A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO

A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN SUMÁRIO:,QWURGXomR1RUPDWLYLVPRMXUtGLFRH

COMO POSTULADO CIENTÍFICO norma fundamental. 3) Natureza da norma fundamental.
)LFomRMXUtGLFD+LSyWHVHOyJLFRWUDQVFHQGHQWDO
$LQÀXrQFLDGH&RKHQ.DQWH.HOVHQ
Andityas Soares de Moura COSTA MATOS*
RESUMO
O presente artigo discute o estatuto teórico da norma funda-
mental (Grundnorm) proposta por Hans Kelsen como fundamento não-
metafísico da ciência jurídica. Para tanto, são abordadas as principais
formas mediante as quais a norma fundamental foi compreendida ao
ORQJRGRSHQVDPHQWRNHOVHQLDQR±KLSyWHVHH¿FomR±GHVWDFDQGR
VH RV SRQWRV IRUWHV H DV OLPLWDo}HV GH WDLV FRQVWUXo}HV 3DUD DOpP
do exame da literatura especializada no que se relaciona à estrutura
lógico-conceitual da norma fundamental, pretende-se propor neste
WH[WR XPD QRYD FDUDFWHUL]DomR GD QRUPD IXQGDPHQWDO &RP HIHL-
3RVWXODGR FLHQWt¿FR  ,PSRUWkQFLD SUiWLFD GD QRUPD
fundamental. Referências.
1. Introdução
$RQRVSRVLFLRQDUPRVVREUHRVHQWLGRSUiWLFRGRMXVSRVLWLYLV-
mo, somos tentados a nos lembrar de Kant, para quem a prática sem
DWHRULDpFHJDHDWHRULDGLVVRFLDGDGDSUiWLFDpLQ~WLO&RQWXGRHVWD
seria uma forma de acabar com a discussão, não de iniciá-la. Parece
yEYLRDTXDOTXHUXPTXHDIXQomRGDVWHRULDVFLHQWt¿FDVSHORPHQRV
QRVGLDVGHKRMHQmRpWDQWRVHUXPDHVSpFLHGHFRQWHPSODomRGHVLQ-
WHUHVVDGDGRUHDOFRPRTXHULDPRVJUHJRVPDVVHUYLUjUHVROXomRGH
problemas humanos, ainda que agindo assim a ciência corra o inevi-
tável risco de se transformar em ideologia,1 risco que, parafraseando
WRHQWHQGLGDSRUPHLRGHXPDDSUR[LPDomRFUtWLFRHSLVWHPROyJLFD .HOVHQID]SDUWHGDKRQUDGDFLrQFLD.(/6(1E1mRQRV
a norma fundamental passa a ser vista enquanto postulado de caráter parece possível entender a ciência – em especial a jurídica – como um
FLHQWt¿FR FDSD] GH JDUDQWLU QmR D QHXWUDOLGDGH ± DOJR TXH .HOVHQ
jamais propôs –, mas sim a independência da ciência jurídica diante
GDVLQMXQo}HVGRSRGHU'HVVDPDQHLUDDRODGRGHVXDIXQomRHPLQHQ-
temente metodológica, a norma fundamental exerce clara e relevante
IXQomRSROtWLFDGHWHUPLQDQGRDLQVXEPLVVmRGRGLUHLWRHPIDFHGDV
WHQWDWLYDVGHFRORQL]DomRjVTXDLVVHH[S}HGLXWXUQDPHQWH
PALAVRAS-CHAVE: Norma fundamental. Estrutura e crítica. Hi-
SyWHVHH¿FomR3RVWXODGRFLHQWt¿FR
*
Professor Adjunto de Filosofia do Direito e disciplinas afins na Faculdade de
Direito da UFMG. Graduado em Direito, Mestre em Filosofia do Direito e
Doutor em Direito e Justiça pela Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). Professor Titular de Filosofia do Direito no curso de
Graduação em Direito da FEAD. E-mail: vergiliopublius@hotmail.com
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FRQMXQWRGHGHVFULo}HVQHXWUDV³GHVLQWHUHVVDGDV´GDUHDOLGDGH6H
DOJRMXVWL¿FDRFRQKHFLPHQWRFLHQWt¿FRVHPG~YLGDpDVXDSRVVLEL-
1
Não adotamos neste trabalho a clássica noção de ideologia proposta por Marx,
que a entende como um meio superestrutural de encobrimento da realidade cuja
função é manter o poder da classe economicamente dominante. Os conceitos
de “teoria” e “ideologia” que ora utilizamos são apresentados por Bobbio em
uma página memorável: “[...] teoria é a expressão da atitude puramente
cognoscitiva que o homem assume face a uma realidade e é, portanto, constituída
por um conjunto de juízos de fato, que têm a única finalidade de informar
os outros acerca de tal realidade. A ideologia, em vez disso, é a expressão
do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma realidade,
consistindo num conjunto de juízos de valores relativos a tal realidade, juízos
estes fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o formula,
e que têm escopo de influírem sobre tal realidade. A propósito de uma teoria,
dizemos ser verdadeira ou falsa (segundo seus enunciados correspondam ou não
à realidade). Não faz sentido, ao contrário, apregoar a verdade ou a falsidade de
uma ideologia, dado que isto não descreveria a realidade, mas sobre ela influiria”
(BOBBIO, 1999: 223).
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 Andityas Soares de Moura Costa Matos
lidade de nos auxiliar a compreender o mundo para, posteriormente,
tentar transformá-lo.
Nessa perspectiva, devemos compreender desde já que o jus-
positivismo não se pretende neutro, mas sim avalorativo. Bem ao con-
trário do que sustentam seus detratores, há uma ideologia que anima
todo o pensar juspositivista, como veremos no decorrer deste texto. No
entanto, admitir o caráter ideológico do conhecimento juspositivista
– característica que, de resto, permeia todo e qualquer conhecimento
humano – não implica abrir mão de rigor e de controle metodológico,
PDVDQWHVSDUDGR[DOPHQWHVLJQL¿FDUHIRUoiORV$VVLPDQDOLVDUGD
PDQHLUDPDLV¿HOSRVVtYHOGHWHUPLQDGRREMHWRGHHVWXGRQmRpFRPR
querem os pós-modernos, heresia ou tolice. Trata-se apenas de uma
postura gnoseológica que prefere – e nessa preferência está a semente
da ideologia juspositivista – descrever a realidade mediante juízos de
IDWRUHFKDoDQGRDVSURSRVLo}HVSVHXGRFLHQWt¿FDVDVVHQWDGDVVREUH
MXt]RV GH YDORU 3RGHVH FULWLFDU WDO SRVLomR VXVWHQWDQGRVH TXH D
GHVFULomRGRUHDOFRPEDVHHPMXt]RVGHYDORUpPDLVFRQYLQFHQWHRX
SROLWLFDPHQWH UHQWiYHO 3RGHVH LQFOXVLYH SROHPL]DU HP UHODomR jV
GH¿QLo}HVGH³IDWR´H³YDORU´&RQWXGRQmRQRVSDUHFHDGPLVVtYHO
VXVWHQWDUDLQGLIHUHQFLDomRHQWUHDPEDVDVLQVWkQFLDVRQWROyJLFDVGLV-
WLQomRIXQGDPHQWDOGDTXDOSDUWHPWRGRVRVSRVLWLYLVPRVMXUtGLFRV
Por desenvolver narrativas metodologicamente controladas da
realidade jurídica, deixando assim de opinar sobre a adequabilidade
social ou axiológica de seus objetos de estudo, o juspositivismo foi
atacado por praticamente todas as demais escolas do pensamento
MXUtGLFRGHVGHRVUHDOLVWDVDWpRVDXWRSURFODPDGRVSyVSRVLWLYLVWDV
$SULQFLSDOFHQVXUDGLULJLGDDRMXVSRVLWLYLVPRVHGiQRVHQWLGRGH
D¿UPDUTXHXPDFLrQFLDLQFDSD]GHIRUQHFHUFULWpULRVSDUDDDomR
RX VHMD TXH VH OLPLWD D GHVFUHYHU DV FRLVDV FRPR VmR p HP XPD
SDODYUDXPDFLrQFLDLQ~WLO3RULVVRQRVSDUHFHXUJHQWHHQHFHVViULR
RDSURIXQGDPHQWRGRGHEDWHVREUHDIXQomRTXHXPFRQKHFLPHQWR
positivista do direito pode realizar na prática jurídica. Em termos
mais simples, podemos nos perguntar de que maneira o aparato
FRQFHLWXDOGHVHQYROYLGRSHORMXVSRVLWLYLVPRGHVGHR¿QDOGRVpFXOR
XIX pode auxiliar os operadores do direito em sua faina diária. Não
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A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO
se trata simplesmente de oferecer respostas simplistas, tal como a de
.DQWVHJXQGRDTXDODWHRULDpQHFHVViULDDXPDSUiWLFDFRQVFLHQWHH
LQIRUPDGD,VVRpXPDREYLHGDGH3DUDVHUSURItFXRRGHEDWHSUHFLVD
se verticalizar e discutir em que medida certos conceitos e estruturas
do pensamento juspositivista são, não obstante seu caráter teórico,
necessários à prática cotidiana do direito. Pois bem, dentre os vários
construtos juspositivistas sem os quais a prática jurídica nos parece
impensável, selecionamos aquele que talvez seja o mais problemático
GHWRGRVHTXHSRUPXLWRVDXWRUHVpFRQVLGHUDGRFRPRR³FDOFDQKDU
GH$TXLOHV´GRPDLVFRQVLVWHQWHVLVWHPDMXVSRVLWLYLVWDMiSURSRVWR
Referimo-nos à norma fundamental característica do normativismo
kelseniano.
$RVROKRVGRVLQLPLJRVGRSRVLWLYLVPRMXUtGLFRTXHRFODV-
VL¿FDP FRPR XPD WHRULD HTXLYRFDGD H LQVHUYtYHO SDUD D SURFHGL-
PHQWDOL]DomR GR GLUHLWR HP VRFLHGDGHV KLSHUFRPSOH[DV D QRUPD
fundamental equivaleria ao nec plus ultra dos delírios teóricos, não
GHVHPSHQKDQGRTXDOTXHUIXQomRHIHWLYDQRODERUMXUtGLFR3RULVVRHOD
mereceria ser esquecida ou, quando muito, preservada nas notas de
URGDSpGRVPDQXDLVGH)LORVR¿DGR'LUHLWRRQGHVHULDH[SRVWDFRPR
XPDFXULRVDHRFLRVDSHoDGHPXVHXVtPERORGHpSRFDVDWUDVDGDV
quando os juristas eram todos idiotas. Hoje viveríamos em dias muito
diferentes, dias brilhantemente pós-positivistas, quando os operadores
do direito se tornaram sensíveis e inteligentes, eis que descobriram
RRYRGH&RORPERUDGLFDGRQDGLVWLQomR±EDQDOQRWHPRV±HQWUH
regras e princípios.
,URQLDVjSDUWHGHYLGRjVXDIHLomRDEVWUDWDHjVXDQDWXUH]D
FRQWURYHUWLGD±¿FomRMXUtGLFDKLSyWHVHOyJLFRWUDQVFHQGHQWDOSUHV-
suposto? –, a norma fundamental nunca foi bem compreendida, a não
ser por uma pequena camarilha versada nos arcanos do normativis-
PRNHOVHQLDQR$LQGDDVVLPHGHPRGRDWpPHVPRLQFRQVFLHQWHD
QRomRGHQRUPDIXQGDPHQWDOGHVHPSHQKDSDSpLVFHQWUDLVQDSUiWLFD
MXUtGLFD2SURSyVLWRGHVWHDUWLJRpWUD]HUjOX]DIDFHWDSUDJPiWLFD
GDQRUPDIXQGDPHQWDOFRQVWUXWRHVVHQFLDOjFRQIRUPDomRGRFRWL-
GLDQRMXUtGLFRGR(VWDGRFRQWHPSRUkQHRQmRVHPDQWHVSDVVDUPRV
em revista os principais elementos teóricos necessários à compreen-
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 Andityas Soares de Moura Costa Matos A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO

são do normativismo, corrente em que surge de modo sistemático a VLGRSURSULDPHQWHQRUPDWLYLVWDVpGHVHGHVWDFDUDLQGDRVQRPHVGH

