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Templo do Samba
Era noite de Santo Rei, quando assisti pela primeira vez a uma apresentação das Ganhadeiras de Itapuã.
O local do ensaio era o Senzala do Samba, ao lado Praca Dorival Caymmi, espaço cedido por um
morador do bairro, Toinho, que também forneceu microfones e outros equipamentos.
A antiga casa de frente para o mar é hoje separada da praia pela avenida da Orla e as janelas em arcos
voltadas para a praça Dorival Caymmi estão cobertas de grades, por questão de segurança. Mas, nem
sempre foi assim. Como tantas outras, ela é mais uma casa de veraneio do bairro, construída pelo pai de
Ana Maria, presidente das Ganhadeiras de Itapuã, em um tempo em que óleo de baleia fazia parte da
argamassa das construções. Até a década de 1930, antes de ser proibida caça, toda a vila participava da
extração e armazenamento do óleo nos galpões chamados mercados. Boa parte das casas era de taipa
coberta de palha e chao de areia.
– Depois foram colocando telha, tijolos e aí foi melhorando – explica Ana Maria, gesticulando uns dos
braços enquanto o outro segurava com forca a saia rodada e florida.
Dentro da casa tudo era bem simples: cadeiras de plásticos compunham a platéia; o pequeno palco no
fundo, ladeado por duas caixas de som colocadas sobre caixas de cerveja; no teto, um globo de discoteca
destoava das enormes folhas de palha trançada, que ornavam a parede. Uma fina camada de areia
cobria o chão de ladrilhos de minúsculos losangos vermelho e branco.
O cheiro de abandono se dissipou assim que entraram as cantoras e os músicos. Ao simples toque de
pandeiros, o ambiente ganhou vida. Senhoras, com idade média de 70 anos, se posicionam no palco,
mas coube à nova geracao de Ganhadeiras, crianças entre nove e dez anos de idade, o primeiro show:
As crianças da vila ajudavam os pais no sustento da família. Era na beira da Lagoa, enquanto a roupa
secava, que Ana Maria, muitas vezes, fazia o dever do colégio. Assim, concluiu o curso técnico de
veterinária e depois foi trabalhar na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde se aposentou.
Hoje, ela e outras integrantes do Ganhadeiras de Itapuã são convidadas a passar sua experiencia de vida
aos alunos de escolas públicas e até universidades. Nesses encontros elas contam sobre suas
experiências. Tinham, por exemplo, o hábito de se reunir na casa de um dos moradores e encenar como
eram feitas as coisas no passado. Também tinha a Mestre e o Mestre, alguém mais velho que ensinava
as criancas algum ofício, como costurar, marcenaria, etc.
– Pra agradar a Mestre a gente busca as coisas pra ela. Mas não era pagamento... Aqui ninguém pagava
mesmo, era só um agrado. Eu sempre aprendi com meus pais que favor não se paga.
Certa vez um diretor da UFBA pediu para Ana Maria um favor: arrumar o laboratório nas horas vagas. No
final do dia ele foi entregar um envelope com dinheiro, mas Ana Maria não aceitou.
– Eu disse a ele que favor não se paga. Ele ficou me olhando incrédulo rodando a cadeira giratória. Pois
é, ele quis me comprar e ninguém me compra. E quando é pra pagar, que me paga.
– Mãe! Mãe! Acho que ela quer que a senhora canta: “ele é moreninho! Ele é moreninho assim!” – pede
Ana Maria
– Ah! Engraçado né?
– Aquela que eu gosto, mãe!
– A minha voz hoje está horrível!
– Ta nada! – retruca a amiga Raimunda que está sentada na ponta da cama.
– Aquela que a senhora canta pra Doutor Orlando – insiste Ana Maria.
Música é o remédio para Petú. Cantando, sua fisionomia se altera, e ela se transporta para os tempos de
sua juventude, quando morava em Portão e recebia as visitas de Manoel Victório, seu namorado, vindo
de Itapuã a cavalo. Quando se casou, aos 24 anos, Petú veio morar em Itapuã, onde criou toda a sua
família
– Eu tive muito fio, moça! Onze nasceram vivos. E ainda estão vivos! Dois natimorto e dois aborto!
Manoel Victório era pedreiro e tinha um barquinho pra pescar. Para ajudar no sustento da família, Petú
lavava roupa no Abaeté e em outras fontes da região. E ainda vendia cocada, mungunzá, pamonha,
amendoim torrado, moqueca de folha, peixe frito e azeite de dendê.
– Trabalhei muitcho, mia fia.
– Era uma união pra trabalhar! – completa Ana Maria – Aliás, as mulheres daqui de Itapuã trabalhavam
muitcho!
– Carregava lata d’água na cabeça, lembra? E as maes de família conversando nos caminhos, dando
risada, agarrando fruta – participa Raimunda.
– Voce lembra que ia um bocado de mulheres fazer licor de Cambuí pra Sao Joao, né? – relembra Ana
Maria – Criança, cachorro, ninguém bulia com ninguém. A gente via as cobras e elas entrava pro lado e
atravessava pra gente passar, né? Ninguém bulia, né? Até as cobras mesmo nao faziam mal a gente.
O perigo hoje é outro, indaga Ana Maria:
– Com a violência quem mais vai pra lagoa tomar banho? Quem vai mais lá? Nao é? Hoje em dia o que é
que tá acontecendo com os jovens, né? Tem muito problema de drogas! E são muitos assaltos!
FONTE: www.textovivo.com.br/detalhe.php?conteudo=fl20100521181708&category=reportagem&lang=