exercer sua influência
foi a tentativa de controle político das companhias – dominadas pelo
capital mercantil mais antigo – e a luta pela criação de novas corpo-
rações, separadas das antigas, com predomínio dessa nova classe.
Esta ascensão, entretanto, não seria um sinônimo de poder do artesão
pobre: evidentemente o domínio era exercido pela fração mais rica,
aquela que atuava como mercadora e industrial, empregadora dos
artesãos semi-proletarizados. E novas tendências na luta de classes

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Daniel de Pinho Barreiros


manifestavam-se: na medida em que a elite da yeomanry tendia a burlar
os antigos regulamentos sobre aprendizes para ampliar o número de
trabalhadores a seu serviço, degradando o status do artesão menor,
estes últimos chegaram a se juntar à velha burguesia mercantil pela
preservação da tradição (DOBB, 1977, p. 95-98).
Esta etapa de construção do capitalismo que antecede a Revo-
lução Industrial foi marcada pela predominância do trabalho familiar;
embora existissem fábricas empregando trabalhadores plenamente
assalariados, esta não seria a regra. As forças produtivas ainda esta-
vam num patamar muito aquém daquilo que se iria presenciar com
as transformações do século XVIII. A propriedade das ferramentas de
trabalho ainda estava ao alcance do artesão médio. A parca divisão
do trabalho fazia com que a diferença entre a produção fabril e a
doméstica fosse muito pequena, exceto pelo fato de que na primeira
as máquinas e ferramentas estavam concentradas numa mesma uni-
dade produtiva e não fracionadas pelos domicílios dos produtores. A
técnica predominante ainda não demandava a produção em fábrica,
estando capital, capitalistas e trabalhadores voltados para o trabalho
doméstico. Ainda assim, existiria uma diferença crucial entre o antigo
artesanato urbano e a indústria doméstica, que estava na submissão
do produtor direto ao capital mercantil.
No caso da indústria doméstica dos séculos XVI-XVII, o artesão
perde a maior parte de sua independência, uma vez que as matérias-
primas, ferramentas e outros requisitos para a produção passam,
na maior parte dos casos, a ser propriedade do capital. É nesse fato
que reside a verdadeira fronteira entre dois modos de produção: a
subordinação do produtor ao capitalista através da propriedade dos
meios de produção exercida pelo segundo (DOBB, 1977, p. 99-103). A
semelhança da indústria doméstica e da manufatura com a grande
indústria ligada à Revolução Industrial inglesa do século XVIII estaria,
entretanto, limitada em muitos pontos à questão das novas relações
de produção que surgiam; no que tange às forças produtivas em si,
o sistema doméstico estava muito mais próximo do velho artesana-
to, ainda que já apresentasse grandes avanços no tocante à divisão
do trabalho.1 A complexidade do processo produtivo poderia ser
progressivamente intensificada, uma vez que o mercador-fabricante
mostrava interesse em melhorar os instrumentos e as técnicas, dis-
pondo de capital e independência para isso, fato que a escassez de
recursos de um artesão comum e as limitações impostas pelas guildas

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

poderiam interromper. Aliás, o próprio processo de dependência do


produtor direto ao proprietário foi impulsionado pelo aumento dos
gastos produtivos necessários com os instrumentos de produção,
que o tornavam viável exclusivamente mediante a utilização de soma
considerável de capital, além das possibilidades dos trabalhadores.
Em menor escala, a falta de acesso a matérias-primas e mercados
consumidores também atuava como fator de subordinação, tendo em
vista o papel do capital mercantil em estabelecer esta ponte (DOBB,
1977, p. 104-106).
A principal influência na determinação dessa submissão não
estaria na complexidade do processo produtivo nem nos mercados,
mas sim na posse de terra pelo artesão rural doméstico. Nesta etapa
inicial de implantação do modo de produção capitalista, teria sido o
grau de independência econômica do produtor direto o fator de delimi-
tação do poder do mercador-fabricante sobre ele. O yeoman indepen-
dente, com uma quantidade de terras férteis suficiente, teria como se
devotar à agricultura como primeira atividade, mantendo o sustento
de sua família e mais algum excedente, e à tecelagem como segunda.
A subsistência garantida lhe permite ter uma margem de autonomia
grande em relação ao crédito do capital comercial, podendo esperar
mais tempo por uma melhor oportunidade de venda. Já aquele que
não dispunha de meios de subsistência, se via na condição de precisar
vender sua produção e obter um adiantamento sobre a próxima.
A indústria doméstica, parcialmente submetida ao capital, só
pôde subsistir enquanto a pequena propriedade de terra e a posse
dos instrumentos da produção artesanal permaneceram nas mãos
do camponês; o avanço da concentração fundiária e a destruição da
classe dos yeomen anunciavam um novo momento. A pobreza e a anu-
lação progressiva da base de sustentação econômica do campesinato
e do artesanato urbano foram os fatores de maior importância para
o controle capitalista da produção, sendo o primeiro passo para a
superação do modo de produção feudal (DOBB, 1977, p. 107-108).
Giuliano Procacci, em um balanço do debate publicado em 1955
na revista italiana Società, define de um modo preciso a interpretação
de Dobb sobre as “duas vias”: no primeiro caso, dos produtores que
se tornam capitalistas, verificam-se pequenas unidades de produção
(de pequena complexidade, rural ou industrial) e o estabelecimento de
relações entre um empregador e trabalhadores livres; no segundo, em

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Daniel de Pinho Barreiros


que o mercador se torna capitalista, dá-se a submissão do produtor,
ainda de posse de seus meios de produção, ao capital comercial.
No primeiro exemplo verificou-se a tendência do produtor, que
volta sua produção para o mercado, de reduzir os custos e, para tal,
escapar do intermédio do capital mercantil, procurando ainda subor-
dinar os interesses deste último aos da produção. Trata-se já da gera-
ção de lucro capitalista baseado no sobretrabalho do assalariado. O
capitalista, nesse caso, apresentou um interesse manifesto em romper
com todo o tipo de práticas monopolistas e vantagens corporativas
(ao menos neste primeiro momento do capitalismo europeu), uma
vez que a lucratividade de seu empreendimento não era obtida pelo
exercício de privilégios e especulação: um mercado livre interessaria
plenamente a um capitalista que obtém seus ganhos pela exploração
do trabalho excedente não-remunerado de assalariados.
Já no segundo, o capitalista intervém superficialmente no
processo de trabalho; os limites da produção são estabelecidos pelo
interesse mercantil e pelo tamanho do mercado, o que significa dizer
que o capital comercial submete o industrial. A forma de lucro mani-
festada nesta segunda via é ainda a forma primitiva de lucro especu-
lativo, obtido por meio das diferenças de preços de compra e venda
em função das particularidades de mercados distintos, e não pelo
emprego de trabalho assalariado e pela apropriação de trabalho exce-
dente não-pago. Por isso, o capitalista vinculado à segunda via teve o
interesse em preservar as práticas monopolistas e de privilégios nas
quais se baseavam as taxas de lucro compensadoras que obtinham
(PROCACCI, 1975, p. 58-60).
Sweezy contesta a validade da interpretação de Dobb para as
“duas vias” de formação do capital industrial. Afirma ser impossível
provar, devido à falta de documentos suficientes, o caráter “verdadeira-
mente revolucionário” da primeira via, que compreende o surgimento
do capitalista industrial do seio da classe de produtores diretos (cam-
pesinato e artesanato) e sua consecutiva hegemonia sobre o capital
mercantil. Por razões mais fortes que a carência de fontes, o economis-
ta inglês teria falhado devido a uma leitura equivocada de Marx, que
nunca teria afirmado ser a mutação do produtor direto em empregador
um caminho realmente impactante de consolidação do capitalismo.
O contraste posto por Marx, na opinião do norte-americano, estaria
entre a criação de empresas já plenamente consolidadas (manufaturas
criadas com base em um capital previamente acumulado nas mãos

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

da burguesia mercantil, prescindindo da etapa primitiva de “sistema


doméstico”) e o próprio desenvolvimento lento do sistema capitalista
como um todo. A “via revolucionária” seria aquela em que surgissem
empreendimentos plenamente constituídos (as “manufaturas reu-
nidas” colbertistas, por exemplo) sem que precisassem atravessar
os estágios intermediários impostos pela dinâmica do novo sistema
(SWEEZY, 1977b, p. 51-55).
Dobb replica afirmando serem abundantes as provas do surgi-
mento do capital industrial a partir do dito “pequeno modo de pro-
dução” e que, portanto, no que tange a este fato, não se sustentariam
as proposições de Sweezy. Existiriam elementos suficientes para de-
monstrar que foi a yeomanry, com sua independência e inovações no
campo, que permitiu o desenvolvimento de uma indústria doméstica,
empregando extensivamente mão-de-obra de camponeses arruinados.
Seriam ainda os membros desta classe os principais agentes motores
da revolução burguesa na Inglaterra, tendo cerrado fileiras ao lado
do New Model Army, de Oliver Cromwell, contra o capital mercantil,
alinhado à reação feudal. Nas guildas também seriam conhecidos os
artesãos que, devotados ao comércio e empregando o trabalho de
outros mais pobres, davam mais um salto na direção do modo de pro-
dução capitalista. Eles seriam os pioneiros, ainda que no momento
da Revolução Industrial tivessem de enfrentar as questões ligadas
à técnica, que em muitos casos os excluiu como uma possibilidade
viável. Entretanto, até o momento anterior às mudanças técnicas do
século XVIII, o pequeno capitalista pôde desempenhar seu papel de
comando na construção do capitalismo (DOBB, 1977, p. 72-74).
Procacci reconhece a validade da tese das duas vias assim
como Dobb a expressou. Segundo ele, o que Sweezy considera em sua
análise é a velocidade pela qual os diferentes tipos de organização
produtiva chegam a um estatuto de empresa capitalista. A segunda via
seria equivalente ao putting-out system, em que o mercador mantém
o artesão trabalhando em seu domicílio pelos métodos tradicionais,
somente controlando a comercialização e o fornecimento dos meios
de produção, com uma dificultada articulação entre as unidades pro-
dutivas se comparada à primeira via, representada pela manufatura,
que seria revolucionária na medida em que superaria a etapa de fra-
cionamento das unidades produtivas. Sweezy não reconheceria em
nenhum momento que as duas vias dizem respeito a forças sociais
distintas conduzindo o processo de construção do capitalismo, se-

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Daniel de Pinho Barreiros


gundo interesses de classe próprios. Sua concepção restringir-se-ia
a uma questão de organização produtiva, polarizada entre o maior
dinamismo da manufatura (de onde teria surgido o verdadeiro impulso
industrial) e a lentidão do putting-out system, ainda que Dobb tenha
afirmado que a diferença efetiva do processo produtivo em ambos os
casos fosse quase nenhuma. O papel do pequeno produtor indepen-
dente na geração do capitalismo não teria importância na abordagem
sweeziana (PROCACCI, 1975, p. 60-61).
Os argumentos de Sweezy seriam ainda criticados e mais bem
esclarecidos por Takahashi. Ainda que questione o norte-americano
por não ter percebido nas duas vias de surgimento do capital indus-
trial uma linha de conflito, reconhece a validade de suas colocações
sobre a segunda via de surgimento do capital industrial. No que diz
respeito à primeira via, entretanto, Takahashi afirma a impropriedade
de se inserir nela o exemplo das manufaturas reunidas e se excluir o
“pequeno modo de produção”. Mesmo que tenha sido uma experiência
de passagem direta à produção manufatureira sem que se passasse
por uma fase de indústria doméstica,

[...] não é esta uma manufatura genuína como forma inicial da


produção capitalista (capital industrial), mas um mero ponto
ou nó de coesão do novo sistema do capital mercantil, como
os nossos trabalhos mostraram; e, conseqüentemente, foi esta
idêntica à via número dois, em caráter. (TAKAHASHI, 1977,
p. 120)

Essa forma de organização do trabalho esteve longe de repre-


sentar a emergência do produtor direto como comerciante e como
empregador, além de não contemplar a submissão do capital mercantil
ao capital industrial. Tais empresas monopolistas e dependentes do
privilégio estatal exerceram ação conservadora diante do desafio da
revolução burguesa na Inglaterra, e foram derrotadas pela vitória
da burguesia oriunda do pequeno modo de produção.
Com isso, segundo Procacci, o historiador japonês enfatiza
serem as duas vias fases diferentes e opostas do desenvolvimento
do capitalismo, correspondendo a diferentes questões e interesses de
classe hegemônicos em cada sociedade; não seriam, como pretende
Sweezy, duas maneiras de se atingir um mesmo resultado.2 Ao contrá-
rio, os resultados seriam bastante distintos, de acordo com o caminho

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

seguido. “Takahashi, com sua grande capacidade de historiador, vê,


no fato de uma ou outra via haver prevalecido em tal ou qual país, um
dos traços característicos da estrutura social destes mesmos países
à época de formação do capitalismo” (PROCACCI, 1975, p. 61).
Takahashi ainda identifica uma contradição na argumentação de
Dobb. A primeira via identificada pelo inglês consistiria na emergência
do produtor direto como mercador e industrial, como já explicitado.
Vê esta via como um sistema de transição, em que o novo empresário
emprega o trabalho do artesão mais pobre. Entretanto, a forma his-
tórica de realização de lucro neste momento, como o próprio Dobb
admite, consistia num controle do trabalho “externo” ao modo de pro-
dução, sendo a produção fabril e o emprego de trabalho plenamente
assalariado uma exceção. “Eles ‘controlavam’ apenas de fora, e com
o objetivo de perpetuar o seu domínio, como capitalistas mercantis,
mantiveram as condições tradicionais da produção imutáveis; foram
conservadores em caráter” (TAKAHASHI, 1977, p. 120). Nesses termos,
a primeira via não deveria diferir, aos olhos de Takahashi, da segunda,
exceto se considerarmos características próprias ao processo histó-
rico inglês; e é dessa maneira que o historiador japonês propõe que
seja interpretada a tese de Dobb.
A indústria doméstica inglesa a que se refere não diria respeito
ao trabalho do artesão submetido plenamente pelo capital mercantil,
mas sim a pequenas indústrias independentes. Por motivos assi-
nalados na própria argumentação do economista inglês, o yeoman
no campo teve condições, dada a dissolução dos laços feudais, de
manter sua independência perante as imposições do capital comer-
cial, negociar com ele em condições satisfatórias e, posteriormente,
submetê-lo aos interesses da produção fabril. Em outras palavras,
diante do “novo sistema” que se apresentava durante e após o século
XV – imposição progressiva do capital mercantil sobre o conjunto do
campesinato e artesanato urbano – existiram condições na Inglaterra
para a preservação da situação econômica de um determinado estrato
de produtores, para que pudesse ascender à condição de comerciantes
e industriais. Portanto, se considerarmos um modelo mais amplo, em
que o mercador-empresário atuou como entrave ao capitalismo, não
poderíamos associar-lhe o novo empresário inglês, que lutaria contra
os privilégios da antiga burguesia comercial, a favor da liberdade eco-
nômica e pela revolução burguesa (TAKAHASHI, 1977, p. 123-124).

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Daniel de Pinho Barreiros


A extrapolação do modelo de desenvolvimento econômico de
Dobb para outras realidades mereceria cuidados bastante especiais.
No caso inglês e francês, a luta pela revolução baseou-se na ação
do campesinato e do pequeno produtor, de uma dita classe média
contra a grande burguesia, ligada aos interesses do capital usurário
e comercial. Nesta modalidade de transformação, é a vitória do pe-
queno produtor que abre espaço para o poder do grande burguês, na
medida em que é a ação dos primeiros que põe abaixo todo o sistema
de coações extra-econômicas ligadas ao modo de produção feudal,
entrave ao desenvolvimento pleno de um mercado livre de trabalho
e do investimento capitalista.
No que diz respeito ao Japão e à Prússia, o capitalismo havia-se
implantado sem o intermédio de uma revolução burguesa que liber-
tasse os produtores das limitações do tipo feudal; não seria possível
encontrar nenhuma condição que tivesse possibilitado ao produtor
direto tornar-se, ele mesmo, comerciante e industrial, desafiando o
poder das classes ligadas ao velho modo de produção. Não há um
processo de dissolução dos laços feudais, e, portanto, não se criam
possibilidades notáveis de independência do produtor. Antes disso,
o capitalismo nesses países ergue-se mantendo de pé a antiga estru-
tura de propriedade agrária, as relações sociais próprias de modos
de produção pré-capitalistas e a tutela de um Estado nacional não-
burguês.

Uma vez que o capitalismo vingou nesta espécie de terreno,


mais na base de uma fusão do que de um conflito com o abso-
lutismo, a formação do capitalismo ocorreu de modo oposto ao
da Europa ocidental, predominantemente como um processo
de transformação do capital mercantil em capital industrial.
(TAKAHASHI, 1977, p. 127)

Com isso, o processo de formação da economia industrial nesses


países ocorreu não por meio da diferenciação econômica do artesão e
do camponês, mas sim por meio de uma mutação das classes ligadas
ao capital comercial – incluindo aí a aristocracia feudal, inserida na
dinâmica comercial. Mais ainda, as condições sociais e econômicas
para o surgimento da democracia moderna e do liberalismo burguês
não se apresentaram, dado o predomínio, como classe dinâmica, dos
antigos grupos aristocráticos feudais. A evolução interna destas socie-

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

dades não demandaria uma revolução burguesa para que prosseguisse


no processo de implantação do capitalismo; as reformas, quando
presentes, pouco influenciariam sobre as estruturas sociais e seriam
impulsionadas, via de regra, por fenômenos externos (TAKAHASHI,
1977, p. 127-128).
Um dos pontos criticados por Takahashi na análise de Dobb fora
a falta de menção à análise weberiana acerca do fenômeno da revolução
burguesa e da ação do pequeno produtor (TAKAHASHI, 1977, p. 115).
As colocações do economista inglês acerca do papel revolucionário
da yeomanry e do pequeno produtor contra os interesses do capital
comercial e usurário, no caminho da implementação do capitalismo
industrial na Inglaterra, teriam sido anteriormente discutidas por We-
ber; por mais que a tese de Dobb estivesse em uma linha de choque
contra as concepções circulacionistas, o fato de o sociólogo alemão
ter contemplado as mesmas questões anteriormente deveria ser su-
ficiente para render-lhe comentários. Em consonância com a opinião
de Takahashi, percebemos a existência de uma fértil interseção entre
os debates marxistas sobre a transição e as análises ligadas ao pen-
samento weberiano. Dessa maneira, seria impossível prosseguirmos
falando da Revolução burguesa sem este contraponto, que no presente
estudo será realizado não por intermédio da contribuição do próprio
Weber, mas da tese clássica de Barrington Moore Jr. acerca das origens
sociais da ditadura e da democracia (MOORE Jr., 1983).3
Ao estudar alguns exemplos de processos de “modernização”,
Moore Jr. estabelece três vias de construção das sociedades indus-
triais. A primeira delas é a que associa a construção e a consolidação
do capitalismo com a prática da democracia liberal parlamentar, o
que geralmente ocorreu por intermédio de revoluções, sendo os casos
da Revolução Puritana, Francesa e a Guerra Civil norte-americana. A
segunda via concretiza igualmente o capitalismo, mas não por meio
de um movimento popular revolucionário, e sim por intermédio de
práticas reacionárias oriundas das classes dominantes, que preservam
a maior parte da velha sociedade, forçando-a a reformas estritamente
necessárias para comportarem a sociedade industrial. Este seria os
exemplos da Alemanha e do Japão. Uma terceira via seria perceptível
mediante um movimento revolucionário camponês que criaria condi-
ções para o surgimento de uma sociedade industrial evitando a revo-
lução burguesa e a preservação da velha sociedade: seria o caminho
das revoluções comunistas, em que se inserem a China e a Rússia. O

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último exemplo analisado, o indiano, seria o de uma sociedade que
entra em processo de construção de uma sociedade industrial – tardio
em relação às demais – sem que tenha sido alvo de qualquer tipo de
revolução – burguesa, conservadora ou camponesa (MOORE Jr., 1983,
p. 407). Os dois primeiros, entretanto, são os que mais nos interessam
nesse momento.
Tratando-se da “via da revolução burguesa”, Moore Jr. propõe-
se a analisar as características sociais presentes no mundo agrário
das sociedades que foram marcadas por este modelo de transição,
que teriam conduzido à afirmação de instituições entendidas como
“democrático-ocidentais”. Portanto, busca compreender os fatores que
teriam contribuído para o desenvolvimento da democracia, ligados à
conquista de alguns horizontes ideais: o controle de governos marca-
damente arbitrários; a substituição de leis consideradas arbitrárias por
outras mais “justas” e “racionais”; a participação de toda a sociedade
na confecção das mesmas leis. Ainda que elementos estruturais pre-
sentes nas sociedades agrárias não definam de um modo determinista
o resultado do processo de “modernização”, podem ser mais ou menos
favoráveis para a construção de um modelo democrático-burguês
(MOORE Jr., 1983, p. 408-409).
Moore Jr. afirma que no feudalismo ocidental existiram ins-
tituições que favoreceriam o desenvolvimento da democracia pos-
teriormente, como a noção de imunidade de determinados setores
sociais ao poder do governante, a idéia do direito de resistência a uma
autoridade que seja considerada injusta e a concepção de contrato
entre pessoas livres, resultante da vassalagem, como reguladora das
relações sociais. Tais características estariam reunidas somente na
Europa ocidental; ainda que algumas delas pudessem ser encontradas
em diferentes pontos do planeta, outros elementos teriam se imposto
de modo a inviabilizar o pleno desenvolvimento de uma sociedade
liberal. A longevidade de Estados absolutistas ou de outras burocra-
cias centralizadas pré-industriais teria sido um fator de entrave para o
desenvolvimento da democracia de tipo ocidental, ainda que sua ação
tenha controlado os ímpetos particularistas das aristocracias.
A este respeito, uma condição considerada por Moore Jr. como
indispensável foi o fato de ter havido um certo equilíbrio de poder entre
a autoridade estatal e os setores aristocráticos, ocorrendo a afirmação
do primeiro articulada a uma relativa margem de independência do
segundo. O modo pelo qual as aristocracias obtiveram sua libertação

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

das imposições estatais também são fator de influência: nos casos em


que tal ocorre sem o apoio de um movimento urbano suficientemente
poderoso, evitando uma revolução burguesa, a tendência tem sido a
criação de mais um obstáculo à democracia.

Na Rússia, durante o século XVIII, a nobreza conseguiu rescindir


as suas obrigações para com a autocracia czarista, conservan-
do-se simultaneamente, e aumentando mesmo, as suas pro-
priedades e seu poder sobre os servos. Tudo isto foi altamente
desfavorável à democracia. (MOORE Jr., 1983, p. 412)

A independência das cidades e das classes urbanas tem sido


um fator, observado inclusive pelos marxistas, importante para a
democracia parlamentar (MOORE Jr., 1983, p. 409-412).
A via democrático-burguesa também seria influenciada pelo
ingresso ou não das classes proprietárias na produção agrícola comer-
cial e pelo modo através do qual este mesmo é feito. No caso inglês,
desde cedo a aristocracia teria ingressado nas atividades comerciais,
o que teria tido o efeito de deter o estabelecimento de um Estado abso-
lutista forte. O desenvolvimento do comércio urbano e da tributação
estatal compeliu as aristocracias a procederem de modos diferentes.
Na Inglaterra, buscou-se uma forma de agricultura comercial que aca-
bava por implicar numa maior autonomia para o camponês.
Este impulso comercial na aristocracia inglesa gerou uma comu-
nhão de interesses com as cidades e a colocou em rota de colisão com
as exigências do Estado. O exemplo alemão é o da “segunda servidão”,
em que a aristocracia exacerba a exploração sobre o campesinato
utilizando mecanismos políticos e sociais, fixando o homem à terra,
para obter mercadorias para a venda. Uma terceira possibilidade é
aquela em que o impulso comercial no seio da classe proprietária
não é forte, fazendo com que a economia camponesa preserve suas
características tradicionais; trata-se de um quadro para uma revolução
camponesa em potencial, abstraindo-se de outros fatores (MOORE
Jr., 1983, p. 412-415).4
Que motivos teriam levado determinadas classes proprietárias
a aderirem a uma agricultura comercial e outras não? Moore Jr. afirma
não ser possível adotar explicações que busquem raízes da “ideologia
comercial” em fatores culturais. Afirmar que uma tradição tipicamente
aristocrática teria impedido a adesão de determinadas classes proprie-

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tárias ao comércio demonstra pouco poder explicativo, tendo em vista
que não se pode provar, por exemplo, que a aristocracia inglesa fora
mais ou menos aristocrática que a francesa. A opção por integrar-se
aos circuitos mercantis era uma questão de oportunidade:

Essas observações levam-nos a dar renovada ênfase à im-


portância das diferenças de oportunidades para adoção da
agricultura comercial, tais como, acima de tudo, a existência
de um mercado nas cidades próximas e a existência de meios
de transporte adequados, principalmente pela água, para os
materiais volumosos, antes dos tempos da estrada de ferro.
(MOORE Jr., 1983, p. 415-416)

Dessa forma, o autor afirma ser o surgimento de condições


para o exercício da atividade comercial o fator de definição para a
emergência ou não deste direcionamento na apropriação do trabalho
excedente do campesinato (ou ainda, na dedicação do yeoman inde-
pendente à produção mercantil). Nos locais em que fatores propícios
não se manifestassem, raras seriam as chances de se desenvolver
algo que pudesse ser chamado de agricultura comercial, tendo im-
plicações notáveis nos respectivos processos de modernização. Nas
sociedades em que as classes proprietárias puderam contar com a
máquina estatal para exercer a extração de renda feudal, e com estes
recursos preservarem sua situação de classe, a propensão ao comércio
também foi pequena. Por fim, Moore Jr. afirma que a eliminação do
campesinato como classe e sua transformação em outro grupamento
inserido na agricultura comercial exerceu um efeito favorável ao esta-
belecimento da via democrática. A relação entre a classe proprietária
rural e a burguesia urbana (entendida como uma classe superior das
cidades) é mais um elemento de importância na definição das “vias
de modernização”. Quando os interesses de proprietários urbanos e
rurais se unem contra o camponês e o operário, este é um indicativo
de entraves para a via democrática. No caso inglês, vemos a união
entre essas duas classes proprietárias contra a autoridade monárquica
(MOORE Jr., 1983, p. 416-418).
O autor questiona as definições mais comuns de revolução bur-
guesa. Não se trataria este fenômeno somente do resultado histórico do
aumento de poder econômico das classes comerciais e industriais, que
entrariam em choque com o poder político ainda detido pela aristo-

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

cracia feudal terratenente, de modo a completarem sua dominação de


classe e engendrarem as transformações democrático-parlamentares
apropriadas para tal. Embora admita que há grande parcela de verdade
nessas afirmações (geralmente ligadas a uma simplificada concepção
marxista), ela não daria conta do processo, o que ficaria indicado por
alguns fatos a serem considerados: na Inglaterra, o capitalismo agrário
seria beneficiado com a Revolução, permitindo que as classes a ele
ligadas mantivessem sua hegemonia política por séculos; a revolução
burguesa na França teve como uma das principais classes motoras o
campesinato, além do fato de grande parcela da burguesia estar alia-
da ao antigo regime; a escravidão nos Estados Unidos não foi menos
um fator de entrave à acumulação capitalista do que à democracia.
O problema nesse tipo de análise estaria na confusão entre as clas-
ses que movem a revolução e aquelas que saem dela beneficiadas, e
na vinculação direta entre resultados sociopolíticos do movimento
revolucionário e as classes que o engendraram (MOORE Jr., 1983, p.
421-422).
A segunda via de transformação é aquela que consiste na pre-
servação da antiga estrutura de propriedade e trabalho no campo em
concomitância ao erguimento da sociedade industrial. O capitalismo
(na análise de Moore Jr., sinônimo de mercado) penetra tanto no
campo quanto nas atividades industriais, transformando a estrutura
social sem qualquer movimento popular revolucionário vitorioso. O
tipo de mudança ocorrida na relação entre senhores e camponeses
vinculada a esta modalidade de transição é que oferece a chave para
compreendermos o fraco desenvolvimento da democracia liberal.
Fosse preservando a antiga sociedade camponesa, alterando o su-
ficiente para que a mesma produzisse excedente vendável para as
classes proprietárias, ou por meio da redução de camponeses livres
da servidão com os mesmos fins, estes sistemas de extração de sobre-
trabalho agrícola exigiam a intervenção sistemática de uma máquina
repressora (via de regra, estatal) para manter um vasto contingente de
produtores trabalhando, por métodos servis ou semi-servis. Trata-se
do que Moore Jr. conceituou como “sistemas repressivos de mão-de-
obra”, em que mecanismos político-sociais são necessários para fazer
funcionar as unidades de produção.
Em outras palavras, trata-se de economias em que a mão-de-
obra é arregimentada e posta no trabalho não por meio do mercado,
mas por intermédio de forças extra-econômicas. Não se incluiria sob

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esta rubrica o trabalho familiar estruturado em pequenas unidades
rurais como nos Estados Unidos, ou sistemas de trabalho assala-
riado, em que o produtor tivesse plena mobilidade e liberdade para
escolher o comprador de sua força de trabalho. Sistemas repressivos
de mão-de-obra, lembra o autor, não seriam mais ou menos severos
em relação aos sistemas de trabalho livre; sua grande distinção es-
taria no fato de que, na experiência histórica analisada, teria criado
condições desfavoráveis para o estabelecimento de uma sociedade
liberal democrática e pré-condições para o fascismo (MOORE Jr.,
1983, p. 427-429).
Um primeiro fator antidemocrático estaria na criação de uma
aliança entre as classes proprietárias rurais e os Estados pré-indus-
triais sob os quais se desenvolveriam; devido às necessidades de
repressão sobre a mão-de-obra, esta classe poderia buscá-la nesta
ligação com a burocracia estatal, aumentando a margem de poder
desse mesmo Estado sobre a sociedade, já que, em tais condições,
não contaria com a oposição dos setores mais poderosos. No caso
alemão, a reação feudal nos séculos XV e XVI teria interrompido o
processo em andamento de libertação do campesinato e de autono-
mia das cidades, fatores estes que contribuíram para a formação da
democracia liberal na Inglaterra e na França. Movida pelo interesse
da aristocracia junker na exportação de cereais, constituiu-se em uma
alternativa “autoritária” para a constituição de uma agricultura comer-
cial sem alterações substanciais nas relações sociais preexistentes,
paralela ao desenvolvimento do capitalismo industrial. Aumentando
seu poder pela expansão de sua base territorial às custas da proprie-
dade camponesa e tornando dependentes as cidades, logo os junkers
seriam controlados pelo Estado prussiano, que evita que a classe
hegemônica lute por mudanças em prol de avanços na representação
política. “A disciplina e a obediência prussianas e a admiração perante
as qualidades de um soldado derivavam principalmente dos esforços
dos Hohenzollern para criar uma monarquia centralizada” (MOORE
Jr., 1983, p. 430).
Numa fase posterior desse processo, ao longo do século XIX,
juntar-se-ia à coalizão burocracia-junker as classes comerciais e in-
dustriais; em vez de tomar o poder e direcionar o Estado de acordo
com seus interesses, a burguesia alemã, fraca e dependente, entraria
em acordo com a aliança no poder, substituindo as ambições de lide-
rança política pela estabilidade nos negócios que o poder repressivo

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

do Estado poderia oferecer. A concorrência comercial externa só


viria a intensificar ainda mais a coalizão e o sistema repressivo de
mão-de-obra.

