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RESUMO
O artigo relaciona o consumo das imagens às teorias da afecção de Spinoza. Assumindo
entonação ensaística, problematiza a dimensão política e pergunta se uma Ética é possível
para as visualidades. Como somos afetados e como, nós mesmos, afetamos as imagens? Qual
a natureza das paixões iconoclastas e iconófilas e em que medida dialogam com embates
epistêmicos fundadores do campo da comunicação? Imagens sensacionais, representações da
violência aumentam ou diminuem nossa potência de agir? Por que motivos alimentamos, no
consumo das visualidades, paixões infelizes?
PALAVRAS-CHAVE
Imagem
Consumo
Afecção
ABSTRACT
The article aims to analyze the relationship between image’s consumption and Spinoza’s
theoretical framework, leading to the affections. Adopting an essayistic intonation, put in
question the political dimension of Ethics, and also argues if an ethics is possible to analyses
visibility. How we are affected by images, and how does we affect them? What is the nature
of iconoclasts and idolaters passions and how they dialogue with the epistemic questions that
constitute the communication area? Sensationalist’s images, representations of violence add or
decrease our potency of action? Why we use to adopt, in the consumption of images, unhappy
passions?
KEYWORDS
Image
Consumption
Affections
argumentação parecerá evidente, o que de modo em sua lógica, três figuras centrais: imagem,
algum nos desagrada, perceber que retomamos, território, comunicação. Mons (1994) procura
neste ensaio acadêmico, os clássicos e fervorosos caracterizar o que chama “o processo metafórico e
debates entre iconoclastas e iconófilos, que suas variantes”, defendendo que ele nos introduz
mereceram, em terras brasileiras, os olhares em uma economia ficcional que se superpõe a
atentos de pensadores como Norval Baitello, uma economia material. Segundo analisa, as duas
Arlindo Machado e Alberto Klein, em inúmeras disposições “formam um entrelaçamento perfeito
de suas obras. É realmente das guerras entre na complexidade dos intercâmbios” (Mons, 1994,
razão e sensibilidade que falamos aqui. Assim p. 10; tradução nossa). Assim, ter-se-ia que,
como, ao debater a vinculação que estabelecemos
com imagens dotadas de visualidade, o fazemos (a)s metáforas visíveis dos “campos” nos
para perguntar sobre os liames possíveis entre projetam irresistivelmente para uma poética
olhar e produção do conhecimento. Mais do do social, através dos efeitos de colagem,
de superposição das representações, de
que de uma erudição obscurantista acredito ser
invisibilidade, de virtualidade, de estalido
auspicioso apreender do estudo das imagens do sentido. Esta “poética”, amplificada em
uma nova possibilidade de ver, perceber e narrar grau máximo e às vezes esterilizada pelas
o mundo em que vivemos. Este mundo, povoado técnicas mediáticas, tem efeitos reais [...]. (A)
de corpos. E povoado de imagens, com sua fiel característica de nossa época é que o sistema das
família de materialidades. representações, o modo simbólico, se convertem
em flutuantes, aleatórios, metafóricos... Trata-se,
então, de que descrevamos uma tendência
Nossos sistemas de crença visual seriam da simbolização, de que proponhamos uma
fartamente ambíguos, circunstanciais e espécie de fenomenologia de um processo
de expressividade social no qual ficção e
ambivalentes, mas, ainda assim, engendrariam, realidade se confundem inextricavelmente, no
com perenidade lapidar, sistemas de poder qual sistemas hiperracionais e acontecimentos
irracionais se interpenetram estranhamente
que, curiosamente, pretendem-se da mais (Mons, 1994, p. 10-11; tradução nossa).
radical objetividade.
Temas como os da representação, da simulação
Se nos detivermos nas investigações e da referencialidade são tão fundamentais
desenvolvidas por Jean-Marc Vernier (1988), às Ciências da Comunicação quanto o são ao
em suas originais análises da televisão (lugar debate antropológico. Todavia, no plano em que
midiático que opera no cruzamento entre, por particularmente atuamos, este embate epistêmico
exemplo, o real, o ficcional e o tecnológico), é determinante. Tal dilema, constitutivo de nossa
torna-se possível uma definição mais próxima área de conhecimento, foi problematizado por
da dimensão relacional estabelecida com as Lucien Sfez (1994) em seu hermético e não menos
visualidades. A proposição do autor refere-se inspirador livro Crítica da Comunicação. Sfez (1994)
especificamente à elaboração tácita de contratos observa que uma crítica à comunicação demanda
de visibilidade, “uma sorte de convenção que se a distinção primordial entre o que ele qualifica
estabelece entre o medium TV e o público sobre como sendo, respectivamente, o núcleo epistêmico
a natureza do que é dado a ver” (Vernier, 1988, e a forma simbólica da comunicação. Interpretar,
p. 10). Vernier defende ser adequado classificar a neste caso, implica em diferenciar o universo
imagem televisual a partir de três ordens6, cada representado do universo da representação,
qual “implicando em certa forma de crença, de enfrentando o fato de conceitos comuns às
adesão, um julgamento daquilo que se mostra, ciências da comunicação constantemente
visando um telespectador ideal e prevendo um migrarem para a vida cotidiana, constituindo-se,
modo específico de relação deste com as imagens” em suas palavras, como realidades do mundo
(Vernier, 1988, p. 10; tradução nossa). social e político. O equívoco a ser desmontado
Alain Mons (1994) vai além, perguntando- é justamente o da confusão, o fato de tomarmos a
se não apenas sobre os contratos que se firmam, realidade representada como realidade diretamente
mas problematizando a lógica macrossocial expressa.