WHRULDGDQRUPDIXQGDPHQWDOWHPDTXHRFXSDUiDVHomR1DVHomR $OI5RVV&KDUOHV(LVHQPDQQ+HUEHUW+DUW-RVHSK5D]/XLV/HJD]
GLVFXWLUHPRVDQDWXUH]DHDVIXQo}HVGDQRUPDIXQGDPHQWDOSDUD y Lacambra e Norberto Bobbio, juristas que adotaram vários pontos
¿QDOPHQWHFRQFOXLUPRVQDVHomRFRPDDQiOLVHGHVXDUHODomRFRP de vista próprios do normativismo kelseniano.
a prática jurídica. Os princípios básicos do normativismo jurídico encontram-se
2. Normativismo jurídico e norma fundamental2
2QRUPDWLYLVPRpXPDHVFRODGRSHQVDPHQWRMXUtGLFRGHPD-
WUL]MXVSRVLWLYLVWDVXUJLGDQRLQtFLRGRVpFXOR;;3RUVHUMXVSRVLWLYLV-
H[SRVWRVQD³7HRULD3XUDGR'LUHLWR´³Reine Rechtslehre´GH.HOVHQ
FXMDVHJXQGD±HGH¿QLWLYD±HGLomRIRLSXEOLFDGDHP$QWHVHP
.HOVHQMiKDYLDODQoDGRDVEDVHVGRMXVQRUPDWLYLVPRQDREUD
³3UREOHPDV&DSLWDLVGH7HRULDGR'LUHLWR3~EOLFR´³Hauptproble-
me der Staatsrechtslehre´jTXDOVHVHJXLULDDSULPHLUDHGLomRGD
ta, o normativismo jurídico aceita os seus dois principais postulados,
³7HRULD3XUDGR'LUHLWR´HPHD³7HRULD*HUDOGR'LUHLWRHGR
TXDLVVHMDPDOLPLWDomRGRREMHWRGHHVWXGRDRGLUHLWRSRVWRRXVHMD
(VWDGR´HP³General Theory of Law and State´HVWDODQoDGD
efetivamente existente na realidade social, o que traz como conseqüên-
TXDQGR.HOVHQUHVLGLDQRV(VWDGRV8QLGRVGD$PpULFDSDtVSDUDR
FLDDQHJDomRGDH[LVWrQFLDGHTXDOTXHURUGHPMXUtGLFDPHWDItVLFDWDO
qual emigrou em razão de sua ascendência judaica e da ascensão do
FRPRDGRGLUHLWRQDWXUDOEDVVXQomRGHXPDSRVWXUDHSLVWHPROyJLFD
QD]LVPRQD(XURSD+iDLQGDTXHVHFLWDUD³7HRULD*HUDOGDV1RUPDV´
RULHQWDGDUXPRjDYDORUDWLYLGDGHHjFRQVWUXomRGHXPGLVFXUVRFLHQ-
³Allgemeine Theorie der Normen´REUDSyVWXPDGHTXHGHYH
Wt¿FRULJRURVRQRTXHVHSHUFHEHDLQÀXrQFLDGR&tUFXORGH9LHQDGH
VHUFRQVXOWDGDFRPRGHYLGRFXLGDGRHLVTXHUH~QHWH[WRVHDUWLJRV
&DUQDS1HXUDWKH6FKOLFN2QRUPDWLYLVPRMXUtGLFRIRLGHVHQYROYLGR
GH.HOVHQHVFULWRVHPpSRFDVPXLWRGLYHUVDVGHVXDYLGD
inicialmente por juspublicistas alemães como Edmund Bernatzik, Otto
1D7HRULD3XUDGR'LUHLWR.HOVHQVHSUHRFXSDFRPDIRUPD
0D\HUH3DXO/DEDQGTXHSDUWLUDPGRVWUDEDOKRVIXQGDPHQWDLVGH&DUO
GRGLUHLWRDFROKHQGRDOLomRGH$ULVWyWHOHVSDUDTXHPVypSRVVtYHO
Friedrich von Gerber e Georg Jellinek para tentar fundar uma visão
fazer ciência do universal, eis que o particular escapa à capacidade
FLHQWt¿FRREMHWLYDGR'LUHLWRHGR(VWDGR&RQWXGRVRPHQWHDSDUWLU
generalizante e sintetizante própria do entendimento humano. E no que
da obra de Hans Kelsen (1881-1973) o normativismo jurídico ganhou
diz respeito à experiência jurídica, somente a forma se mostra de ma-
GHQVLGDGH WHyULFR¿ORVy¿FD SDVVDQGR D VHU LQWHQVDPHQWH GHEDWLGR
QHLUDXQLYHUVDOVHQGRRVHXFRQWH~GRLQ¿QLWDPHQWHYDULiYHOVHJXQGR
nos círculos acadêmicos. Foram normativistas, em maior ou menor
GHWHUPLQDGDVFRQGLo}HVKLVWyULFDVSROtWLFDVHFRQ{PLFDVLGHROyJLFDV
JUDX$GROI-XOLXV0HUNO$OIUHG9HUGURVV)HOL[.DXIIPDQQ)HOL[
etc. Por isso Kelsen se vê obrigado a conceber um fundamento de
Schreier, Franz Weyr e Josef Kunz, autores que, ao lado de Kelsen,
validade para o direito que seja formal e vazio – tal como veremos na
LQWHJUDUDPD(VFRODGH9LHQDWiener Schule$LQGDTXHQmRWHQKDP
VHomR±GHPRGRDRS{ORjLQGHWHUPLQDomRHDRSDUWLFXODULVPR
2
A presente seção é, em boa medida, uma síntese das principais posições do SUySULRGRVFULWpULRVPRUDLVHSROtWLFRVVRERVTXDLVERDSDUWHGDV
normativismo kelseniano, razão pela qual não indicamos a cada passo a referência
cabível, o que coalharia o texto de notas absolutamente desnecessárias. Contudo,
quando nos referimos a alguma colocação polêmica, que não se trate, portanto,
de doutrina já assentada, citamos a fonte. Remetemos o leitor interessado a
apresentações gerais e sistemáticas do normativismo kelseniano às seguintes
obras: AFONSO, 1984; BOBBIO, 1999 e 2007; DIMOULIS, 2006; GOMES,
2000; KELSEN, 1986, 1997 e 2000; MATOS, 2006 e PAULSON, 2007.
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WHRULDVMXUtGLFDVGDpSRFDIRUDPJHVWDGDV+2125e
Não podemos acusar Kelsen de ser obscuro quanto às inten-
o}HVTXHLQIRUPDPVHXapproach teórico. Logo na primeira linha da
SULPHUDSiJLQDGDHGLomRGH¿QLWLYDGD³7HRULD3XUDGR'LUHLWR´HOH
GHFODUD³$7HRULD3XUDGR'LUHLWRpXPDWHRULDGR'LUHLWRSRVLWLYR±GR
'LUHLWRSRVLWLYRHPJHUDOQmRGHXPDRUGHPMXUtGLFDHVSHFLDOeWHRULD
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JHUDOGR'LUHLWRQmRLQWHUSUHWDomRGHSDUWLFXODUHVQRUPDVMXUtGLFDV TXHYrPVHGHGLFDQGRDRHVWXGRGDVGLIHUHQoDVHVWUXWXUDLVHQWUHSULQFt-
QDFLRQDLV RX LQWHUQDFLRQDLV´ .(/6(1   SDODYUDV PXLWR SLRVHUHJUDV±OHPEUHPRQRVGH$XOLV$DUQLR.ODXV*QWKHU5REHUW
VLPLODUHVjTXHODVPHGLDQWHDVTXDLV-RKQ$XVWLQUHVXPHRHVFRSRGH $OH[\H5RQDOG'ZRUNLQ$$51,2$/(;<DHE
VXDFpOHEUHREUD³The province of jurisprudence determined´ ':25.,1(66(5H*h17+(5DSHQDVSDUD
Having determined the province of jurisprudence, I shall distinguish FLWDURVPDLVGHVWDFDGRV±RQRUPDWLYLVPRMXUtGLFRFRQWHPSRUkQHR
general jurisprudence, or the philosophy of positive law, from what may sustenta que as regras são normas jurídicas que apresentam alto nível
be styled particular jurisprudence, or the science of particular law; that GH FRQFUHomR FRPSRUWDQGRVH PHGLDQWH XPD OyJLFD GH DSOLFDomR
is to say, the science of any such system of positive law as now actually binária (ou X ou Y), enquanto os princípios são normas jurídicas que
REWDLQVRURQFHDFWXDOO\REWDLQHGLQDVSHFL¿FDOO\GHWHUPLQHGQDWLRQ
RUVSHFL¿FDOO\GHWHUPLQHGQDWLRQV´$867,1LLL DSUHVHQWDPPDLRUQtYHOGHDEVWUDomRHTXHQRPRPHQWRGDDSOLFD-
omRSRGHPVHUFRPSDWLELOL]DGRVHQWUHVLVHPTXHWDOJHUHDQWLQRPLDV
O centro gravitacional do projeto universalista de Kelsen OyJLFRQRUPDWLYDV&RQWXGRWDQWRUHJUDVTXDQWRSULQFtSLRVVmRQRUPDV
radica-se no conceito de norma jurídica, dever-ser objetivo mediante jurídicas de caráter coercitivo e, portanto, integram o campo de estudo
o qual caracterizamos o direito enquanto uma ordem sancionatória MXVSRVLWLYLVWD',028/,6/81$5',
diversa das demais – v.g. PRUDOLGDGH VRFLDO UHOLJL}HV ± JUDoDV j 3RURXWURODGR.HOVHQLQVLVWHQDGLIHUHQoDH[LVWHQWHHQWUHDV
possibilidade de reconduzir todos os elementos do sistema a uma normas jurídicas, objetos formais da ciência do direito, e as propo-
LQVWkQFLDXQL¿FDGRUDFKDPDGDGHQRUPDIXQGDPHQWDOGrundnorm) VLo}HV MXUtGLFDV Rechtssätze TXH DV GHVFUHYHP$V SULPHLUDV VmR
*2<$5')$%5(  S  H .(/6(1 D S $V
normas jurídicas são comandos dirigidos à conduta humana que
SHUPLWHPSURtEHPFRPDQGDPHGH¿QHPFRPSHWrQFLDVDSUHVHQWDQGR
VDQo}HVVRFLDOPHQWHRUJDQL]DGDVHLPDQHQWHVQRTXHVHGLIHUHQFLDP
UHVSHFWLYDPHQWHGDVQRUPDVVRFLDLVHGDVQRUPDVUHOLJLRVDV$LQGDTXH
o normativismo jurídico não se resolva em mero logicismo, devemos
DWHQWDUSDUDDHVWUXWXUDOyJLFDGDVDQomRTXHQmRVHLGHQWL¿FDSXUDH
VLPSOHVPHQWHFRPXPDSHQDFRQ¿JXUDQGRDQWHVXPDFRQVHTXrQFLD
criadas pelas fontes produtoras de direito, tais como o legislador e o
juiz; as segundas constituem o resultado teórico do estudo das normas
MXUtGLFDVFDEHQGRDVXDFULDomRXQLFDPHQWHDRFLHQWLVWDGRGLUHLWR
Este não estatui normas jurídicas, apenas as descreve mediante pro-
FHGLPHQWRVFLHQWt¿FRVHWHQGRHPYLVWDDFDWHJRULDEiVLFDTXHOKHV
confere realidade, qual seja, a validade.
2QRUPDWLYLVPRNHOVHQLDQR±WDPEpPFKDPDGRGHQRUPD-
WLYLVPROyJLFR±EDVHLDVHQDULJRURVDGLVWLQomRHQWUHDVHVIHUDVGR
QRUPDWLYD±SRVLWLYDVDQomRSUHPLDORXQHJDWLYDVDQomRSXQLWLYD ser (Sein) e do dever-ser (Sollen), díade que funda o dualismo epis-
– no sentido lógico, ou seja, trata-se de um resultado que se liga ao WHPROyJLFRHQWUHIDWRHYDORUGHXPODGRHFRJQLomRHYROLomRGH
pressuposto normativo estatuído na primeira parte da norma, pela
RXWUR$QRUPDMXUtGLFDpHQFDUDGDFRPRXPSRVVtYHOHVTXHPDGH
qual se seleciona certos fato ou atos que, a partir de então, passam a
LQWHUSUHWDomRGHFRQGXWDVKXPDQDVFRQ¿JXUDQGRVHORJLFDPHQWHHQ-
ser interpretados como jurígenos.
TXDQWRVHQWLGRREMHWLYRGHDWRVGHYRQWDGH$REMHWLYLGDGHGDVQRUPDV
$ QRUPD MXUtGLFD p D HVWUXWXUD PDLV DEUDQJHQWH H DR PHV-
MXUtGLFDVGHFRUUHGDFLUFXQVWkQFLDGHVHIXQGDPHQWDUHPDVLQIHULRUHV
mo tempo mais simples do universo jurídico, podendo se mostrar
nas superiores, compreendidas sistematicamente como elementos da
enquanto regra ou princípio, motivo pelo qual muitas das críticas
SLUkPLGHQRUPDWLYDStufenbau) cujo ápice, no direito interno de cada
FRQWHPSRUkQHDVGLULJLGDVDRQRUPDWLYLVPRFDUHFHPGHVHQWLGR7DO
(VWDGRUDGLFDVHQD&RQVWLWXLomR'DtDH[LVWrQFLDGDQRUPDMXUtGLFD
corrente jamais desprezou a ideia de princípio jurídico, central para o
ser formal e não factual.
QHRFRQVWLWXFLRQDOLVPR'LDORJDQGRFRP-RVHI(VVHUHRXWURVDXWRUHV

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 47 48 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
 Andityas Soares de Moura Costa Matos A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO

$RFRQWUiULRGHDXWRUHVFRPR3RQWHVGH0LUDQGD3217(6 Talvez o ponto mais controverso do normativismo jurídico