Dentro do contexto de uma coligação reacionária, essa con-


corrência intensifica as tendências autoritárias e reacionárias
entre uma classe superior proprietária que verifica que a sua
base econômica se afunda e, por isso, se volta para as alavan-
cas políticas a fim de conservar seu poder. (MOORE Jr., 1983,
p. 431)

Nas sociedades em que se sustentou este bloco formado pe-


los interesses comerciais, industriais, os proprietários rurais e a
burocracia estatal, o autor afirma terem se desenvolvido regimes
conservadores e autoritários, alguns dos quais serviram de ante-
sala para o fascismo no século XX. Estes regimes teriam adquirido
características democráticas e parlamentares formais, ainda que
em substância fossem precárias: a fraqueza do Poder Legislativo
diante do Executivo era uma amostra disso. Ao avançar do século
XX, a instabilidade e a incapacidade desses governos semiparlamen-
tares em resolverem os desafios impostos, relutando em proceder
a reformas estruturais necessárias, teriam conduzido a regimes
fascistas na Alemanha e no Japão. Mas como transcende os limites
do presente estudo uma análise do surgimento do Fascismo, nos
deteremos nesta afirmação.
De volta à formação dos regimes semiparlamentares ao longo do
século XIX, segundo a experiência histórica analisada pelo autor, estes
teriam de proceder à tarefa de destruir a velha ordem pré-capitalista
sem o intermédio de uma revolução popular; tendo em vista a natureza
do pacto de classes que forma a “elite modernizante” nesses casos,
uma alteração radical na estrutura da sociedade poderia ameaçar a
própria sobrevivência de classe destes setores. Por isso buscaram
realizar uma “revolução” relativamente pacífica para a construção
de uma sociedade industrial, resolvendo questões que em outras
realidades haviam se dissolvido pela violência contra as velhas classes
dominantes. A racionalização da ordem política foi uma delas, pois
promoveu a unidade nacional por meio da submissão dos poderes e
divisões locais à ordem estatal centralizada, avançando em direção
a um mercado interno unificado, da divisão do trabalho nacional,

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criando o arcabouço necessário para a industrialização. Nos exemplos
analisados por Moore Jr., o processo foi acompanhado ainda pelo
aumento e pela modernização do poderio militar desses Estados para
obterem uma maior margem de manobra nas relações internacionais
(MOORE Jr., 1983, p. 431-433). Ainda que o autor não afirme, podemos
supor que há, em todas essas medidas, um interesse das classes que
estão no poder de defender posições mais privilegiadas na divisão
internacional do trabalho e na concorrência com outras sociedades
industrializadas.
Além de um processo de “fabricação” de cidadãos por meio,
principalmente, do sistema educacional e de propaganda, e a da
emergência de lideranças políticas “notáveis”, a burocracia estatal e
as classes coligadas movem o Estado na promoção da industrialização,
já que a classe burguesa não dispõe de poder suficiente para conduzir
com relativa autonomia este processo. Sobre a natureza do papel do
Estado, afirma Moore Jr.:

Serviu de motor de acumulação no capitalismo primitivo,


compilando recursos e dirigindo-os para a construção de
fábricas. Dominando mão-de-obra, também desempenhou um
papel importante, de modo algum inteiramente repressivo. Os
armamentos constituíram um importante estímulo para a indús-
tria. O mesmo sucedeu com as políticas de tarifas aduaneiras
protecionistas. Todas estas medidas, até certo ponto, impli-
cavam em retirar recursos e pessoas da agricultura. Por isso
impunham, de tempos a tempos, uma forte tensão à coligação
entre os setores das camadas superiores ligadas ao comércio
e à agricultura, a qual era a principal característica do sistema
político. (MOORE Jr., 1983, p. 434)

Na busca por mais argumentos que fortaleçam suas proposi-


ções, o autor analisa momentos da história em que as sociedades
que seguiram o caminho da revolução burguesa estiveram próximas
de uma virada reacionária na direção da chamada “via prussiana”, e,
com isso, busca os fatores que impediram que este segundo caminho
fosse tomado em vez do primeiro. Nas primeiras décadas do século
XIX até 1822 a Inglaterra passara por uma fase reacionária: devido à
luta contra a Revolução Francesa personificada nos exércitos napo-
leônicos, o liberalismo mais radical sofreu ataques internos, por ter-se

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

associado à ideologia do inimigo. Reivindicações de reforma no Par-


lamento eram consideradas criminosas, com o Estado procedendo à
censura da imprensa, do direito de reunião e iniciando julgamentos
por traição. O caminho estava aberto para os reacionários. Entretanto,
este momento foi uma fase passageira, e isso se deve às características
da própria sociedade inglesa.
A resposta não se encontra em uma alegável “tradição demo-
crática”, formada pela precocidade da Magna Carta e das liberdades
políticas: o próprio Parlamento, depositário dos ideais liberais, teria
votado medidas de cunho reacionário. “Uma parte importante da res-
posta poderá encontrar-se no fato de, um século antes, certos ingleses
terem cortado a cabeça de seu monarca, para destruírem a magia do
absolutismo real na Inglaterra” (MOORE Jr., 1983, p. 437).
A formação do Estado inglês, principalmente após Cromwell,
comportaria uma máquina repressiva muito mais fraca do que aque-
la disponibilizada pelas monarquias absolutistas do continente. O
capitalismo e a indústria, tendo sido construídos com uma anteriori-
dade notável em relação aos demais países europeus, permitiram à
burguesia inglesa desfrutar das vantagens do pioneirismo e da falta
de concorrência efetiva para seu desenvolvimento; isso fazia com que
pudesse prescindir do apoio do Estado e das classes proprietárias
nesse momento. Mais ainda, a própria aristocracia rural não precisava
de uma máquina estatal que controlasse a mão-de-obra e reprimisse
o campesinato, já que a situação de classe deste último fora arrasada
com a implantação da agricultura comercial. As bases, portanto, de
um modelo autoritário de sociedade não estavam montadas, e por isso
suas chances de serem implementadas eram diminutas.5
A última etapa do debate, portanto, buscou identificar as origens
do capital industrial, compreendido como agente consolidador das
transformações capitalistas. Dobb interpretou sua origem a partir da
“via verdadeiramente revolucionária”, que partiria do “pequeno modo
de produção”. Em outras palavras, a burguesia industrial que teria o
papel de ator principal na criação do capitalismo moderno seria aquela
oriunda de um processo de diferenciação social no campo e na cidade,
que deu origem a uma camada mais próspera e a uma de despossuídos,
sendo a primeira empregadora de capital e mão-de-obra, e a segunda,
vendedora de sua força de trabalho. Sweezy, por sua vez, insistiu em
compreender a afirmação de Marx sobre a “via revolucionária” como
uma diferenciação entre empresas capitalistas que nasciam já plena-

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mente formadas, dispensando a etapa de putting-out system (como era
o caso das manufaturas reunidas) e aquelas que caminharam a passos
lentos, por meio do sistema de indústria doméstica.
Acerca do fenômeno da revolução burguesa, a mais importante
contribuição foi dada por Takahashi, esclarecendo as chamadas “duas
vias” de formação do capital industrial, e oferecendo respostas para
as perguntas emergentes da interseção entre a temática da revolução
burguesa e dos diferentes caminhos tomados pelo capitalismo. Bar-
rington Moore Jr. lançou mão de uma interpretação eclética sobre a
construção das sociedades industriais, ainda que predominantemente
tributária dos modelos de análise weberianos. Algumas de suas hipó-
teses serão de grande valia para servirem de contraponto ao debate
marxista, principalmente nos capítulos posteriores.

Notas

1
“Estágios sucessivos de produção (como os de fiação, tecelagem, pisoagem e tintu-
raria, na fabricação de tecidos) achavam-se agora mais intimamente organizados
como uma unidade, o que resultava não só na extensão da divisão do trabalho
entre estágios sucessivos de produção, ou entre trabalhadores empenhados numa
variedade de elementos a reunir num produto acabado, como na possibilidade de
economizar tempo na passagem do material de um estágio para o outro, e de se
conseguir um processamento mais equilibrado, porque mais integrado” (DOBB,
1977, p. 104).
2
Ao fim, as duas vias chegariam ao capitalismo, mas não com a maioria das caracte-
rísticas em comum. As sociedades que trilharam caminhos em comum disporiam
de um tipo de capitalismo semelhante.
3
Ainda que Barrington Moore Jr. faça incursões interessantes – pelo fato de serem crí-
ticas – no pensamento marxista, seu aporte tem influências nitidamente weberianas,
que se expressam principalmente na escolha dos temas na análise das transições
das “sociedades tradicionais” para as “sociedades modernas”.
4
No caso francês, em determinadas localidades foi preservada a estrutura da socie-
dade camponesa, mas o impulso comercial passou a demandar mais trabalho do
campesinato, criando um potencial de revolta e sua propensão a colaborar com
a Revolução. Ainda que o impulso comercial tenha sido fraco, o movimento revo-
lucionário enfraqueceu a aristocracia vinculada ao absolutismo, permitindo a via
democrática. Nos Estados Unidos foi a luta contra a escravidão, resolvida durante a
Guerra Civil, que abriu espaço para a democracia, tendo em vista o caráter altamente

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Capital industrial e revolução burguesa nos caminhos para o capitalismo

desfavorável dessa mesma instituição aos ideais de igualdade jurídica.


5
Ainda que possa parecer, não se trata, sobremaneira, de uma análise determinis-
ta sobre a história. O próprio autor lembra que não é sua intenção demonstrar
princípios absolutos nas transformações, e sim indicar tendências historicamente
verificadas, segundo os tipos-ideais teorizados. Ainda que determinados fatores,
quando reunidos, causassem uma propensão a determinada direção, “[...] já vimos
bastantes mudanças sociais e políticas saírem de princípios pouco prometedores,
para suspeitarmos que podiam ser criadas instituições, se as circunstâncias tives-
sem sido mais favoráveis” (MOORE Jr., 1983, p. 437-438).

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Capitalismo: oportunidade ou imperativo?

A relativa perda de dinamismo nos debates sobre a transição


após a década de 1970 não foi suficiente para sepultar o interesse
acerca desta temática. Atravessando a avalanche de decepções e
fracassos das revoluções no fim do século XX, tais como a agonia da
Guerra Fria, o desmoronar do socialismo real e o começo de um novo
século, a questão permaneceu de certo modo latente. A própria con-
juntura histórica, de falta de rumos acerca do movimento socialista
internacional e de notável hegemonia do capitalismo como sistema de
organização social, contribuiu para fazê-la retornar à pauta de traba-
lhos de alguns intelectuais marxistas ainda empenhados na tarefa de
fornecer bases para a compreensão da economia capitalista.
Publicado em 1999 nos Estados Unidos e lançado no ano de
2001 no Brasil, A Origem do Capitalismo (WOOD, 2001),1 de Ellen Mei-
ksins Wood, procura realizar um balanço das discussões a respeito
da transição desde os seus primórdios, com a publicação de A Evo-
lução do Capitalismo de Dobb, até as tendências mais recentes; sua
abordagem é inovadora, na medida em que se apropria das idéias
das principais correntes em disputa e busca oferecer caminhos para
a resolução de certos pontos deixados inconclusos desde os anos
1950. As considerações de Wood acerca do agente motor, ainda que
se remetam principalmente a Dobb, são críticas ao pensamento deste
autor na medida em que fazem incursões no pensamento sweeziano e,
principalmente, no de Robert Brenner, a fim de propor novos termos
para identificação deste agente motor. Este capítulo será dedicado,
portanto, à recente contribuição de Wood aos debates que têm como
tema a transição.
O primeiro alvo de seu estudo concentra-se no chamado “mode-
lo mercantil”. Nele estariam incluídos, além dos pensadores da própria
Economia Clássica, autores paradigmáticos como Weber e Pirenne,
principal referência de Sweezy. Wood afirma que, em virtude do legado
deixado por esses autores nas pautas de investigação acadêmicas ao
redor do mundo, as explicações mais comuns para o surgimento do
capitalismo pressupõem-no como o resultado do desenvolvimento de
práticas humanas naturais; mais ainda, para que o progresso de tais
práticas pudesse ocorrer, teria sido necessária a destruição dos entra-
ves que o impediam. Ou seja, o modelo mercantil e seus tributários
afirmam que o capitalismo – compreendido, sobretudo, como a troca

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Capitalismo: oportunidade ou imperativo?

e o desejo pelo lucro – é uma realidade inerente à própria existência


humana, e que viria se desenvolvendo ao longo dos séculos de sua
existência pelo planeta. Entretanto, sua evolução maior só poderia
ser obtida a partir do momento em que todos os obstáculos fossem
eliminados, de modo a “libertar” essas mesmas forças.
O capitalismo aparece menos como uma ruptura radical entre
tipos de organização social – portanto, qualitativa – do que como uma
evolução quantitativa de práticas já existentes, ou seja, da expansão
dos mercados e da mercantilização da sociedade. Este grau mais
elevado teria sido possível apenas nas condições encontradas no
Ocidente; após um longo recesso nas atividades mercantis e em um
retorno a uma “economia de consumo” na região do Mediterrâneo,
o crescimento das cidades impulsionara o ressurgir da atividade
comercial na Europa medieval. Este é um dos principais eixos do
modelo mercantil: as cidades, com sua função comercial, são inter-
pretadas como guardiãs de um capitalismo embrionário desde seus
primórdios. Não haveria qualquer diferença entre o lucro especula-
tivo e o lucro obtido por meio da mais-valia, ambos expressões de
um mesmo fenômeno.

Esta libertação da economia urbana, da atividade comercial


e da racionalidade mercantil, acompanhada pelos inevitáveis
aperfeiçoamentos das técnicas de produção que decorrem,
evidentemente, da emancipação do comércio, aparentemente
bastou para explicar a ascensão do capitalismo moderno.
(WOOD, 2001, p. 23)

Nem todos os autores que podem ser associados ao modelo


mercantil deixaram, entretanto, de perceber o advento do capita-
lismo como uma ruptura. Mesmo aqueles que buscaram perceber o
“capitalismo” em qualquer situação que envolvesse trocas comerciais,
apenas à espera de que os entraves ao seu desenvolvimento fossem
removidos, verificam, por exemplo, a existência de uma mudança
entre a racionalidade econômica própria do feudalismo e aquela
que seria inaugurada com a sociedade mercantil, a transição entre a
produção para uso e a produção para troca etc. Contudo, nenhuma
das mudanças verificadas contempla a modificação da natureza do
próprio mercado e do comércio diante do capitalismo. Entre progres-
sos técnicos, modificações jurídicas, culturais e políticas, o modelo

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Daniel de Pinho Barreiros


mercantil não parece oferecer respostas para a especificidade do
mercado capitalista, com uma dinâmica diferente da dos mercados pré-
capitalistas. Isso conduzia a um desinteresse pelo estudo das formas
de propriedade e das relações sociais de exploração que marcariam
o novo sistema social.
Por maiores que tivessem sido as mudanças interpretadas pelo
modelo mercantil, sua percepção não seria fruto de um questionamen-
to da continuidade entre a natureza do mercado antes e depois do
capitalismo. Assumiu-se que o capitalismo sempre existiu, ainda que
de forma primitiva, fazendo parte da razão humana. O homem sempre
teria agido com uma racionalidade capitalista – ou seja, o objetivo era
o lucro. A evolução das sociedades, portanto, confundir-se-ia com o
próprio avanço das leis do desenvolvimento capitalista; somente
deveriam ser explicados os fatores que teriam impedido o seu pleno
avanço, nunca a essência específica desse tipo de organização social
(WOOD, 2001, p. 24-26). Wood afirma haver uma grande contradição
no modelo, na medida em que, para ela, a sociedade mercantil é o
ápice da liberdade humana, local de exercício pleno da escolha. Seus
pressupostos explicativos para o desenvolvimento socioeconômico
excluiriam a própria liberdade humana: “Tende a associar-se a uma
teoria da história na qual o capitalismo moderno é o resultado de um
processo quase natural e inevitável, que segue certas leis universais,
transistóricas e imutáveis” (WOOD, 2001, p. 26).
Uma alternativa próspera aos pressupostos do modelo mercantil
estaria no pensamento de Karl Polanyi. Dedicado a compreender as
transformações que deram origem à sociedade capitalista, distingue
de um modo pioneiro, as sociedades com mercados das sociedades
de mercado. Nas primeiras, ainda que a existência de mercados con-
solidados pudesse ser uma realidade, as práticas econômicas não
passavam por uma esfera estritamente econômica, estando inseridas
em relações de outro tipo, tais como as culturais e as políticas. Não
somente o desejo de lucro estaria movendo o homem em sua vivência
econômica, mas também questões como prestígio social, influência
etc. Tais sociedades não estão organizadas pelos princípios merca-
dológicos; o mecanismo da troca não funciona como preponderante
regulador das relações sociais, sendo as mesmas submetidas a prá-
ticas de outra natureza (relações de parentesco, apropriação extra-
econômica do excedente alheio).

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Capitalismo: oportunidade ou imperativo?

Wood contesta os princípios de Adam Smith ao negar a existên-


cia do homem econômico, com impulsos naturais para a troca, uma
vez que esta tendência não se verificava nas sociedades em que o
mercado exercia pouco poder de regulação. Nesses casos, os mercados
de longa distância não eram movidos pela competitividade, compreen-
dida como desestabilizadora da atividade econômica; nos mercados
locais, a atividade comercial era restrita e regulada. Apresentava
mais uma face complementar do que competitiva. A primeira forma
de mercado competitivo que surgiria seriam os mercados nacionais,
unificados após os processos de centralização estatal no alvorecer da
Era Moderna; entretanto, durante muito tempo esses mesmos merca-
dos permaneceram um amontoado de praças comerciais desconexas,
principalmente devido aos sistemas de transportes. Não se apresen-
tando como um desenvolvimento dos mercados locais, foi

[...] produto, argumentou Polanyi, da intervenção do Estado


– e, mesmo nesses casos, numa economia que ainda era gran-
demente baseada na produção de famílias auto-suficientes de
camponeses que trabalhavam pela subsistência, a regulação
estatal continuou a preponderar sobre os princípios da con-
corrência. (WOOD, 2001, p. 31)

A análise de Polanyi é considerada por Wood como paradig-


mática na medida em que estabeleceu com clareza a distinção entre
mercados capitalistas e pré-capitalistas e as respectivas sociedades
que os comportam, idéia que seria crucial para a compreensão de seu
ponto de vista em relação ao fenômeno da transição para o capitalismo.
Afasta-se do modelo mercantil por perceber a ruptura representada pela
emergência da sociedade capitalista, e não a entende por meio de uma
continuidade com práticas sociais anteriores. No entanto, Polanyi ainda
não teria sido capaz de superar certo tipo de visão considerada como
insuficiente pela autora. Ao pretender explicar as origens da sociedade
de mercado, sua lógica estaria imbuída de um controverso determinismo
tecnológico. Procura, então, responder a esta questão por meio da in-
fluência da Revolução Industrial na formação de uma sociedade movida
por princípios mercadológicos: uma vez que as máquinas se tornavam
cada vez mais complexas e de alto custo, somente uma produção em
massa, e, portanto, um mercado de massa, as tornariam viáveis, além
da necessidade de uma progressiva mercantilização de todos os fatores

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Daniel de Pinho Barreiros


produtivos, entre eles a força de trabalho. A transformação social que
teria sido iniciada pela Revolução Industrial inglesa seria, portanto, o
resultado do progresso tecnológico.
Polanyi discorda das visões liberais acerca de um progresso
espontâneo, ainda que o considere um processo inevitável; mesmo
assim, a única crítica que tem a oferecer a estas visões é que elas
não levariam em conta o papel do Estado, regulando a velocidade da
mudança, o que teria sido crucial, preservando a própria sociedade
de ser consumida pelas forças pulverizadoras do mercado capitalis-
ta (WOOD, 2001, p. 32-33). Dessa forma, Wood atesta que, no centro
de sua argumentação, Polanyi não consegue superar os limites do
modelo mercantil:

Sob alguns aspectos, portanto, os contornos principais da nar-


rativa histórica de Polanyi não são inteiramente diferentes do
antigo modelo mercantil: a expansão dos mercados caminha
de mãos dadas com o progresso tecnológico na produção do
capitalismo industrial moderno. (WOOD, 2001, p. 34)

Wood buscará encontrar uma alternativa de ruptura com o


modelo mercantil no pensamento marxista sobre a transição. O pen-
samento de Dobb é considerado pela autora como um divisor de águas
nas interpretações do surgimento do capitalismo. Oferecera uma nova
linha de raciocínio ao deslocar suas origens das cidades em direção
ao campo, no qual, do seio da sociedade feudal e das lutas de classes
entre senhores e camponeses, teria emergido um novo tipo de orga-
nização social e relações de propriedade. Como já dissemos, tanto
Dobb quanto Hilton entenderam a ruptura do feudalismo e a ascensão
do capitalismo como o resultado da dissolução das amarras feudais
que prendiam o “pequeno modo de produção”. Sweezy, considerado
pela autora um legítimo defensor do modelo mercantil no interior do
pensamento marxista, insistiu, como igualmente já explicitamos, na
estabilidade do feudalismo enquanto organização social, que somente
teria sido abalada pela criação dos centros de comércio de longa dis-
tância. Afirmou ainda, que o capitalismo não foi o resultado imediato
do processo de dissolução do feudalismo, já que houve entre eles uma
fase de “produção pré-capitalista de mercadorias”, e que uma “via
revolucionária” não teria emergido dos pequenos produtores.

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Capitalismo: oportunidade ou imperativo?

Ainda que considere muitas das idéias de Sweezy questionáveis,


Wood confere ao economista norte-americano um papel de importân-
cia por ter situado questões que de acordo com seu ponto de vista,
são imprescindíveis para o entendimento da transição. Estão de pleno
acordo ao entenderem o processo de dissolução do feudalismo e de
construção do capitalismo como distintos e não necessariamente vin-
culados. Dobb, por sua vez, parece menos propenso a compreender
dessa maneira. Assim, Wood questiona o quão distante do modelo
mercantil o economista inglês teria ido. Se o fim do feudalismo teria
sido suficiente para fazer nascer o capitalismo, pressupõe-se que
o segundo mantivesse uma raiz dentro do primeiro. Mais ainda, se
Dobb propõe que a lógica econômica existente no “pequeno modo
de produção” precisava ser libertada para que se desenvolvese na
plenitude de suas forças, isto significa dizer que o capitalismo surge
quando são quebradas as amarras que o mantinham cativo no interior
do feudalismo (WOOD, 2001, p. 35-42).
Uma outra questão apontada por Wood é que, ao que tudo
indica, tanto Dobb quanto Hilton propuseram que a transição para
um modo de produção capitalista feita pelos camponeses e artesãos
ricos, depois de um processo de diferenciação social, teria aconteci-
do por intermédio de uma opção. Em outras palavras, parece que,
na primeira oportunidade emergente, o produtor mercantil rural ou
urbano escolhera tornar-se capitalista.

Quão longe estamos da premissa de que o mercado capitalista


é mais uma oportunidade do que um imperativo, e de que o que
requer explicação na descrição da ascensão do capitalismo é a
eliminação dos obstáculos, o rompimento dos grilhões, e não a
criação de uma lógica econômica inteiramente nova? (WOOD,
2001, p. 42)

Por fim, discorda da idéia de um choque entre dois modos de


produção distintos para explicar a formação do capitalismo. Admitir
que o feudalismo entrara em choque com um capitalismo já existen-
te, significa dizer que este último já existia no seio do primeiro, uma
concessão considerada por Wood inadmissível (WOOD, 2001, p. 42-
44). Dessa maneira, na visão da autora, os debates sobre a transição,
iniciados nos anos 1950, não teriam sido conclusivos ao oferecer so-
luções para os impasses deixados pelo modelo mercantil, apesar dos

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Daniel de Pinho Barreiros


avanços inestimáveis representados pela contribuição dos teóricos
envolvidos.
O elemento definidor do capitalismo, no olhar de Wood, estaria
na dicotomia entre oportunidade e imperativo, que teria sido deixada
sem solução. O processo de transição do pequeno produtor rural e ur-
bano, de um modo de produção pré-capitalista para o pleno exercício
do capitalismo, teria sido sempre interpretado como uma oportuni-
dade surgida e aproveitada no melhor momento, após a abolição dos
entraves às mesmas. Entretanto, a autora defende que a “captura” dos
produtores na intricada rede da produção para um mercado capitalista
não se constituiu em uma opção deliberada e racional entre as melho-
res escolhas possíveis, mas sim em um imperativo, uma necessidade
imposta por condições especiais, encontradas na sociedade inglesa,
para a própria auto-reprodução do produtor direto.

A antítese desses modelos [ligados direta ou indiretamente


ao raciocínio do modelo mercantil] seria uma concepção de
mercado capitalista que reconhecesse plenamente seus im-
perativos e compulsões, ao mesmo tempo reconhecendo que
esses próprios imperativos radicam-se não numa lei natural
transistórica, mas em relações sociais historicamente espe-
cíficas, constituídas pela ação humana e sujeitas a mudanças.
(WOOD, 2001, p. 35)

Wood baseia-se, então, na interpretação de Robert Brenner,


na qual afirma encontrar uma alternativa para o modelo mercantil.2
Segundo este autor, não seria possível se encontrar quaisquer rudi-
mentos de capitalismo no interior do feudalismo que justificassem a
noção de “luta entre modos de produção” aplicada à transição para
o capitalismo. Portanto, ainda que Brenner tenha sido influenciado
claramente por Dobb, parte de alguns pressupostos da análise swee-
ziana. O feudalismo não teria sido desafiado por formas embrionárias
de capitalismo existentes no comércio (como quer o modelo mercantil)
ou na pequena produção mercantil (como Dobb indica). No caminho
de Sweezy, ainda que por outros argumentos, afirma que o feudalismo
possuía sim estabilidade, e que não se pode desconsiderar os meca-
nismos de perpetuação desse tipo de organização social. Afirmar o
contrário seria admitir que, na melhor oportunidade e como uma op-
ção, os produtores dariam um salto, dentro de suas possibilidades, na

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Capitalismo: oportunidade ou imperativo?

direção do capitalismo. Não buscou, entretanto, um “motor externo”


como Sweezy para este fenômeno: “[...] o que ele estava buscando,
explicitamente, era uma dinâmica interna que não pressupusesse uma
lógica capitalista já existente” (WOOD, 2001, p. 52).
A luta de classes teria sido, na visão de Brenner, o principal
motor da transição, mas não devido ao fato de seu resultado ter sido
o da liberação de forças contidas no seio do feudalismo. Antes disso, o
desenvolvimento da luta entre senhores e camponeses, do modo como
ocorreu e dentro das condições sociais peculiares à Inglaterra, teria
funcionado como um gatilho que deflagrara involuntariamente as
transformações capitalistas; em outras palavras, na luta diária para
reproduzirem suas próprias condições de classe pré-capitalistas – e
não com um intuito deliberado e racional de o fazerem –, produtores
e proprietários teriam engendrado uma dinâmica capitalista sem que
tivessem optado por tal caminho.
Algumas condições foram fundamentais para que os produtores
fossem capturados pelo mercado. A primeira delas diz respeito às con-
dições de acesso à terra. O trabalho rural vinha sendo conduzido por
arrendatários – empregadores de mão-de-obra assalariada em muitos
casos – cujas condições de acesso à terra se davam pelo pagamento
de valores em dinheiro, estabelecidos por uma lógica de mercado,
e não pela tradição ou por lei. Esse tipo de acesso à terra deixava
permanentemente os arrendatários numa situação precária: devido à
crescente demanda pela propriedade fundiária, eles ficavam sujeitos
aos imperativos do mercado. A dissolução das relações de propriedade
feudais na Inglaterra não dava aos pequenos e médios produtores a
“oportunidade” de produzirem para o mercado e se tornarem capita-
listas rurais; condições de posse submetidas ao mercado – ou seja,
oscilantes e sem quaisquer garantias de estabilidade – obrigavam os
arrendatários a especializarem suas produções e a se voltarem para
o mercado competitivamente.
O pequeno produtor não se tornava capitalista pelo efeito de
um crescimento em sua renda ou por eventualmente empregar mão-
de-obra assalariada com a riqueza que acumulara: a relação com os
meios de produção que se estabelece após o declínio das obrigações
feudais na Inglaterra o faz ser um capitalista desde sua origem, subme-
tido aos ditames do mercado e tendo de sobreviver dentro dele. Com
isso, Brenner concorda com mais uma afirmação de Sweezy quando
admite que a transição teve como motor não o aumento da opressão

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Daniel de Pinho Barreiros


do proprietário sobre o produtor, mas justamente a incapacidade
do primeiro em extrair excedente do segundo na base de métodos
extra-econômicos (WOOD, 2001, p. 54-55). Em outras palavras, a so-
brevivência do produtor rural – compreendida como o acesso à terra,
meio de produção indispensável para sua subsistência – dependia do
seu sucesso na “seleção natural”. Podemos supor que aqueles que,
pelas contingências mais diversas, não conseguiram sobreviver às
condições de mercado, engrossaram as fileiras do proletariado ur-
bano e rural, por perderem a posse dos meios de produção (WOOD,
2001, p. 52-53).
Uma outra condição importante diz respeito não ao arrendatá-
rio, mas à classe proprietária rural inglesa. Mesmo estando no topo
de uma estrutura de distribuição de terras altamente concentrada, a
aristocracia inglesa não desfrutava de condições semelhantes às de
suas congêneres continentais, por exemplo. Em função da natureza
do Estado inglês – bastante precoce em relação aos demais países
da Europa, garantidor da propriedade mas deixando pouco espaço
para poderes locais, o que mostra uma separação clara entre a esfera
estatal e a sociedade civil – a margem de força coercitiva disponível
para a aristocracia era muito pequena, o que significava dizer que,
em seu trato com o produtor, o latifundiário poderia contar muito
menos com os métodos extra-econômicos para extração do exce-
dente. Na verdade, em função da própria submissão dos produtores
à uma lógica de mercado, o uso da coerção extra-econômica fazia-se
desnecessário. A aristocracia dependia sim de meios de exploração
especialmente econômicos, nos quais o aumento de produtividade
de seus arrendatários era fundamental para garantir sua renda, e,
portanto, sua sobrevivência enquanto classe. Modos de apropriação
pré-capitalistas dependiam do incremento da força para pressionar o
produtor, o que deixava pouca necessidade para o progresso técnico
(WOOD, 2001, p. 56-57).