que os ordena. Pesquisador da conformação Para desfazer o engano, e enfrentando o
contemporânea da economia ficcional identifica, que ele denomina a força centrípeta da espiral
afecções. Afinal, se seguirmos Spinoza (2008) em p. 263). A crítica à reificação visual, portanto,
suas postulações, encontramos que os homens, exige, nestes termos, não se temer o mergulho
seus corpos e mentes, padecem de afetos de incessante na arriscada e ambivalente sedução
ódio, ciúme e soberba. Padecem de excessos, que das visualidades e dos próprios fetiches. E isto
podem, de fato, incapacitá-los de agir: tornam-se só se pode fazer em fluxo, na disposição mesma
presas de suas paixões, “pato-lógicos”. Tornam- para as metamorfoses.
se presas de um descomedimento desejante, que, W. J. T. Mitchel (1987), teórico da iconologia,
paralisando-os, fará com que permaneçam, por dedica-se a discussão similar, ao perguntar-se o
soberba ou terror, por exemplo, reféns da ordem que, afinal, são e desejam as imagens. Para o autor
paralisante de algumas de suas paixões. americano, imagem “[...] não é simplesmente
um tipo particular de signo, mas um princípio
Ética, estética, visualidades fundamental do que Michel Foucault chamaria ‘a
O antropólogo Massimo Canevacci (2008), ao ordem das coisas’” (Mitchell, 1987, p. 11; tradução
discutir os entrelaçamentos entre corpos humanos, de Rocha e Portugal). Neste sentido, a imagem é um
corpos objetais e corpos dotados de visualidade, acontecimento híbrido, exatamente porque mistura
recorre ao conceito de fetichismo e a uma teoria/ sujeito e objeto. É através dela, na verdade, que
método assumidamente “estupefatos”. Contando estes dois podem existir como “representação”,
com estes recursos advoga uma nova abordagem no sentido schopenhaueriano (Rocha; Portugal,
dos laços estabelecidos entre objetos, corpos e 2008). O “mundo como representação”, para
imagens, construindo uma linha argumentativa Schopenhauer (2001), surge na medida em que,
que, segundo analiso, pode ser interpretada a partir de estímulos (efeito), intuímos – talvez
como sendo de uma erótica, das visualidades. pudéssemos dizer “imaginamos” – objetos no
É novamente o desejo que se instala aí, nesta tempo e no espaço (causas). Assim, “toda noção
crítica da reificação visual que recusa análises de um objeto propriamente dito, isto é, de uma
pregressas, apreendendo o fetichismo para além representação perceptível no espaço, só existe
dos planos da alienação (Marx) e da perversão por e para o entendimento: longe de precedê-lo,
(Freud). deriva dele” (Schopenhauer, 2001, p.20).
Para Canevacci (2008), há uma lógica e um Edgar Morin, em seus precursores estudos
discurso publicitário sempre ali, costurando sobre a condição humana (2000) e o encanto
simbólica e literalmente as existências, como das imagens (1997), defende que a experiência
se, de fato, a idéia de uma automação tivesse da duplicidade nos constitui: somos natureza e
se deslocado dos corpos de metal, de madeira, cultura, sapiens e demens, finitos e eternizáveis.
de eletricidade e ondas magnéticas para o bios A imagem, na leitura moriniana, deverá
humano. E isto talvez possa ser atribuído à inexoravelmente ser percebida desde algumas
centralidade das visualidades na cena social e destas duplas fundações. Em primeiro lugar, ela
afetual da atualidade, imagens que, longe de serem existe na hibridação de sentimentos que mesclam
ideologizadas, expressam paradigmaticamente a um estar a um não-estar: a imagem é ausência
lógica sexualmente fantasmática que ordena o de uma presença e presença de uma ausência.
socius, mas, fundamentalmente, que rege, como Paralelamente, imagens são duplos dos próprios
sub-reptícia palavra de ordem, a dominância homens, numa gênese de materialização que é,
de mecanismos imaginários na regulação e des- em si, vinculada a experiências de negociação
regulação social. com planos de imaterialidade e invisibilidade.