'( 0,5$1'$ 3 Kelsen não diferencia os planos de exis- HVWHMD QD GH¿QLomR GD QDWXUH]D GD QRUPD IXQGDPHQWDO WHPD TXH
WrQFLD H GH YDOLGDGH GD QRUPD &RQIRUPH HQVLQD R QRUPDWLYLVPR H[SORUDUHPRV HP SURIXQGLGDGH QD SUy[LPD VHomR .HOVHQ YDFLORX
lógico, ambos coincidem. Para que a norma jurídica exista, i. e., seja GXUDQWH DQRV QD VXD FDUDFWHUL]DomR WHQGRD FODVVL¿FDGR HQTXDQWR
YiOLGDpSUHFLVRTXHWHQKDVLGRFULDGDSRUDXWRULGDGHVFRPSHWHQWHV ¿FomRMXUtGLFDEDVHDQGRVHQDREUDGH9DLKLQJHULQWLWXODGD³)LORVR¿D
e segundo procedimentos juridicamente adequados, do que decor-
re a máxima jusnormativista segundo a qual o direito regula a sua
SUySULDFULDomR$GHPDLVpSUHFLVRTXHDQRUPDMXUtGLFDDSUHVHQWH
FRQIRUPLGDGHPDWHULDOHPUHODomRDRRUGHQDPHQWRDTXHSHUWHQFH$
WDUHIDGHYHUL¿FDomRGHVVDSHUWLQrQFLDFDEHDRVyUJmRVDSOLFDGRUHVGR
GR FRPRVH´ ³Die Philosophie des Als-Ob´ H FRPR KLSyWHVH
IXQGDQGRVHQDLQWHUSUHWDomRGH.DQWOHYDGDDHIHLWRSRU&RKHQ1mR
REVWDQWHWDOLQVHJXUDQoD.HOVHQHVWDYDSOHQDPHQWHFRQVFLHQWHGHTXH
DQRomRGHQRUPDIXQGDPHQWDOHUDDFKDYHQHFHVViULDSDUDVHIXQGDU
uma teoria do direito livre da metafísica e do sincretismo metodológico
GLUHLWRTXHDVVLPUHDOL]DPDFKDPDGDLQWHUSUHWDomROHJtWLPD8PD
YH]H[LVWHQWHDQRUPDMXUtGLFDSRGHRXQmRVHUH¿FD]'HQRPLQD-
PRVH¿FiFLDDSURGXomRIDFWXDOGHHIHLWRVQRUPDWLYRVRTXHSRGH
VHGDUGHPDQHLUDDXWRPiWLFDFRPRQRFDVRGHQRUPDVTXHGH¿QHP
FRPSHWrQFLDVHVLWXDo}HVMXUtGLFDVRXGHIRUPDGLIHULGDTXDQGRKi
+$00(5$LQGDTXHDHYROXomRFURQROyJLFRFRQFHLWXDO
da teoria da norma fundamental não seja clara, deve-se ter em mente
R~OWLPRWHVWHPXQKRGH.HOVHQFRQWLGRQDVHJXQGDHGLomRGD³7HRULD
3XUDGR'LUHLWR´TXDQGRHQWmRHOHQmRGHL[DG~YLGDVTXDQWRDRFDUiWHU
KLSRWpWLFROyJLFRWUDQVFHQGHQWDOHPSUHVWDGRjQRUPDIXQGDPHQWDO
DRFXPSULPHQWRHVSRQWkQHRGRGHYHUMXUtGLFRSRUSDUWHGRVMXULV-
(VVHHQWHQGLPHQWRpFRQ¿UPDGRSHODIDPRVDFDUWDGHGHDJRVWRGH
GLFLRQDGRVRXEDDSOLFDomRFRHUFLWLYDGHVDQo}HVQHJDWLYDVSHORV
órgãos autorizados a tanto.
.HOVHQ VXEOLQKD D GHVYLQFXODomR H[LVWHQWH HQWUH DV HVIHUDV
GDYDOLGDGHHGDH¿FiFLDDTXHODGHQDWXUH]DIRUPDOOyJLFDHHVWD
material, sociológica. Para ser válida, a norma jurídica não precisa ser
H¿FD]&RQWXGRXPPtQLPRGHH¿FiFLDpFRQGLomRGHYDOLGDGHYLVWR
que a norma jurídica válida pode perder tal atributo ao longo do tem-
SRHPUD]mRGRGHVXVR0DVRPtQLPRGHH¿FiFLDQmRpSUHVVXSRVWR
da validade, papel reservado exclusivamente à norma fundamental.
$QRUPDWLYLGDGHVRFLDO±RIDWRGHDVSHVVRDVFXPSULUHPDVQRUPDV
jurídicas que lhes parecem advir de uma fonte legitimada para criar
GLUHLWR±QmRpVX¿FLHQWHSDUDH[SOLFDURFDUiWHUHVSHFL¿FDPHQWHMXUt-
QDTXDO.HOVHQH[S{VD5HQDWR7UHYHVDVXDFRQFHSomRGHQRUPD
fundamental,4 apresentando-a como norma jurídica não-positiva, i.e.,
XPDQRUPDTXHQmRpSRVWDSRUDWRVKXPDQRVGHYRQWDGHPDVDQWHV
pressuposta pelo pensamento jurídico.
4
Para o texto da carta em francês, o primeiro a ser divulgado desde a sua escrita
em 1933, cf. TREVES, 1987: 333-335. O documento foi traduzido para o inglês
e publicado em KELSEN, 2007b: 169-175. O original alemão e uma tradução
para o italiano devida a Agostino Carrino estão disponíveis em KELSEN; e
TREVES, 1992: 55-58 e 51-54, respectivamente. Para uma análise da carta –
infelizmente ainda desconhecida de boa parte dos estudiosos brasileiros –, cf.
MATOS, 2006: 66-68. O conhecimento e o estudo da missiva são importantes
GLFRGRGLUHLWR+2125e6HJXQGR.HOVHQpQHFHVViULR
SURFHGHUDXPDREMHWLYDomRGRFRPDQGRQRUPDWLYRVRESHQDGHQmR
conseguirmos distinguir as normas estatais daquelas postas por um
EDQGRGHPD¿RVRV3DUDWDQWRpLPSUHVFLQGtYHODQRomRGHQRUPD
fundamental.
3
Cf. também os estudos de MELO (2008 e 2010) fundados na doutrina
ponteana.
Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
para se evitar interpretações anacrônicas segundo as quais a caracterização final
da norma fundamental kelseniana se daria enquanto ficção jurídica, equívoco
cometido por José Florentino Duarte em sua introdução a KELSEN, 1986:
VIII-IX. Enveredam pelo mesmo caminho – que nos parece incorreto – Corres
(CORREAS, 2001 e 2007: 62-66), Dulce (DULCE, 2001) e Saliba (SALIBA,
2004: 10), apenas para citar alguns exemplos. Paulson, que conhece bem a carta,
prefere creditar à fase cética de Kelsen a sua suposta mudança de orientação
no que se refere à natureza da norma fundamental. Cf. KELSEN, 2007b: 174,
n. 15. O tema é discutido com vagar na subseção 3.1 deste artigo.
49 50 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
 Andityas Soares de Moura Costa Matos
3. Natureza da norma fundamental
3.1. Ficção jurídica
Em diversos momentos de sua obra, Kelsen reelaborou o
HVWDWXWRWHyULFRGDQRUPDIXQGDPHQWDOHVIRUoRTXHVHJXQGR5D]
nunca foi totalmente bem-sucedido, o que permitiu o surgimento
WDQWRGHIHUR]HVGHWUDWRUHVTXDQWRGH¿pLVGHIHQVRUHVGD7HRULD3XUD
A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO
LQWURGXomRSUHSDUDGDSRU5LQJKRIHUH:DOWHU0XLWRVGRVWH[WRVTXH
FRPS}HPDREUDWrPGDWDomRLQFHUWDHQmRVHVDEHH[DWDPHQWHTXDQ-
do Kelsen pensou a GrundnormHQTXDQWR¿FomRMXUtGLFD'HYLGRDR
IDWRGHD³7HRULD*HUDOGDV1RUPDV´VHUDGHUUDGHLUDREUDGH.HOVHQ
passou-se a acreditar acriticamente que ele havia mudado a opinião
H[SRVWDQD~OWLPDHGLomRGD³7HRULD3XUDGR'LUHLWR´QDTXDODQRU-
PDIXQGDPHQWDOpWUDWDGDHQTXDQWRKLSyWHVHOyJLFRWUDQVFHQGHQWDO
-RVp)ORUHQWLQR'XDUWHWUDGXWRUGD³7HRULD*HUDOGDV1RUPDV´SDUD
GR'LUHLWR5$=3DUHFHTXHDVSULPHLUDVWHQWDWLYDVGH
RSRUWXJXrVHVFUHYHXFRPHQWXVLDVPRQDVXDLQWURGXomRGDWDGDGH
Kelsen o levaram a conceber a norma fundamental enquanto uma

¿FomR MXUtGLFD (OH WHULD VH EDVHDGR QR HQVDLR GH +DQV 9DLKLQJHU
GDWDGRGH±³)LORVR¿DGRFRPRVH´³Die Philo- 8PGRVSRQWRVUHWL¿FDGRVSRU.HOVHQHGHJUDQGHUHSHUFXVVmRUHIHUHVH
sophie des Als-Ob´±VHJXQGRRTXDOXPD¿FomRpDOJRFRQWUDGL- jQRUPDIXQGDPHQWDOSRUTXHPXLWRMiVHH[SOLFRXVREUHHVWDPDWpULDH
WyULRHPUHODomRjUHDOLGDGHHDVLPHVPD9$,+,1*(5 WXGRRTXHGLVVHUDPHVWiDJRUDUHYRJDGR$VVLPDQRUPDIXQGDPHQ-
WDOQHVWHWUDWDGRUHFHEHXFRQFHLWXDomRQRYDHGH¿QLWLYDFRUULJLQGRR
FDUDFWHUtVWLFDVTXHSRGHULDPVHUYHUL¿FDGDVQDQRUPDIXQGDPHQWDO autor mesmo, o que escrevera anteriormente ao tratá-la como hipótese.
6$/,%$&RPHIHLWRHODQmRpSRVWDSRUQHQKXPDWR (VVHDFRQWHFLPHQWRUHSLWRpGDPDLVHOHYDGDLPSRUWkQFLDSRLVWRUQRX
UHDOGHYRQWDGHFRQWUDGLomRFRPDUHDOLGDGHHQmRSUHVVXS}HTXDO- LQYiOLGR QmR DSHQDV R TXH HOH SUySULR H[SODQDUD FRPR WDPEpP WXGR
quer norma superior que lhe conceda sentido objetivo de dever-ser, quanto outros divulgaram sobre a Teoria da Norma Fundamental. No
novo conceito, a norma fundamental – a que fundamenta a validade de
YLRODQGRSRUWDQWRVXDSUySULDFRQGLomRGHH[LVWrQFLDTXDOVHMDD XPRUGHQDPHQWRMXUtGLFR±SDVVRXDVHUYLVWDFRPRXPDQRUPD¿FWtFLD
YDOLGDGHFRQWUDGLomRFRQVLJRPHVPD$¿FomRVHULDDOJRGLIHUHQWH
GDKLSyWHVHSRUTXHHVWDSUHFLVDVHUFRPSURYDGD'HVGHTXHGHVFUHYD
DUHDOLGDGHGHIRUPD¿HODKLSyWHVHpGLWDYHUGDGHLUD6XDIXQomRp
H[WLUSDU FRQWUDGLo}HV GD WHVVLWXUD GR FRQKHFLPHQWR FLHQWt¿FR 3RU
VHXWXUQRD¿FomRFRQYLYHFRPFRQWUDGLo}HVHH[LVWHSDUDOLGDUFRP
DUHDOLGDGHQmRSDUDGHVFUHYrODGHPDQHLUDREMHWLYD$VVLPFRPR
D KLSyWHVH D ¿FomR WDPEpP p SURYLVyULD 8PD YH] DWLQJLGR R VHX
objetivo – fundar uma visão inventada e não descoberta da realidade
PHUDPHQWHSHQVDGDSURGXWRGHXPPHURDWRGHYRQWDGHWDPEpP¿F-
WtFLR³XPDDXWrQWLFDRXµYHUGDGHLUD¶¿FomRQRVHQWLGRGD)LORVR¿D
GR&RPR6HYDLKLQJHULDQD3RUFRQVHJXLQWHpGHVHFRQVLGHUDUTXHD
QRUPDIXQGDPHQWDOQRVHQWLGRGD)LORVR¿DGR&RPR6HYDLKLQJHULDQD
QmRpXPDKLSyWHVH±FRPRHXPHVPRRFDVLRQDOPHQWHDTXDOL¿TXHL±H
VLPXPD¿FomRTXHVHGLIHUHQFLDGHXPDKLSyWHVHSHORIDWRGHTXHHOD
pDFRPSDQKDGDSHODFRQVFLrQFLDRXGLJRGHYHVHUDFRPSDQKDGDSHOR
IDWRGHTXHDUHDOLGDGHQmROKHFRUUHVSRQGH´,Q .(/6(19,,,
IX).
±HODSRGHVHUDEDQGRQDGD6$/,%$
$SHVDUGDIRUPXODomRGDGrundnormHQTXDQWR¿FomRHVWDU
SUHVHQWHQD³7HRULD*HUDOGDV1RUPDV´±HPWHVHD~OWLPDREUDGH
.HOVHQ±FRQVLGHUiODFRPRGH¿QLWLYDRXFRPRVLJQRGDSUHWHQVD
PXGDQoDGHSRVLomRGH.HOVHQ±GDKLSyWHVHOyJLFRWUDQVFHQGHQWDOj
¿FomR±SDUHFHQRVHUU{QHR$³7HRULD*HUDOGDV1RUPDV´IRLHGLWDGD
SHOR,QVWLWXWR+DQV.HOVHQHPHUH~QHYiULRVWH[WRVGH.HOVHQ
DOJXQVGHOHVQmRGHVWLQDGRVjSXEOLFDomRFRQIRUPHVHSRGHOHUQD
Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
(QWUHWDQWRHP±XPDQRDSyVDHGLomREUDVLOHLUDGD³7H-
RULD*HUDOGDV1RUPDV´±HVVDLGpLDSHUGHXIRUoDJUDoDVjSXEOLFDomR
GHXPDFDUWDDWpHQWmRLQpGLWDGH.HOVHQGDWDGDGHGHDJRVWRGH
±EHPDQWHVSRUWDQWRGDIRUPXODomRGH¿QLWLYDGD7HRULD3XUD
GR'LUHLWR±HGHVWLQDGDD5HQDWR7UHYHV1HVVHWH[WR.HOVHQD¿UPD
expressamente que no início de seus trabalhos pensara em construir a
QRUPDIXQGDPHQWDOLQVSLUDQGRVHQDV¿Fo}HVGH9DLKLQJHUPDVFRPR
tal fora muito problemático, optou pela via kantiana e, com base em
51 52 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
 Andityas Soares de Moura Costa Matos
&RKHQDUTXLWHWRXDQRUPDIXQGDPHQWDOHQTXDQWRXPDKLSyWHVHOyJLFR
WUDQVFHQGHQWDO-iHPQRDUWLJR³Zur Theorie der juristischen
Fiktionen´ .HOVHQ DSRQWDYD GLYHUVRV SUREOHPDV QD TXDOL¿FDomR
¿FWtFLD GH FRQVWUXWRV QRUPDWLYRV HLV TXH HOHV QXQFD SRGHULDP VHU
FRQWUDGLWyULRVHPUHODomRjUHDOLGDGHFRPRH[LJLD9DLKLQJHUGDGR
que esses dois planos – o ser da realidade e o dever-ser das normas
– não se confundem e existem concomitantemente enquanto esferas
{QWLFDV GLYHUVDV (P VHJXLGD QR DQR GH  .HOVHQ YROWRX D VH
UHIHULU j ³HVFODUHFHGRUD´ WHRULD GD ¿FomR GH 9DLKLQJHU GHVVD YH]
QR SUHIiFLR GD VHJXQGD HGLomR GRV ³3UREOHPDV &DSLWDLV GH7HRULD
GR'LUHLWR3~EOLFR´QmRVHPDQWHVUHYHODUDRVOHLWRUHVDGtYLGDTXH
A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO
LQVXVWHQWiYHODGH¿QLomRGDQRUPDIXQGDPHQWDOHQTXDQWR¿FomR(VWD
pDOLiVD~QLFDLQWHUSUHWDomRTXHVHFRDGXQDFRPR¿UPHLQWHQWR
TXHWLQKD.HOVHQGHQmRPDLVVHGHEUXoDUVREUHD³7HRULD3XUDGR
'LUHLWR´ DSyV D SXEOLFDomR GH VXD VHJXQGD HGLomR 1mR SRUTXH VH
WUDWDVVHGHGRXWULQDSURQWDHDFDEDGDPDVVLPGHYLGRjFRQYLFomR
GRDXWRUGHTXHDVXDFRQWULEXLomRWLQKDVHHVJRWDGRFRPDYHUVmR
GH¿QLWLYDGD³7HRULD3XUDGR'LUHLWR´HGLWDGDKiH[DWRVDQRVHP
 TXDQGR VH LQLFLDYD D FKDPDGD ³IDVH FpWLFD´ GR SHQVDPHQWR
NHOVHQLDQR FRQIRUPH D SHULRGL]DomR SURSRVWD SRU 3DXOVRQ Basta
FRQIHULURSUHIiFLRGROLYURSDUDOiVXUSUHHQGHUDGLVSRVLomRGH.HOVHQ
GHQmRPDLVPRGL¿FDUDVXDREUDFDSLWDO1RTXHOKHGL]LDUHVSHLWR
WLQKDFRP&RKHQ.(/6(1D(VVHVHVFULWRVGHH
GHPRQVWUDPTXH.HOVHQFRQKHFLDDREUDGH9DLKLQJHUWHQGR
FRQWXGRSUHIHULGRIXQGDUVHHP&RKHQSDUDDHVWUXWXUDomRGDQRUPD
IXQGDPHQWDO$VVLPRFDPLQKRGDHYROXomRFRQFHLWXDOGDGrundnorm
QmRpGDKLSyWHVHj¿FomRPDVGD¿FomRjKLSyWHVH1DVSDODYUDVGH
Kelsen dirigidas a Treves:
0rPHVLGDQVXQFHUWDLQVHQVLOHVWH[DFWG¶DI¿UPHUTXHODWKpRULHGHOD
QRUPHIRQGDPHQWDOHWURXYHVRQRULJLQHGDQVOHSULQFLSHGHO¶pFRQRPLH
GHODSHQVpHGH0DFKHWGDQVODWKpRULHGHOD¿FWLRQGH9DLKLQJHUMH
RGHVHQYROYLPHQWRGD7HRULD3XUDGR'LUHLWRWHUPLQDYDDOLFDEHQGR
aos seus discípulos continuar o seu trabalho. E, como sabemos, nessa
VHJXQGDHGH¿QLWLYDHGLomRDQRUPDIXQGDPHQWDOpGHVFULWDHQTXDQWR
hipótese lógico-transcendental.
3.2. Hipótese lógico-transcendental
3.2.1. A inÀurncia de CoKen
/HYDQGR HP FRQVLGHUDomR TXH D QRUPD IXQGDPHQWDO QmR
SUpIqUHUHQRQFHUjODVXLWHGHQRPEUHX[PDOHQWHQGXVjP¶LQVSLUHUGH SRGH VHU DXWRHYLGHQWH .(/6(1   .HOVHQ D FRQFHEH
ces deux auteurs. /¶HVVHQWLHOHVWTXHODWKpRULHGHODQRUPHIRQGDPHQWDOH
GpFRXOHHQWLqUHPHQWGHODPpWKRGHGHO¶K\SRWKqVHGpYHORSSpHSDU&RKHQ
enquanto hipótese lógico-transcendental na esteira do criticismo
75(9(6
2UDpMXVWDPHQWHRFDUiWHUKLSRWpWLFRGDQRUPDIXQGDPHQ-
tal – enquanto se trata de algo não demonstrado, mas assumido – o
elemento que serve para opô-la à metafísica jusnaturalista, tarefa
central da teoria jurídica kelseniana. Os pressupostos transcendentais
QHFHVViULRVjFRJQLomRGHTXDLVTXHUREMHWRVQmRVHUHVROYHPHQTXDQWR
NDQWLDQRUHLQWHUSUHWDGRSRU+HUPDQQ&RKHQ7 fundador
H¿JXUDH[SRQHQFLDOGDHVFRODGH0DUEXUJRRTXDOFRQWRXHQWUHRV
VHXVGLVFtSXORVFRPSHQVDGRUHVGRSRUWHGH(UQVW&DVVLUHU.HOVHQ
6
Segundo Paulson, a obra de Kelsen pode ser dividida em três fases. A primeira,
denominada “construtivismo crítico”, se daria entre 1911 e 1921, abarcando um
período de transição de 1913 a 1921. A segunda fase – chamada de “clássica” –
PHUDVDFHLWDo}HVGHHQWHV¿FWtFLRV+$00(5&RPR
YHUHPRVQDSUy[LPDVXEVHomRKiFRQGLo}HVQHFHVViULDVSDUDWRUQDU
WDLVREMHWRVFLHQWL¿FDPHQWHSHQViYHLVPRWLYRSHODTXDOQRVSDUHFH
5 7
Esse importante artigo foi recolhido na obra coletiva organizada por Hans
Klecatsky dedicada à Escola de Viena. Cf. KELSEN, 1968.
Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 53 54
incluiria a maior parte do labor de Kelsen, englobando os anos de 1921 a 1960
e apresentando dois períodos distintos: o neokantiano (de 1921 a 1935) e o
híbrido (1935-1960), que mesclaria elementos analíticos às visões neokantianas
já assentadas. Por fim, a terceira e última fase seria a “cética”, que iria de 1960
até a morte de Kelsen em 1973 (PAULSON, 2007: xxvii).
Para uma análise das relações entre o pensamento de Cohen e o de Kelsen, cf.
EDEL, 2007.
Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
 Andityas Soares de Moura Costa Matos A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO

MXOJDTXHWRGDVDVWHQWDWLYDVQHRNDQWLDQDVGHIXQGDUXPDFRJQLomR 6HJXQGR&RKHQDRID]HUWRGRFRQKHFLPHQWRGHSHQGHUGDV
HVSHFL¿FDPHQWHMXUtGLFDIDOKDUDPVHQGRDVXD7HRULD3XUDGR'LUHLWR LQWXLo}HVSXUDVGHHVSDoRHWHPSRHFRPLVVRIXQGDUDGLFRWRPLDTXH
DSULPHLUDHPSUHVDEHPVXFHGLGDQHVVHVHQWLGR+$00(5 separa a coisa em si incognoscível (noumenon) e a coisa percebida
UD]mRSHODTXDOHOHQmRpXPPHURLPLWDGRUGRVSHQVDGRUHV pelo sujeito (fenômeno), Kant teria negado a possibilidade de qual-
de Marburgo ou de Heidelberg.8$GHPDLVSDUHFHQRVLPSRUWDQWHIULVDU TXHUFRJQLomRREMHWLYDGDUHDOLGDGHeFRQWUDWDOFRQFOXVmRTXHVH
TXH.HOVHQDSURYHLWDGH&RKHQDSHQDVDVXDUHÀH[mRHSLVWHPROyJLFD HUJXHRSHQVDPHQWRGH&RKHQ3DUDDOpPGDVLQWXLo}HVGHHVSDoRH
HLVTXHDVXD¿ORVR¿DSUiWLFD±FRPRGHUHVWRDGRSUySULR.DQW± tempo e de todo o aparato cognitivo descrito por Kant – que seriam
HVWDULDLPSUHJQDGDGHPHWDItVLFD('(/'DtRPpULWRHD REMHWRV GD 3VLFRORJLD H GD 1HXUR¿VLRORJLD MDPDLV GD )LORVR¿D ±
RULJLQDOLGDGHGH.HOVHQDRSURSRUXPDDSOLFDomRGRVSULQFtSLRVFUtWL- &RKHQDQVHLDGHPRQVWUDUFRPRpSRVVtYHOYDOLGDUGHIRUPDREMHWLYD
FRVGH.DQWH&RKHQDXPWLSRGHPDWHULDOTXHDWpHQWmRVyWLQKDVLGR
SHQVDGRHPWHUPRVQmRFLHQWt¿FRVLQFOXVLYHSRUHVVHVGRLV¿OyVRIRV
5HFRQKHFHQGRHPVXDGtYLGDFRP&RKHQ±HPHVSHFLDOFRPD
VXD³eWLFDGD9RQWDGH3XUD´±.HOVHQDGPLWHWHUDSUHQGLGRFRPHOH
TXHDRULHQWDomRHSLVWHPROyJLFDFULDVHXSUySULRREMHWRJHUDQGRR
MXt]RVFLHQWt¿FRV('(/3DUDWDQWRHOHODQoDPmR
GRFRQFHLWRSODW{QLFRGHKLSyWHVHTXHQDGDWHPDYHUFRPDQRomR
PRGHUQDVHJXQGRDTXDOXPDKLSyWHVHVHULDXPWLSRGHYHUGDGHSUp-
via e provisória a ser testada e validada no campo empírico mediante
DH[SHULPHQWDomR3DUD3ODWmRH&RKHQDVKLSyWHVHVFLHQWt¿FDVVmR
logicamente a partir de certa origem (Ursprung.(/6(1D LPXQHVjWHVWDJHPHPStULFDUHÀHWLQGRWDOHTXDODVGH¿QLo}HVHRV
H[DWDPHQWHFRPRRFRUUH FRPDLQRYDGRUDSURSRVWDGD QRUPD
fundamental.9 Todavia, ainda que a teoria kelseniana apresente grande
RULJLQDOLGDGHpLQHJiYHODVXDOLJDomRFRPDGRXWULQDGH&RKHQD
TXDOSDVVDPRVDH[SRUGHPDQHLUDVLQWpWLFD
$WHRULDGDKLSyWHVHGHVHQYROYLGDSRU&RKHQHSRVWHULRUPHQWH
aproveitada por Kelsen para o desenvolvimento da Grundnorm pode
D[LRPDV PDWHPiWLFRV FHUWDV SUHVVXSRVLo}HV QHFHVViULDV D WRGR H
qualquer juízo ulterior.
&RQWXGRGLIHUHQWHPHQWHGH3ODWmR&RKHQDGX]TXHDVKLSy-
teses não apresentam natureza metafísica, sendo sempre sujeitas à
PRGL¿FDomR1mRVHWUDWDSRUWDQWRGHSUHVVXSRVWRVLQFRQGLFLRQDLV
mas de produtos do pensamento que servem como fundamento para
VHUYLVWDFRPRXPDWHQWDWLYDGHVXSHUDomRGRSVLFRORJLVPRSUHVHQWH DFRJQLomRFLHQWt¿FD('(/'HPRGRFDUDFWHUtVWLFRDR
QD³&UtWLFDGD5D]mR3XUD´GH.DQW'HDFRUGRFRP&RKHQD)LORVR¿D se questionar sobre o que torna possível ou estabelece o mais alto
VHUHVXPHj(SLVWHPRORJLDMiTXHVHXREMHWRQmRpRPXQGRPDWHULDO SULQFtSLRFLHQWt¿FR&RKHQUHVSRQGHQDGDDQmRVHUHOHPHVPR3RU
PDV VLP D FRJQLomR GHVVH PXQGR ('(/  S  3RU LVVR GH¿QLomRQmRSRGHKDYHUDXWRULGDGHVXSHULRUDRPDLVDOWRSULQFtSLR
&RKHQHQWHQGHTXHWRGRFRQKHFLPHQWRFLHQWt¿FRGHYHVHDXWRIXQGDU ('(/.HOVHQXWLOL]DHVVHPHVPRDUJXPHQWRSDUDH[SOL-
legitimando-se epistemologicamente, proposta aceita sem ressalvas car a natureza da norma fundamental, tema que será retomado à frente
SRU.HOVHQGHVGHTXDQGRHOHHQWUHWpPRVSULPHLURVFRQWDWRV quando expusermos nossa proposta de compreensão da Grundnorm
FRPRVLVWHPDGH&RKHQ.(/6(1DS HQTXDQWRSRVWXODGRFLHQWt¿FR

8 3.2.2. Kant e Kelsen

Contrariamente à tradição, Paulson afirma que a herança neokantiana de
Kelsen deve ser buscada em Heilderberg e não na escola de Marburgo chefiada
por Cohen. Cf. PAULSON, 1994: 485-494. $RFRQFHEHUDQRUPDIXQGDPHQWDOHQTXDQWRKLSyWHVHOyJLFR
9
Assim, enquanto objeto da cognição jurídica, o Estado só pode ser concebido transcendental, Kelsen ataca tanto o jusnaturalismo quanto o positi-
em termos jurídicos, dado que conhecer algo juridicamente significa conhecê-lo
enquanto direito. Cf. KELSEN, 2007a: 15-16.
YLVPR MXUtGLFR DFUtWLFR /(6(5   GDGR TXH D FRJQLomR

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 55 56 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
 Andityas Soares de Moura Costa Matos A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO

transcendental não se ocupa de objetos, mas sim com o modo pelo
qual podemos conhecê-los. Sustentar que a norma fundamental
NHOVHQLDQDpXPDKLSyWHVHVLJQL¿FDOLPLWDURVHXFDPSRGHYDOLGDGH
epistemológica. Por outro lado, entendê-la como transcendental – e
não transcendente, a exemplo das normas fundamentais do direito
natural – equivale a dizer que a Grundnorm se destina a um uso a
priori, ou seja, totalmente independente da experiência, conforme
YD]LDGHFRQWH~GR.(/6(1HQmRGHWHUPLQDQHQKXPD
SUHVFULomRMXUtGLFDHVSHFt¿FDDRFRQWUiULRGDVQRUPDVIXQGDPHQWDLV
estáticas que orientam os ordenamentos de matriz jusnaturalista.
3RUDEUDoDUFHUWRYDORUFHQWUDOHGHOHID]HUGHULYDUSRUGHGXomRWRGDV
as demais normas do sistema, a norma fundamental do tipo estático
WRUQDRRUGHQDPHQWRHQJHVVDGRHHVWpULOLQFDSD]GHVHPRGL¿FDUSDUD
DOpPGRYDORUiSLFHDOJRTXHQmRRFRUUHFRPRGLUHLWRFRQWHPSRUk-
HQVLQD .DQW .$17   'HVVH PRGR GLIHUHQWHPHQWH GH QHRHVXDHVWUXWXUDDEHUWDGHLQGHWHUPLQDomR132UDWDOVypIDFWtYHO
SRVLo}HVSRVLWLYLVWDVPDLVSULPLWLYDV±v.g., as da Escola da Exegese SRUTXHRIXQGDPHQWRGRVLVWHPDpYD]LRSHUPLWLQGRTXHDVQRUPDV
–, ao pressupor a norma fundamental Kelsen se liberta da necessi- GHOHGHSHQGHQWHVRVWHQWHPTXDOTXHUFRQWH~GR.(/6(1
GDGHGHHVWDEHOHFHURFRQWH~GRGDVQRUPDVDVHUHPHVWXGDGDVSHOD O dever-ser constante da fórmula-base da norma fundamental – v.g.:
FLrQFLDMXUtGLFD/8)SOLPLWDQGRVHDGHPRQVWUDUGH ³GHYHPVHUFXPSULGRVRVFRPDQGRVGDSULPHLUD&RQVWLWXLomRKLVWyULFD
que maneira sentidos subjetivos de dever-ser podem ser entendidos JOREDOPHQWHH¿FD]´±UHSUHVHQWDDSHQDVXPFRQHFWLYROyJLFRVHP
enquanto mandamentos objetivos, ou seja, normas jurídicas, o que só TXDOTXHUFRQWH~GRGH{QWLFRGHWHUPLQDGRUHÀHWLQGRQDVSDODYUDVGH
QRVSDUHFHSRVVtYHOTXDQGRVHSUHVVXS}HDFODXVXUDDQWLPHWDItVLFD
representada pela Grundnorm.
$VVHPHOKDQoDVHQWUHDSURSRVWDNDQWLDQDQRWHUUHQRGDVFL-
ências naturais e a de Kelsen na seara jurídica são bem conhecidas.11
5HPHPRUHPRVDSHQDVDOJXQVSRQWRVGHFRQWDWR'RPHVPRPRGR
/XIXPPRGHORPHFkQLFRFDXVDOGHFRJQLomR/8)3RGH-
UtDPRVGL]HUPHOKRUXPPRGHORPHFkQLFRLPSXWDWLYRGHFRJQLomR
$QRUPDIXQGDPHQWDONHOVHQLDQDOLPLWDDFRJQLomROHJDODR
material jurídico dado na experiência, sendo imprestável para a cog-
QLomRGHDEVROXWRVWDLVFRPRDVQRo}HVGHMXVWLoDFRPXQVQDVHVFRODV
TXHDVFDWHJRULDVGDVHQVLELOLGDGHHVSDoRHWHPSRHGRHQWHQGLPHQWR MXVQDWXUDOLVWDV+$00(5$Grundnorm torna possível
TXDQWLGDGHTXDOLGDGHUHODomRHPRGDOLGDGHGH.DQWVmRIRUPDV D FULDomR HSLVWHPROyJLFD GR GLUHLWR HLV TXH OLPLWDQGR VHX REMHWR
SXUDV.$17RXVHMDFRQFHLWRVVHPTXDOTXHUFRQWH~- DFDEDSRUOKHFRQIHULUH[LVWrQFLDHVSHFt¿FDPHGLDQWHDUHPLVVmRDXP
do, que nada prescrevem em termos materiais às leis naturais, mas,
todavia, as tornam possíveis, i. e., pensáveis, a norma fundamental
GLQkPLFD SUySULD GH RUGHQV MXUtGLFDV FRQWHPSRUkQHDV WDPEpP p
10
É preciso ter sempre em mente a diferenciação entre “transcendental” e
“transcendente”: “Em Kant, transcendental aplica-se sempre, originariamente,
a um conhecimento. A palavra é oposta ora a empírico (em dois sentidos
diferentes), ora a transcendente, ora a metafísico. É transcendental, por oposição
ao empírico, aquilo que é uma condição a priori e não um dado da experiência”
(LALANDE, 1993: 1.151). Por outro lado, transcendente é: “[...] aquilo que
está além de toda experiência possível, quer ao falar de realidades, de seres,
quer ao falar de princípios de conhecimento (LALANDE, 1993: 1.154). Para a
aplicação dessa distinção na obra kelseniana, cf. LUF, 2007 e ROY, 1997: 16.
11
Para uma análise mais detalhada da questão, cf. GOMES, 2000; GOYARD-
FABRE, 2002: 345 et. seq.; MATOS, 2006: 31-37; ROY, 1997; SALIBA, 2004:
4-10.
Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
dever-ser (SollenIXQGDQWHGHVGHTXHFXPSULGDVFHUWDVFRQGLo}HV'H
maneira semelhante, as categorias da sensibilidade e do entendimento
de Kant tornam impossível o acesso a um ser (Sein) incondicionado,
i. e., a coisa em si (noumenon). Na verdade, elas criam os objetos
do conhecimento das ciências da natureza, fundados não mais em
si mesmos, mas antes no olhar que o observador lhes ODQoD(LVHP
WHUPRVVLPSOHVDFKDPDGD³YLUDGDFRSHUQLFDQD´GH.DQWTXHQRV
12
Para uma discussão das diferenças existentes entre as normas fundamentais que
dão sustentação a sistemas normativos estáticos (jusnaturalistas) e dinâmicos
(juspositivistas), cf. o ensaio “A doutrina do direito natural e o positivismo
jurídico” contido em KELSEN, 2000: 557-580.
13
Neste ponto coincidem a Teoria Pura do Direito e a formulação atual da Teoria
dos Sistemas Sociais. Cf. TEUBNER, 1993: 2-4.
57 58 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
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ensina a considerar não o objeto em si (noumenon), incognoscível, e HOHJDQWHGHGL]HUTXHHODQmRWHPFRQWH~GR&RPHIHLWRDGrundnorm