Tanto os produtores diretos quanto os grandes proprietários


passaram a depender do mercado de um modo que não tinha
precedentes históricos, simplesmente para garantir as condi-
ções de sua auto-reprodução [...] O resultado foi o acionamento
de uma nova dinâmica histórica: uma ruptura sem precedentes
com os antigos ciclos malthusianos, um processo de crescimen-
to auto-sustentado, novas pressões competitivas, que exerciam

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Capitalismo: oportunidade ou imperativo?

seu próprio efeito na necessidade de aumentar a produtividade,


reconfigurando e concentrando ainda mais a posse da terra, e
assim por diante. (WOOD, 2001, p. 53)

Mais uma vez o princípio definidor é o imperativo do capita-


lismo – os limites do mercado capitalista permitem apenas que os
mais “eficientes” consigam realizar sua produção e, por conseguinte,
reproduzir sua situação de classe.
Entre as críticas feitas a Brenner, é indispensável pontuarmos
aquela que diz respeito à natureza “capitalista” desta sociedade agrá-
ria inserida nesse novo mercado. Já que o capitalismo se define pelo
assalariamento de uma parte majoritária da população expropriada
por outra parte minoritária que detém os meios de produção, surge a
seguinte dúvida: realmente a sociedade inglesa dos séculos XVI-XVIII
era detentora de um “capitalismo agrário”, em função do pequeno
contingente de assalariados nesta época? Os argumentos de Brenner
trilham o seguinte caminho: é verdade que o processo de expropriação
e diferenciação social foi crucial para configurar o capitalismo, mas
ele por si só não definiu muita coisa. As diferenças sociais entre pro-
dutores ricos e pobres são reais e transcendem os limites do próprio
capitalismo, e o fato de elas terem existido entre outros contextos não
nos credita a afirmar que em todos eles deu-se a diferenciação entre
proprietários dos meios de produção e trabalhadores expropriados.
Ou seja, antes de procurarmos a diferenciação social como a origem
de uma determinada transformação, devemos buscar a existência das
condições necessárias para que essa diferenciação leve ao caminho
capitalista. Isto é, a formação do próprio proletariado inglês esteve
condicionada à nova lógica de mercado que se instaurava, e não o
contrário. Portanto, a questão da formação do proletariado não ante-
cede o capitalismo, mas está no fim do seu processo de constituição.
O capitalismo agrário, com todos os seus mecanismos, teria fornecido
as bases para a construção do capitalismo industrial inglês (WOOD,
2001, p. 58-61). Não se deveria esperar, segundo Brenner, a proletari-
zação para se falar em capitalismo, já que foi a existência dessa lógica
competitiva mercantil que deu origem ao próprio proletariado.
O autor critica, ainda, a noção marxista de revolução burguesa,
uma vez que todos os seus pressupostos estariam ligados, mesmo que
indiretamente, ao modelo mercantil, por pressupor que as forças revo-
lucionárias nascem no seio do velho modo de produção. Esta teria tido

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Daniel de Pinho Barreiros


sua origem numa etapa da formação intelectual de Marx, um momento
em que ele estava ainda muito permeado pelas concepções iluminis-
tas do século XVIII. Concebendo o desenvolvimento econômico pela
evolução das forças produtivas, segundo a divisão do trabalho e dos
mercados, a concepção de revolução burguesa pareceria desneces-
sária, já que a superação dos modos de produção seria um processo
quase natural (WOOD, 2001, p. 63-64).
Toda a defesa de Wood acerca da origem agrária do capitalismo
baseia-se nas considerações de Brenner acima levantadas. Encerrando
este panorama inicial dos principais temas que envolvem o que se pode-
ria chamar de uma teoria geral do capitalismo, deve-se ressaltar, por fim,
a contribuição da autora ao realizar um balanço atualizado da questão
e trazer novamente à tona discussões de natureza tão imprescindível
como esta, com importância acadêmica e, sobretudo, política.
Estivemos, no decorrer desta primeira parte, diante de um deba-
te historiográfico que, apesar de rico em detalhes e referências, esteve
longe de constituir-se em uma discussão baseada em dados empíricos
de primeira mão. Dobb, Sweezy, Takahashi e os demais autores con-
frontados não se propuseram a realizar estudos baseados em fontes
primárias; os debates a respeito da transição, ainda que tenham tido
uma carga empírica implícita, por intermédio dos dados fornecidos
pelas fontes secundárias sobre as quais foi baseado, trataram-se,
sobretudo, de uma discussão teórica. As interpretações enunciadas
não tiveram, em nenhum momento, a pretensão de serem argumentos
definitivos – e mesmo que fossem embasadas em fontes primárias, não
deveriam assim ser consideradas. E o mesmo vale para os estudos
de Barrington Moore Jr. e de Ellen Wood. Portanto, as conclusões e
as questões em aberto nos oferecem, sobretudo, oportunidades de
pesquisa, iluminando trilhas antes turvas, que podem ser mapeadas
pelas perguntas certas feitas às fontes certas. Nunca deverão exercer
um caráter imperativo, impondo-se como se estabelecessem uma ver-
dade inquestionável. Antes disso, é a pesquisa empírica que deverá
indicar que hipóteses se confirmam e quais delas devem ser rejeitadas
e substituídas em cada caso.

Notas

1
Ellen M. Wood é professora de ciência política na Universidade de York, Toronto e
co-editora da revista marxista norte-americana Monthly Review, fundada por Paul M.

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Capitalismo: oportunidade ou imperativo?

Sweezy. O livro A Origem do Capitalismo foi premiado no ano de seu lançamento nos
Estados Unidos, 1999, com o Outstanding Academy Awards, que é uma premiação
da revista Choice aos melhores trabalhos acadêmicos.
2
Robert Brenner publicou, na revista Past and Present, no ano de 1976, um artigo
intitulado “Estrutura agrária de classes e desenvolvimento econômico na Europa
pré-industrial”, que foi o estopim para um debate envolvendo intelectuais do porte
de Rodney Hilton e Le Roy Ladurie. As idéias de Brenner serviram de base para a
argumentação de Ellen Wood, e será através dela que o debate será contemplado
no presente estudo.

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

Analisamos até aqui uma fração da produção dos principais


autores envolvidos na série de discussões, realizadas principalmente
no eixo Estados Unidos da América–Inglaterra, cujo foco foi a questão
da transição do feudalismo para o capitalismo na experiência européia,
com algumas divagações acerca de outros exemplos de construção
de sociedades capitalistas fora do velho continente. Vimos também
que foi ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970 que o debate teve
sua expressão mais significativa, ainda que possamos contar com uma
importante colaboração recente no pensamento de Ellen M. Wood.
Nossas considerações não se resumiram ao pensamento marxista,
tendo contribuído em igual medida as análises sobre a modernização
realizadas por Barrington Moore Jr., que, como já foi mencionado,
traz em seu discurso um forte teor weberiano. Apesar de todas as
diferenças, um fator que une tais abordagens é a preocupação de
conceituar as experiências modernizantes nos países pertencentes
ao centro hegemônico do capitalismo mundial, ainda que tais proces-
sos tenham se realizado de modos diferentes – e com conseqüências
sociais distintas.1
O principal objetivo dos dois capítulos seguintes será, partin-
do do sólido aparato conceitual construído pelos autores já citados,
iniciar um diálogo com outras correntes do pensamento sociológico
e historiográfico que, tendo o auge de suas atividades no mesmo
momento histórico e com preocupações políticas análogas, pensa-
ram a questão do capitalismo – subdesenvolvido, periférico, ou com
tantas outras designações – na América Latina, e, em especial, no
Brasil. Sendo assim, o primeiro ponto a ser analisado é o da “questão
agrária” brasileira.
Em linhas gerais, buscaremos confrontar o que conceituaram
importantes teóricos da economia brasileira acerca da estrutura agrá-
ria nacional em seu tempo – no caso, mais uma vez, as décadas de
1950-1970; verificaremos como pensaram a idéia de um “capitalismo
rural” e as permanências de outros modos de produção, bem como
da penetração das relações de mercado no campo brasileiro.
Dentre aqueles muitos analistas que pensaram a estrutura agrá-
ria nacional, alguns propuseram, com maior ou menor ênfase, que a
mesma estrutura se configurava em moldes plenamente capitalistas,
chegando mesmo a insinuar que assim havia sido desde os tempos

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

coloniais. A fim de definirem a especificidade do desenvolvimento


econômico brasileiro em relação ao congênere europeu, e assim sepul-
tarem uma tendência, que vinha sendo comum, de transposição direta
para o Brasil de teorias somente aplicáveis a realidades estrangeiras,
buscaram afirmar o disparate que constituía interpretar o campo bra-
sileiro como integrado a uma dinâmica interna de tipo feudal. Visaram,
com isso, sobretudo, combater concepções unilineares de História,
nas quais seria impossível o surgimento do capitalismo em qualquer
região do globo caso não proviesse de um modo de produção feudal
em ruptura. No calor dos debates nos anos 1950 e 1960, momento em
que se reorientava o padrão de acumulação do modelo agroexportador
para o urbano-industrial, o país passava pela discussão de importantes
reformas. Disputando as atenções dos setores progressistas com o
pensamento desenvolvimentista, representado por Celso Furtado e
outros não menos importantes, o Partido Comunista Brasileiro propu-
nha uma interpretação muito própria do desenvolvimento econômico,
que nos interessa em especial por depositar na questão agrária sua
principal problemática.
Vindo a conquistar uma amplitude ainda maior com as contri-
buições teóricas de Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guima-
rães, compondo aquilo que Guido Mantega viria a chamar de “Modelo
Democrático-Burguês”, esta fração hegemônica dos intelectuais do
PCB pretendia aplicar diretamente à análise da realidade histórica
brasileira as teses da III Internacional Comunista para as economias
coloniais e periféricas (MANTEGA, 1995, p. 11-14).2
Dessa maneira, concebiam a agricultura brasileira estruturada
em um molde semi-feudal, que seria decorrente das relações de pro-
dução nela hegemônicas e da forma jurídica da propriedade da terra.
Além disso, sua dimensão exportadora de bens primários constituía-se
num entrave às relações de produção capitalistas e às forças produ-
tivas industriais. Era, portanto, a união de forças entre o latifúndio
– responsável pela manutenção da estrutura feudal no campo – e o
imperialismo – entendido de um modo pouco preciso, mas associado
à exploração “colonial” advinda da divisão internacional do trabalho
entre países “capitalistas” e “atrasados” – que deveria ser combatida
por uma frente ampla de forças progressistas, que incluía nas suas
fileiras uma quimérica “burguesia nacional” anti-imperialista.
O objetivo da vitória de tais forças contra o latifúndio/imperia-
lismo não deveria ser uma revolução socialista, já que, dentro de uma

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Daniel de Pinho Barreiros


concepção unilinear do fenômeno da transição de modos de produção,
seria necessário que primeiro se eliminasse o modo de produção
feudal por meio da expansão do capitalismo dos países “atrasados”.
O modo de produção socialista somente poderia vir a longo prazo.
Antes dele era premente a necessidade de uma revolução democrático-
burguesa que pusesse fim aos “entraves feudais” e permitisse o salto
para o capitalismo.
A perspectiva de “conciliação” defendida pelo Modelo Demo-
crático-Burguês, principalmente no apoio à burguesia industrial
brasileira, tida como “anti imperialista” e à estratégia de industriali-
zação capitaneada pelo Estado, o fazia muito próximo, nestes pontos,
ao pensamento desenvolvimentista (incluído naquele que Mantega
chamou de “Modelo de Substituição de Importações”). A ineficácia
da política econômica baseada nos diagnósticos e propostas desta
corrente de pensamento, no que tange à distribuição dos ganhos
decorrentes do desenvolvimento econômico, constatada em meados
dos anos 1960, deslegitima perante parte da esquerda brasileira o Mo-
delo Democrático-Burguês. Em relação ao PCB, muitos foram os que
se opuseram à estratégia oficial da aliança com a burguesia, e junto
dela, à tese feudal. Dentro e fora do partido as opiniões em oposição
convergiam para o “Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista” de
interpretação do Brasil como economia periférica:

Enquanto o PCB e demais partidários do Modelo Democrático-


Burguês acusaram latifundiários e demais classes pré-capitalis-
tas, os adeptos do Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista
apresentavam uma nova versão da situação, que descartava
in limine a existência dos chamados “entraves feudais” ao
desenvolvimento e interpretava a sociedade brasileira como
típico produto da expansão capitalista mundial. (MANTEGA,
1995, p. 210-211) 3

É a partir desta crítica, portanto, que iniciamos nossa análise a


respeito da questão agrária. Cabe explicitar de que forma uma impor-
tante parcela de intelectuais de esquerda brasileiros viram a questão
agrária como um reflexo do próprio capitalismo rural. Interessa-nos,
sobretudo, entender a partir de que elementos enunciados estes auto-
res pretenderam justificar seus pontos de vista; em outras palavras,
que propriedades existentes na estrutura social do campo foram

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

evidenciadas como características da presença de um capitalismo


rural no Brasil.
Dos “dissidentes” que se desviaram teoricamente da orienta-
ção oficial do PCB, e que certamente mais difundida contribuição
deixou para a análise da questão agrária, destaca-se Caio Prado Jr.
Assim como a publicação de Formação Econômica do Brasil, de Celso
Furtado, em 1959, abria as portas para a Economia Política Brasileira,
apresentando um trabalho de síntese histórica ancorado em sólidos
fundamentos teóricos, o ano de 1966 ficaria marcado como mais um
momento neste processo de edificação do pensamento econômico
nacional, com a publicação do clássico A Revolução Brasileira. Dentre
outros objetivos,

[...] seu alvo principal era a concepção das relações de produção


vigentes no campo brasileiro defendida pelos teóricos do PCB,
tidas como predominantemente semifeudais ou pré-capitalistas,
enquanto, para ele, tratava-se de uma agricultura capitalista,
que não era nem nunca fora feudal como pretendiam seus inter-
locutores do PCB, originária dos interesses do capital comercial
europeu que colonizara nosso país e que em grande medida
ainda nos relegava à condição de uma semicolônia fornecedora
de produtos primários.

E completa:

Portanto, sob esse ponto de vista não haveria revolução de-


mocrático-burguesa a ser realizada, conforme pregava o PCB,
uma vez que o país já se encontrava em pleno capitalismo, se
bem que ainda num estádio semicolonial e submetido ao jugo
imperialista. (MANTEGA, 1995, p. 14-15)

Ao defender uma idéia de “subdesenvolvimento capitalista” no


Brasil, Prado Jr. define a noção de “revolução” como um processo de
modernização, que se afirma mediante uma dinâmica determinada.
Em vez de assumi-la como sinônimo da tomada do poder por parte
de grupos sociais com o uso da força, afirma que uma “revolução” é o
processo de transformação de um determinado regime político-social;
é verdade, admite o autor, que processos insurrecionais podem abrir
caminho para a efetivação de uma revolução, mas não necessariamen-

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Daniel de Pinho Barreiros


te ela deve ocorrer através deles. Em outras palavras, o que definiria
o conceito seria a própria transformação e não os meios pelos quais
se efetiva. Significaria, portanto, um processo histórico de reformas
políticas, econômicas e sociais que promoveriam, em seu curso, uma
modificação estrutural da sociedade, principalmente no que diria
respeito: a) às relações econômicas de produção; b) ao equilíbrio das
diferentes classes sociais em luta (PRADO Jr., 1966, p. 1-2). “São esses
momentos históricos de brusca transição de uma situação econômica,
social e política para outra, e as transformações que então se verifi-
cam, é isso que constitui o que propriamente se há de entender por
‘revolução’” (PRADO Jr., 1966, p. 2). Dessa forma, a violência não seria
uma condição essencial para um processo revolucionário.
A Revolução Brasileira seria, portanto, o processo de transfor-
mação social pelo qual vinha passando o Brasil nas últimas décadas e
que, desembocando nos anos 1960, vinha se acentuando cada vez mais.
Ela consistiria em uma sucessão de acontecimentos que impunham
a reestruturação da vida do país de modo a atender às aspirações
mais gerais das massas. Na sua origem estava a estrutura socioeco-
nômica brasileira ainda construída em termos “coloniais”, que gerava
contradições profundas o suficiente para ameaçarem o seu próprio
desenvolvimento social, apesar das diversas transformações pelas
quais passara desde 1822. Tais contradições geravam e ao mesmo
tempo eram agravadas pela espiral de “[...] inconsistência política,
da ineficiência, em todos os setores e escalões, da administração
pública; dos desequilíbrios sociais, da crise econômica e financeira
[...] da insuficiência e precariedade das próprias bases estruturais
que assenta a vida do país” (PRADO Jr., 1966, p. 4).
É em razão da resolução de todas estas pendências que impe-
diriam o livre desenvolvimento da vida social, e que estariam sendo
manifestadas de um modo cada vez mais pleno naquele importante
momento de crise de meados da década de 1960, que se movia o
processo revolucionário brasileiro. Assim, a modernização social
teorizada e propugnada por Prado Jr. deveria ser empreendida pelas
forças sociais nela interessadas – sobretudo as massas trabalhadoras,
com liderança do operariado urbano –, tendo como base o conheci-
mento científico da realidade nacional. “Isto é, não pela dedução a
priori de algum esquema teórico preestabelecido; de algum conceito
predeterminado de revolução. E sim pela consideração, análise e in-

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

terpretação da conjuntura econômica, social e política real e concreta


[...]” (PRADO Jr., 1966, p. 9).
Este enunciado, aparecendo como maior justificativa do es-
forço intelectual empreendido no livro, abriria as portas para seu
questionamento acerca das teorias ligadas ao Modelo Democrático-
Burguês, com a “tese feudal” sobre a agricultura brasileira. Por isso
mesmo, Prado Jr. afirmaria não haver sentido teorizar a respeito da
natureza da “revolução vindoura”, através de critérios apriorísticos.
Se “democrático-burguesa”, contra os “restos feudais”, ou socialista,
contra o capitalismo, seria impossível determinar, antes de se ter
cientificamente conhecidas, as características da sociedade a ser sub-
metida à transformação. “A qualificação a ser dada a uma revolução
somente é possível depois de determinados os fatos que a constituem,
isto é, depois de fixadas as reformas e transformações cabíveis e que
se verificarão no curso da mesma revolução” (PRADO Jr., 1966, p. 8).
Tais considerações extrapolam o tema do presente estudo, mas de-
vem ser feitas na medida em que são o ponto de partida para o autor
lançar seu olhar sobre a sociedade brasileira e, ao buscar a natureza
das transformações em curso e das contradições existentes, definir
como se estruturam as relações sociais no campo.
Como já dissemos, a crítica de Prado Jr. moveu-se preponderan-
temente contra a “tese feudal”; ela seria fruto de uma interpretação
dogmática da realidade histórica nacional, que superestimava nas mas-
sas trabalhadoras rurais atributos que as tornavam, assim, similares
ao campesinato europeu dos séculos XVIII e XIX; em contrapartida,
acabava por igualar da mesma forma a figura do “latifundiário” à do
senhor feudal medieval. Estaria, portanto, montado o cenário “fictício”
da luta de classes no campo brasileiro, teoricamente moldado dentro
das estruturas interpretativas propostas pela Terceira Internacio-
nal; mais ainda, a análise estaria comprometida com o dogmatismo
marxista reforçado pela influência de Stalin no movimento operário
internacional.

Segundo esse esquema, a humanidade em geral e cada país


em particular – o Brasil naturalmente aí incluído – haveriam
necessariamente que passar através de estados ou estágios
sucessivos de que as etapas a considerar, e anteriores ao
socialismo, seriam o feudalismo e o capitalismo. Noutras
palavras, a evolução histórica se realizaria invariavelmente

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Daniel de Pinho Barreiros


através daquelas etapas, até dar afinal no socialismo. (PRADO
Jr., 1966, p. 39)

Era o “marxismo soviético”, de que tratamos na primeira parte


deste estudo, lançando suas bases sobre a intelligentsia comunista no
Brasil, reforçando os esquemas de interpretação unilineares, de eta-
pas históricas invariáveis. Portanto, assim como Dobb e os marxistas
heterodoxos da Escola de Cambridge, bem como Sweezy e a New Left
norte-americana, Prado Jr. manifestava-se contra esta tendência, bus-
cando a adequação da teoria da revolução e da transição dos modos
de produção às especificidades da sociedade brasileira (PRADO Jr.,
1966, p. 33-36). Na opinião do autor:

Nada há portanto tão estranho ao marxismo e dele afastado


como pretender dispor a evolução histórica das sociedades
humanas em geral dentro de uma sucessão predeterminada de
sistemas econômicos, sociais e políticos que se encontrariam
em todos os povos e que eles devem necessariamente atraves-
sar. (PRADO Jr., 1966, p. 36)

Sendo assim, o autor inicia suas considerações acerca da es-


trutura agrária brasileira a partir do questionamento da existência
dos “restos feudais”, que atuariam, segundo os teóricos do Modelo
Democrático-Burguês, como entraves ao livre desenvolvimento do
modo de produção capitalista. A partir do momento em que afirma
a inexistência de qualquer estrutura socioeconômica na experiência
histórica nacional que fosse equiparável ao feudalismo europeu, a
existência de resquícios desse modo de produção seria, por lógica,
impossível. Reconhece a existência das características estruturais que
são acusadas de “feudais”, mas afirma que elas só teriam realmente
este caráter se enquadradas nos esquemas dogmáticos.
De tais “resquícios”, um dos mais importantes para os intuitos
deste estudo, e que se situa no campo das relações de produção, é o
regime de parceria. Tratando-se de uma relação social de fundamen-
tal representatividade no mundo do trabalho rural pós-escravidão,
foi considerada pelos ortodoxos do PCB como reflexo de uma reali-
dade semifeudal. Segundo Prado Jr., o regime de parceria, do modo
como se construiu no Brasil, guardaria somente relações superfi-
ciais com a “parceria clássica” encontrada na Europa (o métayage

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

na França e a mezzadria na Itália). Na realidade, constituir-se-ia,


retiradas as máscaras do dogma, não em pagamento de renda da
terra por parte do trabalhador que nela produz sua subsistência,
e sim em mera relação de emprego, com remuneração in natura do
trabalho, e dessa forma desempenharia seu papel no conjunto da
economia. A parceria no Brasil seria nada mais que uma forma de
assalariamento, “remuneração do trabalho e serviços prestados com
participação no produto” (PRADO Jr., 1966, p. 55), e portanto, uma
expressão do modo de produção capitalista. Ainda que na forma
pela qual esta relação se estabelece pudesse ser sustentado algum
questionamento acerca de seu caráter de assalariamento, suas
conseqüências socioeconômicas não deixariam dúvidas (PRADO
Jr., 1966, p. 51-54).
Não haveria, portanto, justificativas baseadas na realidade
dos fatos para se defender a natureza da parceria como uma relação
social anacrônica, uma “sobrevivência” de um modo de produção
superado. Ela estaria, inclusive, ligada aos setores mais dinâmicos da
produção agrícola nacional e de expressão recente, como foi o caso
da cultura do algodão no estado de São Paulo após 1930; mais ainda,
sua aplicação estaria ligada também a critérios técnicos e financei-
ros que diriam respeito, em especial, às características intrínsecas
de determinadas culturas, como, por exemplo, a do algodão. E neste
tocante, até mesmo nos Estados Unidos da América a cotonicultura
em larga escala seria realizada por meio da parceria: “[...] lembremos
o caso dos Estados Unidos com o seu share-cropping – as relações de
produção se estabelecem, em geral, e tal como em São Paulo, na base
da divisão do produto” (PRADO Jr., 1966, p. 54-55).4 Este regime de
trabalho, dentro das circunstâncias apontadas, seria positivo ainda
no que tange à produtividade e organização econômica.
Prado Jr. enumera algumas formas de pagamento pelos serviços
prestados na agricultura, e a partir delas podemos perceber de modo
pleno o que concebe o autor como “assalariamento”. Três modalida-
des seriam as mais comuns, que existiriam igualmente em formas
combinadas de acordo com a região e a atividade desempenhada: “o
pagamento em dinheiro (salário); em parte do produto; e finalmente
com a concessão ao trabalhador do direito de utilizar com culturas
próprias, ou ocupar com suas criações, terras do proprietário em
cuja grande exploração ele está empregado” (PRADO Jr., 1981, p. 60).5
No caso da lavoura de café em São Paulo, o “colono” (trabalhador

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residente) é remunerado com um salário anual pago mensalmente
pelo cumprimento de uma tarefa pré-acordada (cuidados dispen-
sados a tantos pés de café ou sacos do fruto da colheita); é “pago”
também com o direito de cultivar cereais – trabalho cujo resultado
lhe pertence – em área reservada para tal ou entre o cafezal, e com a
permissão de ter uma horta ao redor de sua morada, além de espaço
para criar pequenos animais e, excepcionalmente, algum de maior
porte. Na lavoura de cana no Nordeste, também seriam encontrados
exemplos de relações de produção “mistas”, tais como o pagamento
em dinheiro e a cessão de parcela de terra para a subsistência (caso
dos “moradores”) (PRADO Jr., 1981, p. 60-61).
Prado Jr. também critica as interpretações do Modelo Democrá-
tico-Burguês sobre o regime de “barracão” e do “combão”. O primeiro
consiste no uso das condições insuficientes do mercado interno de
bens de subsistência como artifício, por parte do proprietário de ter-
ras, para fornecer a varejo víveres aos seus trabalhadores, com todas
as vantagens de preços de monopólio. O segundo refere-se à presta-
ção direta de serviços ao proprietário em troca do direito de ocupar
e explorar uma fração de terra.6 Mesmo que fique claro que nestas
duas relações está presente um caráter de coercitividade sobre o
trabalhador, em vantagem para o proprietário, o autor aponta, ainda
assim, a impropriedade da associação de tais práticas com o feuda-
lismo. “‘Feudal’ tornou-se sinônimo ou equivalente de qualquer forma
particularmente extorsiva de exploração do trabalho, o que é natu-
ralmente falso” (PRADO Jr., 1966, p. 56-57). Estas relações seriam de
fato remanescentes de um passado pré-capitalista, mas não ligado ao
modo de produção feudal, e sim ao modo de produção escravista.
Apesar de ambos constituírem-se em realidades pré-capitalis-
tas, feudalismo e escravismo diferenciar-se-iam em princípios funda-
mentais. O modo de produção feudal, como no exemplo da Europa
medieval, assentou-se em uma economia camponesa, baseada na
exploração parcelária da terra pelo trabalhador. A apropriação do ex-
cedente do trabalho camponês, nesse caso, estaria garantida à classe
terratenente mediante os privilégios jurídicos garantidos pelo regime
social, em que estaria marcada a relação de dependência pessoal. Era
o trabalhador que se responsabilizava por todas as etapas do processo
produtivo; o papel do proprietário era diminuto, ele apenas extraía
renda da terra trabalhada pelo braço alheio utilizando-se dos direitos

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

que lhe eram assegurados. De nenhuma maneira encontraríamos as


mesmas condições no campo brasileiro.
Que estrutura havia sido herdada do modo de produção escra-
vista que a fazia distinta daquela herdada do feudalismo europeu, em
muitos países destruída pelas revoluções burguesas ou proletário-
camponesas? Principalmente, inexistira no Brasil, segundo Prado Jr.,
uma economia camponesa “propriamente dita”, ou seja, com base na
exploração parcelar da terra, de um modo individual (no caso, familiar)
e tradicional por parte do camponês, configurando-se como pequena
unidade produtora. A estrutura social no campo brasileiro teria sido
marcada desde seus primórdios pela grande propriedade rural, que
não guardaria maior analogia com o latifúndio feudal em função de
seu caráter de exploração mercantil em larga escala; e o trabalho
escravo utilizado com o único intuito de produzir mercadorias para
o mercado internacional seria outro fator de distinção. Além disso, a
grande propriedade e o escravismo implantaram-se num todo coeso,
fazendo parte de um mesmo processo, ao contrário da estrutura
feudal européia, em que a grande propriedade fora implantada sobre
uma economia camponesa preexistente. Elementos que podem ser
encontrados no Brasil e associados a uma economia camponesa
existiriam somente nas franjas da economia agroexportadora, fruto
da desagregação da grande propriedade rural em algumas regiões
(PRADO Jr., 1966, p. 57-63).
Formar-se-ia nesta situação um “acentuado dualismo”, polari-
zando a estrutura social rural brasileira em dois campos distintos
através de suas formas de organização, produção, níveis tecnológicos
e por uma acentuada diferenciação de classe. Um primeiro, que com-
preenderia a produção de mercadorias de grande expressão comercial
por parte de grandes proprietários e empregadores de mão-de-obra
cujo interesse no processo produtivo residiria no fato de o mesmo
gerar valores de troca para o mercado – o que significaria para o au-
tor empreendimentos tipicamente “capitalistas”; e um segundo, que
envolveria uma população ativa na agricultura como mão-de-obra
assalariada (através de diversas modalidades, segundo o esquema
teórico do autor) empregada na produção mercantil, ocupante no
mais das vezes de terras de baixo valor, e atuantes também em uma
produção agrícola subsidiária, que teria como objetivo, além da ma-
nutenção de seus ocupantes, a produção de gêneros de subsistência
para a população local (PRADO Jr., 1981, p. 50-51).