Se uma esperança existe, sugere Canevacci As imagens dos sonhos, as imagens das sombras,
(2008), ela reside na sedução, nas iniciativas as imagens das visagens e as imagens das
intersticiais de cruzar e juntar improbabilidades – visualidades operariam, desta forma, em uma
estéticas, anatômicas, eróticas, teóricas. Mutações linha fronteiriça de irrealidade e de realização.
culturais sincréticas ganham visibilidade, E seria exatamente esta zona de hibridação entre
consolidando, no argumento do autor, algumas o visível e o invisível o berço e a efetiva matriz
proposições. Uma delas soa emblemática. da vida simbólica das imagens, estas que, muitas
Segundo o antropólogo, a experiência com os vezes, são decalcadas em objetos, corpos, suportes
fetiches e a fetichização, lança-nos um desafio a e midialidades (Rocha; Portugal, 2008).
um só tempo cognitivo e perceptual, impelindo o Jean Baudrillard (1992), com sua verve pro-
olho “a refinar-se em eróptica” (Canevacci, 2008, vocadora, defendeu, em algumas de suas mais
Ética de que falo é, em termos cabais, uma poética PERNIOLA, Mario. Do sentir. Lisboa: Presença, 1993.
da convivialidade. Tensa e conflituosa como toda ROCHA, Rose de Melo. É a partir de imagens que falamos do
união possível. Imageante e imaginária como toda consumo. In: BACCEGA, Maria Aparecida (Org.). São Paulo:
existência. É de uma utopia talvez que fale meu ESPM, 2009.
discurso sobre o consumo (ético) de imagens. É ______. Estética da violência. Por uma arqueologia dos vestígios.
1997. Tese (Doutorado) – ECAUSP, São Paulo, 1997.
assim, neste muito além dos cortes moralizantes,
que, talvez, possamos civilizar a dita civilização ROCHA, Rose de Melo; PORTUGAL, Daniel. Trata-se de
uma imágica? In: ARAÚJO, Denise; BARBOSA, Marialva.
das imagens. Conhecendo o que elas desejam de Imagíbrida. Porto Alegre: Editora Plus, 2008. (e-book).
nós. E nem sempre agindo movidos pela paixão
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação.
que nelas desejamos desejar. São Paulo: Contraponto, 2001.
SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola,
REFERÊNCIAS
1994.
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SPINOZA, Benedictus. Ética/Spinoza. Belo Horizonte:
os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1992.
Autêntica, 2008.
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Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
Quaderni, n. 4, primavera de 1988. Paris: CREDAP, Université
CANEVACCI, Massimo. Fetichismos Visuais. Corpos Erópticos Paris Dauphine. p. 9-18.
e Metrópole Comunicacional. São Paulo: Ateliê Editorial,
VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. Rio de Janeiro: Editora 34,
2008.
1993.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.
NOTAS
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar
no ocidente. Petrópolis: Vozes, 1993.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação
e Cultura”, do XIX Encontro da Compós, na PUC-Rio, Rio
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: de Janeiro, em junho de 2010.
Martins Fontes, 2007. 2 Refiro-me aos estudos de Daniel Portugal, que recen-
FREIRE COSTA, Jurandir. Violência e psicanálise. Rio de temente concluiu, sob minha orientação, a dissertação de
Janeiro: Graal, 1986. Mestrado “A imagem entre vinculações e interpretações:
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. consumo, mídia e estetização pelas lentes da Comunicação
e da Iconologia”, articulada à pesquisa “Consumo e cena
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. Lógica Cultural do midiática: culturas juvenis e políticas de visibilidade no
Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 2002. Brasil”, que desenvolvo junto ao PPGCOM-ESPM, na
KAPLAN, E. Ann (org.). Pós-modernismo. Teorias, Práticas. cidade de São Paulo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. 3 Alguns dos mais relevantes apresentados em encontros
LYOTARD, Jean-François. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: anteriores da Compós e sintetizados em Rocha (2009).
4 A esse respeito, ver Rocha (1998).
José Olympio, 1986.
MARTÍN-BARBERO, Jesus. Ofício de cartógrafo. Travessias
5
Adoto o termo seguindo as proposições de Mario Perniola
latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: (1993) que definirá a sensologia como um modo de sentir
Loyola, 2004. o mundo paradigmático das sociedades midiáticas. Tudo
é perpassado pelo sentir, que adquire uma dimensão
MITCHEL, Willian J.T. Iconology: image, text, ideology. anômica, primado de uma sensologia da exaustão e da
Chicago: The University of Chicago Press, 1987. monotonia. Tratar-se-ia de um sentir desprovido de
_______. What do pictures want? The lives and loves of images. surpresa, sentir obrigatório. O já-sentido é experiência
Chicago: University Of Chicago Press, 2005. jogada para fora de nós, através da qual o mundo chega-
nos já provado (Perniola, 1993, p. 14,16,17).
MONS, Alain. La metáfora social. Buenos Aires: Nueva Visón, 6 Imagem-profundidade, com um contrato de credibilida-
1994.
de, na presunção de uma objetividade pura; imagem-
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: superfície, com a qual o contrato é o do espetáculo, baseado
Relógio D’Água, 1997. na primazia da mise-en-scéne; e imagem-fragmento, com
______. O paradigma perdido. A natureza humana. Lisboa: seu contrato energético, pulsante, ligado à pura sen-
Europa-América, 2000. sação.