sim o objeto conforme percebido pela sensibilidade e racionalizado VHPRVWUDSULPDULDPHQWHHQTXDQWRQRUPDGH¿QLGRUDGHFRPSHWrQFLD
SHORHQWHQGLPHQWRLVWRpRIHQ{PHQR FDSD]GHFRQHFWDUDLGHLDGHGHYHUVHUHVWUXWXUDOyJLFDHVSHFL¿FDPHQWH
&RPEDVHQHVVDRUGHPGHLGHLDVSRGHPRVUHEDWHUSRVLo}HV MXUtGLFDjQRomRGHDXWRULGDGHFULDGRUDGRGLUHLWR('(/
FUtWLFDV FRPR DV GH 6$/,%$   H &(/$12   -iHPQDSULPHLUDHGLomRGD³7HRULD3XUDGR'LUHLWR´HUDHVWH
VHJXQGRDVTXDLVQR¿QDOGDVFRQWDVDQRUPDIXQGDPHQWDONHOVHQLDQD RHQWHQGLPHQWRGH.HOVHQ³7KHEDVLFQRUPFRQIHUVRQWKHDFWRIWKH
teria caráter ideológico por se fundar no consentimento – informado ¿UVWOHJLVODWRU±DQGWKXVRQDOORWKHUDFWVRIWKHOHJDOV\VWHPUHVWLQJ
ou não – das pessoas submetidas a determinada autoridade jurídica. RQWKLV¿UVWDFW±WKHVHQVHRIµRXJKW¶SollenWKDWVSHFL¿FVHQVHLQ
&UtWLFDVDVVLPSDUWHPGHXPIDPRVRH[HPSORRIHUHFLGRSHORSUySULR wich legal condition is linked with legal consequence in the [..] legal
.HOVHQ.(/6(1UHIHUHQWHDRGLUHLWRQDWXUDOHVHJXQGR
RTXDODUD]mR~OWLPDSDUDXPFULVWmRDPDURVVHXVLQLPLJRVUHVLGH
apenas na autoridade pessoal de Jesus, fundador da moralidade cristã.
&RQWXGRQmRQRVSDUHFHGLItFLOFRPSUHHQGHUDGLVWLQomRUDGLFDOTXH
permeia ambas as ordens normativas: o ordenamento normativo cristão
QRUP´.(/6(1
$QDOLVHPRVRXWUDLPSRUWDQWHVHPHOKDQoDHQWUH.DQWH.HOVHQ
DVVLPFRPRHVWHVHSHUJXQWDYDFRPRHUDSRVVtYHOXPDLQWHUSUHWDomR
das ciências naturais alheia a toda metafísica, Kelsen se questionava
GHTXHPRGRVHULDSRVVtYHOSHQVDUR'LUHLWRLQGHSHQGHQWHPHQWHGH
pGHQDWXUH]DHVWiWLFDSRUVHIXQGDUHPXPYDORU±RDPRUFULVWmR± DXWRULGDGHV PHWDMXUtGLFDV .(/6(1   3DUD UHVSRQGHU
HGHOHID]HUGHULYDUQRUPDVSRUGHGXomRHQTXDQWRRRUGHQDPHQWR WDOTXHVWmR.HOVHQpOHYDGRDDEDQGRQDUVXDVSUHWHQV}HVSXUDPHQWH
jurídico-normativo se assenta em uma forma vazia, apta a fundamentar
TXDOTXHUFRQWH~GR3RULVVRPHVPRRVLVWHPDGLQkPLFRMXUtGLFRQmR
SUHFLVDQHFHVVDULDPHQWHGDFRQFRUGkQFLDGRVMXULVGLFLRQDGRVSDUDVH
LPSRU%DVWDOKHDH¿FiFLDJOREDOFRPRYHUHPRVDGLDQWH
6HJXQGRDLQWHUSUHWDomRGH5R\SDUDTXHRRUGHQDPHQWRQRU-
PDWLYRFULVWmRDFLPDPHQFLRQDGRIRVVHGLQkPLFRVHULDOKHQHFHVViULR
SRVVXLUXPDQRUPDIXQGDPHQWDOYD]LDGHFRQWH~GRHGH¿QLGRUDGH
FRPSHWrQFLD TXH GHWHUPLQDVVH DOJR FRPR ³GHYHP VHU REHGHFLGDV
DVQRUPDVSRVWDVSRU-HVXV´8PDWDOQRUPDQmRRVWHQWDULDTXDOTXHU
FRQWH~GRQRUPDWLYRVHUYLQGRDSHQDVSDUDSRVVLELOLWDUTXHFHUWRVVHQ-
tidos subjetivos de dever-ser fossem interpretados enquanto sentidos
GHVFULWLYDVHFULDU±HSLVWHPRORJLFDPHQWHIDODQGR52<±
XPDLQVWkQFLDQRUPDWLYDSUHVVXSRVWDTXHVHUHYHODHQTXDQWRKLSyWHVH
lógico-transcendental. Trata-se então de uma norma pressuposta – não
poderia ser posta, pois dependeria de um ato de poder, que por sua
vez teria que se reconduzir a outro ato de poder validante e assim
LQ¿QLWDPHQWH±SHORSHQVDPHQWRMXUtGLFRQHFHVViULDFDVRVHTXHLUD
FRQIHULULQWHUSUHWDo}HVFLHQWt¿FDVDRVREMHWRVGHHVWXGRGDFLrQFLD
GRGLUHLWR1mRKiG~YLGDFRQWXGRTXHWDOHVWUXWXUDGiOXJDUDXPD
tensão central na doutrina kelseniana, visto que uma norma puramente
GHVFULWLYD±³FLHQWt¿FD´±FRPRDQRUPDIXQGDPHQWDODFDEDVHQGR
solicitada para conferir validade a normas reais, quer dizer, prescri-
REMHWLYRVGHGHYHUVHU52<(VVDOHLWXUDpFRPSOH-
tamente consequente com a doutrina de Kelsen, para quem a falácia
jusnaturalista – derivar normas (mandamentos jusnaturais) de fatos
(natureza) – só pode ser superada quando pressupomos uma norma
IXQGDPHQWDOYD]LDGHFRQWH~GRHPHUDPHQWHGH¿QLGRUDGHFRPSH-
tivas (ROY, 1997: 14). Superar tal tensão somente nos parece viável
TXDQGRUHFRQKHFHPRVGXDVFRQGLo}HVSDUDDSUHVVXSRVLomRGDQRUPD
IXQGDPHQWDOTXHQmRpDUELWUDULDPHQWHLPDJLQDGDFRPRDGX]HPRV
GHWUDWRUHVGD7HRULD3XUDGR'LUHLWR
3.2.3. Condições para a pressuposição da norma fundamental
WrQFLDVQRUPDWLYDV.(/6(1EeHVWHRFRQFHLWRHVVHQFLDOGH
norma fundamental, ou seja, uma norma em que o FRQWH~GRFRLQFLGH $ SULPHLUD FRQGLomR GH FDUiWHU HSLVWHPROyJLFR GHWHUPLQD
FRPDIRUPD('(/SRTXHpDSHQDVXPDPDQHLUDPDLV TXHDQRUPDIXQGDPHQWDOpXPDKLSyWHVHRXVHMDVHFRPSRUWDVH-

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 59 60 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
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JXQGRDOyJLFDQmRDSRGtFWLFDSUySULDGHMXt]RVKLSRWpWLFRVjPDQHLUD fundamenta kelseniana se resumiria a um credo quia incredibile

kantiana.14'HVVHPRGRVH±HVRPHQWHse – pretendemos construir
LQWHUSUHWDo}HVFLHQWt¿FDVGRGLUHLWRGHYHPRVSUHVVXSRUXPDQRUPD
fundamental que evite o regressum DGLQ¿QLWXP e o apelo a autoridades
PHWDMXUtGLFDV&RPRVDEHPRVXPDKLSyWHVHVHFRQVXEVWDQFLDQXPD
SURSRVLomRDGPLWLGDLQGHSHQGHQWHPHQWHGRIDWRGHVHUYHUGDGHLUDRX
falsa. Trata-se, ao contrário, de obter um princípio a partir do qual
possamos deduzir certo conjunto de consequências. Mais importante:
HQWHQGLGDHPWHUPRVKLSRWpWLFRVDQRUPDIXQGDPHQWDOSRGHPDVQmR
+2125e1DGDPDLVIDOVR1mRKiTXDOTXHUQHFHVVL-
GDGHDEVROXWDRXPHWDItVLFDTXHGHWHUPLQHDSUHVVXSRVLomRGDQRUPD
IXQGDPHQWDO 6H TXHUHPRV GHVFUHYHU R GLUHLWR GH IRUPD FLHQWt¿FD
FHUWDPHQWHGHYHPRVSUHVVXS{OD(PRXWUDVFLUFXQVWkQFLDVWDOQmRp
necessário, como no caso de um anarquista que enxerga as normas
MXUtGLFDVHQTXDQWRPHUDVIRUPDOL]Do}HVGHUHODo}HVGHSRGHU(OHQmR
está obrigado a pressupor qualquer norma fundamental, dado que ela
UHSUHVHQWD DSHQDV XP HVTXHPD GH LQWHUSUHWDomR SRVVtYHO PDV QmR
precisaVHUSUHVVXSRVWD.(/6(11RTXHGL]UHVSHLWR
j FRQGLomR HSLVWHPROyJLFD DSHQDV WHP VHQWLGR SUHVVXSRU D QRUPD
IXQGDPHQWDOFDVRVHGHVHMHGHVFUHYHURGLUHLWRGHPRGRFLHQWt¿FR
desconsiderando a existência de autoridades transcendentes tais como
'HXVRXDQDWXUH]DGDVFRLVDVIXQGDPHQWRVPDWHULDLVGHYDOLGDGHGR
direito segundo as correntes jusnaturalistas.
1HVVD SHUVSHFWLYD QmR QRV SDUHFH FRUUHWR GH¿QLU D QRUPD
IXQGDPHQWDO FRPR XP ³DUWLJR GH Ip´ LQGHPRQVWUiYHO TXH DSHQDV
possibilita o teste de pedigree capaz de conferir caráter jurídico – ou
seja, de dever-ser objetivo – às demais normas do sistema mediante
FDGHLDVGHDWULEXLo}HVGHFRPSHWrQFLDWDOFRPRSURS}H+RQRUp+2-
QHFHVViULR.(/6(1
'HYHPRVDFUHVFHQWDUDLQGDTXHDGLVFXVVmRVREUHDQRUPD
IXQGDPHQWDOQmRWHPVHQWLGRTXDQGRVHSUHWHQGHFRPSURYDUTXHHODp
XPSUHVVXSRVWR(PERDOyJLFDDOJRQmRSRGHVHU³XPSUHVVXSRVWR´
GDGRTXHRVWHUPRV³SRVWR´H³SUHVVXSRVWR´UHIHUHPVHDRPRGRGH
ser das normas, i. e., à maneira de mostrar-se da coisa, traduzindo
uma qualidade e não o ser – ou a essência, em termos escolásticos –
de determinado ente. Ora, no que se refere à norma fundamental, seu
ser se revela enquanto hipótese lógico-transcendental. Segundo Raz,
LVVRVLJQL¿FDTXHDQRUPDIXQGDPHQWDOQmRpFULDGDFRPRDVGHPDLV
QRUPDVGRVLVWHPDHVLPSUHVVXSRVWD3RURXWURODGRHODQmRpXP
125e6HJXQGRD¿UPDHVVHDXWRUDTXHVWmRGDQRUPD SURGXWRDUELWUiULRGDLPDJLQDomRSRVLWLYLVWD$QRUPDIXQGDPHQWDO
14
Para a clássica diferenciação de juízos categóricos e hipotéticos, cf. KANT, 1997:
209 et seq. Concordamos com SALIBA, 2004: 8, que caracteriza a proposição
que descreve a norma fundamental como um juízo hipotético capaz de, uma vez
pressuposta a Grundnorm – “se” pressuposta, visto que se trata de uma hipótese
–, possibilitar a interpretação de certas normas como jurídicas. A autora, todavia,
QmR p LQYHQWDGD PDV GHVFREHUWD +2125e   (OD QmR
DGYpPGHRXWUDVQRUPDVHQHPGRUHFRQKHFLPHQWRGRVMXULVGLFLRQD-
GRVDFHUFDGRGHYHUGHFXPSULURGLUHLWRSRVWR1mRpSRVVtYHOQRV
perguntarmos quando, por quem e como a norma fundamental foi
³FULDGD´7DLVFDWHJRULDVVLPSOHVPHQWHQmRVHDSOLFDPjGrundnorm
registra a posição de CELANO, 2000: 184, para quem a resposta à questão
de fundo – seria a norma fundamental a expressão de um juízo hipotético ou
categórico? – é obscura e oscilante, inclinando-se tal doutrinador a acreditar
que a norma fundamental se materializa mediante um juízo categórico, dado
que a cognição jurídica a enxerga como algo indiscutido, tema que exploraremos
na seção 4 deste trabalho.
15
Hammer afirma que a pressuposição da norma fundamental kelseniana não é
uma simples decisão subjetiva de se querer ou não enxergar o direito enquanto
ciência. Na realidade, trata-se de uma necessidade epistemológica para qualquer
interpretação estritamente jurídica de materiais normativos. Cf. HAMMER,
2007: 186-188.
Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
5$=
'HVVDIHLWDDRFDUDFWHUL]DUDQRUPDIXQGDPHQWDOFRPRKLSy-
WHVHSUHVVXSRVWDHQmRHQTXDQWRQRUPDSRVWD.HOVHQVHGHVHPEDUDoD
IDFLOPHQWHGDVFUtWLFDVGH$PVHOHNHGH1LRUWSDUDRVTXDLVDQRUPD
IXQGDPHQWDOVHULDDSHQDVXPDWDXWRORJLD$06(/(.H
NIORT,1993). Esses autores questionam de que modo seria possível
pressupor a norma fundamental para conferir validade à ordem jurí-
GLFDVHVySRGHPRVFRQIHULUTXDOL¿FDomRMXUtGLFDDWDORXTXDORUGHP
QRUPDWLYDDSyVDSUHVVXSRVLomRGDQRUPDIXQGDPHQWDO7DOVLJQL¿FDULD
61 62 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
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GL]HUTXHFXPSULPRVRGLUHLWRSRUTXHpGLUHLWR52<RX HQWUHRPXQGRGRVHUHRGRGHYHUVHUMiTXHDR¿PHDRFDERD