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Daniel de Pinho Barreiros


Fosse incluída na grande propriedade, funcionando como uma
atividade suplementar do trabalhador, ou por parte de pequenos
produtores operando nas “franjas” do sistema em terras próprias ou
arrendadas, “o setor secundário se ampliará e reduzirá na medida em
que inversamente à grande exploração debaixo de cuja sombra vive,
se expande ou retrai, se consolida e prospera, ou pelo contrário se
debilita e decompõe” (PRADO Jr., 1981, p. 52). Em outras palavras, a
atividade de subsistência, pelo seu lugar na sociedade, torna-se atre-
lada ao desempenho da grande produção mercantil, setor que seria
absolutamente hegemônico. Isso porque na medida em que prospera
“[...] tende a se ampliar e absorver um máximo de extensão territorial
e força de trabalho. Sobrarão tanto menos espaço e tempo disponí-
veis para os trabalhadores cuidarem de suas atividades” (PRADO Jr.,
1981, p. 53).
Portanto, nas palavras do autor:

Aquilo que essencial e fundamentalmente forma esta nossa


economia agrária, no passado como ainda no presente, é a
grande exploração rural em que se conjugam, em sistema, a
grande propriedade fundiária com o trabalho coletivo e em
cooperação e conjunto de numerosos trabalhadores. (PRADO
Jr., 1966, p. 63)

Portanto, a grande exploração, produção mercantil e trabalho


coletivo escravo seriam as marcas fundamentais desta sociedade
rural, diferentes da produção de subsistência, da exploração parcelar
e do trabalho camponês. Mesmo a ruptura jurídica do trabalho es-
cravo, consumada em 1888 com a Abolição, não teria sido suficiente
para pôr fim a esta estrutura. A consolidação do trabalho livre não
foi seguida pela formação de uma economia camponesa baseada na
pequena propriedade, e pela desarticulação do latifúndio. As relações
escravistas de produção teriam sido substituídas, segundo o autor,
por relações de emprego ou locação de serviços remuneradas, ainda
que não necessariamente em dinheiro; em outras palavras, o paga-
mento in natura e a troca de trabalho por terra para cultivar bens de
subsistência tornam-se, no raciocínio de Prado Jr., formas “veladas”
de assalariamento.
A maior importância não estaria na natureza do pagamento,
mas na submissão do trabalhador ao proprietário, fosse o primeiro

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

escravo ou livre; apesar da “impureza” do assalariamento presente


nos exemplos citados, ainda assim eles seriam referentes a relações
capitalistas. No processo produtivo o terratenente exerceria igual-
mente o papel de dirigente de empresário, enquanto o trabalhador
funcionaria como força de trabalho a serviço dos interesses mercantis
daquele. “Na realidade, em essência, é um locador de serviços, um
simples empregado perfeitamente assimilável ao assalariado de que
se distingue unicamente pela natureza da remuneração recebida”
(PRADO Jr., 1981, p. 63). Estariam, portanto, caracterizadas, na opinião
do autor, relações capitalistas de produção.
Antes de serem “senhores feudais”, os grandes proprietários
rurais no Brasil formariam uma verdadeira burguesia agrária, ainda
que de certa maneira atrasada, de pouca eficiência empresarial e
baseada em métodos rotineiros. Seu caráter burguês estaria atestado
pela fluidez com que atuariam, tanto nos negócios agropecuários,
quanto em outros ramos de atividade econômica, tais como o indus-
trial, o financeiro e o comercial, “aos quais ninguém pensa em negar
a qualidade de capitalistas e burgueses, quaisquer que sejam seus
padrões tecnológicos” (PRADO Jr., 1966, p.167).

Isto porque a grande propriedade brasileira, o nosso “latifún-


dio” é na parte essencial e fundamental da economia agrária
brasileira, a grande exploração rural, o empreendimento em
grande escala, centralizado e sob a direção efetiva (seja embora
ineficiente, desleixada, que nada disso muda essencialmente a
situação) do proprietário que a essa qualidade de “proprietário”
alia a de empresário rural. (PRADO Jr., 1966, p. 160-161)

Nem senhores feudais, nem servos. Apesar de revestidas for-


malmente, como lembra, de características que as fazem semelhantes
a instituições feudais, as relações de produção pós-escravidão seriam
fundamentalmente de trabalho livre. Excetuando algumas situações,
que seriam raras, de o trabalhador permanecer retido em função de
dívidas contraídas a serem pagas por meio do trabalho, as relações
entre proprietários dos meios de produção e trabalhadores seria de
liberdade jurídica, configurando um verdadeiro mercado de trabalho
livre. Diferentemente das relações feudais, em que estariam presentes
critérios pessoais, aquelas construídas no Brasil pós-1888 estariam
marcadas fundamentalmente por uma lógica mercantil, impessoal, ain-

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Daniel de Pinho Barreiros


da que nem sempre intermediadas pelo uso da moeda. “Proprietários
e trabalhadores, na posição respectiva de pretendentes e ofertantes
de força de trabalho, se defrontam e de comum acordo estipulam
as condições em que se fará a cessão ou compra e venda da mesma
força” (PRADO Jr., 1981, p. 66). “Em outras palavras, não são relações
de pessoa e estatutos pessoais que interferem na transação, e sim
unicamente relações mercantis” (PRADO Jr., 1981, p. 67).
Assim sendo, nenhum argumento poderia ser levantado para
propor a existência no Brasil de uma classe proprietária de terras
“tradicional” (e, por que não dizer, “feudal”), beneficiária de relações
de produção pré-capitalistas, que estivesse em antagonismo com
uma burguesia industrial típica, como nos exemplos europeus de
revoluções antifeudais. Mais ainda, as formas de trabalho livre aqui
desenvolvidas no campo, tendo herdado o caráter mercantil da escra-
vidão, perderiam o foco ao menor sinal de referência ao feudalismo,
entendido como a antítese direta do mercado.

Em contraste, as relações feudais constituíram historicamente


o contrário e oposto das relações mercantis que elas substi-
tuíram na Europa depois do fim do Mundo Antigo. Para serem
elas próprias, mais tarde, eliminadas pelo retorno de uma nova
organização mercantil. (PRADO Jr., 1981, p. 68)

Com tudo isso, não existiria, depois de abolida a escravidão, a


formação de qualquer tipo de economia que se pudesse dizer “cam-
ponesa”, mas sim a permanência da prestação de serviços com o
objetivo de produzir mercadorias. Ou seja, o camponês no modo de
produção feudal seria o empresário de sua própria produção, dela
extraindo individualmente sua fonte de recursos; seu tributo para com
o senhor feudal (consubstanciado em trabalho, produção ou outras
prestações de serviços compulsórios) consistiria em uma dedução
do produto que lhe pertence por inteiro. Já o escravo ou prestador
de serviço no latifúndio mercantil brasileiro seria remunerado por
seu trabalho, pertencendo todo o produto ao proprietário (PRADO
Jr., 1966, p. 63-65).7
Em resumo, era a dialética entre a miséria e a propriedade
fundiária que fazia da estrutura agrária brasileira um exemplo de
capitalismo rural que se distinguia em sua essência dos modos feu-
dais de produção. A crítica concentração de terras – considerando

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principalmente o fato de as terras de maior produtividade estarem


nas mãos da classe proprietária – promove o declínio da situação de
sobrevivência das massas rurais, já que a subsistência de boa parte
dessa população fora ameaçada pela insuficiência produtiva (em ter-
mos de extensão) das terras que ainda lhes restaram – quando alguma
ainda poderia ser computada, com exceção daquele trabalhador que
se tornara um completo proletário rural expropriado.

Mas o que ficou dito já nos serve para situar a questão agrária
brasileira, e colocá-la em seus devidos termos, que vêm a ser,
em primeiro e principal lugar, a relação de efeito e causa entre
a miséria da população rural brasileira e o tipo da estrutura
agrária do País, cujo traço essencial consiste na acentuada con-
centração da propriedade fundiária. (PRADO Jr., 1981, p. 18)

Em razão disso, é possível afirmar que, em suas considerações


a respeito da revolução brasileira, que, como já dissemos, representa
o progressivo abandono da estrutura colonial da economia brasileira,
voltada para a agroexportação, em direção à integração nacional e a
uma economia voltada para o mercado interno, Prado Jr. depositou
um papel de extrema fundamentalidade nas transformações engen-
dradas pela abolição do trabalho escravo e pela extinção do tráfico
negreiro. Isso tudo deve ser considerado, ressalte-se, apesar de o
autor ter identificado as permanências escravistas manifestadas nas
várias formas de trabalho livre no campo pós-1888.
Se a economia nacional escravista afirmara-se sob o signo do
completo desligamento das massas trabalhadoras dos frutos do tra-
balho, a imigração européia e a libertação do trabalhador nacional
simbolizariam a abertura de possibilidades para a integração desses
contingentes à sociedade e a transcendência de uma condição social de
meros fornecedores de mão-de-obra. Em outras palavras, o processo
de abolição/imigração européia representaria o primeiro momento
da superação da economia colonial, polarizada entre proprietários e
grandes explorações voltadas para o mercado externo de um lado,
e uma população fornecedora de trabalho e privada dos ganhos desta
mesma empresa. Mesmo assim, ainda que aberta a possibilidade de
“integração nacional” com o trabalho livre, importantes contingentes
populacionais ainda estariam em uma condição precária, fruto dos
resquícios do escravismo (PRADO Jr., 1966, p. 128-130).

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Daniel de Pinho Barreiros


O principal efeito dessa integração no conjunto da economia
seria a elevação dos padrões materiais das massas; a conseqüente
influência da transformação do trabalhador em um consumidor
imerso numa lógica mercantil seria o desenvolvimento do mercado
interno. A economia colonial, baseada na especialização da produção
agroexportadora, deixaria o mercado interno em uma situação de
dependência em relação às importações, devido à incapacidade do
setor de produção de subsistência em atender a demanda.

O Brasil terá de se abastecer no exterior não só no que respeita


à generalidade das manufaturas, mas até a gêneros de subsis-
tência essenciais. Já sem falar no trigo [...] o Brasil adquirirá
no exterior, até princípios do século atual, artigos alimentares
básicos e correntes. (PRADO Jr., 1966, p. 133)

A integração nacional, a partir do estímulo gerado pelo trabalho


livre, dar-se-ia num longo processo de “substituição de importações”.
Mesmo assim, Prado Jr. afirma que as sobrevivências da economia
colonial faziam com que, ainda nos anos 1960, o Brasil fosse marcado
por uma economia de produção de matérias-primas e alimentos para
o mercado internacional, demonstrando que tarefas ainda tinham de
ser vencidas pela revolução.
Apesar de não ter sido suficiente para transformar completamente
a economia de tipo colonial, a Abolição demolira o obstáculo mais sólido
à implantação das relações de produção capitalistas. Prova disso seria o
fato de que, segundo o autor, os escravos remanescentes nas fazendas
teriam sido imediatamente transformados em assalariados, permane-
cendo empregados nas mesmas unidades produtivas, com o mesmo
ritmo de atividade e sob a mesma estrutura fundiária. “O fato é que, com
a substituição definitiva e integral do escravo pelo livre, acharam-se
presentes no Brasil o conjunto dos elementos estruturais componentes
do capitalismo” (PRADO Jr., 1966, p. 148). A Abolição representaria a
concretização do processo de mercantilização da sociedade, uma vez
que transformava a força de trabalho em mercadoria; os demais fatores
de produção, como a terra, já haviam sido mercantilizados. O capitalismo
no campo brasileiro encontrava todas as condições propícias, portanto,
para sua implementação, dificilmente encontráveis na economia feudal
européia, que trazia em si embaraços às relações mercantis pelo próprio
modo como estavam configurados trabalho e propriedade.

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

O argumento levantado pelo autor para confirmar sua idéia está


no notável incremento das forças produtivas, gerador de uma expan-
são da lavoura cafeeira após a implantação do trabalho livre, mesmo
se se considerar o momento de crise gerado pela desarticulação da
escravidão e a construção de novas relações. Tal expansão resultaria
na primeira crise de superprodução, ocorrida no ano de 1895. A ra-
zão de tal fato estaria na liberação de um “capitalismo em potencial”
inerente àquela estrutura. A natureza mercantil da agroexportação
garantiria por si só à agricultura brasileira uma face capitalista, ain-
da que cerceada pela preservação do trabalho escravo; em outras
palavras, uma vez que Prado Jr. compreende o capitalismo como um
processo paulatino de mercantilização de todos os aspectos sociais,
na agricultura de exportação brasileira já se encontrariam neste pata-
mar a própria produção – realizada com o intuito de constituir-se em
valor de troca, e não valor de uso para o proprietário e o trabalhador
– e a terra, após a lei de 1850, restando somente, para completar-se
a instauração do capitalismo rural, a metamorfose do trabalho em
mercadoria disponível para compra e venda. Dessa forma, a abolição
representava a última face desse processo. Os fatores de produção
seriam liberados como um todo, “desde o recrutamento da mão-de-
obra, que não dependerá mais da onerosa imobilização de conside-
ráveis recursos na aquisição de custosos e escassos escravos, até a
acumulação e rápida circulação de capitais assim liberados” (PRADO
Jr., 1966, p. 149-150).
Um dos motivos pelos quais as sobrevivências do modo de
produção escravista se mantiveram estaria na questão da mão-de-
obra. Principalmente a partir de meados do século XIX a questão da
falta de braços para a lavoura engrandecia-se pelo iminente perigo
de desestruturação da economia que proporcionava. As políticas
imigratórias teriam desde então o objetivo claro de “proporcionar
mão-de-obra para a grande lavoura”. A oferta insuficiente de força de
trabalho, principalmente na conjuntura imediata pós-Abolição, teria
levado os grandes proprietários a empregarem “certas formas de
escravidão disfarçada, como a retenção de trabalhadores por dívidas
contraídas junto ao empregador [...] O mesmo problema da insufi-
ciência de mão-de-obra generalizou em alguns lugares um verdadeiro
tráfico de trabalhadores” (PRADO Jr., 1981, p. 58-59).
Estes “restos escravistas” consubstanciados nas diversas
formas de trabalho assalariado “parcial” não se constituiriam, de

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acordo com o autor, em entraves ao capitalismo, como afirmavam
os teóricos do Modelo Democrático-Burguês, que os conceituavam
como sobrevivências de um feudalismo em extinção. As relações de
trabalho instauradas após a Abolição contribuiriam, pelas suas carac-
terísticas, com a compressão dos salários “[...] ampliando com isso a
mais-valia, e favorecendo por conseguinte a acumulação capitalista”;
além disso, o baixo custo da mão-de-obra decorrente dessas formas
de emprego permitiriam o funcionamento de empresas com baixos
níveis de renda.

O “negócio” da agricultura – e é nessa base que se estrutura a


maior e principal parte da economia rural brasileira – não se
mantém muitas vezes senão graças precisamente aos baixos
padrões de vida dos trabalhadores, e pois ao reduzido custo da
mão-de-obra que emprega. (PRADO Jr., 1966, p. 151-152)

Ainda que estas relações de trabalho de assalariamento “par-


cial” fossem benéficas para a acumulação capitalista, de certo modo
poder-se-ia dizer o mesmo no que tange à manutenção dos trabalha-
dores rurais; o destino da completa expropriação seria, na opinião do
autor, ainda mais drástico para o seu bem-estar. O processo de im-
plantação do capitalismo iria, progressivamente, minando ainda mais
suas condições de vida, na medida em que, de prestador de serviços
remunerados com acesso à terra para sua subsistência o trabalhador
fosse sendo expropriado dos meios de produção, transformando-se
em assalariado “puro”. A intensificação do sobre-trabalho nas culturas
mercantis e a expansão destas mesmas culturas sobre as áreas muitas
vezes destinadas à cultura de bens de consumo diários iriam contri-
buir para agravar a situação do produtor. Este teria a necessidade de
adquirir cada vez maior parte dos mantimentos por meio do comércio,
que devido ao seu grau de desenvolvimento, daria margem para a ação
especulativa do comerciante, que iria fornecê-los a altos preços.
Por fim, conclui que a produção rural, ainda vinculada a uma
realidade colonial, por reduzir os custos de produção, de bens de
exportação já de pouco valor agregado, seria um problema de grande
monta para o desenvolvimento econômico em bases nacionalmente
integradas; a manutenção das precárias condições de vida das massas
seria um grande entrave ao desenvolvimento do mercado interno,
e, com ele, da industrialização. Não seria em nenhum momento, en-

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

tretanto, um entrave ao próprio capitalismo, visto que as vantagens


oferecidas pelo semi-assalariamento seriam bastante compensadoras
em determinados tipos de cultura e graus de desenvolvimento econô-
mico (PRADO Jr., 1966, p. 153-157).
Elas tenderiam a desaparecer e ser substituídas pelo assa-
lariamento pleno na medida em que os fatores fossem se tornando
favoráveis a esta mesma substituição, como é o caso do sucesso no
processo de acumulação e rentabilidade do empreendimento. Ou
seja, as relações de assalariamento parcial seriam mantidas até que
a oportunidade de serem substituídas se apresentasse. O emprego da
coação extra-econômica pelo proprietário e da subordinação pessoal
do trabalhador estariam vinculadas, assim, a regiões do país de baixo
desenvolvimento econômico, explicando-se como remanescentes
“[...] em país onde a abolição da escravidão data de pouco mais de
duas ou três gerações, e em lugares retardatários por contingências
econômicas ou outras que lhe emperraram o desenvolvimento” (PRA-
DO Jr., 1966, p. 163). Estaria aí, portanto, configurada no pensamento
do autor a idéia de que a existência de relações de “assalariamento
parcial” seriam transitórias, momento num processo de evolução do
capitalismo no Brasil, partindo da economia colonial em direção à
economia nacional.
O fato de esta produção realizar-se em muitos casos com um
baixo nível técnico não a tornaria menos capitalista do que aquela
beneficiada pela mecanização; “O que define o capitalismo como
sistema específico de produção, como se dá com respeito a qualquer
outro sistema, são relações humanas de produção e trabalho [...]”
(PRADO Jr., 1966, p. 164). O fato de a agropecuária estruturar-se em
empresas comerciais, com o único objetivo de lucro, e a partir de rela-
ções de compra e venda de força de trabalho, seriam suficientes para
demonstrar sua natureza capitalista (PRADO Jr., 1966, p. 166). A baixa
produtividade da agricultura e dos níveis de vida da população rural
foi muitas vezes interpretada como fruto de opções erradas tomadas
no passado, fazendo preservar-se uma estrutura feudal, o que faria
da atividade agrícola um “mau negócio”, demonstradas as insuficiên-
cias dos métodos extensivos de exploração. Prado Jr., ao contrário,
mostra que não há qualquer falha de percurso, tampouco qualquer
entrave dela decorrente sobre o processo de acumulação rural. “Os
procedimentos da agropecuária brasileira, por criticáveis que sejam
no geral, se justificam em frente ao objetivo visado: a maior soma de

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lucros no menor prazo possível, e com um mínimo de despesa inicial”
(PRADO Jr., 1981, p. 24).
O baixo impulso à introdução de melhorias tecnológicas na
agricultura não seria decorrente de sua natureza feudal, mas da insu-
ficiente organização da classe trabalhadora no intuito de pressionar
pelo aumento de seus salários, o que forçaria os empresários a buscar
compensar o aumento dos gastos com o capital variável mediante a
melhoria da produtividade do trabalho, expandindo a extração de
mais-valia relativa (PRADO Jr., 1966, p. 166).8 E isso não pode ser
utilizado como um índice de uma suposta experiência de “fracasso”
da atividade agrícola comercial no Brasil; a sua expansão e trans-
formação em um negócio rentável desde o sucesso da exploração
agrícola colonial em meados do século XVI dependeu, justamente,
dos fatores que geram esta falta de impulso para o progresso técnico.
Não é possível estabelecermos neste caso uma associação direta entre
atraso tecnológico e fracasso empresarial, já que mesmo com a baixa
rentabilidade, a disponibilidade de fatores assegurava os faustosos
ganhos dos proprietários-empresários rurais. Somente em tempos
recentes, segundo o autor, a recuperação de terras desgastadas pelos
séculos de cultivo predatório e extensivo torna-se questão, e somente
pelo fato de, agora, tal processo justificar-se como um expediente que
pode vir a ser lucrativo.

Não havia motivos comercialmente ponderáveis [até então] para


aumentar as despesas de inversão e custeio, mesmo quando
isso era realizável, o que nem sempre e mesmo em geral não
foi o caso, quando os processos utilizados ofereciam margem
de lucros suficientemente compensadores, e o prejuízo com
o desgaste de recursos naturais era facilmente amortizado.
(PRADO Jr., 1981, p. 27-28)

Era a ampla disponibilidade de terras e de mão-de-obra que


funcionava como impulsionadora desse processo. Abstraindo-se de
outras considerações, falar-se ao mesmo tempo de abundância de ter-
ras e de braços a serem empregados seria contraditório; a riqueza em
terras livres e de trabalhadores disponíveis exerceria uma pressão
para a formação de uma economia camponesa de pequenos produtores
independentes, colocados esses termos. Entretanto, esta abundância
deve ser entendida nos marcos de uma “terra cativa”, concentrada

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

nas mãos de uma minoria proprietária e que exclui as massas do seu


acesso, contribuindo, portanto, para a formação de um quadro propício
para o desenvolvimento de um agricultura mercantil em larga escala
(PRADO Jr., 1981, p. 23-26).
A título de conclusão, a posição teórica defendida por Prado
Jr. certamente representou uma das grandes reviravoltas nos posi-
cionamentos marxistas acerca da questão agrária no Brasil; seus
diagnósticos, nem sempre confirmados empiricamente, tiveram papel
fundamental na desconstrução das teses reducionistas do Modelo
Democrático-Burguês, ainda que os meios pelos quais o autor em-
preendeu esta tarefa o tenham levado a afirmações questionáveis.
De qualquer maneira, ao evidenciar a inexistência de “restos feudais”
e os impactos do modo de produção escravista na configuração
das relações de trabalho livres pós-Abolição, Prado Jr. contribui
de modo inequívoco para uma compreensão renovada da realidade
econômica nacional, repleta de especificidades, como ele mesmo
lembrava. Tamanha foi a influência do autor que a interpretação
do “capitalismo rural” no Brasil ganhou adeptos, dentre eles Maria
Conceição D’Incao e Mello, com seu estudo de caso sobre o trabalho
volante na agricultura paulista, publicado pela primeira vez em 1975
(MELLO, 1977).9
Baseada em dados a respeito de uma região específica do es-
tado de São Paulo, mas que, segundo a autora, seriam de certo modo
generalizáveis ao resto do país (quando contrastados com outros
estudos), verificar-se-ia um processo de transição gradual nas relações
de trabalho, sendo abandonadas as formas de exploração de mão-
de-obra baseadas na remuneração in natura – como o arrendamento,
a parceria ou os “agregados” – em prol de remuneração monetária
pela prestação de serviços – assalariamento “puro”. Tal fato seria
atestado pelos censos de 1950 e 1960, que indicariam a queda no
número de parceiros e a elevação no número dos ditos “empregados
na agricultura”.
Quando este processo fosse associado à expulsão de parte da
população rural do campo e à sua não-absorção pela indústria urbana,
devido às suas características técnicas, haveria a propensão à expan-
são do exército industrial de reserva, e em crescentes quantidades,
do trabalhador volante na agricultura. “Este atende melhor às neces-
sidades do capital, por ser mais adequado às demandas irregulares
por força de trabalho por parte dos proprietários, e por permitir-lhes

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mais facilmente furtarem-se aos compromissos legais trabalhistas”
(MELLO, 1977, p. 148).
Em suma, a concepção de “transição” legada por Prado Jr. fora
apropriada por Mello, que vê também nos “resquícios escravistas” uma
situação passageira, ainda que não-anacrônica, mas suplantada assim
que o modo de produção capitalista ganhasse um dinamismo tal que
não mais comportasse as formas de “assalariamento parcial”.10
Vejamos algumas das condições que conduziriam à formação do
bóia-fria, versão acabada do proletariado rural brasileiro, de modo a
compreendermos como a autora constrói sua análise sobre o avanço
do capitalismo no campo – e mais ainda, sua própria idéia de relação
capitalista de produção.
A estrutura agrária da localidade em que se produziram os
bóias-frias estudados – Alta Sorocabana – seria marcada por uma eco-
nomia mercantil, de produção de bens de valor comercial elevado, ao
mesmo tempo seguida por uma produção de gêneros de subsistência
subalterna, destinados ao consumo local. Vemos, portanto, que estaria
configurada na fisionomia clássica do mundo rural brasileiro, assim
como Prado Jr. identificou. O café era o produto principal, produzido
através da coexistência entre pequenas e grandes propriedades.
A decadência da produção cafeeira após 1940 não havia levado ao
fracionamento dos latifúndios e ao crescimento das pequenas pro-
priedades, tendo em vista uma substituição bem-sucedida do café
por outros produtos de satisfatório valor mercantil, como o algodão.
Perpetuava-se, portanto, a “economia colonial”.
Ao longo dos anos 1930 foi verificado um incremento na pe-
cuária. Acerca da sobrevivência da pequena propriedade, Mello
afirma que seria possível sugerir que ocorrera seu desaparecimento
progressivo, baseada na hipótese de Prado Jr. de que a prosperidade da
grande exploração tende a exercer grande pressão sobre as pequenas
glebas, em um movimento de absorção territorial (MELLO, 1977, p. 41).
A expansão da pecuária, não somente sobre áreas não-exploradas,
mas também reduzindo a presença da lavoura permanente, levara,
ao longo do século XX, ao desenvolvimento da lavoura temporária,
com o objetivo maior de criar pastagens ao final de um determinado
período.11
Em suma, a autora sugere que a substituição das diversas formas
de grande exploração mercantil em Alta Sorocabana foram ocorrendo
dentro do sistema de produção para o mercado externo, com pouca

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

articulação com os centros produtores, baseada em uma estrutura


latifundiária e em atividades extensivas (principalmente no que diz
respeito à pecuária). Acrescenta-se a isso uma tendência, verificada
nos censos de 1940 e 1960, a um fracionamento da terra, sem afetar
as grandes propriedades: ou seja, verificava-se a diminuição do tama-
nho médio da pequena propriedade, com as devidas conseqüências
na provisão de bens alimentares dos trabalhadores rurais e sobre as
suas possíveis fontes de renda alternativas. A autora indica que tal
fracionamento seria um indício cada vez maior da futura extinção da
pequena propriedade na região (MELLO, 1977, p. 43-45).
Em resumo, a formação da mão-de-obra volante, entendida
como o proletariado “completo”, estivera baseada na existência de
três fatores: “a existência de uma estrutura latifundiária, a natureza
predominantemente exportadora da economia agrária e a predominân-
cia da pecuária na economia rural da região” (MELLO, 1977, p. 46-47).
Os dois primeiros fatores podem ser facilmente associados à noção
de “economia colonial”, contraposta à “economia nacional”, de Prado
Jr.12 O latifúndio, apesar de existir num contexto de abundância de
terra, fazia com que o acesso à mesma fosse limitado o que, em termos
práticos, significa a carência de terras disponíveis para a formação de
uma economia rural baseada em pequenas propriedades.
Já a oferta de mão-de-obra fez uma trajetória inversa, tendo
caminhado da insuficiência, principalmente no momento da ruptura
com o escravismo, para a abundância, decorrente da concentração da
propriedade. Os primeiros trabalhadores a chegarem na região teriam
sido empregados com suas famílias, em um contexto de carência de
braços, como empreiteiros ou colonos, ambos os sistemas baseados
no domicílio do trabalhador na grande propriedade e na cessão de
uma fração de terra para a subsistência do mesmo. Embora, segundo
a autora, fosse mais custoso ao proprietário manter esse tipo de re-
lação de produção, por outro lado garantia mão-de-obra por todo o
ano. “Observe-se que se trata de um sistema de exploração de força
de trabalho bastante típico de uma região onde há escassez de mão
de obra” (MELLO, 1977, p. 50). Nessas situações, fixar o homem à terra
seria de extrema importância.
Ao longo dos anos 1930 o sistema teria sido substituído pela
parceria e pelo arrendamento, juntamente com o progresso da cotoni-
cultura e da pecuária e o retrocesso da cafeicultura. Todos os encargos
ficaram por conta do arrendatário, tendo o proprietário apenas cedido

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o uso da terra, o que lhe trazia grandes vantagens, além de abrir a
prerrogativa da exploração do arrendatário por meio do fornecimen-
to de gêneros; a disponibilidade de mão-de-obra temporária para os
momentos em que fosse imprescindível, como na época da colheita,
viabilizava o sistema. A expansão da pecuária, e com ela a maior
concentração de terras, além da incorporação de áreas dedicadas
à lavoura a esta atividade, aumenta progressivamente o número de
trabalhadores rurais proletarizados.
A conclusão deste processo, portanto, teria feito a transição
de sistemas de emprego de mão-de-obra baseados em um assalaria-
mento parcial, como o colonato e a parceria – capitalismo permeado
de escravismo, diria Prado Jr. –, para o assalariamento pleno com o
desenvolvimento da expropriação do trabalhador. Um terceiro e último
fator estaria na integração da agricultura ao mercado e no retrocesso
da produção de subsistência (MELLO, 1977, p. 50-53).

A escassez de terras, abundância de mão-de-obra e o elevado


índice de integração no sistema nacional permitem concluir
sobre a existência de uma tendência à elevação do número de
proletários rurais, em detrimento do número de camponeses,
em Alta Sorocabana. (MELLO, 1977, p. 53)

Ao trabalhar com dados quantitativos relativos às categorias


ocupacionais no meio rural da região estudada para o ano de 1968,13 a
autora deparou-se com uma realidade imediata que contrastava com
sua hipótese de trabalho. Os percentuais dos ditos “proprietários”,
“arrendatários” ou “parceiros” eram, separadamente, todos maiores
que aqueles relativos aos chamados “assalariados”, sem qualquer
indicação de um processo de assalariamento progressivo. A autora
lembra, em defesa de suas idéias, que as informações coletadas
pouco significariam se não se buscassem os critérios pelos quais os
trabalhadores rurais foram agrupados. Uma releitura desses dados
sob a ótica do aporte teórico desenvolvido por Mello revelaria uma
nova situação.
Por exemplo, os arrendatários, que supostamente deveriam
ser, de acordo com as estatísticas oficiais, indivíduos que usufruiriam
do direito de utilizar uma fração de terra por meio de pagamento em
dinheiro ou em mercadoria, esgotando aí seus vínculos contratuais,
demonstraram, mediante a observação empírica, ter uma relação mais

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

complexa com os proprietários. “No que se refere ao arrendatário,


constatou-se que a sua autonomia é bastante questionável” (MELLO,
1977, p. 57). Arrendamentos de terra para a agricultura (ao contrário
daqueles para a pecuária, em que o arrendatário é quase sempre um
outro grande empresário) seriam marcados claramente pela intromis-
são do proprietário no processo produtivo, por meio da imposição das
culturas a serem desenvolvidas, da proibição do uso da terra para a
plantação de bens alimentícios, do monopólio da venda da produção
(quando o proprietário compra a produção por menor preço e espera
para revender em melhores condições), entre outras.
Arrendamentos feitos para a formação de pastagens seriam
marcados por uma série de subcategorias. Entre elas, a mais impor-
tante é a dos chamados “grandes arrendatários”, que, com capital
para a exploração de uma vasta área, arrenda a terra e a explora por
intermédio do trabalho do subarrendatário que, por estar totalmente
desprovido de meios de produção, se vê submetido.

Essa dependência já se define, em princípio, na própria forma


de pagamento estipulada, o que compromete a plantar deter-
minado produto [...] Dada a precariedade do seu instrumental
agrícola [...] e ao seu baixo rendimento, [...] sobram-lhe poucas
condições para a exploração da faixa de terra destinada à eco-
nomia de subsistência a que tem direito. (MELLO, 1977, p. 59)

Nos casos em que o proprietário mesmo emprega capital no


processo produtivo, a categoria mais comum a ser utilizada é a do
parceiro. Além de oferecer rentabilidade satisfatória, permite ao em-
presário controlar o processo por meio do fornecimento de insumos,
com os quais mantém seus parceiros endividados; seria comum e
constante o pagamento de dívidas com a produção: “Privado de toda
e qualquer independência na sua ação, e ganhando o mínimo necessá-
rio à sua sobrevivência, o parceiro nada mais é do que um assalariado
disfarçado” (MELLO, 1977, p. 65).
Da mesma maneira que Prado Jr. descreveu a diferença entre a
parceria desenvolvida no Brasil e aquela praticada na Europa, Mello
afirma que se trata sobretudo de formas de emprego remunerado,
nunca da transferência de posse da terra para o produtor e sua in-
dependência mediante os interesses do proprietário. Em resumo,
a observação empírica e a submissão das categorias arroladas no

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Daniel de Pinho Barreiros


Estatuto da Terra às definições teóricas desenvolvidas aponta para
uma situação em que, longe da hegemonia do “camponês” (peque-
nos produtores, exercendo atividade produtiva por conta própria),
a estrutura agrária nacional seria marcada pela proletarização em
diferentes categorias.

Uma análise mais detalhada pode, quando muito, diferenciá-los


em assalariados disfarçados e semi-assalariados, conforme a
sua remuneração seja feita na medida do mínimo necessário à
sua subsistência, ou abaixo deste mínimo [...] O modelo de aná-
lise adotada fica, entretanto, inquestionavelmente confirmado,
quando se acrescentam à categoria dos proletários rurais os as-
salariados rurais propriamente ditos – peões, administradores,
tratoristas, motoristas etc. – e a grande leva de trabalhadores
volantes – os “bóias-frias” [...]. (MELLO, 1977, p. 66)

Reconhecemos ser inegável a presença de um proletariado rural


no Brasil em expansão nas décadas de 1950 e 1960; tal fato indicaria a
existência de um excedente populacional expropriado e da carência de
terras (decorrente da concentração de propriedade) em determinadas
áreas – como parece ser o caso da Alta Sorocabana – a ponto de gerar
as condições que Mello convincentemente explanou; estariam confi-
guradas, nesse caso, sem sombra de dúvidas, relações de produção
capitalistas.14 O que nos interessa, sobretudo, não é criticar tais afir-
mações – ainda que sua generalização seja questionável –, já que elas
coadunam com o conceito de modo de produção capitalista defendido
neste estudo. O que buscamos discutir é a concepção de “relações de
produção capitalistas”, utilizada tanto por Mello quanto por Prado Jr.,
que, na tentativa de englobar diversos tipos de relações de produção
baseadas na prestação de serviços, ganha tamanha fluidez a ponto
de perder a maior parte de seu poder explicativo.15
Em resumo, vimos que os supracitados autores – representantes
de uma “interpretação capitalista” da agropecuária brasileira – de-
fenderam um conceito de modernização como a disseminação das
relações de produção capitalistas no campo após a dissolução do
modo de produção escravista. Prado Jr., vendo na “revolução brasi-
leira” o grande processo modernizante nacional, apontou o caráter
de progressivo abandono da estrutura econômica “colonial”, em prol
de uma “economia nacional”, voltada para o engrandecimento do

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A tese do capitalismo colonial brasileiro

mercado interno e para a melhoria das condições de vida das mas-


sas trabalhadoras. Este processo, como vimos, teria sido alavancado
pela libertação do trabalhador e por sua integração num mercado de
trabalho capitalista, tornando-se um assalariado. Nesta condição,
remunerado pelo seu labor e livre para vender sua força de trabalho
àquele que lhe oferecesse melhores condições, poderia concretizar
sua integração à “nação”.
Entretanto, remanescentes do modo de produção escravista
ainda atuavam para impedir a total emancipação desse trabalhador
(em termos capitalistas), impedindo seu ingresso na luta de classes
de um modo livre e pleno e a obtenção de maiores conquistas sociais.
Mas tais resquícios não representavam entrave à acumulação capita-
lista em si: eles foram condição do seu estabelecimento durante uma
determinada etapa do desenvolvimento econômico brasileiro.
Tanto Prado Jr. quanto Mello afirmam que todas as modalidades
de trabalho empregadas pós-1888 seriam de fato capitalistas, uma
vez que consistiriam em prestação de serviços remunerados para a
produção de mercadorias, não importando a forma de “pagamento”
recebida. No entanto, o progresso dos empreendimentos rurais (com
sua maior capitalização) e o acirramento da concentração fundiária
na segunda metade do século XX estariam levando à conclusão de um
duplo processo de modernização, iniciado com a abolição do trabalho
escravo: a dissolução das formas de semi-assalariamento com a im-
plantação de relações totalmente capitalistas – de maior produtividade
e rentabilidade para aquela etapa em que se encontrava a acumulação
do capital – e a possibilidade de integração final desses contingentes
ao desenvolvimento nacional, uma vez que poderiam lutar com maior
liberdade por conquistas sociais.16
Estaria assim construída uma visão de modernização que teria
por pressuposto não a construção de um “capitalismo rural” – uma
vez que este já estaria construído desde o momento em que a produ-
ção de mercadorias se deu por intermédio do trabalho livre em suas
diversas “formas de assalariamento” –, mas o aprofundamento deste
mesmo modo de produção.17 A partir da crítica a estes pressupostos,
discutiremos a verdade parcial que consiste na expansão das relações
capitalistas no campo e na complicada associação entre trabalho
“livre” e assalariamento.

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Notas

Daniel de Pinho Barreiros


1
Com a exceção de Barrington Moore Jr. que inclui a Índia entre seus casos analisados
(indicando a ausência de impulso modernizante), nenhum dos demais autores se
propõe a abordar a construção do capitalismo em sociedades periféricas.
2
Guido Mantega é doutor em economia pela USP, bem como graduado em economia
e ciências sociais pela mesma instituição. Fez parte do CEBRAP. O livro A Economia
Política Brasileira é uma versão modificada de sua tese de doutoramento.
3
Além de Caio Prado Jr., dois outros autores são incluídos por Guido Mantega no
Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista, sendo eles Rui Mauro Marini e André
Gunder Frank.
4
Apontemos logo de antemão uma contradição no discurso do autor. Indica que no
exemplo norte-americano ocorre a divisão do produto final da colheita tal como em
São Paulo. Até aí não fica configurada de nenhuma maneira uma relação de salariado,
já que, como indica o autor, determinada parte do produto torna-se propriedade
do trabalhador. Cabe no momento somente indicar o problema. Ele será melhor
explicitado mais adiante.
5
Trata-se de uma coletânea de artigos que foram originalmente publicados na Re-
vista Brasiliense, entre os anos de 1960 e 1964, logo, precedendo a publicação de A
Revolução Brasileira, motivados pelo clima de discussões sociais que colocavam
a questão agrária como pauta, efervescência intelectual esta que fora obstada
pelo golpe militar de 31 de março de 1964. Os dois primeiros artigos, intitulados
“Contribuição para a Análise da Questão Agrária no Brasil” e “Nova Contribuição
para a Análise da Questão Agrária no Brasil” são reiteradamente citados como
base da argumentação desenvolvida e depurada em A Revolução Brasileira.
Ainda que transcenda os limites deste estudo, cabe lembrar, por exemplo, que
em alguns momentos o autor tem ponto de vista diferente nos dois trabalhos.
Nos artigos reunidos em A Questão Agrária no Brasil, Prado Jr. vê como solução para
a crise social no campo a melhoria das condições de trabalho das massas rurais ex-
propriadas (ou quase completamente desprovidas), associada a uma reforma agrária
que abrisse espaço para a fixação do trabalhador como pequeno produtor camponês.
Em A Revolução Brasileira a via da distribuição de terras é rechaçada; a negação do
caráter “camponês” das massas rurais, em prol de sua dimensão “proletária”, faz
com que o autor defenda para as mesmas a melhoria das condições de trabalho,
considerando a formação de pequenas propriedades como um retrocesso e uma
ação com pouca eficácia, dada a inaptidão já consolidada do trabalhador para pro-
duzir fora da dinâmica cooperativa e mercantil ligada à grande produção (PRADO
Jr., 1981, p. 69-85; 1966, p. 209-274).
6
Como é o caso citado pelo autor dos “foreiros” na lavoura canavieira do Nordeste;
estes trabalhadores ocupam pequenos lotes e neles trabalham para seu sustento,
por conta própria. Pela terra, pagam tributo (“foro”). Além disso, são obrigados a
prestar serviços compulsórios aos proprietários na época das safras, trabalhando
nas terras deste (PRADO Jr., 1981, p. 61).
7
O escravo seria remunerado pelo seu serviço com víveres, além do direito de
cultivar para si outros bens de subsistência. O trabalhador livre seria remunerado
em dinheiro e com outras formas de pagamento, como participação na produção,
exploração de alguma parcela de terreno etc. De antemão já indicamos o caráter
impreciso e questionável deste raciocínio.
8
O autor tem razão ao afirmar que a agricultura brasileira sofre naquele momento
de uma carência de impulso para o progresso técnico, mas ao enunciar as causas
desta situação, reduz os fatores. Evidentemente a pouca capacidade de barganha,
decorrente da ainda frágil organização dos trabalhadores, é um fator que mantém
os salários baixos e, portanto, tornaria desnecessária a expansão da acumulação
por meio do incremento na mais-valia relativa. Mas isto não é tudo. O que deveria ter
sido colocado seriam os motivos pelos quais os salários permaneciam baixos, bem
como as razões da desorganização da classe para a reivindicação de seus direitos.
A possibilidade de utilização de expedientes que intensifiquem a extração de so-
bretrabalho em termos absolutos, consubstanciados na fixação do homem à terra
(delegando-lhe a responsabilidade pela sua subsistência) permite-nos questionar

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até que ponto o dispêndio de capital variável representa parte substantiva dos
A tese do capitalismo colonial brasileiro

custos da empresa agrícola; em outras palavras, em que medida o salário pago ao


trabalhador tem participação preponderante na sua reprodução como mão-de-obra.
Ainda, se os motivos da alegada parca organização não estariam no fato de não es-
tarmos lidando realmente com uma “classe operária rural”, como pressupõe o autor.
Uma vez que Prado Jr. considera a utilização daquilo que chama de “semi-assala-
riamento” como uma fase transitória, que logo seria substituída hegemonicamente
pelo trabalhador completamente expropriado, perde de vista que tal sistema de
trabalho pode se constituir numa realidade cristalizada em setores fundamentais
da formação econômico-social brasileira, parte de seu padrão histórico de desen-
volvimento e, portanto, fator que permitiria prescindir do progresso técnico sem
criar qualquer “insuficiência estrutural” em sua relação com a economia urbano-
industrial. Voltaremos a esta questão mais adiante, no momento em que forem
analisados trabalhos que, baseados em dados empíricos, apontam o estado da
produção agrícola na década de 1970.
9
Trata-se de uma tese de doutorado em sociologia apresentada na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Circunscrevendo-se à região de Alta
Sorocabana, no Estado de São Paulo, seu objetivo limita-se ao estudo das condições
de miserabilidade nas quais estavam inseridas as massas trabalhadoras da mesma
localidade. Estas condições indicariam a incidência de um acelerado processo de
proletarização desses trabalhadores.
10
No que tange o caráter transitório das relações de trabalho vinculadas ao dito “pas-
sado escravista”, evidenciado nos anos 1960, Elbio Gonzales e Maria Ines Bastos têm
opinião análoga à de Prado Jr. e Mello, ainda que considerem como “capitalistas”
somente o trabalho volante em que o indivíduo encontra-se totalmente expropriado.
Em suas palavras: “O crescente aumento do volume de capital nas mãos dos empre-
sários agrícolas, aliado à disponibilidade de força-de-trabalho desprovida de meios
de produção, determinam uma subsunção formal do trabalho ao capital. Em outras
palavras, dadas as condições de trabalho (meios de produção) como propriedade
alheia, tanto mais plena e formalmente se estabelece a relação entre o capital e o
trabalho assalariado [...] Rompem-se, desse modo, todas as relações de trabalho
(parceria, colonato etc.) não estritamente capitalistas” (GONZALES; BASTOS, 1977,
p. 39).
11
Os pecuaristas arrendariam parte de seus campos destinados à formação de pasta-
gens para agricultores, que adquiririam o direito de plantar ao longo de um período
estabelecido contratualmente; findo o mesmo, a terra deveria ser devolvida plantada
com capim para o gado (MELLO, 1977, p. 42).
12
Como dissemos anteriormente, a idéia de uma “economia colonial” traz em
si uma produção voltada para necessidades que não são aquelas demons-
tradas pelos próprios produtores. A “revolução brasileira” consistiria, entre
outras transformações, no redirecionamento desta economia para seu “in-
terior” e na melhoria das condições de vida das massas rurais. O bóia-fria
conceituado por Mello, circundado por relações de produção capitalistas po-
tencializadas ao extremo, estaria no cerne desta “economia colonial”, já que
privado do desenvolvimento econômico e produtor de bens de exportação.
Remetendo-nos a Prado Jr., a “economia colonial” não seria a antítese do capitalismo,
ao contrário: ela se desenvolveria (e sempre o teria feito) por intermédio da explo-
ração do sobretrabalho, por parte de uma classe de proprietários-empresários, de
massas expropriadas ou semi-expropriadas. As diversas formas de “remuneração
do trabalho”, que compreenderiam a parceria, o arrendamento, o colonato, entre
outras, todas representariam o modo de produção capitalista já desenvolvido.
Mello identifica, entre as principais condições de formação da mão-de-obra volan-
te, os fatores estruturais da “economia colonial”, demonstrando, em consonância
com Prado Jr., que mesmo o “atraso” personificado nas estruturas fundiárias, nas
condições técnicas da agricultura e na miséria do trabalhador não implicaria em
uma identidade pré-capitalista (ou “feudal”, nos termos do Modelo Democrático-
Burguês, que já mencionamos). Neste e em outros pontos de vista Mello demonstra
sua afinidade à tese do “capitalismo rural” de Prado Jr.
13
Trata-se dos dados fornecidos pelo DIRA de Presidente Prudente, Plano Regional
de Assistência à Agricultura, de setembro de 1968.

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Daniel de Pinho Barreiros


Como já havíamos verificado nos “Debates sobre a Transição”, a razão entre a
quantidade de terras disponíveis (e não necessariamente de terras fisicamente
existentes) e a de mão-de-obra tem representado historicamente uma questão
crucial na configuração das relações de trabalho hegemônicas na agricultura. Os
elementos apontados por Mello para justificar a presença de um tipo de trabalhador
completamente expropriado parecem-nos bastante convincentes, e convergem para
o nosso ponto de vista.
15
Não temos dúvidas acerca da existência de um verdadeiro proletariado rural ao longo das
décadas anteriormente citadas. Questionamos a amplitude do contingente desta mesma
categoria, sua representatividade no conjunto da classe trabalhadora em nível nacional e
a incorporação de diversos tipos de relações de produção à categoria de “assalariamento”.
Assim, concordamos com Elbio Gonzales e Maria Ines Bastos quando definem o
trabalho volante como relação tipicamente capitalista, em contraposição a outras
formas de trabalho rural, como o trabalho sazonal: “Nesta modalidade de trabalho
agrícola [sazonal], os trabalhadores não se encontram totalmente desprovidos
dos meios de produção já que se constituem, em grande parte, de posseiros, par-
ceiros e pequenos proprietários agrícolas”. Ou seja, reconhecem a existência de
relações de produção capitalistas a partir do trabalhador completamente expro-
priado, eliminando desta qualificação aqueles com acesso a meios de produção.
E completam: “Assim, dadas as diferenciações empíricas estabelecidas, conside-
ramos o ‘trabalho volante’, lato sensu, como uma relação de trabalho na qual os
produtores diretos vivem exclusivamente da venda de sua força de trabalho e, para
tanto, são obrigados a deslocarem-se continuamente, seja de um local fixo a diferen-
tes lavouras, ou de uma fazenda à outra, a fim de executarem tarefas em regime de
empreitada direta ou intermediada” (GONZALES; BASTOS, 1977, p. 27-28).
16
Nas palavras de Mello, o bóia-fria, compreendido como resultado máximo do pro-
cesso de implantação do trabalho assalariado, consistiria numa “afirmação” e numa
“negação” do mesmo sistema capitalista. “Afirma-o permitindo que a reprodução do
capital se faça em nível ampliado. Nega-o na medida em que, garantindo condições
de desenvolvimento para o capital, acentua a contradição entre os detentores dos
meios de produção e aqueles que, por não os possuírem, são obrigados a vender a
sua força de trabalho para sobreviverem” (MELLO, 1977, p. 147).
17
Exceção feita a Gonzales e Bastos, que, como já dissemos, identificaram o trabalho
volante como expressão de uma realidade nova, de total expropriação do trabalha-
dor, ao contrário das formas de trabalho a ele antecedentes.

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

Expostos os pontos de vista de alguns dos principais autores


vinculados ao modelo de modernização capitalista no campo, passa-
mos à nossa crítica aos mesmos pressupostos. Nossas considerações
basear-se-ão em dois conjuntos de argumentos. O primeiro deles é
o de que, em linhas gerais, os autores citados perdem de vista o fato
de que a “modernização capitalista” no campo é processo recente, e
condicionado por determinados fatores muito específicos, que somen-
te emergiram nas últimas décadas. Portanto, falar da hegemonia das
relações de produção capitalistas entre 1888-1950 é uma imprecisão
teórica.1
E mesmo além desses marcos cronológicos, como veremos,
falar de assalariamento no campo requer a aceitação da existência
de “semiproletários”. Compreendendo como proletário o indivíduo a)
completamente expropriado dos meios de produção e; b) dependente
de um mercado capitalista para a venda de sua força de trabalho e
aquisição de bens de subsistência, apontaremos, com base na biblio-
grafia, que a sua participação, principalmente na figura do bóia-fria,
resume-se a uma parcela reduzida da atividade agrícola, ainda que
dinâmica, quando comparada ao conjunto da produção nacional.
Este é o segundo conjunto dos argumentos por nós desenvolvidos:
a chamada “modernização capitalista no campo” é, além de muito
recente, limitada; a produção de alimentos, considerada como setor-
chave para a implementação da economia capitalista, está privada
das transformações engendradas por este processo até pelo menos
os anos 1970.
Como nossa primeira consideração, identifiquemos alguns dos
pressupostos teóricos defendidos por Prado Jr. – representante ideal
do modelo de modernização capitalista no campo – a fim de situarmos
seu pensamento no conjunto das teorias a respeito do capitalismo,
que explicitamos na primeira parte; com isso, tentaremos demons-
trar a impropriedade de determinadas conceituações, que podem
comprometer uma análise crítica da economia brasileira, caso sejam
assumidas incondicionalmente.
O conceito de feudalismo empregado por Prado Jr. é o primeiro in-
dício de que estamos diante de uma interpretação do capitalismo ligada
ao “modelo mercantil”, criticado por Wood, do qual Sweezy mostrou-
se importante representante. Ao questionar o Modelo Democrático-

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

Burguês e a “tese feudal”, afirmou que qualquer espécie de associação


entre coercitividade e “feudalismo” seria falsa, o que significava dizer
que práticas como a do “combão” e do “barracão”, pelo seu caráter
semicompulsório, não seriam sobrevivências feudais, e sim escravis-
tas (PRADO Jr., 1966, p. 56-57). O autor, portanto, não as nega como
antinômicas às relações de produção capitalistas, somente afirmando
ser sua origem, no caso brasileiro, o modo de produção escravista, e
não o feudal (inexistente na experiência histórica nacional, como nos
recorda). O problema é que, ao dissociar “coercitividade” de “feudalis-
mo”, o faz baseando-se na idéia de que só se pode definir a condição de
“feudal” como uma negação das relações mercantis (PRADO Jr., 1981,
p. 68); em outras palavras, a principal característica de uma economia
imersa no feudalismo seria seu afastamento da dinâmica comercial,
levando-nos aos pressupostos de Pirene, adotados por Sweezy.
A segunda consideração reside na identificação entre capitalis-
mo e mercado, realizada mais uma vez por Prado Jr. Ao prosseguir na
diferenciação entre a estrutura agrária legada do período colonial e
a propriedade feudal européia, afirma ter inexistido no Brasil, após a
dissolução do escravismo, a formação de uma economia camponesa;
o prosseguimento da grande exploração e da produção voltada para o
mercado não se equipararia à economia agrária camponesa da Europa
feudal, baseada na pequena exploração, em que o camponês seria o
responsável por uma produção voltada para a subsistência. Com isso,
indica que o caráter de exploração comercial da grande propriedade
no Brasil garantiria, por si só, sua dimensão capitalista (PRADO Jr.,
1966, p. 60-61, 117-118, 149-150, 166).
É claro que o fato de a plantation ter como finalidade única o
mercado internacional a faz diferir cabalmente da produção de subsis-
tência feudal, embora saibamos muito bem que este não é um critério
de diferenciação entre modos de produção, já que, com a segunda
servidão, muitos latifúndios alemães utilizaram-se de trabalho servil
para a produção comercial voltada para os mercados de trigo euro-
peus. Dessa forma, ter como finalidade a exploração mercantil só é
contraposto ao conceito de “feudalismo” dentro do “Modelo Mercantil”
de explicação do capitalismo.
A terceira consideração, e a mais importante, situa-se na natu-
reza das relações de produção capitalistas tal como foram pensadas
por Prado Jr. e Mello. A desmedida inclusão de formas de trabalho
variadas sob a categoria do “assalariamento”,2 estabelecendo as vá-

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Daniel de Pinho Barreiros


rias gradações, levou inclusive o primeiro autor a definir o escravo no
Brasil como um “prestador de serviços”, remunerado pelo seu trabalho
através da obtenção dos bens necessários à sua subsistência (PRADO
Jr., 1966, p. 65). Prado Jr. parece desconsiderar a especificidade do
modo de produção escravista, que jamais pode ser dito “remunerado”,
tendo em vista ser o escravo “renda capitalizada”; o escravo não vende
parte de sua força de trabalho, e sim é vendido com toda a força de
trabalho que tem disponível; o investidor emprega um determinado
capital com a esperança de, ao fim da vida útil do escravo, ter resgatado
com juros a mesma parcela de capital empregada. Da mesma forma, o
pagamento em direito de uso de terras e em parte da produção está
longe de constituir-se em relação de assalariamento; as conseqüências
de tais relações de trabalho raramente permitiram o desenvolvimento
de um mercado interno capitalista de grandes proporções, devido ao
acesso do trabalhador aos meios de produção. Como lembra Mantega,
a parceria, por exemplo, não se constituiria em trabalho assalariado
uma vez que o parceiro não venderia sua força de trabalho, mas sim
pagaria uma parte da produção como aluguel pela terra utilizada,
configurando-se como renda da terra. Proprietários e parceiros,
lembra, são classes distintas dos capitalistas e dos assalariados e
geram uma dinâmica social distinta. O que aproximaria o assalariado
do parceiro seria o fato de que ambos carecem do principal meio de
produção agrícola, que é a terra, e possuem pouco mais que sua força
de trabalho. No entanto, o primeiro alienaria sua força de trabalho, e o
segundo entregaria parte de seu trabalho cristalizado em mercadorias
(MANTEGA, 1985, p. 150-152).
Uma outra associação complicada é aquela feita entre trabalho
livre e relação capitalista de produção. Se é verdade que a segunda
tem na primeira uma condição indispensável, é menos real admitir que
toda forma de trabalho livre é associada ao capitalismo. Uma situação
em que o trabalhador dispõe da liberdade jurídica – como foi o caso
do colonato na lavoura de café ao fim do século XIX – não significa
necessariamente que é empregado como proletário rural, embora,
a partir dos conceitos de Prado Jr, esta idéia fique a todo o tempo
explícita.3 Concordamos que a Abolição tenha representado mais um
passo para o processo de mercantilização da sociedade, mas não o
momento derradeiro, como sugere. O que ocorre é que a Abolição
não deu origem ao processo de mercantilização completa da força de
trabalho no campo e à expropriação do trabalhador.4

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148
Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

Outro fator que demonstraria a hegemonia histórica do capita-


lismo no campo brasileiro seria a configuração da grande classe pro-
prietária como uma verdadeira “burguesia agrária”, em contraposição
à associação da mesma classe aos senhores feudais. Isto se atestaria
pelo fato de não desfrutarem somente da propriedade garantida ju-
ridicamente, mas imiscuírem-se no processo produtivo na condição
de empresários. Além disso, a notável fluidez com que esta classe
proprietária participa de empreendimentos financeiros, comerciais
e industriais denotaria sua dimensão burguesa (PRADO Jr., 1981, p.
166-168). Em suas palavras:

Trata-se num e noutro caso de igual categoria social, e no mais


das vezes até dos mesmos indivíduos, homens de negócio que
aplicam seus recursos e iniciativas tanto em empreendimentos
agropecuários como em outros setores, ao sabor unicamente
das oportunidades ensejadas e da lucratividade esperada.
(PRADO Jr., 1966, p. 168)

Acontece que o fato de uma classe não-burguesa participar de


empreendimentos na forma de capital industrial não simboliza um
anacronismo, como pretende indicar o autor; nos exemplos históricos
em que se verificou a formação de uma burguesia industrial a partir de
classes “tradicionais”, estas mostraram-se ciosas por preservar seus
antigos privilégios pré-burgueses, alterando o sistema somente na me-
dida em que expandisse seu poder social.5 Em outras palavras, Prado Jr.,
ao verificar a presença dos proprietários rurais em empreendimentos
urbano-industriais, utiliza-se deste fato para daí confirmar que, sendo
assim, o latifundiário tem de ser burguês. Ora, isso não prova nada acerca
do seu caráter “burguês” ou “capitalista”, apenas indica que uma classe
tradicional foi um dos componentes da burguesia industrial nacional.
Não vivenciamos na experiência histórica nacional a formação
de uma classe burguesa que, pela sua posição de antagonismo em
relação ao “antigo regime”, precisasse derrubá-lo e fazer tábua rasa
de suas instituições para que sua hegemonia se confirmasse. Ao con-
trário, o que tivemos foi a formação de uma burguesia industrial a
partir das fileiras daquelas classes hegemônicas sob o antigo regime,
como no caso germânico. Assim sendo, o capitalismo avança sob sua
batuta sem que as reformas sociais ligadas ao fenômeno da revolução
burguesa venham a se manifestar, ou, quando muito, implementam-se

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Daniel de Pinho Barreiros


“de cima para baixo”, tendo como resultado o benefício das classes
terratenentes (BARREIROS, 2002, cap. 13).
Uma quarta consideração está na associação realizada por
Prado Jr. entre grande propriedade e grande exploração (PRADO
Jr., 1966, p. 89, 118-119). Uma das medidas principais que preconiza
o sucesso da Revolução Brasileira não é a reforma agrária baseada
na distribuição de terras para os trabalhadores, e sim a melhoria das
condições de vida do trabalhador rural, tendo em vista o seu caráter
não-camponês, e sim semi-proletário ou proletário. Afirma que o fra-
cionamento da exploração rural seria um retrocesso, uma vez que,
no caminho da socialização da terra e da estatização da proprieda-
de, a preservação da grande propriedade só aceleraria o processo e
manteria uma base para a futura formação de grandes explorações
comunais. “Isso pela mesma razão que a luta do trabalhador urbano
da grande indústria não se dirige para a destruição dessa indústria e
sua substituição pelo artesanato” (PRADO Jr., 1966, p. 89). Prado Jr.
confunde claramente os dois conceitos, afirmando a vantagem de se
conservar intacta a grande exploração, já baseada no trabalho coletivo
e “assalariado”, como base para a socialização dos meios de produção.
Depois da Abolição, formara-se um extenso processo de destruição
da grande exploração rural – mas não da grande propriedade rural
–, que passa a ser parcelada a partir de diversos regimes de trabalho
pré-capitalistas (colonato, parceria, meação etc.).6
A quinta consideração deriva da última, tratando-se da rela-
ção entre a pequena propriedade e o abastecimento urbano de bens
alimentícios no pensamento do autor. Em função de seu conceito
de “campesinato”, Prado Jr. afirmou que a pequena propriedade
camponesa só poderia ser encontrada nas periferias da economia
agroexportadora, sendo fruto da ruptura da grande propriedade/
grande exploração em dadas regiões (PRADO Jr., 1966, p. 62-63). Seu
papel seria diminuto, portanto; a produção de subsistência só teria a
dimensão de manter os próprios trabalhadores nela empregados e o
atendimento das populações locais.7 Veremos, a partir de outro con-
ceito de “campesinato”, e de dados empíricos mais substanciais, que
a importância da produção camponesa representou um papel basilar
na construção da economia industrial brasileira.
Por fim, como sexta e última consideração, apontamos a noção
de capitalismo como oportunidade, criticada por Wood e expressa
na primeira parte. Segundo consta de sua análise, as relações de

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150
Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

assalariamento parcial deveriam sobreviver até que a oportunidade


de serem substituídas se apresentasse, demonstrando sua dimensão
transitória. Veremos adiante que esta mesma transição dependeu
de muitos outros fatores – haja vista que se processou em alguns
setores da agropecuária nacional, e não em outros. E, de acordo com
Wood, antes de ser compreendida a sobrevivência como “atraso”, a
“funcionalidade da pequena exploração agrícola” sustentou o desen-
volvimento industrial.
Concluindo com uma opinião geral sobre o pensamento de
Prado Jr., parece pretender a todo o tempo demonstrar o caráter
“quase-capitalista” da economia rural, a fim de contrapô-la ao modo
de produção feudal. É interessante apontar que, assim como a tese
feudal, o modelo de Prado Jr. parece bastante comprometido com um
tipo de perspectiva de mudança que, em vez de ter uma estratégia
de longo prazo, deveria ser imediata – e para o socialismo, ainda que
negue este fato. O autor busca conferir à sua tese um tom de objetivi-
dade explícita: a revolução adviria dos fatos e somente deles; mostrar
a realidade desses fatos seria a tarefa revolucionária. Não existiria a
perspectiva de “direcionar” a revolução através de uma estratégia
alheia às condições sociais reais – atitude considerada como “ide-
alismo”; e estas condições reais dizem: o campo já é capitalista, e
independe da necessidade de uma revolução democrático-burguesa
para eliminar traços feudais. Portanto, se já é capitalista, encontra-se
maduro para a transição ao socialismo.
Passemos agora ao segundo conjunto de argumentos, que
apontam o caráter limitado da modernização agrícola efetuada
nos anos 1950-1970. É notório o fato de que há uma expansão nas
relações capitalistas de produção rurais ao longo dos anos 1950 e
1960; o trabalho do bóia-fria, como explicitado, seria uma das provas
disso. Cabe, entretanto, apoiados na bibliografia, conhecermos a
intensidade e natureza deste processo, bem como os setores que o
mesmo atingiu, a fim de não tomarmos a situação por um fato que
não representa.
Em primeiro lugar, a modernização agrícola de que tratam os
autores até aqui estudados, tendo sido efetivamente implementada
após as mudanças político-econômicas oriundas do golpe militar de
1964, é concomitante à consolidação do parque industrial brasileiro,
após o esgotamento da estratégia de substituição de importações.
É o momento em que uma das faces da integração da agricultura à

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sociedade capitalista expressa-se pela sua incorporação ao complexo
agroindustrial, representando formas otimizadas de rentabilidade do
capital financeiro e industrial aplicado à economia rural. Sendo assim,
o avanço capitalista no campo diz respeito, nesta dimensão inicial, às
relações estabelecidas entre este capital e os produtores rurais, que
assumem formas diversas.