como quer Niort, que somente consideramos as normas jurídicas obri- norma que confere validade a todo o ordenamento jurídico dependeria
gatórias porque supomos geralmente que devemos obedecer ao direito de um fato da ordem do ser.1RPHVPRVHQWLGR%REELRLGHQWL¿FD
1,2577DOGL¿FXOGDGHpYHQFLGDSHORFDUiWHUSUHVVXSRVWR a norma fundamental com o ato de poder fundador do ordenamento
da norma fundamental, que antes de conferir validade ao ordenamento jurídico, de maneira que, ao se impor, o poder coercitivo fundaria
MXUtGLFR±DQWHVGHVHUQDOLQJXDJHPGH5D]³a power conferring- a juridicidade.17 Nenhuma dessas alternativas se coaduna com o
law´5$=±OKHDEUHDVSRUWDVGDSHQVDELOLGDGH$QRUPD QRUPDWLYLVPROyJLFRGH.HOVHQ6HpYHUGDGHTXHRDELVPRHQWUHD
fundamental pressuposta não possui o mesmo status ontológico que IDFWLFLGDGHHDQRUPDWLYLGDGHSDUHFHVHUTXDVHLQVXSHUiYHOWDPEpP
DVGHPDLVQRUPDVGRVLVWHPDTXHVmRSRVWDV3RULQGLFDUDFRQGLomR pYHUGDGHTXHDSRQWHFDSD]GHSHUPLWLUWDOWUDQVSRVLomRUDGLFDVHQD
de possibilidade e de validade lógica do sistema jurídico, a norma QRUPDIXQGDPHQWDO+2125e2RUGHQDPHQWRMXUtGLFR
IXQGDPHQWDOpWUDQVSRVLWLYDHWUDQVFHQGHQWDOPDVQmRPHWDItVLFDH consiste em um agregado unitário e sistemático de normas, não em
WUDQVFHQGHQWH*2<$5')$%5('HVVHPRGRDRSH- XPDFRQFDWHQDomRGHIDWRVTXHDR¿QDOUHSRXVDPQRSRGHU/8)
UDomROyJLFRFRJQLWLYDSUySULDGDFLrQFLDGRGLUHLWRSDUWHVHPSUHGD
possibilidade de pensarmos concretamente a norma fundamental, o
TXHQRVUHPHWHjVXDVHJXQGDFRQGLomRGHSUHVVXSRVLomRHVWDVLP
GHFDUiWHUIDFWXDOHTXHVHUHVXPHQDH¿FiFLDJOREDOGRRUGHQDPHQWR
jurídico, o que, de certo modo, conecta o dedutivismo kelseniano ao
minimum de empiria necessário a qualquer sistema de pensamento
FLHQWt¿FRFRPRHQVLQD$UHQGWDRFRPHQWDUDsui generis teoria do
7RGDVDVGRXWULQDVTXHEXVFDPRIXQGDPHQWRGHYDOLGD-
GHGRGLUHLWRHPVXDHIHWLYLGDGHVmRGHVSURYLGDVGHYDORUFLHQWt¿FR
dado que desconsideram o axioma básico segundo o qual uma norma
somente pode se fundar em outra norma e um fato em outro fato. Tal
VLJQL¿FDQDOLQJXDJHPNDQWLDQDTXHXPGHYHUVHUVySRGHVHUSRVWR
por outro dever-ser, do mesmo modo que o ser se funda em outro
VHU&DVRFRQWUiULRWHUtDPRVTXHDGPLWLUFRPRYiOLGDD³IDOiFLDQD-
FRQKHFLPHQWRGR¿OyVRIRSRHWD+HUPDQQ%URFK6XDVSDODYUDVSD- WXUDOLVWD´FRQVLVWHQWHQDFUHQoDGHTXHRYDORUQRUPDGHYHUVHUp
UHFHPWHUVLGRHVFULWDVSDUDEHPH[SOLFDUDQHFHVVLGDGHGDH¿FiFLD LPDQHQWHjUHDOLGDGHIDWRVHUDOJRDEVROXWDPHQWHLQDFHLWiYHOSDUD
global na tessitura do sistema normativista de Kelsen, bem como sua uma teoria materialista, antimetafísica e empirista como o normati-
QDWXUH]DGHSRVWXODGRFLHQWt¿FRWHPDTXHWUDWDUHPRVDGLDQWH YLVPRNHOVHQLDQR5$=18&RQIRUPHOLomRGH$IRQVRD
norma jurídica e o ordenamento são válidos seH¿FD]HVHQmRporque
[...] não existe nada que corresponda a um sistema absolutamente
GHGXWLYR 3HOR FRQWUiULR D EDVH GH WRGR VLVWHPD IRUPDO p VHPSUH
HPStULFD,VVRVLJQL¿FDTXHWRGRVLVWHPDUHSRXVDVREUHXPIXQGDPHQWR
WUDQVFHQGHQWHDVLSUySULRTXHpSUHFLVRSRVWXODUFRPRDEVROXWRSRLV
do contrário, o sistema nem sequer poderia iniciar suas várias cadeias
H¿FD]HV$)2162$H¿FiFLDpFRQGLomRIDFWXDOHQmR
fundamento de validade. Segundo Goyard-Fabre, a norma funda-
mental equivale a um canon do exercício da razão que, enquanto
exigência transcendental a priori, fornece às normas do sistema a sua
GHGXWLYDV$5(1'7
Ora, o jurista pode pressupor a norma fundamental de dado
ordenamento jurídico somente quando está diante de uma ordem co-
HUFLWLYDJOREDOPHQWHH¿FD]$QHFHVVLGDGHGDH¿FiFLDJOREDOSDUDD
SUHVVXSRVLomRGDQRUPDIXQGDPHQWDOOHYRXPXLWRVFUtWLFRVWDLVFRPR
Mario Losano, a sustentar que Kelsen teria desrespeitado a divisão
Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
UDGLFDOLGDGHSXUD*2<$5')$%5($YXOWDDVVLPDIXQ-
omRGDQRUPDIXQGDPHQWDOTXHFRQVLVWHHPFRQIHULULQWHOLJLELOLGDGH
16
Cf., p. ex., o estudo introdutório de Losano em KELSEN, 1998a.
17
Sobre o tema da norma fundamental enquanto “ato de poder”, cf. as análises
de FERRAZ JUNIOR, 2001: 184 e MATOS, 2006: 71-74.
18
Este ponto é central na doutrina kelseniana. Para aprofundamentos, cf. CONTE,
2007: 331-341; SOSOË, 1986: 65-81 e WRIGHT, 2007: 365-382.
63 64 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
 Andityas Soares de Moura Costa Matos A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO

HVSHFL¿FDPHQWHMXUtGLFDjVQRUPDVGHGDGRRUGHQDPHQWRGHGLUHLWR GLUHLWRYiOLGR3DUDVHMXVWL¿FDUHVVDLGHLDSDUHFHOKHQHFHVViULRSUHV-
SRVLWLYR7RGDYLDLVVRpSRVVtYHODSHQDVTXDQGRVHYHUL¿FDDH¿FiFLD supor que a transmissão do poder mediante cadeias de competências
JOREDOGDSULPHLUD&RQVWLWXLomRTXHUHSUHVHQWDQRSHQVDPHQWRGH KLVWyULFDVpDOJRLQGLVFXWtYHORTXH+RQRUpMXOJDDEVXUGR+212-
Kelsen, o fato material que cria o sistema a ser descrito pela ciência 5e&RQWXGRDLQGDTXHWDOWUDQVPLVVmRVHMDPRUDOPHQWH
GRGLUHLWR+$00(5
8PDSDODYUDGHYHVHUGLWDVREUHHVVHWHPD+RQRUpDSRQWDGRLV
SUREOHPDVUHODWLYRVjYDOLGDomRGDSULPHLUD&RQVWLWXLomRKLVWyULFDSRU
SDUWHGDQRUPDIXQGDPHQWDO&RQWXGRDPERVSDUHFHPQRVLQVXEVLV-
WHQWHV2SULPHLURVHUHIHUHDRIDWRGHTXHDV&RQVWLWXLo}HVRULJLQiULDV
de vários Estados foram postas de maneira violenta e arbitrária por
SHVVRDVRXJUXSRVTXHQmRWLQKDPDXWRUL]DomRRXOHJLWLPLGDGHSDUD
WDQWR&RPHIHLWRDV&RQVWLWXLo}HVIXQGDGRUDVGHGLYHUVRV(VWDGRV
FRQWHPSRUkQHRVVXUJLUDPQRFRQWH[WRGHXVXUSDo}HVFRQTXLVWDVH
JROSHVGH(VWDGRHSRULVVRGL¿FLOPHQWHVHULDPYLVWDVFRPROHJtWL-
questionável, parece-nos corresponder exatamente à realidade, que
QmR WHP QHQKXPD REULJDomR GH VHU pWLFD$V SHVVRDV FXPSUHP RV
comandos normativos postos pelas autoridades competentes porque
SUHVVXS}HP DXWRUL]Do}HV DQWHULRUHV YiOLGDV 4XDQGR QmR VH SRGH
SUHVVXSRUWDLVDXWRUL]Do}HVLVVRVLJQL¿FDTXHHVWDPRVGLDQWHGHXPD
UHYROXomRKLSyWHVHH[SUHVVDPHQWHWUDWDGDSRU.HOVHQ$VUHYROXo}HV
ocorrem porque determinado sistema jurídico se extingue e dá lugar a
um novo ordenamento informado por outra norma fundamental. Em
VtQWHVHDWUDQVPLVVmRGDWLWXODULGDGHGRSRGHUpVHPSUHSUHVVXSRVWD
FRPRYiOLGDDQmRVHUQDTXHODVVLWXDo}HVHPTXHDH¿FiFLDJOREDO
PDV KRMH +2125e   2UD D7HRULD 3XUD GR 'LUHLWR p
absolutamente formal. Para se pressupor a norma fundamental basta
DH¿FiFLDJOREDOGDSULPHLUD&RQVWLWXLomRKLVWyULFD3RXFRLPSRUWD
à ciência jurídica os meios utilizados pelo poder para se impor. Nas
SDODYUDVGH.HOVHQ³&RHUFLRQLVWREHDSSOLHGXQGHUFHUWDLQFRQGLWLRQV
and in a certain way, namely, as determined by the framers of the
¿UVWFRQVWLWXWLRQRUE\WKHDXWKRULWLHVWRZKRPWKH\KDYHGHOHJDWHG
deixa de existir e o ordenamento em questão desaparece diante de
XPQRYHOVLVWHPDGHQRUPDV(VWHjVHPHOKDQoDGRDQWLJRWDPEpP
conta com uma norma fundamental validante e propiciadora de novas
WUDQVPLVV}HVGRSRGHUSROtWLFRMXUtGLFR
3.3. Postulado cientí¿co
$QRUPDIXQGDPHQWDOSRGHVHUFDUDFWHUL]DGDFRPRXPDQRUPD
DSSURSULDWHSRZHUV´.(/6(1(VVDSRGHQmRVHUXPD
de clausura19 FXMR REMHWLYR VHULD LPSHGLU D UHFRUUrQFLD LQ¿QLWD GD
LQWHUSUHWDomRVLPSiWLFDPDVSDUHFHQRVUHDOLVWD2HVFRSRFHQWUDOGD
pergunta sobre o fundamento de validade do direito, assemelhando-se
WHRULDNHOVHQLDQDFRQVLVWHHPGHVFUHYHURGLUHLWRFRPRHOHpHQmR
HQWmRDRVSRVWXODGRVGRVVLVWHPDVFLHQWt¿FRVGRVTXDLVVHGHGX]HP
FRPRGHYHULDVHU(HOHpJRVWHPRVRXQmRYLROrQFLDRUJDQL]DGDH
outros, mas que são, em si mesmos, não-dedutíveis (BOBBIO, 1999:
PRQRSROL]DGD&RPRVHVDEHDRUJDQL]DomRGDIRUoDSRGHVHHIHWLYDU
 (VWD QRV SDUHFH VHU D PHOKRU GH¿QLomR GD QDWXUH]D GD QRUPD
GHPRGRGHPRFUiWLFRRXDXWRFUiWLFR$QDOLVDUDVFRQGLo}HVTXHOHYDP
IXQGDPHQWDO$OLiVpQHVVHVHQWLGRTXH5D]VHUHIHUHDRVGRLVD[LRPDV
DXPDRXDRXWUDGHVVDVIRUPDo}HVpWDUHIDGD&LrQFLD3ROtWLFDHGD
da teoria kelseniana, os quais seriam tidos por auto-evidentes e não
Sociologia, não da ciência do direito, que se ocupa em descrever o
SUHFLVDULDP VHU FRPSURYDGRV 5$=   j VHPHOKDQoD GRV
poder já posto, estabilizado e formalizado enquanto norma jurídica,
SRVWXODGRV FLHQWt¿FRV$PERV VH UHIHUHP j QRUPD IXQGDPHQWDO H
nunca a sua gênese social.
determinam que: 1) dadas duas normas jurídicas, se uma autoriza direta
$VHJXQGDFUtWLFDGH+RQRUpVHEDVHLDQDFRQVWDWDomRGHTXH
não há qualquer razão para considerarmos como válida a cadeia de 19
A feliz expressão “norma de clausura” como sinônimo de norma fundamental
DXWRUL]Do}HVHGHWUDQVIHUrQFLDVGHSRGHUTXHFRQHFWDRVIXQGDGRUHV foi cunhada por Bobbio em entrevista concedida a Danilo Zolo. Cf. BOBBIO;
de determinada ordem jurídica aos atuais detentores do poder de criar ZOLO, 1998.