Nessa estratégia, a agricultura passou a ter um papel impor-


tante, não somente como produtora de matérias-primas e ali-
mentos, mas também como mercado para o parque industrial
em termos de máquinas e, posteriormente, de outros insumos
agrícolas. (MARTINE; BESKOW, 1987, p. 20) 8

Note-se que, por enquanto, estamos autorizados a falar do


capitalismo no campo, mas não de relações de produção capitalistas
necessariamente. Será possível atribuir-lhe esta qualidade quando na
análise ingressar o trabalhador volante, totalmente expropriado. Nos
exemplos em que ele desaparece, no entanto, o modo de produção
capitalista deve desaparecer junto.
Podemos ainda ter uma indicação preliminar dos setores
contemplados pela citada modernização: “Ganharam destaque
aquelas culturas consideradas ‘dinâmicas’, ou seja, destinadas à
exportação e/ou à agroindústria e capazes de gerar uma demanda
por maquinaria e insumos agrícolas” (MARTINE; BESKOW, 1987, p.
20). O crédito rural, subvencionado por toda a sociedade, propiciou
a tecnificação desses setores da produção, bem como a utilização
em massa de insumos industriais, em proveito dos grandes pro-
prietários rurais, do grande capital em busca de oportunidades de
inversão na agricultura (fornecedores e processadores), de capitais
urbanos em busca de especulação ou produção, do setor bancário
e do Estado.

Quando se analisa a utilização de tratores por tamanho de esta-


belecimento agrícola, [...] constata-se um aumento monotônico,
progressivo e significativo na disponibilidade de tratores à
medida que aumenta o tamanho do estabelecimento. O mesmo
tipo de situação pode se verificar com relação à evolução do
uso de outras máquinas e implementos agrícolas. (MARTINE;
BESKOW, 1987, p. 28-29)

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

De fato, devido à própria lógica do empréstimo bancário – que


exige a titulação da terra e uma série de trâmites burocráticos
e tem uma preferência inerente pelas operações de maior
vulto e menor custo administrativo – o crédito rural terminou
por ser altamente concentrado no Sudeste e Sul, em produtos
específicos e nas mãos de poucos agricultores. (MARTINE;
BESKOW, 1987, p. 24)

Em suma, a primeira dimensão da modernização, que diz respei-


to à aplicação de capital na agricultura, limitava-se a poucos empreen­
dimentos (representantes de vastíssimas extensões de terra), com
atividade em comum. Ainda que se possa estabelecer uma associação
entre a expansão das relações de produção capitalistas e a utilização
de maquinaria (com a perspectiva de aumentar a produtividade do
trabalho e, assim, reduzir os custos relativos com o capital variável),
estamos falando de setores que, mesmo sendo expressivos em termos
de produtividade, limitam-se a frações do conjunto da agricultura
nacional e ao atendimento de mercados muito específicos.
Nesse contexto verificamos, efetivamente, a progressiva expro-
priação do trabalhador, na mesma linha de argumentação defendida
por Mello e Prado Jr. Avaliando a evolução dos níveis de emprego
rural por região geográfica, George Martine e Alfonso Rodríguez
Arias afirmam que a modernização não tivera como conseqüência
o aumento dos postos de trabalho, ocorrendo um efeito inverso,
dadas as características pelas quais este mesmo processo se efe-
tivou (implemento técnico, concentração de propriedade fundiária
e elevação dos preços da terra em face da atividade especulativa).
Áreas afastadas das transformações técnicas – o Nordeste e as
regiões na fronteira agrícola no Centro-Oeste e no Norte – tiveram
um aumento substancial nos níveis de emprego, enquanto o Sul e
o Sudeste apresentaram resultados negativos, principalmente os
estados de São Paulo e do Paraná.

Em suma, fica mais uma vez comprovado que a modernização


vem separando o trabalhador dos seus meios de produção,
levando-o a vender sua força de trabalho como volante ou
bóia-fria e aumentando a necessidade de mulheres e crianças
trabalharem fora para suplementar a renda familiar. (MARTINE;
ARIAS, 1987, p. 54)

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A década de 1970 seria marcada pelo crescimento das ocupações
instáveis e temporárias, principalmente em função da desestruturação
do emprego permanente. Este fato teria ocorrido pela adoção de esca-
las de produção maiores, pela utilização de máquinas, pelas mudanças
nas relações de trabalho e pela especulação fundiária, todos estes
fatores atuando contra a sobrevivência da mão-de-obra tradicional e
a pequena produção.9 Os dados revelados pelo Censo Agropecuário
e pelo Censo Demográfico de 1980 revelam duas faces da mesma
realidade: o primeiro, como se concentrou no índice de empregos
permanentes, demonstrou queda nestas taxas, ao passo que o  se-
gundo, considerando toda forma de trabalho no campo (incluindo o
temporário e contabilizando mais de uma vez aqueles indivíduos que
trabalham dentro e fora das terras de sua responsabilidade), apontou
uma elevação. Cabe considerar, no entanto, que o mesmo processo
de expulsão do trabalhador e volatilização de sua estabilidade deu
origem a um duplo movimento: a expansão do proletariado rural e o
deslocamento para a fronteira agrícola de inúmeras famílias de tra-
balhadores (MARTINE; ARIAS, 1987, p. 54-56).
Nossa crítica ao “modelo capitalista” de modernização agrícola
encontra nesses contingentes deslocados do epicentro dinâmico da
economia rural seu principal fundamento. Não negamos – nem temos a
intenção de fazê-lo – as importantes modificações ocorridas naqueles
setores inundados pelo capital, máquinas e proletários, que já enun-
ciamos. Entretanto, essas mesmas transformações não demonstraram
indícios de se tornarem socialmente hegemônicas, conquistando na
mesma medida todas as regiões e atividades agrícolas que compõem
o cenário agrário nacional. Com toda a “modernização capitalista”
identificada, parte substancial da força de trabalho contribui para o
montante do produto agrícola nacional por meio do exercício de modos
de produção pré-capitalistas. E o mais emblemático nesse processo
é o fato de que o principal setor no qual estes modos de produção se
verificam é o da produção de alimentos, reconhecido unanimemente
pelos clássicos da economia política ocidental como um dos pilares
do desenvolvimento do capitalismo industrial urbano.
Em A Riqueza das Nações, Adam Smith afirmou em suas consi-
derações a respeito da natureza e das condições de manifestação da
renda da terra que a produção de alimentos e seu progresso seriam
os fatores basilares na viabilização do aumento demográfico, e, logo,
do número de trabalhadores.

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

Os países são populosos não em proporção ao número de pes-


soas que podem se vestir e morar com seus produtos, mas em
proporção ao número de pessoas que podem alimentar. Quando
há alimentação, é fácil encontrar o necessário para vestir e morar.
Mas, embora esses materiais estejam à mão, freqüentemente
pode ser difícil encontrar alimentos. (SMITH, 1985, p. 166)

Vemos, portanto, que a progressiva divisão do trabalho, carac-


terística peculiar do desenvolvimento do capitalismo, só seria viável
na medida em que a satisfação das necessidades alimentares fosse
propiciada por uma agricultura cada vez mais produtiva, abrindo
caminho para a especialização de outros homens na produção de
mercadorias menos essenciais, aumentando a quantidade de possíveis
matérias-primas a serem trabalhadas pelo conjunto da sociedade.
Outros bens de subsistência seriam importantes,

Entretanto, quando, em razão do aprimoramento e do cultivo da


terra, o trabalho de uma família é capaz de produzir alimentos
para duas, basta o trabalho de metade da sociedade para pro-
ver de alimentos o país inteiro. A outra metade da população,
portanto, ou ao menos a maior parte dela, pode ser empregada
em produzir outras coisas ou para atender outras necessidades
ou caprichos da humanidade. (SMITH, 1985, p. 166)

Em Princípios de Economia Política e Tributação, David Ricardo


atribui ainda maior importância ao papel da agricultura no desenvol-
vimento econômico do que a importância dada por Smith. Buscando
determinar as leis que regulavam a distribuição da riqueza entre as
classes sociais – sendo este o sentido maior de seu trabalho –, parte
de sua obra foi dedicada ao estudo da proteção estatal concedida à
agricultura inglesa por meio das Leis do Trigo, no fim do século XVIII
e início do XIX, e as conseqüências dessa situação no conjunto de
toda a economia, que, como sabemos, já se encontrava imersa no tur-
bilhão da dinâmica de uma sociedade de mercado capitalista. Ricardo
foi um observador privilegiado de um momento de crise econômica
na Inglaterra, em face das guerras napoleônicas e, com seu fim, das
emendas feitas à sobredita lei, que imbuíram a agricultura doméstica
de uma proteção quase absoluta diante da importação de cereais do
exterior (BARBER, 1976, p. 75-76).

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Em suas considerações, afirmava que a agricultura deveria
ser vista como uma atividade única, devido a duas características.
Em primeiro lugar, a mesma mercadoria que produz poderia ser
encarada como insumo e como produto final. “Os cereais eram,
obviamente, um insumo quando usados como semente; além disso,
como era um componente básico da subsistência, era também crucial
a outro insumo indispensável – trabalho” (BARBER, 1976, p. 79).
Assim sendo, Ricardo considerava o “cereal” como uma medida eco-
nômica básica (ainda que abstrata), já que os salários e os insumos
poderiam ser expressos nesse termo. “A disponibilidade das ofertas
de alimentos era necessária para que os empregadores em setores
não-agrícolas pudessem satisfazer adiantamentos de salários à sua
força de trabalho” (BARBER, 1976, p. 80). A oferta de  alimentos
representa um ponto crucial na construção de Ricardo sobre o fe-
nômeno da crise; suas considerações demonstram a total imersão
do economista inglês na lógica do capitalismo concorrencial, cuja
gestação lhe foi contemporânea. Ele acreditava que um crescimento
populacional acompanharia a expansão econômica. Ocorrendo isso,
cresceriam as necessidades alimentares, os salários deveriam ser
elevados para se manterem em seu nível convencional e, com isso,
os lucros diminuiriam. Portanto, se a oferta de alimentos pudesse
aumentar de forma constante, não ocorreriam mudanças em nível
de salários e/ou lucros, independentemente do capital acumulado.
Assim caminham suas conclusões acerca dos impostos sobre pro-
dutos agrícolas:

Portanto, um imposto sobre o trigo recairia sobre os consu-


midores de trigo, e elevaria seu valor comparativamente às
demais mercadorias num montante proporcional ao imposto.
Na medida em que os produtos agrícolas participem da con-
fecção de outras mercadorias, o valor destas últimas também
aumentaria, a menos que o imposto indireto seja neutralizado
por outras causas. Eles sofreriam, na realidade, um imposto
indireto, e seu valor aumentaria proporcionalmente ao imposto.
No entanto, um imposto sobre produtos agrícolas e sobre os
gêneros de primeira necessidade consumidos pelo trabalhador
teriam um outro efeito: elevariam os salários [...] E na medida
em que aumentassem, os lucros diminuiriam. (RICARDO, 1985,
p. 119)

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

A cessação do crescimento poderia ser adiada se fossem redu-


zidos os custos de trabalho para ampliar a oferta de alimentos e pela
importação de alimentos mais baratos no mercado internacional. Daí
derivava sua oposição aberta às Leis do Trigo. Daí também derivou
sua teoria das vantagens comparativas; as nações deveriam especia-
lizar-se na produção de mercadorias que obtivessem menores custos
comparados no comércio internacional, e adquirir o que lhes faltasse
das mãos de outras nações especializadas na confecção desses bens;
reduzidos todos os custos, todos sairiam ganhando. A Inglaterra, como
grande manufatureira do século XIX, deveria continuar seu caminho e
adquirir alimentos barateados no exterior. Sabemos as conseqüências
do livre comércio e da especialização para as economias periféricas,
mas não se encontram nos limites deste estudo considerações a este
respeito. Basta aqui enfatizar o papel da produção de alimentos nas
reflexões teóricas de um dos mestres da economia clássica (BARBER,
1976, p. 78-91).
A relação entre alimentos, população e crescimento econômico
encontrou ainda maior guarida no pensamento de Thomas Robert
Malthus, representando o centro de sua produção intelectual e preo-
cupação mais evidente. Com seu Ensaio Sobre a População, abordou
tema relativo ao mesmo momento observado por Ricardo, envolvendo
a legislação a fim de reorganizar o socorro aos pobres e o crescimento
populacional indicado pelo censo de 1801. As pesquisas de Malthus
iniciaram-se em função do debate com seu pai, adepto das idéias de
Godwin, defensor do crescimento populacional como uma benção
social, que não via problemas na alimentação de um maior contin-
gente de pessoas pois acreditava que a propriedade social da terra
poderia desencadear grandes estímulos à produção. Afirmava, em
contrapartida, que a potência da população seria infinitamente maior
que a potência da terra na produção de subsistência para o homem.
Com isso, a população não poderia exceder os limites estabelecidos
pela disponibilidade de alimentos (BARBER, 1976, p. 59-60).

A fome parece ser o último, o mais pavoroso recurso da natu-


reza. O poder de crescimento da população é tão superior ao
poder do solo para produzir a subsistência para o homem que a
morte prematura, de uma maneira ou de outra, ataca a espécie
humana. Os vícios da humanidade são ativos e hábeis agentes
do despovoamento [...] Então isso não deve ser reconhecido por

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um estudioso atento da história da humanidade, que em qual-
quer época e em qualquer Estado em que o homem viveu ou vive
hoje: o crescimento da população é limitado necessariamente
pelos meios de subsistência. (MALTHUS, 1986, p. 315)

Coube ao autor demonstrar por que não se podia imaginar que


a oferta de alimentos cresceria na mesma intensidade que o número
de pessoas. Lançou mão, portanto, da lei dos rendimentos decres-
centes. Segundo Malthus, a terra não seria limitada apenas na oferta,
mas também em sua qualidade. Na medida em que o crescimento
populacional elevasse a procura por alimentos e seu preço, o cultivo
se expandiria para áreas menos férteis, que demandariam mais in-
vestimento de capital para serem produtivas, diminuindo as taxas de
lucro. Reconhecia a possibilidade de alívio com o emprego de capital
na expansão da produção agrícola, mesmo que com rendimentos
menores (BARBER, 1976, p. 65-69).
Com os olhos postos no século XXI, e em contato com a pesquisa
que lhe foi subseqüente, vemos que Malthus subestimou o ritmo e o
impacto do progresso tecnológico, da revolução agrícola, de técnicas
de limitação de fertilidade e das oportunidades do comércio internacio-
nal na subsistência de países como a Inglaterra. Em muitas partes do
mundo subdesenvolvido, entretanto, as pressuposições malthusianas
são ainda muito próximas da realidade (BARBER, 1976, p. 63-64).
Chegamos, com isso, a um ponto crucial de nosso estudo: a
chamada “modernização agrícola”, que fez frutificar no pensamento
econômico brasileiro inúmeras análises de qualidade inquestionável,
foi uma manifestação da expansão do capitalismo, mas não teve
como objetivo a transformação de um setor radicalmente crucial
na consolidação deste mesmo modo de produção, o de alimentos.
Sendo notório o processo de industrialização ampliada, iniciado
nos anos 1950, nos marcos do capitalismo dependente associado,
e a formação, nos setores já citados, de um proletariado rural, de
que forma é atendida a demanda por alimentos – que pode se julgar
expressiva – por parte dos contingentes de mão-de-obra assalariada
incorporados nas atividades urbanas e agrárias? Que modelo de pro-
dução rural de bens de subsistência é esse que permitiu suportar o
desenvolvimento industrial, dentro dos limites conhecidos, ao longo
de todo o século XX? E, mais ainda, quando e em que circunstâncias
o mesmo tomou forma?

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

Uma resposta reside na sobrevivência da produção campone-


sa concomitantemente ao desenvolvimento do modo de produção
capitalista no Brasil, analisada em trabalho coordenado por José
Graziano da Silva (SILVA et al, 1978).10 Considera como condições
do capitalismo a separação do produtor direto dos seus meios de
produção e a liberação de força de trabalho, e como requisito para a
capitalização das atividades rurais a sustentação de preços agrícolas
acima dos preços de produção, de modo a remunerar todas as frações
das classes proprietárias (lucro, renda da terra, juros sobre capital);11
mesmo tendo sido identificado no estudo a tendência progressiva do
capital de destruir aquelas relações de produção que não se caracte-
rizam pela predominância da força de trabalho mercantilizada, afirma
que a sobrevivência do campesinato é verificada mesmo em países
capitalistas ditos “maduros”. Portanto, este fato isolado não explica a
inserção do campo no desenvolvimento capitalista brasileiro. Importa
demonstrar de que maneira se processa a subordinação dessa produ-
ção camponesa à dinâmica capitalista, no caso brasileiro.
Mas cabe esclarecer, antes de prosseguirmos, o conceito de
campesinato e de produção camponesa na experiência brasileira. Se-
gundo Graziano da Silva e os demais autores, ela deve compreender o
uso do trabalho familiar como mão-de-obra fundamental na unidade
de produção, a posse dos instrumentos de trabalho – em medidas
diversas – por parte da mesma família camponesa ocupante da terra
e a existência de recursos produtivos – terra, trabalho etc. – de modo
a viabilizarem, sem significativas inversões de capital, a manutenção
da subsistência e um excedente que se destina à comercialização. Não
é a propriedade da terra que importa na conceituação da produção
camponesa, mas a posse da mesma, o que definiria como “camponês” o
parceiro, o arrendatário, o posseiro (SILVA et al, 1978, p. 3-4), em suma,
todos aqueles chamados por Prado Jr. de “assalariados parciais”.

Deve ficar claro que, embora a produção não se destine em


grande parte para o autoconsumo, não se trata unicamente de
produção de alimentos; por outro lado, não se trata de vender o
que sobra do consumo, mas sim de realizar a produção voltada
para o mercado com a terra, a força de trabalho e os meios de
trabalho que sobram da produção para subsistência. Sob esse
aspecto, a produção camponesa pode ser vista como uma
produção mercantil simples. (SILVA et al, 1978, p. 3)

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Opinião em alguns pontos diversa é oferecida por Otávio Gui-
lherme Velho. Lembrando Weber na afirmação de que as estruturas
rurais são marcadas por uma maior particularização em relação às
sociedades que as comportam do que as estruturas urbanas, detento-
ras de maior homogeneidade comparada, aponta a impropriedade da
discussão de categorias sociológicas ligadas à experiência européia
(no caso do feudalismo e do campesinato) aplicadas à compreensão do
Brasil. O termo “camponês” viria sendo usado para designar, indiscri-
minadamente, o trabalhador rural nacional, subestimando, portanto,
a penetração do capitalismo e a difusão da proletarização no campo.
Dessa forma, ele afirma que só é possível compreender o termo “cam-
ponês” se, devidamente situado no contexto social brasileiro, designar
“o pequeno agricultor que é empresário de sua própria produção”, 12
reafirmando com isso, a terminologia empregada por Prado Jr.
A questão não poderia prescindir, portanto, do estabelecimento
da dicotomia teórica entre “camponês” e “proletário rural”. Em ­regiões
de fronteira aberta, como os municípios de Marabá e São João do
Araguaia, no sul do estado do Pará, devido à escassez de mão-de-
obra e à abundância de terras, o impulso à estratificação social seria
pequeno, dando margem à reprodução do campesinato. Marcar-se-ia
por uma situação de integração mínima com o mercado, no que tange
ao consumo e à produção de mercadorias. Nesse caso, os camponeses
ocupam a função de apanhadores de castanhas (atividade remunerada
subalterna) e de agricultores (real subsistência). Poucas terras dispo-
níveis, força de trabalho abundante e integração ao mercado nacional
seriam condições, por sua vez, da proletarização. O autor admite
casos em que há uma interseção entre os dois pólos, como no caso
dos parceiros, meeiros etc., que estão fixados à terra e se submetem
ao capital; ainda, relacionando à situação do mercado, afirma que os
produtores podem fluir da mercantilização à subsistência, dependendo
das condições desse mercado (VELHO, 1982, p. 42-45).
A divergência maior entre os dois estudos abordados reside,
portanto, na conceituação do camponês como “empresário da própria
produção”, o que faz da sua submissão ao capital através da dominação
indireta uma condição excludente. Concordamos com Velho e com
todas as opiniões semelhantes, que a transplantação direta para o
Brasil de modelos teóricos concebidos com o olhar voltado para a
realidade histórica do Velho Continente é improcedente; entretanto,
elevada a certos patamares, ergue uma redoma intransponível que

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

separa a experiência histórica brasileira daquela vivida pelas demais


sociedades humanas, criando aí uma situação que, por ser fictícia e
inverossímil, só contribui ainda mais para uma compreensão viciada de
nossa trajetória histórica.13 Não existem razões críticas – e nem ligadas
ao bom senso – que justifiquem a incomparabilidade da sociedade bra-
sileira com o mundo. Isso não nos exime da responsabilidade do olhar
cuidadoso, condição indispensável para uma análise comparada.
Concordamos, portanto, com os critérios estabelecidos no
estudo coordenado por Graziano da Silva para a conceituação do
camponês brasileiro. Mesmo que concordemos também com Velho ao
estabelecer uma diferença (não necessariamente dicotômica, a nosso
ver) entre o camponês e o proletário, as razões para tal distinção não
residiriam na “liberdade empresarial” possuída por um e perdida pelo
outro, como aponta Prado Jr., mas sim na fixação da família produtora
à terra e na propriedade de (alguns) instrumentos de trabalho, situação
que representa uma produção camponesa em contraposição a uma
situação de proletarização. Além dos fatores levantados, podemos até
mesmo sugerir que, baseado em Dobb, a subordinação da produção
rural aos interesses e exigências dos senhores rurais germânicos
no século XV, em função da “segunda servidão”, e o direcionamento
do excedente obtido através de relações de produção feudais para
o mercado não fez do servo alemão “menos camponês” do que seus
congêneres europeus (DOBB, 1986, p. 28-29).
Seria difícil supor que nessas condições o trabalhador rural
na Baixa Idade Média européia fosse um “empresário de sua própria
produção” como supunha Prado Jr.; e, mesmo num contexto que
não envolvesse o direcionamento para o mercado, ainda que des-
frutando de autonomia na seleção das culturas e responsabilidade
pelo processo produtivo, não podemos pensar no camponês feudal
como um pequeno produtor livre, tendo em vista que a natureza do
próprio modo de produção feudal pressupõe uma “terra cativa” e a
sua ocupação condicionada ao pagamento de renda ao senhor. Se
a condição de “pequeno produtor responsável pela sua produção”
caracteriza a produção camponesa, e uma relação de prestação de
serviços para a produção de mercadorias consiste em “assalariamen-
to”, estaremos habilitados, nos passos de Prado Jr., a postular que
a “segunda servidão” na Alemanha quatrocentista correspondeu à
implantação do capitalismo rural antes mesmo do início do processo
de acumulação primitiva no berço da economia de mercado, a Ingla-

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terra, segundo Marx. Devido ao caráter de “atraso” da agricultura
alemã no momento de desenvolvimento de sua economia industrial,
reiterado pela bibliografia especializada, e o papel desta mesma
agricultura nesse progresso, como veremos, a afirmação seria mais
do que um disparate.
Além disso, as associações entre o conceito de “camponês” e a
pouca integração no mercado nacional, por um lado, e de “proletário”
e uma produção de mercadorias, por outro, defendidas por Prado Jr.
e adotadas por Velho, leva-nos a uma dicotomização sweeziana entre
capitalismo/mercado versus não-capitalismo/não-mercado. Lembre-
mos que ao definir seu conceito de feudalismo Sweezy evidenciou a
contraposição entre uma economia camponesa voltada estritamente
para a subsistência do trabalhador (característica definidora da condi-
ção feudal) e uma economia voltada para a produção de mercadorias
baseada no trabalho livre.14 E é de maneira análoga que Prado Jr. define
seu camponês, ou seja, por meio da noção de produção individual de
subsistência, com integração mínima na dinâmica mercantil; não sig-
nifica que o autor afirme que seu “camponês brasileiro” é um exemplo
de feudalismo no Brasil, haja vista que já discutimos sua profunda
aversão a esta idéia, defendida pelos teóricos do Modelo Democrático-
Burguês. Entretanto, associa diretamente o campesinato à produção
individual e à não-mercantilização, ao contrário daqueles assalariados
explorados pelo grande empresário-proprietário com o objetivo de
produzir valores de troca (fossem eles assalariados plenos ou parciais,
no caso dos parceiros, meeiros, arrendatários).15
Nosso conceito de camponês estrutura-se também a partir de
uma negação do modo de produção capitalista; entretanto, esta ne-
gação não ocorre por intermédio da questão da integração mercantil
sweeziana, mas pela questão da formação ou não do modo de produ-
ção capitalista, baseado na completa expropriação do trabalhador,
na concentração capitalista dos meios de produção e na formação do
proletariado, como o faz Dobb. Diante da análise oferecida pelo estudo
coordenado por Graziano da Silva, observamos que a amplitude desse
processo de proletarização no campo vem sendo significativa, mas não
incorporou setores cruciais para a construção do capitalismo, como
o de alimentos. Estes funcionam sob a lógica de relações de produ-
ção pré-capitalistas consubstanciadas na produção camponesa, e a
interação desta situação com a acumulação urbano-industrial confere

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

especificidade ao modelo de desenvolvimento econômico brasileiro.


Vejamos em mais detalhes.
A capitalização de uma atividade econômica não pode prescindir
de uma margem de lucro suficiente para remunerar todas as frações
do capital e pagar salários. Como lembrou Dobb, dando o exemplo
da crise da economia feudal européia nos séculos XIV e XV, uma das
pré-condições para a substituição do trabalho servil pelo assalaria-
do – e que não se concretizou extensamente – deveria ser, além da
disponibilidade de braços, uma produtividade suficiente (DOBB, 1986,
p. 40-41). Graziano da Silva e autores afirmam, já com o olhar voltado
para o caso brasileiro, que no caso em que a produção camponesa foi
preservada, ela pôde realizar-se prescindindo das condições acima
indicadas que regem uma produção capitalista; ou seja, não haveria
a necessidade da existência de preços de mercado compatíveis com
o lucro médio.

Dessa maneira, nem o lucro médio do capital, nem a renda da


propriedade, constituem-se em limites para a exploração cam-
ponesa. O único limite absoluto será o rendimento (monetário
ou não) que a si mesmo paga o camponês, freqüentemente re-
duzido a um mínimo vital. Enquanto o preço do produto cobrir
esse limite ele cultivará a terra, dando de graça à sociedade
parte de seu trabalho excedente, que poderá ser apropriado
pelo capital financeiro, comercial ou industrial. (SILVA et al,
1978, p. 5)

Em outras palavras, é através do recurso ao subconsumo, da


extensão da jornada de trabalho, do emprego de trabalho familiar
não-remunerado e, portanto, do agravamento de suas condições de
vida, que o camponês transfere para outros setores, por meio do
mercado, a renda gerada pelo seu trabalho e pelo de sua família.
Está aí um dos pilares de sustentação do desenvolvimento urbano-
industrial brasileiro. A reprodução dessas relações viabiliza a
transferência de mão-de-obra para as cidades, já que nem todas
as famílias resistem às condições adversas de sua sobrevivência
enquanto camponeses – submetidas ao jugo dos proprietários, às
condições de mercado para a venda de seus produtos etc. –, sendo,
portanto, proletarizadas.16

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Daniel de Pinho Barreiros


Também é mediante tais relações de produção que os centros
urbanos são providos de alimentos e matérias-primas a preços mui-
to baixos, dadas as condições em que os mesmos são produzidos.
A expansão extensiva dessa agricultura, com baixa capitalização, é
garantida pela abundância de terras, permitindo a rotação interna
e externa às propriedades, com a migração das culturas para terras
férteis, deixando para trás terras “cansadas”, e por intermédio da
expansão da fronteira agrícola.

O ponto fundamental a ser salientado é que, embora a produ-


tividade do trabalho seja menor nessa agricultura “primitiva”
do que na produção tecnicamente avançada, ela permite uma
produção a custos monetários mais baixos uma vez que não
remunera o trabalho dos membros da família. (SILVA et al,
1978, p. 8)

É a pequena produção pré-capitalista a responsável pelo abas-


tecimento da maior parte dos gêneros alimentícios que garantem a
reprodução da mão-de-obra proletária urbana e rural no contexto de
consolidação da industrialização brasileira nos anos 1960 e 1970. Os
baixos custos dos alimentos viabilizam um padrão de desenvolvimento
capitalista que trabalha com baixos níveis salariais, garantidos pela
oferta de bens de subsistência gerados com baixa capitalização.