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 65 66 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
 Andityas Soares de Moura Costa Matos A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO

ou indiretamente a outra, ambas devem necessariamente pertencer DUHFRQGXomRGHVHXVHOHPHQWRV±DVQRUPDVMXUtGLFDV±DXPDIRQWH

ao mesmo ordenamento jurídico;WRGDVDVQRUPDVMXUtGLFDVGH
determinado sistema jurídico são autorizadas, direta ou indiretamente,
SRUXPD~QLFDQRUPDIXQGDQWH
$LQGD TXH HVWD LQWHUSUHWDomR GD QRUPD IXQGDPHQWDO QmR
conste expressamente da obra de Kelsen, pode ser defendida com
EDVHHPDOJXQVWHVWHPXQKRVLQGLUHWRV(P.HOVHQVHUHSRUWRX
HORJLRVDPHQWHjGRXWULQDGH$OIUHG9HUGURVVTXHHQWHQGLDVHUDQRUPD
IXQGDPHQWDOXPDHVSpFLHGH&RQVWLWXLomRQRVHQWLGROyJLFRMXUtGLFR
vendo nela – analogamente ao que ocorre com as hipóteses das
ciências naturais –, uma hipótese referida ao material jurídico-positivo
unitária de validade não-positiva que, ao contrário das do direito
QDWXUDOpMXUtGLFD
'HVVD IHLWD D H[SUHVVmR LQJOHVD TXH GHVLJQD D QRUPD IXQ-
damental – basic norm – parece-nos acertada, já que facilita a com-
preensão de seu papel genesíaco e fundador do sistema jurídico no
kPELWRHSLVWHPROyJLFR$QRUPDIXQGDPHQWDOQmRpXP¿PPDVXP
FRPHoRDLQGDTXHSDUDHQWHQGHUDVXDQDWXUH]DWHQKDPRVTXHREVHUYi
la mediante um ponto de vista posterior – no sentido histórico, não
epistemológico – ao surgimento do ordenamento jurídico globalmente
H¿FD]SRUHODIXQGDGRSDUDGR[RTXHFRPRYLPRVOHYRX$PVHOHN
.(/6(1D(PRXWUDRSRUWXQLGDGH.HOVHQH[SOLFRXTXH e Niort a destacarem o caráter supostamente tautológico da Grund-
D QRUPD IXQGDPHQWDO p R HOHPHQWR FDUDFWHUL]DGRU GH GHWHUPLQDGR norm&RQWXGRXPDYH]PDLVpSUHFLVRQRVOHPEUDUPRVGH&RKHQ
HYHQWR HQTXDQWR PRPHQWR LQLFLDO QR SURFHVVR GH FULDomR GH FHUWR FXMDLQÀXrQFLDOHYRX.HOVHQDFRQFHEHUDQRUPDIXQGDPHQWDOQmR
VLVWHPDMXUtGLFR³,WLVWKHVWDUWLQJSRLQWRIDQRUPFUHDWLQJSURFHVV´ HQTXDQWRKLSyWHVHHPStULFDVXMHLWDjWHVWDELOLGDGHRXjIDOVL¿FDELOLGDGH
.(/6(11RVVDLQWHUSUHWDomRSUHWHQGHFRQIHULUVHQWLGR
HSLVWHPROyJLFR±SDUDDOpPGRRQWROyJLFR±DHVVDD¿UPDomRFHQWUDO
GH.HOVHQ$RHQWHQGHUPRVDQRUPDIXQGDPHQWDOHQTXDQWRSRVWXODGR
propiciador da ciência do direito, somos levados a reconsiderar
VXD IRUPD GH DomR &RP HIHLWR D QRUPD IXQGDPHQWDO QmR GHYH
VHUFRQFHELGDFRPRR¿PUHJUHVVLYRGDHVWUXWXUDHVFDORQDGD ou
seja, o ponto culminante do sistema normativo positivo, com o que
seria inevitável a referência ao mundo do ser, conforme a crítica de
Losano. Trata-se antes do início lógico do sistema, capaz de operar
20
Raz critica com acerto a primeira dessas proposições em RAZ, 2007: 51-53.
Para tanto, lança mão de um argumento internacionalista originalmente devido
a Hart.
21
Como erroneamente sugerem Edel, 2007, p. 216 – para quem a norma
('(/7UDWDVHDQWHVGHXPDFRQGLomRGHSHQVDELOLGDGH
do sistema, o que salvaguarda a GrundnormGLDQWHGDDFXVDomRGHVHU
tautológica. Ora, a norma fundamental funda epistemologicamente o
sistema jurídico positivo, mas não pertence a ele como elemento – ela
VHTXHUpSRVLWLYD±HVLPHQTXDQWRFRQGLomRGHFRJQLomR
$SURYHLWDQGRXPDPHWiIRUDGH+RQRUpSRGHPRVVXVWHQWDU
TXHDQRUPDIXQGDPHQWDOpDOJRSDUHFLGRFRPRbig bang. Seme-
OKDQWHPHQWHjSULPHLUD&RQVWLWXLomRKLVWyULFDYDOLGDGDSHODQRUPD
fundamental, o big bangVHGH¿QHFRPRXPDVLQJXODULGDGHSRVWXODGD
SRUDOJXQVFRVPyORJRV$PERV±Rbig bangHDSULPHLUD&RQVWLWXLomR
– teriam existido em um momento remoto do passado e não se sub-
PHWHULDPDH[SOLFDo}HVFDXVDLVbig bang) ou imputacionais (norma
fundamental reflete um “logical endpoint” – e Roy, 1997, p. 11.
22
Nossa interpretação é abonada por Bobbio: “Kelsen’s closure of the legal order
is a sort of reference back from final causes to the first cause, from empirical
determinations to the causa sui. Thus in an essentially non-metaphysical thinker
like Kelsen the ‘closure’ of a system through the Grundnorm is only, so to speak,
a closure of convenience. It is a little like the idea of the absolute sovereignty
of the nation-state. The idea of sovereignty as ‘power of powers’ is a closure
of convenience, no different from the Grundnorm conceived of as a ‘norm of
norms’” (BOBBIO, 1998: 2-3).
Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
IXQGDPHQWDO+2125e7RGDYLDGLIHUHQWHPHQWHGH
+RQRUpHVWHQGHPRVDPHWiIRUDSDUDGHVQXGDUDYHUGDGHLUDQDWXUH]DGD
QRUPDIXQGDPHQWDOHQTXDQWRSRVWXODGRFLHQWt¿FR3RGHVHGL]HUTXH
o big bangpXPDKLSyWHVHSHQVDGDSDUDHQWHQGHUPRVGHTXHPRGRR
XQLYHUVRVHDSUHVHQWDKRMH$GrundnormUHDOL]DIXQomRVLPLODUGLDQWH
de seu universo particular, qual seja, o ordenamento jurídico positivo.
$VVLPFRPRQmRpSRVVtYHOH[SOLFDURbig bang baseando-se nas leis
da Física – porque elas nasceram com o big bang –, do mesmo modo
67 68 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
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DQRUPDIXQGDPHQWDOQmRVHVXMHLWDDRVSDUkPHWURV{QWLFRVHJQRVHR- That the basic norm really exists in the juristic consciousness is the result
OyJLFRVTXHLQIRUPDPRRUGHQDPHQWRMXUtGLFRSRVLWLYR1DYHUGDGHp of a simple analysis of actual juristic statements. The basic norm is the
answer to the question: how – and that means under what condition – are
a GrundnormTXHFULDWDLVSDUkPHWURV'HVGHD,GDGH0pGLDVDEHPRV all these juristic statements concerning legal norms, legal duties, legal
que criador e criatura não se localizam no mesmo patamar ontológico.
&RQFHELGDjVHPHOKDQoDGHXPSRVWXODGRFLHQWt¿FRDQRUPD
IXQGDPHQWDO SRGH UHDOL]DU FRP VXFHVVR VXD IXQomR EiVLFD PXLWDV
YH]HV REVFXUHFLGD SHOR LQWHQVR DWDTXH TXH OKH p GLULJLGR HYLWDU D
UHJUHVVmRLQ¿QLWDQDEXVFDSHODYDOLGDGHGRGLUHLWRSHUPLWLQGRDFODX-
VXUDGRVLVWHPDGLDQWHGRVIXQGDPHQWRVH[WHUQRV±DYRQWDGHGH'HXV
DUD]mRDEVWUDWDKXPDQDRSRGHUDFRQFRUGkQFLDVRFLDOHWF±TXH
comumente são utilizados para fundamentar as ordens jusnormativas,
remetendo-as a esferas não-jurídicas de validade e, por isso mesmo,
não-autônomas e ideologicamente comprometidas.
4. Importância prática da norma fundamental
3DUD&DUULQRXPDWHRULDFLHQWt¿FDSRGHVHUDYDOLDGDSHORVHX
rigor lógico ou por sua utilidade social, permanecendo em aberto
D TXHVWmR VREUH TXDO GHVVDV GXDV WDUHIDV D 7HRULD 3XUD GR 'LUHLWR
rights, and so on, possible? .(/6(1
.HOVHQWLQKDSOHQDFRQVFLrQFLDGHVXD¿OLDomRHHQWHQGLDTXH
GHYHULDH[WUDLUDVFRQVHTXrQFLDVOyJLFDV¿QDLVGDWHRULDSRVLWLYLVWDTXH
YLQKDVHQGRJHVWDGDKiDOJXPWHPSRQD$OHPDQKD6HXVDQWHFHVVRUHV
estancaram no meio do caminho talvez por estarem temerosos em rela-
omRDWDLVFRQVHTXrQFLDV.HOVHQDRFRQWUiULRDFHLWDQGRHDVVXPLQGR
todos os riscos, construiu a mais completa e coerente teoria jurídica
GRVpFXOR;;$VVLPSRGHPRVGL]HUTXHDQRUPDIXQGDPHQWDO±R
HOHPHQWRPDLVFRQWURYHUWLGRGD7HRULD3XUDGR'LUHLWR±QmRpFULDomR
exclusiva de Kelsen, que apenas sistematizou a ideia já presente de
modo intuitivo no pensamento jurídico, como assevera Gomes:
2SUySULR.HOVHQD¿UPDTXHDSRVWXODomRGDQRUPDIXQGDPHQWDOQmRp
LQRYDomRVXD2VMXULVWDVDVVLPMiID]LDPDLQGDTXHGHIRUPDLQFRQV-
FLHQWH'HIDWRDRDQDOLVDUPRVXPDRUGHPMXUtGLFDSRVLWLYDEXVFDPRV
na norma superior o fundamento de validade da norma inferior, e ao
UHDOL]RX &$55,12   (QWHQGHPRV TXH DPEDV R TXH DWLQJLUPRVD&RQVWLWXLomRSUHVVXSRPRVTXHDHODGHYHPRVREHGHFHU
SRGHVHUYHUL¿FDGRFDVRVHFRPSUHHQGDDVROXomRGDGDSRU.HOVHQ Não indagamos por que devemos obedecer-lhe, pois pressupomos que
DRSUREOHPDGDQRUPDIXQGDPHQWDOTXHQmRpDSHQDVXPSUREOHPD GHYHPRV*20(6
GHDXWRIXQGDomRPDVVLPGHOHJLWLPDomRHSLVWHPROyJLFDGHWRGDD
Segundo Roy, há duas formas básicas de interpretarmos a nor-
FLrQFLDGRGLUHLWR52<QmRVHHVJRWDQGRSRUWDQWRQDSHU-
PDIXQGDPHQWDO$SULPHLUDHVWULWDHQDHVWHLUDGRFULWLFLVPRNDQWLDQR
FHSomRGDQRUPDIXQGDPHQWDOHQTXDQWRQRUPDGHDXWRUL]DomRYD]LD
DHQ[HUJDDSHQDVFRPRFRQGLomRGHYDOLGDGHGDFLrQFLDMXUtGLFD$
GHFRQWH~GRWDOFRPRDFDUDFWHUL]D5D]5$=7UDWDVH
VHJXQGDPDLVDPSODHQWHQGHTXHDQRUPDIXQGDPHQWDOQmRpDSHQDV
DQWHVGHXPHVIRUoRGHDXWRHVFODUHFLPHQWRGRGLUHLWRTXHREMHWLYD
XPDUWHIDWROyJLFRWUDQVFHQGHQWDOPDVWDPEpPDIRQWHGHYDOLGDGHGD
trazer à luz certos pressupostos que repousam na mentalidade jurídica
ordem jurídica e a razão pela qual ela deve ser obedecida, represen-
HGHYLGRDYiULDVUD]}HVQmRVmRH[SOLFLWDGRV'HVVDPDQHLUDSDUHFH
tando para o direito em geral o mesmo que o imperativo categórico
nos curioso notar que inconscientemente os operadores do direito já
SUHVVXS}HP D QRUPD IXQGDPHQWDO VHP VHTXHU VH GDU FRQWD GLVVR 23
É esta a decidida – e brilhantemente defendida – posição de GOYARD-FABRE,
7RGDYLDHUDQHFHVViULRUHYHODUDYHUGDGHLUDQDWXUH]DGHVVDRSHUDomR 1991 & 1994 e TROPER, 1978, exposta de modo sintético na subseção 3.2
mental quase automática que caracteriza os juristas, o que coube a deste artigo. BÉGIN, 1986; EDEL, 2007; HAMMER, 2007; HÖFFE, 1986;
Kelsen. Em suas palavras: KERVÉGAN, 1988; LESER, 1982; PAULSON, 1984; RENAUT, 1986; SOSOË,
1986 e TREVES, 1987 também desenvolveram leituras crítico-kantianas da
doutrina de Kelsen.