Assim, a chamada “agricultura de subsistência”, bem como as


relações de produção não-capitalistas em que ela se apóia, além
de ser produto do próprio movimento de expansão do capita-
lismo, constitui-se num dos pontos de apoio de sua efetivação,
na medida em que, ao produzir à base de uma “economia do
excedente”, pode oferecer seus produtos a preços mais baixos
no mercado. (SILVA et al, 1978, p. 9)

Afirma Theodore W. Schultz (1965),17 renomado especialista


em economia agrária, que costuma ser comum a idéia de que uma
agricultura, quando fossilizada no uso das técnicas e fatores de
produção de tipo tradicional,18 atinge rapidamente o teto máximo
de produtividade que suas condições permitem, contribuindo muito
pouco (ou nada) para o crescimento econômico, já que a distribui-
ção de fatores produtivos seria ineficiente e o investimento para a

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164
Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

expansão dos mesmos fatores de tipo tradicional seria por demais


custoso ou por vezes impossível (assumindo que estes se resumem
quase que na totalidade à terra em seu estado natural, a formação
de novas áreas férteis – ou a fertilização de áreas desgastadas – só
seria possível pelo emprego de capitais e trabalho, ou pela utilização
de técnicas).
Afirma, ainda, que o problema dos sistemas agrícolas de tipo
tradicional não estaria nesta noção comum do emprego inadequado
dos fatores produtivos tradicionais. A questão de sua superação seria
o oferecimento de novos fatores produtivos, além daqueles utilizados
há gerações, e que viessem, assim, a permitir um salto de produtivi-
dade. Mas no momento, interessa-nos ressaltar a relativa eficiência
da agricultura tradicional, ponto crucial neste estudo. Como hipótese,
Schultz assume não existir qualquer ineficiência na alocação dos fa-
tores produtivos que são peculiares ao funcionamento da agricultura
tradicional. Assim sendo, nenhum ganho de produtividade poderia
ser obtido por meio da redistribuição desses recursos de um modo
mais “racional”; as possibilidades de expansão, preservado o sistema
estabelecido, seriam nulas.
Este seria o caso de Panajachel, na Guatemala, nos anos 30 e 40
do século XX, nos quais, sem o recurso a máquinas e fábricas, ou a
fatores organizacionais como cooperativas ou empresas, os lavradores
trabalhariam para si, em produções mercantis. Apesar da pequena
presença de meio circulante, o comércio seria ativo, apesar dos níveis
de pobreza serem alarmantes. A necessidade de consumir produtos de
uso diário vindos de outros núcleos populacionais – incluindo muitos
alimentos –, bem como a concorrência estabelecida para compra e
venda, daria grande flexibilidade aos preços dos produtos. O cálculo
econômico racional estaria evidente no trato do lavrador em relação
ao seu negócio:

Compra os bens que pode, comparando cuidadosamente os


preços de vários mercados, calcula meticulosamente o valor
do seu trabalho ao produzir para vender ou para consumo ca-
seiro, comprando-o com o trabalho assalariado, decidindo de
acordo com o resultado. Arrenda ou hipoteca parcelas de terra,
mantendo olho vivo no retorno, agindo da mesma maneira na
aquisição dos poucos bens de produção que compra de outros.
(SCHULTZ, 1965, p. 52)

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165

Daniel de Pinho Barreiros


No entanto, tudo isto estaria inserido em uma agricultura de
técnicas rotineiras, com pouquíssimos impulsos à transformação
técnica. Não haveria subemprego de mão-de-obra e nem produtivida-
de marginal zero para nenhum dos indivíduos envolvidos. Assim, “a
comunidade é pobre porque os fatores de que depende sua economia
não são capazes de produzir mais, nas circunstâncias existentes”
(SCHULTZ, 1965, p. 57-58).19
Em linhas gerais, Schultz desqualifica explicações que buscam
em fatores culturais a permanência de métodos e técnicas tradicionais
entre agricultores de comunidades pobres de países periféricos: a
dita “ociosidade” desse tipo de produtor rural, de mãos dadas com o
pouco interesse na expansão da produtividade de suas lavouras, não
seria fruto de uma desvalorização cultural do trabalho – em contra-
posição às sociedades varridas pela “ética protestante”. “[...] o que
não se leva em conta é sua carência de vigor e resistência para traba-
lhar mais e arduamente, e o baixo rendimento marginal do trabalho”
(SCHULTZ, 1965, p. 37-38). Da mesma forma, sabe-se que os pequenos
agricultores tradicionais tendem a manifestar uma propensão para
poupar muito pequena, o que seria fruto de hábitos culturais ligados
ao dispêndio improdutivo (com festividades, eventos comunitários
etc.), impedindo, portanto, a retenção de recursos para a expansão
produtiva, perpetuando a pobreza nesse tipo de comunidade. Ques-
tiona o autor: “quais são as recompensas que têm, para economizar
uma parte maior das suas magras rendas?” (SCHULTZ, 1965, p. 38). As
taxas de retorno de investimentos realizados em fatores produtivos
tradicionais seriam tão pequenas a ponto do estímulo à poupança o
ser na mesma proporção.20

São fracos os incentivos para essas pessoas trabalharem mais


do que o fazem, porque a produtividade marginal do trabalho
é muito baixa; e os incentivos para economizarem mais do que
o fazem são fracos, porque a produtividade marginal do capital
é também muito baixa. (SCHULTZ, 1965, p. 39)

Sobre o caráter transitório ou permanente das agriculturas


tradicionais, afirma que mesmo que o valor dos produtos agrícolas
viesse a crescer em função da redução de qualquer dos componentes
dos custos de produção (transportes, maior produtividade/área em
função de irrigação etc.), gerando, portanto, um estímulo ao inves-

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Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

timento em fatores agrícolas, a tendência seria, permanecendo as


técnicas inalteradas, o estabelecimento de um novo equilíbrio, per-
petuando, dessa forma, a agricultura tradicional logo que passados
os primeiros impulsos advindos das melhorias. Concordando com
o fato de a agricultura tradicional funcionar por meio da repetição
rotineira de técnicas arcaicas (em comparação aos conhecimentos
científicos aplicados à produção vigentes no seu tempo), a introdução
de um novo fator produtivo causa desconfiança quanto a sua aplicação
(dada a inexperiência) e a desestruturação de práticas estabelecidas.
Assim sendo, “[...] o grau em que os agricultores, já acomodados com
a agricultura tradicional, aceitam um novo fator de produção, depen-
de do seu lucro, com a devida margem para o risco e a incerteza”
(SCHULTZ, 1965, p. 44).
Deixando o campo da teoria geral e ingressando mais uma vez
no exemplo brasileiro, podemos apontar elementos que indicariam uma
relativa superioridade da rentabilidade da pequena produção sobre a
grande, dentro das condições socioeconômicas inerentes a ele. Francis-
co de Oliveira (1988)21 afirma que o novo papel assumido pela agricultura
após 1930, com sua expansão extensiva e com pequenas inversões de
capital,22 funciona no Brasil como uma espécie de “acumulação primi-
tiva”, que não seria uma fase prévia ao capitalismo, mas permanente
no seu desenvolvimento; ou seja, uma acumulação inicial que não teria
como função gerar o capitalismo e ser por ele tornada obsoleta, mas,
em face da abundância de recursos, reproduzir-se constantemente para
propiciar condições ainda mais vantajosas para a construção deste
mesmo capitalismo. Mas esta acumulação primitiva em processo na
economia brasileira teria características peculiares, a saber:

Em primeiro lugar, trata-se de um processo em que não se


expropria a propriedade [...] mas se expropria o excedente
que se forma pela posse transitória da terra. Em segundo
lugar, a acumulação primitiva não se dá apenas na gênese do
capitalismo: sob certas condições específicas, principalmente
quando esse capitalismo cresce por elaboração de periferias,
a acumulação primitiva é estrutural, e não apenas genética.
(OLIVEIRA, 1988, p. 21)

Afirma o autor parecer paradoxal que a redução dos custos de


produção se efetue não pelo aprofundamento do modo capitalista

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167

Daniel de Pinho Barreiros


de produção, mas pela prática extensiva pré-capitalista. Embora possa
parecer ilógico que a agricultura tradicional viesse a concorrer, em
condições de superação, com uma agricultura intensiva e mecanizada,
cita o exemplo da cultura de milho no município de Itapeva, São Paulo,
em que aquelas pequenas produções de 1 a 8 alqueires, que utilizavam
pouco adubo e tração animal, conseguiam obter uma renda líquida
por alqueire cerca de 12% maior do que a conseguida naquelas gran-
des explorações de 40 a 80 alqueires, com técnicas mais adiantadas,
ainda que o rendimento por alqueire nestas últimas, dada a economia
de escala, fosse 60% maior do que nas primeiras (OLIVEIRA, 1988, p.
21-22). Tal fato, ainda que relativo a um município, seria válido para
outros exemplos de produção de milho. Estaria aí um indício claro,
segundo Oliveira, da possibilidade da complementação da economia
rural pré-capitalista com a acumulação industrial.23
Os números da produção de alimentos no quadro geral da agri-
cultura brasileira, relativos ao final dos anos 1960 e início dos 1970, são
bastante claros. Os imóveis rurais com menos de 100ha – represen-
tando 80% dos registrados, e somente 17,5% da área cadastrada – são
responsáveis por mais da metade da produção de alimentos, produtos
de transformação industrial e hortifrutícolas. Destes, somente 2,4%
são considerados “empresas rurais” capitalizadas, ao passo que 89,1%
são considerados “minifúndios”, regidos sob as mais diversas formas
de produção de baixa capitalização e intensividade. As propriedades
de 2000ha ou mais, que representam 40% da área registrada, têm
participação de menos de 1/10 da área colhida destes produtos,
destacando-se nelas somente a extração vegetal, o que demonstra,
entre outras coisas, que a especulação fundiária, e não a produção em
larga escala, em moldes capitalistas, é a responsável pela manutenção
dos latifúndios no Brasil (SILVA et al, 1978, p. 159-160).

Em resumo, a pequena produção é ainda responsável pela maior


parte do abastecimento alimentar das cidades e do próprio meio
rural, atendo-se a produção capitalista a outras atividades que
podem ser consideradas mais rentáveis. Entre estas, destacam-
se algumas culturas de transformação industrial e a pecuária.
(SILVA et al, 1978, p.163)

Tal direcionamento do investimento capitalista para áreas


mais “dinâmicas” da agricultura, como é o caso de certos produtos

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168
Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

de transformação industrial e de exportação, não se deveria somente,


como nos lembra Oliveira, a um projeto político-econômico de uma
classe hegemônica; tratar-se-ia também de uma alternativa para a
implantação do capitalismo num país com uma base de acumulação
de capital prévia muito pobre se comparada aos exemplos análogos
nos países centrais desenvolvidos, que não tornava viável, ao mesmo
tempo, a injeção de capital em todos os setores da vida econômica
(OLIVEIRA, 1988, p. 36).
Mais ainda, Graziano da Silva e Oriowaldo Queda adicionam
à análise a questão do mecanismo de preços como dinamizador da
produção capitalista. Os estímulos que o desenvolvimento urbano-
industrial poderia transferir para a pequena produção de alimentos
diante da expansão do consumo, do aumento dos preços e das mar-
gens de lucro e do conseqüente aumento da oferta, são diluídos em
função da precariedade do mesmo mercado consumidor, detentor
de salários baixos. Dessa forma, torna-se penoso assumir um com-
portamento empresarial por parte dos pequenos produtores; a frágil
capitalização gera a dependência, para a realização da produção, de
inúmeros intermediários – para o transporte, o armazenamento e o
empacotamento, em muitas vezes –, fazendo com que qualquer renda
diferencial decorrente das condições de acesso ao mercado e de uma
alta de preços não chegasse ao produtor.24

Dessa maneira, a distribuição regressiva da renda (do lado da


demanda) e a estrutura de posse da terra conjugada à estrutura
de intermediação (do lado da oferta) provêm condições para
que o comportamento dos preços deixe de ser um estímulo
aos produtores, via modernização das unidades de produção
e/ ou incorporação, de nova tecnologia, para ser, ao contrário,
um estímulo à manutenção (e mesmo proliferação) de formas
de exploração “pré-capitalistas” para atender o aumento da
demanda do setor urbano decorrente do processo de urbani-
zação. (SILVA; QUEDA, 1977, p. 128)

Vemos que o raciocínio dos autores pode ser compreendido


nos termos colocados por Wood, expressos no sexto capítulo. Ape-
sar de produtores para um mercado – capitalista, não há dúvida –, o
capital comercial e industrial, atuantes como intermediários entre a
pequena produção pré-capitalista e a satisfação das demandas por

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169

Daniel de Pinho Barreiros


bens de subsistência por parte do proletariado, eliminam o contato
direto entre o produtor e a dinâmica do modo de produção capitalista
expressa pelo estímulo imposto pela concorrência, na qual a vitória
é a única condição de sobrevivência. Ou seja, se submetidos ao
mercado capitalista de um modo direto, os produtores deveriam ser
forçados a otimizarem a cada momento sua produção para baixarem
seus custos, sob pena de não terem condições de realizar plenamente
suas mercadorias em face da concorrência de um adversário mais
eficiente. Entretanto, uma vez que as vantagens mercadológicas de
uma produção com custos reduzidos seriam todas absorvidas pelos
intermediários, não haveria qualquer motivação – e muito menos dis-
ponibilidade de capital – para a busca de uma maior produtividade por
meio de implementos técnicos, mergulhando os produtores em uma
estagnação pré-capitalista. Evidentemente, esta não é a razão única da
permanência da pequena produção de alimentos (influindo do mesmo
modo os baixos salários urbanos), mas é uma demonstração de como
o impulso capitalista está dela afastada, se olharmos a questão sob a
lente de Wood (2001, p. 35).25

Os principais motivos desta defasagem estão localizados


no fato de, historicamente, não terem sido explorados pelos
grandes proprietários e capitalistas, não possuírem mercado
externo, não serem cultivados em países ainda desenvolvi-
dos e terem como principal mercado as populações de baixa
renda, portanto, com pequeno poder aquisitivo. Por estas
condições, é modesto o nível técnico dessas culturas e lento
o ritmo de desenvolvimento tecnológico. (MARTINE; GARCIA
1987, p. 85)

Ainda não foi esclarecida a natureza da “pequena exploração”


de que viemos tratando até então, com base nos autores consultados.
Além de constituir-se na pequena propriedade existente nas áreas de
fronteira agrícola, devemos lembrar, com dados das décadas de 1960
e 1970, que grande parte da área cultivada existente nas grandes pro-
priedades estava sob o trabalho de parceiros, arrendatários e de outros
trabalhadores com acesso aos meios de produção; mais ainda, mesmo
a produção de alimentos capitaneada pela indústria de transformação,
formadora do complexo agroindustrial evidente após a década de 1960,
teria como base a expropriação do excedente da produção camponesa

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170
Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

familiar in natura, com a posterior agregação de valor a esta matéria-


prima recolhida através do processamento industrial.
Não se tratava daquela pequena exploração tradicional, mas
daquilo que Sorj chamou de “Um setor de empresas familiares alta-
mente capitalizadas, fundamentadas no trabalho familiar com pouca
ou nenhuma utilização de trabalho assalariado” (SORJ, 1980, p. 124).
Entretanto, ainda que dotadas de técnica e equipamentos fornecidos/
exigidos pela agroindústria, muitas exploradas em regime de monop-
sônio, na conceituação de Graziano da Silva trata-se, sobretudo, de
produção familiar, portanto, distante da grande exploração baseada
no assalariamento.26 Em resumo, estes fatos indicam que as cifras que
foram oferecidas com respeito à participação da pequena propriedade
produtora de bens alimentícios estariam ainda superdimensionando
o papel do latifúndio neste processo.

Isso se justifica pelo fato de que a produção dos parceiros e ar-


rendatários não capitalistas é realizada em pequenas áreas e nos
moldes de produção dos menores proprietários, ou seja, através
do uso intensivo do trabalho da família, face à impossibilidade
de elevar a produtividade [...]. (SILVA et al, 1978, p. 163)

Portanto, a pequena exploração rural detém, no modelo de de-


senvolvimento adotado a partir dos primórdios do direcionamento da
economia nacional para o setor industrial e de mercado interno, papel
fundamental. Nas culturas de alimentos básicos, tais como feijão e mi-
lho, a produção familiar e a empreendida por pequenos arrendatários
e parceiros, sem a presença de assalariados permanentes, são total-
mente predominantes; nestas verificamos um grau de especialização
diminuto, já que geralmente se constituem em culturas subsidiárias,
representando somente uma fração da renda total das propriedades.
Esta produção de alimentos é proveniente de um sem-número de
unidades, cada uma contribuindo com uma parcela bastante pequena
do percentual total e conferindo a esta atividade um caráter de dis-
persão manifesto. A maioria das culturas de transformação industrial
– incluindo o trigo, o café, o algodão, com exceção da cana-de-açúcar
– está vinculada a propriedades de extensão média, com alto valor de
produção e caráter intensivo (SILVA et al, 1978, p. 203-205).27

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171

Notas

Daniel de Pinho Barreiros


1
Há uma importante produção historiográfica relacionada ao estudo dos sistemas
agrários no contexto de ruptura do escravismo que refuta, com o uso de sólida base
empírica, a tese do capitalismo agrário de Prado Jr, apontando para uma continui-
dade de modos de produção pré-capitalistas associados à atividade mercantil. O
Cativeiro da Terra, de José de Souza Martins, é referência para os estudos sobre as
áreas de expansão cafeeira do oeste paulista. Nos anos 1980, o Programa de Pós-
Graduação em História da UFF contribuiu significativamente com estudos sobre a
história agrária fluminense na segunda metade do século XIX, indicando que tam-
bém nas áreas de decadência econômica a sobrevivência de relações de produção
não-capitalistas foi a tônica da reestruturação laboral pós-escravista. Ver: Martins
(1979); Castro (1985); Faria (1986); Fragoso (1983); Motta (1989).
2
Discutindo as estruturas agrárias brasileiras em trabalho de síntese historiográfica e re-
visão teórica, Christian Topalov, baseado em avaliação realizada pelo ICAD (Inter-Ame-
rican Comitee for Agricultural Development) publicada em 1963, afirmou: “O exame das
condições de vida e de trabalho concretas dessas categorias de trabalhadores levou
[...] à conclusão de que não são diferentes dos assalariados agrícolas: assim como o par-
ceiro não é um verdadeiro meeiro, o pequeno rendeiro não é um autêntico fazendeiro”.
Ou seja, fosse participando dos resultados da colheita e/ou produzindo diretamente
parte da própria subsistência (parceiros, meeiros, fração dos arrendatários, mora-
dores) ou desprovidos de meios de produção e proletarizados (sem-terra, migrantes,
proprietários de microfúndios improdutivos), todos seriam assalariados da mesma
forma. Temos como esforço dar maior precisão a esta conceituação, indicando as
conseqüências sociais da vigência de diferentes formas de exploração do trabalho
(TOPALOV, 1978, p. 65). Trata-se, como foi dito, de balanço bibliográfico publicado
originalmente em francês, tendo seu autor recebido conselhos e críticas de Alain
Touraine e Celso Furtado.
3
Cf. Prado Jr. (1966, p. 148-149; 1981, p. 66). Noção semelhante encontra-se em Mello
(1977, p. 50-53).
4
A despeito da existência de projetos debatidos no circuito intelectual da Corte,
no sentido de uma transformação capitalista das relações de produção no campo
pós-escravista, a opinião das classes proprietárias rurais, especialmente no eixo
Rio-São Paulo, tendia à adoção de soluções não-capitalistas, que associassem a
extração do excedente ao acesso à terra, sem abrir mão de métodos ligados aos
chamados “sistemas repressivos de mão-de-obra”, ou seja, de emprego de coerção
não-econômica. A relação entre terras livres e mão-de-obra favorecia a dispersão
desta última, o que tornava a fixação do homem na terra uma necessidade no con-
texto de uma economia agrícola mercantil. Maiores detalhes sobre o tema podem
ser obtidos em BARREIROS, 2002. Para a definição de “sistemas repressivos de
mão-de-obra” ver Moore Jr. (1983, p. 428).
5
É o caso dos países cuja modernização capitalista se deu com base no modelo da
“via prussiana”, tais como o Japão e a Alemanha. Ver Moore Jr. (1983, p. 427-446).
6
Para mais detalhes sobre a questão, e bibliografia recomendada, ver a nota 1 deste
capítulo.
7
Ao afirmar que as políticas imigratórias, desde o final do século XIX, teriam o objetivo
claro de proporcionar mão-de-obra para a grande lavoura, Prado Jr. não leva em
conta os debates ocorridos no fim do Império e no início da República envolvendo
o destino da mão-de-obra que aqui chegava, dividindo-se entre os interesses das
elites rurais (imobilização do trabalhador) e as propostas das classes médias, ob-
jetivando a formação de pequenos proprietários capitalistas. Ver Barreiros (2002,
p. 293-383), Prado Jr. (1981, p. 50-58).
8
O texto encontra-se na coletânea de estudos realizados no “Projeto Impacto Social do
Desenvolvimento” (BRA/82/024), em convênio entre o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o
Instituto de Planejamento (IPLAN/SEPLAN-PR), debatidos na forma de seminários.
O objetivo central do conjunto de ensaios é o de analisar as mudanças recentes
na estrutura social rural, principalmente nos estados de São Paulo e Paraná, que
teriam sido atingidos de um modo mais pleno.

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172

9
A análise de Gonzales e Bastos nos parece mais precisa na avaliação das causas
Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

específicas desse movimento. Em sua análise sobre a origem da expansão do traba-


lho volante, afirmam que muitos foram os motivos alegados para o fato. Dentre eles
poder-se-ia citar a pressão exercida pelo Estatuto do Trabalhador Rural, tornando
os empresários agrícolas desinteressados no trabalho permanente em função
dos encargos trabalhistas garantidos pela Lei, e a mecanização da agricultura,
com seu efeito de expulsão de mão-de-obra e os tipos de cultura em cada região.
Sem negar sua influência, afirmam os autores serem estes fatores insuficientes para
explicar a dinâmica social instaurada. “Muito antes do ETR (1963) já se verificava a
presença de trabalho volante em regime de empreitada na agricultura brasileira”.
No que tange à mecanização: “A realidade observável e os dados empíricos nos
mostram que, tanto as empresas que utilizam tecnologia poupadora de mão-de-
obra [...] quanto as que não a empregam [...] expulsam trabalhadores agrícolas
(parceiros, posseiros, colono, trabalhadores assalariados permanentes etc.)”.
E no que diz respeito às diferentes culturas: “O trabalho volante vinga e se desenvolve
em todo tipo de cultura, nas diversas regiões do País”. Concluindo: “Admitir que a
relação de trabalho volante é uma decorrência natural do processo de mecanização
da agricultura, implica em aceitar que essa forma de relação de trabalho se constitui
numa espécie de conseqüência ou subproduto da mecanização e não faria mais que ex-
pressar, mecanicamente, uma racionalidade macroeconômica do progresso técnico”.
Assim, as origens do processo de difusão do trabalho volante não estariam nas
manifestações, e sim na essência do próprio modo de produção capitalista em
expansão em áreas dinâmicas da economia rural brasileira. “As forças motrizes
deste sistema de trabalho volante não se encontram no Estatuto do Trabalhador
Rural, e muito menos, na mecanização da agricultura, mas no processo mesmo de
valorização do capital condicionado, por um lado, pelo crescente aumento do volume
do capital nas mãos dos empresários agrícolas e, por outro, pela disponibilidade de
um contingente de trabalhadores despojados dos meios de produção” (GONZALES;
BASTOS, 1977, p. 33-46).
10
Trata-se de trabalho realizado pelo Departamento de Economia Rural da Faculdade
de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (UNESP) em convênio
com a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Sob
a coordenação de José Graziano da Silva, reúne a contribuição de Angela Antonia
Kageyama, Elias José Simon, Fernando G. de Andrade e Souza, Flávio Abranches
Pinheiro, Leonilde Servolo de Medeiros, Maria Helena Rocha Antuniassi e Sônia Ma-
ria Pessoa Pereira. Seu objetivo consiste na caracterização da agricultura brasileira
dos anos 1970 tendo como base os dados obtidos através dos Cadastros de Imóveis
Rurais efetuados pelo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) em 1967 e do
Recadastramento de Imóveis Rurais realizado pelo INCRA, em 1972. Oferece uma
alternativa crítica às análises que observam uma expansão acelerada do modo
de produção capitalista no campo; seu enfoque principal está na importância da
pequena produção como suporte da própria expansão capitalista, contrariando
com uma sólida base empírica, as teses que afirmam a unanimidade da grande
propriedade.
11
Lembramos na primeira parte que, segundo Dobb, a viabilização do regime de
assalariamento dependeria do produto do trabalho ser suficiente para efetuar a
remuneração da força de trabalho comprada e criar um excedente, repartido entre
as classes proprietárias. Produtividade elevada e salários baixos seriam condições
cruciais. Seguindo este raciocínio, a existência ainda parcial destas condições no
campo brasileiro nos indicam as razões para o estabelecimento das peculiares re-
lações entre o grande capital e os modos pré-capitalistas de produção. Voltaremos
a este ponto adiante (SILVA et al, 1978, p. 1-3; DOBB, 1986, p. 40-41).
12
Velho, 1982, p. 41. Trata-ser de uma coletânea de dez textos, representantes da pro-
dução do autor desde 1969, tratando de diversos temas ligados ao campo brasileiro,
desde questões clássicas de seu pensamento, como a relacionada à expansão da
fronteira agrícola, as relações de classe, ação da Igreja, dos sindicatos e do Estado
nas relações de tragalho e propriedades rurais etc.
13
Na obra de Otávio Guilherme Velho destacam-se estudos comparativos envolvendo
a experiência histórica brasileira, como é o caso da análise das modernizações
agrárias em que se deu uma “fronteira em movimento”, incluindo aí o Brasil, a Rússia
e os Estados Unidos (capítulo terceiro de Sociedade e Agricultura e o clássico Capita-

Livro.indb 172 16/10/2008 11:11:09


173

lismo Autoritário e Campesinato, por exemplo). Portanto, antes de uma acusação de

Daniel de Pinho Barreiros


injustiça e ignorância, não defendemos que o ponto de vista do autor é marcado por
uma recusa à perspectiva comparativa, muito pelo contrário. Nossa crítica situa-se,
pontualmente, na defesa realizada por Velho aos pressupostos de Prado Jr. no que
tange à caracterização do campesinato brasileiro. É notório o delicado momento
por que passava o pensamento marxista internacional na ocasião em que Prado
Jr. edificara suas teses mais importantes; entretanto, temos hoje o distanciamento
suficiente para compreendermos que, na crítica ferrenha ao stalinismo, o autor
acabou por repudiar um emprego maior de categorias sociológicas “universais” à
compreensão do Brasil, associadas imediatamente ao dogmatismo soviético. Como
no reflexo do abismo pensado por Nietzsche, em Além do Bem e do Mal, todo aquele
que luta contra monstros tem de, no processo, evitar de tornar-se um. Efetivamente
Prado Jr. fez reducionista sua análise no processo de criticar o reducionismo alheio.
Essa é a perspectiva que criticamos (VELHO, 1979).
14
O feudalismo europeu medieval, em particular, teria sido marcado pelo fenômeno da
servidão. No entanto, na opinião de Sweezy, este não seria o diferencial na concepção
de feudalismo, já que poderiam existir sociedades dotadas do trabalho servil mas
que não fossem feudais; em outras palavras, existiriam sociedades que estariam
inseridas numa dinâmica de mercado internacional e que utilizariam a servidão como
relação de produção. Tal fato não tornaria “feudais” estas sociedades; elas somente
seriam definidas desta maneira, dentro do sistema sweeziano, se isoladas da dinâmica
mercantil internacional, principalmente (SWEEZY, 1977a ou b???, p. 22-24).
15
Nas palavras de Velho: “A hipótese que fazemos é que a situação descrita represen-
ta, em termos brasileiros, um caso-limite. Seu valor, numa análise comparativa em
âmbito nacional, estaria exatamente nisso. É limite por estar, sem chegar a ser uma
sociedade tribal, próximo do ponto ideal de máximo afastamento possível, física e
socialmente, dos principais centros (sua produção é quase que exclusivamente de
subsistência), caracterizando, assim, uma situação de integração mínima no sistema
nacional (e internacional)”. Vemos, portanto, que na formulação das bases teóricas
de investigação, Velho se apropria da associação entre campesinato e subsistência
(VELHO, 1982, p. 43).
16
Topalov aponta a existência de um complexo baseado no latifúndio-minifúndio,
afirmação esta que não destoa, num primeiro momento, do ponto de vista
defendido no presente estudo. Ainda que ressalte o caráter de concentração
da propriedade fundiária, dado consagrado por diversas análises empíri-
cas, lembra a existência, em uma coligação sistêmica com o latifúndio, da
propriedade de tamanho diminuto, “fragmentada ao ponto de uma unidade
não poder proporcionar trabalho permanente a uma família de agricultores”.
E prossegue na sua caracterização da propriedade minifundiária: “Ela proporciona
a seu proprietário os víveres que não são cultivados nos grandes domínios, sem, no
entanto, fornecê-los em quantidade suficiente para seu sustento. O proprietário está,
portanto, ao mesmo tempo ligado à região pela posse de sua parcela e obrigado a
empregar-se no latifúndio. O minifúndio contribui, portanto, para fixar a mão-de-obra
de que necessitam os grandes proprietários para realizar a agricultura comercial”.
Vemos, portanto, que o autor não considera a relevância econômica da pequena uni-
dade produtiva de subsistência na dinâmica do mercado interno de abastecimento,
seja naquelas exploradas por arrendamentos ou outras formas de acesso. Ao reduzir
seu papel à função de fixação da mão-de-obra, afirma a incapacidade do trabalho
necessário empreendido pelo produtor direto nas terras em que obteve acesso para a
sua própria reprodução, afirmando a necessidade da venda da força de trabalho não
como mera complementação de renda, mas em uma situação de semi-proletarização.
Todas estas são condições verificáveis na agricultura nacional, mas estão longe de
serem majoritárias, como veremos adiante (TOPALOV, 1978, p. 63).
17
O autor, nascido em 1902, foi professor do Departamento de Economia da Universi-
dade de Chicago desde 1943, presidente da American Economic Association (1960),
membro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos da América (1974) e
Prêmio Nobel em Economia (1979). Esteve em visita ao Brasil pela primeira vez em
1941, e igualmente em 1981, ocasião em que proferiu conferências sobre agricultura e
educação, a convite da Câmara de Estudos e Debates Econômicos e Sociais (CEDES)
e da Cesgranrio.