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 69 70 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
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de Kant representa para a Moral (ROY, 1997: 7). Nessa perspectiva, &RQIRUPH 5D] .HOVHQ HQWHQGH KDYHU XP GLYyUFLR HQWUH R
'UHLHUYrDQRUPDIXQGDPHQWDOFRPRXPFRPDQGRGDUD]mRSUiWLFD ponto de vista da ciência jurídica – que Raz apelida, não sem certa
'5(,(5$LQGDTXHWDOSURSRVWDVHMDWHQWDGRUDGH- LURQLD GH ³SRLQW RI YLHZ RI WKH OHJDO PDQ´ ± H R GRV LQGLYtGXRV
YHPRVQRVOHPEUDUTXH.HOVHQUHQHJRXDREUDpWLFDGH.DQWSRUQHOD VXEPHWLGRV j RUGHP MXVSRVLWLYD 5$=   (VWHV VmR OLYUHV
HQFRQWUDUUHVTXtFLRVGDDQWLJDWUDGLomRPHWDItVLFRMXVQDWXUDOLVWD/8) SDUDLQWHUSUHWDURGLUHLWRGHDFRUGRFRPVXDVFUHQoDVSHVVRDLVFRPR
H0$7268PDQRUPDIXQGDPHQWDO no já mencionado exemplo do anarquista. Já os operadores do direito
alargada – entendida enquanto princípio da razão prática – exigiria HVWmRDGVWULWRVjSUHVVXSRVLomRGHXPDQRUPDIXQGDPHQWDOVHPDTXDO
PDLVGRTXHH¿FiFLDJOREDOSDUDVHUSUHVVXSRVWDUHTXHUHULDDLQFRU- não conseguem conhecer e operacionalizar seu objeto de trabalho.
SRUDomRGHSDXWDVD[LROyJLFDVPtQLPDVSDUDMXVWL¿FDUDREHGLrQFLDDR $tVHJXQGR5D]UHVLGLULDXPGRVSRQWRVIUDFRVGD7HRULD3XUDGR
GLUHLWR/8)7DOYH]DGrundnorm possa ser concebida 'LUHLWRHLVTXH.HOVHQQmRGLVWLQJXLULDDSRVLomRGHTXHPGL]DOJR
dessa forma se aceitarmos – de uma vez por todas e contrariamente sobre o direito, como os teóricos, e a de quem usa o direito, a exemplo
jVSURSRVWDVFRQWHXGtVWLFDVGH'UHLHUHGH/XI±TXHH[DWDPHQWHSRU GRVMXt]HV5$=$LQGDTXH.HOVHQGHVFUHYDQRIDPRVR
ser desprovida de valores contingentes ela realiza em si e por si um FDStWXORRLWDYRGD³7HRULD3XUDGR'LUHLWR´DVGLIHUHQWHVIXQo}HVGR
LGHDOQRUPDWLYRTXHSUHVVXS}HDDXWRQRPLDGRGLUHLWRHQTXDQWRYDORU FRQKHFLPHQWRMXUtGLFR±IXQomRGHFRJQLomRHIXQomRGHDSOLFDomR±
SUySULR52<3DUHFHQRVTXHHVWHminimum axiológico SDUHFHQRV TXH D SHUFHSomR GH 5D] HVWi FRUUHWD &RQWXGR WDO QRV
UHSUHVHQWDD~QLFDDEHUWXUD³LGHROyJLFD´TXHD7HRULD3XUDGR'LUHLWR parece revelar um dos pontos fortes da teoria kelseniana, e não uma
pode se permitir. IDOKDFRPRTXHU5D]eHVVDFRQFHSomRPRQLVWDGRFRQKHFLPHQWR
2 YDORU TXH XPD QRUPD IXQGDPHQWDO YD]LD GH FRQWH~GR jurídico que permite a Kelsen efetuar a passagem da teoria à prática
FRPSRUWDFRQIXQGHVHFRPRIDWRGHVHUYD]LD52<RX
seja, de não propender à defesa ou ao ataque de nenhuma ideologia
HVSHFt¿FD R TXH REYLDPHQWH Mi UHSUHVHQWD HP VL XPD LGHRORJLD
FRPRIRLDGPLWLGRSHORSUySULR.HOVHQ³,IZHFRQFHLYHRIWKHODZ
as a complex of norms and therefore as an ideology, this ideology
differs from other, specially from metaphysical ideologies, so far as
the former corresponds to certais facts of reality. [...] If the system of
OHJDOQRUPVLVDQLGHRORJ\LWLVDQLGHRORJ\WKDWLVSDUDOOHOWRDGH¿QLWH
H D¿UPDU R SUHFHLWR IXQGDPHQWDO GR MXVSRVWLYLVPR TXH QmR VHUYH
DSHQDV SDUD DV$FDGHPLDV PDV WDPEpP SDUD RV RSHUDGRUHV GR
GLUHLWRXOWUDSDVVDQGRWDOYH]DIXQomRGHVFULWLYDTXHD³7HRULD3XUD
GR'LUHLWR´SUHWHQGHRVWHQWDUHDYDQoDQGRUXPRDXPDSUHFHSWLYD
Podemos formular tal preceito nos seguintes termos: quando se
trata de fazer ciência jurídica e de aplicar os conhecimentos que ela
RIHUHFHDRPXQGRSUiWLFRpQHFHVViULDXPDYLVmRDYDORUDWLYDFDSD]
GHXQL¿FDURHQWHQGLPHQWRGRIHQ{PHQRMXUtGLFRVRESHQDGHFDGD
UHDOLW\´.(/6(1+DYHULDRXWUDPDQHLUDGHFRQFHEHUPRV
o direito em sociedades que se querem livres e afastadas de toda fun-
GDPHQWDomRPHWDItVLFDGHVXDVQRUPDVMXUtGLFDV"-XOJDPRVTXHQmR
Evitar a invasão da província do direito – para usar uma expressão
FDUDD$XVWLQXPGRVSUHFXUVRUHVGH.HOVHQ±SHODVSRWrQFLDVTXH
DTXHUHPFRORQL]DUHXWLOL]DUSDUDVHXVSUySULRVLQWHUHVVHV7DOpD
alta tarefa da norma fundamental. Resta evidente nessa leitura a sua
XWLOLGDGHSUiWLFDHPHVPRDVXDMXVWL¿FDWLYDpWLFDPtQLPDQR(VWDGR
aplicador do direito mergulhar em seu subjetivismo e utilizá-lo como
IXQGDPHQWRSDUDDDomRRTXHVHULDXPDSRUWDHVFDQFDUDGDSDUDRV
DXWRULWDULVPRV DV SHUVHJXLo}HV RV IDQDWLVPRV RV IDYRUHFLPHQWRV
IDFFLRVRVHDXWLOL]DomRGRGLUHLWRHQTXDQWRLQVWUXPHQWRGHGRPtQLR
$H[LJrQFLDpWLFDPHGLDQWHDTXDOVHSUHVVXS}HTXHRVFLGD-
dãos têm direito a um sistema jurídico que os trate enquanto pessoas
UDFLRQDLV±DOJRFDURD'ZRUNLQSRUH[HPSOR±VRPHQWHSRGHVHU
FRQFUHWL]DGDTXDQGRSUHVVXSRPRVXPSULQFtSLRXQL¿FDGRUDSWRDUHGX-
FRQWHPSRUkQHRRTXDOSHORPHQRVHPWHVHGHYHVHUODLFR ]LUDFRPSOH[LGDGHVRFLDO/XKPDQQJHULUDLQGHWHUPLQDomRSUySULD

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 71 72 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
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do direito (Teubner) e, mais importante, evitar a inconsistência dos FLrQFLDFRQVHJXHID]HUpGHVFUHYHUSRUTXHFHUWRVVHQWLGRVVXEMHWLYRVGH

SULQFtSLRVMXUtGLFRV&RPHIHLWRDLQWHUSUHWDomRGDVQRUPDVSULQFLSLR- dever-ser podemRTXHQmRVLJQL¿FDdevem – lembremo-nos do caráter
OyJLFDVYDULDDRVDERUGDVLGHRORJLDVGRPRPHQWR&DVRQmRSRVVDPRV conjectural da hipótese fundante do ordenamento –, ser interpretados
UHFRQGX]LURVSULQFtSLRVDXPDLQVWkQFLDXQL¿FDGRUDGDQRomRPHVPD HQTXDQWRVHQWLGRVREMHWLYRVGHGHYHUVHU+2125e
de direito, inevitavelmente eles servirão para transformar o direito em 1DSUiWLFDRVRSHUDGRUHVGRGLUHLWRDGRWDPSRUUD]}HVSUR¿VVLRQDLV
XPPHFDQLVPRGHPDQLSXODomRGHFRPSRUWDPHQWRV+2125e o ponto de vista descritivo da ciência do direito, mas não sem antes
HQDGDPDLV3DUDHYLWDULVVRpTXHSUHVVXSRPRVXPDQRUPDIXQGD- GHVQDWXUiORHHPSUHVWDUOKHIXQo}HVSUHVFULWLYDV+2125e
PHQWDOGLQkPLFDFDSD]GHEOLQGDURRUGHQDPHQWRMXUtGLFRGLDQWHGDV RTXHMDPDLVIRLSURSRVWRSRU.HOVHQeHVWHGHVYLRLQWHUSUHWDWLYR
FRQVWDQWHVDPHDoDVGHLQYDVmRSRUSDUWHGDSROtWLFDGDHFRQRPLDGD ±FRQIXQGLUGHERDRXPiIpDSRVVLELOLGDGHGHSUHVVXSRUDQRUPD
UHOLJLmRHWF8PDYH]EHPVXFHGLGDVHVVDV³FRORQL]Do}HVGRGLUHLWR´ IXQGDPHQWDOSRVLomRGH.HOVHQFRPDQHFHVVLGDGHGHRID]HUSR-
legitimariam o juiz a decidir a favor do partido dominante, dos que VLomRGRVRSHUDGRUHVGRGLUHLWR±TXHSHUPLWHDPXLWRVTXDOL¿FDUR
SRVVXHPHPGHWULPHQWRGRVGHVSRVVXtGRVHSRU¿PSULYLOHJLDQGR positivismo como uma doutrina imperativista e comprometida com
VHXVSUySULRVLQWHUHVVHVHFUHQoDVVXEMHWLYRPHWDItVLFDV o autoritarismo. Já demonstramos em trabalho anterior como essa
&ODURQmRHVWDPRVDGHIHQGHUTXHWDOQmRRFRUUHRTXHFRU- maliciosa reductio ad HitlerumpIDOVD0$726
responderia a uma leitura simplista do direito. Mas aproveitando uma 2 TXH R SRVLWLYLVPR MXUtGLFR GHVFUHYH p LQVXSRUWiYHO SDUD
OLomRGH.HOVHQQmRpSRUDOJRDFRQWHFHUTXHGHYDRFRUUHUYLVWRTXH muitos, especialmente para os delicados e para aqueles que estão
XPDQRUPDGHYHUVHUQmRGHULYDGHXPIDWRVHUHYLFHYHUVDeSRU
ocorrerem tais absurdos na prática jurídica cotidiana que sentimos a
necessidade de torná-la mais e mais positivista, ou seja, comprome-
tida com a avaloratividade e capaz de enxergar o direito enquanto
LQVWUXPHQWRWpFQLFRGHRUJDQL]DomRVRFLDOHQmRFRPRPHFDQLVPR
GH PDQXWHQomR GR SRGHU IXQomR TXH HOH YHP GHVHPSHQKDQGR DR
longo dos tempos, mas que não precisa desempenhar, caso se aceite
a ideologia positivista.
comprometidos não com a ciência, mas com o poder. O juspositivis-
mo representa uma ciência capaz de olhar para si mesma no espelho
HYHURTXHUHDOPHQWHp(HODQmRp'HXVDQDWXUH]DDERDYRQWDGH
GH.DQWDMXVWLoDGH5DGEUXFKRXRVSULQFtSLRVPiJLFRVHGHOLUDQWHV
GRQHRFRQVWLWXFLRQDOLVPR5HÀHWLGDQRHVSHOKRMXVSRVLWLYLVWDHVWiD
nudez primacial do direito, a face opressiva da górgona do poder – a
LPDJHPpGH.HOVHQ±TXHSDUDGR[DOPHQWHGHYHVHDXWRFRQWURODU(LV
a ideologia kelseniana que perseguimos: enxergar o direito enquanto
6LPDSDODYUDpHVVDPHVPD8PDideologia positivista, livre PHUDWpFQLFDGHFRQWUROHVRFLDO&$55,12GHVYHVWLGR
do caráter sacrossanto da lei, terrível imagem que nos legou Hegel, SRUWDQWR GH TXDOTXHU FDUiWHU QHFHVVDULDPHQWH pWLFR 3RUTXH QmR
FRPR QRWD &DUULQR &$55,12   .HOVHQ VXVWHQWRX HP
várias oportunidades que não há qualquer razão moral que obrigue
o indivíduo a cumprir o que o direito ordena, i. e., não há como jus-
WL¿FDUDREHGLrQFLDDSDUWLUGHXPSRQWRGHYLVWDD[LROyJLFRGDGR
que os valores são relativos e mutáveis. Tal compreensão relativista
UHYHOD D EDVH D[LROyJLFD SDUDGLJPiWLFD GD 7HRULD 3XUD GR 'LUHLWR
H[LVWHpWLFDQHFHVViULDIRUDGDVPXUDOKDVGR(VWDGRSODW{QLFRRQGH
YLYHRUHL¿OyVRIR+iVLPYiULDVHPXWiYHLVpWLFDVTXHLQIRUPDPH
deformam o direito e, como tal, não se confundem com o seu ser,
SXUDPHQWHIRUPDO)RUPDOSRUTXHXQLYHUVDO'HVFULWtYHOHPHQVXUiYHO
(DRFRQWUiULRGDYRQWDGHGHSRGHUTXHLQIHVWDD³FLrQFLD´GRGLUHLWR
atual, controlável.
6$1726 1(72 6$1726 +(,1(1 3(5(,5$  -i TXH $LGHRORJLDMXVSRVLWLYLVWDVHUHVXPHQDWDOYH]XWySLFDSUHVVX-
QHQKXPDDYDOLDomRUHODWLYDpPHOKRUGRTXHRXWUD.HOVHQFRQFOXL SRVLomRGHXPDFLrQFLDGRGLUHLWROLYUHGHLGHRORJLDV³.HOVHQ¶VOHJDO
VHULPSRVVtYHOOHJLWLPDURGLUHLWRSHODYLDFLHQWt¿FD2Pi[LPRTXHD science is to be a non-ideological science, albeit a science having an

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 73 74 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011
 Andityas Soares de Moura Costa Matos Andityas Soares de Moura Costa Matos

object that is not neutral but is itself ideological; it is therefore a non- REFERÊNCIAS
LGHRORJLFDOVFLHQFHRIDVSHFL¿FLGHRORJ\WKHODZ´&$55,12
8PDLGHRORJLDQmRLGHROyJLFD"0XLWRVGLUmRTXHWDOFRUUHVSRQGH $$51,2$XOLV /DV UHJODV HQ VHULR ,Q$$51,2$XOLV 9$/'e6
a um ideal infantil, naïfLUUHDOHQ¿PLQDOFDQoiYHOHLPSHQViYHOQD
QRVVDUHDOLGDGHPHVTXLQKD5HVSRQGDPRORVDXWRSLDQmRpXPPRGR
de chegar, mas de continuar caminhando. Num universo que tende
SDUDRFDRVQmRpSHTXHQDDDYHQWXUDGDTXHOHVTXHFRPR.HOVHQ
tentaram fundar a ordem em meio à desordem, ou, falando em termos
gregos, revelar a verdade que se esconde nas dobras da aparência.
Por isso, apesar de todas as críticas honestas e desonestas, continua
YLYDHQWUHQyVDREUDGH.HOVHQ'RPHVPRPRGRTXHRVHVFULWRVGH
SHQVDGRUHVPDOGLWRVFRPR6DGH0DU['DUZLQ1LHW]VFKHH)UHXG
DPHQVDJHPGH.HOVHQDWUDYHVVDUiRVVpFXORVSRUTXHRVKRPHQVQmR
se resignarão a esquecê-la.
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3$8/6216WDQOH\/3$8/621%RQQLH/LWVFKHZVNLRUJVNormativity
and norms: critical perspectives on kelsenian themes. Trads. Bonnie
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82 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011 83
A NORMA FUNDAMENTAL DE HANS KELSEN COMO POSTULADO CIENTÍFICO

:5,*+7 *HRUJ +HQULN YRQ ,V DQG RXJKW ,Q 3$8/621 6WDQOH\ /
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perspectives on kelsenian themes. Trads. Bonnie Litschewski, Stanley L.
3DXOVRQ DQG 0LFKDHO 6KHUEHUJ 1HZ<RUN 2[IRUG&ODUHQGRQ 3UHVV SS


Recebido em 07/04/2011 – Aprovado em 19/05/2011

84 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011