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18
O autor define a agricultura tradicional como uma situação de equilíbrio, em que os
Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

impulsos para a expansão e modernização estejam em consonância com as técnicas


vigentes, criando um estado de estagnação. Em suas palavras: “As condições críticas
que formam a base desse tipo de equilíbrio, seja historicamente, seja no futuro,
apresentam-se da seguinte maneira: 1) o estado dos conhecimentos permanece
constante; 2) o estado das preferências e dos motivos para manter e adquirir as
fontes de renda permanece constante; 3) ambos esses estados permanecem cons-
tantes durante tempo suficiente para que as preferências e os motivos marginais
para obtenção de fatores agrícolas como fontes de renda cheguem a um equilíbrio
com a produtividade marginal dessas fontes, vistas como um investimento em
correntes de renda permanente, e com as economias líquidas aproximando-se do
zero” (SCHULTZ, 1965, p. 40).
19
Baseado no trabalho de Sol Tax, Penny Capitalism, Schultz tende a concordar com a
atribuição de um caráter capitalista à comunidade de Panajachel, ainda que o fosse
em uma escala menor, baseado na eficiência racional da alocação de recursos, no
cálculo econômico empreendido pelos lavradores e pelas relações de mercado em
que se inserem. Discordamos destas proposições, pelos critérios já explicitados
neste capítulo e nos anteriores, onde definimos o conceito de capitalismo por nós
defendido.
20
Schultz não aponta o fato, mas cabe aqui ressaltar que a fronteira agrícola aber-
ta, como no exemplo brasileiro, joga um papel importante na reprodução dos
fatores produtivos tradicionais, como temos visto até então. Inclusive, ainda que
rentabilidade marginal do trabalho possa ser muito pequena em uma agricultu-
ra tradicional como a praticada principalmente por esta maioria de pequenos
lavradores brasileiros dos quais viemos falando, a existência de terras livres e
férteis acabou por ser um elemento compensador da pobreza das técnicas e do
modo de exploração do solo, enquanto cultivado de modo extensivo e predatório,
evidentemente.
21
Trata-se de renomado ensaio escrito com o objetivo de responder a questiona-
mentos interdisciplinares acerca da natureza do desenvolvimento capitalista no
Brasil, realizados no CEBRAP, tendo sua primeira edição no ano de 1972. Tem como
perspectiva contribuir para a revisão do modo de pensar a economia brasileira na
etapa em que a industrialização passa a ser o setor-chefe da acumulação capitalista.
Criticando o dual-estruturalismo cepalino, incorpora, como variáveis endógenas,
as condições políticas do sistema na passagem de um padrão de acumulação a
outro, escapando ao vício metodológico economicista, que tende a isolar fatores
econômicos e políticos. Ao se inserir em um contexto maior de insatisfação com o
paradigma cepalino de análise, buscando arsenal teórico encoberto pelo margina-
lismo e o keynesianismo, Oliveira critica o conceito de subdesenvolvimento como
formação histórico-econômica singular, constituído na oposição entre um setor
arcaico e um setor moderno. O processo real mostraria, em sua opinião, uma sim-
biose entre estes “setores”. O subdesenvolvimento não seria uma etapa, portanto,
mas uma “produção” da expansão capitalista.
22
Oliveira sustenta em sua análise que a garantia de bens alimentícios para a economia
urbano-industrial por parte de um setor “arcaico” agrícola seria fruto das transfor-
mações engendradas pela Revolução de 1930 no que tange ao papel da agricultura
neste mesmo processo. Estamos certos, contudo, de que o autor engana-se na
afirmativa: a simbiose entre uma agricultura pré-capitalista e o desenvolvimento
industrial foi projeto gerado pelos setores de classe no poder durante o período
de construção da República e de edificação de uma ordem social de superação da
escravidão (1880-1890), quando emergiam as primeiras iniciativas de monta para
a industrialização da economia nacional. Esta complementaridade entre modos de
produção diz respeito à implementação de uma via de modernização propugnada
pelo regime republicano de 1889, anterior, portanto, à Revolução de 1930, mas
prosseguida por esta última, demonstrando um caráter claro de continuidade neste
sentido. Ver Barreiros (2002).
23
Sorj opõe-se ao posicionamento assumido por Oliveira, Graziano da Silva e autores
participantes do estudo coordenado. Afirma não existirem parâmetros suficientes
que sirvam de base para a afirmativa de que a produção tradicional consegue
fornecer alimentos a custos menores. Em outras palavras, análises baseadas no
critério dos “menores custos” não definem a partir de que parâmetros se deve-

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175

ria comparar a produção tradicional, a fim de atestar sua maior rentabilidade.

Daniel de Pinho Barreiros


No período de 1930-1960, momento defendido pelo autor como o de início da implan-
tação do capitalismo no Brasil (periodização da qual discordamos inteiramente),
Sorj afirma ter sido uma realidade o fato de que a produção tradicional viabilizou
a expansão da economia urbana, dado que permitiu poupar capital que, numa
base de acumulação inicial pobre, seria utilizado para atividades industriais. Ou
seja, dispondo de recursos limitados, foi possível na economia brasileira não se
utilizar de capital para produzir alimentos ou de divisas para importá-los. Entre-
tanto, esta atividade agrícola tradicional não seria mais rentável que a produção
desses mesmos bens em modo capitalista; se em muitos momentos evitou-se a
importação de alimentos mais baratos que os disponíveis no mercado interno (leite
e carne, por exemplo), isto se deveu à necessidade de economizar divisas e à in-
fluência político-social desses setores dentro da nova estrutura do Estado pós-1930.
Os preços baixos não se explicariam pela produção tradicional, mas pelas possibili-
dades de expansão espacial das culturas pelas terras abundantes e pela mão-de-obra
abundante, com salários depreciados, que contribuiriam para a depreciação dos
salários urbanos igualmente. Não existiria, portanto, nenhuma característica intrín-
seca na produção tradicional que lhe permitisse ter rentabilidade maior. E completa:
“Na medida em que essas condições tendem a se esgotar, a pressão da demanda
determina o aumento dos preços e uma crise de abastecimento, que só podem ser
superadas pela importação de alimentos ou pela reestruturação da agricultura,
visando à produção de mais excedentes a partir de novos processo produtivos”.
Entretanto, Oliveira trouxe dados empíricos suficientes para demonstrar, no entan-
to, a maior rentabilidade-alqueire da produção de milho no estado de São Paulo,
comprovando que a produção tradicional não se trata de uma situação transitória
– que logo seria superada quando do esgotamento dos recursos que a viabilizam – e
nem teria sido superada pós-1960, com a implantação do complexo agroindustrial
(SORJ, 1980, p. 24-25).
24
Sorj parece convicto de que o papel da pequena produção no fornecimento de
alimentos para a indústria foi limitado ao período que se esgota com a década
de 1960, quando se processou uma redefinição das relações entre a agricultura e
a indústria, pela implantação do complexo agroindustrial. Afirma que, fosse a pe-
quena ou a grande propriedade voltada para o mercado interno ou externo, todas
estariam a partir daquele momento dependentes da produção industrial de insumos
e máquinas; as relações tradicionais de produção davam lugar, naquele contexto,
a novas, “onde a mais-valia relativa e a capacidade de capitalização da pequena
produção se transforma no centro de reestruturação das relações de produção”.
Segundo o autor, este foi o momento de grande parte dos latifúndios ganharem
a forma de empresas capitalistas modernas; mais ainda, o destino da pequena
produção seria ou a sua incorporação ao complexo agroindustrial (tornando-se
altamente capitalizada) ou a marginalização; seu papel como fornecedora de bens
alimentícios terminaria com as transformações engendradas na década de 1960,
em que a agroindústria tomaria as rédeas do processamento e fornecimento de
alimentos, gerando a supradita encruzilhada entre a incorporação e a exclusão.
Nas suas palavras: “Assim, nas últimas duas décadas, o processo de transformação
das relações de produção na agricultura brasileira, sem alterar a estrutura fundiária,
tem-se dado na direção de: a)depurar as relações de produção capitalistas nas gran-
des empresas agrícolas; b) fortalecer um importante setor de produtores familiares
capitalizados; c) gerar uma massa de pequenos produtores pauperizados que ficam
crescentemente marginalizados, pela sua baixa produtividade, dos grandes centros
produtivos” (SORJ, 1980, p. 24-25, p. 44-47).
25
Lembremos que a autora se remete aos produtores rurais ingleses no momento de rup-
tura com o modo de produção feudal como sendo arrendatários, com produções mer-
cantis, cuja condição de manutenção de sua condição de classe exigiria o pagamento
de renda da terra, essencial para o acesso a ela. No Brasil, estamos tratando de produ-
tores que obtêm o acesso à terra por expedientes diversos: a questão do pagamento
de renda monetária ao proprietário, regulada por mecanismos de mercado típicos de
um arrendamento capitalista em construção, não estaria necessariamente incluída,
considerando casos em que relações de repartição da produção (meação, parceria)
se estabelecessem, em que se desse a cessão de terras em troca de serviços diversos
(camaradas, agregados), ou nos exemplos de ocupação ilegal de áreas não-cultivadas.

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Em suma, as possibilidades de sobrevivência e acesso à terra no caso brasileiro, em


Crítica à tese do capitalismo colonial brasileiro

função da natureza da fronteira agrícola e das relações sociais estabelecidas entre


proprietários e produtores diretos, não apontaram para um impulso à transformação
capitalista, como foi identificado por Wood.
26
Sobre a natureza da relação entre a agroindústria e a pequena produção, existem al-
guns estudos importantes, realizados por pesquisadores vinculados ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, trazendo
interpretações diversas para a questão. O primeiro conjunto consiste em dois traba-
lhos publicados num mesmo volume intitulado Agricultura, Cooperativas e Multinacio-
nais, de autoria de Odacir Luiz Coradini e Antoinette Fredericq, sendo versões resumi-
das das conclusões de suas respectivas dissertações de mestrado pelo programa su-
pracitado. São apresentados por uma breve introdução de autoria de Bernardo Sorj.
Coradini em seu Produtores, Cooperativismo Empresarial e Multinacionais: o
caso do trigo e da soja aponta questões cruciais para a defesa dos pressupostos
analíticos do presente estudo, principalmente ao indicar a inexistência de um
processo de proletarização na cultura de soja e trigo concomitante à moderni-
zação da agroindústria. Já Fredericq trata da consolidação de uma “ideologia
agroindustrial” ao nível dos costumes econômicos, expressos nas estratégias
de substituição mercadológica de alimentos tradicionais por industrializados.
O segundo conjunto é composto por uma contribuição associada de Bernardo
Sorj, Malori J. Pompermayer e Odacir Luiz Coradini, na análise das relações
entre o campesinato e a agroindústria na avicultura, setor escolhido pelo alto
grau de subordinação da pequena produção familiar ao capital industrial.
Em função dos objetivos deste livro, os comentários sobre estes trabalhos resumir-
se-ão a esta nota informativa, que somente se presta a acusar a existência de
esforços acadêmicos específicos ao tema (CORADINI; FREDERICQ, 1981; SORJ;
POMPERMAYER; CORADINI, 1982).
27
Martine e Garcia lembram que culturas como a do arroz, pela amplitude do seu
consumo mundial, foram atingidas pelo pacote tecnológico da “Revolução Verde”,
passando a ter um satisfatório grau de emprego de insumos e máquinas. Por conta
disso, o arroz e o milho vêm sendo desenvolvidos, cada vez em maiores proporções,
por meio do modo de produção capitalista, com emprego de mão-de-obra assala-
riada, concentração de capital e grandes inversões, contando ainda com proteção
governamental. No estudo coletivo coordenado por Graziano da Silva, vemos uma
outra interpretação para a transformação capitalista na produção do arroz, baseada
na natureza da demanda do mesmo produto no conjunto do mercado nacional. Ape-
sar de ser lembrada a associação da cultura do arroz como atividade precedente da
extensão dos pastos destinados à pecuária, denotando uma especialização mediana,
o seu mercado consumidor teria uma amplitude social maior que a de alimentos
como o feijão e as farinhas, consumidas especialmente pelas massas proletárias.
Portanto, por ser um produto cujo coeficiente de elasticidade-renda é positivo, tendo
em vista a demanda (ou seja, por seu mercado dispor de maior amplitude, acréscimos
na renda dos consumidores, aumenta a quantidade consumida), seria vantajosa a
produção em termos capitalistas. Os autores afirmam que o milho, apesar de contar
recentemente com bons progressos técnicos, ainda não conta com culturas intensi-
vas (MARTINE; GARCIA, 1987, p. 83-85; SILVA et al, 1978, p. 184-185).

Livro.indb 176 16/10/2008 11:11:10


Conclusão

Observados em seu conjunto, desde suas primeiras manifes-


tações no diálogo anglo-saxônico, até seu desenvolvimento entre
a intelectualidade brasileira, os “debates sobre a transição” nos
revelam uma dupla identidade. A transição a que se referem não se
relaciona somente à superação de modos de produção em direção
ao capitalismo, mas nos fala igualmente sobre uma ampla trans-
formação no próprio estado das artes do pensamento econômico
ocidental, especialmente no campo do marxismo. Dessa forma, a
controvérsia a respeito da transição é igualmente um debate sobre
que caminhos a Economia Política marxista deveria tomar, a partir
dos anos 1950, que lhe permitissem tanto evitar o seu desprestígio
– vide o chamado “marxismo ocidental” – quanto o aprisionamento
sob a ortodoxia do marxismo soviético. Como vimos, os principais
pensadores envolvidos na controvérsia não foram capazes de entrar
em consenso a respeito do caminho “verdadeiro” para a superação
da influência stalinista, e a possibilidade de coexistirem múltiplas
interpretações era um indício precioso de que os ares intelectuais
haviam realmente mudado.
Sob uma perspectiva aplicada, as idéias formuladas ao longo
das décadas de controvérsia, sem esquecer de sua retomada no início
deste século com a produção intelectual de Ellen Wood, fornecem-nos
valiosos instrumentos de análise da formação econômica capitalista.
O dissenso a respeito da natureza do fenômeno “capitalismo” coloca
em evidência uma importante realidade: a de economias dotadas de
ampla vivência comercial, mas que funcionam com base em “sistemas
repressivos de mão-de-obra”. Não importando como definamos o ca-
pitalismo, sendo ele a progressiva inserção da sociedade no universo
do comércio, ou a extração de excedente econômico pela mais-valia,
ambas as abordagens revelam um aspecto importante de determi-
nadas formações sociais, em especial nos países periféricos ou nos
“capitalismos tardios”. Tenha sido a economia agrária germânica ou
japonesa dos séculos XVI-XIX “capitalista” ou não, os “debates” nos
permitem tomar como ponto de partida teórico a idéia de que mesmo
determinadas formações sociais ligadas ao “capitalismo desenvolvi-
do” promoveram seus processos de industrialização com base em
uma agricultura comercial conduzida a partir de modos de produção
não-capitalistas. As implicações políticas deste fenômeno, tal como

Livro.indb 177 16/10/2008 11:11:10


178
Conclusão

analisadas por Barrington Moore Jr., são um importante elemento


para o estudo da formação dos regimes democráticos.
A discussão a respeito do papel do capital mercantil na transição
para o capitalismo, juntamente com as contribuições de Wood, tem
importantes implicações para o estudo do desenvolvimento técnico da
agricultura em países subdesenvolvidos, especialmente o Brasil. Se,
por um lado, podemos afirmar, de acordo com Sweezy, que o capital
mercantil teve um papel fundamental na dissolução do “feudalismo”,
enquanto um sistema de produção não-comercial, por outro seguin-
do os passos de Dobb, podemos argumentar que o capital comercial
é beneficiado justamente pela estreiteza das relações de mercado,
e que, portanto, cumpre um papel importante na preservação de
modos de produção pré-capitalistas, extraindo excedente a partir
de formas tradicionais de trabalho, sem modificá-las. Articulando
ambas as perspectivas, e indo além das definições de “capitalismo”
e “feudalismo” tratadas, temos que o desenvolvimento da produção
voltada para o comércio, inclusive a produção que ocorre sob formas
de trabalho juridicamente livres, não implica o surgimento de relações
de produção de assalariamento pleno, no qual a submissão ao trabalho
e a extração de excedente ocorrem fundamentalmente por meio de
mecanismos de mercado. Aplicando a idéia de capitalismo como impe-
rativo, defendida por Wood, somos capazes de vislumbrar as possíveis
razões do atraso técnico e organizacional em determinados setores
da economia agrícola brasileira contemporânea aos “debates”. Tendo
em vista o papel desempenhado pelos atravessadores ao evitarem
a transmissão aos pequenos produtores das pressões de demanda,
teriam contribuído para eliminar a formação de um ambiente concor-
rencial, induzindo, assim, à estagnação e à persistência de formas de
produção não-capitalistas.
Ao tratarem do papel do capital industrial e da revolução na
transição para o capitalismo, apresentam-nos uma importante dis-
tinção que deve ser realizada na análise das formações econômicas
concretas. É preciso, sobretudo, definir-se a natureza da classe indus-
trial que se forma, e os mecanismos pelos quais ela emerge. Tanto
Dobb quando Sweezy concordaram que uma determinada parcela do
capital industrial surge dos ranks da tradicional burguesia comercial,
e, nesse caso, a aplicação de capital para a produção de mercadorias
acontece sem a transformação dos modos de produção em funcio-
namento, significando, fundamentalmente, a exploração externa do

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Daniel de Pinho Barreiros


artesanato urbano e da indústria rural, com o proprietário do capital
monopolizando a venda e o fornecimento de matérias-primas ao pro-
dutor. Uma formação social na qual esta seja a forma hegemônica de
capital aplicado à produção tenderia, assim, a dispor de uma classe
burguesa resistente à transformação social, dependente do suporte
estatal para a ação monopolista e, portanto, adversária da própria
idéia de revolução burguesa. Por outro lado, o capital industrial pro-
veniente de um movimento de diferenciação social entre pequenos
proprietários, ou seja, o surgimento de uma burguesia industrial a
partir de setores mais próximos da base da pirâmide social, significaria
um potencial amplo para a revolução burguesa, e, portanto, para a
transformação completa da sociedade em direção à consolidação do
modo de produção capitalista em sentido estrito.
Moore Jr. observou uma distinção correlata ao tratar do
surgimento da burguesia industrial em sociedades da chamada
“via burguesa” e da “via prussiana”, indicando que nas primeiras, o
capital industrial seria hegemonicamente composto de elementos
formados pelo segundo processo (ascensão social), enquanto, na
segunda, o capital industrial teria sido formado pela transmutação
das antigas classes senhoriais. Aplicados à análise política, Moore
Jr. sugeriu que uma burguesia industrial formada a partir de peque-
nos produtores foi propensa à transformação democrático-liberal,
enquanto naquela composta por membros dos setores tradicionais
a tendência foi atuar de modo a preservar os privilégios obtidos sob
o manto da velha ordem.
O diálogo entre as perspectivas teóricas de Prado Jr. e a pro-
dução acadêmica nos anos 1970 e 1980 indicou que a transição para o
capitalismo no Brasil, após a abolição do trabalho escravo (para além
da existência de uma secular agricultura mercantil de exportação,
significativa em termos sweezianos), teria ocorrido fortemente sob
a influência de vetores pertencentes ao modelo “conservador”, com
a aplicação do capital à produção sem a difusão do assalariamento
pleno, com a persistência de relações de produção marcadas pela
“coerção não-econômica”, e, sobretudo, com a sobrevivência de uma
agricultura mercantil de bens de subsistência absolutamente funcional
em relação às necessidades da expansão industrial urbana. Dobb,
seguindo a tradição ricardeana, aponta como fundamental para o
assalariamento a relação entre terras livres e força de trabalho dis-
ponível, afirmando que formações econômicas com fronteira agrícola

Livro.indb 179 16/10/2008 11:11:10


180
Conclusão

aberta são alvo de pressões em prol da dispersão da mão-de-obra, e,


portanto, para a não-sujeição do trabalhador à extração de excedente
por uma classe proprietária. Dessa forma, uma agricultura comercial
com base na grande propriedade depende, neste exemplo, de formas
de controle da mão-de-obra que não passem pelo mercado, e sim
pela coerção.
Diante do exposto, é desnecessário afirmar a consciência de que
o processo de construção das sociedades capitalistas desenvolvidas,
partindo das alterações decorrentes da ruptura do modo de produção
feudal, difere de modo significativo da experiência histórica brasilei-
ra. Este estudo não tem como objetivo realizar uma simples analogia
entre realidades históricas substancialmente diferentes, propondo o
absurdo de entender-se a transição para o capitalismo em todas as
sociedades como um processo unilinear e reproduzível. Como vimos,
um dos principais méritos dos intelectuais envolvidos nos “debates”
foi justamente o de ultrapassar as aplicações dogmáticas dessa ou da-
quela formulação abstrata, como capazes de descrever integralmente
todas as sociedades humanas.
Se escolhemos A Evolução do Capitalismo como principal ba-
lizador de nossa discussão acerca da construção do capitalismo em
geral, é porque pretendemos com este estudo não a transplantação
de uma teoria fundada na realidade histórica inglesa para a análise
de todo e qualquer contexto e trajetória social. Antes disso, compre-
endemos a obra de Dobb como um programa de investigação sobre
a História do Capitalismo, e o debate que se seguiu à sua publicação
confirma a sua importância neste sentido. Portanto, o motivo pelo qual
recorremos ao pensamento deste autor, voltado para questões muito
próprias ao desenvolvimento econômico europeu, é devido ao fato de
identificarmos a validade de suas hipóteses e formulações como um
ponto de partida para a investigação empírica, inclusive de contextos
extra-europeus. Dobb identificou seu estudo não como uma chave
universal para o entendimento de quaisquer experiências capitalistas
histórico-espacialmente definidas, mas localizou-o:

Não pretendi escrever, nem mesmo esboçar, a história abran-


gente do capitalismo. O método adotado pode ser descrito,
penso eu, como uma abordagem de certas fases e aspectos
cruciais do desenvolvimento do capitalismo, basicamente
tomando a Inglaterra como exemplo clássico, com referências

Livro.indb 180 16/10/2008 11:11:11


181

Daniel de Pinho Barreiros


ocasionais a paralelos no continente (como os desenvolvimen-
tos das guildas ou do sistema do putting-out), ou os contrastes
(como a reação feudal na Europa oriental ou a criação do
proletariado), a fim de elucidar alguns pontos em particular.
(DOBB, 1986, p. 97)

Assim, ressaltamos o papel fundamental do trabalho teórico,


que é o de estabelecer pontos de partida para a investigação científica.
O fundamental elo entre as questões exploradas nas páginas anterio-
res e os sistemas produtivos concretos deverá ser estabelecido por
meio do estudo empírico. Como subsídio a ele, os “debates sobre a
transição”, além de poderem ser estudados como fonte primária para
o estudo da história das idéias econômicas contemporâneas, são
capazes de oferecer uma importante agenda de investigações para o
pesquisador das formações econômicas contemporâneas.

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Posfácio

Uma palavra, um debate e um livro

Tenho motivos suficientes para ser grato ao estudo de Daniel


de Pinho Barreiros. Há nele toda a elegância de um estudioso atento
e competente, o que para um leitor é uma espécie de dádiva. Desde o
primeiro momento que o li, impressionou-me o diálogo que trava com
a ampla historiografia. Fico feliz, neste posfácio, por ter a ocasião de
dizer da minha satisfação e agradecer.
Porém, cabe-me aqui muito mais. Estou a escrever um posfácio e
devo admitir que o leitor deste livro tenha chegado, agora, aonde estou.
Entre o fim do livro e a contracapa, encontra-se a minha escrita. Nada
do que escreverei terá qualquer acento na leitura anteriormente feita.
Nenhuma coisa que possa dizer influenciará ou norteará a leitura deste
livro. Nesse sentido, minha contribuição é da esfera do já vou indo.
Uma escrita de posfácio é apenas, e só, um tipo de adeus gráfico.
O leitor do livro pode ir sem atentar para essa mão que acena. Con-
tudo, um posfácio pode agenciar uma situação de transição para um
ainda não. O que significa que essa forma de adeus, metaforicamente,
consubstancia uma categoria quase imperativa nos estudos sobre a
História das Idéias Econômicas: transição.
A palavra parece ser a divisa ou emblema de todas as idéias
que se apresentam quando se debatem situações teóricas no reino das
transformações econômico-socias. De alguma forma, o que pretendo
deixar evidente é que o livro requer a mesma palavra para se fazer
atuante na mente do leitor. Isso me permite apresentar duas linhas
de raciocínio que consubstanciam o valor da obra de Daniel de Pinho
Barreiros. (1) Sobre o que se aplica o que se pretende dizer, quando
se fala em transição, já que esta palavra impera e assume o poder de
transformar o “próprio estado das artes do pensamento econômico-
ocidental”; e, particularmente, como os exemplos sustentam o tema
mais ou menos implícito da relação entre situação de origem e com-
portamento teórico. (2) O que motiva as confissões reiteradas dos
teóricos estudados que levam o pensamento dos mesmos a ser forçado
ou levado para a mesma palavra?
Sobre (1), no livro de Daniel de Pinho Barreiros, é possível con-
siderar a palavra transição como marca da luta teórica moderna por

Livro.indb 183 16/10/2008 11:11:11


184
Posfácio

e contra a existência continuada de sua presença, o que de fato lhe


dá rigidez e permanência. Como do livro podemos inferir o porquê
de existir ou vir a existir tal batalha é não menos que histórico, uma
questão da continuação de análises sem o devido destaque para com
a singularidade de uma formação específica. O motivo disso é algo a
que eu designo, ou entendo, na esteira do pensamento de Daniel, com
o nome de teoria derivada.
É possível verificar que na entrada do debate no ambiente bra-
sileiro, com o livro de Caio Prado Junior, um aspecto do pensamento
foi ressaltado como “transformação em” debate. O que provoca o
entendimento de que certas situações específicas do cenário his-
tórico brasileiro concernem a uma maneira de resposta ao tipo de
surgimento do capitalismo na Europa. Essas situações específicas se
inserem numa comutação do debate em um fantasma das compreen-
sões históricas.
Sobre (2), os autores destacados por Daniel de Pinho Barreiros
antes esboçam a discussão do ser “forçado” ou “levado”, por intermé-
dio das discussões teóricas, ao colo da palavra transição, reafirmando
o sentido da palavra — porque ela sempre permanece como escape e
presença única. O livro nos ajuda a perceber que uma atitude teórica
exige um plano de imanência conceitual que problematize o que posso
chamar de imperativos expressivos de sua situação máxima, transição.
O que talvez mais se revele no trabalho de Daniel, sob essa luz, inde-
pendentemente do alinhamento que por si só reconhece, é a sugestão
de que se apropriar dos debates não é eclipsar teoria, mesmo de ca-
ráter conservador. Isso acentua a noção do autor de que os debates
sobre transição oferecem “uma importante agenda de investigações
para o pesquisador das formações econômicas contemporâneas.”
Novamente, não desejo inferir que estas ampliações (como que
convites) do meu interesse sejam comentários suficientes sobre o
estudo de Daniel de Pinho Barreiros. Seu trabalho traz à tona muitos
temas recorrentes que são seriamente tratados por suas inquirições.
Sinto que não entendi suficientemente bem suas afirmações finais a
ponto de tratá-las diretamente, como, por exemplo, sua observação
de que “o papel fundamental do trabalho teórico [...] é estabelecer
pontos de partida para a investigação científica”.
Gostaria de mencionar, no lugar de uma discussão sobre o meu
não-entendimento, a conexão, para referências futuras, de um possí-
vel ponto de diálogo. Não quero aqui estabelecer qualquer coisa que

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Daniel de Pinho Barreiros


não seja pertinente ao meu papel de “leitor atrasado” que diz adeus
pelo livro e aponta para o ainda não após a contracapa. Em um dado
momento, indaguei-me: a transição é menos essencial à linguagem
teórica que a sua generalidade? Esta pergunta é induzida pelo que
denomino de projetar uma palavra sem atentar para ela.
Não creio que minha argumentação desvalorize qualquer pos-
tura dos autores consagrados. Ela serve para reconhecer o valor do
pensamento de Daniel de que as explicações sobre a generalidade da
palavra transição parecem pertencer a uma condição pertinente à
natureza teórica do ambiente intelectual. Isso demonstra que a gene-
ralidade da presença da palavra não é acompanhada por uma reflexão
teórica que lhe dê conta.
Talvez o destaque que dou à palavra transição, como algo de
qualidade geral nas teorias das idéias econômicas, possa ser confundi-
do como impertinência de quem escreve um posfácio. Mas devo dizer
que esquecer a palavra, sem atentar para ela, é deixar de observar
a elegante forma da escrita de Daniel de Pinho Barreiros. A palavra
transição é uma palavra suficientemente usada ou suposta quando
se inquire o predomínio ou surgimento de uma atividade econômica,
fazendo confundir palavras como desenvolvimento e evolução com
a possibilidade de pensar historicamente.
Ora, a palavra transição sugere sempre uma passagem de um
estágio a outro, o que provoca certa perda de reflexão, em razão de
seu próprio movimento. Quando, porém, atenta-se para ela, é possível
ver como a mesma presença recua e demonstra a natureza da teoria
das idéias econômicas. O que significa que a palavra não se manifes-
ta senão no próprio sentido da palavra, deixando de ser apenas um
termo de ligação entre etapas e se colocando como limite da própria
natureza teórica desse ambiente intelectual.
Abandonando tudo por aqui, concluirei este posfácio tentando
clarificar a ambigüidade, caso ela tenha sido nociva ao invocar a pala-
vra transição como o movimento derradeiro para toda a História das
Idéias Econômicas. O que faz da palavra algo que chega a provocar
“um repúdio” aos critérios de aplicação de conceitos numa situação de
problemas urgentemente históricos. Começa em casualidade, porém
continua em condutibilidade e termina em abrigo, achando descanso
em uma estrutura econômica, com perspectiva fixa, significando o
cansaço teórico de onde a palavra dá a impressão de ser uma prisão,

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Posfácio

ou um lugar em abandono. Não é a esta inércia, ou quiçá a paz teórica,


uma sugestão que busque o silêncio da teoria, antes o contrário.
O trabalho de Daniel, na elegância de sua escrita, enseja
transcender os critérios que a palavra impõe e faz isso historiando
os debates como se fossem arbitrários, expandindo-os na intenção
hipotética de encontrar os limites teóricos. Suas descrições podem
ser compreendidas, o que pode ser verdade, como uma antinatureza
natural ao debate. Igualmente, pode ocorrer que o que quero dizer por
“antinatural” na História das Idéias Econômicas, que a escrita de Daniel
me parece apresentar, seja incompreensível. Não desejaria negar essa
possibilidade, mas ela não me levaria, por conta própria, a desistir
da idéia do antinatural por duas razões: (1) usar a palavra transição,
para estabelecer aspectos de origem e compreensões sobre como uma
estrutura econômico-social veio a surgir, assinala uma rigidez teórica
que aponta para uma antinatureza inerente à idéia de História; (2) a
idéia de História não merece menos investigação do que o particular
de uma situação histórica — especialmente uma investigação que
reconheça a sua tendência em ser a “última palavra”, como condição
de existência teórica no ambiente intelectual dedicado à História das
Idéias Econômicas, podendo dizer como essa condição é antinatural
ao próprio pensamento que a legitima.
Ao demonstrar tais razões na antinatureza da História, não nego
pertinência ao debate sobre transição, apenas aceito com algumas
reservas o abrigo que a palavra promete quando não é debatida. Isso
eu aprendo lendo o livro de Daniel de Pinho Barreiros. De algum jeito,
a palavra transição restringe a sua representatividade como elemento
arrebatador (e generalizante) em toda convenção, retratando uma
direção oposta ao gesto conceitual, pois se torna evidente. O que
significa que eu estou assumindo o sentido de liberação da palavra
no âmbito da representação histórica que, por sua vez, é limitado ao
sentido de encarceramento ou dependência da noção de passagem,
devendo a Daniel todo esse pensamento. Devendo, vou fazer um gesto
de adeus. Vou cônscio de que tudo que escrevi neste posfácio mais
não é do que reconhecimento de uma escrita de um historiador, digno
desse nome.

Marcus Alexandre Motta


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Este livro foi composto na fonte ITC Cheltenhan, corpo 10.
impreso na 4 Pontos Studio Gráfico,
em papel Reciclatto 75g. (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa),
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa em junho de 2008.
Tiragem 500 exemplares

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